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AS CONVENÇÕES SANITÁRIAS INTERNACIONAIS ENTRE O IMPÉRIO
BRASILEIRO E AS REPÚBLICAS PLATINAS (1873 e 1887)
Cleide de Lima Chaves
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História Social, Instituto de Filosofia
e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutora em História.
Orientadora: Prof.ª Dra. Francisca Lucia Nogueira
de Azevedo
Rio de Janeiro
Abril/2009
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AS CONVENÇÕES SANITÁRIAS INTERNACIONAIS ENTRE O IMPÉRIO
BRASILEIRO E AS REPÚBLICAS PLATINAS (1873 e 1887)
Cleide de Lima Chaves
Orientadora: Francisca Lucia Nogueira de Azevedo
Tese de Doutorado submetida ao Programa de s-Graduação em História Social, Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como parte
dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em História.
Aprovada por:
_______________________________
Presidente Prof.ª Dra. Francisca Lucia Nogueira de Azevedo
_______________________________
Prof. Dr. Alcides Beretta Curi
_______________________________
Prof.ª Dra. Lina Maria Brandão de Aras
_______________________________
Prof.ª Dra. Marta de Almeida
_______________________________
Prof. Dr. Vitor Isecksohn
Rio de Janeiro
Abril/2009
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FICHA CATALOGRÁFICA
Chaves, Cleide de Lima.
As Convenções Sanitárias Internacionais entre o Império brasileiro e as Repúblicas
platinas (1873 e 1887)/ Cleide de Lima Chaves. – Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2009.
ix, 270 f; 31 cm.
Orientadora: Francisca Lucia Nogueira de Azevedo.
Tese (doutorado) UFRJ/ IFCS/ Programa de Pós-Graduação em História Social,
2009.
Referências bibliográficas: f. 238-246.
1. Saúde pública-história 2. História da medicina 3. Doenças 4.América Latina I.
Azevedo, Francisca Lucia Nogueira de. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Programa de Pós-Graduação em História Social. III. Título.
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RESUMO
AS CONVENÇÕES SANITÁRIAS INTERNACIONAIS ENTRE O IMPÉRIO
BRASILEIRO E AS REPÚBLICAS PLATINAS (1873 e 1887)
Cleide de Lima Chaves
Orientadora: Profa. Dra. Francisca Lucia Nogueira de Azevedo
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de s-Graduação em História Social,
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em História.
O estudo analisa as Convenções Sanitárias Internacionais que aconteceram na América
do Sul, em Montevidéu e no Rio de Janeiro, em 1873 e 1887, e que envolveram o Império do
Brasil e as Repúblicas da Argentina e Oriental do Uruguai, numa perspectiva de integração a
eventos similares que aconteceram na Europa e na América do Norte a partir da segunda
metade do século XIX. A maior parte da historiografia da saúde blica na América tem
abordado esses acontecimentos como fenômenos distintos. Entende-se, ao contrário, que eles
fizeram parte de um mesmo movimento internacional de resolver o problema dos surtos
epidêmicos de lera-morbo e febre amarela segundo os acordos multilaterais entre as nações
atingidas. Discutem-se os interesses dos países envolvidos no que se refere às relações
comerciais e ao fluxo imigratório europeu, que eram diretamente atingidos pelas epidemias.
Por fim, apontam-se as repercussões desses acordos sanitários nos demais países do
continente americano e na Europa. As Convenções Sanitárias americanas do final do século
XIX representaram as primeiras iniciativas do continente para solucionar os problemas de
saúde pública internacional.
Palavras-chave: Saúde Pública. Epidemias. Império Brasileiro. Repúblicas Platinas.
Rio de Janeiro
Abril/2009
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ABSTRACT
THE INTERNATIONAL SANITARY CONVENTIONS BETWEEN THE BRAZILIAN
EMPIRE AND THE PLATINA REPUBLICS (1873 e 1887)
Cleide de Lima Chaves
Orientadora: Prof.ª Dra. Francisca Lucia Nogueira de Azevedo
Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em História Social,
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em História.
The study analyzes the International Sanitary Conventions which happened in South
America, in Montevideo and Rio de Janeiro, in 1873 and 1887, and which had involved the
Empire of Brazil and the Republics of Argentina and Oriental Uruguay, in a perspective of
integration in similar events which took place in Europe and North America from the second
half of the nineteenth century. Most of the historiography of public health in America has
addressed these events as distinct phenomena. It understands that, on the contrary, they had
been part of one same international movement of resolving the problem of the epidemic
outbreaks of cholera morbus and yellow fever according to the multilateral agreements
between the nations that were affected. It discusses the interests of the countries involved in
what it refers to the commercial relations and the European migratory flow, and that were
directly hit by the epidemics. At last, it points out the repercussions of these sanitary
agreements in the other countries of American continent and Europe. The Sanitary
Conventions of the end of the nineteenth century had represented the first initiatives of the
continent in order to solve the problems of international public health.
Keywords: Public Health. Epidemics. Brazilian Empire. Platina Republics.
Rio de Janeiro
Abril/2009
18
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, agradeço ao Departamento de História da Universidade Estadual
do Sudoeste da Bahia pela minha liberação para cursar o Doutorado, e que espero poder
retribuir com a minha colaboração e comprometimento para o crescimento do curso de
História da UESB e para a melhoria da educação pública no Estado da Bahia.
Agradeço a CAPES pela bolsa a mim concedida em 2008, através do Programa de
Doutorado com Estágio no Exterior (PDEE) na Universidad de la República em
Montevidéu/Uruguai.
De forma muito especial, agradeço a minha orientadora Francisca Azevedo, por ter me
aceito como orientanda, pelo apoio e por haver contribuído para minha formação intelectual
durante o período do doutoramento.
Ao Programa de s-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de
Janeiro por ter me recebido. Aos professores Marcos Bretas e Andréa Daher, agradeço
imensamente o convívio e o enorme aprendizado durante as suas disciplinas.
À professora e amiga Lina Aras, da UFBA, por ter acreditado no meu projeto e por
sempre ter me orientado no caminho certo, ainda que muitas vezes tortuoso, do conhecimento.
Suas reflexões e contribuições intelectuais têm guiado minha vida.
À Professora Rachel Fróes, da Casa de Oswaldo Cruz/RJ, agradeço sua
disponibilidade em contribuir com o meu trabalho e o aprendizado adquirido junto ao
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências da FIOCRUZ.
À Marta de Almeida, agradeço a imensa generosidade em me abrir sua casa e sua
biblioteca para essa pesquisa. Suas contribuições foram fundamentais para o amadurecimento
da tese e seu desprendimento com as fontes e documentação recolhidas serviram a mim como
exemplo do que significa e para que serve a produção do conhecimento.
Ao amigo Roque Felipe de Oliveira Filho, pelo companheirismo durante esses anos de
convivência. Agradeço a ele as aulas” de solidariedade e amizade incondicionais prestadas
ao longo desse tempo.
No Rio de Janeiro, agradeço aos funcionários do Arquivo Histórico do Itamaraty, os
senhores Miranda e Messias, pelo carinho e atenção recebidos naquela instituição. E as
amigas Ana Valéria Otoni e nica, agradeço pela amizade e alegria compartilhadas durante
a estadia na capital carioca no ano de 2005.
19
No Uruguai, agradeço ao professor Alcides Beretta Curi, que muito contribuiu com
esse trabalho com suas lições de história uruguaia e as indicações de fontes e bibliografia que
ajudaram decisivamente no meu trabalho. Agradeço a competente bibliotecária da Faculdade
de Humanidades, a senhora Josefina. Sou grata ainda ao Departamento de História da
Medicina da Faculdade de Medicina da Univerdad de la República, em especial ao professor
Fernando Mañe Garzon, à professora Sandra Burgues, a Jo Maria Ferrari, a Marianela
Ramirez e Mariángela Santurio, que me receberam carinhosamente e me deram livre acesso à
documentação e a bibliografia daquela instituição. Às amigas Ellis, Letícia e Graciela, muito
obrigado por terem me dado tanta alegria no Río de la Plata.
Um agradecimento especial à professora Zélia Checker e a Cudia Sucro, por terem
corrigido meu trabalho e pela presteza com que me auxiliaram nessa etapa final.
À minha família – minha fortaleza – meus pais Antônio e Dineusa, que me permitiram
estudar, e sempre me incentivaram e me deram apoio irrestrito. Aos meus iros Antônio
Carlos, José Ricardo, e em especial a Sônia Cristina e Anselmo, que sempre estiveram atentos
e interessados no meu trabalho. A Isabel Cristina, cunhada e irmã, pelo incentivo constante.
Espero que o meu trabalho possa contribuir em algo para vocês também.
Ao meu marido Dannilo, sou muito grata pelo incentivo em todos os momentos da
elaboração deste trabalho. Sem ele, certamente esse caminho percorrido teria sido muito mais
árduo e difícil. Agradeço-o ainda pela enorme paciência e compreensão, e, principalmente,
pelo seu imenso amor, que busco retribuir, humildemente, neste agradecimento.
Não posso deixar de registrar minha enorme gratidão aos meus dois gatos de
estimação, Sushi e Brisa, por terem alegrado minha vida nesses últimos anos de
doutoramento. O trabalho intelectual é solitário e a sutil presença desses carinhosos seres na
minha vida cotidiana amenizou a minha solidão. E como afirmou Carlos Drummond de
Andrade:
Um gato vive um pouco nas poltronas, no cimento ao sol, no telhado sob a
lua. Vive também sobre a mesa do escritório, e o salto preciso que ele
para atingi-la é mais do que impulso para a cultura. É o movimento
civilizado de um organismo plenamente ajustado às leis físicas, e que não
carece de suplemento de informação. Livros e papéis, beneficiam-se com a
sua presteza austera. Mais do que a coruja, o gato é símbolo e guardião da
vida intelectual.
1
Uma vez mais, agradeço a Dan o despertar pelo amor aos animais e por poder
compartilhar com ele as alegrias pessoais e intelectuais de minha vida.
1
Extraído da crônica “Perde o gato” do livro Cadeira de Balanço, reeditado pela Record em 1998.
20
21
SUMÁRIO
LISTA DE SIGLAS
LISTA DE TABELAS
INTRODUÇÃO
11
12
13
CAPÍTULO I – ESTADOS NACIONAIS NA AMÉRICA DO SUL DO
SÉCULO XIX
1.1. Estados Nacionais no Brasil, Uruguai e Argentina: criação e consolidação
1.2. A Guerra do Paraguai
1.3. Relações ecomicas entre Brasil, Argentina e Uruguai
1.4. Epidemias e mudanças políticas e econômicas
1.5. Enfermidades X Imigrações: projetos de civilização nos trópicos
1.6. Diplomacia e epidemias
19
19
21
25
30
38
44
CAPÍTULO II CONFERÊNCIAS E CONGRESSOS SANITÁRIOS
INTERNACIONAIS: O LUGAR DA AMÉRICA DO SUL
2.1. As Conferências Sanitárias Internacionais
2.2. Confencias, diplomacia e saúde na América do Sul: problemas e
soluções
2.3. Epidemias e Quarentenas no Brasil e no Rio da Prata (século XIX)
2.4. Breve trajetória dos lazaretos no Brasil e no Rio da Prata na segunda
metade do século XIX
49
49
56
62
77
CAPÍTULO III A PRIMEIRA CONVENÇÃO SANITÁRIA
INTERNACIONAL DA AMÉRICA: MONTEVIDÉU (1873)
3.1. Epidemias e necessidade de soluções: contexto da realização do primeiro
convênio sanitário americano
3.2. A Convenção Sanitária Internacional de 1873: dinâmica e resultados
alcançados
3.3. Antecedentes da Convenção Internacional de 1887: conflitos e acordos no
início da década de 1880. Convênio Sanitário de 1884 entre Argentina e
Uruguai
80
80
89
108
CAPÍTULO IV O CONGRESSO SANITÁRIO INTERNACIONAL DO
RIO DE JANEIRO (1887)
4.1. A epidemia de cólera de 1886/87 no Rio da Prata
4.2. Um relato de viagem ao Rio da Prata e ao Brasil (1886-1888)
4.3. A Convenção Sanitária Internacional de 1887: antecedentes
4.4. A Convenção Sanitária Internacional do Rio de Janeiro em 1887
112
114
138
144
156
22
CAPÍTULO V “PESQUISADORES DE UMA VERDADE
EXPERIMENTAL AINDA NÃO COMPROVADA”: A CIÊNCIA
MÉDICA NA CONVENÇÃO DE 1887
5.1. Experiência científica com a carne de charque
5.2. Comissão científica para o estudo da febre amarela
5.3. Criação do cargo de inspetor sanitário de navio
160
166
175
181
CAPÍTULO VI REPERCUSSÕES REGIONAIS E INTERNACIONAIS
DOS CONGRESSOS SANITÁRIOS DE 1873 E 1887: ENTRE
COMEMORAÇÕES E PROTESTOS
6.1. Repercussões do Congresso Sanitário de 1873
6.2. Repercussões regionais da Convenção Sanitária Internacional de 1887: a
imprensa platina e brasileira
6.3. Repercussões americanas da Convenção Sanitária Internacional de 1887
6.4. Repercussões européias: entre protestos e questionamentos da Convenção
Sanitária de 1887
6.5. Depois de 1887: entre denúncias e realizações de novos congressos
sanitários latino-americanos
6.6. O Congresso Sanitário Internacional de 1904: apontamentos
185
185
190
203
209
220
227
CONSIDERAÇÕES FINAIS
231
FONTES
234
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
238
ANEXOS
247
23
LISTA DE SIGLAS
AGNU – Arquivo Geral da Nação do Uruguai
AHI/RJ – Arquivo Histórico do Itamaraty do Rio de Janeiro
AN/RJ – Arquivo Nacional do Rio de Janeiro
BANM – Biblioteca da Academia Nacional de Medicina (RJ)
BN/RJBiblioteca Nacional do Rio de Janeiro
BNU – Biblioteca Nacional do Uruguai
24
LISTA DE TABELAS
TABELA 1
Perdas do contingente da Esquadra em combates, por
acidente e por moléstias entre quatro de agosto de 1864 e
31 de março de 1870
p. 31
TABELA 2
Confencias Sanitárias Internacionais
p. 54
TABELA 3
Porcentagem média da produção de charque
p.123
TABELA 4
Origem dos Imigrantes na Argentina (1857-1930)
p.212
25
INTRODUÇÃO
O presente trabalho busca analisar dois encontros sanitários internacionais, ocorridos,
respectivamente, em Montevidéu em 1873 e no Rio de Janeiro em 1887, onde se reuniram
representantes de três Estados sul-americanos: Brasil, Argentina e Uruguai.
O tema Convenções Sanitárias de 1873 e 1887 surgiu em pesquisa de mestrado,
quando foram evidenciadas as relações comerciais entre as cidades de Salvador, Buenos Aires
e Montevidéu, entre 1850 e 1889 (CHAVES, 2001), mas não foi devidamente aprofundado
naquele momento; deu-se ênfase às epidemias como grandes entraves das relações
comerciais. O lera-morbo e a febre amarela apareciam constantemente na documentação
pesquisada, pelo fato de circularem intensamente entre os portos desses países, porém, na
dissertação de mestrado, onde o interesse era perceber as redes de comércio estabelecidas,
deu-se pouca ênfase à questão das doenças. Ao finalizar a dissertação e iniciar as leituras
sobre a história das poticas e instituições de saúde pública no Brasil, constatou-se a quase
inexistência de estudos que relacionassem as condições de salubridade e as poticas sanitárias
no Brasil, na Argentina e no Uruguai no século XIX.
Países próximos geográfica e culturalmente, ao longo do século XIX, comercializaram
produtos, declararam guerras entre si, disputaram mão-de-obra imigrante e, por fim,
enfrentaram dificuldades semelhantes, no que diz respeito aos circuitos epidêmicos. As
Convenções Sanitárias de 1873 e de 1887 serviram como caminho de unificação entre as três
nações com o objetivo de resolver os problemas de ordem sanitária.
A historiografia tradicional estabeleceu uma dicotomia entre a América portuguesa e a
América espanhola de forma a cristalizar uma separação histórica que dificulta o
entendimento das relações estabelecidas no espaço geográfico que forma o continente
americano. É necessária a realização de pesquisas que problematizem essa dicotomia e que
elucidem as lacunas existentes na historiografia. Este trabalho pode suprir, ainda que
parcialmente, esse hiato na história da saúde blica entre os três países, aproximando-os
historicamente.
Faz-se mister, inicialmente, discutir os termos conferência, convenção e congresso
utilizados para denominar os eventos de caráter internacional, que estiveram na pauta de
diversos países, na Europa e na América, ao longo da segunda metade do século XIX, e que
tiveram vários enfoques: potico, científico, cultural, econômico, profissional etc.
26
Destacaram-se os congressos científicos, que buscavam divulgar e uniformizar as práticas
científicas pelo mundo.
O desenvolvimento do capitalismo no século XIX transforma radicalmente
a sociedade internacional. Por sua vez, as profundas mudaas econômicas,
sociais e tecnológicas trazem com elas a crença no valor absoluto da
ciência, enquanto principal motor de desenvolvimento e progresso. Em
conseqüência, o número mundial de cientistas aumenta consideravelmente
ao longo do século, passando de aproximadamente dez mil, em 1850, a mais
de cem mil, em 1900. Concomitantemente, cresce o número de publicações
e de eventos: são realizados 50 congressos no período de 1840 a 1860, e
2.095 congressos entre 1901 e 1914. A maior parte dos congressos
internacionais é de natureza cienfica e técnico-profissional. O número de
congressos de natureza política ou ideológica, assim como o número de
congressos confessionais muito importantes em meados do século XIX
(aproximadamente 32% do total) diminuem no início do século XX
(aproximadamente 12%). (SUPPO, 2003)
As Convenções Sanitárias de 1873 e de 1887 foram denominadas, pela própria
documentação e bibliografia encontradas, ora como congressos, ora como conferências
sanitárias. Do ponto de vista dos dicionários atuais, não há uma grande diferença na definição
desses termos. Eles são, inclusive, apresentados como sinônimos.
Conferência: convenção; reunião de representantes ou delegados de vários
países para discutirem problemas internacionais; junta de médicos que
reciprocamente se consultam e esclarecem sobre o estado de um doente ou
sobre medidas sanitárias.
Congresso: reunião de diplomatas para tratarem de problemas
internacionais; conferência.
Convenção: acordo ou pacto internacional, particularmente para decisão
dum assunto específico, como serviço postal, direito autoral, arbitragem,
etc.; encontro, reunião ou assembléia de indivíduos ou representações de
classe, de associações, etc., onde se delibera sobre determinados assuntos;
conferência; congresso.
2
A historiografia da saúdeblica convencionou utilizar o termo conferência para
designar os encontros que discutiam os problemas sanitários comuns a vários países,
ocorridos desde o ano de 1851, na França, até o ano de 1938, quando aconteceu, igualmente
na França, a última modalidade das denominadas Conferências Sanitárias Internacionais, as
quais foram substituídas por outros organismos internacionais criados s-Segunda Guerra
Mundial, como a Organização Mundial de Saúde (OMS).
No presente trabalho, os termos conferência e congresso serão usados prioritariamente
para designar reunião de delegados com a finalidade de decidir algum assunto, enquanto o
2
Dicionário Aurélio Eletrônico. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1999.
27
termo convenção será utilizado para pacto, ajuste ou, até mesmo, para nomear o resultado
prático das conferências e dos congressos.
Denominar-se-ão os eventos ocorridos em 1873 e 1887, em Montevidéu e Rio de
Janeiro, respectivamente, de Congressos e/ou Convenções Sanitárias e buscar-se-á
acompanhar a nomenclatura da própria documentação pesquisada.
Se, para a Europa, as Conferências Sanitárias Internacionais foram a gênese da
Organização Mundial de Saúde (OMS), para a América, as Convenções Sanitárias
Internacionais de 1873 e 1887 significaram os primórdios da Organização Pan-Americana de
Saúde (OPAS). A OPAS teve como marco inicial a Primeira Convenção Sanitária
Internacional das Repúblicas Americanas, ocorrida em 1902 em Washington (Cueto, 2004).
Portanto, a Organização Pan-Americana é mais antiga do que a Organização Mundial de
Saúde, o que evidencia o pioneirismo da América no que se refere à saúde internacional.
Apesar de existirem referências acerca das convenções sanitárias internacionais, que
envolveram o Brasil, o Uruguai e a Argentina, não havia nenhum estudo que articulasse a
história do sanitarismo entre esses países na segunda metade do século XIX. A questão,
portanto, que norteou a pesquisa foram os motivos que levaram essas nações a discutir
problemas sanitários. O cruzamento de diversas temáticas, como comércio internacional,
doenças epidêmicas e imigração européia, ajudou a explicar a ocorrência desses eventos de
caráter internacional.
A história da saúde blica internacional articula diversas estruturas sociais, como
chama a atenção o historiador argentino Diego Armus (2002, p.43): “la historia de la salud
pública, por su parte, destaca la dimensión potica, dirige su mirada al poder, la potica, el
estado, la profesión dica. Es, en gran medida, una historia atenta a las relaciones entre
instituciones de salud con estructuras económicas, sociales y poticas”.
Dessa forma, buscou-se, no Capítulo I, traçar um grande esboço das condições
políticas e econômicas dos três países e evidenciar principalmente os elementos de conflito e
de integração entre eles ao longo do século XIX, como a Guerra do Paraguai (1865-1870), o
comércio regional, a imigração européia e os surtos epidêmicos. Para tanto, recorreu-se a uma
bibliografia consolidada sobre as relações internacionais entre as três nações sul-americanas.
No Capítulo II, o objetivo foi situar as convenções sanitárias internacionais entre
Brasil, Uruguai e Argentina no contexto das Conferências Sanitárias Internacionais iniciadas
na França em 1851. As instituições de saúde desses três países também foram destacadas
nesse capítulo, assim como os entraves sanitários impostos no século XIX para evitar a
disseminação das epidemias de febre amarela e cólera. As fontes utilizadas foram as
28
correspondências diplomáticas e os periódicos que informavam sobre as epidemias e as
quarentenas impostas aos navios que circulavam nos portos argentinos, uruguaios e brasileiros
nesse período.
A Convenção Sanitária Internacional de 1873, realizada na cidade de Montevidéu, é o
tema central do Capítulo III, cujo objetivo foi mostrar o evento desde a sua concepção até os
resultados alcaados. Utilizou-se, predominantemente, a correspondência diplomática
localizada no Rio de Janeiro e em Montevidéu.
Os temas sanitários tiveram destaque nos órgãos consulares e nas missões
internacionais do Brasil no Rio da Prata, e vice-versa. A maior produção documental ocorreu
a partir do último quartel do século XIX, quando assuntos militares e policiais foram
reduzidos e deram lugar a temas econômicos, jurídicos, sanitários e científicos. Pode-se
explicar essa redução, em grande medida, em função do fim da Guerra do Paraguai (1864-
1870), da estabilização das fronteiras e dos vários tratados de limites estabelecidos ao longo
dos Oitocentos. Interessava às nações, a partir de então, discutir e assinar acordos que
visassem ao desenvolvimento econômico e tecnológico dos povos, sem precisar recorrer,
inevitavelmente, à força bélica. A potica exterior do Brasil, da Argentina e do Uruguai na
segunda metade do século XIX gerou um extenso volume de documentos acerca dos
problemas sanitários. A documentação diplomática pesquisada constitui-se de
correspondência oficial entre o Ministério dos Negócios Estrangeiros
3
do Brasil e as Missões
Diploticas e Repartições Consulares Brasileiras no Exterior, em especial as legações e os
consulados do Brasil na Argentina e no Uruguai, da correspondência do Ministério das
Relações Exteriores do Uruguai e suas repartições consulares no Brasil e na Argentina e da
troca de correspondência entre as repartições brasileiras e uruguaias no exterior e as
respectivas chancelarias dos países nos quais estavam sediadas. O Arquivo Histórico do
Itamaraty, localizado no Rio de Janeiro, guarda todos os acordos, tratados e atos
internacionais do Império, inclusive das duas primeiras convenções sanitárias ocorridas entre
o Brasil e as Repúblicas da Argentina e do Uruguai, com todas as atas, correspondências
reservadas e discussões internas. O Arquivo Geral da Nação, em Montevidéu, igualmente
preserva a documentação diplomática uruguaia e nele é possível encontrar a documentação
gerada pelas Conveões de 1873 e de 1887. O Senado da República do Uruguai publicou,
em 1993, todos os tratados e convênios internacionais assinados pelo Uruguai desde 1830 até
a década de 1990. Nessa extensa publicação, podem-se encontrar as duas Convenções
3
O Ministério dos Negócios Estrangeiros foi criado em 1822 por José Bonifácio e passou a ser chamado
Ministério das Relações Exteriores, após a proclamação da República em 1889 (Castro, 1983).
29
Sanitárias Internacionais estudadas aqui, publicadas integralmente em um capítulo intitulado
Sanidad. Portanto, uma significativa massa documental foi produzida sobre os problemas
sanitários relacionados à chegada de epidemias nos países vizinhos, com o fim de alertar as
autoridades blicas sobre as provincias necessárias, existentes na época, para evitar o
avanço epidêmico. O acervo documental diplomático brasileiro e platino referente ao último
quartel do século XIX encontra-se ainda repleto de fontes inéditas e inexploradas pela
historiografia sobre sanitarismo, congressos e conveões médicas e sanitárias realizadas.
No Capítulo IV, a discussão está centrada no Congresso Sanitário Internacional de
1887, ocorrido no Rio de Janeiro, em que se envolveram o Império do Brasil e as Repúblicas
da Argentina e do Uruguai. Procurou-se evidenciar as motivações econômicas para a sua
realização e as decisões tomadas, como a assinatura de uma Convenção Sanitária
Internacional, primeira desse gênero no Ocidente.
As relações internacionais na área sanitária, na segunda metade do século XIX, não se
estabeleciam apenas no âmbito das poticas governamentais e das instituições consulares, a
produção científica igualmente se internacionalizava, graças também ao apoio de importantes
instituições de ciência, como o Museu Nacional do Rio de Janeiro. Como destaca Margareth
Lopes, os intercâmbios científicos assumiram uma importância crescente, com a constituição
das redes de interesses, nacionais e internacionais, evidentemente múltiplos na diversidade
das áreas disciplinares já constitdas, inclusive nas questões relacionadas com a saúde
pública e as doenças epidêmicas. Médicos brasileiros, argentinos e uruguaios convocados para
contribuir na preparação das duas convenções sanitárias trocaram conhecimentos e
elaboraram novos saberes com experiências científicas conjuntas desenvolvidas em
laboratório. É o que se destaca no Capítulo V, com a experiência desenvolvida por
pesquisadores brasileiros e uruguaios com a carne de charque, no laboratório de Fisiologia do
Museu Nacional, em 1887, para comprovar se o produto era veículo transmissor do micróbio
do cólera.
Por fim, o Capítulo VI trata das repercussões internas e externas dos dois congressos
sanitários sul-americanos. Destacam-se o debate na imprensa brasileira e platina e as
repercussões nos países latino-americanos e europeus.
Os anexos do presente trabalho são, basicamente, a legislação sanitária produzida pelo
Brasil, Uruguai e Argentina: a Convenção Sanitária de 1873; a Convenção Sanitária de 1887 e
o regulamento sanitário internacional. O objetivo da transcrição do material na presente tese é
para que possam ser mais bem divulgados e sirvam de consulta durante a leitura do trabalho.
30
O final do século XIX foi apenas o início de acordos e congressos ligados às questões
de salubridade e epidemia. Muitos outros intercâmbios ocorreram no alvorecer do século XX
e mesmo nos dias atuais. São questões ainda pendentes na agenda dos países os temas
relacionados às epidemias advindas das modificações genéticas e da aceleração dos meios de
transporte, que aproximam ainda mais os povos e os germes.
O conhecimento desses eventos evidencia a longa relação construída entre alguns
países sul-americanos, que passaram por conflitos armados, disputas territoriais e por acordos
econômicos e sanitários ao longo do século XIX.
31
CAPÍTULO I – ESTADOS NACIONAIS NA AMÉRICA DO SUL DO SÉCULO XIX
O presente capítulo tem como objetivo principal evidenciar o processo político do
Império brasileiro e das Repúblicas platinas entre o final da Guerra do Paraguai, em 1870, e a
Proclamação da República, no Brasil, em 1889, enfatizando e discutindo os projetos de
civilização esboçados em cada um dos governos. Em síntese, o que se pretende é
contextualizar estes países – Brasil, Argentina e Uruguai na época da elaboração das
Convenções Sanitárias Internacionais ocorridas em 1873 e em 1887.
O período em estudo esteve fortemente marcado por alguns importantes
acontecimentos: os desdobramentos da Guerra do Paraguai (1864-1870) na década de 1870; a
crise da Monarquia brasileira; e o crescimento vertiginoso da imigração européia na
Argentina, no Uruguai e no Brasil nos anos de 1880. Nessas diferentes décadas, foram
registrados surtos epidêmicos de febre amarela e cólera, que perturbaram a potica externa e a
economia desses países, produziram medo e pânico nas populações e nos governos e
motivaram o combate conjunto a esses flagelos, entrelaçando o jogo de interesses comuns
desses Estados no final do século XIX. Vale destacar que tanto o Brasil quanto a Argentina e
o Uruguai idealizaram projetos de “fazer a civilização européia nos trópicos” (CHALHOUB,
1996), em que questões como higiene e urbanização assumiram papel importante.
1.1. ESTADOS NACIONAIS NO BRASIL, URUGUAI E ARGENTINA: CRIAÇÃO E
CONSOLIDAÇÃO
Para o Brasil, a consolidação do Estado imperial dependia, em grande medida, do
rumo seguido pelas repúblicas vizinhas” (FERREIRA, 2006, p.69). Como ressalta a
historiadora Gabriela Ferreira, a construção do Estado brasileiro durante o século XIX tem
sido vista, primordialmente, pelas suas estruturas internas, como a consolidação de uma
monarquia constitucional e a manutenção da unidade territorial. No entanto, as relações entre
o país e as repúblicas vizinhas foram fundamentais para as questões da unidade do território e
das formas de governo. E, mais do que isso, “uma monarquia entre repúblicas não poderia
jamais ser um reino, ocupado apenas com os necios internos às suas fronteiras. A
sobrevivência da monarquia na América dependia, portanto, perigosamente, de sua condição
imperial” (COSTA, 1996, p.146). Ou seja, era preciso defender, a todo o momento, as
fronteiras territoriais e a existência de um imperador e de seu reinado rodeados de repúblicas.
32
O Uruguai formou-se como Nação independente desde 1828, por ocasião da
pacificação entre o Império do Brasil e a Confederação argentina. No entanto, a consolidação
e estruturação desse país iriam ocorrer após a década de 1870, com o início do processo de
pacificação interna
4
e a vigência de um Estado com administração centralizada, exército
permanente e moeda própria, como destaca Pedro Barrán (1990, p.20):
El Estado, con muy poco peso como factor de poder en 1870, era fuerte y
obedecido en 1890. Gozaba del monopolio de la coacción física luego de
los gobiernos militares (1876-1886) y ello lo haa respetable. Las
revoluciones ya no eran endémicas sino esporádicas; antes se ambientaban
en una nación sin fronteras ni consciencia nacional definidas, en medio de
gobiernos débiles y grupos sociales que se disputaban la propiedad de la
tierra: ahora debían gestarse en medio de la hostilidad de los estancieros
enriquecidos, de un sentimiento nacional que observaba con malos ojos la
alianza con el extranjero, y de un Estado que había puesto las técnicas del
siglo XIX al servicio de un aparato coactivo: telégrafo, ferrocarril, fusil de
repetición, artillería.
Portanto, a República uruguaia do final do século buscava maior autonomia em suas
relações internacionais, com as tentativas de impor os seus interesses junto aos países mais
influentes em seu território, quais sejam o Brasil e a Inglaterra. É certo, porém, que, apesar do
paulatino fortalecimento do Estado oriental, sua economia sofreu diversos golpes no final do
século XIX e início do século XX, o que inviabilizou seu projeto de independência
econômica.
Para a Argentina, a consolidação do Estado nacional ocorreu com o reconhecimento,
por todas as províncias argentinas, de Bartolomé Mitre como presidente da República em
1862. Mesmo tendo se tornado independente da Espanha desde 1810, o processo de formação
desse novo país também foi regido por conflitos bélicos internos, entre proncias que
disputavam a centralização geopotica do país. De acordo com Boris Fausto e Fernando
Devoto (2004, p.58-59),
A efetiva unidade viria a se concretizar somente em 1862. Mesmo depois
disso, a 1880, o novo governo central careceria não apenas de uma capital,
mas de uma instituição financeira e ade algo inerente à soberania como a
faculdade de emitir moeda. Por outro lado, as elites argentinas tinham uma
procedência muito mais heterogênea e não contavam com espaços
formativos comuns, fossem educativos ou de sociabilidade, embora uma
parte dessas elites tivesse compartilhado o exílio no Chile e no Uruguai,
durante a ditadura de Rosas.
4
O Uruguai conviveu com diversas disputas e guerras internas durante quase todo o século XIX, com destaque
para a Guerra Grande, que perdurou de 1839 a 1851, além das muitas disputas políticas entre os Partidos Blanco
e Colorado, que ocasionavam grande debilidade e desequilíbrio econômico para o país (Barrán, 1990).
33
A Argentina ainda contaria com outro importante fator na formação de sua
nacionalidade: a forte imigração iniciada na década de 1880, que será abordada ao longo deste
trabalho.
1.2. A GUERRA DO PARAGUAI
A Guerra do Paraguai (1864-1870) significou um dos momentos cruciais de disputa
territorial e de afirmação dos Estados nacionais nela envolvidos. O final da guerra marcou,
para o Império do Brasil e para as Repúblicas da Argentina e do Uruguai, uma série de
redefinições dos papéis exercidos, política e economicamente, por estes Estados na região
platina. Após a derrota do Paraguai pela Tríplice Aliança, restava calcular os ganhos e os
prejuízos desses países. Do ponto de vista econômico, o Brasil foi o país mais prejudicado. O
Império sustentou praticamente sozinho toda a guerra com enorme contingente de homens e
de armas.
Os custos com o conflito fizeram desviar grande volume de capital, que deveria ter
sido empregado na modernização do país. Calcula-se que, de acordo com o próprio Tesouro
Real, o gasto com a guerra foi de 614 mil contos de réis. Para se ter uma noção da grandeza
dessa verba, “basta comparar com o orçamento do Império para 1864, que era de 57 mil
contos de réis. [...] O conflito custou, pois, ao Brasil, quase onze anos do orçamento público
anual, em valores de pré-guerra” (DORATIOTO, 2002, p.462), o que permite perceber o
quanto os cofres públicos permaneceram em “déficit” nas décadas de 1870 e 1880.
As Repúblicas da Argentina e do Uruguai, no âmbito das relações econômicas, em
certa medida lucraram com a guerra. O impulso recebido pelo comércio platino com a Guerra
do Paraguai, como destaca Lilia Medrano (1989, p.268), com as compras de cavalos e de
produtos comestíveis feitos pelo governo imperial para o abastecimento do exército,
provocaram uma euforia que levou à especulação de terras e investimentos improdutivos, e
aumento das importões”. Na realidade, a guerra foi lucrativa para alguns poucos que se
beneficiaram dela, como fornecedores, comerciantes e atravessadores, quer uruguaios,
argentinos quer brasileiros
5
.
Especialmente o Uruguai obteve um crescimento econômico considerável: em
primeiro lugar, pela localização estratégica do porto de Montevidéu, que servia de entreposto
5
No romance Iaiá Garcia, de Machado de Assis, um interessante personagem, Procópio Dias, que simboliza
os lucros obtidos com a Guerra no Paraguai “onde fora negociar e triplicar os capitais, o que lhe permitiu
colocar-se acima das viravoltas da fortuna”. Ver: ASSIS, Machado. Iaiá Garcia. São Paulo: Ática, 1998, p.61.
34
comercial entre o Brasil e a Europa com a Argentina e o interior platino e base de
abastecimento das forças brasileiras durante a guerra; em segundo, pelo aumento da influência
dos comerciantes estrangeiros na capital uruguaia, em razão da prosperidade alcançada com a
Guerra do Paraguai (ODDONE, 2002); e, por fim, pela influência do ouro brasileiro, que
dinamizou a economia da região, com incremento na ovinocultura e consolidação da produção
do charque. O Uruguai conseguiu desenvolver seu mercado interno com a expansão da
produção bovina, um pequeno crescimento industrial e o auge comercial vivido no final da
década de 1860 (MILLOT; BERTINO, 1996). Com o final da guerra, o país inicia o processo
de desenvolvimento industrial, com o capital injetado durante a guerra, como recorda Juan
Oddone (2002, p.611):
Em 1870, o Uruguai tradicional, chamado pelo Barão de Mauá, empresário
brasileiro, “politicamente, economicamente e financeiramente um cadáver”,
estava em processo de fragmentação. Os comerciantes, muitos deles de
origem estrangeira, haviam aumentado sua influência em razão da
prosperidade alcançada na Guerra da Tríplice Aliança com o Paraguai
(1865-1870). Exigiam agora uma garantia de manutenção de sua riqueza e
proeminência: um governo forte e a paz interna.
Se, no princípio da guerra, os três países que formaram a Tríplice Aliança em 1865
juntaram-se para combater um inimigo em comum e travar uma longa guerra, findado o
conflito, modificaram suas relações poticas na região do Rio da Prata. No caso do Brasil, “os
reflexos da guerra da Tríplice Aliança sobre o pensamento político são evidentes:
alimentaram a vontade de paz nas relações externas” (CERVO, 1981, p.117), e a potica da
o-intervenção ou da distensão, como sugerem Cervo e Bueno (2002), preponderou até o
final do Império. Ou seja, todos os esforços foram empregados para manter relações amistosas
com os países platinos, desde que fossem preservados os interesses do Império na região. A
definitiva emancipação do Uruguai em relação à Argentina e ao Paraguai, articulado em torno
de Montevidéu, e da Argentina, que passou a se articular em torno do porto de Buenos Aires,
fizeram com que as velhas rivalidades e as disputas entre as duas cidades-porto fossem
reconfiguradas e se redesenhasse o mapa potico e de circulação econômica regional. O
Uruguai também passou a compartilhar do desejo de manter a paz externa e, principalmente,
interna. A partir daí, a diplomacia seria a principal responsável pela solução dos conflitos,
como destacou Vitor Izecksohn (2005, p.105):
A derrota paraguaia e as negociações de paz subseqüentes criariam uma
nova situação no Prata. Apesar das tensões políticas e do constante
reequipamento militar, a guerra, no sentido do uso de violência organizada
entre Estados, desapareceu da região. A partir da década de 1870, o
fortalecimento dos Estados nacionais, especialente nos dois principais
35
protagonista, baniu a guerra como forma preferencial de resolução de
conflitos. Guerras civis contoinuaram acontecendo, mas então com
influência limitada aos territóris delimitados de cada Estado nacional.
A prova mais evidente do esforço de paz foram os episódios que envolveram a
cobrança das dívidas de Guerra do Paraguai com o Império, as quais, de acordo com os
convênios de 1872, eram de duas naturezas: a dívida blica, de governo a governo; e as
dívidas privadas do Paraguai para com brasileiros prejudicados em seus bens com as invasões
ao Mato Grosso e Rio Grande do Sul.
Na década de 1880, um pequeno grupo político no Parlamento brasileiro, liderado pelo
senador rio-grandense Henrique Francisco d’Ávila, radical de linha dura e apologista da
guerra necessária, reclamava do governo brasileiro a cobrança das dívidas, ao que o Barão de
Cotegipe negou, em plenário no ano de 1886, em razão da falência do governo paraguaio,
pois não convinha mais ao governo brasileiro recorrer a qualquer tipo de ação coercitiva, haja
vista o desgaste pelo qual passara durante a guerra, mesmo tendo feito gastos vultosos com o
conflito e saído dele, apesar de vitorioso, desgastado politicamente (CERVO; BUENO, 2002,
p.132). Em 1887, o Barão novamente externa a posição do governo brasileiro em relação ao
Paraguai: O pagamento não está feito e o governo não pode fazer pressão sobre o Paraguai,
que o está em circunstâncias de satisfazer a dívida... o Brasil não pode e o deve aumentar
a aflição em que ficou o Paraguai depois da guerra”
6
.
A guerra e a paz subseente selaram definitivamente a “questão platina”, sem mais
disputas bélicas nem em torno do Uruguai nem do Paraguai, porém os novos rearranjos, sem
dúvida, eram mais complexos, dadas as tensões permanentes entre o Brasil e a Argentina nas
décadas seguintes, embora sem desembocar em confrontos abertos
7
. Os tratados de paz
assinados em separado hostilizaram os ministérios exteriores das duas nações. O Brasil
assinou os tratados definitivos de paz, amizade, comércio, navegação e limites com o
Paraguai em 1872 sem atender às reivindicações de territórios exigidos pela Argentina e
desrespeitando os termos da Tríplice Aliança. O Artigo 6º desse documento afirmava que:
Os aliados se comprometem solenemente a não depor as armas se o de
comum acordo, e somente depois de derribada a autoridade do atual
6
Fala do Barão de Cotegipe nos Anais da Câmara dos Deputados, na sessão de 13 de julho de 1887. Apud
Cervo, 1981, p.113.
7
As rivalidades entre Brasil e Argentina datam dos anos 1820, quando se enfrentaram pela banda oriental, atual
Reblica do Uruguai. Nas três últimas décadas do século XIX, o Império brasileiro e a República argentina
passaram a concorrer pelo mercado consumidor regional e pela mão-de-obra imigrante européia. A Argentina
tornava-se uma nação unificada e começava a disputar com o Brasil a hegemonia econômica na América do Sul.
Essa discussão será retomada no próximo capítulo.
36
governo do Paraguai; bem como a não negociarem separadamente com o
inimigo comum, nem celebrarem tratados de paz, trégua ou armistício, nem
convenção alguma para suspender ou findar a guerra, se não de perfeito
acordo entre todos.
8
Os argentinos ficaram indignados e começaram a organizar um movimento das
Repúblicas contra o Império. Diante de rios impasses e tentativas frustradas em assinar o
acordo de paz, veio ao Brasil em missão especial o General Mitre, enviado pelo presidente
Sarmiento. O general Bartolomé Mitre (1821-1906) teve um importante papel durante a
guerra, como comandante maior da Tríplice Aliança, ao mesmo tempo em que era presidente
da República argentina (1862-1868). Suas posições se afinavam com as do Brasil, por isso ele
foi o escolhido para essa missão. Em junho de 1872 foi assinado um acordo que restabelecia a
aliança, pela qual o Brasil se comprometia a apoiar as posições argentinas nas negociações
com o Paraguai.
Até 1875, a situação entre o Paraguai e a Argentina era de impasse em relação à
questão dos limites, especialmente no que se refere às pretensões argentinas de posse de todo
o Chaco paraguaio, às quais o Brasil era contrário, por isso acreditava-se numa nova guerra. O
ministro dos Negócios Estrangeiros, Barão de Cotegipe, foi ao Senado brasileiro na tentativa
de apaziguar os ânimos do Parlamento e da sociedade brasileira, que previam mais um
conflito bélico do Império com a vizinha Argentina. De acordo com Cotegipe, “houve
agravamento progressivo nas relações com a Argentina, devido ao desentendimento gerado
como seqüela da guerra. A guerra uniu Brasil e Argentina, a paz os separou” (CERVO, 1981,
p.128). O que afirmava Cotegipe era que a Argentina, depois do conflito, o vendo seus
interesses atendidos, partiu para o ataque ao Brasil, mas quem havia feito a guerra, com seus
próprios recursos, havia sido o Império brasileiro. Era a fala de um chefe de Estado, que
defendia a honra e as decisões diploticas de seu país.
O Barão de Cotegipe, o baiano João Maurício Wanderley (1815-1889), teve uma
trajetória importante na diplomacia brasileira. Potico e uma das lideranças do Partido
Conservador, foi uma das figuras mais importantes do Segundo Reinado, com presença em
diversos eventos cruciais do Império. Ocupou os cargos de deputado geral pela Bahia e
presidente da província da Bahia (1852-1855), ministro da Fazenda, da Marinha e dos
Negócios Estrangeiros e chegou a presidir o Conselho de Ministros de 1885 a 1888. Esteve
presente nas negociações de paz com o Paraguai e, mais adiante, em 1887, como ministro dos
8
Tratado da Tríplice Aliança entre o Brasil, a Argentina e o Uruguai Determinação das bases da política de
guerra e paz (1º de maio de 1865). In: BONAVIDES, Paulo e AMARAL, Roberto. Textos políticos da História
do Brasil. Império. Brasília: Senado Federal, 2002, vol. II, p.433.
37
Negócios Estrangeiros, conduziu toda a Convenção Sanitária Internacional realizada no Rio
de Janeiro, o que se verá no segundo capítulo.
Era preciso, então, que a Argentina negociasse, finalmente, os limites com o Paraguai.
O processo foi longo, de 1872 a 1876, com recuos das duas partes. Somente em 3 de fevereiro
de 1876, a Argentina e o Paraguai assinaram em Buenos Aires os tratados de paz, limites,
amizade e de comércio e navegação. Por fim, como último ato da Guerra do Paraguai, o
Protocolo de Montevidéu, de 30 de julho de 1877, concluiu a tarefa dos aliados, Brasil,
Argentina e Uruguai, que acordaram entre si garantir por cinco anos a independência, a
soberania e a integridade do Paraguai.
O ano de 1876 marcou o encerramento definitivo da presença brasileira e argentina no
Paraguai. Como assinala Paul Lewis,
Em 1876, tanto os argentinos quanto os brasileiros decidiram que os custos
da operação do Paraguai estavam ficando altos demais. Anteriormente, para
assinar um tratado de paz, os argentinos haviam reivindicado do Paraguai
grandes concessões territoriais que, se fossem aceitas, lhes dariam a maior
parte da rego a oeste do rio Paraguai, o conhecido Chaco. Agora,
concordaram com um arbitramento internacional e, quando a decisão final
favoreceu o Paraguai, aceitaram-na e se retiraram. Os brasileiros, como
tinham negociado um tratado pelo qual o Paraguai lhes cedia alguns
territórios no norte e no leste, não viam outra razão para ficar. Suas tropas
também foram retiradas do Paraguai. (p.636-637)
No balanço geopolítico dos fatores, o Brasil tinha com o Uruguai uma maior
importância ecomica e, com a Argentina, maior importância potica. Era preciso, portanto,
manter esse equilíbrio regional, a fim de evitar novos conflitos.
O intercâmbio comercial entre o Império brasileiro e as Repúblicas platinas passou por
transformações após a Guerra do Paraguai, provocadas, por um lado, em parte pelo próprio
conflito e, por outro, pelas mudanças na ordem econômica mundial, que acarretaram novas
demandas nos mercados.
1.3. RELAÇÕES ECONÔMICAS ENTRE BRASIL, ARGENTINA E URUGUAI
As relações comerciais, antigas, entre Brasil, Argentina e Uruguai
9
continuaram a
ocorrer, sem que houvesse necessidade de empregar meios coercitivos ou bélicos para
estabelecê-las; havia a presença do Estado no direcionamento da economia dessas três nações,
como destacou Emília Viotti da Costa (2002, p.722), referindo-se ao Brasil:
9
Ver trabalhos sobre o comércio entre essas regiões: para o período colonial, destaca-se Canabrava (1984); para
o período do Império, ver Medrano (1989) e Chaves (2001).
38
O governo central desempenhava um papel importante na economia.
Legislava sobre as tarifas de importação e exportação, supervisionava a
distribuição de terras desocupadas, formulava políticas de trabalho e de
imigração e negociava empréstimos. Controlava os bancos, as estradas de
ferro e as sociedades anônimas. Nenhuma companhia de responsabilidade
podia ser criada no país sem a permissão do Conselho de Estado. O governo
não era apenas o regulador, mas também o protetor das empresas nacionais
e estrangeiras, autorizando-as ou proibindo-as, dando-lhes subsídios,
garantindo-lhes os interesses, estabelecendo suas prioridades, concedendo-
lhes isenção de impostos.
O Estado argentino era embrionário na década de 1870, e sua presença na economia
era pequena, se comparada à do Estado brasileiro. As elites econômicas regionais
conservavam em seus distritos ampla liberdade de atuação, e os debates acerca do papel do
Estado eram menos intensos em relação ao Império brasileiro. Fausto e Devoto (2004, p.101)
buscaram uma explicação, com base na iia de que os setores produtivos na Argentina
dependiam muito pouco do Estado, pois a pecuária bovina e ovina
exigia pouca mão-de-obra e capital reduzido. Seu fator de produção mais
importante era a terra. A província de Buenos Aires vendeu muita terra
pública entre 1857 e 1878, até esgotar sua disponibilidade. Devido aos altos
preços internacionais e ao baixo custo de produção, o papel do crédito era
quase irrelevante para o setor, e o apoio do Estado o era imprescindível.
Outro dado consistia na proximidade dessa zona de produção do porto de
Buenos Aires, dispensando o investimento em transporte.
Não significa afirmar que o Estado na Argentina fosse irrelevante para a economia. Do
ponto de vista do comércio exterior, ambos os países e também o Uruguai dependiam dos
recursos que poderiam auferir desse comércio com os impostos sobre exportões e
importações. Portanto, o comércio externo era visto como uma potica de Estado, pois
interessava ao governo brasileiro a manutenção da importação da carne de charque platina.
Esse era o único produto da Confederação Argentina e da República Oriental do Uruguai do
qual dependia o Império. Para Medrano (1989, p.109), o comércio do charque estava
intrinsecamente vinculado à política brasileira no Prata e, por meio dele, o governo brasileiro
poderia ganhar novos mercados para seus produtos da lavoura, com mercado consumidor
garantido na região.
No caso do Uruguai, havia interesses fortemente articulados entre a elite ecomica e
a elite política, que em muitos momentos eram coincidentes. Até a década de 1870, apesar do
crescimento da produção de lã e de gado, o Estado não possuía estrutura suficiente para
defender os interesses da elite econômica do país, daí as constantes oscilações na produção
39
pecuária. Com a instauração da paz, ocorrida com os governos militares a partir de 1875
10
, os
setores econômicos passariam a ter no Estado uruguaio um forte aliado para o seu
desenvolvimento.
El militarismo vino a coincidir con las aspiraciones de los propietarios,
tanto del sector urbano como del sector rural. La reducción de los gastos
públicos y la desaparición del papel moneda de curso forzoso le ganaron la
confianza de los círculos comerciales y financieros. [...] Pero el mayor logro
del nuevo régimen fue, sin duda, el de proporcionar el marco institucional
necesario para el pido desarrollo del sector exportador. El aumento de la
producción ganadera para satisfacer la creciente demanda de los mercados
europeos significó la adaptación y la mejora de los stocks de ganado. La
introducción de valiosos animales de raza y la cría selectiva hicieron
indispensable el alambramiento de los campos que resultaba ser también
en cierto modo la expresn física del derecho de propiedad. Mientras la
Asociación Rural promovía la difusión de estas innovaciones técnicas, los
derechos de los propietarios tuvieron su sanción normativa a través del
Código Rural de 1875-79 que fortalecía las atribuciones de las policías de
campaña y dictaba disposiciones para su efectivo funcionamiento. Al
mismo tiempo, las tropas del gobierno, dotadas por primera vez de armas
modernas y ayudadas por la extensión del ferrocarril y del telégrafo,
empezaban a contrarrestar el poder regional de los caudillos. (p.21)
Ou seja, para o Uruguai do último quartel do século XIX, os elementos essenciais de
desenvolvimento econômico advieram dos cercamentos dos campos e conseqüente aumento
da produção bovina e do direito de propriedade da terra, garantido com a legislação aprovada
pelo Estado.
A partir da década de 1850, o Império do Brasil estabeleceu uma série de tratados com
o Uruguai e, posteriormente, com a Argentina. Com o fim da Guerra Grande uruguaia, a partir
de 1850, delineou-se o período de conformação definitiva das Repúblicas da Argentina e do
Uruguai, sinalizando ainda, segundo a tese de Moniz Bandeira (1995, pp.157-158), o
expansionismo brasileiro”:
Com um território de cerca de oito milhões Km², uma população da ordem
de 10 a 11 milhões de habitantes, ou seja, de cinco a mais de dez vezes
superior à de qualquer outro país da América do Sul, e um aparelho de
Estado capaz de empreender, internacionalmente, uma ação autônoma, tanto
diplomático quanto militar, o Império do Brasil, assegurada sua
tranqüilidade interna, pôde então imprimir-se como grande potência, em
face do Rio da Prata. E, no curso da década de 1850, o Império do Brasil
impôs aos países daquela região um sistema de alianças e de acordos, que
visavam não ao equilíbrio de forças, mas à consolidação de sua hegemonia,
em substituição à de França e Grã-Bretanha
.
10
No período militarista, como define boa parte da historiografia uruguaia, governaram o General Latorre, a
partir do final de 1875, e o General Santos, entre 1882 e 1886. Na verdade, nesse período o país foi governado
por militares, que proporcionaram alguma estabilidade política ao país.
40
Essa tese é reforçada pela série de acordos firmados entre os três países durante a
década de 1850, que redefiniram a presença brasileira no Prata não mais pelo uso da força
militar, mas pelos tratados de comércio, navegação e limites. Em 1851, o Tratado de Limite,
Comércio e Navegação, entre o Império e o Uruguai, com duração de dez anos, garantiu a
permanência brasileira mesmo após a Guerra Cisplatina.
Um dos interesses do Brasil naquele momento era proteger os comerciantes brasileiros
no Uruguai e manter um importante mercado consumidor e fornecedor de mercadorias. “Com
esse tratado, o Império isentava o charque uruguaio do pagamento de qualquer tarifa. A
medida visava evitar o encarecimento da alimentação básica dos escravos, com reflexos sobre
os custos da produção de açúcar, café, algodão
11
. No entanto, a cobrança de tarifas nunca
deixou de ser feita sobre o charque uruguaio.
Em 1856, com a Confederação argentina, o Brasil assinou um tratado de amizade,
comércio e navegação e, secretamente, um pacto em que o Império auxiliaria a Confederação
argentina a reincorporar o Estado de Buenos Aires, o que aconteceria em 1862, com o
presidente Bartolomé Mitre.
Esses tratados iriam ser, mais tarde, denunciados pelo Uruguai, que não se beneficiava
com a cobrança de altas taxas de direitos de importação no Brasil de sua carne tasajo. Esse
tema, o dos direitos de importação e exportação da carne platina seria recorrente durante todo
o século XIX. O comércio do charque interligou essas regiões não apenas do ponto de vista da
economia, mas igualmente da potica e das relações internacionais.
Para o Brasil imperial e escravista do século XIX, importar determinados produtos
alimentícios era imprescindível para o desenvolvimento de sua economia. Num sistema que
o permitia a expansão de outras culturas agrícolas, era necessário um mercado de
abastecimento que não comprometesse a produção de exportação. Esse foi o papel do sul
platino em relação ao norte açucareiro e depois ao sul cafeicultor do Brasil. Como afirmou o
historiador Guilhermino Cesar (1970, p.9), “sem o charque da área platina e sulriograndense,
dificilmente a Ilha de Cuba com sua numerosa escravaria e o nosso Nordeste açucareiro
teriam alcançado, na economia capitalista, tão grande influência no movimento de trocas”.
Mesmo após o crescimento da produção cafeeira no sul do país, a população escrava
continuou sendo alimentada pelo charque platino e sul-rio-grandense.
11
BANDEIRA, op. cit., p. 148.
41
O charque platino exportado para o Brasil era embarcado em direção a três
importantes portos do século XIX, Rio de Janeiro, Salvador e Recife, e tinha uma ampla rede
de distribuão (MILLOT; BETINO, 1996). Essas regiões eram as que continham uma maior
concentração de mão-de-obra escrava africana, público a que se destinava a carne seca.
O mercado consumidor da carne de charque platina era a populão pobre e escrava do
Brasil e de Cuba e era vendido a preços muito baixos. Em função disso, o interesse dos
grandes produtores de gado no Rio da Prata pela produção de charque decresceu em relação
aos outros derivados bovinos, especialmente no final do século XIX, quando o couro e o sebo
tinham amplo mercado na Europa e melhores perspectivas de preços altos. Ocorreram
tentativas no sentido de introduzir a carne salgada platina no mercado consumidor europeu,
porém a justificativa apresentada para o fracasso das exportações de charque para aquele
continente foi a de que o paladar europeu era muito refinado para um produto cuja aparência e
sabor não se apresentavam tentadores. Como afirma o historiador uruguaio Pedro Barrán
(1967-78, p.114-115)
El tasajo como alimento, triunfó en aquellas poblaciones que no poseían un
gusto tan evolucionado como el europeo y que aunque lo hubieran poseído,
como no eran consumidores comunes, sino esclavos alimentados por amos,
no hubieran podido imponer sus preferencias. Que los brasileños y cubanos
lo siguieran consumiendo después de abolida la esclavitud no prueba nada
contra este aserto: simplemente reafirma la fuerza del hábito que es muy
notorio en la alimentación.
A disposição dos produtores e intermediários em manter o charque na pauta de
exportação advinha do fato de já possuírem um mercado consumidor garantido e amplo, haja
vista a predominância da populão pobre e escrava nessas duas regiões. Esse importante
produto platino o charque foi o norteador das relações comerciais nessas regiões. Ele
compunha, pelo menos, quatro fatores essenciais durante a segunda metade do século XIX:
preço baixo, boa conservação, praticidade no transporte e grande mercado consumidor. Junta-
se a isso o fato de ser um alimento de muito tempo incorporado no cotidiano das
populações do Império e das Repúblicas platinas.
A produção de charque e sua comercialização envolveram, durante todo o século XIX,
os interesses dos principais produtores da província brasileira do Rio Grande do Sul, da
República Oriental do Uruguai e das províncias argentinas de Buenos Aires e Entre Rios
(MEDRANO, 1989, p.105). Porém, o predomínio do charque platino em detrimento do
produzido no Rio Grande do Sul ocorreu durante todo o século XIX, podendo ser explicado
por dois fatores: primeiro, a produção rio-grandense era insuficiente para atender o mercado
42
brasileiro, devido aos métodos atrasados de produção que encareciam o preço da carne
(BANDEIRA, 1998); e, segundo, porque interessava ao Brasil favorecer a compra do charque
uruguaio e argentino para que seus produtos agrícolas tivessem lugar nos mercados platinos,
atendendo aos interesses da potica comercial brasileira de expansão dos mercados na
segunda metade do século XIX.
Para as Repúblicas da Argentina e do Uruguai, o Império tinha alguma importância
econômica, porém os seus mercados não eram dependentes da produção brasileira. Os
principais produtos brasileiros exportados para a Argentina e Uruguai eram o açúcar, o
aguardente, o fumo, o arroz e o café (MEDRANO, 1989, p.43). As exportões brasileiras
eram mais variadas que as argentinas para o Brasil que compreendiam quase exclusivamente
o charque e em menor quantidade, graxa, sebo, chifres e couros. Barrán afirma que os
mercados brasileiro e cubano apenas não eram suficientes para atender às necessidades
econômicas uruguaias e se tornarem um mercado alternativo ao da Europa, pois “sólo
absorvían el 11,5% de la producción total del país. Sin dejar de reconocer la importancia que
tuvo la apertura de una relación con países americanos que el tasajo ocasionó, es evidente que
ella sola no nos liberó del mercado europeo” (1967, p.106).
No entanto, a exportação platina para o Império praticamente não sofria concorrência,
o que não ocorria com os produtos brasileiros, por isso a necessidade de o governo brasileiro
garantir esse mercado, como já foi mostrado anteriormente. Os principais produtos do Brasil
concorriam com o açúcar, o fumo e o cade Havana, haja vista serem de melhor qualidade,
com a erva-mate do Paraguai, com o arroz da Carolina (EUA), da Batávia e do Piemonte
(Itália). O nsul brasileiro em Montevidéu, Eduardo Carlos Cabral Deschamps, em 30 de
agosto de 1885 afirmava que à exceção do café, da farinha, das ervas e dos tabacos [...] os
demais gêneros como o açúcar, principalmente, tem diminuído muito na importação [...]
pela séria concorrência dos similares estrangeiros e pela preferência que estes vão ganhando”
(VASCONCELLOS, 1929, p.113).
O segundo quartel do século XIX firmou-se como o período de consolidação da
integração ecomica entre o Brasil e o Rio da Prata, estabelecida por meio da circulação de
mercadorias, e se inseriu em uma das etapas da integração desses Estados nacionais.
1.4. EPIDEMIAS E MUDAAS POLÍTICAS E ECONÔMICAS
43
Juntamente com as conseqüências ecomicas e poticas sofridas em razão da Guerra
do Paraguai pelos países da Tríplice Aliança, havia ainda o enfrentamento das doenças por
seus governos, ainda que tenham passado ao largo das análises mais gerais produzidas sobre a
guerra
12
. Portanto, a Guerra do Paraguai traria para o Império e para as Repúblicas não
problemas de fronteira e de diplomacia, mas questões de saúde blica, a ponto de mobilizar
os médicos dos países envolvidos na busca de soluções para problemas tão urgentes e
devastadores. Como ressalta Schwarcz (1993, p.198),
As recentes epidemias de cólera, febre amarela, varíola, entre tantas outras,
chamavam a atenção para a missão higienista” que se reservava aos
dicos. Além disso, com a Guerra do Paraguai, afluíam em massa doentes
e aleijados que demandavam a atuação imediata de um corpo de cirurgiões.
Necessário se faz compreender, portanto, o femeno epidêmico como decorrente dos
efeitos externos das adversidades individuais, que atingem toda a sociedade, e da incerteza
quanto à eficia de qualquer solução individual e localizada. Como sugere Gilberto
Hochman (1998, p.28), a epidemia, ou a doença transmissível, deve ser tratada como “um
mal-público, pois atinge a todos os membros de várias coletividades, independentemente de
terem contribuído ou não para o seu surgimento e disseminação”. Partindo dessa perspectiva,
de um problema coletivo e de soluções igualmente coletivas, serão analisados os
acontecimentos dos finais de 1860 e nas décadas de 1870 e 1880 nessas regiões.
As epidemias prejudicavam enormemente o comércio e o abastecimento nas cidades
portuárias, que muitas vezes dependiam da importação de alimentos para suprir as
necessidades da população local, que não os produzia em quantidades suficientes. Esse era o
caso de diversas regiões no Brasil e no Prata, que dependiam da constância desse fluxo
econômico, interrompido pelas quarentenas impostas aos navios e pelo medo do contágio, que
afastava os comerciantes dos locais infectados por doenças epidêmicas
13
.
Muitas epidemias ocorreram e foram disseminadas durante e após a Guerra do
Paraguai na rego platina. As produções sobre a Guerra do Paraguai, desde os depoimentos
daqueles que vivenciaram o conflito, como Dionísio Cerqueira (1980), até historiadores
recentes, como Francisco Doratioto (2002), fazem constantes referências às doenças que
assolaram as frentes de batalha e que ceifaram muitas vidas.
12
Ver a historiografia sobre a guerra do Paraguai, que enfatizou mais os aspectos militares e de fronteira.
Encontrou-se apenas o trabalho de Jorge Prata de Sousa, que, conforme ele mesmo: “sobre as condições
sanitárias e higiênicas durante a guerra, apenas damos um primeiro passo de sistematização metodológica”
(2004, p.75).
13
As questões relacionadas com as quarentenas estão discutidas no segundo capítulo.
44
Ainda que o fossem fenômenos desconhecidos das populações da América, haja
vista que as epidemias de lera (BELTRÃO, 2004) e febre amarela haviam chegado ao
Brasil e ao Rio da Prata na década de 1850
14
(CHALHOUB, 1996), especialmente em razão
do conflito com o Paraguai (LUNA, 1996), o agravamento dessas doenças e o novo contexto
do pós-guerra auxiliaram na execução da primeira Convenção Sanitária ocorrida em terras
americanas.
O terreno pantanoso do Paraguai, aliado ao frio, à precária higiene dos acampamentos
e à alimentação deficiente das tropas, formou um ambiente procio para a entrada e
disseminação de diversas enfermidades. No entanto, para além dos campos de batalha, as
doenças assumiam caráter epidêmico e se propagavam pelos quatro países envolvidos no
conflito, tendo permanecido nessas regiões depois de findada a desastrosa guerra.
As doenças que atingiram os soldados na Guerra do Paraguai eram as mais diversas e
apareciam nos livros de entrada e saída dos hospitais e das enfermarias dos acampamentos e
nos relatórios dos Negócios da Guerra:
Nos hospitais da Marinha em Corrientes predominavam os diagnósticos de
escorbuto, cólera e febre intermitente, enquanto na enfermaria do Cerrito
predominavam a diarréia, colerinas, lera, febres, bronquites, escorbuto,
reumatismo e varíola. O Relatório (de 1869) informava que as grandes
moléstias daquele ano eram o escorbuto, cólera, febre tifóide, “os miasmas
próprios do meio marítimo” e a varíola (SOUSA, 2004, p.72).
Da varíola, sofreram muitos soldados brasileiros, que a levaram para o palco da guerra
por não terem sido devidamente imunizados, o que demonstra a fragilidade das poucas
instituições de saúde existentes no Império e o despreparo do Exército em ter recrutado às
pressas muitos homens no momento da eclosão do conflito. O improviso foi tão evidente, que,
em 1865, quase todos os quatrocentos soldados de um batalhão vindo do Pará para o Paraguai
morreram de frio ao chegarem ao Rio da Prata, por não terem recebido roupas adequadas
(DORATIOTO, 2002, p.117).
O combate à varíola coube, inicialmente, à Junta Vacínica
15
, instituição criada em
1811, com a chegada da Corte Portuguesa ao Brasil, primeiro órgão criado pelo Estado na
área de saúde blica, numa tentativa de minimizar as epidemias de “bexiga” existentes entre
a população. A vacina jenneriana, a vacina antivariólica,
era conhecida desde o final do
século XVIII e desde 1832, no município do Rio de Janeiro, o Código de Posturas estabelecia
a obrigatoriedade da vacina à população (FERNANDES, 1999, p.31).
14
Vale ressaltar que a última aparição da febre amarela no Brasil ocorrera no século XVII.
15
Sobre o tema da história da vacina antivariólica no Brasil ver o trabalho de Fernandes (1999).
45
Essa Junta Vacínica foi transformada em Instituto Vacínico do Império em 1846, e a
legislação que o criou definia, mais uma vez, a obrigatoriedade da vacinação em crianças de
até três meses e em determinados grupos. Exigia-se atestado de vacinação ou comprovação da
doença para admissão ao Exército ou Armada, às oficinas a cargo do governo e para os
inscritos em qualquer estabelecimento oficial, literário, público ou particular (FERNANDES,
1999, p.36). Entretanto, mesmo com a exigência legal de comprovação da vacina aos
soldados, com a emergência do conflito, esse requisito foi negligenciado pelas autoridades
militares.
Como evidencia a Tabela 1, “o grande combate travado pelas forças militares parece
ter sido contra as condições sanitárias e higiênicas durante a guerra e não contra o inimigo
paraguaio(SOUSA, 2004, p.55). Com esses dados, a visão sobre a Guerra do Paraguai se
modifica, na medida em que as doenças e a precária situação sanitária vivida pelas tropas
eram consideradas como fatores secundários no conflito.
TABELA 1
PERDAS DO CONTINGENTE DA ESQUADRA EM COMBATES,
POR ACIDENTE E POR MOLÉSTIAS ENTRE 4 DE AGOSTO DE 1864 E 31 DE MARÇO
DE 1870
Em combates Em acidentes Por moléstias Total
Corpo da Armada 26 05 14 45
Corpo de Fazenda 03 01 12 16
Corpo de Saúde - - 05 05
Estado Menor 15 03 90 108
Imp. Marinheiros 105 78 522 705
Batalhão Naval 15 12 476 503
Marinhagem 06 08 331 345
Total 148 44 926 1.727
Fonte: Relatório do Ministério e Secretaria de Estado da Marinha do Brasil, 1870 apud SOUSA, 2004, p.55.
As epidemias ganharam uma proporção tão alarmante no período que, como destacou
Doratioto (2002, p.197), o relato contemporâneo ao conflito, como o de George Thompson,
induz à conclusão de que boa parte dos mortos na Guerra do Paraguai, não
entre paraguaios, mas também no Exército aliado, resultou não de
combates, mas de doenças originadas por má alimentação e péssimas
condições de higiene nos acampamentos. Corrobora essa conclusão o
depoimento de Henrique d’Ávilla, participante brasileiro da guerra e futuro
senador do Império, de que “dois terços dos soldados morreram nos
hospitais e em marcha para o teatro da guerra, sem ter disparado um tiro,
sem ter visto o inimigo”.
O primeiro surto epidêmico que teria surgido durante o conflito com o Paraguai foi o
de cólera-morbo dois anos após a eclosão da guerra. Em março de 1867, o cólera começou a
46
fazer estragos em Itapiru e em Corrientes, na Argentina, espalhando-se por todo o Exército
aliado. O vapor Teixeira de Freitas, que zarpara do Rio de Janeiro em fins de fevereiro, com
duzentos novos soldados para o Exército imperial, levou a doença para Corrientes, onde se
propagou pelos hospitais aliados e, em seguida, para a tropa na frente de batalha (DE
MARCO, 2007, p.180).
O lera-morbo marcou definitivamente os Oitocentos, com seis pandemias mundiais
e foi a nova doença do século XIX. Conhecida desde a Grécia Cssica, na Antiga China do
século VII e tendo se fixado por muito tempo na Índia, a doença possuía caráter endêmico.
A partir de 1816, a primeira pandemia campeou na Ásia, deslocou-se para o
Oeste e ameou entrar na Europa, mas recuou [...] A segunda teve início
em 1829. Espalhou-se pela Ásia, irrompeu no Egito e na África setentrional,
penetrou na Rússia, seguiu sua trilha pela Europa e tornou conhecido um
modo pavoroso de morrer. [...] A terceira pandemia começou em 1852. [...]
A quarta pandemia teve início em 1863 e durou até 1875, enquanto a quinta
levou a devastação a Hamburgo, em 1892. Nessa ocasião, entretanto, o
cólera podia ser controlado por medidas de saúde pública especialmente
depois que Robert Koch isolou seu bacilo em 1884. Como conseqüência, a
sexta pandemia (1899 a 1926) mal chegou a afetar a Europa Ocidental
(PORTER, 2004, pp.31-32).
O ano de 1855 marcou a chegada da pandemia à proncia do Grão-Pará, à Bahia e
posteriormente ao Rio de Janeiro. Como destaca Beltrão (2004), até o início do século XIX, o
cólera era conhecido como o “mal do Ganges” porque estava praticamente circunscrito ao
continente asiático. O Brasil foi atingido pela terceira pandemia, cujo flagelo foi importado de
um navio oriundo de Portugal. Em 1867, nova epidemia reapareceu no país e foi levada até o
Rio da Prata pelos navios que transportavam os soldados para a Guerra do Paraguai. Do palco
da guerra, ela se ramificou para a Argentina e o Uruguai e, logo em seguida, chegou à Bolívia
e ao Peru, e “esta parece ser la primera aparición de la enfermedad en estos países de
Sudamérica” (TOVAR; BUSTAMANTE, 2000, p.181).
Na frente de batalha, a epidemia de cólera ceifava centenas de vidas. O impressionante
depoimento de Dionísio Cerqueira (1980) denuncia que “a lera-morbus ceifava vidas aos
montões em Curuzu, onde estava o Corpo do Exército... E o terrível flagelo dos exércitos
matava às cegas e cada vez mais”. Destaca, ainda, que os soldados continuaram bebendo a
água contaminada pelos cadáveres dos coléricos e registra as tentativas dos médicos em
descobrir plantas com poderes curativos para o cólera, tal o desespero nos hospitais
improvisados na Campanha. Foi o caso de Pantaleão JoPinto, estudante da Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro, que se engajou no conflito como cirurgião do Exército brasileiro
47
entre 1866 e 1870 e, ao concluir seus estudos, expunha, em sua tese sobre o cólera-morbo, a
convivência com a epidemia no desenrolar da guerra e as formas de tratamento utilizadas.
Segundo ele:
A profilaxia tem por fim impedir que a moléstia continue a grassar e a fazer
maior número de vítimas ou atenuar a epidemia tornando os casos mais
benignos; ou, em uma palavra, subtrair-lhe o terreno próprio à sua evolução.
Diversos meios higiênicos o empregados, como sejam cordões sanitários,
quarentenas, lazaretos, asseio, sequestração dos doentes, desinfecções, etc.
Muitos são os desinfetantes que têm sido usados; entre outros, água de
Labarraque, o desenvolvimento de ácido chlorhydrico, como fizemos em
Tuyuty, o ácido phenico, o iodo, o sulfato de ferro, desprendimento de
acido sulphuroso, [...] como s o fizemos no exército em operações no
Paraguai queimando pólvora nas barracas.
16
De acordo com Doratioto (2002, p.284), a epidemia de lera matou, até fins de 1867,
quatro mil soldados brasileiros, dos quais, cerca de 130 eram oficiais. O Exército imperial
sofreu perdas equivalentes a uma batalha decisiva, sem sair do lugar, o que vem confirmar a
tese de George Thompson do insuperável poder de morte por doenças nos campos de batalha.
O nico gerado pela epidemia de lera obrigou o Império a adotar medidas que
protegessem o país do flagelo. Em um trabalho sobre os inválidos da pátria, Marcelo Gomes
destaca a criação do Asilo dos Inválidos da Pátria na Ilha do Bom Jesus, na Baía de
Guanabara, para servir de casa de acolhimento e “lazaretopara os soldados que retornavam
lesionados, feridos e doentes do conflito. Esses homens, além do estigma da invalidez,
carregavam a mácula de transmissores de doenças epimicas, como o cólera.
Imagine-se como eram vistos os homens inválidos, percebidos como
geradores de miasmas, de um odor de cadáver (...) que se eleva de membros
gangrenados ou igualmente como potenciais vetores de doenças
epidêmicas. Não foi à toa a constante preocupação sanitária, e aqui recordo
a comunicação entre o imperador, os ministros, José Pereira Rego, bem
como cirurgiões e médicos militares, com os navios que entravam na baía
de Guanabara, no porto do Rio de Janeiro, e que desembarcavam soldados e
prisioneiros feridos, suspeitos de portarem o cólera, mas, da mesma forma,
com outros problemas que sinalizavam perigos para a saúde pública.
Acredito que a "segurança da cidade", pelo menos em seus aspectos
higiênicos e sanitários, residia no confinamento desses indivíduos em um
lugar apropriado, ou melhor, devidamente estudado, para seu isolamento.
(2006, p.408)
Dos acampamentos e hospitais militares, a epidemia atingiu as Repúblicas do Uruguai
e da Argentina. Segundo Fernando Mañe Garn (1983, p.231), o Uruguai teria sido
16
ANM/RJ, Tese apresentada à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1872 pelo aluno Pantaleão José
Pinto.
48
anteriormente atingido pela doença em 1866, que causou a morte de 228 timas. A partir de
1867-68, novamente apareceu, em função da Guerra do Paraguai, e se propagou até Buenos
Aires e Montevidéu, tendo vitimado no Uruguai cerca de três mil pessoas.
Na Argentina, o cólera se estendeu logo às cidades de Rosário e Buenos Aires, onde
também causou grandes estragos. Em Buenos Aires, a população, abatida e doente, deixava
alguns cadáveres sem enterrar, o que facilitava a propagação da doença, que acabou por matar
o próprio vice-presidente Marco Paz, em janeiro de 1868, que substituía Bartolomé Mitre na
presidência do país, que, por sua vez, estivera no Comando do Exército Aliado na Guerra do
Paraguai (DORATIOTO, p.283).
Segundo Eduardo Acevedo (1934, p.497-498), o cólera desde o começo da guerra do
Paraguai começou a atuar no acampamento aliado como um terrível foco de infecção sobre as
populações do Rio da Prata". Um jornal argentino da época da guerra, o El Siglo, comentando
os números de mortos na cidade de Buenos Aires, destacou que a aliança com o Brasil nos
custou não somente tanto sacrifício de homens e dinheiro, como também o horrível flagelo
desconhecido até hoje nas repúblicas da América do Sul”. Parece, de fato, que esta era a
primeira experiência da Argentina com a doença em caráter epidêmico. Como afirma a
estudiosa argentina Olga Ragucci (1992, p.19), Buenos Aires em 1867 sofreu sua primeira
epidemia de cólera-morbo, ainda que houvesse outras enfermidades, como o tifo, a difteria e a
varíola, que causavam muitas timas, porém em caráter endêmico.
A indústria argentina de carnes também foi afetada pelo lera. Na década de 1860, a
produção havia entrado num período de grande prosperidade, com o surgimento de novos
estabelecimentos na província de Entre Rios às margens dos rios Paraná e Uruguai e em
Buenos Aires, a ampliação de suas atividades e o alargamento da produção de charque e de
couro. Porém, como ressaltou Medrano (1989, p.103), as condições de insalubridade em que
funcionavam e o surto de cólera em 1868 provocaram o impedimento temporário dos
estabelecimentos.
Depois de terminada a guerra e em decorrência dela, no início de 1871 surgiu outra
epidemia na capital argentina: a febre amarela. Segundo Félix Luna (1996, p.298), “se calcula
que 15% da população de Buenos Aires morreu vítima da epidemia, cujo contágio parece ter
sido produzido inicialmente pela presença dos soldados argentinos e brasileiros que
regressavam”. Para ele, a dura convivência com as doenças epidêmicas teria sido a maior
conseqüência da guerra para os argentinos.
A epidemia de febre amarela sofrida pelos habitantes da Argentina em 1871 marcou as
futuras gerações de médicos, que uma série de reformas sanitárias foi realizada na capital
49
portenha em decorrência do grande pânico gerado na população e o medo de um novo surto
epidêmico naquelas proporções. Para se ter uma dimensão do evento, de acordo com o
depoimento de Emílio Coni, um ilustrado médico argentino, a febre amarela de 1871
arrebató a Buenos Aires cerca de 20.000 víctimas, sobre una población calculada en 80.000
habitantes, pues los demás huyerón como poan a la campaña”, o que significa afirmar que
cerca de 25% da população morreu dessa epidemia (VERONELLI; CORRECH, 2004, p.285).
No Uruguai, os surtos de febre amarela ocorreram em 1857, 1872 e 1873
17
e teriam
entrado no país com navios ou passageiros procedentes de portos brasileiros. A epidemia de
1873 teria causado bastante pânico na população, como destacou Mañe Garzon (1983, p.159):
La población del Uruguay ya castigada por la guerra del Paraguay, la
Revolución de Timoteo Aparício y la emigración hacia la Argentina, se verá
azotada además por tres epidemias en años sucesivos: viruela en 1871,
fiebre amarilla en 1872 y nuevamente fiebre amarilla en 1873. Ya en 1868
había soportado una epidemia de cólera, que había producido un elevado
número de victimas. Pocos datos se han podido reunir sobre la epidemia de
viruela de 1871, la que cobró 1242 muertos en toda la República para una
población aproximada de 400.000 habitantes.
No Brasil, a febre amarela, que havia atingido o país inicialmente em 1849, era a
doença que mais assustava a população nos finais da década de 1860 e início da década de
1870. Segundo Sidney Chalhoub, desde 1862 não havia surto de febre amarela na cidade do
Rio de Janeiro, voltou a aparecer em 1868, grassando na capital até o início do culo XX de
forma endêmica e epidêmica. Em 1873 e 1876, ocorreram dois dos surtos mais graves da
segunda metade do século XIX, o que levou Chalhoub (1996, p.89) a afirmar que “no
decorrer da década de 1870, a febre amarela tornou-se a questão de saúde pública no Brasil”,
e que a busca por meios de evitar a reincidência da epidemia era fundamental para a
implantação do projeto de substituição do trabalho escravo pelo trabalho imigrante, haja vista
que a doença atingia, preferencialmente, os imigrantes, o que acabava afastando-os do Brasil
como destino final.
O debate potico a partir da década de 1870 no Império brasileiro passou a levar em
consideração a temática das epidemias e da insalubridade nas principais cidades do Império e,
especialmente, na Corte. Três importantes questões estavam em jogo: os interesses comerciais
do país, que se viam afetados pela sucessão de epidemias, as quais geravam medidas contra os
navios procedentes do porto do Rio de Janeiro e de outros importantes portos, como os de
17
Biblioteca Nacional do Uruguai. Revista Cientifica: publicacion quincenal de medicina y ciencias. Tomo
Primero. Montevideo: Imprenta “El Siglo ilustrado”, 1888. Artigo “La visita sanitaria en el puerto de
Montevideo”.
50
Pernambuco e da Bahia; o projeto da imigração, pois o incentivo à mão-de-obra estrangeira
ficava dificultado pelo estigma de túmulo dos estrangeiros” que a capital do Império recebia
em outros países; e, por fim, o desejo de muitos políticos brasileiros em implementar a
“modernização” e o “progresso” do país (SAMPAIO, 2001, p.42).
1.5. ENFERMIDADES X IMIGRAÇÕES: PROJETOS DE CIVILIZAÇÃO NOS
TRÓPICOS
Vale destacar que a propagação dessas doenças está situada num século – o XIX –, em
que o mundo tornou-se mais vulnerável tanto ao ressurgimento de enfermidades antigas
quanto ao aparecimento de novas moléstias. O aumento da circulação de pessoas e
mercadorias contribuiu decisivamente para disseminação das doenças em caráter mundial,
como esclarece Luís Eduardo Morás (2000, p.122):
Las epidemias se alimentaron de un conjunto de condiciones propicias:
circulación comercial y movimientos inmigratorios entre países y
continentes facilitadas por el desarrollo del transporte a vapor y los
ferrocarriles, urbanización acelerada con el consiguiente estado de
precariedad habitacional y proliferación de viviendas colectivas, escaso y
lento desarrollo de obras públicas de saneamiento, dificultades para proveer
agua potable a todos los habitantes y deficiente eliminación de desechos.
A circulação de pessoas no período decorreu do movimento de migrantes europeus
para diversas partes do planeta e para as Américas. Vários foram os fatores que influenciaram
a grande onda imigratória ocorrida nas últimas cadas do século XIX: os navios a vapor, as
ligações ferroviárias, a pressão sobre a terra e sobre a população na Europa, a baixa densidade
demográfica em alguns locais da América, a transição do trabalho escravo para o trabalho
livre no Brasil, entre tantos outros.
Para a Europa, os fatores de expulsão dos seus habitantes foram basicamente:
dificuldade de acesso à terra e aumento da população, ambos interligados entre si.
Inicialmente, o próprio continente europeu absorveu uma parte da mão-de-obra excedente,
com o crescimento dos centros urbanos, no entanto as oportunidades eram limitadas.
O crescimento da população pressionou enormemente o setor agrícola de
cada país. Para atender às crescentes demandas alimentares, começaram a
mudar os todos tradicionais de arrendamento, cultivo e produção. Os
enclosures (cercados), a supressão dos tradicionais direitos de acesso à terra
e outros instrumentos foram usados para a criação de unidades econômicas
viáveis. Isso implicou na perda por muitos camponeses de seus direitos à
terra, os quais foram forçados a trabalhar para outros. O aumento de
51
produtividade e a crescente mecanização da agricultura européia
significaram menor necessidade de mão-de-obra, exatamente num momento
em que surgia um excedente de força de trabalho. Em virtude da falta de
apoio governamental, a fome passou a ser uma ria ameaça às populações
sem terra ou que possuíam terras limitadas. (KLEIN, 1999, p.14-15).
Enquanto a Europa expulsava seus moradores, a América estava disponível para
recebê-los. A década de 1880 foi marcada por continuidades e descontinuidades no panorama
econômico e político destas regiões, mas um dos maiores acontecimentos para o Império
brasileiro e as Repúblicas da Argentina e do Uruguai certamente foi a imigração estrangeira,
que modificou as estatísticas e o perfil das suas populações. Os países americanos disputavam
a mão-de-obra estrangeira, mas, para este estudo interessa perceber a concorrência
estabelecida entre o Brasil e o Rio da Prata pelos imigrantes e de que forma as condições de
saúde e os surtos epimicos existentes nas principais cidades brasileiras e platinas
dificultaram a execução das poticas imigracionistas nesses países.
As quatro principais nacionalidades dos imigrantes eram italiana, portuguesa,
espanhola e alemã, e o perfil desses indivíduos era o tradicional, composto em sua maioria de
jovens adultos do sexo masculino em busca de emprego temporário ou permanente no país de
recepção. Esse movimento de jovens trabalhadores não foi o padrão dominante antes de 1880.
Nessa época, afluíam para as Américas grupos familiares com o objetivo de formar colônias
agrícolas, o que facilitava a vinda das mulheres e filhos dos trabalhadores. Entre o Brasil e a
Argentina, houve diferenças no perfil dos europeus imigrados, como ressalta Herbert Klein
(1994, p.17),
Temendo o fenômeno dos trabalhadores migrantes temporios, como
ocorreu com a migração golondrina de homens para colher trigo na
Argentina, a classe rural (brasileira) sublinhava a necessidade de apoiar
apenas a imigração de falias, de forma a garantir uma força de trabalho
mais estável. Ofereceram-se subsídios para a passagem apenas a famílias
que tivessem pelo menos um homem em idade de trabalhar.
Vale destacar a existência de uma importante produção historiográfica no Brasil e na
Argentina sobre a imigração para a América e, igualmente, uma bibliografia acerca da
convivência dos imigrantes com as epidemias
18
e as más condições de salubridade e moradia
encontradas por essas gentes vindas majoritariamente da Europa.
