Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
CENTRO DE HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
NÍVEL MESTRADO
LIA RAQUEL VIEIRA DE ANDRADE
O CLÃ DE MOREIRA CAMPOS:
ASPECTOS SOCIAIS DOS CONTOS PUBLICADOS
EM REVISTA
FORTALEZA
2009
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
LIA RAQUEL VIEIRA DE ANDRADE
O CLÃ DE MOREIRA CAMPOS:
ASPECTOS SOCIAIS DOS CONTOS PUBLICADOS EM
REVISTA
Dissertação submetida à Coordenação do
Curso de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Federal do Ceará, como
requisito parcial para obtenção do grau de
Mestre em Letras.
Área de Concentração: Literatura
Brasileira
Orientadora: Prof.
a
Dr.
a
Vera Lúcia
Albuquerque de Moraes
FORTALEZA
2009
ads:
LIA RAQUEL VIEIRA DE ANDRADE
O CLÃ DE MOREIRA CAMPOS: ASPECTOS SOCIAIS DOS CONTOS
PUBLICADOS EM REVISTA
Dissertação submetida à Coordenação do Curso de Pós-Graduação em Letras,
da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para a obtenção do
grau de Mestre em Letras. Área de concentração Literatura Brasileira.
Aprovada em ___/___/______.
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________
Prof.
a
Dr
a
. Vera Lúcia Albuquerque de Moraes (Orientadora)
Universidade Federal do Ceará UFC
_______________________________________________
Prof. Dr. Rafael Sânzio de Azevedo
Universidade Federal do Ceará UFC
_______________________________________________
Prof. Dr. Humberto Hermenegildo de Araújo
Universidade Federal do Rio Grande do Norte UFRN
Para meu marido José Ailton, por sempre estar ao meu lado na incessante busca dos sonhos
que aprendemos a compartilhar;
minha avó, Maria José, companheira em todas as horas;
e à memória ainda viva de meu avô, Antônio.
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora, Prof.
a
Dr.
a
Vera Lúcia Albuquerque de Moraes, pelo constante apoio e
confiança.
Ao Prof. Dr. Rafael Sânzio de Azevedo, pelas grandes contribuições na pesquisa em
Literatura Cearense, pelo proveniente auxílio na qualificação do meu trabalho e pela
participação na banca de defesa de minha dissertação.
Ao Prof. Dr. Humberto Hermenegildo de Araújo, pela disposição em integrar a banca de
defesa de minha dissertação.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do
Ceará, por me transmitirem sempre mais conhecimentos sobre a arte literária.
À coordenadora do Programa de Pós-Graduação, Prof.
a
Dr.
a
Irenísia Torres de Oliveira, pelo
auxílio nos últimos momentos.
À CAPES, pelo apoio financeiro com a manutenção da bolsa de auxílio.
“A criação literária corresponde a certas necessidades de representação do mundo, às vezes
como preâmbulo a uma práxis socialmente condicionada. Mas isto só se torna possível
graças a uma redução ao gratuito, ao teoricamente incondicionado, que dá ingresso ao
mundo da ilusão e se transforma dialeticamente em algo empenhado, na medida em que
suscita uma visão do mundo.”
(Antonio Candido)
RESUMO
A literatura do Ceará há muito tempo, vem mostrando excelente potencial produtivo, seja na
prosa ou na poesia. Os autores cearenses apresentam ao público retratos de sua terra, sua
gente, seus costumes, patrocinando, na divulgação de seus escritos, a universalização da cor
local. A historiografia literária relata que o Ceará foi um dos estados que mais manteve
agremiações literárias, como a Academia Francesa, a Padaria Espiritual e o Grupo Clã, este
último considerado como um dos grupos de maior relevo nas letras cearenses, uma vez que
dele surgiram ficcionistas, poetas, ensaístas, cronistas e críticos literários que, sem dúvida
alguma, elevaram a literatura e as artes, tanto no Ceará quanto no Brasil. O Grupo Clã, como
a maioria das agremiações literárias, possuía, para fins de divulgação própria, uma revista
homônima, que circulou durante quarenta anos e, por conta disso, deu oportunidade aos seus
membros de divulgarem seus trabalhos. Dentre os nomes que mais colaboraram com a revista
está o do contista Moreira Campos, que publicou contos e textos de colaboração em quinze
números do periódico. Usando técnicas muito características, como a concisão, a ironia e a
representação da sociedade em seus aspectos particulares, é posto na mesma linha de
Machado de Assis e Graciliano Ramos. Buscando enfatizar o caráter social nos contos que
Moreira Campos publicou na revista Clã, este estudo tem por objetivo apresentar, através de
análise textual, elementos do discurso que destaquem uma singular visão crítica da sociedade
através da caracterização das personagens e do meio em que estão inseridas.
Palavras chave: Grupo Clã, Revista Clã, crítica social, Moreira Campos
ABSTRACT
It is well known that the central focus of writers from Ceará, mainly in prose or poetry, has
been the cultural and social aspects of the region, they portrait costumes of the people, social
problems and quite often the nature. This framework has been of great contribution to spread
throughout Brazil the local literature, whose potential has been notably recognised by the
literary critics. In particular, in the literature historiography, Ceará is one the most fertile
grounds for literary groups such as the “Academia Francesa” (French Academy), the Padaria
Espiritual” (Spiritual bakery) and the Grupo Clã” (Clan group). The Latest is perhaps one of
the most relevant groups, due to the great variety of profiles arisen from it, indeed the Clan
group gave birth to very distinctive artists such as fictionists, poets, essayist and literary
critics, whom gave great contribution to the arts in Ceará and in Brazil. The group had an
issue which was called “Revista Clã” (Clan Journal), which has been issued during forty
years, therefore the there is a long source of literary, which deserves attention. One of the
most appreciated members in the short-tale style is Moreira Campos, who published also
essays and literary criticism in fifteen issues of the Journal. Some critics say Moreira Campos
follows the thread of the great Machado de Assis and Graciliano Ramos, due to some
common techniques, such as the concision, the irony and the critical representation of the
society. In this work the short-tales which Moreira Campos published in the Clan Journal are
studied by a textual analysis, in which we focus on the aspects used for social criticism,
namely the construction of the characters and their lives.
Keywords: Clan Group, Revista Clã, Social Criticism, Moreira Campos.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ...........................................................................................................1
2. GRUPO CLÃ: REFLEXOS DO MODERNISMO NA LITERATURA
CEARENSE ........................................................................................................................... 7
2.1.OS GRUPOS LITERÁRIOS NO CEARÁ: UM POUCO DE HISTÓRIA ..................... 7
2.2.O CLÃ DOS CEARENSES ........................................................................................ 14
2.3.O CLÃ DA REVISTA CLÃ ........................................................................................ 23
2.4.MOREIRA CAMPOS, O CONTISTA DO CLÃ ........................................................ 27
2.5.AS PUBLICAÇÕES NA REVISTA CLÃ ................................................................... 28
2.6.DO CLÃ AO PÚBLICO: ITINERÁRIO DOS CONTOS ........................................... 31
3. CONTOS DE MOREIRA CAMPOS: UM OLHAR FLAGRANTE DA
REALIDADE ............................................................................................................ 33
3.1.ESQUEMA DO CONTO ............................................................................................ 34
3.2.RETRATOS DA REALIDADE .................................................................................. 37
3.2.1. Retratos Rurais ................................................................................................... 42
3.2.1.1.Agregados ............................................................................................................. 55
3.2.1.2.Donos-de-terra ..................................................................................................... 58
3.2.2. Retratos Urbanos ................................................................................................ 61
3.2.2.1.Patrões, Chefes e Funcionários ............................................................................ 72
3.2.2.2.Senhoras ............................................................................................................... 74
3.2.3. Retratos Anônimos ............................................................................................. 75
3.2.3.1.Empregadas Domésticas ....................................................................................... 76
4. CARACTERÍSTICAS DA ESCRITURA MOREIRIANA .................................. 79
4.1.RECURSOS ESTRUTURAIS E ESTILÍSTICOS ...................................................... 79
4.2.A CONCISÃO NO PROCESSO CRIATIVO: ANÁLISE DE QUATRO
PUBLICAÇÕES DE “LAMA E FOLHAS”.................................................................85
4.3.TEMÁTICAS FREQUENTES .....................................................................................93
5. CONCLUSÃO......................................................................................................... 100
6. BIBLIOGRAFIA .................................................................................................... 103
1. INTRODUÇÃO
Falar sobre a literatura produzida no Ceará nos remete quase sempre ao problema da
pouca divulgação que as produções literárias de escritores locais vêm sofrendo ao longo de
sua história. Quando se pensa em literatura cearense, as primeiras referências são os autores e
obras mais conhecidas, que já alcançaram o patamar dos clássicos nacionais, como José de
Alencar, Rachel de Queiroz e, quando muito, citam-se Adolfo Caminha e Domingos Olímpio.
A verdade é que poucos são os estudos específicos sobre literatura cearense; desses, podem-
se destacar por sua abrangência a Literatura Cearense (1976) de Sânzio de Azevedo e como
uma fonte mais antiga a História da Literatura Cearense de Dolor Barreira, obra publicada
em quatro volumes de 1948, 1951, 1954 e 1962.
A escassez de fontes de pesquisa na área foi, por assim dizer, o impulso primário para a
realização do presente trabalho, motivo que se somou ao empenho pela divulgação dessa
literatura, que traz em sua historiografia marcas de um passado de intensa atividade e grandes
produções, algumas delas tornadas verdadeiros patrimônios da literatura nacional, como O
Quinze, de Rachel de Queiroz; Luzia-Homem, de Domingos Olímpio; A normalista, de
Adolfo Caminha; Aves de arribação de Antônio Sales, A fome de Rodolfo Teófilo, entre
outros. É importante lembrar também que a literatura feita no Ceará se mostrou desde cedo
como uma das que mais contribuíram para o desenvolvimento literário do país.
As terras de Alencar comportaram um grande número de eventos culturais, de uma
forma geral e literários, de forma específica; veja-se o grande número de agremiações e
institutos voltados à divulgação dos escritores cearenses, como o Clube Literário, a Padaria
Espiritual, o Centro Literário, a Casa de Juvenal Galeno e outros tantos; o Ceará também foi
um dos Estados que primeiro criou sua própria academia de Letras: consta que a Academia
Cearense de Letras foi fundada anteriormente à própria Academia Brasileira de Letras: “[...]
fundada no dia 15 de agosto de 1894, anos antes da própria Academia Brasileira de Letras,
portanto.” (AZEVEDO, 1976, p. 180).
A trajetória de tais grupos e instituições abriu portas para a propagação dos escritores
locais, alguns deles conseguindo com muito esforço ultrapassar as fronteiras do Estado:
juntando forças em um grupo ou instituição, a literatura se tornava mais abrangente e os
autores aos poucos iam saindo do anonimato, uma vez que eram usados veículos para a
divulgação de seus trabalhos como periódicos elaborados pelos integrantes de cada grupo.
1
Foi a partir do estudo dos grupos literários cearenses que despontou o interesse pelo
Grupo Clã, uma das agremiações mais importantes tanto por sua longevidade quase
quarenta anos quanto por ter sido responsável pelo lançamento de alguns dos escritores
mais importantes de nossas letras. Dentre estes, o contista Moreira Campos, ao qual será
destinada esta pesquisa.
O nome do contista cearense está incluso entre os melhores, tanto na literatura local,
como na nacional. Seus contos fazem parte de várias antologias, e, alguns deles já foram
traduzidos para outras línguas como o francês, o inglês, o italiano, o alemão e até para o
hebraico, sinal da qualidade de seus escritos.
Alguns estudiosos já haviam voltado sua atenção para este escritor, como José Lemos
Monteiro, que publicou O discurso literário de Moreira Campos (1980), estudo todo
dedicado às características da obra do contista; Batista de Lima, outro pesquisador da obra
moreiriana, teve como objeto de pesquisa em sua dissertação de mestrado também a narrativa
do contista, trabalho intitulado Ordem e desordem na escritura de Moreira Campos (1993).
Há outros críticos que incluíram, em seus trabalhos, estudos sobre o autor cearense, como
Alfredo Bosi, que colocou em sua antologia O conto brasileiro contemporâneo (1975) um
conto de Moreira Campos, além do já citado Sânzio de Azevedo que incluiu o contista em
vários de seus trabalhos; Vera Moraes, que dedicou todo um estudo acerca do Grupo Clã em
seu livro Clã: trajetórias do modernismo em revista (2004), destinou um merecido espaço ao
contista.
Todos esses estudos contribuíram como fonte de pesquisa para o desenvolvimento do
presente trabalho, que tem como foco principal os contos que Moreira Campos publicou na
revista Clã.
Um dos fatores relevantes observados nos estudos supracitados foi a atenção que os
pesquisadores dedicaram às temáticas, bem como à linguagem usada pelo contista: os contos
ganham traços de neo-realismo
1
1
Baseado em estudos de Sânzio de Azevedo (1976, p. 482), Batista de Lima afirma ter a obra de Moreira
Campos “incursões nos postulados do Impressionismo, do Neo-Realismo e do Neo-Naturalismo” (1993, p. 3),
daí o uso do termo neo-realismo em algumas passagens do presente trabalho.
quando abordam temas relacionados ao homem inserido em
seu meio e sua vida cotidiana, em contextos rurais ou urbanos:
2
De fato, em qualquer de suas obras, percebe-se que a natureza e o homem,
elementos constitutivos da realidade, estão intimamente associados num todo
orgânico, como se estivessem sujeitos aos mesmos princípios, leis e finalidades.
Há uma preocupação com a verdade, não apenas verossímil, mas exata.
(MONTEIRO, 1980, p. 28)
Vera Moraes também aponta a tendência que o autor tinha para o realismo, ressaltando
a capacidade engenhosa do contista em trabalhar a realidade:
Na transposição da realidade para o plano da arte reside o talento do ficcionista,
que consegue transmitir ao leitor a sensação de algo perspicazmente medido, a
ponto de não se poder afirmar onde existe só a ficção excluída de interferências de
cenas reais. (MORAES, 2004, p. 99)
Através da leitura dos contos que Moreira Campos publicou na revista Clã associada às
argumentações acima, observou-se que as temáticas que se faziam mais evidentes eram
justamente aquelas de cunho neo-realista, uma vez que havia a preocupação em retratar
elementos ligados ao cotidiano com a “[...] observação das fraquezas humanas […] em que se
fala dos pequenos burgueses, dos modestos funcionários, dos trabalhadores do meio rural e
urbano, dos marginais, dos solitários [...]”
2
Devido à escolha dos contos especificamente publicados na revista Clã, o primeiro
passo para o início do trabalho foi a elaboração de uma sucinta investigação acerca do Grupo
Clã, uma vez que Moreira Campos era um de seus membros fundadores; contudo, através da
orientação da professora Vera Moraes, resolveu-se fazer um panorama das principais
agremiações e instituições literárias surgidas no Ceará, desde os seus primeiros registros.
, elementos esses que propiciam uma crítica
social, mesmo que um tanto sutil.
Dessa forma, foi traçado o caminho principal para a realização da presente pesquisa que
tem por um dos objetivos a identificação de aspectos sociais relações de trabalho, situação
social das personagens, interação destas com o meio e os tipos humanos retratados nos
contos publicados na revista. Como embasamento teórico, aplicaram-se à pesquisa estudos
sobre sociologia da literatura, abordados em várias obras do crítico Antonio Candido.
2
ALGE, Carlos d’. A condição humana em Moreira Campos. Jornal de Cultura. Fortaleza, UFC, agosto/1994,
p. 5.
3
Iniciou-se então um trabalho de pesquisa que se mostrou um tanto dificultoso, uma vez que,
como foi dito, as fontes são parcas; muito valor tiveram os trabalhos de Sânzio de Azevedo,
dos quais foram retiradas a grande maioria das informações contidas na primeira parte deste
trabalho.
Assim, foram selecionados os grupos (e instituições) que tiveram maior relevância ao
longo da história da literatura cearense para uma breve apresentação de suas características
bem como de seus principais membros: a começar pelo século XIX, registrou-se o
surgimento dos Oiteiros (1813 ou 14), da Academia Francesa (1873), do Clube Literário
(1886), da Padaria Espiritual (1892), do Centro Literário (1894), da Academia Cearense
(1894), designada posteriormente Academia Cearense de Letras; já no inicio do século XX,
foi fundado o Salão Juvenal Galeno (1919), posteriormente chamado Casa de Juvenal Galeno
e finalmente, chegou-se ao Grupo Clã (1946), para o qual foi dedicado um capítulo.
Uma das características mais notórias deste grupo é sua longa trajetória, começada no
início da década de 1940 com um histórico de atividades que perdurou até o final dos anos de
1980: as datas de publicação do número zero e do número 29 (derradeiro número) da revista
Clã datam de 1946 e 1988, respectivamente; porém o grupo não se reunia regularmente,
tendo seus membros trabalhado individualmente:
Ocorre, porém, que, depois dos primeiros tempos, cada escritor foi cuidar de sua
vida, não constando que tenha havido reuniões dos componentes do grupo. Apenas
cada um se dizia membro daquele grêmio, que nunca chegou oficialmente a se
dissolver.
3
Importante citar também que participaram do Clã muitos dos grandes nomes da
literatura cearense como Artur Eduardo Benevides, João Clímaco Bezerra, Antônio Girão
Barroso, Braga Montenegro, Fran Martins, Otacílio Colares, Eduardo Campos, Aluízio
Todavia, alguns críticos afirmam que o fator mais forte para que o grupo perdurasse por
tanto tempo foi justamente essa individualidade de cada participante: a diversidade de
características literárias enriquecia a qualidade intelectual da agremiação, assim como da
revista.
3
AZEVEDO, Sânzio de. Sobre o Grupo Clã. In: MORAES, Vera; GUTIÉRREZ, Angela; REMÍGIO, Ana.
[org.]. Homenagem aos 60 de Clã revista de cultura. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2007.
4
Medeiros, Mílton Dias entre outros, cada um seguindo linhas literárias distintas como a
poesia, a crônica, o conto, a crítica, etc.
Uma das partes do trabalho abordará especificamente um pouco da vida do contista
Moreira Campos como colaborador na revista do Grupo Clã: foi grande a colaboração do
autor de Vidas marginais na revista Clã treze números dos vinte e nove da coletânea
sendo contos inéditos a grande maioria dessas colaborações. Ainda nesta parte será feito o
itinerário dos contos que saíram na revista Clã, apontando em quais livros estão situados.
Uma das divisões do trabalho terá como foco principal os contos selecionados que
serão analisados tendo como base teórica alguns estudos acerca da sociologia da literatura.
Na leitura dos contos publicados na revista, um dos principais aspectos observados foi a
escolha dos espaços da narrativa; notou-se que havia contos cujas tramas eram situadas em
cenários rurais, que retratavam o sertão nordestino, e cenários urbanos, que apresentavam a
vida e o cotidiano nas grandes cidades; partindo dessa observação foi feita a seguinte divisão:
retratos rurais, incluindo a análise dos contos que apresentam o cotidiano do sertanejos e
retratos urbanos, com os que trazem relatos sobre a vida na capital.
Antecedendo a análise, foi feita uma abordagem acerca da estruturação do conto,
baseando-se no princípio de que “[...] a técnica de estruturação do conto assemelha-se à
técnica fotográfica [...](MOISÉS, 2006, p. 52), isto é, assim como a fotografia, o conto é o
flagrante de um instantâneo da realidade que pode ser trabalhado de várias formas pelo autor.
Após a análise, a pesquisa se voltará para os aspectos da escritura do contista, que,
seguindo temáticas do conto moderno, tem por características principais “[...] a incessante
luta pela concisão e conseqüente omissão de traços que possam ser preenchidos pelos leitores
[...] e a tendência para a escolha de um só momento, um foco [...]” (MONTEIRO, 1980, p.
64-65). Para ilustrar o árduo trabalho do escritor na busca pela concisão, foi dedicada uma
seção para a observação do processo criativo com a análise de quatro variantes de um dos
primeiros contos publicados, “Lama e folhas”.
Além da concisão, outro aspecto que se pode destacar na escritura moreiriana é a
representação do homem em seus momentos mais críticos: o fatalismo, que fica representado
na presença da morte; o erotismo e o sobrenatural, temas que, de acordo com Lemos
Monteiro, “[...] definem uma cosmovisão ligada à interpretação realista da existência humana
[...]” (MONTEIRO, p. 39).
5
Assim, como um fotógrafo e com um olhar pleno de sensibilidade, Moreira Campos
retratou, de forma excepcional, momentos singulares da vida de suas personagens que,
permeadas de tantos elementos verossímeis, são verdadeiras representações da realidade que
as cerca, retratos de pessoas e lugares que o contista captou no decorrer de toda a sua vida,
com a força fecunda de sua criatividade estética.
6
2. GRUPO CLÃ: REFLEXOS DO MODERNISMO NA LITERATURA CEARENSE
2.1. OS GRUPOS LITERÁRIOS DO CEARÁ: UM POUCO DE HISTÓRIA
A historiografia literária relata que o Ceará foi um dos Estados que mais cultivou
agremiações de arte e literatura, como a Academia Francesa, a famosa Padaria Espiritual, o
Grupo Clã, entre outros.
Tais grupos apresentavam, algumas vezes, programas muito particulares, outras, nem
sequer traziam um programa definido, pois não tinham bem a consistência de grupo; contudo,
o objetivo era o mesmo em todos eles: proporcionar discussões a respeito das artes no Estado
e difundir a produção artística cearense no Brasil e exterior.
Tomando como base de pesquisa o estudo de Sânzio de Azevedo sobre a história da
literatura cearense
4
Surgido em 1813 ou 1814, teve por principal característica uma poesia que vagava
entre o neoclassicismo português e o “racionalismo barroco” (AZEVEDO, 1976, p. 19). A
denominação Oiteiros talvez remeta à palavra outeiro que significa “[...] festa que se
realizava no pátio dos conventos, e por ocasião da qual os poetas glosavam motes dados pelas
freiras [...]”
, será feita uma breve apresentação das principais agremiações e
instituições literárias surgidas no Ceará desde o século XIX.
O início das produções literárias cearenses se dá com os OITEIROS, um dos primeiros
grupos surgidos com o fim de discutir temas relacionados às artes, sobretudo à arte literária:
“Quanto ao fato que marca os primórdios das letras cearenses, ficamos com Dolor Barreira,
em sua História da Literatura Cearense, para quem são os chamados Oiteiros, de 1913 e 14,
a mais remota manifestação da literatura em nosso Estado [...]” (AZEVEDO, 1976, p. 14).
5
Dentre os integrantes mais conhecidos estão Pacheco Espinosa, Castro e Silva, Costa
Barros, Manuel Correia Leal e Padre Lino José Gonçalves de Oliveira. Acredita-se que o
, isto é, os membros dos Oiteiros se reuniam em “sessões palacianas”
(AZEVEDO, 1976, p. 19) nas quais costumavam aderir à poesia a figura de governantes,
aclamando os feitos dos governos talvez pelo fato de terem sido patrocinados pelo
Governador Sampaio.
4
Seguiremos o estudo apresentado por Sânzio de Azevedo em Literatura Cearense (1976).
5
FERREIRA, Aurelio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurelio versão 5.0 edição revista e atualizada:
Dicionário eletrônico. Curitiba: Positivo, 2006, Cd-rom, Microsoft Windows 98, 2000 ou XP com internet
explorer.
7
grupo tenha durado tanto quanto a administração do Governador Sampaio, uma vez que este
era uma espécie de mecenas da poesia dos Oiteiros.
A ACADEMIA FRANCESA apareceu no ano de 1873, durando até 1875. Foi uma das
primeiras reações ao estilo romântico em terras cearenses trazendo dos franceses idéias
filosóficas e cientificistas. Sem a intenção de formar um grupo literário, os jovens Tomás
Pompeu, Rocha Lima, Capistrano de Abreu, João Lopes, Xilderico de Faria, e mais Araripe
Júnior, França Leite, Antônio José de Melo, Antônio Felino Barroso e Amaro Cavalcante
reuniam-se com o intuito de levantar questões que abordassem o então novo pensamento da
época sob a influência que ia de autores como Darwin a Comte e Schopenhauer.
O nome Academia Francesa foi um achado de Rocha Lima, afirmando serem os
companheiros entusiastas das novas doutrinas vindas principalmente da França. Em 1873
com o início da circulação do jornal Fraternidade, ligado à maçonaria, o grupo de fato
começou a ganhar força, pois o periódico “[...] serviria de arena de combate aos jovens
pensadores [...]” (AZEVEDO, 1976, p. 71); nessa mesma época é registrada a entrada de
Araripe Júnior na agremiação.
Interessante lembrar que Sílvio Romero costumava afirmar ser a Academia Francesa
um reflexo, quase uma repetição da Escola do Recife, uma vez que alguns integrantes do
grupo cearense estiveram na capital pernambucana nos anos de 1870 a 1872, trazendo o
conhecimento adquirido ali para a terra natal. Contudo, Afrânio Coutinho
6
6
COUTNHO, 1968 apud AZEVEDO, 1976, p. 75.
observa que tal
afirmação não era verdadeira, uma vez que a primeira fase da Escola do Recife era poética
até 1870, sendo a fase crítico-filosófica iniciada somente três anos mais tarde. Logo, o grupo
cearense não teria tomado conhecimento da ideologia do movimento pernambucano antes de
1873, apesar de este ter refletido alguma influência na Academia Francesa.
Mais do que um mero reflexo da Escola do Recife, o mérito do grupo cearense pode ser
conferido por ter sido um dos primeiros a trazer e divulgar os ideais positivistas para o Brasil,
contendo, entre seus membros, nomes que estão entre os de maior importância da crítica
literária em nosso país.
Justamente na área da crítica literária e da filosofia é que se situaram as produções do
grupo: as ideologias iam diretamente contra os ideais românticos, mas apesar da atuação
intensa, a Academia Francesa do Ceará não conseguiu fixar, com a mesma força, as idéias
que pregava, uma vez que o pensamento romântico ainda era muito presente tanto na
literatura quanto nas artes em geral:
8
Mas a verdade é que, não obstante a grande envergadura da Academia Francesa,
não conseguiram os seus componentes abalar sequer os alicerces da escola
romântica no Ceará. [...] tanto que ainda vários anos depois de extinta a agremiação
era romântica a nossa poesia. (AZEVEDO, 1976, p. 77)
No ano de 1886 foi fundado por João Lopes um dos membros da Academia Francesa
o CLUBE LITERÁRIO, uma das associações de literatura que mais trouxe à tona nomes
que posteriormente viriam fazer parte da plêiade dos grandes escritores do Ceará. Estão entre
os membros do grupo: os romancistas Oliveira Paiva, Antônio Sales, Rodolfo Teófilo; o
filósofo Farias Brito, o prosador e poeta José Carlos Júnior, o poeta Xavier de Castro, além
de escritores que já tinham seu nome conhecido em nossas letras como o poeta e prosador
romântico Juvenal Galeno, os “Poetas da Abolição” Antônio Martins, Antônio Bezerra e
Justiniano de Serpa e mais o poeta Virgílio Brígido.
Como órgão na imprensa, teve o Clube Literário a revista A Quinzena, circulando de
1887 a 1888, num total de 30 números. O periódico contava com a colaboração dos
integrantes do grupo além de outros nomes expressivos como o escritor Pápi Júnior e as
poetisas e prosadoras Ana Nogueira e Francisca Clotilde. As temáticas variavam entre os
objetos românticos, como os poemas de Juvenal Galeno, o cientificismo nos contos de
Rodolfo Teófilo e artigos críticos de Abel Garcia; o Naturalismo também apareceu como
ponto de discussão em artigos de Oliveira Paiva que empregava o pseudônimo de Gil Bert e o
Realismo, com mais força, nos contos do mesmo autor.
Além das colaborações nA Quinzena, os participantes do Clube Literário se reuniam
em sessões nas quais eram discutidas as novas tendências da literatura estrangeira e nacional,
infundindo-as assim no cenário da literatura local. O Clube Literário talvez tenha sido a
associação que mais divulgou o Realismo na literatura cearense:
[...] realizava o Clube Literário sessões noturnas, durante as quais eram postas em
discussão as mais recentes tendências da literatura estrangeira ou nacional. Dessa
forma, o grêmio contribuiu admiravelmente para a renovação das letras no Ceará:
com o conhecimento do se passava nos grandes centros é que os nossos escritores
foram pouco a pouco aderindo à nova corrente, o Realismo. (AZEVEDO, 1976, p.
92)
A PADARIA ESPIRITUAL, agremiação de artistas e literatos cearenses mais popular
na história da Literatura Brasileira, foi fundada em 30 de maio de 1892, tendo Antônio Sales
como idealizador e também criador do famoso Programa de Instalação, que ficou conhecido
9
pelo caráter pilhérico de seus artigos e regulamentos: os integrantes eram designados
“padeiros” que se propunham a “produzir o pão do espírito”.
É importante destacar que não só faziam parte da Padaria Espiritual jovens literatos,
como também participavam da associação artistas de outras áreas como músicos e pintores. É
no artigo 1º. do Programa de Instalação que aparece a designação dos membros como
“padeiros” e a finalidade da Padaria em “[...] fornecer pão de espírito aos sócios, em
particular, e aos povos, em geral [...]”
7
7
MOTA, Leonardo, 1938, p. 25-31 apud AZEVEDO, 1976, p. 155.
.
O artigo 2º. do Programa apresenta a divisão dos “padeiros” dentro da Padaria: o
presidente seria o “Padeiro-Mor”, os secretários eram os “Forneiros” e os demais membros
chamavam-se “Amassadores”. O “Forno” era o local das sessões, e “fornadas” eram
denominadas as reuniões dos “padeiros”. Geralmente tais sessões aconteciam no Café Java,
antigo café situado na Praça do Ferreira em Fortaleza. O órgão de imprensa, periódico
literário, não poderia ganhar outro nome senão O Pão. Dentro do “forno”, todos os
integrantes deveriam ser chamados pelos seus respectivos “nomes de guerra”, que eram
pseudônimos. Desse modo, Antônio Sales era Moacir Jurema; Adolfo Caminha era Félix
Guanabarino e assim por diante.
Sobre os sócios, consta no artigo 3º. do Programa a apresentação de uma relação com
os nomes dos vinte sócios fundadores da agremiação; em 1894, porém, a Padaria Espiritual
foi reorganizada, aumentando assim, o número de sócios.
Além de todas essas características tão peculiares, a Padaria Espiritual fez-se
importante, sobretudo por ter abraçado a causa do nacionalismo, condenando o uso de
vocábulos com referência estrangeira nos textos escritos pelos seus membros.
Nos primeiros anos de existência da agremiação é possível perceber, através de relatos
historiográficos, a presença de uma fase mais voltada para a bizarria, enquanto nos últimos
anos as produções tendiam para uma maior retidão. Contudo, o que marca a Padaria na
história literária é, sem dúvida, a primeira fase: “[...] assinalamos evidentemente a
característica mais marcante, uma vez que houve trabalho profícuo nos primeiros tempos, e a
pilhéria jamais deixou de ser praticada e encarecida [...]” (AZEVEDO, 1976, p. 166).
As produções literárias dos integrantes da Padaria Espiritual vieram enriquecer a
literatura cearense tanto na poesia quanto na prosa, além das produções publicadas no
periódico O Pão que chegou até ao 36º. número.
10
Quanto à escolha por uma valorização do nacional, abominando toda e qualquer
referencia à fauna ou flora estrangeiras, pode-se afirmar, como escreveu Sânzio de Azevedo
(1976, p. 156), que a agremiação cearense tenha sido talvez uma precursora do Movimento
de 22.
No ano de 1894, surgiu um grêmio que veio “[...] fazer frente à Padaria Espiritual,
iniciando uma emulação que mais ainda agitaria a modorrenta vida literária [...]
(AZEVEDO, 1976, p. 167), foi o CENTRO LITERÁRIO.
A agremiação se manteve ativa ao longo de dez anos tendo alcançado tanto prestígio
dentro e fora do Ceará quanto a Padaria Espiritual. Tendo como órgão de divulgação a revista
Iracema na qual colaboravam os integrantes do Centro que, aliás, somavam um número
muito superior em relação às demais associações literárias da época.
Eram sócios do Centro Literário, entre outros nomes: Juvenal Galeno, Pápi Júnior,
Rodolfo Teófilo, Lopes Filho, Quintino Cunha, Ulisses Bezerra e Farias Brito. Em 1895
foram admitidos mais 22 sócios, entre eles Antônio Bezerra, Justiniano de Serpa e Guilherme
Studart.
Dos nomes citados acima, convém lembrar que alguns já tinham um histórico de
participação em outros grêmios literários, como Lopes Filho e Ulisses Bezerra, ambos da
Padaria Espiritual.
