106
pela própria pessoa que a revelou: Diotima, mulher
400
e sacerdotisa,
401
que, como conta
Sócrates, “era entendida nesse assunto e em muitos outros...era ela que me instruía nas
questões de amor”.
402
Diante deste aspecto particular, a importância do discurso de Diotima na
economia do Banquete, vemos como Platão, ao mesmo tempo em que reflete em sua
obra, através da expulsão da flautista no início do diálogo,
403
a condição da mulher
(dependente e inferior ao homem) na sociedade grega de sua época,
404
não concorda
irrestritamente com esta qualificação.
405
Ele mostra isso ao apresentar a verdade sobre
Eros, verdade que incide diretamente sobre a formação dos cidadãos e a vida da polis,
pela boca da mulher Diotima, a sacerdotisa de Mantinéia.
406
400
Cf. D. Macedo, op. cit., p. 131 – 140: neste interessante excurso sobre a condição da mulher na cultura
grega, Macedo apresenta, em contraste com o papel marginal atribuído à grande maioria das mulheres no
plano direto da política na cidade, a notável importância da cidadania cultual das mulheres na Grécia, já
que, na função sacerdotal, eram as mulheres que tinham a primazia (devido ao fato de elas serem
consideradas hipóstases da Grande Mãe, Gaia) e a participação dos homens no sacerdócio ocorreu
tardiamente e, ainda assim, como uma consequência da união da Grande Mãe com um deus.
401
Sobre a referência a sacerdotisas ligadas a iniciações mistéricas, cf. W. Burkert, Antigos Cultos de
Mistério, p. 106; Demóstenes, Sobre a Coroa, 258-259.
402
Platão, Banquete, 201 d.
403
Cf. Platão, Banquete, 176 e.
404
Cf. n. 400; ver também D.Malhadas e S. Carvalho, op. cit., p. 30, n. 197.
405
A posição de Platão sobre este assunto é complexa e oscila de um diálogo para outro. Na República,
(453a – 456b) ele afirmou claramente a possibilidade de as mulheres poderem ser guardiãs da polis, tal
como os homens. Já no Timeu (41 d – 42 d), a posição da mulher piora muito, sendo a condição feminina
considerada uma encarnação de castigo para o homem que não viveu virtuosamente em outras
encarnações. Nas Leis (Livro VII, 806a – 807e), Platão adota uma posição intermediária entre as duas
anteriores, afirmando a possibilidade de a mulher ser guardiã, mas em condições um pouco diversas das
do homem, devido à tarefa de “esposa monogâmica” que ela teria também de desempenhar. Cf. G. de
Barros, Rainha filósofo na República de Platão? Ver também J. Santos, Alma no Timeu, p. 7 – 8.
406
Esta observação que fazemos acerca da importância da palavra de uma mulher no contexto do
Banquete, não é apenas um modismo de ocasição (segundo o qual, em nossos dias, é politicamente
correto enaltecer as habilidades das mulheres nos mais diversos setores da vida e do trabalho). É uma
observação de grande importância se considerarmos que citar a palavra e os ensinamentos de uma mulher
num contexto como o de um simposium, ou seja, um contexto de discussões e debates reservados aos
homens, traz uma significação diferente e uma sinalização especial dentro da economia do diálogo. Como
vimos acima, as mulheres tinham uma cidadania cultual (cf. n. 400), mas sua voz não era levada em conta
nos assuntos especificamente políticos. Então, a este respeito, o dado importante a ser notado no
Banquete é que se trata da palavra de uma mulher num lugar e numa situação (o simposium) apenas de
homens.
Muito se especulou, ao longo da história da filosofia, sobre a historicidade de Diotima, seu gênero e
sobre o significado deste gênero dentro do conjunto do Banquete sem, entretanto, se fechar um consenso
a este respeito. D. M. Halperin faz, em seu artigo Why is Diotima a woman (no livro One hundred years
of homosexuality), uma boa síntese sobre estas diversas hipóteses de explicação para o gênero de Diotima,
dividindo-as em três grupos (razões pessoais, históricas e doutrinárias) e, ao final do artigo, apresenta e
desenvolve sua própria hipótese, que é muito interessante: a de que Diotima precisaria ser uma mulher
dentro da economia Banquete porque, somente deste modo, Platão conseguiria pintar o amor masculino
com duas características básica do amor feminino, as quais teriam importância central para a construção
da sua teoria do eros como mediador entre sensível e inteligível. Estas características seriam a
reciprocidade
(antéros) entre erastes e eromenos e a
procriatividade
ou fecundidade geradora (no
sentido espiritual de geração que abordamos ao longo da nossa seção 2.3.6). Porém, o próprio Halperin
faz um alerta importante, a partir do qual conclui seu artigo, e que serve também para nós que nos