Do ponto de vista da mão-de-obra, o Império e as Repúblicas do Prata possuíam
objetivos distintos em relação à nova mão-de-obra imigrante: enquanto a abolição da
18
Ver especialmente os trabalhos de Alvim (1986), Telarolli (1996), Chalhoub (1996) e Ragucci (1992).
52
escravidão no Uruguai ocorrera entre 1843 e 1846 no período da Guerra Grande –, quando
os escravos foram libertados para se engajarem nas tropas do exército de Oribe, e o fim da
escravidão na Argentina se completara por volta de 1854, com a libertação de todos os
escravos, o Império brasileiro realizou a abolição da escravatura em 1888. Portanto, para o
Uruguai e a Argentina, durante a segunda metade do século, o interesse por imigrantes era de
povoar o interior e o deserto argentino e de impulsionar a economia, enquanto para o Brasil o
objetivo era o de substituir paulatinamente a mão-de-obra escrava pela européia livre.
Em ambas as regiões, o argumento civilizatório foi utilizado para a implementação de
políticas de incentivo à imigração. As elites desses países acreditavam que o indivíduo branco
e europeu contribuiria, por meio da implantação de novos hábitos e comportamentos, para o
progresso e a civilização das populações nativas compostas de negros, mestiços e indígenas,
consideradas atrasadas e bárbaras. As teorias raciais, de exaltão ao branqueamento e
condenação à mestiçagem, também influenciaram os ideólogos da imigração, que receberam
inspiração direta do darwinismo social, o qual causou algum impacto entre os cientistas
latino-americanos (SCHWARCZ, 1993). No caso do Brasil, como destacou Margareth Lopes
(1997, p.156),
o governo imaginou resolver os problemas essenciais de mão-de-obra
intensificando as tentativas de implantação de políticas migratórias. Tentou
vencer as necessidades de disponibilidade de terras, de vias de
comunicações, de meios de transporte aprimorando a formação de quadros
cnicos, reformando os currículos dos cursos superiores. Investiu em
comissões de levantamentos de fronteiras, cartográficos, geogficos,
geológicos, na construção de estradas, o que repercutiu fortemente quer na
determinação do quadro natural do país, quer no extermínio das nações
indígenas que ocupavam os territórios requeridos pela expansão agrícola.
Além do que encaminhou toda uma rie de medidas de higienização,
urbanização e imigração, que envolveram as questões de branqueamento
da raça”, cujo objetivo era, finalmente, introduzir o país no conjunto das
nações “civilizadas”.
Dois personagens da elite argentina da segunda metade do século XIX formularam
seus argumentos com base no poder de transformação da sociedade por meio do projeto
imigracionista europeu: Juan Baustista Alberdi e Domingos Facundo Sarmiento. Para Alberdi,
a imigração européia seria o novo ator que possibilitaria a implantação de novos hábitos e
novos comportamentos, que, por meio do exemplo cotidiano logo seriam imitados pelos
nativos. Tratava-se de substituir uma população por outra” (DEVOTO, 1999, p.34). O projeto
de Sarmiento vislumbrava os imigrantes também como portadores de um conjunto de valores
e hábitos novos, “mas no sentido de que seriam os braços de uma agricultura cujo poder de
53
transformação seria extraordinário, já que eliminaria o verdadeiro inimigo da civilização e do
progresso: o deserto” (DEVOTO, 1999, p.35).
Essas justificativas foram, logo depois, perdendo o sentido, pois os migrantes europeus
que desembarcaram nos portos da América do Sul não se assemelhavam ao modelo idealizado
pelas elites americanas do europeu culto, civilizado e oriundo das grandes cidades. Ao
contrário, eram homens, em sua maioria, vindos do campo, com alto índice de analfabetismo
e hábitos de higiene incompatíveis com os ideais de civilização e progresso esperados até
então (MORÁS, 2000).
Ainda que não atendessem ao perfil desenhado por uma parte das elites americanas, a
migração européia se intensificou durante o último quartel do século XIX e atingiu seu pico
nas primeiras décadas do século XX, cujos locais preferenciais foram as Américas:
Entre 1881 e 1915, cerca de 31 milhões de imigrantes chegaram às
Américas. Mais uma vez, como no período anterior a 1880, os Estados
Unidos eram o principal país de recepção, recebendo 70% desses
imigrantes. O segundo lugar em importância, porém, não era o Canadá, que
recebeu apenas 2.5 milhões, mas dois países latino-americanos: a
Argentina, com 4,2 milhões, e o Brasil, com 2,9 milhões de imigrantes
(KLEIN, 1999, p.25).
Na Argentina, como apontou Cortez Conde (2002, p.483), a escassez de potencial
humano foi um problema recorrente durante todo o século XIX e “desde as primeiras
propostas de Bernardino Rivadavia sobre a questão, na década de 1820, suscitara a idéia de
adotar uma potica de imigração e colonização que alcançou limitado sucesso antes de 1870”.
Isso se deveu em virtude das inúmeras disputas poticas internas que assolaram o país, desde
Rosas até a Guerra com o Paraguai. Porém, após esse período, o país passou a receber um
expressivo contingente de imigrantes, a maioria deles de espanhóis e italianos.
A República Oriental do Uruguai, limitada a um pequeno território, com pequena
população, exigia que se fomentasse por todos os meios o alargamento de seus mercados,
porque só desse modo seu imenso porto e seu comércio poderiam satisfazer as suas
necessidades (Medrano, 1989). Acreditava-se que a imigração teria um efeito dinamizador e
modernizador da sociedade uruguaia, em especial com a vinda das populações rurais
européias e de mão-de-obra qualificada.
Com o advento de mais uma instabilidade potica uruguaia, que resultou no
movimento denominado militarismo, entre 1875 e 1886, houve um decréscimo do fluxo
migratório. Segundo Oddone (2002, p.616) “em 1875, quando cerca de 24 mil imigrantes
desembarcaram no país, a crise financeira e o colapso do governo institucional anunciaram
54
uma década de imigração limitada para o Uruguai, enquanto grandes quantidades se dirigiram
para a Argentina e para o Brasil”. Somente depois de 1882, ocorre nova onda de imigrantes
com o apoio de uma legislação de 1884, que protegeu e subsidiou, através do Estado, a
chegada e estada dos imigrantes. Eram, em sua maioria, de origem italiana e espanhola e
produziram um efeito decisivo sobre o crescimento de Montevidéu.
O Estado uruguaio desempenhou um papel fundamental no estímulo à imigração
européia: montou uma estrutura de propaganda com seus agentes consulares espalhados na
Europa; adiantou passagens de terceira classe a imigrantes que quisessem se estabelecer no
Uruguai; forneceu hospedagem e sustento gratuitos para os que chegavam com passagem
antecipada; e, por fim, organizou uma agência de trabalho dentro da burocracia estatal.
O perfil do imigrante almejado pelas elites uruguaias era semelhante ao que requeriam
os argentinos, e, em 1890, uma lei uruguaia específica para a imigração definia claramente o
imigrante desejado: todo estrangeiro honesto e apto para o trabalho, que se transladasse para
a República Oriental do Uruguai, em barco a vapor ou a vela, com passagem de segunda ou
terceira classe e com a intenção de fixar nela sua residência” (ZUBILLAGA, 1999, p.427). Da
mesma forma, eram classificados os inaptos a imigrar para o Uruguai: “os que sofressem de
algum mal contagioso, os mendigos, os indivíduos que por vício orgânico ou por defeito
físico fossem absolutamente inaptos para o trabalho” (idem).
O fluxo migratório para o Uruguai no final do século XIX foi tão intenso que
Montevidéu se converteu em 1900 na terceira capital da América do Sul em população. Eram
268.334 habitantes somente na capital, e 1.042.686 no país. Como destacou Morás en 1860,
la mitad de los habitantes de Montevideo era extranjera y hacia 1880 su población se había
triplicado, dando como resultado una capital cosmopolita donde idiomas, costumbres y
comportamientos disímiles se entrelazaban en los lugares públicos” (2000, p.109).
Vale apontar que muitos imigrantes que entraram no porto da capital uruguaia, logo
em seguida encaminhavam-se para Buenos Aires. Montevidéu funcionou, por muitos anos,
até a construção dos portos de La Plata e de Buenos Aires no final do século XIX, como porto
terminal das linhas européias. Passageiros e cargas eram desembarcados em Montevidéu e
transportados até Buenos Aires nos vapores de menor tamanho, em razão da pouca
profundidade do porto argentino (MEDRANO, 1989).
Num importante trabalho comparativo entre a história do Brasil e a da Argentina dos
dois últimos séculos, Fausto e Devoto (2004) assinalam a posição das elites desses dois países
no que se refere à imigração:
55
Uma posição ideológica que se perfilava claramente entre os intelectuais
preocupados com a organização nacional, a começar por Sarmiento
posição, aliás, oposta à brasileira consistia em defender a utilização dos
colonos imigrantes como instrumento de civilização, no intento de povoar o
deserto, onde se julgava impossível o nascimento de qualquer sociabilidade.
A conveniência da imigração também era uma idéia forte no Brasil, mas
vista principalmente como uma forma de branquear e europeizar a
população, concepção mais afim às noções de Alberdi, na Argentina.
Entretanto, a idéia de fixar os imigrantes à terra segundo o modelo do
farmer norte-americano, predominante numa parte da elite argentina,
sobretudo a intelectual, era exatamente oposto daquela que preponderava
entre as elites fluminenses, qual seja, importar mão-de-obra para o uso dos
grandes fazendeiros e, para garantir sua disponibilidade, impedir o acesso
dos imigrantes à propriedade rural. Na Argentina, como o setor em
expansão era o da pecuária extensiva, os grandes fazendeiros e os ricos
comerciantes com capital disponível não tinham motivos de queixa contra
aquele ideário, desde que não faltassem terras para adquirir.
Portanto, compreender o fenômeno da migração européia para o Brasil requer
necessariamente entender a crise da instituição escravista no Império
19
. Para esse país, o era
interessante a política imigratória do povoamento, com formação de pequenos núcleos
urbanos e de pequenos proprietários, mas a substituição dos negros pelos imigrantes pobres, a
fim de manter uma potica agrária baseada na grande propriedade e na agricultura de
exportação.
As 1870, a elite latifundiária cafeeira começava a se interessar em promover a
imigração para substituir os escravos, pois a economia do café estava em plena expansão, e o
trabalho escravo em decadência, com a interrupção do tráfico internacional em 1850 e a
progressiva legislação abolicionista. Era preciso, portanto, encontrar uma solução definitiva
para o trabalho, e a imigração foi a resposta encontrada pelos fazendeiros brasileiros.
Os fazendeiros conseguiram trazer europeus com passagens pagas por eles próprios e a
obrigatoriedade de cumprirem um contrato de cinco anos, o que acabou limitando a vinda em
larga escala. Como destacou Alvim (1999, p.385), os latifundiários mais bem organizados na
província de São Paulo conseguiram pressionar o governo imperial e fazer com que ele
arcasse com o pagamento de metade da passagem dos imigrantes; finalmente, pela lei nº. 28,
de março de 1884, que assumisse o traslado integral dos colonos até os núcleos”.
A presea do Estado Imperial na potica imigratória, no entanto, é um pouco
anterior. Na primeira metade do século XIX, contando com a oferta virtualmente sem limite
de escravos africanos, o governo expressava pouco interesse na imigração estrangeira e se
19
extensa bibliografia sobre o tema da abolição da escravidão no Brasil imperial. Ver os trabalhos de
Chalhoub (1998), Viotti da Costa (1989), Beiguelman (1981).
56
concentrava primordialmente no povoamento da região de fronteira meridional, contra os
avanços dos hispano-americanos. Mas a partir de 1850, o Império começou a levar em
consideração a possibilidade de usar o imigrante europeu como substituto do escravo africano
nas plantações de café, ainda que, inicialmente, em bases experimentais (KLEIN, 1994).
Uma das medidas que tinham sido tomadas pelo governo imperial foi expedir, em
1865, circular aos nsules brasileiros na Europa, instruindo-os a que pagassem, aos
imigrantes com destino ao Brasil, a diferença entre o preço da travessia e o da passagem para
os Estados Unidos, país que atra milhares de candidatos europeus, como já se mencionou.
A Repartão dos Negócios Estrangeiros foi mobilizada com vistas ao recrutamento de
candidatos à imigração, e o Regulamento Consular, datado de 1872, mandava, em especial,
que os cônsules indagassem se havia “pobres robustos, trabalhadores e diligentes no serviço”,
entre criados de servir, lavradores, ferreiros, carpinteiros, pedreiros e mais ofícios
mecânicos” dispostos a emigrar (ALMEIDA, 2001). Mas o relativo insucesso na atração de
imigrantes europeus existiu enquanto durou a escravidão, já que os novos colonos europeus,
certamente, preferiam optar por países cujo trabalho era livre, como era o caso dos Estados
Unidos e da Argentina.
Ainda assim, o número de imigrantes nos últimos anos anteriores à abolição da
escravatura experimentou sensível aumento. Contribuiu para isso, também, o aumento dos
subsídios oficiais à vinda de imigrantes, com a legislação citada de 1884: registros a partir de
1885 indicam a alocação de 108 mil libras de recursos do governo central para esse tipo de
despesa nesse ano, de 195 mil no ano seguinte, de 551 mil libras em 1887, chegando a
alcançar 709 e 720 mil libras nos dois últimos anos do Império (ALMEIDA, 2001, p.366).
1.6. DIPLOMACIA E EPIDEMIAS
A imigração européia caminhou junto com as epidemias na América da segunda
metade do século XIX. Os Estados Unidos, maior país do continente a receber europeus,
inspecionavam os imigrantes fisicamente e temiam que o país se convertesse no “hospital de
todas as nações do mundo” (CUETO, 2004). Outros países americanos também passaram por
essa experiência, como Argentina, Brasil, Chile, Uruguai, Cuba e Peru, onde também existia o
temor da introdução de doenças epidêmicas pelos estrangeiros.
Muitos imigrantes, quando desembarcavam nos portos brasileiros, uruguaios e
argentinos, eram timas ou transmissores das epidemias de febre amarela e lera-morbo.
Apesar de o Brasil ter sido visto como “túmulo de imigrantes” e de essa imagem ter sido
57
propagada no Uruguai e na Argentina, é correto afirmar que diversas moléstias epidêmicas
entraram nesses países por meio dos navios oriundos da Europa repleto de imigrantes. Alcides
Beretta Curi (1996, p.256) destaca que, na Montevidéu do final do século XIX, os imigrantes
llegaban en grupos numerosos, en largos y penosos viajes en que
enfermedades, angustias e incertidumbres eran compañeros entrañables de
estos aventureros golpeados por la ruina, el hambre, las persecuciones...
Adultos, y también niños componían esta fantasmagórica empresa en la que
sólo el sueño de encontrar un refugio para la esperanza permitía sobrevivir a
tanto dolor.
Como femenos mundiais, as epidemias migravam junto com os europeus para a
América, mas também estes sofriam com as doenças já instaladas e reincidentes neste lado do
Atlântico. Como destaca Morás (2000, p.18), “nos portos não somente chegavam imigrantes
pobres e de escassa cultura. Muitas vezes eram portadores de epidemias que os obrigavam a
serem confinados em inumanos lazaretos”
.
A diplomacia brasileira informava e protestava, nos seus relatórios anuais, acerca da
imagem do Brasil que era veiculada no continente europeu. Houve em 1877 a circulação de
correspondências, praticamente simultâneas, dos Ministérios da Agricultura e Comércio da
França e do Interior da Itália, ambas proibindo a emigração para o Brasil, por motivos
basicamente sanitários e de condições de vida. (Relatório da Repartição dos Negócios
Estrangeiros, 30 de janeiro de 1877, apud ALMEIDA, 2001, p.363).
Mesmo assim, a imagem do Brasil como país escravista e pestilento contribuiu para
que grande parte dos imigrantes optasse pela Argentina, considerada mais avançada e limpa.
De acordo com Rodolpho Telarolli (1996, p.34),
Tão grande era o temor dos europeus à febre amarela, que algumas vezes os
navios se recusavam a atracar nos portos de Santos e do Rio de Janeiro: os
passageiros destinados a São Paulo acabavam desembarcando em Buenos
Aires e retornando por terra ou navegação de cabotagem ao Brasil. Por sua
vez, o governo imperial, com receio de que o grande mero de navios que
aportavam no país pudesse favorecer a ocorrência de epidemias de febre
amarela, determinou, entre 1882 e 1884, que as embarcações atracassem
longe do porto. Eram utilizados batelões chatos para o desembarque de
passageiros e cargas, evitando o revolvimento das águas mais profundas,
consideradas então uma das possíveis fontes da doença.
De fato, as afirmações de Telarolli condizem com a correspondência trocada entre o
cônsul do Brasil em Buenos Aires, João Adrião Chaves, e o ministro dos Negócios
Estrangeiros do Brasil, o Barão de Cotegipe. O primeiro fez um balanço das relações
58
econômicas entre os dois países, em que a questão das epidemias tornava-se um problema
cada vez mais grave a ser resolvido, especialmente a febre amarela, que havia aparecido
novamente na Corte no início de 1886:
Nota-se, à primeira vista, um sensível decrescimento no número de navios
que se empregaram no tráfico comercial entre os dois países, em relação ao
trimestre anterior, diminuição que também se faz sentir ao considerar-se o
valor comercial da importação e exportação, respectivamente. Este
decrescimento, entretanto, explica-se, em parte, pela imposição que aqui
tem lugar, nesta época do ano, de quarentenas aos navios que tocam em
portos do Império, medida esta que sempre nos prejudica, não somente pelo
que afeta aos interesses puramente comerciais, como pelo que diz respeito
no movimento de imigração, que por este meio é desviado, em grande parte,
dos portos do Império
20
.
A febre amarela, de acordo com Sidney Chalhoub (1996) e Jaime Benchimol (1999),
era uma doença cuja forma de transmissão e tratamento eram uma incógnita para os médicos
da época. Os esculápios especulavam e a classificavam como uma doença das zonas
litorâneas quentes e úmidas, que colhia suas timas entre os não aclimatados, isto é,
estrangeiros recém-chegados ao Brasil ou brasileiros do interior recém-instalados na capital.
Por isso, boa parte dos homens de ciência do período relacionava a ocorrência da epidemia
aos imigrantes
21
e dedicava especial atenção a essa doença que afastava desses países um
importante elemento: o imigrante.
Apesar dessa associação, havia ainda a epidemia de lera-morbo que também atingiu
novamente as três nações em estudo na década de 1880. A quinta pandemia de cólera teve
início em 1881 e se encerrou em 1896 e, na América do Sul, ela atingiu mais uma vez
fortemente a Argentina, o Uruguai e o Chile entre 1886 e 1888. Esta epidemia iniciada em
1886 na Argentina causou um grande impacto em número de timas e interferiu diretamente
na economia nacional, no fluxo imigratório e na posterior decisão de participar de um
Congresso Sanitário Internacional juntamente com o Brasil e o Uruguai em novembro de
1887
22
.
Desta vez foi o Império o “beneficiário” da moléstia no país vizinho. Segundo Ragucci
(1992, p.63-64), o Brasil tirou proveito da trágica situação vivida em 1886, pois “vários
contingentes de imigrantes ficaram divididos, e mais da metade desembarcava nas costas
brasileiras e uruguaias”.
20
AHI (RJ), vol.242-1-04, ofícios do Consulado do Brasil em Buenos Aires, 22 de abril de 1886.
21
Ver a obra de Jaime Benchimol (1999) sobre o médico Domingos José Freire e seus estudos em torno da febre
amarela no Brasil do final do século XIX.
22
Ver o capítulo II.
59
Do ponto de vista econômico, as relações entre Brasil e Argentina sofreram um
drástico recuo, com a imposão do fechamento de todos os portos das províncias brasileiras
aos navios e ao charque platinos.
O documento imperial datado de 13 de novembro de 1886 e
decidia que
fiquem fechados os portos nacionais, exceto o do Lazareto da Ilha Grande, a
todos os navios procedentes da República Argentina e de quaisquer portos
infeccionados pelo cólera morbus e proibia a “importação de carnes
salgadas de procedência argentina ou oriental... em que excetua as carnes
existentes em depósito nos saladeiros orientais e preparadas antes do
aparecimento do cólera na República Argentina”.
23
No ano seguinte, em 1887, as relações entre o Brasil e a Argentina novamente
recrudesceram principalmente em virtude das medidas tomadas pelo Ministério do Império e
dos Negócios Estrangeiros, prejudiciais ao comércio platino. Alguns parlamentares brasileiros
chegaram a especular um possível conflito armado entre os dois países, e o Barão de
Cotegipe, ministro dos Negócios Estrangeiros, foi chamado a dar explicações no Parlamento e
a dissipar os temores de uma guerra. De acordo com o historiador Amado Cervo (1981,
p.131), Cotegipe levantou vários pontos e desarmou completamente os ânimos, negando
firmemente a existência de hostilidades. Segundo o ministro, em discurso proferido em 12 de
agosto daquele ano, um dos motivos da tensão com o país vizinho foram
as medidas tomadas pelo Brasil, no campo da saúde, para evitar a
importação de epidemia platina, proibindo a do charque, e provocou dois
efeitos: a irritação na Argentina e no Uruguai, porque prejudicou seu
comércio e uma troca de notas que necessariamente a refletem. Para esses
atritos existe a diplomacia, que fornece razões e esfria paixões.
De fato, a diplomacia dos três países fez com que o problema do comércio do charque
e das doenças tivesse uma solução pela via da negociação, e não do conflito. Como essas
doenças epidêmicas entravam e saíam dos países preferencialmente pelos portos e
embarcações, se fazia urgente o estabelecimento de normas comuns entre os países em
relação ao movimento dos navios e aos procedimentos sanitários com a necessária
intervenção da diplomacia dessas nações. Para isso, o próprio Barão de Cotegipe foi o
protagonista na convocação dos ministros argentino e uruguaio para o Congresso Sanitário,
que ocorreu na Corte Imperial a partir de novembro de 1887. Esse ano se tornaria, assim, um
marco na história da saúde pública desses países. Não por acaso, foi um dos primeiros anos de
23
AN, Ministério do Império, Minuta de 13/111886.
60
maior fluxo da imigração européia no Brasil e na Argentina. Após a experiência de quase
cinqüenta anos de surgimentos e ressurgimentos de doenças epidêmicas, se fazia necessária a
unificação das práticas sanitárias entre três nações próximas geograficamente, mas também
próximas no plano potico e econômico.
Anteriormente a 1887, houvera ocorrido em Montevidéu um Congresso Sanitário
Internacional, com a reunião do Império do Brasil e das Repúblicas da Argentina e Oriental
do Uruguai. Como, depois da guerra, os problemas epimicos tinham se tornado um peso
para esses países, se fazia necessário adotar medidas comuns para combater os flagelos de
cólera e febre amarela. Como se verá mais adiante, esse Congresso não logrou êxito, porém
marcou o início do processo de formulação de tratados e convenções internacionais na área de
saúde pública na América do Sul. Aliás, o século XIX marcou não só para a América Latina,
mas para o mundo ocidental, a intervenção dos poderes públicos na saúde dos povos. As
reformas sanitárias e o aparecimento de conselhos gerais de saúde e departamentos sanitários
na Europa e nos Estados Unidos foram um grande marco na história da saúde blica no
Ocidente (ROSEN, 1994, p.177).
O surgimento de convenções sanitárias entre o Brasil, a Argentina e o Uruguai integra-
se ao movimento sanitário existente na Europa e nos Estados Unidos e à concepção de que
somente o poder público poderia solucionar os problemas de saúde da população e os
problemas econômicos advindos das doenças epidêmicas
.
A vigilância sanitária dos mares e dos portos foi um dos melhores exemplos da
emergência e rápida evolução de um arranjo público para coordenar o controle sanitário sobre
os vários portos dos países e o fluxo de navios, passageiros e mercadorias, em grande medida
em função de os procedimentos sanitários marítimos serem, de certo modo, universais, com
determinados digos que funcionavam em todas as águas e portos do mundo (HOCHMAN,
1998).
O surgimento e ressurgimento das epidemias impuseram um relacionamento entre
Estados a ser normatizado por tratados internacionais. Como afirmou Hochman (1998, p.98),
“na maioria dos países, e não foi diferente no Brasil, o serviço sanitário dos portos e
embarcações encontra-se nos primórdios dos cuidados estatais com a saúde, e foi uma das
atividades sanitárias que mais rapidamente se desenvolveram”.
Isso começa a explicar a ocorrência de dois Congressos Sanitários Internacionais
realizados pelo Brasil, Uruguai e Argentina nas últimas décadas do século XIX, que serão
analisados a partir de agora.
61
CAPÍTULO II CONFERÊNCIAS E CONGRESSOS SANITÁRIOS
INTERNACIONAIS: O LUGAR DA AMÉRICA DO SUL
O movimento de cooperação sanitária internacional surgiu da necessidade de controlar
surtos epimicos que atingiam grandes extensões de terra e ultrapassavam as fronteiras
legais constitdas entre os países. Todo o século XIX foi caracterizado pela presença de
grandes epidemias, que ocuparam um lugar de destaque entre as ações de interesse de saúde
pública, pois, durante esse século, seis graves invasões de lera astico, resultantes de uma
pandemia mundial, devastaram a Europa e a América, e outras doenças, como a febre amarela
e a varíola atingiram caráter epimico diversas vezes e em distintos continentes. Como
afirma Ilana Löwy (2006, p.32),
O movimento pela investigação da saúde pública tem origem no temor,
muito concreto, das epidemias; tal apreeno suscitou tentativas de
implementação de políticas sanirias comuns. Mais tarde, com o advento
da teoria microbiana da doença, esse movimento promoveu um esforço de
homogeneização das práticas de laboratório utilizadas para reconhecer os
agentes das doenças transmissíveis. Ele se estruturou através das
conferências sanitárias internacionais.
2.1. AS CONFERÊNCIAS SANITÁRIAS INTERNACIONAIS
Realizaram-se quatorze conferências sanitárias internacionais entre 1851 e 1938
24
, e o
objetivo principal das primeiras conferências sanitárias foi estudar em que medida era
concebível suprimir a quarentena sem colocar em risco a saúde das populações” (LÖWY,
2006, p.33). As quarentenas eram um verdadeiro entrave ao comércio internacional, e, em
parte, os órgãos sanitários buscavam resolver os assuntos econômicos em primeiro plano.
Ao mesmo tempo em que se discutiam os problemas advindos das epidemias, tentava-
se elaborar uma Convenção Sanitária Internacional, que pudesse servir de guia para o
combate em comum às epidemias que assolavam diversos países. Não foi tarefa fácil atingir
esse objetivo o da celebração de uma Convenção Sanitária Internacional –, que foi adiado
24
o foram levadas em conta as duas Convenções Sanitárias Internacionais ocorridas entre o Brasil, a
Argentina e o Uruguai nos anos de 1873 e 1887. Adotaram-se os parâmetros da bibliografia citada.
62
por diversas vezes, até ser atingido em 1892 na Conferência de Veneza
25
(MATEOS
JIMÉNEZ, 2005).
Assim, a primeira reunião internacional de saúde ocorreu em 1851, com a abertura da
Confencia Sanitária Internacional, em Paris, considerada como o primeiro verdadeiro
trabalho de colaboração internacional existente (ROEMER, 1994, p.1420). Foi inaugurada em
5 de agosto de 1851 com a presença de representantes dos seguintes países: Áustria-Hungria,
as duas Sicílias, Espanha, os Estados Papais, Inglaterra, Grécia, Portugal, França, Rússia,
Toscana e Turquia (ROSEN, 1994, p.225). Vale destacar que nenhum Estado do continente
americano esteve representado. Como destacou Myriam Lopes (1994),
A higiene torna-se uma questão de diplomacia. A partir de 1851 é realizada
uma série de congressos sanitários internacionais buscando se estabelecer
acordos entre os países participantes para o combate das epidemias. Vários
postos sanitários são criados no Levante visando o controle da peste. A
França estabelece o expediente de enviar médicos às embaixadas francesas
de países limítrofes onde se observa uma epidemia de febre amarela. Nos
congressos internacionais são produzidas normas sanitárias de classificação
dos navios. Simultaneamente e de forma complementar, elabora-se uma
tipologia de embarcações e uma política de recepção individualizada aos
navios que atracam nos portos dos países signatários da convenção.
Para o funcionamento dessa primeira conferência, cada Estado enviou dois delegados,
um diplomata e um médico, pois se reconhecia que a conferência dizia respeito a problemas
dicos, administrativos e diplomáticos. O objetivo principal era o de remover os atrasos
desnecessários ao comércio internacional, salvaguardando-se a saúde geral, assim como criar
postos sanitários de vigilância no Oriente Médio, que facilitassem informações periódicas
sobre a evolução e a situação das doenças epidêmicas, como o lera e a peste, originárias
dessa região. Era necessário, portanto, o estabelecimento de um regulamento internacional
que uniformizasse as práticas sanitárias entre os países.
O resultado dessa primeira Conferência foi ínfimo, se comparado às intenções iniciais
estabelecidas, e o exame das atas revela que as discussões se detiveram no âmbito das teorias
epidemiológicas, com pouco efeito prático (ROSEN, 1994, p.226). De acordo com Paz
Soln (1949, p.18-19),
no se logró llegar a una convención, aplicable mediante un
reglamento uniforme para los paises participantes. Tal forma de
cooperación que parece hoy tan natural, cau el insuceso de la
25
Vale a pena destacar, inicialmente, o pioneirismo dos países do Cone Sul em terem assinado a Convenção
Sanitária Internacional de 1887, caracterizando-a como a primeira em nível mundial. Essa discussão será
retomada mais adiante.
63
conferencia. Ninn Estado quiso someterse a semejante norma,
mirada como mediatizadora de la soberanía nacional. Era el credo
liberal de la Europa del siglo XIX, salida de las guerras que llenaron
los comienzos del siglo.
Com a não-submissão dos países envolvidos, houve posteriormente o não-
comprometimento dos Estados, que se refletiu no fato de apenas França, Portugal e Sardenha
terem ratificado a convenção e, de, em 1865, Portugal e Sardenha terem se desligado do
acordo. Durante esse período, a pandemia de lera, iniciada em 1863, e a abertura do canal
de Suez, a 17 de novembro de 1869, reafirmaram a importância dos problemas internacionais
de saúde.
Em 1859, novamente na cidade de Paris foi realizada a segunda Conferência Sanitária
Internacional, com o objetivo de revisar o que havia sido feito em 1851. Os únicos delegados
enviados foram os diplomatas, ou funciorios ligados à administração dos seus respectivos
países, haja vista que se tratava de uma revisão do projeto de 1851, e não de uma discussão
dica ou científica sobre as epidemias e as formas de prevenção e cura.
Em 1866, em Constantinopla, com a presença dos países participantes da primeira e
segunda Conferências, como Áustria, Sicília, Espanha, Estado Pontifício, França, Inglaterra,
Grécia, Portugal, Rússia, Toscana e Turquia, mais o Egito e a Pérsia, aconteceu a terceira
Confencia Sanitária Internacional, motivada principalmente pela nova epidemia de lera
surgida no Egito e pelo temor de que essa epidemia pudesse ser levada por peregrinos
muçulmanos que iam a Meca. Constantinopla era um local estratégico para combater e deter o
avanço dessa epidemia para o restante da Europa ocidental por ser considerada uma das portas
de entrada para o continente europeu, daí a escolha dessa cidade para a realização dessa
conferência.
Do ponto de vista dos resultados alcançados, nenhuma dessas três conferências trouxe
efeito prático, porém evidenciaram a importância da colaboração mútua entre países e
serviram como referência a muitos trabalhos ulteriores semelhantes, como foi o caso da
Convenção Sanitária Internacional de 1873 realizada na cidade de Montevidéu. Os médicos
presentes a essa convenção apontavam a Confencia de Constantinopla como exemplo a ser
seguido pelos países americanos, como se verá adiante.
Considerada a quarta Conferência Sanitária Internacional, ocorreu em Viena no ano de
1874 com o objetivo de uniformizar as medidas sanitárias sobre a navegação do Rio Danúbio
e do Mar Negro e se caracterizou como nitidamente regional, pois os problemas a serem
resolvidos tinham dimensões regionais e locais e abarcavam um reduzido número de pses e
64
interesses (PAZ SOLDÁN, 1949, p.20). Essa conferência foi marcada por uma modificação
importante nas práticas sanitárias, como a substituição da quarentena pela inspeção médica,
embora fosse válida apenas para a região em destaque.
Em 1881 realizou-se a quinta Conferência Sanitária Internacional
a única fora da
Europa
–,
na capital norte-americana, Washington, e que representou a entrada dos Estados
Unidos no âmbito da ação diplotica no campo da saúde pública. Os Estados Unidos
enfrentaram diversas epidemias de lera e febre amarela
26
durante o século XIX, e a febre
amarela era a mais temida entre os norte-americanos. Em função dos surtos epimicos,
ocorreram, entre 1857 e 1860, quatro Convenções Nacionais de Quarentena e Saúde,
respectivamente em Filadélfia, Baltimore, Nova York e Boston (ROSEN, 1994, p.214), que se
ocuparam da quarentena, das organizações e regulamentações sanitárias da saúde comunitária.
A conferência de 1881 deu continuidade às políticas de saúde dos Estados Unidos, pois
interessava aos americanos o enfoque no combate à febre amarela, e esse foi o motivo central
da reunião de 1881, senão o único.
A quinta conferência marcou ainda a participação, pela primeira vez, de países
americanos, como Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, xico, Haiti, Peru e Venezuela
27
. A
quase totalidade das delegações dos países presentes estava constituída pelos seus agentes
diploticos, quase sem a presença de dicos (MATEOS JIMÉNEZ, 2005, p.343). Como
resultado prático dessa conferência, pode-se destacar a elaboração da “carta de saúde” como
documento primário dos barcos no trânsito marítimo, embora o houvesse a assinatura de
um convênio diplomático.
Em 1885 ocorreu em Roma a sexta Conferência Sanitária Internacional, cuja
motivação foi o aparecimento do cólera no Egito. Porém, desta vez, Robert Koch havia
descoberto o vibrião causador da doença desde 1883, o que tornou o trabalho dos
conferencistas mais facilitado. Desta conferência, saíram recomendações para orientar a
segurança sanitária internacional, mas não houve pacto diplomático.
Até o final do século XIX aconteceram mais quatro conferências sanitárias
internacionais: em 1892, na cidade de Veneza; em 1893, em Dresden; em 1894 na capital da
França; e, novamente em Veneza, em 1897. Somente em 1892 se firmou uma Convenção
26
Uma curiosidade nessa quinta conferência foi a participação do cientista cubano Carlos Finlay, delegado da
Espanha, representando Cuba e Porto Rico. Ele apresentou sua teoria sobre a transmissão da febre amarela
através de um agente, o mosquito Stegomia fasciata (atualmente Aedes aegypti). Sua teoria foi plenamente
reconhecida vinte anos depois. Ver Paz Soldán, 1949.
27
Faz-se necessário localizar as atas dessa Conferência de Washington e verificar qual foi a dimensão da
participação dos países latino-americanos no evento.
65
Sanitária Internacional, como assinalado anteriormente, mas a questão da soberania dos
Estados foi a grande barreira para os avanços nas questões de salubridade e higiene dos
povos. E entrando no século XX, ocorreram mais quatro conferências, todas em Paris, em
1903, 1911, 1926 e, finalmente, em 1938. Com o final da Segunda Guerra Mundial, os países
voltariam a se reunir em 1946, quando foi criada a Organização Mundial de Saúde (OMS),
que substituiu definitivamente as Conferências Sanitárias Internacionais.
De acordo com Ilana Löwy, as Conferências Sanitárias Internacionais não tiveram
força suficiente para comprometer os países envolvidos nas propostas apresentadas. Segunda
ela (2006, p.32-33),
apesar da vontade declarada dos participantes de agir eficazmente
contra as epidemias, as primeiras conferências sanitárias tiveram um
papel meramente consultivo, sem que os países participantes
estivessem comprometidos com suas decisões. Além disso, nas três
primeiras conferências os votos foram individuais e o por países,
de modo que o era raro que dois delegados de um mesmo país
votassem diferentemente. O estatuto das conferências sanitárias
internacionais mudou a partir da sexta delas (Veneza, 1892), que
elaborou o texto da primeira convenção sanitária internacional que os
países participantes se comprometeram a respeitar (esse texto foi
modificado várias vezes pelas conferências seguintes).
Para Marta de Almeida, as conferências sanitárias devem ser entendidas como
ocasiões singulares de discussões sobre assuntos considerados prioritários, “num momento de
intensa movimentação imigratória e comercial, no qual as barreiras sanitárias, justificadas
pela ameaça crescente das epidemias, agravavam a delicada questão das relações diplomáticas
das regiões” (2003, p.05). A internacionalização dos problemas sanitários acarretou na
reunião dos países europeus, e, posteriormente, dos americanos.
Portanto, o Império brasileiro e as Repúblicas platinas estavam inseridos em um
contexto mundial e regional procio às discussões acerca da saúde blica e dos acordos
internacionais, e em que era preciso tomar medidas mais uniformes e enérgicas de controle,
com o intuito de deter a ameaça constante dos circuitos epidêmicos, por via da cooperação
internacional, respeitando o preceito de o mínimo de dificuldade para o comércio com o
máximo de proteção na saúde pública” (MATEOS JIMÉNEZ, 2005, p.341).
É interessante observar que um relato no jornal Revista Mercantil de Montevidéu,
publicado em 12 de agosto de 1873, classificava a Convenção Sanitária uruguaia como o
66
primer Congreso Sanitario Americano y cuarto en el mundo”
28
. Vale atentar para essa
percepção da época, a de que o congresso realizado no Uruguai fazia parte de um movimento
mais global na área da saúde pública.
Do ponto de vista da estrutura organizacional e dos objetivos estabelecidos, de fato, a
observação do periódico está coerente com a realidade do período. Por isso, vale destacar, nos
estudos das Conferências e Congressos Sanitários Internacionais, a importância dos três
congressos latino-americanos realizados na segunda metade do século XIX: os dois primeiros
envolveram o Império do Brasil e as Repúblicas do Uruguai e da Argentina e foram
realizados, respectivamente, em 1873, em Montevidéu e, em 1887, no Rio de Janeiro; o
terceiro ocorreu em Lima, no Peru, em 1888, e contou com a participação da Bovia, Chile,
Equador e Peru
29
. Como destaca Marcos Cueto (2004, p.14), en todas estas reuniones se
señalaron las limitaciones de la salud internacional tradicional, generalmente fragmentada,
enemiga del comercio y, muchas veces, inefectiva”.
Por muito tempo, a historiografia sobre a saúde pública esteve centrada nas análises
produzidas por historiadores europeus e norte-americanos, que desconheciam ou
minimizavam esses eventos. Os trabalhos feitos no Brasil não os consideravam fenômenos de
grande porte que pudessem ser elevados à condição de Conferências Sanitárias
Internacionais
30
. No Uruguai, um trabalho pioneiro do médico Jose Saralegui é o primeiro a
tratar das Convenções Sanitárias de 1873 e 1887 como eventos importantes e integrados ao
que ocorria em outros lugares. Segundo Saralegui (1958, p.131), o evento de 1873, ocorrido
em Montevidéu “representó una conquista sanitaria muy importante para la época; fué la
primera Convención Internacional Americana y con ella se deseaba uniformar las medidas
cuarentenarias y el tratamiento sanitario de los buques infectados por ellera, fiebre amarilla
y peste”.
28
AHI/RJ, Ofícios da Legação do Brasil em Montevidéu, v.222-2-02, 29/08/1873, recorte do jornal Revista
Mercantil de 12/08/1873.
29
Apesar da importância desse congresso, ele o será analisado neste trabalho em função da falta de acesso à
documentação primária e ao fato de que esse evento envolveu outros atores sociais e políticos.
30
Ver, por exemplo, o trabalho de Lima (2002).
67
A Tabela 2 apresenta todos os Congressos Sanitários Internacionais desde 1851 até
1938, com a inclusão dos congressos sul-americanos ocorridos em 1873, 1887 e 1888.
TABELA 2
CONFERÊNCIAS SANITÁRIAS INTERNACIONAIS
Ano Local Nº de
Países
Motivações
(epidemias vigentes)
Observações
1851 Paris 12 Medidas apliveis ao
cólera, à peste e à febre
amarela.
Não foi assinada
nenhuma convenção
sanitária.
1859 Paris 11 Revisar a obra feita em
1851.
A guerra da Criméia
atrapalhou a ocorrência
da Conferência
1866 Constantinopla 17 Epidemia de cólera no
Egito.
Não foi assinada
nenhuma convenção.
1873 Montevidéu 03 Epidemia de cólera e
febre amarela
Foi elaborada uma
convenção sanitária que
não foi ratificada.
1874 Viena 21 Medidas sanirias da
navegação no Danúbio
e no Mar Negro.
Formação do Direito
Sanitário Internacional.
1881 Washington 26 Controle da febre
amarela.
Não foi assinado nenhum
convênio.
1885 Roma 28 Aparão do cólera no
Egito.
Não houve pacto
diplomático.
1887 Rio de Janeiro 03 Epidemia de cólera no
Rio da Prata
Assinatura de Convenção
Sanitária Internacional
1888 Lima 04 Epidemia de cólera Projeto de acordo
internacional
1892 Veneza 14 Aparão do cólera em
Veneza.
Assinatura de Convenção
Sanitária Internacional.
1893 Dresde 19 Aparecimento do
cólera, da peste e da
febre amarela.
-
1894 Paris 16 Medidas contra o
cólera, a peste e a febre
amarela.
-
1897 Veneza 20 Idem -
1903 Paris 24 Atualização das quatro
últimas conferências.
Proposta de criação da
Oficina Internacional de
Higiene Pública
1912 Paris 41 Revisão da última
convenção
1926 Paris 50 Estabelecimento de
uma regulamentação
específica para o tifus e
a varíola.
1938 Paris 49 Dissolução do Conselho
sanitário, marítimo no
Egito.
Fonte: Almeida (2003); Paz Soldán (1949), Cueto (2004), Jiménez (2005).
68
Das abordagens mais recentes, devem-se destacar dois estudiosos, que se diferem
daqueles que não situavam os acontecimentos ocorridos na América Latina: Marcos Cueto,
historiador peruano, para quem os congressos sanitários realizados entre países da América do
Sul estavam em sintonia com as Conferências Internacionais, quando afirma que también en
América Latina se organizaron eventos por esa misma época, por lo general como un acuerdo
entre dos, tres y hasta cuarto países. Entre ellos se destaca una serie de reuniones sobre salud
en las que participaron Argentina, Brasil y Uruguay (2004, p.14); e a canadense Anne-
Emanuelle Birn (2006, p.679), que, igualmente, apontou essa aproximação, ao afirmar que
a preocupação européia, em meados do século XIX, em prevenir a
propagação de doenças epidêmicas e as conseqüências econômicas das
interrupções do comércio – ecoou em uma série de encontros, realizados em
Montevidéu e no Rio de Janeiro, iniciados em 1873, visando à
padronização de medidas de quarentena e saneamento marítimo.
Essas duas pesquisas, de alguma maneira, interpretaram as Convenções Sanitárias
Americanas em outra perspectiva, mais integradas às discussões que ocorriam na Europa.
Uma análise mais aprofundada e comparativa revela a atualidade das discussões desses
eventos europeus e americanos ocorridos ao longo da segunda metade do século XIX e que
exerceram um papel crucial em relação à saúde pública de várias partes do mundo.
2.2. CONFERÊNCIAS, DIPLOMACIA E SAÚDE NA AMÉRICA DO SUL: PROBLEMAS
E SOLUÇÕES
A história diplomática atualmente sendo substituída pela história das relações
internacionais – enfatizou durante muito tempo as questões militares e bélicas entre os países,
pois cabia a ela defender e representar a história oficial dos seus Estados e, por isso mesmo,
foi considerada uma história factual e acrítica.
Nas décadas de 70 e 80 do século XX, como ressalta o historiador Luís Cláudio
Villafañe Santos, em um momento de renovação metodológica na área da História, os temas
ligados à diplomacia foram, de alguma maneira, estigmatizados como formas arcaicas e
pouco críticas. Atualmente, com o surgimento das novas abordagens na área das relações
internacionais, a historiografia tem produzido novas teses, problematizando as relações de
poder e saber entre as nações, os desequilíbrios regionais e os domínios econômicos. Como
ressaltam Cervo e Bueno (2002, p.14):
69
a historiografia brasileira das relações internacionais é similar à dos outros
países. Até por volta de 1940-1950, prevalecia aqui também a história
diplomática tradicional, que se fazia em todo o mundo, com interpretações
conduzidas de dentro das nações ou das nacionalidades, que veiculavam os
argumentos da respectiva chancelaria. Era uma narrativa superficial de
fatos. Fazia-se uma história apologética e limitada quanto ao objeto e à
capacidade explicativa... A historiografia brasileira das relações
internacionais adquiriu sua maturidade quando a história diplomática foi
superada pelos métodos modernos de análise desenvolvidos no seio das
universidades.
Os trabalhos acadêmicos, a partir da década de 1980, produzidos pelos cursos de s-
graduação, em especial, os da Universidade de Brasília, vêm procurando enfocar as relações
internacionais do Brasil, especificamente do ponto de vista latino-americano e, mais ainda, do
Cone Sul. Essas relações têm sido tradicionalmente um dos temas mais recorrentes da
historiografia especializada nas relações internacionais do Brasil e, igualmente, um dos que
têm passado por grandes renovações nos estudos diploticos. Os intensos intercâmbios e a
complicada rede de relações de conflito e cooperação entre os países dessa região recebem
destaque nas grandes obras
31
sobre potica externa brasileira e m merecido importantes
trabalhos específicos. Esta produção acabou contribuindo para relativizar a idéia de que a
trajetória da diplomacia brasileira estava essencialmente voltada para a Europa e para mostrar
que interessava ao Brasil, desde o período da Independência, estreitar laços, muitas vezes
desiguais, com países da América.
Tratar-se-á aqui, especificamente, das relações entre Brasil, Argentina e Uruguai. De
acordo com Magnoli (1997, p.134-135), “até as últimas décadas do século XIX, o que
atualmente se entende como o subsistema regional das Américas consistia, efetivamente, em
um conjunto pouco articulado de sistemas sub-regionais”. A noção de sistema sub-regional
traduz a integração estabelecida entre o Império brasileiro e as Repúblicas platinas, que
contribuiu para o estabelecimento de acordos de interesses multilaterais. A ausência de uma
potência americana dominante nos Oitocentos propiciou às relações internacionais latino-
americanas um caráter fortemente regionalizado.
A historiografia brasileira do século XIX, representada pelo Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro
32
, fundado em 1838, acentuou ainda os conflitos poticos entre o Brasil
e as Repúblicas platinas, na medida em que identificava o "outro" da Nação brasileira pelo
31
Ver o importante trabalho de síntese de Cervo e Bueno (2002).
32
O IHGB foi o locus da produção historiográfica no Brasil até o final do culo XIX e defensor do projeto do
Estado monárquico.
70
critério das diferenças quanto às formas de organização do Estado. Deste modo, os grandes
inimigos externos do Brasil serão as repúblicas latino-americanas, corporificando a forma
republicana de governo, ao mesmo tempo, a representação da barbárie” (GUIMARÃES,
1998, p.7). Dessa forma, o Brasil se relacionou com seus vizinhos, durante o século XIX,
defendendo sua superioridade potica e econômica em relão, especialmente, à Argentina e
ao Uruguai, países mais próximos, geográfica e culturalmente. No entanto, ao mesmo tempo
em que se alimentava a imagem de que, aos olhos das elites imperiais, as repúblicas sul-
americanas eram territórios de barbárie, em contrapartida, o mesmo sentimento existia nas
Repúblicas do Prata em relação à monarquia brasileira, escravista e atrasada.
As imagens produzidas pelas elites não se refletiram tão diretamente na diplomacia,
pois a ela cabiam a promoção e o incentivo de intercâmbios econômicos entre os países e,
mais ainda, com o Rio da Prata. Para se ter uma iia, o primeiro agente consular do Brasil foi
enviado primeiramente para Buenos Aires em 1822 (CASTRO, 1983), o que evidencia uma
longa história entre os dois países e a posição estratégica do Prata para com o Império
brasileiro. Interessava ao Brasil manter a Confederação argentina sob constante vigilância, já
que os brasileiros cobiçavam, junto com os argentinos, a Banda Oriental, atual República
Oriental do Uruguai.
Nas últimas décadas do século XIX, questões como imigração e epidemias fizeram
com que as diplomacias dessas regiões se relacionassem de forma mais articulada, numa
tentativa de salvaguardar seus interesses e com a percepção de que, num mundo cada vez
mais integrado, era preciso estabelecer acordos em comum. Enrique Arocena Oliveira (1984,
p.119) analisa dessa forma o caso da diplomacia uruguaia.
En tanto la diplomacia ordinaria hacía su experiencia en el manejo de los
intereses nacionales frente a los demás Estados, ella se va a ir incorporando
a otros desarrollos de la vida internacional en las dos últimas décadas del
siglo. Esto es, la participación en la esfera multilateral, que va cobrando
impulso ante los deseos de un mayor vínculo entre las naciones del mundo
civilizado en los campos de la cooperación humanitaria, administrativa,
sanitaria, etc.
A partir dessa época, se tornava vital para os interesses dessas nações a articulação
com outros países, com base em acordos multilaterais que pudessem, além de proteger suas
economias, integrá-los na nova modalidade da política internacional, qual seja, a da
cooperação e assinatura de acordos. Por isso que uma das características mais salientes da
segunda metade do século XIX foi a construção de uma “nova ordem econômica
internacional” com a instituição de entidades de cooperação técnica de caráter multilateral.
71
Deu-se a partida a uma sucessão de conferências, congressos e seminários científicos e
industriais, que estão na origem da constituão da primeira série de organizações
intergovernamentais que se perpetuaram no século XX (ALMEIDA, 2001, p.375).
Confencias, congressos e exposições internacionais, a maior parte convocada pelos
próprios governantes dos países patrocinadores, tenderam a multiplicar-se na segunda metade
do século XIX e solicitavam a atenção das chancelarias e dos serviços econômicos dos países
civilizados”. Na Europa, como se destacou anteriormente, os diversos congressos, dos
industriais aos científicos e comerciais e, em especial, as exposições universais”, serviam de
terreno para uma discussão mais aprofundada de determinados temas de interesse imediato,
como as epidemias, abrindo, assim, o caminho para as confencias diplomáticas e o
estabelecimento das primeiras uniões intergovernamentais”.
No entanto, como ressaltou Nísia Lima (2002, p.25), o papel desempenhado pela
saúde na configuração das relações internacionais a partir da segunda metade do século XIX
ainda não foi suficientemente avaliado”. É nesse contexto que se situam as convenções
sanitárias de 1873 e 1887 estabelecidas entre o Império do Brasil e as Repúblicas da
Argentina e Oriental do Uruguai. Os objetivos desses congressos estavam orientados
fundamentalmente em duas direções: uma, suprimir os obstáculos que se opunham ao
comércio e aos transportes; e, outra, proteger a região contra as denominadas epidemias
exóticas
33
.
O surgimento de convenções sanitárias entre o Brasil, a Argentina e o Uruguai integra-
se, desta forma, a uma concepção de que somente o poder público poderia solucionar os
problemas de saúde da populão e os problemas econômicos advindos das doenças
epidêmicas.
A história das conferências e das convenções sanitárias é, em grande parte, a história
da saúde pública numa perspectiva internacional. A análise desses eventos tem como base a
documentação produzida pelos diversos personagens envolvidos, como os ofícios, as atas, os
regulamentos, os jornais, as experiências científicas, etc. Toda essa teia de documentos
constitui a história viva das distintas idéias e conceitos que prevaleceram durante a segunda
metade do século XIX entre as autoridades poticas e médicas sobre a natureza das doenças
epidêmicas e sobre os obstáculos causados por elas na economia regional e internacional.
33
As epidemias exóticas eram aquelas doenças consideradas importadas de outras regiões e que não existiam
anteriormente ao aparecimento de surtos epidêmicos. A febre amarela, vinda da Europa e o cólera, vindo da
Ásia, eram denominadas enfermidades exóticas. Há uma discussão sobre a febre amarela ser ou não endógena no
Brasil do século XIX. Ver-se-á mais adiante.
72
Vale evidenciar como o tema das Convenções Sanitárias Internacionais de Montevidéu
(1873) e do Rio de Janeiro (1887) tem aparecido na bibliografia desses países. Não é objetivo
aqui esgotar toda a bibliografia, que é extensa e que será retomada e acrescentada ao longo
dos outros capítulos, porém o de evidenciar os trabalhos mais significativos e que mais se
dedicaram em analisar esses acontecimentos.
Na bibliografia uruguaia consultada, um trabalho pioneiro na temática de saúde
pública internacional, citado anteriormente, que é o de Saralegui, publicado em 1958, cujo
objetivo foi o de discutir, exatamente, as políticas das mais diversas nações relacionadas ao
problema da higiene internacional com o surgimento das doenças epidêmicas. O autor
analisou boa parte dos congressos sanitários internacionais realizados desde o século XIX até
a data de publicação da obra e fez extensa referência aos dois congressos sul-americanos.
Segundo ele, em relação ao evento de 1887, “tanto el texto de la Convención Sanitaria como
la Reglamentación adjunta, constituyen dos documentos sanitarios internacionales de valor
históricos, porque introdujeron nuevos conceptos sanitarios para la época y además, dentro de
la administración sanitaria, representaron una nueva etapa de realizaciones” (1958, p.136).
Outro médico uruguaio, Fernando Mañe Garzón, mais recentemente, também tratou
das duas conferências sanitárias em sua biografia sobre o médico Pedro Visca, um dos
primeiros médicos uruguaios do final do século XIX. De acordo com ele, a conferência de
Montevidéu “fue la primera reunión americana para proponer normas sanitarias
internacionales que uniformizarán las medidas tanto cuarentenarias como de tratamiento
sanitario de los buques infectados por el lera, la fiebre amarilla y la peste” (1983, p.170).
Outro trabalho, dessa vez do sociólogo Luiz Morás, propõe o estudo da Conferência
Sanitária Internacional de 1887 como “uno de los casos más interesantes de interrelación de
epidemias, intereses económicos y conocimiento científico” (2000, p.120). Esse importante
trabalho será retomado mais adiante.
No caso brasileiro, a Convenção Sanitária de 1887 teve maior repercussão na
bibliografia do que a de 1873. O fato de ter sido ratificada e posta em execução contribuiu
para que fosse mais marcada na documentação. Na temática da história dos saberes médicos e
das instituições de saúde, o tema dos Congressos Sanitários de 1873 e 1887 aparece apenas de
maneira pontual na historiografia da saúde.
Lycurgo Santos Filho, em seu trabalho pioneiro sobre a história da medicina no Brasil,
dedica boa parte da obra à ciência médica do século XIX. Menciona, ao tratar da assistência
sanitária e da vacinação na época do Império, a Convenção Sanitária de 1887. Segundo o
autor (1991, p.506),
73
Pela primeira vez na história da assistência assinou-se, a 22.8.1889, uma
“Convenção sanitária celebrada entre o Império do Brasil e as Repúblicas
da Argentina e do Uruguai”, já contratada a 26.11.1887, e destinada à
adoção de medidas de quarentena e prevenção contra a invasão das
“moléstias exóticas pestilenciais”, a saber, a febre amarela, o cólera e a
peste bubônica, então denominada “peste oriental”.
Edgar Falcão (1978 apud Pasold, 1983) faz referência ao acordo sanitário assinado
entre o Brasil, a Argentina e o Uruguai, cujo regulamento surgiu, segundo o autor, em função
dos projetos imigratórios implementados nos três países, no final do século XIX, e com maior
impacto no Império em razão da necessidade crescente de mão-de-obra livre que substituísse
a quase extinta escravidão. A Convenção deveria ser uma resposta às pressões externas dos
países imigrantes, que viam o Brasil como um dos paraísos das doenças transmissíveis e
visava também assegurar as condições sanitárias para viabilizar importantes trocas comerciais
entre o Império brasileiro e as Repúblicas da Argentina e do Uruguai.
Luiz C. Villafañe Santos (2004), num trabalho sobre a participação do Império
brasileiro nos congressos americanos durante o século XIX, faz uma pequena referência à
convenção sanitária de 1887. Ao tratar da participação do Brasil na Conferência de
Washington em 1889 e das propostas norte-americanas de acordos sobre união aduaneira
entre os países americanos, afirma que
A preferência pelo fortalecimento dos laços comerciais com os vizinhos
platinos (sem a interferência norte-americana) ficou mais uma vez evidente
no comentário sobre a discussão de padrões fitossanitários comuns: quanto
à parte final [higiene e quarentena], é fácil ver que, depois da convenção
sanitária firmada com as Repúblicas Argentina e Oriental do Uruguai, o
Brasil não pode entrar em discussão nesta matéria. O que lhe pareceu bom
esfeito”. (p.121)
Marta de Almeida (2003), historiadora das ciências da saúde, dedicou-se a estudar, em
seu trabalho de doutoramento, os congressos médicos latino-americanos e brasileiros entre
1888 e 1929. Ao evidenciar as preocupações e interesses dos médicos envolvidos nesses
eventos, a autora destaca a relação entre a esfera do Estado e o campo dico:
Se o Estado necessitava, por exemplo, do respaldo do conhecimento
científico para o reconhecimento de suas potencialidades minerais,
territoriais, vegetais e para a solução de problemas emergenciais como o
controle de doenças epidêmicas, os cientistas necessitavam criar espaços de
atuação e ampliação de suas relões científicas num meio muitas vezes
adverso, pautado por prioridades político-econômicas distantes dos seus
interesses (p.20).
74
O estudo dos congressos médicos latino-americanos do final do século XIX e início do
XX lança luz sobre os congressos sanitários de 1873 e 1887, pois, de alguma maneira, estes
últimos estiveram na vanguarda do que iria acontecer posteriormente. De acordo com
Almeida, em sincronia com as decisões tomadas por ocasião da Convenção Sanitária,
ocorrida em 1887, no Rio de Janeiro, entre Brasil, Uruguai e Argentina e ratificada em 1889,
foram reafirmadas, por ocasião do Congresso Brasileiro de Medicina e Cirurgia, as normas
fiscalizadoras das embarcações marítimas nos portos do Brasil”. Esse congresso ocorreu em
1889 e tinha como principal objetivo a idealização de um grande projeto de saneamento para a
cidade do Rio de Janeiro, daí a proposta da utilização da convenção de 1887.
Por fim, o historiador peruano Marcos Cueto (2004) assinalou, ainda que o tenha
sido seu foco de estudo, as Conveões Sanitárias de 1873 e 1887 como as primeiras reuniões
de saúde internacional no continente americano. De acordo com ele,
En la primera de estas reuniones, realizada en Montevideo en 1873, se trato
de uniformizar tanto las reglas de las cuarentenas cuanto las desinfecciones a
que eran sometidas las embarcaciones provenientes de puertos donde cundía
el cólera, la fiebre amarilla y la peste bubónica. El primero de los acuerdos
entre estos países se remonta a 1887; otros se firmaron en 1904 y 1914, con
la participación del Paraguay (p.14).
Faz-se necessário afirmar aqui que, apesar de ter havido mais duas Convenções
Sanitárias Internacionais, em 1904 e 1914, envolvendo Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai,
elas não serão foco de análise deste trabalho, principalmente, pela mudança na estrutura de
governo no Brasil em 1889, ao passar do sistema monárquico para o republicano. Na esfera
das relações internacionais, importantes modificações ocorreram, e interessa evidenciar as
relações entre o Império brasileiro e as Repúblicas platinas. De toda forma, o congresso de
1904 será brevemente analisado, por ter substitdo o acordo de 1887, daí o interesse em
visualizar, ainda que rapidamente, as modificações e permanências.
2.3. EPIDEMIAS E QUARENTENAS NO BRASIL E NO RIO DA PRATA (SÉCULO XIX)
Antes de deter em análises mais aprofundadas das primeiras Convenções Sanitárias
Sul-Americanas em 1873 e 1887
34
, faz-se necessário contextualizar os acontecimentos que
desencadearam a emergência e organização de eventos com essa dimensão. Discutiu-se no
34
Como se afirmou anteriormente, o Congresso Sanitário Internacional de Lima em 1888 não será tratado no
presente trabalho.
75
capítulo anterior o aparecimento das epidemias na região platina durante e após a Guerra do
Paraguai, e foram exatamente as epidemias de febre amarela ocorridas na Argentina em 1871
e, no Brasil, em 1873, que desencadearam os entraves à economia da região, com a imposição
de constantes quarentenas e a necessidade urgente de estabelecer critérios uniformes entre
esses países acerca da prevenção das enfermidades epimicas.
A partir da segunda metade do culo XIX, começou-se a notar que o impacto do
fenômeno urbano e dos novos conhecimentos relativos à saúde não se dava apenas no plano
interno às nações, mas também nas relações internacionais, com a intensificação do comércio
e as implicações negativas da instituição das quarentenas nos portos marítimos (LIMA, 2002,
p.35).
A quarentena foi uma constante no cotidiano dos portos brasileiros e platinos ao longo
da segunda metade do século XIX e transitou como uma prática a mais felicitada e, ao mesmo
tempo, a mais odiada entre comerciantes e diplomatas da região. Nascida na Idade Média,
juntamente com as grandes epidemias de peste, resultou da necessidade das populações em se
protegerem do flagelo:
Urgia evitar a entrada da peste. Para se alcançar esse objetivo, e assim
salvaguardar o grupo, usava-se o método de isolar e observar pessoas e
objetos por um período específico e sob condições rigorosas a se
estabelecer que não estivessem com a peste. Assim nasceu a quarentena,
contribuição fundamental à prática da saúdeblica (ROSEN, 1994, p.63).
Em razão dos parcos avanços da medicina no que se referem à descoberta das causas
das doenças, a quarentena continuou a ser largamente utilizada até o alvorecer do século XX,
sem, entretanto, atingir os objetivos aos quais era destinada, como a prevenção às epidemias.
Junte-se a isso o fato de que os portos de países como o Brasil, a Argentina e o Uruguai eram
os núcleos fundamentais das relações mercantis, os locais em que riquezas eram acumuladas e
levadas para outros países. Do seu bom funcionamento, dependiam a manutenção e o fluxo de
produtos e pessoas nas áreas portuárias e, por esse motivo, os portos constituíram-se no
objetivo básico das ações sanitárias, em especial dos países que dependiam deles para o seu
desenvolvimento econômico.
Michel Foucault (1987, p.123-24), ao analisar a relação entre saber e poder na
instituição médica e nas cidades portuárias, elabora uma reconstituição do que significavam
os portos, que, além de servirem para a entrada e saída de pessoas e mercadorias,
possibilitavam a circulação das epidemias.
76
Um porto [...] é, como circuitos de mercadorias, de homens alistados por
bem ou à força, de marinheiros embarcando e desembarcando, de doenças e
de epidemias, um lugar de deserção, de contrabando, de contágio:
encruzilhada de misturas perigosas, cruzamento de circulações proibidas.
[...] A vigilância médica das doenças e dos contágios é solidária de toda
uma série de outros controles: militar sobre os desertores, fiscal sobre as
mercadorias, administrativo sobre os remédios, os desaparecimentos, as
curas, as mortes, as simulações.
Depreende-se daí a explicação para a criação de órgãos de higiene direcionados para
as regiões portuárias, como, no Brasil e no Prata, onde estavam quase exclusivamente
voltados para a saúde dos seus mais importantes portos, relegando a segundo plano os
problemas sanitários das regiões interioranas desses países. Como afirma Benchimol (2001,
p.28), no caso do Brasil “o raio de ação desses órgãos restringia-se exclusivamente às cidades
litorâneas, com absoluta predominância da ‘cabeça’ urbana do país, o Rio de Janeiro”.
Os óros executores e fiscalizadores das quarentenas no Brasil foram sendo criados
ao longo da segunda metade do século XIX. Segundo diversos estudiosos da temática da
saúde no século XIX, como Marques (1995), Hochman (1998) e Pimenta (2004), as
instituições de saúde blica criadas pelo Império buscavam corresponder à eclosão freqüente
de epidemias de febre amarela, peste e varíola nas cidades litorâneas e em zonas de expansão
econômica e de imigração. O surgimento dos primeiros surtos epimicos de febre amarela
(1849-50) e cólera-morbo (1850-51) esteve no centro das atenções das autoridades médicas
do peodo, que começaram a assumir os cargos públicos ligados às questões sanitárias e
higiênicas.
Com o surgimento da epidemia de febre amarela em 1849, os médicos foram
convocados para apontar soluções que barrassem o seu avanço. Para tanto, foi criada a
Comissão Central de Saúde Pública, em fevereiro de 1850, composta por acadêmicos da
Academia Imperial de Medicina e da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (PIMENTA,
2004). Poucos meses depois, foi criada a Junta de Higiene Pública, que foi devidamente
regulamentada em 1851, quando assumiu nova nomenclatura: Junta Central de Higiene
Pública. Desse órgão, faziam parte os mais prestigiosos médicos do país e seus membros
participavam das mais variadas poticas públicas e reformas urbanas, especialmente em
momentos de epidemias (SAMPAIO, 2003). Esse órgão passou por muitas reformulações até
o final do Império no Brasil, tanto para atender aos interesses dos dicos, que reformulavam
constantemente seus parcos conhecimentos em higiene, quanto para se adaptar às diversas
77
estruturas criadas no Segundo Reinado com o intuito de centralizar a política burocrática do
Estado.
A Junta Central de Higiene Pública foi criada pelo Decreto 828, de 29 de setembro
de 1851 e da sua estrutura faziam parte o Instituto Vacínico e a Inspeção da Saúde dos Portos.
Criada pelo Ministério do Império e a ele subordinada, a Junta tinha como objetivo
inspecionar a vacinação, os alimentos, as farmácias, os hospitais, os cemitérios, as cadeias, os
navios e “aconselhar e formular as políticas de atuação do governo imperial na área de saúde
pública” (CHALHOUB, 1996, p.66).
De acordo com Coelho (1999, p.137), essas modificações e as novas funções criadas
promoveram uma centralização, na Junta, dos diversos serviços de saúde e esvaziaram o
poder das Câmaras Municipais das atribuições sanitárias, que lhes haviam sido conferidas até
1828
35
. O autor faz uma análise do funcionamento desse órgão, afirmando que
A Junta Central tornou-se, desde a extinção da Fisicatura, a primeira
autoridade dico-sanitária com jurisdição sobre todo o território nacional.
Sua ineficiência foi notória, e não apenas pelo atraso do conhecimento
dico da época, impotente para dar conta, sobretudo das epidemias que
periodicamente assolavam a Corte e o país.
Em 3 de fevereiro de 1886, em razão da precária condição sanitária da capital e das
cidades mais importantes, o Decreto n.º 9554 estabeleceu uma reforma dos serviços sanitários
do Império, dividindo-os em serviços terrestres e serviços marítimos, sob direção de dois
óros distintos, sediados no Rio de Janeiro: a Inspetoria Geral de Higiene e a Inspetoria
Geral de Saúde dos Portos (Machado, 1978). Esta última cuidava, especialmente, das questões
relacionadas à quarentena e ao isolamento de mercadorias e passageiros que chegavam aos
portos. De acordo com Hochman (1998, p.95),
Na verdade, a última grande reformulação dos serviços sanitários no
Império ocorreu em 1886, a Reforma Mamoré, com a criação do Conselho
Superior de Saúde Pública. Os serviços sanitários foram, então, divididos
em duas inspetorias gerais: uma de higiene, encarregada da higiene
terrestre, com ênfase na capital imperial; e outra de saúde dos portos,
responvel pela higiene marítima, que se organizava ao longo dos portos
do país. Esse arranjo, restrito territorialmente e possuindo um conjunto
limitado de prerrogativas, ainda que unificado nas mãos do poder central,
foi legado ao Governo Provisório da República.
35
As maras tinham funções político-administrativas, fiscais, judiciárias e militares, desde o século XVI, e
ficavam responsáveis pela fiscalização das práticas médicas e farmacêuticas desde o período colonial. Ver o
trabalho de Sousa (1996).
78
A Academia Imperial de Medicina do Rio de Janeiro era outro espaço institucional
importante para os médicos, que debatiam os problemas de higiene e de saúde, a etiologia das
doenças etc., sendo a primeira e mais importante instituição médica no Brasil imperial. Criada
em 1829 como Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro e convertida em academia, pela
Regência, em 1835, tinha o papel de elaborar pareceres sobre a higiene bica e atender às
solicitações das autoridades imperiais, especialmente no caso de epidemias. Como afirma
Kury (1990, p.105), ela deve ser entendida como
parte de um universo de instituições que pretendiam dar corpo a uma Nação
que se queria construir. Assim como o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, a Academia Imperial de Belas Artes e a Sociedade Auxiliadora
da Indústria Nacional e as demais sociedades de letrados do Império, a
Academia participará de uma política civilizatória que, estabelecendo a
Corte, centro do poder, como foco irradiador das “Luzes”, permitiria o
reconhecimento deste mesmo centro de poder como legítimo
pelo menos duas teses, na historiografia sobre o tema, que indagaram sobre o
projeto político da Academia Imperial de Medicina: os trabalhos de Lorelai Kury (1990) e a
obra do sociólogo Edmundo Campos Coelho (1999), os quais apresentam abordagens diversas
sobre a relação da Academia com o Estado imperial. De acordo com Kury, os acadêmicos
atuavam como verdadeiros instrumentos do poder estatal, haja vista que o próprio estatuto da
Academia previa a emissão de pareceres relativos à higiene e saúde pública.
Caberia, portanto, aos médicos imperiais, alicerçados na autoridade de seus
conhecimentos, propor os meios necessários à manutenção da saúde da
população. Como afirma Ilmar R. de Mattos, a Administração atuará como
braço do poder. Podemos entender as propostas dos médicos como a de
“agentes públicos que agiam no sentido de romper o isolamento dos
poderes privados regionais, e referi-los a uma ordem emanada do poder
central. Pelos recursos da Higiene e da Administração sanitária, os médicos
se tornariam olhos do poder”, atuando como agentes da centralização no
interior dos interesses particulares. (p.126-127)
Apesar de Coelho concordar com a idéia de que havia a busca por um lugar no aparato
estatal, ele discorda de que a Academia tenha ocupado efetivamente esse lugar. Para ele, os
diversos projetos apresentados pela Academia à Câmara dos Deputados e ao Senado ao longo
do século XIX sofreram veto do Estado, ou eram duramente criticados. A própria criação de
outras instituições de saúde, como a Junta Central de Higiene, mencionada, demonstra quão
pequena era a influência dos médicos acadêmicos no Império. Como demonstra o autor, a
Academia tinha um projeto institucional de compartilhar o poder do Estado que era
79
parte, pois, das aspirações de uma elite profissional que, não obstante
faltar-lhe autoridade cultural (ou exatamente por isso), não via
chegada a hora de disciplinar um povo “acostumado ao gozo de
inteira e absoluta liberdade de tudo fazer quanto lhe apraz...
36
. Do
lado do Estado o havia, entretanto, qualquer disposão ou
compromisso em compartilhar seu poder com associações civis em
relação às quais, diga-se de passagem, a Monarquia nutrira e nutriria
sempre a total desconfiança. (1999, p.120-121).
O melhor meio para atingir um lugar na sociedade e no Estado era a defesa da higiene
e da saúde pública. O tema da higiene perpassava a maior parte dos discursos produzidos pela
Academia Imperial e pelas faculdades de medicina do Rio de Janeiro e da Bahia durante o
século XIX. Com a defesa de hábitos higiênicos e as reformas urbanas, que dessem conta da
higiene da população, os médicos conseguiriam alcançar o status social e potico almejado. E
mais, para esses médicos a saúde pública seria o mais certo indício de avanço de uma
civilização. Assim, com a defesa da higiene, os médicos conseguiam atingir um duplo
objetivo: o reconhecimento profissional e o avanço da nação.
Certamente, o objetivo principal da Academia era fazer parte da estrutura do Estado,
por diversas razões. Era preciso ocupar um lugar na nova nação que se forjava, especialmente
os profissionais liberais, que deveriam compor a nova elite política que, por tradição, era até
então constituída de juristas (CARVALHO, 2003). Entre esses novos membros, incluíam-se
os médicos, que reivindicavam um espaço potico de atuação. E para o período que se está
tratando, vale ressaltar a observação feita por Thomas Flory de que novos grupos
profissionais começavam a desafiar a supremacia dos bacharéis em Direito, na busca de
ocupar cargos e regalias no aparato estatal. Segundo ele, a medida que “decli el número de
magistrados profesionales en el Congreso después de 1860, ocuparon sus lugares hombres de
otras profesiones. En 1867, por primera vez, los médicos sobrepasaron en número a los jueces
en la Cámara de Deputados” (1986, p.311-312).
Em relação à quarentena, a Academia emitia, sempre que solicitada, seu parecer, ainda
que, mesmo entre os médicos, houvesse divergências entre os tipos de tratamento e a origem
das doenças. Os profissionais existentes no período viviam mais de vidas do que de
certezas em relação ao seu próprio saber, que até aquele momento ainda não havia chegado a
um parecer definitivo sobre a causa e a cura das doenças epidêmicas e endêmicas. Receitavam
36
Annaes de Medicina Brasiliense, 1849. Representação ao Imperador sobre as infrações nas leis de saúde e dos
abusos da profissão médica.
80
basicamente sangrias e purgas para as mais variadas enfermidades. Como observaram
Ferreira, Fróes e Edler (2001, p.62),
A medicina era tragicamente impotente para realizar seu projeto. Apenas no
último quartel do século XIX, período dominado pelas conquistas da
microbiologia, é que as ações curativas e preventivas da medicina
começaram a realizar os sonhos almejados pelos médicos desde o princípio
do século.
No caso da Argentina, a criação de óros de saúde ligados à rede portuária deu-se
desde o início do século XIX. Em 1824, Rivadavia regulamentou o serviço sanitário nos
portos, que estabelecia o sistema de visita sanitária nos navios estrangeiros. Em 1829, foi
elaborado o “Reglamento de Sanidad del Puerto” e criado um corpo médico específico para os
portos. E, em 1869, o presidente Sarmiento cria a “Junta de Sanidad Portuaria”, que foi
absorvida pela Junta Nacional de Higiene em 1880, com a reorganização dos serviços
sanitários dos portos.
Assim como o Brasil, a República da Argentina enfrentou as quarentenas, que
dificultavam as relações comerciais. Havia dois tipos de quarentenas em vigor no século XIX,
a de observação (três dias, em média) e a de rigor (quinze dias para os passageiros, vinte para
o navio e trinta para a carga, em média). De acordo com a historiadora argentina Celina
Mendonza (2007, p.02):
La cuarentena era una medida preventiva de significativa eficacia médica
pero de considerable negatividad económica, sobre todo en un país que,
como Argentina, dependía del comercio internacional marítimo. De allí que
las cuarentenas y su implementación estuvieron siempre signadas por la
tensión entre los intereses médico-políticos por salvaguardar la salud de la
población y los intereses económicos de no perjudicar al mercado.
Um caso que envolveu as quarentenas e os interesses econômicos e que entrou para a
história da epidemia de febre amarela de 1871 na Argentina foi o conflito entre o dico de
saúde do porto de Buenos Aires, Pedro Mallo
37
, e o presidente da Argentina, Domingos
Sarmiento, em 1870. Desde o início do ano, diversas embarcações provenientes do Brasil
eram postas em quarentenas, o que, de um lado, causava protestos por parte dos comerciantes,
mas, por outro lado, impedia, de acordo com os médicos da época, a entrada de doenças
epidêmicas. O médico de saúde do porto, Pedro Mallo, enviava os navios para o Lazareto da
Ensenada enquanto o próprio presidente da Argentina solicitava o fim da imposição de
37
O médico Pedro Mallo é um personagem importante, pois participou da Primeira Convenção Sanitária
Internacional de 1873. Seu perfil será discutido no próximo capítulo.
81
quarentenas aos navios desembarcados em Buenos Aires, o que gerou um grande conflito
dico-potico. De acordo com Ricardo Leandri (1999, p.90),
La aplicación de cuarentenas era seguida invariablemente por el
desencadenamiento de tensiones y conflictos. Varios fueron los casos que,
como un calco, se reprodujeron durante aquel año aunque uno de ellos
contó con algunas características peculiares dado que involucró al mismo
presidente de la República.
En tal ocasión, el presidente Sarmiento desoyó las sugerencias de los
facultativos responsables y exigió el cese de la cuarentena impuesta a dos
buques. A su vez, quebrando ciertas normas del funcionamiento
institucional, ordenó en forma personal el encarcelamiento del Dr. Mallo
dico del puerto que se había negado a hacer efectiva la medida. La
actitud adoptada por el presidente de la Nación fue repudiada por sectores
de la prensa y por la corporación médica que, además de criticar las formas
inadecuadas de las que se revistió la intervención gubernamental,
consideraban que las medidas adoptadas invadían las atribuiciones del
Consejo de Higiene.
Esse acontecimento evidencia as divergências existentes entre as autoridades acerca da
eficácia da quarentena e a existência de duas vertentes explicativas para o aparecimento das
doenças: a dos contagionistas” e dos “anticontagionistas”. Do ponto de vista médico e das
autoridades que administravam os óros, as duas vertentes teórico-médicas sustentavam e
mantinham essa prática de vigilância nos portos, pois a questão básica da teoria
epidemiológica no século XIX era saber se as doenças epidêmicas advinham do contágio ou
do miasma. Cezresnia (1997, p.55) faz uma comparação entre as duas teorias, afirmando que:
A teoria do contágio foi identificada como a institucionalização da
quarentena. Os contagionistas estiveram, grosso modo, comprometidos com
a burocratização dessas práticas, imprimindo ao contágio” um caráter
conservador, associado a poderes arcaicos. A concepção de que a doença se
propagava individualmente de um para o outro estimulou práticas de
controle e cerceamento dos indivíduos. Ao contrário, os anticontagionistas,
relacionando a doença à constituição atmosférica, enfatizaram as práticas
centradas fundamentalmente no controle ambiental.
Portanto, as duas teorias não estiveram comprometidas apenas com as concepções
científicas da época, mas com as concepções políticas, pois, como apontou Hochman (1998,
p.56), “a imposão de quarentenas tornava potico um debate aparentemente científico,
que interferia no fluxo comercial, no comércio internacional e no deslocamento
populacional”. Os conservadores eram burocratas e militares e atrelavam-se à teoria do
contágio, defendendo o uso da quarentena para o combate das epidemias, enquanto os liberais
eram comerciantes e industriais e ferrenhos opositores, lutando pela liberdade do indivíduo e
82
do comércio e combatendo as práticas quarentenárias
38
, como foi o caso de Sarmiento, que se
aliou aos comerciantes da época na defesa do anticontagionismo.
Para os contagionistas, o meio de combater as doenças era evitar o contato de
indivíduos doentes com indivíduos saudáveis, o que reforça o papel da autoridade pública na
regulação e na imposição de isolamento e quarentenas regionais ou nacionais para impedir
que navios suspeitos de conduzir doentes fizessem contato com os portos. De acordo com
Edmundo Coelho (1999, p.56-57), a interferência dos profissionais de medicina nas estruturas
do Estado e
o conhecimento especializado e a perícia dos profissionais estão, de fato,
disseminados pela sociedade e disponíveis tanto para o governo quanto para
os grupos que se opõem aos programas do governo e até mesmo para
aqueles cujos interesses beneficiam-se com algum grau de
ingovernabilidade... Não nada de excepcional no fato de que o governo
utilize a perícia dos profissionais para melhorar sua capacidade decisória
em matérias específicas. Não há também por que fazer restrições [...] que os
dicos estão intimamente envolvidos na geração de definições oficiais da
“realidade” ou quando [...] um sentido real em que, zelando pelas
definições estabelecidas de doença, a profissão [medicina] é o Estado.
No caso dos anticontagionistas, a perspectiva era a de ações sobre as condições sociais
e ambientais que geravam os miasmas causadores de epidemias, como a não-remoção do lixo,
a falta de esgotamento sanitário, a água poluída, a habitação superlotada e pouco ventilada,
considerados produtores de gases pútridos. Como chamou a atenção Gilberto Hochman
(1998, p.55), o programa dos infeccionistas, apesar de pouca sustentação científica, causou
impacto positivo na coletivização do bem-estar, pois promoveu ações como o esgotamento
sanitário, o suprimento de água, coleta de lixo e controle dos alimentos nos aglomerados
urbanos.
Surgidas na Europa, essas teorias foram reproduzidas e adaptadas à realidade
americana. Os médicos brasileiros e platinos debatiam-nas arduamente, baseando-se em
argumentos e experimentações científicas
39
e, muitas vezes, bastante ecticos em suas
interpretações, mesclavam as duas teorias (CHALHOUB, 1996, p.66). Não cabe aqui a
reprodução desse debate, porém vale ressaltar que não havia uma posição unânime entre os
praticantes da medicina daquele período. Na corporação médica, havia mais divergências e
38
Para essa temática, o melhor trabalho é o do historiador da medicina Erwin H. Ackerknecht (1948).
39
Parto da concepção de que a ciência é uma atividade humana como outra qualquer e que, por isso mesmo,
compõe uma realidade histórica permeada por conflitos e interesses de ordem política, econômica e ideológica.
Não cabe aqui identificar qual teoria era mais científica, mas, sim, como funcionaram e foram utilizadas pelos
homens daquele tempo.
83
conflitos do que acordos em relação aos procedimentos utilizados, e as brigas e disputas eram
muitas vezes graves (SAMPAIO, 2003, p.413). Tamm é preciso levar em consideração que
os conhecimentos obtidos pelos médicos eram baseados na vivência cotidiana com diversas
doenças e que cada enfermidade possuía peculiaridades que o eram abarcadas por nenhuma
teoria, ou o era por ambas, na visão da época. Edler (1992, p.143) chama a atenção para esses
reducionismos:
Igualmente equivocada é a suposta divisão do saber dico entre os dois
modelos apresentados como estanques e contrapostos, representativos de
dois tipos de mentalidades: o miasmático (metafísico), e o apoiado no
paradigma da etiologia específica (científico). Tal contraposição falseia a
complexa constelação de problemas práticos e teóricos que, como vimos,
envolvia a medicina acadêmica do século XIX. [...] Por outro lado, esta
maneira de colocar o problema traz implicitamente uma concepção linear e
etapista do desenvolvimento do saber científico, que cada vez mais a
História e a Sociologia da Ciência vêm rejeitando.
A Inspeção de Saúde dos Portos, que estava subordinada à Junta Central de Higiene
Pública, foi requisitada em algumas ocasiões pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros do
Império para emitir pareceres sobre as condições de salubridade dos portos brasileiros e dos
sistemas de quarentenas utilizados. Interessava às autoridades diploticas propagar a iia
de que havia controle e fiscalização nas áreas portuárias e que as mercadorias eram seguras e
livres de doenças e, por isso, poderiam ser compradas e consumidas com segurança.
Em 1872, o nsul do Brasil em Montevidéu apelava para esse órgão um documento
que atestasse o uso de quarentenas no país, pois a imprensa uruguaia propalava repetidamente
contra a precária saúde e fiscalização no Império, o que acarretava enormes prejuízos
econômicos. A resposta do inspetor JoPereira Rego foi publicada no jornal montevideano
Telégrafo Marítimo e traduzida para o espanhol pelo cônsul brasileiro Eduardo Carlos Cabral
Deschamps:
debo informar á V.E. que la práctica seguida actualmente respecto de las
cuarentenas impuestas á los buques procedentes de puertos sospechosos ó
infestados, son sometidos á la observación de uno á tres días según la mayor
ó menor intensidad de la epidemia, declarada en la carta de sanidad que
traigan, siendo de 24 horas para los vapores últimamente entrados, por
declarar dichas patentes existir algunos casos de fiebre amarilla, tanto para
la procedencia de Pernambuco como de Bahía. En el caso de la existencia
del contagio a bordo; entonces el buque se manda a la Ensenada de
Joruyuba, donde es sometido a una rigorosa desinfección y a una
observación nunca menor de ocho días. La desinfección de los buques como
de la correspondencia, se hacen con fumigaciones de azufre. Se pueden
hacer también con salitre y en los vapores cuando hay motivos para
84
sospechar grande infección, se lava la bodega del vapor, antes de procederse
á las desinfecciones con azufre ó salitre.
Ou seja, utilizavam-se todos os métodos, desde aqueles indicados pelos contagionistas,
como a quarentena, como os recomendados pelos infeccionistas, como a purificação do ar
com as desinfecções. Aos médicos cabia obedecer e r em prática medidas de interesse da
diplomacia e da economia, o que não raro era tarefa árdua de executar, pois muitas vezes as
motivações dos diplomatas não estavam em sintonia com os interesses dos comerciantes.
Outra razão para divulgar as práticas sanitárias do Brasil era diminuir o período de
quarentena para os navios procedentes de portos brasileiros, haja vista que eles teriam
passado por quarentenas e desinfecções e, com isso, poderiam circular, entrar e sair nas
diversas cidades portuárias do continente.
Em janeiro de 1873, o nsul brasileiro em Buenos Aires, o Barão de Araguaia,
passava pelas mesmas dificuldades que o seu correspondente no Uruguai e se queixava das
duras quarentenas impostas ao Brasil e das constantes notícias de existência de casos de febre
amarela na Corte imperial, o que alimentava as decisões das autoridades sanitárias argentinas.