No ano de 1896, as atividades literárias na revista Iracema começaram diminuir
progressivamente até que, no final do mesmo ano, cessaram de vez. O Centro não
apresentava mais o mesmo ânimo do início, porém, conseguiu sobreviver a o início de
1905.
Já no primeiro ano do século XX, Rodrigues de Carvalho, então presidente do Centro,
propôs uma tentativa de retomada das atividades do grupo, aderindo à agremiação novos
sócios, entre eles José Albano e Eurico Facó.
Sobre a criação da entidade, há certa controvérsia, pois Rodrigues de Carvalho, um dos
membros do Centro, em artigo escrito em 1899, atribui a Pápi Júnior a criação do grêmio; já
Antônio Sales, idealizador da Padaria Espiritual, escreveu que o Centro Literário teria sido
criado devido à saída dos “padeiros” Álvaro Martins e Temístocles Machado. O que se sabe é
que, de fato, havia nomes comuns entre as duas agremiações, que, apesar de certa
“rivalidade”, mantinham relações cordiais.
Não obstante todas as dificuldades enfrentadas pelo Centro Literário, desde seu
conturbado surgimento, a efemeridade de seu periódico não suprimiu a importância que esta
associação teve na história literária cearense uma vez que:
11
[...] ninguém poderá negar haver sido o Centro Literário uma das mais importantes
sociedades culturais do Ceará, pela tenacidade com que enfrentou as dificuldades de
um meio nem sempre favorável a tais cometimentos, logrando uma existência bem
mais longa que a da maioria dos grêmios de seu tempo, pelos nomes que congregou,
alguns de projeção nacional. (AZEVEDO, 1976, p. 179)
Fundada em 1894, a ACADEMIA CEARENSE, depois designada Academia Cearense
de Letras, sobrevive até nossos dias como a mais antiga academia literária do país. Nos
primórdios de sua existência, a entidade abrangia outras áreas além das letras, como as
ciências, a arte e a educação. O órgão na imprensa era a Revista da Academia Cearense que
se manteve em circulação de 1896 a 1914, com 19 números nos quais eram publicados
artigos sobre os mais variados temas. Os primeiros presidentes foram Guilherme Studart,
Tomás Pompeu e Pedro de Queirós.
O segundo momento da história da Academia aconteceu durante o governo de
Justiniano de Serpa (década de 1920), quando houve uma reorganização da entidade que
passou a ser denominada Academia Cearense de Letras, que então se voltaria somente para a
literatura. O número de sócios foi elevado para 40 com um patrono para cada cadeira. O
presidente dessa nova fase foi Tomás Pompeu. Eis então o nome dos sócios com suas
respectivas cadeiras: 1- Guilherme Studart, 2- Justiniano de Serpa, 3- Tomás Pompeu, 4-
Antônio Augusto de Vasconcelos, 5- Padre João A. da Frota, 6- Antônio Sales, 7- Pápi
Júnior, 8- Alf. Castro, 9- Rodolfo Teófilo, 10- Tomás Pompeu Sobrinho, 11- Adonias Lima,
12- Antonino Fontenele, 13- Júlio Maciel, 14- Alba Valdez, 15- Moreira de Azevedo, 16-
Carlos Câmara, 17- Padre Antônio Tomás, 18- Sales Campos, 19- Leiria de Andrade, 20-
Otávio Lôbo, 21- Cruz Filho, 22- Cursino Belém, 23- Antônio Teodorico da Costa, 24-
Soares Bulcão, 25- Matos Peixoto, 26- Jorge de Sousa, 27- Beni Carvalho, 28- José Lino da
Justa, 29- Fernandes Távora, 30- Álvaro Alencar, 31- Francisco Prado, 32- Júlio Ibiapina, 33-
Ferreira dos Santos, 34- Andrade Furtado, 35- Raimundo de Arruda, 36- José Sombra, 37-
Raimundo Ribeiro, 38- Antônio Drumond, 39- Quintino Cunha, 40- Leonardo Mota.
Neste segundo momento a Academia entraria em crise: com o falecimento de
Justiniano de Serpa, em 1923, no mesmo ano, assumiu o Governo do Estado do Ceará José
Carlos de Matos Peixoto, reorganizando, em 1930, a entidade.
Ainda no ano de 1930, foi criada a agremiação Academia de Letras do Ceará da qual
faziam parte nomes como Henriqueta Galeno, filha de Juvenal Galeno e Perboyre e Silva;
mais tarde, em 1951, as duas agremiações fundiram-se na Academia Cearense de Letras, sob
a direção de Dolor Barreira. O órgão de circulação na imprensa é a Revista da Academia
Cearense de Letras, que é continuação da revista da Academia Cearense.
12
A lista das Cadeiras com seus patronos, desde a reorganização nos anos 50, é a
seguinte: 1Adolfo Caminha ; 2 Álvaro Martins; 3 Antônio Augusto; 4- Antônio
Bezerra; 5 – Pápi Júnior; 6 – Antônio Pompeu; 7 Clóvis Beviláqua; 8 Domingos Olímpio;
9 Fausto Barreto; 10 Padre Mororó; 11 Guilherme Studart; 12 Heráclito Graça; 13
D. Jerônimo Tomé da Silva; 14 João Brígido; 15 Capistrano de Abreu; 16 Franklin
Távora; 17 Joaquim Catunda; 18 Moura Brasil; 19 José Albano; 20 Liberato Barroso;
21 – José de Alencar; 22 – Justiniano de Serpa; 23 – Juvenal Galeno; 24 – Lívio Barreto; 25 –
Oliveira Paiva; 26 Manoel Soares da Silva Bezerra; 27 Soriano de Albuquerque; 28
Mário da Silveira; 29 Paulino Nogueira; 30 Rocha Lima; 31 Farias Brito; 32 Ulisses
Penafort; 33 Rodolfo Teófilo; 34 Samuel Uchoa; 35 Senador Pompeu; 36 Tomás
Pompeu; 37 Tomás Lopes; 38 Tibúrcio Rodrigues; 39 Araripe Júnior; 40 Visconde de
Sabóia.
Outra instituição de grande importância foi a CASA DE JUVENAL GALENO, antes
chamada de Salão Juvenal Galeno, fundado em 1919 por Henriqueta Galeno, filha do poeta
cearense. O Salão tinha reuniões regulares nas quais eram feitas leituras tanto das poesias
como das prosas de escritores cearenses e de outros Estados. Com a morte de Juvenal Galeno,
em 1931, passou-se a cultuar a memória do poeta nas sessões e cinco anos mais tarde, foi
inaugurado o Salão Nobre, momento em que a instituição passou a se chamar Casa de
Juvenal Galeno. No mesmo ano, foi criada a Ala Feminina, onde mulheres que faziam
literatura tiveram oportunidade de expressar seus trabalhos; a Ala tinha até uma revista
chamada Jangada, sob a direção de Cândida Galeno, que circulou de 1949 a 1954,
perfazendo um total de 16 números.
Sem dúvida, a Casa de Juvenal Galeno divulgou a literatura cearense e a expandiu para
além das fronteiras do Estado. Nas palavras de Gustavo Barroso, a Casa foi “[...] o grande
salão literário do Ceará, onde dignamente se apresentam à gente culta do Estado os valores
antigos e os valores novos do Brasil [...]”
8
.
A instituição ainda sobrevive mantida pela Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, e
continua com suas atividades, divulgando a cultura cearense.
8
BARROSO apud AZEVEDO, 1976, p. 377.
13
2.2. O CLÃ DOS CEARENSES
Afirma Sânzio de Azevedo, em depoimento sobre o GRUPO CLÃ: “[...] foi o
responsável pela definitiva implantação do Modernismo no Ceará [...]” (AZEVEDO, 1976, p.
427). Ora, tal afirmação não poderia ser mais pertinente, visto que o Grupo Clã, desde seu
surgimento nos anos 1940, apresentou e divulgou trabalhos de artistas, escritores e poetas que
beberam nas fontes da escola modernista.
No ano de 1942, Antônio Girão Barroso, Aluízio Medeiros e Otacílio Colares
organizaram o I Congresso de Poesia do Ceará. O evento tornou-se o marco inicial para o
nascimento do que viria a ser o Grupo Clã, uma vez que reuniu “[...] jovens poetas, prosistas
e artistas plásticos cearenses [...]
9
Todos esses eventos não impediriam que o I Congresso de Poesia do Ceará
acontecesse, o que motivou, no Crato, a organização do Congresso Sem Poesia, do qual
participou um dos futuros membros do Grupo Clã, o contista e ensaísta José Stênio Lopes.
No congresso do Crato, foi contestada a realização de um evento artístico em momento tão
inadequado: “[...] pretendia-se que todos os esforços dos intelectuais brasileiros fossem
dirigidos para a guerra insana que naquele momento recrudescia na Europa e já nos tinha
atingido [...]”
.
O Brasil, no mesmo ano de 1942, historicamente vivia um momento muito conturbado:
o governo brasileiro, tendo à frente o Presidente da República Getúlio Vargas, declarou
estado de guerra para todo o país, aliando-se aos países que faziam “[...] parte do grupo de
nações que defendia as liberdades do homem [...]” (FARIAS, 2003, p. 42), lutando contra as
forças do eixo (Itália e Alemanha). Particularmente, no Estado do Ceará, a situação da guerra
teve repercussões dignas de nota: chama a atenção o elevado número de jovens cearenses que
se alistaram na Força Expedicionária Brasileira para combater na Europa; a criação de bases
militares americanas em Fortaleza, modificando o cotidiano da cidade, além do episódio do
bombardeamento do navio brasileiro Baependi em costas nordestinas.
10
Embora a participação do público no I Congresso de Poesia tenha sido pequena
(principalmente devido à não aceitação de um movimento artístico em momento tão crítico),
os organizadores não hesitaram em colocar em pauta de discussão o próprio evento da guerra,
como afirma Antônio Girão Barroso: “[...] acontece que o I Congresso de Poesia do Ceará,
; mesmo assim o evento em Fortaleza foi levado a diante.
9
MARTINS, Murilo. Martins Filho e o Grupo Clã. In: MORAES, Vera; GUTIÉRREZ, Angela; REMÍGIO, Ana
[org.]. Homenagem aos 60 anos de Clã Revista de Cultura. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2007, p. 35.
10
LOPES, José Stênio. Grupo Clã. In: MORAES, Vera; GUTIÉRREZ, Angela; REMÍGIO, Ana [org.].
Homenagem aos 60 anos de Clã Revista de Cultura. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2007, p. 16.
14
aqui em Fortaleza, se interessou muito pelo assunto. Assumiu atitudes contra os países do
Eixo e assim por diante [...]”
11
Pode-se dizer, então, que o Grupo Clã nasceu propriamente na ocasião do I Congresso
de Poesia do Ceará, no qual, nas palavras de Girão Barroso, uma “[...]trinca de poetas juntou-
se e resolveu fazer um Congresso de Poesia em Fortaleza [...]”
.
12
Na ata da primeira reunião preparatória do congresso
. A idéia inicial do
congresso nasceu devido à participação da “trinca de poetas” (Girão Barroso, Aluízio
Medeiros e Otacílio Colares) no I Congresso de Poesia do Recife, realizado em 1941, que
contou com a presença de nomes que mais tarde seriam muito representativos na poesia
brasileira como João Cabral de Melo Neto, Mauro Mota e Vicente do Rego Monteiro.
No ano seguinte, foi lançada a idéia da realização de um congresso de poesia em
Fortaleza, idéia que logo contaria com o apoio de Mário Sobreira de Andrade, ou como ele
costumava assinar, Mário de Andrade do Norte, autor do manifesto de lançamento do
congresso. Em agosto de 1942, o evento foi realizado com o desabrochar de jovens poetas e
artistas no meio intelectual cearense, entre eles Eduardo Campos, Artur Eduardo Benevides,
além dos artistas plásticos Antônio Bandeira, Mario Baratta, entre outros.
13
No total, foram oito reuniões preparatórias para o congresso, nas quais eram discutidos
(apesar do tom jocoso dos registros das atas) os regulamentos necessários para a realização
, escrita por Aluízio Medeiros,
estão dispostos os nomes dos organizadores com suas devidas funções:
[...] eis aqui a Comissão Organizadora do 1º. Congresso de Poesia do Ceará. E eu
tomo nota: Presidente, Mário de Andrade; Vice-dito Braga Montenegro;
Secretário geral Antonio Girão Barroso; tesoureiro João Clímaco Bezerra.
Mais adiante, Medeiros escreve sobre a escolha das comissões encarregadas da seleção
dos trabalhos apresentados:
[...] Romance Fran Martins, Jader de Carvalho e Braga Montenegro; Poesia
Otacílio Colares, Filgueiras Lima e Aluízio Medeiros; Música Alcyr Araújo,
Parsifal Barroso e João Jacques; Cinema Américo Barreira, Antônio Girão
Barroso e Orlando Mota; Crítica J. Denizard de Macedo, Mozart Soriano
Aderaldo e Mário de Andrade; Folclore e Artes Populares Milton dias, Murilo
Mota e João Clímaco Bezerra; Teatro Stélio Lopes de Mendonça, Artur Eduardo
Benevides e Eduardo Campos.
11
BARROSO, Antônio Girão, 1996 apud FARIAS, 2003, p. 44.
12
Idem. Esse tal de Grupo Clã. Clã: Revista de Cultura. Fortaleza, n. 27, 1982, p. 7.
13
MEDEIROS, Aluízio. Crônicas das reuniões preparatórias do 1º. Congresso de Poesia do Ceará. Clã: Revista
de Cultura. Fortaleza, n. 27, mar. 1982, p. 13.
15
do evento que teve sua instalação no Theatro José de Alencar, mudando de locação depois
para o atelier de Mario Baratta, mudança devido à situação de caos que enfrentava a cidade
por conta da guerra.
É justo dizer que, apesar de todos os percalços, o I Congresso de Poesia do Ceará abriu
horizontes nas artes: da participação dos artistas plásticos nasceu a Sociedade Cearense de
Artes Plásticas (SCAP), na qual se destacaram os nomes de Antônio Bandeira, Aldemir
Martins e Mário Baratta; em 1943, foi instalada por Fran Martins, a Associação Brasileira de
Escritores; logo depois, ainda no tocante às letras, foi criada a Cooperativa Edições Clã,
também o Clube do Livro Cearense e o Clube de Literatura e Arte.
Em julho de 1946, quatro anos após o Congresso de Poesia, Antonio Girão Barroso
propôs a realização do I Congresso Cearense de Escritores, que veio a se realizar entre os dias
7 a 18 de setembro do mesmo ano. Conforme está publicado na revista Clã, n. 0, marcaram
presença no evento grande parte dos que já haviam participado do Congresso de Poesia, além
de representantes das principais instituições do Estado: Moacir Teixeira de Aguiar,
representante do Interventor Federal; General Onofre Muniz Gomes de Lima como
presidente da Sessão de Abertura; Ministro Pedro Firmeza; Fran Martins (então presidente da
seção local da Associação Brasileira de Escritores); Monsenhor Otávio de Castro
representante do Arcebispo Metropolitano; Faustino de Albuquerque, presidente do Tribunal
Regional Eleitoral; Dolor Barreira; Braga Montenegro, presidente do Tribunal de Contas.
Como secretários da Comissão de Instalação do congresso estavam Eduardo Campos e Artur
Eduardo Benevides; Fran Martins foi Presidente da Comissão Organizadora, e Henriqueta
Galeno, Vice-presidente; Braga Montenegro exerceu a função de Secretário Geral; Antônio
Girão Barroso e Eduardo Campos foram os Secretários; Cândida Galeno participou como
Tesoureira. O Presidente da Mesa Dirigente foi Antônio Martins Filho; Hugo Catunda como
1º. Vice-presidente; Henriqueta Galeno como 2º. Vice-presidente; João Clímaco Bezerra
como Secretário Geral; Aluízio Medeiros como 1º. Secretário; Eduardo Campos como 2º.
Secretário; José Stênio Lopes foi o orador oficial da Sessão de Encerramento.
Os temas discutidos durante o congresso tratavam de questões de interesse para os
escritores que moravam no Ceará: a liberdade de criação e a necessidade do apoio dos
poderes públicos para os profissionais de literatura.
Como resultado do congresso, foi criada a revista Clã, que publicou o número zero em
1946, sob a direção de João Clímaco Bezerra, Aluízio Medeiros e Antônio Girão Barroso. O
número zero, porém, não teve muita repercussão, alegando os diretores da revista que aquele
fascículo sairia mais a título de experiência.
16
Sobre o nome Clã, é interessante abrir um parêntese. Segundo depoimento de Antônio
Girão Barroso
14
A princípio, simplesmente conversávamos. Reuníamo-nos regular e não
regularmente: regular, todas as boquinhas da noite, em cafés em que ainda se podia
bater um papo sentados, despreocupados [...] De uma cousa estávamos certos: não
tínhamos nenhuma inteão de criar um grupo [...] Não éramos, na verdade,
criadores de movimentos: éramos movimento, isto é, agíamos espontaneamente [...]
Éramos, assim, nós mesmos, apesar da revista, do clube de literatura, dos
congressos de poesia e de escritores.
na Revista Clã n. 27, o nome se refere à criação do Clube de Arte Moderna,
idéia tratada antes do I Congresso de Poesia do Ceará, no escritório do Professor Olavo de
Oliveira. Na ocasião, estava presente Mário Baratta, que deu a idéia da estruturação de um
núcleo de artistas e intelectuais novos com o nome Clan. Contudo o núcleo nunca existiu,
porém foi criada a Editora Clan, que logo depois passou a ser chamada Cooperativa Edições
Clã, para finalmente passar a Edições Clã. Depois, em 1946, surgiu o Clube de Literatura e
Arte (CLA), que recebeu tal nome para coincidir com o nome da editora.
Como primeiro lançamento, as Edições Clã publicaram Três Discursos de Antônio
Girão Barroso, Eduardo Campos e Mário Sobreira de Andrade, em 1943.
O Grupo Clã, como foi dito anteriormente, não nasceu já como um grupo. Foi se
formando aos poucos, com a aglutinação das idéias dos jovens artistas cearenses que tinham
em comum a grande vontade de divulgar a literatura local. Os integrantes eram aqueles que
organizaram os congressos de poesia e de escritores e que publicavam seus trabalhos pelas
Edições Clã. Não tinham uma sede definida, reuniam-se nos bancos dos cafés situados na
Praça do Ferreira, no centro de Fortaleza. Daí muitos dos integrantes, em depoimentos,
citarem as famosas “conversas de cafés”, como fala Fran Martins:
15
14
BARROSO, Antônio Girão. Esse tal de Grupo Clã. Clã: Revista de Cultura. Fortaleza, n. 27, 1982, p. 7.
15
MARTINS, Fran. Depoimentos do grupo. Clã: Revista de Cultura. Fortaleza, n. 27, 1981, p. 15.
Foram fundadores do grupo, em ordem alfabética: Aluízio Medeiros, Antônio Girão
Barroso, Antônio Martins Filho, Artur Eduardo Benevides, Braga Montenegro, Eduardo
Campos, Fran Martins, João Clímaco Bezerra, José Stênio Lopes, Lúcia Fernandes Martins,
Mílton Dias, Moreira Campos, Mozart Soriano Aderaldo e Otacílio Colares. O nome de
Joaquim Alves não entrou na lista, uma vez que no ano em que os estatutos do grupo foram
publicados (1964), o antigo integrante já era falecido. Mais tarde, na década de 80, entraram
tardiamente para o grupo, já no último decênio de sua atividade, os escritores Cláudio
Martins, Durval Aires e Pedro Paulo Montenegro.
17
Estava então composta, sem a consciência de ser um grupo, a plêiade de artistas do Clã,
alguns bem jovens, iniciando a vida literária, outros já amadurecidos literariamente, mas
todos girando em torno da mesma poética: a reafirmação do novo, do moderno.
Dentre tantos estilos, tantas formas de representação que comportava o Grupo Clã,
prevaleciam, como um elo de união entre os seus membros, as idéias modernistas herdadas
tanto da geração de 22 quanto da gerações de 30 e 45, e talvez tenha sido esse o segredo da
longevidade do grupo.
A poética do movimento de Clã está diretamente ligada à da geração de 30, pela
influência que exerceu nos escritores ligados à ficção; à poética de 45, naqueles envolvidos
pela poesia, manifestando de forma “[...] acentuadamente equilibrada, sem caráter polêmico e
sem reviravoltas estéticas [...]” (MORAES, 2004, p. 65), ultrapassando assim a fase
primitivista do Modernismo e refletindo já uma nova fase, construtivista.
Talvez por preservar uma poética mais universalista, as produções do grupo, de uma
maneira geral, não tenham alcançado a projeção nacional que almejavam no início; contudo,
ao longo do tempo é que os nomes dos escritores e poetas do Clã adquiriram lugar entre os
melhores da Literatura Brasileira.
Dentre as manifestações mais fecundas do movimento de Clã está a poesia, e se a
poesia da geração de 45 representa uma restauração de modelos antigos, como o soneto e a
ode, é possível notar, nos poetas do grupo Clã, intensa preocupação com a forma poética, na
tentativa de exprimir a tensão entre subjetividade e arte. Há um retorno aos temas tradicionais
da arte lírica como o amor, em tentativa de resgate dos valores mais subjetivos do ser humano
em contraposição ao momento tecnológico, objetivo – característico da época.
Era preciso, em meio à frigidez que tomava conta da sociedade moderna, restaurar o
sentido do espírito humano. Diante da evolução da máquina, da tecnologia, o homem vivia
em um estado “robotizado” em que as ações passavam a ser automáticas e tudo era apenas
velocidade. Não havia tempo a perder com certas futilidades, como a saudade da infância, o
cultivo de boas amizades, etc. O homem vivia só, numa solidão povoada e obviamente
precisava de ajuda. Tal ajuda viria de certo modo dos artistas entes mais sensíveis e que
tinham como missão fazer emergir novamente o sentimento humano.
Os poetas do Grupo Clã buscaram esse humanismo; todos representaram o
subjetivismo em forma de versos, como Otacílio Colares que expunha em forma de sonetos
os desassossegos de seu espírito. Dentre as principais características de suas produções nota-
se um “[...] lirismo fortemente marcado pela confidência, pela plenitude dos sentidos, pela
visão familiar do mundo [...]” (MORAES, 2004, p. 67).
18
Segundo a análise do escritor Pedro Lyra
16
Outro nome que também consta como um dos que abrilhantaram a poesia do
movimento de Clã retratando a vida cotidiana com primazia é o de Aluízio Medeiros, que
teve participação destacada no movimento de renovação artística cearense. O poeta está entre
, os poemas de Otacílio Colares, numa
primeira fase, seguem a linha neoclássica, variando entre um tom mais sereno, como no
“Soneto em tons Menores” e um tom exaltado como “Estudo em Nu”. Já numa fase posterior,
percebe-se um amadurecimento das idéias adolescentes com a reflexão do mundo, passando
para uma terceira fase em que busca um resgate da essencialidade humana.
Entre as obras do escritor estão: Os hóspedes (1946) em parceria com Antonio Girão
Barroso, Aluízio Medeiros e Artur Eduardo Benevides, O Jogral Impenitente (1965),
coletânea de poemas, Os saltadores de abismos (1967), 30 poemas para ajudar (1968) este
em parceria com Antonio Girão Barroso e Cláudio Martins, Três tempos de poesia (1973); e
o trabalho de crítica literária no qual aborda autores cearenses Lembrados e Esquecidos
(1975-81).
Outro poeta de grande destaque no grupo foi Antônio Girão Barroso, que além da obra
valorosa também teve mérito por sua participação ativa no I Congresso Cearense de
Escritores e na publicação dos primeiros números da revista Clã.
As características principais de sua poesia são o uso da linguagem popular e expressões
coloquiais, aludindo ao espírito renovador do Modernismo de 22, na medida em que,
remetendo à oralidade, tenta fixar as formas do português falado na prática literária. A sátira
e o vício de transmitir a mesma mensagem em formas diferentes também são elementos
comuns em sua poética.
A trivialidade com que apresenta situações do cotidiano em seus poemas é intencional
e representa a ideologia do autor: mostrar a verdadeira realidade na qual está inserido o
homem moderno e como este se apresenta por trás da “máscara social (MORAES, 2004, p.
72), deixando aflorar assim sua essência, essência esta que está imersa na constante busca de
superação dos limites e, às vezes, na constatação da impotência dos seres perante o tempo e a
vida.
Suas obras são: Alguns poemas (1938), Os Hóspedes (1946) em parceria com Aluízio
Medeiros, Artur Eduardo Benevides e Otacílio Colares, Novos poemas (1950), 30 poemas
para ajudar (1968) em parceria com Cláudio Martins e Otacílio Colares e o ensaio crítico
Modernismo e Concretismo no Ceará (1978).
16
LYRA, 1975 apud MORAES, 2004, p. 68.
19
os mais bem conceituados da Literatura Brasileira: em seu livro Os Objetos (1948), apresenta
valores humanistas usando elementos lingüísticos em prol da transmissão de sua mensagem.
Através dos “objetos” que fazem parte do dia-a-dia, tenta apreender o andamento da vida:
Os Objetos constituem a redescoberta do mundo pelo poeta, o relacionamento direto
dos olhos com as coisas, do ente com a natureza, da apreensão do fenômeno no
próprio momento em que acontecem nesse constante vir-a-ser, que é a própria vida
“se fazendo
. (MORAES, 2004, p. 76)
Em alguns poemas é possível identificar a preocupação social do poeta, como no caso
de “Latifúndio Devorante”, no qual o desenho da cidade induz à solidão e ao vazio em que
vive o homem; o campo é representação de inocência, de retorno aos verdadeiros valores
humanos. São do poeta as obras: Trágico Amanhecer (1941), Mundo Evanescente (1944), Os
Objetos (1948), Latifúndio devorante (1949), Lírica (1954), Poema é comício (1956), Setenta
e três poemas (1963) e Crítica (1954-56).
Outro poeta, Artur Eduardo Benevides é sem dúvida, o mais conhecido nome na poesia
no Ceará, merecendo o título de “Príncipe dos Poetas Cearenses”. Suas composições têm
como temática o espírito humano em todos os seus matizes, seja no plano mais lírico ou no
plano do coletivo.
Muitos são os poemas de característica telúrica, nos quais o artista, através da ligação
do homem com a terra, levanta questionamentos ligados à condição social, sobretudo do
nordestino.
É clara em sua obra a influência de Fernando Pessoa, Augusto Frederico Schmidt e
Mallarmé na feitura de belos poemas de cunho místico. As concepções de poeta e poesia se
aliam na obra de Benevides, pois para ele a poesia é algo que está diretamente ligada ao Ser,
e o poeta é o ente que pode captá-la e transmiti-la à sociedade: essa é a sua principal missão.
Publicou: Navio da noite (1944), Os Hóspedes (1946) em parceria com Antonio Girão
Barroso, Aluízio Medeiros e Otacílio Colares, A valsa e a fonte (1950), O Habitante da tarde
(1958), O tempo, o caçador e as cousas longamente procuradas (1965), Canção da rosa dos
ventos (1966), O viajante da solidão (1969), Elegias do outono e canções de muito amar e
adeus (1974), A viola de andarilho (1974), A lâmpada e os apóstolos (1952), Universidade e
Humanismo (1971), Idéias e caminhos (1974); Cancioneiro da cidade de Fortaleza (1953),
antologia; Caminho sem horizonte (1958), Evolução da poesia e do conto cearense (1976),
Arquitetura no névoa (1979), Literatura do povo (1980), A rosa do tempo ou intérmino partir
(1981), Universidade (1981), Camões, um tema brasileiro (1982), Sonetos de beira-mar e
20
elegias do espac (1983), Inventário da tarde (1983), Canto de amor ao Ceará
(1985), A rosa do caos ou canções de quase amanhecer (1987), Os deltas do sono e o
navegar das tardes em setembro (1988), O Santo Graal e a literatura fantástica na Idade
Média (1992), Noturnos de Mucuripe e poemas de êxtase e abismo (1992), Escadarias na
aurora (1997), (1996), A revolta do computador
(2001), Cantares de outono ou os navios regressando às ilhas (2004).
Na linha do romance, nota-se que os escritores do grupo seguiram principalmente
tendências regionalistas, tendo como referências as obras de autores como Rodolfo Teófilo,
Domingos Olímpio, José Lins do Rego, Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz. O romance é
praticado de forma tradicional: há delimitação de espaço e tempo, caracterização das
personagens de acordo com o meio social e a presença de um narrador. A linguagem é
adaptada ao espaço psicológico da narrativa com uso constante de termos típicos do
vocabulário nordestino.
Dentre os mais representativos ficcionistas do Clã está o escritor Fran Martins. Em sua
obra há traços de memorialismo, remetendo o leitor a tempos e espaços de outrora, como é o
caso dos livros Estrela do Pastor (1942) e A Rua e o Mundo (1962), nos quais apresenta
histórias passadas na cidade do Crato e aventuras de infância. Já na novela Dois de Ouros
(1966), Fran Martins apresenta como trama principal, a perseguição de um cangaceiro pela
polícia e, girando em torno desse tema, são retratados os dramas particulares de cada
personagem, que, em sua maioria, são figuras típicas do interior nordestino. A estrutura
narrativa é feita muitas vezes por monólogos interiores nos quais as personagens transitam
entre o passado e o presente, e essa técnica faz com que o romance de Fran Martins seja
considerado um dos mais bem construídos da Literatura Brasileira. Além das obras citadas
anteriormente, são também publicações do autor: Manipueira (1934), Noite feliz (1946), Mar
oceano (1948), O amigo de infância (1960), Ponta de rua (1937), Poço dos Paus (1938),
Mundo perdido (1940), O cruzeiro tem cinco estrelas (1950), Curso de Direito Comercial
(1957), A análise (1989).
No estilo da crônica, destacou-se o escritor Mílton Dias. Suas produções são totalmente
baseadas nas miudezas do cotidiano, que, vistas com mais atenção, podem espelhar uma
beleza imensurável. A linguagem é constituída por frases curtas, com uso de vocabulário rico
em expressões orais e gírias. Os períodos são longos, dando ao leitor uma sensação quase
musical, sendo os cenários constituídos, em sua grande maioria, pelas ruas de Fortaleza.
Outra característica própria do cronista é a anexação de figuras humanas como a
cozinheira, a doméstica entre outras que compõem uma classe que, na maioria das vezes,
21
passa despercebida aos olhos da sociedade. Com essa estratégia, o autor polemiza a questão
social.
Mílton Dias publicou as seguintes obras: Sete Estrelo (1960); As cunhãs (1966); A ilha
do homem só (1966); Entre a boca da noite e a madrugada (1971); Viagem no arco-íris
(1974); Cartas sem respostas (1974); Fortaleza e eu (1976); A capitoa (1982) - crônicas; As
outras cunhãs (1976). A reunião parcial de suas crônicas está no livro Relembranças (1985).
No tocante à produção novelística, o grupo não teve produções de grande destaque;
poucos escritores publicaram obras desse gênero na revista Clã. São eles: Fran Martins com
O Roubo, publicada na revista Clã n. 4 em 1948; Lúcia Fernandes Martins que escreveu
Janelas Entreabertas na Clã n. 7 em 1949; João Clímaco Bezerra com Longa é a Noite
publicada ne Clã n. 11 em 1951; Braga Montenegro com a obra No Tumulto dos Cárceres
Verdes que saiu na Clã n. 15 em 1957 e Durval Aires com Os Amigos do Governador
publicada na Clã n. 23 em 1967. Segundo a pesquisadora da revista, Vera Moraes, o pouco
destaque para produções de novelas no grupo deveu-se ao fato de que tal gênero era
considerado mais “uma atividade paralela e talvez secundária” (MORAES, 2004, p. 111) aos
escritores de Clã.
No teatro, merece atenção o trabalho realizado por Eduardo Campos na revista Clã,
desde seus primórdios, onde manteve uma seção dedicada a esse gênero, além de ter escrito
peças como O Morro de Ouro (1964) e A Rosa do Lagamar (1964) que retratam a situação
social das classes menos favorecidas; esta última mereceu a homenagem da Placa de Bronze
pelas 350 encenações no Theatro José de Alencar.
Eduardo Campos foi um dos que, no grupo, mais defendeu a idéia de que era preciso
apresentar a vida social nordestina, principalmente do homem que vive à mercê das variações
climáticas e suas batalhas diárias pela sobrevivência: nesse caso, o teatro seria um dos meios
mais adequados para essa representação, uma vez que o público vivencia os dramas junto
com os atores.