Em ofício reservado ao ministro brasileiro, afirmava:
Devo acrescentar reservadamente que a razão principal porque se submetem
à quarentena os navios provenientes do Rio de Janeiro não é só a publicação
diária que se faz de um ou dois casos de febre amarela, mas também o
constar aqui que nenhuma providencia sanitária se toma a respeito dos
navios provenientes da Bahia e de Pernambuco, onde se afirma que reina a
febre amarela com caráter epidêmico, e eu sinto não ter documento algum
nem autorização para desmentir tais afirmações.
40
Os procedimentos tomados pelo nsul brasileiro no Uruguai não haviam sido
adotados na Argentina, ou ainda que tivessem sido, não haviam surtido o efeito desejado. Na
verdade, a capital do Império passava naquele ano por uma violenta epidemia de febre
amarela
41
, o que provavelmente motivou a imposição de quarentenas, e os pareceres da
Inspeção de Saúde dos Portos tornavam-se inúteis num momento de crise.
Em 16 de abril de 1873, o jornal El Siglo de Montevidéu publicou um extenso artigo
acerca das teorias médicas, num momento em que o Uruguai passava por uma epidemia de
febre amarela levada por navios procedentes do Brasil. O perfil do periódico era o de dar
40
AHI/RJ, Ofícios da Legação do Brasil em Buenos Aires, v.205-3-16, 03/01/1873.
41
Ver o trabalho de Chalhoub (1997).
85
cobertura política e econômica ao país
42
, todavia os conflitos entre as autoridades sanitárias
trouxeram à tona questões que não eram abordadas com freqüência na imprensa local. Sob o
título “Cuarentenas”, o artigo inicia-se com a apresentação das duas escolas a contagionista
e a infeccionista – e se desdobra:
Fácilmente se comprende que los contagionistas han de ser partidarios de
las cuarentenas, y que los infeccionistas han de ser sus adversarios.
En efecto, el que crea que esta epidemia reconoce por causa la transmisión
de persona á persona por contacto mediato ó inmediato, es natural que trate
de impedir ese contacto, incomunicando á las personas procedentes de
países infestados, poniéndolas en observación y manteniéndolas aisladas
hasta que haya transcurrido el tiempo que se considere suficiente para
demostrar que esas personas no son conductoras de virus maléfico.
Por el contrario, el que crea que las epidemias no son importadas, sino que
se producen por causas locales y propias, debe desechar las cuarentenas
como medida inútil, cuyo único efecto es vejar y molestas á los que á ellas
se ven obligados á someterse, sin ningún beneficio para la salud pública.
43
Com essa matéria, o periódico chamava a atenção das autoridades poticas para a
ineficiência das quarentenas e se posicionava a favor dos infeccionistas. Para um jornal cujo
público era formado por comerciantes e ricos produtores rurais, nada mais óbvio do que se
posicionar contra as medidas que criavam obstáculos ao comércio e ao desenvolvimento da
economia local. O periódico inclusive expressava-se contra as quarentenas aos navios
brasileiros ao afirmar “Porqué precavernos de las procedencias del Brasil, si tenemos aqui la
misma epidemia que allí tienen?”
44
, fazendo com que a diplomacia brasileira se beneficiasse
dessa postura e utilizasse essa fonte para defender os interesses dos negociantes brasileiros na
região platina. Esta afirmação também reforça a existência da febre amarela no Uruguai nesse
mesmo período, nos primeiros meses de 1873, como afirmou Mañe Garzon (1983, p.161):
Fue la epidemia de 1873 la que, pese a no haber sido tan grave como la de
1857, tuvo más resonancias y provocó más pánico en la población.
En los primeros días de enero la autoridad competente, la Comisión de
Salubridad Pública de Montevideo, había resuelto establecer una cuarentena
de 10 días para toda embarcación procedente de puertos de Brasil donde
habían noticias de haberse comprobado un brote de fiebre amarilla.
42
Para o estudo desses jornais, é necessário levar em conta que o jornalismo passou por uma crescente
profissionalização a partir da segunda metade do século XIX. A emerncia do repórter como profissão com
características e práticas próprias foi influenciada por mudanças que o jornalismo sofreu, particularmente de
ordem tecnológica (telégrafo, telefone, meios de transporte e novas máquinas ligadas à produção jornalística) e
econômica (a formação do jornalismo orientado para o mercado). Ver Franciscato, 2003.
43
AHI/RJ, Ofícios do Consulado Geral do Brasil em Montevidéu, v. 256-4-02, 16/04/1873.
44
Idem, ibidem.
86
Como se demonstrou, durante toda a década de 1870 as embarcações brasileiras foram
submetidas a diversas quarentenas nos portos de Montevidéu e Buenos Aires e se registrou,
até mesmo, em alguns períodos, o fechamento total dos portos aos navios procedentes do
Império do Brasil. A febre amarela era considerada pelas autoridades portenhas e
montevideanas “estacionada en la mayor parte de los meses del año”
45
no Brasil, e, portanto,
as medidas para se precaverem contra o vômito preto deveriam ser drásticas. Benchimol
(2001, p.30) chama a atenção para o fato de que no Rio de Janeiro “irrompiam, todos os anos,
as epidemias de febre amarela”, e, por isso, não eram equivocadas as observações dos
platinos. A posição do Uruguai em relação ao Brasil e à Argentina era bia
46
. Os discursos
reproduzidos em jornais e ocios consulares apontavam para duas posturas distintas: por um
lado, essa República era vista como favorável aos interesses do Brasil, não impondo
quarentenas; por outro lado, era apresentada como sendo manipulada pelos argentinos e
contra os brasileiros.
Consulado General Argentino en Montevideo:
Habiendo tenido noticias las autoridades argentinas de la existencia de
fiebre amarilla en Bahía, y mientras en este puerto no se precavan de las
procedencias de aquel y de las de los otros puertos que se comunican
libremente con el primero, ha resuelto someter á las orientales á una
observación sanitario de diez días desde el de mañana".
47
[...]
É doloroso observar-se a condescendência das autoridades orientais,
curvando-se, sem protestar, às imposições argentinas, sempre dispostas a
estabelecer, em três casos, regras exorbitantes e extremas, não apoiadas em
prática alguma seguida pelas nações mais adiantadas em idêntico assunto.
48
Produzidos na mesma data, o primeiro dia do mês de agosto de 1872, esses discursos
buscavam, implicitamente, a adesão dos uruguaios a um ou outro país. Como se apontou no
primeiro capítulo, o porto de Montevidéu era de importância estratégica para Buenos Aires e
para o Rio de Janeiro e, portanto, a aliança com os orientais era imprescindível para garantir
os negócios na região.
45
AHI/RJ, Ofícios do Consulado Geral do Brasil em Montevidéu, v. 256-4-02, 18/02/1873, recorte do jornal
Telégrafo Marítimo de 04//02/1873.
46
Vale recordar que a República Oriental do Uruguai já havia pertencido a ambos os países. A Guerra Cisplatina
(1825-1828) resultou na formação de um novo Estado, o Uruguai, considerado pela historiografia como o
Estado-tampão, que buscava neutralizar as disputas de brasileiros e argentinos naquela região. Ver-se-á que
esses conflitos não foram plenamente solucionados e que, até mesmo nas questões referentes aos problemas
epidêmicos e sanitários, essa república ficava dividida.
47
AHI/RJ, Ofícios do Consulado Geral do Brasil em Montevidéu, v. 256-4-02, recorte do jornal El Siglo de 1º de
agosto de 1872.
48
AHI/RJ, Ofícios do Consulado Geral do Brasil em Montevidéu, v. 256-4-02, 01/08/1872.
87
No caso do Brasil, evitar as quarentenas era o objetivo de uma aliança com o Uruguai,
e o cônsul brasileiro afirmava essa decisão na sua correspondência com o ministro dos
Negócios Estrangeiros do Império, a de que “se freqüentemente combatendo esse modo
insólito de transtornar a livre navegação, ao comércio e aos que viajam, e são surpreendidos
por uma quarentena com a qual não contavam”
49
.
Diversos interesses estavam em jogo entre o Império e as Repúblicas platinas, com
destaque para o fim da Guerra do Paraguai e a difícil negociação de paz e o início do fluxo
migratório europeu. Estes fatores contribuíram para uma postura mais ofensiva dos platinos
em relação ao Brasil, inclusive com a imposição de barreiras às embarcações brasileiras.
Esses países passaram a concorrer pela mão-de-obra que chegava em abundância nos seus
portos, e divulgar a imagem de um Brasil pestilento auxiliava no desvio dessa massa
imigrante aos portos do Prata.
A disputa por imigrantes tornou-se acirrada, a ponto de, em 1878, quase todas as
companhias de vapores da Europa que faziam a navegação ao Rio da Prata resolverem não
chegar ao Rio de Janeiro enquanto a febre amarela não tivesse desaparecido por completo. De
acordo com o cônsul brasileiro Eduardo Cabral Deschamps, essa decisão foi tomada depois da
divulgação de determinadas notícias na Europa pelos platinos:
Não se oculta a ninguém que semelhante notícia – repetição de outras iguais
– obedece antes a meditado plano de desacreditar na Europa o Brasil,
fazendo-o passar por um país pestífero e inabitável, pelo temor da
concorrência, que este melhor constituído e melhor governado oferece,
com maior proveito e garantias, as massas paupérrimas superabundantes no
continente europeu prontas a emigrar para a América do que, realmente,
ao receio formal de importação de nova epidemia, que na Confederação
em 1871, fez estragos inauditos pela intensidade com que assolou, como
mercê de Deus, nunca tivemos a deplorar, isto credencia ter o Rio da Prata
em si, elementos para a febre amarela aparecer sem a intervenção de
contágio externo.
50
Cabia, então, à diplomacia brasileira refazer essa imagem na Europa e buscar conciliar
os interesses do Império com os das Repúblicas platinas a fim de evitar os constantes atritos e
hostilidades. E, aos argentinos, restava utilizar-se do argumento do temor ao terrível flagelo
da febre amarela que assolou o país em 1871, para tirar proveito do movimento imigratório
que se intensificava naquele período.
Nas décadas de 1870 e 1880, diversos agenciadores brasileiros, financiados pelos
governos de São Paulo ou do Império, se dirigiram à Europa para arregimentar trabalhadores
49
Idem, Ofícios do Consulado Geral do Brasil em Montevidéu, v. 256-4-02, 12/11/1872.
50
AHI/RJ, Ofícios do Consulado Geral do Brasil em Montevidéu, v. 256-4-02, 28/11/1878.
88
imigrantes principalmente para as plantações de café no oeste paulista. Cabia a esses
indivíduos conseguir convencer os europeus de que o Brasil era o melhor destino possível,
como destacou Zuleika Alvim:
Basta dizer aos camponeses que dentro de alguns meses terão dinheiro aos
montes, que num par de anos serão proprietários de latifúndios, que, de
trabalhadores braçais tornar-se-ão patrões, e conseguir persuadir uma meia
dúzia dos mais importantes, o apostolado está completo (...). E, assim, aos
gritos de viva a América” (...) morram os patrões”, levas de emigrantes
deixaram a região dirigindo-se para o Brasil.
51
O Império brasileiro procurava oferecer aos imigrantes o que eles mais cobiçavam:
terra e riqueza. Porém, com a concorrência platina e norte-americana, o Brasil acabava saindo
perdendo, em especial graças à sua reputação de país escravista e pestilento.
O governo argentino, igualmente, fazia sua propaganda pelos países europeus e se
beneficiava da condição de não ser um país escravista, o que atraía ainda mais os imigrantes.
Como informa Martínez e Hernando (2006, p.48),
En algunas ciudades europeas (París, Londres, Berlín, Viena, Bruselas y
Berna), fueron creadas las denominadas Oficinas de Información y
Propaganda. Se encargaban, tanto de asesorar al gobierno argentino como
de difundir, a través de una amplia campaña propagandística en periódicos,
impresos, conferencias, etc, los adelantos de un país que brindaba grandes
alicientes para los extranjeros, tales como billetes gratuitos, alojamiento y
manutención los primeros días.
Deve-se recordar ainda que, de fato, a Argentina havia acabado de sair de uma das
epidemias mais graves de febre amarela de sua história entre os anos de 1871 e 1872,
caracterizada pelos seus habitantes como o “terrible flajelo del año 1871”. E o Império
brasileiro foi atacado violentamente pela febre amarela em 1873 e 1876 que causou,
respectivamente, “3.659 e 3.476 óbitos numa população estimada em cerca de 270 mil
habitantes” (BENCHIMOL, 2001, p.31)
.
É evidente que o grande problema desses três países
no alvorecer da década de 1870 foi a febre amarela.
Em momentos de grandes flagelos, costuma-se solicitar auxílio aos países vizinhos, e
o foi diferente em 1871, para os argentinos e, em 1873, para o Brasil. A Associação
Comercial da província da Bahia, por exemplo, enviou donativos para socorrer as timas na
Argentina em 1871, procedimento que foi adotado em várias regiões do Império (CHAVES,
51
AGIA (Atti della Giunta per la Inchiesta Agrária e sulle Conizioni della Classe Agricola), Roma, vol.VI, t.II,
1882, p.522 apud Alvim (1986).
89
2003, p.140). Em 1873, não foi diferente com os brasileiros, e os argentinos chamavam a
ajuda de uma “dívida de gratidão” ao socorro recebido do povo uruguaio, chileno e brasileiro.
Hoy este azote mortífero se ha desencadenado con gran violencia sobre la
bella ciudad de Rio Janeiro, corte del vecino imperio del Brasil, y al cual
mas que nosotros está obligado el pueblo de Buenos Aires á corresponder
con hidalguía á la prenda de gratitud que con ese país tiene contraída desde
1871.
Nosotros, que solo nos liga al imperio algunas simpatías políticas e
intereses comerciales, deber de este pueblo es en la presente ocasión acudir
con su pequeña ofrenda en bien de los desgraciados atacados de la fiebre ó
de los huérfanos que á causa de ella se encuentren en la indigencia.
Esses eram os poucos instantes de trégua nas difíceis relações entre essas nações.
2.4. BREVE TRAJETÓRIA DOS LAZARETOS NO BRASIL E NO RIO DA PRATA NA
SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX
A bibliografia sobre as quarentenas do século XIX faz menção direta aos lazaretos,
locais de isolamento dos passageiros provenientes dos navios e peças importantes para o
cumprimento dessas práticas. Na capital do Império, a Ilha Grande serviu como lazareto; no
Uruguai, a Ilha de Flores e, na Argentina, a Ilha de Martín García. Ainda que não seja
objetivo deste estudo, sabe-se que os lazaretos desempenham papel importante para
entendimento das Convenções Sanitárias Internacionais Sul-Americanas.
Os lazaretos de quarentena do século XIX funcionavam como centro de triagem e
isolamento de viajantes e imigrantes que chegavam aos portos brasileiros, argentinos e
uruguaios e visavam impedir a propagação de epidemias nesses países. O objetivo principal
desses espaços era o de:
isolar os passageiros tanto entre si como da sociedade, além de desinfetar
cargas e bagagens. [...] A vigilância era necessária e os destacamentos
militares sempre acompanhavam a administração. Tratava-se de deter
navios suspeitos, que deveriam ser levados ao Lazareto independentemente
da vontade da tripulação, e de manter passageiros internados pelo tempo
estipulado pelas autoridades sanitárias (SANTOS, 2007, p.1183).
A origem etimológica da palavra provém do latim lazarus, que se traduz como
“leproso”, daí que o lazareto era o local onde se isolavam os doentes de lepra. A prática do
isolamento dos doentes remonta à Europa medieval (Bonastra Tolós, 2006), no entanto,
90
somente no século XIX, em 1865 em Constantinopla, formularam-se as bases científicas para
a constituição dos lazaretos, que deveriam conter três características básicas: renovação do ar,
espaço suficiente e classificação das pessoas. Com o passar do tempo e o desenvolvimento da
medicina, os lazaretos foram ganhando novos instrumentos e, de acordo com Myrian Santos
(2007, p.177):
Diversos lazaretos foram construídos nesse período, em portos de vários
continentes, com o objetivo de evitar epidemias de febre amarela, febre
tifóide e, principalmente, cólera. O desenvolvimento dos estudos
bacteriológicos permitia o diagnóstico mais preciso das doenças, e a
quarentena era estabelecida de acordo com a duração do ciclo de incubação
do agente invasor.
O lazareto da Ilha de Flores, no Uruguai, o primeiro constrdo entre os três países, foi
inaugurado em 1869 e seu funcionamento cabia à Junta de Saúde de Montevidéu. Todos os
navios que iam para Montevidéu deveriam atracar na ilha para uma visita sanitária. De acordo
com Langguth e Varese (2000, p.126),
Según las condiciones y el lugar de procedencia, la autoridad permitía la
continuación del viaje u ordenaba la reclusión de tripulación y pasajeros en
el lazareto por un tiempo prudencial, que variaba según los casos desde uno
hasta cuarenta días, hasta que hubieran desaparecido los riesgos de
contagio. Solo entonces los barcos podían continuar su ruta hasta
Montevideo.
Em 1884, o governo brasileiro resolveu construir um lazareto de quarentena no litoral
do Rio de Janeiro, capital do Império, na Ilha Grande, que foi concluído em fevereiro de
1886. Esse local ficou subordinado à Inspetoria Geral de Saúde dos Portos, era dirigido por
dois dicos e contava com um destacamento da pocia e de guardas da Alfândega
(SANTOS, 2007).
No caso da Argentina, muitos locais serviam como lazareto provisório, como os portos
de Enseada e do Buceo e os próprios navios que ficavam ancorados no porto de Buenos Aires
cumprindo os dias de quarentena. O lazareto da Ilha de Martin García foi construído entre
1884 e 1886, período de grande ameaça de epidemia de lera que reinava na Europa e que
foi introduzida em Buenos Aires por vapores italianos abarrotados de imigrantes no final de
1886. Havia, de acordo com Olga Ragucci (1992), uma carência de lazaretos e de estrutura
quarentenária na Argentina nesse período, por isso os argentinos acabavam se utilizando do
lazareto uruguaio da Ilha de Flores. Com o aumento do fluxo imigratório no final do século
XIX, houve necessidade de construir o seu próprio estabelecimento.
91
Esses lazaretos tiveram papel importante na execução da Conveão Sanitária
Internacional do Rio de Janeiro de 1887 e, em conjunto com outras instituições, compuseram
a estrutura sanitária desses países no século XIX.
Em meio a tantos conflitos diplomáticos e comerciais, com a imposição de constantes
quarentenas e fechamentos de portos, surgiram projetos de uniformizar medidas entre esses
portos por meio de acordos sanitários. Cabe agora compreender a estruturação das duas
Convenções Sanitárias Sul-Americanas ocorridas no século XIX.
92
CAPÍTULO III A PRIMEIRA CONVENÇÃO SANITÁRIA INTERNACIONAL DA
AMÉRICA: MONTEVIDÉU (1873)
O objetivo do presente capítulo é apresentar e discutir a primeira Convenção Sanitária
Internacional celebrada entre o Império do Brasil e as Repúblicas da Argentina e do Uruguai,
ocorrida em 1873, e evidenciar os diversos interesses envolvidos no relacionamento entre
esses países como a rede internacional estabelecida entre os médicos.
As Convenções Sanitárias Internacionais ocorridas na América do Sul nas décadas de
1870 e 1880 estiveram interligadas diretamente com suas similares euroias. A preocupação
européia em prevenir a propagação de doenças epidêmicas e as conseqüências econômicas
das interrupções do comércio ecoou nos eventos realizados em Montevidéu no ano de 1873
e no Rio de Janeiro em 1887.
3.1. EPIDEMIAS E NECESSIDADE DE SOLUÇÕES: O PRIMEIRO CONVÊNIO
SANITÁRIO AMERICANO
O processo de idealização da primeira Convenção Sanitária Internacional Sul-
Americana de 1873 iniciou-se em meados de 1871, quando se extinguiu a epidemia de febre
amarela na Argentina, e o governo desse país apresentou a primeira proposta de um acordo
sanitário entre as duas Repúblicas do Prata, a Argentina e a Oriental do Uruguai. Um dos
principais motivos era a proximidade geográfica entre esses dois países, o que facilitava a
circulação e propagação de doenças epidêmicas.
A Junta de Saúde Argentina iniciou a campanha para a realização de um acordo
sanitário comum entre as duas Repúblicas. A febre amarela tinha causado forte impacto na
estrutura da saúde pública da Argentina, por isso médicos e autoridades poticas iniciaram
gestões com o intuito de melhorar a salubridade da capital e das cidades argentinas mais
importantes.
A proposta da realização de um acordo sanitário partiu dos médicos argentinos Pedro
Mallo e Eduardo Wilde, que eram, naquele momento, diretores da Junta de Saúde de Buenos
Aires. O início da década de 1870 foi dramático para a Argentina do ponto de vista da saúde
pública, pois o ataque da febre amarela em 1871 foi terrível “no tanto por la novedad sino por
el lastre de muerte que trajo y la desarticulación de la vida comunitária e institucional. En
cuatro meses murieron más de trece mil personas algo así como el 8 por ciento de la
93
población total(2000, p.509). A partir daí, os setores voltados à higiene e saúde blica na
República Argentina iniciaram uma série de reformas sanitárias e urbanísticas com o objetivo
de impedir o ressurgimento de episódios epimicos.
O médico Pedro Mallo enviou um convite à Junta de Saúde de Montevidéu, para que
juntos elaborassem uma legislação sanitária que protegesse ambos os países das doenças
epidêmicas:
Debemos hacer presente que, situada la ciudad de Buenos Aires a cuarenta
leguas de la Capital y puerto principal del Estado Oriental, de Montevideo,
que aunque situado un poco más al Sud de Buenos Aires, es, por su
situación geogfica, el puerto a que primero tocan las procedencias
marítimas de los otros países, la diferencia de las medidas precaucionales
entre ambas capitales, no mediando un acuerdo perfecto de carácter
internacional, aquel país de los dos que hace cumplir medidas
cuarentenarias menos rigurosas, se encuentra favorecido por la navegación
transatlántica; pero, si se lleva el liberalismo o anticontagionismo, si se hace
esto degenerar, en fin, en guerra cuarentenaria (y es difícil resistir a las
tentaciones), entonces el país más liberal expone al que lo es menos.
Apenas hecho cargo de la Dirección de la Sanidad, me apercebí de estos
inconvenientes y serios peligros y lo manifesté por repetidas veces a la
superioridad, en notas especiales y, además, lo consignamos en las
memorias anuales que pasábamos con el doctor Wilde, que fué nombrado, a
mediados del año 1870, como dico también de Sanidad y miembro de la
Junta.
Los mismos peligros, inconvenientes y amenazas que hemos señalado en
los países europeos con la falta de uniformidad en las medidas
cuarentenarias, teníamos con el colega indicado que estar haciendo notar a
cada paso, y en cada coyuntura que se nos ofrecía, instábamos a nuestro
Gobierno para que iniciara un convenio sanitario en el Estado Oriental, que
nos trajera como fruto la igualdad y uniformidad de las medidas
precaucionales marítimas, para precavernos del Brasil. Por fin, después de
tanto insistir en las notas oficiales, en conferencias especiales y en las
memorias anuales, conseguimos se aprovechara una ocasión propicia y se
invitara al efecto a los Gobiernos Oriental y Paraguayo.
52
Essa extensa justificativa de Pedro Mallo traz à tona diversas questões importantes
para a análise do Congresso Sanitário realizado em 1873. A primeira delas é a importância da
cidade de Montevidéu, do ponto de vista geográfico e, fundamentalmente, comercial. A boa
localização e profundidade do porto montevideano atraíam muitos navios estrangeiros que
desembarcavam suas mercadorias e que eram transportadas por embarcações menores ao
porto de Buenos Aires, que foi, até o final do século XIX, um porto pouco profundo e nada
atraente. Daí a preocupação das autoridades argentinas em relação ao Uruguai.
52
BRUSCO, Luis D. Convenciones y acuerdos sanitarios del Uruguay. Montevideo: Imp. El Siglo Ilustrado,
1919.
94
Outro tema que aparece é o das teorias médicas ainda vigentes no século XIX, a do
contagionismo e a do anticontagionismo. Como já se discutiu anteriormente, os médicos
adotavam distintas teorias sobre a origem e transmissão das doenças, em função do
desconhecimento ainda existente naquele período. A teoria adotada poderia ser prejudicial ou
benéfica ao comércio internacional, e foi o que ocorreu no porto de Montevidéu, de acordo
com o depoimento do médico Pedro Mallo. As autoridades adotaram o princípio do
anticontagionismo, não impondo, portanto, quarentenas rigorosas às embarcações, pois
acreditavam que as doenças eram transmitidas pelo ar e pelos miasmas.
O ponto principal da argumentação, segundo Pedro Mallo, para a realização de uma
convenção sanitária entre Argentina e Uruguai, era encontrar uma solução para as doenças
epidêmicas importadas do Brasil. Apesar de o autor o especificar a doença, certamente ele
fazia referência à febre amarela, que na época grassava na Corte do Brasil e no Uruguai. Na
República Oriental, essa epidemia durou de janeiro a maio de 1873. O congresso teve início
em julho do mesmo ano.
Vale recordar que era um momento de fluxo imigratório para essa região e que a febre
amarela esteve associada à imigração, pois se acreditava que era uma doença que atingia,
preferencialmente, os imigrantes. Deste modo, a febre amarela foi a principal responsável pela
realização da Convenção Sanitária de 1873, mais do que qualquer outra questão.
Com o fim da epidemia de febre amarela, em meados de 1871, na Argentina, o medo
das autoridades voltava-se para o porto, local privilegiado de entrada das mais diversas
doenças. A partir de julho desse ano, as autoridades diplomáticas argentinas, preocupadas
com o surgimento de casos de febre amarela na Bahia e com a possibilidade de nova
incidência da doença no seu país, propuseram às autoridades uruguaias a uniformização dos
procedimentos preventivos aos navios que saíam daquele porto em direção a Montevidéu e
Buenos Aires
53
.
Em 19 de setembro de 1871, o Consulado Argentino em Montevidéu emitiu
correspondência para a Capitania do Porto de Montevidéu, com o objetivo de saber que
medidas estavam sendo tomadas contra a entrada da doença vinda da Bahia. A resposta da
Capitania do Porto provocou uma grande mobilização do governo argentino:
Debo decirle que las autoridades brasileras no han considerado como
epidemia los casos mas ó menos aislados que se han presentado, teniendo
abiertos por consiguiente todos sus puertos á dichas procedencias. Merecen
53
A Bahia possuía um forte vínculo com o Uruguai, já que alguns negociantes baianos comercializavam a carne
de charque platina, e as embarcações baianas estiveram presentes nos portos platinos durante toda a segunda
metade do século XIX (Chaves, 2001).
95
á esta corporación completo crédito los procedimientos de las autoridades
sanitarias de Río de Janeiro, modelo en su género. A mayor abundamiento
nuestro Cónsul en Río Janeiro recibe las patentes de Bahía y expide la suya
limpia, encontrándonos con que los vapores que hacen escala en uno y otro
punto vienen con patente limpia.
54
Com a resposta de que não estavam sendo tomadas medidas de prevenção por parte do
Porto de Montevidéu, o governo argentino sugeriu que os dois países uniformizassem os
procedimentos a serem usados para as embarcações que partiam da Bahia e de todos os portos
onde não havia prevenção contra as epidemias de doenças exóticas:
El Gobierno Argentino, justamente alarmado por la existencia en Bahía de
la epidemia de fiebre amarilla cometió al infrascrito el encargo de procurar
un acuerdo con esta Junta de Sanidad, sobre medidas precaucionales en
ambos puertos para las procedencias de aquel destino, en la forma que
mejor conciliase las necesidades del comercio con las conveniencias de
salud de una y otra ciudad.
55
No entanto, o governo uruguaio iria responder positivamente à proposta argentina
no ano de 1872, quando ocorreu nova epidemia de febre amarela em Pernambuco e na própria
República Oriental, e a Argentina passou a impor fortes quarentenas às embarcações
provenientes do Brasil e do Uruguai. O desentendimento das autoridades continuou durante
esse ano, como explicitou a correspondência do cônsul Argentino em Montevidéu, Jacinto
Villegas, ao ministro de Relações Exteriores do Uruguai, Herrera y Obes, em 23 de maio de
1872:
Estando próxima á extinguirse la fiebre amarilla en esta ciudad,
desaparecerá, con ella, el motivo que autorila clausura de los Puertos
Argentinos á las procedencias de este País; mas no por eso, desaparecen los
inconvenientes pasados del desacuerdo en las Juntas de ambos países a
respecto á medidas precaucionales que adoptan para resguardar á las
poblaciones respectivas; y cuyo acuerdo el Gobierno Argentino solicitó sin
éxito por sus notas de 24 de julio de 1871 y 1º de febrero del corriente; que
existiendo en Pernambuco la fiebre, las procedencias, sin embargo, de los
Puertos de la República, habrán de sufrir cuarentena en los de la Argentina,
por no preservarse aquella de Puertos que no se preservan; y que ha recibido
ordenes de su Gobierno para invitar al de la Reblica a celebrar una
convención cuarentenaria, que puede comprender la creación de uno ó mas
Lazaretos marítimos, á igualdad de gastos, en los puntos que designe la
ciencia como adecuados al objeto; y sin perjuicio de procurar desde ya el
acuerdo que dentro de las prescripciones de la Ley del País, puede
celebrarse entre ambas Juntas de Sanidad para el caso especial de las
54
AGNU, Corresponncia do Capitão do Porto de Montevidéu ao Consulado Geral da República Argentina em
Montevidéu, Jacinto Villegas, 19/07/1871.
55
Idem, Correspondência do Consulado Geral da República Argentina em Montevidéu, de Jacinto Villegas, ao
Ministro de Relações Exteriores do Uruguai, Manuel Herrera y Obes, 24/07/1871.
96
Procedencias de Puertos que libremente se comunican con los Puertos del
Brasil.
56
Nesse mesmo ano, no início de agosto, a imprensa uruguaia apelava para o acordo e
apontava a necessidade, cada vez mais urgente, de medidas que uniformizassem a preveão
sanitária nos portos dos dois países:
Parece mentira que entre dos pueblos vecinos y amigos, ligados por
recíprocos intereses mercantiles, no se haya podido aun arribar á un acuerdo
sobre precauciones sanitarias, surgiendo de ahí cada quince as una lucha
perjudicial y ridícula entre las Juntas de Sanidad!
Una de dos, con referencia al caso actual: ó en Buenos Aires ven visiones é
incurren en torpezas en nombre de la salud pública, ó en Montevideo pecan
por el extremo opuesto dando crédito á datos inexactos sobre el estado
sanitario de los puertos brasileros.
Ese juego de tira y afloja puede ser muy divertido: pero hace poco favor á la
formalidad oficial y causa graves perjuicios al movimiento comercial del
Plata.
57
Provavelmente, por pressões exercidas pela imprensa ou, mesmo, pelo próprio fato de
que o comércio uruguaio estava sendo prejudicado pelas constantes quarentenas impostas aos
seus navios na Argentina, em 10 de agosto de 1872, o governo uruguaio responde ao
Consulado Argentino que está dispuesto á ponerse de acuerdo con él, a fin de cambiar ideas
y confeccionar el Proyecto de acuerdo sobre Lazaretos solicitado á nombre del Gobierno
Argentino; y por consiguiente haya asaber á este fin de que le envíe las instrucciones
necesarias”.
Em 1873, mesmo com o início das negociações do acordo sanitário, as autoridades
argentinas fecharam seus portos às embarcações procedentes do Uruguai, pois um novo surto
de febre amarela castigava a Banda Oriental. O pânico era grande e era preciso evitar a
entrada da doença na Argentina uma vez mais:
Con fecha 3 de abril de 1873 el Gobierno de la Reblica Argentina dic
un decreto firmado por el Presidente, Domingo F. Sarmiento y el ministro
M. de Gainza, que comenzaba así: “El P. de la República, considerando la
epidemia de fiebre amarilla en Montevideo toma cada a mayores
proporciones, ha acordado y decreta: 1) Quedan cerrados los puertos de la
República Argentina para las procedencias de la República Oriental. 2) Los
encargados de la seguridad del puerto y costas, rechazarán por la fuerza
toda embarcación de aquella procedencia”. (CARBONELL, 1945, p.18)
56
AGNU, Correspondência do Consulado Geral da República Argentina em Montevidéu, do dr. Jacinto
Villegas, ao Ministro de Relações Exteriores do Uruguai o dr. Manuel Herrera y Obes, 23/05/1872.
57
AHI/RJ, Ofícios do Consulado Geral do Brasil em Montevidéu, v. 256-4-02, jornal El Siglo de 01/08/1872.
97
Inicialmente, a iia era formular um acordo quarentenário e criar lazaretos
internacionais comuns aos dois países. Além disso, estava prevista apenas a participação da
Argentina e do Uruguai, pois as hostilidades dos argentinos em relação ao Brasil, em virtude
da Guerra do Paraguai
58
e das constantes epidemias de febre amarela no Império,
contribuíram para que o governo brasileiro o fosse convidado, inicialmente, a tomar parte
dessas negociações.
Em 12 de agosto de 1872, a Revista Mercantil publicava um “Proyecto de Bases para
una Convención Sanitaria Internacional entre las Repúblicas Argentina y Oriental del
Uruguay
59
. Este projeto, escrito na cidade de Montevidéu por Jacinto Villegas, cônsul
argentino no Uruguai, continha dezesseis artigos sobre o estabelecimento de lazaretos
internacionais; igualação de quarentenas; tipos de cartas de saúde para os navios.
A Junta de Higiene Pública do Uruguai, composta pelos médicos Gualberto Mendez e
Pedro Visca, emitiu um parecer ao Projeto e indicou a sua importância como forma de
orientar o governo uruguaio para que aceitasse as medidas propostas e fizesse parte do acordo
sanitário em conjunto com a Argentina. E, fundamentalmente, apontou para a persistência das
epidemias de febre amarela na região
Las multiplicadas y presentes relaciones de esta República y de la Argentina
con el resto del mundo, y la aparición en menos de seis años, de tres
grandes epidemias en esta y aquella República, venían llamando seriamente
la atención sobre la necesidad de una reforma en nuestro régimen sanitario,
para cuya perfección es del todo indispensable un acuerdo entre los dos
estados del Plata y Paraguay, sobre todo por toda conveniencia de régimen
sanitario, y sus relaciones con el Brasil, a verse invadido por las mismas
epidemias, constituyendo un peligro permanente para las poblaciones del
Paraná y del Plata.
60
No último artigo do Projeto, previa-se que las partes signatarias del presente
convenio nombraran á la brevedad posible delegados de sanidad en número de tres, un agente
diplotico y dos médicos por cada potencia, para que reunidos en congreso en la ciudad de
....... formen sobre las presentes bases el Código y Reglamento sanitarios”. Não havia ainda
um local definido para a realização do congresso sanitário.
58
Para a historiografia argentina, a Guerra do Paraguai constituiu-se como uma derrota diplomática e territorial.
Como ressalta Candeas (2005) “terminado o conflito, em 1870, a permanência de tropas brasileiras no Paraguai
deu respaldo à política de defesa do governo provisório guarani contra as pretensões territoriais argentinas de
anexação. Brasil e Argentina quase entram em guerra. As tensões são desanuviadas em 1876, quando Buenos
Aires firma, com Assunção, o acordo de fronteiras”. Ver o catulo 1.
59
AHI/RJ, Ofícios do Consulado Geral do Brasil em Montevidéu, v. 256-4-02, retalho do jornal Revista
Mercantil de 12/08/1872.
60
AGNU, Parecer da Junta de Higiene Pública, dos drs. Gualberto Mendez e Pedro Visca. 16/09/1872.
98
A diplomacia brasileira, logo após a publicação do Projeto de Bases para uma
Convenção Sanitária entre as Repúblicas Argentina e Oriental, reclamou, no periódico
Telegrafo Marítimo, em 16 de outubro de 1872, a sua participação no acordo. O fato sugere
que os poticos do Brasil estavam atentos e vigilantes aos acontecimentos no Uruguai e que
ainda mantinham certo controle sobre as decisões do governo oriental.
A partir daí, começaria um conflito com o governo argentino, que se posicionou
contrário à participação do Brasil no acordo sanitário. Ao mesmo tempo, apontava a forte
dependência do Uruguai em relação ao Império brasileiro, pois ainda vigoravam os acordos
firmados na década de 1850, justificando assim a reclamação do Brasil de participação do
acordo sanitário, com base em um dos tratados de navegação firmado em 1857 com o
Uruguai.
Os tratados assinados em 1851 e 1857 decorreram de negociações entre o Brasil e o
Uruguai após a derrota de Oribe e a reestruturação do Estado oriental e foram, em sua grande
maioria, extremamente desvantajosos aos interesses dos uruguaios e objeto de grande
polêmica
61
.
Esses tratados foram objeto de grande polêmica dentro e fora do Brasil.
Muitos acusaram a diplomacia brasileira de ter aproveitado um momento de
extrema fraqueza do Uruguai para arrancar tratados francamente
desfavoveis a essa República. Os tratados teriam sido o preço cobrado
pelo governo brasileiro ao governo de Montevidéu para ajudá-lo na luta
contra Oribe. Ao escrever o relatório à Assembléia-Geral de 1852, Paulino
de Sousa procurou rebater as críticas anexando ao relatório notas da legação
de Montevidéu no Brasil que propunham a celebração de tratados para
resolver as questões pendentes e pôr em bases claras as relações entre os
dois países. A mais recente, de 18 de agosto de 1851, fora escrita por André
Lamas quando o Brasil estava comprometido, pela convenção de 29 de
maio de 1851, a lutar contra o general Oribe, e mobilizara seu exército
para esse fim. Concluía o ministro: ‘Os tratados de 12 de outubro não foram
portanto impostos, como condição do nosso auxílio, foram muito
espontaneamente solicitados, e muito livremente aceitos’. Se não foram
impostos, é bem verdade que os tratados de 12 de outubro de 1851 foram
fruto de uma conjuntura extremamente favorável para o Brasil, que o
governo imperial soube aproveitar. (FERREIRA, 2006, p.187)
Em um desses tratados, o de Navegação Fluvial, que foi firmado entre o Império do
Brasil e a República Oriental do Uruguai em 15 de setembro de 1857, havia um artigo que
estipulava: “El régimen sanitario, aplicado a las procedencias sospechosas, será regulado de
61
Existe um debate na historiografia uruguaia e brasileira a respeito dos tratados firmados entre o Brasil e o
Uruguai na década de 1850. Boa parte dessa produção assinala os prejuízos causados ao Uruguai e as vantagens
adquiridas pelo Brasil. Ver Gabriela Ferreira (2006).
99
una manera uniforme, y por común acuerdo de todos los Estados ribereños
62
, de modo que en
cada uno de ellos se concilien las precauciones sanitarias con los deberes de humanidad y los
bien entendidos intereses de comercio y navegación general”
63
. Foi com base nesse artigo
que o Brasil exigiu sua participação no acordo sanitário. Numa correspondência com a
Legação do Uruguai no Brasil, em 10 de outubro de 1872, a diplomacia brasileira afirmava
que “en vista de esta cláusula la Representación Oriental no podrá, pues, prescindir del
acuerdo del Imperio para la convención que pretende celebrar con la República Argentina
64
.
A diplomacia argentina no Uruguai foi comunicada do convite, de certa forma
“forçado”, feito pelo governo oriental ao Brasil e ao Paraguai. A reação das autoridades
argentinas foi hostil, e o argumento foi que havia partido do governo argentino a iniciativa da
elaboração do acordo sanitário e que, segundo o próprio Projeto de Bases, havia a
possibilidade de convidar outros países depois que o acordo estivesse sido aprovado por
ambas as Repúblicas. A resposta, reproduzida abaixo, explicita essa hostilidade:
El Gobierno Argentino asint en que el local designado fuese el que
deseaba el Gobierno Oriental, y nombró sus delegados, comunicándolo al
Señor Ministro por nota de 28 de octubre último. Es pues á esta que
responde, la que el infrascripto se ocupa de contestar, haciendo la historia
de los incidentes de la negociación, para dejar demostrado, que ella había
arribado á establecer con seria y detenida reflexión bases fijas que
constituyen un compromiso internacional, fuera del cual, no era permitido á
una de las partes contratantes obrar por si, sin el previo acuerdo de la otra
con quien había pactado proceder unida.
Si esto parece razonable aun para puntos que no estuviesen previstos en las
bases aceptadas, lo es mucho mas, respecto de aquellos que fueron
explícitamente comprendidos en ellas; y la invitación á otras Naciones tiene
precisamente determinado el modo y la forma en que debiera hacerse por la
base 15 que dice: “Las altas partes contratantes invitarán á otras Naciones á
entrar en este arreglo sanitario, subscribiendo estas bases
65
.
Apesar das reclamações da Argentina, prevaleceu a pressão do Império brasileiro para
participar das discussões de um novo acordo sanitário e que resultou na primeira Convenção
Sanitária Internacional da América em 1873. No início desse mesmo ano, o Consulado do
Brasil no Uruguai ainda informava sobre mais um período de quarentenas imposto aos navios
brasileiros e acrescentava:
62
Grifos meus.
63
Tratados y Convenios Internacionales suscritos por Uruguay en el periodo mayo de 1830 a diciembre de 1870.
Tomo I. Montevidéu, 1993.
64
AGNU, Correspondência da Legação Oriental no Brasil, ao Ministério de Relações Exteriores do Uruguai.
14/10/1872.
65
AGNU, Corresponncia do nsul Argentino no Uruguai, Jacinto Villega, como o Oficial Maior
Encarregado do Despacho da Carteira de Relações Exteriores do Uruguai, sr. Oscar Hordeñana. 30/11/1872.
100
Tenho a honra de oferecer a apreciação de V.Exª. os dois retalhos anexos
extraídos do 'Telégrafo Marítimo', relativos à salubridade pública desta
Cidade e as medidas tomadas pela Junta de Saúde deste porto, em face do
desenvolvimento que tem tomado a febre amarela, que infelizmente grassa
nessa Corte.
Podem, à primeira vista, parecer exageradas as disposições da referida
Junta, entretanto, estão subordinadas às leis sanitárias aqui vigentes, que
espero serão modificadas quando se resolva o acordo, por agora em projeto,
entre o Brasil, este Estado e a Confederação Argentina, de que V.Exª. tem
conhecimento.
66
A possibilidade de firmar um acordo em comum dava ao Brasil esperanças de que as
rigorosas quarentenas fossem amenizadas e que houvesse um regulamento que equilibrasse o
conflituoso relacionamento entre as três nações envolvidas.
Não fosse a vigorosa intervenção do Brasil, certamente esse primeiro acordo sanitário
internacional o teria sido elaborado com sua participação. O interesse da Argentina era o de
afastar qualquer possibilidade de entrada da febre amarela com o estabelecimento de
quarentenas e desinfecções rigorosas aos navios vindos do Brasil, e garantir o seu fluxo
mercantil com a Europa. No entanto, de nada adiantava se os navios fossem postos em
quarentena apenas nos portos argentinos, pois muitas embarcações ancoravam no porto de
Montevidéu, e a constante comunicação entre as duas orelhas do Prata” era muito intensa.
Tornava-se assim necessário um acordo sanitário que incluísse o Brasil; apesar disso o
Império brasileiro somente se integrou a esse projeto em junho de 1873
67
.
A Convenção Sanitária Internacional de 1873 realizou-se na cidade de Montevidéu,
capital da República Oriental do Uruguai, tendo sido iniciada no dia 14 de junho e encerrada
no dia 3 de setembro do mesmo ano, com a participação do Império do Brasil, da República
Argentina e da República Oriental do Uruguai.
O Paraguai foi convidado a participar, conforme informação do Relatório do
Ministério dos Negócios Estrangeiros do Brasil. No entanto, o governo paraguaio não enviou
nenhum representante, provavelmente pela desorganização administrativa em que vivia o país
no s-guerra e pelo fato de que “entre 1869 e 1876, o Paraguai foi praticamente um
66
AHI/RJ, Ofícios do Consulado Geral do Brasil em Montevidéu, v. 256-4-02, 24/01/1873.
67
Apesar das fontes primárias apontarem para a existência de conflitos entre a Argentina e o Brasil, a
bibliografia atual argentina não faz menção a esse episódio. Os trabalhos de Leandri (1999) e Veronelli (2004)
apenas mencionam a reunião, em Montevidéu, dos representantes diplomáticos e médicos dos três países em
junho de 1873. Do ponto de vista da documentação oficial, como a publicação da Convenção Sanitária, de fato
não é possível encontrar esses conflitos políticos. No entanto, uma documentação oficial menos explorada, como
as correspondências diplomáticas entre os ministros das relações exteriores e seus representantes nesses três
países, evidencia diversos conflitos que antecederam a feitura e assinatura dos tratados internacionais.
101
protetorado do Império(DORATIOTO, 2002, p.464), que desejava a estabilidade paraguaia
e era contrário à pretensão argentina de anexar o país.
Montevidéu representava um ponto de equilíbrio entre os poderes instituídos das
nações envolvidas. Vale recordar que as feridas da Guerra do Paraguai ainda estavam abertas,
e que o Brasil e a Argentina não haviam conseguido assinar um acordo de paz em conjunto
com o Paraguai. O Uruguai exerceu pouca inflncia nos destinos da guerra, tornando-se um
terreno neutro para as discussões entre o Império Brasileiro e a República Argentina. Além
disso, historicamente o país desempenhava função de manter as distâncias entre as duas
potências sul-americanas.
Houve, desta forma, uma grande conveniência em estabelecer um acordo em
Montevidéu, que a cidade estava no meio do caminho entre os navios que passavam pelos
portos brasileiros em direção aos portos argentinos. O historiador argentino Diego Armus
(2000, p.528) destaca que a década de 1870 foi marcada pelo interesse, do Estado e dos
dicos, nas questões externas:
En la década del setenta, y con menor intensidad en las siguientes, la lucha
antiepidémica estuvo en gran medida entendida como peligro externo. Fue
en ese marco que el control del puerto y el recurso de la cuarentena
devinieron en temas extremadamente conflictivos en torno a los cuales se
jugaban no sólo cuestiones de higiene sino también las posibilidades
ofrecidas por el comercio.
Portanto, era necessário resolver os problemas vinculados com as relações exteriores,
pois a saúde blica era responsabilidade tanto da medicina quanto da diplomacia. Enquanto
as doenças epidêmicas se constituíram como símbolos de mortalidade em massa e de
desconhecimento dico-científico, as medidas higiênicas adotadas tiveram um caráter
defensivo, como se fossem exércitos preparados para uma guerra. Não havia ainda a
consciência nem mesmo o conhecimento da prevenção, daí essas doenças serem vistas com
grande temor e perigo pelas populações atingidas.
3.2. A CONVENÇÃO SANITÁRIA INTERNACIONAL DE 1873: DINÂMICA E
RESULTADOS ALCANÇADOS
A Convenção Sanitária de 1873 também era denominada na documentação como
Congresso Sanitário Internacional. Na verdade, o Congresso era o momento em que se
reuniam os delegados dos países para discutir o projeto de uma Convenção, ou seja, um
102
acordo em comum relativo às questões sanitárias. A partir desse acordo, desdobrava-se um
Regulamento, que era a disposão oficial para pôr em execução a Convenção, onde ficavam
evidentes todas as regras que deveriam ser obedecidas pelos países envolvidos
68
.
O objetivo da Convenção era o de “arribar a un Convenio con las respectivas naciones
que las pusiera à cubierto, en lo posible á la humana previsión de los males epidémicos que
vienen desgraciadamente sufriendo de algunos años atrás”
69
. O Congresso foi composto por
diplomatas e médicos dos três países, cuja grande preocupação era a existência das epidemias
que atingiram esses países – em especial a febre amarela, conforme se apontou, – e a
necessidade de tratá-las de maneira coletiva e articulada.
A primeira atividade do Congresso de 1873 foi a apresentação dos componentes
diploticos e médicos de cada país
70
: a delegação uruguaia compunha-se do ministro das
Relações Exteriores, Gregório Perez Gomar, e dos doutores em medicina, Gualberto Mendez
e Pedro Visca; da Argentina, faziam parte o cônsul geral e agente especial do governo
argentino para o Congresso Sanitário, Jacinto Villegas, e os médicos Eduardo Wilde e Pedro
Mallo; a comitiva brasileira, além de ter o cônsul geral do Brasil no Uruguai, Eduardo Carlos
Cabral Deschampes e os doutores em medicina Francisco Marques de Araújo es e Jo
Ignácio de Barros Pimentel, trazia ainda o ministro das Relações Exteriores residente no
Uruguai, Antonio Duarte de Araújo Gondim.
Os critérios para a escolha dos médicos para o Congresso Sanitário não estão
evidentes na documentação, mas é certo que eram considerados representantes legítimos da
medicina em seus países e tinham proximidade com as instâncias de poder, especialmente na
ocupação de cargos públicos. A ligação dos médicos com o Estado tornava-se cada vez mais
sólida na segunda metade do culo XIX tanto no Brasil quanto nas Repúblicas do Prata,
especialmente com o estabelecimento dos acordos sanitários internacionais, como afirmou
González Leandri (2000, p.426):
Poco a poco la aproximación entre la corporación médica y el Estado fue
perdiendo su carácter esporádico, debido, además, a un nuevo impulso
proveniente de la coyuntura político-sanitaria internacional, cuya principal
consecuencia fue el notorio incremento de conferencias y tratados. Además
de intentar dar respuesta a problemas sociales y sanitarios, los jóvenes
estados necesitaban también contar con representantes y «traductores»
intelectuales.
68
Ver o Anexo A.
69
AHI/RJ, Congressos e Conferências Internacionais, v. 273-2-25, Ata do Congresso Sanirio Internacional de
14/06/1873.
70
AHI/RJ, Congressos e Conferências Internacionais, v. 273-2-25, Ata do Congresso Sanirio Internacional de
14/06/1873.
103
Os dicos uruguaios Gualberto Mendez (1824-1883) e Pedro Visca (1840-1912) se
graduaram na Faculdade de Medicina de Paris em 1857 e 1870, respectivamente, em razão,
entre outros fatores, da não-existência de uma faculdade de medicina na República Oriental
até o ano de 1875 (GARZÓN; ROCA, 1996).
Esses dicos tiveram sua formação profissional totalmente financiada pelo Estado
uruguaio. Como apontam as atas da mara de Representantes da segunda metade do século
XIX
71
, os estudantes realizavam os pedidos de custeio de seus estudos no exterior, já que o
país não possuía uma Faculdade de Medicina, e recebiam uma espécie de bolsa de estudos,
que geralmente cobria todas as despesas realizadas no exterior, pagas integralmente pelo
Tesouro Nacional. Não somente Mendez e Visca foram privilegiados com o financiamento
estatal, mas muitos outros homens dessa época.
Gualberto Mendez era, desde 1860, membro da Junta de Higiene Pública e médico de
saúde do porto montevideano e, entre 1872 e 1877, ocupou o cargo de presidente do Conselho
de Higiene Pública (nova designação para a antiga Junta de Higiene). Participou das primeiras
reuniões de criação da Faculdade Medicina de Montevidéu no final de 1875 e foi um dos seus
fundadores. Teve sua biografia escrita pelo colega Pedro Visca (VISCA, 1989).
Tendo na sua formação a influência direta da medicina experimental de Claude
Bernard, que crescia na França, e da teoria pasteuriana, Pedro Visca trabalhou num hospital
em Paris durante a epidemia de lera que atingiu a Europa em 1865 (GARZÓN, 1989).
Possuía sólida formão acadêmica na França, com experiência docente e prática nos
hospitais franceses. Em 1885, contribuiu para a organização, na Faculdade de Medicina de
Montevidéu, do ensino da Clínica Médica, quando passou a ser docente dessa disciplina e,
entre 1887 e 1889, tornou-se diretor dessa Faculdade.
Como se nota, esses médicos tiveram grande importância na formão e consolidação
da medicina uruguaia. Desde a constituição da República Oriental em 1830, foi criado o
Conselho de Higiene Pública (1831), que tinha como função a regulamentação da atividade
dica e da pocia sanitária. Esse conselho foi dissolvido diversas vezes, até se estabelecer
de forma mais estável a partir da gestão de Gualberto Mendez em 1860; posteriormente foi
reorganizado com a denominação Conselho Nacional de Higiene, em 1895. Certamente, o
fato de esses médicos estarem atuando nessas instituições em 1873, ano da realização do
Convênio Sanitário, contribuiu para a nomeação deles.
71
Actas de la Cámara de Representantes de la República Oriental del Uruguay (1849-1873).
104
Pedro Mallo (1838-1889) e Eduardo Wilde (1844-1913), ambos dicos argentinos,
faziam parte da Junta de Saúde do Porto de Buenos Aires
72
, criada em 1869 pelo presidente
Domingo Sarmiento. Alistaram-se no Exército argentino durante a Guerra do Paraguai (1864-
1870) e organizaram os hospitais de campanha. Eram professores da Faculdade de Medicina
da capital argentina, fundada em 1822, e membros da Academia Nacional de Medicina de
Buenos Aires (QUIROGA, 1972, p.151), o que lhes dava prestígio e reconhecimento
profissional.
Pedro Mallo ingressou na Universidade de Buenos Aires em 1858 e graduou-se em
1862. Foi fundador da “Revista Médico-Quirúrgica” e, em 1870, dava aulas de Medicina
Legal e de Higiene. É considerado o primeiro historiador do protomedicato de Buenos Aires,
com a obra “Páginas de la historia de la medicina en el Río de la Plata” (GUERRINO, 2002).
Além disso, elaborou em 1869, mesmo ano de criação da Junta de Saúde dos Portos na
Argentina, o Reglamento de Polícia Sanitaria Marítima de la República Argentina del cual
se ha dicho que respondia a las directivas de la Convención Sanitaria de París de 1851-52 y de
Constantinopla de 1865” (MENDONZA, 2007, p.4). Isso indica o seu conhecimento sobre as
Convenções Sanitárias já existentes e a sua contribuição para a elaboração da primeira
convenção sul-americana em 1873. Como foi apontado, ele foi o proponente da realização
desse acordo sanitário entre Argentina, Uruguai e Brasil em 1873.
Eduardo Wilde, como assinalou Diego Armus, fazia parte da geração de higienistas
que passou a ocupar cargos públicos, num processo de constituição e consolidação desse
segmento profissional. O grupo buscava ampliar a sua participação na estrutura burocrática
estatal, com o intuito de intervir nas questões relacionadas à saúde pública. Wilde representou
a figura do médico-potico, definida por González Leandri (2000, p. 430) como “constructor
y producto tanto del Estado como de su profesión, fue complementada en el plano
institucional por el Consejo de Higiene, en su doble papel de organismo del Estado y
representante de la legitimidad del cuerpo médico en cuanto grupo legalmente privilegiado”.
De acordo com Armus (2000, p.517), foi um dos médicos-poticos mais destacados de
sua geração, tendo sido, além de professor da Faculdade de Medicina e membro da Academia
de Medicina, “titular de la cátedra de Medicina Legal, ministro de Justicia e Instrucción
Pública durante la primera presidencia de Roca, ministro del Interior de Juarez Celman y
director del Departamento Nacional de Higiene durante la segunda presidencia de Roca”.
72
AHI/RJ, Ofícios do Consulado do Brasil em Montevidéu, v.256-4-02, recorte do jornal El Siglo de 29/05/
1872.
105
Desde o início da década de 1870, Eduardo Wilde preocupava-se com a potica de
prevenção das epidemias e advertia, em 1871, com a Argentina recém-saída da epidemia de
febre amarela, que:
Ser indolente en el tema es un atentado contra la sociedad, puesto que el
individuo que se enferma en una ciudad no solamente se perjudica a sí
mismo y perjudica a su familia sino también a toda la población mediata e
inmediatamente. La parte que habita en calles estrechas y sin luz puede salir
de ae introducirse, llevada por el viento, en el dormitorio más limpio y
más cuidado. (ARMUS, 2000, p.531-532)
O brasileiro Francisco Marques de Araújo es
73
(1837-1905) era lente de História
Natural do Imperial Colégio D. Pedro II e, na década de 1880, tornou-se membro da
Academia Imperial de Medicina no Rio de Janeiro. O cargo de professor do Colégio D. Pedro
II, fundado em 1837 e considerado o único de instrução secundária oficial do país, constituía
um dos poucos empregos estáveis para os intelectuais da época e suas cadeiras foram
ocupadas por muitos outros médicos (NEVES, 2002, p.147). A Academia Imperial de
Medicina, similar à de Buenos Aires, igualmente oferecia aos seus membros status
profissional e social.
O médico Jo Ignácio de Barros Pimentel (1832-1888) havia se formado pela
Faculdade de Medicina da Bahia em 1857, onde fora opositor em 1859
74
. Era natural de
Sergipe e, como informou Lycurgo Santos Filho (1991, p.159), “prestou serviços por ocasião
da Guerra do Paraguai e, finda a luta, fixou residência em Montevidéu, onde exerceu a
profissão por alguns anos”. Certamente o fato de ter participado dos campos de batalha
defendendo o Império e servido como cirurgião-mor de Brigada ou primeiro-cirurgião nos
hospitais de sangue da Campanha deu-lhe prestígio e reconhecimento perante as autoridades
diploticas brasileiras que atuavam no Uruguai e que o convidaram para o evento de 1873.
Pode-se concluir então que, apesar de não ter ficado evidente o modo como esses
dicos foram escolhidos para compor o Congresso Sanitário de 1873, a posição desses
profissionais em áreas consideradas importantes em seus países lhes dava credenciais para
estarem ocupando esses lugares sociais.
73
Este foi o único médico, entre os três países, a participar dos dois Congressos Sanitários, o de 1873 e o de
1887, daí a sua importância para este trabalho. Essas referências serão retomadas mais adiante, no momento do
estudo da Convenção Sanitária Internacional de 1887, ocorrida no Rio de Janeiro.
74
O Curso de Medicina era ministrado por professores efetivos e substitutos. Com a Reforma de 1854,
conhecida como a reforma Bom Retiro, a classe dos “opositores” foi criada e suprimida a classe dos substitutos.
Os opositores desempenhavam as funções de preparadores nos gabinetes ou de professores na falta de um dos
catedráticos e eram selecionados de três em três anos. Ver Santos Filho (1991) e Edler (1992).
106
Os princípios que nortearam a elaboração dessa legislação internacional foram
explicitados na introdução do documento e podem ser resumidos em três pontos: primeiro,
aplicação de medidas preventivas contra o cólera-morbo, a febre amarela e a peste do Oriente,
consideradas doenças exóticas; segundo, estabelecimento de medidas que atendessem aos
interesses da saúde pública e do comércio exterior; e, por fim, emprego, em comum acordo,
das quarentenas e dos lazaretos como meio de isolar pessoas e mercadorias contaminadas por
essas doenças. Para que fossem estabelecidos esses três preceitos, diversos debates ocorreram
no interior do Congresso, e é neles que se vai centrar a partir daqui.
As discussões ocorridas durante o Congresso foram as mais diversas, porém o ponto
central a questão das quarentenas foi o que causou mais polêmica entre os integrantes. As
atas analisadas traduzem uma parte desses atritos, pois muitos outros foram suprimidos, por
ser um tipo de documento oficial, em que não se poderiam expor acontecimentos
considerados depreciativos aos países envolvidos, como explicitou o ministro brasileiro
Araújo Gondim ao ministro dos Negócios Estrangeiros do Brasil, Visconde de Caravelas ao
encaminhá-las:
Das atas das nossas reuniões, igualmente aqui inclusas em original, poderá
V.Exa. ter uma idéia de quão renhida foi a discussão sobre alguns pontos,
idéia aliás imperfeita, por quanto, am do modo sucinto em que, segundo o
estilo, estão elas redigidas, foram, de comum acordo e por alta
conveniência, suprimidos alguns incidentes desagradáveis, mas fortuitos e
passageiros, e que, depois de recíprocas explicações, não perturbaram em
nada a consideração e a urbanidade que entre nós sempre temos guardado.
75
Os debates ocorreram conjuntamente entre os diplomatas e os médicos, o que
provocou ainda mais discussões e divergências, pois as autoridades poticas buscavam
resolver, prioritariamente, os problemas econômicos, enquanto os médicos propunham
solucionar questões relacionadas à saúde blica. Tanto assim que o representante brasileiro
Araújo Gondim recebeu orientações do ministro brasileiro sobre as quarentenas, como
demonstra o trecho a seguir:
O excessivo rigor nas quarentenas embaraçam seriamente as comunicações
internacionais sem trazer o desejado resultado de impedir a introdução do
mal, como a experiência tem demonstrado, e ainda ultimamente verificou-se
em Montevidéu.
Apesar da longa quarentena que foi ali estabelecida, a epidemia da febre
amarela manifestou-se e propagou-se.
75
AHI/RJ, Ofícios da Legação do Brasil em Montevidéu, v.222-2-02, 30/07/1873.
107
Não são, pois, as quarentenas, um meio eficaz de obstar ao aparecimento de
uma epidemia, tornando-se elas mui vexatórias quando ultrapassam os
devidos limites.
[...]
O Governo Imperial desejaria que esta prática fosse adotada por todos os
Estados porque é a que melhor auxilia os deveres da humanidade com os
interesses comerciais de navegação.
76
A primeira resolução do Congresso era definir os limites a serem instituídos pela
Convenção. O segundo artigo estabelecia que que no hay mas medidas que oponer a la
importación de los males epidemiables exóticas, que lazaretos y cuarentenas, como medios de
aislamiento
77
. Alguns defendiam, como o médico JoIgnácio Barros Pimentel, a existência
de outras medidas em terra e que deveriam ser incluídas no artigo, mas outros, como o
ministro uruguaio, que afirmou estar autorizado apenas para discutir medidas sanitárias
marítimas, defendiam que o projeto era para fornecer medidas para o mar e que as medidas
terrestres ficavam a cargo de cada nação e não deveriam constar no projeto. Por votação,
venceu a proposta de manter a redação original.
Na terceira sessão do Congresso, iniciaram-se as discordâncias acerca das duas
categorias de quarentenas existentes à época, a de observação e a de rigor. A primeira
polêmica foi em torno da imposição ou não das quarentenas de rigor para todos os portos
sujos, durante a redação do quarto artigo. Os médicos Araújo Góes, do Brasil, e Eduardo
Wilde, da Argentina, compartilharam de opiniões parecidas. Araújo Góes propôs que se
criasse uma categoria para as embarcações que tivessem procedência de portos sujos e limpos,
um meio-termo entre as patentes sujas e limpas; esse meio-termo deveria ser aplicado aos
barcos que viessem de portos chamados suspeitos. Argumentava que um porto limpo que
estivesse em comunicação com outro sujo o poderia ser declarado sujo e que, para as
procedências de portos sujos, far-se-iam quarentenas de observação. Wilde apoiou as idéias
de es, afirmando que os portos em que se acham epidemicamente o lera e a febre
amarela não poderiam ser tratados como os portos em que essas doenças eram endêmicas. E
fez o relato de que:
actualmente dice en Río Janeiro hay casos de fiebre amarilla y nuestros
puertos sin embargo están abiertos para sus procedencias terminando por
decir que no se debe considerar del mismo modo el puerto donde germina
76
AHI/RJ, Despachos do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Brasil à Legação do Brasil em Montevidéu
(1873 e 1874). Correspondência do Conselheiro Visconde de Caravelas, Ministro e Secretario de Estado dos
Negócios Estrangeiros do Brasil a Antonio Duarte de Araújo Gondim, chefe da Legação do Brasil no Uruguai.
26/04/1873.
77
AHI/RJ, Congressos e Conferências Internacionais, v. 273-2-25, Ata do Congresso Sanirio Internacional de
30/06/1873.
108
en todo su vigor la fiebre amarilla, u otros donde solo existen casos
aislados; todo lo que la comisión ha tenido presente y ha dejado para
cuando se arregle el reglamento, donde se dispondrá todo de la mejor
manera posible para los intereses científicos y comerciales.
78
Pedro Mallo e Visca se posicionaram contra as opiniões de es e Wilde. Afirmou
Mallo que “no se trata aquí de conciliar los intereses del comercio y la humanidad sino de
tomar medidas salvadoras que puedan ponernos a cubiertos de la invasión de enfermedades
epidémicas”
79
. Começa a se evidenciar a difícil relão entre os interesses econômicos e
políticos e aqueles vinculados à ciência médica. Ou seja, no interior de um mesmo grupo, o
dos médicos, existiam motivações e concepções divergentes.
O processo de estabelecimento e constituição da medicina como uma profissão
importante e influente nas decisões das autoridades blicas foi conflituoso e longo. Flávio
Edler (1992) afirma que os baixos salários dos médicos e a pouca profissionalização
impunham-lhes um sistema de patronagem na busca de carreiras mais seguras:
O monopólio virtual dos empregos públicos era peça fundamental da
política de cooptação dos profissionais liberais pela oligarquia senhorial, o
que vale dizer que tanto os cargos de direção política, quanto quaisquer
outros sob o domínio estatal eram distribuídos a partir da lógica do
patronato. [...] Pouco espaço havia, portanto, para a afirmação de uma ética
profissional sedimentada em instituições orientadas por critérios como
competência, habilitação técnico-científico, concursos e carreira pautados
por um sistema meritocrático.
É provável que alguns médicos que participaram desse Congresso tivessem sido
indicados por autoridades poticas e seriam remunerados pelos serviços prestados aos seus
respectivos Estados. Havia uma estreita relão de dependência, o que dificultava a afirmação
de um saber médico autônomo e o monopólio dico “no processo de decisão política a
respeito dos modelos científicos que deveriam ser ratificados como válidos” (EDLER, 1992).
Pedro Mallo buscava afirmação profissional, utilizando para isso os últimos
acontecimentos na Argentina, como a febre amarela de 1871, e seus conhecimentos
científicos, ao mesmo tempo em que procurava conciliar seus interesses, pois asseverava estar
em defesa do governo argentino, que queria evitar a introdução de novas epidemias. Assim,
recomendava que:
78
AHI/RJ, Congressos e Conferências Internacionais, v. 273-2-25, Ata do Congresso Sanirio Internacional de
02/07/1873.
79
Idem, ibidem.
109
se deben tomar siempre medidas enérgicas, mucho más teniendo en cuenta
la fatal epidemia del año 1871 en Buenos Aires, y sin estas medidas
enérgicas él cree que deban tomarse para los pasajeros no menos para las
mercancías y efectos de equipaje, pues no puede permitirse que estos
efectos entren libremente en nuestros puertos.
O debate de idéias prosseguia. Araújo es e Eduardo Wilde rebateram Mallo
afirmando que se olvida que todas las partes contratantes deben ceder un poco, tratándose de
arribar a um Convenio”. Estava em jogo a postura do Brasil em relação às quarentenas, pois o
Império era considerado o país da febre amarela, e, para os platinos, era preciso ser rígido
na determinação dos dias de quarentena. Araújo Góes assegurava que
si el Brasil firma esta Convención tend cuidado de que no se ponga a
resistencia a su comercio que él está seguro que en Río de Janeiro, se ponen
y se pondrán siempre cuarentenas para las procedencias de Bahía y
Pernambuco, siempre que en estos puertos esté constatada la existencia de
la fiebre amarilla ú otra enfermedad epidémica.
80
Ainda Araújo es afirmava, ao rebater as críticas de Pedro Visca e utilizando-se do
arcabouço científico existente, que, nos nove dias de viagem entre a Bahia, o Rio de Janeiro e
Montevidéu, “los peligros de incubación han desaparecido y pueden los pasajeros
desembarcar sin peligro algun de importación de gérmenes epidémicos”. Ao que Wilde
complementava, sugerindo, em relação à febre amarela, que “es transportable en las ropas los
bagages sucios y que es precisamente para evitar la introducción de las epidemias por este
medio que están aconsejadas las fumigaciones y la ventilación, para evitar la propagación del
germen”
81
.
O argumento do uruguaio Pedro Visca para a necessidade de quarentenas de rigor aos
navios era a de que era preciso ser intransigente em relação a esse tema, ou então não seria de
nenhuma serventia a legislação proposta. Ele relembrava aos participantes do Congresso os
reais objetivos daquele evento:
dice que en higiene se debe ser o muy rigorista ó sumamente liberal: que él
se declara rigorista, como no acepta el Congreso Sanitario, sino con rigor: ó
dejar los reglamentos sanitarios que ya son vejatorios, ó hacerlo cumplir
con el rigorismo más absoluto: pues tratándose de fiebre amarilla ó cólera,
objeto principal de la reunión dese Congreso, todo descuido en higiene y
con especialidad en los puertos es suficiente para el desarrollo de la
enfermedad.
80
AHI/RJ, Congressos e Conferências Internacionais, v. 273-2-25, Ata do Congresso Sanirio Internacional de
02/07/1873.
81
Idem, ibidem.
110
Visca, como se foi mencionado, vinha de uma formação européia da medicina
clínica e pasteuriana de meados do século XIX. Essa influência o caracterizou como médico
contagionista, pois acreditava na transmissão das doenças por meio do contato entre pessoas e
objetos, iias defendidas pelo francês Armand Trousseau
(1801-1867),
que introduziu, na
medicina clínica, conforme afirmou Mañe Garzón (1988, p.77):
el concepto de enfermedad específica, es decir que la enfermedad,
cualquiera que sea, es producida por un agente específico. Ello lo llevó a
postular, antes de ser descubiertos, la existencia de agentes vivos muy
pequeños que serían los agentes productores de las enfermedades: los
microorganismos surgen en el pensamiento de Trousseau antes de ser
encontrados materialmente por la ciencia bacteriológica de las próximas
décadas del siglo XIX.
Enquanto os médicos uruguaios tiveram formão na Europa, uma vez que fizeram
seus cursos de medicina nas universidades francesas, os brasileiros e argentinos se formaram
nas faculdades de medicina locais. Apesar de essas faculdades adotarem o modelo francês e
importarem muitas de suas teorias, não possuíam, até acada de 1870, uma formação
voltada para a prática clínica e para a pesquisa em laboratório, ao contrário do que já ocorria
na Europa, com o surgimento da medicina experimental.
No caso da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, a partir da década de 1870 se
iniciaram reivindicações de mudanças na prática acadêmica, já que as novas descobertas na
Europa deixavam cada vez mais obsoleta a medicina que se ensinava naquela instituição.
Flávio Edler observou que (1992, p.69)
Os mais lúcidos médicos do período depositavam suas esperanças na
Fisiologia Experimental. Partindo de uma concepção determinista e
empirista, parabenizavam os esforços dos dicos europeus que tinham a
preteno de mudar a face da medicina”, tornando esta, de uma ciência de
pura observação prática ou empírica, em uma ciência propriamente dita”.
[...] Sabiam, porém, que “tudo issoo passa de uma magnífica esperança”.
Esta denúncia quanto à ineficácia pragmática do saber médico na resolução
de problemas definidos como intrínsecos à sua especialidade era a todo
momento apontada por autoridades e pelos próprios médicos.
Finalmente, na redação do quarto artigo , chegou-se a um acordo sobre as quarentenas:
“solo habrá dos clases de cuarentena, la de observación, para los buques que se hallen en mal
estado higiénico y para las procedencias de puertos que no se preservan o lo hacen
insuficientemente y la de rigor para las procedencias de puertos infectados. En el reglamento
111
se expresarán las medidas higiénicas de que han de ser objeto los pasajeros, equipajes y
mercaderías”
82
.
Durante diversas sessões, inclusive na quarta, o ministro uruguaio Gregório Perez
Gomar mostrou-se impaciente e solicitou aos médicos que se ativessem às discussões, para
que o Convênio pudesse ser analisado pelo Corpo Legislativo antes do seu fechamento. A
convivência entre as autoridades poticas e científicas demonstrou-se árdua, pois, enquanto os
diplomatas tinham como objetivo definir uma Convenção Sanitária que salvaguardasse os
interesses do comércio internacional, os médicos travavam longas discussões para estabelecer
períodos de quarentenas e modos de prevenção e combate às epidemias nos portos e navios
das nações contratantes e chegarem a acordos comuns.
Gregório Gomar deixava explícito o interesse da diplomacia ao propor medidas que
“nos pongan à salvo de las epidemias y que no perjudiquese el comercio
83
, enquanto Pedro
Mallo defendia que “las medidas sanitarias deben ser siempre lo menos dañosas para el
comercio; pero debe siempre sacrificarse esto en bién de la comunidad”. O clima tenso e
hostil, de fato, foi uma constante no Congresso Sanitário de 1873.
Na sessão em que se discutiram quando um porto estava ou não infectado, Araújo
Góes recorreu às determinações da Conferência Sanitária de Constantinopla em 1866, “que
resolvió que la aparición de un sólo caso de cólera asiático era bastante para declarar infestado
el puerto donde se produjo; pues no podia decirse si al segundo enfermo podia ó no venir
embarcado”. A partir dessa observação, ficou determinado no quinto artigo que: “Las
autoridades sanitarias de los puertos de las Naciones Contratantes darán patentes sucia para
cólera epidémico y peste del Levante
84
, cuando dichas enfermidades produzcan una ó mas
defunción dria oficialmente constatada”. Ficou explícito que os próprios participantes do
Congresso de Montevidéu adotavam como referência para seus trabalhos as conferências e
congressos que ocorreram na Europa.
Embora tenha sido um tema importante nas discussões travadas no âmbito do
congresso, a febre amarela não foi incluída no quinto artigo pelas dificuldades de diagnosticá-
la segundo os médicos participantes. No entanto, por ser uma enfermidade que ameaçava e
atacava constantemente os países, tornou-se o centro das discussões a partir da quinta sessão,
no dia 7 de julho de 1873.
82
Tratados y convenios internacionales suscritos por Uruguay en el periodo enero de 1871 a diciembre de 1890.
Montevidéu: Secretaria del Senado, Documentación y antecedentes legislativos, 1993, tomo II. Convención
Sanitaria Internacional de 1873, pp.705-710.
83
AHÍ/RJ, Congressos e Conferências Internacionais, v. 273-2-25, Ata do Congresso Sanirio Internacional de
07/07/1873.
84
São os países que compõem o Mediterrâneo Oriental.
112
Vale recordar que a febre amarela foi a doença preponderante no início da cada de
1870, tendo atingido a Argentina em 1871 e o Uruguai e Brasil em 1873. Depois de terminado
o conflito com o Paraguai, foi a febre amarela que uniu os interesses dos três países em torno
da grave problemática dos surtos epidêmicos, pois o ambiente da guerra permitiu a
disseminação da doença pela região.
A não-inclusão da febre amarela no artigo provocou grande polêmica entre os
dicos, que sustentavam concepções divergentes acerca da origem e da difusão da doença e
das maneiras adequadas de prevenção. O debate entre contagionistas e infeccionistas girou em
torno da questão se a febre amarela era ou não uma doença transmissível. Discutiu-se também
a responsabilidade pela transmissão da doença, com acusações mútuas entre brasileiros e
platinos.
O médico uruguaio Gualberto Mendez afirmava que os portos do Rio da Prata
receberam a epidemia de febre amarela do Brasil enquanto o brasileiro Pimentel dizia que os
casos de febre amarela que tinha visto eram sempre originários de Buenos Aires, relembrando
o trágico flagelo de 1871.
Os argentinos e os uruguaios punham-se a favor do contagionismo, enquanto os
brasileiros se posicionavam favoráveis à teoria infeccionista, defendendo que, no Rio de
Janeiro, a doença era esporádica e se desenvolvia espontaneamente. Essas diferentes posições
entre os médicos eram comuns nesse período, pois o conhecimento era muito precário. Os
próprios profissionais explicitavam isso, inclusive em suas teses de final de curso, como
explicita Diego Armus (2000, p.515) “en una tesis doctoral de comienzos de la década de
1870 presentada a la Facultad de Ciencias Médicas de la Universidade de Buenos Aires, el
autor no dudaba en afirmar que ‘sabemos tan pocos en medicina sobre las relaciones entre
causa y enfermedades que tanto valdría que no supiéramos nada’”.
No entanto, para além das distintas teorias existentes, eram bastante convenientes
essas posições entre os médicos envolvidos no Congresso, pois defendiam posições que
beneficiavam seus respectivos governos. Nesse momento, os argentinos e os uruguaios já
apresentavam a hitese de que a febre amarela era uma doença domiciliada no Brasil e, por
essa razão, os médicos da delegação brasileira tentavam amenizar e modificar essa opinião tão
prejudicial ao Império brasileiro.
Por fim, foi modificada a redação do quinto artigo, que passou a incluir a febre
amarela:
113
Las autoridades sanitarias de los puertos de las Naciones Contratantes darán
patente sucia por cólera epidémico, fiebre amarilla y peste del Levante
cuando cualquiera de estas enfermedades produzca una o más defunciones
diarias, oficialmente comprobadas. Desde el 1º de Mayo hasta el 31 de
Octubre, sólo darán patente sucia por fiebre amarilla, en los puertos en que
habitualmente se observa esta enfermedad, cuando durante cuatro o más
días consecutivos se comprueben, oficialmente, cuatro o más defunciones
diarias de esta enfermedad o que la mortalidad por ella producida exceda de
lo normal.
85
A ocorrência da febre amarela em determinados dias e meses do ano foi o tema da
sexta sessão e pareceu um assunto unânime entre os membros da Convenção. Reconheciam
que essa epidemia tomava corpo principalmente no verão e outono, devendo as autoridades
diminuir as quarentenas nos períodos em que a enfermidade era menos incidente, ou seja, no
inverno. O Artigo 8º, então, propunha:
Desde el 1º de Mayo hasta el 31 de Octubre, las cuarentenas para los
pasajeros procedentes de puerto sucio por fiebre amarilla, será de 7 días
completos, constando desde el día de salida, sin perjuicio de las medidas a
que se sometan los bagajes, mercaderías y el buque, según lo especifique el
Reglamento
O período de sete dias proposto para a quarentena foi criticado pelo dico uruguaio
Gualberto Mendez, que recorria ao exemplo europeu, ao afirmar que “si en Europa se hacen
cuarentenas para buques que traen 30 dias de viagem, porque en esta Convención se ha de ser
menos prudente ordenando lo 7 dias?”. Eduardo Wilde afirmou que o modelo da Europa
deveria ser criticado, enquanto Mendez apontava a contradição no discurso do colega ao
lembrar-lhe que el presente Proyeto de convención, se ocupa en algunos de seos artículos de
lo mismo que se ocupa la Convención Sanitaria francesa”
86
. Os médicos envolvidos se
colocavam como perpetuadores daquele modelo de conferência sanitária internacional
iniciado em 1851 na França e buscavam segui-lo, apesar dos conflitos que surgiram no
decorrer do evento.
A duração das quarentenas foi, sem dúvida, o tema mais polêmico do Congresso
Sanitário, como já se mencionou. A partir da sétima sessão, no dia 11 de julho de 1873, as
propostas foram cada vez mais divergentes, com discordâncias e polêmicas cada vez maiores
entre os seus participantes a ponto de quase a se desfazer a Convenção Sanitária. A querela
iniciou-se nos debates dos itens do Artigo 10, cuja primeira proposta previa:
85
AHI/RJ, Congressos e Conferências Internacionais, v. 273-2-25, Ata do Congresso Sanirio Internacional de
07/07/1873.
86
AHI/RJ, Congressos e Conferências Internacionais, v. 273-2-25, Ata do Congresso Sanirio Internacional de
09/07/1873.
114
La duración de la cuarentena de observación para los buques que se hallen
en mal estado higiénico, se facultativa de las juntas; para los pasajeros
procedentes de puertos que no se preservan se del tiempo necesario para
la ventilación y demás medidas de que habla el Reglamento: manifiesta
igualmente que las cuarentenas de observación no podían hacerse fuerte, en
vista de que esto seria perjudicar a más procedencias y favorecer a otras:
cree que señalar el número de días para estas cuarentenas, seria hacer
injusticias; siendo mejor dejar esta atribución a los médicos de la Junta de
Sanidad, que debe suponerse no han de proceder de un modo caprichoso.
87
A maioria dos médicos considerava ser preciso fixar o número de dias para as
quarentenas, e não permitir que essa decisão ficasse nas mãos das juntas de saúde dos portos.
Isto porque, segundo o médico Pimentel, havia muitos médicos nos portos das províncias
brasileiras que eram contra as quarentenas, incluindo nesse rol ele próprio.
O Inspetor de Saúde dos Portos do Brasil, o médico JoPereira Rego
88
, quando foi
consultado sobre as quarentenas que deveriam ser adotadas nessa Convenção Sanitária, em 28
de abril de 1873, sugeriu que
As quarentenas não devem durar senão o menor número de dias possíveis,
limitando-se ao tempo necessário para a desinfecção das embarcações e dos
objetos, que elas conduzirem o que forem suscetíveis de desinfecção não
devendo o tempo empregado para as operações indicadas exceder de dois
dias, quando o navio o trouxer doentes, nem os tiver tido em viagem,
porque bastará praticar-se uma desinfecção regular e lavagem de todo o
navio, no caso contrário, isto é, quando vierem doentes a bordo, ou que o
último fato de moléstia tendo-se dado dois ou três dias antes da entrada no
porto, a quarentena pode durar de 5 a 8 dias no máximo, visto como será
necessário proceder-se a mais de uma desinfecção.
Este parecer demonstra que os médicos brasileiros tinham opiniões semelhantes sobre
o regime de quarentenas e que os órgãos relacionados à saúde pública do Império foram
acionados a colaborar na construção da Convenção Sanitária Internacional, com a emissão de
pareceres.
A outra proposta para o décimo artigo indicava sete dias de quarentena para os navios
de portos que não se preservavam das epidemias, levando-se em consideração as distinções
87
AHI/RJ, Congressos e Conferências Internacionais, v. 273-2-25, Ata do Congresso Sanirio Internacional de
11/07/1873.
88
José Pereira Rego (1816-1892), o Barão de Lavradio, foi uma das figuras mais importantes no cenário médico
do Segundo Reinado no Brasil, com expressiva atuação na saúde pública. Foi membro da Academia Imperial de
Medicina e da Junta de Higiene Pública. Em função do disposto no art. do decreto nº 2.052, de 12/12/1857,
que dispunha que todo aquele que fosse presidente da Junta Central de Higiene Pública deveria acumular o posto
de inspetor de saúde do porto do Rio de Janeiro, José Pereira Rego foi nomeado inspetor em 25 de novembro de
1865, tendo permanecido nesses cargos até 1881, quando pediu exoneração. Para mais informações ver: José
Pereira Rego. Dicionário Histórico-Biográfico das Ciências da Saúde no Brasil (1832-1930). Disponível em:
<http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br
>. Acessado em: 28 nov. 2006.
115
estabelecidas entre os portos infectados por febre amarela e os infectados por cólera. Isso
porque, como os médicos já haviam discutido, acreditava-se que a febre amarela ocorria em
períodos específicos do ano: Para las procedencias de puertos que no se preservan o que lo
hacen insuficientemente para ellera y la peste del Levante, habrá una cuarentena de 7 días a
contar del día de la partida; para los puertos que no se preservan por fiebre amarilla durante
los meses de mayo a octubre inclusive habrá simple observación y cuarentena de 7 días
durante el resto del año”.
Desta vez, o questionamento era quanto ao número de dias de quarentena. Os médicos
Pedro Malo e Gualberto Mendez consideravam o tempo insuficiente e propunham estender o
período com o fim da distinção entre “quarentena de observação” e de rigor”, mantendo-se
apenas as quarentenas de rigor
89
. Havia sido criado um impasse, e a sessão seguinte, a do dia
14 de julho do mesmo ano, foi iniciada com a retomada das discussões em torno do décimo
artigo.
A oitava sessão teve um caráter mais potico do que médico-sanitário, pois a
discussão sobre as quarentenas de observação e de rigor se reportava aos portos que não se
preservavam das epidemias, como era o caso do Rio de Janeiro, segundo os médicos platinos,
e era preciso, portanto, impor um sistema quarentenário mais severo. Mendez considerava que
“las Repúblicas Argentina y Oriental no tienen epidemias que dar al Brasil, mientras que la
fiebre amarilla ha venido siempre en eses puertos, por las procedencias de Brasil”. Os
brasileiros buscavam a redução do período de quarentena, o que gerou mais conflito, a ponto
de os médicos argentinos Eduardo Wilde e Pedro Mallo e o uruguaio Gualberto Mendez
solicitarem a reconsideração de todos os artigos sancionados, o que foi negado pelo ministro
uruguaio. Desta forma, votou-se favoravelmente ao seguinte texto para o décimo artigo:
La duración de la cuarentena de observación para los buques en mal estado
higiénico, será facultativa de las Juntas. Para los pasajeros procedentes de
puertos que no se preservan de cólera o peste del Levante, será de 7 días a
contar de la partida. Para los pasajeros de puertos que no se preservan de
fiebre amarilla, desde el de mayo hasta el 31 de octubre, observación de
24 horas si la travesía ha durado menos de 7 as. Durante los otros meses
del año, cuarentena de 7 días a contar del a de salida, cuando la travesía
hubiese durado mas de 7 días observación de 24 horas.
O ministro Gregório Gomar chamou a atenção para o fato de que, com a aprovação da
convenção, as partes contratantes perderiam o direito de fechar seus portos. Muito
89
Essa distinção de quarentenas de observação e de rigor leva a crer que era uma forma de atenuar os prejuízos
causados por essa medida. A de observação era mais amena, e a de rigor, como o próprio nome revela, era mais
longa e prejudicial ao comércio.
116
provavelmente, esse foi um dos pontos que suscitaram a realização desse Congresso, pois,
conforme se evidenciou anteriormente, o encerramento dos portos platinos e brasileiros era
constante e altamente prejudicial aos negócios estrangeiros dos três países envolvidos. Tanto
assim que o Artigo 19 deixava clara essa nova norma:
Las altas partes contratantes reconocen que la clausura de los puertos, por
motivos de higiene pública, es una medida extrema, contraria a la
civilización e innecesaria y comprometen a no tomarla, cualquiera que sea
el estado de los puertos con que se hallen en relación.