O elo entre o Grupo Clã e as artes plásticas pode ser observado pelo intercâmbio que
fazia com a Sociedade Cearense de Artes Plásticas, a SCAP, que tinha entre seus integrantes
os pintores Antônio Bandeira, Aldemir Martins, Barrica, Barbosa Leite, Mário Baratta, entre
outros. Interessante notar a atenção que a revista deu às produções de arte ao longo de toda a
sua existência, procurando promover artistas não só do Ceará como também de outros
Estados.
22
Dentre os pintores cearenses de maior prestígio estão Antônio Bandeira que levou a sua
obra à Paris e Aldemir Martins que, segundo Mário Baratta, seria “[...] talvez o único que por
sua autenticidade pudéssemos colocar ao lado de Portinari [...]”
17
Faziam parte do conselho de redação quase todos que participaram dos congressos,
com a respectiva ordem de entrada: a princípio Joaquim Alves, Stênio Lopes, Girão Barroso,
Mozart Soriano Aderaldo e João Clímaco Bezerra; a partir do número 6 da revista, o conselho
foi composto por Artur Eduardo Benevides, Moreira Campos, Eduardo Campos, Braga
.
Muitos foram os projetos que os integrantes do Grupo Clã conseguiram concretizar,
entre eles a Cooperativa Editora Clã Ltda., que passaria a se chamar posteriormente Edições
Clã, órgão responsável pela publicação dos livros de escritores cearenses e da sua divulgação
em todo o território nacional; o Salão de Abril, idealizado em 1943 por Girão Barroso, que
era uma analogia ao Salão de Maio de São Paulo e que promovia as artes plásticas; também
com o objetivo de reunir artistas plásticos cearenses, foi criada a SCAP (Sociedade Cearense
de Artes Plásticas), dirigida por colaboradores do Clã, além do Clube de Cinema, espaço
reservado para a discussão cinematografia, organizado também por Girão Barroso.
2.3. O CLÃ DA REVISTA CLÃ
A revista Clã surgiu como o meio de divulgação do Grupo Clã na imprensa, criada
em 1946 como resultado do I Congresso Cearense de Escritores, um ano após a realização do
evento. Teve como primeiro exemplar um fascículo experimental com a numeração 0 (zero),
sob a direção de João Clímaco Bezerra, Antônio Girão Barroso e Aluízio Medeiros. Porém a
revista parecia não alcançar êxito: o número 0 circulou apenas como uma experiência, sendo
suspensa sua tiragem durante todo o ano de 1947.
Em 1948, reorganizada sob a nova direção de Fran Martins e Aluízio Medeiros, foi
publicada a Clã n. 1; trazendo novos objetivos, procurava fazer jus à proposta dos que
haviam se reunido nos congressos de Poesia e Escritores: fazer a divulgação dos trabalhos
dos artistas cearenses e também de artistas de outros Estados, procurando abranger todas as
formas de arte, da poesia às artes plásticas, sem restrições.
17
BARATTA, Mário. Como deve ser visto o binômio C-Scap. Clã: Revista de Cultura. Fortaleza, n. 27, mar.
1981, p. 26.
23
Montenegro e Otacílio Colares; já no número 11, contou com a adesão de Lúcia Fernandes
Martins (única mulher a pertencer ao grupo), Antônio Martins Filho, Cláudio Martins, Durval
Aires, Pedro Paulo Montenegro e Mílton Dias. Note-se que Fran Martins ficaria no cargo de
diretor da revista durante todo o período de publicação do periódico, do número 1 ao número
29.
De certa forma, a mola propulsora para a criação de uma revista como Clã estava
diretamente associada ao momento histórico-político que atravessava o Brasil. O fim da
ditadura de Getúlio Vargas significava o fim do controle do livre pensamento, as portas da
expressão estavam reabertas e isso causou grande ebulição nas artes em geral e nas letras em
particular. Os novos intelectuais, aliados aos já consagrados, tomaram para si a missão de
reafirmação da cultura que estava abafada e caberia a eles a criação de meios nos quais a
cultura e a arte poderiam ser levadas à população. Note-se que a revista Clã, assim como
muitas outras que surgiram na época, se caracterizava pelo teor artístico e somente por este,
não fazendo em nenhum momento alusões às ideologias políticas, talvez devido ao fato de
muitos dos integrantes do Clã, profissionalmente, estarem ligados a cargos públicos; todavia
essa idéia é discutível, uma vez que apareceram na revista, em seus primeiros números,
sessões dedicadas à política, porém, acatando todas as corrente ideológicas de seus
participantes:
Entendida como a causa da sustentação e da durabilidade do grupo através dos
tempos, a ausência de uma marca ideológica era um distintivo que os membros de
Clã cuidaram em ostentar, configurando-se em uma limitada participação no embate
político daqueles que fizeram o Clã, empenhados que estavam em direcionarem-se
com vistas a uma compatibilização com a política dominante, realçada pelos laços
de comprometimentos através dos cargos que exerceram no âmbito público
municipal, estadual e federal.
(FARIAS, 2003, p. 79)
Desta forma, a revista se propôs, sobretudo, a publicar e divulgar os trabalhos de
artistas cearenses dentro e fora do Estado, com o fim de que a literatura local alcançasse lugar
de prestígio e reconhecimento nacional.
A primeira tiragem da revista o fascículo 0 foi confeccionada pela Cooperativa
Edições Clã Ltda., no ano de 1946; do número 1 (1948) até o 14 (1953) foi impressa pela
gráfica do Instituto do Ceará; a partir do número 15 (1957) foi editada pela Imprensa
Universitária da Universidade Federal do Ceará, que tinha como Reitor Antônio Martins
24
Filho, membro do grupo Clã. Os números 20 e 21 voltaram a ser editados pelo Instituto do
Ceará; do número 22 ao 29 a revista tornou a ser publicada pela Imprensa Universitária, com
exceção do número 28 publicado pela Secretaria de Cultura e Desporto do Ceará.
Fisicamente a revista apresenta as seguintes características: a capa branca com o título
em letras maiúsculas variando entre as cores azul, verde, preta e vermelha. Segundo a
constatação de Vera Moraes sobre a variação das cores: “[...] realmente, não existe constância
na cor do título, porém observamos que a cor azul indica sempre uma edição especial de
aniversário [...]. A cor preta representa uma homenagem póstuma [...]” (MORAES, 2004, p.
25), contudo, observa-se que o número 29, que apresenta uma homenagem póstuma a Mílton
Dias, não traz os caracteres em preto, mas em verde “[...] talvez pelo sentido que o grupo quis
conferir a esse fato: ‘Mílton não morreu’”. (MORAES, 2004, p. 25).
A revista trazia seções destinadas às artes em geral, em que os trabalhos eram
apresentados ou comentados, além de seções destinadas à crítica teatral, cinematográfica,
musical, etc.
Dentre as seções, podemos destacar “O Livro de Clã”, que é a mais importante da
revista, em que os trabalhos de escritores cearenses eram publicados e muitas vezes lançados
pela primeira vez. Outra seção também destinada à literatura é “No Mundo dos Livros”,
espaço reservado à crítica literária, privilegiando obras locais (“O Livro Cearense”),
nacionais (“O Livro Brasileiro”) e estrangeiras (“O Livro Estrangeiro”), comentadas pelos
intelectuais do grupo.
Outra seção de grande atuação na revista foi a “Vento Sul, Vento Norte”, de caráter
mais informativo: trazia notícias sobre o cenário artístico de forma geral, além de divulgação
das atividades ligadas à vida universitária cearense.
Assim, Clã era uma revista destinada a um público especial, caracterizado pelo
interesse nas artes e na vida artística, como intelectuais, universitários, acadêmicos, artistas,
escritores, músicos, etc. Com os objetivos a que se propunha, a revista acabou por colocar a
cidade de Fortaleza em uma posição de destaque no círculo intelectual do país, fazendo com
que a capital fosse reconhecida por sua grande produção artística e literária:
Clã cumpria a tarefa que, por um lado, consistia em divulgar os acontecimentos
culturais locais, e que, por outro lado, ao discorrer das matérias e, ao selecionar o
25
seu grupo de colaboradores e o conjunto de seus representantes nos diversos
Estados, inseria-se nos círculos intelectuais brasileiros mais desenvolvidos.
(FARIAS, 2003, p. 64)
Os representantes do Clã, nos diversos Estados brasileiros, eram: Martins d’Alvarez no
Rio de Janeiro, Domingos Carvalho da Silva em São Paulo, Mauro Mota em Pernambuco,
Wilson Rocha na Bahia, Bueno de Rivera em Minas Gerais, Aldo Morais no Amazonas,
Haroldo Maranhão no Pará, Bandeira Tribuzi no Maranhão, Veríssimo de Melo no Rio
Grande do Norte, Dalton Trevisan no Paraná.
Sobre a periodicidade da revista, podemos dizer que Clã teve algumas
descontinuidades de publicação. O primeiro número foi o 0, que circulou em dezembro de
1946, anunciando que a revista deveria ser trimestral; porém o número 1 só veio sair em
fevereiro de 1948. Daí, a revista passaria a ser bimestral, com o número 2 publicado em abril
do mesmo ano.
Os números 3, 4 e 5 saíram em junho, agosto e outubro, respectivamente; o número 6
saiu em dezembro. Estava então a revista em seu maior período de produção, com a
publicação de seis fascículos no ano de 1948.
Em 1949, o número 7 saiu dentro do prazo bimestral, no mês de fevereiro; contudo os
números 8 e 9 foram reunidos em um volume único publicado em junho. Daí houve uma
lacuna, sendo o número 10 publicado somente em julho de 1950.
No ano de 1951, houve a publicação de um único número, o 11, em dezembro daquele
ano; no ano seguinte, a revista passou a ser semestral com o número 12 publicado em
fevereiro e o 13 em dezembro. O número 14 foi publicado em dezembro de 1953.
Houve uma pausa de três anos entre os números 14 e 15, publicado em fevereiro de
1957; o número 16 só veio a circular em setembro de 1957. Depois, a periodicidade passou a
ser anual, com o número 17 publicado em julho de 1958; o 18 em maio de 1959 e o 19 em
maio do ano seguinte.
Com mais uma grande pausa quatro anos dessa vez a Clã número 20 surgiu em
outubro de 1964 e o número 21 em dezembro do ano seguinte. O número 22 saiu em julho de
1966; o número 23 em janeiro de 1967; o número 24, em dezembro de 1968.
26
Dois anos depois, foi publicado o número 25, em dezembro, e depois houve mais uma
pausa, saindo o número 26 somente em janeiro de 1980. O número 27 saiu em março de 1981
e, em dezembro de 1982, o número 28, quando então ocorreu a última lacuna de seis anos,
saindo o número 29, derradeiro de Clã, em dezembro de 1988.
As pausas entre as publicações são explicadas pelos próprios editores da revista, e se
devem ao fato de os colaboradores estarem, na maioria das vezes, dispersos devido às
diversificações de suas atividades profissionais, comprometendo a organização do periódico.
Contudo, a revista Clã não perdeu a qualidade, seguindo o compromisso a que se propôs no
início: divulgar a arte e a literatura cearenses, segundo o slogan que aparece sempre na 4ª.
capa: Clã uma revista do Ceará para o Brasil e para o mundo.
2.4. MOREIRA CAMPOS, O CONTISTA DO C
Dentre os nomes que compõem o quadro dos maiores contistas brasileiros está o de
Moreira Campos, que teve ativa participação na vida intelectual cearense, alcançando
reconhecimento nacional e internacional através de seus contos que hoje são indicados entre
os melhores da literatura moderna, constando em muitas antologias, sendo alguns deles
inclusive traduzidos para várias línguas. Como um dos membros fundadores do Grupo Clã,
colaborou diversas vezes na revista da agremiação, onde lançou em primeira mão alguns de
seus trabalhos, conseguindo assim, enorme prestígio por parte de um público que o aclamava
a cada novo conto publicado.
Nascido em 1914, na cidade de Senador Pompeu no interior do Estado do Ceará, José
Maria Moreira Campos mudou-se, ainda menino, com a família para Lavras da Mangabeira,
outra cidade interiorana cearense, onde passou toda a infância. Adolescente, partiu para a
capital onde concluiu o ensino médio e ingressou na Faculdade de Direito, findando o curso
em 1946. Em 1967, formou-se também em Letras pela Faculdade Católica de Filosofia do
Ceará.
Foi professor de diversos colégios de Fortaleza, mas fixou raízes na Universidade
Federal do Ceará, onde exerceu várias funções, dentre elas a de professor titular do curso de
Letras, P- Reitor de Graduação, Chefe de Departamento de Literatura e Decano do Centro
de Humanidades. Foi membro da Academia Cearense de Letras, ocupando a cadeira de
número 32; foi também da Academia Cearense da Língua Portuguesa; na Universidade
27
Federal do Ceará recebeu o título de Professor Emérito e ganhou a medalha do Mérito
Cultural; pela Secretaria de Cultura do Estado do Ceará recebeu a comenda Fernandes
Távora.
Casou-se com Maria José Alcides Campos, e com ela teve três filhos, entre eles a
escritora Natércia Campos, autora do romance A Casa.
Fazem parte de sua obra os livros: Vidas marginais (1949), Portas fechadas (1957), As
vozes do morto (1963), O puxador de terço (1969), Contos escolhidos (1971), Os doze
parafusos (1978), Contos (1978), 10 contos escolhidos (1981), A grande mosca no copo de
leite (1985), Dizem que os cães vêem coisas (1987), e a coletânea de poemas Momentos
(1976).
2.5. AS PUBLICAÇÕES NA REVISTA CLÃ
Moreira Campos deu sua colaboração ao longo de mais de quarenta anos em treze
números dos vinte e nove que compõem a coletânea da revista Clã, entre as quais: Clã n. 2,
com o conto “Náufragos”; Clã n. 5 com o conto “Suor e Lágrimas”; Clã n. 7, com o conto
“Lama e Folhas”; Clã n. 11, com o conto “Tem dono”; Clã n. 13, com a homenagem “O
companheiro morto”; Clã n. 14 com o conto “Portas fechadas”; Clã n. 16, com o conto “Por
cima dos Muros”; Clã n. 20, com “A última mentira” que é uma continuação do conto que
Lúcia Martins escrevera anteriormente na revista; Clã n. 23, com o artigo “Uma excelente
novela”; Clã n. 25 com o conto “Os doze parafusos”; Clã n. 26 com três contos; Clã n. 27,
com o conto “O cachorro” e um depoimento; Clã n. 28, em “Presença” e com outra edição do
conto “Lama e folhas” e Clã n. 29 com o depoimento “Milton não morreu”.
Pode-se dizer que o escritor publicou primeiro em revista, uma vez que seu livro de
estréia, Vidas Marginais, data de 1949, e a sua primeira colaboração para Clã se dá um ano
antes.
Usando temáticas modernistas, enfatizando elementos que remetam a um neo-realismo
e uma “crueza neo-naturalista” (AZEVEDO, 1976, P. 482), é possível observar nos contos de
Moreira Campos uma linguagem concisa, cujo jogo lingüístico é mais voltado para a
sugestão, porém sem deixar de lado a preocupação com o sentimento humano, a problemática
social além de, em alguns contos, jogar com o fantástico. Muitos críticos colocam o autor de
Portas Fechadas no rol dos contistas mais representativos do Brasil e não é por menos, uma
28
vez que há em seus contos uma estruturação lingüística e um trabalho com temáticas que
põem o leitor como um co-autor. Este fenômeno ocorre quando o leitor tem que imergir de tal
maneira no texto que é como um “bloco fragmentado” (MORAES, 2004, p. 99) a ponto
de ter que unificar cada parte desse “bloco” em sua mente e interpretá-lo à sua maneira.
O elenco de temas abordados nas narrativas é representado pelas situações cotidianas
que quase sempre aparecem como uma espécie de “fachada” que esconde a verdadeira
circunstância. O uso da linguagem é fundamental para se obter tal efeito, aliás, um dos mais
marcantes traços da narrativa moreiriana é a síntese. Para Lemos Monteiro (MONTEIRO,
1980, p. 15), a obra de Moreira Campos apresenta dois momentos, sendo o primeiro mais
impressionista, cuja narrativa é extensa e detalhista; e o segundo realista, no qual os períodos
são mais concisos:
[...] a formação de uma atitude realista, em termos de concepção literária, começou
em Moreira Campos com uma fase marcada por tendências impressionistas que se
transmudou num realismo mais sóbrio e de meias palavras.
Sobre a concisão cada vez mais presente na escritura moreiriana, afirma ainda:
Comparando-se os primeiros contos aos mais recentes, é flagrante uma mudança no
sentido da eliminação de todos os aspectos facilmente subentendidos, no sentido de
conseguir uma maior densidade narrativa, com uma pluralidade de aberturas
conotativas. Dessa forma os contos de Moreira Campos, em sua busca de definição,
cada vez mais perdem em extensão e ganham em verticalidade.
Aqui, entende-se por “verticalidade” a maneira como vão ocorrendo as relações
sintagmáticas e paradigmáticas ao longo do tempo nas produções do contista de Clã: como
bem explica Batista de Lima: “[...] a reta horizontal que representa o sintagma, tem em alguns
de seus pontos, a saída de uma reta vertical para representar o paradigma [...]” (LIMA, 1993,
p. 17-18), dessa forma, é possível observar que o contista inicialmente tinha preferência por
sintagmas plurioracionais, isto é, “[...] aquele sintagma que tem como determinado a oração
principal dentro de um período composto por subordinação [...]”, para depois ir aderindo ao
uso de sintagmas oracionais “[...] onde o determinado é o sujeito e o determinante o
predicado [...]”
18
18
CÂMARA JR., 1978 apud LIMA, 1993, p. 17.
ou simplesmente sintagmas nominais onde “[...] o período possui como
determinado o nome [...]”.
29
Para Sânzio de Azevedo, a concisão na escritura de Moreira Campos vai ocorrendo de
maneira tão crescente que alguns contos chegam a perder o próprio caráter de narração de um
acontecimento, que é tão peculiar a esse gênero:
Este último [referindo-se ao conto “As Corujas”] chega a contrariar a etimologia do
vocábulo conto, visto ser praticamente sem enredo, ou seja, um conto que
rigorosamente não pode ser contado, tal o aspecto rarefeito da fabulação, o que o
aproxima do poema, principalmente pela atmosfera simbolista de que se reveste.
19
19
AZEVEDO, Sânzio de. Moreira Campos e a arte do conto. In: GUTIÉRREZ, A.; MORAES, V. [org].
Tributo a Moreira Campos e Natércia Campos. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2007, p. 89.
De fato, é perceptível que o contista, ao longo de sua produção, teve a preocupação em
sintetizar cada vez mais os períodos, como uma tendência à concisão e ao tipo de narrativa
moderna, que veio a ser um dos principais traços de sua obra.
Batista de Lima afirma também serem os contos de Moreira Campos difíceis de
enquadrar-se em determinado tempo cronológico, uma vez que é possível observar em todos
os livros do autor traços tanto impressionistas quanto naturalistas e realistas:
Essa divisão [apontada por Lemos Monteiro] tem conotação bastante
generalizadora, visto que não inclui as manifestações neo-naturalistas na obra do
contista e não especifica o lócus, na obra, onde as mesmas são encontradas. [...]
todas elas existem ao mesmo tempo, mas sem uma programação para isso. Elas
surgem à vontade, em qualquer livro do autor. (LIMA, 1993, p. 3)
Certamente, numa análise mais detalhada dos contos, é possível verificar indícios das
tendências citadas por Batista de Lima em toda a obra de Moreira Campos. Todavia, como
bem indicou Lemos Monteiro há nos primeiros livros um forte apelo impressionista que vai
cedendo lugar, nos livros seguintes, a elementos realistas, mas sem que o impressionismo
deixe de se manifestar.
30
2.6. DO CLÃ AO PÚBLICO: ITINERÁRIO DOS CONTOS
20
1) “Náufragos”, “Suor e lágrimas” e “Lama e folhas” aparecem, respectivamente, nos
números 2, 5 e 7 da revista Clã, entre os anos de 1948 e 1949 e participam da
coletânea de contos do livro Vidas marginais publicado ainda em 1949.
Os contos que saíram na revista Clã foram posteriormente publicados nos livros que
compõem a obra de Moreira Campos. O percurso dos contos desde a publicação no periódico
até a primeira publicação nos respectivos livros é a seguinte:
2) “Tem dono” e “Portas fechadas” constam nos números 11 e 14 de Clã,
respectivamente, entre os anos de 1951 e 1953, sendo publicados ambos em Portas
fechadas, de 1957. “Portas fechadas” reaparece na coletânea Contos escolhidos, de
1971, com o novo título “Raimunda”.
3) Não há registros de publicações posteriores dos contos “Por cima dos muros” e “No
alto da duna”, que saíram nas revistas Clã número 16, em 1957 e Clã n. 26, em 1980,
respectivamente.
4) “Os doze parafusos” foi publicado na revista Clã número 25, em 1970 e consta nos
livros Contos escolhidos (1971), Os doze parafusos de 1978 e Dizem que os cães
vêem coisas de 1987.
5) “Nudez”, “No alto da duna” e “Os meninos”, aparecem em concomitância na revista
C número 26 em 1980, sendo publicados separadamente: “Os meninos” aparece nos
livros O puxador de terço de 1969, em 10 contos escolhidos de 1981 e em Dizem que
os cães vêem coisas de 1987; “Nudez” aparece no livro A grande mosca no copo de
leite de 1985.
6) “O cachorro” saiu na revista Clã número 27, em 1981, e depois foi publicado nos
livros A grande mosca no copo de leite de 1985 e Dizem que os cães vêem coisas de
1987.
7) Lama e folhas” foi publicado mais uma vez, já com modificações feitas pelo autor na
revista Clã número 28, em 1982, e essa nova versão participou da coletânea Contos
escolhidos de 1971 e da 2ª. edição de Dizem que os cães vêem coisas de 1993.
20
É importante salientar que foram levadas em consideração nesta pesquisa as variantes publicadas ainda em
vida do autor, sendo por ele revisadas e aprovadas.
31
Podem-se observar, pela constatação do itinerário dos contos publicados em revista e,
posteriormente em livro, as seguintes particularidades: 1) “Por cima dos muros” e “No alto da
duna”, publicados respectivamente na revista Clã n. 16, em 1957, Clã n. 26, em 1980, não
foram publicados posteriormente em livro; 2) “Os doze parafusos” saiu como conto inédito
em Contos escolhidos (1971), sete anos de aparecer no livro homônimo; 3) “Os meninos” e a
segunda versão de “Lama e folhas” foram publicados primeiro em livro.
32
3. CONTOS DE MOREIRA CAMPOS: UM OLHAR FLAGRANTE DA REALIDADE
Como citou Massaud Moisés, “[...] a técnica de estruturação do conto assemelha-se à
técnica fotográfica [...]” (MOISÉS, 2006, p. 52); em outras palavras, o que o crítico quis dizer
foi que a estrutura do conto, assim como a da fotografia, está centrada na busca de um ponto
de referência que chama a atenção em meio ao todo: enquanto o fotógrafo mira a lente para
um detalhe que lhe chamou atenção numa paisagem ou numa cena qualquer, assim o contista
fixa a narração num momento específico de determinado tempo e espaço.
Ainda comparando a técnica fotográfica com a técnica de produção do conto, ocorre,
não raramente, de uma foto apresentar alguns pontos que se sobressaem ao foco principal:
são os chamados flagrantes, que, muitas vezes, escapam sem querer à intenção do fotógrafo
ou são colocados propositalmente entremeados ao quadro central. É de se notar que tais
flagrantes podem prejudicar o resultado final da imagem, concorrendo com o foco principal;
porém, há situações em que vêm a enriquecê-lo, proporcionando uma harmonia entre ambos:
Uma imagem bem conseguida seria aquela em que os pormenores involuntários se
harmonizam com o âmago da cena, dando a impressão de uma paisagem que a olho
nu não perceberíamos, dispersos pelas minúcias que nos atraem ou desatentos às
várias que a retentiva do fotógrafo revela.
(MOISÉS, 2006, p. 52)
Assim o conto, tal como a fotografia, é organizado a partir de uma situação principal
ou núcleo, e ao redor deste circulam os detalhes ou situações adjuvantes que, ao todo,
compõem uma espécie de envoltório:
[...] o núcleo do conto é representado por uma situação dramaticamente carregada;
tudo o mais à volta funciona como satélite, elemento de contraste [...] o conto se
organiza como uma célula, com o núcleo e o tecido ao redor; o núcleo possui
densidade dramática, enquanto a massa circundante existe em função dele, para que
sua energia se expanda e sua tarefa se cumpra. (MOISÉS, 2006, p. 49)
O conto moderno, por apresentar como uma das características fundamentais a
“economia dos meios narrativos” (GOTLIB, 2006, p.35) o que confere seu caráter objetivo,
33
muitas vezes, deixa escapar ao leitor alguns pormenores que, via de regra, não fazem tanta
falta ao andamento da história; entretanto, se percebidos e harmonizados com o todo,
oferecem uma quantidade de informações que contribuem para veracidade do acontecimento
narrado. Veracidade que está relacionada com a verdade literária, característica que define o
cunho artístico de uma obra e o poder criativo do autor.
Um olhar flagrante da realidade é atributo dos contos de Moreira Campos, tanto por se
estenderem sobre fatos habituais da vida, individualizando-os no momento exato em que
acontecem, como, principalmente, por apresentarem detalhes que, às vezes, somente o leitor
mais atento é capaz de perceber, de flagrar.
3.1. ESQUEMA DO CONTO
O conto, como já citado na seção anterior, apresenta estruturação semelhante à
fotografia: é o instantâneo de um momento peculiar da vida. Contudo, como toda forma de
arte, o conto apresenta características próprias que o definem dentro desse gênero ou “fôrma
em prosa”
21
O que definitivamente vale em um conto é a situação que o autor deseja narrar, ela e
somente ela devem ser o foco da trama; logo, se um conto apresentar como unidade
dramática o choque de um pai diante da perda do filho, como ocorre em “Lama e folhas” de
. É constituído por uma única unidade dramática, ou seja, gira em torno de uma
única ação, entendendo ação como conflito, atrito, história ou enredo. Tal ação pode ser
externa, quando há deslocamento de tempo e espaço, ou interna, quando é descrita somente
no pensamento da personagem.
É importante que o conto apresente uma narrativa enxuta, isto é, que não haja excesso
dos detalhes que giram em torno da ação dramática; um conto que se demora em longas
descrições ou divagações pode perder o caráter de conto. Tais detalhes devem contribuir para
a indicação da unidade dramática; o contista deve saber dosar a necessidade dos pormenores:
“[...] cada palavra ou frase há de ter sua razão de ser na economia global da narrativa, a ponto
de, em tese, não poder substituí-la ou alterá-la se afetar o conjunto [...]” (MOISÉS, 2006, p.
41).
21
A designação “fôrma em prosa” é citada por Massaud Moisés, para designar o conto, a novela e o romance.
34
Moreira Campos, o foco deverá apontar tão somente para a cena fatal. Evidentemente em
torno do conflito principal giram outras histórias, inclusive a do próprio protagonista, o pai,
que retrocede no tempo e espaço para refazer toda sua trajetória de vida até o momento
fatídico, caracterizando a síntese dramática. Contudo, tal retrospectiva poderia muito bem ser
excluída do conto sem grande dano, não fosse pela maestria do contista, que insere alguns
“flagrantes” da realidade da personagem na síntese dramática, e estes, por sua vez,
contribuem para o enriquecimento da narrativa.
Assim, todas as ações que precedem ou sucedem ao ápice da trama são uma espécie de
preparação para o momento principal, não importando se a trama não seguir uma ordem
cronológica:
Os protagonistas abandonam o anonimato no momento privilegiado, de modo que o
tempo anterior funciona, quando muito, como germe ou preparativo daquele
instante em que o destino joga uma grande cartada. O tempo subseqüente se tinge
de equivalente coloração: o futuro é previsível ou fácil de vaticinar, seja porque
definido pela morte ou solução correspondente, seja porque os atos a praticar e os
gestos a descrever foram determinados por aquele hiato dramático, seja porque os
figurantes, depois disso, regressaram à primitiva obscuridade, não apresentando
suas vidas nada digno de registro.
(MOISÉS, 2006, p. 42)
Todas as características do conto estão diretamente ligadas à ação principal, ou unidade
de ação: o espaço, que geralmente é apresentado como um único cenário, o qual é, em sua
maior parte, um lugar restrito, como um quarto de dormir, um quintal ou uma rua; as
personagens quase nunca têm necessidade de deslocamento e, quando este é preciso, é
porque os espaços que não serão cenários do conflito principal servirão como indicadores da
unidade de ação. Tais espaços são denominados de espaços-sem-drama, uma vez que não
contêm a dramaticidade do momento principal da história.
É o caso ainda de “Lama e folhas” em que há deslocamento espacial do protagonista,
que trafega por vários cenários, como o escritório, as ruas da cidade, etc., contudo, todos
esses lugares são pontos que indicarão para o ápice da história, cujo cenário é a chácara da
família onde ocorre a tragédia do afogamento do filho mais novo.
Logo, pode-se afirmar que a unidade de espaço está contida na unidade de ação, uma
vez que esta retém toda a carga dramática do conflito, que, como já foi dito anteriormente,
constitui o núcleo do enredo. Todos os outros espaços serão compreendidos como unidades
35
sem drama, ou detalhes da trama, concluindo-se que “[...] no conto se processa a
determinação do espaço [...] na medida em que os demais lugares e momentos são vazios de
dramaticidade [...](MOISÉS, 2006, p. 44).
O tempo também retém uma unidade no conto: normalmente o conflito se dá em um
curto período que podem ser horas, dias e, raras vezes, meses; se a unidade de ação se
estender por períodos mais longos como anos, trata-se de síntese dramática (quando o
passado das personagens é relevante na história).
Em “Lama e folhas” ocorre claramente a ntese dramática, uma vez que o passado da
personagem principal é considerado importante para o decorrer da narrativa, mas todo esse
passado é apresentado de forma bem resumida: a trajetória do narrador-protagonista é
descrita em poucos parágrafos, que começam sem especificações de datas ou referências a
épocas precisas: “Foi por esse tempo que Marta me conheceu”, ou “Casamo-nos. De começo,
os velhos me olhavam com reserva”, ou mesmo “Depois tudo entrou em sossego
22
22
CAMPOS, Moreira. Lama e Folhas. In: Clã: Revista de Cultura. Fortaleza: Secretaria de Desportos e Cultura,
n. 28, dez. 1982, pp. 124-125.
.
Outra unidade indispensável para o conto é o tom, que está relacionada à impressão
causada no leitor: é através dessa unidade que o contista vai fornecendo os elementos
necessários para causar certos efeitos na narração, efeitos que podem determinar sentimentos
positivos ou negativos em relação às personagens e enredo, segundo a intenção do autor. É
importante atentar para o fato que a unidade de tom deve sempre tender para o propósito final
da história, ou seja, para a ação principal: “[...] compreende-se com mais segurança e nitidez
que no conto tudo há de convergir para a impressão única, quando nos lembramos de que ele
opera com a ação e não com os caracteres [...]” (MOISÉS, 2006, p. 45).
Apesar de o conto operar com a ação, é necessário frisar a importância literária dos
caracteres lingüísticos. A escolha das palavras certas, inseridas nos momentos adequados e
com a intensidade justa, contribuem para que o conto realmente expresse a vida através de
um olhar artístico: cabe ao autor ter a consciência do quanto pode dizer e com que
intensidade deve fazê-lo; um contista talentoso tem a capacidade de saber usar as palavras
para dirigir a história da maneira que achar mais conveniente, ciente, contudo, dos seus
limites, tal qual um fotógrafo, que focaliza um ponto determinado no espaço e ao mesmo
tempo é capaz de aproveitar todos os detalhes da paisagem circundante.
36
A amplificação do texto pode trazer prejuízo ao resultado final; contudo, existem
algumas técnicas de amplificação que são aceitáveis para o conto, são elas:
1) A digressão que provém dum alargamento narrativo ou dum intuito de, fixando
os olhos em ingredientes acessórios, distrair o leitor e adiar o clímax dramático; e 2)
a digressão resultante do empenho estilístico do narrador, ao dilatar o texto para
acréscimo de notações plásticas, descritivas, a fim de propiciar ao leitor a
contemplação de um momento de beleza verbal, não raro vibrante de estesia
poética. (MOISÉS, 2006, p. 46)
Ainda no conto “Lama e folhas”, observa-se exemplo do primeiro tipo de digressão,
quando o protagonista, momentos antes do ápice da história, divaga em seus próprios
pensamentos: “Hoje estou preocupado, aborreço-me. Há um negociante às portas da falência,
e o canalha me deve uma bolada. Comércio inseguro!”
23
Em artigo sobre Moreira Campos, tocando no ponto a respeito de seu talento como
ficcionista, declara Vera Moraes: “[...] consegue transmitir ao leitor a sensação de algo
, em seguida vem a constatação do
desaparecimento do filho e da descoberta da criança morta na piscina abandonada. Ora,
sabendo o contista que a história estava prestes a chegar ao seu ponto máximo, achou
conveniente distrair o leitor para outras questões, assim como o próprio protagonista estava
distraído e não percebeu a ausência do filho.
Dessa forma, dependendo da criatividade do contista e de seu trabalho com as palavras,
é possível criar um determinado efeito sobre o leitor; este vê na história um espelho da
própria vida, mas ao mesmo tempo está consciente de que aquele conflito só pôde ser
percebido porque apartado da realidade e imerso nas malhas da ficção.
3.2. RETRATOS DA REALIDADE
23
CAMPOS, Moreira. Lama e Folhas. In: Clã: Revista de Cultura. Fortaleza: Secretaria de Desportos e Cultura,
n. 28, dez. 1982, p. 129.
37
perspicazmente medido, a ponto de não se poder afirmar onde a ficção reside absoluta,
excluída de interferências de cenas reais [...]”
24
É sabido que a crítica literária vem se empenhando, ao longo do tempo, em
compreender a relação entre sociedade e obra e que houve momentos em que a primeira era
suficiente para explicar a segunda. Sabe-se também que à medida que os estudos na área da
literatura avançavam, o texto se sobressaía e o fator social ia sendo deixado de lado. Hoje se
entende que, para uma análise bem definida, é necessário fundir os fatores contextuais e
.
Moreira Campos, como mestre do conto que era, apresentava em suas histórias
verdadeiros retratos da vida real, histórias as quais o leitor é tragado com tal veemência, que
se torna quase um elemento do próprio conto. Mas, o que distingue a ficção do mero
documentário do cotidiano é propriamente a intensidade com que o contista insere na unidade
de ação (ou foco narrativo) alguns detalhes, que, como já foi observado, formam uma espécie
de película que envolve a trama principal.
Tais detalhes, nas histórias do contista cearense, podem passar despercebidos ou não,
dependendo da capacidade de atenção do leitor: quando retém o olhar aos pontos periféricos
da história, ou seja, aos detalhes, poderá enxergar muito além das entrelinhas. Nos contos de
Moreira Campos, há ocorrência de subsídios que instituem maior veracidade à narrativa:
geralmente são indícios da realidade em que vivemos e que muitas vezes deixamos de notar,
daí que o leitor mais perspicaz poderá identificá-los como “flagras” da vida real que o autor
mescla tão bem à ficção, permanecendo quase imperceptíveis:
[...] Moreira Campos sempre se norteou no sentido de uma observação acurada da
realidade, com a preocupação de interpretar o mundo fenomenológico sob os
ângulos adotados pela estética realista. De fato, em qualquer de suas obras, percebe-
se que a natureza e o homem, elementos constitutivos da realidade, estão
intimamente associados num todo orgânico, como se estivessem sujeitos aos
mesmos princípios, leis e afinidades. Há uma preocupação com a verdade, não
apenas verossímil, mas exata. (MONTEIRO, 1980, p. 28)
Essa verdade exataestá na composição das personagens, no tipo de linguagem usada
por elas, no meio em que estão inseridas e na interação social.
24
MORAES, Vera. Moreira Campos: contista da revista Clã. In: GUTÉRREZ, A.; MORAES, V. [org.]. Tributo
a Moreira Campos e Natércia Campos. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2007, p. 83.
38
textuais, levando em consideração que tanto uns quanto outros constituem elementos
estéticos que fazem parte de um todo indissociável:
[...] a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões (sociológica e
textual) dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa
interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que
explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a
estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários
do processo interpretativo. (CANDIDO, 2006c, p. 13-14)
Dessa forma, é possível inserir os fatores sociais que antes eram tomados apenas
como elementos que conduziam a criação artística dentro dos agentes da própria estrutura
do texto, participando dos fatores estéticos.
Os fatos sociais então irão servir não somente para situar a obra numa determinada
época ou lugar, mas darão subsídios necessários para a formulação do texto como obra de
arte:
Na verdade, o que interessa é saber qual a função exercida pela realidade social
historicamente localizada para constituir a estrutura da obra, isto é, um fenômeno
que se poderia chamar de formalização ou redução estrutural dos dados externos.
[...] A força de convicção do livro depende pois de certos pressupostos de fatura,
que ordenam a camada superficial dos dados. Estes precisam ser encarados como
elementos de composição, não como informes proporcionados pelo autor [...]
(CANDIDO, 2004c, p. 29)
Usando como exemplo os contos de Moreira Campos que retratam as relações de
trabalho entre agregados e patrões no meio rural, entende-se que este tipo de inserção social
na história está diretamente relacionado à composição estética do conto: influi nas
caracterizações dos diálogos, na própria caracterização das personalidades, etc. A análise que
queira levar em conta tais fatores sociais deverá inseri-los à própria composição estética dos
contos: desta forma pode-se chegar “[...] a uma interpretação estética que assimilou a
dimensão social como fator de arte [...]” (CANDIDO, 2006c, p. 17).
39
Logo, para que haja uma crítica integral, é preciso tomar o elemento desejado, seja de
cunho social, psicológico ou lingüístico, como parte do todo, e não como elemento principal
na análise, cabendo ao crítico tal escolha:
[...] devemos lembrar que além do conhecimento por assim dizer latente, que
provém da organização das emoções e da visão do mundo, há na literatura níveis de
conhecimento intencional, isto é, planejados pelo autor e conscientemente
assimilados pelo receptor. Estes níveis são os que chamam imediatamente a atenção
e é neles que o autor injeta as suas intenções de propaganda, ideologia, crença,
revolta, adesão, etc. [...] E é aí que se situa a literatura social, na qual pensamos
quase exclusivamente quando se trata de uma realidade tão política e humanitária
quanto a dos direitos humanos, que partem de uma análise do universo social e
procuram retificar as sua iniqüidades. (CANDIDO, 2004c, p. 180, grifo do autor)
O estudo de obras literárias sob a perspectiva da sociologia vem sendo cada vez mais
utilizado nas últimas décadas. Considera-se importante a percepção da literatura como um
reflexo das trocas entre o meio social e o indivíduo, no caso, o autor:
A obra literária é uma forma de manifestação artística condutora de diversos
aspectos sociais da realidade que visa retratar. Para que ela exista e seja dotada de
certa função, é necessário que haja uma troca de valores entre o autor e seu público.
Nesse sentido, os ritos, heróis, conflitos e enredos advindos das peças literárias
cumprem uma função social: cria um espaço de interação de valores sócio-
históricos entre os sujeitos aí envolvidos (autor e leitor); a literatura só existe nesse
intercâmbio social.
25
Na literatura brasileira, desde o século XIX, é possível observar uma preocupação dos
autores em representar, através da palavra escrita, a sociedade da qual faziam parte:
A inteligência tomou finalmente consciência da presença das massas como
elemento construtivo da sociedade; isto, não apenas pelo desenvolvimento de
sugestões de ordem sociológica, folclórica, literária, mas sobretudo porque as novas
condições da vida política e econômica pressupunham cada vez mais o advento das
camadas populares. (CANDIDO, 2006c, p. 142)
25
SANTOS, Dennis de Oliveira. Sociologia da literatura. Revista Urutágua - Revista Acadêmica
Multidisciplinar. (DCE - UEM). Maringá, no. 14 - dez. 07/ jan. / fev. / mar. 2008. Disponível em: <http:
//www.urutagua.uem.br/014/14santos_dennis.htm> Acesso: 02 de dez. 2008, 15:01.
40
Anos mais tarde, já na década de 1930, autores retrataram, em suas obras, a vida e o
cotidiano de uma sociedade que sofria com o impacto do crescimento industrial em
depauperação das grandes propriedades rurais, o que condicionou o processo de migração da
população do campo para os centros urbanos, acarretando um aglomerado de famílias sem
perspectiva de vida, que se constituiu em uma camada subalterna, vivendo às margens de
“[...] um regime político autoritário e uma ordem social moralista e limitada [...]”
26
Em Moreira Campos, como já foi dito, percebe-se uma tentativa, embora muitas vezes
sutil, de retratar uma sociedade ignorada pelo olhar conformado dos que detêm o poder. Essa
sociedade é representada através de personagens que, algumas vezes são imperceptíveis ao
.
A miséria se tornava cada vez mais evidente e os escritores a retratavam em suas obras,
dando relevo à figura do pobre:
Saindo das regiões afastadas e dos interstícios da sociedade, a miséria se instalou
nos palcos da civilização e foi se tornando cada vez mais odiosa, à medida que se
percebia que ela era o quinhão injustamente imposto aos verdadeiros produtores da
riqueza, os operários, aos quais foi preciso um século de lutas para verem
reconhecidos os direitos mais elementares. [...] Assim, o pobre entra de fato e de
vez na literatura como tema importante, tratado com dignidade, não mais como
delinqüente, personagem cômico ou pitoresco. (CANDIDO, 2004c, p. 182)
A voz do oprimido nunca tinha ganhado tanta eloqüência: mesmo quando caracterizada
pelo silêncio em algumas histórias quase não há diálogo entre as personagens havia uma
preocupação dos autores em chamar a atenção para as causas do homem simples, do
empregado, do marginal, do flagelado:
A literatura brasileira sempre teve uma faceta marcadamente reivindicatória, ora
dentro dos limites agressivos da sátira social [...] ora dentro do nível superficial das
acusações morais de problemas da nação. [...] A desvantagem constante dos pobres
frente à justiça e à igualdade de tratamento diante da lei também apresentam uma
feição claramente socialista, constatando o autor o papel de espoliador em todo
aquele que consome sem produzir. (BRAYNER, 1979, p. 46-47)
26
ZILBERMAN, Regina. O espelho da literatura. Marginahlia, v. 2, p. 48-58, 2007. Disponível em: <
http://www.fajesu.edu.br/fajesu/pdf/marginahlia_n_02.pdf> Acesso: 23 de mar. 2009, 10:18.
41
olhar atento do leitor, outras vezes estão bem nítidas, mas ainda assim, é preciso ler nas
entrelinhas para se chegar ao verdadeiro cerne de seus conflitos.
3.2.1. Retratos Rurais
Em um ensaio sobre Vidas secas, de Graciliano Ramos, comentou Antonio Candido, a
respeito da visão social do autor:
A poderosa visão social de Graciliano Ramos neste livro, [...] depende do fato de ter
sabido criar em todos os níveis, desde o pormenor do discurso até o desenho geral
da composição, os modos literários de mostrar a visão dramática de um mundo
opressivo. (CANDIDO, 2006b, p. 151)
Assim também essa “visão dramática de um mundo opressivo” é apresentada por
Moreira Campos nos contos de temática rural, nos quais uma das figuras mais freqüentes é o
homem que vive no sertão nordestino: lavrador que, massacrado pela intempestividade do
clima, carrega o fardo de uma existência subumana, humilhando-se aos poderosos em busca
de obter o mínimo necessário para a sobrevivência de sua família.
É o sertanejo, representado em situações que fazem parte dos diversos contextos aos
quais está exposto: o contexto do flagelado retirante, que, sem nenhuma perspectiva de vida,
se entrega à própria sorte; o do agregado que vive sem esperanças, inconformado,
trabalhando em terras que não são suas; ou até mesmo o do sertanejo que vive na
simplicidade de seu dia-a-dia, lidando com os casos corriqueiros do cotidiano, aceitando as
mazelas do próprio destino com resignação.
O conto “Náufragos”, publicado em 1948, na revista Clã número 2, talvez seja um dos
retratos mais contundentes da realidade do pobre nordestino. A unidade dramática apresenta a
saga de uma família de sertanejos que se viu desabrigada devido a uma enchente que fez o rio
Salgado aumentar o nível das águas, inundando a cidade ribeirinha.
Aqui, o autor fugiu à regra geral e, em vez de colocar como catástrofe natural a seca,
pôs a chuva e o inverno como o motivo para a retirada da família de sua terra. O conto inicia-
42
se com uma descrição do lugar arrasado pela calamidade: a começar pelo título, cujo
significado pode ser entendido como “[...] indivíduo que naufragou; indivíduo infeliz ou
decadente [...]
27
Em alguns pontos, há certos “parênteses” abertos pelo próprio narrador, a fim de
despertar reflexão acerca da situação deprimente dos que perderam tudo: “[...] Pensa na
tragédia dos que se abrigaram sob aquele teto: uma história anônima e triste, com meninos
barrigudos e mulheres sem sangue [...]”
. Nesse caso, as duas designações são pertinentes, uma vez que a família
encontrava-se desabrigada por conta da casa que submergiu nas águas.
É interessante notar a presença da objetividade narrativa, sobretudo na descrição dos
espaços: é como se o narrador fotografasse, quadro a quadro, o ambiente ao seu redor: “[...] a
ação se estrutura em vários momentos, facilmente destacáveis [...]” (MONTEIRO, 1980, p.
64). Contudo, tal construção pode ter sido proposital, uma vez que a junção desses quadros
busca sugerir “[...] um mundo que não se compreende e se capta apenas por manifestações
isoladas [...]” (CANDIDO, 2006b, p. 121).
28
.
O narrador tenta chamar a atenção do leitor para as conseqüências da tragédia na vida
de cada homem, mulher e criança daquele lugarejo, usando para isso, recursos muitos sutis,
que, em uma análise mais atenta, podem ser observados entremeados com a objetividade
narrativa: o uso de certas seqüências como “história anônima e triste”, “angústia que cresce
na alma dos homens” (Na
27
FERREIRA, Aurelio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurelio versão 5.0 edição revista e atualizada:
Dicionário eletrônico. Curitiba: Positivo, 2006, Cd-rom, Microsoft Windows 98, 2000 ou XP com internet
explorer.
28
CAMPOS, Moreira. “Náufragos”. In: Clã: Revista de Cultura. Fortaleza: Instituto do Ceará, n. 2, abr. 1948, p.
55. Convencionamos as abreviaturas seguintes, seguidas do número da página, para aludirem, daqui por diante,
aos contos referidos no corpo do texto: Na
, “Náufragos”; Sl, “Suor e lágrimas”; Lf, “Lama e folhas”; Td, “Tem
dono”; Pf
, “Portas fechadas”; Pcm, “Por cima dos muros”; Dp, “Os doze parafusos”; Nu, “Nudez”; Me, “Os
meninos”; Ca
“O cachorro”; Lf2 “Lama e folhas” 2ª. versão.
, p. 55), etc., causam um efeito de piedade pelas vítimas da
calamidade, levando a uma certa subjetivação narrativa.
E a seqüência de quadros continua: após a apresentação do cenário devastado, há uma
quebra cronológica que transporta o foco narrativo para os dias que antecederam à tragédia,
com a descrição da cidade em épocas de início de inverno e do estado de expectativa geral a
respeito da cheia do rio Salgado:
Um velho comenta:
43
- Este ano ele bota na praça da Matriz.
Uma mulher zarolha concorda:
- Ora, se bota!
Um sujeito ao lado, quer contrariar o velho:
- Na praça da Matriz? Bota um diabo!
A mulher toma o partido do velho:
- Bota! Nem há dúvida. Em 24 ele botou, que o inverno foi mais fraco, quanto mais
este ano. (
Na
, p. 55)
Há expectativa também entre as crianças, nos “moleques”, acostumados a brincar nas
águas cheias do rio, e se este transbordasse, melhor ainda, que o passeio de canoa pelas ruas
alagadas estaria garantido, prazer que não caberia aos “meninos brancos”, que “olhavam os
moleques com inveja” (Na
O próximo quadro enfocará agora o núcleo protagonista: Bento e sua família:
, p. 56), pois as águas empoçadas nas ruas imundas, certamente
trariam doenças, fato desconhecido aos “moleques”, cujas mães não eram instruídas o
bastante para proibir os filhos de banhar-se nas poças.
Bento mora a uma légua acima da cidade. É agregado do seuMelquíades, que possui
terras às margens do Salgado. Aluga os seus braços a oito cruzeiros por dia. Em casa, ele,
Raimunda e dois filhos.” (Na
O parágrafo abre a descrição da família do agricultor Bento e de princípio, o narrador
dá indícios da pobreza do protagonista: não possui propriedade, é “agregado” como tantos
outros agricultores desprovidos de bens, cuja única maneira de ganhar a vida dignamente é
“alugando os braços” para os donos-de-terra, como “seu” Melquíades.
, p. 56).
Note-se um apelo sutil à condição de muitos homens do campo: o autor usa sentenças
que têm um efeito subjetivo, como “aluga seus braços”, no que alugar não está ligado às
relações de trabalho humano; e o tratamento de “seu”, que é colocado à frente dos nomes
próprios de pessoas que, geralmente, apresentam melhores condições econômicas.
O narrador, usando tal tratamento, transporta-se para o ponto de vista de Bento, e a
partir de então, a história é narrada sob essa perspectiva. À medida que a trama se
desenvolve, o leitor é cada vez mais tragado para o universo da família protagonista, sendo
possível captar todos os efeitos dos ambientes e das situações pela visão de Bento:
44
Esperava que o inverno parasse por uns dez dias. Ao contrário, a cheia aumentava,
e, a continuar assim, estaria de novo na miséria, jogado aí por esse mundo de meu
Deus, sem ganho certo, dormindo de baixo dos pés de pau. Era homem vivido,
estava com cinqüenta anos. Vira muitas secas, anos escassos de chuva, gente se
arrastando em molambos pelas estradas, sob um sol de fogo, barriga vazia. Os
urubus levantavam nuvens escuras no céu cinzento. E os homens caíam em cima
dos bichos mortos e devoravam os restos da carniça. Perseguiam lagartos no
tabuleiro seco. Mães que vendiam as filhas por uma porqueira de dinheiro, porque
já estavam no fim, sem força no corpo e sem vontade na alma. Velho de respeito,
dono de terra que possuíra gado, pedia esmola.
(Na
, p. 56)
No parágrafo transcrito, há a síntese dramática, em que a narrativa converge para o
passado do protagonista: Bento era “homem vivido”, em sua existência já havia sofrido
muitos tormentos causados pela falta de trabalho, falta de moradia, falta de alimento, enfim,
morando numa terra suscetível aos desígnios do clima – ou seca ou cheia – estava, junto à sua
família, à mercê da própria sorte. E Bento enxergava a miséria ao seu redor, um quadro
lastimável, em que todos participavam do mesmo destino, e só poucos se salvavam; aqui o
autor relacionou o homem à paisagem “[...] estabelecendo entre ambos um vínculo poderoso
que é a própria lei da vida naquela região. (CANDIDO, 2006b, p. 122).
Com a fome, a dignidade se perde e as regras sociais são extrapoladas: “O indivíduo
com fome se atreve a tudo. Só não fez roubar, porque não houve ocasião. Mas pedir, pediu
[...]” (Na
Em épocas de dificuldade, as relações de trabalho convergiam sempre em prol dos mais
ricos, que “alugavam braços”, no sistema de “meias”, ou seja, os “meeiros” entravam com a
mão-de-obra, plantando na terra dos fazendeiros que dividiam assim a colheita em partes que
deveriam ser “proporcionais”, mas muitas vezes, eram injustas. O pobre sempre saía
perdendo; e foi assim com Bento e sua família: um dia, cansados de tanta injustiça,
resolveram partir: “Uma manhã juntou os cacarecos e largou-se para o sul do Estado. [...]
Gente pobre em terra pobre é assim mesmo: sem paradeiro, furando mundo, alpercata nas
estradas, o poeirão atrás, cachorro magro farejando lagartixa.” (
, p. 56).
Na
Nesse ponto, fecha-se a síntese dramática e a narrativa continua sempre sob a
perspectiva de Bento que, comparando sua fuga da seca à fuga da cheia, confere a culpa da
triste sina à própria terra: “[...] nunca lhe passara pela cabeça que o inverno um dia lhe viesse
fazer mal, ati-lo de novo à miséria. Terra doida!” (
, p. 57).
Na, p. 57). No seu entendimento de
homem do campo via que o rico nunca sofria com seca ou cheia e, no fundo, sabia que sua
miséria não era culpa só da “terra”.
45
Já aqui, os outros membros da família são apresentados: o filho mais velho, Sebastião,
“Um caboclo forte. Completara vinte e dois anos.” (Na, p. 57); o filho mais novo Aniceto e
Raimunda, a mulher. Ela, contrariando a postura da maioria das mulheres da época não
opinar nas decisões do marido tinha voz ativa na relação; partiam sempre dela os juízos
mais pertinentes: quando constatou que a família corria risco, foi ela quem falou ao marido
sobre a idéia de sair da casa: “- O melhor é a gente sair logo daqui. A cidade se enche de
pedinte. Arranjar um canto.” (Na, p. 57), e tinha razão, logo o rio Salgado transbordou, e a
cidade abarrotou-se de flagelados que mendigavam pelas ruas alagadas. O socorro chegava a
poucos privilegiados: “Os brancos abrigavam os brancos, nas casas que restavam. Os pobres
dormiam ao relento [...]” (Na
Além da falta de moradia e alimento, Bento ainda era acometido de males físicos: “A
hérnia de Bento maltratava-o.” (
, p. 57).
Na, p. 58), o que o impedia de trabalhar. O pouco ganho da
família provinha do filho mais velho, que trabalhava para os donos-de-terra. Raimunda,
desprovida de outros recursos, ensinava o filho mais novo a pedir esmola fato que, também se
constituía em um trabalho, como explicava ao marido: “Qualquer trabalho pra pobre é direito.
Tanto faz ele se empregar numa casa, ser moleque de cozinha, menino de recado, como pedir.
Tudo dá no mesmo. A gente não pode é morrer de fome.” (Na
Nesse ponto da história, a família já está abrigada na estação ferroviária, como tantos
outros à espera do trem para a capital. Aqui, um flagra: na calada da noite, Bento, acordado,
presenciou o ato sexual, quase animalesco, entre um negro e uma cabocla; o tom da narrativa
tende para o grotesco em que o homem, naquelas condições se embrutecia e passava a agir
como animal: “o negro se arrastava”, “o homem escorregou” (
, p. 58).
Na
Já na capital, como era de se esperar, a família não teve muita sorte: Bento não
arrumava trabalho devido à doença que cada vez tornava-se mais severa; Raimunda ensinava
o filho mais novo a pedir esmola como único ganho.
, p. 58).
Sebastião resolveu ir para São Paulo tentar a vida e lá começou a tomar consciência das
causas trabalhistas: “O filho andava com umas idéias novas. Operários. Exploração dos
patrões [...]”; Bento não entendia, e associava tais idéias ao discurso que ouvira na missa,
ainda no sertão: “Sempre que o rapaz falava nessas coisas, ele se recordava do padre
Sobreira, no interior. Na missa, o padre dizia que aquela era a lei de Satanaz, idéias de anti-
Cristo.” (Na, p. 59). Aqui, uma possível crítica à igreja que se aproveitava da condição
46
miserável dos pobres e usava o sofrimento deles como uma ferramenta de manipulação:
quanto mais sofrimento, mais santo se tornará.
O último quadro é a constatação da invalidez total de Bento: Raimunda então
trabalhava em uma casa de família; o filho mais novo pedia esmolas e complementava a
renda familiar enquanto Bento, que fora homem acostumado ao trabalho na terra, permanecia
abandonado com sua hérnia.
Todos os direitos lhe foram tirados, inclusive o da companhia da mulher que passara a
dormir no emprego; ao final, Bento fez uma constatação: “Trabalhara como um burro, para
no fim ficar no abandono [...]” (Na
Talvez, a idéia que se queira transmitir seja a da última chance, da única forma de
escapar da sina infeliz por que passava e ainda passa a maioria dos sertanejos pobres: tentar a
vida no sul, onde o trabalho é garantido. Contudo, somente os mais fortes podem ter chance
de progresso, progresso mínimo, mas ainda assim maior que encontrariam na terra natal. Aos
mais fracos cabe a conformação do estado de abandono e, dessa maneira, vão vagando pela
vida, como figuras invisíveis, sem identidade.
, p. 59). E assim, à noite, vagava em sonhos estranhos, nos
quais via a família se afogar na enchente, sendo Sebastião, o filho mais velho que fora
embora para São Paulo, o único a se salvar.
Já no conto “Tem dono”, publicado na Clã número 11, em 1951, o sertanejo vem
representado através da personagem Néu, agricultor pobre, que vive com sua família no
sertão. A narrativa gira em torno do dilema vivido por ele, entre devolver ou não uma carteira
que encontrara, contendo uma boa quantia em dinheiro, para o dono que é seu conhecido.
Assim como o conto anteriormente analisado, aqui a narrativa também é construída a
partir de quadros sucessivos, que se desenvolvem progressivamente acompanhando o enredo.
O conto abre com a personagem Janjão, constatando que perdera sua carteira e com a
tentativa frustrada de recuperá-la. Fecha-se o primeiro quadro para que o segundo seja
apresentado: Néu encontra uma carteira perdida na estrada. Logo de início, o narrador
registra as reações do protagonista, que por não ser completamente apresentado ao leitor,
deixa algumas impressões duvidosas quanto a seu caráter: “Relanceou a vista em volta e
apanhou a carteira. Meteu-se pelo mato e, debaixo da moita, os dedos trêmulos, contou o
dinheiro: 3.600!” (Td, p. 72). Em seguida, o narrador apresenta o primeiro indício da
condição do protagonista: “Documentos, que não sabia ler.” (Td, p. 72). Logo mais as
47
reações ao identificar o dono da carteira e que aquele era seu conhecido: “- É d. Nenen de seu
Janjão... A descoberta o contrariou [...] as idéias ainda estavam em tumulto.” (Td
A partir do momento em que achara a carteira, Néu viu-se envolto em pensamentos
tormentosos: “As idéias ainda estavam em tumulto. Não conseguiam lugar na cachola. [...]
Pensou no pedaço de terra de seu Rufino, pertinho de casa. O outro tinha propósito de venda
por quatro mil cruzeiros.” (
, p. 72).
Td, p. 72). Já a primeira impressão a respeito do caráter vai-se
esvaindo aos poucos, à medida que alguns traços de sua personalidade são evidenciados,
como acontece no diálogo em que Seu Rufino se refere a Néu como homem disposto ao
trabalho: “- Palavra, queria entregar isso [as terras a serem vendidas] a quem tem disposição.”
(Td
No quadro seguinte, a possibilidade de ser dono de sua própria terra trazia inquietude
aos pensamentos do protagonista; nesse momento, é apresentada a mulher de Néu, Sinha
Nazaré, que, ao ouvir a intenção do marido sobre a possibilidade de compra daquelas terras,
teve uma atitude já esperada: “Sinha Nazaré não se alterou. A novidade exigia muito. Os
olhos não viram possibilidades e continuaram presos às brasas da trempe” (
, p. 73).
Td, p. 73). A
mulher sabia que o marido não tinha condições de adquirir as terras, a realidade a fazia
sensata, porém, algum lampejo de esperança luziu em seus pensamentos, que a fez transmitir
sua opinião: “A terra tem valimento...” (Td, p. 73), a resposta solidificava ainda mais a
possibilidade daquele sonho: “Esses sonhos frouxos, perdidos no vago, agora tomavam jeito,
tornavam-se sólidos.” (Td
Néu esboçava a proposta de compra: sonhava já com “[...] o milho taludo, o arroz no
pendão [...]” (
, p. 73).
Td, p. 73) e no trabalho que faria em uma terra da qual seria dono. Também
pensava em agradar à mulher comprando para ela “[...] o pano de chita, uns coturnos de salto
baixo [...]” (Td, p. 74), sem esquecer as “chinelas para o menino” e do “dólmã de mescla”
(Td
De vez em quando, entre um pensamento e outro, lembrava-se do retrato na carteira,
indicando o verdadeiro dono daquele dinheiro, mas isso não o impediu que fosse à feira e em
meio às mercadorias, desejasse comprar o que nunca tivera condições: “[...] talvez comprasse
uma arroba de farinha, uma seis rapaduras... e um pente daqueles compridos de três dentes,
com pedra de brilho, para o cabelo de Sinha Nazaré. Talvez.” (
, p. 74) que ele próprio usaria na festa do padroeiro da cidade.
Td, p. 74).
48
Essas e outras compras pensou em fazer ali na feira, afinal, estava com a quantia achada
na carteira de seu Janjão bem ali, no bolso. Porém, sempre que ia fazer alguma oferta,
desistia. Algo o prendia à realidade, enfim, nada o impedia de usar o dinheiro achado. Mas
não usava. Em meio ao dilema, quase instintivamente, deparou-se diante da casa de seu
Janjão; apressou o passo para fazer meia volta, mas no caminho encontrou o próprio dono da
carteira e, sem ser percebido, resolveu acompanhá-lo para ver aonde ia. Seu Janjão entrou na
irradiadora, certamente para anunciar sobre a perda da quantia.
Néu, num gesto automático, entrou e devolveu todo dinheiro. Diante da surpresa de
todos – não podiam conceber um ato como aquele Néu foi recompensado com uma
pequena quantia e o reconhecimento da honestidade: “- Você merecia mais, Néu. Merecia. É
um sujeito às direitas [...]” (Td, p. 75). Aqui fica bem salientado o intuito do autor em mostrar
as impressões dos homens que estavam no recinto: “o encaravam com pasmo”, “Um sujeito
caraolho fitava-o [...] não seria capaz do sacrifício e intrigava-se [...]” (Td
Na volta para casa, Néu voltava também para sua realidade: “Fez a feira de praxe, sem
excessos [...]” (
, p. 75). Pelas
reações citadas, pode-se perceber que Néu transgredira uma regra óbvia: a maioria não
devolveria o dinheiro, principalmente se estivesse nas condições do pobre agricultor.
Td, p. 75), e procurava conformar-se com o sonho perdido: “-Não era meu, e
pronto! Que quer?” (Td
Já em casa, resolve contar todo o caso para a mulher e o filho que ficam pasmos e
“murchos” com a história e, a um comentário de sinhá Nazaré sobre as terras que visavam
comprar, Néu extravasou sua revolta: “- o era meu, e pronto! Tem dono. Tudo no mundo
tem dono. Magote de ladrão!” (
, p. 75).
Td
Néu era agricultor, trabalhava dia após dia, contudo, não possuía nada. Refletia sobre o
episódio que vivera e revoltava-se com o desfecho: apesar de sua honestidade continuava na
mesma situação, não podia sequer experimentar um pouco da sensação de ser possuidor de
sua própria terra, pois esta já tinha dono:
, p. 76).
O pedaço de terra de seu Rufino, a cerca de sabiá, com seis fios de arame, perdiam
os seus préstimos. Agora, a cerca sugeria limites, não permitia intrusão. Aqui
ninguém entra! Se tentasse, deixaria tiras de carne nas farpas. Todas as coisas
tinham donos. A terra pertencia a seu Rufino, a carteira perdida, a Janjão. [...]
Respeitar o que é dos outros. Ouvira isso desde menino. (
Td
, p. 76)
49
Tudo tinha dono, concluiu Néu, a ele não restava mais nada, nem mesmo os sonhos. A
vida deveria seguir como tinha de ser e ele tinha de acostumar-se, pois aprendera desde cedo
que deveria respeitar o que é dos outros, mesmo se aqueles não fossem merecedores do que
possuíam.
As perspectivas de melhoria de vida estavam, para o agricultor, definitivamente
perdidas, uma vez que chegara à conclusão de que não possuía bens, por isso deveria baixar a
cabeça e conformar-se com sua condição inferior, pois “[...] o sentimento de propriedade,
mais do simples instinto de posse, é uma disposição total do espírito, uma atitude geral diante
das coisas.” (CANDIDO, 2006b, p. 39).
Um conto em que a realidade do viver no sertão é flagrada em sua forma mais
corriqueira é “Portas fechadas”, publicado na Clã número 14, em 1953. O foco narrativo está
voltado desta vez para uma personagem feminina, Raimunda, e seu infortúnio de haver sido
picada por uma cobra venenosa, vivendo a partir daí momentos de extrema agonia.
Diferindo dos contos anteriormente analisados, aqui o enredo se desenvolve não por um
conjunto de quadros, mas por uma única seqüência narrativa na qual as ações se sucedem
gradualmente. O conto abre com a apresentação da protagonista e sua descrição: “torso
moreno roliço”, “cabelos longos e fortes”, “coxas grossas, de carnes bem socadas” (Pf, p. 5).
Logo no início é percebida a mocidade e beleza rústica da jovem sertaneja, assim como são
também observados indícios de sua condição social: “Meteu pela cabeça o vestido fino e
puído [...] juntou uns panos que andara batendo, tateou o pedaço de sabão junto da pedra [...]
e rumou para a barraca de palha”. (Pf
Apesar de toda a precariedade, Raimunda parecia satisfeita com a vida que tinha:
“Raimunda amava a vida porque ainda a tirava dessas coisas simples.” (
, p. 5).