90
Assim, a discussão sobre a duração das quarentenas esteve atrelada à preocupação
com os possíveis prejuízos acarretados ao comércio. Os interesses econômicos estiveram bem
acima dos da saúde pública nas determinações da convenção sanitária de 1873.
Do Artigo 11 ao 22, os ânimos dos participantes do Congresso se acalmaram, pois a
maioria desses artigos foi aprovada quase sem polêmicas e discussões, ou pelo menos foi esse
o retrato pintado nas atas consultadas. Tratava-se de questões burocráticas, como a
comunicação das autoridades sanitárias dos portos com os consulados, a construção de
lazaretos que atendessem à saúde blica e à comodidade dos passageiros e a duração da
Convenção, como apontou o Artigo 22:
La presente convención durará cuatroos a contar desde el día de la
ratificación, debiendo ponerse en vigencia un año después de ratificada,
pudiendo ser renovada o alterada al fin de los cuatro años por invitación
especial de cualquiera de las Partes Contratantes, con dos meses de
anticipación, entendiéndose que en caso de falta de dicha invitación, la
Convención quedará en vigor por un año más y aen adelante hasta que se
verifique la condición indicada.
91
No entanto, durante a discussão do Artigo 23, no dia 16 de julho de 1873, o nsul
argentino Jacinto Villegas propôs a seguinte redação na nona ata do Congresso, o que causou
novo tumulto entre as autoridades diploticas e dicas:
Toda vez que en uno o más puertos de una de las naciones contratantes
reinase alguna de las epidemias que son materia de esta convención, las
altas partes contratantes, en el mister reciproco del comercio, se
comprometen a influir en cuanto de ellas dependa, con las empresas de
navegación que hacen escala en sus puertos, para que arreglen el orden de la
escala, empezando por los de la nación o naciones que se encuentren en
90
Tratados y convenios internacionales suscritos por Uruguay en el periodo enero de 1871 a diciembre de 1890.
Montevidéu: Secretaria del Senado, Documentación y antecedentes legislativos, 1993, tomo II. Convención
Sanitaria Internacional de 1873, pp.705-710.
91
Idem, ibidem.
117
buenas condiciones de salud, antes de tocar en lo puertos que estuviesen
infectados.
92
Na sessão do dia 18 de julho de 1873, o ministro brasileiro foi o primeiro a se
posicionar contrariamente ao texto sugerido pelo cônsul argentino. De acordo com ele, os
navios da Europa acabariam parando apenas nos portos do Prata, sem tocar no Rio de Janeiro,
o que traria inconveniências ao Império e “la capital del Império se veria obligada a un
completo aislamiento, terminando por decir que había por parte del Brasil tanta su razón para
oponerse a este artigo, cuanto que durante la epidemia del año 71, los puertos del Império no
se cerraron para las procedencias del Río de la Plata”
93
. Mais uma vez, a epidemia de febre
amarela na Argentina era recordada no Congresso e também utilizada pelos brasileiros como
arma para se defenderem dos ataques ao Brasil, considerado, em especial pelos argentinos,
como país onde reinavam as epidemias.
O cônsul argentino Jacinto Villegas achou que o Brasil deveria se sacrificar para evitar
as epidemias e que era justo que os navios tocassem primeiro nos portos limpos, para depois
se dirigirem aos portos sujos. O ministro do Brasil declarou que esse artigo iria impedir o
movimento de passageiros e prejudicar também o comércio. Araújo es, complementando
as observações do diplomata brasileiro, afirmou que havia necessidade de as embarcações
tocarem no Brasil, pois era no Rio que elas se abasteciam de carvão.
Visca defendeu a sugestão de Villegas e afirmou que a iia era generosa, e não
egoísta, e que, já que não se podiam fechar os portos, ao menos se deveria evitar o
aparecimento de epidemias. Afirmou, ainda, que as medidas não eram prejudiciais ao Brasil,
mas sim um ato de patriotismo humanitário.
O ministro uruguaio se posicionou contrariamente ao nsul argentino, afirmando que
toda embarcação oriunda da Europa iria preferir sempre ir aonde não havia epidemia e que, se
as empresas de navegação quisessem tocar nos portos do Brasil primeiramente, não haveria
como impedi-las, e o governo não poderia influenciar nessas decisões.
O médico argentino Eduardo Wilde concordou com o ministro uruguaio, pois
acreditava ser inútil aquele artigo. O dico Pedro Visca expôs “que habiendo cedido al
Brasil que no se cierren los puertos, que ceda ahora este aceptando lo que se propone”. O
ministro do Brasil solicitou que conste en esta acta, que él protesta contra las palabras del dr.
Visca al tratar de concesiones, que tratándose de llegar a un acuerdo como el que tiene por
92
AHI/RJ, Congressos e Conferências Internacionais, v. 273-2-25, Ata do Congresso Sanirio Internacional de
16/07/1873.
93
AHI/RJ, Congressos e Conferências Internacionais, v. 273-2-25, Ata do Congresso Sanirio Internacional de
18/07/1873.
118
objeto este congreso, no puede llegarse a el sin conceder mutuamente, que en las discusiones
él ha hecho también concesiones por parte del Brasil
94
.
A situação tornou-se tensa e confusa, pois, enquanto um médico uruguaio apoiava a
autoridade argentina, o dico argentino dava razão à autoridade uruguaia. É certo, porém,
que existiam hostilidades entre os diplomatas do Brasil e da Argentina, os quais começavam a
disputar naquele momento a mão-de-obra estrangeira e buscavam forjar imagens positivas dos
seus países, em detrimento do país vizinho, e garantir a entrada em seus portos dos vapores
europeus abarrotados de imigrantes. O Congresso Sanitário de 1873 tornou-se um espaço
privilegiado para a percepção de antagonismos entre o Império brasileiro e a República da
Argentina
95
.
Por fim, o médico uruguaio Visca chegou a propor a revisão do Artigo 18, ao defender
que “la medida enérgica para impedir la introducción de la fiebre amarilla o el cólera, el cerrar
los puertos y puesto que ya esta vedado por la presente convención que se estudie nuevamente
este punto”. Porém, os ministros do Uruguai e do Brasil foram contrários à aprovação do
artigo e deu-se por encerrada a discussão. As idas e vindas das opiniões foram uma constante
nesse evento, tanto por haver muitos interesses em jogo, quanto pelas fragilidades do
conhecimentodico em relação às doenças epidêmicas naquele momento.
Observa-se ainda que a última palavra no Congresso estava sempre com a diplomacia,
enquanto aos médicos cabia um papel mais consultivo do que deliberativo. Tanto que, ao
finalizar as discussões, Pedro Mallo solicitou ao ministro uruguaio a inclusão do nome dos
dicos após o nome dos ministros na Convenção a ser firmada, o que foi imediatamente
aceito. Apesar de a decisão final ter ficado nas mãos dos diplomatas, os médicos
reivindicavam o reconhecimento e o prestígio profissional nesse espaço institucional. Era o
início de um processo que culminará no final do século XIX com o reconhecimento da
profissão médica pelas autoridades poticas dos três países.
Nas sessões dos dias 09, 13, 19 e 20 de agosto de 1873, os membros do Congresso
Sanitário aprovaram os artigos do Regulamento que deveria servir de base para a Convenção
Sanitária. Esse Regulamento seguia as orientações sinalizadas pelo Congresso Sanitário,
demonstrados anteriormente
96
.
94
Idem, ibidem.
95
As relações entre o Brasil e a Argentina estiveram permeadas por disputas territoriais e por conflitos diversos,
desde o início do século XIX e a indepenncia desses países. Ver a Guerra Cisplatina (1825-28), a Guerra
contra Rosas (1851-52) e a Guerra do Paraguai (1864-70), entre outras. No final do século XIX, foram as
disputas por imigrantes que acirraram os conflitos entre a diplomacia dos dois países.
96
Ver a íntegra do Regulamento no Anexo A.
119
Por fim, tanto a Convenção quanto o Regulamento foram devidamente impressos nos
idioma espanhol e português, em três cópias, que foram assinadas pelos três plenipotenciários,
Antônio Duarte de Araújo Gondim, do Brasil, Jacinto Villegas, da Argentina, e Gregório
Perez Gomar, do Uruguai. Este último declarou encerradas as sessões do Congresso no dia 3
de setembro de 1873
97
. Embora aprovada e assinada pelos representantes dos governos
envolvidos, essa Convenção Sanitária não foi ratificada por nenhum dos países. Serão
discutidos, mais adiante, os motivos pelos quais essas nações não levarem a cabo esse
importante instrumento de prevenção sanitária internacional.
Logo após terminada a Convenção Sanitária, os governos da Argentina e do Uruguai,
conforme expressava o próprio documento, iriam definir um Convênio Sanitário para o
estabelecimento de lazaretos internacionais em comum acordo, em razão da proximidade dos
dois países, separados apenas pelo Rio da Prata. Os princípios do acordo eram os seguintes:
Reconociendo la República Oriental del Uruguay y la República Argentina
que su situación topogfica y la proximidad de sus puertos las ponen en
condiciones idénticas respecto a la importación de enfermedades
epidémicas de los puertos de todo el mundo;
Reconociendo que los intereses de su comercio y las condiciones de su
progreso son idénticas y que la comunicación diaria que existe entre sus
puertos hace que estos intereses se afecten conjuntamente, y en previsión
del posible desarrollo en alguna de ellas, del cólera, fiebre amarilla, peste de
Levante u otra enfermedad importable y perniciosa, los Gobiernos de ambas
Repúblicas han nombrado por sus Plenipotenciarios y miembros de las
misma representación.
Os representantes dos dois governos eram os mesmos que compuseram a Conveão
Sanitária Internacional daquele ano. A própria introdução do acordo aponta os motivos pelos
quais interessava aos dois países a instalação de lazaretos internacionais em comum. No
entanto, apesar das fortes pressões, especialmente do governo argentino para que esses
estabelecimentos fossem construídos, essa convenção, assim como a anterior, o saiu do
papel e não foi ratificada pelas Câmaras de Deputados.
O Império do Brasil não era favorável ao acordo firmado entre as duas Repúblicas, por
diversas razões. A primeira delas era que a união da Argentina com o Uruguai sempre
causava grande desconfiança da diplomacia brasileira, em função de um passado recente que
demonstrava o quanto interessava à Argentina manter vínculos no território uruguaio. Além
disso, o fato de essas duas Repúblicas compartilharem um mesmo Lazareto, certamente
acarretaria prejuízos às embarcações brasileiras, conforme aponta a correspondência
97
AHI/RJ, Congressos e Conferências Internacionais, v. 273-2-25, Ata do Congresso Sanirio Internacional de
03/09/1873.
120
confidencial trocada entre o ministro de Negócios Estrangeiros do Brasil, o conselheiro
Visconde de Caravelas, a Antonio Duarte de Araújo Gondim, chefe da Legação do Brasil no
Uruguai, em 15 de julho de 1873.
Quanto à criação de um lazareto internacional no Rio da Prata pelas
Potências signatárias do referido acordo sanirio, cabe-me declarar que não
pode ser aceita semelhante indicação, porquanto, como V.S. não ignora,
com estabelecimentos análogos corre sempre por conta do país em cujo
território e administração comum a diversas Nações, traz embaraços e pode
ser causa de conflito.
Além disso, ainda quando o Governo Imperial não barrasse a sua recusa
naquelas razões, não podia garantir que tomaria a si uma despesa que não é
conhecida.
98
Porém, não foi o fato de o Brasil não desejar esse segundo acordo que ele não foi
posto em prática. Na verdade, os dois Convênios firmados entre os três governos e entre as
duas Repúblicas estavam interligados entre si. Na medida em que a primeira convenção
sanitária internacional não foi ratificada, isso implicou no abandono do projeto de instalação
de lazaretos internacionais comuns entre Uruguai e Argentina.
3.3. ANTECEDENTES DA CONVENÇÃO INTERNACIONAL DE 1887: CONFLITOS E
ACORDOS NO INÍCIO DA DÉCADA DE 1880. CONVÊNIO SANITÁRIO DE 1884
ENTRE ARGENTINA E URUGUAI.
A discussão do Convênio Sanitário Marítimo ainda neste capítulo justifica-se porque,
assim como a Convenção Sanitária Internacional de 1873, o convênio não foi ratificado pelos
seus governos e teve igual motivação, qual seja: a presença da febre amarela nos portos
brasileiros e a conseqüente busca pela preservação dos portos platinos dessa doença.
Durante toda a década de 1870 e 1880, a quarentena aos navios continuou sendo o
recurso mais utilizado pelas autoridades de saúde pública dos três países. As reclamações das
autoridades diplomáticas eram freqüentes, e as acusações mútuas também se perpetuaram
nesse período. Enquanto a convenção de 1873 ficou esquecida “en las carpetas de los
Ministérios, esperando la oportunidad, que en este caso hubiera sido la amenaza de alguna
98
AHI/RJ, Despachos do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Brasil à Legação do Brasil em Montevidéu
(1873 e 1874). Correspondência confidencial do Conselheiro Visconde de Caravelas, Ministro e Secretario de
Estado dos Negócios Estrangeiros do Brasil a Antonio Duarte de Araújo Gondim, chefe da Legação do Brasil no
Uruguai. 15/07/1873.
121
invasión epidémica, para activar su correspondiente aprobación”
99
, os conflitos e o risco de
eclosão de novas epidemias estiveram sempre presentes.
O Convênio Sanitário Marítimo de 1884 recebeu uma nomenclatura diferente da
Convenção Sanitária Internacional de1873. O motivo, provavelmente, é que não houve a
participação da diplomacia de ambas as Repúblicas, senão a presença dos dirigentes de suas
mais importantes instituições blicas: a Junta de Sanidad da República Oriental do Uruguai
e o Departamento Nacional de Higiene da República Argentina. Desta forma, esse acordo
caracterizou-se mais como marítimo, que interessava atingir as duas “orelhas” do Rio da
Prata.
Os membros que elaboraram esse Convênio foram os delegados da Junta de Sanidad
do Uruguai e do Departamento Nacional de Higiene da Argentina, Manuel Adolfo Olaechea e
Pedro Mallo, respectivamente. Pedro Mallo realizou uma extensa carreira blica junto aos
óros de saúde do Estado argentino.
As motivações para a realização desse convênio haviam partido dos conflitos
existentes entre os dois países em relação às quarentenas impostas aos navios saídos dos
portos brasileiros, conforme destaca o boletim do Conselho Nacional de Higiene do Uruguai:
De la disparidad de disposiciones de aquellos reglamentos y de los distintos
criterios con que, muchas veces, se apreciaban los hechos relacionados con
la defensa internacional por las dos autoridades sanitarias del Plata,
surgieron, año a año, infinidad de conflictos que tuvieron como
consecuencia enojosas cuestiones, llegando hasta imponerse mutuamente
cuarentenas a las procedencias de Montevideo o Buenos Aires, ocasionando
los más serios trastornos a la navegación y al comercio de ambos países.
El año 1883 se produjo un grave conflicto de esta naturaleza, imponiendo el
Departamento de Higiene Argentino, por diversidad de criterio en la
apreciación del estado sanitario de Río de Janeiro, cuarentena a las
procedencias de Montevideo, que dieron motivo a una interrupción del
tráfico entre los dos países y a la correspondiente protesta de la Junta de
Sanidad, que se creía asistida de las más fundamentales razones en la
apreciación de las medidas dictadas para los puertos del Brasil.
100
(p.780)
Mais uma vez, o problema se relacionava com as epidemias que reinavam na capital
do Império brasileiro. O debate sobre as condições sanitárias do Rio de Janeiro era já bastante
intenso desde a década de 1850, no entanto as reformas urbanísticas e higiênicas nessa cidade
e em muitas outras do país ocorreriam nas primeiras décadas do século XX. Jaime
Benchimol (2001, p.30-31) destacou que, na capital imperial:
99
Boletín del Consejo Nacional de Higiene 1918. Ano XIII, Montevidéu, Outubro de 1918, n. 144, pp. 779-780.
100
Boletín del Consejo Nacional de Higiene 1918. Ano XIII, Montevidéu, Outubro de 1918, n. 144, p.780.
122
Ali irrompiam, todos os anos, as epidemias de febre amarela. As de varíola
aconteciam em geral no inverno. O cólera atingiu o Rio de Janeiro nos anos
1855-5, e na cauda de outra pandemia, nos anos 1890, pouco tempo antes
da chegada da peste bubônica. A tuberculose, as disenterias, a malária e
outras doenças crepitavam como flagelos crônicos.
Os debates sobre a urncia de sanear a capital agudizaram-se por força de
duas epidemias e febre amarela muito violentas, as de 1873 e 1876, que
causaram, respectivamente, 3.659 e 3.476 óbitos numa população estimada
em cerca de 270 mil habitantes. Nesse contexto, foi elaborado o primeiro
plano urbastico para o Rio de Janeiro, por uma Comissão de
Melhoramentos da qual fazia parte o engenheiro Francisco Pereira Passos,
na época inspetor das Obras Públicas. Decorreriam no entanto, três décadas
até que Pereira Passos e o governo federal submetessem o Rio de Janeiro à
cirurgia reclamada pelos médicos desde 1850.
A proposição desse novo acordo partiu novamente do dico argentino Pedro Mallo,
como informa a correspondência do presidente Ventura Silveira da Junta de Sanidad, ao
ministro de Guerra e Marinha do Uruguai, general Máximo Tajes, em 28 de abril de 1884:
El Departamento Nacional de Higiene de la República Argentina, en oficio
de fecha 3 de marzo último, apreciando la necesidad de conservar y
estrechar sus relaciones amistosas con la Junta que represento, y
reconociendo la conveniencia de regularizar y uniformizar las medidas de
profilaxis internacional que deben seguir ambas corporaciones para cumplir
con los sagrados deberes de su cometido, comisionó a uno de sus miembros,
al dr. Pedro Mallo, Delegado ante esta Junta, con el objeto de confeccionar
un proyecto sanitario que contenga una serie de medidas precauciónales, de
eficaz acción, que determine las reglas del procedimiento cuarentenario a
que deban sujetarse de una manera invariable los pasajeros, las cargas y
equipajes de los países contaminados con alguna morbosidad de naturaleza
epidemiable.
101
Chama a atenção o primeiro artigo do acordo referir-se à febre amarela, o qual
estabelecia “que la época de precaución sanitaria para fiebre amarilla comience en ambos
países desde el de noviembre y termine el de mayo”. Essa determinação dava
prosseguimento ao que já havia acordado a Convenção de 1873 sobre os períodos em que a
febre amarela atingia o Brasil em caráter epidêmico: os meses de verão.
O Artigo 18 novamente faz referência à febre amarela, ao afirmar que “se sometan a
observación sanitaria, en toda estación, las procedencias de la zona tropical donde reina
epidémicamente la fiebre amarilla”
102
. Era uma sutil declaração de que a real motivação do
convênio era a existência, em caráter endêmico e epidêmico, da febre amarela. A referência à
101
Idem, ibidem.
102
Tratados y convenios internacionales suscritos por Uruguay en el periodo enero de 1871 a diciembre de 1890.
Montevidéu: Secretaria del Senado, Documentación y antecedentes legislativos, 1993, tomo II. Convenio
Sanitario Marítimo de 31 de marzo de 1884, pp.725-730.
123
zona tropical o deixava vidas de que estavam mencionando o Brasil. Provavelmente a
o-citação explícita do nome do Brasil era para que não houvesse incidente diplotico, que
levasse o Império a reclamar do acordo, acusando as Repúblicas platinas de estarem
discriminando o país.
O acordo previa, ainda, diversas penalidades aos navios que não estivessem de posse
da carta de saúde expedida pelos consulados ou que não tomassem as medidas preventivas
durante a travessia, como limpeza geral da embarcação, ventilação, alimentação e lavagem
das roupas sujas.
Uma importante questão levantada neste acordo era a navegação nos rios Paraná e
Uruguai. As autoridades sanitárias propunham a proibição da viagem por esses rios aos navios
com carta suja. De fato, esse acordo extrapolava os limites do Rio da Prata e deixava tido o
interesse dos argentinos de se protegerem, ao máximo, das possíveis epidemias e
naturalmente proteger seu comércio. Esses rios proporcionavam o acesso à província
brasileira do Mato Grosso e às províncias argentinas de Entre Rios e Corrientes, daí a
importância deles para a economia e o desenvolvimento da região. Como afirma o convênio
em seu 14º. Artigo:
Toda vez que se desarrollen en un buque con destino a puertos argentinos,
casos sospechosos, o confirmados, de mal exótico sea en la travesía, sea
durante su estadía en aguas uruguayas o en las argentinas los enfermos en
tales condiciones, sean recibidos en el Lazareto uruguayo mediando aviso a
las autoridades sanitarias del puerto y del Lazareto siendo los gastos que
se originen de cuenta de los buques o de sus agentes comerciales.
Igual conducta se observará cuando en ellos existan males epidemiables, y
las autoridades sanitarias juzguen conveniente evitar la propagación urbana.
Una vez que el Gobierno Argentino establezca Lazaretos en los ríos Para
y Uruguay y puertos del Atlántico, las autoridades uruguayas usarán de
igual facultad.
Ningún buque con patente sucia, a quien se hubiese ordenado cuarentena
de rigor, pod continuar viaje para puertos interiores de ambas naciones
que carezca de Lazareto.
103
Apesar da importância destacada pelas autoridades sanitárias dos dois países, o
Convênio igualmente não foi ratificado por nenhum governo. No entanto, preparou junto com
a Convenção de 1873, de alguma forma, o caminho para que fosse formulado, alguns anos
mais tarde, um novo acordo, a Convenção Sanitária Internacional de 1887, elaborada na
cidade do Rio de Janeiro.
103
Idem, ibidem.
124
CAPÍTULO IV O CONGRESSO SANITÁRIO INTERNACIONAL DO RIO DE
JANEIRO (1887)
Uma das motivações para que os três países elaborassem um segundo acordo sanitário,
que viria a ocorrer em 1887, foram as medidas proibitivas, de caráter comercial, tomadas pelo
Império brasileiro no momento do surgimento da epidemia de lera nas cidades de Buenos
Aires e Montevidéu. O Brasil tomou medidas drásticas, conforme explicita o ocio do
Ministério dos Negócios do Império em 13 de novembro de 1886 “que, até segunda ordem,
fiquem fechados os portos nacionais, exceto o do Lazareto da Ilha Grande, a todos os navios
procedentes da República argentina e de quaisquer portos infeccionados pelo cólera-
morbo”
104
. Juntamente com essa decisão, outro ofício, publicado no mesmo dia, proibia a
importação de determinados produtos do Rio da Prata para o Brasil:
Sendo de maior alcance para a saúde pública o emprego de todos os meios
tendentes a evitar que se introduzam com as cargas dos navios os germes de
moléstia pestilencial, resolveu o Governo, sobre proposta do Inspetor Geral
de Saúde dos Portos:
1º. Que, até deliberação ulterior, seja absolutamente proibida a importação,
nos portos nacionais, de trapos, peles, pêlos, couros curtidos, tecidos
animais em bruto e carnes salgadas, em fardos ou em mantas, de
procedência argentina ou oriental; [...]
3º. Que destas medidas, sejam o somente excetuadas, à vista das
providências adotadas na República do Uruguai relativamente às
comunicações com o território argentino, as carnes existentes em depósito
nos saladeiros orientais e preparadas antes do aparecimento do cólera na
República Argentina, as quais serão recebidas no Império, correndo sob a
responsabilidade do Cônsul e Vice-Cônsules brasileiros a declaração, que
deverão consignar, tanto nos manifestos de carregamento como nas cartas
de saúde, de que tais carnes: 1º são de procedência oriental; 2º foram
preparadas antes da manifestação da epidemia em Buenos Aires e outras
localidades argentinas.
105
Essas medidas causaram um grande impacto no comércio platino, que tinha o Brasil
como principal mercado consumidor da carne de charque, produto destinado à alimentação
dos escravos e da população pobre brasileira (Medrano, 1989).
Em função desses acontecimentos, o Império e as Repúblicas platinas iniciaram, em
meados de 1887, uma discussão sobre a celebração de um congresso sanitário que formulasse
uma legislação própria, com o estabelecimento dos direitos e deveres de cada país nos
104
AN/RJ, Ministério do Império, minutas de avisos e ofícios, 1886.
105
Idem, ibidem.
125
momentos de epidemias. O tema da carne foi tão importante que, durante a elaboração da
convenção sanitária, uma comissão composta por dois dicos brasileiros e um farmacêutico
uruguaio se reuniu para estudar e realizar experncias científicas que atestassem ou não a
possibilidade da carne servir como veículo transmissor de cólera-morbo
106
.
Uma das diferenças deste acordo para o que ocorrera em 1873 é que ele foi aprovado,
assinado pelas autoridades médicas e diplomáticas e ratificado pelas maras de Deputados
das três nações, o que implicou na implantação das decisões assumidas no Regulamento
Sanitário formulado pelos dicos para evitar a propagação das epidemias. Na Convenção,
estabeleceu-se a criação de instituições de controle sanitário nos portos e nas embarcações e
exigia-se a contratação de médicos, por meio de concurso blico, nos portos e nos navios de
transporte de passageiros, visando aumentar o controle e a vigilância desses países no que se
refere às doenças
107
. Mais ainda, houve uma forte repercussão do acordo sanitário, tanto nos
outros países sul-americanos, como em alguns países europeus
108
.
Se as epidemias de febre amarela na década de 1870 foram as responsáveis, em grande
medida, pela realização do Congresso Sanitário Internacional ocorrido em Montevidéu em
1873, nos anos 1886 e 1887 foi o lera-morbo o grande vilão das desavenças entre as
autoridades dos três países. Vale destacar, no entanto, que, para além do medo da
contaminação das doenças, havia disputas políticas (questões de fronteira) e econômicas
(comércio da carne e imigração européia) bem delimitadas entre o Império do Brasil e as
Repúblicas platinas, e em que as epidemias serviam como justificativas “plausíveis” para a
interrupção do comércio e a clausura dos portos, afetando a imigração européia e a troca de
mercadorias importantes entre essas regiões, como foi o caso da carne de charque, ou tasajo
para os platinos.
Era conveniente para o Império interromper, ainda que momentaneamente, a
comunicação portuária com o Prata, pois assim causava receio em outras embarcações,
especialmente as euroias abarrotadas de imigrantes, que se viam forçadas a desembarcar
seus passageiros nos portos brasileiros. E mais, interessava proteger a produção sul-rio-
grandense de carne de charque, que, apesar da concorrência com a produção platina, não
conseguia abastecer todo o mercado brasileiro.
106
Trataremos dessas experiências mais adiante.
107
AHI/RJ, vol. 273-2-25, Congresso Sanitário de 1887.
108
As repercussões do acordo de 1887 serão discutidas no capítulo VI.
126
4.1 A EPIDEMIA DE CÓLERA-MORBO DE 1886/87 NO RIO DA PRATA
A primeira epidemia de lera-morbo na Argentina ocorrera em 1867, em meio à
Guerra do Paraguai (1865-1870), reincidira em 1884 e reapareceu no final de outubro de
1886, como uma das mais violentas ocorridas no país. Como informa Ragucci (1992),
Por esas extranãs coincidencias, la epidemia de cólera de 1886 se producía
en el año que finalizaba su mandato el Presidente Roca y en el mes de
octubre, precisamente pocos días después de asumir el gobierno el Dr. M.
Juárez Celman. Em efecto, el 18 de octubre aparecia en La Prensa la noticia
de los primeros casos de cólera en el Acorazado Los Andes, aunque en
otros diarios se filtro el dato que el primer caso apareció el mismo 12 de
octubre , lo cual se ocultó no sólo porque hubiera empañado la fiesta de la
asunción sino que la coincidencia podia tomarse como ún ‘mal presagio’ en
los superticiosos corrillos de la sociedad ochentista.
Os periódicos argentinos contrários ao governo Roca publicavam, desde outubro de
1886, a notícia do diagnóstico de lera na cidade de Buenos Aires, como o La Prensa, La
Nación e El Diário, enquanto a Tribuna Nacional, jornal vinculado ao governo, desmentia os
casos da doença divulgados pela imprensa, como demonstra Ragucci (1992, p.49), ao
transcrever a seguinte nota “muchos imaginaron la silueta siniestra del viajero del Ganges a
bordo del Acorazado pero los documentos que publicamos lo desmienten”. Este último
periódico ainda acusava os adversários de prejudicar a economia argentina, ao vincularem
notícias da existência de uma epidemia de lera no país. Ragucci (1992, p.53) destaca que a
Tribuna Nacional criticava particularmente o jornal La Nacion “se lanza una noticia que
puede afectar el crédito, [...] porque La Nación no vaciló en presentar el caso como una
invasión de lera hacinedo subir 5 ó 6$ el oro y decretando cuarentenas en Río de Janeiro a
las procedencias argentinas”.
De fato, assim que recebeu as primeiras notícias, ainda que não oficiais, do
aparecimento do cólera na Argentina, o governo brasileiro, representado pelo ministro do
Império, o Barão de Mamoré
109
, decretou quarentena aos navios saídos daquela República. O
Ministério do Império expediu, em 7 de dezembro de 1886, telegrama ao nsul brasileiro na
Argentina informando que seria de quinze dias o prazo de quarentena no Lazareto da Ilha
Grande para navios vindos das Repúblicas da Argentina e Oriental do Uruguai. Em 18 de
dezembro do mesmo ano, outro telegrama do ministro do Império ordenava que “não terão
109
Ambrósio Leitão da Cunha (1825-1898) – o Barão de Mamoré – ocupou diversos cargosblicos, tendo sido
deputado, senador, presidente da província de Pernambuco e, finalmente, ministro do Império.
127
livre prática aqui navios procedentes de quaisquer portos estrangeiros que trouxerem
passageiros de procedência argentina ou oriental
110
, interrompendo o comércio e a
movimentação entre esses portos e os do Brasil.
Com o retrocesso da epidemia e o estabelecimento do regulamento sanitário entre os
três países, em 1887, as províncias brasileiras voltaram a abrir seus portos às embarcações
oriundas do Prata. Porém, a atitude tomada pelo Império brasileiro de bloquear seus portos
aos produtos argentinos e uruguaios havia causado um forte ressentimento na diplomacia
platina.
Antes de finalizar el año volvieron a reabrirse los puertos brasileños de
acordo con la Convención Sanitária suscrita en Río de Janeiro por los
representantes diplomáticos del Uruguay, de la Argentina e del Brasil. Pero
la crisis ganadera no desapareció del todo y el tema abordado por la
Asociación Rural continuó por varios meses a la órden del dia. (Acevedo,
1934, p.427)
Uma nova epidemia na Argentina não foi encarada de maneira tranqüila pelas
autoridades poticas e sanitárias, aliás, uma enfermidade epidêmica, invariavelmente, causava
medo e pânico na população local, como afirmou Jean Delumeau (1989, p.117):
Quando aparece o perigo do contágio, de início procura-se não vê-lo. As
crônicas relativas às pestes ressaltam a freqüente negligência das
autoridades em tomar as medidas que a iminência do perigo impunha, sendo
verdade, contudo, que, uma vez desencadeado o mecanismo de defesa, os
meios de proteção foram aperfeiçoando-se no decorrer dos séculos. [...]
pretendia-se não assustar a população – daí as múltiplas interdições de
manifestações de luto no começo das epidemias e, sobretudo não
interromper as relões econômicas com o exterior. Pois a quarentena para
uma cidade significava dificuldades de abastecimento, ruína dos negócios,
desemprego, desordens prováveis nas ruas.
Algumas autoridades médico-sanitárias argentinas, presentes na Comissão de Higiene,
foram convocadas para emitir parecer sobre os casos de doentes suspeitos de lera na região
portuária de Buenos Aires, denominada La Boca. Inicialmente, declararam que não era o
cólera-morbo, porém uma publicação médica argentina, a Revista Médico-Quirúrgica,
diagnosticou, no dia 18 de novembro de 1886, a chegada da epidemia, que tivera sido
importada de navios a vapor do ultramar. Algumas regiões na Itália estavam sendo atingidas
pela epidemia e, nessa mesma época, chegava à Argentina grande número de imigrantes
italianos, como já se mencionou no primeiro capítulo.
110
AHI/RJ, 205-4-14, Legação do Brasil em Buenos Aires, ofício de 25/12/1886.
128
A epidemia não se restringiu à capital Buenos Aires; ela se espalhou por distintas
cidades e regiões do território argentino. O caso mais grave ocorreu na cidade portuária de
Rosário, considerada a segunda cidade mais importante do país, mas atingiu ainda as cidades
de Salta, Jujuy e Mendonza.
O temor com a chegada da epidemia também se refletia na correspondência
diplotica, como se observa nas notícias enviadas pela Legação Brasileira em Buenos Aires
ao Império sobre o avanço da doença:
Tendo aparecido há cerca de dois meses em alguns pontos desta capital
(Boca e Barracas) o cólera foi gradualmente propagando-se pela Província
de Buenos Aires, invadindo os de Corrientes, Entre Rios, Santa , Jujuy,
San Luiz e assolando cruelmente as 3 províncias acima mencionadas.
Destarte pode-se dizer que o flagelo percorre quase todo o território da
República. [...] Os estragos da epidemia vão além de todas as previsões. As
pessoas que fugiram depois do aparecimento do flagelo nesta cidade
morrem sem auxílio. Não é possível, sequer, formar-se uma idéia
aproximada dos óbitos que ocorrem fora dos limites da cidade. [...] As
proporções em que cresceu a mortalidade na cidade de Tucuman foram
pidas e medonhas, pois deram-se 50 óbitos no dia 22, elevando-se a 70 no
dia 24 e atingindo a 170 no dia 27 de dezembro !!
111
Esta foi a quinta pandemia dolera, que se iniciou em 1881 e foi erradicada em 1896.
Das epidemias que assolaram a Argentina, esta foi a que causou menos estragos e se tornou
importante para a história da doença em função da descoberta do bacilo-vírgula, causador do
cólera, conquista do cientista alemão Robert Koch em 1884 (Tovar e Bustamante, 2000).
No final do século XIX, com os freqüentes surtos epidêmicos, uma política de
prevenção e erradicação de doenças tropicais preocupava mais do que queses político-
militares e de fronteira; estava em jogo naquele momento a construção de poticas
civilizatórias, tanto nas Repúblicas platinas quanto no Império brasileiro, que pudessem
sanear e reformar o espaço urbano frente a uma nova conjuntura internacional.
O cólera trouxe consigo questionamentos sobre a eficiência dos serviços de saúde
implantados por esses países e sobre a possibilidade de implantação de controle sanitário
efetivo por parte das autoridades médicas. Os médicos e as ciências produzidas por eles
estavam sendo convocados a contribuir na feitura de uma nova sociedade, mais higienizada,
em âmbito local, nacional e internacional, e assim, mais civilizada de acordo com os
parâmetros da época.
111
AHI/RJ, 205-4-14, Legação do Brasil em Buenos Aires, ofício de 01/01/1887.
129
A epidemia, como expressou o jornal argentino La Prensa em 23 de dezembro de
1886, trazia à tona os graves problemas de saúde pública que esse país ainda não havia
resolvido, realidade compartilhada, aliás, com outras regiões da América e que,
conseqüentemente, criava obstáculos ao crescimento econômico e ao progresso almejado
pelas elites locais.
Momentos sombrios e dolorosos de provação chegaram para a República
Argentina. No meio do festim prolongado dos progressos que alcançamos, e
diariamente se estendem, apresentou-se uma dessas calamidades que
afligem e desolam a humanidade, enlutando o coração e paralisando a
circulação na nossa vida econômica.
112
Superado os obstáculos da Guerra do Paraguai (1864-1870), essas nações buscavam,
no final do século, internamente, transformar suas sociedades à luz dos preceitos da higiene e
da salubridade, ideais importados da Europa; e, externamente, difundir a imagem de países
saudáveis, modernos, civilizados.
Para Ricardo González Leandri (2006, p.55), o cólera modificou as políticas sanitárias
da Argentina e, de certa maneira, atingiu outros países como o Brasil, que, evitando a invasão
dessa epidemia, também reformulou suas poticas e projetou-se internacionalmente.
La epidemia de cólera de 1886-87, ejerció un papel de características
análogas a la de fiebre amarilla de 1871. Si bien no quedó tan fijada en la
memória colectiva como aquella, también marcó una importante fisura entre
un “antes” y un después”. Se produjeron a partir de entonces diferencias
jurisdiccionales de nuevo tipo y, sobre todo, “descubrimientos” higiénicos
del interior del país por parte de autoridades nacionales e instituciones
dicas que, como hemos ya señalado, si bien se habían ocupado hasta ese
momento de la higiene nacional en términos formales, en los hechos
limitaban su acción al âmbito metropolitano de Buenos Aires.
No Brasil, a nacionalização dos serviços de saúde somente ocorreu depois de 1889,
com a implantação da República. Durante o Imrio, o pólo financeiro, político e cultural do
país centralizou a maior parte dos serviços públicos e das reformas, sendo o Rio de Janeiro a
primeira cidade brasileira a passar por uma grande reforma urbana estrutural (Benchimol,
2001). As elites médicas imperiais pregavam a modernização das cidades, sem, no entanto, ir
de encontro à escravidão, uma instituição praticamente extinta em boa parte do mundo
ocidental, e que prejudicava o país interna e externamente. Como ressalta Alessandra
Martinez (1997, p.31),
112
AHI/RJ, Correspondência da Legação do Brasil em Buenos Aires ao Ministro dos Negócios Estrangeiros do
Brasil, 01/01/1887.
130
Apontando para a necessidade de higienizar e sanear, vacinar, construir
diques e lavadouros, habitações salubres, escolas, etc., os higienistas,
dicos e demais dirigentes imperiais intentavam não apenas transformar e
modernizar a cidade, mas atingir os costumes e hábitos da população. Seus
ideais, profundamente informados pela busca da “civilização” e do
“progresso”, se baseavam nos modelos estrangeiros e nos países então
considerados “civilizados”, principalmente na Europa e nos Estados
Unidos.
Depois da Argentina, a epidemia de lera se dirigiu até o outro lado do Rio da Prata,
atingindo a República Oriental do Uruguai. O governo oriental já havia adotado medidas
preventivas contra a epidemia, logo que chegaram as notícias da Europa, fechando seus portos
às embarcações provenientes dos portos infectados europeus, sem, no entanto, conseguir
algum efeito, pois, no final de 1886, o lera apareceu em Montevidéu, como informa Garzon
(1983, p.239)
La epidemia de cólera que llegó al país, principalmente a Montevideo, se
inició al finalizar el año 1886, como extensión de la epidemia que afectaba
a Europa desde 1885, y que fue traída a Sudamérica desde los puertos de
Génova y Burdeos. El contagio no nos llegó por viajeros enfermos
procedentes directamente de dichos puertos, sino a través de la epidemia
que se había declarado en Buenos Aires. Veamos en que forma se
desarrollaron los acontecimientos durante este nueva epidemia que sufrió el
país iniciada en noviembre de 1886 y terminada en mayo de 1887 y que
causó 535 víctimas habiendo sido afectadas 1.317 personas.
No Uruguai, a epidemia causou transtornos e transformações nas poticas blicas
voltadas para a saúde, pois não interessava apenas a sobrevivência da população, que ficava
vulnerável às doeas epidêmicas, mas, também, o comércio externo e as relações
internacionais desse país com o mundo. Segundo Morás (2000, p.120),
Las marcas profundas dejadas por el cólera y otras enfermedades
epidémicas no se agota en el número de muertos; la importancia del
fenómeno tendrá un significativo impacto en diversos planos. Al interés
humanitario de frenar las epidemias y prevenir las consecuencias personales
se suma un interés colectivo, una mayor conciencia sobre la creciente
interdependencia que une los destinos personales y n, las posibilidades
económicas del propio país, convirtiendo el ímpetu y la racionalidad de los
higienistas en una ‘razón de Estado’. Un buen ejemplo lo constituye la
permanente realización de convenciones sanitarias regionales para
intercambiar conocimientos, definir políticas preventivas comunes, pero
también para dirimir conflictos comerciales y políticos.
Portanto, os três países, a partir da trágica experiência com as epidemias, voltaram a se
reunir em 1887 num congresso sanitário, depois que as medidas tomadas pelo governo
imperial para impedir a invasão do cólera-morbo, existente nas duas Repúblicas vizinhas,
131
motivaram muitas reclamações e questionamentos. O Barão de Cotegipe, ministro dos
Negócios Estrangeiros do Brasil, elaborou uma proposta em agosto de 1887, afirmando que
o único meio de evitar questões desta natureza será uma convenção que regule os direitos e
deveres recíprocos de cada Estado, e não imposição de opiniões que contrariam interesses de
um e de outro
113
.
A grande queixa das Repúblicas do Prata era o problema da carne de charque, pois a
exportação do produto para o Brasil era muito importante para a economia desses países. A
República Oriental do Uruguai, como enfatizou o diplomata uruguaio no Brasil, Carlos
Ramirez, produce e introduce por si sola dos terceras partes del tasajo extranjero consumido
anualmente por la poblacion del Império
114
. Portanto, urgia resolver a querela, haja vista que
os produtores e comerciantes uruguaios sofriam as conseqüências de não poderem exportar o
charque para o Brasil durante quase um ano, entre 1886 e 1887.
A interrupção da exportação da carne de charque platina, ocorrida entre o final de
1886 e meados de 1887, em função da moléstia, e a elaboração de uma Convenção Sanitária
Internacional podem ser consideradas fortes indícios de que o cólera-morbo incomodou as
autoridades diploticas e comerciais e tornou-se, no final do século XIX, uma das principais
questões de saúde publica dos países latino-americanos. Não se pode esquecer, ainda, que o
Brasil era um país escravista e necessitava conservar essa o-de-obra, mesmo com a
chegada dos imigrantes e com o processo lento e gradual da abolição da escravidão.
Com essa observação, pode-se questionar uma tese tradicionalmente defendida por
alguns historiadores, como, por exemplo, Sidney Chalhoub de que a febre amarela recebeu
muito mais atenção por parte das autoridades do que outras doenças. Era tida pelo saber
dico como a única doença que atingia os europeus, enquanto, por exemplo, olera-morbo
era classificado como moléstia de escravos. Como destaca Chalhoub (1996, p.94), “todos os
esforços e recursos foram dirigidos à febre amarela, enquanto doenças como a tuberculose e a
varíola, ambas normalmente associadas a mestiços e pobreza, eram quase completamente
negligenciadas”, por isso se tornou questão de saúde pública no Brasil.
Apesar da inspiração e imitação dos modelos europeus, os problemas que assolavam
os países sul-americanos eram, muitas vezes, diferentes daqueles que existiam na Europa,
como a relação entre a carne de charque e o lera-morbo. Por ser um alimento consumido
basicamente pelo Brasil e por Cuba, o charque trouxe preocupação para as autoridades
113
Relatório do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Brasil, ano 1888. In:
http://www.crl.edu/content.asp?l1=4&l2=18&l3=33&l4=22.
114
Relatório do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Brasil de 1888, Nota da Legação Oriental no Brasil ao
Governo Imperial em 26 de setembro de 1887.
132
sanitárias brasileiras, que acreditavam na capacidade da carne e do couro bovinos serem
transmissores do “micbio” do cólera.
Assim, os responsáveis pela ordem de fechamento dos portos brasileiros aos produtos
platinos teriam de explicar e comprovar cientificamente essa decisão. Seria pertinente indagar
as justificativas utilizadas pelo Império brasileiro para proibir a entrada dessa carne nos portos
imperiais. Deve-se avaliar o conhecimento médico da época e a maneira como ele se articulou
com as instâncias do Estado para pôr em prática tal política sanitária. O argumento das
autoridades médicas, mais especificamente do Inspetor Geral de Saúde dos Portos, Nuno de
Andrade, foi o de que a carne de charque era um potencial veículo transmissor do micróbio
causador do cólera-morbo e que, portanto, o comércio e consumo no Brasil deveriam ser
proibidos até a efetiva extinção da epidemia no território das duas Repúblicas platinas, ainda
que o Uruguai não houvesse sido atingido pelo lera até meados de dezembro de 1886,
quando começaram a surgir as primeiras notícias
115
. Vale destacar que o médico, professor da
Faculdade de Medicina da Corte, membro da Academia Imperial de Medicina e Inspetor
Geral de Saúde dos Portos, Nuno de Andrade, fez parte da Convenção Sanitária de 1887
realizada no Rio de Janeiro
116
.
A decisão de fechamento dos portos brasileiros às embarcações procedentes do Rio da
Prata não foi aceita com unanimidade nem pelos platinos nem na própria capital do Império
brasileiro. Antes de aprofundar essa questão, faz-se mister discutir o papel da Inspetoria Geral
de Saúde dos Portos. Criada em 1886, com a reforma nos serviços sanitários, essa Inspetoria
alcançou certo grau de autonomia em relação a outras instâncias de poder. Cabia-lhe, como
mostra o Regulamento do Decreto n. 9554 de 3 de fevereiro de 1886, Artigo 15: I. a direção
dos socorros médicos aos homens do mar; II. A polícia sanitária dos navios, dos ancoradouros
e do litoral; III. O serviço de quarentenas marítimas; IV. O estudo de todas as questões que
interessem ao melhoramento das condições sanitárias dos portos.” O inspetor sanitário era
responsável por inúmeras outras atribuições descritas na legislação:
II. Corresponder-se com o Governo, dando parte ao Ministério do
Império dos fatos importantes que ocorrerem no serviço sanitário do
mar; VIII. Conceder ou negar licença, em ocasiões de epidemias, ou
na iminência delas, para a atracação de navios a docas e trapiches, de
acordo com a Inspetoria da Alfândega; X. Dirigir o serviço das
quarentenas. (BARBOSA; RESENDE, 1909, p.647)
115
AHI/RJ, Correspondência do vice-cônsul do Brasil em Montevidéu ao ministro dos Negócios Estrangeiros do
Brasil, 10/12/1886. 256/4/02.
116
Retomaremos à sua trajetória profissional mais adiante.
133
O Regulamento também define os tipos de quarentenas a serem praticados nos portos
brasileiros, semelhante ao que se fez na Convenção Sanitária de 1873. Certamente, o Inspetor
de Saúde dos Portos buscava cumprir a lei, que apontava para o fato de que determinadas
mercadorias ofereciam riscos à populão, já que elas poderiam transportar germes e
micróbios de doenças contagiosas, como o cólera. O Artigo 135 explicita que:
as quarentenas aplicáveis aos navios serão de duas espécies: quarentenas de
observação e quarentenas de rigor. As primeiras serão impostas às
embarcações procedentes de portos suspeitos ou infeccionados, e que
durante a viagem não tiverem manifestação alguma de moléstia pestilencial
a bordo, nem trouxerem cargas susceveis; as segundas serão aplicadas aos
navios que: I. tiverem tido, durante a viagem casos de moléstia pestilencial;
II. Chegarem com doentes de tal moléstia; III. Trouxerem cargas
suscetíveis de guardar e transmitir contágios. (BARBOSA; RESENDE,
1909, p.670)
Portanto, o Regulamento dava condições para que o Inspetor tomasse decisões
importantes relativas à quarentena de navios e de mercadorias.
As autoridades argentinas, ao que parece, não reclamaram da decisão do Brasil de
impedir a entrada do charque platino nos portos do Império. Certamente, o fato de a epidemia
de lera ter se espalhado por quase todo o terririo daquele país e o estado cada vez mais
agravado da saúde pública fizeram com que os argentinos fossem obrigados a acatar as
exigências estabelecidas pelo governo brasileiro.
Outra questão para a não-reclamação dos argentinos é que a economia do país, a partir
da década de 1880, sofreu importantes mudanças, e a carne de charque não compunha o
topo dos quadros de exportação de produtos primários. A febre da lã ovina, a partir da
segunda metade do século XIX, iria modificar os campos pampeanos argentinos, como
destaca o historiador argentino Fernando Rocchi (2000, p.19):
Desde mediados del siglo XIX, las ventas al exterior de lana habían crecido
de manera sostenida y convertido a este producto en el principal bien
expotable del país, desplazando al cuero y otros derivados del vacuno que
habían dominado el comercio internacional en los años que siguieron a la
independencia. Entre las décadas de 1840 y 1880, la “fiebre del lanar”
pobló de ovejas refinadas de raza Merino los campos de la región pampeana
y sentó las bases de su crecimiento económico.
De modo contrário, as autoridades uruguaias protestavam veementemente contra a
resolução imperial, na defesa dos interesses dos estancieiros e comerciantes do charque, pois a
134
epidemia não havia ainda atingido o Uruguai quando o Ministério do Império expediu a citada
resolução. Argumentavam que o governo uruguaio já havia tomado medidas com o objetivo
de evitar o contato com navios, pessoas e mercadorias vindos da Argentina e, até mesmo, a
supressão da troca de correspondências entre as duas Repúblicas, conforme mostra o ofício da
Legação Imperial em Montevidéu ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, o Barão de
Cotegipe.
Os Srs. Drs. Blanco, Ministro de Relões Exteriores e Ramirez do
Governo têm-me procurado com freqüência para pedir-me que em vista de
achar-se a República isenta do cólera e oportunamente clausurados todos os
seus portos às procedências argentinas, eu pondere ao Governo Imperial a
conveniência de seja declarada imune em conseqüência de achar-se nas
condições opostas ao §2º do artigo 150, isto é, de não ter comunicões de
classe alguma nem mesmo de correspondência epistolar com a República
Argentina.
117
Nesse mesmo ocio, os uruguaios explicavam às autoridades brasileiras que a questão
da interrupção do comércio de carne seca era um problema de Estado, e não apenas da
economia e dos produtores particulares dessa mercadoria. Como se explicitou no primeiro
capítulo, o Uruguai, país de pequena dimensão e população, necessitava alargar seus
mercados interno e externo (MEDRANO, 1989).
O Sr. Ministro de Relações Exteriores expressou-me todo o seu empenho
em atração a esse estado de imunidade que o Brasil consinta em receber as
carnes novas, sem nenhum perigo oferecer como não ofereceram as
existentes antes do dia do corrente. Além dos graves prejuízos que a
exclusão ocasiona a República nos próprios momentos de safra, é para a
nova política questão de estado, porque considerando ele não haver para
isso motivo justificado pareceria não ter essa política há pouco iniciada,
merecido as simpatias do Brasil.
118
A nova potica a que se refere o documento foi implementada no início do governo do
general Máximo Tajes como presidente do Uruguai (18/11/1886–01/03/1890). A
correspondência diplomática evidencia a proximidade do Uruguai com o Império do Brasil,
ligação, aliás, já comprovada durante o congresso sanitário de 1873, em Montevidéu. O chefe
da Legação, João Duarte da Ponte Ribeiro, afirmava ao Barão de Cotegipe, ministro dos
Negócios Estrangeiros do Brasil: devo assegurar a V.Exª. que encontro em todos os assuntos
117
AHI/RJ, Corresponncia da Legação Imperial em Montevidéu ao ministro os Negócios Estrangeiros do
Brasil, 24/11/1886.
118
Idem, ibidem.
135
que se relacionam com o Brasil as melhores disposições de parte deste Governo muito
especialmente de parte do General Tajes e dos Srs. Blanco e Ramirez”
119
.
No entanto, logo depois, em 9 de dezembro de 1886, o cólera surgiu no Uruguai, e o
governo brasileiro tomou rapidamente as medidas existentes naquela época. A Inspetoria de
Saúde dos Portos, representante do Ministério do Império expediu a seguinte minuta:
Tendo sido oficialmente informado do aparecimento do cólera-morbus em
Montevidéu, resolveu o Governo Imperial que aos navios procedentes da
República Oriental do Uruguai sejam aplicadas as medidas estabelecidas
pelos Avisos deste Ministério de 13 de novembro último, observando-se,
relativamente à importação de gêneros daquela República, o que se acha
determinado quanto aos de proveniência argentina.
Do Ministério dos Negócios da Fazenda solicito a expedição das
convenientes ordens afim de que pelas repartições aduaneiras seja
estritamente cumprida esta resolução, na parte que a elas se refere.
120
Para o Uruguai, a perda do Brasil como mercado consumidor seria fatal para o
comércio da carne de charque, pois esse produto era um dos principais na lista das
mercadorias uruguaias exportadas. A carne era consumida pelos escravos e pela população
pobre brasileira e cubana. Para o Brasil, ela era embarcada para os portos do Rio de Janeiro,
Salvador e Recife e tinha uma ampla rede de comercialização com o interior.
Como se pode visualizar na Tabela 3, o Uruguai detinha a maior produção de charque
da região, mantendo-se na dianteira até início do século XX. A indústria charqueadora
uruguaia era, apesar da progressiva modernização de sua economia, importante na pauta de
exportões do Uruguai, embora Barrán e Nahum (1973) destaquem que a permanência do
charque oriental à frente de outros produtos demonstrava mais o atraso histórico de sua
economia do que um avanço, já que nesse momento começava a surgir a indústria frigorífica
na região.
TABELA 3
PORCENTAGEM MÉDIA DA PRODUÇÃO DE CHARQUE
1886-1894 1895-1901
Argentina 35% 29%
Rio Grande do Sul 26% 22,3%
Uruguai 39% 48,7%
Fonte: BARRÁN, José P. e NAHUM, Benjamin. Historia rural del Uruguay moderno.
Recuperación y dependencia 1895-1904. Montevidéu: Ediciones de la Banda Oriental, 1973, tomo III.
119
AHI/RJ, Corresponncia da Legação Imperial em Montevidéu ao ministro os Negócios Estrangeiros do
Brasil, 29/11/1886.
120
AN/RJ, Minutas de avisos e ofícios do Ministério do Império, novembro de 1886.
136
Além disso, no quadro das exportões uruguaias, o Brasil ocupou, durante as décadas
de 1860 a 1890, importante posição de comprador dos produtos orientais, (carne, gado em pé,
couro, milho, trigo, etc.), ficando entre 12 e 22% do total exportado, perdendo apenas para a
Inglaterra e a França. Não era, portanto, um país que pudesse ser maltratado pelas autoridades
diploticas, já que diversos interesses econômicos estavam em jogo.
Como afirmam Millot e Bertino (1996, p.153), o Brasil absorveu, entre os anos de
1886 e 1894 entre 62 e 85% da carne seca produzida no Uruguai. E, de acordo com esses
historiadores, o motivo do fechamento dos portos brasileiros ao charque uruguaio foi
econômico, e não sanitário, pois o Brasil embarcado en la potica proteccionista del tasajo
riograndense, va a aumentar los impuestos a su introducción llegando en 1887 a clausurar sus
puertos al tasajo rioplatense con motivo de la aparición del lera en la Argentina. El 70%
queda sin exportar”.
Ainda que houvesse essa clara motivação econômica por parte dos políticos imperiais,
a justificativa médico-científica não deve ser minimizada. Ao que parece, o argumento
sanitário e higienista da Inspetoria de Saúde dos Portos veio ao encontro dos interesses de
uma elite ecomica gaúcha, que pressionava o Império na pessoa do ministro dos Negócios
do Império, o Barão de Mamoré, com o objetivo de obter mais vantagens para os produtos
nacionais na pauta de importações, como esclarece a seguinte correspondência recebida pelo
Barão em 8 de junho de 1887:
Os abaixo assinados negociantes desta praça e importadores de carne seca
da Província do Rio Grande do Sul, vem por este meio agradecer a Vª. Exª.
a resolução tomada de manter o prazo anteriormente fixado para a entrada
do charque platino. A redução daquele prazo acarretaria enormes prejuízos
aos charqueadores e negociantes da Província do Rio Grande do Sul, os
quais haviam realizado importantes transações, baseadas na primeira
resolução do Governo Imperial e para a modificação do qual nenhum
motivo fundado parecia existir.
121
Como se comprovou, cientificamente, a hipótese da transmissão do germe colérico por
meio do charque? Esse debate médico foi travado em vários lugares, como na Academia
Imperial de Medicina, na Corte Imperial e nas Faculdades de Medicina de Montevidéu e
Buenos Aires. Vale lembrar que uma das funções da Academia Imperial era, justamente,
emitir pareceres para o governo imperial sobre questões relativas à saúde pública.
A Academia Imperial de Medicina, desde a sua fundação, em 1835, até a reforma do
Estatuto do órgão em 1885, tinha como finalidade concorrer para o progresso da medicina,
121
Arquivo Histórico do Museu Imperial (Petrópolis), Arquivo pessoal do Barão de Mamoré.
137
da cirurgia e da higiene blica. Incumbe-lhe estudar e discutir todos os assuntos
concernentes à saúde pública ou ao descobrimento da verdade em casos de medicina legal”
122
.
Ocorreu, no entanto, uma mudança em relação aos primeiros anos da Academia, quando seus
objetivos eram o de responder às perguntas do Governo sobre tudo quanto pode interessar à
saúde blica, e principalmente sobre epidemias e moléstias particulares de certos países, as
epizootias, os diferentes casos de medicina legal”
123
. Na segunda metade do século XIX, com
a criação da Junta Central de Higiene Pública (1851), houve um enfraquecimento da
Academia em relação a seu papel de consultora junto ao Estado. No entanto, ela continuou
debatendo as questões sanitárias e ocupando seu espaço institucional, inclusive recebendo
recursos estatais para a sua manutenção, até mesmo porque muitos dos seus membros
ocupavam importantes cargos públicos, o que a mantinha vinculada à estrutura estatal do
Império.
Outro fator que manteve a Academia ligada ao Estado foi o Decreto nº. 9554 de 1886,
que reorganizou o serviço sanitário do Império. Além da criação das Inspetorias Gerais de
Higiene e de Saúde dos Portos, o Ministério do Império criou ainda, na Corte, um Conselho
Superior de Saúde Pública, “especialmente incumbido de interpor parecer acerca das questões
de higiene e salubridade geral sempre que for consultado pelo Governo”. Esses órgãos faziam
parte do projeto imperial de centralização potica, com o objetivo de manter o controle do
estado sobre deliberações as mais diversas. Como regulamenta o Artigo desse Decreto, o
Conselho foi formado pelos
Inspetores Gerais de higiene e de saúde dos portos, dos Cirurgiões-mores do
Exército e da Armada, do Diretor e dos Lentes de higiene e de
Farmacologia da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, do Presidente
da Academia Imperial de Medicina, do Presidente da Câmara Municipal da
Corte, do Inspetor da Alfândega, do Inspetor Geral das Oras Públicas, de
dois Engenheiros designados pelo Ministro do Império, e de um Delegado
Médico da Santa Casa de Misericórdia. (Barbosa e Resende, 1909, p.645)
Tão logo as notícias da epidemia de cólera-morbo no Rio da Prata surgiram nos jornais
do Rio de Janeiro, a Academia Imperial iniciou o debate sobre as medidas adequadas para
impedir a chegada dessa doença ao território nacional. João Batista de Lacerda foi um dos
122
BANM, Novo Estatuto da Academia Imperial de Medicina do Rio de Janeiro de 28 de fevereiro de 1885. In:
Anais da Academia Imperial de Medicina. Rio de Janeiro: Biblioteca Olympio da Fonseca Filho, Typografia
Universal de Laemmert &C., julho-setembro 1885, Tomo I, n. 1. (BANM)
123
BANM, Estatutos da Academia Imperial de Medicina do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Typographia
Imparcial de F. P. Brito, 1835.
138
primeiros membros a alertar os colegas sobre a temática. Afirmou Lacerda, na sessão do dia
16 de novembro de 1886:
Encetando a discussão de algumas questões relativas à profilaxia do cólera
morbus, diz que julga desnecessário demonstrar à Academia a importância
atual de semelhante discussão. Ninguém ignora que o terrível flagelo
asiático penetrou no estuário do Prata e está vitimando os nossos vizinhos
da República Argentina. Todos os dias lemos sobressaltados as notícias
telegráficas que anunciam a difusão e propagação daquele flagelo no
território da república litrofe; e os ânimos mais calmos não deixam de
sentir-se abalados diante da perspectiva de uma invasão do cólera no nosso
país. As imensas devastações que, por toda parte, tem exercido essa
mortífera doença exótica; a dolorosa experiência de fatos que ainda estão
vivos na memória de muitos ilustres membros desta corporação e que
cobriram de luto numerosas famílias neste Império, justificam a geral
emoção que estão produzindo as recentes notícias vindas do Prata.
124
Essa declaração mostrava o quão bem informados estavam os médicos em relação às
epidemias e problemas de saúde pública no Brasil, pois haviam se passado três dias da
resolução do governo em fechar os portos às procedências do Rio da Prata no dia 13 de
novembro de 1886 –, e os acadêmicos já estavam debatendo as providências tomadas pelo
governo brasileiro em 16 de novembro.
Inicialmente, os médicos filiados à Academia Imperial de Medicina discutiram acerca
da utilização da quarentena como sistema eficiente contra a invasão do cólera. Neste dia, o
dico João Batista de Lacerda (1846-1915) achou prudente e acertada a resolução que
ultimamente tomou o governo imperial, de obrigar os navios procedentes de portos infectados
à quarentena de 14 dias”
125
. De certa maneira, ele ratificava uma decisão tomada pelo médico
Nuno de Andrade (1851-1922), que, além de Inspetor Geral de Saúde dos Portos, era
igualmente membro desta Academia, fazia parte, portanto, de uma elite intelectual da Corte, e
era importante para ele o reconhecimento dos seus pares.
O barão do Lavradio (José Pereira Rego), que era médico, também defendia a
utilização das quarentenas para impedir a invasão do cólera, que reinava na República
Argentina. De acordo com ele, “regularmente executadas, constituem a medida mais segura
de impedir a importação das moléstias pestilenciais, por via marítima”
126
. Os médicos
discutiam ainda o quanto essas medidas causavam reclamações, especialmente entre os
comerciantes, que viam seus interesses sendo prejudicados. José Pereira Rego recordava seus
124
BANM, Boletim da Academia Imperial de Medicina, n.10, segunda quinzena de novembro de 1886, 16 de
novembro, ano II.
125
Idem, ibidem.
126
Idem, ibidem.
139
grandes desgostos, quer motivados pela imprensa, a qual então advogava mais os interesses
do comércio do que os da saúde pública, quer pelos adversários das medidas quarentenárias”,
e Lacerda igualmente destacava os protestos da parte daqueles que entendem que os
interesses do comércio estão acima dos interesses da vida humana”
127
.
Ficava claro que a teoria microbiana começava a se estabelecer na Academia Imperial
de Medicina, apesar de alguns médicos ainda não a abraçarem. Era o início do período dos
caçadores de micróbios”, quando muitos médicos começaram a buscar a causa das doenças
nos germes, e o cólera era uma doença comprovadamente transmitida por um micróbio, o
bacilo-rgula, descoberto por Robert Koch. Como destacou Jorge Carreta (2006, p.50),
embora houvesse um consenso sobre essa teoria, a controrsia continuaria no terreno da
etiologia, tratamento e prevenção das doenças causadas pelos germes”. Por isso, o debate
sobre o uso ou não da quarentena foi tão prolongado dentro da Academia.
Enquanto Batista Lacerda e Pereira Rego defendiam a utilização das quarentenas e
desinfecções para impedir a chegada do cólera platino, Agostinho José de Souza Lima,
presidente da Academia Imperial de Medicina entre 1883 e 1889, se posicionava receoso
quanto a essa prática. Para ele, as medidas mais eficazes eram as de prevenção, conforme
ensinava o médico francês Jean Baptiste Mahé,
são as medidas, enérgicas e prévias de saneamento das águas de asseio geral
e individual, de boa polícia das casas, das ruas, dos esgotos, etc. que
constituem os meios mais eficazes para limitar, em distância e duração, o
curso da moléstia; assim como, segundo Brouardel, são as condições de
higiene e salubridade dos portos nas cidades marítimas que proporcionam a
melhor garantia contra a invasão das epidemias.
Fora destas circunstâncias, com que não se pode contar entre nós, não
senão as quarentenas acompanhadas de desinfecção rigorosa ao calor, em
estufas apropriadas, como acredita que se está praticando na Ilha Grande,
que pode proporcionar-nos a esperança de que o cólera-morbus não venha
ao Brasil, ao menos pelo litoral
128
.
Portanto, outro elemento aparecia na discussão entre os acadêmicos – a questão
climática e as reformas urbanas –, que vinham ganhando destaque desde a década de 1870
(Chalhoub, 1996). Segundo Souza Lima, o Brasil já possuía o terreno preparado e as
condições adequadas para o desenvolvimento de semelhante inimigo”, uma referência à teoria
dica defendida desde a primeira metade do século XIX, de que o clima quente e úmido do
Brasil causava doenças e era mortífero para a população. Como observou Lorelai Kury (1990,
p.81),
127
Id., ibid.
128
BANM, Boletim da Academia Imperial de Medicina, n.10, segunda quinzena de novembro de 1886, ano II,
21 de dezembro.
140
Para construir uma nação civilizada nos trópicos era necessário vencer a
natureza pelas forças da civilização, ou seja, utilizar todos os recursos
propostos pela Higiene. A questão social não será encarada como agente
patológico até o final do século XIX. Antes disso, o gênero de vida levado
pelas classes populares era considerado como fruto de uma escolha
determinada, em grande parte, pelo ardor do clima. Caberia aos médicos,
portanto, alertar a população e, sobretudo, vencer as paixões pelo
predomínio da razão, representada pelas autoridades médicas, que
conferiam legitimidade científica às ações governamentais.
Os médicos, em sua grande maioria, aceitavam como verdade irrefutável o fato de que
o clima era o grande causador da degeneração sica, por meio das doenças, e da degeneração
racial, pelo atraso em que vivia a maior parte da população negra e mestiça. Durante todo o
século XIX, esse “pessimismo climático” justificou muitos surtos epimicos no país
(Caponi, 2004).
Mesmo com o receio de que o Brasil pudesse ser atingido pela epidemia de lera, o
presidente da Academia defendia as medidas adotadas pelo ministro do Império e pelo
Inspetor de Saúde dos Portos, afirmando que “sendo mantido ali o mais meticuloso rigor na
seqüestração das pessoas e na desinfecção das roupas e mercadorias, [...] afim de que não seja
violada a mais insignificante medida quarentenária, não haveperigo de ser importado o
cólera-morbus pelo Lazareto da Ilha Grande”
129
.
No entanto, não era apenas olera-morbo que impunha medidas quarentenárias nesse
período. Com ares de vingança, as autoridades uruguaias da Junta de Saúde do Porto de
Montevidéu, em 2 de fevereiro de 1887, resolveram submeter a quatro dias de quarentenas os
navios procedentes do Brasil pela ocorrência da febre amarela em algumas cidades do
Império. A febre amarela, com se discutiu anteriormente, era considerada domiciliada no
Brasil, onde diversos surtos da doença ocorreram na segunda metade do século XIX. A
suspensão da quarentena ocorreu em 29 de abril daquele ano, quase três meses depois
130
,
mas essa atitude do governo uruguaio não alterou as decisões do governo brasileiro em
relação à epidemia colérica.
O cólera avançava para o interior da Argentina, durante o mês de janeiro de 1887,
conforme relata a legação brasileira em Buenos Aires, apesar de já considerarem o declínio da
epidemia. Nos informes enviados ao Brasil no dia 17 de janeiro, havia a notícia de que “a
seção da capital umas das que formam a Comissão Nacional de Auxílios resolveu no dia
129
BANM, Boletim da Academia Imperial de Medicina, n.13, primeira quinzena de janeiro de 1887, ano II.
130
AHI/RJ, Correspondência do Consulado do Brasil em Montevidéu, de José Joaquim Gomes dos Santos ao
Barão de Cotegipe, ministro dos negócios estrangeiros do Brasil, 02/02/1887 e 29/04/1887.
141
do corrente indicar à Junta Diretora da conveniência de fazer ao Rio de Janeiro um pedido
de desinfetantes, como por exemplo, ácido clorídrico, bicloreto de mercúrio”
131
.
Certamente, essa notícia deixou alarmadas diversas autoridades, que resolveram
convocar o Conselho Superior de Saúde Pública para discutir a possível invasão do cólera no
país. O ministro do Império receava, como relata Costa Ferraz, “que o flagelo, em vista da
propagação e marcha que tem tido nas repúblicas platinas, possa acometer a cidade do Rio de
Janeiroe, desta maneira, solicitava ao Conselho, “outras medidas às já tomadas, que obstem
ao desenvolvimento de semelhante formidável inimigo”
132
.
O presidente da Academia Imperial de Medicina e membro do Conselho Superior de
Saúde Pública deixou clara sua posão quanto ao pedido do ministro, afirmando o propor
nenhuma nova medida e confiando nas decisões da Inspetoria de Saúde dos Portos:
Vencido em anterior sessão do Conselho o emprego de medidas que estão
sendo postas em prática e sob a responsabilidade do ilustrado inspetor de
saúde dos portos, que, verdade seja dita, tem sido incansável em seu bom
desempenho, lhe parece que, se porventura não confiasse ele na sua
proficuidade, sem dúvida alguma, outras se apressaria a propor ao governo,
e a coragem teria para forçar o mesmo governo a tomá-las, de modo a
resguardar a população da nossa cidade. Não as propondo, portanto, é
porque julga garantia bastante as que aconselhou e com todo o esforço e
sacrifício está executando. O quesito, portanto, nos termos propostos, se não
denuncia uma quebra de confiança na autoridade sanitária e única
responvel em tão melindrosa situação, como que parece duvidar da inteira
proficuidade das medidas.
O problema, de acordo com Souza Lima, era que ele acreditava nas medidas tomadas
pelo Inspetor de Saúde dos Portos e as defendia. Vale destacar que eles eram colegas na
Academia. Esse embate entre autoridades governamentais e médicos não era novo, no
entanto, para este período, é importante ressaltar que os médicos buscavam também a
valorização do status profissional, que pressupunha a defesa dos saberes tricos e práticos
nas diversas instâncias da sociedade (Edler, 1992).
O temor da entrada do cólera-morbo da região platina no Império, juntamente com os
interesses dos charqueadores e comerciantes gaúchos, era tão grande que se retardou a
abertura dos portos, mesmo com a notícia de 14 de março de 1887, dada pelo Barão de
Alencar, da legação do Brasil em Buenos Aires, ao ministro dos Negócios Estrangeiros do
Brasil que “lhe comunicou haver terminado a epidemia do cólera, e que as autoridades
131
AHI/RJ, Correspondência da legação do Brasil em Buenos Aires, do barão de Alencar, ao Barão de Cotegipe,
ministro dos negócios estrangeiros do Brasil, 17/01/1887.
132
BANM, Boletim da Academia Imperial de Medicina, n.13, primeira quinzena de janeiro de 1887, ano II.
142
sanitárias expedem carta limpa aos navios que saem dos portos argentinos”
133
. Ainda assim as
autoridades brasileiras não reabriram livremente os portos; houve, pom, uma redução na
duração das quarentenas de quinze para oito dias. O ministro do Império, o Barão de Mamoré,
informava também que iria ouvir o Conselho Superior de Saúde Pública sobre a suspensão da
medida que proibiu a importação da carne platina
134
.
A reação da diplomacia argentina foi imediata. O ministro das Relações Exteriores da
Argentina, Quirno Costa, convocou reuniões com a Legação do Brasil e reclamava que “não
existia motivo para que continuasse a proibição da entrada das carnes nos portos do Império,
o sendo assim difícil que o seu Governo, para satisfazer as exigências da imprensa,
procedesse por igual forma em relação aos produtos brasileiros”
135
. No entanto, a proibição
foi mantida, e os debates sobre a crise pecuária e a busca por novos mercados consumidores
se ampliaram na imprensa e no governo argentino. Fazia-se necessário encontrar saídas para o
problema, como a exportação para a Europa de carnes congeladas, explicitada pelo jornal
Nación, de 29 de março de 1887:
A atitude do Brasil com relação às carnes do Rio da Prata provocou entre os
nossos estancieiros e exportadores um movimento benéfico. Temos hoje
que mencionar dois fatos que se relacionam com o mesmo.
Um deles é a formação de uma Sociedade para a exportação de carnes
conservadas pelo sistema Costa de Muraglia, o qual, conforme se assegura,
é o melhor desse gênero por manter a carne perfeitamente fresca, sem tirar-
lhe parte alguma de seu sabor, cor, etc. [...]
O outro fato a que aludimos tem por base a exportação de gado em pé,
contando-se já com fortes capitães para começo aos trabalhos.
Esta empresa, que seria montada na maior escala possível, propõe-se
construir navios apropriados para o transporte rápido e seguro do gado.
Não deixa de chamar a atenção como os argentinos ironizavam o Brasil, quando
tentavam explicitar os benefícios trazidos pelo Brasil aos interesses dos produtores e
comerciantes de carne, que era a abertura de novos mercados. Enfatizavam que, apesar das
medidas proibitivas tomadas pelo Império, os portos de Cuba continuaram abertos ao tasajo
argentino, tendo absorvido mais da metade da produção local. Porém, além do caráter inico
do jornal, de fato a indústria de carne argentina se modernizou a partir da década de 1880,
com a introdução de barcos frigoríficos, que exportavam a carne bovina para a Europa
(ROCCHI, 2000).
133
AHI/RJ, Corresponncia da legação do Brasil em Buenos Aires, do Barão de Alencar, ao Barão de Cotegipe,
ministro dos negócios estrangeiros do Brasil, 14/03/1887.
134
Idem, 12/04/1887.
135
Idem, ibidem.
143
Era, certamente, uma forma de minimizar os reais prejuízos dos charqueadores e
negociantes, que tinham o Brasil com mercado consumidor garantido muito tempo. Tanto
assim que o jornal argentino La Prensa de 7 de junho noticiava que o Brasil reabriria seus
portos para a carne a partir de de agosto, e os produtores continuavam fazendo os lculos
do imenso prejuízo:
La matanza de los saladeros en esta quincena última ha sido activa,
presentando, sin embargo, comparada con la del año pasado en igual fecha,
un déficit de 370.000 cabezas para carne y extracto en el Río de la Plata, de
cuya cantidad, 190.000 corresponden a la República Argentina. En cambio
la provincia de Rio Grande ha faenado ya 75.000 reses más.
136
Em 15 de maio de 1887, finalmente o Brasil resolveu suspender as quarentenas e
desinfecções aos navios vindos do Rio da Prata, quando as autoridades diplomáticas
consideraram finalizada a epidemia de cólera naquela região, embora continuasse a proibição
da entrada das carnes platinas nos portos do Império. A mensagem foi transmitida para as
autoridades argentinas pela Legação do Brasil em Buenos Aires, informando que “por
proposta do Inspetor de saúde dos portos e aprovação do Conselho Superior de saúde foi hoje
resolvido que tenham livre prática as procedências dos portos do Rio da Prata, sendo eles
considerados limpos”
137
. Dois dias depois, a Academia se posicionava quanto ao fim das
quarentenas.
O Sr. Cesar Diogo lembra que não pode e nem deve ser indiferente aos
sentimentos da Academia a notícia da suspeno das quarentenas e cordões
sanitários, impostas às nossas comunicações com as repúblicas platinas por
ocasião da epidemia de cólera morbus, que finalmente desapareceu dessas
regiões tocando apenas na sua funesta passagem em um ponto do Brasil,
poupando-nos, pois, ainda desta vez, dos horrores de sua devastação. Ora,
como este resultado abona sobremaneira o acerto e energia das medidas
profiláticas empregadas neste sentido, que constituem um justo título de
merecimento para o Exm. Sr. Ministro do Império o mui digno inspetor
geral de saúde dos portos, propõe que se envie uma moção de sincera
felicitação a esses dois funcionários pelos relevantíssimos serviços que
acabam de prestar ao país.
138
O debate, iniciado em novembro de 1886, se prolongou até o final de 1887, quando
ocorreu a Convenção Sanitária Internacional entre o Império do Brasil e as Repúblicas do
Uruguai e da Argentina, para solucionar os problemas econômicos, políticos e diplomáticos
acarretados pelas epidemias. As discussões na Academia Imperial de Medicina envolveram
136
AHI/RJ, Correspondência da Legação do Brasil em Buenos Aires, do Barão de Alencar ao Barão de Cotegipe,
ministro dos Negócios Estrangeiros do Brasil, 16/06/1887, com anexo o jornal de Buenos Aires La Prensa de
07/06/1887.
137
Idem, 17/05/1887.
138
BANM, Boletim da Academia Imperial de Medicina, n.22, ano II, segunda quinzena de maio de 1887.
144
questões relacionadas às teorias contagionistas e anticontagionistas, às disputas internas, às
experiências científicas e evidenciaram quais eram os temas mais importantes para médicos e
autoridades de saúde pública naquele período.
As autoridades platinas, em especial os charqueadores uruguaios, não se conformaram
com as atitudes do Brasil em continuar proibindo o comércio da carne platina nos portos
brasileiros. Como os brasileiros utilizaram o argumento científico de que o germe do lera
poderia ser transmitido pela carne de charque, os uruguaios recorreram ao farmacêutico Jo
Arechavaleta para que ele pronunciasse de forma científica sobre a questão. Conforme Peluffo
(1989), “bien documentado a través de sus experiencias anteriores, Arechavaleta inicia otras
nuevas, orientadas hacia aquel fin. De ellas resultó acabadamente que el tasajo no podría
transportar el vibrión corico”.
Esse personagem fez parte do primeiro grupo de catedráticos a ensinar na Faculdade
de Medicina de Montevidéu, implantada em 1875. Como positivista e defensor da ciência
experimental, criou o primeiro laboratório bacteriológico dessa Faculdade e atuou no campo
da higiene pública, especialmente na epidemia de lera de 1886 (MARCAIDA, 1994), o que
lhe dava credenciais para emitir pareceres científicos e ser reconhecido por parte da sociedade
civil uruguaia. Participou ainda da Convenção Sanitária Internacional no final de 1887, o que
será visto mais adiante.
José Arechavaleta realizou duas experiências científicas com a carne de charque no
Laboratório de Bacteriologia da Faculdade de Medicina de Montevidéu. A primeira ocorreu
em 13 de abril de 1887, e a segunda em junho do mesmo ano. De acordo com Soiza Larroza
(1980, p.75), a primeira experiência foi feita espontaneamente “sin responder a llamado de
terceros, lo que proclama la prioridad de sus trabajos sobre otros científicos. Subyace también
la intención de Arechavaleta de mostrar al Rector, que la reciente creación del Laboratorio de
Bacteriología, no había sido en vano”. A segunda pesquisa foi feita para atender ao pedido de
um saladeirista uruguaio da região do Cerro. Esse farmacêutico tinha grandes vínculos com
as agremiações rurais do Uruguai, como o caso da Associação Rural, que certamente tiveram
um peso importante para que ele realizasse suas pesquisas. A ciência do século XIX estava
fortemente vinculada aos interesses ecomicos e poticos, pois, como afirma Juan Jo
Saldaña, o Estado desempenhou um papel fundamental em relação à produção científica não
somente no Uruguai, mas na América Latina:
Pela própria conformação de nossa história que contou com um regime
político forte durante a etapa colonial e um ambiente de marginalização
econômica desde a Independência, coube aos Estados encarregarem-se da
145
criação da infra-estrutura científica. Essa relação da ciência com a ordem
política está longe de ter sido secundária, pois toca diretamente as
condições de possibilidade de nosso desenvolvimento científico (2000,
p.21).
O certo é que as duas pesquisas foram estimuladas pelas medidas proibitivas do Brasil,
como explicita o próprio farmacêutico José Arechavaleta, ao encaminhar os resultados de sua
pesquisa ao reitor da Universidade da República:
En presencia de las medidas especiales dictadas por las autoridades del
Brasil sobre el tasajo, cuya entrada en aquel imperio remiten á un plazo
lejano, me propuse averiguar si descansaban en algun hecho científico.
Con este fin, he realizado una série de experiencias dirigidas á saber si el
tasajo puede ser vehículo del gérmen colerígeno, único motivo que á mi
juicio justifica aquellas medidas.
Como las conclusiones á que he llegado no justifican las medidas adoptadas
por las autoridades sanitarias del Brasil, me apresuro á dar cuenta de ellas a
V.S., demostrando al mismo tiempo los trabajos que se hacen en este
Laboratorio.
139
Portanto, as duas experiências chegaram à mesma conclusão: a carne de charque era
refratária ao germe do lera-morbo uma vez que a sua elevada acidez não propiciava um
ambiente propício à sua propagação.
O relatório dessas experiências científicas feitas sobre a carne seca no Laboratório de
Bacteriologia da Faculdade de Medicina de Montevidéu por Arechavaleta foi encaminhado ao
Ministério do Império, numa tentativa de modificar a resolução do governo brasileiro. Não
houve, de imediato, modificações na decisão, porém, por solicitação do ministro do Império, a
Academia Imperial de Medicina, na sessão do dia 10 de maio de 1887, indicou João Batista
de Lacerda para emitir um parecer sobre o assunto, que acabou aceitando as conclusões do
farmacêutico uruguaio, que foram as seguintes:
De las experiencias verificadas en este Laboratorio resulta:
1º. Que el tasajo contiene germines de micro organismos al estado de
esporos.
2º. Que estos esporos germinan en cuanto se las pone en condiciones
adecuadas (medios nutritivos, caldos, gelatina peptonizada, etc).
3º. Que todas las especies halladas son de las que abundan en la atmósfera y
que no son nocivas al hombre.
4º. Que el tasajo es acido y que desprende gás carbonico y absorve oxigeno.
5º. Que las experiencias hechas con el tasajo rociado con caldo contiendo
Bacillus virgula, en pleno desenvolvimiento y que perecieron, prueban que
139
Revista da Asociación Rural del Uruguay, ano XVI, número 7, 15/04/1887. El tasajo y los micróbios
Facultad de Medicina, Laboratorio de Bacteriologia, Montevideo, 13 de abril de 1887.
146
en vez de ser un medio de vida para esos organismos es al contrario uno de
muerte.
140
Um novo debate se abria na Academia de Medicina do Rio de Janeiro, pois o parecer
de João Batista de Lacerda levantou discordâncias e questionamentos entre os acadêmicos, em
especial no médico Nuno de Andrade, autor da proposta de proibição da importação de carne
de charque no Brasil.
Na sessão de 7 de junho de 1887, o Conselheiro Joaquim Monteiro Caminhoá
141
observou que o assunto deveria ser tratado do ponto de vista da higiene e que a Academia não
tinha nada a ver com a questão internacional, mas com a questão científica. Certamente, o que
Caminhoá sugeria que os médicos deveriam se nortear pela ciência, segundo a concepção de
que era a única via de acesso à civilização e ao progresso do país. Como lembra Gabriela
Sampaio (2003, p.413-414) “nas últimas décadas do século XIX, fortaleciam-se os laços entre
as autoridades do governo imperial, os médicos científicos e outros letrados que julgavam
agir, de forma neutra e imparcial, em nome da ciência”.
Ele foi o primeiro a questionar Lacerda sobre a possibilidade de afirmar se os
micróbios viviam ou não na carne seca, pois não haviam sido feitos no país os necessários
estudos e experiências científicas. Batista Lacerda rebateu o colega argumentando que não
podia fazer os estudos por falta de coléricos para fornecer os micróbios aos experimentos.
Dando continuidade ao debate, no dia 14 de junho, o Inspetor de Saúde dos Portos,
Nuno de Andrade, se posicionou contrário ao parecer emitido por Batista Lacerda, o qual
aceitara a tese de Arechavaleta de que a carne seca era um meio ácido, incapaz, portanto, de
ser veículo do micbio colérico. Argumentou ainda que “o próprio Koch, fazendo culturas de
bacillus-vírgula, achou que um dos melhores meios para se efetuar aquelas culturas eram
certas substâncias sólidas, na batata que é ácida, por exemplo”
142
. Nuno de Andrade buscava,
assim, minar os argumentos utilizados por Arechavaleta e Batista Lacerda, para justificar suas
próprias atitudes como inspetor, responsável pela proposta da interdição da carne seca nos
portos brasileiros. Ao final do debate, Nuno de Andrade propôs ao parecerista um substitutivo
que considerava possível a vida e a proliferação do bacilo dolera num meio ácido orgânico.
140
Idem, n.21, ano II, primeira quinzena de maio de 1887, 10/05/1887.
141
O baiano Joaquim Monteiro Caminhoá (1836-1896) formou-se na Faculdade de Medicina da Bahia,
participou da Guerra do Paraguai como médico, foi professor de botânica da Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro (1861-1881) e do Colégio D. Pedro II (1880-1889). Era membro da Academia Imperial de Medicina
desde 1869, tendo sido um participante ativo.
142
BANM, Boletim da Academia Imperial de Medicina, n.23, ano II, primeira quinzena de junho de 1887,
14/06/1887.
147
Lacerda afirmou que somente a Academia poderia decidir sobre qual parecer deveria aceitar:
o dele, ou o de Nuno de Andrade.
Batista de Lacerda terminou a sessão declarando que “quanto à interdição da carne
seca em nossos portos, ele garante que, se fosse governo, o tomaria outra deliberação,
porque não está irrefragavelmente provado que o bacillus virgula seja o agente contagífero do
cólera morbus”
143
. Essa última fala mostrava o quão controverso estava o conhecimento
dico daquele período. Essa afirmação de Lacerda certamente baseava-se na vida de
muitos bacteriologistas europeus de que o vibrio cholerae fosse o agente etiológico
específico. Como afirmou Benchimol (1999, p.277), “adversários de Koch argumentavam que
sintomas idênticos aos do lera podiam ser provocados por muitos micróbios que
parasitavam o intestino”, e essas disputas na Europa ecoavam no Brasil, pois havia uma
grande dependência dos médicos brasileiros aos conhecimentos e teorias criadas na Europa.
Portanto, as controvérsias na ciência médica tinham caráter internacional, já que o uso
de livros e materiais europeus por parte dos brasileiros universalizava o debate científico.
Como ressaltou Carreta (2006), as controvérsias científicas surgem, principalmente, em
função da ausência de consenso sobre novas teorias científicas. Isso ficou explícito nas
declarações de Batista Lacerda, que, apesar de defender explicitamente a teoria microbiana de
Koch sobre o germe dolera-morbo, no final acabou afirmando que o era ainda uma teoria
totalmente comprovada. Esses embates faziam parte do processo de consolidação da medicina
acadêmica no país e da sua importância para a luta contra as epidemias, maior problema
sanitário do final do século XIX no Brasil, na Argentina, no Uruguai e em outros países
americanos e europeus:
O conhecimento da bacteriologia se relacionava diretamente com uma
importante questão social: o combate às epidemias, fundamental para o
projeto civilizatório do país. A atração de imigrantes europeus, ponto
importante deste projeto, era dificultada pelas doeas epidêmicas. Elas
afastavam os imigrantes e disseminavam a visão da capital brasileira como
uma cidade infecta e perigosa. Paralelamente, os médicos que buscavam
descobrir os agentes causadores dessas moléstias e, por conseguinte, a sua
cura, também lutavam para consolidar sua profissão e impor sua vio de
mundo à sociedade e ao Estado. O que lhes faltava no período aqui
abordado era justamente o consenso em torno das questões básicas da
microbiologia. A sucessão de controvérsias e disputas em torno desse
conhecimento disseminava a idéia de uma ciência que ainda tinha pouca
certeza sobre suas teorias e métodos. (CARRETA, 2006, p.11)
143
Idem, ibidem.
148
Os debates na Academia mostram que a instituição estava extremamente atualizada
acerca do saber médico e que não era portadora de uma voz unívoca, onde o conhecimento
dico-científico era inquestionável e as teorias médicas compartilhadas entre seus
acadêmicos eram idênticas. Ao contrário, essas discussões evidenciaram as disputas existentes
entre as mais diversas teorias e, até mesmo, a existência de adaptações às teorias existentes,
como foi o caso de Nuno de Andrade, que interpretou os trabalhos de Koch de acordo com
seus interesses. Vale destacar que o fato de depender dos conhecimentos produzidos pelos
europeus não impedia a produção local de conhecimento, ou a reelaboração das teorias
importadas. Pelo contrário, instigava os investigadores nacionais a elaborar suas próprias
explicações para o surgimento das doenças
144
.
A votação do parecer de Lacerda sobre o relatório do farmacêutico José Arechavaleta
ocorreu no dia 26 de agosto de 1887. Um longo período se passou entre o início dessa
discussão, em meados de maio, até essa data, tempo suficiente para o dico João Batista de
Lacerda repensar seu trabalho e reformular seu parecer. Conforme o próprio Lacerca afirmou
na apresentação de suas conclusões:
O faz para apresentar novo parecer substitutivo ao que redigira sobre o
relatório do Dr. Arechavaleta, já aqui discutido, e que se trata agora de votar
com a emenda do conselheiro Nuno. O orador passa a explicar a
divergência entre o seu primeiro parecer e a sua carta lida no Senado.
Confessa que não é emperrado quando se lhe faz ver que não está com a
melhor opinião. Sustentara que os meios ácidos eram infensos à cultura do
bacilo, mas, na discussão que sofrera o seu parecer, lhe foi aqui lembrada a
cultura obtida por Koch na batata, que é um meio ácido. Conhecia apenas
de passagem a notícia dessa experiência e, pois, tratou de verificá-la em
Koch, e nele a encontrou.
145
O argumento de Lacerda era que seria preciso a verificação dos fatos para que fossem
aceitos como prova das conclusões do representante uruguaio, concluindo que “nem os fatos
experimentais de Arechavaleta, nem a afirmação de Koch de que o bacilo-vírgula não se
desenvolve nos meios ácidos, não autorizam a admitir que a carne seca não possa tornar-se
veículo do germe colerigeno”. Com essa conclusão, o parecer de Lacerda foi aprovado por
unanimidade.
A questão que se coloca é que Batista Lacerda sofrera algum tipo de pressão para
modificar seu parecer, pois o problema da carne seca extrapolava as questões meramente
científicas. O que estava em jogo era a sobrevivência de atividades econômicas extremamente
144
Foi o caso de João Batista de Lacerda, que após muitas pesquisas, anunciou ter encontrado o micróbio
causador da febre amarela. Para melhor aprofundar o tema, ver o trabalho de Benchimol (1999).
145
BANM, Boletim da Academia Imperial de Medicina, vol. 3, ano 3º, 1887 e 1888, 26/08/1887.
149
rentáveis para os países platinos, quais sejam: o comércio de carnes e couros e os projetos de
imigração no Rio da Prata e no Império do Brasil. Interessava ao governo brasileiro manter as
quarentenas e a proibição do consumo da carne platina, o que afetava a imagem dos países
platinos na Europa. Muitos imigrantes, com medo do cólera, desembarcaram nos portos do
Rio de Janeiro e de Santos, desviando de suas rotas, que eram os países localizados na duas
margens do Rio da Prata.
Portanto, como afirmou o sociólogo uruguaio Luis Eduard Morás (2000, p.121), além
dos interesses humanitários em frear a epidemia e evitar piores conseqüências, o cólera-morbo
que atingiu o Rio da Prata no final do século XIX evidenciou
uno de los casos más interesantes de interelación de epidemias, intereses
econômicos y conocimiento científico, representado por el conflito entre
Uruguay e Brasil en 1887, cuando este último cerró sus puertos a las
importaciones de tasajo procedentes del Río de la Plata debido a la
aparición de algunos casos de cólera. En buena medida, detrás del temor de
la transmisión de la epidemia de cólera, yacía la intención de imponer una
medida proteccionista, que origina una grave crisis de las actividades
ganaderas uruguayas.
Para esse autor, não havia apenas o temor da transmissão do cólera, mas também a
intenção de implantar uma medida protecionista para o charque sul-rio-grandense,
concorrente direto da carne platina, mais barata e de melhor qualidade. Assim, ao mesmo
tempo em que o Brasil proibia a entrada de carne platina, aumentava a taxa de importação
desse produto, beneficiando explicitamente os produtores brasileiros gaúchos. Outro fator
também contribuiu para o entrave da carne: a preservação da mão-de-obra escrava, maior
consumidora desse produto no país. Apesar de parte das elites agrárias brasileiras
considerarem próximo o fim da escravidão, os cafeicultores do sul pressionavam o governo
para garantir a utilização dos africanos escravos. Permitir o consumo de uma carne
supostamente contaminada pelo germe do cólera-morbo poderia ser o decreto extra-oficial da
abolição dos escravos, ou melhor, da extinção dos escravos.
A proibição da importação da carne de charque platina pelos portos brasileiros tornou-
se assim a questão diplomática mais importante entre os países envolvidos, prolongando-se de
novembro de 1886 até o final de julho de 1887, coincidindo com a votação do parecer de
Lacerda na Academia Imperial de Medicina, quando o ministro do Império expediu o seguinte
telegrama às legações do Brasil na Argentina e no Uruguai:
Por aviso de 20 do corrente foi declarado que o Governo mantém a
resolução contida nos Avisos de 24 de Março, 16 de Maio, e 4 de Junho,
segundo os quais serão recebidas nos portos do Império as carnes de
procedência argentina ou oriental, e outros gêneros susceptíveis que forem
150
embarcados depois do dia 31 do corrente (julho). Queira comunicar ao
Cônsul em resposta á sua consulta
146
.
Apesar da liberação do comércio da carne, a questão de saber se o charque era ou não
veículo transmissor do germe do cólera-morbo foi retomada mais tarde, quando ocorreu a
Convenção Sanitária Internacional no Rio de Janeiro, em novembro de 1887. O fato de o
parecer de Batista Lacerda ter sido contrário ao relatório de José Arechavaleta criou uma
controrsia entre médicos brasileiros e uruguaios, que seria resolvida com a realização de
pesquisa empírica que comprovou, tardiamente, as conclusões do professor da Faculdade de
Medicina de Montevidéu, o farmacêutico José Arechavaleta.
4.2 UM RELATO DE VIAGEM AO RIO DA PRATA E AO BRASIL EM TEMPOS DE
CÓLERA (1886-1888)
O norte-americano Joshua Slocum (1844-1909)
147
, marinheiro e comerciante, esteve
com sua família na América do Sul, entre o Rio da Prata e a costa brasileira, no final do
século XIX, entre 1886 e 1888. Slocum e sua tripulação vivenciaram a epidemia de lera-
morbo na Argentina e as quarentenas impostas nos portos brasileiros aos navios e mercadorias
saídos do Rio da Prata.
Em A viagem do Liberdade, Slocum relata a sua viagem desde os Estados Unidos ao
Rio da Prata no início de 1886 e o naufrágio no final de 1887 na costa brasileira, na Baía de
Paranaguá, quando retornava à terra natal. Durante esse período, a tripulação comercializou,
enfrentou tormentas no mar e sofreu com a epidemia delera-morbo na Argentina e com um
surto de varíola a bordo.
As o naufrágio, sem recursos para retornar com sua família para os Estados Unidos,
Slocum resolveu construir uma embarcação que os levasse de volta para casa. Em 13 de maio
de 1888, dia em que a princesa Isabel assinou a Lei Áurea, que libertava os africanos
escravizados no Brasil, conseguem lançar-se ao mar e batizam a canoa de Liberdade, em
homenagem ao acontecimento. Por fim, retornam, após diversos desafios e desventuras, ao
destino final no mês de outubro daquele ano.
As descrições e análises de Slocum confrontadas com a documentação diplomática
evidenciam as deliberações tomadas pelos gabinetes consulares e revelam o cotidiano, as
146
AHI/RJ, Corresponncia da legação do Brasil em Buenos Aires, do Barão de Alencar, ao Barão de Cotegipe,
ministro dos negócios estrangeiros do Brasil, 28/07/1887.
147
Vale destacar que a presença norte-americana na América do Sul ainda era pequena no final do culo XIX e
que o capital europeu ainda dominaria essa região até meados do século XX.
151
dificuldades de trabalho, a intolerância das autoridades e o desconhecimento dos médicos no
tratamento das doenças epidêmicas.
A literatura de viagem tem se revelado como uma valiosa fonte documental à pesquisa
histórica. Desde o período colonial nas Américas, viajantes de todas as partes do mundo,
especialmente da Europa, têm visitado e escrito sobre essa região. Vindos por curiosidade ou
a negócios, ou ainda como artistas, piratas, políticos, cientistas ou missionários, homens e
mulheres escreveram seus relatos e deixaram sua percepção da realidade americana de então
(MINDLIN, 1991). Na posição de estrangeiros, muitas vezes os viajantes conseguiam
perceber aspectos da realidade pouco observados pelos moradores locais. Desta forma, por
ser alguém que é ‘de fora’ e está ali ‘de passagem’, sem intenção de ser aceito pelo grupo e
com o objetivo de relatar a seus conterrâneos o que conseguiu perceber, o viajante torna-se
um observador alerta e privilegiado do grupo visitado” (LEITE, 1997, p.10).
O viajante teve contato com a epidemia de cólera na Argentina e com as
conseqüências sociais e econômicas desse flagelo para ele e para as relações entre o Império
brasileiro e a República argentina.
A viagem de Joshua Slocum começou no princípio do ano de 1886, mais precisamente
em “28 de fevereiro de 1886 que o brigue Aquidneck, carregado de óleo, navegou de Nova
York para Montevidéu” (SLOCUM, 2004, p.17), chegando à capital uruguaia em 5 de maio
do mesmo ano. Após descarregar sua primeira mercadoria de óleo, ajudou a resgatar uma
carga de vinho de um brigue que havia encalhado no interior do Rio da Prata e, depois,
acertou um novo frete de Buenos Aires para o Rio e Janeiro, quando se deparou com a
epidemia de cólera na Argentina.
Descarregado o vinho, acertei o frete para um carregamento de alfafa,
empacotada em fardos, para o Rio. Houve muitas mortes nessa época com
aterradora subtaneidade; logo tomamos conhecimento de que a cólera
estava com os olhos fixos em todos nós e espalhava-se rápido pelo país,
enchendo vilas e cidades de doença e morte. (SLOCUM, 2004, pp.30-31)
Com o aparecimento do terrível flagelo e as medidas drásticas tomadas pelo Brasil, o
marinheiro Joshua Slocum iria, a partir daí, sofrer as conseqüências do fechamento dos portos
brasileiros e as dificuldades com as autoridades diplomáticas. A viagem desse navegador
passaria por grandes dificuldades, com longos períodos de espera e de negligência por parte
dos funcionários dos lazaretos. Em 17 de dezembro de 1886, o navio Aquidneck partiu da
costa argentina para o Rio de Janeiro com uma carga de alfafa, após uma longa espera em
decorrência da presença do cólera na região.
152
Nosso dia de zarpar de Rosário finalmente chegou e, com uma sensação
semelhante à de soltar as amarras, as linhas foram abertas, e o brigue
lançou-se na corrente com carregamento completo a bordo; mas, em vez de
navegar para o Rio, conforme o fretamento, o cônsul brasileiro mandou que
fosse para Ilha Grande, o posto de quarentena do Brasil, a umas 62 milhas a
oeste do Rio, para ser desinfetado e descarregado em quarentena
(SLOCUM, 2004, p.32).
A tripulação do Aquidneck passaria apenas um dia no lazareto da Ilha Grande. Eles
chegaram no dia 7 de janeiro de 1887 e encontraram muitas outras embarcações em situação
semelhante de quarentena. O clima não era tranqüilo no lazareto, como observou Slocum,
pois diversos navios, impacientes com a coibição da quarentena, estavam ‘disparando sinais’
para o navio-guarda” (2004, p.36), por falta de estrutura e de mantimentos e pediam comida e
comunicação com os patrões. Porém, não eram atendidos pelos guardas locais, o que irritava
os capitães das embarcações, incluindo o experiente Joshua Slocum.
A partir do decreto expedido pelo Barão de Mamono dia 8 de janeiro de 1887, que
proibia a entrada de navios procedentes da Argentina, Slocum e sua tripulação teriam que sair
de Ilha Grande e retornar à Argentina, sem conseguir desembarcar a mercadoria consignada e
sem cumprir os objetivos de sua viagem. Sofria as conseqüências, assim, das disputas
políticas e ecomicas entre o Império brasileiro e a República argentina e pagava um alto
custo pelas despesas da viagem e pela mercadoria que não havia conseguido desembarcar.
Diante dessa situação, não restou outra saída para o capitão Slocum seo utilizar-se
de tinta, papel e fina ironia para descrever sua retirada do lazareto brasileiro.
No dia seguinte, 8 de janeiro, os oficiais do porto vieram as em uma
lancha a vapor e nos mandaram partir, dizendo que o porto fora fechado
naquela manhã. “Mas fizemos a viagem”, eu disse: Não importa”, disse o
guarda, “você deve partir imediatamente, ou o navio-guarda vai abrir fogo
contra você”. Para mim, isso foi um tratamento rude e arbitrário. Um raio
em céu azul o poderia ter nos causado maior surpresa ou produzido dano
muito maior ser arruinado nos negócios ou atingido por um relâmpago é
igualmente ruim! [...] Então, apontando algo que parecia uma pistola, Dom
Pedro disse: “Vaya Homem” (vá embora), “ou você vai nos passar a
cólera”. Então tivemos que fazer todo o caminho de volta até Rosário com
aquele carregamento de feno – e de problemas. (SLOCUM, 2004, p.37)
O fato de denominar os funcionários do lazareto brasileiro de “Dom Pedrodefine o
perfil do marinheiro norte-americano. Vindo de um país de longa tradição republicana, tendo
sido a primeira colônia americana a proclamar a independência, Slocum e muitos dos seus
compatriotas manifestavam uma postura de superioridade em relação aos outros povos da
153
América. Essa postura agravava-se ainda mais em um país cujo sistema de governo era a
Monarquia, aliás, a única existente em todo o continente naquele período.
Mais adiante em sua narrativa, no dia 11 de maio de 1887, ele voltou a demonstrar
superioridade em relação aos habitantes locais, quando faz uma troca da tripulação,
substituindo os marinheiros a bordo, a quem ele se refere como ratos”, no momento em que
finalmente consegue desembarcar sua mercadoria no porto do Rio de Janeiro. Afirma Slocum
que a carga foi por fim entregue, e ninguém se indispôs a respeito. Uma troca de ratos
também foi feita: no Rio, aqueles que trouxemos deram lugar a outros das Docas de Dom
Pedro, onde atracamos” (
SLOCUM, 2004, p.47)
.
Como salientou o historiador Luís Cláudio Santos (2004, p.58), “a criação de uma
idéia de identidade entre os Estados Unidos e as nações que se estavam criando ao sul do
continente não era tarefa fácil”. Havia nos discursos e nas posturas de seus deres e dos seus
habitantes, um forte sentimento de superioridade em relação à colonização espanhola e
portuguesa, como no trecho a seguir:
Nem com todos os tratados que possamos fazer, nem com todos os
comissários que possamos mandar, nem com todo o dinheiro que lhes
possamos emprestar, poderemos transformar seus Pueyrredons e seus
Artigas em Adams ou Franklins, ou seus Bolívares em Washingtons.
(Edward Everett, 1821, apud Santos, 2004).
Para além da superioridade, havia no discurso de Slocum um rancor para com as
autoridades diploticas e os funcionários dos diversos portos em que atracou no Rio da
Prata e no Brasil. Não deve ter sido fácil enfrentar o vai-e-vem dos políticos, sofrendo
prejuízos financeiros e se expondo às mais diversas moléstias.
Slocum presenciou ainda a dificuldade das autoridades médicas para combater a
epidemia na Argentina. Nessa época já eram conhecidas as descobertas de Robert Koch em
1883 no Egito sobre o bacilo-vírgula, o vibrião causador da lera-morbo. No entanto, a
permanência das teses miasmáticas de transmissão das doenças ainda vigorava entre os
dicos. Apesar das recentes descobertas, os antigos saberes conviviam com a nova ciência
dos micróbios que se anunciava e permaneceram entre muitos escupios. Daí a utilização
ineficiente das mais diversas medicinas na busca do combate à doença, como percebeu Joshua
Slocum.
Não havia como escapar do veneno ou mantê-lo à distância, a não ser usar
desinfetantes e manter o sistema em ordem, pois ele logo espalhou-se pela
terra e o ar estava cheio dele. Os remédios custavam tão caro que muitos
devem ter perecido sem provar do auxílio medicinal para curar a doença.
154
Ergueu-se um clamor contra farmacêuticos inescrupulosos que estavam
superfaturando suas drogas, mas nada mais foi feito para conter a ganância.
(SLOCUM, 2004, p.31)
Ragucci igualmente descreve as debilidades do sistema médico-sanitário da capital e
das províncias argentinas em que “el Departamento de Higiene recibía dramáticos pedidos de
auxilio por las carencias de la medicina provincial que no avanzaba; faltaban médicos,
hospitales y medicamentos” (1992, p. 62). O balanço final da epidemia foi de
aproximadamente 20.000 timas fatais em toda a República.
Finalmente, numa segunda viagem, o capitão Slocum, sua família e tripulação
puderam retornar ao Rio de Janeiro e entregar sua carga, após uma negociação com o dono da
mercadoria, que ofereceu uma boa recompensa em dinheiro para o cumprimento da “missão”.
O Ministério do Império liberou a entrada de parte dos navios saídos da Argentina para os
portos brasileiros, especificamente aqueles que não estivessem trazendo cargas suscetíveis ao
cólera (como a carne de charque), e a quarentena para as procedências das Repúblicas da
Argentina e Oriental do Uruguai foi reduzida a oito dias, tendo as embarcações e a tripulação
que se sujeitarem às desinfecções na Ilha Grande antes de ancorarem nos portos do Brasil.
Joshua Slocum vivenciou, então, pela segunda vez o lazareto da Ilha Grande e a esperança de
descarregar sua mercadoria na capital do Império.
Por fim, a 9 de abril de 1887, chegaram notícias de que os portos brasileiros
estavam abertos. A cólera muito desaparecera de Santa e Buenos
Aires.
À luz da manhã de 29 de abril, encontramos a entrada para o interior da Ilha
Grande e navegamos para o porto pela segunda vez com aquela carga de
feno. [...] Oito dias de taciturna obscuridade e chuva naquele lugar; a seguir
fumaça de enxofre e fogo despejados sobre nós; e eno fomos considerados
saudáveis o bastante para a prática no Rio, onde chegamos a 11 de maio.
(SLOCUM, 2004, pp.42 e 45)
As incertezas e as quarentenas transtornaram o capitão Slocum. Quando ele finalmente
desembarcou no Rio de Janeiro, desejava passear e descansar com sua família na Corte
imperial, apesar da constante tensão que o navegador viveria daí em diante, fazendo visitas a
diversos pontos na capital do Império, como a Rua do Ouvidor e o Jardim Botânico.
Fiquei nervoso com a questão das quarentenas. Visitei o famoso Jardim
Bonico com minha família e tremi de pavor, temendo que fôssemos
fumigados em alguma parada no caminho. Entretanto, nosso tempo no Rio
foi passado basicamente de forma agradável. (SLOCUM, 2004, p.49)
155
Parte dos obstáculos passados por Joshua Slocum decorreu das medidas adotadas pelo
governo brasileiro para com os produtos e as embarcações vindas do Rio da Prata na época da
epidemia de lera. O capitão Slocum, leitor privilegiado dos periódicos locais, formulou sua
própria tese explicativa para a atitude do Brasil em relação aos platinos. Analisou, mais uma
vez de forma inica, como era, historicamente, as relações entre o Império e as Repúblicas
do Prata. O fechamento dos portos e a crise da produção de charque envolveram diversos
fatores, porém o marinheiro conseguiu mostrar no seu relato que
Aquele decreto da Ilha Grande, na verdade uma manobra potica, trouxe-
nos grandes adversidades, embora a intenção dos brasileiros fosse
meramente uma retaliação contra os vizinhos argentinos por ofensas
passadas; não apenas pelas quarentenas contra as febres do Rio, mas
também por uma tarifa discriminadora sobre o açúcar do Império; uma
combinação de adversidades no comércio mais do que os sensíveis
brasileiros pudessem suportar irritou-os tanto que uma febre de retaliação
eclodiu, chegando a um ardor maior que o de febre marello
148
, e decidiram
dar uma lição exemplar nos primos republicanos. Contudo, o desejo era de
retaliar sem causar uma guerra, o que foi feito. De fato, fechar os portos
como fizeram, no começo da temporada das mais valiosas exportações
argentinas para o Brasil, e com uma desculpa plausível, ou seja, medo de
dor de estômago, encheu os argentinos de tamanha admiração por seus
pares em estragia que na primeira oportunidade proclamaram dois
feriados públicos em honra do ilustre Brasil. Então o caso das diferenças
terminou, para encanto de todos, em fogos e champanhe! (SLOCUM, 2004,
p.39)
O “caso das diferenças” não se encerrou de forma tão repentina, como quis esse
narrador. Ainda no final do ano de 1887, o Império do Brasil iria propor aos governos da
Argentina e do Uruguai a celebração de um congresso sanitário. Desse congresso surgiu um
Regulamento Sanitário, que buscava definir os procedimentos que impedissem medidas
extremas e prejudicassem a economia da região. Buscava-se, então, por meio de congressos,
tratados e regulamentos de comum acordo entre os países, r fim aos conflitos que deram
origem a tantos transtornos e adversidades, como os relatados pelo capitão norte-americano
Joshua Slocum, que é o que se analisará a partir daqui.
4.3 A CONVENÇÃO SANITÁRIA INTERNACIONAL DE 1887: ANTECEDENTES
148
Febre amarela estava grafada dessa maneira no original (Nota da Tradutora).
156
Anteriormente ao congresso sanitário que reuniu autoridades brasileiras, uruguaias e
argentinas, ocorreu uma reunião entre os representantes da Argentina e do Uruguai em
Montevidéu para a discussão de um convênio sanitário entre as duas Repúblicas
149
.
A Argentina se uniu ao Uruguai na confecção de um regulamento sanitário comum
com o objetivo de selar um acordo sobre as medidas preventivas que ambos os países
deveriam tomar em relação aos barcos procedentes de portos infectados. Essa atitude,
iniciativa do governo argentino, decorreu da dura experiência com a última epidemia, em que
os maiores prejudicados foram estas duas Repúblicas, que por serem próximas
geograficamente, deveriam estabelecer medidas semelhantes na prevenção de enfermidades
epidêmicas. Vale recordar que isso ocorreu também no ano de 1872, poucos meses antes da
realização do Congresso Sanitário em Montevidéu, quando os argentinos e uruguaios se
reuniram para firmar um acordo sanitário.
Novamente se evidencia a rivalidade entre o Império do Brasil e a República da
Argentina, pois o interessava aos argentinos a assinatura de acordos com o Brasil. Os
desentendimentos no pós-guerra do Paraguai e, em meados dacada de 1880, a dicil
resolução sobre as fronteiras entre os dois países causaram muitos estragos nas relações
diploticas. Entre as várias questões de fronteira enfrentadas pelo Brasil durante o século
XIX, ainda restavam algumas a serem resolvidas com a república vizinha.
Em 1885, firmou-se em Buenos Aires um tratado que delimitou a área em litígio
150
e
estabeleceu a fronteira internacional entre Santa Catarina e a Província das Missões (Garcia,
2005). Porém, incidentes em torno dessa demarcação de limites durante os anos de 1886 e
1887 levaram o Parlamento brasileiro a considerar a possibilidade de um conflito armado
entre os dois países.
Em 12 de agosto de 1887, diante da tensão criada, o Barão de Cotegipe, ministro dos
Negócios Estrangeiros do Brasil, foi chamado a esclarecer os acontecimentos no plenário do
Senado. De acordo com ele, os pontos alegados como foco de tensão e a respectiva
interpretação foram os seguintes, na visão de Amado Cervo (1981, p.131):
1) As medidas tomadas pelo Brasil, no campo da saúde, para evitar a
importação de epidemia platina, proibindo a do charque, provocou dois
149
AHI/RJ, Corresponncias do Consulado do Brasil em Montevidéu para o Ministro dos Negócios
Estrangeiros do Brasil, 1887; Correspondências da Legação do Brasil em Buenos Aires para o Ministro dos
Negócios Estrangeiros do Brasil, 1887.
150
Dez anos depois, em 1895, ocorre uma arbitragem sobre essa mesma questão da fronteira entre a Argentina e
o Brasil, com interferência direta do Barão do Rio Branco. OS EUA deram ganho de causa ao Brasil, que em
1898 assinou novo tratado de limites com a Argentina, e completou o estabelecimento da linha divisória na
região. Ver Garcia, 2005.
157
efeitos: a irritação na Argentina e no Uruguai, porque prejudicou seu
comércio e uma troca de notas que necessariamente a refletem. Para esses
atritos existe a diplomacia, que fornece razões e esfria paixões: seu êxito
nesse ponto é certo
151
.
2) A questão dos limites: a convenção celebrada recentemente, bem como
os trabalhos em curso das comissões de demarcação, em perfeita sintonia
entre as partes, fornecem a prova de que a solução virá “por meio de
negociações e não pelos da violência”. O mais que se disser, não vai além
da emoção ou da especulação infundada.
3) O propalado armamentismo. Tem no estado precário das armas e do
exército sua medida, explicação e razão de ser. Inútil procurar aí “intenção
de ataque contra qualquer dos vizinhos”. Do contrário, como o Brasil
também necessita reorganizar suas forças, a Argentina teria o direito de
interpretar isso como hostilidade.
4) Os sintomas da imprensa. Ela se ocupa muito com as relações exteriores,
especialmente com o Brasil. O governo argentino não é responsável nem
pode controlar sua propensão crítica. que se lamentar que a imprensa
brasileira não seja tão patrtica a atuante, contribuindo para esclarecer,
aconselhar o governo e manter a paz.
5) A manifestação do Clube Militar, declarando inevitável a guerra com a
Argentina. Deveu-se a uma carta do barão de Capanema (presidente da
comissão brasileira de demarcação dos limites) baseada em rumores da
imprensa Argentina, que depois se revelaram sem fundamento.
6) A ambição de reconstituir o antigo vice-reinado do Prata. A idéia
efetivamente tem curso na Argentina, mas talvez esteja fluindo mais
livremente no Brasil. Em contrapartida, se propala a intenção brasileira
de anexar o Uruguai.
Diversas questões, portanto, envolviam as relações internacionais entre o Brasil e a
Argentina, as duas nações mais importantes da América do Sul no século XIX. Efetivamente,
o ocorreu nenhum conflito bélico nesse período e, como destacou Cervo (1981, p.132),
fechou-se de forma civilizada um ciclo de tensão que caracterizou as relações bilaterais entre
Brasil e Argentina, no final do Império. Mais adiante, o Barão de Cotegipe foi, novamente,
uma figura importante nas negociações da Convenção Sanitária, investindo num projeto
pacífico e diplomático com os países vizinhos.
Enquanto o Império brasileiro não era convidado a participar desse acordo, argentinos
e uruguaios discutiam a instituição, em conjunto, de métodos para evitar a chegada de
doenças através dos portos. Os argentinos propunham a substituição das quarentenas de
observação em terra pela desinfecção praticada a bordo durante a viagem, o que causou muita
polêmica e discussão, especialmente na imprensa uruguaia, que discordava da supressão das
quarentenas.
151
Esse discurso foi proferido em 12 de agosto de 1887, antes do início da Convenção Sanitária em novembro de
1887.
158
A concepção teórica que norteou as autoridades sanitárias argentinas na execução
dessas mudanças foi o pasteurianismo. Contrariamente ao Brasil, a Argentina considerava
seus problemas sanitários semelhantes aos da Europa, pela semelhança do clima, e culpava o
Brasil pelos surtos epidêmicos sofridos no final do século. Como discutiu Sandra Caponi
(2004, p.434),
A Argentina reproduz fielmente os programas pasteurianos e respeita seus
protocolos de pesquisa. Os pesquisadores argentinos pareciam acreditar que
seus problemas sanitários nada tinham a ver com os trópicos pestilentos, e
que eram idênticos aos problemas europeus, basicamente, redutíveis a
doenças como tuberculose, varíola, sífilis. Acreditavam que seus problemas
sanitários deveriam ser resolvidos pelos mesmos meios utilizados nos
principais centros de pesquisa europeus: reconhecimento dos micróbios
específicos, atenuação para produção de vacinas, saneamento e desinfecção.
Daí as quarentenas serem consideradas ultrapassadas como meio de impedir a entrada
de epidemias. Já que as doenças eram causadas por micróbios, eles é que deveriam ser
atacados e pesquisados.
Essas novas idéias e concepções do governo argentino para o acordo sanitário
assombravam os periódicos uruguaios. Eles alertavam para o fato de que uma modificação no
sistema preventivo daquele país deveria levar em conta a presença do Brasil no acordo, já que
o Império havia fechado seus portos durante muitos meses para o charque do Rio da Prata e
o interessava aos uruguaios um sistema que entrasse em desacordo com os procedimentos
adotados no Brasil, um dos seus maiores mercados consumidores.
Es natural que si en efecto las autoridades sanitarias en Montevideo se han
prestado á sustituir las cuarentenas en tierra por las desinfecciones á bordo,
no se haya olvidado el Gobierno oriental del peligro de que tomando esta
resolución sin contar con el Brasil, surgiera de ella una nueva dificultad
sanitaria en las relaciones comerciales con el Imperio.
152
Paralelamente à negociação do acordo sanitário com a Argentina, o governo uruguaio
enviou para o Brasil em 24 de agosto de 1887, em missão especial, o ministro Carlos Maria
Ramirez para negociar um acordo sanitário com o governo brasileiro. De acordo com o
próprio Carlos Ramirez, havia três objetivos a serem cumpridos
:
Tres objetos tenía mi misión especial: - Demostrar la inocuidad de la carne
tasajo como género susceptible de llevar y trasmitir el rmen colerígeno: -
152
AHI/RJ, Corresponncias do Consulado do Brasil em Montevidéu para o Ministro dos Negócios
Estrangeiros do Brasil, 14/10/1887, Jornal de Montevidéu El Siglo de 13/10/1887.
159
ajustar un convenio sanitario mediante el cual quedásemos á cubierto del
peligro de la clausura de puertos, ó rigores equivalentes en un pais cuyos
mercados son necesarios, hoy por hoy, al desenvolvimiento, a la existencia
misma, de nuestra más importante industria nacional; - y gestionar la
reducción de los derechos de importación de la carne tasajo, promoviendo
al mismo tiempo la celebración de un tratado de comercio.
153
Os dois primeiros objetivos foram alcançados, apesar das disputas poticas e
científicas. No entanto, a tentativa do Uruguai de estabelecer um novo acordo comercial com
o Brasil, que reduzisse as taxas de importação do charque oriental nas praças comerciais
brasileiras, não logrou nenhum resultado concreto.
Junto com o ministro, integrava a missão o farmacêutico José Arechavaleta, com o
intuito de demonstrar que a carne de charque não era transmissora do cólera, e Pedro Saenz de
Zumarán, como secretário do diplomata.
O envio da missão uruguaia especial ao Brasil gerou muita expectativa entre os
orientais, como manifestou o jornal uruguaio El Siglo de que “el más importante de los
asuntos internacionales de esta República es por el momento el que ha motivado la misión
especial del doctor Carlos María Ramirez à la Corte de Río Janeiro, es decir, el de procurar
asegurarnos de que la carne tasajo de este país no volverá a ser excluida de los mercados
brasileros”
154
. O tema da carne de charque mobilizava uma parte significativa da elite
econômica oriental, que dependia da sobrevivência do mercado brasileiro para garantir a
produção e comercialização desse produto.
Em 26 de setembro, após a troca de algumas correspondências com o ministro do
Brasil, o ministro oriental declarou que:
Mi Gobierno [...] quedó favorablemente impresionado por el final de la nota
de V.E. em que apunta como único medio de evitar cuestiones de esta
naturaleza una convención que regule los derechos y los deberes
recíprocos de cada Estado. Participando de idéntica opinión, me ha
autorizado para proponer al Gobierno Imperial la celebración inmediata de
Congreso Sanitario que estudie y formule las clausulas de tan deseado y
necesario acuerdo.
Igual proposición ha sido dirigida á los Gobiernos de la República
Argentina y de la República del Paraguay, cuya concurrencia es
indispensable para hacer eficaz y profícuo el regimen sanitario que debe
imperar en la navegación del Río de la Plata y sus afluentes.
155
153
BNU, Jornal El Siglo, 04/01/1888. O jornal transcreve a correspondência de Carlos Maria Ramirez ao
ministro das relações exteriores do Uruguai, quando do seu retorno do Brasil em 28/12/1887.
154
BNU, Jornal El Siglo, 24/08/1887.
155
Relatório do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Brasil, 1888.
160
A partir daí, iniciavam-se as negociações para um acordo sanitário entre o Império do
Brasil e as Reblicas do Uruguai, Argentina e Paraguai. Fica evidente na documentação
certo ar de imposição do Brasil para com os outros países. De fato, o Império encontrava-se
em uma posição privilegiada, pois uruguaios e argentinos dependiam do Brasil para
comercializarem seu charque, e o país não havia sido atingido pela epidemia de cólera-morbo,
que devastou a Argentina e afetou fortemente o Uruguai.
Travou-se uma disputa inicial para decidir o local de realização do evento. De acordo
com a documentação encontrada, teria sido o representante uruguaio o primeiro a propor ao
Brasil e à Argentina a realização de um congresso sanitário, no entanto o Brasil foi o primeiro
a sugerir o Rio de Janeiro como sede do evento. A diplomacia oriental não aceitou
imediatamente a “imposição” do Rio de Janeiro, com o argumento de que a iia inicial
partira do Uruguai e que Montevidéu seria o local ideal não somente do ponto de vista
geográfico, como também por ter sediado o encontro sanitário de 1873.
De acordo com as correspondências diplomáticas, no início de setembro de 1887, o
Uruguai iniciou o convite aos governos argentino, paraguaio e brasileiro, com a seguinte nota
de Carlos Ramirez, diplomata uruguaio:
La presente comunicación en que se encuentran las Repúblicas del Plata, el
Paraguay y el Imperio del Brasil, con los puertos europeos, que
periódicamente se vén invadidos por el cólera ú otras enfermedades
pestilenciales constituye, sin duda alguna, un peligro inminente para la
salud pública de nuestras poblaciones.
Por otra parte, son notorias las dificultades y los considerables perjuicios
que el comercio y la navegación han sufrido á consecuencia de las medidas
extremas á que ha tenido que recurrirse últimamente para contrarestar la
invasión del flagelo.
En tal situación, el Gobierno Oriental considera indispensable el acuerdo de
estos Gobiernos, para celebrar una Convención Sanitaria en que se concilien
los intereses de la higiene pública, con las conveniencias al comercio y
navegación, teniendo para eso en cuenta, los adelantos de la ciencia
moderna, en cuanto á medidas de preservación que han sido consignados
por distintos Congresos realizados últimamente.
Teniendo presente que en esta Capital se reunió en 1873 un Congreso
Sanitario, con igual objeto, y al cual concurrieran los Gobiernos Argentino
y Brasilero, V.E. el sr. Presidente de la Republica me encarga que, por
intermedio de V.E., someta ese pensamiento a la consideración del
Gobierno Argentino, invitandole para que concurra al referido Congreso
Sanitario, en la esperanza que adherirá al pensamiento y contribuirá á su
realización por medio de sus representantes diplomáticos y de delegados
cnicos, cuyo número se determinará en oportunidad asi como la época de
su instalación.
O governo uruguaio esboçava no convite as mais importantes questões do momento,
quais sejam: a circulação das epidemias, o prejuízo do comércio internacional e o avanço da
161
ciência médica no que se refere à saúde blica, explicitada nos Congressos Sanitários
Internacionais. E, ao final, sugeria a realização do congresso sanitário entre os quatro países.
O diplomata Carlos Ramirez lembrava ainda que, em 1873, Montevidéu havia sediado
o primeiro encontro com a mesma natureza e com análogos fins e que a cidade estava situada
na embocadura do Rio da Prata, ponto intermédio das diversas nações interessadas na questão.
Entretanto, o Brasil argumentava que já havia convidado a Argentina para participar de um
acordo sanitário a ser realizado na capital imperial, o Rio de Janeiro, e que os representantes
do país já haviam aceitado o convite, antes da chegada da proposta do Uruguai.
O ministro das Relações Exteriores do Uruguai, Idelfonso Garcia Lagos, não aceitou
imediatamente a mudança do local. Na troca de correspondência confidencial com o chefe da
missão uruguaia no Brasil, assim se expressava:
nada encuentro que justifique la pretensión del Brasil para designar á Rio
como sitio de las conferencias, ni mucho menos que destruya los
antecedentes sobre la iniciativa que nos corresponde en ese asunto. Pero
como he dicho a V.E. al contestar su confidencial, el Gobierno está tan
vivamente interesado en la realización del Congreso que no ha de eso
punto de discusión, por más que se considere con el derecho para ello. Solo
desea que se activen los trabajos de estudio y experimentos sobre el tasajo,
y se verifique cuanto antes las conferencias que han de dar por resultado la
celebración del Convenio Sanitario, sea en Rio ó en cualquiera de las
Republicas del Plata.
156
O chanceler uruguaio resistia em aceitar a justificativa do ministro brasileiro para que
o evento ocorresse no Rio de Janeiro, e não em Montevidéu. Segundo o Barão de Cotegipe, a
Argentina havia concordado com o local, e esse aceite já era justificável, como argumentou:
sendo urgente o objeto da próxima negociação o Governo Imperial
persuade-se de que o Rio de Janeiro é o lugar mais conveniente para a
reunião dos negociadores. Aqui, mais facilmente e com maior rapidez
poderão eles concluir o ajuste que se tem em vista. Além disso, o Governo
Argentino aceitou a escolha deste lugar, ao mesmo tempo que o referido
convite. Neste ponto, pois, não posso deixar de discordar do Sr. Dr.
Ramirez, a quem reitero as seguranças da minha mais alta consideração.
157
Também em uma correspondência confidencial, Carlos Ramirez respondeu ao seu
ministro, demonstrando incapacidade de modificar o local do Congresso, uma vez que os
uruguaios eram os maiores interessados na realização desse acordo, e a diplomacia imperial
sabia disso:
156
AGNU, Legação do Uruguai no Brasil. Corresponncia do Ministro de Relações Exteriores do Uruguai,
Idelfonso Garcia Lagos, ao Ministro Uruguaio no Brasil, Carlos Maria Ramirez, 17/10/1887.
157
Idem, ibidem.
162
Concuerdo con V.E. en que nada decisivo á no ser la conformidad del
Gobierno Argentino, alegó el Sr. Baron para justificar la designación de Rio
como sitio de las conferencias; pero debo confesar á V.E. que poca
tentación ejerció sobre mi espíritu la idea de obtener ventajas dialécticas en
la discusión de ese punto. Hoy por hoy, somos nosotros los principales
interesados en arribar á un acuerdo sanitario, para modificar la
politica cuarentenaria del Brasil, y este solo hecho basta y sobra para que
el Gobierno Imperial pueda ponernos la ley en todos los preliminares del
Congreso. Seria inconcebible que nosotros sacrificásemos el pensamiento á
una mera cuestión de forma, pero el Brasil, que no tiene apuro en esto, bien
hubiera podido aprovecharse de ella para hacer fracasar la negociación. Yo
me he preocupado ante todo de conjurar ese peligro, y creido como ya lo
he manifestado á V.E., que mostrándonos fáciles y complacientes en los
puntos accesorios podíamos preparar mejor el ánimo de estos señores para
las concesiones de fondo.
158
Vale salientar que a cidade de Montevidéu possuía uma importância estratégica,
política e econômica para a região e que a diplomacia oriental tinha interesse em manter a
capital uruguaia em destaque naquele momento. Oddone chama atenção para esta situação
privilegiada da cidade (2002, p.610):
Para esse país produtor de matérias-primas e de alimentos a importância do
comércio era algo incomum. A localização do porto de Montevidéu no rio
da Prata, e suas vantagens naturais em relação a Buenos Aires e aos portos
do Rio Grande do Sul, converteram-no num centro comercial de primeira
grandeza. Desenvolveu-se como principal ponto de distribuição das
mercadorias européias com destino às províncias argentinas de Entre Rios,
Corrientes e Santa Fé, ao Rio Grande do Sul e mesmo ao Paraguai.
A escolha do local do congresso sanitário, no entanto, extrapolava os limites da
geografia física. Representava a imposição e conquista de um território potico e simbólico, a
partir do domínio dos espaços de produção de normas e legislações em comum, em que o país
que melhor dominasse esse espaço conseguiria persuadir os demais componentes de suas
idéias e opiniões e, por conseguinte, definir sua dominação potica na região.
Foi o que aconteceu com o Império do Brasil, que, se não dominou a situação, ao
menos se ims e marcou sua posição em relação às questões sanitárias discutidas e
acordadas. Vale recordar a dominação exercida pelo Brasil no Uruguai, desde a sua
constituição como Estado nacional em 1828. Mesmo com o fim da Guerra do Paraguai, a
supremacia brasileira no país ainda era considerável. A par disso, o Brasil prevalecia-se da
158
AGNU, Legação do Uruguai no Brasil, Corresponncia confidencial do Ministro Uruguaio no Brasil, Carlos
Maria Ramirez, ao Ministro de Relações Exteriores do Uruguai, Idelfonso Garcia Lagos, 26/10/1887. Grifos
meus.
163
situação de fragilidade ecomica do Uruguai, que dependia do seu mercado para exportar a
carne de charque, e determinou as condões de realização do Congresso Sanitária de 1887.
Como destacou Hugo Suppo (2003, p.08):
Participar dos congressos internacionais faz parte de uma política que
procura aumentar o prestígio dos países participantes. A distribuição
geográfica dos congressos indica a reputação cultural das capitais
organizadoras e o número de participantes por país indica o seu grau de
desenvolvimento científico. Lutas intensas nos bastidores precedem a
escolha do país que se a sede de um organismo internacional e o comitê
local que organiza um evento de caráter internacional se reveste de um
grande poder, que pode servir a objetivos políticos. A vida científica
nacional é também diretamente afetada, criando um novo lugar de
representação e acirrando, freqüentemente, a luta entre as instituições
tradicionais e as novas sociedades científicas, bem como os interesses em
torno da promoção de uma disciplina, corrente ou cientista.
Depois de definido o local, iniciaram-se efetivamente os trabalhos dos representantes
nomeados pelos países. Assim como ocorreu nas reuniões da Convenção Sanitária de 1873,
também esta contou com a presença de autoridades diplomáticas e médicas. Do Brasil, os
delegados foram o Barão de Cotegipe, ministro dos Negócios Estrangeiros, e os médicos
Nuno de Andrade, João Batista de Lacerda e Francisco Marques de Araújo Góes. Do Uruguai,
estavam presentes Carlos Maria Ramirez, enviado extraordinário e ministro plenipotenciário,
o farmacêutico José Arechavaleta e o médico Elias Regules. A delegação argentina contou
com o ministro plenipotenciário Henrique B. Moreno e os médicos JoMaria Astigueta e
Telémaco Susini.
A nomeação dos médicos decorreu, em princípio, de uma tradição já estabelecida nos
diversos congressos sanitários ocorridos na Europa e na América, como se mencionou no
início do capítulo, mas também refletiu o contexto daquele Congresso, em que questões
científicas e econômicas estiveram no centro do debate, como observou o Barão de Cotegipe
na primeira conferência para negociação da convenção sanitária, ocorrida em 20 de outubro
de 1887: discussão e qualquer ajuste sobre medidas sanitárias deviam assentar, como
estava entendido por meio de notas, no juízo de profissionais, sobretudo quanto aos gêneros
que por ventura possam transmitir moléstias epidêmicas, como a carne seca ou charque”.
Esses profissionais a que se refere o ministro eram justamente os médicos, e o tema da carne
como veículo transmissor de cólera ainda não havia sido resolvido, pois, enquanto o governo
uruguaio afirmava a inocuidade do charque, pelas experiências realizadas por um de seus
164
profissionais da saúde, o brasileiro defendia o contrário, segundo o parecer do médico
Lacerda, da Academia Imperial de Medicina.
Os documentos primários não informam os critérios estabelecidos pelas autoridades
políticas para a indicação e nomeação desses médicos. O conhecimento da trajetória pessoal e
profissional pode contribuir para compreender a inserção deles na sociedade da época e
explicar a sua presença no Congresso Sanitário. Um breve levantamento sobre a trajetória de
alguns desses indivíduos mostra que todos eles tinham alguma ligação com seus governos, ora
como ocupantes de cargos públicos, ora como atuantes em instituições científicas
reconhecidas naquele período.
Os cientistas indicados pelo governo uruguaio, o farmacêutico José Arechavaleta
(1838-1912) e o médico Elias Regules (1861-1929), eram professores da Faculdade de
Medicina de Montevidéu. Arechavaleta fez parte do primeiro grupo de catedráticos a ensinar
nessa faculdade. Como positivista e defensor da ciência experimental, criou o primeiro
Laboratório Bacteriológico da Faculdade de Medicina e atuou no campo da higiene blica,
especialmente na epidemia de lera de 1886 (Marcaida, 1994). Figura importante na ciência
uruguaia, trouxe tubos com culturas do bacilo-vírgula (o vibrião do cólera) para que se
realizassem as pesquisas científicas durante o Congresso Sanitário no Rio de Janeiro, em
1887. O médico Elias Regules entrou para a tedra da Faculdade mais tarde e atuou em 1887
como médico de sanidad en la epidemia de cólera. El 10 de octubre del
mismo año es designado con el doctor José Arechavaleta para representar al
Uruguay en el Congreso Sanitario de Rio de Janeiro y en que nuestros
delegados firmaron una importante convención sanitaria. En
reconocimiento de su actuación la "comisión de gratitud a la misión
diplomática ante el imperio del Brasil" le obsequió "una placa de oro",
comemorativa. (BARREIRO, 1989)
Os médicos argentinos José Maria Astigueta e Telemaco Susini (1856-1935),
assemelhando-se aos seus colegas uruguaios, faziam parte do corpo docente da Faculdade de
Medicina de Buenos Aires. Susini destacava-se na cátedra de Bacteriologia, ciência nova
naquele momento, e fundou, no início da década de 1880, o Instituto Bacteriológico. Ambos
também ocuparam o cargo de presidente da Assistência blica na capital argentina. José
Maria Astigueta foi membro da Academia Nacional de Medicina da Argentina, onde
apresentou um trabalho sobre “La epidemia de lera de la província de Salta en el año 1887-
1888 y los medios usados para combatirla”(QUIROGA, 1972). Portanto, eles estavam
envolvidos diretamente com a saúde blica e compunham os quadros poticos do governo
argentino.
165
Pelo lado brasileiro, três médicos foram nomeados para representar o Império,
diferentemente dos seus Estados vizinhos, que nomearam apenas dois profissionais da
medicina. Isso pode ser explicado, em parte, pela distância geográfica, que impediria o envio
de mais dicos para o Rio de Janeiro, porém, do ponto de vista das relações internacionais,
explicita uma potica hegemônica, como classificou Muniz Bandeira (1998), que o Império
buscou executar junto aos países do Prata, desde meados do século XIX. Os acordos e
convenções firmados no final dos Oitocentos comprovam essa assertiva, como afirmam Cervo
e Bueno (1986, p.39)
Quando relaxou, nos meados do século, os tendões que à Europa o ligavam,
pôde o Governo brasileiro desempenhar um papel mais ativo no Continente:
por um lado, buscou implementar uma estragia platina, não ao estilo de
uma política hegemônica embora não se furtasse a demonstrações
imperialistas mas de obstáculo ao surgimento de hegemonias; por outro,
desencadeou ativa política de estreitamento com as nações do Continente,
mediante convênios de amizade, limites, comércio e navegação.
A comissão de médicos nomeada pelo governo brasileiro, além de ter sido composta
por ocupantes de cargos públicos, correspondia a um campo médico em ascensão, a dos
caçadores de micróbios, aqueles que haviam aderido à ciência de Pasteur, contribuindo na
formação do novo ramo da medicina, a Bacteriologia. No entanto, vale ressaltar que muitos
profissionais não aderiram, de imediato, à teoria microbiana.
O médico Francisco Marques de Araújo es, no final da década de 1870 e início da
de 1880, ganhou grande projão profissional. Além do trabalho no Imperial Colégio D.
Pedro II, ele participou das Conferências Populares da Glória
159
, apresentando duas palestras
no ano de 1878 (CARULA, 2007) e engajou-se nas pesquisas sobre febre amarela juntamente
com João Batista de Lacerda entre 1883 e 1886, no Laboratório de Fisiologia do Museu
Nacional
160
. Esses dois médicos trabalharam juntos em diversos experimentos, especialmente
nas pesquisas sobre a febre amarela, e combateram fervorosamente a vacina contra febre
amarela criada por Domingos Freire (BENCHIMOL, 1999). Além deste engajamento, Araújo
Góes tornou-se ainda, em 1885, membro da Academia Imperial de Medicina com uma
memória sobre a febre amarela.
159
As conferências populares da Glória tinham como objetivo a difusão do conhecimento científico na sociedade
em geral, e ocorreram entre 1873 e as primeiras décadas do século XX, no salão de um edifício que estava sendo
construído para sediar uma escola primária da Freguesia da Glória, cedido pelo Governo imperial. Ver Carula
(2007).
160
O Laboratório de Fisiologia Experimental foi criado em 1880, e representou o primeiro instituto desse gênero
que o Estado fundou no Brasil. Tinha como objetivo realizar estudos experimentais sobre veneno de animais,
plantas tóxicas e alimentícias, fisiologia do clima, do café, da erva-mate, do álcool de cana, doenças de animais e
seres humanos e questões relacionadas à higiene. Ver Lopes (1997).
166
João Batista de Lacerda (1846-1915) participou das mais diversas práticas científicas
da época (VERGARA, 2005), foi personagem importante na medicina brasileira do final do
século XIX e tornou-se objeto de estudo de alguns historiadores
161
. Formou-se em Medicina
no Rio de Janeiro, em 1870, seis anos depois (1876) tornou-se funcionário do Museu
Nacional e seu diretor entre 1895 e 1915. A partir de 1880 trabalhou no Laboratório de
Fisiologia, ligado ao Museu. Em 1882, concorreu a uma vaga de professor na Faculdade de
Medicina, mas não foi aprovado. No ano seguinte, tornou-se membro titular da Academia
Imperial de Medicina, que o dispensou das formalidades exigidas pelo Estatuto, tendo sido
ainda presidente desta associação no biênio 1892/1893. A dispensa do exame estava
relacionada à descoberta de Lacerda “de que injeções de permanganato de potássio exerciam
ação eficaz contra os venenos das cobras, anunciada em 1881”, que teve grande repercussão
dentro e fora do Brasil (BENCHIMOL, 1999, p.180).
A descoberta de Batista de Lacerda conferiu-lhe distinções de diversas associações
científicas da França, Portugal, Argentina e Chile, tornando-o membro correspondente de
todas elas. Além de pesquisador, Lacerda publicava na imprensa (comum e médica) diversos
artigos ligados à temática da medicina e aos seus trabalhos. Assim como Batista Lacerda,
Araújo Góes também ocupava as páginas dos jornais para divulgação de suas pesquisas
dicas.
Esses especialistas fizeram parte da primeira geração de médicos no Brasil que se
destacaram na ciência dos micbios e tinham características semelhantes, como apontou
Benchimol: ambos eram cautelosos e detalhistas em suas pesquisas e adaptavam-se bem às
diversas conjunturas. Certamente que esse perfil também contribuiu para que Lacerda e
Araújo es fossem convidados a participar da elaboração da Convenção Sanitária
Internacional no Rio de Janeiro em 1887.
Nuno Ferreira de Andrade (1851-1922), como já se disse, participou da Convenção
Sanitária como Inspetor Geral de Saúde dos Portos, cargo que ocupou entre 1886 e 1889.
Durante sua gestão “foi criado, em 1886, o Lazareto da Ilha Grande, instalado na enseada do
Abrao (Ilha Grande, Rio de Janeiro), para executar o regime quarentenário vigente na
época”
162
. Essa medida foi importante no momento do aparecimento do cólera, pois o país
o possuía lazaretos adequados, e o da Ilha Grande foi o único que ficou aberto para receber
as embarcações vindas do Prata.
161
Ver Benchimol (1999), Almeida (2004) e Vergara (2005).
162
Dicionário Histórico-Biográfico das Ciências da Saúde no Brasil (1832-1930). Verbete Nuno de Andrade.
Dispovel em www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br/
167
Assim como Araújo es, também esteve presente como orador nas Conferências
Populares da Glória e se destacou particularmente quando um grupo de professores e de
alunos da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro ocupou, no final de 1880, o espaço da
Faculdade para expor a precariedade do ensino médico praticado no país. Os temas abordados
por médicos nessas Conferências foram diversos, com destaque para a higiene e a saúde
pública, e a Tribuna da Glória servia ainda para convencer a população letrada da importância
do conhecimento médico científico, como destaca Karoline Carula (2007, p.60):
Temas relacionados às ciências naturais e à medicina foram amplamente
discutidos na tribuna da Glória, onde os detentores do saber médico oficial
tentaram, por meio de seu poder de convencimento, fazer o público aceitar
os preceitos por eles expostos. A opinião esclarecida” vinha nos discursos
dos oradores da tribuna da Glória, que eles, em sua maioria, faziam parte
de uma camada da sociedade especializada em alguma área do
conhecimento.
A ocupação desses espaços proporcionava reconhecimento profissional a esses
dicos na sociedade letrada do Rio de Janeiro, os quais atuavam em diferentes frentes e
ocupavam os melhores lugares na hierarquia social, numa sociedade em que a posição de
cargos estava restrita a uma pequena elite potica ou intelectual.
Tanto era restrito o número de cargos que, na Academia Imperial de Medicina, alguns
acadêmicos questionaram a não-nomeação de João Batista dos Santos, o Barão de Ibituruna,
para a Convenção Sanitária, em função de ser ele Inspetor Geral de Higiene naquele período,
e a nomeação de Nuno de Andrade por exercer o cargo de Inspetor Geral de Saúde dos Portos,
pois afinal ambos os inspetores faziam parte de uma mesma estrutura burocrática, criada com
a reforma de 1886.
Na sessão de 20 de novembro de 1887 da Academia Imperial de Medicina, ocorreu
intensa discussão, quando Costa Ferraz questionou a ausência do Inspetor de Higiene na
comissão. Araújo es buscou justificar a sua presença afirmando que “a Inspetoria Geral de
Higiene nada tem que ver com as relações internacionais” e que ele se fazia presente no
congresso “porque já havia feito parte de um congresso igual, realizado em Montevidéu, em
1873”
163
. De fato, Araújo es foi o único médico dos três países a participar dos dois
congressos sanitários, realizados respectivamente em 1873 e 1887
164
. Havia ali concorrência
163
BANM, Boletim da Academia Imperial de Medicina do Rio de Janeiro, n.10, anno III, Sessão ordinária em
29/11/1887. Arquivo da Academia Nacional de Medicina, RJ.
168
explícita entre os médicos acadêmicos, e a ocupação de cargos fazia parte do processo de
disputa de poder e de reconhecimento dentro e fora da Academia.
4.4. A CONVENÇÃO SANITÁRIA INTERNACIONAL DO RIO DE JANEIRO EM 1887
A partir de setembro de 1887, iniciaram-se efetivamente as negociações diplomáticas
entre os três governos para estabelecimento de uma convenção sanitária. O governo imperial,
representado pelo Barão de Cotegipe, convidou as Repúblicas da Argentina e Oriental do
Uruguai, por meio de correspondências e reuniões com representantes dessas Repúblicas na
Corte imperial. Na primeira reunião de trabalho, o Barão de Cotegipe afirmou que
a mesma conferência era destinada a estabelecer de comum acordo os
preliminares da negociação de um ajuste sanitário, a que possa
oportunamente aderir o Governo Paraguaio, que, pela distância em que se
acha e pela urgência da matéria não pôde ser convidado pelo do Brasil a se
fazer representar.
No entanto, no início das negociações da Convenção, quando o Uruguai manifestou
interesse em realizar o congresso em Montevidéu, a legação uruguaia em Assuão havia
feito convite formal para que o Paraguai participasse do evento, juntamente com o Brasil e a
Argentina, conforme correspondência enviada aos três governos datada de 5 de setembro de
1887. No dia 30 desse mesmo mês, as autoridades paraguaias responderam ao convite:
Pidiendo disculpas á V.S. por no haber contestado la primera nota
inmediatamente á causa del recargo de ocupaciones, me permito
comunicarle que el Gobierno de la República acepta gustoso la invitación
del Gobierno Uruguayo y que autorizará debidamente á su Ministro en
Montevideo para que lo represente en el Congreso que debe resolver las
bases de la Convención.
165
Pouco tempo depois com a mudança do local do evento, de Montevidéu para o Rio de
Janeiro, conforme se discutiu anteriormente, o Paraguai acabou não sendo convidado para
participar do Congresso Sanitário na Corte imperial. As autoridades uruguaias ficaram em
uma situação delicada e trataram logo de desfazer qualquer desentendimento com os
paraguaios, informando ao seu representante no Brasil, Carlos Maria Ramirez, o que havia
ocorrido: “Respecto al Paraguay debo manifestar que fue nombrado para asistir ao Congreso
en el concepto de que se celebraria en esta ciudad el Sr. Ministro Juan Jose Briyiela, quien
165
Memória do Ministério de Relações Exteriores do Uruguai. Montevidéu: Tip. E Litografia Oriental, 1888.
Correspondência do Ministério de Relações Exteriores do Paraguai, Sr. Benjamin Aceval, à Legação do Uruguai
no Paraguai, Sr. Ricardo Garcia, em 30/09/1887.
169
hize presente que su Gobierno no enviara delegados al Congreso en Rio porque no estaba
habilitado para ello
166
.
A não-participação do Paraguai e a ausência do convite por parte do Brasil ainda eram,
em parte, reflexo do final da guerra, em 1870. Este país ficou desorganizado econômica e
politicamente durante alguns anos. Do ponto de vista da diplomacia brasileira, convidar o
Paraguai significava relembrar a guerra, assunto que a Monarquia não desejava se envolver,
quer pelos prejuízos ocorridos, quer pelas idéias de republicanismo que começaram a circular
no país na década de 1870. Era um tema tão delicado da política externa brasileira, que, em
1886, quando os parlamentares tentavam pressionar o Brasil para que cobrasse as dívidas de
Guerra do Paraguai, receberam uma negativa do governo, pelas razões destacadas por Cervo e
Bueno (2002, p.132):
Liderado pelo senador riograndense Henrique Francisco d’Ávila, um radical
de linha dura, apologista da guerra necessária, pequeno grupo parlamentar
reivindicava do governo medidas enérgicas de cobrança, a exemplo dos
procedimentos ingleses no Egito. A esse grupo respondeu em 1886 o
ministro de Estrangeiros, barão de Cotegipe, que interpretava a maioria nas
duas Casas do Parlamento: ‘Deus me livre de que eu me vá embarcar
naquele Egito’. o convinha, segundo o governo brasileiro, insistir na
cobrança das dívidas paraguaias, ante a absoluta falta de recursos, ante a
necessidade de manter boas relações com aquele Estado e ante a disposição
de não recorrer a qualquer tipo de ação coercitiva.
Portanto, parecia vantajoso ao Brasil manter o Paraguai distante dos acordos firmados
com a antiga Tríplice Aliança. Junte-se a isso, o fato de que o governo paraguaio ainda não
havia conseguido se reorganizar administrativamente.
O Congresso Sanitário foi organizado diferentemente do primeiro, pois se formaram
duas comissões: uma técnica, composta pelos médicos, e outra potico-diplomática, formada
pelos ministros dos três governos. Essas duas comissões trabalharam de maneira
independente, ou seja, a comissão técnica elaborava as propostas para o regulamento sanitário
internacional, e os ministros avaliavam, sugeriam modificações e, ao final, aprovavam o
trabalho.
Essa mudança não foi apenas na forma, mas no conteúdo das discussões. Enquanto no
Congresso Sanitário de Montevidéu, em 1873, médicos e diplomatas debatiam conjuntamente
as questões relativas à saúde dos portos, quarentenas e lazaretos, causando problemas e
difíceis debates, neste os assuntos ligados à medicina e à saúde foram delegados aos
166
AGNU, Legação do Uruguai no Brasil (1887). Correspondência do Ministro de Relações Exteriores do
Uruguai ao Ministro Uruguaio no Brasil, Carlos Maria Ramirez. 27/10/1887.
170
profissionais da área, que haviam sido convocados para cumprir a missão de elaborar um
Convênio Sanitário para os três países. Essa motivação de não interferir no trabalho dos
dicos ficou clara com o pronunciamento do Barão de Cotegipe na abertura do Congresso,
no dia 1º de novembro de 1887:
Declarando instalado o Congresso, disse que como estava assentado, ele
escolheria a sua mesa entre os seus membros; que se reuniria para os
trabalhos em uma das salas da Secretaria de Estado dos Negócios
Estrangeiros nos dias e horas que lhe conviessem, remetendo com o projeto
de convenção um resumo das discussões, e que a estas podeo os
Plenipotenciários assistir, juntos ou cada um de per si, sem contudo tomar
parte nelas.
167
Ficava explícito, portanto, que os diplomatas não poderiam emitir opinião nas reuniões
dos médicos, e vice-versa. Além disso, o Congresso precisava resolver um impasse criado
pelo governo brasileiro quando emitiu o Aviso de 13 de novembro de 1886, proibindo a
importação do charque platino nos portos do Imrio. Foi formada uma comissão de dicos
do Brasil e do Uruguai, para pesquisar se a carne era ou não veículo transmissor do cólera-
morbo. Na verdade, a maior motivação para a organização do Congresso, foi, sem vida, o
bloqueio do Brasil ao charque proveniente do Prata, decisão que tanto prejudicou a economia
da região.
Na década de 1880, importantes transformações no ensino médico e na própria
medicina marcariam os rumos que os profissionais iriam tomar a partir de então. Um dos
marcos foi a Reforma Sabóia, ocorrida na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1884,
que modificou as condições materiais de ensino, com a crião de onze laboratórios e de
novos cursos de clínica. Como destacou Flávio Edler (1992), as mudanças no ensino médico
o se devem unicamente à figura do seu diretor, Vicente Sabóia, entre 1880 e 1889, mas ao
periodismo médico atuante na Corte e às Conferências Populares da Glória, onde várias
lideranças médicas se engajaram e se utilizaram da tribuna para denunciar as péssimas
condições das faculdades de medicina do país.
Vistas do plano imediatamente político, as reformas do ensino médico no
limiar da última década do Império decorrem como o resultado mais
próximo das ações corporativas das elites médicas, iniciadas na década de
1870, visando persuadir os poucos personagens que participavam do jogo
político sobre seu conteúdo utilitário. Revelam, ao mesmo tempo, que
tornara-se factível a unificação dos interesses corporativos. A redução
drástica do campo de incertezas que a então pairava sobre os fundamentos
167
Relatório do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Brasil do ano de 1887, Anexos, protocolo da segunda
conferência, n.37, 01/11/1887.
171
práticos e teóricos da medicina possibilitou maior eficácia na ação
corporativa em torno de uma agenda de reformas nas instituições dicas
em que a pedra de toque era a questão da formação profissional. (p.230)
Portanto, as mudanças no ensino, aliadas às descobertas científicas, que deram à
medicina um status de conhecimento confiável, formaram a base para que as lideranças
dicas conquistassem maior prestígio e espaço na agenda governamental e a definitiva
legitimação do saber técnico-profissional. Isso se reflete diretamente no Congresso Sanitário
Internacional do Rio de Janeiro, onde os médicos tiveram destaque e puderam impor seus
conhecimentos científicos.
Do ponto de vista cronológico, as autoridades diplomáticas tiveram seis encontros,
denominados Conferências para a negocião de uma convenção sanitária entre o Brasil, as
Repúblicas Argentina e Oriental do Uruguai e eventualmente a do Paraguai”, ocorridos na
casa da Secretaria dos Negócios Estrangeiros do Brasil no Rio de Janeiro, nos dias 20 de
outubro e 1º, 21, 24, 25 e 26 de novembro de 1887
168
. Os médicos, de acordo com as atas
apresentadas, tiveram reuniões da Comissão Técnica do Congresso Sanitário Internacional”
nos dias 1º, 05, 07, 09, 10, 17 e 21 de novembro do mesmo ano
169
.
Para os profissionais de saúde em 1887, a comunidade médico-científica do Império
do Brasil e das Repúblicas do Prata sofreu influência das determinações dos congressos
sanitários europeus e, ao mesmo tempo, reelaborou esse legado, adaptando-o à realidade da
região e construindo pametros próprios para a construção de normas da saúde blica
internacional. No próximo capítulo, esse debate será explicitado.
168
Relatório do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Brasil do ano de 1887.
169
AHI/RJ, Congresso Internacional Sanitário de 1887, 273/2/25.
172
CAPÍTULO V “PESQUISADORES DE UMA VERDADE EXPERIMENTAL AINDA
NÃO COMPROVADA”
170
: A CIÊNCIA MÉDICA NA CONVENÇÃO DE 1887
Trataremos agora das discussões travadas entre os profissionais de saúde participantes
do Congresso Sanitário de 1887. As autoridades diploticas detiveram-se nas questões
administrativas e burocráticas da regulamentação e implementação da legislação a ser
aprovada.
A primeira missão da Comissão Técnica foi a leitura da Convenção Sanitária de 1873
celebrada em Montevidéu. Esta primeira Convenção foi recordada durante todo o período de
negociação entre os governos, e a primeira conferência deixava claro que era dever dos
dicos “recebidas as suas instruções, e tomando por base para a questão geral a convenção
sanitária firmada em Montevidéu a 29 de julho de 1873, dar com a brevidade possível o
parecer”
171
.
O objetivo era, em primeiro lugar, apontar para a importância da primeira tentativa de
acordo sanitário entre os três países, especialmente por parte do governo brasileiro, que se
recusou em participar do Congresso Sanitário realizado em Montevidéu em 1887. A
diplomacia brasileira evitava confrontos diretos e, na medida do possível, negociava soluções
que agradassem aos outros países, em especial ao Uruguai, antigo parceiro comercial do
Império. Buscou-se não menosprezar o primeiro acordo, que, apesar de não ter sido ratificado,
foi assinado pelos representantes presentes de cada governo. Em segundo lugar, estava ali um
dico que havia participado da convenção de 1873, Francisco Marques de Araújo Góes, que
colaborou com a redação do primeiro documento e que poderia sugerir permanências e
mudanças no Convênio sanitário.
A comissão médica, após a leitura e análise da convenção, que o foi ratificada,
concluiu que ela já estava ultrapassada e que não era recomendável tê-la como modelo para a
atual Conferência, em função dos progressos da profilaxia internacional, pois “a Convenção
de Montevidéu representa conseguintemente, uma tentativa esforçada, mas já envelhecida”
172
.
Como exemplo desses progressos, a comissão apontava os Congressos Sanitários ocorridos na
Europa e nos Estados Unidos, mostrando-se bastante informada sobre o assunto, o que
170
AHI/RJ, Ofício de Nuno de Andrade, presidente da Comissão Técnica do Congresso Internacional Sanitário
entre Brasil, Uruguai e Argentina, ao barão de Cotegipe em 25/11/1887.
171
Relatório do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Brasil do ano de 1887, Anexos, protocolo da segunda
conferência, n.37, 01/11/1887.
172
Idem, Anexos, protocolo da Terceira Conferência, n.38, 21/11/1887.
173
confirma a tese de que os Congressos de Montevidéu e do Rio de Janeiro integravam-se ao
circuito das Conferências Sanitárias Internacionais iniciadas em 1851, na capital da França:
pareceu à Comissão técnica, que as Conferências de Viena, em 1876, de
Washington, em 1881, de Roma, em 1885, de Antuérpia, ainda em 1885 e
finalmente o recente Congresso de Havre, em 1887, tinham inovado muito
em matéria de higiene administrativa e de organização quarentenária; sendo
aproveitável, portanto, para a elaboração científica do Convênio, que os três
Governos sul-americanos projetam, a pia riquíssima e ilustrativa de
preceitos e arestos que as referidas Conferências estabeleceram e
firmaram.
173
No final do século XIX não era mais possível às comunidades médicas, com a grande
produção e circulação de conhecimento, manter-se no isolamento. Como chama atenção Ilana
Lowy, a sobrevincia da produção científica ocidental estaria garantida, em grande medida,
com a sua padronização e internacionalização:
O movimento pela internacionalização da ciência desenvolveu-se por volta
de 1880 em reação à fragmentação e à atomização da atividade científica
consecutivas à potencial ascensão dos nacionalismos no século XIX. [...] O
século XIX viu se desenvolver uma tensão permanente entre os
particularismos nacionais e o universalismo científico alimentado por
tradições profissionais e considerações ideológicas. O movimento de
internacionalismo científico tentou trazer respostas a tais tensões, centrando
seus esforços na unificação das nomenclaturas científicas e na concentração
das bibliografias, destinadas a criar uma língua universal da ciência. Antes
de tudo um movimento de idéias, ele tentou criar de cima para baixo uma
ciência internacional unificada. Animado por estudiosos militantes,
prosélitos e verdadeiros profissionais” do internacionalismo científico,
esse movimento de universalização da ciência desenvolveu-se
principalmente por meio da organização de congressos, de grupos de
trabalho, e dos esforços que visavam a melhorar a circulação da informação
científica. (2006, p.32)
É preciso explicitar aqui que, apesar da inspiração em modelos europeus, como o
próprio ensino nas faculdades, que era, na sua quase totalidade, seguido do modelo francês, e
as reformas nesse ensino, que também tiveram influência direta da Europa, os dicos
brasileiros preocupavam-se com os temas nacionais e/ou regionais, adaptavam os
conhecimentos adquiridos nos livros europeus à realidade local e formulavam suas teorias
para explicar o surgimento das doenças e os mecanismos de cura. Havia, segundo Carrera
(2006, p.32), um projeto político dos médicos, que aspiravam à esfera pública,
Embora a inspiração para tais mudanças fosse buscada na Europa, o novo
modelo teria necessariamente que se ocupar de temas nacionais. A
preocupação de incluir o estudo dos problemas locais na reforma revela a
173
Idem, Ibidem.
174
preteno dos esculápios de participar das decisões governamentais. Aqui se
esboça a concepção da elaboração de políticas públicas como algo
eminentemente técnico, descolado da esfera das paixões partidárias e
ideológicas. Assim essas políticas deveriam ser pensadas e executadas por
cientistas, pessoas obrigadas, por sua profissão, a estarem acima dessas
paixões. (p.32)
Na prática, os médicos estavam envolvidos, do ponto de vista partidário e ideológico,
quer seja com o governo, quer seja com determinadas teorias médicas, que centravam sua
preocupação na higiene e na saúde blica. O que eles almejavam era a garantia da sua
participação nas instâncias de poder, o que de certa forma foi sendo conquistada, como foi o
caso dos médicos que participaram deste Congresso sanitário.
Em conjunto com o projeto de internacionalização da ciência médica, as reformas
urbanas ocorridas no final do século XIX e no início do século XX evidenciaram o aumento
da participação dos médicos, cujo projeto de “civilização nos trópicos” incluía o controle das
doenças a partir da higiene urbana. As capitais do Brasil, do Uruguai e da Argentina sofreram
mudanças importantes para atender aos anseios das elites em se engajar no modelo
civilizatório ocidental, de melhoramento das condições de vida das sociedades. Em relação ao
Brasil:
A urbanização, através do crescimento descontrolado da cidade, poluindo e
prejudicando o fluxo do ar, recebeu atenção especial. As construções mal-
elaboradas, os pântanos, os córregos sujos e tortuosos, a qualidade da
alimentação, os cemitérios e sepultamentos, enfim, tudo o que pudesse
favorecer a propagação das doenças tornou-se objeto da ação
transformadora da medicina. Para alcançar esses objetivos, o Rio de Janeiro
[...] recebeu benfeitorias públicas, sendo alvo de ações saneadoras,
incorporadas daí em diante ao repertório das ações sanitárias no país,
utilizadas no correr do século XIX e permanecendo em parte no período
republicano. (TELAROLLI, 1996, p.93)
No caso da Argentina, igualmente grandes reformas modernizaram a capital portenha nas
duas últimas décadas do século XIX e houve o engajamento definitivo dos médicos
higienistas na missão de civilizar o país através do saneamento das cidades:
El gobierno nacional y la municipalidad se hicieron cargo del saneamiento
de la ciudad financiando las grandes obras de extracción de agua, de
cloacas, de pavimentación y de vías públicas. Crearon una administración
de la salud, el Departamento Nacional de Higiene (1880) y la Asistencia
Pública (1883), para administrar los hospitales, los dispensarios, los asilos
nocturnos y para controlar las medidas de desinfección, de aislamiento, de
inspección de los domicilios y de vacunación (ALVAREZ, 1999).
175
A discussão sobre a imparcialidade e a autonomia dos médicos nos assuntos ligados à
saúde blica nesse final do século XIX permite perceber que o campo da medicina ainda
estava se consolidando e que a ciência médica se apoiava nas decisões poticas, fazendo uso
das instâncias de poder para afirmar determinados saberes. Por outro lado, como comprovou
Saldaña (2000, p.22) “a potica estatal foi definitiva na organização e promoção da atividade
científica e, reciprocamente, que a ciência foi um fator de legitimação do Estado nacional”.
Sem a presença dos Estados, a medicina o teria se constituído como um campo de produção
de conhecimento no século XIX.
Como um campo em construção, os médicos buscavam, também, o monopólio da
autoridade científica. Esses doutores não eram apenas reconhecidos pela competência em suas
pesquisas e em suas áreas de atuação, alinhavam-se a um projeto que saiu vitorioso no final
dos Oitocentos: o da medicina experimental e microbiana.
Quando ocorreu a proibição da importação do charque, como foi explicitado, foi uma
medida mais potica do que sanitária, e ainda assim os médicos ficaram favoráveis à decisão
do governo brasileiro, até que houvesse a realização da pesquisa de laboratório, que
comprovou a inexistência de riscos da carne platina de transmitir o germe colérico. Vale
destacar que os critérios de escolha desses médicos para a composição do Congresso Sanitário
foram, majoritariamente, meritocráticos, como afirma Flávio Edler. Apesar de tros da
sociedade clientelista senhorial imperial, como o apadrinhamento de cargos públicos ter
perdurado entre os médicos, eles buscavam estabelecer sua credibilidade em suas capacidades
técnica e científica. Isto porque, segundo Edler (2001, p.118-119),
os debates científicos no interior do campo médico eram baseados não no
status social, ou na honra, medida pela inscrição dos dicos na ordem
senhorial, e sim no pertencimento a uma corporação científica. Portanto,
não era a titularidade nobiliárquica que credenciava a opinião ou
testemunho, mas sim a habilidade em atuar de acordo com as regras
científicas consagradas nesse microcosmo.
Os médicos João Batista de Lacerda, Nuno de Andrade e Araújo es haviam
mostrado suas competências nos espaços institucionais mais importantes, como a Academia e
a Faculdade de Medicina. Batista de Lacerda e Araújo es tinham larga experiência em
laboratórios em suas pesquisas sobre febre amarela no Museu Nacional, enquanto Nuno de
Andrade lecionava na Faculdade e publicou diversos artigos em periódicos dicos, além de
176
ter ocupado cargos na burocracia imperial, como o de Inspetor de Saúde dos Portos e de
conselheiro do Imperador D. Pedro II (1886).
José Maria Astigueta e Telémaco Susini fizeram parte de uma geração na Argentina
que modificou a organização sanitária e legitimou a participação dos médicos nas estruturas
de poder, demonstrando suas competências na administração de órgãos públicos como o
Departamento Nacional de Higiene (1880). Houve uma mudança no perfil do profissional
dico argentino, daquele engajado politicamente da década de 1870 para um novo modelo
de médico higienista a partir de 1880, mais profissionalizado” e afinado com a produção e
difusão médica-científica. Como destaca Alvarez (1999), a figura do profissional médico
higienista “fue cobrando cuerpo y ganando terreno donde antes no estaba, ya que los objetivos
de los higienistas en este terreno tenían que ver, fundamentalmente, con la jerarquización de
la profesión médica, con el liderazgo médico en el campo del progreso social”. Possuíam,
portanto, habilidades para atuar no campo das reformas sanitárias internacionais.
A primeira questão discutida nas reuniões da Comissão técnica foi sobre as
quarentenas, como o que ocorreu também no Congresso de 1873. O tema era importante
porque representava a busca do equilíbrio entre interesses econômicos e os da saúde pública,
como já apontado anteriormente. Na década de 1880, com a descoberta dos micróbios, o
enfoque era o de sanear as cidades e menosprezar as antigas práticas de isolamento, que para
muitos, não tinham nenhuma eficácia comprovada cientificamente. Segundo Nuno de
Andrade, a comissão se posicionou favorável à manutenção da quarentena pelos seguintes
motivos:
Nenhuma divergência, nem o mais leve reparo, suscitou a questão dos
lazaretos, porque pareceu à Comissão que o lema moderssimo de que tais
estabelecimentos para nada servem e a melhor profilaxia é
l’assainissement du pays jusqu’au fond du dernier hameau, na frase
enfática de Berval, retrata, no primeiro caso, um vício radical de observação
e de lógica, por inferir-se a inutilidade dos lazaretos, em absoluto, da
ssima organização de alguns deles; e, no segundo caso, exprime uma
aspiração ideal, generosa sem dúvida, mas de realização remotíssima e
incerta.
Entretanto, entende a Comissão, que nas grandes cogitações dos higienistas
que combatem, à demasia, o regime da quarentena para encarecer as
vantagens, que ninguém aliás contesta, do saneamento das povoações,
germina e frutifica a semente de uma reação que, por excessiva, pode
tornar-se perigosa contra os exageros das quarentenas de outrora.
Não basta, efetivamente, colocar as povoações em estado de receber mal o
rmen rbido que lhe é trazido: mas a segurança pública exige ainda que
se obste, por todos os meios, a introdução de tal germe.
Sanear uma cidade não é o problema único a resolver; porquanto outro, tão
importante como ele, se nos afigura existir no emprego constante e assíduo
177
das providências destinadas a impedir que a salubridade urbana seja
perturbada pela incuro de uma moléstia epidêmica.
Por isso a Comissão técnica propõe a manutenção das quarentenas, em suas
duas formas: a de observação e a de rigor.
Apesar de aceitarem, unanimemente, o estabelecimento de quarentenas, houve
polêmica quanto ao prazo que deveria ser fixado para cada uma das moléstias. A quarta
sessão da Comissão Técnica, ocorrida em 7 de novembro, foi totalmente dedicada a discutir
os períodos de quarentena. Susini, médico argentino, sugeriu uma proposta que foi
unanimemente aceita: “para os efeitos do máximo de incubação a que se refere a Convenção,
e em relação às medidas sanitárias, se consigne os prazos de 8 dias para olera, de 10 para a
febre amarela e de 20 para a peste”.
Araújo es lembrou que este era o prazo estabelecido pelo Regulamento Imperial de
3 de Fevereiro de 1886, referente ao decreto n.9.554, que reorganizou o serviço sanitário do
Império. O Artigo 151 do Regulamento afirmava que “a declaração de infeccionado aplicada
a um porto onde tenham aparecido casos de moléstia pestilencial, tirará a interdição sanitária
dos navios dele procedentes e saídos durante o período, imediatamente anterior à
manifestação do primeiro caso, de 20 dias em relação à peste, 10 em relação à febre amarela e
8 em relação ao cólera” (BARBOSA & RESENDE, 1909, p.671).
No entanto, no dia 10 de novembro, quando ocorreu a sexta sessão, o comissário
brasileiro Araújo Góes apresentou a seguinte proposta para apreciação da Comissão: “Desde o
dia de Maio até 31 de Outubro, as quarentenas para os passageiros procedentes de portos
sujos pela febre amarela, serão de 7 dias, contados do da partida”. Esta proposta representava
a restauração do Artigo do Convênio de Montevidéu de 1873; e apesar de naquela época
tivesse sido aceita, foi rejeitada neste congresso.
Mesmo já tendo sido votado o período de incubação das moléstias, o médico brasileiro
voltava a insistir na questão da quarentena para a febre amarela e numa redução do prazo
quarentenário, o que pareceu à Comissão, em especial aos argentinos e uruguaios, que o
fundamento da proposta não procedia porquanto se julgava necessário o prazo de 10 dias para
determinação do período incubatório máximo da febre amarela, podendo tornar-se perigosa
essa redução da quarentena a sete dias. Araújo es argumentava que naquela época do ano,
nas duas Repúblicas do Prata, havia acentuada diminuição da temperatura, já tendo sido
comprovado que a febre amarela incidia, com maior regularidade, nos meses quentes de verão
e outono. No entanto, os comissários platinos contestaram que a redução da temperatura
178
ambiente o era tão intensa que fosse capaz de impedir a propagação do tifo americano, e
citaram exemplos de manifestação epidêmica dentro do referido período.
Na verdade, o que Araújo es buscava era beneficiar quase exclusivamente o Brasil,
que tinha a febre amarela constantemente presente nos noticiários de óbitos. Essa doença
assolou o país por diversas vezes durante a segunda metade do século até o início do século
XX, e Benchimol (1999, p.286) destaca que os médicos debatiam se “era a febre amarela uma
doença endêmica, “domiciliada” no solo da cidade, ou uma doença importada que se podia
combater pela tríade tradicional da saúde pública: quarentenas, desinfecções e isolamento?”,
tendo as respostas para essas perguntas sido prorrogadas até as primeira cada do século
XX
174
, quando passou-se a aceitar a tese do mosquito transmissor
175
.
A votação sobre o período de quarentena deixava claro o posicionamento dos três
governos. Votaram a favor os Comissários brasileiros Batista Lacerda e Araújo Góes e contra
os quatro comissários platinos, tendo o Presidente declarado abstenção.
5.1. EXPERIÊNCIA CIENTÍFICA COM A CARNE DE CHARQUE:
A temática da carne de charque como transmissora ou não do cólera-morbo foi
também debatida no âmbito do Congresso. Coube à Comissão técnica aprovar o parecer
emitido pelos doutores João Batista de Lacerda, Francisco Marques de Araújo es, Nuno de
Andrade e José Arechavaleta da não transmissibilidade do germe do cólera asiático pela carne
de charque. Esse parecer decorreu de uma série de experiências científicas realizadas no
Laboratório de Fisiologia do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, sendo que esses
acontecimentos antecederam à realização do Congresso Sanitário, devido à urgência das
autoridades diploticas, especialmente as uruguaias, que buscavam defender seu produto
comercial mais importante.
Desde abril de 1887, como foi apontado no capítulo anterior, o professor Jo
Arechavaleta havia realizado pesquisas sobre o charque e indicado a não existência de
174
Mesmo com a descoberta do mosquito transmissor da febre amarela feita pelo médico cubano Carlos Finley,
alguns esculápios brasileiros, como foi o caso de Nuno de Andrade, se mantiveram firmes nas suas antigas
convicções de transmissão da febre amarela pelos germes. Em 1903, Nuno de Andrade expôs em uma série de
artigos publicados no Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) sua posição contrária às novas descobertas em
torno da doença. Vê-se, portanto, o caráter conservador desse médico, que esteve à frente de importantes
instituições de saúde no Império e na nascente república do Brasil. Ver Ilana Lowy (2006).