Pf
Na volta para casa acontece o episódio que desencadeará toda a história: pisou sem
querer em uma cobra e foi picada. Pelo contexto em que está inserida a personagem, sua
primeira reação medo concreto da morte não poderia ter sido mais ajustada: Raimunda
vivia no sertão e sabia bem que ali qualquer incidente poderia ganhar imensas proporções.
Imediatamente, a moça entrou em desespero “- Estou morta!” (
, p. 5).
Pf, p. 5) e tentou apegar-se
com a única possibilidade de cura: “Como última tábua, lembrou-se de seu Juvêncio, que
rezava em mordidura de cobra e curava bicheira [...]” (Pf, p. 5). Sabia que ali, tão distante da
50
cidade e do progresso, as possibilidades de socorro eram mínimas, quase inexistentes,
restando apenas a crença na reza.
Ao chegar em casa, a frase não queria calar em sua boca: “- Mãe, estou morta!”, como
uma constatação de que no fundo, não tinha chances de sobreviver. À medida que as
personagens vão sendo apresentadas é possível detectar indícios do quão simples são e de
como levam a vida em meio às dificuldades do lugarejo: a mãe, Sinha Clementina, carregava
um “rosário entre os peitos murchos”, “olhos miúdos e trabalhados pela canseira” (Pf
Em meio ao desespero, o pai lembrou-se de Seu Menescal, que sempre ia passar as
férias na cidade e portava consigo algumas injeções, no caso de picada de cobras.
, p. 6); o
pai, Lucena, homem simples e respeitoso; o irmão mais velho, Vicente, sempre ocupado com
os afazeres da casa e o irmão mais novo que era idêntico ao mais velho.
Vicente, o irmão mais velho, foi incumbido da tarefa de ir buscar o medicamento.
Enquanto aguardavam, Lucena e a mulher tentavam abrandar o sofrimento da filha com as
práticas que tinham acesso:
Lucena tirou a garrafa de cachaça detrás do baú [...] Encheu meia caneca com o
líquido e entregou-a à filha.
- Beba de uma vez, e toda.
Pediu à mulher que soprasse bem um tição. Deixasse na brasa viva e preparasse
umas peles de fumo.
- Você vai agüentar, minha filha. Mas o remédio tem que ser esse mesmo: bruto! Se
agarre aí com sua mãe.
[...] Lucena soprou o tição mais uma vez e chegou a brasa ao ponto picado, com
firmeza. [...] Depois o homem espalhou por cima da ferida
em salmoura as peles de
fumo. (
Pf
, p. 7)
No caminho, Vicente se confrontava com a timidez, uma das marcas típicas do homem
sertanejo, sobretudo dos mais jovens: ao encontrar Seu Menescal “[...] não sabia se deveria
desapiar-se ou falar ali de cima do lombo do burro, tolhido por um acanhamento rude, que o
embaraçava na presença de pessoas estranhas.” (Pf
Nesse ponto da narrativa, o autor dá o primeiro indício da imensa dificuldade de
comunicação entre o homem simples do sertão e o da cidade: há uma barreira que causa a
, p. 8).
51
timidez, esta, por sua vez, é fruto da constatação inconsciente da hierarquia social, em que o
humilde deve conhecer seu lugar.
Após dar o recado, o irmão de Raimunda foi informado de que não havia ninguém que
tivesse injeções naquele lugar, nem mesmo o farmacêutico que alegou que não se produzia
mais o soro porque “curam isso com cachaça e fumo” (Pf
Mas havia uma esperança para Raimunda: havia o filho do Senador Veloso, o homem
mais rico da região, que era médico e talvez tivesse o soro. Logo se percebe o receio de
Vicente: “recebeu a sugestão com alguma reserva” (
, p. 8). Mais um vestígio do descaso
pelas causas dos pobres: a medicina popular era o bastante para suprir suas necessidades, por
isso, não precisavam de auxílio profissional.
Pf
A família Veloso é apresentada com todas as características típicas daqueles que detêm
o poder: desde a descrição da casa, com decoração luxuosa, até o trato da população – alguns
bajuladores – com os integrantes da família:
, p. 8), ora, para o pobre rapaz já era
um constrangimento ter de pedir um favor a Seu Menescal, que era homem acessível,
acanhou-se ainda mais com o fato de ir até a casa da família mais poderosa da região,
incomodando a paz da casa.
Por todo aquele chão de sesmarias até a cidade, e mais distante ainda, o respeito
comum, quase numa espécie de hábito. Ao passar um Veloso para a missa ou para
apanhar o trem, num pulo à capital, o tabelião, curvado na ponta da calçada, atirava-
lhe com a mão repetidamente, para mostrar intimidade, e entrava em casa feliz. O
vigário apressava o passo já lerdo, para alcançá-lo. Os humildes recuavam,
deixando espaço, as cabeças descobertas.
(Pf
, p. 9)
Logo após a descrição acima, há um comentário do narrador que explica de onde vinha
o poder daquela família: “Verdade que tempo houve em que andaram [os Veloso] por baixo,
quando se acabou o voto [...]” (Pf, p. 9). E mais adiante: “Mas o voto voltou e os Velosos se
reconstituíram [...]” (Pf
A narração segue com a descrição de Dona Cecília, irmã do coronel Veloso, uma
“figura possivelmente incômoda” (
, p. 9). Ora, sabe-se que em cidade de interior, muitas famílias
abastadas se inserem na política por vias não muito dignas como era o caso da família
Veloso.
Pf, p. 9), pois era muito fria no trato com as pessoas,
52
principalmente aqueles mais humildes: “Recebia os agregados sem muita concessão e
evitando fraquezas [...]” (Pf
Por se tratar de uma família muito poderosa da qual faziam parte pessoas como Dona
Cecília é que o constrangimento de Vicente e do irmão se tornava ainda maior: certamente se
batessem à porta dos Veloso gerariam um grande incômodo. Àquela altura, a noite já caíra e à
medida que o tempo passava o receio dos rapazes em perturbar o sono daquela gente tão
importante aumentava:
, p. 10).
- E se a casa tiver fechada, a gente bate?
- E não é nisso que eu venho imaginando.
- A velha se zanga.
- Se zanga... (
Pf
, p. 10)
E mais adiante, o narrador se inserindo nos pensamentos dos rapazes, faz uma reflexão:
“Seria mesmo a velha, ou a vaga consciência de limites, dentro daqueles domínios e frente
aos Velosos? A casa-grande, um marco. D. Cecília, um símbolo [...]” (Pf
Os parágrafos seguintes retratam a pequena batalha que os rapazes deveriam travar
contra a timidez e o acanhamento: diante da porta já fechada da casa-grande, a vida da irmã
dependia somente de um gesto tão simplório que consistia em bater à porta; contudo, tal gesto
se tornou um grande obstáculo para os irmãos de Raimunda:
, p. 10). Um marco
que não poderia ser transposto por qualquer um, principalmente por pobres coitados como os
irmãos de Raimunda. O símbolo representado por D. Cecília é o da austeridade representando
que pessoas como ela são quase inacessíveis, estão em outro nível e por isso não devem ser
incomodadas.
Vicente esqueceu os olhos numa coluna. Movimentaram-se sob o terraço pisando de
leve. De quando em quando, os olhos dos dois se cruzavam, meio encabulados,
como se se recriminassem. Houve momento em que Vicente parou em frente à porta
e firmou o nó dos dedos para as pancadas. Ficou indeciso. Era como se, de repente,
surgisse em cada banda de porta e janela a figura seca de d. Cecília, cheia de
nervuras, os olhos parados e inquiridores. (
Pf
, p. 11)
53
Por fim, decidiram por esperar, uma vez que não teriam coragem de incomodar Dona
Cecília e os demais da casa-grande já tão tarde da noite; o constrangimento seria
indescritível. Ao amanhecer, os irmãos foram descobertos pelos donos da casa e, depois de
contarem o motivo que os tinha levado até lá, foi Dona Cecília que fez o comentário
desaprovador: “Gente rude danada...” (Pf
De volta para casa, os rapazes encontram a irmã já morta. O pai, após ouvir todo o
relato da noite, compreendeu de imediato o motivo da demora dos filhos, afinal, eles tiveram
que ir até a casa dos Veloso, como poderiam bater à porta já tão tarde? Fizeram o que tinha
de ser feito.
, p. 12), mesmo assim, entregou o medicamento aos
irmãos.
Ao final, conformaram-se todos, atribuindo a fatalidade aos desígnios divinos: “Deus
quis” (Pf
Nesse conto, o distanciamento social é tão visível que forma uma espécie de barreira
entre o pobre e o rico, este situado em um patamar muito alto, aquele, devendo acostumar-se
a olhar sempre por baixo, não se atrevendo sequer a qualquer gesto que venha a perturbar a
paz do outro. São conformados porque a natureza assim quis, Deus assim quis, e com esse
pensamento, vão acostumando-se a viver sempre por baixo, conformados com o destino que
lhes cabe: “Cada um desses desgraçados, na atrofia da sua rusticidade, se perscruta, se apalpa,
tenta compreender, ajustando o mundo à sua visão [...]” (CANDIDO, 2006b, p. 122).
, p. 13). Raimunda, jovem moça, foi mais uma de tantas outras e outros que, vivendo
em meio à falta de recursos, teve de passar pela agonia, esperando somente um “milagre”
divino, que não aconteceu.
Nos três contos analisados, é visível a preocupação do autor em retratar o homem
sertanejo em situações que fazem parte de seu cotidiano. O sertão e seu povo são
apresentados realisticamente, com personagens típicas; algumas dessas personagens têm
maior ocorrência, ganhando mais destaque nos contos: é notável perceber a incidência de
tipos como o agricultor pobre, geralmente retratado na situação de agregado; dos donos-de-
terra, que podem ser muito poderosos ou apenas pequenos proprietários, contudo, encontram-
se num patamar acima dos agregados. Também há a figura dos bajuladores indivíduos que
vivem circundando os mais poderosos, a fim de tirarem algum proveito de sua riqueza ou
influência.
54
3.2.1.1. Agregados
Agregado, é entendido aqui como “[...] aquele que vive em fazenda ou engenho
alheio, cultivando certa porção de terra e prestando serviço ao proprietário alguns dias por
semana, mediante remuneração [...]
29
. É representante do agregado a personagem Bento, do
conto “Náufragos”, quando fica explícita sua situação de “agregado de ‘seu’ Melquíades”
(Na, p. 56), assim como também pode ser entendido como agregado Néu, protagonista de
“Tem dono”, uma vez que é citado no texto o seu desejo de possuir sua própria terra. Quanto
à Lucena, pai da personagem Raimunda, de “Portas fechadas”, não há informações se estaria
na condição de agregado ou não; o que se pode concluir pela leitura do conto é que a família
vive em condições bastante precárias: a casa da família é descrita como “barraca de palha”
(Pf, p. 5); não havendo camas de dormir, mas sim “tipóias” (Pf, p. 7), a sala da casa era de
“taipa”(Pf, p. 7); enfim, todos esses elementos indicando a condição de pobreza da família,
que, apesar de tudo, não demonstrava nenhum descontentamento com a vida que levava.
Nos contos ocorre a constatação: uma vez que o pai da família está na condição de
agregado, todo o resto dos integrantes também é visto como tal: geralmente, mulher e filhos,
quando podem, também prestam serviços para os donos-de-terras. Em “Náufragos”,
“Raimunda e os filhos ajudavam” (Na, p. 56), Bento e o filho Sebastião “procuravam
serviço” (Na
No primeiro conto, Bento e sua família são acometidos pelos mais terríveis
infortúnios: devido aos destemperos do clima, partem em retirada para outras terras e assim,
vão perambulando como miseráveis, de lugar em lugar. Contudo, antes da retirada, alguns
sentimentos de descontentamento são manifestados pelas personagens; Bento, em várias
passagens, mostrava-se descontente com sua situação e devido a tal descontentamento,
buscava as alternativas que lhe restavam: “Escapou como pôde. O indivíduo com fome se
, p. 57), etc.
Sobre o descontentamento com a própria sorte, há entre os três contos um tipo de
gradação, ou seja, pode-se notar que o descontentamento é maior entre o núcleo principal de
“Náufragos”; vai ficando mais ameno, porém ainda é percebido em “Tem dono”, chegando
ao ponto de não existir em “Portas fechadas”.
29
FERREIRA, Aurelio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurelio versão 5.0 edição revista e atualizada:
Dicionário eletrônico. Curitiba: Positivo, 2006, Cd-rom, Microsoft Windows 98, 2000 ou XP com internet
explorer.
55
atreve a tudo. Só não fez roubar, porque não houve ocasião. Mas pedir, pediu.” (Na, p. 56).
Quando não mais havia alternativas de sobrevivência, a família partia; a retirada como última
escapatória: “[...] largou-se para o sul do Estado.” (Na, p. 56), e sempre que o clima
castigava, voltavam a partir- O melhor é a gente sair logo daqui.” (Na, p. 57);
“Embarcavam para Fortaleza. Tentar nova vida.” (Na, p. 59); “Sebastião estava com o projeto
de embarcar para São Paulo [...] meteu-se na terceira classe de um navio e partiu.” (Na
Assim, quando a situação de miséria tomava conta do contexto em que estavam
inseridos os personagens, a condição social de agregado regredia para a de retirante, que por
sua vez retrocedia para marginalizado, excluído. É o caso da família protagonista de
“Náufragos”: Bento “passava semanas vagabundando” (
, p.
59).
Na, p. 59); “Raimunda empregara-se
numa cozinha. Dormia na casa da patroa.” (Na, p. 59); “Aniceto pedia esmolas e sustentava a
casa” (Na
No conto “Tem dono”, o descontentamento com a situação social existe, porém, não
chega ao extremo, uma vez que as personagens não são submetidas a condições extremas de
miséria, como ocorre no conto anterior.
, p. 59).
O protagonista Néu e sua família vivem em circunstâncias de pobreza, contudo, não
são miseráveis: a parede da casa era de “taipa”, indício de que era casa humilde, ainda assim,
pareciam acostumados. Néu não possuía terras, mas ganhava o suficiente para o sustento da
mulher e do filho: “Fez a feira de praxe, sem excesso: cinco litros de farinha, três rapaduras e
a garrafa de gás.” (Td, p. 75), “[...] sinhá Nazaré entregou-lhe a panela com o resto de feijão”
(Td
Ainda que a vida não fosse tão precária, Néu apresentava alguns sinais de
descontentamento, visando subir um degrau da hierarquia social; para isso, tinha intenções de
comprar as terras vizinhas à sua casa, passando de agregado a dono-de-terra, como citou
Darcy Ribeiro, a respeito do trabalhador rural:
, p. 75). Como se pode notar, a pobreza não chega, para a família de Néu, ao ponto
extremo.
O trabalhador rural, integrado no sistema econômico como parceiro em terra alheia
que ele vivifica com seu trabalho através de gerações, cumprindo tarefas
completas, da sementeira à colheita aspira fundamentalmente, a possuir aquela
terra, fazendo-se sitiante e proprietário. (RIBEIRO, 2006, p. 260)
56
No conto, tal intenção é representada quando o protagonista se depara com a
possibilidade concreta de compra da terra: “Pensou no pedaço de terra de seu Rufino,
pertinho de casa. O outro tinha propósito de venda.” (Td, p. 72), e como dono de sua terra,
poderia usufruir mais alguns regalos: “ele teria o seu dólmã de mescla” (Td, p. 74); “talvez
comprasse uma arroba de farinha, umas seis rapaduras [...] vendiam um burro. [...] Uma
compra daquela já seria uma ajuda” (Td
Diante da possibilidade de melhora de vida, quando encontrou uma boa quantia em
dinheiro, Néu viu os sonhos bem mais próximos. Todavia, sua índole era de “sujeito às
direitas” (
, p. 74).
Td, p. 75) que falava mais alto do que as antigas aspirações: devia “respeitar o que
é dos outros” (Td
Foi justamente no momento que se viu sem o dinheiro, que ocorreu a revolta do
protagonista, revolta contida, mas com traços de reflexão: “[...] magote de ladrão... Quem?
Quais? Não compreendia bem o insulto. Vinha de mistura com todos aqueles tipos que
conhecia e com seus direitos de posse.” (
, p. 76).
Td
Néu não era um miserável, mas sabia que sua condição de agregado não mudaria, pois
tudo “tinha dono”. A revolta não o levaria a retirar-se para outras terras, pois sua condição era
suportável, restando para ele e a família a conformação daquela vida humilde.
, p. 76).
No terceiro conto analisado, “Portas fechadas”, o núcleo protagonista é uma família
humilde, mas não se tem indicação precisa de sua condição; não se pode saber se os pais de
Raimunda eram agregados ou donos das terras onde moravam; o que se sabe é que eram
humildes, porém, não há nenhum indicativo de inconformismo com sua classe social. Em
geral, a família parecia viver bem, dentro das possibilidades que lhe eram impostas:
“Raimunda amava a vida” (Pf
Diante da morte precoce da filha, os familiares pareceram conformados, e não
esboçaram nenhum pensamento de revolta ou indignação, mesmo o pai, que deveria tomar
uma atitude mais drástica com os filhos, no momento em que se espera severidade,
surpreendeu: “Bastou aquela menção para justificar demoras e aliviar fracassos. O filho fizera
o que ele próprio não esperava.” (
, p. 5).
Pf, p. 13); e mais adiante, apegado a um motivo que
consolasse sua consciência: “Deus quis” (Pf, p. 13), para ele, era suficiente pois não havia
como contestar os desígnios divinos, condizendo com a afirmação de que as classe oprimidas
“[...] geralmente são resignadas com seu destino, apesar da miserabilidade em que vivem, e
57
por sua capacidade de organizar-se e enfrentar os donos do poder [...]” (RIBEIRO, 2006, p.
192).
Somente uma pessoa da família parecia não se conformar, a mãe de Raimunda, Sinha
Clementina. Há um pequeno lampejo de inconformismo no ato da mãe quando a explicação
da fatalidade foi atribuída a Deus: “Sinha Clementina não o ouviu [...]” (Pf, p. 13); e são os
seus pensamentos que são postos à tona pela voz do narrador: “Impossível acreditar naquela
ausência [...]”(Pf
, p. 13). Mas, devido à sua condição de mulher, seu inconformismo era
calado e talvez guardasse esses sentimentos somente para si. A tendência era que tomasse a
postura dos outros, ou seja, se adaptasse.
3.2.1.2. Donos-de-terra
Outra figura que faz parte do cenário árido dos três contos analisados anteriormente é a
do dono-de-terra que aqui é geralmente representado por fazendeiros poderosos,
latifundiários e também pelos que possuem propriedades pouco extensas.
Situando-se na linha oposta à do agregado, o dono-de-terra representa, nas narrativas, a
figura do patrão que oferecia trabalho e moradia temporários ao agricultor. De modo geral, o
sistema de trabalho era o de “meia”, ou seja, os “meeiros” entravam no “acordo” “[...]
recebendo uma quadra de terra para cultivar o alimento que comeriam e outras para produzir
colheitas [...] de que deveriam entregar metade ao proprietário [...]” (RIBEIRO, 2006, p.
312); os trabalhadores também se responsabilizariam pela compra de suas próprias
ferramentas: “Os donos cediam apenas a terra. O pobre é que comprava os ferros.” (Na
Constantemente os patrões são caracterizados por certo tipo de conduta, que variava de
acordo com o caráter que estava diretamente ligado à posição social atribuído à
personagem, ou seja, quanto mais alta a posição ocupada pelo patrão na hierarquia social,
maior as chances de apresentar um caráter desumano em relação ao agregado:
, p.
56).
58
A suscetibilidade patronal a qualquer gesto que possa ser tido como
longinquamente desrespeitoso por parte de um empregado contrasta claramente
com o tratamento boçal com que trata este. (RIBEIRO, 2006, p. 197)
No conto “Náufragos”, há exemplo da posição social ocupada pelo patrão: “No
Jaguaribe, seu lugar de nascimento, trabalhara como “meeiro” do coronel Juvêncio [...]”(Na
,
p. 56); trata-se de um coronel, título atribuído ao dono de muitas terras, exercendo seu poder
tanto na economia quanto na política da sua cidade ou região. Mais adiante, pode-se
acompanhar a relação de trabalho entre patrão e agregado, no caso, o protagonista Bento:
Já apanhara a “meia” do coronel e entregara no armazém. Ia colher a parte que lhe
tocava, quando houve rixa, foram com fuxico. O coronel zangou-se e um dia os
seus roçados (de Bento) amanheceram por terra, a criação dentro esculhambando
tudo. (
Na
, p. 56)
A partir do tipo de relação existente entre patrão (dono-de-terra) e empregado
(agregado) e da posição social ocupada pelo primeiro, algumas inferências podem ser feitas:
o patrão encontra-se no topo da hierarquia social do contexto, é um coronel, dono de muitas
terras, portanto muito poderoso; tal poder o faz extrapolar as leis sociais, humilhando e
prejudicando os humildes, logo está indicado o caráter desumano da personagem.
Tal tratamento desumano leva o empregado a tomar atitudes desprovidas de dignidade,
dignidade esta que já não faz parte de seu modo de vida e que o leva a aceitar passivamente,
na maioria das vezes, esse tipo de relação:
É preciso viver num engenho, numa fazenda, num seringal, para sentir a
profundidade da distância com que um patrão ou seu capataz trata os serviçais, no
seu descaso pelo destino destes, como pessoas, sua insciência de que possam ter
aspirações, seu desconhecimento de que estejam, eles também, investidos de uma
dignidade humana. (RIBEIRO, 2006, p. 197)
Outro tipo de patrão que aparece no conto é o interesseiro; sua caracterização difere um
pouco da anterior por estar situado numa posição abaixo da do coronel. Este patrão também
possui latifúndios, porém é menos poderoso: “Foi servir no carnaubal do Dr. Sabino [...]
Léguas e léguas de carnaúbas [...]” (Na, p. 56), adiante, a exploração do trabalho: “Na época
59
do ‘corte’, só ele [Bento] ‘cozia’ por mês quinze arrobas de cera, que o doutor vendia na
capital por oito mil cruzeiros. A ele Bento tocavam trezentos e quarenta cruzeiros [...]” (Na
Mais abaixo na escala de poder e prestígio social está o tipo mais comum de patrão: o
que tem força somente dentro de suas propriedades, que são bem menores que as dos
coronéis e dos doutores. É o caso de “seu Melquíades”, de quem Bento era agregado antes de
partir para a capital: “É agregado de ‘seu’ Melquíades, que possui terras às margens do
Salgado. Aluga os seus braços a oito cruzeiros por dia.” (
,
p. 56).
Na, p. 56). Nesse caso, as relações
de trabalho mudam, uma vez que o sistema não é o de “meia”, mas sim de certo tipo de
prestação de serviço. Visto que há mais proximidade entre este tipo de patrão e o agregado, o
caráter do primeiro é um pouco mais humanizado, uma vez que a relação entre ambos é
direta. Exemplo disso está retratado no momento em que o protagonista Bento, em momento
de desespero, procura o patrão em busca de empréstimo: “Bento procurou ‘seu’ Melquíades.
O homem não pôde fazer nada. [...] Ainda assim, teve pena e lhe deu dez cruzeiros” (Na
Nos contos “Tem dono” e “Portas fechadas” também aparecem figuras que
caracterizam donos-de-terra, porém, as relações de poder são trazidas de formas diferentes:
Seu Rufino de “Tem dono”, é possuidor de um pequeno pedaço de terra e sua condição social
é bem próxima àquela do agregado; ainda nesse conto, há referência à figura de certo coronel
Nepomuceno: “A Várzea Redonda, com açude e bolandeira, estava em nome do cel.
Nepomuceno [...]” (
, p.
57); ao descrever o sentimento do patrão, que teve pena do agregado, o autor suaviza o
caráter da personagem, contudo, isso ocorre pelo simples fato de que nesse contexto, o patrão
estava mais próximo ao agregado devido à situação de miséria que abrangia toda a
população, só isentando-se aqueles mais ricos, que não era o caso de seu Melquíades.
Td, p. 76). Em “Portas fechadas”, há somente uma referência às relações
entre patrão e agregado, na passagem que descreve Dona Cecília: “Recebia os agregados sem
muita concessão e evitando fraquezas [...]” (Pf, p. 10). No caso desse conto, o patrão aparece
não como uma figura singular, mas sim, representado por toda uma família: “Vinham do
Império, os Velosos [...]” (Pf, p. 9), a qual era detentora de poder tamanho que a colocava no
topo principal da hierarquia social, de onde comandavam a vida política da região perfazendo
um exemplo concreto do tipo de organização sociopolítica baseado no patriarcalismo herdado
dos séculos passados.
60
Assim, os retratos áridos do cotidiano sertanejo são apresentados por Moreira Campos
em suas mais diversas formas, desde a vida corriqueira do agricultor, até a extrema situação
de miséria do retirante, tendo como foco principal, a figura do sertanejo, submetido a um
sistema injusto no qual se privilegiam aqueles que têm mais poder, sistema esse que mantém
o pobre sempre na condição de “esmagado”, como conclui Antonio Candido, a respeito das
personagens de Vidas secas:
Entre a seca e as águas, a vida do sertanejo se organiza, do berço à sepultura, a
modo de retorno perpétuo. Como animais atrelados ao moinho, [...] voltará sempre
sobre os passos, sufocado pelo meio. Daí sua psicologia rudimentar de forçado.
(CANDIDO, 2006b, p. 67)
3.2.2. Retratos Urbanos
O universo urbano também foi tema constante na narrativa moreiriana, o cotidiano da
vida na capital é flagrado através dos episódios em que o homem moderno, cidadão imerso na
rotina do “tempo é dinheiro”, é protagonista.
A cidade é retratada através dos espaços apresentados nos textos: o ambiente de
trabalho, que pode ser um escritório, um gabinete, etc.; as ruas e todo seu movimento
comércio, pedestres, tráfego assim como sua constituição física: prédios, praças, casas.
Um dos cenários mais comuns nos contos de temática urbana é o da casa, que é
representação da família citadina. Lugar onde acontecem os dramas e alegrias; é na
privacidade da casa que as personagens se despem das “máscaras” e se mostram no seu modo
mais íntimo. É através da casa que se pode inferir sobre a posição social da família: há casas
ornadas luxuosamente, onde habitam pessoas ricas; há casas bem simples, indicando um
ambiente de humildade e há, sobretudo, casas comuns que pertencem a indivíduos da classe
média.
A classe média, por sua vez, é o foco de vários contos de Moreira Campos publicados
na revista Clã: “Suor e lágrimas” (1948), “Lama e folhas” (1949 e 1982), “Por cima dos
muros” (1957), “Os doze parafusos” (1970), “Nudez” (1980), “Os meninos” (1980) e “O
cachorro” (1981). Em todos eles, situações cotidianas de personagens da classe média são
61
representadas através das figuras dos empregados e empregadas, das donas-de-casa, dos
estudantes, dos empresários e do funcionário público.
O funcionário público, aliás, é um dos tipos preferidos do elenco moreiriano: é
representado, geralmente, por homens que têm um bom grau de instrução seja este
adquirido através da educação acadêmica ou através da experiência profissional que
ocupam postos variados nas instituições, podendo ser chefes ou subalternos. Há casos em que
a mulher é que trabalha como funcionária, contudo, ocupando cargos de pouca remuneração.
É em torno dos ambientes familiar e profissional do homem da classe média que os
enredos são construídos; então aparecem outras figuras como a esposa, os filhos, os colegas
de trabalho, os empregados domésticos, os vizinhos. Cada uma dessas personagens é
apresentada de forma muito sucinta, pois o autor as coloca em lugares adjacentes, quase
imperceptíveis ao foco principal, contudo, são elas que trazem à narrativa uma veracidade
que se aproxima do documentário.
Dos contos de temática urbana, um dos primeiros a aparecerem na revista Clã foi “Suor
e lágrimas”, em 1948.
Seguindo o esquema dos “quadros”, o conto é mais que a narração de um fato ocorrido
com certas personagens, mas é também o retrato de uma época específica da história
brasileira.
Trata-se do drama que sofre uma jovem mãe de família, Zuíla, quando toma
conhecimento da prisão de seu marido, Antônio, devido à adesão de idéias divergentes ao
regime ditatorial, era um simpatizante da ideologia comunista.
Já pelo início da narrativa, pode-se deduzir a condição social dos protagonistas: “A
empregada deteve a criança [...]” (Sl, p. 44), ora, pela presença da empregada, vê-se logo que
a família não pertencia a uma classe social desprovida e mais adiante, é apresentada a
personagem principal: “Zuíla esfregou os pés na soleira da porta. E ia reclamar o cansaço da
repartição, a viagem de ônibus, feita em pé aos solavancos, como pingente.” (Sl, p. 44). Aqui,
há mais alguns indícios da condição da personagem: trabalhava fora, em uma repartição,
contudo, não parecia exercer um cargo elevado, visto que usava o ônibus como meio de
transporte.
62
Continuando a narrativa, Zuíla recebe a notícia da prisão do marido, entrando em
desespero. É nesse momento que o leitor toma conhecimento da causa: talvez o marido tenha
sido preso por pregar contra a ditadura: “Sabia que o inspetor da polícia o prendera ao sair do
escritório. Ele e outros vários rapazes [...] A polícia anda no faro. O sujeito hoje reclamou, é
comunista.” (Sl
No quadro seguinte, outra amostra da condição social da família: “O magro jantar de
pão e café era agora engolido em bocados amargos [...]” (
, p. 44-45).
Sl
Zuíla, frente ao desespero, fez o que primeiro lhe veio à mente, e falando com a
empregada, resolveu esconder as possíveis “provas”: “- Sabina, e aqueles livros? Papéis, uma
porção de jornais... É bom esconder tudo [...]” (
, p. 45) em que a palavra “magro”
remete à idéia de escasso, pouco.
Sl
, p. 45). Mesmo sem ter a certeza de que o
marido aderia às idéias que combatiam a ditadura, a mulher resolveu se livrar de qualquer
suspeita, embora nem soubesse o teor do material com o qual estava lidando:
Custaria a Zuíla fazer uma seleção. Entendia da cozinha, da arrumação de casa, da
coqueluche do filho e, vagamente, de normas burocráticas. Mas a política e temas
irmãos marcavam-lhe limitações, tiravam-lhe bocejos. Assim, foi metendo no
caixote, numa aproximação difícil, Marx e Maritain, Lenine e as Encíclicas. (
Sl
, p.
45)
Nesse ponto, alguns traços das características das personagens são trazidos à tona,
como por exemplo, o nível intelectual do marido e a pouca instrução da mulher, que apesar
de trabalhar fora índice de modernidade e da necessidade (tudo indica ser uma família
classe média baixa) não tinha interesse por temas que não fossem exclusivamente
domésticos.
Na seqüência da narrativa o autor apresenta um retrato do momento político em que
vivia o país através dos pensamentos da protagonista:
Antônio empurrado num cárcere, entre malfeitores [...] E falavam em torturas [...]
Sabia de um rapaz que morrera pisado pelos “tiras” [...] Maltratos. Rosto sangrando.
Gritos lancinantes que vinham de outros cubículos. Baque de corpos. Lâmpada forte
de quinhentas velas em cima da cabeça do indivíduo, para descobrir tramas, trair,
dar roteiros. A resistência da vítima. E o sadismo dos algozes se desdobrando em
requintes. (
Sl, p. 46-47)
63
Também há indícios do preconceito racial que inconscientemente também habitava
entre as famílias da classe média: Zuíla, imaginando que o marido estava sendo torturado, via
um negro na figura do torturador: “[...] não sabia porque se lhe apresentava sempre como
executante dessas torturas a figura agigantada de um negro policial [...]” (Sl
Só pelo fato de ser negro, o policial ganhava contornos de agressor, de homem ruim e
criminoso. Esse fato se explica pelo próprio racismo incrustado na sociedade brasileira:
, p. 47).
O fato de ser negro ou mulato, entretanto, custa também um preço adicional,
porque, à crueza do trato desigualitário que suportam todos os pobres, se
acrescentam formas sutis ou desabridas de hostilidade. (RIBEIRO, 2006, p. 216)
O quadro que segue no conto narra a primeira ida de Zuíla à polícia, na intenção de
falar com o chefe e pedir pela liberação do marido, mas a tentativa foi em vão, “[...] ligações
com grupos revolucionários [...]” (Sl, p. 47) comprometiam o marido. Ao final, a mulher
ainda percebeu o olhar malicioso do chefe de polícia: “[...] os seus olhos percorreram-lhe,
lentos, a mocidade do corpo, como se quisessem desnudá-la [...]” (Sl
Ao descrever a reação dos colegas de trabalho de Zuíla, a respeito do caso de seu
marido, o autor faz um retrato sutil da figura dos funcionários de repartição e do receio que
sentiam de envolver-se com casos que poderiam prejudicar-lhes: “[...] colegas pusilânimes,
covardes. Alguns a evitavam. [...] Não queriam comprometer-se. Enfim, funcionários...” (
, p. 47).