175
Atualmente, sabe-se que a febre amarela é uma doença infecciosa aguda, febril, de natureza viral, caracteriza-
se clinicamente por manifestações de insuficiência hepática e renal, que pode levar à morte, em cerca de uma
semana. O agente etiológico é o vírus amarílico, um arbovírus pertencente ao gênero Flavivirus, família
Flaviviridae. O mosquito da espécie Aedes aegypti é o principal transmissor da febre amarela urbana.
179
germes coléricos na carne. No entanto, o governo brasileiro não aceitava as conclusões do
cientista uruguaio, o que levou Carlos Ramirez, da legação do Uruguai no Brasil, sugerir a
realização de pesquisas científicas em comum.
Fundado en opiniones y experiencias que le parecen concluyentes, el
Gobierno Oriental entiende que el tasajo por sus condiciones químicas, no
puede absolutamente ser conductor del mencionado flagelo, en tanto que el
Gobierno Imperial, atendiendo al dictamen de alguna de sus corporaciones
científicas, ha creído deber aplicar á ese artículo alimenticio medidas
singularmente rigorosas, como si por su importación se viese la salud
pública expuesta á muy excepcionales peligros.
Esta divergencia, como ya he tenido ocasión de manifestarlo verbalmente á
V.E., da cabe á una solución igualmente aceptable para la buena fe de
ambos Gobiernos. Es sujetar el debate á estudios y experimentos científicos
cuyo resultado trace la norma de los procedimientos futuros.”
176
A partir daí, começaram as negociações para o estabelecimento de uma comissão
científica para estudar o assunto. O governo brasileiro indicou os três médicos que iriam
participar da Convenção Lacerda, Araújo Góes e Nuno de Andrade e o governo uruguaio
indicou José Arechavaleta que vinha acompanhando a temática desde o início, além de ser
um estudioso da microbiologia, o que o capacitava para defender o seu governo.
Los saladeristas, alarmados, se dirigen a Arechavaleta planteándole la
cuestión de si, efectivamente, el tasajo podría vehicular el germen
colerígeno. Bien documentado a través de sus experiencias anteriores,
Arechavaleta inicia otras nuevas, orientadas hacia aquel fin [...]. De ellas
resultó acabadamente que el tasajo no podría transportar el vibrión colérico.
En un informe al Rector de la Universidad a propósito de aquel estudio
aparece la siguiente conclusión que leo textualmente: - Las experiencias
realizadas con el tasajo rociado con caldo conteniendo Bacillus Vírgula en
pleno desenvolvimiento y que perecieron, prueban que en vez de ser un
medio de vida para esos organismos, es, al contrario, uno de muerte.
(PELUFFO, 1989, p.59)
A realização dos experimentos da Comissão técnica ocorreu entre os dias 25 de
outubro e 08 de novembro de 1887 no laboratório de fisiologia do Museu Nacional. O papel
desempenhado pelo laboratório de fisiologia experimental foi fundamental para o andamento
dos acordos relacionados à Convenção Sanitária. Esse laboratório foi fundado em 1880 e teve
como diretores o médico francês Louis Couty (1854-1884) e João Baptista de Lacerda. Na
gestão de Lacerda, a partir de 1886, especialmente com as descobertas de Pasteur, os estudos
sobre as doenças humanas e dos animais passaram a ter crescente atenção dos especialistas do
mundo inteiro, e o laboratório seguiu essa nova orientação e passou a dar ênfase nos “estudos
176
Relatório do Ministério dos Negócios Estrangeiros, 1887, Nota da Legação Oriental no Brasil, o Sr. Carlos
M. Ramirez, ao Governo Imperial, o sr. Barão de Cotegipe, ministro dos negócios estrangeiros, 26/09/1887.
180
dos seres microscópicos e, tendo recomposto seu material técnico, tornou-se também um
laboratório bacteriológico” (LOPES, p.181).
Os cientistas envolvidos na Convenção Sanitária mostravam a familiaridade com os
laboratórios e com a prática da pesquisa científica, quer sejam no Brasil ou no Uruguai, e
ganharam destaque nesse cenário Baptista de Lacerda e José Arechavaleta, ambos fundadores
de laboratórios em seus países, o que dava reconhecimento profissional e social à comissão.
A tradição científica de pesquisa no Brasil não estava localizada nas faculdades de
medicina, cujo modelo educacional o priorizava a pesquisa, cujas aulas eram
eminentemente teóricas, e onde a medicina experimental havia encontrado pouco espaço.
Porém, como alertou Edler (1992, p.165), nas últimas décadas do século XIX, com as
reformas implementadas nas Faculdades de Medicina do Império, elas passaram a ser
tidas, agora, como o local ‘natural’ para o desenvolvimento científico, e não
apenas as sociedades médicas. A luta pela criação de novas cadeiras de
clínicas especiais associada à reivindicação do ensino prático para todas as
outras disciplinas do curso dico, decorrem do novo consenso quanto à
necessidade de se reunir numa mesma instituição as atividades de ensino e
pesquisa.
Mesmo com o desenvolvimento científico nas faculdades de medicina, a pesquisa
científica era mais desenvolvida em outros espaços sociais, como as academias e os museus,
pois de acordo com Vessuri (1994) os museus sul-americanos funcionavam como
instituições de pesquisas e como instrumentos de esclarecimento popular”.
O Museu Nacional, no Rio de Janeiro, funcionou, desde 1818ano de sua fundação
até o final do século XIX, como um órgão consultor governamental para os assuntos de
geologia, mineração e recursos naturais do Império, decorrendo daí a importância do seu
laboratório de análises químicas (LOPES, 2001, p.58). Igualmente a biologia tinha seu espaço
de pesquisa no Museu, e por isso não surpreende que os experimentos para a Convenção
Sanitária de 1887 tenham sido realizados em um dos laboratórios do Museu Nacional.
Apenas no alvorecer do século XX, ocorreu a saída da biologia e de outras ciências
dos museus, no momento em que conseguem a institucionalização das disciplinas, como a
Arqueologia, a Antropologia, a Etnologia e a Paleontologia na América Latina.
Enquanto os museus continuavam a conservar suas coleções protegidas da
influência desastrosa da luz que danificava as cores dos espécimes, novos e
especiais prédios eram construídos para os laboratórios dos microcopistas,
que exigiam enormes janelas para a ampla iluminação (LOPES, 2005,
p.23).
181
Outro espaço de produção científica foi a Academia Imperial de Medicina. Ela,
juntamente com o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, atuou, ao longo do Segundo Reinado,
como um local de debate, produção científica e de reconhecimento entre seus pares. A
Academia do Rio de Janeiro tornou-se uma instituição representante da medicina oficial, ao
lado das Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia. Criada em 1829 como
Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro e convertida em academia em 1835, tinha o papel
de elaborar pareceres sobre a higiene bica e atender às solicitações das autoridades
imperiais, especialmente no caso de epidemias, porém, perdeu paulatinamente essa função
consultiva junto ao Estado em matéria de saúde pública, a partir da criação da Junta Central
de Higiene, que pelo decreto n. 828, de 1851, passou a assumir esse papel, pom igualmente
de maneira vaga e pontual.
De todo modo, a Academia, até o final do período imperial, continuou trabalhando em
diversas comissões de saúde propostas pelo Império, como por exemplo na Convenção
Sanitária entre o Brasil, Argentina e Uruguai, ocorrida em 1887. Para que os debates da
Academia pudessem atingir o público letrado, era publicado um Boletim quinzenal, em que
vinculava-se as notícias e publicava-se as atas das sessões de reuniões dos acadêmicos. Na
sessão de 03 de novembro de 1887
177
, o acadêmico Araújo Góes pediu a palavra para
informar à Academia a sua participação e a de Lacerda no congresso sanitário entre o Brasil e
as Repúblicas da Argentina e do Uruguai, e trazia consigo dois membros estrangeiros para
assistirem à sessão, bem como solicitava aos demais acadêmicos auxílio no sentido de
esclarecer questões relativas ao contágio e tempo de incubação da febre amarela.
A experiência científica realizada pela Comissão foi para se reconhecer se o charque
podia ou não transportar o germe do cólera asiático
178
. De início, evidencia-se aqui, uma
estreita relação entre a ciência e a economia desses países. Porém, falar de influências sócio-
econômicas na produção científica em termos gerais não resolve o problema, como afirmou o
sociólogo Robert Merton. Ao estudar as relações entre a ciência e a economia na Inglaterra do
século XVII, para ele,
A relação entre a ciência e as necessidades sociais é dupla: direta, no
sentido de que algumas pesquisas se realizam premeditada e
deliberadamente para fins utilitários e indireta, na medida em que certos
problemas e materiais para sua solução impõem à atenção dos cientistas,
ainda que estes não necessitem conhecer as conseqüências práticas das
quais nascem. (1970, p.711)
177
BANM, Boletim da Academia Imperial de Medicina, vol. 3, anno 5, 1887-1888. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1888. Arquivo da Academia Nacional de Medicina, RJ.
178
AHI/RJ, Congressos e Conferências Internacionais, vol. 273-2-25.
182
A relação entre economia e ciência é muito próxima. Observou-se neste estudo, por
exemplo, o caso de charqueadores que contrataram cientistas para comprovarem a qualidade
de seus produtos. O que estava em jogo e expunha a grande preocupação das autoridades
diploticas era a comercialização do charque. O interesse dos estancieiros numa solão
para o problema era tão grande que a Associação Rural do Uruguai realizou uma coleta em
dinheiro para presentear com uma casa o farmacêutico JoArechavaleta pelos serviços por
“seus trabalhos científicos”, evidenciando ainda mais essa dupla relação (MORÁS, 2000,
p.121). A diplomacia uruguaia igualmente acompanhou atentamente todos os passos dados
pelo cientista Arechavaleta na resolução do problema. Era de vital interesse a viria do
pensamente do farmacêutico sobre a ciência brasileira.
Todos os experimentos com a carne de charque foram relatados pela Comissão em
nove protocolos e em um parecer conclusivo. O primeiro protocolo inicia-se:
Aos 25 dias do mês de outubro de 1887, presentes no laboratório de
fisiologia experimental do Museu Nacional, os abaixo assinados
comissários técnicos por parte dos respectivos governos, a saber: José
Arechavaleta, da República Oriental do Uruguai; Nuno de Andrade,
Francisco Marques de Araújo Góes e João Baptista de Lacerda, do Império
do Brasil, resolveram iniciar os trabalhos da honrosa comissão de que foram
incumbidos no sentido de averiguar desde e como preliminar de estudos
ulteriores atinentes a questões de administração saniria comuns nos dois
países e a Republica Argentina, quais os gêneros, mercadorias e objetos
capazes de reter e transportar germens contagiosos... Decidiram começar
pelo exame das condições que oferece a carne seca ou charque como
veículo de transporte do rmen vivo do cólera morbus, que na opinião dos
comissários é, até prova em contrário, o bacilo-vírgula de Koch.
Em relação à concepção de ciência defendida por esses médicos, ficou evidente a
adoção dos pressupostos de Robert Koch para a realização das experiências com o cólera,
como mostra o protocolo n. 1 citado, onde os médicos admitem o lera como sendo o
bacilo-rgula descoberto por Koch.
Logo no início da investigação científica, eles realizaram culturas do bacilo do lera
com caldo de carne seca, e concluíram que nos tubos infectados com o bacilo, após pouco
tempo “encontrava-se uma quantidade prodigiosa e microorganismos de formas diferentes,
o existindo porém nenhuma forma semelhante a do bacilo-vírgula de Koch”
179
. No entanto,
para que fosse assegurado o resultado do experimento, a maior parte dos médicos concordava
179
AHI/RJ, Congressos e Conferências Internacionais, vol. 273-2-25, Protocolo n. 6, 04/11/1887.
183
em adotar as mesmas fórmulas que o cientista alemão para comprovar suas pesquisas, como
apontam no protocolo n.6
180
:
Para maior segurança na conclusão, decidiram os comissários fazer culturas
em placa, pelo todo de Koch, semeando o líquido dos tubos acima
mencionados, a fim de ver si entre as colônias que ali se vão desenvolver,
aparece alguma com os caracteres das colônias do bacilo-vírgula.
Mais adiante, no protocolo n.8, os médicos “concluíram que o bacilo-vírgula com o
qual infectaram a carne seca tinha realmente perecido, vindo assim o método de culturas em
placas corroborar a conclusão que já haviam antes chegado pelo simples exame microscópico
das culturas feitas com o tasajo infectado”
181
. Ou seja, através dos métodos mais tradicionais
ou dos mais avançados, a resolução do problema era a mesma: a carne de charque não era
meio de transporte do germe do cólera, o bacilo-vírgula. Vale recordar que foi Arechavaleta
quem trouxe o micróbio do bacilo vírgula de Montevidéu para o Brasil, que a doença o
estava manifestada no Império. Daí que, antes de realizar os experimentos, a comissão deveria
provar a veracidade do germe que seria utilizado na experiência com o charque.
No entanto, permaneceram as teses miasmáticas de transmissão das doenças para
alguns outros médicos. Cabe observar que o bacilo-vírgula de Koch havia sido recém-
descoberto havia cinco anos, sendo um espaço de tempo relativamente curto para que esse
novo saber pudesse ter se consolidado. Outras teorias permaneceram vivas entre muitos
esculápios, corroborando com a tese de Thomas Kuhn (1970, p.39) de que
Quando, pela primeira vez no desenvolvimento de uma ciência da natureza,
um indivíduo ou grupo produz uma síntese capaz de atrair a maioria dos
praticantes de ciência da geração seguinte, as escolas mais antigas começam
a desaparecer gradualmente. Seu desaparecimento é em parte causado pela
conversão de seus adeptos ao novo paradigma. Mas sempre existem alguns
que se aferram a uma ou outra das concepções mais antigas; o
simplesmente excluídos da profissão e seus trabalhos são ignorados.
No caso do Brasil, a teoria microbiana levou tempo para ser definitivamente instalada,
como afirma Benchimol (1996, p.12) de que
entre o momento em que a medicina pasteuriana foi recebida como moda
passageira, para uns, uma escola a ser integrada a nosso cadinho eclético,
para outros, ou, ainda, como doutrina prepotente e ameaçadora, para grande
número de clínicos e higienistas, a o momento em que foi abraçada por
todo o campo médico como seu núcleo de certezas decorreu um processo
180
Idem, ibidem.
181
Idem, Congressos e Conferências Internacionais, vol. 273-2-25. Protocolo n. 8, 06/11/1887.
184
em larga medida protagonizado por um punhado de médicos que se
lançaram à caça de micróbios patogênicos e que assumiram todos os riscos
envolvidos na postulação de teorias longamente debatidas dentro e fora do
país.
As teorias miasmáticas e microbianas ficaram explícitas na discussão sobre formas de
desinfecção nos navios entre os médicos da comissão. O presidente da comissão técnica, o
doutor Nuno de Andrade elogiou a comissão encarregada de fazer os experimentos com o
bacilo do lera na ata n.4 do Congresso Sanitário Internacional do dia 09 de novembro de
1887, e fez uma indicação do uso do “ácido sulfuroso nos casos de cólera-morbo, pois o seu
emprego em uma atmosfera úmida, com formação de gás sulfídrico é de resultado certo”.
O doutor Lacerda, buscando fazer um discurso diplomático, não questionou os
conhecimentos do seu colega e superior naquela comissão, porém afirmou que “concorda com
o sr. Presidente, embora esteja convencido pelos estudos de Koch, que o germe colerígeno
o se encontre no ar”. Mesmo assim, a comissão técnica aprovou o uso do ácido sulfuroso
como desinfetante nas embarcações. Ou seja, miasma e micróbio conviveram juntos por
algum tempo na ciência médica sul-americana.
A conclusão alcançada pelos médicos que participaram dos experimentos com a carne
seca foi a de que as experiências “que parecem assaz concludentes, resolveram declarar, como
efetivamente declaram estar convencidos de que o charque ou tasajo não pode transportar o
germe do lera asiático, isto é o bacilo-vírgula de Koch”
182
. Essas considerações finais da
comissão apaziguaram as relações comerciais entre o Brasil e as Repúblicas da Argentina e do
Uruguai, pois logo em seguida deliberou-se pela reabertura dos portos brasileiros aos
produtos vindos dos países platinos.
A concepção de que os experimentos científicos deveriam estar em primeiro plano, ou
mesmo acima dos interesses comerciais, ficou evidente, de acordo com um observador da
época, o plenipotenciário uruguaio Carlos María Ramirez. Ele, inicialmente, suspeitava da
conduta dos cientistas brasileiros, opinião que foi modificada ao longo dos dias em que
ocorreram os experimentos:
El punto de partida de mi misión puede decirse que es la fe absoluta que nos
inspira la opinión experimental del Señor Arechavaleta sobre la
incompatibilidad del microbio colerígeno y la carne tasajo. Tomando esa
base, el primero escollo que pudimos encontrar era la resistencia del
Gobierno Imperial, bajo un pretexto ú otro, á aceptar la idea de estudios y
experimentos en común. Salvamos ese escollo cuando obtuvimos el
nombramiento de los Drs. Nuno de Andrade, Lacerda y Goes para acometer
la tarea indicada de mancomune con nuestro delegado. Subsistía así mismo
182
AHI/RJ, Congressos e Conferências Internacionais, vol. 273-2-25.
185
otro peligro, y era que los delegados brasileros se presentasen dominados
por un decidido parti-pris espontáneo ó impuesto, en el sentido de negar ó
tergiversar las conclusiones del Sr. Arechavaleta.
Ahora bien, sr. Ministro, estoy persuadido de que los Doctores Nuno de
Andrade, Lacerda y Araujo Goes han entrado a desempeñar su cometido
con la más perfecta buena fe, y hasta podría añadir con muy buena
voluntad. Lo prueba decisivamente el hecho de que el Señor Arechavaleta,
queriendo abundar y sobreabundar en pruebas de su tesis, hizo un programa
minucioso, extensísimo, que el Dr. Nuno de Andrade declaró innecesario,
excesivo, formulando un programa mucho más breve, mucho más sencillo,
mediante cuya ejecución declaró que se podría resolver acabadamente el
problema en cuestión. Sus colegas lo apoyaron, y con más razón nuestro
delegado, que supo apreciar debidamente esa manifestación de deferencia.
Van ya algunos as de experiencias sin ningún contratiempo para la tesis
que nos interesa; los médicos brasileros continúan dando pruebas
inequívocas de que buscan sinceramente la verdad, y depositan gran
confianza en el Señor Arechavaleta.
183
Percebe-se, portanto, que com essa pesquisa científica, os médicos estavam
interligados ao que ocorria em outros laborarios da América Latina e do mundo, formando
uma verdadeira rede. Aqui, pode-se aplicar o conceito de rede apontado por Bruno Latour. De
acordo com esse filósofo, “os produtos de um laboratório são produzidos em outros
laboratórios. As malhas dessa rede muitas vezes são laboratórios, mas podem ser também
escritórios, fábricas, hospitais, gabinetes de advogados de negócios, resincias privadas”
(1997, p.32).
Conforme relata a documentação, os laboratórios de Montevidéu e de Assistência
Pública em Buenos Aires realizaram as mesmas experiências com o mesmo prosito,
chegando à mesma conclusão que o do laboratório do Museu Nacional.
O Comissário uruguaio, porém, declarava, que das experiências a que havia
procedido em Abril do corrente ano, no Laboratório da Faculdade de
Medicina de Montevidéu, se devia concluir que o charque é incapaz de
transportar o bacilo do cólera.
[...]
O Sr. Susini também comunica haver chegado a idênticos resultados,
conforme notícias recebidas do seu ajudante no laboratório da Assistência
Pública de Buenos-Ayres e expõe o processo de pesquisas ali seguido.
184
No mesmo período, em função da gravidade da produção e da comercialização do
charque oriental, o governo uruguaio encomendou uma experiência idêntica ao laboratório de
Koch, em Berlim. Em nota da Legação Oriental ao Governo Imperial, em 16 de novembro de
183
AGNU, Legação do Uruguai no Brasil. Corresponncia confidencial do Ministro Uruguaio no Brasil, Carlos
Maria Ramirez, ao Ministro de Relações Exteriores do Uruguai, 27/10/1887.
184
AHI/RJ, Congressos e Conferências Internacionais, vol. 273-2-25. Ofício de Nuno de Andrade, presidente da
Comissão Técnica, ao barão de Cotegipe com relario e anexos em 25/11/1887.
186
1887, afirma-se que “las conclusiones ya formuladas por aquellos eminentes facultativos
coinciden con las que, tres ó cuatro dias después, han obtenido um asenso definitivo en el más
renombrado laboratório bacteriologico del mundo. Este resultado es verdaderamente lisongero
para los hombres de ciencia de Sud-América”. A questão do reconhecimento da comunidade
científica é fundamental para o entendimento dos personagens envolvidos na Convenção
Sanitária. Como assinala Thomas Kuhn (1970), o êxito de um cientista se mede “pelo
reconhecimento de outros membros de seu grupo profissional”. E a rede estabelecida entre os
laboratórios confirmou o reconhecimento profissional dos cientistas da Convenção.
No entanto, determinou a Comissão técnica da Convenção Sanitária de 1887 que
apenas os resultados atingidos nos experimentos feitos no laboratório do Museu Nacional no
Rio de Janeiro teriam validade. Era uma maneira dos brasileiros justificarem o longo período
de proibição de importação da carne seca imposto aos comerciantes platinos e também, como
afirmou Nuno de Andrade,
A situação dos quatro Comissários, que efetuaram a experiências realizadas
no Laboratório de Fisiologia do Museu Nacional, era a mais tida possível.
Três deles, os brasileiros, estavam convencidos de que as medidas sanirias
adotadas pelo Governo Imperial em relação ao charque de origem platina,
em Novembro de 1886, fundavam-se em uma razão de alta prudência e
tornaram-se justificadas pela ausência absoluta de noções científica
inconcussas sobre a inocuidade do charque, como portador do germe
colerígeno. O Comissário uruguaio, porém, declarava, que das experiências
a que havia procedido em Abril do corrente ano, no Laboratório da
Faculdade de Medicina de Montevidéu, se devia concluir que o charque é
incapaz de transportar o bacilo do cólera. [...] Os Comissários brasileiros e
uruguaios, pois, tiveram de colocar-se na situação de pesquisadores de uma
verdade experimental, ainda não comprovada.
185
Daí que a comissão somente considerou os experimentos realizados no Museu
Nacional, haja vista que ali reuniram-se representantes dos dois países, o que dava às
experiências científicas maior credibilidade, de acordo com Nuno de Andrade, presidente da
comissão.
Obtidas as conclusões experimentais, apressamo-nos em comunicá-las aos
outros membros da comissão técnica, os quais, por unanimidade,
reconheceram, não que as experiências realizadas no Museu Nacional do
Rio de Janeiro são os únicos fatos positivos que os induziram a admitir a
inocuidade do charque como veículo e contágios” mas ainda que antes de
conhecidos os resultados das referidas experiências, foram prudentes as
reservas feitas a respeito da inocuidade aludida e justificadas as
providências sanirias que em tais reservas se basearam.
186
185
Idem, ibidem.
186
Idem, ibidem.
187
5.2. COMISSÃO CIENTÍFICA PARA O ESTUDO DA FEBRE AMARELA:
Durante o início do Congresso Sanitário, em primeiro de novembro de 1887, foram
instituídas duas subcomissões: uma para o estudo da febre amarela, composta pelo brasileiro
Araújo es, pelo argentino Telemaco Susini e por Arechavaleta, farmacêutico uruguaio; e a
segunda para o estudo das matérias suscetíveis e dos desinfetantes, contando com os médicos
Lacerda, brasileiro, e novamente Susini e Arechavaleta.
No entanto, ao contrário da comissão anterior que pesquisou o lera, o relato feito
pelos médicos sobre a febre amarela baseou-se em especulações e incertezas. Até aquele
momento, não havia ainda se descoberto o verdadeiro agente de transmissão da doença.
Trabalhava-se sobre os dados empíricos e com as experiências cotidianas com a doença.
Alguns brasileiros como Domingos Freire e Batista Lacerda, a partir de 1880, acreditavam na
existência de um germe causador da febre amarela, o que os tornou rivais na busca pela
vacina contra a doença. Era o auge da utilização dos métodos da bacteriologia pelos
dicos
187
.
No ano de 1880, João Batista de Lacerda chegou, inclusive, a propor a reunião de
países americanos para se discutir o combate à febre amarela, remetendo à Conferência
Sanitária Internacional de Constantinopla em 1886, quando os países europeus se reuniram
para discutir a epidemia de lera-morbo. Lacerda “desejava que o governo brasileiro
promovesse conferência similar no Rio de Janeiro, para tratar da febre amarela, com
representantes das repúblicas platinas e dos Estados Unidos” (Benchimol, 1999, p.178), pois
era um assunto urgente para o continente americano.
Efetivamente, na convenção sanitária internacional de 1887 se discutiu a temática, no
entanto, as respostas para as questões levantadas eram todas vagas, não se afirmava nada com
certeza. Isso se explica, em parte, pela derrota sofrida por Lacerda e Araújo es sobre o
agente causador da doença. Acreditavam esses médicos que era um “fito-organismo”, ou um
vegetal que produzia a febre amarela, sendo introduzido no organismo através do alimento e
da bebida. Porém, em 1883, um laboratório na França desmentiria a hipótese dos brasileiros,
sugerindo que o vegetal encontrado era apenas uma bactéria já conhecida pelos médicos.
A partir d, toda cautela passou a existir na discussão sobre as causas da febre
amarela, o que fica explicitado no relatório da comissão técnica de 1887. Sobre a primeira
187
Ver o trabalho de Jaime Benchimol (1999) sobre a febre amarela no Brasil.
188
questão de quais seriam os veículos do contágio direto de homem a homem, a resposta foi
que:
Nada mais litigioso do que o contágio direto da febre amarela. Os fatos
citados em favor do contágio prestam-se igualmente a explicar a
propagação da moléstia por meio das roupas e objetos provenientes ou de
doentes ou de lugares infeccionados. A comissão, portanto, não podendo
pronunciar-se com exatidão, diz que a febre amarela não parece transmitir-
se diretamente do homem doente para o homem são.
188
Sobre o quesito de quais os meios de propagação da doença, a comissão explicitava a
mescla das teorias contagionistas e miasmáticas pelos médicos, haja vista o fato de afirmarem
que tanto o contato com objetos quanto o ar atmosférico eram veículos propagadores da
epidemia. De acordo com a comissão,
As roupas e mais objetos, que serviram a doentes de febre amarela ou
estiveram em contacto mais ou menos direto com eles, são veículos de
transporte do gérmen mórbido [...].
Fora desses casos a comissão considera ainda como podendo transportar o
agente mórbido o porão dos navios [...]; os cadáveres, em razão dos
humores que deles correm e podem infeccionar o meio: os escretos, pelo
mesmo motivo: a água e alimentos e o ar: finalmente os insetos no caso de
sentirem-se com os escretos.
[...] o ar atmosférico propaga a moléstia em um certo raio que
provavelmente não passa de um quilômetro. O fato da pida passagem dos
emigrantes pela cidade em quadros epidêmicos para embarcarem na estrada
de ferro Pedro 2º e a manifestação da febre amarela neles, quando chegam a
seu destino prova cabalmente que a infecção fez-se pelo ar.
189
E assim, nota-se em todo o relatório a presença de incertezas em relação à febre
amarela. Os termos mais recorrentes foram “uma questão que não foi ainda estudada”, “faltam
estudos rigorosos”, evidenciando que esse era um tema em aberto para a medicina
oitocentista. Como destacou Marta de Almeida (2003, pp.77-78), ao estudar os congressos
dicos latino-americanos, no Congresso ocorrido em 1904, em Buenos Aires, a temática
da febre amarela ainda estava em evidência.
Como se sabe, uma das preocupações epidemiológicas de maior gravidade
do final do século XIX e início do século XX foi a febre amarela. No
entanto, ela irá aparecer como tema de debates no Congresso Médico
Latino-Americano [...]
Além disso, percebe-se que nesse período, não havia consenso em torno dos
diagnósticos e profilaxias existentes. Por isso mesmo, havia interesse entre
188
AHI/RJ, Congressos e Conferências Internacionais, vol. 273-2-25, Congresso de 1887, Relatório da
subcomissão da febre amarela, 13/11/1887.
189
Idem, ibidem.
189
os cientistas pela primazia da ‘descoberta’ que pudesse decifrar o enigma da
doença.
A segunda comissão encarregou-se de apresentar as bases para a regulamentação no
que se referia aos objetos suscetíveis de transmitir contágios e aos meios e processos de
desinfecção aplicáveis às três doenças epidêmicas o cólera, a febre amarela e a peste do
Oriente.
Baseados em outros Códigos sanitários, o primeiro princípio estabelecido era o de que
tais moléstias são transmissíveis por intermédio de objetos ou coisas inanimadas, as quais,
em virtude desse fato, são considerados suscetíveis ou suspeitos, a Comissão tratou, antes de
tudo de discriminar os objetos que deverão ser assim considerados”
190
. Portanto, era preciso
levantar a lista dos objetos que realmente punham em risco os países de importar as
epidemias.
Para discriminar os produtos suscetíveis de transmissão do cólera, a Comissão utilizou
as deliberações tomadas no Congresso Sanitário internacional de Roma, ocorrido em 1885,
- Que sejam considerados objetos suscetíveis de transmitir o contágio do
cólera – as roupas, os trapos e todos os objetos que tenham estado e contato
com os enfermos, inclusive as malhas, baús ou caixas que hajam servido
para guardar esses mesmos objetos.
2º - Que atentas às suas naturais condições de dessecamento, e à ausência de
todo o contato com os enfermos, as mercadorias, como crinas, peles,
plumas, cabelos, palhas, couros secos ou curtidos, cereais, frutas, metais,
não devem ser consideradas objetos suscetíveis.
- Que nesta segunda categoria deve ser também incluído o charque ou
tasajo, cuja impropriedade a servir de veículo ao germe colerígeno ficou
experimentalmente provado por uma Comissão formada de membros deste
Congresso.
Mais uma vez, o tema da carne de charque era destaque dentro do Congresso e ficava
definitivamente resolvido o impasse dos governos uruguaio e brasileiro em relão à epidemia
de cólera e a carne platina. E sobre os meios de desinfecção, a comissão aconselhava, com
base em princípios aceitos em todos os países que adotavam a higiene como ciência:
Exposição dos objetos suspeitos ou contaminados ao calor úmido, em
uma estufa a vapor apropriada, cujo modelo será escolhido, ao arbítrio da
autoridade sanitária, devendo supor-se que esta preferirá dentre os modelos
conhecidos aquele que parecer melhor e oferecer maiores garantias para o
fim que se tem em vista.
Arejamento dos objetos como meio de promover a dessecação deles,
criando assim uma condição letal para o agente morbígeno.
190
Idem, ibidem.
190
Emprego de agentes químicos, cuja energia destrutiva da vitalidade do
micróbio tenha sido reconhecida e comprovada experimentalmente.
Ao mesmo tempo, fazia ressalva para alguns procedimentos considerados
ultrapassados e sem eficácia, como o caso das desinfecções para o cólera, haja vista essa
doença já ser considerada contagiosa naquela época, e não mais miasmática. Deste modo,
A Comissão rejeita, por inúteis e inconvenientes na prática as fumigações
de ácido sulfuroso, ainda, há bem pouco tempo, consideradas como meio de
desinfecção seguro e muito geralmente empregadas; e os motivos que tem,
para assim pronunciar-se decorreu principalmente do fato hoje incontestado
de que o germe colerígeno não infecta o ar. Entretanto para os navios
infestados de febre amarela, esse meio de desinfecção não seria para
desprezar.
Constata-se, novamente, o quanto as teorias contagionistas e anticontagionistas ainda
influenciavam os médicos, determinavam os procedimentos e impunham ações na área de
saúde pública.
O tema dos objetos suscetíveis de contágio era ponto nevlgico do Congresso, pois
colocava em questão a existência ou não de produtos comerciais que pudessem transmitir as
epidemias e os médicos sabiam disso, tanto assim que foram bastante modestos nas proibições
de determinadas mercadorias, certamente com receio de que essas medidas pudessem afetar a
economia dessas regiões.
Ainda que, como discutimos anteriormente, começasse a haver uma crescente
autonomia do campodico no final do século XIX, não é possível afirmar que esses
doutores ficaram imunes às pressões dos seus governos para que as relações comerciais
fossem minimamente afetadas. A afirmação da Comissão no que se refere ao lera explicita
isso:
A noção, porém, que nos vieram fornecer as recentes pesquisas de Koch e
dos seus ilustres colaboradores na elucidação da etiologia do cólera de
que o micróbio produtor dessa moléstia é dotado de diminuta resistência à
dissecação, perecendo por efeito dela, em pouco tempo, facilita sobremodo
aos legisladores sanitários, a resolução de certos problemas, os quais, por
falta de base científica estiveram até então sujeitos a decisões arbitrárias,
prejudicando assim interesses, às vezes muito respeitáveis, de ordem social
e econômica.
191
Nuno de Andrade, presidente da Comissão Técnica do Congresso Sanitário
Internacional, em ocio reservado encaminhado ao Ministro dos negócios estrangeiros Barão
191
AHI/RJ, Congressos e Conferências Internacionais, vol. 273-2-25. Congresso Sanitário de 1887, Relatório da
subcomissão sobre a discriminação dos objetos suscetíveis de contágio, 09/11/1887.
191
de Cotegipe no final da realização do Congresso Sanitário, expôs a fragilidade do “poder
dicoperante os interesses ecomicos e poticos dos governos envolvidos. Os médicos
deveriam seguir as determinações das autoridades diplomáticas e proteger os interesses dos
seus países, ainda que isso contrariasse os conhecimentos existentes das doenças e de suas
profilaxias. Neste ocio, Andrade afirma ao Ministro que do ponto de vista “das vantagens
imediatas que poderá inferir o Brasil da celebração do Convênio projetado, tenho a maior
satisfação em comunicar a V.Ex. que obtivemos dos Comissários Platinos todas as concessões
que mais interessa na atualidade o nosso país, em matéria de profilaxia”
192
.
Uma documentação considerada reservada foi capaz de revelar o que as atas e os
discursos durante o Congresso ocultaram. Parecia, à primeira vista, que os médicos tinham, de
fato, independência para julgar as matérias mais importantes para serem debatidas na
Convenção, porém a pauta já estava previamente estabelecida pelo governo, cabendo aos
homens de ciência fazer cumpri-la.
Essa pauta era composta de quatro questões que convinha resolver, conforme nos
revela Nuno de Andrade, tendo sido todas solucionadas no decorrer do Congresso Sanitário:
1ª. A questão do charque platino, como veículo de germes mórbidos, ficou
resolvido experimentalmente no sentido de não se prestar aquele gênero a
servir de meio de contaminação. Muitos, e repetidos, foram os estudos
feitos no propósito de averiguar o difícil assunto; e estamos hoje crentes que
a entrada do charque, em épocas epidêmicas no Rio da Prata, não deve ser
mais, por motivo sanitário, proibido pelo Governo Imperial.
2º. Desde muito as quarentenas do Rio da Prata para os navios procedentes
do Rio de Janeiro em épocas de febre amarela não só eram impostas
arbitrariamente, quanto aos motivos, como eram excessivas, quanto à
duração. Regularizamos os prazos de quarentena, que serão, de hoje em
diante, reduzidos de fato a 4 ou 5 dias para os navios que chegarem em boas
condições, sendo de 10 para aqueles que se apresentarem com moléstia à
bordo.
3º. V.Ex. sabe que número de paquetes transatlânticos deixam de tocar no
Rio de Janeiro em épocas de febre amarela, para liberarem-se de
quarentenas, quaisquer que sejam, no Rio da Prata; e esta prática, não
alimenta o mau conceito sanitário em que o nosso porto é tido, como ainda
compromete os nossos interesses comerciais e outros, não tanto pelos
embaraços à exportação de produtos brasileiros para o Rio da Prata, como
pela restrão à importação de gêneros europeus e pelo escasseamento de
passageiros e imigrantes para o Brasil.
4º. A questão dos prazos de quarentena tem sempre se me afligiria
importante, visto como eram tantas as queixas formuladas no Rio da Prata
contra os que o Regulamento de 3 de fevereiro estabelece, que eu receava
que instruíssem os delegados estrangeiros pela redução para o prazo do
cólera, e não pudéssemos chegar a acordo. Felizmente assim não aconteceu,
porquanto, verificando eu, após uma discussão tempestuosa que, sem
192
AHI/RJ, Congressos e Conferências Internacionais, vol. 273-2-25. Congresso Sanitário de 1887, Ofício
reservado de Nuno de Andrade ao Barão de Cotegipe.
192
intervenção superior não conseguiria dos mesmos delegados uma solução
satisfatória, suspendi a sessão, à qual assistiam os dois ministros argentino e
uruguaio, e declarei a estes que não concordaria, de modo algum, na
modificação do que o Regulamento brasileiro dispunha; e que, para não
criar dificuldades ao Convênio projetado, ia solicitar a minha exoneração do
cargo de delegado do Governo Imperial.
Durante o tempo em que a sessão esteve suspensa, os referidos Ministros
entenderam-se com os delegados de seus Governos e me participaram que
não só estavam de acordo em aceitar o critério do Regulamento Imperial,
como não tinham inconveniente em apresentar, eles mesmos, a proposta
para esse fim.
Portanto, duas questões básicas nortearam as atitudes dos médicos brasileiros na
Convenção: o comércio de carne platina e a imigração européia. De fato, para o Brasil, eram
temas importantes, pois o charque fazia referência ao sistema escravista que ainda perdurava
no país, apesar do crescente movimento abolicionista, e a imigração remetia ao projeto das
elites políticas em resolver a crescente falta de mão-de-obra para a lavoura, com o processo
gradual de abolição da escravidão. Vale destacar que o final da cada de 1880 constituiu-se
no auge da entrada de imigrantes europeus no Brasil, e “a partir de 1887, a imigração
estrangeira passou a ocorrer em grande escala, a maior parte destinando-se a o Paulo: 65%
entre 1891 e 1900, 58% na década seguinte, 63% na década de 1910 e 58% na última década
da Primeira República” (TELAROLLI, 1996, p.33).
Pode-se concluir que o Congresso Sanitário de 1887 buscava resolver,
prioritariamente, questões político-econômicas, e não problemas sanitários e higiênicos entre
esses países. Como afirma Almeida (2003, p.20),
Se o Estado necessitava, por exemplo, do respaldo do conhecimento
científico para o reconhecimento de suas potencialidades minerais,
territoriais, vegetais e para a solução de problemas emergenciais como o
controle de doenças epidêmicas, os cientistas necessitavam criar espaços de
atuação e ampliação de suas relações científicas num meio muitas vezes
adverso, pautado por prioridades político-econômicas distantes dos seus
interesses.
O resultado efetivo desse Congresso Sanitário de 1887 foi a elaboração, aprovação e
publicação de dois importantes documentos: a Convenção Sanitária entre a República
Argentina, a República Oriental do Uruguai e o Império do Brasil e o Regulamento Sanitário
Internacional. A própria Comissão Técnica explica, através do seu presidente Nuno de
Andrade, a existência de duas fontes:
Determinou a Comissão dividir o seu trabalho em duas partes diferentes,
conquanto conexas: a geral, que deveria abranger em fórmulas concretas, as
193
disposições básicas da profilaxia comum aos três países; e a especial,
referente aos detalhes de serviço, à particularização dos processos nos raros
casos emergentes, à organização sistemática de um complexo de regras
harmônicas para a execução das medidas gerais, em ordem a instalar na
República Argentina, no Brasil e na República Oriental do Uruguai, de
alguma sorte uma repartição única, tão solidárias cumpre que sejam as três
administrações respectivas, em assunto de precaução contra as moléstias
pestilenciais exóticas.
193
5.3. CRIAÇÃO DO CARGO DE INSPETOR SANITÁRIO DE NAVIO:
A Convenção Sanitária foi o documento que preparou as bases para a confecção do
regulamento. Nela, os médicos definiam quais eram as doenças epidêmicas, as categorias dos
portos e navios (limpo, suspeito ou infectado), os tipos de quarentenas existentes, a instituição
de lazaretos fixos e flutuantes nos três países
194
, e apontavam na direção da criação de um
Corpo de Inspetores Sanitários de Saúde. Esse órgão é importante, pois era a tentativa de
criação de uma repartição única, como explicitou Nuno de Andrade, que pudesse promover
uma maior harmonia nas decisões entre os três Estados.
Apesar das pressões ecomicas e políticas, os profissionais da medicina buscavam
criar espaços institucionais em que pudessem atuar e serem reconhecidos. A indicação, por
parte da comissão técnica, de um Corpo de Inspetores Sanitários de Navio, era a proposta
concreta dos médicos para que os mesmos pudessem estar inseridos nas decisões
governamentais e no controle das doeas nos portos e nas embarcações dos seus países. A
criação de lazaretos nos países envolvidos igualmente servia para a contratação e o
estabelecimento obrigatório de médicos e funciorios ligados à saúde pública para a
administração e gestão dessa instituição.
De acordo com a Convenção Sanitária Internacional, os inspetores sanitários de navio
seriam admitidos nos três países através de concurso público.
Artigo 7º - Cada uma das Altas Partes Contratantes compromete-se a
instituir na forma constitucional no seu território um Corpo de Inspetores
Sanitários de navio, composto de médicos especialmente encarregados de
fiscalizar, a bordo dos navios em que embarcarem, a execução das
providências adotada em favor da saúde dos passageiros e tripulantes, de
testemunhar as ocorrências havidas durante a viagem e de referi-las à
autoridade sanitária do porto de destino.
193
AHI/RJ, Congressos e Conferências Internacionais, vol. 273-2-25. Memória da Conferência Internacional
Sanitária do Rio de Janeiro em 12/11/1887.
194
Ver nos anexos a transcrição da convenção sanitária e do regulamento sanitário de 1887.
194
§1º. Os Inspetores Sanitários de navio serão funcionários das Repartições
de Saúde Marítima dos Estados a que pertencerem.
§2º. Os Inspetores Sanitários de navio serão nomeados pelos Governos
mediante concurso; competindo aos chefes do serviço sanitário respectivo a
designação dos Inspetores que devam embarcar.
195
A instituição e regulamentação desse novo órgão estavam previstas no Regulamento
Sanitário Internacional. Os médicos presentes na comissão aprovaram, portanto, a crião de
concurso para os lugares de inspetores sanitários de navio, no sentido de qualificar essa mão-
de-obra ainda incipiente. Mais do que isso, era a busca em romper com o sistema de
patronagem, como assinalou Flávio Edler, para um sistema meritocrático, orientado pelo
critério da competência profissional.
Os profissionais da medicina lutaram, ao longo de todo o Segundo Reinado,
para monopolizar o processo de decisão política a respeito dos modelos
científicos que deveriam ser ratificados como válidos, dos temas médicos
socialmente relevantes de serem estudados, bem como, da formas
institucionais consideradas ideais para a produção e reprodução dos
conhecimentos. (1992, p.14)
Como se estruturou esse Corpo de Inspetores Sanitários de navio? No Regulamento
Sanitário, o capítulo II intitulado “Organização do corpo de inspetores sanitários de navio” foi
dedicado à discussão e estruturação desse órgão. O objetivo dos inspetores sanitários de navio
era o de vigiar e punir as embarcações que se encontravam irregulares em relação à
Convenção Sanitária; controlar a saúde dos passageiros e tripulantes e impedir o embarque
daqueles com suspeitas de doenças contagiosas, bem como de roupas sujas e de objetos em
mau estado de conservação; averiguar o estado de higiene do navio; prestar serviços
profissionais aos passageiros acometidos de doenças, e visitar a enfermaria regularmente; e,
por fim, registrar todos os ocorridos em um livro, a data exata da chegada e saída de cada
navio e todas as informações que pudessem obter sobre a saúde pública do porto em que
trabalhar, e ainda tomar nota de todas as medidas precedentes em casos de desinfecção, com
especificação da data e da hora de cada procedimento.
Nas duas últimas décadas do século XIX, a profissão médica começava a ganhar mais
espaço na esfera pública e mesmo no aconselhamento à população. O médico começava a
participar dos mais diversos espaços, começando pelo donio blico. Como destacou
Michel Foucault, o nascimento de uma ciência médica moderna esteve ligado a uma
195
Convenção Sanitária entre o Império do Brasil, a República Argentina e a República Oriental do Uruguai (Rio
de Janeiro, 1887). Ver anexos.
195
consciência política dos próprios médicos, que passaram a ser representantes do Estado e a
vigiar a doença e, posteriormente, o doente:
poderia haver medicina das epidemias se acompanhada de uma polícia:
vigiar a instalação das minas e dos cemitérios, obter, o maior número de
vezes possível, a incineração dos cadáveres, em vez de sua inumação,
controlar o comércio do o, do vinho, da carne, regulamentar os
matadouros, as tinturarias, proibir as habitações insalubres; seria necessário
que depois de um estudo detalhado de todo o território se estabelecesse,
para cada província, um regulamento de saúde para ser lido “na missa ou no
sermão, todos os domingos e dias santos”, e que diria respeito ao modo de
se alimentar, de se vestir, de evitar as doenças, de prevenir ou curar as que
reinam: “Estes preceitos seriam como as preces que mesmo os mais
ignorantes e as crianças conseguem recitar”. Seria necessário, por último,
criar um corpo de inspetores de saúde, que se poderia distribuir em
diferentes províncias, confiando a cada um deles um departamento
circunscrito”; Seria desejável que o Estado se encarregasse de valorizar
estes médicos físicos e lhes poupasse os gastos que o gosto de fazer
descobertas úteis acarreta. (2004a, p.26-27)
A criação do cargo de inspetores sanitários através de concurso, no entanto, somente
iria ocorrer, no Brasil, a partir de 1890. Até lá, os médicos que ocuparam os cargos de
inspetores sanitários foram indicados pelos três governos, descumprindo a própria Convenção
Sanitária, que propunha a realização de concursos, como denunciava o médico Nuno de
Andrade, que mesmo com a proclamação da República, continuava a ocupar o cargo de
Inspetor Geral de Saúde dos Portos, de que:
As nomeões interinas de 10 inspetores sanitários, com o vencimento
mensal de 400 #s cada um, feitos pelo sr. Ministro do Interior em 5 do
corrente mês, o infratoras do Tratado Internacional, desnecessárias e
inutilmente dispendiosas.
Para que V.Ex. julgue exatamente, da estranha situação em que encontro,
em face destas nomeações, relativamente aos meus colegas do Rio da Prata,
devo informar que, por telegrama de 10 de janeiro último propus, como a
Convenção me o permite, aos chefes de serviço sanitário do Uruguai e da
República Argentina, a fixação do número de Inspetores, em 5 para cada
país. Semelhante fixação, segundo o texto expresso do artigo 6 do
Regulamento Internacional, compete aos 3 chefes do serviço brasileiro,
argentino e uruguaio.
Minha proposta foi aceita em ambas as Repúblicas platinas e a autoridade
uruguaia anunciou imediatamente a abertura de concurso para provimento
dos lugares. O Presidente do Departamento de Higiene de Buenos Aires
também aceitou a fixação dos mesmos, mas observou que, possuindo a sua
repartição inspetores sanitários já nomeados há 2 anos, não via necessidade
de abrir concurso para os respectivos cargos.
Retorqui-lhe que sendo formas a disposição do §2 do artigo 7 da
Convenção, não reconhecia oficialmente os seus Inspetores atuais, e instava
pelo concurso.
A esta minha réplica, que presumo ter sido presente ao Governo Argentino,
respondeu-me o Sr. Ministro Moreno, em telegrama oficial de 7 do
196
corrente, declarando que o mesmo Governo mandará proceder o concurso
exigido.
196
As essas observações, o médico brasileiro solicitava do governo a autorização para
a abertura de concurso para o cargo de inspetor sanitário de navio, e em 17 de abril de 1890
era divulgada a ata do concurso, com a lista dos médicos aprovados.
A instituição dos inspetores sanitários de navio contribuiu para o aumento da
influência dos médicos nas estruturas de poder e para o crescente monopólio da arte de curar
pelos esculápios. No entanto, a não efetivão desses profissionais através de concursos na
Argentina e no Brasil evidenciava ainda que as relações de patronagem e clientelismo
perduraram por muito tempo nesses países.
Por fim, cabe discutir as repercussões desses acordos sanitários nos anos que se
seguiram às suas assinaturas. Esses dois eventos não se restringiram ao período em que foram
elaborados, bem como seus efeitos não estiveram restritos aos três Estados envolvidos
Brasil, Uruguai e Argentina. Percebeu-se que as decisões tomadas nesses convênios não
estiveram restritas aos países envolvidos, mas sim se integraram a um circuito maior, como
ficou evidenciado no próximo capítulo.
196
AN/RJ, Série Saúde, Inspetoria Geral de Saúde dos Portos, corresponncia do Inspetor ao Ministro do
Interior, 12/02/1890.
197
CAPÍTULO VI REPERCUSSÕES REGIONAIS E INTERNACIONAIS DOS
CONGRESSOS SANITÁRIOS DE 1873 E 1887: ENTRE COMEMORAÇÕES E
PROTESTOS
Os Congressos sanitários de 1873 e 1887 tiveram repercussão regional e internacional.
O debate acerca das resoluções tomadas nesses eventos povoou as páginas dos jornais dos três
países envolvidos e da imprensa euroia e latino-americana. Neste capítulo, pretende-se
discutir os desdobramentos desses dois convênios em âmbito local, regional e internacional.
No início do século XX, ocorreram outros congressos sanitários internacionais entre
esses três Estados, que apontaram para a perpetuação dos problemas econômicos e poticos
decorrentes dos surtos epimicos, que persistiram nessas regiões por um longo período.
6.1. REPERCUSSÕES DO CONGRESSO SANITÁRIO DE 1873
A Convenção de Montevidéu, realizada no ano de 1873, teve poucos desdobramentos
pelo fato de ela não ter sido ratificada pelos governos do Brasil, da Argentina e do Uruguai e,
por isso, não foi posta em prática.
A não-ratificação do acordo sanitário foi, em parte, conseqüência das próprias
discussões ocorridas no interior do Congresso. Os argentinos e uruguaios consideraram que a
Convenção beneficiava apenas o Brasil, o que de certa forma foi confirmado pelo ministro
brasileiro em missão no Uruguai, Antonio Duarte de Araújo Gondim, em correspondência ao
conselheiro Visconde de Caravelas, ministro dos Negócios Estrangeiros do Brasil:
Submetendo, portanto, o resultado dos nossos leais esforços à alta
apreciação de V.Exa., esperamos que, em atenção às razões que exponho, e
à o pequena vantagem alcançada sobre o atual regime sanitário em
vigor no Rio da Prata, o Governo Imperial se dignará ratificar a
Convenção por nós assinada.
197
O Brasil tinha muito interesse em ratificar essa Convenção Sanitária, haja vista as
vantagens obtidas com relação às quarentenas para a febre amarela, que eram reduzidas de
dez para sete dias no período de . de maio a 31 de outubro, quando se acreditava que a
doença não atingia caráter epidêmico. No entanto, propunham algumas modificações ao
acordo sanitário, como a redução das quarentenas de dez para oito dias e da duração da
Convenção, que era de quatro anos. O governo brasileiro solicitava a inclusão do direito de
197
AHI/RJ, Legação do Brasil no Uruguai, 30/07/1873, grifos meus.
198
denunciá-la em qualquer tempo, contanto que a denúncia fosse feita seis meses antes de
terminar a validade do acordo
198
. Era uma estratégia do Brasil de se desfazer do acordo, no
momento em que ele não fosse mais vantajoso para os interesses do Império.
Por esse motivo, o ministro brasileiro Antonio Duarte de Araújo Gondim buscou
novamente entrar em contato com as autoridades uruguaias antes do seu regresso ao Brasil, a
fim de lograr a ratificação do Convênio Sanitário. No entanto, em 30 de outubro daquele ano,
expunha que:
Não obstante ter eu previsto logo o malogro de quaisquer esforços meus,
principalmente nos atuais momentos de temores de invasão do cólera
morbus, para conseguirmos das duas outras Partes contratantes as
modificações da mesma Convenção, no sentido por V.Exa. indicado,
entendi não dever deixar este posto sem tentar os mesmo ao meu alcance
para satisfazer as ordem de V.Exa.
Procurei, pois, ocasião oportuna para falar a esse respeito tanto com o Sr.
Ministro de Relações Exteriores, como com o Plenipotenciário que assinou
a Convenção por parte do Governo Argentino.
Ambos declararam-me sem hesitar que, tendo sido a mesma Convenção
considerada demasiada liberal não só nesta Capital como em Buenos
Aires, lhes parecia impossível a sua modificação em sentido ainda mais
liberal, máximo no atual estado dos ânimos, tão temerosos de uma nova
invasão do cólera morbus ou da febre amarela.
Ambos fizeram-me notar as rigorosas medidas que tanto aqui como na
Capital argentina haviam sido adotadas contra os navios procedentes de
portos onde reina atualmente o cólera asiático, o obstante o
considerável lapso decorrido desde o último falecimento ou alta do último
enfermo a bordo dos mencionados navios; e, segundo pude coligir de suas
palavras, não crêem eles mesmo que a Convenção, tal qual foi por nós
assinada, venha a ser aprovada pelos Congressos Oriental e Argentino,
sobretudo se alguma nova epidemia de moléstia exótica infelizmente
chegasse a invadir o Rio da Prata.
O acordo sanitário, portanto, não foi ratificado por nenhum governo envolvido. A
demasiada frouxidão da Convenção Sanitária, de acordo com os argentinos e uruguaios,
juntamente com o pânico provocado pela existência de epidemias em outras regiões do
mundo, resultou no fracasso final dessa primeira tentativa americana de firmar um convênio
sanitário internacional.
Não somente os representantes dos governos platinos discordavam do conteúdo do
regulamento sanitário, como também a imprensa uruguaia e argentina, que, a partir de agosto
198
Despachos do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Brasil à Legação do Brasil em Montevidéu 1873 e
1874. Correspondência do Conselheiro Visconde de Caravelas, Ministro e Secretario de Estado dos Negócios
Estrangeiros do Brasil a Antonio Duarte de Araújo Gondim, chefe da Legação do Brasil no Uruguai. 04/10/1873.
199
de 1873, quando o documento foi publicado em diversos periódicos, inclusive no Brasil
199
,
começou a fazer duras críticas ao convênio. Em Montevidéu, os jornais Revista Mercantil, El
Siglo e La Democracia publicaram textos anônimos, assinados com pseudônimos, apontando
as diversas falhas e recomendando ao governo uruguaio a não assinatura da Convenção.
A Revista Mercantil foi o primeiro veículo a iniciar o debate, afirmando que “la
impresión que à este respecto nos ha hecho la lectura del convenio es, sin pasión, de excesiva
liberalidad y mucho tememos que ella sea exagerada y que las medidas que se van à tomar en
adelante no precavan y nos entreguen con los brazos cruzados al furor de las epidemias”
200
.
Ao final dos sete artigos publicados entre os dias 12 e 27 de agosto de 1873, sugeria que “es
imprudente temeridad establecería y que las maras y el gobierno deban meditar mucho
sobre ellas antes de aceptarla, porque las medidas sanitarias precaucionales son redes
entretejidas y cuando una se suelta o se rompe, por ella penetran los males”
201
.
O autor das observações sobre a convenção sanitária na Revista Mercantil de
Montevidéu, apesar de não ter se identificado, se declarava médico e estrangeiro, uma
situação bastante comum na capital uruguaia, já que a inexistência de uma faculdade de
medicina forçava os habitantes uruguaios a irem estudar na Europa ou, mais raramente, na
Argentina e no Brasil. Também o fato de não haver muitos médicos na região era um atrativo
para os estrangeiros, europeus em sua maioria, que viam em Montevidéu uma possibilidade
de emprego e ascensão social (MAÑE GARZON, 1983).
Esses médicos compartilhavam a opinião de que as doenças como el lera, la fiebre
amarilla, el tifus y peste del Levante son enfermedades pestilenciales, miasmáticas, cuyos
elementos trasmisibles ó de propagación no son en todas ellas conocidas, pero que obran
todas envenenando el organismo”. E, por isso, a Revista Mercantil manifestava-se contrária a
extinção das medidas de fechamento dos portos, pois, se as doenças eram transmitidas pelo ar
e pelos miasmas, a proximidade dos barcos era capaz de trazer os germes das epidemias.
O periódico El Siglo igualmente seguiria as opiniões da Revista Mercantil e também
discutia alguns pontos considerados equivocados na Convenção, como a proibição do
fechamento dos portos em momentos de epidemia.
199
Parece que no Império do Brasil, a imprensa carioca não se posicionou em relação à Convenção Sanitária de
1873, tendo-se restrito a publicá-la na íntegra, como fez o Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, em 08 de
julho de 1873.
200
AHI/RJ, Corresponncia da Legação do Brasil no Uruguai do dia 29/08/1873, Anexo: Retalho do jornal
Revista Mercantil de 12/08/1873.
201
Idem, jornal Revista Mercantil de 27/08/1873.
200
muchos otros defectos que hemos notado, como lo es impedir la clausura de
puertos de las naciones contratantes, el Convenio celebrado últimamente
adolece para mi del grave error de considerar los puertos que no se
preservan ó lo hacen de modo insuficiente, susceptibles de cuarentena de
observación cuando era con ellos que debía usarse la de rigor porque esos
puertos son para nosotros lo que esos asesinos alevosos que bajo el manto ó
disfraz de la amistad se introducen en nuestras casas para asesinarnos ó
robarnos.
As acusações do jornal eram graves e atingiam diretamente o Brasil pela manipulação
do convênio, ao afirmar que “desde que se trató de celebrar este Convenio y desde que vimos
entrar en el Brasil, sospechamos y temimos que nuestros médicos y los de la República
Argentina se dejaran envolver y engañar por el Brasil y por desgracia nuestros temores se han
cumplido”. E sugeria também que “las Cámaras y el Gobierno deben rechazar por honor y por
amor al país, medidas precaucionales tan liberales que van à dar libre y franca entrada à las
epidemias”
202
. Com essas declarações, tornou-se cada vez mais difícil a aprovação desse
acordo nas Câmaras Legislativas do Uruguai e da Argentina.
Esses periódicos foram remetidos ao ministro dos Negócios Estrangeiros do Brasil
pela missão brasileira no Uruguai, para que se soubesse a posição desses países em relação à
Convenção Sanitária e para situar o Brasil sobre as dificuldades que seriam enfrentadas para
conseguir a ratificação do acordo.
Começa a generalizar-se na imprensa desta Capital a guerra iniciada pela
“Revista Mercantil” contra a Convenção Sanitária. O “Siglo” de ontem deu
um lugar conspícuo em suas colunas a um artigo, para o qual tomo também
a liberdade de chamar a atenção de V.Exa. Como V.Exa. notará, este novo e
irado ataque contra o referido ato internacional confirma o que por mais de
uma vez informei, acerca das grandes preocupações com que teríamos de
lutar no Rio da Prata, sobretudo em matéria de quarentenas.
203
Em 30 de outubro de 1873, passados dois meses do final do Congresso Sanitário de
Montevidéu, o governo brasileiro exigia um posicionamento dos governos uruguaio e
argentino para a execução das principais disposições da Convenção. No entanto, a resposta
obtida pelo ministro brasileiro enviado ao Uruguai, Araújo Gondim, que ainda se localizava
em Montevidéu para resolver essa questão, foi definitiva: não haveria a ratificação da
Convenção Sanitária pelos dois países contratantes.
202
AHI/RJ, Corresponncia da Legação do Brasil no Uruguai do dia 31/08/1873, Anexo: jornal Siglo de
29/08/1873.
203
AHI/RJ, Correspondência da Legação do Brasil no Uruguai do dia 31/08/1873.
201
Não obstante ter eu previsto logo o malogro de quaisquer esforços meus,
principalmente nos atuais momentos de temores de invasão do cólera
morbus, para conseguirmos das duas outras Partes contratantes as
modificações da mesma Convenção, no sentido por V.Exa. indicado,
entendi não dever deixar este posto sem tentar os mesmo ao meu alcance
para satisfazer as ordem de V.Exa.
Procurei, pois, ocasião oportuna para falar a esse respeito tanto com o Sr.
Ministro de Relações Exteriores, como com o Plenipotenciário que assinou
a Convenção por parte do Governo Argentino.
Ambos declararam-me sem hesitar que, tendo sido a mesma Convenção
considerada demasiada liberal não só nesta Capital como em Buenos
Aires, lhes parecia impossível a sua modificação em sentido ainda mais
liberal, máximo no atual estado dos ânimos, tão temerosos de uma nova
invasão do cólera morbus ou da febre amarela. [...] Pude coligir de suas
palavras, não crêem eles mesmo que a Convenção, tal qual foi por nós
assinada, venha a ser aprovada pelos Congressos Oriental e Argentino,
sobretudo se alguma nova epidemia de moléstia exótica infelizmente
chegasse a invadir o Rio da Prata.
204
No Brasil, houve pouca divulgação do congresso. Em 25 de junho daquele ano foi
noticiado no Jornal do Commercio da Corte que “em Montevidéu tinham começado as
conferências sanitárias entre os comissários do governo brasileiro, argentino e oriental
205
, no
dia 8 de julho, era publicado, a partir de uma cópia de jornais uruguaios, o projeto de
convenção sanitária. No entanto, a convenção não motivara um debate público na capital do
Império, como aconteceu no Uruguai.
As autoridades consulares brasileiras, nos anos seguintes ao do Congresso,
recordavam a existência do acordo sanitário de 1873, especialmente quando os portos platinos
se fechavam às procedências do Brasil nos momentos de surtos epimicos. Em 1876, o
cônsul do Brasil no Uruguai, Eduardo Carlos Cabral Deschamps, avisava às autoridades
brasileiras a realização de quarentenas aos navios do Império.
Tenho a honra de oferecer à consideração de V.Exª, em anexo, retalhos de
diários em que vem publicados a ata da Junta de Saúde deste porto pela qual
foi imposto 15 dias de quarentena às procedências do Brasil, contados da
saída dos seus portos, 48 horas de observação às que completassem em
viagem aqueles dias – e um artigo combatendo essa medida, que julga
precipitada, recorda que em outras épocas nunca se chegou a impor 15 dias,
porque se davam 4 ou 5 casos de febre amarela, e nota que quando aqui se
soube ser de 14 o número de casos dessa enfermidade, se contentou marcar-
se uma observação de 6 dias, sempre que à bordo não tivesse ocorrido
novidade durante a travessia. Segundo a “Tribuna” portenha, desde que a
Junta de Saúde de Buenos Aires teve comunicação dessa medida sanitária
imposta pela deste porto, adotou-a para ali ser observada.
204
AHI/RJ, Correspondência da Legação do Brasil no Uruguai do dia 30/10/1873.
205
BN/RJ, Jornal do Commercio, 25/06/1873.
202
Volta, nessa matéria, de que indubitavelmente se tem abusado, a vigorar o
arbitrário para as procedências do Brasil; não servindo de norma o que,
depois de discutido e vencido em Congresso, se estipulou na Convenção
Sanitária; o que mostraria ao menos coerência, embora não fosse aagora
ratificado pelos respectivos governos essa mesma convenção.
206
A Convenção Sanitária de Montevidéu, elaborada em 1873, não sairia do papel, no
entanto seria relembrada durante a feitura do novo convênio entre os três países, em 1887 na
cidade do Rio de Janeiro. Até lá, por diversas vezes, os portos brasileiros e platinos se
fecharam aos navios de uma e outra região, em razão dos surtos constantes de febre amarela
na Corte imperial e as ameaças de epidemias no Rio da Prata. Vale ressaltar que a febre
amarela causava nico e medo aos argentinos, especialmente após a trágica experiência da
epidemia de 1871, que passou a ser “a doença mais temida e que mais vidas argentinas tinha
levado era a febre amarela. Esta doença sempre foi associada a deficiências de saneamento e à
proximidade com o Brasil” (Caponi, 2004, p.434).
O problema das quarentenas perduraria por muitos anos, até as primeiras décadas do
século XX, e seria o mote principal para a elaboração de novos acordos sanitários entre Brasil,
Uruguai e Argentina. Enquanto a ciência médica não conseguisse solucionar questões
relativas à etiologia das doenças, as longas quarentenas continuavam a fazer estragos nas
relações comerciais e, paradoxalmente, não evitavam a entrada de epidemias nas mais
diversas partes do mundo.
6.2. REPERCUSSÕES REGIONAIS DA CONVENÇÃO SANITÁRIA INTERNACIONAL
DE 1887: A IMPRENSA PLATINA E BRASILEIRA
Ao contrário da Convenção de 1873, a de 1887 provocou comemorações e
questionamentos de toda parte. As imprensas brasileira, argentina e uruguaia elogiavam e
criticavam a iniciativa e apontavam as contribuições e os equívocos do novo acordo para a
integração potico-econômica entre os três países.
Vale ressaltar que a imprensa defendia interesses ora de partidos poticos, ora de
associações econômicas, ora dos próprios governos e, por isso, as matérias publicadas
estavam necessariamente atreladas a interesses diversos. Destaca-se ainda o caráter de
jornalismo de opinião, predominante naquele período.
206
AHI/RJ, Correspondência do Consulado do Brasil no Uruguai, 28/01/1876.
203
Como enfatizou Carlos Franciscato (2003, p.26), durante o processo de
profissionalização do jornalismo e do repórter ao longo do século XIX, um aspecto que “dá
forma e substancialidade ao jornalismo em seu processo de constituição histórica é uma
melhor e mais precisa caracterização do seu principal objeto produzido, a notícia. O século
XIX foi importante para a definição de alguns estilos e neros jornalísticos”, como no caso
deste estudo, o jornalismo potico. Foram muitos os impressos que enfatizavam as discussões
políticas e que representavam partidos. Outro aspecto no jornalismo desse período foi a
mudança de ordem tecnológica, com o aparecimento do telégrafo, do telefone, dos novos
meios de transporte e das novas máquinas ligadas à produção jornalística. Com essas
modificações, as notícias passaram a circular mais rapidamente, encurtando ainda mais as
distâncias entre os países.
A imprensa periódica no Império do Brasil e nas Repúblicas do Prata durante o século
XIX – marco das independências poticas nessas regiões – foi fundamental como instrumento
na formação da opinião pública, apesar de a sociedade letrada ser ainda restrita. No Brasil do
final dos Oitocentos, ela serviu como uma arena própria para os conflitos de valores,
interesses e idéias, traduzindo a diversificação e a complexificação por que passava a
sociedade” (Neves, 2002, p.364), debatendo questões cruciais como a escravidão e a
monarquia, ambas as instituições em crise no final do século XIX. Na Argentina, temas como
imigração e modernização da economia estavam sempre na pauta dos impressos, pois faziam
parte do debate da formação do Estado argentino naquele momento
207
.
As notícias sobre a Convenção Sanitária de 1887 circularam velozmente na imprensa
dos três países. Dois dias depois do encerramento das atividades do Congresso, o jornal
argentino La Prensa publicava que “el telégrafo anuncia haber sido firmada por los
plenipotenciarios del Brasil, Banda Oriental y República Argentina, la convención sanitaria
preparada por la conferencia de los delegados técnicos de los tres países reunidos en Río
Janeiro
208
. E acrescentava, com elogios: “es un fausto acontecimiento, digno de celebrarse
con satisfacción patriótica por las tres naciones”.
207
Buscar-se-á analisar os discursos presentes nos jornais impressos brasileiros, argentinos e uruguaios segundo
as sugestões dadas por Michel Foucault de que em “toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo
controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos” (2004b, p.8) e que
“antes de perguntarmos o que é que um discurso esconde, buscando por uma verdade que es ‘por trás’,
precisaríamos perguntar sobre as condições nas quais uma verdade foi produzida para que fosse possível, então,
mascará-la? Substituir o ‘o que isso quer dizer?’ pelo o que isso faz funcionar?’, o ‘o que está por trás?’ pelo ‘o
que isso faz funcionar?’” (1987, p.53).
208
AHI/RJ, Legação do Brasil em Buenos Aires, Corresponncia do Barão de Alencar, em Buenos Aires, ao
Barão de Cotegipe, Ministro dos Negócios Estrangeiros do Brasil, 25/11/1887.
204
Esse periódico vinculou um extenso comentário sobre a celebração da Convenção
Sanitária, apesar de declarar que ainda não conhecia as bases concretas do acordo firmado,
apenas a resolução de que a carne de charque (o tasajo) era refratária ao micróbio do cólera-
morbo. Para a imprensa e para a economia platinas, certamente essa foi a decisão mais
importante do Congresso. A integração das três nações também era destaque:
Como acontecimiento de orden moral, el ajuste pone de manifiesto el
avanzado grado de civilización a que los tres países han llegado: solamente
los pueblos cultos realizan actos de ese género, impulsados siempre por
intereses de un carácter elevado.
Pueblos que se quieren mal y que mastican el freno deseosos de irse á las
manos, no se armonizan como los firmantes de la convención celebrada,
que ampara la vida y los intereses materiales permanentes de sus habitantes.
Aseguramos que en nuestro país ha causado una simpática impresión la
noticia del ajuste trascrito en Río Janeiro.
Cada a que pasa se acentúan más las personalidades de las naciones de
nuestro continente, aprendiendo á dilucidar sus conveniencias dentro de los
sentimientos tranquillos y levantados que hacen solidaria la existencia de
los pueblos civilizados de la tierra.
209
Juntamente com o discurso do desentrave ao comércio, estava o da civilização, em
contraposição à barbárie vivenciada por esses países nas décadas anteriores, com a eclosão da
Guerra do Paraguai. Esse discurso servia, ainda, para demonstrar ao resto do mundo o quanto
esses países haviam avançado nas suas negociações, sem mais recorrer à belicosidade para
solucionar problemas que atingiam a suas populações indistintamente, as epidemias.
Em outros periódicos, o discurso de que a civilização finalmente vencera a guerra e a
barbárie nas relações internacionais desses países, também foi predominante. A comemoração
da assinatura da Convenção Sanitária do Rio de Janeiro era uma ode ao progresso material e
moral dessas nações. No jornal argentino La Nación, recordava-se a falta de um acordo
internacional por parte dos Estados sul-americanos que tivesse medidas eficazes contra a
propagação de epidemias, até aquela data, e que, com a Convenção Sanitária, as mais diversas
querelas relacionadas às doenças epidêmicas seriam finalmente solucionadas.
Las susceptibilidades y las desinteligencias sin ran de ser han
desaparecido para ceder el campo al sentimiento de solidariedad que hoy
prevalece felizmente. En vez de la dispersión y discordancia que debilitaban
las fuerzas aisladas, tenemos, pues, hoy la comunidad de acción y de
propósitos que la vigoriza. Este es el primero de los importantes resultados,
obtenidos y del que fluyen, a su turno, otros no menos plausibles.
Congregados para estudiar la cuestión sanitaria, bajo su faz internacional,
los hombres distinguidos que representaron en la convención al Brasil, á la
209
Idem, ibidem.
205
República Uruguaya y á la Argentina, han sido naturalmente llevados á
examinar á fondo los puntos capitales que debía abrazar el acuerdo, y esto
precisamente cuando el mundo entero se ocupa con preferencia de estos
asuntos y cuando las asambleas científicas se reúnen para darnos la última
palabra de los conocimiento actuales.
El debate y dilucidación de tales materias y la adopción de principios fijos y
de reglas racionales que los gobiernos, ha sido, pues, el primero y más
importante fruto de ese acuerdo.
Não se pode perder de vista que as idéias evolucionistas seduziam os cientistas e as
elites letradas de maneira geral. As idéias de civilização de que os povos deveriam se
desenvolver para padrões mais civilizados e que a razão era a grande mãe de todas as ciências
estiveram fortemente presentes nos discursos da imprensa da época.
Além das opiniões emitidas pelos jornais argentinos, teve destaque ainda um evento de
comemoração da Convenção Sanitária Internacional, ocorrido no dia 3 de dezembro de 1887.
De acordo com os informes do diplomata em Buenos Aires, o Barão de Alencar, ao ministro
dos Negócios Estrangeiros do Brasil, o Barão de Cotegipe
210
, a corporação médica argentina
oferecera um banquete ao médico Juan B. Gil, presidente do Departamento de Higiene, e aos
delegados técnicos argentinos José Astigueta e Telémaco Susini que participaram da
Confencia do Rio de Janeiro. O próprio Barão de Alencar compareceu à festividade como
convidado informal, embora tenha demonstrado certa insatisfação com as comemorações
argentinas. Os dois países possuíam rivalidades históricas, e a diplomacia não deixava de
demonstrar isso, como mostram as impressões do ministro, na correspondência encaminhada
ao Brasil: “não podendo deixar de falar, à vista das manifestações feitas ao Governo Imperial
e aos médicos brasileiros, pronunciei algumas palavras ditadas unicamente pelo desejo de
corresponder ainda que mal a essas manifestações, e as benévolas provas de deferência que se
me dispensaram”.
Os espaços de sociabilidade, como as festas, são importantes momentos de
estabelecimento de laços de identidade e de redefinição dos papéis sociais. Esse banquete
buscava ratificar, em outro espaço, uma decisão político-diplomática, tomada no espaço
institucional dos gabinetes estatais, socializando as decisões e agregando valor simbólico a
esse evento.
Tuvo lugar anoche en el café de Paris el banquete ofrecido a los Doctore
Gil, Astigueta y Susini, celebrando la Comisión Sanitaria Brasilero-
Argentino-Oriental.
210
AHI/RJ, Legação do Brasil em Buenos Aires, Corresponncia do Barão de Alencar, em Buenos Aires, ao
Barão de Cotegipe, Ministro dos Negócios Estrangeiros do Brasil, 16/12/1887.
206
El salón estaba bellissimamente ornamentado contribuyendo á darle mayor
realce la iluminación eléctrica instalada por el señor Varela luz suave, fija
hermosa.
La concurrencia pa de 100 personas sin duda, compuesta de personas
altamente colocadas en la ciencia, en las letras y el comercio.
[...] Hace mucho tiempo que no hemos visto una reunión más numerosa de
personas distinguidas del país, de todos los colores políticos: ha sido un
merecido homenaje á la Convención Sanitaria, llamada triple alianza por el
Presidente del Departamento Nacional de Higiene Dr. Gil.
211
A alusão à Guerra do Paraguai ou da Tríplice Aliança, como é denominada pela
historiografia platina, é bastante significativa nesse momento. Vale recordar que, logo após o
início do conflito, o Brasil uniu-se com a Confederação Argentina e o Uruguai contra o
Paraguai e, juntos, formaram a denominada Tplice Aliança. Como se destacou
anteriormente, houve uma mudança fundamental nas relações internacionais entre esses países
entre a primeira metade e as últimas décadas doculo XIX, quando os temas militares deram
lugar aos temas de interesse econômico e sanirio. Interessava, agora, a esses países, seu
desenvolvimento econômico, com o fortalecimento de suas exportações e a importação de
o-de-obra européia.
A Guerra do Paraguai deixou seqüelas nas relações entre o Império e as Repúblicas
platinas, mas, de alguma forma, a Convenção Sanitária de 1887 apontava na direção de um
novo equilíbrio potico regional. Enquanto o Brasil saía “vitorioso” da guerra, a Argentina
perdia terririo. Com a Convenção, as autoridades brasileiras tiveram que se render às
conclusões obtidas pelos médicos platinos, em especial o cientista uruguaio José
Arechavaleta, o que ocasionou um novo equilíbrio regional, em que as Repúblicas saíam,
enfim, vitoriosas em suas opiniões e nas decisões governamentais.
O jornal La Nación, publicado em 4 de dezembro, trouxe a descrão da festividade,
destacando a participação dos homenageados. Outros periódicos argentinos também fizeram
menção ao banquete, como o La Prensa. A nota publicada em 6 de dezembro destacava o
caráter civilizador da Convenção Sanitária e o fato de que a ciência era fundamental para o
aprimoramento dos povos, e o congresso sanitário era uma prova irrefutável disso.
No solamente se ha celebrado y firmado un tratado de triple alianza
sanitaria empleando la hermosa y expresiva frase del Presidente del
Departamento Nacional de Higiene, sino que se ha labrado una notable
victoria del progreso, que eleva á las naciones signatarias al nivel de las
naciones que ocupan el primer rango de la civilización moderna. [...]
La discreción con que se han conducido y la facilidad con que han
desempeñado su misión, con la colaboración de sus colegas, son hechos que
211
Idem, ibidem. Em anexo à corresponncia, o jornal La Nación de 04/12/1887.
207
ponen en evidencia esta verdad consoladora: que las nacionalidades
sudamericanas han adquirido la ilustración y el aplomo necesarios para
dilucidar, en el terreno de la ciencia y de la concordia sincera, las más altas
cuestiones que afectan su existencia.
212
A crença na ciência positiva, no progresso científico é um fenômeno do século XIX. O
desenvolvimento das ciências naturais, como a Biologia, provocou nas elites européias e
latino-americanas a esperança de melhoria da qualidade de vida de suas populações, ainda que
também tenha gerado as teorias raciais de branqueamento, classificando os estágios de
desenvolvimento dos povos segundo a coloração de pele, numa escala ascendente: quanto
mais branca a pele, mais desenvolvido o país e, quanto mais negra, mais atrasado (Schwartz,
1993).
As últimas décadas do século XIX foram de intensas mudanças no que se referem às
noções de doença e saúde até então conhecidas e reforçaram a idéia de progresso e da marcha
civilizatória. Da velha visão de higiene, determinada por hábitos urbanos, pela ação
miasmática do ambiente e, até mesmo, pela vontade divina, passou-se à teoria da saúde
pública sustentada por uma nova epidemiologia, cuja culminação ocorreu nos trabalhos de
Pasteur e Koch. A nova saúde blica teve como propósito erradicar as doenças por meio da
eliminação dos microorganismos. De acordo com Eduardo Quevedo e Gutiérrez (1996,
p.307), esta manera de entender la enfermidad y la acción sobre ella, tendrá una grande
importancia para la medicina latinoamericana de finales del siglo XIX y comienzos del XX”.
A nova teoria microbiana, como enfatizou Georges Canguilhem (1977, p.62), comportava “a
promessa, para o futuro, de cura e sobrevivência para milhões de homens e de animais”.
A ciência oitocentista também destacava a importância da higiene, estritamente
articulada aos problemas poticos e ecomicos causados pelas doenças. Rosen (1994, p.181)
ressalta que, na Inglaterra, por exemplo, a criação de leis sanitárias estava conectada com a
nova ordem econômica e social e que não era uma “preocupação pelo bem-estar do pobre do
que pela crescente compreensão, a partir de 1850, de que as doenças endêmicas e epidêmicas,
causadas por esgotamento imperfeito ou alimento estragado, eram um problema da
comunidade inteira”. Percebia-se, ainda, que os custos com o surgimento das mais diversas
enfermidades representavam um desperdício social e um prejuízo para as indústrias.
Enquanto os jornais argentinos destacavam o progresso da ciência e o avanço político
dos três países, os periódicos uruguaios enfatizaram os problemas advindos com a interrupção
212
Idem, Jornal La Prensa, 06/12/1887.
208
da exportação da carne de charque e reclamavam um acordo comercial complementar ao
acordo sanitário. Como enfatiza o jornal La Razon de 10 de janeiro de 1888:
La Convención sanitaria ha garantido por ahora la salida de nuestros
productos saladeriles, pero no ha podido ponerlos á cubierto de una
recrudescencia de la política proteccionista brasilera, que se trajese por
fuertes subas en las tarifas imperiales.
El mismo ministro doctor Ramírez ha inculcado la necesidad de garantir por
ese lado la existencia de las grandes industrias nacionales, cuando lijo á los
miembros del comercio que concurrieron a felicitarlo, que la Convención
Sanitaria exigía el complemento del tratado de comercio.
Es este únicamente el que puede asentar con solidez el intercambio entre
dos países destinados á aumentarlo progresivamente por la diversidad de
sus productos principales.
213
O Uruguai, até as últimas décadas do século XIX, continuava sendo o maior produtor
de carne de charque e o maior abastecedor dos mercados brasileiros. Apesar do processo de
modernização, com a substituição da carne salgada pela carne congelada, com os novos
vapores frigoríficos, e as culturas da e do trigo que se impunham como atividades mais
lucrativas à nova fase do capitalismo no início do século XX, é certo que muitos saladeiros
representavam uma elite econômica importante e influente na potica do país (BARRÁN;
NAHUM, 1978).
Além disso, apesar do declínio da exportação da carne seca uruguaia ao Brasil, com o
processo de abolição da escravidão e com o aumento da produção de charque no Rio Grande
do Sul, os saladeiros orientais não modificaram seu ramo de trabalho rapidamente, pois essas
mudanças exigiam altos investimentos na pecuária e na compra de novos equipamentos.
Como ressaltava a Associação Rural do Uruguai, “la producción en Rio Grande, sin embargo
y á pesar de su aumento, no es todavia suficiente para llenar el consumo regular de ese
artículo en el Império”
214
. Portanto, eles confiavam na existência de um mercado consumidor
seguro e duradouro.
Em função disso é que, com a assinatura da Convenção Sanitária e com a “vitória” do
ponto de vista uruguaio produzido pelo farmacêutico JoArechavaleta de que a carne de
charque não era transmissora do cólera astico, o Uruguai exigia mais segurança no comércio
exterior com o Brasil.
213
AHI/RJ, Legação do Brasil em Montevidéu, Correspondência de João Duarte da Ponte Ribeiro, Chefe da
Legação Imperial em Montevidéu ao Barão de Cotegipe, Ministro dos Negócios Estrangeiros do Brasil,
10/01/1888. Em anexo à correspondência, o jornal uruguaio La Razon de 10/01/1888.
214
Revista de la Asociación Rural del Uruguay, “La carne tasajo”, Ano XV, número 20, 31/10/1886.
209
O jornal de Montevidéu, La Razón, ao finalizar o artigo citado, apesar de ter
enfatizado os prejuízos obtidos pelos pecuaristas orientais, sinalizou a importância do acordo
sanitário, afirmando que creemos que la misión especial, disipando prevenciones poticas y
económicas, y estrechando la amistad entre los dos países, nos ha garantido moralmente por
ahora contra una nueva suba de derechos” e pedia soluções mais definitivas para o problema
da exportação de carne seca uruguaia.
Outro periódico uruguaio, El Siglo, um dos mais duradouros durante o século XIX,
destacava igualmente a preocupação com as questões comerciais. Observa-se a prioridade
desse tema na imprensa local, pois todas as notícias encontradas aparecem em destaque na
primeira página desse jornal, em sua coluna principal. Para o Uruguai, era mais importante a
assinatura de um acordo comercial do que a de um convênio sanitário, como destaca o jornal:
En medio de la natural satisfacción que ha causado en Montevideo la
celebración del convenio sanitario firmado en Río de Janeiro, no podemos
ni debemos olvidar que cuando los puertos del Imperio estaban cerrados
para el tasajo del Río de la Plata, era opinión general y casi unánime que la
clausura de los puertos respondía, no solamente á precauciones sanitarias,
sino también á miras proteccionistas. Se daba por seguro que el Gobierno
imperial quería proteger a los saladeristas de Río Grande, colocándoles en
posición de poder resistir con ventaja la competencia de las carnes saladas
enviadas del Plata.
215
O jornal El Siglo não realizou uma análise detalhada da convenção e do regulamento
sanitários, pois a preocupação era mais com o fim das barreiras comerciais do que com o
impedimento da chegada de epidemias. Rapidamente, o periódico destaca o sistema de
quarentena estabelecido pela Convenção:
el Gobierno argentino, como el oriental y como el brasilero, han consultado
sus verdaderos intereses y sus conveniencias verdaderas. En presencia de
dos sistemas opuestos y encontrados, cuyos términos extremos son la
clausura de los puertos por una parte, y por otra la supresión total de las
cuarentenas, la conferencia reunida en Río Janeiro parece que ha adoptado
un sistema mixto, que lo único que excluye en absoluto es la clausura total
de los puertos. En este punto ha cedido el Gobierno del Brasil, después de
haberse convencido por las demostraciones decisivas del señor
Arechavaleta, de que no hay el menor peligro ni la posibilidad más remota
de que el microbio colérico se albergue en la carne tasajo.
216
Os uruguaios ainda se ressentiam em relação ao Brasil pelo fechamento dos portos ao
charque platino. Para eles, a solução definitiva para esse problema o advinha apenas da
215
BNU, Jornal El Siglo, 30/11/1887.
216
Idem, 23/11/1887.
210
convenção sanitária, cujo Artigo afirmava que as partes contratantes se obrigavam a “no
recurrir a la clausura de los puertos respectivos, ni a rechazar navío alguno, cualquiera que
fuese el estado sanitario de a bordo”
217
. Era preciso, ainda, que os três países firmassem um
acordo comercial.
Tanto assim que, quando os delegados do Congresso voltaram para o Uruguai, depois
de ter sido concluída e firmada a Convenção Sanitária, a imprensa local noticiou a ausência de
Carlos Maria Ramirez, ministro plenipotenciário do Uruguai e chefe da missão especial, no
navio ancorado no porto de Montevidéu. O ministro teria ficado mais algum tempo no Brasil
tentando diminuir os impostos sobre a carne salgada oriental ou, até mesmo, de acordo com as
especulações da imprensa, travar, junto às autoridades brasileiras, um acordo comercial
vantajoso para os interesses de seu país.
Nos llamó la atención al saber que viniendo en el vapor Portugal el doctor
Zumarán y los señores Arechavaleta y Regúles, se hubiese quedado todavía
en Río Janeiro el doctor don Carlos María Ramírez; y en el mismo día dio
un diario la explicación del hecho, manifestando que lo que había hecho
quedarse algún tiempo más el plenipotenciario oriental era la esperanza de
obtener antes de su venida alguna rebaja en los derechos de introducción,
impuestos en el Brasil á las carnes de esta Reblica.
218
Depois de encerradas as atividades do Congresso Sanitário, ainda que o Uruguai
tivesse saído com vantagens do ponto de vista científico, já que prevalecera sua opinião sobre
a não-transmissão do lera pelo charque, esse país dependia financeiramente do mercado
consumidor brasileiro. Para isso, manteve o ministro Carlos Maria Ramirez na Corte imperial,
para que buscasse a assinatura de um acordo comercial. No entanto, ele não conseguiu
negociar o tão ambicionado acordo comercial, conforme relata o próprio diplomata:
Nada han obtenido mis atentos y perseverantes esfuerzos. Persuadido de
que en estos momentos la decisión del Gobierno Imperial no nos seria
favorable, sobre todo en cuanto á la rebaja inmediata de los derechos de
importación de la carne tasajo, crque debía abstenerme de urgir por una
contestación categórica á la nota del 26 de setiembre en que dejé planteada
la cuestión.
219
A delicada relação diplomática entre o Brasil e o Uruguai ims cautela ao ministro
oriental, que acabou adiando a decisão de enfrentar outro debate potico com o Império. No
217
Convención Sanitária Internacional entre Uruguai, Argentina e Brasil, 25/11/1887.
218
BNU, Jornal El Siglo, 04/12/1887.
219
Idem, ibidem, 04/01/1888. Cópia transcrita pelo jornal da carta do dr. Carlos Ramirez enderada ao ministro
das relações exteriores do Uruguai, em que anunciava seu retorno do Brasil em 28/12/1887.
211
entanto, os uruguaios continuavam a ter uma preocupação excessiva com as exportações de
carne seca. Como ressalta Juan Oddone (2002, p.621),
As exportações de charque caíram enormemente em 1875, mas depois
experimentaram um crescimento sustentado até o final do século; não
obstante, as flutuações no preço que o charque podia comandar foram
consideráveis e a economia do gado passou por um período de
superprodução. A partir da década de 1870, portanto, a economia do
Uruguai estava cada vez mais sujeita às oscilações das exportações de seus
produtos primários. Essa dependência implicou um alto grau de
vulnerabilidade a mudanças econômicas externas, que tiveram efeitos
acentuados e contraditórios sobre a estabilidade do país.
No âmbito das autoridades médicas, o Uruguai igualmente preparou uma homenagem
ao farmacêutico José Arechavaleta, no dia 27 de novembro de 1887, como informou o
periódico brasileiro Jornal do Commercio
220
. Além disso, a elite econômica uruguaia conferiu
reverências a Arechavaleta, oferecendo-lhe o título de sócio honorário da Associação Rural do
Uruguai. Figura importante no Congresso Sanitário do Rio de Janeiro, como já se destacou no
capítulo anterior, ocupou papel de destaque junto à comissão técnica do congresso sanitário.
No dia . de dezembro de 1887, logo após o retorno do Brasil da comissão médico-
diplotica uruguaia,
La Junta Directiva de la Asociación Rural, en sesión de anoche, ha resuelto
le sea discernido el título de Socio Honorario, en rito á los servicios
prestados por usted al país, en la misión científica que le fue confiada por el
Superior Gobierno acerca del Imperio del Brasil.
Los resultados de esa misión, altamente benéficos para la principal industria
nacional, se deben en gran parte á las demostraciones hechas por usted, y la
Asociación Rural, segura de interpretar fielmente el sentimiento público y
en particular el de nuestros ganaderos y saladeristas, le felicita con la mayor
efusión por el triunfo científico que ha obtenido, y le agradece el empeño y
contracción dedicada en favor de los intereses productores de la
República.
221
Em resposta, Arechavaleta afirmou que “he tenido la fortuna de haber contribuido con
mis esfuerzos a abrir las puertas de los mercados extranjeros á los productos de la principal
industria nacional” e destacava a importância da Associão para o crescimento econômico e
o bem-estar nacional. Vale recordar que foi a Associão que solicitou as pesquisas científicas
com a carne seca à Faculdade de Medicina de Montevidéu. Os vínculos entre a Associação e o
220
BN/RJ, Jornal do Commercio, 27/11/1887.
221
Revista de la Asociación Rural del Uruguay, “El profesor Arechavaleta”, Ano XVI, número 23, 15/12/1887.
212
Estado uruguaio eram muitos fortes, e a Faculdade de Medicina, sustentada pelo Estado,
deveria prestar assistência àqueles que investiam no desenvolvimento capitalista do país.
Além disso, formou-se uma comissão organizadora de homenagens, composta pelos
homens do comércio montevideano, para “regalar un álbum al doctor Ramírez, una placa al
doctor Regules [...] y al profesor Arechavaleta se le regaló una casa en premio además, de sus
trabajos científicos y de su abnegada conducta durante la ultima epidemia colérica”
(ACEVEDO, 1934, p.398). Ou seja, houve um reconhecimento da sociedade local em relação
ao trabalho da comissão técnica e da diplomacia, porque resolvera um grave problema para a
economia oriental, qual seja: a produção e comercialização do charque para o mercado
brasileiro.
No Brasil, pelo menos três jornais de circulação na Corte imperial fizeram referência,
ainda que com abordagens totalmente distintas, ao evento do Congresso Sanitário de 1887: o
Jornal do Commercio, o Diário de Notícias e O Paiz
222
.
O Jornal do Commercio somente noticiou a ocorrência do Congresso Sanitário, a data
do seu encerramento, 25 de novembro, e trazia a transcrição da fala do Barão de Cotegipe,
ministro dos Negócios Estrangeiros do Brasil, que encerrou as atividades: todos se
empenharam na resolução de um assunto que tantos anos preocupa o espírito dos homens
públicos dos três Estados”
223
. Esse periódico era praticamente uma espécie de diário oficial do
governo, um jornal de opinião e mais um compilador dos acontecimentos do Império, daí não
haver nenhuma discussão acerca da assinatura da convenção sanitária.
Ao contrário deste, os outros dois jornais publicaram um interessante debate em torno
do tema sanitário. Uma das questões levantadas por eles foi o fato de um país monarquista
assinar um tratado higiênico-sanitário com dois países republicanos. O Diário de Notícias
iniciou o debate da temática:
As folhas da manhã, de ontem, anunciaram ao público fluminense que as
bases do acordo argentino que regula no futuro os nossos atos sanitários,
foram aceitas pelos plenipotenciários do Congresso, e vão ser remetidas aos
respectivos governos para a definitiva ratificação. Está, pois, consagrado o
principio internacional de que, em nossos atos sanitários, nós teremos que
regular pelas vistas e interesses das duas repúblicas vizinhas. Surja, embora,
das águas do Prata a mais destruidora peste, sob os mais variados nomes de
222
Certamente, outros periódicos citaram o Congresso Sanitário de 1887, no entanto, elegeram-se os mais
representativos.
223
BN/RJ, Jornal do Commercio, 25/11/1887.
213
cólera, febres eruptivas ou tifóides; morram os contagiados aos milhares,
teremos que aceitar, sem objeção, os gêneros que dali nos vierem.
224
Até esse momento, apesar de terem ficado evidentes as rivalidades poticas entre o
Brasil e a Argentina, tanto no Congresso de 1873 quanto no de 1887, a dualidade monarquia
versus república ainda não havia aparecido de forma explícita. Desde que o Brasil declarou
sua independência de Portugal e as colônias espanholas iniciaram seu processo de
independência na primeira metade do século XIX, o fato de o Brasil ter se tornado uma
monarquia cercada por república por todos os lados acompanhou o processo de construção do
Estado imperial. A partir da década de 1850, construiu-se uma potica externa brasileira
preocupada com as relações com as Repúblicas latino-americanas. Afirma Ferreira (2006,
p.19), em seu estudo sobre a potica externa do governo imperial em relação ao Rio da Prata,
na gestão de Paulino José Soares de Sousa (Visconde do Uruguai) no Ministério dos Negócios
Estrangeiros, que a diplomacia brasileira foi baseada
num discurso que pregava a defesa da ordem e da civilização contra o
caudilhismo e a barbárie das repúblicas vizinhas; o que estava em jogo, no
entanto, era fundamentalmente a consolidação do Estado imperial e a
seguraa de suas instituições, especialmente a preservação da unidade e
integridade territoriais. Em outras palavras, tratava-se de completar o
processo de construção do Estado nacional brasileiro não do ponto de
vista da soberania interna mas ainda do da soberania externa.
A existência da monarquia dependia, portanto, da manutenção de uma supremacia do
Brasil em relação a essas duas Repúblicas. É a tese também de Moniz Bandeira (1995), a de
que o Brasil empreendeu uma potica expansionista em direção ao Prata durante o século
XIX, até a Guerra do Paraguai, em 1870, quando as relações com esses Estados se modificam
em direção à integração e à diminuição dos conflitos diploticos e bélicos.
Nas décadas finais do século XIX, o Brasil passou a viver uma intensa campanha
republicana e abolicionista, que culminaram com a derrocada do Império em dois sentidos: a
Abolição da Escravidão em 13 de maio de 1888 e a Proclamação da República brasileira em
15 de novembro de 1889
225
. Portanto, o debate travado entre dois jornais, o monarquista
Diário de Noticias e o republicano O Paiz, esteve assentado em um contexto de mudaas
estruturais no país.
224
Legação do Uruguai no Brasil, Correspondência do dr. Carlos Maria Ramirez ao Ministro das Relações
Exteriores do Uruguai o dr. Idelfonso Garcia Lagos, 26 de novembro de 1887. Em anexo, o jornal Diario de
Noticias de 22/11/1887.
225
uma extensa bibliografia sobre abolição e república no Brasil. Ver Emília Viotti da Costa (1999) e José
Murilo de Carvalho (1987).
214
No artigo publicado no Diário de Notícias, a questão principal era exatamente essa:
como o Império se submeteu aos ditames de duas Repúblicas? O jornal, declaradamente
monarquista, teceu duras críticas ao Congresso Sanitário, afirmando que “a presente
convenção é um tratado de escravismo com os republicanos do Prata, em que a dignidade, os
antecedentes, os interesses da pátria foram sacrificados à conversação de um poder, que não
tem apoio na opinião nacional”
226
. O jornal tentava provar que o Gabinete do Barão de
Cotegipe havia traído o Império, abrindo as portas para a entrada de iias republicanas. Não
, no entanto, nenhuma crítica fundada nas discussões do congresso sanitário ou na
assinatura da convenção sanitária. O artigo tinha como principal objetivo atacar o Gabinete
Cotegipe e os republicanos e defender a monarquia.
Gabem os republicanos este tratado de traão, cale-se o povo ante tamanha
derrota, triunfem os inimigos de nossas indústrias, de nossa imigração, de
nosso crédito financeiro. Não seremos nós que aplaudiremos a planta
charlatônica que esmagou o nosso pundonor nacional, nem que nos
calaremos ante os altos interesses coligados.
227
O periódico republicano O Paiz tratou de responder às críticas feitas pelo Diário de
Noticias, que o citara na edição analisada, ao afirmar que “de todas as folhas que noticiaram a
conclusão do convênio, uma apenas, O Paiz, disse algumas palavras encomiásticas, fazendo
ressaltar a assinalada viria que os enviados do Prata tinham alcançado sobre os nossos
diplomatas e médicos”. Em 26 de novembro de 1887, relatava o periódico que
Celebramos e aplaudimos o fato do acordo (cujas cláusulas ainda nos são
desconhecidas) porque ele veio, na nossa opino, firmar um princípio de
jurisprudência internacional altamente favorável às relações recíprocas entre
os três Estados Americanos, princípio que ainda a esta hora é uma aspiração
dos povos e dos governos do velho continente, infelizmente ainda não
traduzida em nenhum instrumento diplomático.
228
Essa afirmação retoma uma questão importante para este trabalho. No capítulo dois,
foram discutidos os congressos sanitários internacionais e enfatizou-se o equívoco de uma
parte da historiografia que afirmava que a primeira Convenção Sanitária Internacional foi
assinada em Veneza em 1892. Na citação acima, os contemporâneos do Congresso Sanitário
226
Idem, ibidem.
227
Idem, ibidem.
228
AGNU, Legação do Uruguai no Brasil, Corresponncia do dr. Carlos Maria Ramirez ao Ministro das
Relações Exteriores do Uruguai o dr. Idelfonso Garcia Lagos, 26 de novembro de 1887. Em anexo, o jornal “O
Paiz” de 26/11/1887.
215
de 1887 ocorrido no Rio de Janeiro apontavam o pioneirismo do Império do Brasil e das
Repúblicas Platinas na assinatura de um convênio ainda inédito no mundo ocidental.
Assim como nos jornais argentinos, o destaque dado pelo jornal brasileiro O Paiz
também foi acerca da vitória da ciência e da civilização sobre a ignorância e a barbárie.
A solução do problema sanitário e higiênico foi confiada às autoridades
competentes, aos representantes da ciência reunidos em congresso para o
estudo e debate das questões concernentes a essas crises periódicas das
epidemias que tão fundamentalmente perturbavam até aqui as relações
políticas e comerciais dos três países.
Essas autoridades, que nós não podemos deixar de respeitar, pronunciaram-
se sobre a questão, debateram no terreno científico as diversas hipóteses,
forneceram enfim as bases que tem de ser estabelecida a Convenção
Sanitária, no seu caráter político; e este foi o fato que aplaudimos, não
sendo doloroso ao nosso amor próprio nacional que a iniciativa houvesse
partido das repúblicas nem que obtivessem a vitória os princípios
proclamados pelas autoridades científicas do Estado Oriental, a quem cabe
diretamente a palma neste acordo internacional.
Certamente o conhecimento desse fato pelos seus contemporâneos dava ao Congresso
Sanitário uma projeção muito maior do que a alcançada no âmbito regional. A imprensa
brasileira destacava, além do caráter civilizatório do evento, as diferenças poticas entre o
Brasil e o Prata.
6.3. REPERCUSSÕES AMERICANAS DA CONVENÇÃO SANITÁRIA
INTERNACIONAL DE 1887
Apesar do alcance, em um primeiro momento, mais regional do acordo de 1887, no
ano seguinte os diplomatas dos três Estados passaram a convidar os demais países da América
do Sul para que aderissem à Convenção Sanitária. Era uma campanha de adesão, certamente
para dar ao acordo maior credibilidade e abrangência e maior eficácia no que se refere às
medidas de profilaxia e prevenção das doenças epidêmicas. As autoridades diplomáticas
envolvidas na confecção do acordo, depois de terminada a negociação, começaram a articular
uma ampliação do alcance da Convenção Sanitária. Apesar de ter sido elaborada para resolver
problemas regionais entre o Brasil e o Prata, os problemas das epidemias atingiam outros
países da América do Sul.
216
O convênio sanitário do Rio de Janeiro, portanto, não ficou restrito a esses países;
alcançou dimensões continentais, na medida em que outros países americanos tiveram a
possibilidade de adotar o acordo na sua própria legislação.
O governo brasileiro deu início à negociação com a Argentina e o Uruguai para que
pudessem convidar os demais governos sul-americanos a aderir à Convenção Sanitária pois,
de acordo com o último protocolo de negociação do convênio sanitário no final de 1887, os
três países declararam que “los mismos señores convenieron en reservar a los Estados de la
América del Sud que no tomaron parte en esta negociación, la facultad de acceder á la
respectiva Convención, á su Reglamento en el plazo de doce meses contados desde la fecha
de la comunicación que de el efecto le fuere hecha”
229
. No entanto, a deliberação de convidar
os demais países sul-americanos foi iniciada em . de dezembro de 1889, ou seja, passados
dois anos, e teve a iniciativa do Brasil
230
. A recente República do Brasil começava a despertar
o interesse em se impor como potência regional no século XIX, pois havia logrado, pelo
menos durante a segunda metade desse culo, certo domínio sobre a potica platina. No
início do século XIX, as atenções do Brasil não estavam voltadas para os seus vizinhos
republicanos, porém, no final desse século, ocorre uma mudança na potica internacional
brasileira, como destaca Luiz Cláudio Santos (2004, pp.67-68):
O Império brasileiro, por sua vez, negava sua própria condição de
americano em prol de uma identidade ligada à idéia de civilização, ordem e
estabilidade, qualidades que acreditava “européias”, e que o distinguiam de
seus turbulentos vizinhos. O americanismo brasileiro foi manifestar-se
concretamente nas décadas finais do Império e só teve apoio do Estado e
curso livre na sociedade com a queda da Monarquia.
A Proclamação da República do Brasil em 1889 iria, de fato, modificar as relações
internacionais brasileiras. A partir desse momento, o país não era mais um império rodeado de
repúblicas, mas fazia parte de um projeto maior de estabelecimento e fortalecimento das
repúblicas latino-americanas. Por isso, o Brasil toma a iniciativa de convidar os demais países
sul-americanos de acordo com um novo contexto político.
O Brasil pros, então, convidar todos os países sul-americanos, isto é, Chile, Peru,
Paraguai, Bolívia, Equador, Colômbia e Venezuela, com exceção das Guianas inglesa e
229
Relatório (ano de 1887) apresentado á Assembléia Geral Legislativa na terceira Sessão da Vigésima
Legislatura pelo Ministro e Secretario de Estado Interino dos Negócios Estrangeiros Rodrigo Augusto da Silva.
Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1888.
230
AGNU, Legação do Brasil no Uruguai, 1888-1890. Correspondência do Ministério de Negócios Estrangeiros
do Brasil, J. Francisco Viana, ao Ministro Plenipotenciário no Uruguai, João Duarte da Ponte Ribeiro.
17/10/1889.
217
francesa. Os três governos acordaram em enviar uma mesma correspondência aos governos
dos demais países latino-americanos, em 1º. de dezembro de 1889, um convite de adesão ao
pacto sanitário firmado em 1887
231
, juntamente com a pia da Convenção Sanitária
Internacional e o Regulamento Sanitário Internacional. O único país a aceitar o convite de
adesão ao Convênio Sanitário foi o Paraguai
232
, numa correspondência de 7 de outubro de
1890, encaminhada aos ministérios dos três governos:
El abajo firmado, Ministro Secretario de Estado en el Departamento de
Relaciones Exteriores, tiene el honor de digirirse á V.E. para manifestarle,
que habiendo obtenido su Gobierno del Honorable Congreso Nacional la
autorización necesaria para adherirse á la Convención Sanitaria y su
respectivo Reglamento ajustados el 25 y 26 de Noviembre de 1887 entre la
República Oriental del Uruguay, la Argentina y la del Brasil, y accediendo
gustosa á la amistosa invitación que los respectivos Gobiernos de aquellas
Repúblicas le hicieron con fecha 1 y 2 de Diciembre de 1889, y á la
recomendación de la Conferencia Internacional de Washington, viene por el
presente á hacerlo, usando de la facultad que para el efecto fue reservada en
el Protocolo de la última Conferencia de los Señores Plenipotenciarios, á los
Estados Sud-Americanos que no tomaron parte en la referida
negociación.
233
Os ministros de Relações Exteriores da Bolívia, em 23 de janeiro de 1890, e o da
Venezuela, de 26 de fevereiro de 1890, apenas encaminharam a cópia do acordo sanitário para
que seus governos pudessem tomar alguma decisão. Como a Bovia havia participado do
Congresso Sanitário Americano ocorrido em Lima/Peru em 1888, provavelmente esse fato
influenciou na decisão de não aderir à Convenção de 1887.
A Combia, em 15 de abril de 1890, justifica que “manifestándole que mi Gobierno
agradece positivamente esa señalada muestra de benevolencia y amistad, pero que se ve
obligado á diferir su accesión á la convención sanitaria á causa de tener necesidad de
modificar antes la legislación del país en puntos relacionados con el objeto de que se trata”
234
.
Talvez pela distância, ou pela característica geográfica peculiar da Colômbia, o governo desse
país não conseguiu equiparar sua legislação com a da Convenção Sanitária.
Por fim, o governo do Peru, em 7 de abril de 1890, agradece o convite e justifica a
o-adesão ao acordo, conforme correspondência encaminhada ao governo uruguaio:
231
Não foram localizadas as respostas do Governo do Chile e do Equador.
232
O Paraguai havia sido convidado pelo Uruguai a participar das negociações da Convenção Sanitária em 1887,
conforme já foi discutido no quarto capítulo.
233
AGNU, Legação do Brasil no Uruguai (1888-1890). Correspondência do Ministério de Relações Exteriores
do Paraguai, do Sr. Juan Centurion, ao Ministro de Relações Exteriores da República Oriental do Uruguai.
07/10/1890.
234
AGNU, Legação do Brasil no Uruguai (1888-1890). Correspondência do Ministério de Relações Exteriores
da Colômbia com o Ministro de Relações Exteriores do Uruguai. 15/04/1890.
218
Convencido mi Gobierno de la importancia de reglamentar las
comunicaciones internacionales en los casos desgraciados de epidemia,
convocó también un Congreso al que concurrieron los representantes de
Bolivia, Chile y el Ecuador, y ese ilustrado cuerpo adoptó conclusiones
semejantes á las que contienen la Convención y Reglamento de
Montevideo.
Sin embargo, colocado el Peen circunstancias distintas á las Repúblicas
de la Costa oriental, por realizarse su tráfico principalmente por la vía del
istmo de Panamá, ha creído indispensable que en un acuerdo definitivo
entrasen todos los gobiernos del Pafico y al efecto ha entablado gestiones
desde fines del año de 1888.
Mientras ese acuerdo no se obtenga, mi Gobierno estima necesario a sus
intereses reservar su opinión respecto á la aquiescencia pedida por el de
V.E. agradeciéndole la invitación que le dirige en la comunicación que
contesto.
235
A República do Peru demonstrava, nessa correspondência, outros aspectos
relacionados às doenças epidêmicas, que eram as condições peculiares dos países banhados
pelo Oceano Pacífico.
Mesmo com a não-aceitação pela maioria dos países sul-americanos, a Convenção
Sanitária Internacional de 1887 no Rio de Janeiro tornou-se modelo para os demais
congressos americanos que ocorreram até o final do século XIX, como o de Lima (1888) e o
de Washington (1889/1890).
O Congresso Sanitário Americano, ocorrido na capital peruana em 1888
236
, foi
diretamente inspirado no de 1887, ocorrido no Rio de Janeiro. Brasil, Uruguai e Argentina
foram convidados a participar, porém não compareceram em função do acordo já estabelecido
no ano anterior. Participaram deste congresso Bolívia, Chile, Equador e Peru.
En este se establecieron reglas generales de profilaxis contra el cólera y la
fiebre amarilla, así como sobre la organización y características de los
lazaretos, las cuarentenas y las desinfecciones, y el tipo de preguntas que se
debían realizar a los pasajeros. También se considero indispensable que
cada país tuviese una oficina central de información sanitaria y que
compartiera con el resto de las naciones los datos epidemiológicos que
produjera. (CUETO, 2004, p.14)
Além do Congresso Sanitário de Lima, a Convenção Sanitária do Rio de Janeiro iria
servir de base para o regulamento sanitário proposto no Congresso Americano de 1889/1890.
No final do século XIX, começavam a ganhar cada vez mais força as ideologias lideradas
pelos Estados Unidos, sob a nova bandeira do pan-americanismo (termo criado na década de
235
Idem. Correspondência do Ministério de Relações Exteriores do Peru com o Ministro de Relações Exteriores
do Uruguai. 07/04/1890.
236
O Congresso Sanitário de Lima de 1888 precisa ser mais bem pesquisado.
219
1880). A Primeira Conferência Internacional Americana foi fruto da ação norte-americana e
ocorreu em Washington de 2 de outubro de 1889 a 19 de abril de 1890, com a participação
dos dezessete países americanos – todos os então existentes, com exceção da República
Dominicana (Santos, 2004).
Pelo exame da agenda do encontro percebe-se claramente a intenção dos
norte-americanos de ampliar o intercâmbio comercial com a América
Latina: medidas tendentes a promover a prosperidade dos diversos Estados
americanos, a união pan-americana de comércio, a comunicação dos portos,
a união aduaneira, pesos e medidas, direitos de invenção, moeda comum e
arbitramento (BUENO, 1997, p.4).
O projeto de união aduaneira proposto pelos Estados Unidos previa a
regulamentação das atividades portuárias em cada país, o que envolvia as questões de
importação e exportação, os direitos e despesas de portos, a classificação e avaliação das
mercadorias e questões referentes à higiene das embarcações e dos portos. Por esse motivo,
foram discutidos projetos de regulamentos sanitários para o comércio entre os países da
América, ainda que o tema sanitário não tenha sido enfatizado nos estudos acerca da primeira
conferência americana internacional. As questões relacionadas à saúde pública estavam na
pauta de praticamente todos os países participantes, daí o interesse geral em uniformizar as
práticas sanitárias nos portos americanos.
Vale ressaltar que, durante a realização da Conferência de Washington, houve a queda
do Império no Brasil e iniciou-se o período republicano. Como destacou Luis Cláudio Santos
com o fim do Império, a delegação brasileira, cuja chefia passou a Salvador de Mendonça,
foi autorizada a dar um “espírito americano” às instrões recebidas” (2004, p.125). Com essa
mudança, a diplomacia republicana do Brasil passou a ser mais propositiva no congresso e a
sugerir mudanças nas relações internacionais entre os demais países americanos:
Com a queda do Império, houve uma guinada também na política externa
brasileira. Buscou-se fortalecer as relações com os Estados Unidos e com a
Argentina e passou-se a apoiar as iniciativas interamericanas. [...] A
Monarquia identificava-se com a Europa e, nesse contexto, era a antítese da
idéia americanista. Com a República, o Brasil pôde, finalmente, assumir sua
identidade americana. (SANTOS, 2004, p.113-114)
As modificações de opinião da diplomacia brasileira no que se referem à temática da
higiene dos portos ficaram evidentes. O Império havia passado as seguintes instruções:
‘Quanto à parte final [higiene e quarentena], é fácil ver que, depois da convenção sanitária
220
firmada com as Repúblicas Argentina e Oriental do Uruguai, o Brasil o pode entrar em
discussão nesta matéria. O que lhe pareceu bom está feito
237
. A diplomacia republicana
tomou para si a iniciativa de propor a extensão da convenção sanitária do Rio de Janeiro aos
demais países americanos, como já havia feito aos vizinhos sul-americanos.
Durante a Conferência Americana, nomearam-se diversas comissões, entre as quais, a
de regulamentos sanitários, que foi composta por delegados dos seguintes países: Nicarágua,
Brasil, Peru, Estados Unidos, Venezuela, Haiti e Uruguai. Essa comissão foi criada em
dezembro de 1889 e, em fevereiro de 1890, apresentou seu relatório para ser submetido aos
membros da Conferência.
As a discussão da importância do estabelecimento de um regulamento sanitário
comum entre os países da América, que pudesse prevenir e diminuir os conflitos gerados
pelas epidemias entre as diversas nações, a Conferência Internacional Americana recomendou
o seguinte, na sessão do dia 28 de fevereiro de 1890:
Que, dado o estado atual das relações entre as nações da América, é tão
fácil como conveniente ao desenvolvimento dessas relações, que haja
perfeito acordo sobre disposições sanitárias; que a maior parte dos portos da
América do Sul sobre o Atlântico se rege e governa pela Convenção
Sanitária Internacional do Rio de Janeiro de 1887; que, embora não conste
que os projetos do Congresso Sanitário de Lima, de 1888, tenham passado à
categoria de fatos internacionais, é de esperar que sejam aceitos pelos
Governos que tomaram parte no mencionado Congresso, visto haverem sido
esses projetos discutidos e aprovados pelos médicos de reconhecida
competência; que a Convenção Sanitária do Rio de Janeiro, de 1887, e os
projetos do Congresso de Lima, de 1888, estão de acordo nas suas
disposições essenciais, de sorte que se pode dizer que constituem um só
corpo de regras e disposições; que, se estas fossem devidamente observadas
em toda a América, impediriam, em qualquer circunstância, o conflito que
se apresentasse entre a obrigação de velar pela saúde pública e o
princípio de liberdade de comunicações entre os povos; que as Nações da
América Central e do Norte não estiveram representadas na Convenção
Sanitária do Rio de Janeiro, nem no Congresso de Lima; poderiam porém
facilmente aceitar e aplicar aos seus respectivos portos em ambos os
Oceanos as já citadas disposições sanitárias.
Recomenda: As Nações representadas nesta Conferência que adotem as
disposições da Convenção Saniria Internacional do Rio de Janeiro, de
1887, ou as do projeto de Convenção Sanitária do Congresso de Lima, de
1888.
238
A indicação das Convenções do Rio de Janeiro e de Lima devem-se, em grande
medida, ao fato de que havia representantes diretos desses países na comissão responsável
237
AHI/RJ 273/3/5, Instruções do Império para a Conferência de Washington de 1889 apud Santos (2004,
p.121).
238
Relatório do Ministério de Relações Exteriores do Brasil do ano de 1890.
221
pela criação de um regulamento sanitário internacional americano. O Brasil e o Uruguai eram
os mais interessados em defender o acordo de 1887, enquanto o Peru propunha a adoção do
regulamento de 1888.
A partir desse momento, não apenas as nações da América do Sul, mas todas do
continente americano eram convidadas a se integrar ao acordo sanitário do Rio de Janeiro. No
entanto, a aprovação de recomendações sanitárias a todos os países participantes ocorreu
em 1902, na cidade doxico, quando se oficializou a criação da Organização Sanitária Pan-
Americana (OPAS).
Os resultados práticos da Conferência de Washington foram ínfimos, pois os
representantes latino-americanos rejeitaram quase todas as propostas dos norte-americanos
(Bueno, 1997)
239
. Mesmo tendo sido aprovada a adoção da Convenção Sanitária do Rio de
Janeiro, ela não foi colocada em prática pelos países participantes e ficou apenas no plano
teórico.
6.4. REPERCUSSÕES EUROPÉIAS: ENTRE PROTESTOS E QUESTIONAMENTOS DA
CONVENÇÃO SANITÁRIA DE 1887
As denominadas Conferências Sanitárias Internacionais, iniciadas em 1851 na França,
o lograram obter um convênio sanitário até o ano de 1892, quando se realizou em Veneza
sétima conferência. As questões poticas, econômicas e diplomáticas, além dos conflitos
existentes entre os países europeus, retardaram a assinatura, em comum acordo, de um tratado
que regulasse os direitos e deveres sanitários de cada país.
Quando o Brasil, a Argentina e o Uruguai assinaram o acordo sanitário de 1887, ele
passava a ser válido para esses países e para todos os outros que se comunicassem, por via
marítima, com os Estados contratantes da Convenção Sanitária do Rio de Janeiro. Daí que,
logo em 1888, quando o acordo passou a ser colocado em prática, iniciou-se uma série de
reclamações por parte, principalmente, de países europeus que mantinham constante
intercâmbio de passageiros e mercadorias com a América do Sul.
Antes de se iniciarem os protestos das autoridades euroias, os diplomatas
informavam aos seus governos a assinatura da Convenção Sanitária Internacional. A legação
239
Clodoaldo Bueno (1997, p.06) ressalta que “das propostas iniciais, a conferência aproveitou apenas a relativa
à criação de uma associação permanente das repúblicas do continente, sob a denominação de ‘União
Internacional das Repúblicas Americanas’. Era uma organização frouxa, destinada a compilar e distribuir dados
relativos ao comércio”.
222
do Império Alemão em Buenos Aires, que representava esse país na Argentina e Uruguai
conjuntamente, informava ao Ministro das Relações Exteriores do Império Alemão, Príncipe
de Bismark, em 30 de março de 1888, sobre a situação do Uruguai neste período:
La influencia de los argentinos que participan en la mayoría de las empresas
financieras y particularmente en el nuevo Banco Nacional, está en perpetuo
crecimiento. Las relaciones de ambos gobiernos evidentemente se han
estrechado debido a la celebración de la Convención Sanitaria y a la
invitación en común para la Conferencia Sudamericana de Derecho
Internacional Privado. A pesar de ello, el Uruguay se queja a veces de su
vecino, debido a medidas argentinas que perjudican el tráfico y a pequeñas
desconsideraciones.
240
Ao mesmo tempo em que informava, demonstrava a existência de conflitos entre a
Argentina e o Uruguai, provavelmente pela continuidade das quarentenas e isolamentos dos
navios provenientes do porto de Montevidéu. O diplomata cita ainda outro congresso, o de
Direito Internacional Privado, que ocorreu em Montevidéu em 1888.
Um dos primeiros protestos registrados contra algumas partes da Convenção Sanitária
Internacional do Rio de Janeiro foi feito pela Legação francesa na Argentina, em uma
correspondência encaminhada ao ministro das Relações Exteriores da Argentina, Quirno
Costa. Em 25 de maio de 1888, escrevia o representante francês Charles Rouvier,
Tengo órden de mi Gobierno de hacer notar a V.E. que las disposiciones de
los artículos que se relacionan en la instalación, a bordo de buques
extranjeros, de médicos argentinos, uruguayos ó brasileros, con especialidad
las de los artículos VII y VIII, como las correspondientes disposiciones del
reglamento anexo constituyen una usurpación, de parte de los tres Estados
que la suscribieron, de la soberanía de las potencias respecto á su propia
marina mercante á la que solo tienen estas el derecho de sujetar á ciertas
condiciones sanitarias de navegación.
[...] Como está universalmente admitido, el buque mercante es verdad que
no representa directamente el poder del Estado a que pertenezca, pero
contiene una asociación que está organizada y regida interiormente de
conformidad á las leyes de ese Estado.
241
Um dia depois, o diplomata francês no Uruguai encaminhou correspondência similar
ao ministro uruguaio de Relações Exteriores, afirmando que “la Convención Sanitaria
recientemente concluída en Río de Janeiro, y que debe ser próximamente ratificada por las
240
Informes diplomáticos de los representantes del Imperio Alemán en el Uruguay 1884-1901. Revista
Histórica (Publicación del Museo Histórico Nacional). Montevidéu: Barreiro y Ramos S.A., 1967. Ano LXI,
Tomo XXXVIII, ns. 112-114. Corresponncia da Legacion del Imperio Aleman en Buenos Aires, sr. Rotenhan,
ao Ministro das Relações Exteriores do Império Alemão, Príncipe de Bismark. 30/03/1888.
241
AHI/RJ, Congressos e Conferências Internacionais, vol. 273-2-25, Congresso Sanitário de 1887, Observações
sobre o Artigo 8º, referente às atribuições conferidas aos inspetores sanirios de navios e motivadas pela
reclamação do E.E.M.P da França na Argentina contra a quarentena imposta ao navio “Equateur”, 25/05/1888.
223
Camaras del Uruguay, - contiene á juicio de mi Gobierno, disposiciones que crée contrarias á
los princípios del Derecho Internacional”
242
. Certamente, havia sido uma orientação do
governo da França para que seus representantes nos três países sul-americanos fizessem
reclamações conjuntas e relacionadas à Convenção Sanitária, tanto assim que os textos das
correspondências são muito similares.
O tema, portanto, era a presença de inspetores sanitários de navios
243
dos três países
contratantes no interior das embarcações de outras nacionalidades, em especial as francesas.
O argumento do agente plenipotenciário francês era o de que a Convenção havia violado os
direitos de cada nação em criar e executar a sua própria legislação sanitária. O ministro
argentino rapidamente entrou em contato com o ministro dos Negócios Estrangeiros do
Brasil, o Barão de Cabo Frio, que o contestou da seguinte maneira:
A Convenção e o Regulamento concedem alguma diminuição nas medidas
de rigor aos navios estrangeiros que se submeterem a certas condições, e
retira ou recusa os privilégios de paquete aos que se não conformarem com
essas mesmas condições. Tudo é voluntário; e pois não há motivo para
reclamações. Declare o Governo francês aos seus nacionais interessados
que não devem aceitar os Inspetores sanitários, e, se quiser, comunique essa
resolução às três Partes contratantes. Isto seria regular, o mais não.
244
Juntamente com essa resposta, o ministro brasileiro deixava entrever nas entrelinhas
do seu parecer que havia outras intenções da França acerca dessas reclamações de intervenção
da soberania. O Barão acreditava que a legação francesa na Argentina quer ao mesmo tempo
conseguir algum favor, e isto não me parece admissível, além de outras razões, porque a
França, não sendo parte contratante, não pode intervir na negociação, sobretudo para ser
beneficiada sem ônus algum”. A afirmação do diplomata fazia sentido, tendo em vista a
importância que esse país estava adquirindo no Rio da Prata.
Não somente a França reclamara da presença dos inspetores sanitários de navio,
igualmente, a legação italiana na República Argentina e na República Oriental do Uruguai
245
manteve contato com os ministérios das Relações Exteriores para expor suas discordâncias
em relação ao convênio sanitário de 1887:
242
Memória do Ministério de Relações Exteriores do Uruguai (1889). Correspondência traduzida (para o
espanhol) entre a Legação da França em Montevidéu, do Conde de Sain-Foix, ao Ministro de Relações
Exteriores do Uruguai, dr. Idelfonso Garcia Lagos. 26/05/1888.
243
Esse cargo o de inspetor sanitário de navio foi implementado na Convenção Sanitária de 1887. Vale
recordar que já se discutiram as funções e competências dos inspetores sanitários de navio no terceiro capítulo.
244
AHI/RJ, Congressos e Conferências Internacionais, vol. 273-2-25, Congresso Sanitário de 1887, Parecer do
Barão de Cabo Frio, de 5 de junho de 1888.
245
Memória do Ministério de Relações Exteriores do Uruguai (1889). Correspondência da Legação da Itália no
Uruguai em 10/07/1888.
224
Quiero esperar que V.E. en su elevado criterio ha de reconocer la
conveniencia que hay en ponerse de acuerdo con el Gobierno del Rey, cuya
marina debe contarse entre las mas importantes que arriban el Plata, antes
de hacer ejecutiva la Convención respecto a las precitadas disposiciones que
tienden a establecer indebida intervención en el régimen interno de los
buques italianos.
246
O que estava em jogo, então, nas relações entre os países europeus e os países sul-
americanos? Como já havia assinalado a correspondência da legação da Itália na Argentina,
esse era um dos países com maior presença no Prata.
Esse período, como já se destacou, foi de forte imigração européia para a América. De
acordo com o historiador argentino Hernán Otero (1999, p.127), na Argentina do século XIX,
a França ocupou o primeiro lugar como modelo cultural e intelectual das classes dirigentes, o
segundo atrás da Grã-Bretanha nos investimentos de capital, e o terceiro depois de
italianos e espanhóis – na composição quantitativa do fluxo migratório”. Portanto, não é
difícil compreende o porquê das preocupações dos franceses com o estabelecimento de
normas sanitárias para os portos platinos.
Assim como na América, a Europa ainda não havia se livrado das ondas epidêmicas
periódicas de lera e febre amarela, e seus navios estavam vulneráveis a quarentenas,
desinfecções e, em último caso, a clausura dos portos, o que ocasionava prejuízos em suas
indústrias e em suas exportações. A quinta pandemia de cólera-morbo, ocorrida entre 1881 e
1896, atingiu França, Itália e Espanha e, logo em seguida, Chile, Argentina e Uruguai
247
(GÚZMAN; MONTES, 2000).
Apesar de estarem sendo atacados pela pandemia, esses Estados europeus cobravam
das autoridades argentinas um tratamento diferenciado. O interesse dos países sul-americanos
pelos imigrantes era patente, e a Europa buscava se aproveitar disso para ganhar vantagens
econômicas e políticas.
E, de alguma forma, os argentinos tentavam evitar que ocorressem transtornos com as
embarcações oriundas da Europa. Quando houve a epidemia de lera na Itália e no Chile, as
autoridades uruguaias impuseram um período de quarentenas para os navios procedentes
desses países. No entanto, como informou o plenipotenciário brasileiro em Montevidéu em 9
de agosto de 1887, a Argentina buscou impedir:
246
Legação da Itália na Argentina em 25/06/1888.
247
Vale recordar que o cólera-morbo, introduzido em Buenos Aires no final de 1886, veio num navio italiano
que trazia imigrantes.
225
Tenho a honra de confirmar o seguinte telegrama, que hoje dirigi a V.Exª.,
dando conta da resolução que este Governo (Uruguai) tomou para as
procedências da Itália e do Chile. ‘Este Governo estabeleceu observação
sanitária na ilha Flores, para procedências Itália e Chile desde ontem.
Buenos Aires pede excetuar dessas quarentenas paquetes que tenham
dico argentino. Indica estabeleceu corpo médico internacional. Hoje
pretendo indagar pensamente deste Governo’. A Junta de Saúde de Buenos
Aires dirigiu-se à de Montevidéu pedindo que sejam excetuadas da
observação quarentenária os paquetes procedentes da Itália que trouxerem
dicos argentinos e propôs, que as autoridades orientais estabeleçam com
as argentinas um corpo médico internacional.
248
A Argentina empreendeu um grande investimento, nas últimas décadas do século XIX,
na potica imigratória. Muitos representantes diplomáticos foram enviados à Europa para
divulgar o país e atrair os imigrantes. Além disso, em alguns momentos o Estado chegou a
oferecer passagens subsidiadas, para facilitar a vinda desses povos e alcançar os objetivos
estatais de crescimento populacional e econômico. Como explicita o documento acima, até
mesmo dicos argentinos eram colocados nos navios que transportavam imigrantes para que
pudessem, certamente, expedir cartas de saúde e cuidar para que chegassem aos portos de
destino sem moléstias pestilenciais.
A partir da década de 1880, a imigração passou a ser uma questão prioritária para o
Estado argentino. O objetivo era que os imigrantes pudessem povoar o território e aumentar a
oferta de mão-de-obra no mercado de trabalho (MARTINEZ; HERNANDO, 2006). Para se
ter uma iia da importância da Itália e da França, a Tabela 4 demonstra a quantidade de
imigrantes na Argentina entre as décadas de 1850 e 1930.
TABELA 4
ORIGEM DOS IMIGRANTES NA ARGENTINA (1857-1930) (EM MILHARES)
1857-70 1871-90 1891-1910 1911-30 TOTAL %
Itália
126,0 639,0 1.252,9 852,8 2.870,7 47,0
Espanha
26,0 203,3 784,4 1.000,2 2.015,9 33,0
França
9,5 126,5 60,8 41,5 238,3 3,9
Alemanha
1,5 17,6 28,0 90,5 137,6 2,2
Polônia
- - - 129,1 129,1 2,1
Rússia
0,5 4,6 102,0 68,3 175,4 2,9
Outros
16,1 111,0 184,3 234,3 545,7 8,9
Fonte: Martinez e Hernando (2006) apud: Dirección General de Inmigración. República Argentina. Resumen
Estadístico del Movimiento Migratório. Buenos Aires, 1932.
248
AHI/RJ, Legação do Brasil em Montevidéu, Correspondência de João Duarte da Ponte Ribeiro, Chefe da
Legação Imperial em Montevidéu ao Barão de Cotegipe, ministro e secretário de Estado dos Negócios
Estrangeiros do Brasil, 09/08/1887.
226
Interessa, em especial, as décadas de 1870 a 1890, período de realização dos
Congressos Sanitários de Montevidéu e do Rio de Janeiro. Nota-se que houve um forte
crescimento da imigração italiana, espanhola e francesa. Destaca-se o auge da presença
francesa na Argentina, por motivos que Otero (1999, p.136) atribuiu à potica de passagens
subsidiadas pelo governo argentino que “tentando frear a crescente influência da imigração
italiana, distribuiu 132 mil passagens gratuitas na Europa durante o triênio (1888-1890), vinte
mil das quais foram concedidas em território francês”.
Essa tentativa de diminuir a chegada dos italianos à Argentina resultava, em parte, da
desilusão das elites em relação ao imigrante dessa nacionalidade, pois se havia idealizado um
fluxo de imigrantes civilizados, cultos, capazes de empreender um crescimento intelectual que
o país ambicionava. E o que se recebia eram, na sua maioria, homens oriundos das zonas
rurais da Itália, muitos analfabetos e destitdos de qualquer refinamento projetado pelas elites
políticas argentinas.
Vale ressaltar que as elites platinas (incluindo aqui o Uruguai) adotaram, como em
muitas outras partes, a filosofia do darwinismo social, tão em voga no final do século XIX e
princípio do XX, que defendia a existência de raças superiores e inferiores. A imigração
européia atenderia também a esse propósito de civilizar os povos desses países,
predominantemente de origem indígena e africana. Posteriormente o fluxo de imigração
francesa acabou diminuindo, e o que prevaleceu, de fato, foi a forte presença de italianos e
espanhóis na República argentina.
Portanto, a Convenção Sanitária de 1887 integrava-se a um contexto muito mais
amplo do que ao das questões regionais, a exemplo dos problemas ecomicos advindos da
produção pecuária e das exportações e importações ocorridas entre as três nações envolvidas.
Estava integrada ainda ao movimento dos povos no final do século XIX, que alterou a
composição de muitos países americanos durante o século XX.
Não somente a França e a Itália registraram queixas às autoridades argentinas,
brasileiras e uruguaias, mas ainda a Inglaterra e Alemanha. A reclamação feita pela Inglaterra
ao governo uruguaio evidenciou que esses plenipotenciários europeus fizeram suas
reivindicações de comum acordo entre si, com o objetivo de pressionar os governos
contratantes da Convenção a implementar as modificações solicitadas. Em julho de 1888, o
diplomata inglês Gifford Palgrave escrevia ao Ministro de Relações Exteriores do Uruguai
Idelfonso Garcia Lagos.
227
De conformidad con las instrucciones recibidas del Gobierno de S.M. he
consultado la opinión de algunos de los Representantes Europeos,
acreditados en la República Oriental del Uruguay, quienes ya han tomado ó
toman en cuenta la Convención Sanitaria recientemente celebrada entre el
Imperio del Brasil, las Repúblicas Argentina y del Uruguay, y tengo el
honor de informar á V.E. que aún cuando estoy conforme con ellos al
pensar que la Convención propuesta en un todo da pruebas indiscutibles del
cuidado que se han tomado los signatarios respecto de la conservación de la
salud pública, y la no propagación de la enfermedad; sin embargo convengo
con ellos con algunas de las medidas propuestas y las disposiciones
adoptadas por las cuales las Leyes Internacionales Marítimas, acomo las
leyes locales ó el Derecho Nacional parece expuesto á ser comprometido,
sería de desear que se diera alguna explicación respecto al carácter y fines
de las citadas medidas por los Poderes signatarios á los Gobiernos
Europeos, cuya marina mercante é intereses postales pueden posiblemente
ser afectados.
249
Portanto, as reclamações do governo inglês eram semelhantes às da Fraa e da Itália.
Em função disso, os três governos contratantes da Convenção Sanitária do Rio de Janeiro
resolveram celebrar um protocolo, em comum acordo, em que se ajustavam as respostas que
deveriam ser encaminhadas aos países reclamantes.
Assim, quase um ano depois, voltaram a se reunir no Rio de Janeiro os representantes
diploticos dos três países para discutir e elaborar uma resposta uniforme, aos moldes de um
Protocolo anexo à Convenção Sanitária. Estiveram presentes, no dia 13 de setembro de 1888,
o ministro dos Negócios Estrangeiros do Brasil, Rodrigo Augusto da Silva, o Enviado
Extraordinário e ministro da República Argentina, Henrique B. Moreno, e o Enviado
Extraordinário e Ministro da República Oriental do Uruguai, Blas Vidal.
O protocolo apresentou os motivos pelos quais algumas autoridades euroias
reclamaram do acordo sanitário: a primeira questão referia-se à presença de inspetores
sanitários de navios nos navios franceses. Argumentavam que a legislação francesa previa a
existência de médicos a bordo das suas embarcações e que “a presença de duas entidades
dicas de diversas origens com as mesmas funções tem perigos e inconvenientes. Aquele
dico e o capitão do navio ficam subordinados ao Inspetor, o que é contrário ao princípio de
soberania”
250
. Apresentavam também argumentos sobre a competência científica dos
profissionais para se contrapor aos inspetores sanitários de navios: “comparada a competência
científica dos profissionais que servem a bordo sem interrupção com a dos médicos
249
Memória do Ministério de Relações Exteriores do Uruguai (1889). Correspondência traduzida (para o
espanhol) entre a Legação da Inglaterra em Montevidéu, de W. Gifford Palgrave, ao Ministro de Relações
Exteriores do Uruguai, dr. Idelfonso Garcia Lagos. 16/07/1888.
250
AHI/RJ, Congressos e Conferências Internacionais, vol. 273-2-25, Congresso Sanitário de 1887, Protocolo da
reunião que teve por objeto ajustar-se a resposta que se devesse dar às reclamações ou diligências feitas por
alguns governos estrangeiros, de 13 de setembro de 1888. Em português e espanhol.
228
brasileiros, argentinos e orientais que podem exercer as funções de Inspetores de navio,
conclui-se que a dos primeiros é incontestavelmente superior à dos outros pela vantagem que
a prática e pela dificuldade de se encontrarem médicos eminente que queiram abandonar a
sua clínica para se empregarem por menos a bordo”
251
.
A segunda questão dizia respeito ao período de quarentena determinado pelo acordo,
que, segundo os franceses, era dispensável, pois “quanto ao período de incubação do cólera-
morbo o fato de não ter havido novidade em uma viagem de vinte a vinte e cinco dias da
Europa basta para que o navio seja posto e livre prática; e não se deve supor ocultação
criminosa, porque o capitão e o médico incorrem em penas severas”
252
.
E, por fim, o último ponto referia-se à liberdade de navegação e à soberania dos
países. Os franceses afirmavam que a Convenção viola a liberdade de navegação do Rio da
Prata, porque estabelece categorias diversas entre os navios assistidos de Inspetores Sanitários
e os que os não têm; e depois por obrigar as Companhias de navegação a darem passagem
gratuita a esses Inspetores”.
Em contrapartida, as autoridades brasileiras, uruguaias e argentinas questionavam a
validade dos argumentos utilizados, em sua maioria, pelos franceses, já que a única
companhia marítima a expor seus desagravos foi a Companhia Messageries Maritimes; todas
as demais haviam declarado que aceitavam a instituição dos inspetores sanitários de navio
algumas chegaram a agradecer também por escrito ao Governo Argentino os serviços
prestados pelos respectivos médicos durante a última epidemia na Itália. Isto mostra que não
deve haver receio de conflitos”
253
.
Apesar de não estar explicitado nos documentos, certamente as autoridades
diploticas recorreram a uma equipe médica capaz de justificar o uso dos inspetores
sanitários de navio, pois foram utilizadas informações acerca da organização médica francesa,
obtidas muitas vezes nas faculdades de medicina. Aliás, a escola francesa foi, durante o século
XIX, o modelo por excelência das faculdades sul-americanas (FERREIRA; FONSECA;
EDLER, 2001).
Utilizando-se dos argumentos dos próprios franceses quanto à precária organização
sanitária nas embarcações, o protocolo afirmava que, na França, os médicos que ficavam
encarregados da saúde nos navios não eram funcionários do Estado, e, sim, comissionados e
pagos pelas companhias marítimas, o que os deixava em posição bastante vulnerável:
251
Idem, ibidem.
252
Idem, ibidem.
253
Idem, ibidem.
229
Desde o decreto de 1853, a tendência da Administração tem sido interessar
as Companhias em terem médicos de comissão, concedendo aos paquetes
que tinham a bordo médicos de comissão certas vantagens que se negavam
aos outros navios. As diversas disposições que concediam estes privilégios,
de 1853 a 1870, declaram sempre que eles eram dados aos paquetes que
tinham dico de comissão. Todavia a comissão atual pedida pelas
companhias é letra morta; estes médicos estão demasiadamente sujeitos à
ação dos agentes das companhias.
Se estesdicos não inspiram confiança à própria autoridade francesa,
como hão de inspirá-la às estrangeiras?
254
Afirmavam, portanto, que a questão o era apenas de competência científica, mas,
principalmente, de autonomia para cumprimento das funções. Assim, ressaltavam que “os
dicos de bordo, como os da Companhia “Messageries Maritimes”, podem ser tão
competentes como os Inspetores de navio, mas é inegável que eles o têm a independência
necessária para fazer declarações contrárias aos interesses dos que lhes dão os meios de
subsistência”. E que era, justamente, a “condição precária daqueles funcionários, reconhecida
como tal em todos os Congressos Sanitários do mundo, que originou a crião dos Inspetores
Sanitários de navio, os quais pelas circunstâncias em que prestam seus serviços profissionais,
são indiscutível garantia de verdade”
255
.
Por fim, as autoridades do Prata e do Brasil resolveram manter o que haviam
convencionado, encaminhando aos países interessados esclarecimento de que não havia
intenção de violar a soberania das nações, mas que se lhes não convierem os Inspetores
sanitários, ficarão sujeitos às medidas mais rigorosas que a Convenção e o seu Regulamento
estabelecem”, ou seja, a aplicação de quarentenas e desinfecções mais severas, ao se constatar
a presença de doenças pestilenciais a bordo ou nos países correspondentes.
A resolão tomada pelas autoridades diplomáticas dos três países chegou a se
publicada na França, com a iniciativa do ministro de Relações Exteriores da Argentina,
Enrique Moreno
256
. Essa publicação, traduzida para o francês pelo nsul do Uruguai na
França, demonstra a importância do tema na América e na Europa.
No entanto, a legação francesa continuou estabelecendo contato com a República da
Argentina até o ano de 1889 e insistindo para a necessidade de modificações no acordo
254
Idem, ibidem. Grifos do documento.
255
Idem, ibidem.
256
AGNU, Legação do Brasil no Uruguai, Publicação: Question suscitée par les gouvernements de France,
d’Allemagne, d’Italie et de la Grande-Bretagne sur l’instituition d’inspecteurs sanitaires stipulée por la
Convencion Sanitaire du 28 Novembre 1887 échangée entre L’Empire du Brésil, la Republique Argentine
et la Republique Orientale de l’Uruguay. Marseille: Papeterie Parisienne H. Sardou, 1889.
230
sanitário sul-americano de 1887. A discussão se prolongou até quase dois anos depois, pelo
fato de que a Convenção Sanitária só foi ratificada pelos três países em 1889.
Em 5 de junho de 1888, o ministro francês na Argentina, Charles Rouvier,
encaminhou, mais uma vez, ao ministro das Relões Exteriores da Argentina, Quirno Costa,
um memorando de reclamações acerca da Convenção Sanitária do Rio de Janeiro com tom
mais agressivo e ameaçador, pois apontava diretamente para os prejuízos comerciais entre as
duas partes e do quanto a Argentina dependia das mercadorias e dos imigrantes franceses.
Todo indica á los Estados Sud Americanos la conveniencia que hay en
favorecer por todos los medios la navegación. El comercio que se desarrolla
tan rápidamente en estos países está interesado en que las salidas se
efectúen regularmente y en que la correspondencia postal no sufra retardo
alguno. La República Argentina envía á Europa todo lo que produce. La
Francia es sabido que le compra la mitad de las lanas, le toma la mayor
parte de los cércales, - no hay para la Republica Argentina una evidente
ventaja en diminuir las trabas, en hacer que esos buques puedan multiplicar
las viajes que hacen provocarse la rebaja de los fletes y facilitar el pido
despacho de la producción nacional? Que interés hay para la Republica
Argentina en aumentar esas dificultades de por si muy grandes, con otras
administrativas? El Gobierno francés subvenciona neas para fortalecer sus
relaciones con los Estados del Plata. Estos sacan gran parte del provecho de
este sacrificio que hace la Francia.
257
E, por fim, o cônsul francês apontou para a superioridade da França em relação aos
países sul-americanos, com o argumento de que esses países necessitavam muito mais dos
franceses do que o contrário. O tema da imigração aparece na correspondência com a
afirmação de que eram os imigrantes europeus que estavam “fecundando” o território
argentino, como se naquelas terras não houvesse gente civilizada” e instruída para
desenvolver seu próprio país. O discurso eurocêntrico apareceu de forma contundente, como
havia notado o diplomata brasileiro em Buenos Aires, o Barão de Alencar, quando afirmou
que Charles Rouvier reclamava contra as quarentenas a que aqui se sujeitavam os paquetes
franceses por julgá-los ‘diferenciais’ em relação as que eram impostas aos das outras
nacionalidades, e pedia explicações a esse respeito”
258
. Ou seja, era preciso oferecer aos
franceses um tratamento exclusivo, livre de regulamentos e normas existentes.
La Francia por ejemplo tiene un comercio de exportación que pasa de 3
millares de francos al año, y no introduce á la Republica Argentina sino por
257
AHI/RJ, Congressos e Conferências Internacionais, vol. 273-2-25, Congresso Sanitário de 1887, Memorando
de Charles Rouvier, E.E. M.P da França na Argentina a Norberto Quirno Costa, Ministro de Estado das Relações
Exteriores da Argentina, em 05/06/1888. Em espanhol, cópia.
258
AHI/RJ, Legação do Brasil em Buenos Aires, Corresponncia do Barão de Alencar, em Buenos Aires, ao
Conselheiro Rodrigo A. da Silva, Ministro dos Negócios Estrangeiros do Brasil, 02/04/1888.
231
próximamente 100 de francos al año. Empero, sin tener en cuenta esta
observación, exige la equidad que se reconozca que la navegación
extranjera es esencialmente provechosa á los países sudamericanos. Cuáles
son los elementos de riqueza y de desarrollo que estos tienen? La
inmigración y los productos de su suelo. Eses países no tienen marina
mercante. Que seria de ellos, que llegarían a ser si no vinieron los buques de
afuera á trasportar á los mercados europeos, para allí venderlo, su café, sus
lanas, sus cueros, sus cereales, y sus carnes, etc... y no trajeron en el viaje
de regreso, al inmigrante que puebla y fecunda su inmenso territorio? Es,
pues, inexacto pretender que la navegación extranjera reciba sin dar nada en
cambio; después de hechos todos los cálculos, en les bien podría afirmarse
que esta ha prestado más servicios que los que ha recibido.
Ficou evidente nessa discussão entre a diplomacia francesa e a diplomacia argentina,
brasileira e uruguaia que, mesmo com as diversas pressões vindas da França, esses países sul-
americanos conseguiram enfrentá-las e impuseram o acordo, acima das questões de interesses
econômicos com a Europa. Mesmo para a Argentina, que poderia ser a mais prejudicada pelos
fortes vínculos com a França naquele momento, não houve grandes dificuldades em aprovar e
pôr em prática as resoluções sanitárias tiradas no convênio.
No entanto, até com as reclamações das autoridades diplomáticas dos países europeus
e as críticas recebidas da imprensa dos próprios Estados contratantes, a Convenção Sanitária
foi assinada em 26 de novembro de 1887, e seu decreto aprovado no Brasil, com o número
10319, de 22 de agosto de 1889 (OLIVEIRA, 1997). No Uruguai, o projeto de lei tramitou no
Senado e na Câmara dos Deputados e foi promulgado em 24 de maio de 1888, conforme o
comunicado passado da legação brasileira em Montevidéu
259
.
Houve uma longa e desgastante discussão entre os plenipotenciários dos países
envolvidos, mas, por fim, o governo francês desistiu de reclamar sobre alguns pontos da
Convenção Sanitária, de acordo com os informes do diplomata uruguaio na França ao
ministro de Relações Exteriores do Uruguai, em 18 de outubro de 1889:
El silencio que ha guardado el de Francia parece indicar claramente, que ha
cedido ante esas razones, lo que es hasta cierto punto, declararse vencido.
Quizás por eso, ha preferido dejar fresar sobre su agente la duda, de haber
259
Promulgacion de la ley sobre convencion sanitária internacional Acaba de promulgarse la siguiente ley: El
Senado y mara e Representantes de la República Oriental del Uruguay, reunidos en Asamblea General.
Decretan: Art. 1º Apruébase la Convencion Sanitária Internacional y Reglamento respectivo, celebrados y
firmados en la ciudad de Rio Janeiro en 25 y 26 de Noviembre ppdo. por los plenipotenciarios de la Republica,
del Imperio del Brasil y de la Confederacion Argentina. Art. Autorizase al Poder Ejecutivo para solicitar la
adhesion de los demás gobiernos Sud-Americanos, á los pactos establecidos segun lo estipulado en el Protocolo
de la referencia. Art. Comuniquese. Sala de sesiones de la Honorale Cámara de Representantes, en
Montevideo á 24 de Mayo de 1888. In: Correspondência de João Duarte da Ponte Ribeiro, Chefe da Legação
Imperial em Montevidéu ao Conselheiro Rodrigo A. da Silva, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios
Estrangeiros do Brasil, 04/06/1888.
232
hecho por si mismo las observaciones de que el Gobierno francés aparece
como desinteresado ahora.
Ha habido pues una razón de delicadeza y de cortesía internacional, en no
hacer revivir esa cuestión, enterrada ya, por sus mismos promotores, puesto
que, sin el menor reparo, han visto sancionarse y entrar en vigor la
Convención, que habían observado, lo que importa reconocer
implícitamente, la sin razón de las reclamaciones formuladas, talvez por
agentes demasiado celosos, en este caso.
260
Portanto, a aprovação e sanção dos três governos da Convenção e do Regulamento
Sanitários foram fundamentais para que houvesse um reconhecimento definitivo dos demais
países em relação à primeira legislação internacional desse gênero na América.
6.5. DEPOIS DE 1887: ENTRE DENÚNCIAS E REALIZAÇÕES DE NOVOS
CONGRESSOS SANITÁRIOS LATINO-AMERICANOS
De acordo com os representantes diplomáticos dos três países, a duração do convênio
era de quatro anos, como menciona o documento no seu Artigo 12:
A presente convenção durará quatro anos contados do dia da troca das
ratificações, e continua em vigor a que uma das Altas Partes
Contratantes notifique às outras a intenção de dar por finda, cessando doze
meses depois da data dessa notificação. As ditas ratificações, observadas as
rmulas constitucionais, serão trocadas na cidade de Montevidéu no menor
tempo possível.
261
Em 3 de agosto de 1889, ocorreu o depósito das ratificações na cidade de Montevidéu,
e, em 14 de junho de 1892, o governo do Brasil denunciou a Convenção Sanitária de 25 de
novembro de 1887, que ficou sem efeito em 3 de agosto de 1893 por meio do Decreto no.
1498, exatamente quatro anos depois de ratificada. Esta convenção, conforme o aviso do
Ministério das Relações Exteriores do Brasil, deveria ser substituída pelo Regulamento
Sanitário Internacional
262
, provavelmente o de 1892, aprovado em Veneza.
Geralmente, os acordos diplomáticos eram prorrogados ou reformulados pelos Estados
contratantes, no entanto, não foi o que se passou com o acordo de 1887. Houve diversos
motivos para que o governo brasileiro denunciasse a convenção, de acordo com o relatório do
260
AGNU, Legação do Uruguai no Brasil (1887). Correspondência da Legação do Uruguai na França ao
Ministro de Relações Exteriores do Uruguai. 18/10/1889.
261
Convenção Sanitária internacional de 1887. Ver Anexos.
262
Relatório do ano de 1893 do Ministério das Relações Exteriores da Reblica dos Estados Unidos do Brasil.
Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1894, anexo número 2.
233
Ministério das Relações Exteriores de 1891
263
. Desses motivos, pelo menos seis deles faziam
referência à aplicação errônea de quarentenas de rigor às embarcações saídas de portos
brasileiros.
A Junta de Saúde de Montevidéu destacou também as motivações do Brasil em
denunciar a Conveão, em especial as quarentenas impostas. Desde o final de 1891, as
autoridades diploticas brasileiras vinham se queixando de descumprimentos, por parte do
Uruguai, dos artigos da Convenção Sanitária de 1887, “sobre infracciones que dice cometen
nuestras autoridades sanitarias en la aplicación de la Convención Sanitaria Internacional, con
relación á cuarentenas”
264
.
Uma das queixas foi feita pelo Inspetor Sanitário do navio Pelotas, procedente do
Brasil, posto em quarentena, sem que tivesse havido casos de febre amarela durante a viagem.
A justificativa utilizada pelas autoridades sanitárias uruguaias foi a de que, apesar de o navio
haver cumprido o período de quarentena durante a viagem, o se admitia a entrada de
roupas e demais bagagens, as quais deveriam ser submetidas à desinfecção no Lazareto da
Ilha de Flores, e esse procedimento o desrespeitava a Convenção Sanitária
265
.
Independentemente de as autoridades montevideanas terem respeitado o acordo, havia
uma grande desconfiança do Uruguai e da Argentina em relação ao Brasil, no que se refere à
febre amarela. Tema discutido anteriormente, essa era uma doença praticamente instalada
no Brasil, apesar da Convenção Sanitária ter estabelecido que era uma enfermidade exótica
entre as três nações, e assim deveria ser tratada pelas autoridades de saúde. Além disso, no
início de 1892, a Junta de Saúde de Montevidéu explicitou o receio para com o Império:
Los repetidos abusos que cometen Comandantes y Médicos de los citados
vapores brasileros, dando informaciones falsas sobre el estado sanitario de
sus navíos á las autoridades de nuestro puerto, han decidido á esta
Corporación á proceder de acuerdo con lo estipulado en la Convención, á
fin de que la aplicación de esa medida sirva de garantía á la vigilancia diaria
que se ejerce sobre las procedencias brasileras.
266
263
Ministério das Relações Exteriores do Brasil, relatório do ano de 1891 apresentado em junho de 1892. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1892.
264
Memoria presentada por la Junta de Sanidad de Montevideo al Ministro de Guerra y Marina (1892-1893).
Reblica Oriental del Uruguay. Montevideo, 1894. Correspondência entre os ministros das relações exteriores
do Uruguai para o ministro de Guerra e Marina do Uruguai, 30/12/1891.
265
O Consulado do Brasil no Uruguai igualmente registrava as reclamações dos brasileiros, conforme a
corresponncia da Legação do Brasil no Uruguai de 1891 e 1892, depositada no Archivo General de La Nación
del Uruguay.
266
Memoria presentada por la Junta de Sanidad de Montevideo al Ministro de Guerra y Marina (1892-1893),
12/03/1892.
234
A decisão uruguaia era de cumprir rigorosamente o acordo sanitário, isto é, impor
quarentena aos vapores que saíssem do litoral brasileiro, contada a partir do momento em que
partissem do último porto suspeito de haver febre amarela. A partir d, até o mês de junho,
quando o Brasil resolveu denunciar a Convenção Sanitária, diversas quarentenas foram
impostas aos navios brasileiros, o que certamente foi uma grande motivão para que se
suspendessem os efeitos do acordo entre os três países
267
.
Em 1891 o Jornal do Comercio, periódico carioca, fazia graves denúncias à
Convenção Sanitária e à postura das autoridades platinas em relação ao Brasil, no
estabelecimento arbitrário de quarentenas de rigor, evidenciando a crise instalada entre
esses países e as propostas de encerramento do acordo:
A quarentena de rigor sistematicamente imposta a procedências brasileiras
pelas autoridades sanitárias argentinas e uruguaias, quaisquer que sejam as
condições de salubridade e de higiene dos navios, a repulsão de um navio
francês procedente de Santos, determinada pelo governo argentino e ainda
mais a ameaça de clausular os portos platinos a todos os navios que tocarem
em portos brasileiros, segundo tem denunciado a imprensa, são fatos da
mais alta gravidade pela manifesta violação da Convenção Sanitária
Internacional e que devem despertar a atenção do governo brasileiro.
A declaração de suspeitos feita pelos governos platinos a todos os portos
brasileiros o passa de uma arma política de que eles lançam mão para
fazer passar o Brasil aos olhos da Europa como um país insalubre, porque
eles sabem perfeitamente que longos anos a febre amarela não visita a
muitos dos nossos portos do norte, e que ela jamais foi conhecida em
muitos do sul.
268
Vale ressaltar que, apesar da assinatura de um acordo e dos pactos firmados pela
diplomacia, os homens que deveriam cumprir as ordens tomadas pelas autoridades não a
faziam de maneira adequada ou mesmo poderiam estar a mando das autoridades, que
decidiam deliberadamente descumprir as leis em vigor e prejudicar, em alguma esfera –
econômica ou política outra nação. Foi o caso da Argentina e do Uruguai em relação ao
Brasil, como denunciava o Jornal do Commercio. É importante recordar que os últimos anos
do século XIX foram de intensa imigração para essas regiões, as quais disputavam a mão-de-
obra imigrante.
A Academia Nacional de Medicina, antiga Academia Imperial
269
, igualmente
evidenciou essas denúncias. Em 11 de novembro de 1899, o médico Azevedo Sodré expunha
267
Idem.
268
AGNU, Legação do Uruguai no Brasil, Recorte do Jornal do Commercio de 18/12/1891.
269
Com a proclamação da república no Brasil em 15 de novembro de 1889, rapidamente os acadêmicos fazem a
mudança na nomenclatura da Associação, num certo sentido para que a mesma não ficasse ligada à velha
monarquia já extinta.
235
para os demais membros os motivos que levaram o país a denunciar a Convenção de 1887.
Segundo ele, o Brasil havia cumprido todas as disposições acordadas, o que não acontecera
com os Estados vizinhos:
O Brasil cumpriu religiosamente as disposições deste convênio. O mesmo
não fizeram nossos vizinhos, excederam-se em demasias, burlando a cada
passo o que estava perfeitamente estabelecido, obrigando os navios
procedentes do Rio a purgarem longas quarentenas, repelindo à bala um
navio, porque tinha a seu bordo doente de febre amarela; enfim, usando
desordenadamente do arbítrio”. O Brasil viu-se obrigado a denunciar esta
Convenção e o fez em 1893.
270
A partir daí, o médico relacionou uma longa lista de descumprimentos do acordo,
como, por exemplo: a Argentina não tinha fundado lazaretos, “tem um simulacro de lazareto,
um alojamento de imigrantes em Martin Garcia em condições insalubres e com
promiscuidade vexatória”, ao contrário do Brasil, que tinha na Ilha Grande um bom lazareto;
rias quarentenas foram impostas aos navios procedentes do Brasil ou que haviam parado em
portos brasileiros, como a “quarentena imposta ao paquete brasileiro Diamantino (procedente
de Corumbá), caso de beribéri (doença não prevista na Convenção)” e ainda uma “quarentena
imposta de 10 dias aos navios que tocassem o porto do Rio de Janeiro, mesmo sem casos de
febre amarela”
271
.
Em fevereiro de 1890, houve uma reunião de representantes plenipotenciários e
dicos dos três países em Buenos Aires para discutir questões que haviam ficado sem
resolução no acordo de 1887. Os três temas destacados foram: tratamento de doenças
contagiosas que não fossem a febre amarela, o cólera-morbo ou a peste; tratamento do
beribéri; e, por fim, concurso e nomeação dos inspetores sanitários de navio
272
.
O Brasil era o país mais atingido no que se refere aos dois primeiros temas porque
muitas vezes havia casos de doenças comuns nos navios brasileiros e o beribéri era uma
doença recorrente nos diversos portos brasileiros e, considerado, ainda, uma doença exótica
nas Repúblicas platinas. As juntas de saúde argentina e uruguaia estavam se utilizando das
quarentenas para o tratamento do beribéri. Após a discussão, ficou acordado que essas
doenças deveriam ser tratadas nos lazaretos, com o isolamento apenas dos doentes até o fim
do surto. Ou seja, ficava proibido o uso de quarentenas e fechamentos dos portos aos navios
270
ANM/RJ, Anais da Academia Nacional de Medicina, Rio de Janeiro, números 1 e 2, janeiro a junho de 1900.
Discurso proferido pelo Dr. Azevedo Sodré em 16.11.1899.
271
Idem, ibidem.
272
Tratados y convenios internacionales (1993, p.762-768). Acta relativa a la ejecución de la Convención
Sanitária de Río de Janeiro. Buenos Aires, 10 de febrero de 1890.
236
que trouxessem essas doenças. No entanto, essa não foi a realidade, conforme as denúncias
feitas por Azevedo Sodré na Academia Nacional de Medicina em 1899.
Quanto ao concurso e nomeação dos inspetores sanitários de navio, o delegado
brasileiro, o médico Samuel Pertence, informou que o Brasil e o Uruguai haviam aberto
inscrições para os concursos para esses cargos e solicitou aos outros Estados que fizessem o
mesmo, como uma necessidade de se ajustarem à própria Convenção Sanitária do Rio de
Janeiro. Esse pedido fazia parte das denúncias de dicos brasileiros em relação aos
inspetores argentinos, descritos como guardas sanitários, indivíduos quase analfabetos, aos
quais as autoridades sanitárias confiam a escolha e execução de todas as medidas higiênicas a
bordo dos navios em quarentena”
273
. Isso demonstrava que a Argentina o havia cumprido e
nem respeitava o acordo sanitário.
A participação da Academia Nacional de Medicina do Brasil demonstrava a
preocupação dos médicos daquela associação para com a sua profissão. O cargo de inspetor
sanitário de navio havia sido uma conquista desses profissionais, conforme se mencionou no
capítulo anterior, e o não-preenchimento desses cargos por médicos concursados
desqualificava a profissão e o cargo recém-criado. Daí o caráter de denúncia dos médicos da
Academia, que ainda lutavam pelo monopólio profissional no final do século XIX.
No caso do Uruguai, de acordo com o médico presente à reunião de Buenos Aires em
1890, a questão era mais grave. Segundo ele “no se conseguirá poder nombrar Inspetores, ni
con concurso ni sin él, por diversas causas, pero sobre todo por el número reducido de
facultativos que formaban el Cuerpo Médico Nacional”
274
. De fato, a Faculdade de Medicina
havia sido inaugurada em 1875 e, até o ano de 1881, apenas um aluno havia se formado
naquela faculdade, em função das dificuldades encontradas para a implantação do curso
275
.
Em 1893, quando das denúncias feitas pelo Brasil da Convenção Sanitária, o corpo
dico uruguaio realizou um estudo dos problemas e das possíveis mudanças que deveriam
ocorrer no acordo de 1887, e novamente se apontou para a questão dos inspetores sanitários
de navio, e sugeria algumas modificações no regulamento sanitário, como do artigo 6º, que
previa que o corpo de Inspetores Sanitários de navio seria composto por médicos de
nacionalidade de qualquer dos países contratantes.
273
ANM/RJ, Anais da Academia Nacional de Medicina, Rio de Janeiro, números 1 e 2, janeiro a junho de 1900.
Discurso proferido pelo Dr. Azevedo Sodré em 16.11.1899.
274
Tratados y convenios internacionales (1993, p.762-768). Acta relativa a la ejecución de la Convención
Sanitária de Río de Janeiro. Buenos Aires, 10 de febrero de 1890, p.767.
275
La Facultad de Medicina de Montevideo (1875-1915). Memoria presentada por el decano doctor Manuel
Quintela. Universidad de la República Oriental del Uruguay. Montevideo: Tipografia Moderna, 1915.
237
De acordo com os uruguaios, apesar do aumento do número de médicos nacionais,
ainda não era em quantidade adequada, que pudesse suprir as necessidades do Estado
Oriental, e que, em vista disso:
Aún cuando dejamos entrever en neas anteriores la posibilidad de tener
suficiente número de médicos nacionales para cuando entre en vigencia la
nueva Convención, creemos que si esto no sucediera nos veríamos
inhabilitados para conseguir Inspectores de navío, porque el actual tratado
exige que sean de la nacionalidad respectiva. Es necesario, por lo tanto,
modificar el artículo 6º del Reglamento Internacional y conceder á todos los
dicos que hayan revalidado sus diplomas el derecho de presentarse al
concurso que indica ese mismo Reglamento.
276
Essa proposta apontava para a existência, em sua maioria, de médicos estrangeiros no
Uruguai, o que é confirmado pelo trabalho de Augusto Soiza Larrosa (1994), ao estudar a
imigração médica ao Uruguai durante o século XIX:
Ese contingente proyectó, ejecutó, enseñó obras de muy diverso carácter
cuya concreción enriqueció el patrimonio nacional, devastado y retardado
por las luchas de la independencia primero, y de las inicuas guerras civiles
después. Así, nuestra Facultad de Medicina (1875) y nuestro primer
instituto científico, de Higiene Experimental (1896), fueron fundados y
dirigidos por los médicos de la inmigración. Pero antes de esto, una
multitud heterogénea de profesionales, algunos distinguidos, la mayoría de
nivel medio o bajo, arribo a nuestras costas con su familia. Ejercieron su
arte de curar y contribuyeron al desarrollo de la civilización uruguaya.
Portanto, era preciso dar a esses profissionais a oportunidade de se submeterem ao
concurso de inspetor sanitário de navio, pois eram eles que formavam a grande massa de mão-
de-obra especializada em medicina do país, compondo, inclusive, o quadro docente da
Faculdade de Medicina de Montevidéu.
No entanto, apesar da Convenção Sanitária do Rio de Janeiro ter perdido seu efeito em
três de agosto de 1893, poucos dias depois o governo do Uruguai decidiu continuar utilizando
esse acordo como base da sua legislação sanitária internacional. O ministério de relações
exteriores lançou um decreto, que foi comunicado à Junta de Saúde de Montevidéu, em 12 de
agosto de 1893, onde justificava que:
Habiendo caducado el día 3 del corriente la Convención Sanitaria
Internacional, por haberla denunciado el Gobierno del Brasil. Considerando,
que ha podido reunirse el Congreso Sanitario, á que fueron invitados la
276
Memoria presentada por la Junta de Sanidad de Montevideo al Ministro de Guerra y Marina (1892-1893).
Reblica Oriental del Uruguay. Montevideo, 1894.
238
Republica Argentina, el Brasil y el Paraguay, por decreto de 8 de setiembre
de 1892, y que mientras el nuevo tratado no fije las disposiciones que deben
regular las medidas sanitarias á tomarse entre las naciones signatarias de la
Convención Sanitaria deo Janeiro, hay conveniencia en fijar de una
manera clara y precisa las medidas que la República adoptará en lo
sucesivo, para precaver sus puertos de la importación de enfermedades
pestilenciales ó epidémicas El presidente de la República decreta:
Artículo 1. Las autoridades sanitarias de la República aplicarán, hasta
ulterior resolución, las disposiciones de la Convención Sanitaria
Internacional de o Janeiro, según las reglas y preceptos que en ellas se
determinen para evitar la importación al país de enfermedades pestilenciales
ó epidémicas. Art. 2. Reitérese la invitación á los Gobiernos argentino y
brasilero por intermedio de las Legaciones respectivas, para asistir al
Congreso Sanitario decretado por resolución de 8 de setiembre de 1892.
Art. 3. Comuniquese.
277
Esse fato demonstra a preocupação das autoridades sanitárias com as epidemias
recorrentes nessas regiões e da crescente necessidade de acordos multilaterais que
uniformizassem as medidas de saúde pública internacional. O decreto fez menção, ainda, a
uma tentativa de reunião de um novo Congresso Sanitário, dessa vez unindo Uruguai ao
Brasil, Argentina e Paraguai. No entanto, o governo uruguaio não conseguiu reunir os quatro
países, o que só seria possível onze anos depois, em 1904.
Devido às denúncias feitas pelo governo brasileiro da Convenção Sanitária de 1887,
o interessava ao Brasil firmar novos convênios sanitários com as Repúblicas do Prata, que
haviam sido hostis com as embarcações brasileiras em períodos de febre amarela. E por esse
motivo, o próprio presidente da Junta de Saúde do Uruguai explicitava a necessidade de um
novo acordo, que segundo ele:
Sin un nuevo pacto internacional de sanidad de los tres países (Brasil,
República Oriental y Argentina) vivirá en continua lucha. Sus reglamentos
actuales contienen cláusulas capaces de producir serios trastornos á los
intereses generales, y conviene provenirlos buscando, por medio de una
Convención bien meditada, la armonía de procedimientos científicos y
razonables que sirvan eficazmente para la defensa de la salud pública.
278
Os desdobramentos da Convenção Sanitária de 1887 foram muitos. Desde mudanças
na dinâmica econômica entre os países com a liberação do comércio da carne, passando pela
instituição de novos agentes de saúde nos portos e embarcações, pela reestruturação nos
lazaretos e pelos novos procedimentos no que se refere ao enfrentamento e prevenção das
277
Idem, Corresponncia do Ministerio de Guerra y Marina para a Junta de Sanidad, contendo o Decreto do
Ministerio de Relaciones Exteriores, Herrera y Obes, 12/08/1893.
278
Idem, Correspondência de Julio Muró, presidente da Junta de Sanidad de Montevidéu para o Ministro de
Guerra y Marina do Uruguai, General Luís E. Perez, 31/12/1893.
239
doenças epidêmicas. A proximidade geográfica e econômica exigia desses países um maior
controle desse intenso intercâmbio de mercadorias e pessoas, com uma presença cada vez
maior do Estado e com a tentativa de dirimir conflitos.
6.6. O CONGRESSO SANITÁRIO INTERNACIONAL DE 1904: APONTAMENTOS
Apesar de não fazer parte de nosso trabalho, é impossível não fazer referência ao
evento ocorrido em 1904, pois ele deu prosseguimento às discussões estabelecidas em 1887.
O motivo de não ter se aprofundado nesse último evento é que uma mudaa estrutural
importante no Brasil após 1889, com o fim da monarquia e o início do período republicano.
Até esse ponto do trabalho, interessou perceber as relações entre o Império brasileiro e as
Repúblicas platinas, e que já não acontecia em 1904.
As o fim da Convenção Sanitária de 1887, ocorrido no ano de 1893, esses países
ficaram onze anos sem nenhum acordo diplomático que normalizasse as regras comuns de
prevenção e tratamento das epidemias. No ano de 1903, realizou-se em Paris uma nova
Confencia Sanitária Internacional.
Su principal tarea consistió en unificar los cuatro convenios sanitarios
aprobados en conferencias anteriores y refundirlos en un instrumento único,
el Convenio Sanitario Internacional de 1903, cuyas disposiciones se referían
tanto ao cólera como a la peste y la fiebre amarilla. Se trataba de tres
enfermedades cuyos modos de transmisión eran totalmente distintos y para
las cuales se disponía, por primera vez, de un conjunto de datos científicos
aceptados universalmente. [...] No obstante, el Convenio Sanitario
Internacional de Paris de 1903 no tenía vigencia para las Américas. Por lo
tanto, en 1904 las repúblicas de Argentina, Brasil, Paraguay y Uruguay
firmaron, en Río de Janeiro, una nueva Convención Sanitaria Internacional
(GARCÍA; ESTRELLA; NAVARRO; 1999, p.355).
A Conferência Sanitária de Paris serviu de base para as negociações de um novo
acordo higiênico-sanitário entre o Brasil e o Rio da Prata. A iniciativa foi tomada pelo
governo uruguaio, que convidou, em primeiro lugar, o governo argentino, e em seguida, os do
Brasil e Paraguai. A legação do Uruguai em Buenos Aires enviou o seguinte convite para o
ministro de relações exteriores da Argentina:
En cumplimiento de las instrucciones por. V.E. se sirvió darme en la nota
de fecha 5 del corriente pasado explorar las disposiciones en que se
encontraría este Gobierno para concurrir a un Congreso Sanitario
internacional que ha de celebrarse en Montevideo en mayo del año
próximo, fui ayer a visitar al Señor Ministro de Relaciones Exteriores y
240
hablando con él en general de las dificultades surgidas en diversas épocas
sobre cuestiones sanitarias, la conveniencia de que, para poner término de
una vez a esas penódicas desavenencias, se pusiesen los gobiernos de esta
parte de América de acuerdo en medida de carácter general y permanente, a
cuyo objeto podría reunirse en Montevideo un congreso el año próximo en
el que participarían la Argentina, el Brasil, el Paraguay e nosotros.
279
A novidade desse novo congresso foi a presença da República do Paraguai, que, ao
contrário dos outros dois eventos, participou desse último. É certo que, ao alvorecer o século
XX, o país já havia se reestruturado relativamente às questões político-diplomáticas.
Porém, um tema recorrente foi o da disputa pelo lugar de realização do congresso
entre a diplomacia uruguaia e a brasileira. Elas concorreram entre si no ano de 1887, como
apresentado no capítulo IV, e novamente em 1904 o governo uruguaio propôs a cidade de
Montevidéu como sede do congresso, e perdeu para o Rio de Janeiro, onde efetivamente
foram realizadas as reuniões diploticas e científicas. As condições históricas de país
dependente do mercado internacional e recém estruturado politicamente e o relativo atraso em
relação à instalação de uma faculdade de medicina podem ter prejudicado o Uruguai.
As a discussão entre a diplomacia dos três países para decidirem o local e as bases
para a realização do congresso, ficou acordado que no dia 04 de maio de 1904, na cidade do
Rio de Janeiro, com a presença de dois médicos, no máximo, por cada país, e com cada
Estado tendo direito a um voto, o início dos trabalhos do Congresso Sanitário Internacional.
Os objetivos do congresso eram muito parecidos com os de 1887, quais sejam:
salvaguardar a saúde blica, sem trazer inúteis dificuldades às transações comerciais e ao
trânsito de passageiros e evitar a importação e disseminação em seus respectivos países da
peste do Oriente, do cólera asiático e da febre amarela
280
. Ou seja, as doenças que
preocupavam as autoridades continuavam sendo as mesmas do século XIX, ainda que o
conhecimento médico-científico já houvesse conseguido diagnosticar as origens da peste e do
cólera.
Por fim, vale apresentar os nomes dos médicos participantes como delegados de seus
respectivos países no Congresso: Luis Agote e Pedro Lacavera, da República da Argentina;
Antonio Augusto de Azevedo Sodré e Osvaldo Gonçalves Cruz
281
, da República do Brasil;
279
Arquivo Histórico do Ministério das Relações Exteriores do Uruguai. Pasta Convención Sanitária (Uruguay,
Argentina, Brasil, Paraguay) (1903-1904). Correspondência do ministro plenipotenciário do Uruguai na
Argentina ao Ministro das Relações Exteriores do Uruguai, 08/10/1903.
280
Arquivo Histórico do Ministério das Relações Exteriores. Convención Sanitária celebrada entre las
Reblicas Argentina, Estados Unidos del Brasil, Paraguay y Oriental del Uruguay 1904. Montevidéu: Talleres
tipográficos de La Prensa, 1906.
281
Oswaldo Cruz havia iniciado sua carreira pública em 1903 e em 1904 implementava as campanhas contra a
febre amarela e a peste bubônica, porém ainda o era um cientista amplamente reconhecido pela comunidade
241
Federico Susviela Guarch e Ernesto Fernandéz Espiro, da República do Uruguai; e,
finalmente, apenas Pedro Pena como único representante da República do Paraguai. Essa
comissão foi a responsável pela elaboração da Convenção Sanitária Internacional, que passou
a ser a legislação comum entre esses países a partir de 1904.
Os assuntos principais discutidos e acordados foram: a profilaxia para os navios
infectados pelas doenças indicadas pela Convenção; a constituição do corpo de Inspetores
Sanitários de navios; e os tratamentos diferenciados dados para cada doença, em separado.
Tratava-se agora de três doenças cujos modos de transmissão eram totalmente diferentes, e
que, por esse motivo, foram abordadas separadamente no acordo sanitário.
Os dicos recomendavam o fim das quarentenas e do fechamento dos portos e, em
substituição, a utilização apenas do isolamento dos doentes e suspeitosos da doença, da
desinfecção dos navios e das vacinações preventivas para as doenças que possuíam vacina.
Era uma mudança importante em relação ao de 1887, que havia impedido o fechamento dos
portos, mas que ainda recomendava as quarentenas.
O cargo de inspetor sanitário de navio, criado em 1887, voltou a figurar como
personagem importante no controle internacional das doenças epidêmicas. Era necessária a
realização de concurso ou exame e a divulgação dos nomes dos inspetores entre as
autoridades sanitárias dos outros países.
Em relação ao tratamento das doenças, recomendava-se para a peste o extermínio do
rato (animal transmissor da doença); para a febre amarela o controle do mosquito transmissor,
e para o cólera a limpeza e desinfecção dos depósitos de água dos navios contaminados. Esses
procedimentos já refletiam uma nova concepção sanitária que começava a vigorar em todo o
mundo no início do século XX, ao mesmo tempo em que alguns países ainda questionavam
sobre o verdadeiro vetor transmissor da febre amarela (ALMEIDA, 2003).
Por fim, as últimas disposições do Congresso foram em relação à duração da
convenção sanitária, que foi de quatro anos, prorrogáveis por mais quatro anos, caso o fosse
denunciada por nenhum país. Essa Convenção vigorou por oito anos entre as quatro
repúblicas sul-americanas, quando foi denunciada pelo governo argentino, em nota de 21 de
abril de 1912, e ficou sem efeito em 31 de outubro do mesmo ano (OLIVEIRA, 1997). O
cônsul argentino no Brasil, Julio Fernandéz, assim se expressou:
internacional. Ver Brito, Nara. Oswaldo Cruz: a construção de um mito na ciência brasileira. Rio de Janeiro:
Editora Fiocruz; 2006.
242
La Convención Sanitaria Internacional acordada en Río de Janeiro el día 5
de junio de 1904 entre las Repúblicas: Argentina, de los Estados Unidos del
Brasil, Oriental del Uruguay y del Paraguay no llena hoy los propósitos que
las Altas Partes contratantes tuvieron en mira al concertarla; por cuanto los
progresos que la profilaxia moderna tiene efectuado en los últimos años han
convertido en anacrónicas, inútiles ó insuficientes las prácticas defensivas
en ella preceptuadas y que en aquella fecha expresaban la última palabra de
la ciencia y de la experiencia.
Es pues evidente, que, en tales condiciones, la Convención no comporta
ventajas á las Altas Partes contratantes, á quienes impone la obligación de
medidas y tratamientos anticuados, y antes bien solo trastornos y molestias
les puede ocasionar desde que no es fácil, mientras esté en vigencia, suplir
aquellos tratamientos por otros que mejor consulten los progresos de la
ciencia contemporánea.
282
A partir do século XX, os avanços científicos e os serviços diplomáticos permitiram
uma maior durabilidade das convenções internacionais, nas mais diversas áreas. Igualmente,
os países sul-americanos já não possuíam tantas hostilidades entre si, quanto as que
predominaram no século XIX.
282
Relatório do Ministério de Relações Exteriores do Brasil, 1912. Anexo A, p. 17-18.
243
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os interesses entre o Império do Brasil e as Repúblicas do Uruguai e da Argentina,
que, até a década de 1870, haviam levado esses países à eclosão de guerras, tinham passado
para a esfera diplomática. A “guerra” passou a ser a das correspondências e dos acordos, estes
extensamente negociados e debatidos até o momento de suas assinaturas, como o que ocorreu
nas duas convenções sanitárias, a de 1873 e a 1887.
Entre o final do século XIX e início do XX, a vida nos três países sul-americanos,
Brasil, Argentina e Uruguai, foi marcada por epidemias, que se transformaram em um
problema tão grave a ponto de provocar a união entre eles com o intuito de encontrar soluções
para a questão. Como chama a atenção Diego Armus (2000, p.512), as doenças epidêmicas se
tornaram um “problema social no porque antes no existieran sino porque fue hacia fines del
siglo cuando se las relacionó con otras urgencias y con una nueva convicción que indicaba
que era necesario y en algunos casos posible hacer algo que las evitara”. Ou seja, as
epidemias se relacionavam diretamente com outras questões importantes naquele momento,
como o crescimento econômico, a imigração européia e a busca de um padrão cultural
compatível com os países europeus, que passaram a vincular a higiene com temáticas mais
gerais de progresso e civilização.
É correto afirmar que as Repúblicas do Prata mantinham-se unidas e nutriam com o
Império do Brasil uma relação de desconfiança; até as primeiras décadas do século XX,
acusavam-no de país pestilento e transmissor de doenças epidêmicas exóticas. Os tratados
sanitários não conseguiram resolver totalmente essas questões nem melhorar a imagem do
país. Um tido exemplo disso aconteceu no Primeiro Congresso Médico Latino-Americano
de 1901 na cidade de Buenos Aires, sobre o qual Marta de Almeida (2003, p.53) afirma:
Emílio Coni, que naquele evento representava a Facultad de Ciências
Médicas de Buenos Aires, apresentou um trabalho sobre as condições
sanitárias da Argentina, dissertando sobre as reformas vinculadas ao sistema
de esgotos, drenagem, provisão de água, serviços de desinfecção, vacinas,
vigilância sanitária e rede hospitalar. Suas palavras eram de total sucesso e
seguraa com relação às medidas adotadas, o que tornava a capital federal
de seu país imune às afecções pestilenciais exóticas”. No caso referia-se à
febre amarela que, em seu relato, “reinava endêmica em uma nação
vizinha”, ou seja, no Brasil. Talvez por uma questão de prudência
diplomática, preferiu não citar abertamente o nome do país dominado pela
doença exótica num congresso de medicina.
244
Naquele momento, a discussão se centrava na febre amarela, pois os médicos ainda
o haviam chegado a um consenso sobre as formas de prevenção, transmissão e cura dessa
doença. Havia uma grande desconfiança entre esses países, mesmo com os acordos sanitários
e os avaos das discussões médico-científicas.
Em 1903, quando começaram as reuniões para um novo acordo sanitário internacional
entre Uruguai, Argentina, Brasil e Paraguai, mais uma vez surge a imagem do Brasil como
república das doenças, agora na fala da diplomacia do ministro das Relações Exteriores da
Argentina, ao responder o convite feito pelo governo uruguaio: para él será un gran
satisfacción el poder ultima una convención sanitaria definitiva entre ambos países, cuyos
intereses son idénticos tanto mejor, concluyó, si podemos conseguir que entre también en el
acuerdo el Brasil, que es causante de la mayor parte de nuestras dificultades sanitarias”
283
.
No congresso de 1887, o Uruguai havia ganhado a disputa científica com o Brasil,
quando o professor JoArechavaleta descobriu a não-transmissibilidade do cólera por meio
carne de charque e levou essa experiência até um importante centro de produção científica, o
Museu Nacional. Em contrapartida, perdeu paulatinamente o seu extenso mercado
consumidor de carne seca o Brasil para os charqueadores gaúchos e de outras regiões
brasileiras, que passaram a desenvolver a pecuária como atividade econômica, como foi o
caso de Minas Gerais e o interior do Nordeste.
A Argentina manteve uma postura de “neutralidade” durante o evento de 1887, porém
sempre se posicionou de forma a levar vantagens nos acordos. O país estava cada vez mais
preocupado com a forte imigração, e o convênio sanitário auxiliava na tarefa de divulgar a
imagem de uma nação cada vez mais salubre e próspera para a gente européia. Era um país
mais independente do comércio com o Brasil, em comparação com o Uruguai e, por isso,
esteve menos envolvido no último congresso de 1887. Além disso, o objetivo primeiro dos
argentinos era travar acordos apenas com o Uruguai, pois a proximidade dos portos deixava o
porto de Buenos Aires muito vulnerável. Era preciso que as duas Repúblicas seguissem
padrões sanitários comuns, para que a Argentina pudesse garantir a importação de imigrantes
e a exportação de lã ovina.
O Brasil também se beneficiava pelo lado da imigração e conseguiu manter o acordo
mesmo com o processo de transição da monarquia para a república, um momento de intensa
turbulência e de mudanças dos agentes que faziam com que os acordos fossem postos em
283
Arquivo Histórico do Ministério das Relações Exteriores do Uruguai. Convención Sanitária (Uruguay,
Argentina, Brasil, Paraguay) (1903-1904). Correspondência do ministro plenipotenciário do Uruguai na
Argentina ao Ministro das Relações Exteriores do Uruguai, 08/10/1903.
245
prática. Muitos médicos continuaram exercendo as fuões que exerciam na era republicana,
o que facilitou a transição, como foi o caso de Nuno de Andrade, que continuou à frente da
Inspetoria de Saúde dos Portos. O interesse de salvaguardar o comércio exterior e a potica
internacional, no entanto, o se refletia no interior do próprio país, onde as mais diversas
doenças endêmicas e epidêmicas assolavam a população.
Do ponto de vista científico, existem diferenças importantes entre o Congresso de
1873 e o de 1887. Enquanto no primeiro, eram grandes as dúvidas e incertezas dos médicos
em relação à etiologia e formas de combate das doenças; no segundo, uma paulatina
transformação desse quadro, com o crescente desenvolvimento da ciência médica e o início da
denominada revolução pasteuriana, com a descoberta dos micróbios. Além disso, os
profissionais que estiveram envolvidos em 1873 possuíam vínculos institucionais e poticos
com seus países, enquanto os que se envolveram em 1887 foram escolhidos mais por suas
competências nas áreas relacionadas à Convenção Sanitária do que por filiações partidárias.
Percebe-se a mudança de uma potica clientelista de 1870, para uma potica meritocrática de
ocupação de cargos.
Por fim, as repercussões demonstram o quanto esses episódios interferiram na
dinâmica ecomica de diversos países e tiveram papel de vanguarda no estabelecimento de
regras e normas sanitárias que nem o Velho Continente havia logrado. A pesquisa sobre a
Convenção Sanitária Internacional de 1887, ocorrida na cidade do Rio de Janeiro, demonstrou
que esses eventos, ocorridos abaixo da Linha do Equador, na América do Sul, tiveram grandes
repercussões no Novo e no Velho Mundo.
246
FONTES
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Arquivo Histórico do Ministério de Relações Exteriores – Montevidéu
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1890-1892- Caja 100, carpeta 797
1893- Caja 134, carpeta 1054
- Legação do Brasil no Uruguai
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247
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1886, 1887 e 1888: Volume 242-1-04.
- Consulado do Brasil em Montevidéu:
1872 a 1880: Volume 256-4-02.
1886, 1887 e 1888: Volume 256-4-03.
- Despachos do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Brasil à Legação do Brasil em
Montevidéu:
1872 a 1888: Volume 257-3-05.
1873 e 1874: Volume 224-1-09.
Missões diploticas brasileiras:
- Legação do Brasil em Buenos Aires:
1873, volume 205-3-16.
1886-1887, volume 205-4-14,
1887 volume 205-4-15.
1888 volume 206-1-01.
- Legação do Brasil em Montevidéu:
1873, volume 222-2-02
1886 volume 222-3-3.
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2.4. Arquivo Histórico do Museu Imperial/Petpolis:
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2.5. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro:
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Série Saúde:
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- Inspetoria de Saúde do Porto do Rio de Janeiro - 1870-1874
- Inspetoria Geral de Saúde dos Portos - 1890
2.6. Memorial de Medicina da UFBA/SSA:
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259
ANEXOS
ANEXO A - Convenção Sanitária Internacional (Montevidéu, 1873)
284
Considerando la República del Uruguay, la República Argentina y el Imperio del
Brasil, que las enfermedades exóticas, lera asiático, fiebre amarilla, peste del Levante y
tifus de las aglomeraciones humana, son importables, transmisibles y propagables y que se
deben aplicar a éstas, medidas precaucionales que garanticen la salud de los pueblos que se
hallan en continua comunicación;
Considerando conveniente que estas medidas armonicen los intereses generales con las
exigencias de la salud blica y que ellas deben ser lo menos dañosas para el comercio y
navegación, toda vez que se halle suficientemente garantida la salud de los pueblos;
Considerando que no hay más medidas que oponer a la importación de los males
epidémicos exóticos que los lazaretos y cuarentenas, como medios de aislamento de las
personas y objetos infectados;
Considerando, finalmente, las ventajas de adoptar un régimen sanitario marítimo, las
Altas Partes Contratantes nombraron sus Plenipotenciarios y demás representación, a saber:
S.E. el señor Presidente de la República Oriental del Uruguay a S.E. el señor Ministro
de Relaciones Exteriores, doctor don Gregorio Pérez Gomar, y como miembros del mismo
Congreso a los doctores don Gualberto Mendez y don Pedro Visca; S.E. el señor Presidente
de la República Argentina a S.S. el Señor Cónsul General Argentino en la República Oriental
don Jacinto Villegas y como miembros del mismo Congreso a los doctores do Pedro Mallo y
don Eduardo Wilde; S.M. el Emperador del Brasil a S.E. el señor Antonio José Duarte de
Araujo Gondin, de su Consejo, Comendador de la Orden de la Rosa del Brasil, de la orden e
la Concepción de Portugual, y de Carlos III de España, Oficial del Aguila Roja de Prusia,
Caballero de la Orden de Cristo del Brasil y Su Ministro Residente en la República Oriental, y
como miembros del mismo Congreso, a S.E. el señor Cónsul General don Eduardo Carlos
Cabral Deschamps y a los doctores don Francisco Márquez de Araujo Goes y don Jo
Ignacio de Barros Pimentel; y habiendo lo Plenipotenciarios comunicádose sus respectivos
Plenos Poderes, los que fueron hallados en buena y debida forma, acuerdan y aceptan lo
siguiente:
Artículo I Cada una de las Partes Contratantes se reserva el derecho de tomar por tierra las
medidas que juzgue convenientes contra la importación de las enfermedades epidémicas.
Artículo II Las mismas Partes Contratantes convienen en someter a las siguientes medidas
las procedencias marítimas de los puertos infectados:
1º. Igualar las cuarentenas en los tres países para la peste de levante, fiebre amarilla, lera
asiático y otros males epidémicos.
2º. Exigir de todo buque la presentación de las patentes de que se haya debido munir para su
viaje, exceptuando aquellos que por el Reglamento que se forme sobre estas bases quedan
excluídos de esta disposición.
3º. En ninn caso podrán las Partes Contratantes rechazar de sus puertos buque alguno,
cualquiera que sea el estado de salubridad a bordo.
284
Extraído de: Tratados y convenios internacionales suscritos por Uruguay en el periodo enero de 1871 a
diciembre de 1890. Montevidéu: Secretaria del Senado, Documentación y antecedentes legislativos, 1993, tomo
II.
260
4º. Las Partes Contratantes no reconocen ás de dos patentes, la sucia y la limpia; la primera
para la existencia comprobada de una epidemia; la segunda para el caso contrario.
5º. Los buques cuyas condiciones higiénicas sean evidentemente malas serán considerados
como sucios aunque su patente sea limpia.
6º. Toda vez que un buque de patente limpia comunique con otro de patente sucia o toque en
un puerto infectado, quedará en condiciones de buque procedente de puerto sucio.
Artículo III Serán consideradas como sujetas a medidas sanitarias las procedencias de todo
puerto en que no tomen medidas de precaución que se juzguen suficientes contra otros puertos
sucios, estando para esta apreciación a lo que determinan los artículos del al 11 de esta
Convención.
Artículo IV Sólo habrá dos clases de cuarentenas: la de observación, para los buques que se
hallen en mal estado higiénico y para las procedencias de puertos que no se preservan o lo
hacen insuficientemente y la de rigor para las procedencias de puertos infectados. En el
Reglamento e expresarán las medidas higiénicas de que han de ser objeto el buque, los
pasajeros, equipajes y mercaderías.
Artículo V Las autoridades sanitarias de los puertos de las Naciones Contratantes darán
patente sucia por cólera epidémico, fiebre amarilla y peste de Levante, cuando cualquiera de
estas enfermedades produzca una o más defunciones diarias, oficialmente comprobada. Desde
el de Mayo hasta el 31 de Octubre, sólo darán patente sucia por fiebre amarilla, en los
puertos en que habitualmente se observa esta enfermedad, cuando durante cuatro o más días
consecutivos se comprueben, oficialmente, cuatro o más defunciones diarias de este
enfermedad o que la mortalidad por ella producida exceda de lo normal.
Artículo VI Estando también sujetas las mercaderías y objetos a las medidas sanitarias,
quedarán para este propósito divididas en tres grupos: 1º mercaderías y objetos de cuarentena
obligatoria; mercaderías y objetos de cuarentena facultativa; 3º mercaderías y objetos
exentos de cuarentena. El Reglamento respectivo especificará estos grupos y las medidas que
deberán serle aplicadas.
Artículo VII La duración de la cuarentena para los pasajeros en los puertos de los Países
Contratantes, cualquiera que sea la epidemia exótica reinante en el punto de partida, y en el
caso de no haber habido enfermedad a bordo, será de 10 días completos, a contar del día de
salida.
Artículo VIII – Desde el de Mayo hasta el 31 de Octubre, las cuarentenas para los pasajeros
procedentes de puerto sucio por fiebre amarilla será de 7 días completos contando desde el día
de salida, sin perjuicio de las medidas a que se sometan los bagajes, mercaderías y el buque,
según lo especifique el Reglamento.
Artículo IX En caso de haber habido a bordo enfermedades de las que especifican los
artículos anteriores, la cuarentena comenzará a contarse desde el día de alta o fallecimiento
del último enfermo.
Artículo X Para los puertos de una misma nación entre sí, la duración de la cuarentena será
facultativa.
261
Artículo XI La duración de la cuarentena de observación para los buques en mal estado
higiénico será facultativo de las autoridades sanitarias. Para los pasajeros procedentes de
puertos que no se preservan de fiebre amarilla, desde el de Mayo hasta el 31 de Octubre,
habrá una observación de 24 horas, si la travesia ha durado menos de 7 días. Durante los otros
meses del año se impondrá una cuarentena de 7 días a contar del día de salida; cuando la
travea hubiese durado más de 7 días, lo habuna observación de 24 horas.
Artículo XII Será facultativo de las autoridades de sanidad, la duración de las cuarentenas
para los buques que traigan enfermedad a bordo, que no siendo exótica, pueda, sin embargo,
ser trasmisible y propagada, sin que esta resolución perjudique o comprometa el puerto de
procedencia, excepto cuando la enfermedad haya tomado en él un carácter epidémico
alarmante.
Artículo XIII La duración de las cuarentenas para las mercaderías objetos, será del tiempo
necesario para su desembarque, desinfección y purificación.
Artículo XIV Con el fin de que los gastos que exija el cumplimiento de estas medidas no
pesen sobre el erario de las Naciones Contratantes, éstas convienen en imponer a las personas
que purguen su cuarentena en los lazaretos un tanto diario, que será fijado por los reglamentos
internos de estos establecimientos, con las excepciones que estimen convenientes los
respectivos Gobiernos.
Artículo XV – Todo buque de patente sucia, cualquiera que sea su pabellón, pagará un
derecho llamado “Sanitario” proporcional a su tonelaje, que será fijado por cada Gobierno.
Artículo XVI Las mercaderías que purguen su cuarentena en los lazaretos, pagarán un
derecho proporcional a los trabajos que demanden su purificación.
Artículo XVII – Las autoridades sanitarias establecidas en los puertos deberán oir a los
Cónsules de los países cuyas procedencias deban ser sujetas a medidas sanitarias.
Artículo XVIII – Un puerto que ha sufrido una epidemia será considerado como limpio
cuando durante quince días no hubiese tenido caso alguno de la enfermedad, o cuando lo
declaren las autoridades de cada puerto y los Cónsules respectivos así lo informen.
Artículo XIX Las Altas Partes Contratantes reconocen que la clausura de los puertos, por
motivo de higiene pública, es una medida extrema, contraria a la civilización e innecesaria y
se comprometen a no tomarla, cualquiera que sea el estado de los puertos con que se hallen en
relación.
Artículo XX Las Partes Contratantes erigirán lazaretos en los puertos donde lo exijan las
necesidades comerciales y en los que harán cuarentena los pasajeros y mercaderías sujetas a
medidas sanitarias, consultando en la erección de estos establecimientos las conveniencias de
la alud pública y comodidades de los pasajeros.
Artículo XXI La República Argentina y la Oriental convendrán entre , en la localidad y
demás puntos relativos al establecimiento de los lazaretos.
Artículo XXII La presente Convención durará cuatro años, a contar desde el día de la
ratificación, debiendo ponerse en vigencia un año después de ratificada, pudiendo ser
262
renovada o alterada al fin de los cuatro años por invitación especial de cualquiera de las Partes
Contratantes, con dos meses de anticipación, quedará en vigor por uno más así en
adelante, hasta que se verifique la condición indicada.
Artículo XXIII Los Altos Poderes Contratantes se comprometen recíprocamente a hacer
ejecutar todas las disposiciones de la presente Convención y sus respectivos reglamentos.
Artículo XXIV Las demás Potencias que quieran adherirse a esta Convención y a u anexos,
contraerán las obligaciones por ella estipuladas.
Artículo XXV La presente Convención y sus anexos serán ratificados de acuerdo con las
leyes y usos de cada una de las Altas Partes Contratantes y las ratificaciones canjeadas en
Montevideo en el menor plazo posible.
En fe de lo cual los respectivos Plenipotenciarios y demás miembros del Congreso firman y
sellan la presente en tres ejemplares, uno para cada Parte, en Montevideo, a veintinueve de
Julio del año de mil ochocientos setenta y tres.
(L.S.) Gregorio Pérez Gomar.
(L.S.) Jacinto Villegas.
(L.S.) Antonio J. D. de Araujo Gondim.
Gualberto Méndez.
Pedro Visca.
Pedro Mallo.
Eduardo Wilde.
Eduardo Caros Cabral Deschamps.
Francisco Márquez de Araujo Goes.
José Ignácio de barros Pimentel.
ANEXO B - Convenção Sanitária entre o Império do Brasil, a República Argentina e a
República Oriental do Uruguai (Rio de Janeiro, 1887)
285
Sua Alteza a Princesa Imperial Regente em nome de Sua Majestade o Imperador do
Brasil, Sua Excelência o Presidente da República Argentina e Sua Excelência o Presidente da
República Oriental do Uruguai, tendo resolvido celebrar uma convenção sanitária, nomearam
para esse fim seus plenipotenciários, a saber:
Sua Alteza a Princesa Imperial Regente o Sr. Barão de Cotegipe, do Conselho de Sua
Majestade o Imperador, Senador e grande do Império, Dignitário da Imperial Ordem do
Cruzeiro, Comendador da Ordem da Rosa, Grã-Cruz das de Nossa Senhora da Conceição de
Vila-Viçosa, de Isabel a Católica, de Leopoldo da Bélgica e da Coroa de Itália, Presidente do
Conselho de Ministros e Ministro e Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e interino
dos do Império;
Sua Excelência o Presidente da República Argentina o Sr. D. Henrique B. Moreno,
Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário junto a Sua Majestade o Imperador do
Brasil;
285
Relatório do Ministério dos Negócios Estrangeiros, 1888, suplemento ao Anexo n.1.
263
Sua Excelência o Presidente da República Oriental do Uruguai o Sr. Carlos Maria
Ramirez, Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário em Missão Especial junto a Sua
Majestade o Imperador do Brasil;
Os quais, tendo-se comunicado reciprocamente os seus plenos poderes que foram achados
em boa e devida forma convieram nos artigos seguintes:
Artigo 1º - As três Altas Partes Contratantes concordam em declarar:
Moléstias pestilenciais exóticas - a febre amarela, o cólera-morbus e a peste oriental.
Porto infeccionado - aquele em que reinar epidemicamente qualquer das referidas
moléstias.
Porto suspeito: 1º. aquele em que se manifestarem casos isolados de qualquer das três
moléstias pestilenciais; . o que tiver comunicação fácil e frequente com localidades
infeccionadas; . o que não se premunir suficientemente contra os portos infeccionados, de
conformidade com os princípios desta convenção.
Navio infeccionado - aquele em que houver ocorrido algum caso de mostia pestilencial.
Navio suspeito: 1º. o que, procedente de porto infeccionado ou suspeito, não tiver tido
durante a viagem caso algum de moléstia pestilencial; . o que, embora procedente de porto
limpo, houver tocado em porto infeccionado ou suspeito, salva a exceção do § 10º do artigo
8º; 3º. o que, durante a viagem, ou à sua chegada, comunicar com outro navio de procedência
ignorada, infeccionada ou suspeita; . o que houver tido casos de óbito por moléstia não
especificada ou repetidos casosos de uma moléstia qualquer; . o que não toruxer carta de
saúde do porto de procedência, bem como dos portos de escala, devidamente apostilhada
pelos nsules do país de destino nesses portos; . o que, tendo purgado quarentena ou
sofrido tratamente sanitário especial em qualquer dos lazaretos dos três Estados Contratantes
o se apresentar munido do bilhete internacional de livre prática.
Objetos suspeitos ou suscetíveis de reter e transmitir contágios: as roupas, panos, trapos,
colchões e todos os objetos de uso e serviço pessoal, asim como as malas, baús e caixas
usadas para guardá-los; e também os couros frescos. Os demais objetos não especificados
anteriormente, assim como os animais em pé, não serão considerados suspeitos.
Parágrafo único - A declaração de infeccionado ou suspeito aplicada a um porto será feita
por cada Governo, no seu caso, sobre proposta do chefe do serviço sanitário marítimo, e
oficialmente publicada.
Artigo 2º - Os Governos das três Altas Partes Contratantes instalarão os respectivos
serviços sanitários de modo que possam cumprir e fazer cumprir o que na presente convenção
se estabelece.
Os chefes dos referidos serviços sanitários se comunicarão entre si, sempre que for mister,
e cada um deles poderá fazer aos outros dois as observações que julgar convenientes sobre o
exercício das suas funções.
Para a execução dos serviços sanitários será expedido um Regulamento Internacional, em
que se uniformizarão as medidas gerais e especiais apliveis aos três Estados.
Artigo - As Altas Partes Contratantes se obrigam: 1º. a fundar os lazaretos que forem
necessários, sendo conveniente que os lazaretos fixos sejam situados em ilhas; . a
estabelecer e manter, em épocas epidêmicas, um lazareto flutuante, pelo menos; a criar
hospitais flutuantes, anexos ao lazareto fixo, destinados ao tratamento das pessoas atacadas de
moléstias pestilenciais exóticas nos navios que chegarem, nos já fundeados e nos lazaretos;
a considerar válidas para os efeitos desta convenção, em qualquer dos seus portos, as
quarentenas e medidas sanitárias empregadas, sob a garantia de atestação oficial, em algum
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dos lazaretos dos três Estados; a não recorrer à clausura dos portos respectivos, nem a
repelir navio algum, seja qual for o estado sanitário de bordo.
Artigo - Nenhum navio, procedente de portos estrangeiros, terá livre prática nos portos
brasileiros, argentinos ou uruguaios, sem prévia visita sanitária, efetuada pela autoridade
respectiva, salva a exceção do §10º do artigo 8º. Nesta visita procederá a mesma autoridade a
todas as pesquisas necessárias à completa averiguação do estado sanitário de bordo e
determinará o tratamento a que deve ser submetido o navio, cujo capitão será dele notificado
por escrito.
Artigo- Para a execução do disposto no artigo antecedente as Altas Partes Contratantes
convêm em distinguir três espécies de navios: 1ª. os vapores, que conduzirem menos de 100
passageiros de proa; 2ª. os transportes de imigrantes, isto é, vapores que, gozando ou não dos
privilégios de paquetes, conduzirem mais de 100 passageiros de proa; 3ª. os navios de vela.
§1º - Os navios da 1ª e 2ª espécie deverão ter médico a bordo e ser providos:
- de estufa de desinfecção pelo vapor d'água;
- de depósito de desinfetantes e utensílios de desinfecção, conforme as indicações do
Regulamento Sanitário Internacional;
- de livro de fornecimento da farmácia, no qual se assentará a quantidade e a espécie das
drogas ou remédios existentes a bordo no momento da partida do porto de procedência, bem
como os fornecimentos suplementares recebidos nos portos de escala;
- de livro de registro das receitas médicas;
- de livro da enfermaria, em que se anotem, com a maior minuciosidade, todos os casos de
moléstia ocorrido a bordo e os respectivos tratamentos;
- de lista dos passageiros, com indicação do nome, idade, sexo, nacionalidade, profissão e
procedência;
- do rol da tripulação;
- de manifesto da carga.
§2º. Os livros a que se refere o parágrafo antecendente serão abertos, rubricados e selados
em suas folhas pelo nsul de um dos Estados contratantes no porto de procedência; e as
folhas referentes a cada viagem canceladas pela autoridade sanitária do porto de destino.
Pela habilitação desses livros nenhum emolumento pagarão os comandantes de navio.
§3º. Todos os papéis de bordo serão submetidos ao exame da autoridade consular nos
portos de procedência e da autoridade sanitária dos portos de chegaa; cumprindo à primeira
declarar nas cartas de saúde, por ocasião de visá-las, a existência ou ausência, total ou parcial,
dos livros, lista e rol indicados no §1º deste artigo.
Artigo - Todos os navios destinados a qualquer dos três países deverão trazer carta de
saúde passada pela autoridade sanitária do porto de procedência e visada pelos nsules dos
países de destino no mesmo porto de procedência e nos de escala. Esta carta de saúde será
apresentada à autoridade sanitária dos portos dos três países, por ela visada e entregue à do
último porto a que o navio chegar.
§1º. O documento sanitário expedido até agora pelos Agentes Consulares fica suprimido,
sendo substituído pelo - Visto - na Carta de Saúde, pelo qual cobrarão os Cônsules os
emolumentos devidos.
§2º. O Visto consular será escrito no verso da Carta e autenticado com o selo do
Consulado.
§3º. Quando, pelas informações obtidas e pelo conhecimento exato dos fatos, nenhuma
objeção tiver o nsul que fazer aos dizeres da Carta de Saúde, o Visto será simples; no caso
contrário, o mesmo Cônsul anotará, em seguida ao Visto, o que lhe parecer conveniente para a
retificação dos dizeres da Carta de Saúde.
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As cartas de saúde, que trouxerem Visto retificativo depois de visaas no primeiro porto de
qualquer dos três países em que o navio tocar, serão acompanhadas de um bilhete sanitário,
firmado pela autoridade do mesmo porto, em que se declarará o tratamento a que houver sido
submetido o navio. Em continuação do Visto far-se-á constar a remessa do bilhete.
§4º. Os Cônsules nos portos de procedência procurarão informar-se nas repartições de
saúde locais, ou como for melhor, do estado sanitário dos mesmos portos; cumprindo-lhes, no
caso de retificação da Carta de Saúde, comunicar sem demora à autoridade sanitária do seu
país, que os transmitirá à dos outros Estados Contratantes, os motivos e fundamentos da
retificação.
§5º. Os navios que tocarem em portos dos três países deverão tirar em cada um deles
Carta de Saúde; e tais cartas serão entregues pelo Comandante à autoridade do último porto
em que o navio entrar.
§6º. As Altas Partes Contratantes reconhecem duas espécies de Carta de Saúde - a limpa e
a suja; sendo limpa a que o referir caso algum de moléstias pestilenciais exóticas no porto
de procedência ou nos de escala, e suja a que declarar epidemia, ou casos isolados de
qualquer das ditas moléstias.
§7º. Os navios de guerra das nações amigas terão carta de saúde gratuita.
Artigo - Cada uma das Altas Partes Contratantes compromete-se a instituir na forma
constitucional no seu território um Corpo de Inspetores Sanitários de navio, composto de
dicos especialmente encarregados de fiscalizar, a bordo dos navios em que embarcarem, a
execução das providências adotada em favor da saúde dos passageiros e tripulantes, de
testemunhar as ocorrências havidas durante a viagem e de referi-las à autoridade sanitária do
porto de destino.
§1º. Os Inspetores Sanitários de navio serão funciorios das Repartições de Saúde
Marítima dos Estados a que pertencerem.
§2º. Os Inspetores Sanitários de navio serão nomeados pelos Governos mediante
concurso; competindo aos chefes do serviço sanitário respectivo a designação dos Inspetores
que devam embarcar.
§3º. O Regulamento Sanitário Internacional determinará o processo e objeto do concurso,
e também as funções que devam ser cometidas aos Inspetores Sanitários de navio.
Artigo - Nos portos de cada um dos Estados Contratantes serão praticadas duas
espécies de quarentena, a de observação e a de rigor.
§1º. A quarentena de observação consistina detenção do navio durante o tempo preciso
para a rigorosa visita sanitária de bordo.
§2º. A quarentena de rigor terá dois fins: 1º. averiguar se, entre os passageiros procedentes
de porto infeccionado ou suspeito, vem algum atacado de moléstia pestilencial em período de
incubação; 2º. proceder à desinfecção dos objetos suspeitos de reter e transmitir contágios.
§3º. A quarentena de rigor será aplicada: 1º aos navios infeccionados; 2º. aos navios a cujo
bordo tiverem ocorrido casos de moléstia não especificada e que não puder ser averiguada por
ocasião da visita sanitária.
§4º. A duração da quarentena de rigor será a do prazo de incubação máxima da moléstia
pestilencial, que se queira evitar, isto é, de dez dias para a febre amarela, de oito para o
cólera-morbus e de vinte para a peste oriental. Essa duração poderá ser contada de dois
modos: tendo começo na data do último caso ocorrido em viagem; tendo começo na do
desembarque dos passageiros no Lazareto.
§5º. A duração da quarentena de rigor começará a ser contada da data do último caso
ocorrido em viagem quando se realizarem as três condições seguintes: 1ª. satisfazer o navio as
exigências os §§1º, e do art. 5º; 2ª. vir a bordo dele um Inspetor Sanitário de navio que
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certifique a data exata da terminação do último caso; a execução de todas as medidas de
desinfecção indicadas nas Instruções que o mesmo Inspetor houver recebido do chefe do
serviço sanitário, conforme o Regulamento internacional; o perfeito estado atual de saúde a
bordo; 3ª. comprovar a autoridade sanitária local a veracidade das informações prestadas.
§6º. Se, nas condições indicadas no parágrafo antecedente, o tempo decorrido desde o
último caso até a chegada do navio, for igual ou maior do que o da incubação máxima da
moléstia pestilencial, os passageiros terão livre prática, e o navio também, caso não traga
objetos suspeitos.
Se o navio, pom, trouxer objetos suspeitos, em condição de não terem podido
contaminar os passageiros e tripulantes, e que não tenham sido desinfetados, ou precisem
ainda de desinfecção, a livre prática da embarcação só terá lugar depois de terminada a
desinfecção dos mesmos objetos.
No caso contrário, navio e pessoas serão submetidos a quarentena de rigor.
§7º. Se o tempo decorrido depois do último caso de mostia pestilencial for menor do que
o da incubação máxima, e se o navio se achar nas condições exigidas no §5º, os passageiros
purgarão uma quarentena complementar de tantos dias quanto faltem para inteirar o referido
tempo de incubação máxima.
A dita quarentena complementar será praticada no Lazareto, salva a hipótese de não haver
nele lugares disponíveis, o que permitirá efetuar-se a quarentena a bordo.
§8º. Se o navio, na ocaso da chegada, tiver doentes de moléstia pestilencial, serão estes
recolhidos ao hospital flutuante e os passageiros submetidos à quarentena no lazareto
flutuante. A quarentena, neste caso, começará da data da entrada dos passageiros no lazareto.
O navio ficará sujeito ao que para tais emergências dispuser o Regulamento Internacional.
§9º. Ao estabelecido no parágrafo antecedente ficarão também sujeitos os navios que,
tendo tido casos de moléstia pestilencial, embora não os apresentem no momento da chegada,
o houverem satisfeito as exincias do §5º. deste artigo.
§10º. Os navios suspeitos, que tiverem feito viagem do porto infeccionado, ou suspeito, ao
porto de chegada em um período de tempo inferior ao da incubação máxima da moléstia
pestilencial, que se procura evitar, ficarão igualmente sujeitos à quarentena complementar,
nos termos do §7º.
Fica excetuado desta quarentena o navio da espécie, que, procedente de porto
reconhecidamente limpo e em satisfatórias condições de saúde de bordo, atestadas pelo
Inspetor Sanitário de navio, tocar no Rio de Janeiro, Montevidéu ou Buenos Aires em época
epidêmica e se limitar a descarga de mercadorias e desembarque de passageiros e à entrega e
recebimento da correspondência, contanto que tais operações se efetuem em um pontão
destinado a esse fim pela autoridade sanitária, convenientemente situado, livre de toda
infecção e em satisfatórias condões de isolamento, não recebendo por conseguinte o navio,
nem tendo comunicação com pessoa ou objeto algum desses portos. Estes fatos serão
comprovados por documento autêntico firmado pela autoridade sanitária do porto em que o
navio tocar, visado pelo nsul do país de destino e certificado por um Inspetor Sanitário,
também do país de destino.
§11º. O navio suspeito, que efetuar a sua viagem em um período de tempo superior ao da
incubação máxima citada, será submetido à quarentena de observação, durante a qual se
procederá às investigações prescritas no Regulamento Internacional; e somente depois de
reconhecido que não ocorreu durante a viagem caso algum de moléstia pestilencial, se lhe
dará livre prática.
Fica entendido que, se o mesmo navio trouxer objetos suspeitos, ainda não desinfetados,
que não tivessem podido contaminar os passageiros e tripulantes, será submetido à quarentena
de rigor para completar a desinfecção dos mesmos, a qual começará depois de retirados de
bordo os passageiros, que deverão ter livre prática.
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Em caso de possível contaminação, seguir-se-á o disposto na última parte do §6º deste
artigo.
§12º. Os efeitos das disposições precedentes em relação aos navios da 1ª espécie, indicada
no art. 5º, subsistirão, ainda que eles não tragam a seu bordo Inspetor Sanitário de navio,
contanto que tenham observado rigorosamente as disposições do Regulamento Internacional
no que se aplica a responsabilidade que assume o médico de bordo perante a autoridade
sanitária do porto de destino relativamente ás informações que, sob a do juramento
profissional, tiver de prestar-lhe, e contanto que tenham cumprido exatamente durante a
viagem o que, nas Instrões, se determinar como deveres do Inspetor Sanitário de navio.
§13º. As disposições dos parágrafos antecedentes, no que tem de minorativo em relação às
quarentenas de rigor, só serão aplicadas em proveito dos navios da 2ª espécie, que:
receberem a seu bordo o Inspetor Sanitário de navio, dando-lhe passagem gratuita de primeira
classe de ida e volta; . observarem as recomendações do mesmo Inspetor relativamente à
saúde de bordo, quer por ocasião da partida, quer durante a viagem.
No caso contrário, não se admitipara a quarentena de rigor a contagem determinada no
§4º, nº. 1, tanto em relação aos passageiros, como em relação ao próprio navio.
Artigo - As disposições do §1º do artigo serão obrigatórias para todos os navios, que
em qualquer dos três países gozarem dos privilégios de paquetes; e os Governos contratantes
comprometem-se a retirar os mesmos privilégios àqueles que quatro meses depois de entrar
em vigor a presente convenção, não houverem dado stricto cumprimento às mesmas
disposições.
Artigo 10º - As Altas Partes Contratantes concordam em conceder privilégio de paquete
somente aos navios que se conformarem com a presente conveão, que além disso provarem
perante a respectiva autoridade sanitária ter satisfeito as exincias do §1º do artigo e que
declararem submeter-se às condições 1ª e 2ª do §13º do artigo.
Artigo 11º - As providências sanitárias, que as Altas Partes Contratantes houverem de
tomar por terra e dentro do próprio território, não constituem objeto da presente convenção;
mas fica entendido que essas providências nunca chegarão a estabelecer a supressão absoluta
das comunicações terrestres. Os Governos interessados oportunamente se entenderão sobre os
pontos de comunicação e os meios mais eficazes para que não haja perigo de invasão das
epidemias.
Artigo 12º - A presente convenção durará quatro anos contados do dia da troca das
ratificações, e continuará em vigor até que uma das Altas Partes Contratantes notifique às
outras a intenção de a dar por finda, cessando doze meses depois da data dessa notificação. As
ditas ratificações, observadas as fórmulas constitucionais, serão trocadas na cidade de
Montevidéu no menor tempo possível.
Em fé do que dos respectivos Plenipotenciários a firmam e selam.
Feito na cidade do Rio de Janeiro, aos vinte e cinco dias do mês de novembro do ano do
Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e oitenta e sete.
(L.S.) Barão de Cotegipe
(L.S.) Enrique B. Moreno
(L.S.) Carlos M. Ramirez
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ANEXO C Regulamento sanitário internacional entre o Império do Brasil, a
República Argentina e a República Oriental do Uruguai (Rio de Janeiro, 1887)
CAPÍTULO I
DAS CARTAS DE SAÚDE
Art. 1º. As cartas de saúde que foram concedidas pelas autoridades sanitárias dos três
países contratantes, serão conforme o modelo n.1.
Art. 2º. Nenhuma carta de saúde será válida se tiver passada com uma antecipação maior
de 24 horas relativamente ao momento da partida do navio; devendo ser revalidada em caso
de antecipação maior.
Art. 3º. O bilhete sanitário a que se refere o § do art. 6º da Convenção, será formulado
segundo o modelo n.2.
Art. 4º. A carta de saúde não será exigida dos navios que navegarem entre portos da
mesma província, dos cruzeiros e das lanchas de pesca.
Art. . Todos os navios destinados a qualquer dos países contratantes deverão trazer
Carta de saúde passada pela autoridade sanitária do porto de procedência e visada pelos
Cônsules dos países de destino no mesmo porto de procedência e nos de escala. Esta Carta de
saúde será apresentada à autoridade sanitária dos portos dos três países, por ela visada e
entregue à do último porto a que o navio chegar.
§ 1º. O documento sanitário expedido, até agora, pelos Agentes Consulares fica
suprimido; e em lugar dele estabelecido o Visto na Carta de saúde, pelo qual cobrarão os
Cônsules os emolumentos devidos.
§ 2º. O Visto consular será escrito no verso da Carta e autenticado com o selo do
Consulado.
§ . Quando, pelas informações obtidas e conhecimento exato dos fatos, nenhuma
objeção tiver o nsul que fazer aos dizeres da Carta de saúde, o Visto será simples; no
caso contrário, o mesmo Cônsul anotará, em seguida ao Visto o que lhe parecer
conveniente para a retificação do dizeres da carta de saúde.
As Cartas de saúde que trouxerem Visto retificativo depois de visadas no primeiro
porto de qualquer dos países contratantes em que o navio tocar, serão acompanhadas de um
bilhete sanitário - , firmado pela autoridade do mesmo porto, em que se declarará o tratamento
a que houver sido submetido o navio. Em continuação do Visto – far-se-á constar a remessa
do bilhete.
§ 4º. Os Cônsules dos países contratantes nos portos de procedência procurarão informar-
se nas repartições de saúde locais, ou como melhor for, do estado sanitário dos mesmos
portos; cumprindo-lhes, no caso de retificação da Carta de saúde, comunicar sem demora à
autoridade sanitária do seu país, que os transmitirá às dos outros países contratantes, os
motivos e fundamentos da retificação.
§ . Os navios que tocarem em portos dos três países contratantes deverão, em cada um
deles, tirar carta de saúde; e tais cartas serão entregues pelo comandante à autoridade do
último porto que o navio entrar.
§ 6º. Os países contratantes reconhecem duas espécies de carta de saúde – a limpa e a suja;
sendo limpa a que não referir caso algum de moléstias pestilenciais exóticas no porto de
procedência ou nos de escala, e suja a que consignar epidemia, ou casos isolados de qualquer
das aludidas moléstias.
§ 7º. Os navios de guerra das nações amigas terão carta de saúde gratuita.
CAPÍTULO II
ORGANIZAÇÃO DO CORPO DE INSPETORES SANITÁRIOS DE NAVIO
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Art. 6º. O corpo de inspetores sanitários de navio será composto de médicos da
nacionalidade de qualquer dos três Estados contratantes. Seu número será determinado pelas
necessidades do serviço marítimo do comércio internacional e fixado periodicamente por
acordo entre os chefes dos serviços sanitários dos mesmos Estados.
Art. 7º. O título de inspetor sanitário de navio será conferido mediante concurso, ante um
júri especial, aos candidatos que exibirem melhores provas de competência.
§ 1º. Para a inscrição ao concurso é mister:
1º. Ser natural de algum dos três países contratantes;
2º. Ser doutor em medicina pelas Faculdades do Rio de Janeiro, Montevidéu e Buenos
Aires ou houver revalidado o seu diploma em alguma delas;
3º. Ter, pelo menos, um ano de exercício da profissão;
4º. Ter boa conduta moral, reconhecida.
286
A chamada para a inscrição ao concurso será publicada por 30 dias consecutivos e
assinalará dia e hora para a instalação do júri.
§ 2º. O concurso versará sobre as seguintes matérias:
Geografia médica; Moléstias pestilenciais exóticas; Moléstias contagiosas em geral;
Profilaxia e meios de isolamento. Sistemas de desinfecção e natureza e modo de ação dos
agentes desinfetantes; Higiene naval; organização da pocia sanitária marítima argentina,
brasileira, uruguaia, francesa, italiana, inglesa, portuguesa, espanhola, etc; estatística e
natureza do comércio de importação e exportação entre as nações contratantes, e de cada uma
destas com as demais nações; interpretação deste Regulamento e da Convenção, que o motiva.
§ 3º. As provas de concurso consistirão:
Em uma exposição oral de um quarto de hora para cada uma das proposições e uma
prova escrita sobre qualquer das matérias do concurso.
As proposições serão as indicadas pela sorte dentre dez, sobre cada matéria, que tiverem
sido formuladas pelo júri imediatamente antes de começar o concurso.
As provas orais, que se efetuarem no mesmo dia, versarão sobre idênticas proposições.
Quando, por motivo de grande número de candidatos, não for possível terminar o
concurso em um dia, designará igualmente a sorte novas proposições em cada um dos dias
seguintes.
Durante a prova oral de um candidato não estarão presentes os demais.
A prova escrita consistirá no desenvolvimento de uma proposição indicada pelo júri sobre
qualquer das matérias do concurso; e para a mesma prova conceder-se-á o prazo de três horas.
§ 4º. O júri será composto por quatro doutores em medicina escolhidos à sorte, por uma
comissão de três pessoas designadas pelo chefe do serviço sanitário, e dentre os de uma lista
de dez, que será organizada e numerada pelo mesmo chefe, o qual a entregará em invólucro
lacrado à dita comissão e não será aberta seo depois de efetuado o sorteio por números.
O chefe do serviço sanitário, ou quem suas vezes fizer, presidirá o júri, que será eleito oito
dias antes do designado para começo do concurso.
O laudo do mesmo júri se limitará a consignar os nomes dos candidatos que houverem
exibido melhores provas e será assinado por todos os membros; devendo as votões ser por
matérias e números e a classificação regulada pelo quociente obtido.
§ 5º. Os inspetores sanitários de navio terão uma retribuição mensal, abonada pelos
respectivos Governos, durante o tempo de serviço; e em caso de falecimento por moléstia
pestilencial exótica contraída no desempenho de suas funções, conceder-se-á, sem outra
286
Os plenipotenciários dos três países suprimiram, no momento da análise desse Regulamento na quinta
Conferência em 25/11/1887, o primeiro e o quinto pagrafos do artigo 7º.
270
formalidade além da informação do chefe do serviço, à sua viúva e filhos menores ou filhas
solteiras, se os tiver, uma pensão igual à referida retribuição.
Esta pensão será suspensa desde que desapareçam as condições de viuvez, menoridade ou
celibato dos pensionistas.
Os inspetores sanitários de navio terão preferência para o provimento nos cargos de
serviço sanitário marítimo.
Capítulo III
Deveres e atribuições os inspetores sanitários de navio
Art. 8º. São deveres dos Inspetores sanitários de navio:
1º. Achar-se sempre em disponibilidade e às ordens do chefe de serviço sanitário para as
comissões de embarque;
2º. Embarcar no navio, que o Ministro, o Cônsul, ou o Inspetor sanitário mais graduado do
seu país, (este último se tiver autorização especial para isso) designar a fim de cumprir e fazer
cumprir a bordo os preceitos deste Regulamento e exigências da Convenção, assim como as
instruções que tiver recebido do seu chefe;
3º. Anotar, três vezes por dia, com designação de data e hora, em um registro ou diário de
viagem que lhe será entregue por seu chefe, o qual rubricará as respectivas folhas numeradas,
todas as circunstâncias que observar relativas à saúde dos passageiros e tripulantes, bem como
todas as causas supostas capazes de alterar a mesma saúde, quer procedam elas do navio, quer
sejam de origem diversa.
Também anotará no mesmo registro ou diário todas as providências e medidas que
houver, no exercício de suas funções, aconselhado;
4º. Examinar, por ocasião da saída do navio, tanto no porto de procedência como nos de
escala, o depósito de desinfetantes e utensílios de desinfecção, e também a farmácia,
comparando as existências com as notas dos livros respectivos e fazendo constar ao
comandante do navio, em tempo oportuno, qualquer falta que haja, a fim de ser corrigida;
5º. Examinar, no momento de embarque, os passageiros de proa, e recusar viagem aos que
estiverem ou parecerem estar afetados de qualquer mostia contagiosa, e ainda aos
convalescentes dos destas moléstias; salvo o caso de provar-se que a convalescença, data de
mais de vinte dias antes do embarque;
6º. Obstar o embarque de roupas sujas de qualquer origem, bem como de objetos em mau
estado de conservação, advertindo disso o comandante;
7º. Verificar nos portos de procedência o estado de asseio e higiene do navio, em todos os
seus compartimentos, antes de começar o carregamento e embarque dos passageiros; devendo
fazer ao comandante as reflexões que lhe parecerem convenientes para estabelecer no navio as
melhores condições possíveis de higiene. Estas reflexões, bem como as medidas adotadas e a
cooperação que o comandante prestar-lhe, serão consignadas no registro ou livro de viagem
do Inspetor do navio;
8º. Prestar serviços profissionais, sempre que forem solicitados, aos passageiros e
tripulantes; cumprindo-lhe, em todo o caso, informar-se e exigir a comunicação de qualquer
caso de moléstia que a bordo ocorrer, por mais benigna e insignificante que pareça, a fim de
observá-la; tendo o cuidado de anotar em seu livro as datas precisas de invasão e terminação,
favorável ou fatal, assim como todos os detalhes conducentes ao conhecimento exato da
natureza da moléstia;
9º. Consignar em seu livro a data exata da chegada e saída do navio a qualquer porto e
escala ou de arribada, e também todas as informações que puder obter sobre a saúde pública
desse porto;
10º. Visitar várias vezes por dia a enfermaria a fim de certificar-se do estado dos doentes;
271
11º. Visitar os passageiros que se conservarem em seus beliches, camarotes ou macas,
devendo empenha-se em aconselhar aos de proa os cuidados pessoais e outros que forem
necessários à conservação da saúde de bordo;
12º. Exigir imediatamente o isolamento de qualquer doente que apareça de moléstia
pestilencial exótica ou contagiosa, confirmada ou suspeita, prevenindo disso o comandante, a
quem indicará as precauções necesárias.
a) Fará isolar o enfermo em lugar suficientemente arejado do navio, lugar já de
antemão destinado a esse fim;
b) Vigiará que todas as dejeções sejam desinfetadas e lançadas no mar;
c) Submeterá a rigorosa desinfecção, ou destruipelo fogo, se a desinfecção não for
possível ou parecer insuficiente, as roupas do corpo e cama, colchões, travesseiros,
etc. que tiverem sido usados pelo doente, durante a moléstia ou no fim desta.
d) Fará desinfetar igualmente os lugares suspeitos do navio e mui especialmente as
enfermarias e beliches ou alojamentos em que hajam estado os doentes;
13º. Inscrever em seu registro ou diário todas as medidas precedentes, e bem assim
precisar as doses e modo de emprego das substâncias desinfetantes, com especificação da
data e hora de cada operação.
Art. 9º. O Inspetor sanitário do navio é obrigado a apresentar seu registro ou diário à
autoridade sanitária de qualquer dos três Estados contratantes, que o exigir, e ainda deverá
responder, sob a fé de seu juramento profissional, a todas as perguntas que, para averiguação
do estado sanitário passado e presente de bordo, dirigir-lhe a mesma autoridade.
O interrogatório da autoridade pode ser verbal ou escrito.
CASOS PARTICULARES
Art. 10º. O Inspetor sanitário do navio permanecesempre a bordo nos casos dos §§ 8º,
e 10º do art. da Convenção, a fim de dirigir a execução das operações e saneamento e
desinfecção que forem ordenadas pela autoridade sanitária, assim como para observar o
estado de saúde dos passageiros e tripulantes enquanto durar a quarentena complementar.
§ 1º. Verificada a exceção do § 10º do mesmo artigo, farpa saber o comandante que a
descarga de mercadorias e desembarque de passageiros poderá efetuar-se durante o dia e
em presença do mesmo Inspetor sanitário do navio, devendo empregar, para esses serviços,
gente exclusivamente de bordo a fim de impedir todo e qualquer contato com pessoas e
objetos pertencentes ao porto.
a) Os passageiros serão desembarcados em um pontão, que a autoridade sanitária disporá
para esse efeito, situado em lugar afastado. Nesse mesmo pontão far-se-á a descarga
das mercadorias.
b) Todas estas operações serão efetuadas por um dos costados do navio, e o Inspetor
sanitário colocar-se-á em lugar de onde possa fiscalizá-las em seus menores detalhes.
Tudo quanto ocorrer deverá ser pelo mesmo Inspetor referido minuciosamente nos
portos dos outros países, em que o navio tocar.
c) Cumpre ao Inspetor sanitário ter em vista que é este o único caso em que se permite, e
somente em favor dos portos do Rio de Janeiro, Montevidéu e Buenos Aires durante
um estado epidêmico, o desembarque de pessoas e mercadorias sem prévia visita
sanitária, a qual será suprimida pela sua declaração escrita, que entregará à autoridade
sanitária a fim de impedir que esta tenha contato com os passageiros e objetos do
navio, antes do desembarque destes no pontão.
d) Na declaração a que se refere o caso da letra c, o Inspetor do navio consignará:
1º. Que o navio procede de porto limpo;
272
2º. Que não tocou em porto algum suspeito ou infeccionado;
3º. Que não comunicou, durante a viagem, com embarcação alguma suspeita ou
infeccionada;
4º. Que nenhum caso de moléstia pestilencial teve lugar à bordo;
5º. Que observou o navio todas as prescrições da Convenção deste Regulamento;
6º. Que foram atendidas todos os conselhos de higiene e de profilaxia ministrados pelo
Inspetor.
e) A declaração que precede, cuja fórmula será dada em impresso pela autoridade
sanitária e cuja repartição o Inspetor do navio pertencer, será também assinada pelo
comandante e pelo médico de bordo, se houver, para o devido efeito das
responsabilidades legais.
f) Sob pretexto algum se consentirá que pessoa ou objeto desembarcado, torne a voltar a
bordo.
g) O navio nestas condições poderá receber de terra a correspondência e documentos
exigidos no citado § 10º do art. 8º da Conveão.
h) No livro de viagem, o Inspetor sanitário anotará todas as particulares relativas à
execução das operações de descarga, de desembarque de passageiros, bem como as
provincias adotadas para evitar o contato com coisas e pessoas do porto em que se
fizerem tais operações; devendo declarar, sob a do juramento, se lhe consta ter-se
satisfeito completamente ao fim e propósito desta disposão regulamentar.
Das comissões de embarque dos inspetores sanitários de navio
Art. 11º. O Inspetor sanitário não poderá fazer duas viagens consecutivas de ida e volta no
mesmo navio.
Art. 12º. Para designação dos Inspetores que hajam de desempenhar comissões de
embarque, ter-se-á em vista os dois casos seguintes:
a) O navio destina-se a porto de um dos países contratantes;
b) Deve tocar o navio em portos dos três países.
§ 1º. No primeiro caso a designação compete ao chefe do serviço sanitário do país de
destino ou ao Cônsul do mesmo país no porto de procedência.
§ . No segundo caso se estabelecerá a alternância dos Inspetores por acordo dos chefes
de serviço sanitário dos três países.
Fica excetuado o caso em que algum dos portos dos três países contratantes for declarado
suspeito ou infeccionado; hipótese em que a comissão de embarque será ordenada pelo chefe
de serviço do porto do país contratante, a que o navio terá de chagar por último.
Art. 13º. Sempre que em algum dos três países contratantes reinar epidemicamente
qualquer moléstia pestilencial exótica, os chefes de serviço sanitário dos outros dois países
poderão destacar para junto do chefe de serviço no referido país um Inspetor sanitário de
navio ou outro médico, para que estude e acompanhe a marcha e desenvolvimento da
epidemia, e informe ao seu respectivo chefe com precisão e autoridade. Este mesmo agente
poderá ser incumbido de outras funções que tenham relação com a melhor execução do
serviço sanitário.
CAPÍTULO IV
DAS VISITAS SANITÁRIAS
273
Art. 14º. A visita sanitária tem por fim verificar o estado de saúde de bordo, ordenar as
medidas convenientes para conservar ou restabelecer as boas condições higiênicas dos navios,
impor as quarentenas precisas e fiscalizar o cumprimento das providências adotadas.
Art. 15º. Haverá em cada porto duas visitas:
a) externa para os navios que entrarem;
b) interna para os navios já fundeados.
Ambas as visitas serão feitas sempre durante o dia, excetuado o caso de reinar nos
ancoradouros uma moléstia pestilencial, hipótese esta em que a autoridade sanitária poderá
ordenar visitas, durante a noite.
Art. 16º. Essas visitas serão efetuadas pelo chefe de serviço, quando o entender
necessário, pelos seus ajudantes ou pelos médicos dos lazaretos, se se tratar de navio que
chegar, ou estivar fundeado em uma estação quarentenária.
Art. 17º. As visitas sanitárias serão obrigatórias para todos os navios; salvo o caso de
navios que fam viagens entre portos da mesma província ou de disposições em contrário em
qualquer dos países contratantes.
Art. 18º. As repartições aduaneiras e policial não poderão exercer sua autoridade sobre
navio algum que o tenha sido visitado;
Art. 19º. A bandeira amarela içada no mastro da proa de qualquer navio significa que ele
está interdito pela repartição de saúde, a qual será a única competente para levantar a
interdição; e tanto a Capitania do Porto, como as repartições de alfândega e de polícia ficam
obrigadas a respeitar e fazer respeitar a mesma interdição.
DA VISITA SANITÁRIA EXTERNA
Art. 20º. Logo que um navio qualquer fundear no ancoradouro de visita, para ele se
dirigirá a autoridade sanitária e, chegando à fala, far-lhe-á o interrogatório.
Este consiste em exigir a mesma autoridade do comandante, médico de bordo ou Inspetor
sanitário, se o houver, respostas claras às seguintes perguntas:
1º. Qual o nome do navio?
2º. De onde vem e quantos dias traz de viagem?
3º. Qual o nome e qualidade do informante?
4º. Quais os portos em que tocou?
5º. Comunicou em viagem cm algum navio?
Qual e de que procedência?
Qual o estado sanitário de bordo desse navio?
6º. Tem carta de saúde? Limpa ou suja?
7º. Teve, ou tem doentes a bordo?
Quantos, de que moléstias?
Quantos curaram-se?
Quantos faleceram?
Quantos se acham em tratamento?
8º. Em que dia, depois da partida, apareceu o primeiro caso de moléstia e qual ela?
9º. Foi submetido a algum tratamento sanitário em algum porto de escala? Qual o porto e
qual o tratamento?
10º. Que documento traz que comprove a realidade desse tratamento?
11º. Quando teve lugar a bordo o último óbito?
12º. Tem estufa de desinfecção e foram praticadas desinfecções?
13º. Possui todos os livros e papéis indicados na Convenção?
14º. O que vem fazer neste porto?
274
§1º. As respostas dadas às questões acima serão consignadas no livro de visitas, que a
autoridade sanitária develevar consigo; e se todas as respostas forem satisfatórias e nenhum
motivo houver para duvidar da veracidade delas, a autoridade entrará no navio, procederá em
ato contínuo à leitura das mesmas respostas, assinará e fará assinar também pelo comandante
do navio e pelo informante a folha respectiva do livro e procederá então ao exame ordinário.
§2º. Para efetuar e exame ordinário, a autoridade pedirá em primeiro lugar a carta de
saúde e a guardará consigo; passará depois a analisar a escrituração de bordo, principalmente
o livro da enfermaria e o do receituário médico e porá o seu visto na página em que a
escrituração terminar.
Em seguida, examinará os diversos compartimentos do navio, sobretudo a enfermaria e os
alojamentos da marinhagem dos passageiros; e se verificar que as informações foram exatas e
nada faz supor que o navio se ache contaminado, visará a carta de saúde, que entregará ao
comandante e concederá livre prática ao navio.
§2º. Se o estado sanitário de bordo for bom, mas o navio estiver em más condições de
asseio e higiene geral, a autoridade sanitária ordenará as beneficiações que se tornarem
precisas, marcando prazo; expirado este, a embarcação poderá efetuar seu expediente caso
tenha cumprido as ordens recebidas. Se a demora do navio no porto de chegada tiver de ser
curto, e for impossível praticarem-se as beneficiações no tempo marcado, a autoridade
sanitária indicará as mais urgentes; ficando entendido que sem terem sido elas realizada
nenhuma operação de descarga e de carga das mercadorias será permitida.
Estas medidas de asseio e higiene não impedem o desembarque dos passageiros, nem
obstam a comunicação do pessoal de bordo com a terra.
Da ordem da autoridade sanitária deverá ser avisada por escrito a Repartição Aduaneira.
§4º. serão dispensados a visita sanitária os navios que viajarem entre portos da mesma
província, os cruzeiros e lanchas de pesca, bem como os que se acharem nas condições do
§10º do art. 8º da Convenção.
§5º. Se as informações não forem satisfatórias, ou se o navio proceder de porto
infeccionado ou suspeito, a autoridade sanitária não entrará a bordo; mas o intimará para
seguir sem demora para a estação quarentenária próxima, onde será visitado pelo médico do
lazareto flutuante.
§6º. O médico do lazareto flutuante procederá então ao exame rigoroso, e observará o que
a respeito dispõem o artigo 34 e seguintes.
§7º. Se as informações forem satisfatórias, mas verificar-se por ocasião do exame
ordinário, que não foram elas exatas ou que houve má fé por parte do informante, em matéria
atinente à saúde de bordo, a autoridade sanitária retirar-se-á, sem mais prosseguir no mesmo
exame, trazendo a carta de saúde do navio que será intimado a dirigir-se à estação
quarentenária onde se lhe fará o exame rigoroso de que trata o parágrafo antecedente.
Neste caso a autoridade sanitária que tiver procedido ao exame ordinário, bem como as
pessoas que houverem comunicado com o navio, ficarão detidas a bordo da embarcação que
as conduziu, ou em outra destinada a esse fim, até que do resultado do exame rigoroso de
depreenda qual o tratamento que lhes deve ser aplicado. A embarcação que conduzir a mesma
autoridade, de volta do navio, içará a bandeira amarela no mastro da proa e declarar-se-á em
quarentena, até que o chefe do serviço determine o que for mister.
§8º. Se a inexatidão das informações consistir apenas em pontos secundários e que não se
refiram à saúde de bordo, a autoridade prosseguirá no exame ordinário e visará a carta de
saúde, entregando-a ao comandante e impondo-lhe as penas que forem estabelecidas em
Regulamento especial de cada país.
§9º. Na hitese do §7º a carta de saúde seqüestrada pela autoridade sanitária será
remetida ao médico do lazareto flutuante, o qual a entregará ao comandante depois de
terminado o exame rigoroso, ou de finda a quarentena, se for o caso disso. O mesmo médico
275
visará a dita carta e inscreverá no bilhete internacional de livre prática a nota do tratamento
que o navio houver sofrido. Este bilhete ficará pertencendo ao comandante.
§10º. Se o porto em que tais operações e exames forem praticados for o terminal da
viagem, a carta de saúde que o navio tiver trazido ficapertencendo à Repartão de Saúde
Marítima.
DA VISITA SANITÁRIA INTERNA
Art.21º. A visita sanitária interna tem por fim averiguar o estado sanitário dos navios já
fundeados e providenciar para que o mesmo estado não sofra alteração.
Art.22º. A visita sanitária interna será feita uma vez por dia, à hora certa, em épocas
normais; quando, porém, a autoridade sanitária o julgar conveniente, poderá ordenar que essa
visita seja feita mais vezes.
Art.23º. A bandeira da nacionalidade do navio içada no mastro da proa significa que
doente a bordo; e a visita sanitária terá de dirigir-se de preferência às embarcações que
tiverem semelhante sinal, a fim de examinar o doente e proceder de conformidade com este
regulamento.
Art.24º. Se o doente estiver afetado de moléstia comum, a autoridade sanitária o
comunicará por escrito ao comandante, e esta comunicação autorizará o mesmo comandante a
tratar o doente a bordo, ou em terra, conforme lhe aprouver.
Art.25º. Se o doente estiver afetado de moléstia contagiosa, a autoridade sanitária regular-
se-á pelo que lhe indicarem as seguintes hipóteses:
a) a moléstia contagiosa não é pestilencial exótica;
b) a mostia contagiosoa é pestilencial exótica;
Em ambos os casos, ocorrem outras três hiteses:
1ª, a moléstia reina no porto e na cidade;
2º, reina só no porto ou só na cidade;
3ª, não reina no porto nem na cidade.
§ 1º. Se a moléstia contagiosa não for pestilencial exótica e reinar no porto e na cidade, a
autoridade procederá de acordo com as instruções que houver recebido do chefe do serviço,
fazendo remover o doente para a enfermaria que estiver designada para tal fim e aconselhará
as medidas de higiene e de desinfecção de bordo, que forem precisas.
§2º. Se o navio estiver próximo de outros que não se acharem contaminados, a autoridade
sanitária mandará removê-lo para o ancoradouro de vigia, onde será visitado quotidianamente.
§3º. Se a moléstia contagiosa não pestilencial exótica reinar no porto ou na cidade,
proceder-se-á conforme os parágrafos antecedentes, cuidando a autoridade sanitária de
impedir as comunicações entre o navio contaminado e outros sãos, ou entre ele e a cidade.
Essa interdição poderá ser rigorosa de modo a transferir-se o navio para o ancoradouro de
quarentena, onde ficará detido durante o tempo preciso para seu completo saneamento.
§4º. Se a moléstia não reinar nem no porto nem na cidade, o navio será imediatamente
transferido para o ancoradouro de quarentena, isolado e convertido em lazareto. depois de
saneado, se lhe permitirá voltar ao ancoradouro geral.
Art. 26º. Se a moléstia contagiosa, que aparecer a bordo de qualquer navio surto no porto,
for pestilencial exótica, e se se realizarem as hipóteses nºs. 1 e 2, a autoridade sanitária
procederá segundo as ordens que houver recebido; e no caso da hipótese n. 3, mandará o
navio imediatamente para a estação quarentenária próxima, onde serão observadas, em
relação a tal navio, as disposições referentes às quarentenas de rigor.
Art.27º. Nenhum comandante poderá enviar para terra, nem conservar a bordo, doente
algum que apareça em seu navio, sem prévia licença da autoridade sanitária, mediante exame
do mesmo doente.
276
Parágrafo único. O comandante que infringir esta disposição incorrerá nas penas do
regulamento especial.
Art.28º. Nenhum médico poderá ir a bordo de qualquer navio fundeado para examinar e
tratar qualquer doente, sem aviso prévio à autoridade sanitária; a qual deverá ir, em
companhia do mesmo médico, certificar-se da natureza da moléstia.
Parágrafo único. O médico que não cumprir o que esse artigo determina incorrerá nas
mesmas penas que o parágrafo único do artigo antecedente comina ao comandante.
Art.29º. Ficam excetuados das disposições dos dois artigos anteriores os casos de acidente
traumático.
CAPÍTULO V
DOS ANCORADOUROS
Art.30º. Haverá em cada porto, quando possível, três ancoradouros sanitários:
O ancoradouro de visita;
O ancoradouro de vigia; e
O ancoradouro de quarentena.
Art.31º. Estes ancoradouros serão marcados pela autoridade sanitária de acordo com a
marítima militar.
CAPÍTULO VI
DAS QUARENTENAS
Art.32º. Haverá duas espécies de quarentena:
a) a quarentena de observação;
b) a quarentena de rigor.
§1º. A quarentena de observação consistirá na detenção do navio, durante o tempo preciso
para a rigorosa visita sanitária de bordo.
§2º. A quarentena de rigor terá dois fins:
1º, averiguar se entre os passageiros procedentes de porto infeccionado ou suspeito algum
traz a moléstia pestilencial em período de incubação;
2º, proceder à desinfecção dos objetos suspeitos de reter e transmitir contágios.
§3º. A quarentena de rigor será aplicada:
1º, aos navios infeccionados;
2º, aos navios a cujo bordo tiverem ocorrido casos de moléstia não especificada e que não
puder ser averiguada por ocasião da visita sanitária.
Art.33º. A quarentena de observação, em sua forma prática, consistino exame rigoroso,
a que se refere o art.20º, e que será efetuada pelo médico do lazareto flutuante.
Neste exame se observará o seguinte processo: o referido médico examinará todos os
livros de bordo, balanceará as drogas existentes na farmácia com as anotações do respectivo
livro de fornecimento; fará a chamada dos tripulantes e passageiros e averiguará dos motivos
da ausência dos que faltarem; percorrerá os diversos compartimentos do navio e, se todas as
pesquisas resultar a certeza sobre o estado sanitário do mesmo, cumprirá o que dispõe o art. 8º
da Convenção.
Art. 34º. A duração da quarentena de rigor será a do prazo de incubação máxima da
moléstia pestilencial, que se queira evitar, isto é, de 10 dias para a febre amarela, 8 para o
cólera morbus e 20 para a peste oriental. Essa duração poderá ser contada de dois modos:
a) tendo começo na data do último caso ocorrido em viagem;
b) tendo começo na data do desembarque dos passageiros no lazareto.
277
§1º A duração da quarentena de rigor começará a ser contada da data do último caso
ocorrido em viagem, quando se realizarem as três condições seguintes:
a) satisfazer o navio as exigências dos §§1,2 e 3 do art. 5º da Convenção;
b) vir a bordo dele um Inspetor sanitário de navio, que certifique a data real da
terminação do último caso; a execução de todas as medidas de desinfecção indicadas
nas Instruções que ao mesmo Inspetor houverem sido dadas pelo chefe do serviço
sanitário, conforme este Regulamento Internacional; o perfeito estado atual de saúde a
bordo;
c) comprovar, a autoridade sanitária local, a veracidade das informações prestadas.
§2º. Se, nas condições indicadas no parágrafo antecedente, o prazo decorrido depois do
último caso, for por ocasião da chegada do navio, igual ou maior do que o da incubação
máxima da mostia pestilencial, os passageiros terão livre prática, e o navio também, caso
o traga objetos suspeitos.
Se o navio, porém, trouxer objetos suspeitos, em condições de não terem podido
contaminar os passageiros e tripulantes e que não tenham sido desinfetados, ou precisem
ainda de desinfecção, a livre prática da embarcação só terá lugar depois de terminada a
desinfecção dos mesmos objetos.
No caso contrário, navio e pessoa serão submetidos a quarentena de rigor.
§3º. Se o prazo decorrido depois do último caso de moléstia pestilencial for menor do que
o da incubação máxima; e se, além disso, achar-se o navio nas condições figuradas no §1, os
passageiros purgarão uma quarentena complementar de tantos dias quantos faltem para
inteirar o referido prazo de incubação máxima.
Semelhante quarentena complementar será praticada em Lazareto; salva a hipótese de não
haver nestes lugares disponíveis, o que permitirá efetuar-se a quarentena a bordo.
§4º. Se o navio, na ocasião da chegada, tiver doentes de moléstia pestilencial, serão estes
recolhidos ao hospital flutuante, e os passageiros submetidos a quarentena no lazareto
flutuante. A quarentena, neste caso, começará da data da entrada dos referidos passageiros no
mesmo lazareto.
O navio ficará sujeito ao que, para tais emergências, dispuserem os regulamentos dos
lazaretos.
§5º. Ao estabelecido no parágrafo antecedente ficará também sujeito o navio que, tendo
tido casos de moléstia pestilencial, embora não os apresente por ocasião da chegada, não
houver satisfeito as exigências do §1º deste artigo.
§6º. O navio suspeito, que tiver feito viagem do porto infeccionado, ou suspeito,ao porto
de chegada, em um período e tempo inferior ao da incubação máxima da moléstia pestilencial,
que se procura evitar, ficará igualmente sujeito à quarentena complementar, nos termos do
§3º.
Fica excetuado desta quarentena o navio da espécie, que procedente de porto
reconhecidamente limpo e em satisfatórias condições de saúde de bordo, atestadas pelo
Inspetor sanitário, tocar no Rio de Janeiro, Montevidéu ou Buenos Aires em época epidêmica
e se limitar à descarga de mercadorias e desembarque de passageiros e à entrega e
recebimento da correspondência postal; contanto que tais operações se efetuem em um pontão
destinado a esse fim pela autoridade sanitária, convenientemente situado, livre de toda a
infecção e em boas condições de isolamento, não recebendo por conseguinte, o navio, nem
tendo comunicação com pessoa ou objeto algum desses portos. Estes fatos serão comprovados
por documento autêntico firmado pela autoridade sanitária do porto em que o navio tocar,
visado pelo Cônsul do país do destino e certificado pelo Inspetor sanitário, também do país de
destino.
§7º. O navio suspeito, que efetuar a sua viagem em um período de tempo superior ao da
incubação máxima citada, será submetido à quarentena de observação, durante a qual se
278
procederá às investigações prescritas no presente Regulamento Internacional; e somente
depois de reconhecido que não ocorreu durante a viagem caso algum de moléstia pestilencial,
se lhe dará livre prática.
Fico entendido que se o mesmo navio trouxer objetos suspeitos, que não tivessem podido
contaminar os passageiros e tripulantes e ainda não desinfetados, será submetido à quarentena
de rigor para completa desinfecção dos mesmos, a qual começará depois de retirados de
bordo os passageiros, que tiverem, como deverão ter livre prática.
Em caso de possível contaminação, seguir-se-á o disposto na última parte do §2º deste
artigo.
§8º. Os efeitos das disposições precedentes em relação aos navios da espécie, indicada
no art. da convenção, subsistirão, ainda que não tragam eles a seu bordo Inspetor sanitário
de navio; contanto que observem rigorosamente as disposições do Regulamento Internacional
no que se aplica à responsabilidade que assume o médico de bordo perante a autoridade
sanitária do porto de destino relativamente às informações que, sob a do juramento
profissional, tiver de prestar-lhe, e cumpram exatamente durante a viagem o que, nas
Instruções se determinar como deveres do Inspetor sanitário de navio.
§9º. As disposições dos parágrafos antecedentes, no que têm de minorativo em relação às
quarentenas de rigor, serão aplicadas em proveito dos navios da 2ª espécie, que 1º,
receberem a seu bordo, e lhe derem passagem gratuita de classe, de ida eolta, ao Inspetor
sanitário de navio; 2º, observar relativamente à saúde de bordo, quer por ocasião da partida,
quer durante a viagem, as recomendações do mesmo Inspetor.
No caso contrário, não se admitirá para a quarentena de rigor a contagem determinada no
art.34º, letra a, tanto em relação aos passageiros, como em relação ao próprio navio.
Art.35º. Ao navio que, tendo-se submetido aos preceitos da Convenção, não puder
sujeitar-se à quarentena que lhe for imposta em qualquer dos portos dos três países
contratantes, se permitirá receber passageiros, com a condição que:
1º. Nenhuma embarcação dele procedente comunique com a terra;
2º. As embarcações que de terra forem levar passageiros para o navio, fiquem submetidas
às medidas quarentenárias impostas ao mesmo.
Art.36º. Quando um navio em condições de quarentena de rigor, trouxer passageiros e
cargas com destino a portos diferentes, desembarcará no lazareto do porto a que chegar os
passageiros e cargas destinadas a esse porto somente, podendo seguir viagem logo depois.
Art.37º. A declaração de infeccionado aplicada a um porto trará a interdição sanitária dos
navios nele procedentes e saídos durante o período de tempo imediatamente anterior à mesma
declaração, de 20 dias para a peste, 10 para a febre amarela e 8 para o cólera-morbus.
Os navios em tais condições serão submetidos às medidas sanitárias, que as ocorrências de
bordo indicarem.
Art.38º. As pessoas atacadas de moléstia pestilencial que aparecerem nos navios detidos
ou nos lazaretos serão transferidas para o hospital flutuante; as acometidas de moléstia
contagiosa serão tratadas em um local isolado e as de moléstias comuns em uma enfermaria
anexa ao lazareto onde ficarão, depois de curadas, sujeitas à quarentena em que se tiverem
complicado, dado o caso de o ter sido possível removê-las para um hospital de terra quando
terminou a quarentena do grupo a que pertenciam.
CAPÍTULO VII
DOS LAZARETOS
Art.39º. Cada país estabelecerá os lazaretos que forem indispensáveis às suas necessidades
e de acordo com o disposto no art.3º da Convenção.
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Art.40º. Nos lazaretos fixos se admitirão os passageiros que, devendo purgar
quarentena de rigor ou complementar, não apresentarem sintoma algum de moléstia
pestilencial ou contagiosa.
Art.41º. Nos lazaretos flutuantes serão recebidos os passageiros que tiverem estado em
contato com pessoas acometidas de moléstia pestilencial exótica e que forem, portanto,
consideradas suspeitas.
Art.42º. Nos hospitais flutuantes serão recebidos os atacados de moléstia pestilencial
exótica procedentes dos lazaretos fixos ou flutuantes, dos navios que estiverem fundeados ou
dos que se acharem surtos no porto.
Art.43º. Os lazaretos fixos e flutuantes terão hospitais anexos para tratamento de moléstias
comuns, e um outro especial de isolamento para os doentes de moléstias contagiosas não
pestilenciais.
Art.44º. Nos lazaretos fixos e flutuantes se observarigorosamente o princípio geral do
isolamento, o qual se aplicará aos diversos grupos de passageiros chegados ao
estabelecimento na mesma data.
O isolamento de cada grupo deve compreender também o pessoal de serviço respectivo.
Art.45º. Tanto os lazaretos fixos e flutuantes como os hospitais, serão dotados do número
de estufas de desinfecção pelo vapor de água que for indispensável.
Art.46º. As bagagens, roupas e demais objetos que os quarentenários das diferentes
classes trouxerem, serão previamente desinfetadas por ocasião da entrada deles nos
estabelecimentos em que deverem sofrer o expurgo; sendo repetidas essas operações cada vez
que ocorrer entre eles algum caso de moléstia pestilencial exótica. Estas novas desinfecções
se aplicarão às bagagens, roupas e objetos do grupo de passageiros a que pertencer o
doente; e nesse caso a quarentena primitiva para esse grupo se renovará a contar do último
caso e da desinfecção a que ele der lugar.
Art.47º. Os convalescentes de moléstias pestilenciais procedentes dos hospitais flutuantes
farão, antes de ser postos em livre prática, uma quarentena de duração igual à do período de
incubação máxima da mostia de que houverem sido acometidos; quarentena esta efetuada
no lazareto flutuante.
Art.48º. O desembarque de bagagens, roupas e demais objetos pertencentes aos
passageiros, que houverem purgado quarentena nos lazaretos flutuantes, não poderá ser
realizado em caso algum sem desinfecção no momento do desembarque.
Art.49º. Caso o haja lugar disponível nos lazaretos, o expurgo sanitário poderá ser feito
a bordo dos navios em que chegarem os passageiros.
Art.50º. Cada país formula independentemente, embora com vistas aos princípios
estabelecidos neste Regulamento, as disposições que deverão reger os seus estabelecimentos
sanitários; e essas disposições serão comunicadas aos chefes dos serviços sanitários dos
outros países.
CAPÍTULO VIII
DISPOSIÇÕES GERAIS
Dos privilégios de paquete
Art.51º. As disposições do §1 do art. da Convenção são obrigatórios para todos os
navios que em qualquer dos três países gozarem dos privilégios de paquete.
Art.52º. Os chefes dos respectivos serviços sanitários solicitarão do seu Governo a
cassação dos privilégios de paquete de que gozarem os navios, que quatro meses depois da
Convenção ratificada, não houverem dado estrito cumprimento às disposições do artigo
anterior.
280
Art.53º. Estabelecida a medida a que se refere o artigo anterior, será comunicada aos
chefes do serviço sanitário marítimo dos outros países, por aquele que houver motivado.
Art.54º. os navios que para o futuro solicitarem privilégio de paquete em qualquer dos três
países, devem declarar:
1º. Que se submetem à Convenção Sanitária do Rio de Janeiro;
2º. Que se comprometem a observar as prescrições deste Regulamento no que se lhes
aplica;
3º. Que porão à disposição da autoridade sanitária uma passagem de ida e volta gratuita,
para o Inspetor sanitário que for encarregado da comissão de embarque;
4º. Que cumprirão e porão em prática todas as prescrições que o Inspetor sanitário formule
a fim de conservar a saúde a bordo com refencia às suas instruções.
Das instruções
Art.55º. Os chefes dos serviços sanitários dos três países acordarão nas instruções a que se
refere este Regulamento, as quais serão publicadas e distribuídas com profusão entre os
distintos agentes das autoridades sanitárias, comandantes de navios, agentes de vapores etc.,
etc. sem prejuízo das que para cada viagem devem dar aos Inspetores sanitários em previsão
de casos determinados.
Art.56º. Sempre que pelos progressos da ciência, os Chefes dos serviços sanitários
julgarem conveniente incorporar às instruções gerais, a que se refere o artigo anterior, novos
processos ou novos agentes desinfetantes, tanto para modificar como para substituir por
completo aqueles que no estado atual da ciência se reputam como os mais eficazes na
profilaxia das moléstias pestilenciais exóticas e outras contagiosas procurarão entrar em
acordo, podendo qualquer deles tomar a iniciativa; ficando entendido que a inovação será
incorporada ao Regulamento ou às instruções que farão parte deste, no caso de aprovação
unânime dos três chefes de serviço sanitário.
Modelo n.1
Carta de saúde
Nação................................... Regulamento Sanitário
Internacional
Porto .......................................
A autoridade sanitária deste porto certifica que o
navio abaixo designado parte nas condições
seguintes:
Nome do navio............................................................ Art..........................................
Classe ......................................................................... ...............................................
Bandeira ..................................................................... ...............................................
Toneladas ................................................................... ...............................................
Da matcula de .......................................................... ...............................................
Com destino a .............................................................
...............................................
Nome do capitão......................................................... ...............................................
Nome dodico ........................................................ ...............................................
Nome do inspetor sanitário do navio.......................... Art.......................................
Passageiros ................................................................ ...............................................
Tripulação .................................................................. ..............................................
Carga......................................................................... ...............................................
Equipagem................................................................. ...............................................
Condições sanitárias do navio .................................... ...............................................
281
Estado sanitário da tripulação e passageiros.............. ...............................................
Estado sanitário do porto ............................................
..............................................
Estado sanitário da cidade........................................... ..............................................
Moléstias pestilenciais reinantes................................. ...............................................
Número de doentes e falecidos................................... ...............................................
(Porto e data)
(Firma da autoridade sanitária)
(Selo sanitário)
Modelo n.2
Bilhete sanitário internacional
Nação.................. Porto...................
A autoridade sanitária deste porto certifica que o navio ....................... procedente de ..............
e com escalas por ................... chegou neste porto no dia ........ trazendo na Carta de saúde a
seguinte retificação...................................formulada pelo nsul
....................................................................................em....................................................
À vista dessa retificação, procedeu-se da forma que se segue:
Passageiros e tripulação
.............................................................................................................................................Equip
agem
............................................................................................................................................Navio
e carga
.............................................................................................................................................
E, por conseguinte, se lhe expede o presente bilhete, como prova do tratamento a que se
submeteu, e como documento que o ..........................................................................................
a ser admitido em livre prática.
(Porto e data) (Firma) (Selo)
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