Sl,
p. 47); e mais a frente, quando a mulher procurou a ajuda de um político influente, também
há o retrato da covardia e da falta de interesse do homem: “Como político, não devo me
expor [...]” (Sl, p. 48). Ao final, como última tentativa, voltou ao chefe de polícia e foi
surpreendia com uma insinuação repugnante, mostrando que o incômodo causado pelos
olhares maliciosos tinha bastante fundamento: “Eu sou magnânimo, quando há concessões, é
claro.” (Sl
Com o passar dos dias e sem notícias do marido, Zuíla entrou em desespero; resolveu ir
à Central de Polícia, desta vez, já esperando uma proposta mais ousada do delegado, todavia,
estava disposta a ver o marido naquele dia. Para sua surpresa, ao atravessar a praça, deu de
encontro com o marido, que acabara de ser solto.
, p. 48).
64
Na seqüência de contos com retratos urbanos, aparece “Lama e folhas”, publicado pela
primeira vez em 1949, na revista Clã número 7 e em 1982, quando tem sua segunda
publicação na Clã número 28. A trama gira em torno da história de um homem João
Sampaio o qual começa a narrativa descrevendo o nascimento de seu filho caçula: o Dudu,
primeiro e tão esperado filho homem: “[...] rebentava-me de contentamento. Enfim, sou
casado há oito anos engendrei seguidamente cinco meninas e é este o primeiro macho!” (Lf
Pode-se perceber que no início do conto, a narrativa ocorre no tempo presente, mas
após a cena do nascimento do filho, o narrador-personagem passa a usar o tempo passado
para contar sua história. A partir desse ponto o narrador usa o recurso do flash-back ou
síntese dramática até o final.
,
p. 89).
Aos poucos, o leitor vai tomando conhecimento da figura do narrador-personagem: no
início do conto dá a idéia de ser um pai de família como qualquer outro, provido de
responsabilidades e amoroso com os filhos; à medida que a história se desenvolve e seu
passado começa a ser narrado, a figura inicial vai cedendo lugar para o verdadeiro
protagonista, de caráter duvidoso, portador de um machismo velado e um preconceito
indiscreto.
Em algumas passagens, o autor dá indícios da personalidade da personagem: “Sou meio
áspero” (Lf, p. 89); “eu não nascera para acumular ciência” (Lf, p. 91); “Um cretino! De
ciência, retalhos(Lf
É perceptível a maestria com que Moreira Campos trabalhou a ironia inserida nas falas
do narrador: “Venci: fui de escriturário ao cargo mais vantajoso: o Caixa. Aí, com seis meses,
dei um desfalque [...]” (
, p. 91).
Lf
A relação familiar também é retratada: “A velha [sogra] possui arestas. Em outros
tempos, entre nós houve atritos.” (
, p. 92).
Lf, p. 90); “Em casa sou um oráculo e meus conceitos têm
a força de um texto constitucional. [...] Meu sogro acha-me penetrante.” (Lf
Todavia, é a relação com o filho caçula a mais descrita pelo narrador: “Somos
inseparáveis. Nos meus dias de folga, para onde vou o pedaço de gente me acompanha,
imitando-me os gestos e atitudes. [...] Dudu preenche-me.” (
, p. 92).
Lf, p. 92); a preferência pelo
filho reflete também no comportamento das outras filhas: “São assim (as filhas): vêm a mim
de tabela, por intermédio do outro (o filho). Sabem que o irmão tem prestígio.” (Lf
O pai tinha plena consciência de sua preferência pelo filho e, somente em algumas
ocasiões, refletia sobre isso, porém, logo procurava justificativas plausíveis, como no
momento em que comprou um presente caro para o filho e “lembrancinhas” para as outras
, p. 93).
65
filhas: “[...] o menino é um só e elas, ao todo, são cinco. O raciocínio me acalmava a
consciência [...](Lf, p. 93).
Também há indicadores da condição financeira da família: já se sabe da trajetória não
muito digna do narrador no que tange à área profissional: a partir de um ato corrupto ele
encontra estabilidade financeira, abrindo um negócio e aumentando o padrão de vida da
família: “[...] salvei ainda uns trinta mil cruzeiros com que me estabeleci. Ninguém poderá
censurar-me: quase todas as fortunas têm, mais ou menos, essa origem.” (Lf, p. 92).
A família pertence à classe média alta, pois há gastos com artigos luxuosos: “Penso
em dar-lhe [à esposa] uns brincos de brilhantes [...](Lf, p. 90); “[...] presente caro, que
contente o Dudu.” (Lf, p. 93). Também há aquisição de bens imóveis: “Comprei um sítio,
perto, num pé de serra.” (Lf, p. 94). Tais referências levam à conclusão de que a família goza
de boas condições, logo podem ser considerados membros da elite social.
O ápice da narrativa ocorre com a morte do filho Dudu, afogado em uma velha piscina
cheia de lama e folhas. Morreram também as esperanças do pai, que, sem o filho predileto,
não encontrava mais sentido em viver: “Deixem-me só. Tragam-me café, e eu fumarei mais
um cigarro. Venderei este pedaço de terra, fecharei minha casa de negócio. Já não saberia
trilhar os mesmos caminhos, repousar nos mesmos recantos.” (Lf
“Lama e folhas” é um dos contos mais bem construídos de nossa literatura, e está entre
os melhores contos do Brasil, como cita Herman Lima, comentando ser o conto “[...] uma
obra-prima do conto universal desta hora [...]”
, p. 95)
30
O conto mostra o modo de vida num bairro tranqüilo da capital: a interação entre
vizinhos separados apenas por muros baixos e as amizades que se formam com a convivência
do dia-a-dia.
. A narrativa, apesar de ainda não apresentar
tanta concisão, estabelece um pacto com o leitor, pois este é levado a construir sua
personagem a cada linha, a cada “pista” que o autor oferece. Uma vez construída, a história
traz consigo toda a mensagem pretendida: as tragédias pessoais, o mundinho particular em
que todos nós às vezes nos refugiamos.
“Por cima dos muros”, publicado na Clã número 16 em 1957, é também um conto que
representa muito bem a vida de uma família de classe média, que mora numa cidade grande.
Retrata o cotidiano de Dona Diva e Dr. Elói, casal maduro que vive bem, porém, não têm
filhos.
30
LIMA, Herman. Evolução do conto. In: COUTINHO, Afrânio [org.]. A literatura no Brasil. 3ª. ed. vol. VI.
Rio de Janeiro: Sul-Americana, 1971, p. 52.
66
A descrição da casa, assim como a dos próprios donos, acontece bem no início da
narrativa, onde também é descrita a forma como convivem com a vizinhança: uma casa
razoavelmente grande, “[...] de esquina, espaçosa, mas construída no inverso por causa do sol
[...]” (Pcm, p. 77); os muros dos fundos dividiam o quintal da casa com os quintais vizinhos:
daí, sempre se ouvia o que se passava nas outras casas: “[...] por cima dos muros vinha tudo
[...]” (Pcm
Dr. Elói e D. Diva formam um casal cuja tranqüilidade é expressa a cada diálogo, em
cada detalhe; ele, juiz, de “[...] passo lento pela calçada, pasta debaixo do braço, óculos e
atenção aferrada ao jornal [...]” (
, p. 77).
Pcm, p. 77), ela, “[...] toda no seu ar manso, fina de corpo e
de dedos, muito alva, o olhar uma ternura, a voz sem excessos [...] era a bondade em pessoa.”
(Pcm
Além do casal, são apresentados outros moradores da casa: Inácio, o “moleque” que
trabalhava para a família; a empregada Quitéria e o cão de estimação “Veludo”, que “[...] à
falta de filhos, preenchia momentos [...]” (
, p. 77).
Pcm
A falta de filhos era a grande mágoa da esposa, que se apegava facilmente a qualquer
criança “[...] tentaram criar um sobrinho, que não lhes deu muitas dores porque morreu nos
cueiros.” (
, p. 78).
Pcm
A vida do casal transcorria como de costume: a interação com os vizinhos e as coisas
que ouviam por cima dos muros pareciam fazer parte daquela rotina tranqüila; até que certo
dia, mudou-se para a casa vizinha uma família que devia ter pelo menos três membros,
segundo constatou D. Diva: “O homem parecia moço e forte, [...]. A empregada já na
cozinha. Não, nenhuma parenta, naturalmente. [...] Deslizava também a dona da casa, pelo
visto. Franzina, cabelo aparado.” (
, p. 78).
Pcm, p. 81). Também havia uma criança, Eduardinho, “a
voz simpática” (Pcm
Não tardou muito para que as famílias vizinhas se aproximassem; D. Diva sentia muito
prazer com a presença do menino, que passou a freqüentar a casa constantemente, porque a
mãe, Diana, costumava usar a máquina de costura de D. Diva para fazer algumas peças.
, p. 81), que logo conquistou D. Diva.
Assim, o menino, aos poucos, foi se tornando o centro das atenções da esposa do Dr.
Elói: “Eduardinho, por assim dizer, quase criança de casa. Vinha para ali, às vezes, sozinho,
sem que ninguém o mandasse.” (Pcm, p. 84); e também, como não haveria de ser diferente,
cada vez mais a mulher se apegava ao filho da vizinha, contudo, ciente de que não poderia
67
exagerar: “Assim pela tarde, a própria D. Diva ia buscar Eduardo em casa. Nesses momentos,
temia ainda que surgisse certa reserva por parte de Diana: a idéia de que ela se quisesse
assenhorear do filho. Enfim, era mulher tímida e de princípios.” (Pcm
Mas, aos poucos, o menino foi se afastando da casa do Dr. Elói; passou a freqüentar as
outras casas vizinhas, o que causava certa reação de ciúmes em D. Diva. Esta tentava buscar
explicações para o desinteresse da criança, atribuindo o fato à incompetência do moleque
Inácio, que não sabia inventar brincadeiras novas. Também apontava um possível ato
interesseiro da mãe do menino, que usava o carinho de D. Diva para usufruir da máquina de
costura: “É raro também, já agora, que Diana aparecesse para uma costura [...] D. Diva, sem
agravar queixas, dizia para o marido que a outra seria meio interesseira.” (
, p. 85).
Pcm
O tempo foi passando e, numa tarde, a família de Eduardinho se despediu dos vizinhos:
estavam de mudança, o pai, que era militar havia sido transferido. Mais uma vez, D. Diva
ficara sem a presença de uma criança em sua casa, a vida voltaria ao normal, com os vizinhos
que chegariam e as mesmas conversas ouvidas por cima dos muros.
, p. 86).
O próximo conto que segue a temática urbana é “Os doze parafusos”, de 1970,
publicado na Clã, número 25.
Trata-se de um conto breve, que retrata um único momento o desparafusar de uma
grade de segurança que vai se desenvolvendo gradativamente, com o narrador fornecendo
paulatinamente as “pistas” para o desfecho da cena: o salto para morte dado pela
protagonista.
O conto narra os momentos finais da vida de uma mulher, que resolveu suicidar-se,
saltando da janela de seu apartamento, depois de descoberta a traição do marido. A narrativa
é toda estruturada na cena da tomada de decisão: primeiro, o narrador apresenta a mulher
numa última interação com os filhos; depois, a sua luta para tirar cada parafuso da grade de
proteção da janela; e, por último, o salto e a reação das pessoas na rua.
Enquanto vai descrevendo cada ação da mulher, as palavras do narrador se confundem,
algumas vezes, com os pensamentos da protagonista: são expressões que certamente saíam
por conta do desespero da personagem: “[...] ora, o marido! Agitava-se mais.” (Dp, p. 150).
Em algumas ocasiões, a mulher chegou a expressar através de frases curtas todo o distúrbio
de sua mente:
68
- Sem vergonha!
Não, não o marido. Ou poderia ser ele também, e era. Mas seria mais ela, a outra.
[...] A cunhada fazia questão de espalhar que ela já estivera internada para o
tratamento de choque. A megera curvava-se na cadeira para segredar essas coisas
[...]
-Cínica! (
Dp
, p. 151)
Aos poucos, além da personalidade abalada da protagonista, é possível identificar
outras características a respeito da família e do ambiente em que conviviam: as crianças
tinham brinquedos: “Apanhou em cima do guarda-roupa o balde e a pá da menina, entregou
ao filho a bola colorida [...]” (Dp, p. 150); o marido “[...] tinha requintes, uma elegância de
atitudes, calmo [...]” (Dp, p. 150); era também de “um cinismo tranqüilo e superior” (Dp, p.
152), além de ser empresário do ramo de publicidade; a cunhada tinha a mão “rica de anéis”
(Dp, p. 151); até mesmo a “outra”, a amante do marido e sua relação extraconjugal é descrita:
“A graça da outra, o seu desembaraço, a mocidade maior [...] Apanhava a outra no
automóvel, iam ao cinema, jantavam no restaurante da praia.” (Dp
Dos espaços, sabe-se que a família morava em um apartamento, com “tapete gasto”,
“móveis escuros” e “quadro impressionista” (
, p. 152).
Dp, p. 150). E a rua: “[...] na rua, o rumor dos
automóveis, a buzina, os sons comuns [...]” (Dp, p. 150). Logo depois do salto, a reação das
pessoas também é descrita com detalhes: “Inúmeras pessoas, banhistas. A moça com barraca
de praia e vidro de óleo na mão. A senhora que empurrava o carrinho de supermercado [...]”
(Dp
Apesar de curto, o conto é bem rico em detalhes, sobretudo quando retrata a vida de
uma família urbana, que tem boas condições financeiras e de como, citando um pensamento
de Antonio Candido, ao analisar romances de Graciliano Ramos, pode haver máscaras, que
são usadas em sociedade para manter, muitas vezes, um comportamento que não passa de
farsa:
, p. 152).
[...] constituem essencialmente uma pesquisa da alma humana, no sentido de
descobrir o que vai de mais recôndito no homem, sob as aparências da vida
superficial. Poderíamos dizer, usando a linguagem dostoievskiana, que essa
pesquisa tenta descobrir o homem subterrâneo, a nossa parte reprimida, que opõe a
sua irredutível, por vezes tenebrosa singularidade ao equilíbrio padronizado do ser
social. (CANDIDO, 2006b, p. 101)
69
Diferentemente dos contos anteriores, que retratam famílias urbanas, geralmente das
classes alta ou média, “Os meninos” é um conto brevíssimo, que apresenta a vida miserável
num centro urbano. Publicado na revista Clã número 26, em 1980, segue o esquema de “Os
doze parafusos”, isto é, narra somente um único episódio, cujo quadro se compõe de cenas
sucessivas até o ápice.
O conto é o relato da morte miserável de uma senhora, vista sob a perspectiva de duas
crianças, um menino e uma menina. A história inicia-se pelo final: o narrador já abre com a
cena da mulher que acabara de morrer, consumida pela mesentérica. Há toda uma atmosfera
repugnante, tanto na descrição das personagens quanto na do ambiente: a mulher cai morta
numa “posição ridícula” (Me
, p. 132); sempre beirando à escatologia: por causa da doença, a
mulher não conseguia conter a evacuação:
As moscas voltavam a pousar teimosamente sobre as pernas e a saia da morta. Elas
sempre a haviam perseguido em vida, quando ela parava pelos cantos da casa,
esvaindo-se. Então, limpava as pernas com pedaços de jornal, na área, ou se valia,
no banheiro, da água na bacia de folha-de-flandres, que gotejava. (
Me
, p. 132)
Sobre a protagonista, quase nada se sabe: nem mesmo o nome dela é citado; contudo, o
que é citado várias vezes é a sua função: “[...] ela ajudara a criar os dois meninos. Ajudara a
criar todos, sem queixas, paciente.” (Me
Sobre os meninos, algumas informações esparsas: sabe-se que quase nunca apareciam,
pois “[...] haviam chegado do interior e se escondiam em casa, medrosos [...]” (
, p. 132). Essa informação, repetida várias vezes no
conto, é uma forma que o autor usa para intensificar a condição em que se encontrava a
mulher e como um pedido desesperado de ajuda: havia cuidado de todos e estava morrendo,
precisava de socorro. A repetição reflete assim o “[...] momento em que a pessoa se coloca
diante das suas reais limitações, da sua pequenez, da condição humana mais aviltante. Então
a repetição brota como um grito de socorro [...]” (LIMA, 1993, p. 64).
Me, p. 132);
usavam roupas tingidas de preto, indicando luto, seus trajes “[...] já tinham sido tingidos de
preto várias vezes [...]”(Me, p. 132); que o menino era mais velho e primo da menina e havia
a figura de Osório, que “[...] vinha descalço pilhérico e meio menino também [...]”(Me, p.
133) deixar o almoço para os meninos, mandado pelo “parente da casa rica” (Me, p. 133).
70
As personagens vivem em uma ambiente de total abandono: depois que a mulher
morre, a sensação de desamparo é sentida através do desespero das crianças, que não sabem o
que fazer com o corpo. A família parece ter sido desfalcada aos poucos: vindos do interior,
vivendo da piedade de um parente mais rico, constantemente acometidos por doenças,
morriam um por um – estavam sempre portando luto.
O retrato social é intensificado pela ampliação do sofrimento da protagonista para o
ambiente: a casa era um ambiente imundo, o aspecto das crianças, sujo. Enfim, a pobreza
pode ser sentida em todas as descrições, seja quando se refere às pessoas, ou ao cenário: “A
corrosão que se abate sobre os personagens impregna as dimensões do ambiente espacial
[...]” (LIMA, 1993, p. 62).
Pode-se perceber ainda a sutileza nas descrições, que são trazidas através de
fragmentos: quase nada se sabe a respeito da família, ou o motivo pelo qual passaram a viver
naquele estado; os fatos são apenas narrados como acontecimentos que pareciam ser
“comuns” à vida. É como se aquela degradação tanto material quanto espiritual já fizesse
parte do cotidiano de todos. Tal sutileza remete à sugestão, técnica semelhante ao estilo
machadiano, do qual aborda Antonio Candido:
A sua técnica consiste essencialmente em sugerir as coisas mais tremendas da
maneira mais cândida [...]; ou em estabelecer um contraste entre a normalidade
social dos fatos e a sua anormalidade essencial; ou em sugerir, sob aparência do
contrário, que o ato excepcional é normal, e anormal seria o ato corriqueiro.
(CANDIDO, 2004c, p. 26)
É um conto denso, que retrata a fatalidade que muitas vezes recai sobre uma família
vinda do campo para a cidade em busca de melhores condições de vida e que acaba sendo
“esmagada” por um sistema no qual o pobre tem que adaptar a miséria à própria vida e passar
a entendê-la como algo corriqueiro.
71
3.2.2.1. Patrões, Chefes e Funcionários
Nos contos ambientados em contexto urbano, boa parte dos protagonistas masculinos
são caracterizados como homens maduros, letrados que geralmente têm uma boa estrutura
familiar e financeiramente vivem de forma confortável, pois exercem funções públicas.
Nos contos publicados na revista Clã, muitos são os exemplos de personagens que são
retratadas exercendo funções no trabalho. Assim como acontece nos contos de ambientação
rural, onde há certo perfil nas relações de poder e trabalho, também ocorre nos contos de
cenários urbanos uma regra para a composição dos perfis psicológicos das personagens,
baseada na posição social que ocupam.
Assim, pode-se dizer que quanto maior destaque a personagem tiver no campo
profissional, mais propensa a adotar um caráter duvidoso. Dessa forma, é possível dividir os
tipos de acordo com sua posição profissional: há os que estão no topo, cujo poder no trabalho
é refletido, algumas vezes, na vida pessoal: são geralmente os patrões, empresários ou
negociantes; logo abaixo, estão os chefes, que estão em nível intermediário, ou seja, não
exercem tanto poder quanto os patrões, mas têm poderes com os funcionários; e em seguida,
os funcionários, que estão em nível mais baixo e que muitas vezes, são bajuladores dos
chefes.
No conto “Suor e Lágrimas”, analisado anteriormente, a personagem Almeida é
exemplo da figura do chefe: como trabalhava na Central de Polícia, mantinha um ar
autoritário que se refletia também nas relações familiares, como quando a protagonista vai a
a casa do chefe de polícia: “Havia nas coisas e nas pessoas um ar de disciplina [...]”(Sl, p.
46); “[...] a vigilância policial do dono da casa ganhava ali matizes domésticos [...]”(Sl, p.
46). Também usava seu poder e autoridade para beneficiar suas vontades mais
inescrupulosas: “Enquanto Zuíla falava, os seus olhos percorreram-lhe, lentos, a mocidade do
corpo como se quisessem desnudá-la [...]” (Sl, p. 47); “[...] a mesma impassividade fria e
profissional. E, sobretudo, aquela mesma impertinência nos olhos, percorrendo-lhe as formas
[...]” (Sl, p. 48); “Sou magnânimo quando há concessões.” (Sl
A protagonista Zuíla, à qual o narrador dá indícios da vida profissional logo no início
do conto, é representante da classe funcionária: “[...] ia reclamar o cansaço da repartição [...]
(
, p. 48).
Sl, p. 44), contudo, como foi observado anteriormente, exercia um cargo inferior, talvez pelo
72
fato de ser mulher, e, sabe-se que naquela época, a mulher ainda era muito discriminada
profissionalmente.
Em “Lama e folhas” o protagonista João Sampaio, está no topo da hierarquia das
relações de trabalho, é representante dos patrões: “No escritório, fui largo e liberal com os
empregados [...]” (Lf, p. 90). Também dá indícios de sua conduta com os empregados, tanto
em casa, quanto no escritório: “[...] parece que as empregadas riem de mim. Corja!” (Lf, p.
90); “A essa gente [empregados] não se pode dar muita confiança. Sentem-se logo à vontade
e no outro dia faltam ao serviço.” (Lf, p. 90); “Hoje estou preocupado, aborreço-me. Há um
negociante às portas da falência, e o canalha me deve uma bolada. Comércio inseguro.” (Lf
Representando o funcionário, está o guarda-livros Ciríaco, cujo comportamento é
corrupto, porém, a corrupção que faz é em prol do próprio reconhecimento profissional:
“Possui o grande mérito de, numa cumplicidade espontânea, sonegar os meus ganhos, para a
declaração do Imposto de Rendas.” (
,
p. 94).
Lf, p. 90). Além de Ciríaco, o próprio protagonista, antes
da ascensão, também passou pela experiência de subalterno e seguia convicções não muito
corretas: “[...] consegui o lugar de escriturário num Banco. Como empregado, segui este
lema: flexionava a espinha diante dos chefes e era autoritário com os humildes.” (Lf
No conto “Por cima dos muros”, Dr. Elói é um exemplo de profissional justo e correto:
como juiz “[...] despachava processos ou dava audiências no foro [...]” (
, p. 92).
Pcm, p. 77); ainda no
mesmo conto, o vizinho Climério também exercia função pública “era realmente sargento da
aeronáutica” (Pcm, p. 82). Em “Nudez”, o protagonista, Dr. Marcos, se insere no nível de
chefia: era “[...] diretor da repartição e presidente do Conselho de Curadores [...]” (Nu, p.
127); todavia, parecia esgotado com o trabalho, tanto que tinha costumes estranhos: “A sua
grande compensação era andar nu por dentro de casa.” (Nu, p. 127); “[...] tinha a impressão
(positivamente ingênua) de que a nudez o libertava de muita coisa[...]”(Nu, p. 128). No
mesmo conto, há Dona Consuelo, representante da classe funcionária: “[...] secretária da
repartição, [...] eficiente e judiciosa [...]” (Nu, p. 128), que também fazia questão de bajular o
chefe: “Dizia que ele [o chefe] era um patrimônio moral [...]” (Nu,
No conto “O cachorro”, Seu Alfredo é “[...] funcionário público: dirige o posto fiscal
[...]” (
p. 128).
Ca, p. 193) e o protagonista também é funcionário de um banco. Assim como a maioria
das personagens que representam funcionários, aqui o protagonista também almejava grandes
conquistas, tanto na vida profissional, quanto na pessoal: foi capaz de trocar a namorada,
73
moça de classe média, pela filha do prefeito: “[...] filha do prefeito Aniceto, quase dono do
município, com duas ou três fazendas por aí [...]” (Ca
Alfredo Bosi, em ensaio sobre os contos machadianos, analisa o fator social que
condiciona a busca pela ascensão através das relações amorosas, afirmando que:
, p. 194). Daí pode-se concluir que o
autor deixou uma pista sutil das razões da troca: era mais conveniente para seu futuro
estruturar uma relação firme com a filha do prefeito, do que continuar um namoro que não
lhe renderia grandes retornos lucrativos.
[...] a maior angústia, oculta ou patente, de certas personagens é determinada pelo
horizonte de status; horizonte que hora se aproxima, ora se furta à mira do sujeito
que vive uma condição fundamental de carência. É preciso, é imperioso supri-la [...]
pela consecução de um matrimônio com um parceiro mais abonado [...]
Obviamente, a situação matriz é sempre o desequilíbrio social, o desnível de classe
ou de estrato, que só o patrimônio ou matrimônio irá compensar. (BOSI, 2007, p.
76)
A busca de ascensão social através do matrimônio com um parceiro abonado é
justamente a situação retratada no conto “O cachorro”, uma vez que, além de usar seu status
profissional para conseguir prestígio junto à família da primeira namorada, também está
subentendido que o término do namoro se deu porque o protagonista via a filha do prefeito
como uma pretendente de mais valia.
3.2.2.2. Senhoras
As senhoras que aparecem nos contos urbanos têm, quase sempre, o mesmo perfil:
geralmente são mulheres de boa instrução: estudaram em colégios de freiras; vêm de famílias
com boas condições financeiras, são boas donas-de-casa e mães exemplares. Quase sempre
apóiam os maridos em todas as decisões e são, em geral, pessoas bondosas.
Vivem a vida pacatamente, dedicando-se aos trabalhos domésticos e a assuntos
relacionados aos filhos e empregados.
74
São exemplos dessas senhoras: Dona Libânia, mulher do chefe de polícia de “Suor e
grimas”: “[...] carregava sem canseiras, a dignidade de uma dama: peitos fartos e caiada de
pó. Tinha a beleza branca e flácida de uma favorita em decadência.” (Sl
No conto “Lama e folhas”, é representante das senhoras de bons costumes Marta,
esposa do protagonista: “É mulher como trinta! Há seis anos que expele meninos, com
gemidos esparsos [...]”(
, p. 46).
Lf, p. 90); “Marta me repreende discretamente. Diz que estabeleço
diferença entre os filhos.”(Lf, p. 94). A mãe de Marta também é exemplo das senhoras da
época: “[...] veste-se de negro, muito ampla e pomposa.” (Lf
Em “Por cima dos muros”, Dona Diva é o maior exemplo de senhora urbana; a
protagonista se encaixa perfeitamente nesse perfil:
, p. 91).
D. Diva fazia o seu crochê ou prosseguia na leitura do seu romance, assim pela
tarde, ao balanço da cadeira austríaca, após ajeitar o cabelo em coque na cabeça
fidalga, ela toda no seu ar manso, fina de corpo e de dedos, muito alva, o olhar uma
ternura, a voz sem excessos. Porque D. Diva todos diziam era a bondade em
pessoa.(
Pcm
, p. 77)
Ainda no mesmo conto, exemplo de sua boa educação: “[...] não admitia expressões
baixas [...]” (Pcm
Em “Nudez”, aparece muito brevemente, a descrição de uma senhora, amiga da mulher
do protagonista: “Senhora de belos dotes morais, sólida formação religiosa, exemplar mãe de
família [...]” (
, p. 79).
Nu
Em “O cachorro”, apenas um breve comentário sobre a mãe de Marta: “D. Dadá é
admirável em trabalhos de agulha, bordados [...]” (
, p. 128). A descrição da amiga leva a crer que a mulher do protagonista,
seguia o mesmo perfil.
Ca
, p. 184).
3.2.3. Retratos Anônimos
Dentre os retratos anônimos, um dos que mais fazem parte da galeria dos contos que
Moreira Campos publicou na revista Clã é o da empregada doméstica. Anônimo porque
75
quase sempre está marginalizado no discurso, quase nunca percebido e por isso, sem ganhar
maior atenção por parte do leitor. Assim como acontece na vida real, a figura da empregada
doméstica é invisível ao olho menos sensível, não sendo reconhecida nem mesmo pelo seu
valor profissional.
Outro retrato anônimo é ainda o do funcionário, que na maioria dos casos, exerce
também a função de bajulador do chefe, certamente na tentativa de adquirir alguma vantagem
no serviço.
Moreira Campos soube representá-los muito bem, colocando esses tipos, talvez
propositalmente, em posições marginalizadas nas histórias que narrou, e é justamente na
observação desses tipos marginais que é possível perceber o compromisso do autor com a
realidade, assim como uma possível crítica à sociedade que coloca os humildes para fora do
foco das atenções como se aqueles não fossem merecedores de viver dignamente.
3.2.3.1. Empregadas Domésticas
O perfil da empregada doméstica (ou empregado) é geralmente o mesmo em todos os
contos em que essa figura aparece: sempre são negras, pobres, de certa idade, e que vêm
acompanhando a família dos patrões há muito tempo: “A preta é semi-escrava, um misto de
gente e de animal doméstico, sempre num plano inferior na conjuntura familiar [...]” (LIMA,
1993, p. 79).
Embora esteja inserida, na maioria das vezes, em ambientes familiares em toda casa
de classe média há a figura da empregada doméstica por ser essencialmente negra, está
fadada ao afastamento social e à condição de marginalidade: “[...] recoberta pela suja cortina
de fumaça chamada democracia racial, que é na verdade uma forma hábil de hipocrisia, a
situação do negro se evidencia a cada instante.” (CANDIDO, 2004c, p. 235).
A empregada aparece no conto “Suor e lágrimas”, na figura de Sabina, “[...] a cabocla
mexeu o corpanzil [...]” (Sl, p. 44); mais à frente, o narrador dá algumas informações sobre
Sabina: “[...] nascera e se criara no morro. Conhecia o atrevimento dos ‘tiras’”. (Sl, p. 45).
76
Em “Lama e folhas”, é um homem que faz os serviços de empregado doméstico,
todavia, segue o mesmo perfil das mulheres: “O preto Sabino”; sobre Sabino, pouco se sabe:
“[...] é gente de casa, há quinze anos que serve o meu sogro [...]” (Lf, p. 94), e é a Sabino a
quem o patrão recorre na hora da aflição: “[...] mergulhe nas águas, esvazie o tanque, mas
não encontre meu filho! [...] Você é bom, não saberia ofender-me e nunca poderia matar-me
[...]” (Lf, p. 95), e quando o empregado falha, os adjetivos são outros: “Mas o bandido do
negro o encontrou.” (Lf
Já no conto “Por cima dos muros”, há tanto a figura da empregada, representada por
uma “[...] velha empregada, que viera com eles do interior [...]” (
, p. 95).
Pcm, p. 78), como de um
empregado, o “moleque Inácio”, que a patroa via como “[...] aquisição recente e trabalhosa
para mandados e agüação no jardim [...]” (Pcm, p. 78), que algumas vezes, levava algumas
“broncas” da patroa: “[...] tu és tolo mesmo... tão grande!” (Pcm, p. 86). Há também poucas
referências às empregadas dos vizinhos: “[...] a empregada da casa mais pobre no rachar da
lenha, tarefa que entremeava com os últimos sambas e boleros [...]” (Pcm, p. 80); “A
empregada já na cozinha. [...] A voz esganiçada era dela [...] a empregada disse um desaforo
qualquer [...]” (Pcm
, p. 80). Também é apresentado um mini-diálogo entre a protagonista e a
empregada da vizinha, quando esta prendeu o filho da patroa:
- Minha nega, faça isso não! Solte a criança.
A empregada surpreendeu-se, mas logo soltou um muxoxo, na tábua de engomar:
- Ora, D. menina, a senhora é porque não conhece esse dimunho... isso é o cão!
[...]
Surgiram na cozinha da casa ao lado outras pessoas, uma delas aprovando com a
cabeça a atitude de D. Diva: aquilo realmente era um abuso.
[...]
- Estou dizendo: eu é que sei. Quando a mãe dele sai, não tem quem agüente.
(Pcm
,
p. 83)
Finalmente, em “O cachorro”, a empregada é citada somente uma vez em toda a
narrativa: “Nazaré me trazia na bandeja a fatia de bolo [...] e o pequeno guardanapo em bico
de renda [...] Requintes da mãe de Marta (D. Dadá, enfim), porque Nazaré, por ela mesma, é
preta velha solta dentro do vestido, um pé na chinela.” (Ca, p. 184).
77
Os aspectos sociais são constatados em todos os contos que Moreira Campos publicou
na revista Clã, ao longo de mais de quarenta anos. São aspectos que estão de certa forma,
“velados”, uma vez que era característica do autor transmitir uma mensagem que pudesse ser
complementada pelo leitor, constituindo “[...] vazios literários como fulcro em que se
instalam as principais subjetividades literárias [...]” (LIMA, 1993, p. 51).
78
4. CARACTERÍSTICAS DA ESCRITURA MOREIRIANA
4.1. RECURSOS ESTRUTURAIS E ESTILÍSTICOS
Muitos estudiosos afirmam que o conto moderno se caracteriza, sobretudo, pela
narrativa fragmentada, desprovida do sistema estrutural do conto tradicional, que seguia o
esquema narrativo de começo, meio e fim. Esta nova estrutura narrativa se deve ao fato do
próprio advento da modernidade, iniciado no século XIX, quando toda a sociedade refletia os
avanços da tecnologia, da presença da máquina no seu dia-a-dia. Os produtos de consumo,
que eram antes de fabricação artesanal, naquele momento passavam pelo processo de
industrialização; havia uma nova forma de comportamento que condizia com o ritmo
acelerado da vida de todas as pessoas.
Dentro daquele contexto, a arte passou a refletir também a situação geral: influenciou a
forma de pensamento; toda produção artística requeria uma nova forma de interpretação, pois
havia um novo estilo em vigência:
Acentua-se o caráter da fragmentação dos valores, das pessoas, das obras. E nas
obras literárias, das palavras, que se apresentam sem conexão lógica, soltas como
átomos [...]. Esta realidade, desvinculada de um antes ou um depois (início e fim),
solta neste espaço, desdobra-se em tantas configurações quantas são as experiências
de cada um, em cada momento destes. (GOTLIB, 2006, p. 29)
No que concerne ao conto moderno, observa-se que as narrativas valorizavam uma
temática mais voltada para o interior de cada um, de cada leitor; as histórias narradas não
eram tão excêntricas, como ocorria no romance; ao contrário, muitas vezes apresentavam
uma situação até corriqueira e banal da vida cotidiana. Contudo, atrás da banalidade do
acontecimento se escondiam verdadeiros dramas individuais que retratavam a situação
deplorável em que se via o ser humano. O contista trazia o leitor para dentro do conto, o
enredo então se tornava palpável, não havia mocinhos ou vilões, havia simplesmente
indivíduos reais.
Em relação à estruturação do conto moderno, há uma característica que sempre foi seu
principal indicador: a questão da brevidade. Economizar, sugerir mais e dizer menos, este foi
o lema dos contistas que visavam “fisgaro leitor pelo efeito que a história causaria, como
79
apontou Edgar Allan Poe no seu The philosophy of composition (1846)
31
Moreira Campos foi um seguidor de Tchékhov quando aderiu definitivamente ao conto
lacônico tornando-se um mestre deste gênero. Segundo o estudo de Lemos Monteiro, a
, em que defendia a
totalidade de efeito, ou seja, a capacidade de leitura sem intervalos. Poe acreditava que o
contista deveria saber usar a linguagem para prender o leitor ao texto, e quanto mais preso,
mais perto chegaria do efeito almejado pelo autor. Em outras palavras, o conto não só deveria
ser breve, mas também intenso.
Apesar de não desenvolver uma teoria do conto tal como fez Poe, outro escritor que
também defendeu o conto breve e forte foi Anton Tchékhov. O autor de Contos e narrativas
foi uma das fontes em que mais bebeu o nosso Moreira Campos, principalmente em suas
últimas produções. O contista russo instruía a compactação como maior ensinamento para a
construção de um conto que com ela ganharia força e novidade, quesitos imprescindíveis para
alcançar o prestígio entre os leitores: “Quanto mais breves fores, mais vezes serás
publicado... Porém, o mais importante: fica alerto o quanto puderes, cuida, sua, reescreve pela
quinta vez, corta, etc.” (TCHÉKHOV, 2007, p. 44).
Um conto conciso apresentaria clareza maior das idéias expostas pelo autor, e sendo
claro, haveria um maior estreitamento dos laços de ligação do leitor com o texto, ou seja, o
autor deveria abster-se dos excessos narrativos, como as longas descrições, muito utilizadas
nos romances.
Outro ponto relevante para a construção do conto moderno, segundo Tchékhov era a
questão do realismo: o contista deveria reportar o leitor à situações que fossem de certa
forma, palpáveis, pois, o que não é um conto senão a narração de certa história que, se não
aconteceu, poderia perfeitamente ter acontecido? Caberia então ao contista ser um narrador
do verdadeiro: “Meu objetivo é matar dois pássaros com uma só pedra: pintar a vida nos seus
aspectos verdadeiros e mostrar quão longe está da vida ideal [...]” (TCHÉKHOV 1966 apud
GOTLIB, 2006, p. 45). Mostrar a vida em seus aspectos verdadeiros talvez tenha levado o
contista moderno a não mostrar quase nada, pois a vida real não passa de uma sucessão de
acontecimentos que em sua maioria não são tão extraordinários assim. No entanto, foi
justamente essa linha que seguiu o conto moderno: representar a vida no seu mais comum
aspecto, expondo através desse “espelho” toda a problemática do homem que vivia a
modernidade, reportando o individual para o coletivo, o pequeno para o grande, galgando um
caminho inverso dos gêneros anteriores.
31
Ver GOTLIB, 2006, p. 35.
80
primeira fase da narrativa do contista cearense é aquela que compreende os livros Vidas
Marginais (1949) e Portas Fechadas (1957), nos quais as narrativas se apresentam mais
expandidas; é possível notar efeitos sinestésicos como o registro de impressões despertadas
por intermédio dos sentidos; a técnica narrativa é mais voltada para as sugestões que para o
enredo.
A realidade é dissolvida dando lugar somente à sensação do momento, ao instantâneo;
há a ocorrência de elementos visuais referentes a personagens, ambientes e paisagens. Para
simbolizar estados de depressão, o autor busca o aspecto de estreiteza em oposição à
constante impressão de largura ou amplidão. Há estreiteza nas personagens, no enfoque da
depreciação física; aliás, a maioria das personagens moreirianas apresenta-se de forma
depreciada, envolta por elementos deformadores:
Quanto aos elementos deformadores dos personagens, pode-se dizer que aparecem
em forma de doença, defeitos congênitos, ou como resultantes da atuação do tempo
corrosivo no relevo corporal das pessoas. (LIMA, 1993, p. 37)
É como se o contista deixasse implícito na descrição das características físicas
permeadas de elementos deformadores o próprio caráter moral ou psicológico da
personagem, deixando bem clara a intenção de construir um ambiente grotesco no qual
estivessem imersos indivíduos também grotescos. Uma maneira encontrada por Moreira
Campos para evidenciar o grotesco foi o uso da “ampliação das formas” (MONTEIRO, 1980,
p. 72), ou seja, as personagens são muitas vezes caracterizadas por formas aumentadas com
os membros e o corpo desproporcionais. Ao lado da ênfase das formas aumentadas, o contista
também dava às suas personagens um caráter animalesco: em vários contos há cenas em que
o ser humano, geralmente acometido por um estado de miséria do corpo ou da alma, passa a
comportar-se como um bicho, com atos instintivos. Tais características aproximam o contista
cearense do escritor alagoano, mestre do regionalismo, Graciliano Ramos:
Tal intento de apresentar as personagens como seres de condição infra-humana
aproxima alguns contos do autor da temática explorada por Graciliano Ramos em
Vidas Secas. Os pés de Fabiano são também duros como cascos e ele é mais bicho
do que gente, pelas ações que realiza e pelas dificuldades de interpretar a natureza
agressiva
. (MONTEIRO, 1980, p. 74)
81
Batista de Lima, complementando o raciocínio de Monteiro, afirma que o grotesco
observado como característica de muitas personagens é na verdade um elemento deformador
que contribui para causar a “desordem” na narrativa, entendendo o termo “desordem” pela
quebra da “estrutura linear com princípio, meio e fim bem delineados” (LIMA, 1993, p. 2).
Outra característica interessante na narrativa moreiriana é a alternância entre o branco e
o escuro, mas sempre de maneira que haja a depreciação: “criaturas viravam sombras” (p.
134) de Vidas Marginais, ou “figuras pálidas sob os lençóis brancos” (p. 179) de Portas
Fechadas. Assim depreciados, os indivíduos que figuram nas histórias de Moreira Campos
denunciam a imagem deformada da própria vida. A presença do branco e do escuro é também
analisada por Batista de Lima, que afirma ser o branco a cor que representa a presença da
morte, aparecendo nos momentos mais críticos, “[...] de maior crueza naturalista. [...] É a cor
dos túmulos, é a cor do doente, dos lençóis, principalmente das mãos e dos pés do doente
[...]” (LIMA, 1993, p. 77). Já o escuro, representado pela cor preta é referência
principalmente de decadência social: vem sob forma da cor escura da pele das “pretas
velhas”, sempre caracterizadas da mesma maneira em vários contos, como se fosse uma única
personagem que vagasse entre uma história e outra.
Sobre o cromatismo nos contos de Moreira Campos, conclui Batista de Lima que por
fazer uso freqüente das cores preta e branca, o que prevalece na narrativa é a junção das duas,
conferindo um aspecto cinzento; a atmosfera dos contos moreirianos é, na verdade, cinza ou
como diz o crítico “[...] a escritura do contista praticamente não tem coloração, já que o
branco e o negro não colorem [...]” (LIMA, 1993, p. 82).
Sinestesias ocorrem nos contos, sobretudo na junção dos efeitos visuais aos olfativos,
tácteis, auditivos e cinéticos, formando os quadros em que se encontram as personagens:
Todo esse complexo de estímulos sensoriais gera uma espécie de tela em que se
fixam os vultos indecisos de seres e ambientes. E sem dúvida expressam um apelo
de melancolia e depressão, bem coerentes com os conteúdos temáticos que os
contos pretendem expor. (MONTEIRO, 1980, p. 20)
Tais elementos narrativos contribuem como elo entre a realidade ficcional e a realidade
em si, uma vez que o leitor é levado a pensar a história através dos indícios do mundo que
está em sua volta: “[...] há sempre a noção de movimento, de processo, e o leitor é levado a
compor outras imagens com os referenciais afetivo-sensoriais que possui [...]” (MONTEIRO,
1980, p. 20). Ora, a estratégia de apresentar uma história cada vez mais próxima ao real é
justamente o que contribui para a realização do ato ficcional, como diz Anatol Rosenfeld:
82
Graças ao vigor dos detalhes, à “veracidade” de dados insignificantes, à coerência
interna, à lógica das motivações, à causalidade dos eventos, etc., tende a construir-
se a verossimilhança do mundo imaginário
.
32
Os contos tornam-se mais curtos, contudo não perdem o poder da surpresa; muito pelo
contrário, com a concisão, o autor instiga o leitor a pensar ativamente sobre as situações
narradas: “[...] cada vez mais atento aos problemas de economia verbal, foi o autor reduzindo
cada vez mais o espaço gráfico de suas produções, que foram ganhando em essencialidade, ao
passo que iam atingindo um clima cada vez mais denso [...]”
Já se podem observar, em Portas Fechadas (1957), além das características
apresentadas, traços que identificarão a fase do autor em que os textos tornam-se mais
concisos, marca definitiva da escritura de Moreira Campos.
Com o livro As Vozes do Morto (1963) é que começou a se estabelecer definitivamente
a forma de escritura que caracteriza os trabalhos do contista cearense: há uma busca do
verossímil, as personagens são mais determinadas em suas atuações. A linguagem se torna
mais objetiva, as descrições acontecem de maneira fiel, porém mais concisas e sem muitas
interferências do narrador, tal efeito é resultado do objetivo de imergir o leitor no próprio
texto, omitindo alguns fatos na narrativa, deixando espaços vazios que “[...] jogam o leitor
dentro dos acontecimentos e o provocam a tomar como pensado o que não foi dito [...]
(JAUSS, 1979, p. 90 apud LIMA, 1993, p. 10). E sobre a concisão em Moreira Campos:
Essa omissão de traços jamais poderá ser considerada incompletude. Muito pelo
contrário, ela promove através da parceria entre autor e leitor, o surgimento de
muitos outros traços que são do domínio daqueles a quem o texto se destina. Essa
parceria pressupõe um jogo de significados em que nem sempre é necessária a
coincidência entre o que escreve o autor e o que reescreve o leitor. (LIMA, 1993, p.
10)
33
32
ROSENFELD, Anatol. Literatura e personagem. In: CANDIDO, A. et. al. A personagem de ficção. São
Paulo: Perspectiva. 2007.
33
AZEVEDO, Sânzio de. Moreira Campos e a arte do conto. In: GUTIÉRREZ, A.; MORAES, V. [org.].
Tributo a Moreira Campos e Natércia Campos. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2007, p.88.
. Não há a construção rigorosa
de uma trama, mas há descrições que por si só funcionam como mensagem literária.
O uso do tempo presente, como forma de paralisar o momento, tal como uma
fotografia, personagens descritas numa linguagem direta, de forma tão fragmentada que os
detalhes prevalecem em relação ao todo, também são tentativas de tornar impessoal a
narrativa. Esse gosto pelos detalhes levará o autor a construir frases curtas:
83
A trama, baseada num argumento simples, sem artifícios, é formulada por meio de
encaixes sucessivos, em que o tempo é apresentado em diversos planos. Uma ação é
solta para ceder lugar a certas reflexões e, logo em seguida, é retomada em nova
perspectiva. (MONTEIRO, 1980, p. 31)
A idéia de tempo é quase que totalmente eliminada para dar lugar a uma valorização do
espaço favorecendo que o conto permaneça contemporâneo independente da época em que
estiver situado.
Outro traço relevante é a ironia que se apresenta às vezes mais velada, outras mais
claras, contudo é bem trabalhada. Lemos Monteiro associa a ironia nos contos de Moreira
Campos à ironia presente na obra de Machado de Assis: ironia que serve para evidenciar as
fraquezas, desonestidades ou falsidades humanas, porém tal ironia é apenas o “véu” que
cobre o discurso, e este por sua vez só pode ser “descoberto” pelo leitor, sendo o autor apenas
um guia.
Modernamente a ironia é pensada como uma “[...] ilusão envolvendo uma figura e um
tropo por meio da qual entendemos alguma coisa que é o oposto do que realmente foi dito.
Estabelece um contraste entre o modo de enunciar o pensamento e seu conteúdo [...]”
34
Em Machado de Assis, a ironia é empregada como “[...] princípio estilístico,
representando sua visão de mundo e sua filosofia perante as questões de seu tempo [...]”
,
contudo a ironia presente na narrativa de Moreira Campos está situada muito sutilmente nas
entrelinhas, levando o leitor a interpretar as ambigüidades lingüísticas do texto.
35
34
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. Cultrix: São Paulo. 1988, p. 247.
35
PERROT, Andrea Czarnobay. Machado de Assis e a ironia: estilo e visão de mundo. Tese
(Doutorado em Literatura Brasileira) Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre:
2006, p. 13.
,
ironia que está presente na obra pelo fato de que o autor assim a quis como um estratagema
ficcional. É esta a concepção da ironia machadiana, que certamente tenha sido fonte
inspiradora para a construção da narrativa de Moreira Campos.
Para Batista de Lima, a ironia moreiriana é captada como uma forma do
“abrandamento da tensão” entre criação e destruição: é pelo uso da ironia que o contista
busca amenizar o determinismo e a fatalidade presentes em suas histórias:
Para enfrentar toda uma série de dificuldades, a ironia surge mais como
abrandamento da crueza da realidade, no grande embate entre criação e destruição,
pois se incrusta no texto como forma de, na conjunção de Eros e Thanatos, mediar
os extremos da real condição humana. (LIMA, 1993, p. 59)
84
Assim, Moreira Campos usa a ironia como uma forma de abrandamento da tensão entre
vida e morte, como uma busca de humanização, uma tentativa de apego ao último fio de
esperança, tornando suportável o fardo da existência.
4.2. A CONCISÃO NO PROCESSO CRIATIVO: ANÁLISE DE QUATRO
PUBLICAÇÕES DE “LAMA E FOLHAS”
Considerando que a concisão na obra de Moreira Campos é um dos aspectos mais
relevantes, é possível fazer uma breve observação do processo criativo do contista no
trabalho de redução – comparando algumas versões dos contos publicados.
É interessante observar o trabalho do autor, que ao longo dos anos, foi aderindo cada
vez mais às lições de Tchékhov: retirando os excessos, modificando a trama de forma que
possa representar a vida reduzida a um único momento.
Para que se conheça o trabalho de criação do autor de Vidas marginais será feita uma
análise sucinta de quatro versões do conto “Lama e folhas”, que foram publicadas,
respectivamente na revista Clã n. 7, em 1949, pelas Edições Clã Fortaleza; no livro Contos
escolhidos, em 1971, pela Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará;
novamente na revista Clã n. 28, em 1982, pelas Edições Clã Fortaleza e na 2ª. edição do livro
Dizem que os cães vêem coisas, em 1993, pela editora Maltese de São Paulo.
As características físicas da revista Clã n. 7, onde saiu a primeira versão de “Lama e
folhas”, são as seguintes: apresenta fascículo de aparência retangular, com 23 centímetros de
comprimento por 16 centímetros de largura; a capa é branca, o título Clã em caracteres
maiúsculos na cor azul. Acima do título, destacam-se as palavras EDIÇÃO DE
ANIVERSÁRIO, em caracteres azuis. Os títulos dos trabalhos aparecem na cor azul e o nome
de seus autores em negrito. Abaixo do número do fascículo, ao centro da capa, está destacado
o título dos artigos contidos na seção “O livro de Clã”. O ano da publicação aparece na
extremidade inferior direita, e na margem inferior esquerda, vem o mês da publicação.
O índice é apresentado na contracapa da revista, estando o conto “Lama e folhas
situado na página de número 89. O conto está disposto da seguinte forma: título em
maiúscula, centralizado na parte superior; abaixo do título, também em maiúscula, mas com
fonte diferente, está escrita entre parênteses a palavra “conto”. Abaixo, alinhado à direita e
85
em itálico, está o informativo sobre o do lançamento do primeiro livro de Moreira Campos
Vidas Marginais (1949).
O conto está disposto em duas colunas, com um total de 114 parágrafos. Ao final do
conto vem escrito em maiúsculo e negrito o nome do autor.
A primeira edição de Contos Escolhidos de 1971 tem forma retangular, com 14
centímetros de largura por 21 centímetros de comprimento; a capa traz o nome do autor e o
título centralizado no meio da folha; as fontes estão na cor preta e com formato distorcido. Na
parte superior da capa há o desenho de flores em tons de laranja e amarelo; na parte inferior
há o desenho de folhas de árvore na cor verde e o rosto de uma mulher na cor branca sobre
um fundo azul. A autoria do desenho da capa é indicada na folha de rosto do livro: “capa de
Floriano”. A publicação do conto está disposta na página 17, com o título em negrito e
alinhado à direita, na margem inferior esquerda de cada página está o nome do autor. O conto
está disposto em uma única coluna também com 114 parágrafos.
Já na edição de número 28 da Clã, a capa tem as mesmas características da edição de
número 7, porém o nome Clã está grafado em preto. O conto de Moreira Campos está na
página 122, com o título em maiúsculo com fonte pequena; logo abaixo, alinhado à direita
está escrito “CONTO DE MOREIRA CAMPOS”. O texto está disposto em uma única
coluna, com 115 parágrafos.
A 2ª. edição do livro Dizem que os Cães Vêem Coisas (1993) tem forma retangular,
com 13 centímetros de largura por 20 de comprimento; a capa traz na margem superior
esquerda o nome do autor em preto, com as primeiras letras iniciais na cor vinho. Abaixo do
nome do autor há uma ilustração de Eduardo Odécio. Alinhado à direita e em uma coluna
com preenchimento preto, está o título do livro, grafado em fontes de formato, tamanho e
cores diferentes, assim: “dizem” está na cor lilás, “que os” na cor rosa, “cães” na cor
vermelha e “vêem coisas” em amarelo. Na margem inferior, centralizado está o nome da
editora e à direita a coleção a que pertence o livro.
O conto “Lama e folhas” está na página 15, com o título centralizado quase no meio da
folha; o texto está disposto em uma coluna com 132 parágrafos.
A seguir, será apresentada uma breve análise comparativa dessas quatro publicações
que será feita de maneira retrospectiva, ou seja, partir-seda publicação de 1993 até a de
1949. Tal escolha foi motivada pelo fato de que, vindo o autor a falecer no ano de 1994,
supõe-se que a 2ª. edição de Dizem que os Cães Vêem Coisas (1993) teria sido a última
revisada pelo contista.
86
Para um melhor desenvolvimento do trabalho de análise, é pertinente que se tome a
seguinte nomenclatura: (A) para a publicação de 1993; (B) para a de 1982; (C) para a de 1971
e (D) para a de 1949.
A comparação das respectivas publicações do conto “Lama e folhas” será feita partindo
sempre de (A). Os parágrafos foram numerados em ordem crescente, e também, para melhor
entendimento, cada incompatibilidade será grafada em itálico. Tomando como base (A):
Parágrafo 12:
Penso em dar-lhe uns brincos de brilhantes, que ela viu numa vitrina e aos quais alude
veladamente. (A, B e C)
Penso em dar-lhe uns brincos de brilhantes, que ela viu numa vitrina e aos quais, de
quando em quando, alude veladamente. (D)
Parágrafo 13:
Anunciei-lhes o menino e aumentei os vencimentos do meu guarda-livros: (A, B, C)
Anunciei-lhes o menino, fechei a casa de negócio mais cedo e aumentei os
vencimentos do meu guarda-livros: (D)
Parágrafo 13:
, sonegar os maus ganhos, (A)
, sonegar os meus ganhos, (B, C, D)
Parágrafo 16:
e, dentre os bigodes amarelados, (A)
e, entre os bigodes amarelaços, (B)
e, dentre os bigodes amarelaços (C)
87
e dentre os bigodes amarelaços (D)
Parágrafo 24:
Já me começavam a pesar as pálpebras. Minha sogra mudava a fralda do neto, quando
vi sair dali uma seringada que se curvou no ar e molhou em volta. (A)
Já me começavam a pesar as pupilas quando de repente vejo uma seringada curvar-se
no ar, abrir-se em pingos e salpicar o soalho do quarto. (B)
Já me começavam a pesar as pálpebras, quando de repente vejo uma seringada curvar-
se no ar, abrir-se em pingos e salpicar o soalho do quarto. (C, D)
Parágrafo 25:
Com sacrifício, meu pai mandou-me para um colégio na capital. Mas, decerto, eu não
nascera para acumular ciência. (A, B, C)
Meu pai me queria doutor: bacharel ou médico, um título qualquer, que me desse
prestígio no município e, depois, me assegurasse uma cadeira de deputado. Cedo arrancou-
me dentre as touceiras de cana, onde os meus dedos já calejavam e me embutiu num colégio,
na capital. Mas, de certo, eu não nascera para acumular ciência. (D)
Parágrafo 25:
De ciência, retalhos. Logo mais veio o desastre comercial do velho. (A, B, C)
De ciência, retalhos. O velho, agricultor, homem acostumado a tirar fartos proventos
da terra fértil, desprezou-me logo, como coisa trabalhosa e de pouco rendimento. (D)
Parágrafo 26:
Trancei pernas nas ruas, (A, B, C)
Vagabundei: trancei pernas nas ruas, (D)
88
Parágrafo 26:
e fiz-me revolucionário: batia-me pela queda das instituições vigentes e pregava, vagamente,
a necessidade de uma nova ordem. (A, B, C)
e fiz-me revolucionário. De colarinho sujo e grenha eriçada, preguei idéias subversivas:
batia-me pela queda [...] (D)
Parágrafo 27:
A velha, mulherão enérgico, (A, B, C)
A velha, mulherão enérgica, (D)
Parágrafo 27:
e acudir a família nos momentos mais aflitivos. (A)
e acudir a família nos momentos mais aflitos. Pois, sim, a velha danou-se e bateu o pé. (B)
e acudir a família nos momentos mais aflitivos. Pois, sim, a velha danou-se e bateu o pé. (C)
e acudir a família, nos momentos mais aflitivos. Pois, sim: a velha danou-se e bateu com o
pé: (D)
Parágrafo 31:
A velha veste-se de negro, muito ampla e pomposa e usa óculos. (A)
A velha veste-se de negro, muito ampla e pomposa, e usa lorgnon. (B, C)
A velha veste-se de negro, muito ampla e pomposa, e usa “lorgnon” (D)
Parágrafo 31:
Eu, seguro da afeição da filha, rebatia a provocação: pigarreando e esfregando os pés na
calçada, passeava diante dela minha petulância mesquinha. (A, B,C)
89
Eu, seguro da afeição da filha, rebatia a provocação: pigarreando e esfregando os pés na
calçada, passava diante dela minha petulância mesquinha. (D)
Entre a Marta romântica e a mãe monetária, pôde mais a primeira. Enfim… não sei francês,
mas há por aí certa frase de um tal de Pascal que explica esses disparates do coração. (B, C)
Entre a Marta romântica e a mãe monetária, pôde mais a primeira. Enfim… não sei francês,
mas há por aí uma frase de um tal de Pascal que explica esses disparates do coração. (D)
Parágrafo 32:
Casamo-nos, porque a esse tempo eu já estava empregado num escritório de
representações. À sombra do meu sogro, que conta algumas amizades proveitosas, consegui o
lugar de escriturário num Banco. Como empregado, segui este lema: flexionava a espinha
diante dos chefes e era autoritário com os humildes. É um meio seguro de vencer-se. Venci!
Fui de escriturário ao Caixa e, logo depois, promovido para a Tesouraria, onde dei um bom
desfalque, adulterando documentos. Houve inquéritos, demitiram-me, ameaças de prisão.
Meu sogro andava acabrunhado, falava em reputação, cabelos brancos, seu círculo de
relações e outras surradas hipocrisias. Não fazia muito caso do velho. Seus desejos em casa
nem sempre são atendidos, autoridade frágil. Minha sogra apoiava-me em silêncio. (A)
Casamo-nos. De começo, os velhos me olhavam com reserva, assim como quem vê, de
repente, entrar por dentro de casa um sujeito de conduta duvidosa. Mas, com o tempo, eu me
impus. À sombra e meu sogro, que conta algumas amizades proveitosas, consegui o lugar de
escriturário num Banco. Como empregado, segui este lema: flexionava a espinha diante dos
chefes e era autoritário com os humildes. É um meio seguro de vencer-se. Venci: fui de
escriturário ao cargo mais vantajoso: o Caixa. Aí, com seis meses, dei um desfalque de
quarenta mil cruzeiros. Meu sogro andava acabrunhado, falava em reputação, cabelos
brancos, seu círculo de relações e outras surradas hipocrisias. Não fazia muito caso do velho.
Seus desejos em casa nem sempre são atendidos, autoridade frágil. Minha sogra apoiava-me
em silêncio. (B, C)
Casamo-nos. De começo, os velhos me olhavam com reserva, assim como quem vê, de
repente, entrar por dentro de casa um sujeito de conduta duvidosa. Mas, com o tempo, eu me
impús. À sombra e meu sogro, que conta algumas amizades proveitosas, consegui o lugar de
escriturário num Banco. Como empregado, segui êste lema: flexionava a espinha diante dos
chefes e era autoritário com os humildes. É um meio seguro de vencer-se. Venci: fui de
escriturário ao cargo mais vantajoso: o Caixa. Aí, com seis meses, dei um desfalque de
quarenta mil cruzeiros. Houve inquérito, demitiram-me, ameaças de prisão, etc. Meu sogro
andava acabrunhado, falava em reputação, cabelos brancos, seu círculo de relações e outras
90
sediças hipocrisias. Não fazia muito caso do velho. Seus desejos em casa nem sempre são
atendidos, autoridade frágil. Minha sogra apoiava-me em silêncio. (D)
Parágrafo 33:
gratificações na polícia, sobrou-me ainda dinheiro com que me estabeleci. (A)
gratificações na polícia, salvei ainda uns trinta mil cruzeiros com que me estabeleci. (B, C,
D)
Mas, de frente, todos me respeitam e cortejam. (A)
Mas, de frente, todos me cortejam e até já se cogita do meu nome para presidente da
Associação Comercial. (B, C)
Mas, de frente, todos me cortejam e até se cogita do meu nome para presidente da
Associação Comercial. (D)
Parágrafo 34:
Quando levanto o dedo, as vontades contrárias murcham, recolhem-se. Meu sogro acha-me
penetrante: (A, B, C)
Quando levanto o dedo, as vontades contrárias murcham, recolhem-se, reles e rastejantes.
Meu sogro acha-me penetrante. (D)
Parágrafo 42:
Explico-me como possível. Ou então ficamos de papo para cima, olhos (A)
Envolvo as respostas em retalhos de panteísmo. Ou então, ficamos de papo para cima,
olhos (B, C, D)
Parágrafo 60:
- É de mesmo?! (A, C, D)
- É mesmo?! (B)
91
Parágrafo 92:
E assim vamos até o fim da tarde, quando os urubus já se recolhem nas alturas. Dudu
faz-me esquecer as faturas, os títulos. (A, B, C)
E assim vamos até o fim da tarde, quando os urubus já se recolhem nas alturas. Dudu
faz-me esquecer as faturas, os títulos, as vexatórias oscilações do cambio. (D)
Parágrafo 97:
Não há dúvida: a culpada é a irmã. Castigo-a, aplicando-lhe umas palmadas. (A, B, C)
Não há dúvida: a culpada é a irmã. Castigo-a; aplico-lhe umas palmadas severas. (D)
Tomando como texto-base (A), podem-se fazer as seguintes considerações:
1) Em (D) há o uso de pontuação, acentuação e vocabulário pertinentes às normas
gramaticais da época em que foi publicado, ou seja 1948;
2) Percebe-se que as publicações (B) e (C) estão mais próximas do texto-base;
3) Na comparação com o parágrafo 25, percebe-se que em (A, B, e C) foram suprimidas
informações sobre o narrador-personagem, o que pode ser atribuído ao contexto
socioeconômico da época;
4) Há também supressão de várias passagens em (A, B e C) em relação à (D). Isto se
deve ao fato que o autor ter aderido a uma escrita mais voltada para a concisão, traço
característico de seus contos.
Evidentemente, esta seção não teve por objetivo analisar detalhadamente as quatro
publicações propostas aqui do conto “Lama e folhas”, nem seguir com precisão a teoria da
Crítica Textual, mas sim apontar (mesmo que de forma sucinta) o trabalho de
aperfeiçoamento que o autor dedicou a este conto, considerado um dos mais bem construídos
da literatura nacional.
92
4.3. TEMÁTICAS FREQUENTES
De acordo com o estudo de Lemos Monteiro (MONTEIRO, 1980, p. 39-59), o universo
literário de Moreira Campos está disposto em três vertentes temáticas, que são como forças
atuantes na própria existência humana: a força da criação, a força da destruição e a força do
sobrenatural. A primeira estaria ligada ao erotismo ou ao amor em sua forma carnal:
É o amor espúrio das mulheres adúlteras, o impulso sado-masoquista dos instintos
sexuais, a atração inexplicável de velhos por crianças, a prostituição, as perversões
homossexuais ou o amor puro e tranqüilo na rotina da existência.
A segunda ao fatalismo: “Essa visão até certo ponto determinística da existência se
manifesta no trato com os temas da subvida, da miséria, da doença incurável e,
conseqüentemente da morte.”; e a terceira ao misticismo:
Ao homem compete apenas viver o absurdo como personagem de um drama. Sua
vida e sua morte são determinadas por forças misteriosas, ignotas, que se
manifestam sob a forma do inexplicável e causam temor.
Assim, o crítico infere que, para o contista, as forças principais que regem a vida do ser
humano são alegorizadas por Eros e Thanatos no que “[...] Eros, impulso para o surgimento
da vida, de suas mazelas e desgraças. Thanatos o peso que esmaga os valores construídos, as
aspirações e anseios, os sonhos e ideais [...]” logo, o homem não tem controle sobre seu
destino e sua própria vida, entregue como está à vontade de algo superior que comanda todas
as suas ações, o que é característico da própria existência humana.
Desta maneira, as temáticas moreirianas de certa forma sempre irão remeter a esse eixo:
a constante peleja do homem com seu próprio destino, algumas vezes travada por lutas,
outras por entregas.
Como foi dito anteriormente, força criadora ou de criação é aquela que está diretamente
relacionada com o impulso da vida, ou seja, o instinto sexual inerente a cada ser humano; é
representada em vários contos pelo erotismo ou o amor na sua forma mais carnal.
Logo em seu primeiro livro, Vidas marginais (1949), Moreira Campos traz o adultério
como conseqüência do amor proibido, como ocorre no conto “Vigília” no qual o drama da
personagem principal, um viúvo que vive a aflição de se sentir traído pela segunda mulher
muito mais jovem que ele é apresentado até o momento em que é abandonado. Há presença
do elemento erótico no momento em que o marido traído ao mesmo tempo em que se vê
93
tomado pela ira, sente uma enorme excitação sexual por imaginar a mulher com outro
homem, conferindo uma condição de “sado-masoquismo”.
Já em Portas fechadas (1957), o elemento do erotismo é trabalhado junto a uma dose
de ironia e frustração como se observa no conto “A flor e a madrugada” que narra o episódio
de uma relação entre um jovem empregado de hotel e uma senhora rica. De forma muito sutil,
o autor descreve o desejo carnal que vai aumentando até chegar ao ápice com a consumação
do ato sexual entre a mulher e o rapaz.
Uma das facetas do erotismo trabalhado pelo autor é o impulso libidinoso, presente em
contos como “O quadro”, cujo enredo gira em torno do desejo de um homem já de certa idade
por uma criança; ou mesmo o amor demasiadamente ciumento de um filho pela mãe, no
conto “Mãe e filho”.
No livro As vozes do morto (1963), o amor é tratado de forma diversa, pois está ligado
à restrição dos sentimentos de solidariedade e de menosprezo, como pode ser visto nos contos
“As duas maçãs” onde um homem trai a mulher por esta se encontrar paralítica, ou no conto
“A prima”, no qual um rapaz que acabara de perder a mãe que também era paralítica e
ainda no seu velório sente um forte desejo pela prima chegando a possuí-la, sendo tomado em
seguida de forte remorso e nojo de si mesmo.
No conto “Infância”, o elemento erótico é apresentado sob a ótica infantil, quando um
homem narra um episódio de sua infância no qual sentiu pela primeira vez curiosidade em
ver a nudez da empregada que trabalhava em na casa de seus pais. Neste conto, é possível
perceber que o apelo sexual está mais voltado para os fatores naturais do desenvolvimento
humano, pois é visto apenas como curiosidade infantil e não como desejo em si.
Outra visão do impulso sexual acontece nos contos que abordam o tema da
prostituição, como é o caso de “Maria”, uma empregada doméstica que acaba sendo
“abusada” pelo patrão e não vê outro caminho senão o de cair na promiscuidade. Aqui o
autor, além de apontar a falta de ética e respeito às pessoas de origem humilde, sugere uma
crítica social, que está inserida em grande parte dos contos de Moreira Campos, porém esse
ponto será tratado mais adiante. O que interessa aqui é enfatizar o caráter de fatalidade contra
a qual as personagens não podem lutar.
Enfim, o apelo erótico chega ao seu mais alto grau de irracionalidade quando é
representado pela violência sexual, como ocorre em “O puxador de terço”, que faz parte do
livro homônimo publicado em 1969, quando há a narração de um estupro contra uma criança.
No conto, o criminoso é descrito como um animal abarcando características bestiais,
enquanto a criança é toda caracterizada pela sua delicadeza.
94
Em todos os casos nos quais o erotismo é apresentado percebe-se que havia um
cuidado do autor em não explicitar as descrições, “[...] por vezes, o erotismo é apenas
sugerido ou descrito de forma velada [...]” (MONTEIRO, 1980, p. 47), o que confere à
intenção pretendida pelo autor: deixar que o leitor apreenda a mensagem nas entrelinhas,
preenchendo as lacunas deixadas no texto. Há também a constante presença do elemento
grotesco, muitas vezes associados a animais asquerosos ou cenários repugnantes, como
ocorre no conto “As baratas”, em que um casal de estudantes se ama em meio à imundície de
uma casa infestada de baratas.
Contudo, em meio a tantas representações negativas do desejo sexual, há também a
representação do amor em sua forma mais pura e doce, como no conto “O beijo”, que narra
através de um beijo entre marido e mulher, toda a pureza e profundidade desse sentimento tão
sublime. Assim, o autor trabalhou a força criadora em sua obra, como um “[...] processo
pluridimencional que somente se fecha por outras forças de atuação, tão poderosas quanto o
elã vital ou a bio-energia [...]” (MONTEIRO, 1980, p. 50).
O homem, frente ao seu destino imbatível, pode não ter condições de lutar contra a
força da fatalidade, que na maioria dos casos é uma força negativa, levando-o a uma total
anulação: “[...] o homem é um joguete da força inexplicável, imbatível, inexpugnável, contra
a qual ele nada pode fazer [...]” (MONTEIRO, 1980, p. 50).
A morte é tema constante na representação da força destruidora em Moreira Campos,
pois é ela a conseqüência final da fatalidade que é inerente a todo ser vivo. Todos os temas da
força destruidora na narrativa moreiriana giram em torno do mórbido: seja na descrição de
ambientes (cemitérios, velórios, necrotérios, etc.); seja na apresentação das personagens
(estados físicos de debilitação); seja na caracterização geral das situações cotidianas (miséria,
subvida).
Batista de Lima analisa a morte nos contos de Moreira Campos como elemento
inerente na sua narrativa. A morte começa a ser percebida através dos indícios deixados pelo
autor, como a corrosão que toma conta tanto dos ambientes quanto das personagens. A
corrosão é representada sob os mais variados aspectos como as doenças, os defeitos
congênitos, a situação social, a degradação dos espaços, dos objetos; pela presença de seres
repugnantes como insetos e aves consideradas portadoras de mau agouro; ou ainda pelos
comportamentos depressivos e desprovidos de esperança manifestados pelas personagens.
Tal corrosão é o princípio do fim, da morte que se abaterá sem piedade sobre os
indivíduos.
95
No livro Vidas Marginais (1949) há logo no primeiro conto, “Lama e folhas”, a
presença da força destruidora: a narrativa vai evoluindo num crescente que não há como
negar a atmosfera de angústia que vai se alastrando no decorrer do conto.
Já em “Náufragos”, do mesmo livro, em toda a narrativa há a descrição de um cenário
de subvida, onde não se pode fazer nada a não ser aceitar o destino trágico: “[...] por toda
parte sensação de melancolia, de abandono, a descrição do quadro trágico, o sentimento do
absurdo [...]” (MONTEIRO, 1980, p. 51).
No conto “Esmagados” há a explicitação da tragédia: não só a morte é apresentada
como fato incontestável, como esta acontece da forma mais violenta e explícita no momento
do esmagamento da personagem.
No livro Portas Fechadas (1957) a temática da morte surge acidentalmente, como
ocorre no conto que dá nome ao título; já em “As sombras do pátio” a personagem morre
eletrocutada.
A morte também aparece sob a forma de suicídio, talvez como única maneira da
personagem agir sobre sua própria fortuna, como se vê em “O preso”, no qual um homem dá
fim ao seu sofrimento acabando com a própria vida. No conto intitulado “Carnes devoradas”
há, além do motivo mórbido, a ambivalência do significado do título: as carnes fazem
referência à carne como alimento e à doença que devora o corpo da personagem. Lemos
Monteiro aponta as percepções da morte tratadas no conto, fazendo uma aproximação ao
elemento místico, quando há a descrição do Cristo situado em um lugar elevado, como se
regesse toda a existência humana dali; também há presença das velas no velório, que são
símbolos da vida que vai se extinguindo como as chamas. Outro elemento indicador da morte
é a cor branca que está presente em toda a narrativa: a personagem tem uma figura pálida, e
sua magreza se entrecruza com a alvura da pele, caracterizando um complexo que é o próprio
retrato do processo de morte. A magreza também é um símbolo que remete à fatalidade da
morte, enfatizada pelo autor através da repetição das características físicas deformadas pela
doença.
O silêncio, assim como a brancura e a magreza também está associado ao tema da
morte. Aqui o silêncio é um ato quase de reverência perante o advento do fim:
É como se a seriedade da morte impusesse o silêncio a todos, sem que nenhuma
palavra pudesse ser proferida contra o inevitável. O silêncio e a brancura são
símbolos do nada, do vazio. E como tais acompanham todas as cenas em que a
existência se extingue, inexplicavelmente. (MONTEIRO, 1980. P. 53)
96
O silêncio e a brancura são os elementos que mais caracterizam o cenário de morte nos
contos de Moreira Campos. No conto “O banho” tais elementos aparecem lado a lado na
descrição do banho bizarro de um coveiro no cemitério em meio aos túmulos
embranquecidos pela luz da lua. Aqui a morte é sentida em todos os aspectos devido ao
cenário da narrativa; porém pode-se perceber uma tranqüilidade por parte da personagem,
como se esta soubesse que nada se pode fazer em relação ao fim, a não ser acei-lo
pacificamente.
Em “Mulheres sem surpresa” a brancura, além de ser indício de morte, também está
ligada à idéia de prostituição, que não deixa de remeter à fatalidade: “[...] a brancura, nesse
contexto, é subvertida em seus valores, numa tentativa de ocultar a sordidez dos amores
prostituídos, quase inocentando o comércio sexual [...]” (MONTEIRO, 1980, p. 55).
Quanto ao silêncio que, como foi dito anteriormente, é nota que caracteriza a presença
da morte, é possível observá-lo veementemente no conto “O enterro”, onde as pessoas
acompanham silenciosamente um enterro até o cemitério. Observa-se no conto um
aglomerado de simbologias que sempre aludirão à idéia da morte e da inutilidade do homem
ante a fatalidade: a marcha silenciosa pode ser considerada como o próprio andamento da
vida, e o silêncio como a aceitação da idéia de um futuro que tende ao nada, ao vazio; o
cemitério como o próprio símbolo do lugar destinado a todos e do qual ninguém poderá
escapar.
Também no conto “O mestre” é possível observar a presença do silêncio como forma
de acolhimento do destino: quando duas mulheres, a esposa e a amante, se deparam com o
homem que amam acometido de doença terminal, resolvem cuidar dele silenciando todas as
divergências da situação. No conto “O grande medo” o silêncio é um prelúdio da morte, na
descrição de um cenário de abandono e decomposição: a manhã é neutra, os móveis da sala
são desgastados, assim como a vida vai se desgastando até a chegada do fim.
Lemos Monteiro aponta ainda alguns elementos que acompanham a figura da morte.
São eles: a visão tétrica que em várias narrativas aparece nas figuras de cadáveres,
moribundos, doentes terminais, etc. e a inclusão de animais considerados pela cultura popular
como portadores de mau agouro como morcegos, corujas, ou portadores de doenças como
ratos, baratas, moscas, etc. Batista de Lima afirma que tais elementos “[...] participam dos
contos de forma devastadora, ou seja, afetando tudo de concreto a que se achegam [...]”
(LIMA, 1993, p. 32).
Em outros contos, a morte está ligada à sensação de pecado, como em “Revolta”, de Os
doze parafusos (1978), “Mãe e filho” de Portas fechadas (1957) e “Flores para o filho” de As
97
vozes do morto (1963); em todos os três as mães choram a morte dos filhos e se sentem
culpadas pelo fato. Já no conto “Três meses de vida” se observa uma aproximação da
filosofia machadiana, quando retrata a ganância de uma filha que pratica eutanásia no pai
devido à herança que irá receber, demonstrando que diante da morte há também sentimentos
humanos baixos como mesquinhez, ambição e usura.
Sobre a temática da morte, pode-se concluir que ela é trabalhada nos contos de Moreira
Campos de modo a representar uma visão pessimista da vida que, por sua vez, está fadada ao
trágico. Contudo, nota-se que há uma espécie de “morte domada” (ARIÈS, 1977, p. 45 apud
LIMA, 1993, p. 47-48), ou seja, o autor tenta de todas as maneiras fazer com que a fatalidade
seja aceita de uma forma complacente, de modo que seja entendida como um fenômeno
natural, inerente à própria vida:
Cultivar a vida é entender a morte. Preparar-se para uma é preparar-se para outra. O
grande mérito de Moreira Campos é esse conhecimento profundo da existência, das
reais dimensões do ser, limitadas pela desordem que cada um traz de forma latente,
embutidas no seu arcabouço físico.
Em contrapartida às duas forças (criadora e destruidora) presentes nos contos de
Moreira Campos e analisadas por Lemos Monteiro, está a terceira, a sobrenatural. O homem,
como foi visto, é apenas um “brinquedo” do destino e não tem muitas alternativas para driblá-
lo; esse destino é comandado por forças inexplicáveis que só podem ser entendidas se forem
vistas pela ótica do sobrenatural. São forças que equilibram a tensão entre Eros e Thanatos
regentes de todas as leis do universo.
Em Moreira Campos, o elemento sobrenatural muitas vezes está relacionado com o
erotismo: as personagens, ao mesmo tempo em que estão imersas em ambiente místico,
religioso, sentem-se tocadas por desejos eróticos, como no conto “Irmã Cibele e a menina” de
Os doze parafusos, no qual uma freira se sente sexualmente atraída por uma noviça, deixando
levar-se pelo desejo; ou no conto “A virgem, o chapéu de palha e o Cristo”, em que a mulher
de um fazendeiro que foi curado milagrosamente o trai com o homem a quem encomendou
uma imagem da Virgem Maria.
A temática sexo/misticismo aparece ainda nos contos “O cordão e as medalhas”, que
narra as peripécias de um homem extremamente religioso, mas também insaciável possuidor
de mulheres; em “Dona Adalgisa”, do livro Vidas marginais, história de uma beata que se
apaixona por um homem casado e que vê a imagem do amado nas imagens dos santos; em “A
mulher das facas”, de Os doze parafusos, em que a figura da mulher na posição de Cristo
98
com os braços abertos é sobreposta pela imagem de sensualidade que aparece em sua silhueta
à medida em que as facas vão sendo arremessadas ao redor de seu corpo.
Em muitos casos, o sobrenatural está relacionado aos elementos de mau agouro citados
anteriormente, como morcegos que vivem nas igrejas “[...] sempre conferindo um tom de
austeridade e tecendo o mundo do medo, num prenúncio das forças ignotas e ameaçadoras
[...]” (MONTEIRO, 1980, p. 62) e corujas nos cemitérios, etc. Porém, todos esses elementos
servem para confirmar mais ainda o efeito que o autor desejava inserir em seus contos: uma
sensação de impotência perante a fatalidade da morte que nos cerca por todos os lados, em
todos os minutos de nossas vidas. Sensação esta que não pode ser superada, mas pode ser
contornada no momento em que nos damos conta de que o fim é tão natural quanto o começo,
de que a morte participa tão ativamente da vida que seria impossível pensar numa sem a
outra.
Assim, Moreira Campos está no rol dos melhores contistas brasileiros dos últimos
tempos por sua capacidade de retratar a vida e a morte numa coadunação tão natural que seus
contos não são mais meras representações do imaginário, mas representações do próprio
fenômeno existencial.
99
5. CONCLUSÃO
A presente pesquisa teve como ponto de partida os contos que Moreira Campos
publicou na revista Clã entre os anos de 1948 até 1988. Sabe-se que a literatura produzida no
Ceará ainda encontra grandes dificuldades de divulgação e isso não era diferente nos anos
anteriores; por conta disso, muitas agremiações e instituições literárias surgiram com o
propósito de expandir os horizontes das letras cearenses. O Grupo Clã é exemplo dos que
conseguiram grande prestígio junto ao público, tanto por sua proposta de apresentar novos
escritores, quanto pela qualidade de suas produções.
Ainda que o foco principal desta pesquisa se concentre essencialmente na produção de
Moreira Campos em revista, foi preciso abrir espaço para a história dos grupos literários
cearenses, assim como suas respectivas trajetórias até chegar-se ao Clã, grupo a que
pertenceu o contista aqui estudado e que ocupa um espaço de grande importância na
Literatura Cearense, bem como na Brasileira, tanto por sua representatividade no
Modernismo cearense quanto por sua longevidade – quase quatro décadas.
Vários foram os grupos literários que se destacaram no Ceará. Têm maior destaque na
historiografia literária brasileira a Padaria Espiritual de Antonio Sales e o Centro Literário do
qual participaram Pápi Júnior e Quintino Cunha; dentre as instituições voltadas para a
promoção das letras locais, destacam-se a Casa de Juvenal Galeno, que ainda nos dias atuais
se mantém em funcionamento e a Academia Cearense de Letras, importante por ter sido
anterior mesmo à Academia Brasileira de Letras.
Concluída esta espécie de “introdução” aos grupos que participaram da história da
literatura cearense, a atenção foi voltada à agremiação de Moreira Campos, que, como diziam
vários de seus membros, não tinha característica de grupo, uma vez que as reuniões não
seguiam uma freqüência determinada e aconteciam nos bancos dos cafés da Praça do
Ferreira. Contudo, o Grupo Clã destacou-se pelos nomes que dele participaram: os membros
de Clã estão entre os autores de maior prestígio na literatura nacional.
O meio de divulgação na imprensa foi a revista Clã, onde eram reservados espaços para
a publicação dos membros de Clã, a divulgação dos eventos artísticos e literários que
ocorriam em todo o país, assim como para a crítica literária e de outras áreas da arte como o
cinema, o teatro, as artes plásticas, etc.
100
Muitos foram os escritores que tiveram como primeiro meio de publicação de seus
trabalhos a revista Clã: Moreira Campos, antes da publicação de seu primeiro livro Vidas
Marginais (1949), havia dado uma prévia de sua obra um ano antes, publicando na edição
número 7 da revista, um conto pertencente ao livro.
Ao todo foram treze colaborações para o periódico, sendo doze contos e seis escritos
sobre temas que variavam entre depoimentos e críticas.
Assim, Moreira Campos destacou-se em nossas letras principalmente pela capacidade
de produzir contos. A qualidade de sua escrita é tamanha que o contista alcançou grande
reconhecimento pela crítica: seus contos se destacam por retratarem uma realidade que quase
pode ser sentida e pela concisão narrativa herdada de Tchékhov; como um exemplo do
processo criativo do contista, foram selecionadas quatro versões do conto “Lama e folhas”,
publicadas ainda em vida por Moreira Campos. Nessas versões é possível verificar, através
de análise comparativa, o trabalho do escritor na busca do aperfeiçoamento literário.
As temáticas preferidas pelo autor eram a morte, representando o fatalismo inerente a
todo ser humano; o apelo erótico, que foi trabalhado com maestria pelo contista, e o
sobrenatural, na representação do misticismo sempre presente na cultura popular, sem perder,
contudo, a precisão realista que dá o tom de veracidade das histórias.
Foi justamente essa precisão realista que abriu caminhos para a delimitação do objeto a
ser pesquisado: os aspectos sociais dos contos publicados na revista Clã. Sabe-se, como foi
exposto na Introdução deste trabalho, que o escritor reflete em suas obras a sociedade e o
momento em que está imerso; contudo, pelo próprio caráter de obra de arte, os elementos
sociais adquirem contornos estéticos e é justamente essa questão que difere a obra artística do
simples relato.
Seguindo essa linha de pensamento crítico, que estuda os elementos sociais como
participantes estéticos da obra, foi feita uma divisão dos contos de acordo com as temáticas;
assim, foram separados os contos de temática rural daqueles de temática urbana.
Dentro dessa divisão, foram subdivididos, agora seguindo uma ordem de personagens:
de acordo com a classe social de cada personagem, foi traçado um perfil para cada tipo.
Logo, observou-se que nos contos de temática rural, é clara a distância entre as classes, de
forma que os pobres eram, em sua grande maioria, lavradores agregados, que viviam à mercê
dos ricos, proprietárias de terra e patrões.
101
Freqüentemente, o pobre é acometido de desgraças que estão relacionadas com o meio
hostil em que vive, obrigando-o a submeter-se a todo e qualquer tipo de humilhação,
perdendo assim, sua dignidade.
Já a figura do rico é caracterizada pela figura do latifundiário, detentor de todos os
poderes sejam sociais ou políticos. No rico, pode-se observar que há certo grau de
desumanidade na composição de sua personalidade que depende do seu status social: quanto
mais rico, menor é a preocupação com a causa do pobre.
Nos contos cuja temática é a vida urbana, os tipos foram divididos de acordo com a
hierarquia profissional, que é indicadora da qualidade de vida de cada família.
Circulando entre esses dois tipos estão outras figuras que só podem ser percebidas pelo
olhar mais atento: são os anônimos, os bajuladores, os empregados, enfim, aqueles que
circulam na periferia do foco principal e que, apesar de estarem anônimos, ou justamente por
isso, fazem dos textos verdadeiros reflexos da sociedade retratada.
Desse modo, concluímos a pesquisa com a constatação de que existe uma crítica social,
clara ou velada, nos contos de Moreira Campos, principalmente nos contos publicados na
revista Clã e que tais contos são um reflexo do que acontecia na sociedade cearense daquela
época, o que foi tão bem recriado pela sensibilidade e maestria técnica e estética do autor.
102
BIBLIOGRAFIA
ALGE, Carlos d’. A condição humana em Moreira Campos. Jornal de Cultura. Fortaleza, p.
5-6, agosto/1994.
ALMEIDA, Rodrigo Estramanho de. Literatura e realidade social. Sociologia Ciência &
Vida, São Paulo, n. 8, ano I, p.70-77 , jun. 2007.
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. Tradução: Denise Bottmann e Federico Carotti. São
Paulo: Companhia das Letras, 2006.
AZEVEDO, Sânzio de. Literatura Cearense. Fortaleza: Publicação Academia Cearense de
Letras, 1976.
______. Moreira Campos e a arte do conto. In: GUTIÉRREZ, Angela; MORAES, Vera.
[org]. Tributo a Moreira Campos e Natércia Campos. Fortaleza: Imprensa Universitária,
2007, p. 87-90.
______. Sobre o Grupo Clã. In: MORAES, Vera; GUTIÉRREZ, Angela; REMÍGIO, Ana.
Homenagem aos 60 de Clã revista de cultura. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2007. p.
29-31.
BARATTA, Mário. Como deve ser visto o binômio Clã-Scap. Clã: Revista de Cultura.
Fortaleza, n. 27, mar. 1981, p. 26-27.
BARREIRA, Dolor. História da literatura cearense. 1º. tomo. Fortaleza: Edições do Instituto
do Ceará, 1948.
BARROSO, Antônio Girão. Esse tal de Grupo Clã. Clã: revista de cultura. Fortaleza, n. 27,
1981, p. 7-8.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.
______. Machado de Assis: o enigma do olhar. 4ª. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes,
2007.
BRADBURY, Malcolm. O mundo moderno: dez grandes escritores. Tradução: Paulo
Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
BRAYNER, Sônia. Labirinto do espaço romanesco. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1979.
CAMPOS, Moreira. Contos Escolhidos. Fortaleza: Imprensa Universitária da Universidade
Federal do Ceará, 1971.
______. Dizem que os cães vêem coisas. 2ª ed. São Paulo: Maltese, 1993.
______. Lama e folhas. Clã: Revista de Cultura. Fortaleza, n. 7, fev. 1949, p. 89-95.
103
______. Lama e Folhas. Clã: Revista de Cultura. Fortaleza: Secretaria de Desportos e
Cultura, n. 28, dez. 1982, pp. 124-125.
______. Náufragos. Clã: Revista de Cultura. Fortaleza: Instituto do Ceará, n. 2, abr. 1948, p.
55-60.
______. Nudez. Clã: revista de Cultura. Fortaleza, n. 26, jan. 1980, p. 127-128.
______. O cachorro. Clã: Revista de Cultura. Fortaleza, n. 27, mar. 1981, p. 193-195.
______. Os doze parafusos. Clã: Revista de Cultura. Fortaleza, n. 25, dez. 1970, p. 150-153.
______. Os meninos. Clã: Revista de Cultura. Fortaleza, n. 26, jan. 1980, p. 132-133.
______. Por cima dos muros. Clã: Revista de Cultura. Fortaleza, n. 16, set. 1957, p. 77-87.
______. Portas fechadas. Clã: Revista de Cultura. Fortaleza, n. 14, dez. 1953, p. 5-14.
______. Suor e lágrimas. Clã: Revista de Cultura. Fortaleza, n. 5. Out. 1948, p. 44-49.
______. Tem dono. Clã: Revista de Cultura. Fortaleza, n. 11, dez. 1951, p. 72-76.
CANDIDO, Antonio et al. A personagem de ficção. 11ª. ed. São Paulo: Perspectiva, 2007.
______. A sociologia no Brasil [1959]. Tempo Social, revista de sociologia da USP, São
Paulo: v.18, n.1, p. 271-301, jun. 2006a.
______. Ficção e confissão. 3ª. ed. rev. pelo autor. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006b.
______. Literatura e Sociedade. 9ª. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006c.
______. O discurso e a cidade. 3ª.ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Ouro sobre Azul; Duas
Cidades, 2004a.
______. O observador literário. 3ª. ed. rev. e ampliada pelo autor. Rio de Janeiro: Ouro sobre
Azul, 2004b.
______. Vários escritos. 4ª. ed. reorg. pelo autor. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul. São
Paulo: Duas Cidades, 2004c.
CLÃ: REVISTA DE CULTURA. Fortaleza, n. 0, dez. de 1946.
______. Fortaleza, n. 1, fev. de 1948.
______. Fortaleza, n. 2: Instituto do Ceará, abr. de 1948.
______. Fortaleza, n. 3, jun. de 1948.
______. Fortaleza, n. 4, ago. de 1948.
______. Fortaleza, n. 5, out. de 1948.
104
______. Fortaleza, n. 6, dez. de 1948.
______. Fortaleza, n. 7, fev. de 1949.
______.Fortaleza, n. 8/9, maio/jun. de 1949.
______. Fortaleza, n. 10, jul. de 1950.
______. Fortaleza, n. 11, dez. de 1951.
______. Fortaleza, n. 12, fev. de 1952.
______. Fortaleza, n. 13, dez. de 1952.
______. Fortaleza, n. 14, dez. de 1953.
______. Fortaleza, n. 15: Imprensa Universitária, fev. de 1957.
______. Fortaleza, n. 16, set. de 1957.
______. Fortaleza, n. 17, jun. de 1958.
______. Fortaleza, n. 18, maio de 1959.
______. Fortaleza, n. 19, maio de 1960.
______. Fortaleza: Instituto do Ceará, n. 20, out. de 1964.
______. Fortaleza, n. 21, dez. de 1965.
______. Fortaleza: Imprensa Universitária, n. 22, jul. de 1966.
______. Fortaleza, n. 23, jan. de 1967.
______. Fortaleza, n. 24, dez. de 1968.
______. Fortaleza, n. 25, dez. de 1970.
______. Fortaleza, n. 26, jan. de 1980.
______. Fortaleza, n. 27, mar. de 1981.
______. Fortaleza: Secretaria de Desportos e Cultura, n. 28, dez. de 1982.
______. Fortaleza: Imprensa Universitária, n. 29, dez de 1988.
COUTINHO, Afrânio; COUTINHO, Eduardo de Faria. A literatura no Brasil. 4ª. ed. rev. e
atual. vol. IV. São Paulo: Global, 1997.
______. A literatura no Brasil. 3ª. ed. vol. VI. Rio de Janeiro: Sul-Americana, 1971.
ECO, Umberto. Entre a mentira e a ironia. Tradução: Eliana Aguiar. Rio de janeiro: Record,
2006.
105
______. Interpretação e Superinterpretação. 2a. ed. Tradução: MF. São Paulo: Martins
Fontes, 2005.
FARIAS, Maria Auxiliadora Almeida de. Edições e Seduções: análise da revista Clã.
Dissertação (Mestrado em História) Universidade Federal de Pernambuco. Recife: 2003.
FERREIRA, Aurelio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurelio versão 5.0 edição revista
e atualizada: Dicionário eletrônico. Curitiba: Positivo, 2006, Cd-rom, Microsoft Windows
98, 2000 ou XP com internet explorer.
FIÚZA, Regina [org.]. A produção literária do Ceará: antologia. Fortaleza: Expressão
Gráfica, 2001.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 4a. ed. Tradução: Laura Fraga de Almeida
Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 1998.
FREDERICO, Celso. A sociologia da literatura de Lucien Goldmann. Estudos Avançados,
São Paulo, v. 19, n. 54, p. 32-47, 2005.
FREYRE, Gilberto. Heróis e vilões no romance brasileiro. São Paulo: Cultrix: Editora da
Universidade de São Paulo, 1979.
GOTLIB, Nádia Batella. Teoria do conto. 11ª. ed. São Paulo: Ática, 2006.
GUTIÉRREZ, Angela; MORAES, Vera [org.]. Tributo a Moreira Campos e Natércia
Campos. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2007.
JAUSS, Hans Robert. et. al. A Literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Coord. e
trad. de Luiz Costa Lima. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
JORNAL DE CULTURA. Fortaleza: Imprensa Universitária, ago. 1994.
LIMA, Herman. Evolução do conto. In: COUTINHO, Afrânio [org.]. A literatura no Brasil.
3ª. ed. vol. VI. Rio de Janeiro: Sul-Americana, 1971. p. 45-62.
LIMA, José Batista de. Ordem e desordem na escritura de Moreira Campos. Dissertação
(Mestrado em Literatura Brasileira) – Universidade Federal do Ceará. Fortaleza: 1993.
LINHARES FILHO. O Grupo CLÃ e a vanguarda literária. In: A produção literária do
Ceará, Fortaleza: Expressão Gráfica, p. 17-47, 2001.
LOPES, José Stênio. Grupo Clã. In: MORAES, Vera; GUTIÉRREZ, Angela; REMÍGIO,
Ana [org.]. Homenagem aos 60 anos de Clã Revista de Cultura. Fortaleza: Imprensa
Universitária, 2007, p. 16-21.
MARTINS, Fran. Depoimentos do grupo. In: Clã: revista de cultura. No. 27, 1981, p. 15.
MARTINS, José de Souza. A sociabilidade do homem simples. 2ª. ed. rev. e ampl. São Paulo:
Contexto, 2008.
106
MARTINS, Murilo. Martins Filho e o Grupo Clã. In: MORAES, Vera; GUTIÉRREZ,
Angela; REMÍGIO, Ana [org.]. Homenagem aos 60 anos de Clã Revista de Cultura.
Fortaleza: Imprensa Universitária, 2007, p. 35-39.
MEDEIROS, Aluízio. Crônicas das reuniões preparatórias do 1º. Congresso de Poesia do
Ceará. Clã: Revista de Cultura. Fortaleza: n. 27, mar. 1982, p. 13.
MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa I. 20ª.ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
______. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1988.
MONTEIRO, José Lemos. O discurso literário de Moreira Campos. Fortaleza: Edições UFC,
1980.
MORAES, Vera Lúcia Albuquerque de. Clã: trajetórias do modernismo em revista.
Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2004.
______; GUTIÉRREZ, Angela; REMÍGIO, Ana. In: Homenagem aos 60 anos de Clã
Revista de Cultura. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2007.
______. Moreira Campos: contista da revista Clã. In: GUTÉRREZ, A.; MORAES, V. [org.].
Tributo a Moreira Campos e Natércia Campos. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2007, p.
81-86.
PERROT, Andrea Czarnobay. Machado de Assis e a ironia: estilo e visão de mundo. Tese
(Doutorado em Literatura Brasileira) Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto
Alegre: 2006.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 5ª. reimpres. São
Paulo: Companhia das Letras, 2006.
ROSENFELD, Anatol. Literatura e personagem. In: CANDIDO, A. et al. A personagem de
ficção. São Paulo: Perspectiva. 2007, p. 9-50.
SANTOS, Dennis de Oliveira. Sociologia da literatura. Revista Urutágua - Revista
Acadêmica Multidisciplinar. (DCE - UEM). Maringá, no. 14 - dez. 07/ jan. / fev. / mar. 2008.
Disponível em: <http: //www.urutagua.uem.br/014/14santos_dennis.htm> Acesso: 02 de dez.
2008.
SOUZA, Simone de; PONTE, Sebastião Rogério. Roteiro Sentimental de Fortaleza:
Depoimentos de História oral de Moreira Campos, Antônio Girão Barroso e José Barros
Maia. Fortaleza: UFC NUDOC / SECULT – CE, 1996.
TCHÉKHOV, Anton Pávlovitch. Sem trama e sem final: (99 conselhos de escrita). Trad. de
Homero Freitas de Andrade. São Paulo: Martins, 2007.
ZILBERMAN, Regina. O espelho da literatura. Marginahlia, v. 2, p. 48-58, 2007. Disponível
em: <http://www.fajesu.edu.br/fajesu/pdf/marginahlia_n_02.pdf > Acesso: 23 de mar. 2009.
107
108
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo