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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA
Alexandre Santos de Moraes
A PALAVRA DE QUEM CANTA:
AEDOS E DIVINDADES NOS PERÍODOS HOMÉRICO E
ARCAICO GREGOS
Rio de Janeiro
2009
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Alexandre Santos de Moraes
A palavra de quem canta:
aedos e divindades nos períodos homérico e arcaico gregos
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em História Comparada da UFRJ como
requisito para a obtenção do tulo de Mestre em
História Comparada.
Orientador: Prof. Dr. Fábio de Souza Lessa
Rio de Janeiro
2009
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MORAES, Alexandre Santos de.
A Palavra de quem canta: aedos e divindades nos períodos
homérico e arcaico gregos / Alexandre Santos de Moraes. -- 2009.
158 f.: il.
Dissertação (Mestrado em História Comparada)
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto
de Filosofia e Ciências Sociais, Rios de Janeiro, 2009.
Orientador: Fábio de Souza Lessa
1. Poesia Grega Arcaica. 2. Aedos. 3. Politeísmo Grego.
4. História Teses.
I. LESSA, Fábio de Souza (Orient.). II. Universidade Federal
do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais.
III. Título.
ERRATA
Advertimos que o texto foi escrito utilizando as regras da Língua Portuguesa anteriores ao
Acordo Ortográfico que passou a vigorar no primeiro dia do corrente ano. Lamentamos não ter
tido tempo hábil para adaptar a dissertação às novas exigências de nossa língua vernácula.
Alexandre Santos de Moraes
A palavra de quem canta:
aedos e divindades nos períodos homérico e arcaico gregos
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em História Comparada da UFRJ como
requisito para a obtenção do tulo de Mestre em
História Comparada.
Aprovada em
_______________________________________________________
Prof. Dr. Fábio de Souza Lessa UFRJ (orientador)
_______________________________________________________
Profa. Dra. Marta Mega de Andrade UFRJ
_______________________________________________________
Prof. Dr. Alexandre Carneiro Cerqueira Lima UFF
Dedico esta dissertação à minha mãe Sonia,
minha avó Elza e minha namorada Caroline,
pessoas pelas quais tenho amor e admiração
tão grandes que nem os milhares de versos de
uma epopéia poderiam transcrever.
Agradecimentos
Mais de cento e cinqüenta páginas compõem esta dissertação. Estas duas são, sem dúvida,
as mais difíceis de serem escritas. Ao olhar o teclado e pensar que nomes digitar, sinto que vou
deixar de registrar pessoas que estão inscritas feito tatuagem nas linhas que se seguirão.
Infelizmente, ainda não conseguimos superar o esquecimento que toda lembrança traz consigo.
Quem é querido, contudo, não se ofende com pequenos deslizes.
Agradeço pela orientação do Prof. Dr. Fábio de Souza Lessa, que me acompanha desde a
graduação e, sempre que solicitado, faz as leituras com cuidado e diligência. Amigo, esteve
constantemente preocupado em oferecer caminhos e recursos para o aprimoramento das
pesquisas. Outros professores merecem ser lembrados: Prof. Dr. Alexandre Carneiro Cerqueira
Lima, Prof. Dr. Álvaro Alfredo Bragança Junior e Profa. Dra. Marta Mega de Andrade pelas
recomendações salutares feitas em meu Exame de Qualificação; Profa. Dra. Regina Maria da
Cunha Bustamante pelas sugestões úteis e pontuais; Prof. Dr. Victor Andrade de Melo, com
quem cursei uma das disciplinas; Prof. Dr. Sílvio de Almeida Carvalho, Profa. Dra. Leila
Rodrigues da Silva e Profa. Dra. Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva, cujo convívio no
Comitê Editorial da Revista de História Comparada é sempre prazeroso; agradeço também a
atenção, cordialidade e simpatia com que Márcia Aparecida dos S. Ramos e Leniza Maria R. dos
Santos sempre dispensaram.
Agradeço aos alunos do Programa de Pós-graduação em História Comparada pelo
convívio e pelas conversas, sempre muito agradáveis, sejam sobre assuntos acadêmicos ou não.
Agradeço também aos graduandos e pós-graduandos do Laboratório de História Antiga, com os
quais sempre estive junto em atividades e de quem recebi inúmeras críticas, idéias e sugestões.
São muitos, mas não posso deixar de agradecer a Airan Borgens, Carmen Lúcia, Fábio Biachinni,
Kímon Specialle, Giselle Costa, Diogo Pereira e Vanessa Codeço. Também não como deixar
de registrar o apoio financeiro da bolsa de estudos fornecida pela CAPES, sem o qual as
dificuldades seriam ainda maiores.
Outras influências, não necessariamente de natureza acadêmica, não são menos
importantes. Agradeço a amizade de Bruno Mouzinho, Carlos Eduardo e Igor dos Reis, irmãos
mais queridos que qualquer irmão consaguíneo poderia ser, sempre presentes e oferecendo apoio
necessário nas horas difíceis. Agradeço a minha namorada Caroline Lacerda, pelo carinho,
doçura, amor, atenção e paciência. Acompanhou de perto minhas dificuldades, meus
afastamentos, meus cansaços e, mais ainda, teve a paciência de ler a maioria dos textos que
escrevi ao longo destes dois anos e não foram poucos.
Finalmente, agradeço a presença de minha avó Elza Novaes. Apesar das dificuldades
impostas pelo avançar da idade é uma pessoa extremamente presente e influente na minha
formação. Era ela quem, segurando-me pelas mãos, conduzia meus passos curtos até a escola, no
tempo em que eu ainda não podia caminhar sozinho. Junto a ela, minha mãe. Na época da seleção
para o mestrado passou por dificuldades de saúde que, quando o curso começou efetivamente, já
não existiam mais. Meu mestrado teve a felicidade de coincindir com o fim de um período longo
de dores e incômodos que ela sentia. Sempre interessada em meus movimentos, perscrutando
minhas idéias, recebendo-me calorosamente, expressando seu carinho sem timidez e passando
aquele cafezinho que revigora o olhar cansado de tanto percorrer as letras, assume a condição de
mãe em seu sentido mais singelo e grandioso. Amo muito vocês.
Volto a afirmar que todos os citados e muitos não citados são essenciais para a finalização
desta dissertação. Espero sinceramente que ela possa manifestar, em termos de qualidade, a
qualidade expressa pela existência de vocês.
Resumo
MORAES, Alexandre Santos de. A palavra de quem canta: aedos e divindades nos períodos
homérico e arcaico gregos. Rio de Janeiro, 2009. Dissertação (Mestrado em História
Comparada) Programa de Pós-graduação em História Comparada, Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
Nossa dissertação propõe analisar as récitas dos aedos gregos dos períodos homérico (séc.
X a VIII a.C.) e arcaico (séc. VIII ao VI a.C.). Utilizando como principais referências o Hino
Homérico a Hermes IV, o Hino Homérico a Apolo, os poemas de Hesíodo e as epopéias
atribuídas a Homero, pretendemos compreender de que modo estes poetas orais discorriam sobre
sua atividade e buscavam, com o louvor de seus próprios méritos, angariar visibilidade e prestígio
sociais.
Além de incluir personagens e situações em que se percebe nitidamente uma reflexão
sobre as práticas enunciatárias, percebemos que determinadas características dos deuses Hermes,
Apolo e das Musas foram construídas na tentativa de ratificar a sacralidade e as peculiaridades
atribuídas ao recitato. Orientados pela proposta teórico-metodológica de Marcel Detienne,
mostraremos através da comparável representações e discursos metapoéticos da poesia aédica
que se faz necessário recusar a tradição historiográfica que observa as timaí dos deuses de modo
independente para pensarmos as articulações e associações das quais são legítimos portadores.
Acreditamos que o debate comparativo, ao colocar os deuses em perspectiva, faz com que
semelhanças e diferenças se apresentem de modo mais plural e nítido.
Abstract
MORAES, Alexandre Santos de. The words of who sings: aiodos and greek deities in the
homeric and archaic periods. Rio de Janeiro, 2009. Dissertação (Mestrado em História
Comparada) Programa de Pós-graduação em História Comparada, Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
Our research considers to analyze how sang the Greek aiodos of the homeric and archaic
periods (séc. IX to VIII VI B.C.). Using as main references the Homeric Hymn to Hermes IV, the
Homeric Hymn the Apolo, the poems of Hesiod and the epics of Homer, we intend to understand
of that way these oral poets discoursed on its activity and searched, with the louvor of its proper
glories, to get a social visibility and prestige.
Beyond including personages and situations where if it clearly perceives a reflection on
the poetical practices, we perceive that definitive characteristics of gods Hermes, Apollo and of
the Muses had been constructed in the attempt to ratify the sacrality and the peculiarities
attributed to his songs. Guided for the proposal of Marcel Detienne, we will show through
comparable “the representations and metapoetics speeches of the poetry” that if makes necessary
to refuse the tradition that observes the timaí of gods in independent way to think the joints and
associations of which they are legitimate carriers. We believe that the comparative question,
when placing the gods in perspective, makes with that similarities and differences if present in
plural and clear way.
Sumário
1 Introdução
..........................
12
2 Poetas e Poesia oral na Grécia Homérica e Arcaica
..........................
30
2.1 Cultura oral e cultura escrita na Grécia Antiga
..........................
31
2.2 Práticas poéticas na Antigüidade Grega
..........................
35
2.3 Composição, técnicas formulares e recitação aédicas
..........................
42
3 As representações de aedos
..........................
49
3.1 Cantos rituais e a atuação de aedos não-profissionais
..........................
50
3.2 - O paradigma homérico de aedos profissionais"
..........................
52
3.3 - Os espaços da visibilidade
..........................
62
4 As razões da itinerância
..........................
73
5 Apolo, Hermes e Musas: divindades poéticas
..........................
98
5.1 Aspectos míticos do canto
..........................
100
5.2 Relações entre aedos e divindades
..........................
105
5.3 Representações numinosas de atividades poéticas
..........................
124
6 Conclusão
..........................
135
7 Bibliografia
..........................
146
7.1 Documentação Textual
..........................
146
7.2 Dicionários
..........................
147
7.3 Bibliografia Instrumental e Específica
..........................
147
Capítulo I
Introdução
Falar é algo tão habitual que poucas vezes lembramos que é um fato social. As palavras
não são unicamente mecanismos comunicacionais, veículos de uma informação que existe à sua
revelia, transmissoras de um conteúdo que independe de sua participação. Devidamente
selecionadas, entoadas com critério, adequadas à ocasião e ao público ouvinte, as palavras forjam
um significado, respondem por fins políticos e possuem uma historicidade muito própria. Em
sociedades de cultura proeminentemente sem escrita, a importância das palavras ditas oralmente é
ainda maior. Sua complexidade é tanta que nem sempre percebemos aquilo que o falar quer, de
fato, dizer. Neste sentido, os usos da fala se tornam objetos da História porque podem nos ajudar
a entender as motivações e características peculiares dos indivíduos que produziram certos
documentos históricos que estamos habituados a ler.
Os poemas oriundos dos Períodos Homérico e Arcaico gregos (séc. IX ao VI a.C.)
1
são
um excelente campo para avaliarmos esta problemática. Neles é possível observar as marcas
deixadas por indivíduos que tinham na fala seu meio de sobrevivência. Era através da palavra dita
oralmente que angariavam prestígio e visibilidade sociais. É notável o esforço que os poetas orais
aedos faziam para que suas récitas euforizassem seu papel social, inscrevendo através de uma
gama variada de registros metapoéticos as leituras que edificavam sua própria participação na
1
Segundo Jean-Nicolas Corvisier, podemos situar os épicos homéricos no período denominado Geométrico, situado
entre 900-850 a.C. (CORVISIER, 1996, p. 9). Por outro lado, como assinala Neyde Theml, os poemas homéricos,
ainda em sua dimensão histórica, inserem-se no conjunto de fenômenos de mudança da sociedade durante o VIII
século a.C., quando a expressão da língua e da fala tiveram como resultado inovador a forma épica (THEML, 1995,
p. 147). Assim, o espaço cronológico desta pesquisa tem como limite a tradição poética dos aedos que se extende de
finais de século IX a.C. até meados do Período Arcaico grego (séc VI a.C.).
vida em sociedade. Através deste movimento é possível fazer vir à lume uma rede complexa de
tensões e relações de poder, resgatando a historicidade de indivíduos que comumente se vêem
esquecidos em função da tendência de sublimar a idéia de autoria em prol da subjetiva noção de
tradição oral.
Estes esforços se viam limitados pelo próprio sentido de suas atividades. Os aedos não
faziam parte do grupo seleto de nobres que, em uma sociedade altamente estratificada, ostentava
seu poder através de discursos que lhes atribuíam uma genealogia heróica e, em alguns casos,
uma origem divina. Para este grupo, o prestígio social era baseado em uma noção de glória
kléos que dependia da difusão dos feitos de seus pares para os outros estratos sociais. Neste
sentido, as récitas eram limitadas pelos desejos desta aristocracia poderosa que desejava ver os
poemas relatando suas façanhas e sua origem guerreira. pouco espaço para falar de temas
diferentes daqueles que o público ouvinte tem a inteção de consumir. Com isso, acreditamos ter
sido necessário lançar mão de recursos para que a função social dos poetas assumisse contornos
nítidos. O esforço de autoglorificação, necessário para angariar sustento e deferências, pode ter
sido responsável pela própria dignificação da poesia. Não é sem motivo que Homero,
considerado o aedo mais prestigiado de todos, assumiu um estatuto tão elevado no mundo
Ocidental.
Aproveitando as oportunidades que os poemas ofereciam para se incluirem nos enredos,
os aedos inscreveram discursos extremamente elogiosos a respeito de seu próprio ofício. Mais do
que isso, os poetas orais gregos fizeram das representações de divindades helênicas
especialmente as Musas, Apolo e Hermes um locus privilegiado para legitimarem a sua atuação
e glorificar a poesia. Em outras palavras, nossa hipótese principal defende que as Musas, Apolo e
Hermes tiveram determinados domínios de competência forjados na tentativa de orientar,
legitimar e mediar a atividade dos poetas orais gregos, oferecendo uma referência numinosa para
a execução dos cantos. Fez-se necessária uma investigação empírica para mapear de modo plural
a gama de caracterísiticas, evidentes ou não, que fizeram destes deuses entidades plausíveis de
representar as atividades poéticas. Para tal, as noções de politeísmo e de comparativismo
histórico de Marcel Detienne oferecem fundamento teórico-metodológico consistente.
No quadro das Ciências Humanas, o comparativismo tempos ocupa um espaço
privilegiado. Heinz-Gerhard Haupt, por exemplo, nos recorda que, para Durkheim, o método
comparativo é o único que convém à sociologia (HAUPT, 1998, p. 29). O africanista Marc
Augé também assinala que a antropologia e a etnologia se definem por sua vocação comparatista
(AUGÉ, 1999, p. 78). Max Weber e Norbert Elias se utilizam da comparação abertamente.
Apesar disso, o uso da comparação na História foi descartado durante muito tempo. Para Peter
Burke, os historiadores a rejeitaram porque estavam interessados no específico, no único, no
irrepetível (BURKE, 2002, p. 40). De fato, os nacionalismos exacerbados, como atestam uma
série de análises a respeito, contribuíram muito para que se evitasse, durante certo tempo, o
estudo de possíveis aspectos relacionais entre sociedades.
Um dos primeiros historiadores que se dedicou abertamente ao uso do método
comparativo foi Marc Bloch. Para o medievalista francês, aplicar o método comparativo no
quadro das ciências humanas consiste (...) em buscar as semelhanças e diferenças que apresentam
duas séries de natureza análogas (BLOCH, 1930, p. 31). Foi exatamente o que fez em Os Reis
Taumaturgos, obra que investiga o poder curativo dos reis da França e Inglaterra. Mostrando de
que modo essas sociedades partilhavam instituições e mentalidades, procura preencher lacunas
documentais ou refletir sobre a presença ou ausência de determinado fenômeno em uma e outra.
Nesta perspectiva, é preciso direcionar os olhares para objetos que apresentam características
similares, que sejam “da mesma espécie”. As temáticas submetidas a este exame comparativo
devem ser, segundo este enfoque, selecionadas e previamente estudadas com cuidado, para que
não se cometa anacronismos ou análises superficiais. É desta maneira que Ciro Flamarion
Cardoso e Pérez Brignoli assinalam que é proveitoso comparar o que é realmente comparável
(CARDOSO; BRIGNOLI, 1983, p. 414).
Marcel Detienne, no entanto, propõe uma abordagem comparativista que busca romper
com as restrições impostas pelo método blochiano, oferecendo aos especialistas um caminho que
possibilite observar ângulos insólitos e inexplorados. Apresentado definitivamente na obra
Comparar o Incomparável título, por si só, bastante sugestivo o helenista sugere que o
enfoque comparativo seja redirecionado: em vez de comparar problemas pertencentes a
sociedades próximas no tempo e no espaço, devemos escolher inicialmente um problema e
direcionar os olhares ao modo pelo qual diferentes objetos lidam com ele:
O comparativismo construtivo de que pretendo defender o projeto e os
procedimentos deve de início se dar, como campo de exercício e de
experimentação, o conjunto das representações culturais entre as sociedades do
passado, tanto as mais distantes como as mais próximas, e os grupos humanos
vivos observados sobre o planeta, ontem ou hoje (DETIENNE, 2004, p. 47).
Sua proposta implica a criação de um conjunto de comparáveis. Estas comparáveis
definem o fio condutor do exercício comparativo e convidam diferentes objetos ao diálogo acerca
de um problema em comum. Nas palavras de Detienne, são placas de encadeamento decididas
por uma escolha, uma escolha inicial (DETIENNE, 2004, p. 58). Tratam-se de problemas
definidos a priori, a partir dos quais determinados objetos são convocados ao diálogo. Busca-se,
a partir deste contato, observar as questões que emergem empiricamente, compreendendo as
imbricações, semelhanças e diferenças que aparecem diante da reação à problemática estipulada.
Esta perspectiva possibilitou uma maior flexibilidade para os historiadores que se dedicam a
este método. Este horizonte comparatista convida os pesquisadores a colocar em múltiplas
perspectivas as sociedades, os contrastes, os excessos e o secreto, inicialmente, sem fronteiras de
tempo ou de espaço (BUSTAMANTE; THEML, 2004, p. 14). Rompe-se a premissa de que a
comparação deve pôr em cena apenas as disparidades ou similitudes de modelos entre sociedades
diferentes, mas que mantêm entre si um conjunto nimo de verossimilhanças. Detienne julga
que o comparatismo é mais vivo, mais estimulante se etnólogos e historiadores sabem ouvir as
dissonâncias e colocam em perspectiva o que inicialmente parece “incomparável” (DETIENNE,
2008, p. 21).
A obra L’invention de la Mythologie, de 1981, antecipa algumas questões que serão
aprofundadas quando o autor lança as bases de sua proposta. Marcel Detienne procura mostrar
como a prática comparativa remonta às primeiras tentativas de estudo sistemático da mitologia
helênica. As cátedras de Mitologia Comparada criadas nas universidades de Oxford, Berlim,
Londres e Paris, que tinham em filólogos como Friedrich Max Müller, Ludwig Preller e A. H.
Krappe na Alemanha e Paul Decharme na França seus principais representantes, buscavam,
através do exame comparatista, desvelar o absurdo e o grotesco dos mitos. A explicação do
caráter animalesco, as histórias selvagens, aventuras infames e ridículas, incestos, adultérios,
assassinatos, roubos, atos de crueldade e canibalismo passou a ser o cerne daqueles que
buscavam construir um discurso científico. Tratava-se, portanto, de uma ciência do escandaloso
(DETIENNE, 1998, p. 17-18).
A preocupação em desbravar os incríveis mistérios que a religião dos gregos carregava e
que enchia suas histórias com um quê de repulsivo teve início com o ensaio Mæurs des sauvages
amériquains comparées aux mæuers des premiers temps, de Joseph-François Lafitau, e L’origine
des fables, de Fontenelle, ambas publicadas em 1724 (DETIENNE, 1998, p. 19). O primeiro,
jesuíta, viajara anos antes para se reunir às missões na Nova França e ficou desconcertado com a
incrível semelhança que mantinham os mitos e rituais dos gentios com os dos gregos antigos.
Duas civilizações distantes da moralidade cristã prontamente foram justapostas em um exercício
comparativo. Buscava-se, colocando em perspectiva tais sociedades, descortinar as lacunas de
informação através de uma polidedálea investigação sobre os códigos e símbolos que partilhavam
América e Grécia, tão distantes temporalmente, mas tão próximas religiosamente. Era claro o
projeto civilizador de uma Europa ainda em vias de reconhecimento do Novo Mundo. Uma
Europa que se colocava como a vanguarda de tudo que havia de mais moderno, em termos de
ciência e de vida em sociedade. Prontamente os gregos foram convocados pelo tribunal da Razão,
nos tempos de uma embrionária antropologia: uma razão controversa, pois os mesmos povos que
fundaram uma idéia de Ocidente com inovações como teatro e filosofia, são os povos que seriam
comparados aos gentios da América como referencial de pensamento religioso primitivo e
ingênuo.
As teorias funcionalistas, estruturalistas e simbolistas, que marcaram profundamente as
pesquisas dos mitólogos ao longo do século XX, conduziram as considerações de Müller ao
ostracismo. O comparativismo teve pouco apelo neste período, pois estava diretamente associado
a esta tradição filológica assumida como equivocada. As exegeses dos mitos gregos tenderam a
considerar as divindades helênicas de forma desarticulada:
Hegel é quem reconhece a existência de um panteão povoado de deuses que
vivem juntos e com uma vida pessoal, com paixões e interesses opostos. Os
deuses do Olimpo deixam de ser frias alegorias, colocadas sobre um pedestal;
cada deus torna-se uma forma significante, mas o mundo “politeico”
polytheos, dizem os gregos parece impotente para se organizar como uma
totalidade sistematicamente articulada (DETIENNE, 2004, p. 94).
Esta tradição, assumida por Walter F. Otto e outros eminentes estudiosos, fez com que o
mito perdesse seu caráter dinâmico e a mobilidade de significações que pode apresentar. Se as
divindades receberam uma espécie de quinhão, um domínio de competência, também
estabeleceram relações, tensões e aproximações que não podem ser descartadas.
O método comparativo proposto por Marcel Detienne procura fazer um retorno a esta
tradição esquecida, mas posicionando-se junto a ela quase que de modo antitético. Por este
motivo dedica especial atenção ao campo dos politeísmos. Em primeiro lugar, porque reservou
grande parte de sua vida acadêmica à compreensão da religião, dos mitos e das divindades
gregas; em segundo lugar, porque o campo dos politeísmos é um locus privilegiado para se
questionar a tradição subseqüente de estudiosos que rejeitaram qualquer tipo de diálogo entre as
divindades, diálogo este que o uso das comparáveis ajuda a restabelecer.
A criação de comparáveis atua no sentido de, na rejeição deste postulado hegeliano, mostrar
como as representações dos deuses mantêm profundas analogias. Direcionando-as à análise de
tópicos particulares, as relações entre as divindades nos ajudam a compreender diversos aspectos
da vida em sociedade. Segundo esta perspectiva, para as comparações no caso dos politeísmos é
necessário que a abordagem experimental seja feita a partir de objetos concretos, que servem de
reativos. Estes reativos nos fazem observar que todo objeto, possuindo em princípio um número
infinito de traços, pode ser associado a outros objetos em séries ilimitadas de articulações. Assim,
Objetos, gestos, segmentos de situação: eis então os reativos, ou seja, aquilo que
provoca uma reação ao contato com uma potência, com um objeto ou com um
gesto que vai apresentar um aspecto não percebido, uma propriedade oculta, um
ângulo insólito (DETIENNE, 2004, p. 112).
Este método comparativo ajuda a repensar as tradicionais exegeses dos mitos gregos. Ele
traz consigo a adoção de uma postura teórica bastante específica acerca das representações dos
deuses gregos e do universo do politeísmo. Presume-se que somente a partir de uma análise
articulada dos quinhões atribuídos a cada divindade podemos investigar as diversas facetas das
relações instituídas pelas narrativas mitológicas que servem para este fim pois, desconsiderando
as relações, determinadas características não se apresentam como típicas. Para Detienne, ao
analisar os mitos é preciso considerar que isoladamente nunca são portadores de um sentido
intrínseco (DETIENNE, 2008, p. 46).
Esta trajetória ajuda a compreender a profunda vinculação que nosso quadro teórico-
metodológico mantém com o objeto de nossa pesquisa. Os mitos, por terem sua existência
justificada como discursos sobre o sagrado, são manifestações tipicamente lingüísticas e devem
ser compreendidos como tal. O caráter discursivo dos mitos é recorrente em todos os estudos a
seu respeito, desde as cátedras de Mitologia Comparada do século XIX até as teorias mais
modernas. Os mitos, especialmente os mitos gregos que falar de mitologia é, quase que
necessariamente, fazer um retorno à Grécia estiveram na gênese das teorias modernas a respeito
da linguagem.
Em Curso de Lingüística Geral, Ferdinand de Saussure retrocede aos estudos dos
fenômenos lingüísticos para lançar os primeiros esboços da teoria da qual seria o predecessor.
Saussure defende a existência de três fases a respeito dos estudos sobre os fatos das línguas. Eles
teriam se principiado pela Gramática, inaugurada pelos próprios gregos e continuada pelos
franceses. A Gramática seria meramente normativa. Estaria muito afastada da pura observação e
seus pontos de vista são forçamente estreitos. Em seguida, Saussure destaca o surgimento da
Filologia. Para o lingüista, surge em Alexandria uma primeira escola “filológica” que teria,
modernamente, prosseguido a partir dos estudos de Friedrich August Wolf, a partir de 1777. A
Filologia se proporia a transcender os fenômenos puramente da língua para, antes de tudo, fixar,
interpretar e comentar os textos. Usaria a crítica como método próprio, principalmente para
comparar textos de diferentes épocas, determinar a língua peculiar de cada autor, decifrar e
explicar inscrições redigidas numa língua arcaica ou obscura. Finalmente, teria surgido a
Gramática Comparativa, no bojo da Filologia Comparativa, quando os estudiosos perceberam
que as línguas podiam ser comparadas entre si (SAUSSURE, 2006, p. 7-8). Entre os estudiosos
que se dedicaram aos estudos da linguagem pelo viés comparativo, Saussure destaca justamente
Max Müller.
O lingüísta francês, apesar de elogiar sua erudição, elenca alguns erros do comparativismo
com que se dedicou para pensar a Mitologia. O primeiro equívoco teria sido não respeitar os
regimes de historicidade de seus objetos. Sua abordagem teria sido exclusivamente comparativa,
em vez de histórica, quando a comparação constitui condição necessária de toda reconstituição
histórica. O impulso deveria ser corrigido para que a língua não fosse considerada um quarto
reino da Natureza, à parte (SAUSSURE, 2006, p. 10). Müller, por rejeitar os regimes de
historicidade, incutiu no equívoco de perceber o mito como uma deficiência lingüística
originária, uma debilidade inerente à linguagem.
A Lingüística, amparada de certa maneira pelos equívocos dos estudos sobre o mito,
procurava justamente reconhecer de que modo a historicidade responde pela construção dos
fenômenos da Linguagem. A partir da proposta lançada por Saussure e das diversas variantes e
reconsiderações sofridas por essa área do conhecimento ao longo do tempo, a linguagem tem
necessariamente que ser referida à sua existência social. As demais escolas de Mitologia se
renderam a esta prerrogativa. O neokantino Ernst Cassirer, em sua abordagem simbolista, crê que
não devemos compreender o conteúdo do mito mediatamente. Em vez de tomá-los como meras
reproduções, devemos reconhecer, em cada uma, uma regra espontânea de geração, um modo e
tendência originais de expressão. O mito e a linguagem, assim como a arte e a ciência, seriam
símbolos: não no sentido de que designam na forma de imagem, na alegoria indicadora e
explicadora, um real existente, mas sim, no sentido de que cada uma delas gera e parteja seu
próprio mundo significativo (CASSIRER, 2003, p. 22). E este universo significativo, para
Cassirer, existe como manifestação lingüística. Os símbolos assumem o seu real quando
mencionados à rede de significados que fundam pelos recursos oferecidos pela linguagem e pela
linguagem que produzem com os significados que pretendem fazer existir.
As perspectivas mais atuais, mesmo aquelas que resistem à virada lingüística (linguistic
turn), amparadas pela imbricação com os estudos sociológicos, antropológicos e históricos,
presumem que a linguagem não é um dado externo aos indivíduos e que o pode ser
compreendida sem questionar os mecanismos de sua produção, que são socialmente definidos.
Em outras palavras, é no bojo e nas consequências dos esforços empreendido por Saussure de
pensar a exterioridade a que os textos fazem menção que nossa pesquisa procura compreender as
tentativas que os aedos faziam de se posicionar em um texto oral que não falava objetivamente a
respeito de seu universo de atividades.
A História Cultural prontamente se apropriou destas premissas ao perceber que as práticas
de leitura possuem, igualmente, sua historicidade. Os poemas gregos passaram por dois milênios
de sucessivas interpretações, análises e apropriações. Aliado a isso,
As obras, os discursos, só existem quando se tornam realidades físicas, inscritas
sobre as páginas de um livro, transmitidas por uma voz que ou narra,
declamadas num palco de teatro. Compreender os princípios que governam a
ordem dos discursos pressupõe decifrar, com todo rigor, aqueles outros que
fundamentam os processos de produção, de comunicação e de recepção
(CHARTIER, 1994, p. 8)
O autor prossegue, sugerindo como tarefa para o historiador, reconstruir as variações que
diferenciam os espaços legíveis, isto é, os textos nas suas formas discursivas e materiais e as
que governam as circunstâncias de sua efetuação, ou seja, as leituras compreendidas como
práticas concretas e como procedimentos de interpretação (CHARTIER, 1994, p. 12). Estas
considerações são importantes porque, ainda segundo Chartier,
Os textos não existem fora dos suportes materiais (sejam eles quais forem) de
que são veículos. Contra a abstração dos textos, é preciso lembrar que as formas
que permitem sua leitura, sua audição ou sua visão participam profundamente
da construção de seus significados (CHARTIER, 2002, p. 61-62).
Esta perspectiva a respeito dos discursos reflete uma tendência atual dos estudos históricos
a respeito da linguagem, que se preocupam antes em dar visibilidade aos “autores” das obras que
resgatar a intricada rede vocabular exposta pelos filólogos novecentistas. Durante muito tempo,
as práticas de leitura de textos, sejam eles modernos ou antigos, foram feitas sem que
tomássemos o devido cuidado com os mecanismos que fundamentaram sua criação. Como atenta
Pierre Bourdieu, as propriedades formais das obras desvelam seu sentido somente quando
referidas às condições sociais de sua produção (BOURDIEU, 1996, p. 129).
É francamente aceito que nenhum enunciado tem, em si mesmo, isoladamente, condições
necessárias e suficientes para permitir uma interpretação unívoca (GARCEZ, 1998, p. 48). As
interpretações acontecem na medida em que submetemos nossos valores e nossas experiências
textuais pregressas aos textos a serem decodificados. O reconhecimento dos regimes de
historicidade a que estamos submetidos, aliado ao respeito pelo momento de elaboração e ao
público a que originalmente se destinava determinada narrativa é a via pela qual poderemos fazer
emergir a individualidade destes poetas orais.
Neste sentido, nossa documentação textual se oferece como um espaço para aferirmos a
discursividade das práticas poéticas dos aedos e os referenciais dos quais se apropriavam para
que a linguagem mítica pudesse acontecer. Comparando os referenciais numinosos de que
dispunham, podemos analisar os meios pelos quais estes discursos foram produzidos e observar
as tensões a que seus produtores estavam submetidos. Nosso campo de experimentação é
definido pelas narrativas remanescentes da antiga prática de poesia oral. As mais tardias são as
epopéias Ilíada e Odisséia, atribuídas a Homero, seguidas pelos poemas Teogonia e Os
Trabalhos e os Dias, de Hesíodo e, finalmente, pelos prelúdios comumente intitulados Hino
Homérico a Apolo e o Hino Homérico a Hermes IV.
A respeito de Homero, nada sabemos acerca de sua personalidade. Aparentemente, foi o
aedo mais conhecido da Hélade. Diz-se que era cego e proveniente da rochosa região de Quios.
Apesar de insistirmos em individualizá-lo talvez porque os próprios gregos faziam o mesmo
não é possível considerar a Ilíada e a Odisséia como uma unidade, quer dizer, como obra de um
poeta (JAEGER, 2001, p. 37). Considerando as diferenças e as similitudes estilísticas entre a
Ilíada e a Odisséia, sugere-se que suas composições se distanciam em duas ou três gerações
(KIRK, 1990, p. 197). Os esforços feitos para lançar novas luzes sobre o problema, tentando
descobrir a personalidade do poeta e a maneira pela qual se deu a composição das duas epopéias,
fez surgir uma tradição entre os estudiosos prontamente denominada questão homérica.
Para Rosalind Thomas, Homero pode ter sido um indivíduo que fixou, ainda oralmente,
uma tradição de mitos pouco organizados e com escassa interligação. A autora sugere que em
algum momento foi preciso fazer uma notação por escrito destes épicos: “como possuem uma
certa coerência interna e relações interdependentes, acredita que os textos devem ter sido escritos
no mesmo momento em que Homero compôs, pois na mão de outros poetas orais, os poemas
mudariam drasticamente (THOMAS, 2005, p. 64). Gregory Nagy também admite que Homero
teria exercido o papel de consolidar uma tradição mas, diferentemente de Thomas, sugere que ele
teria conseguido agregá-la ainda em seu formato oral. Para o autor, a etimologia de Homero -
“aquele que junta” - ajudaria a confirmar esta hipótese (NAGY, 1996, p. 24). Barry Powell
compreende que Homero tenha sido aquele que fixou os poemas oralmente. Acredita que um
indivíduo se inspirou ou em Homero ou em Hesíodo para fazer o translado dos poemas de seu
formato oral para o escrito. Para tal, era preciso conhecê-los em uma forma relativamente
acabada, própria para a sua escritura (POWELL, 1994, p. 187). Há ainda especialistas que
acreditam na individualidade de um poeta chamado Homero, que teria aprendido a arte da poesia
a partir de aedos mais velhos que, por sua vez, teriam aprendido a partir de uma longa e rica
tradição de poesia oral (TAPLIN, 1995, 35). Este indivíduo teria feito a culminância de um
esforço secular de poetas, que ajudaram a forjar as histórias, linguagem e metrificação dos épicos
(BOWRA, 1952, p. 19-20).
Independentemente da hipótese, não há dúvidas de que tanto a Ilíada como a Odisséia são
resultado de uma longa tradição de oralidade. A primeira se dedica a cantar a fúria do herói
Aquiles, tecendo para tal um relato espetacular da guerra de Tróia. Seus quase dezesseis mil
versos foram divididos em vinte e quatro cantos, que começam descrevendo a chegada do
exército Aqueu às planícies de Tróia, as tormentas por que passaram em função da fúria
avassaladora de Apolo e termina com os funerais em honra a Heitor, morto pelas mãos de
Aquiles diante das muralhas que protegiam a cidade de Príamo. A segunda se propõe a narrar o
périplo do herói Odisseu, rei de Ítaca que participou da Guerra de Tróia ao lado do exército
Argivo. Os aproximadamente catorze mil versos, também divididos em vinte e quatro cantos,
descrevem o sofrimento imputado ao herói por Posêidon, que impedia seu regresso à casa. A
epopéia se inicia com a descrição dos excessos dos pretendentes ao trono de Ítaca, que
aproveitavam a ausência de Odisseu para usurpar seus bens e hostilizar os habitantes locais, e
termina com o massacre dos mesmos, imputada pelo herói após a viagem de retorno que durou
mais de dez anos.
Diferentemente de Homero, Hesíodo é um poeta que não lança muitas vidas a respeito
da própria personalidade. Viveu na Beócia, provavelmente no começo do século VII a.C.. Em Os
Trabalhos e os Dias, Hesíodo pretende enunciar, a partir dos dilemas e embates entre deuses e
mortais, como se deu a organização do mundo, apontando as origens, as limitações, os deveres
dos homens e sua própria fundamentação. Na Teogonia, elabora uma verdadeira genealogia dos
deuses, mostrando suas linhagens e organizando as representações e atributos em função de seus
lotes e honras.
Seus poemas também resultam de uma longa tradição de oralidade, mas não restam
dúvidas de que Hesíodo teria motivações pessoais para organizá-los no suporte escrito. Marcel
Detienne destaca que o período em que Hesíodo elaborou sua obra foi marcado por uma grave
crise agrícola, social e religiosa
2
. Não é sem motivo que este poema é dirigido a seu irmão
Perses, em função da crise instaurada pela disputa das terras herdadas de seu pai. Hesíodo se
sentia injustiçado com a partilha e, percebendo a corrupção dos reis “comedores de presente”, se
dedicou a ratificar o pensamento religioso que atribuía a Zeus a legítima condição de mediador
da justiça (diké) entre os homens. Para Maria Cecília Colombani, em função deste contexto, o
poeta da Ásia Menor parece ter antecipado a tensão hýbris-sophrosýne, que veio a se estabelecer
como fundamental no cenário ético-filosófico posterior (COLOMBANI, 2005, p. 7). Os poemas
2
Sobre este assunto, consultar DETIENNE, 1963. O autor articula a crise social do período Arcaico à obra de
Hesíodo, buscando compreender em que medida tais preocupações se mostram presentes, principalmente, em Os
Trabalhos e os Dias.
de Hesíodo também marcam o início dos conflitos associados à emergência do sistema políade.
Como destaca Neyde Theml:
Os poemas de Hesíodo, camponês, pastor e poeta, da Kóme de Askra, da pólis
de Téspias, na Beócia, mostram esses diferentes conflitos entre a antiga
(Realeza-agrária/pastoril) e a nova ordem social (póleis especialização do
trabalho, urbanismo e atividade marítima). Os poemas de Hesíodo ainda nos
indicam o esforço do poeta em procurar compreender os fatos contraditórios
que vivenciava e, a sua maneira, apontam as saídas possíveis para que se
pudesse viver longe das guerras, da fome, da miséria, do sofrimento e da
desonra que a revolução políade produzia (THEML, 2003, p. 278).
Jaa Torrano partilha visão semelhante, observando em Hesíodo uma tensão entre o
conservadorismo e a inovação. Para ele, a poesia hesiódica é ligada formalmente à épica
homérica (hexâmetros, estilo próprio à composição oral), ligada prenuncial e prefiguradoramente
às duas mais importantes correntes culturais ulteriores a ele (a dos pensadores e a da poesia
lírica), expondo uma concepção caracteristicamente ágrafo-oral de poesia e expondo-se
rigorosamente segundo essa concepção (TORRANO, 2003, p. 19). Apesar das peculiaridades e
da anterioridade de Homero, os gregos antigos parecem ter considerado que ambos eram
pertecentes a um mesmo período e tradição. Como testemunha Heródoto, “Homero e Hesíodo
viveram 400 anos antes de mim. São eles que, em seus poemas, fixaram para os gregos uma
teogonia, atribuíram aos deuses seus qualificativos, repartiram entre eles as honras e as
competências, desenharam suas figuras” (HERÓDOTO, História, II, 53).
Além dos poemas de Homero e Hesíodo, os chamados Hinos Homéricos também são
resultado das enunciações aédicas
3
. Estes hinos, segundo denominação dada por Tucídides (3.
104.4), eram prelúdios (προοίμιοσ): cantos inicias que precediam a dança coral ou ao recital
3
Segundo Cora Angier Sowa, os Hinos Homéricos têm sido observados pelos Estudos Clássicos como a “sombra”
de Homero e Hesíodo, tendo recebido até mesmo o qualitativo de “sub-épicos” ou “sub-homéricos”. A autora sugere
a necessidade de considerar os prelúdios como uma terceira via das tradições poéticas das quais Homero e Hesíodo
representam as duas vertentes mais conhecidas (SOWA, 1984, p. 1).
épico entoadas em favor de uma divindade específica. Os aedos que participavam de competições
em festivais religiosos entoavam os hinos buscando favor divino nas disputas antes de iniciar a
récita de um poema maior. O qualitativo “homérico” lhes foi conferido por dois motivos: em
função do estilo formular (também compostos em hexâmetros dactílicos) e porque, no Período
Arcaico, costumava-se atribuir a Homero toda obra que celebrava os mitos da tradição oral
helênica. Acredita-se que são, em sua maioria, provenientes do século VII. Em relação à
qualidade vocabular, os épicos tradicionalmente atribuídos a Homero são bastante superiores aos
Hinos, possuindo uma gama mais variada de epítetos descritivos e de palavras que se repetem
uma única vez. São conhecidos trinta e três prelúdios, de diferentes dimensões. Somente no ano
de 1488 surgiu o editio princeps dos hinos, publicado em Floreça por Demétrio Calcôndilo. A
maioria chegou até nós com muitas perdas, como o Hino a Dionísio I, do qual sobreviveram
apenas 21 versos. Os maiores são, justamente, os que hineiam Hermes e Apolo: o primeiro possui
580 versos e o segundo 546.
Existem dois Hinos Homéricos dedicados a Hermes. Além do mencionado, existe um
extremamente fragmentado, do qual restaram apenas 12 versos. Costuma-se chamar o mais
completo de Hino Homérico a Hermes [I] e o segundo de Hino Homérico a Hermes [II] ou,
como é mais usual, utilizar a organização dos hinos estipulada pelos autores modernos: como o
Hino a Hermes com mais versos foi definido como o quarto dos 33 hinos, passou a ser chamado
Hino Homérico a Hermes IV para se diferenciar do prelúdio de menor extensão, que ocupa o
décimo oitavo lugar na lista. Seus 580 versos descrevem um dos mitos de nascimento de Hermes
e a maneira pela qual assumiu seu lugar diante dos deuses olímpicos.
O Hino Homérico a Apolo é bastante controverso. Apesar de ter sido transmitido como
uma obra unitária, no ano de 1871 a segunda edição da Epístola Crítica de Ruhken distinguia
dois hinos: um dedicado a Apolo Délio e outro a Apolo Pítico. Diversos comentadores adotaram
esta posição, mas muitos continuaram a defender a tese unitarista. Por mais que haja diferenças,
consolidou-se a tendência de publicar os eventuais hinos em uma mesma sequência, já que ambos
são resultado do recitato aédico, possuem o mesmo estilo formular e são sobreviventes de um
período que possuía vários hinos diferentes dedicados a várias divindades particulares
4
. De um
modo geral, o Hino Homérico a Apolo também celebra o nascimento do deus, a instituição de
suas funções oraculares e as primeiras façanhas que acompanharam sua ascensão ao Olimpo.
Diante destas questões, a comparável que define nosso conjunto de problemas responde
pela configuração representações e discursos metapoéticos da poesia aédica. Em um primeiro
momento, nossa documentação textual será submetida a esta comparável para buscarmos
referências que orientem uma leitura sobre as práticas de canto não necessariamente atreladas à
esfera religiosa. Destacaremos as peculiaridades dos registros metapoéticos que evoquem
passagens do objeto e passagens sobre o objeto. Em outras palavras, analisaremos os momentos
nos quais a personalidade dos poetas que compuseram, transmitiram e comunicaram as narrativas
ainda em seu formato oral se manifestam e os momentos em que aparecem aedos representados
na condição de personagens das narrativas. Vistos de forma articulada, estes registros indicam
falas de si e falas sobre si, evidenciando as oportunidades narrativas em que os poetas puderam
se incluir.
Em um segundo momento, observaremos de que modos as representações de Hermes,
Apolo e das Musas versam sobre aspectos típicos da atividade aédica, constituindo-se igualmente
registros metapoéticos. É quase consensual entre os especialistas que o universo numinoso é uma
variante das tensões tipicamente humanas. Segundo Neyde Theml, os gregos buscaram dotar de
4
No próprio Hino a Apolo, na considerada “sequência délia”, há esta indicação no verso 207: “Como hei de celebrar-
te, a ti, que louvam tantos hinos?” (Hino Homérico a Apolo, v. 207).
força e estatuto superiores um mundo acima do seu e capaz de servir de referencial aos conflitos e
enigmas do viver em sociedade (THEML, 2002, p. 12). Werner Jaeger chega a afirmar que, no
caso de Homero, os deuses são, por assim dizer, uma sociedade imortal de nobres (JAEGER,
2003, p. 32). O próprio Detienne assinala que o mito prescreve a existência de um mundo
tipicamente seu, onde seu código permite produzir um saber a partir da observação e
interpretação do real (DETIENNE, 1989, p. 96). Neste caso, a comparável implica uma esforço
empírico de relacionar os usos da religiosidade e a religiosidade em si. Porém, antes de tudo,
julgamos necessário compreender a cultura oral do período a que estamos nos referindo,
situando-a diante das principais tradições poéticas gregas. Poderemos assim traçar um panorama
das narrativas aédicas e empreender uma leitura que articule os conteúdos semânticos com a
pragmática das narrativas.
Capítulo II
Poetas e Poesia Oral na Grécia Homérica e Arcaica
Vivemos em uma sociedade profundamente afetada pela escrita. Por onde quer que
andemos, nos deparamos com palavras escritas. Nas ruas uma quantidade extravagante de
informações notadas em outdoors, letreiros, placas e folhetos. O hábito de ler é tão marcante que
sequer conseguimos olhar uma palavra sem prontamente decifrar o significado que ela encerra.
Na atualidade, sociedades ágrafas costumam ser observadas como sociedades primitivas. O
mundo contemporâneo é grafocêntrico. O etnocentrismo oriundo de uma concepção tipicamente
Iluminista gerou prontamente a demarcação “letrado” versus “iletrado” para traçar uma fronteira
entre aqueles que sabem e não sabem ler e escrever. A cultura escrita, segundo esta concepção,
permitiria o total desenvolvimento de nossas potencialidades, quer como indivíduos, quer como
sociedade e, de maneira inversa, a ausência desta cultura é a causa principal do fracasso pessoal e
do “atraso” econômico e político (BOWMAN; WOOLF, 1998, p. 5).
Esta noção carrega um problema gravíssimo: não há como ser iletrado em sociedades que
desconhecem o alfabeto ou que não percebem o analfabetismo como sinônimo de ignorância. O
analfabetismo se tornou problema a partir do momento em que a guarda dos mais importantes
tratados científicos, leis, discursos sagrados e qualquer outra narrativa de valor tradicional e
documental foi confiada à escrita. Neste sentido, faz-se necessário delimitar o escopo de atuação
da escrita para entender o impacto que oralidade teve sobre as formas de comunicação durante os
períodos anteriores ao pleno estabelecimento da notação alfabética na cultura grega.
2.1 Cultura oral e cultura escrita na Grécia Antiga
O exemplo grego foi um dos grandes responsáveis, nas Ciências Humanas, pela revisão
desses parâmetros de análise acerca das sociedades sem escrita. Muitos creditavam à invenção do
alfabeto, que teria possibilitado a criação do teatro, da literatura e da filosofia, o sucesso cultural
da civilização helênica, berço do Ocidente. Admite-se hoje em dia que a escrita foi muito menos
importante do que se imaginava. A literatura que tem em Homero seu “pai fundador” não
surgiu pela máxima inspiração de um gênio criativo que dominava o alfabeto: é resultado de
séculos e séculos de tradição de oralidade. Muitos sugerem que os próprios tratados filosóficos,
em especial os platônicos, recorreram à notação em diálogos como uma estratégia para fazer
sobreviver, através da escrita, uma atmosfera de oralidade. O teatro não teria sentido de existir
sem sua declamação em um palco, diante de um público.
A dicotomia oralidade versus escrita foi prontamente convidada a substituir “letrado”
versus “iletrado”. Surge um maior respeito pelos conhecimentos confiados à memória e
transmitidos por uma boca que narra e por um ouvido que escuta. Se para o mundo atual é
desconcertante imaginar uma sociedade sem escrita, para os gregos antigos foi desconcertante
considerar que a escrita pudesse solapar a oralidade como a principal forma de comunicação à
época de sua invenção.
Eric Havelock sustenta que, substituindo-se o termo “analfabetismo”, indicador de uma
deficiência pessoal, por “cultura sem escrita”, ou “pré-letrada”, torna-se possível uma perspectiva
histórica diferente (HAVELOCK, 1996b, p. 12). Seguindo o bojo desta afirmação, podemos fazer
uma nova consideração: substituamos os termos “cultura sem escrita” ou “pré-letrada” por
“cultura oral”, como forma de conceder maior autonomia às sociedades tradicionalmente orais e
não subordiná-las ao paradigma civilizador referendado pelo constante condicionamento dos
conceitos ao universo da escritura.
A tendência atual dos estudos é de se evitar a polarização entre os dois suportes de
informação. Em vez de separar as áreas letradas da oralidade em um período ou, pior ainda, os
séculos mais antigos, supostamente de uma cultura oral, dos posteriores, supostamente letrados,
Rosalind Thomas sugere que devemos examinar a interação das técnicas de comunicação oral e
escrita. Esta abordagem pode ser muito proveitosa em estudos antropológicos, pois é hoje
extremamente difícil encontrar sociedades totalmente imunes à palavra escrita de alguma maneira
(THOMAS, 2005, p. 6). Esta perspectiva parece ser útil para o estudo de sociedades em que a
escrita começa a se impor como meio de comunicação e convive em uma relação de tensão ou
complementaridade com a oralidade. Caso tomemos como medida sociedades proeminentemente
orais, corremos o risco de criar uma falsa variável.
A despeito do que comumente se imagina, a escrita não teve seu uso lentamente
estabelecido por ser uma invenção inacessível. tempos descobertas arqueológicas
comprovaram que, mesmo na Estrutura Palaciana (1550-1100 a.C.
5
), uma escrita silábica
comumente chamada Linear B, da qual o grego teria surgido, era amplamente utilizada. Esta
notação alfabética foi encontrada inscrita em tábuas de argila, em regiões como Pilos, Tebas e
Cnossos. São datadas de XIV a XIII e foram decifradas no ano de 1952. Os arqueólogos também
descobriram escritos ainda mais antigos, remanescentes do Período Minóico Recente,
denominados Linear A, cuja decifração ainda desafia especialistas.
O Linear A, apesar de desconhecermos o conteúdo que encerra, possivelmente
desempenhava função semelhante ao Linear B: fazer a notação de documentos administrativos da
5
Todas as datas se referem ao período de antes de Cristo.
aristocracia palaciana. O uso da escrita era, portanto, bastante específico. A existência de obras
literárias transcritas em Linear B é bastante duvidosa (CALAME, 1995, p. 29). Além disso, a
língua parece ter caído em desuso com o fim da civilização micênica. A primeira menção ao uso
da escrita que possuímos se encontra na Ilíada:
À Lícia o manda, com mensagem
que grafara funestos signos em tabuinhas
fechadas, para o sogro (os sinais insinuavam
que fosse executado).
(HOMERO, Ilíada, VI, 167-170)
Os versos em questão atestam um uso não-literário da escrita. O fato das letras terem sido
grafadas em tabuinhas pode ser um indicativo de que se tratava de um alfabeto símile ao Linear B
(ou mesmo o próprio), que o estabelecimento de um alfabeto baseado no sistema de signos
fenícios se deu ao longo do Período Arcaico. Esta passagem assinala um uso não-
administrativo do alfabeto, mas autentica seu caráter utilitarista.
O alfabeto retorna por volta do século VIII. Alguns estudiosos parecem superestimar a
importância que a escrita teria assumido neste período. Eric A. Havelock considera a invenção do
alfabeto grego como uma verdadeira revolução, caso tomemos como medida o título que deu a
um exaustivo estudo sobre o assunto (The Literate Revolution in Greece and its Cultural
Consequences)
6
. Walter Burkert entende que a escrita teria afetado decisivamente as
composições tradicionalmente orais. O autor aponta o notável desenvolvimento da poesia oral
durante o século VIII, no meio da expansão comercial e de muitos estímulos das adiantadas
culturas orientais, mas atribui a derrocada das atividades destes poetas quando surge a escrita, um
projeto global, bem pensado, importado do Oriente (BURKERT, 1991, p. 37-38).
6
O autor, em uma obra posterior, admite o problema do termo revolução: “A palavra revolução, apesar de
convenientemente e na moda, pode enganar, se for usada para sugerir a substituição, de um golpe, de um meio de
comunicação por outro” (HAVELOCK, 1996a, p. 35).
A posição mais comumente aceita é a de que a escrita se consolidou lentamente, e com
bastante resistência. A despeito do que se considerou por muito tempo, o alfabeto não é o algoz
da oralidade. A escrita não surgiu de forma avassaladora, alterando bruscamente os hábitos, as
relações sociais e as formas de organização do pensamento. Como atenta Corinne Coulet, ela
nasce para suprir uma demanda comercial/econômica e não para instaurar uma comunicação de
natureza literária ou religiosa (COULET, 1996, p. 19).
Os textos mais antigos, compostos cabalmente como textos escritos, teriam sido os
poemas de Hesíodo, elaborados em meados do século VIII. Admite-se também a existência de
pelo menos cinco artefatos um vaso, fragmentos de outros dois vasos, um fragmento
(provavelmente) de uma placa de argila e uma estatueta de bronze que registram o uso da
língua grega clássica. Estes objetos de cultura material seriam remanescentes, segundo
informações arqueológicas, dos anos 740 a 690 (HAVELOCK, 1996b, p. 100). Trata-se, no
entanto, de exceções notáveis: basta compará-los à imensa quantidade de vestígios materiais do
século VIII para percebemos que a escrita não era usada com grande frequência.
Uma idéia que parece óbvia, neste caso, deve ser reiterada: uma sociedade de cultura
tipicamente oral não observaria o surgimento da escrita como uma invenção que, como uma
espécie de mágica, proporcionaria mecanismos inteiramente novos e mais atraentes de
composição e registro. A resistência ao uso da escrita pode ser notada em diversos documentos
textuais. Detienne atenta que a escrita, o objeto novo que chamamos de sistema alfabético, foi
apreendido, concebido e pensado por meio das intrigas, dos trechos de ficção e das falsificações
fascinadas pela inventividade das letras (DETIENNE, 1991, p. 79).
Os gregos, ao longo dos períodos Arcaico e Clássico, aprenderam a conviver com a
cultura escrita. Quatro séculos de adaptação fizeram com que os usos do alfabeto fossem se
consolidando e estabelecendo seus espaços próprios. Como atenta Neyde Theml, a escrita e a
comunicação oral e seus diversos veículos de comunicação caminharam paralelamente pelo
menos até o IV século (THEML, 2002, p. 11). A despeito da consolidação do uso da escrita, a
poesia representante mais nobre da tradição de oralidade helênica - manteve seu estatuto e
prestígio praticamente inalterados.
2.2 Práticas poéticas na Antigüidade Grega
No canto XIV da Odisséia, Odisseu faz uma pequena digressão a respeito de sua vida.
Argumentando que nunca fora inclinado aos trabalhos do campo ou aos afazeres de casa, mas sim
aos embates da guerra, o filho de Laertes assinala: em variados trabalhos os homens encontram
deleite (HOMERO. Odisséia, XIV, 228). Sólon, em uma elegia dirigida às Musas, faz um
intenso discurso a respeito da riqueza. Exortando os benefícios do controle e os malefícios que
sempre acompanham os excessos, sentencia algo semelhante: cada um se entrega ao trabalho de
modo distinto (SÓLON. Elegia a las Musas, v. 42). Em seguida, o legislador e poeta faz um
elenco dos diferentes tipos de trabalho a que os homens se entregam. Cita o agricultor, que dedica
seu suor durante todo o ano arando a terra, os demiurgos, que conhecem as artes de Hefesto e
ganham a vida com suas mãos e, finalmente, os poetas, que as Musas Olímpicas instruíram em
seus dons e praticam a perfeita ciência da adorável poesia (SÓLON. Elegia a las Musas, vv. 46-
53).
Hesíodo, assim como Sólon, faz um elenco de diversas atividades relacionadas às práticas
de trabalho ao discorrer sobre As Duas Lutas: o oleiro ao oleiro cobiça, o carpinteiro ao
carpinteiro, o mendigo ao mendigo inveja e o aedo ao aedo (HESÍODO, Os Trabalhos e os
Dias, vv. 25-26). O porqueiro Eumeu, no canto XVII da Odisséia, também faz um algo
semelhante:
Conquanto sejas, Antínoo, fidalgo, cortês não falaste;
Pois quem teria prazer em chamar alguém de outras paragens,
A menos que se tratasse de um desses que aos povos são úteis,
Augures, ou carpinteiros, ou médicos para os doentes,
Ou mesmo aedos divinos, que a todos deleitam com música?
(HOMERO. Odisséia, XVII, 381-385).
Nos três exemplos, os poetas são os últimos a serem citados. Não é fortuito. Encerrar o rol
de profissões citando tais indivíduos é um testemunho da importância e do prestígio que
gozava a poesia na Antigüidade grega.
Considerar as récitas dos poetas um ofício é bastante expressivo. A atribuição de um
estatuto diferenciado frente às demais atividades humanas indica que as práticas destes
indivíduos eram regidas por regras específicas, critérios, tensões e preocupações particulares. O
acesso ao conhecimento e à difusão da palavra poética dependendia de treinamento e
especialização, fazendo com que recebessem a investidura de valores específicos e passassem a
ser identificados pela sua associação com este domínio.
As palavras dos poetas, enunciadas oralmente, produziram uma parcela significativa do
conhecimento de que dispomos da sociedade helênica. Seus conteúdos discursivos possuem uma
historicidade muito própria: são produtos de uma sociedade de cultura oral. Trazem as marcas do
ambiente em que foram produzidas e as tensões a que seus interlocutores estavam sujeitos no
momento de sua enunciação.
A mudança das palavras poéticas foi acompanhada, e sempre dependeu diretamente, das
práticas enunciatárias dos poetas
7
e da sociedade para a qual declamavam as histórias
tradicionais. No início do Período Arcaico (séc. VIII) a poesia grega atingiu seu auge, se
consolidou e esteve submetida a várias transformações. Marcou tão profundamente a sociedade
helênica dos períodos posteriores que, mesmo tendo conseguido estabelecer uma ordenação ao
imenso repertório mítico que veio sendo apropriado dos tempos mais remotos, das tradições indo-
européias e orientais, prosseguiu sendo recitada em jogos e festas do Período Clássico (séc. V ao
IV).
Os poetas que recitavam durante o Período Clássico os temas das tradições helênicas eram
chamados rapsodos, (rhapsōidos
8
). Os rapsodos declamavam, munidos de um bastão e de uma
atitude oratória, palavras e versos de um poema épico (VIDAL-NAQUET, 2002, p. 14-15).
Homero e Hesíodo foram as principais referências. Platão oferece, através do diálogo Íon, as
informações mais precisas a respeito destes profissionais da palavra. A personagem homônima
trava um intenso debate com Sócrates, que o questiona a respeito de suas récitas. A narrativa
começa quando os dois se encontram. O rapsodo regrassava dos Jogos em honra à Asclépio
9
,
onde havia conquistado a prova, sobressaindo-se frente aos demais rapsodos. Sócrates comenta a
atividade de Íon:
7
Doravante, para se referir aos “profissionais” que se dedicavam à prática poética, utilizaremos o qualificativo
“poetas” quando for exigida uma menção genérica. Esta observação é importante porque atentamos, nos estudos a
respeito, o uso de termos que consideramos inadequados para definir esta atividade, como vate e bardo. O termo
vate, oriundo de vaticínio, definiria a capacidade de profetizar graças à inspiração divina atribuída aos poetas.
Rejeitamos seu uso porque ele implica uma redução da prática poética, qualificando as récitas apenas como resultado
de ações divinatórias. O termo bardo (do latim bardus) tem sua aplicação ainda mais dificultada, que seu uso
surgiu originalmente entre galeses, irlandeses e escoceses para designar a casta dos poetas e cantores que
empregavam seu talento para elogiar as famílias aristocráticas durante a Idade Média. Para maiores detalhes,
consultar: MOISÉS, 2004, p. 52 e 464.
8
A palavra rhapsoidós é oriunda de rháptein, “coser” e oidé, canto. Sua etimologia pode indicar que se tratatava de
um “ajustador de cantos”.
9
Estes jogos eram celebrados de quatro em quadro anos, em Epidauro, e eram denominados Grandes Asclepíadas.
Confesso, Íon, que muitas vezes senti, pela vossa arte, inveja de vocês, os
rapsodos. Por causa de vossa arte, vocês têm de andar sempre bem arranjados e
mostrar o melhor aspecto possível. Ao mesmo tempo, têm necessidade de estar
bem familiarizados com muitos e bons poetas e principalmente com Homero,
o melhor e mais divino de todos e de aprofundar o seu pensamento e não
apenas as palavras [...] Sim, porque o rapsodo deve ser, para os ouvintes, um
intérprete do pensando do poeta (PLATÃO, Íon, 530c)
Pouco depois, sublinha que com efeito, o poeta é uma coisa leve, alada, sagrada, e não
pode criar antes de sentir a inspiração, de estar fora de si e de perder o uso da razão (PLATÃO,
Íon, 534c). Íon assume, ao longo do diálogo, as características de um indivíduo convencido de
que a criação poética era fruto de uma arte que dominava com primor. Esta é, possivelmente, a
visão que os rapsodos tinham acerca de sua prática oratória no momento em que passaram a ser
remunerados e a ganhar fama com ela. Não tendo a exigência de criar os poemas, se assumem
como profissionais das palavra reconhecidos antes por capacidade mnemônica e pela boa oratória
que pelo seu potencial criativo e sua proximidade com os deuses. A poesia, com os rapsodos,
perdeu gradualmente o antigo estatuto de criação inspirada pelas divindades e se estabeleceu
como um trabalho técnico.
O diálogo Íon responde por um fim precipuamente político, reiterando as prerrogativas
mais exaustivamente elaboradas em A República. A preocupação de Platão era definir que tipo
de poesia deveria ser praticada pelos poetas de sua pólis ideal:
Ora, o que eu dizia ser necessário decidir se consentiríamos que os poetas
compusessem narrativas miméticas, ou que mimetizassem umas coisas e outras
não, e quais de cada espécie, ou se não haviam de mimetizar nada (PLATÃO, A
República, III, 394d).
O centro da teoria de Platão é a noção de mímesis. Tradicionalmente traduzida por
“imitação”, a mímesis platônica pode responder por esse sentido mas, como defende Massaud
Moisés, pode também corresponder a “representação”, “indicação”, “sugestão” e “expressão”. O
artista molda seu objeto à imagem e semelhança da natureza, que cria todas as coisas do mundo:
daí não se tratar de uma cópia, mas da expressão duma capacidade análoga à que preside a
criação da realidade física, nela incluído o ser humano (MOISÉS, 2004, p. 293). A mímesis
debatida por Platão não é mera reprodução de algo preexistente; porém, os poetas que mimetizam
reservam pouco espaço para a prática criadora. Bruno Gentili destaca que Platão, ainda na
República, sugere a existência de três diferentes tipos de arte, para todos os objetos: a arte que os
utiliza, a arte que os produz e a arte que os imita. A pintura e a poesia seriam artes de imitação
por excelência, que não pressupõem o conhecimento dos objetos imitados (GENTILI, 1990, p.
37-38).
Este tipo de doutrina é fruto da emergência do discurso político que surge com o
estabelecimento da pólis em Atenas. Íon, ao se referir a Homero com tanto entusiasmo,
demonstra o valor da tradição legada pelo antigo poeta. Homero e Hesíodo parecem ter sido os
grandes responsáveis pelo estabelecimento de um verdadeiro manancial mítico que, reconhecido
como fundante de uma mitologia helênica, fez com que os poetas se dedicassem a aprofundar os
conhecimentos acerca deste passado. De fato, a tradição não é algo perdido no tempo: é parte
integrante e construtora do presente. A tradição é reiterada permanentemente porque ela é o
próprio presente. Homero e Hesíodo deram a possibilidade do discurso assumir um tópos ligado
ao jogo político, reservando à sacralidade da palavra um espaço próprio para acontecer e
permitindo que os enunciadores se ativessem mais às demandas da vida social.
Esta prática poética, estabelecida definitivamente no Período Clássico, tem seus
antecedentes no Período Arcaico grego, que já instituíra uma ruptura com o antiga poesia
remanescente da Estrutura Palaciana. A partir do final do século VIII, os chamados poetas líricos
começaram a se dedicar ao canto de temas cotidianos, aos aspectos mais próximos da vida social.
Os enredos dos poemas, que não deixaram de incluir os deuses, começaram a se dedicar à
questões tipicamente humanas, incluindo geralmente máximas relativas à boa conduta.
O qualificativo lírico, etimologicamente, significa “cantar ao som da lira”. Assinalava,
portanto, a aliança entre o poema e a música. De origem grega, a lírica permanece até a
Renascença, quando seu significado entra em desuso. Durante a Idade Medieval, continuaram
sendo denominados líricos os bardos que declamavam poemas com o acompanhamento de outros
instrumentos de cordas, como a viola, o alaúde, o saltério e a guitarra. Apesar da etimologia, a
prática de enunciar poesia acompanhado pela lira é anterior ao século VIII. O vocábulo lírico,
neste caso, não se apega ao seu significado inato e passa a denominar a prática poética que
emerge em meados do Período Arcaico grego.
A pólis, ainda que embrionariamente, pode ter contribuído para esta reorientação das
práticas enunciatárias e, em um sentido inverso, as práticas enunciatárias dos poetas podem ter
contribuído para o estabelecimento do sistema políade. O que implica o sistema da pólis é
primeiramente uma extraordinária proeminência da palavra sobre todos os outros instrumentos de
poder (VERNANT, 2003, p. 53). Além disso, o universo políade oferece um cunho de plena
publicidade dada às manifestações mais importantes da vida social (VERNANT, 2003, p. 55). Os
poetas deixam de praticar sua arte em ambientes privados e estabelecem definitivamente a sua
participação em jogos e festas públicas. Em um mundo em transformação, a poesia se transforma
para acompanhar e pensar o mundo.
Assim como a vida em sociedade, a poesia se torna mais pessoal. A autoria dos poemas,
que em tradições anteriores costumava ser atribuída às divindades, começa a ser assumida. Os
versos passam a ser compostos através da escrita, com metrificações diferentes das tradicionais,
para a posterior enunciação oral. Diversas regiões da Hélade contaram com poetas emblemáticos,
como Arquíloco em Paros, Alcman na Lacedemônia, Semônides em Amorgos, Sólon em Atenas
ou Sapho em Lesbos.
Antes da emergência da poesia lírica, em toda sua diversidade, os poetas tradicionais eram
os aedos. Atribuindo suas palavras à inspiração divina, enunciavam os temas tradicionais que se
situavam em um período imemorial, no qual os deuses eram os protagonistas da vida em
sociedade; também cantavam as aventuras de heróis, que possuíam um estatuto superior aos dos
demais mortais em termos de virilidade, ética, virtudes e habilidades. Os poemas cantados pelos
aedos estavam sempre submetidos à temáticas cujo centro da narrativa era um mundo permeado
pelo numinoso, pela experiência direta com o sagrado, que se manifestava em todos os sentidos e
em todos momentos da vida.
Diferentemente das demais tradições poéticas, os aedos cantavam utilizando
exclusivamente a oralidade. Os temas eram transmitidos, em meio a confrarias de aedos, de
geração em geração, sem o auxílio da palavra escrita. Através de uma mnemotécnica muito
precisa, estes poetas assimilavam o conteúdo baseados em fórmulas complexas e criteriosamente
elaboradas ao longo dos séculos.
Os aedos, em geral, não assumiam a autoria de suas obras como faziam os líricos. Esta
prática traz um problema aos estudiosos, que vêem dificuldade em observar o indivíduo que,
dotado de um papel social específico, teve motivações para compôr determinados versos. Como
vimos, o aedo que oferece uma maior gama de informações a respeito de sua própria
individualidade é Hesíodo, que deixa transparecer em sua obra as mudanças de um período que
alterou profundamente a vida social helênica e que fez com que a poesia fosse afetada pelas
inovações poéticas que vão levar ao aparecimento dos ricos. A despeito disso, julgamos que o
poeta beócio ainda está fortemente inscrito na tradição aédica. É possível averigüar, através das
técnicas formulares e dos temas a que se dedicavam a cantar, aspectos importantes de suas récitas
e as características das quais os aedos se julgavam portadores.
2.3 Composição, técnicas formulares e recitação aédicas
Um dos problemas que os estudos a respeito da poesia oral comporta é a definição das
fronteiras entre as práticas poéticas. A questão estilística tem sido a principal preocupação das
Ciências da Linguagem. Se a centralidade do sujeito e a sociedade da qual e para a qual ele é
interlocutor ocupa o núcleo das inquietações dos estudos históricos, a versificação, aliada aos
conteúdos semânticos dos poemas, serve de indicativo para compreendermos os limites de
atuação dos poetas ao longo do tempo.
Os poemas compostos oralmente pelos aedos possuem seus versos
10
registrados com uma
metrificação bastante tradicional: os hexâmetros. Os hexâmetros são versos que possuem seis
pés, compostos de quatro dáctilos ou espondeus, mais um quinto que pode ser dáctilo ou
espondeu, e neste caso o verso se denominará espondaico (MOISÉS, 2004, p. 466). Os versos em
que o quinto pé é um dáctilo se denominam dactílicos. O sexto pé pode ser troqueu ou espondeu.
Esta metrificação é uma marca de oralidade fortíssima. Os versos eram divididos em
seqüências temporais separadas por intervalos regulares. Estes intervalos eram compostos por
sílabas longas (representadas pelo sinal “–”) e sílabas breves (representadas pelo sinal ”). As
sílabas longas duravam o dobro das breves. Em função de a marcação ser feita com o pé, que
pisava o chão cadenciando o ritmo com que os versos eram enunciados, surgiu o apelativo dessas
unidades melódicas: . Considerava-se o tempo gasto na enunciação das sílabas, não a sua
10
Entendemos por verso a sucessão de sílabas ou fonemas formando unidade rítmica e melódica, correspondente ou
não a uma linha do poema. Cada verso pode compor-se de subunidades ou células métricas, caracterizadas pelo
agrupamento de sílabas, denominado na versificação grego-latina (MOISÈS, 2004, p. 465).
tonicidade ou seu acento (MOISÉS, 2004, p. 345). Os pés dos hexâmetros seriam, portanto,
definidos de acordo com os tempos. O troqueu é um com três tempos, sendo uma sílaba longa
e uma breve ( ). O dáctilo, com quatro tempos, tem uma longa e duas breves ( ) e o
espondeu, igualmente com quatro tempos, tem duas sílabas longas ( ).
Os hexâmetros merecem uma atenção cuidadosa. Uma questão interessante que sugeriu
vários debates é lembrada por Eric Havelock. De fato, é de admirar-se um épico completamente
demarcado e dividido, através de símbolos escritos, em seis pés, cada com duas sílabas longas,
ou uma longa mais duas breves, somando sempre cada hexâmetro o equivalente a 24 breves, nem
mais nem menos. Como veio a dar-se que um tão insólito, formal e rigoroso sistema de medição,
padronizado no contexto de um número fixo de variantes possíveis, se conseguisse impor entre os
ritmos da língua grega? (HAVELOCK, 1996b, p. 148).
Berkeley Peabody defende que o hexâmetro, tal como outros metros gregos, desenvolveu-
se no contexto de uma tradição métrica indo-européia:
Seus protótipos particulares podem ser vistos nas mais antigas poéticas
remanescentes da Pérsia (“iraniana”) e da Índia, ancestrais da poesia sânscrita.
Quando examinamos as relações entre o verso grego e esses protótipos
“orientais”, também nos pomos a caminho de discernir os princípios gerais de
associação fonética em que se funda toda composição genuinamente oral, em
qualquer parte do mundo (PEABODY, 1975 apud HAVELOCK, 1996b, p.
149).
A proposição de Peabody, respeitável por sua generosa erudição, não resolve, todavia, a
necessidade de se considerar um link entre a notação em hexâmetros e as composições orais.
Além disso, pouco interessa ao caso grego se o hexâmetro tem sua origem nas línguas indo-
européias que precederam o surgimento da língua helênica: os gregos foram os responsáveis pela
sedimentação do hexâmetro como o mais tradicional metro da Antigüidade. É o próprio Havelock
que faz uma proposta mais substancial:
O termo é grego, e muito naturalmente faz referência a um passo de dança. O
coro grego assinala um grupo de dançarinos não de cantores ou a própria
dança. As estrofes e antístrofes em que se dividem as estâncias por eles cantadas
são voltas e contravoltas de dança. Mesmo a palavra métron (metro) pode
aplicar-se a uma medida espaçada numa superfície. É possível que as origens do
hexâmetro e talvez de outros metros gregos fossem coreográficas? Que ele
fosse um medida de dança (em compasso dois por quatro?) cujo ritmo
acompanhasse a elocução? Numa cultura letrada como a nossa, em que a
coreografia tornou-se uma arte separada e silenciosa, essa idéia pode parecer
bizarra. Mas não poderia uma cultura oral encorajar essa parceria, a fim de
prover um reforço à tarefa de memorização da palavra pronunciada?
(HAVELOCK, 1996b, p. 160-161).
Bruno Gentili se dedicou com mais empenho a esta questão e elaborou um estudo sobre a
gênese dos hexâmetros em que procura demonstrar sua existência originalmente oral e como este
metro exibe com clareza a presença de um coro de dançarinos (GENTILI, 1990, p. 15). Portanto,
a suposição de Havelock, mesmo que não tenha encontrado muito respaldo em Peabody, é bem
mais fundamentada do que a mera conjectura que o pesquisador propõe.
Como os versos em hexâmetros dactílicos foram utilizados em poemas cujo repertório era
basicamente ligado aos tempos imemoriais, às narrativas sobre deuses e heróis, é possível
utilizarmos esta metrificação como aquela que define os espaços de atuação dos aedos. O
hexâmetro foi resgatado mais tardiamente em função do valor tradicional que os poemas aédicos
assumiram na cultura greco-romana.
Um indicativo que corrobora esta leitura se encontra nas tradições poéticas posteriores.
Quando os líricos assumem a poesia e lhe conotam uma maior pessoalidade, as temáticas e a
versificação também se alteram. O chamado verso alcmânico, um tetrâmetro dactílico assim
denominado em virtude do poeta Alcman (séc. VII), o verso arquilóquio, inventado por
Arquíloco (séc. VIII ou VII) e o verso sáfico, criado pela poetiza Sapho (séc. VII), são exemplos
que assinalam a importância da métrica como definidora das tradições poéticas.
A importância da metrificação se porque as fronteiras entre as práticas enunciatárias
dos poetas são bastante difusas. Com base em critérios estritamente cronológicos (a respeito dos
quais os historiadores são prontamente convidados a pensar) não seria possível definir os
espaços de atuação das três principais tradições poéticas gregas, a aédica, a lírica e a rapsódica,
respectivamente.
Um exemplo interessante é a questão dos rapsodos. O diálogo Íon, como observamos,
oferece algumas informações a respeito destes poetas. É facilmente dedutível que, no Período
Clássico, tenham tido grande renome, na medida em que os líricos e, principalmente, os aedos,
não existiam ou praticavam sua poesia com um prestígio bem menor. No entanto, como procura
demonstrar H. A. Shapiro em um ensaio, os rapsodos marcavam presença no século VI.
Evidências iconográficas indicam que recitavam, sob os auspícios de Hipparchos, tirano que
governou Atenas após a morte de seu pai Pisístrato, versos da Ilíada e da Odisséia durante os
festivais Panatenáicos (SHAPIRO, 1998, p. 92). Portanto, os rapsodos recitavam os versos
homéricos no mesmo período em que Sólon, aristocrata e político, compunha suas elegias de
modo independente, que Píndaro e Baquílides praticavam seus epinícios e que os aedos
itinerantes entoavam os chamados Hinos Homéricos.
A peculiaridade da tradição aédica se pelo fato de que todas estas narrativas, mesmo
que possuam temas, extensões e preocupações diferentes, estão sob a influência de uma cultura
marcadamente oral. Como a antropóloga Ruth Finnegan defende, os poetas orais são aqueles que
se enquadram em três componentes: comunicação oral, composição oral e transmissão oral
(FINNEGAN, 1977, p. 16-24). O que nos ajuda nesta inferência é o fato de que algumas marcas
da composição oral foram preservadas. Jaa Torrano distingue algumas delas:
1) As fórmulas e frases pré-fabricadas que, combinando-se como mosaicos, vão
compondo os versos em seqüências salpicadas por palavras e expressões
inevitavelmente retornantes;
2) A justaposição com que as seqüências narrativas se associam sem que nenhuma
delas se centralize articulando em torno de si as outras, mas antes tendo cada
seqüência narrativa um igual valor na sintaxe da narração total e podendo
portanto sempre e ao arbítrio do poeta articular-se a um número quase
indefinido de novas seqüências;
3) Nos catálogos (listas de nomes próprios) que se oferecem como um espetacular
jogo mnemônico, que a habilidade do poeta redime do gratuito e lhe confere
uma função motivada e significativa dentro do contexto do poema
(TORRANO, 2003, p. 16).
Os estudos de Milman Parry e Albert Lord, publicados em uma série de artigos entre 1928
e 1935, se tornaram referência para a compreensão das fórmulas de que se utilizavam os poetas
orais e que foram preservadas na migração para a escrita. Cada personagem dispunha de uma
série de epítetos descritivos, como Menelau “predileto-de-Ares”, ou Zeus “ajunta-nuvens”. As
personagens mais importantes e as divindades m, em média, dez epítetos que se repetem no
poema todo centenas de vezes. Junito de Souza Brandão lembra que Marques Leite, em uma
estatística feita pacientemente, registrou o uso de 4.560 epítetos (BRANDÃO, 1996, p. 118).
Memorizados pelos poetas, eram utilizados como uma espécie de “pausa”, para que o
raciocínio pudesse ser retomado. Além disso, dependendo das palavras pronunciadas, cada
unidade nome-epíteto era evocada para adaptar-se à métrica dos hexâmetros. Se, em um verso
subseqüente, a mesma personagem fosse citada, outro epíteto era utilizado para adequar-se à
versificação. A complexidade dos hexâmetros era amparada por uma igualmente complexa rede
de vocábulos pré-configurados que ajudavam na construção dos versos quando necessário.
Os aedos, desta forma, o apresentavam os poemas como um produto finalizado,
produzido oralmente e congelado em sua mente: utilizavam tais mecanismos e agregavam-nos,
como peças de quebra-cabeças, aos temas cantados ao longo de suas récitas. Não havia um
enredo pronto, fechado. Cada apresentação mesclava uma parcela de criação e uma parcela de
memorização. Logo, este sistema de fórmulas é tão longo e tão complexo que pode ser
compreendido como fruto de uma longa especialização e adeqüadação das métricas por parte de
vários aedos.
Outro elemento que permeia a maioria das representações de aedos é a dança, que nos
leva a procurar entender sua importância para a poesia oral. A dança possui diversas outras
finalidades que se associam e ajudam a consolidar a prática social dos aedos gregos.
Assinalamos anteriormente que a dança pode ter tido uma influência decisiva na
formulação e no estabelecimento do hexâmetro dactílico como metro tradicional dos recitatos
aédicos. A dança constituía parte fundamental das celebrações comandadas pelos aedos,
relacionando-se com fins ritualísticos ou atuando como um dos elementos associados às
festividades, conforme observa-se em uma das cenas descritas no escudo de Aquiles:
Nele dançavam moços e gráceis donzelas,
prendendo-se uns aos outros pelas mãos nos pulsos.
Elas vestiam finíssimo linho; eles, túnicas
bem-tecidas, brilhantes como óleo-de-oliva.
Elas coroadas de grinalda; eles de espada
de ouro e talim de prata. E giravam, com pés
destros, qual roda, quando o oleiro que a maneja,
sentado, prova como corre. Corriam todos,
eles também, em fila, uns para os outros. Muita
gente, à volta, apreciava a dança, enquanto um aedo
divino entoava um canto aos acordes da lira.
(HOMERO, Ilíada, XVIII, 590-604)
A dança, assim como os cantos votivos, fazia parte da experiência grega de associação
com as divindades. Apesar de existirem exemplos de dança sem canto e, em sentido oposto, canto
sem dança, nos registros de que dispomos eles se apresentam com uma intensa relação de
complementaridade. Como defende Francisco Adrados, tão fixo quanto a dança é o sacrifício e,
praticamente, a comida em comum. Como a dança, o sacrifício e a comida em comum
apresentam variantes múltiplas, segundo o deus honrado e o tipo de festejo. Em essência, no
entanto, perseguem as mesmas finalidades: atuar sobre os poderes superiores e unir entre si com
elos de coletividade (ADRADOS, 1976, p. 22).
Assim como existiram várias formas de recitato áedico, adequados ao fim que buscavam,
existiram igualmente diversas variações a respeito dos tipos de dança. Durante os banquetes, os
aedos não costumavam comandar o coro de dançarinos, que podia ou o executar sua
coreografia com base na melodia que provinha da cítara do poeta. Nos peãs, entretanto, aedos e
dançarinos confundiam-se: o primeiro ia à frente, dançando, seguido por outros que cantavam e
dançavam segundo seu comando.
Fica óbvio que a prática poética não se sustentava, unicamente, pelas habilidades e
treinamentos dos aedos. Mesmo que fosse necessário dominar com primor as técnicas necessárias
à consecução do canto, as récitas dependiam de outros elementos para se tornarem um discurso
eficaz. Em termos de conteúdo, percebe-se que eram orientadas por negociações com um público
ouvinte geralmente formado pelos representantes da aristocracia helênica. As palavras daqueles
que cantavam eram permeadas por diversas instâncias que deveriam ser harmonicamente
equilibradas, de modo que o poeta angariasse sustento financeiro, prestígio social e legitimidade.
Como veremos a seguir, os registros metapoéticos que versam sobre as atividades dos aedos se
consolidaram como um excelente instrumento para atingir esta finalidade.
Capítulo III
As representações de aedos
A palavra aoidoi, que traduzida literalmente significa “cantores”, é demasiado ampla para
caracterizar as diversas variantes do uso da palavra poética nos períodos Homérico e Arcaico.
Dentre os aoidoi distinguem-se cantores profissionais
11
, cuja prática foi assimilada em meio a
confrarias, e aedos não-profissionais, que eram indivíduos iniciados em práticas sagradas e cujo
canto respondia por fins precipuamente rituais, acompanhando as mais diversas ocasiões que
buscavam promover algum tipo de mediação entre os homens e as divindades. É notável que,
apenas para os primeiros, os registros metapoéticos indiquem um esforço de autoglorificação,
que para eles o canto era a via que garantia prestígio e recompensas financeiras. No entanto, ao
falar do canto de aedos não-profissionais, os poetas orais que produziram as narrativas acabavam
por se referir a sua própria atividade, que mesmo nos cantos rituais uma manifestação
evidente da própria poética, igualmente assumida como uma atividade sacralizada. A despeito
destes dois modos de se representar o canto dos aedos, é possível notar uma terceira tendência
metapoética, associada ou não à presença de aedos profissionais. Trata-se de discursos nos quais
se euforizam a atividade fazendo uso de passagens ou personagens que possuem grande
visibilidade na trama. Estas três possibilidades permitem-nos traçar um panorama plural dos
diversos momentos e recursos utilizados pelos aedos para versar sobre seu próprio ofício.
11
Utilizamos os termos „profissionais” e “não-profissionais” para salientar as duas formas de atuação dos indivíduos
envolvidos com as atividades de canto. No caso dos primeiros, um processo de especialização e treinamento que
faz com que o recitato seja seu meio de sobrevivência e a fonte primeira de seu prestígio. No caso dos segundos,
percebe-se que são indivíduos iniciados em cantos votivos, que repetem cantos formulares tradicionais devidamente
adequados aos momentos em que se reivindica uma ão religiosa. Não dependem diretamente da aristocracia
palaciana e nem recebem recompensas financeiras pela prática de canto.
3.1 Cantos rituais e a atuação de aedos não-profissionais
Z. D. Papadopoulou distingue a existência de quatro formas de canto ritual: o peã, o
threnos, o hymenaios e o hino de Linos. Para o autor, até mesmo as cerâmicas do Período
Geométrico oferecem uma série de informações a respeito da presença de canto em cerimônias
rituais (PAPADOPOULOU, 2004, p. 355). O peã - do dórico paián - era um canto votivo
dirigido a Apolo. Em geral, buscava-se através dele a reconciliação com o deus, procurando
aplacar a ira que teria sido provocada por algum tipo de equívoco ou infortúnio humano: “à roda
distribuem. E por todo o dia cantam os Dânaos, aplacando o deus peã belíssimo! -, dança de
jovens para o Arqueiro, alegre a ouvi-los” (HOMERO, Ilíada, I, 472-474).
Os peãs, conforme demonstra o Hino Homérico a Apolo, funcionavam também como
cantos festivos, que buscavam estabelecer o domínio do deus sobre determinada localidade e
eram entoados por sacerdotes. Quando Apolo confirma seu domínio sobre a ilha de Delos,
convoca indivíduos oriundos de Creta a se tornarem guardiões de seu templo. Após solicitar que
orem diante do altar, libem para as demais divindades olímpicas e saciem a fome, diz: “vinde a
cantar o peã junto a mim, até chegardes onde o templo opimo mantereis” (Hino Homérico a
Apolo, vv. 500-501). Tratava-se de um canto coral realizado em ambiente público pois, seguindo
Apolo, “iam cretenses, rumo a Pito, que o peã entoavam, ao modo de um peã de Creta, que a
divina musa aos peitos infundiu cantar malífluo” (Hino Homérico a Apolo, vv. 517-519). Do
mesmo modo, celebrando a vitória sobre Heitor, Aquiles solicita: “Agora, heróis aqueus,
cantando o peã, voltemos para as naus curvas, conduzindo Héctor morto. Uma grande glória
daremos aos nossos” (HOMERO, Ilíada, XXII, 389-371).
Os threnos eram outra modalidade de canto coral, entoado pelos aedos não-profissionais e
demais indivíduos que acompanhavam suas récitas em ambientes públicos. Neste caso, buscava-
se homenagear um indivíduo morto, possivelmente em combate e pertencente à classe social mais
abastada da Estrutura Palaciana
12
. Dispomos de um exemplo que aparece na Ilíada. Com os
auspícios dos deuses, o rei Príamo se dirige ao acampamento dos Mirmidões para que pudesse,
após colóquio com Aquiles, recuperar o corpo morto de Heitor, sequestrado pelo filho de Peleu
após a vitória no combate que aconteceu diante das muralhas de Tróia. Aquiles, emocionando-se
com o pedido do rei e acatando a solicitação de sua mãe Tétis, devolve o corpo e determina que
seria estelecido um período de doze dias de trégua para que pudessem ofertar as honras fúnebres
ao príncipe troiano. Dentre os rituais que compunham a cerimônia, encontra-se o threnos: “E
posto sobre um leito encordoado. Ao seu lado, cantores entoam trenos, em tom lastimoso, e,
flébil, o responso das mulheres segue-os” (HOMERO, Ilíada, XXIV, 720-722).
As representações de cantos hymenaios (hinos himenêicos) e hinos de Linos são
encontradas nas inscrições feitas por Hefesto no escudo de Aquiles. Assim como os peãs e os
trenos, possuiam função votiva. Estes cantos corais aconteciam em ambientes públicos, sempre
com acompanhamento dos indivíduos envolvidos com a cerimônia. No caso dos cantos
himenêicos, buscava-se celebrar as núpcias de um casal, tornando a cerimônia de conhecimento
público para legitimá-la diante da comunidade. Procurava-se também mostrar o devido respeito
às instituições sociais vigentes, consagrando diante da pólis
13
os laços que as famílias celebrantes
mantêm com as tradições do período:
De mortais gravou, belas. Numa, celebravam-se
festas nupciais; as noivas entre lampadóforos,
12
Para Francisco Adrados, o culto dos mortos apresenta as mesmas características das festas em geral. oferendas
e libações, comida em comum, dança e canto (ADRADOS, 1976, p. 28).
13
Utilizaremos o termo pólis para nos referirmos às comunidades descritas em Homero, com a devida ressalva de
que não se trata da sociedade marcada pela estrutura política que veio a se desenvolver a partir do Período Arcaico e
que se consolidou no Período Clássico, especialmente em Atenas. Conforme assinala Stephen Suclly, há três
vocábulos em Homero que se referem à cidade: polis (ptolis), ptoliethron e astu. Dos três, o termo pólis (ou ptolis) é
o mais comum. Ele pode ser compreendido como sinônimo de cidade como um todo, incluindo cidadela (fortificada
ou não), cidade, moradias e ruas (SUCCLY, 1990, p. 8-9)
saem do tálamo; pela cidade as conduzem,
entoando sem cessar os hinos himenêicos;
rapazes dançarinos evoluem ao som
de flautas e de cítaras. Às portas, param
mulheres admirada.
(HOMERO, Ilíada, XVIII, 490-496)
Os hinos de Lino também eram entoados em ambientes públicos mas, diferentemente de
todos os exemplos expostos, aconteciam em um espaço não-urbano. No escudo de Aquiles ele
ocorre durante a colheita de uvas:
Ao longo dela, à vindima, iam os vinhateiros;
Meninas e meninos carregavam cestos
de uvas-mel. Voz suavíssima, entre eles, entoando,
aos acordes da lira, o lindo hino de Lino,
ia um menino cantor; batendo os pés, os outros,
acompanhando o canto, dançavam, ritmados.
(HOMERO, Ilíada, XVIII, 567-572)
Ainda segundo Z. D. Papadopoulou, estes cantos buscavam a fertilidade, sendo
associados aos ciclos de nascimento e morte (PAPADOPOULOU, 2004, p. 355). Outra questão
que chama a atenção nesta passagem é a presença de um “menino cantor”, que nas outras não
há nenhum indício que nos demonstre a idade dos aedos, sejam eles profissionais ou não.
Diferentemente destes casos, os exemplos de aedos profissionais são mais expressivos e
encontram em Homero a sua principal referência.
3.2 O paradigma homérico de aedos profissionais
As passagens que melhor evocam a atividade dos aedos profissionais aparecem em
Homero. Eles são descritos como verdadeiros ornamentos dos banquetes, apresentando sua
poesia diante de uma aristocracia palaciana que cultivava a opulência. François Lissarrague
compreende os banquetes como um repasto que se distingue das práticas cotidianas ordinárias em
função da presença de pessoas de amplo prestígio social, da qualidade, das escolhas e do aspecto
formal com que acontece (LISSARRAGUE, 2004, p. 215). Após os ritos de comensalidade, nos
quais os convivas saciavam a fome acompanhados de vinho, os aedos se posicionavam no centro
de um círculo formado por esta audiência, empunhavam seu instrumento de cordas e davam
início à récita que procurava divertir e informar o público ouvinte.
Demódoco é o principal exemplo desta categoria de aedos. Etimologicamente, seu nome
significa “acolhido pela comunidade” ou “recebido pelo dêmos”. É considerado por Gregory
Nagy a mais perfeita idealização dos poetas orais gregos (NAGY, 1986, p. 17). Trajano Vieira,
com bastante critério, vai ainda mais longe: admite que ele seja o alter ego do próprio Homero
(VIEIRA, 2001, p. 28).
A descrição de sua atividade acontece na Féacia, local onde termina a errância de Odisseu
e que a personagem principal encontra os mecanismos necessários para fazer seu retorno à Ítaca
com segurança. Encontra uma comunidade hospitaleira, que cultiva os campos, realiza
sacrifícios, reconhece Zeus e vive de acordo consigo mesma (EYLER, 2005, p. 409). A Feácia
pensada pelo poeta consolidava os ideais de vida comunitária pautada pela ética helênica do
período, marcada profundamente pela civilidade, pela harmonia e pelo respeito às instituições
sociais. Deste modo, oferecia um espaço privilegiado na narrativa para incluir a descrição do
mais pretigiado dos poetas.
O rei Alcínoo procurou atender prontamente o pedido que Odisseu fizera: ofereceu navios
e cinquenta e dois marinheiros para levá-lo à casa. Antes, no entanto, convidou a aristocracia
feace para comparacer a um banquete que seria oferecido em seu palácio, para que o hóspede
fosse “de modo condigno acolhido” (HOMERO, Odisséia, VIII, 42). No mundo homérico,
conforme assinala Pauline Schmitt Pantel, os gestos de hospitalidade (xênia) são frequentes e
extremamente apreciados. Como mostram muito bem os antropólogos, partilhar um repasto
permite tornar o estrangeiro um convidado, demonstrando que ele é bem aceito e identificado
como alguém importante para a comunidade. A recusa da hospitalidade mostra justamente o
contrário, assinalando que a integração com a comunidade não é possível por razões religiosas,
sociais ou políticas (PANTEL; LISSARRAGUE, 2004, p. 234). Apesar de desconhecer sua
verdadeira identidade, Alcínoo percebe a importância de oferecer a este estrangeiro tratamento
exemplar, típico dos feaces.
Durante a organização do banquete, o rei solicita a um arauto traga Demódoco para
comandar os festins: “Mandai vir o divino Demódoco, o aedo que obteve os deuses poder
deleitar-se com a música, como lhe pede o furor, que no peito a cantar o estimula” (HOMERO,
Odisséia, VIII, 43-45). Atendendo as solicitações do rei, os feaces iniciam o preparo das naus que
seguiriam em direção à Ítaca. Em seu palácio, principiam a organização do banquete: mataram
“doze nédios carneiros, oito cevados de dentes recurvos e dois bois tadonhos” (HOMERO,
Odisséia, VIII, 58-59). Logo em seguida, chega o arauto encarregado de buscar o aedo
Demódoco:
Já pelo arauto trazido o cantor divinal se aproxima,
que tanto a Musa distingue, e a quem males e bens concedera:
tira-lhe a vista dos olhos, mas cantos sublimes lhe inspira.
Junto de uma alta coluna, em cadeiras de enfeites de prata,
fê-lo Pontónoo sentar-se, no meio dos ledos convivas.
Prende-lhe o arauto o sonoro instrumento num gancho, que estava
por sobre a sua cabeça, e lhe ensina aonde a mão levasse
para alcançá-lo. Coloca-lhe ao lado uma mesa e uma cesta,
Perto uma jarra com vinho, porque ele à vontade bebesse.
(HOMERO, Odisséia, VIII, 61-70)
A descrição da chegada de Demódoco é exemplar e gloriosa. O poeta assinala sua
aproximação com as Musas, exaltando a proximidade que manteria com os deuses e o evidente
distanciamento que possui dos demais indivíduos ali presentes. Os detalhes da descrição da
chegada do aedo também são primorosos: a cadeira com os enfeites de prata, os cuidados
despendidos pelo arauto e a oferta de comida e vinho indicam a importância do papel social
exercido pelo poeta no reino Feácio.
Tendo saciado a fome e a sede, o aedo começa “a falar sobre os feitos dos homens, gestas
de heróis, cuja fama o alto céu, nesse tempo, atingira, a dissenção entre o Aquiles Pelida e
Odisseu, tão falada” (HOMERO, Odisséia, VIII, 73-75). O canto de Demódoco emociona
Odisseu, que oculta suas faces para que ninguém o visse chorar. O aedo comprazia os nobres
feaces com seu cantar, que o aplaudiam e animavam. Ninguém percebeu o pranto de Odisseu, a
não ser Alcínoo, que discretamente pede ao poeta que interrompa o canto e ceda espaço para que
os jogos que os feaces tanto prezavam acontecessem.
Após as competições atléticas, nas quais Odisseu se destacou diante dos desafios
sugeridos, Demódoco retoma suas récitas a pedido do rei. Avança munido da cítara e é cercado
por jovens que começam a dançar em torno dele, batendo com os pés o solo. Odisseu se admirava
com as pancadas dos pés bem ritmadas. O aedo começa a cantar os amores de Ares e Afrodite,
recitando versos mais informais, maliciosos, adequando sua récita ao momento festivo e
descontraído que se apresentava (HOMERO, Odisséia, VIII, vv. 261-267). O filho de Laertes,
novamente, demonstra forte admiração pelo cantor.
Depois da troca de presentes parte essencial dos ritos de hospitalidade Demódoco
retoma as celebrações com seu canto. Odisseu, ao perceber sua presença, corta um pedaço de
porco e pede que um arauto a entregue ao aedo: “Leva esta posta, ó rapaz, a Demódoco, para que
coma; conquanto aflito, desejo, também, homenagem prestar-lhe. Todos os homens que vivem no
dorso da terra, os cantores sabem cultuar e os veneram” (HOMERO, Odisséia, VIII, 477-480).
Em seguida, ele próprio vai em direção ao poeta para cumprimentá-lo. Dizendo que o admira
mais do que a todos os outros mortais, assevera a qualidade de seu canto:
Tão verazmente cantaste as desgraças dos homens Aquivos,
quanto fizeram, trabalhos vencidos, e o mais que sofreram,
como se o visses tu próprio, ou soubesses de alguém fidedigno.
Ora começa de novo, e o cavalo de pau nos invoca.
(HOMERO, Odisséia, VIII, 488-491)
As palavras de Odisseu sacramentam o prestígio de Demódoco. O fato de “venerá-lo mais
do que aos outros mortais” e de confirmar a veracidade de seu canto atua no sentido de atestar a
legitimidade de suas palavras. Além disso, recomenda um tema para o canto, observando a justa
adequação das récitas à ambição do público ouvinte. Assim como aconteceu no primeiro canto do
aedo, Odisseu volta a se emocionar. Novamente, só Alcínoo percebe e pede a Demódoco
interrompa a récita. Percebendo que essa emoção tinha que ver com sua verdadeira identidade,
Alcínoo solicita que o hóspede revele quem é. Odisseu atende e, neste momento, é
reconhecido pelos feaces como o herói que era.
Fêmio, o aedo de Ítaca, apesar de não ser descrito com as mesmas honrarias que
Demódoco, também é detentor de grande prestígio social. Seu nome, derivado de phéme,
etimologicamente significa “declarações proféticas” ou, mais especificamente, “aquele que faz
declarações proféticas”. Diferentemente de Demódoco, que cantava para uma sociedade que vivia
em paz e louvava as instituições sociais helênicas, mio praticava sua poesia em uma Ítaca
marcada pela mais completa desordem. Com a ausência de Odisseu, diversos nobres, vindos de
várias regiões da Hélade, ocuparam seu palácio e desfrutavam das riquezas acumuladas.
Imolando seu rebanho e consumindo vinho em demasia, os pretendentes ao trono de Ítaca se
hospedaram por meses e meses, cometendo todo tipo de excessos, enquanto aguardavam ansiosos
pela decisão de Penélope. Esta, esposa virtuosa, duvidava que seu marido tivesse perecido e
elaborava estratagemas para protelar, ao máximo, o dia da escolha do sucessor do filho de
Laertes. Ítaca reflete a importância que Homero e, consequentemente, a aristocracia do período
creditava ao indivíduo que, com legitimidade política, estava à frente do poder em determinada
comunidade: sua ausência é a responsável pela instabilidade, insegurança e a impossibilidade de
que a região prosperasse e vivesse pacificamente. A Ítaca sem Odisseu é o perfeito oposto da
Feácia com Alcínoo. Para esta audiência, que não respeita a comensalidade e os códigos basilares
da ética helênica é que Fêmio executa suas récitas:
Os pretendentes, altivos já, nesse momento, avançavam;
sentam-se em ordem, assim nas cadeiras bem como nos tronos.
Fazem vir água; por cima das mãos os arautos a deitam.
Em canistréis transbordantes o pão é servido por servas;
té pelas bordas escravos as taças enchiam de vinho.
Todos as mãos estendiam, visando a alcançar as viandas.
Tendo assim, pois, a vontade da fome e da sede saciado,
os pretendentes a outros prazeres inclinam as mentes,
canto com música e dança, ornamento de todo banquete.
Uma belíssima cítara traz logo o arauto e a coloca
nas mãos de Fêmio, que, contra a vontade, os festins alegrava.
Preludiando na cítara, ao canto dá aquele princípio.
(HOMERO, Odisséia, I, 144-155)
Alguns elementos existentes na descrição de Demódoco se repetem: a presença do aedo
celebrando o banquete para animar os convivas, a dança e a participação do arauto, que traz a
cítara e a conduz ao aedo. O que chama a atenção, no verso 154, é a expressão “contra a
vontade”. A audiência de Fêmios, em alguma medida, o coagia a cantar os mitos. Sua imagem é
construída como a de um funcionário do palácio, atendendo aos pretendentes na mesma medida
em que os escravos, as servas e os arautos o faziam quando solicitados. Demódoco, apesar de
atender às solicitações de Alcínoo e Odisseu, é representado com muito mais autonomia. Mais do
que servir a alguém, Demódoco é servido inclusive, pelo próprio Odisseu.
Fêmio cantava o retorno funesto que Atená teria decretado aos Aqueus após a guerra de
Tróia. Os pretendentes escutavam em silêncio. Penélope, ouvindo a canção dos aposentos de
cima, desce as escadas acompanhada por duas criadas, reagindo à récita:
Lágrimas verte copiosas e ao divo cantor se dirige:
Fêmio, canções diferentes tu sabes, que os homens encantam
gestas de heróis e deuses, que os vates gloriosos propagam.
Dessas, lhe canta qualquer, e que todos te escutem silentes
vinho a beber. Não prossigas, porém, nessa história tão triste,
que o coração se me aperta no peito ao ouvir-te a cantiga,
o que acontece des que a incomportável saudade me aflige,
pela querida cabeça, que sempre à memória me ocorre,
pelo varão, cuja fama em toda a Hélade e em Argos se estende.
(HOMERO, Odisséia, I, 336-344)
A repreensão de Penélope sugere a necessidade de adequação da récita dos aedos ao
público ouvinte, conforme Demódoco o fazia na corte de Alcínoo. A instabilidade política de
Ítaca fez com que o poeta vivesse uma situação bastante delicada: cantar para os pretendentes
público alvo do banquete em questão ou cantar de acordo com as expectativas e anseios de
Penélope e dos demais que se mantinham fiéis à memória de Odisseu e ainda aguardavam seu
retorno, apesar dos longos anos de ausência?
O dilema de Fêmio sugere uma tensão interessante a respeito das práticas enunciatárias
destes poetas orais e sua justificativa de existir: atender às demandas da aristocracia do palácio,
que o acolhe e sustenta, ou simplesmente atender as vontades dos ouvintes? Obviamente, a
tendência de que o público do palácio esteja de acordo com os cantos que agradam a nobreza,
mas isto não ocorre neste caso. Fêmio opta por adequar suas récitas ao público ouvinte. Ele
responde pelas expectativas que giram em torno da prática destes poetas orais, sem fazer
concessões. Seu canto está inscrito em uma tradição e a audiência inicial se encontra
perfeitamente acomodada diante da récita. Ele perde sua adequação quando Penélope abandona o
quarto e passa a assumir o papel de audiência. Não sem motivo, Telêmaco prontamente adverte
sua mãe:
Mãe, por que causa proíbes que o nobre cantor nos deleite
com o que à mente lhe vem? Não têm culpa, por certo, os cantores,
sim tem-na Zeus, é o culpado, que os dons distribui entre os homens
laboriosos por modo variável, tal como lhe agrada.
Não o censures por ter-nos cantado as desgraças dos Dânaos.
(HOMERO, Odisséia, I, 346-350)
A repreensão de Telêmaco faz com que sua e retorne a seus aposentos, seguida pelas
criadas que a acompanhavam. Os pretendentes tumultuaram o banquete com a presença de
Penélope, ansiosos para que a esposa de Odisseu escolhesse um deles para dividir o leito.
Telêmaco sugere que esqueçam esta intervenção e pede que retornem à festa, “pois não nada
mais belo que um canto escutar delicioso, tal como os deste cantor, que semelha na voz a um dos
deuses” (HOMERO, Odisséia, I, 369-270).
Após a exposição do dilema que Fêmio estava vivendo e da instabilidade provocada pelas
palavras de Penélope, Telêmaco atua no sentido de atenuar os ânimos e restituir o frágil
equilíbrio daquele banquete. Para tal, reafirma a autonomia que os aedos dispunham para
enunciar os mitos e elogia a performance de Fêmio, associando seu canto à esfera divina.
Telêmaco procura isola-lo dos problemas da comunidade, preservando sua imagem e
imunizando-o das críticas.
Com o retorno de Odisseu, o famoso “massacre dos pretendentes”. Penélope, que
conhecia a esta altura a chegada do marido, adota um estrategema acordado com ele. Chega ao
salão onde todos estavam e propõe um desafio: apresentando o arco do filho de Laertes, estipula
que se casaria com ela aquele que conseguisse passar a corda nele, encurvando-o, e remessar uma
seta pelos orifícios existentes no cabo de doze machados enfileirados. Ninguém conseguiu verter
o arco. Odisseu, transfigurado sob a forma de mendigo por Atená, faz a última tentativa.
Consegue entesar a corda no arco e transpassar os doze orifícios com uma seta. Após o feito, que
a todos impressionou, assume sua real aparência. Inicia-se a chacina.
Fêmio, que alegrava o banquete, se encontrava no salão no momento da fúria vingadora.
Ele estava de pé, com a cítara em mãos. Não sabia o que fazer: tentar fugir ou atirar-se aos pés do
rei de Ítaca pedindo clemência? Após breve meditação, o aedo deixa o instrumento sonoro no
chão e abraça os joelhos de Odisseu, suplicante:
Os teus joelhos abraço, Odisseu; tem piedade e respeito!
Arrependido virás a ficar se matares a um vate,
cujas canções sempre foram dedicadas aos deuses e aos homens.
Fiz-me por mim, tão-somente, que um deus em minha alma ditou-me
muitas canções. Dá que possa cantar junto à tua pessoa
como ante um deus; não procures, portanto, privar-me da vida.
O caro filho te pode atestar, teu prezado Telêmaco,
como não era por próprio alvedrio, ou interesse, que estava
no teu palácio, a cantar para os moços, depois dos banquetes.
Eles, porém, eram muitos e fortes; trouxeram-me à força.”
(HOMERO, Odisséia, XXII, 341-353)
Telêmaco, pela segunda vez, socorre Fêmio e o declara inocente. Odisseu preserva a vida
do aedo, seja pela qualidade de seu canto, seja por considerar que ele não partilhava dos mesmos
interesses dos pretendentes. Neste momento, a justificativa para a escolha inicial: não se
manteve fiel à memória do rei de Ítaca porque fora coagido pelos pretendentes, que por estarem
em maior número e serem mais fortes, forçaram-no a cantar.
Marcel Detienne, de modo muito apropriado, define os poetas orais gregos do período
como “funcionários da soberania e louvadores da nobreza guerreira” (DETIENNE, 1988, p. 23).
É ainda na Odisséia que percebemos os vínculos de fidelidade existentes entre os basileus e os
aedos. Estes vínculos transcendiam a prática do canto, ampliando-se a funções de confiança. É
possível comprovar este fato quando Homero se refere à traição de Clitemnestra, orquestrada
junto a Egisto, que levou Agamemnôn à morte:
Ela, de fato, a princípio se nega à proposta impudente,
pois Clitemnestra divina era ornada de bons sentimentos.
Tinha a seu lado um cantor, a quem com muito empenho pedira
lhe defendesse a mulher, ao partir para Tróia, Agamémnone.
Quando, porém, a vontade dos deuses a fez submeter-se,
ei-lo que faz conduzir o cantor para uma ilha deserta,
onde o deixou, como presa fatal e repasto das aves
(HOMERO, Odisséia, III, 265-271)
Assim como ocorre com Fêmio, o aedo a quem foi confiada a proteção de Clitemnestra é
poupado, pois Homero associa seu fracasso à vontade dos deuses e à ação cruel de Egisto, que fê-
lo perecer. O trabalho desenvolvido pelos aedos profissionais, especificamente em função de seu
canto, é outra justificativa para a preservação da vida de Fêmio. Odisseu se utiliza do poeta de
Ítaca para auxiliá-lo na restituição do equilíbrio em seu palácio em duas ocasiões: na primeira,
buscando evitar eventuais repercussões da chacina dos pretendentes, pede que tome, depois, o
divino cantor o sonoro instrumento, para que todos o sigam nos passos alegres da dança, porque
os vizinhos presumam, ou mesmo qualquer transeunte que de fora escutar, que se trata de
bodas festivas” (HOMERO, Odisséia, XXIII, 133-136). Em seguida, para reafirmar a harmonia
vigente em Ítaca e celebrar sua volta, solicita que se realize um novo banquete, desta vez,
marcado pela harmonia e respeito às práticas sociais vigentes, semelhante ao banquete feace:
Primeiramente, lavaram-se e roupas decentes vestiram;
as servas todas, também, se enfeitaram; o aedo divino
toma, depois, do escavado instrumento, fazendo que em todos
eles o gosto nascesse da dança ritmada e do canto.
A grande casa ressoava à batida dos pés cadenciosos
dos dançadores e assim das mulheres de belas cinturas.
(HOMERO, Odisséia, XXIII, 142-147)
As similitudes e diferenças das representações de Fêmio e Demódoco são resultados
diretos das expectativas e dos valores pedagógicos que os poemas homéricos ofereciam à
aristocracia, que ambicionava ter em seu palácio um funcionário com imunidade política assistido
pelas divindades e que atuasse com fidelidade e afinco na construção da glória daqueles que
sustentavam seu conforto.
3.3 Os espaços da visibilidade
Como dissemos, além das representações de aedos profissionais e não-profissionais, é de
grande notabilidade a associação de passagens e personagens na narrativa que fazem menção,
direta ou indiretamente, à atividade poética. A descrição da armadura de Aquiles é uma das
passagens célebres da Ilíada e um dos melhores exemplos dos esforços desta natureza.
A morte de Pátroclo, provocada por Apolo e atribuída a Heitor, desencadeou uma nova
etapa da cólera de Aquiles. Antes, o herói se isolara do exército Aqueu movido pela dissenção
instaurada entre ele e Agamemnôn; com o incidente, Aquiles supera a querela com o rei Atrida e
canaliza sua ira em direção aos Tróicos. Aqueus e Troianos disputavam o corpo morto de
Pátroclo. Aquiles, seguindo conselho dos deuses, aparece no campo de batalha. Sua presença é
suficiente para assolar de medo os troianos e fazer com que os gregos recuperassem o corpo de
seu amigo. Aquiles, no entanto, estava sem a armadura, que fora arrebata por Pátroclo ainda no
canto XVI e tomada por Heitor como espólio de guerra. Determinado a ingressar no combate,
aguarda a armadura que sua mãe Tétis requisitaria a Hefesto. A expectativa gerada no canto XVI
só chega ao fim no canto XVIII, quando as armas são entregues. Homero reserva parcela
considerável deste canto para a descrição dos trabalhos de Hefesto.
Conforme assinala Donaldo Schüler, o tempo homérico não flui homogêneo. Um dia é
mais longo que o outro. Ações a que Homero atribui importância ocupam-no demoradamente;
outras que, consideradas em si mesmas, tem significado apreciável, passam despercebidas
(SCHÜLER, 2004, p. 31). O primeiro dia de combate, por exemplo, é muito longo, ocupando
cinco cantos (II-VI), enquanto o segundo ocupa apenas o canto VIII. É admirável o fato de que os
eventos que giram em torno das armas de Aquiles ocupem o canto XVIII quase por inteiro, sendo
que, somente para a descrição da armadura (algo aparentemente irrelevante para a trama como
um todo segundo nosso juízo literário) se extenda do verso 468 ao 617. Homero o faz porque
tudo que é associado ao personagem central da trama oferece destaque e deferência.
Caso pensemos em termos literários, a armadura de Aquiles funciona como um magnífico
prelúdio para o desfecho da epopéia. Os trabalhos de Hefesto ajudam a revelar Aquiles para a
guerra gerando uma aparição monumental. Todos os aspectos que envolvem o herói de
temperamento irrefletido são extremados e grandiosos. Seu afastamento do combate é arbitrário e
irrefutável, não cedendo nem mesmo às súplicas de Agamemnôn descritas no canto IX, onde o
Atrida sufocou seu brio e reconheceu a necessidade de Aquiles para a vitória do exército Aqueu.
A grandiosidade exacerbada que acompanha seu afastamento também acompanha seu reingresso
no combate. As armas forjadas por Hefesto se tornam o recuso estilísco do poeta para tornar a
ocasião ainda mais suntuosa.
A armadura de Aquiles fora criada em ouro, prata, bronze e estanho. Conta com uma
“refulgente couraça” (HOMERO, Ilíada, XVIII, 610), um “belo elmo de dedáleo lavor, às suas
têmporas ajustável” (HOMERO, Ilíada, XVIII, 611-612), de “estanho ctil fez-lhe as luzentes
cnêmides” (HOMERO, Ilíada, XVIII, 612-613), sendo que o mais fascinante de todos os
elementos da armadura foi o escudo, primeira arma a ser produzida:
O megaescudo pôs-se a fabricar primeiro,
maciço louvor todo ele dedáleo; então,
apôs-lhe uma orla rútila, tríplice-fúlgida.
Forjou de prata pura um talim. Revestindo
de cinco lâminas o escudo, na exterior
gravou, dedáleo, imagens de engenhoso talhe.
(HOMERO, Ilíada, XVIII, 478-483)
Não nenhuma evidência arqueológica que demonstre que escudo símile ao descrito
tenha existido
14
. Para Claude Mossé, as armas de Aquiles, tais como foram descritas por Homero,
são mais poéticas que técnicas (MOSSE, 1980, p. 28). As cenas narradas por Homero são
extremamente variadas. Descritas em círculos concêntricos, a parte central do escudo parece ter
sido reservada a entidades cósmicas como “a terra, o céu, o mar talássio, o infatigável sol”
(HOMERO, Ilíada, XVIII, 484-485), que também aparecem na borda: “Gravou, afinal, o ímpeto
do rio-fluente Oceano, à extrema borda do escudo de fatura exímia” (HOMERO, Ilíada, XVIII,
606-608). Dividindo o círculo que se segue ao primeiro, duas cenas urbanas
15
: em uma,
celebravam-se festas nupciais; as noivas entre lampadóforos, saem do tálamo” (HOMERO,
Ilíada, XVIII, 490-492); em outra, uma situação de stasis, pois estavam “na ágora, dois homens
litigando em torno de um delito” (HOMERO, Ilíada, XVIII, 497-498).
Em seguida, Hefesto teria representado cenas que remetem à vida agrícola: “gravou no
escudo um amplo campo de amanho, gleba fofa, macia, fertilíssima, tríplice-arada; e muitos
lavradores vão e vêm, fazendo os bois voltear, instando-os” (HOMERO, Ilíada, XVIII, 541-544).
Representou, deste modo, cenas de plantio que englobavam o preparo da terra, a colheita e a
produção de um bom vinho. Como cenas que circundavam os últimos círculos concêntricos,
14
Segundo Vidal-Naquet, nenhum objeto desse gênero no qual se vêem, ao mesmo tempo, o mundo inteiro e duas
cidades bastante diferentes jamais existiu, e seria vão imaginar que Homero tenha se inspirado num modelo
(VIDAL-NAQUET, 2002, p. 30).
15
Segundo a análise de Atsuhiko Yoshida, trata-se de uma divisão que mostra dois extremos da vida nas urbes: a
primeira cena, de casamento, mostra a “cidade em paz”, enquanto a segunda representa a “cidade em guerra”,
evocando os problemas advindos do não-cumprimento das leis (YOSHIDA, 1964, p. 7).
Hefesto forjou “um rebanho de bois, chifres-eretos” (HOMERO, Ilíada, XVIII, 573-574), “um
amplo pasto de ovelhas de prata” (HOMERO, Ilíada, XVIII, 588) e, finalmente, “gravou ainda o
multi-celebrado um recinto de dança no escudo” (HOMERO, Ilíada, XVIII, 590-591).
Nicholas Allen, se apropriando de teorias de Dumézil, destaca o fato de que as
representações do escudo apontam três funções básicas e consubstanciais à mentalidade indo-
européia do período: em primeiro lugar, relata o intelecto, o gerenciamento das questões sagradas
e a ética; em segundo lugar, a força física e a guerra; finalmente, em terceiro, a fecundidade, a
abundância e a riqueza, relacionadas com idéias como sexualidade e nutrição (ALLEN, 2007, p.
34-35). Homero, através das artes de Hefesto, teria usado o escudo de Aquiles para pensar uma
organização microcósmica, forjando através das imagens a cosmogonia concebida pelos poetas.
Coloca os deuses primordiais Urano e Gaîa no centro e faz uma representação da vida social,
mostrando o núcleo urbano cercado pela vida agrária e tudo devidamente delimitado pelo
Oceano.
Diante deste cenário, a recorrência de indivíduos praticando atividades poéticas é sui
generis. Hefesto aparece como um legítimo artesão das palavras. Cenas associadas ao canto e à
dança aparecem nos festejos nupciais, na produção de vinho e, com mais destaque, na cena
destinada exclusivamente à dança. Diferentemente da Odisséia, a Ilíada é uma epopéia que versa
basicamente sobre a atividade guerreira, não oferecendo um espaço narrativo tão propício para a
aparição de aedos que, como vimos, estão comumente associados a banquetes e momentos
festivos. A armadura de Aquiles, por fazer uma espécie de “pausa” na sequência narrativa, parece
ter oferecido àqueles que compuseram o épico uma excelente oportunidade de fazer esta inclusão.
O escudo é o espaço da visibilidade. Ele vem à frente do próprio guerreiro, quando o
empunha para iniciar o combate. Homero não se furtou de utilizar este espaço para euforizar sua
atividade. Há, basicamente, dez conjuntos de cenas figuradas no escudo. Em três delas aparecem
representações de aedos não-profissionais. É uma cifra considerável. Hefesto forja cenas que
considera essenciais para caracterizar, na figura individualizada de Aquiles, as referências
assumidas pela coletividade helênica, fazendo do herói um defensor das instituições e práticas
sociais registradas no ornamento de guerra. Em outras palavras, o filho de Tétis se torna porta-
voz e defensor de um estilo de vida grego, que deve ser defendido (pelo escudo) e instituído pela
força (com a prática de guerra). As armas, caprichosamente adornadas, são a manifestação típica
dos poetas que desejam criar uma coesão ao meio social em que vivem, utilizando o poder que
lhes confere o uso da palavra para consolidar sua inclusão neste estilo de vida, aproveitando o
ensejo para registrar a variedade de momentos e situações em que são capazes de atuar
socialmente.
Ainda na Ilíada, percebe-se que Homero utilizou a visibilidade que acompanha Aquiles
para tornar sua atividade destacada em uma outra ocasião. Desta vez o poeta é ainda mais
explícito: faz com que Aquiles, sem abrir mão das características inerentes à representação do
herói, assuma a qualidade de aedo e, empunhando a cítara, pratique o canto. Ainda durante seu
afastamento da guerra de Tróia em função da dissenção com Agamêmnon, Aquiles se isolado
e alheio a tudo no acampamento dos Mirmidões. Procurando reverter essa situação, que a
ausência do herói estava tornando cada vez mais dificil a vitória Argiva em Tróia, o rei de
Micenas pede que Odisseu converse com Aquiles, procurando dissuadi-lo a sair do ostracismo
mediante uma série de presentes ofertados pelo primeiro. Os herói acata o pedido e assim vai à
sua busca:
Junto às naus e tendas
dos Mirmidões o encontram. Tangia uma lira
- cordas presas em trave de prata artefato
dedáleo, que o enlevava, do espólio de Eecião,
e a cujos sons cantava gestas de heróis. Pátroclo
só, silencioso, senta-lhe defronte e espera
que ele termine o canto. Odisseu guiando, os núncios
chegam à frente dele e param. O Peleide
sustendo a lira salta, absimado, do sólio
(HOMERO, Ilíada, IX, 156-164)
Charles Segal discorda desta interpretação, que para ele o canto era introspectivo e a
audiência não existia, na medida em que Pátroclo estaria tão somente à espera do encerramento
da récita de Aquiles, sem ouvir ou prestar atenção. Para o autor, portanto, não devemos confundir
o canto do guerreiro, que só traz prazer a ele mesmo, com o dos aedos, que buscam antes de mais
nada o prazer da audiência (SEGAL, 1994b, p. 114-115). Acreditamos, com base no contexto do
poema e nas tentativas que os aedos fizeram de dar visibilidade à sua atividade, que esta
representação de Aquiles não é casual. A tentativa de associar ao herói grego a prática de canto é
feita com bastante critério. Homero se apropria de suas características fundamentais para fazê-lo
representar os poetas orais gregos. Apesar de seu público ouvinte ser restrito a Pátroclo, Aquiles
desempenha com seu canto um papel pedagógico: como era para o jovem uma espécie de tutor,
não ensinava-o somente as habilidades guerreiras, mas as tradições de guerra mais antigas,
fundamentais na formação da nobreza da Estrutura Palaciana. Estas tradições deveriam ser
ensinadas de geração em geração, pois eram fundamentais para a formação das camadas mais
abastadas da sociedade. Aquiles estaria fazendo com Pátroclo aquilo que Fênix fez junto a ele
quando Peleu lhe confiou a educação do filho: “Por isso me mandou, para que te fizesse na
oratória eminente, eficiente nas obras” (HOMERO, Ilíada, IX, 443-44). Formá-lo na “oratória
eminente”, “um bom expressador de opiniões” é fazê-lo, literalmente, um “orador de mitos”
(múthōon ... rhētér). Além disso, associa a Aquiles o conhecimento do manuseio da lira, cuja
execução feita de forma correta também funcionava como elemento de distinção entre os aedos
profissionais, aumentando ou diminuindo seu prestígio à medida em que pudesse encantar os
ouvintes com sua música.
O que reforça esta interpretação é o fato de que não é somente o herói da Ilíada que
assume a condição de aedo. Homero também não se furtou de associar a Odisseu e, neste caso,
de modo muito mais enfático a prática de canto. Diferentemente do intempestivo Aquiles,
Odisseu foi frequentemente representado resgatando uma atmosfera de habilidade retórica. Na
Ilíada é descrito como “par de Zeus na argúcia” (HOMERO, Ilíada, II, 171 e 407). Na Odisséia,
onde suas qualidades são evocadas com maior frequência, sua personalidade é descrita com base
na mesma referência. Temaco, após a chacina dos pretendentes, sentencia: “Isso, meu pai, tem
que ser resolvido por ti, que entre os homens, dizem-no todos, o mais astucioso de ser tens a
fama, sem que mortal sobre a terra contigo se atreva a medir-se(HOMERO, Odisséia, XXIII,
124-126). Logo em seguida uma nova menção: “Pois nos conselhos, tal como na guerra, era
sempre o primeiro” (HOMERO, Odisséia, XIV, 490-491). Atená, transfigurada sob a aparência
de Mentor, assinala as mesmas características ao falar a Telêmaco: Para o futuro nem fraco, nem
fútil serás, ó Telêmaco, se de teu pai, em verdade, possuíres o ardor invencível. Homem como ele
é bem raro; não só nos discursos, nas obras!(HOMERO, Odisséia, II, 270-272).
Sua boa oratória faz com que seja constantemente convocado a fazer uso da palavra, em
assembléias ou circunstâncias em que são exigidas ponderação e sensatez. Odisseu é um herói
responsável, que consegue observar os acontecimentos com distância e parcimônia. É
particularmente sereno, refletido, meticuloso em seus empreendimentos e calmo nas situações
difíceis. Trata-se de uma personagem facilmente adaptável à condição de poeta.
É a partir do canto IX da Odisséia que o filho de Laertes encontra o espaço ideal para
assumir a palavra tal qual um aedo. Atendendo a exigência de Alcínoo, começa a narrar os feitos
que se sucederam desde sua partida de Tróia, começando pelo episódio com os Cíconos,
Lotófagos e Cíclope. No Canto X, prossegue sua récita e discursa a respeito de Éolo, dos
Lestrigões e Circe. Sua consulta ao adivinho tebano Tirésias, no Hades, é descrita no Canto XI e
no Canto XII ele conclui seu relato destacando as desventuras envolvendo as Sereias, Cila,
Caribde e os Bois de Hélio.
Apesar de destituído da cítara, Odisseu assume as atenções e a audiência de Demódoco
para relatar seu périplo e consolidar, diante da primeira audiência disposta a ouvi-lo após os
longos anos de errância, os eventos que glorificariam sua trajetória heróica. Ao fazer uso da
palavra, altera seu estatuto de hóspede e assume um espaço anteriormente confiado ao aedo.
Movido por um enthousiasmós, suas palavras alteram a estrutura da narrativa: ele se converte em
personagem e narrador dos próprios feitos. O próprio rei Alcínoo, que se mostrou admirador da
eloqüência de Odisseu, emite um juízo a respeito de sua récita: Tu, porém, sabes dar forma
admirável aos teus pensamentos. Como um cantor eloqüênte disseste-nos a narrativa dos
sofrimentos do exército argivo; que teus, também, foram (HOMERO, Odisséia, XI, 367-369).
Como assinala Jacqueline de Romilly, o mundo dos heróis homéricos é tão civilizado nos
seus valores como nos belos objetos de que se cerca, mas a bravura não é o único imperativo do
herói (ROMILLY, 2001, p. 91). A eloqüência era vista como resultado de uma educação
aristocrática, expressão de sua nobreza. Desta maneira, quando Homero atribui ao principal
representante da aristocracia na Odisséia o uso da palavra tipicamente associada aos aedos,
procura resguardar para si a posse de características associadas à elite do período.
Estes artifícios de que Homero se utiliza para dar visibilidade à prática enunciatária dos
aedos gregos não são claramente percebidos em tradições poéticas posteriores. Há, no entanto,
um outro elemento que atua neste sentido e que se relaciona com a mudança de orientação que o
recitato aédico vai sofrer. Com o aumento das póleis e o enfraquecimento político dos palácios, a
poesia começa a assumir contornos mais públicos. Ora, em um ambiente privado, define-se com
clareza o eu e outro, enquanto em um ambiente público esta individualidade fica menos nítida. O
próprio local em que acontecem as récitas favorece este tipo de questão: em um banquete, com
seu momento reservado para o canto, as atenções dos ouvintes convergem diretamente para a
figura do poeta. Ele se apropria do espaço e se torna o protagonista da atividade. Em um
ambiente público, situando-se em meio à diversidade e à liberdade de ir e vir das pessoas, sua
atividade fica menos evidente. ainda uma outra questão: com o surgimento de outras práticas
poéticas, como a lírica e a rapsódia, há a necessidade de situar-se em uma tradição e distinguir-se
dos demais. Buscou-se, neste sentido, recursos para o reconhecimento de seus méritos individuais
e para a conseqüente construção de seu prestígio.
O Hino Homérico a Apolo é um dos melhores exemplos neste sentido. Percebe-se que,
diferentemente do ambiente palaciano representado nas epopéias homéricas, uma profusão de
aedos praticando sua poesia. O aedo de quem o canto resultou o proêmio discursa sobre sobre
isso duas vezes:
Como hei de celebrar-te, a ti que louvam tantos hinos?
Sagram-te, Febo, em toda parte, os temas e os cantares.
(Hino Homérico a Apolo, vv. 19-20)
Como hei de celebrar-te, a ti, que louvam tantos hinos?
Devo cantar-te em tuas conquistas, em teus amores.
(Hino Homérico a Apolo, vv. 207-208)
Percebe-se a existência, com base nos versos 19 e 207, de um verso formular do qual o
aedo se utiliza para assinalar a profusão de poetas que se dedicam a louvar o filho de Zeus e Leto,
que também funciona como um recurso para mostrar a distinção e o apelo que a divindade possui
entre os povos gregos. Nota-se também um esforço do poeta para se incluir na tradição quando
questiona qual dos temas deveria selecionar para entoar o prelúdio em homenagem ao deus.
Este não é, contudo, o esforço mais notável que o aedo compositor do proêmio a Apolo
fez para angariar prestígio e obter reconhecimento social. Diferentemente das outras narrativas de
que dispomos, encontramos o aedo discusando em primeira pessoa e dialogando com seu público
ouvinte:
Eia! Que Apolo e Ártemis propícios me sejam!
E a vós todas, adeus! E mais tarde lembrai-vos de mim,
Quando um dos varões que vivem sobre a terra, a vaguear,
Ao vir aqui pós tanto padecer, vos perguntar:
“Moças, qual é para vós o mais doce dos aedos
que sói aqui vos visitar, e qual mais vos delicia?”
Vós todas, unânimes, respondei com distinção:
“É o homem cego, que habita a pétrea Quios;
pois são seus cantos sempre os mais exímios.”
(Hino Homérico a Apolo, 205-209)
Como Delos era um dos locais de competição dos aedos profissionais, o poeta ocupa-se
de seu próprio elogio ao soliciar às “moças” (no caso, as Delíades) que atentem para a sua
qualidade e louvem seus méritos em um eventual julgamento. O fato de declarar-se como “o
homem cego, que habita a pétrea Quios” também evidencia este esforço. Sabemos que o conjunto
de Hinos Homéricos não são resultado do esforço criativo do poeta que teria composto a Ilíada e
a Odisséia. O que se percebe é uma tentativa de associar a imagem do aedo à do poeta mais
prestigiado da Antigüidade, evocando para tal suas características físicas e seu local de
nascimento.
Hesíodo também oferece um exemplo único da tentativa de resgatar a sua individualidade.
Diferentemente do aedo do Hino a Apolo, Hesíodo nomeia-se em seu poema. Esta é considerada
a mais antiga tentativa de resgatar a autoria de uma obra na Antigüidade Grega. Louvando as
Musas, Hesíodo destaca que “Elas um dia a Hesíodo ensinaram belo canto quando pastoreava
ovelhas ao pé do Hélicon divino” (HESÍODO, Teogonia, vv. 22-23).
O fato de escrever em terceira pessoa é utilizado por alguns estudiosos como indicativo de
que Hesíodo seria um poeta tradicional de quem um segundo aedo estivesse tratando ao cantar a
Teogonia. Apesar das mais variadas interpretações possíveis, o que resiste é o fato de que a
presença de um poeta falando da atividade criadora dos aedos. Neste caso, um poeta que vive dos
trabalhos agrícolas, que estava pastoreando ovelhas no monte Hélicon quando, sem treinamento
ou prática em competições, recebe das Musas a possibilidade de cantar e gloriar os feitos
imemoriais da Hélade.
É na esteira desta problemática que vemos as representações das Musas, Hermes e Apolo
emergirem como poderosos recursos discursivos. Considerando as características inerentes às
divindades em questão, é fácil perceber que os variados domínios de competência dos deuses
foram convocados a presidir a atividade dos poetas, relacionando-se ou não com a função poética
em si. Exemplo notável é a problemática da itinerância dos aedos, que se tornou parte
consubstacial de seu trabalho durante os movimentos de reconhecimento do espaço
Mediterrâneo.
Capítulo IV
As razões da itinerância
Quando Telêmaco defendeu Fêmio da crítica austera feita por Penélope durante o recitato
para os pretendentes, acabou fazendo uma importante consideração a respeito da prática
enunciatária dos aedos. Disse o filho de Odisseu: Não o censures por ter-nos cantado as
desgraças dos Dânaos, pois entre o povo recebem mais altos louvores os cantos que para o
ouvinte mais novos lhe soam, de fatos recentes.” (HOMERO, Odisséia, I, 350-352). Fato
semelhante acontece com Demódoco, na Feácia, ao ser convidado por Odisseu a cantar sobre o
episódio do cavalo de madeira:
Tão verazmente cantaste as desgraças dos homens Aquivos,
quanto fizeram, trabalhos vencidos, e o mais que sofreram,
como se o visses tu próprio, ou soubesses de alguém fidedigno.
Ora começa de novo, e o cavalo de pau nos invoca,
que por Epoio foi feito com a ajuda de Palas Atena,
esse, que o divo Odisseu com astúcia pôs dentro de Tróia,
cheio de heróis destemidos, que os muros sagrados saquearam.
Caso consigas cantar isso tudo de acordo com os fatos,
logo darei testemunho perante o universo dos homens
que recebeste de um deus benfazejo a divina cantiga.
(HOMERO, Odisséia, VIII, 488-498)
Entre a Ilíada e a Odisséia uma intensa relação de complementaridade. A primeira é
considerada mais antiga, pois fez sobreviver reminiscências de um passado mais longuínquo,
além das características inerentes a seu próprio enredo. A Odisséia complementa as informações
sobre a guerra de Tróia disponíveis na Ilíada, que termina no canto XXIV com o resgate que
Príamo faz do corpo morto de Heitor. A construção do cavalo de madeira, que se tornou a
passagem mais célebre dos épicos de Homero, em nada tem que ver com a trama central da
Odisséia, mas com o desfecho monumental que se espera do longo conflito que envolveu aqueus
e troianos. A morte de Aquiles, apesar de vislumbrada ao longo de toda a Ilíada, se faz
conhecida quando Odisseu chega ao Hades e encontra o cadáver do herói iliádico. De todo modo,
é fácil supor que em seu formato originalmente oral não havia uma distinção clara entre seus
temas. Os aedos gregos que recitavam estas histórias não concebiam uma separação entre elas: as
duas epopéias, que nos habituamos a ler separadamente, faziam parte de uma conjunto de
tradições orais antiquíssimas, transmitidas de geração em geração.
Apesar disso, o núcleo narrativo da Odisséia depende da existência anterior das histórias
apresentadas pela Ilíada. A monumentalidade dos temas decorridos em Tróia criou para os aedos
da Odisséia uma excepcional matéria de canto: um evento que envolvia toda a Hélade deveria ter
um apelo fortemente sentido pelas diversas regiões do Mediterrâneo, que teriam sofrido
necessariamente as repercussões que o fortalecimento dos gregos e a derrota dos troianos traria
para as diversas póleis, seja em seus aspectos políticos, sociais ou econômicos.
Independentemente de se tratar de uma guerra que aconteceu de fato, o que se observa é
que as ações oriundas da Ilíada provocaram grande interesse nos ouvintes da Odisséia. Os
exemplos de Fêmio e Demódoco mostram que os aedos foram principais responsáveis por
suscitar esse interesse e informar a aristocracia palaciana do período. Sua atividade assume um
novo estatuto: em uma sociedade de cultura oral, para ter acesso às informações, é necessário
entrar em contato pessoal com aqueles que dispõem delas. Quanto mais recentes, segundo
afirmativa de Telêmaco, mais apreciadas. Quanto mais precisas, segundo julgamento de Odisseu,
melhores. Portanto, é cil concluir que as récitas dos aedos trascendiam sua função social de
divertir e alegrar os banquetes: eram igualmente importantes pelo seu caráter informativo,
permitindo que os diversos povos da Grécia tomassem conhecimento dos eventos que ocorriam
no Egeu e além. A necessidade da itinerância parece ter se consolidado como uma das
características mais importantes do desenvolvimento profissional dos aedos, levando-os a refletir
e a convocar determinados deuses a representar esta tarefa.
A certa estabilidade de que alguns aedos gozam nos palácios e ambientes aristocráticos
homéricos não deve enublar nossas leituras. Quando vemos a presença sedentária de Fêmio em
Ítaca, Demódoco na Feácia ou do aedo não-nomeado presente na corte de Agamemnôn, somos
levados a crer que são funcionários reais que gozam da confortável condição de serem
sustentados pelos nobres, para que estejam à sua constante disposição. No entanto, quando
encontramos o aedo iliádico Tamíris, que viajava para competir com outros aedos, ou mesmo o
identificado no Hino Homérico a Apolo, que solicitara às donzelas délias que perpetuassem sua
fama aos outros aedos que por ali passassem, chegamos à conclusão de que este sedentarismo
nada mais era do que uma condição momentânea. Como defende Luis S. Krausz, é difícil
imaginar aedos permanentemente estabelecidos em algum lugar, isolados por completo de seus
pares e sem acesso a apresentações poéticas outras que as deles mesmos. A errância, portanto,
não é apenas adequada a estes aedos: é provável que tenha sido um meio indispensável para a
ampliação de seu repertório e a aquisição de novos materiais e canções (KRAUSZ, 2007, p. 23).
A itinerância implica o reconhecimento da diversidade e da afetação que diferentes culturas e
formas de sociabilidade helênicas provocaram nos aedos.
Como nos recorda Robert Aubreton, acha-se na Ilíada e na Odisséia uma mistura muito
peculiar dos dialetos: ático, jônico, árcado-cipriota e até algumas formas que são arcaísmos e que,
segundo parece, não se podem aproximar de nenhuma flexão conhecida (AUBRETON, 1959, p.
61). Esta profusão de dialetos é resultado das viagens, que acabavam fazendo incorporar
elementos lingüísticos das diversas regiões da Hélade durante seus périplos. O próprio nome de
Odisseu sofre esta afetação: além da forma clássica Odysseús, encontra-se a dialetal Ulíkses, que
originou o latim Ulixes e, consequentemente, nosso Ulisses. Nem mesmo o principal personagem
da Odisséia se manteve imune.
Outro fato evidente é que a errância convoca os poetas a instituir contato com as
alteridades. Mesmo quando o outro não oferece muita estranheza, percebe-se nas narrativas o
esforço de caracterizá-lo como não-grego e evidenciar sua inferioridade. A guerra de Tróia
parece ter sido um dos eventos mais importantes para essa demarcação
16
. Conforme Emilio
Crespo analisa, com base nos nomes de heróis da Ilíada, uma marcante noção de coletividade
e identidade coletiva gregas (CRESPO, 2005, p. 34). Apesar da grande familiaridade dos troianos
com algumas práticas associadas aos helenos, sua imagem aparece constantemente construída a
partir de costumes não-helênicos: os gregos atacam em silêncio enquanto os troianos atacam
ruidosamente; Aquiles recorda que os troianos oferecem cavalos vivos ao rio Escamandro;
Príamo é polígamo; Há várias menções à arrogância troiana diante da vitória, que contrasta com a
prudência e dignidade dos aqueus; e, notadamente, os aqueus, diferentemente dos troianos, nunca
suplicam pela vida, abraçando os joelhos dos vencedores, quando capturados (CRESPO, 2005, p.
36-37).
Outras passagens da narrativa assinalam este distanciamento. Íris, ao falar a Heitor,
caracteriza os heróis que se uniram aos troianos com base na língua: “A cidade de Príamo, o
grande, concorrem muitos aliados, muitas línguas se entre-escutam” (HOMERO, Ilíada, II, 803-
804). Para John Chadwich, a língua grega é fator decisivo para definir a existência de uma
comunidade cultural helênica. Para revelar a presença de povos gregos o autor se apropria do
16
Novamente, ressaltamos que a importância deste evento não reside em ter acontecido ou não. É de supôr que as
repercussões estas sim, reais foram extremamente salutares para a definição das fronteiras culturais e para a
construção de uma identidade helênica, pois fez a distinção entre povos gregos e povos não-gregos.
Linear B, que foi encontrado em diversas regiões e que indica diálogos culturais e movimentos de
colonização (CHADWICH, 1994, p. 1). Segundo esta leitura, os primeiros impulsos
colonizadores, que buscavam criar algum tipo de unidade cultural na Hélade se situam em um
período anterior às narrativas homéricas.
A Odisséia é o poema em que o contato com o outro se apresenta de modo mais evidente.
Quando Odisseu assume o papel de aedo, não se furta de utilizar as experiências colhidas ao
longo de seu périplo para encantar os feaces com sua récita e fazê-los entrar em contato com o
desconhecido. A Odisséia é considerada a fusão de três grandes tradições míticas que gozavam
de certa independência: A Telemaquia, ou as viagens de Telêmaco, que se estende do Canto I ao
Canto IV; Odisseu entre os Feácios, que marca a chegada do herói ao reino de Alcínoo e que vai
do Canto V ao Canto XII; e o Retorno de Odisseu, que vai do Canto XIII ao Canto XXIV
17
.
Entre os cantos V e XII o que percebemos é a existência de uma vasta digressão sobre o espaço
Mediterrâneo, que a fala de Odisseu narrou com mestria e riqueza de detalhes, baseando-se no
fato de que o imaginário da época considerava o insólito algo possível e real. Disso resultam os
relatos fantásticos em torno do gigante de um olho só, o cíclope Polifemo, dos monstros Cila e
Caribde ou da magia de Circe, que transformava homens em animais.
18
A itinerância do filho de Laertes é marcada pelo encontro com povos que desrespeitam
uma das principais instituições helênicas do período, que define com clareza o estatuto
aristocrático daqueles que a praticam: a hospitalidade. A hospitalidade é freqüentemente evocada
quando Homero faz menção aos principais representantes da elite palaciana. Como recorda
François Lissarrague, todos os heróis a praticam, como Menelau em Esparta, que celebra em
17
Segundo estabelecido e traduzido por Victor Bérard e editado pela Les Belles Lettres, a Odisséia original
terminaria no verso 310 do Canto XXIII; os versos seguintes seriam interpolações tardias unidas a resumos
provavelmente usados nas escolas gregas (BÉRARD, 1967).
18
Recordemos, aproveitando a advertência de Irad Malkin, que as descrições do outro sempre são feitas através do
filtro da mentalidade colonizadora (MALKIN, 1998, p. 16-17).
conjunto o casamento de seu filho e sua filha e convida Telêmaco e Pisístrato a partilhar o
banquete, oferecendo-lhes todas as honras (LISSARRAGUE, 2004, p. 233-234).
Para realçar os estranhamentos em relação ao outro, Homero não se furta de elencar
exemplos da falta destas práticas. O caso do cíclope Polifemo é notável. Quando os navegantes
chegam à sua caverna, em vez de serem recebidos com as deferências que o anfitrião deve
oferecer ao estrangeiro, são tratados de modo pouco apropriado. Os ritos de comensalidade
acontecem de modo inverso: no lugar de oferecer comida, Polifemo transforma os companheiros
de Odisseu em seu próprio jantar. Dispensa, inclusive, o uso do fogo: o monstro antropofágico
não utiliza o recurso que diferencia os seres humanos dos animais, que não cozinham seu
alimento antes de ingeri-lo. Além disso, tranca a saída da caverna
19
, transformando a almejada
condição de hóspedes na condição de prisioneiros.
uma completa inversão dos padrões de civilidade. Odisseu, meticuloso, utiliza sua
astúcia para mostrar a punição cabível àqueles que não se adeqüam à cultura grega, fazendo uso
da própria ignorância de Polifemo. Oferecendo-lhe vinho, a bebida típica de todo banquete, induz
o cíclope a consumi-lo em demasia, embriagar-se e dormir sob efeito do álcool. Assim, torna
possível a retaliação: com a ajuda dos companheiros, crava uma estaca de madeira em seu único
olho, cegando-o. Após conseguir se libertar da caverna, o marido de Penélope faz questão de
identificar-se. Antes, para lubibriar Polifemo, disse que se chamava “Ninguém” (outís); depois,
declara ser Odisseu, rei de Ítaca e filho de Laertes. Faz questão de apresentar o indivíduo que,
conhecedor de diversos ardis, imputou a ele pela força o modo grego de se portar. Bernard
Andreae salienta que, segundo as considerações que são feitas sobre a figura de Odisseu, se
ressalta que o particularmente caro episódio de Polifemo, do modo que veio a ser relatado na
19
O fato de morar em uma caverna também ajuda a caracterizá-lo. Sua brutalidade é tanta que não consegue fazer
uso dos recursos disponíveis pela natureza para construir um oîkos adequado. Polifemo opta pela caverna pois ela
dispensa o conhecimento técnico necessário para forjar uma vida em sociedade.
Odisséia, não é a formulação poética de um mito antigo, mas uma criação conceitual do próprio
poeta que compôs o épico (ANDREAE, 1983, p. 14). Disso resulta a evidência de que os aedos
fizeram questão de destacar a necessidade de fazer uma separação nítida entre o eu e o outro,
euforizando os méritos da cultura helênica.
Circe é outro exemplo pontual. Ao receber os viajantes em sua ilha, faz com que entrem
em seu palácio e, com auxílio de um phármakon, transforma os companheiros de Odisseu em
animais. Esta atitude também demonstra o desuso do espírito civilizado almejado pelos gregos:
em vez de afirmar através da receptividade os laços que definem o ser humano, faz com que
regridam à bestialidade. Odisseu não se transforma em animal em função da intervenção de
Hermes, que lhe oferece um remédio que o imuniza da influência de ações hostis praticadas pela
ninfa.
O único espaço em que o herói é acolhido de modo condigno durante sua itinerância é a
Feácia, justamente o local onde ele assume a condição de aedo. Como recorda Pierre Carlier,
alguns historiadores modernos qualificaram a Feácia como uma sociedade utópica
20
; o mesmo
autor questiona esta descrição, pois no plano político as instituições feaces são idênticas às outras
recorrências homéricas, com a particularidade de que funcionam harmoniosamente (CARLIER,
1999, p. 225). Diversos estudiosos associam ao povo feace as características da civilização
cretense, que marcou profundamente os olhares dos poetas orais dos períodos Homérico e
Arcaico
21
. Para Robert Aubreton, trata-se da ilha de população densa, com numerosas cidades em
20
Neste caso, o autor assinala que o sentido de utopia é o mesmo defendido por Thomas More desde o século XVI.
Pensava-se em uma sociedade perfeita que não existiria em nenhum lugar, ou seja, uma sociedade ao contrário das
sociedades reais e, por definição, irrealizável (CARLIER, 1999, p. 225).
21
Apesar de não fazer essa associação direta, algumas considerações de Moses Finley a respeito da arquitetura
cretense ajudam-nos na tarefa de associar a ilha à descrição da Feácia de Homero. A ausência de fortificações que
indicassem conflitos entre palácios e ameaças marítimas indicam, segundo o autor, um clima predominantemente
pacífico (FINLEY, 1990, p. 44). O clima pacífico e a grande autoridade do anáx, ciente de seus géras, é uma
característica do povo feace expressa pela conduta de Alcínoo. A singularidade da Feácia é tão singular como a Creta
desvendada pelos arqueólogos.
que se fala de vida marítima. Os palácios são os de Cnossos com seu luxo, a sua riqueza e os
seus banheiros também (AUBRETON, 1959, p. 95). A riqueza de Cnossos, descrita em
pormenores por Homero, é atestada pela arqueologia. Sobre essa questão, Jacqueline de Romilly
salienta o encantamento provocado pelas descobertas arqueológicas que se iniciaram no século
XIX, que tornaram evidentes que nas epopéias um vínculo estreito com a realidade
(ROMILLY, 1983, p. 5). Segundo a descrição de Homero,
De ambos os lados, cobertos de bronze, estendiam-se muros
desde a fachada até o fundo, encimados por friso azulado.
Portas com lâminas de ouro o palácio fechavam por dentro,
com seus batentes de prata apoiados em brônzea soleira.
Era de prata a arquitrave, porém era o anel todo de ouro.
De ouro e de prata, de cada um dos lados, dois cães se encontravam
(HOMERO, Odisséia, VII, 86-91)
As associações com Creta continuam após o regresso de Odisseu. Durante o período em
que esteve transfigurado sobre o aspecto de mendigo em Ítaca, nos dias que antecederam o
massacre dos pretendentes, o herói fez um falso discurso biográfico através do qual forjou uma
identidade cretense (HOMERO, Odisséia, XIII, 256-286). Alguns autores defendem que tal
escolha se deu pelo fato de que Creta seria um território exótico para ser mencionado e o menos
arriscado, que nada poderia desmentir seu relato (HEUBECK, 1978, p. 179; FASANO, 2004,
p. 116-117). Em alguma medida, o reino dos feaces é totalmente estranho à ordem guerreira
tradicionalmente associada a cidades da planície do Peloponeso, como Esparta, Micenas, Atenas,
Corinto ou Pilos. O próprio Alcínoo, ao descrever sua pólis, salienta as características principais:
No pugilato não nos distinguimos, nem mesmo na luta,
mas na carreira veloz e em navios de rápido curso.
Sempre prezamos o toque da cítara, a dança e os banquetes,
vestes poder variar, banhos quentes e leito macio.
(HOMERO, Odisséia, VIII, 246-249)
Apesar disso, a Feácia cultivava uma ética tipicamente helênica. A questão feminina
ratifica essa leitura: “Do mesmo modo que os homens Feácios a todos se extremam no governar
dos navios velozes no mar, as mulheres sabem tecer com perícia, pois Palas Atena lhes dera
mente elevada e perícia em trabalhos de bela feitura” (HOMERO, Odisséia, VII, 108-111).
uma nítida menção às expectativas helênicas que giravam em torno do gênero feminino pois,
recordemos, a fiação e a tecelagem são atributos tipicamente associados às mulheres. O
paradigma homérico de esposa ideal, Penélope, é exaustivamente associado aos trabalhos da roca
e do tear.
Creta também é, na Teogonia de Hesíodo, um espaço associado à estabilidade e ao
rompimento com a ordem caótica. É em Licto, “gorda região de Creta” (HESÍODO, Teogonia,
vv. 477) que Urano e Gaîa enviam Réia para gerar Zeus, fugindo do ímpeto devorador de seu pai
Cronos, que engolia tão logo nascia todos os filhos oriundos desta união divina. Creta é, portanto,
a região onde Zeus nasce, pois “recebeu-o Terra prodigiosa na vasta Creta para nutri-lo e criá-lo”
(HESÍODO, Teogonia, v. 479-480). Como é Zeus quem confere estabilidade ao mundo na
perspectiva do poeta Beócio, Creta se consolida como o espaço em que a ordem (Cosmos) é
capaz de nascer para romper com a desordem (Caos). O embate entre Zeus e Cronos é uma
variante óbvia da díade civilização versus barbárie.
O Hino Homérico a Apolo corrobora a prática de viagens dos cretenses e a correspondente
vocação para os assuntos sagrados tantas vezes assinaladas. Ao percebe-los em Delos, o deus
asseteador pergunta-lhe a respeito de sua origem. O comandante dos cretenses responde a Apolo:
“Estrangeiro, aos mortais em nada semelhas, é vero,
nem no talhe ou estatura, mas sim aos deuses eternos;
a ti, saúde e grande alegria. Vida ditosa os divos te dêem.
E tu, me responda sincero, para que eu bem o saiba:
Que país é este? Que terra? Que mortais aqui vivem?
Com vária tenção, o salso abismo sulcávamos,
rumo a Pilos, vindos de Creta, donde jactamo-nos de ter a
origem. A contragosto, porém, co’a nau aqui aportamos,
sequiosos para sulcar outra senda, diversa vereda;
mas um dos deuses, hostil, para cá nos conduziu”
(Hino Homérico a Apolo, vv. 464-473)
Apolo declara que eles não retornariam à magnífica Cnossos pois deveriam ficar em
Delos e tomar conta do templo. Assim, “para todo o sempre, sempre honrados heis de ser” (Hino
Homérico a Apolo, v. 485). Cumprindo os ritos de fundação determinados pelo deus, os cretenses
se estabelecem em Delos, fazem os trabalhos votivos e acompanham Apolo enquanto ele executa
o peã. Assumem, como vimos, a condição de aedos não-profissionais.
A evidente atração que os aedos do período possuíam sobre Creta sugere algumas
características fundamentais da atividade destes poetas orais. Antes de tudo, percebe-se o esforço
de se associar a um universo aristocrático. Os aedos podem ter considerado as características
políticas de Creta um excelente modelo a ser disseminado, que seu ofício dependia da
existência de uma aristocracia palaciana consciente de seus géras. Como assinala Francisco
Adrados, encontra-se em Cnossos uma organização sacerdotal e burocrática dependente em
última instância do rei e subvencionada com terras. Há muitos indícios de que o rei, que cuida do
culto do palácio e de outros cultos, está muito próxima da divindade, se não tem um caráter
semidivino (ADRADOS, 1963, p. 324). Para Lévêque, o rei cretense domina todas as atividades
dos súditos e monopoliza as relações com o sobrenatural, rei-sacerdote certamente, mas também
verosimilmente rei-deus (LÉVÊQUE, 1996, p. 127). Para embelezar o passado da nobreza que
sustentava suas honras e privilégios, era salutar que a matéria de canto do poeta fosse
indiscutivelmente legítima. Neste sentido é que se desvela a eficácia do discurso que celebra os
reis com inúmeras deferências, principalmente religiosas. O ouvinte do canto se confunde com o
conteúdo, que o anáx é a prova viva das genealogias divinas celebradas em um passado
distante e inacessível. Não dúvidas de que cantar para um rei praticamente divino seria muito
mais meritório que celebrar um banquete para uma comunidade sem rei, como a Ítaca de Fêmio.
Como consequência da centralidade do poder e da divinização do rei, estes círculos
proveriam os aedos da visibilidade social que julgavam necessária para a construção de sua glória
pessoal e do reconhecimento público de seu prestígio. Exemplo típico é Demódoco, cercado de
todas as honrarias e riquezas disponíveis na Feácia. O fato de serem profissionais extremamente
apegados às tradições ajudou a consolidar Creta como o espaço mais profícuo para as atividades
associadas aos banquetes, especialmente a dança. Várias histórias associam à ilha situada no sul
do mar Egeu a origem de práticas desta natureza (SHAPIRO, 2004, p. 301).
Creta pode ter servido como referência, mas é apenas um dos elementos neste contexto
mais amplo de reconhecimento do outro e de si mesmo. Observa-se um duplo esforço que
fundamenta a lógica da itinerância e a prática enunciatária dos aedos gregos: em primeiro lugar, a
necessidade de consolidar uma identidade helênica e produzir uma sensação de pertencimento às
póleis da planície do Peloponeso e das ilhas do Mar Egeu; em segundo lugar, o projeto de
difundir esta tradição e estendê-la ao espaço Mediterrâneo, buscando consolidar redes de
sociabilidade pautadas em um ideal Pan-helênico durante o Período Arcaico.
Por esse motivo, os registros poéticos remanescentes dos recitatos aédicos são vistos por
Carol Dougherty como discursos estratégicos, comuns a diversas tradições e movimentos
coloniais. A autora ressalta que entre os séculos VIII e VI, os gregos procuraram estabelecer sua
presença em solo estrangeiro, indo do Extremo Oriente à costa oeste da Espanha. Os repertórios
homéricos e os demais poemas arcaicos, além de auxiliarem na difusão da cultura helênica e no
movimento civilizador, justificavam o impulso colonial a uma fonte divina, como o observado
por um Apolo Délfico ansioso pela fundação e estabelecimento de seus oráculos (DOUGHERTY,
1993, p. 4). Esta abordagem também foi utilizada, com algumas nuances, por Irad Malkin. O
historiador iraniano aponta os méritos do trabalho de Dougherty, mas questiona o essencialismo
de suas generalizações, que a autora recorre a um repertório tanto Arcaico como Clássico e
Helenístico para fundamentar suas leituras da influência dos movimentos coloniais sobre a poesia
grega (MALKIN, 1998, p. 22-23).
Enquanto Dougherty se preocupa, fundamentalmente, com as marcas do movimento
colonizador na poesia e como esta atua como um elemento legitimador do expansionismo
helênico, Irad Malkin pretende reconhecer nos mitos especialmente os que versam sobre o
retorno de heróis (nostói) os registros e usos que os gregos faziam deles na tentativa de
conceitualizar a etnicidade, apontar as diferenças e forjar uma identidade de grupo grega com
base no olhar sobre os povos não-gregos (MALKIN, 1998, p. 1).
Seguindo o bojo deste raciocínio, o trabalho de Gregory Nagy aponta que na poesia grega
arcaica o princípio de unidade na composição pode ser o resultado do social assim como de
fatores artísticos:
No Hino homérico a Apolo, por exemplo, a integridade do poema não resulta
somente da fusão de duas tradições sobre Apolo, o Délio e o Pítico, mas da
fusão artística das duas audiências distintas. A adoração de Apolo Délio é o
princípio fundador que une as póleis nas ilhas do Egeu e na costa do menor de
Ásia - precisamente aquelas áreas helênicas que não são incluídas na filiação
vasta das cidades-Estados unidas na adoração de Apolo Pítico em Delfos. Desde
que o Hino Homérico a Apolo é apropriado sob o balanço do Délico assim
como o Apolo Pítico, sua escala da audiência é verdadeiramente de escopo Pan-
helênico. A menção da orientação Pan-helênica que encontramos no Hino
Homérico a Apolo nos traz uma contribuição vital para nossa compreensão da
composição homérica, oriunda da arqueologia. Uma síntese arqueológica feita
por Anthony Snodgrass demonstrou que o século VIII, época em que a Ilíada e
a Odisséia se aproximaram de seu formato final, foi um marco decisivo na
evolução da civilização helênica; ao lado da emergência da cidade-Estado
políade como uma instituição geral com uma tendência forte das tradições
localizadas (culto, lei, etc.), emergiu uma tendência proporcionalmente forte da
intercomunicação entre a elite das cidades-Estados, a tendência do Pan-
helenismo. Algumas manifestações específicas desta última tendência são o
estabelecimento dos Jogos Olímpicos, o estabelecimento do santuário do Apolo
Pítico e Oráculo em Delfos, as colonizações organizadas e a proliferação do
alfabeto (NAGY, 1986, p. 6-7).
As récitas aédicas, apropriando-se das representações de divindades como Apolo e
Hermes, se consolidaram como um mecanismo precipuamente político para o exercício de poder
desta aristocracia colonizadora.
Os aedos eram instrumentos fundamentais deste movimento, através de suas práticas
oratórias e da construção das características divinas associadas a essas prerrogativas. Não
como definir se os poetas percebiam esta preocupação política das elites de modo claro e
articulado ou se, pelo simples fato de serem interlocutores de seus valores, acabaram por assumir
esta condição. O fato é que, principalmente nas representações de Apolo e Hermes, é possível
observar uma mudança do movimento de reflexão a respeito de seu próprio fazer poético. Nestas
tradições, que emergem principalmente com a Odisséia e com os Hinos Homéricos, não é
somente o porte da cítara o elemento que caracteriza os deuses em questão como referenciais
numinosos para seus recitatos. Aproveitando o ensejo que as tradições mais remotas ofereciam,
prontamente os aedos fizeram as divindades assumirem a itinerância e os aspectos colonizadores
como um de seus quinhões.
Apolo, desde a Ilíada, se caracteriza como um deus viajante. Não se assemelha em nada
com um Zeus sedentário, permanentemente situado no Olimpo. O filho de Leto estabelece e
consagra espaços mediante sua itinerância. Após os nove dias que sua mãe sofreu para fazê-lo vir
à luz, Apolo se põe em marcha (ebíbasken) para desbravar a região e procurar seu lugar: “e sobre
as terras de amplas vias, a grandes passos partia Febo de intonsos cabelos, o infalível frecheiro”
(Hino Homérico a Apolo, vv. 133-134). Caracteriza-se, portanto, como um deus empenhado em
fazer reconhecer as regiões e estabelecer sua égide, proclamar a necessidade de seu culto e fazer-
se conhecido como um deus dos caminhos, aguiéus. Esta atitude é facilmente associável ao
impulso colonizador. O vocabulário é um excelente instrumento de aferição destas características.
Como recorda Marcel Detienne, o verbo ktízein está presente no conjunto de gestos executados
por Apolo desde seus primeiros passos. Trata-se do verbo fundamental da “fundação”,
especialmente para as cidades novas, ao longo da colonização das terras do Ocidente e das
regiões costeiras do Mar Negro desde o século VIII. O campo de ktízein é duplo: por um lado,
significa arar”, “cultivar”, “acondicionar”. Por outra, “construir”, “edificar”, “fundar”. Segundo
as tabuletas de Linear B, o sentido dominante dos termos derivados do radical kti- seriam “arar,
preparar o solo, semear, plantar”. Na etapa documental seguinte, no século VIII, os poemas
homéricos desenvolvem paralelamente o sentido de “fundar, construir” e o de “arar, cultivar”
(DETIENNE, 2001, p. 27-28).
A recorrência de tradições que associam Apolo às funções oraculares, à fúria desmedida
levada a cabo com seu arco e mesmo ao seu aspecto muságeta características, sem dúvida, mais
evidentes na totalidade conhecida de suas representações - faz com que os helenistas comumente
esqueçam este viés de fundador e viajante, igualmente presente mesmo nas tradições mais
antigas. No primeiro canto da Ilíada, o exércio aqueu estava prosternado com a fúria
avassaladora de Apolo e com a peste que o deus enviara. Os gregos oferecem hecatombes
primorosas e, em seguida, promovem um baquete onde se executava um peã em sua honra.
Reconfortado com as venerações, Apolo aplaca temporariamente sua cólera e permite que novas
tropas cheguem à planície tróica, favorecendo os viajantes:
O Arqueiro envia um vento
favorável. O mastro erguido, as velas pandas,
brancas, sopradas bem no centro, e em torno à quilha
que avança, as ondas rastro púrpura soando,
soando, enquanto a nau ao longo rasga a rota.
Chegando enfim ao amplo exército dos gregos,
arrastam para a terra firme a nave negra,
para a areia, no alto, e põem debaixo escoras.
(HOMERO, Ilíada, I, 479-486)
Do mesmo modo, quando Diomedes avançava com seu ímpeto assassino sobre Enéias,
Apolo retira o segundo da lide “e à sagrada Pérgamo o transporta, para o seu templo”
(HOMERO, Ilíada, V, 446-447). Em diversos momentos Apolo participa do combate em socorro
aos troianos, seja através do uso de sua própria força, seja através da orientação que oferecia,
principalmente ao príncipe priâmeo: “e guiava-os, passadas largas, Héctor; Febo Apolo, manto
núveo, o escolta, égide franjada” (HOMERO, Ilíada, XV, 307-308). O Apolo aguieús sanciona a
virtude civilizadora dos caminhos e as rotas na organização do território (DETIENNE, 2001, p.
33).
É através desta itinerância, deste processo de reconhecimento do desconhecido, da
peregrinação, que Apolo chega a Delfos e funda seu primeiro altar. Como vimos, foram os
cretenses os convocados pelo deus para realizar a tarefa. Apolo prontamente resolve que seriam
eles que levariam à cabo seu projeto de fundar na ilha seu oráculo. As palavras imperativas do
filho de Leto são recebidas como uma dádiva, uma honraria, pois “de bom grado ouviram e
acataram” (Hino Homérico a Apolo, v. 502). Recebem e cumprem todas as instruções: acendem o
fogo, ofertam alva farinha, oram, ceiam, libam aos deuses olímpicos e partem, em seguida, para
celebrar o peã.
Pelas análises de Mircea Eliade, percebemos que estamos diante de um rito de
cosmização, onde Apolo busca com os cretenses consagrar um espaço e torná-lo propício à vida.
Segundo o autor, para o homem religioso, o espaço não é homogêneo. um espaço sagrado, e
por consequência forte”, significativo, e outros espaços não-sagrados, e por consequência
sem estrutura nem consistência, em suma, amorfos (ELIADE, 2001, p. 25). Este espaço amorfo,
para se tornar real, propício para a vida, deve ser ritualmente cosmizado. Promove-se uma ruptura
com o espaço “caótico” para torná-lo “cósmico”, habitável, acessível aos homens com a chancela
dos deuses
22
.
Antes de Mircea Eliade, Émile Durkheim atingiu conclusões semelhantes através das
discussões entre identidade e diferença. Pensando a partir da gica de sistemas classificatórios e
utilizando a religião como modelo, o sociológico procurou mostrar que as relações sociais são
produzidas e reproduzidas por meio de rituais e símbolos, que classificam as coisas em dois
grupos: as sagradas e as profanas. Ele sugeriu que as representações que se encontram nas
chamadas “religiões primitivas” (fetiches, máscaras, objetos rituais e totêmicos) eram
considerados sagrados porque corporificavam as normas e os valores da sociedade, contribuindo
assim para unificá-la culturalmente (WOODWARD, 2000, p. 40). Neste caso, o que percebemos
é o esforço aédico de transformar, a partir da ação apolínea, um espaço do outro em uma região
helênica, através das hecatombes praticadas em um ambiente a ser cosmizado. Apolo realiza um
movimento colonizador, tornando Delfos um espaço grego pela imposição das estruturas
religiosas tradicionais e reconhecidas socialmente. Exemplo semelhante diz respeito à morte que
o deus asseteador infligiu à serpente Píton:
quem o ofídio afrontasse, o dia fatal defrontava,
antes que Febo, sumo arqueiro, ferisse-a co’a flecha
potente; e esta, desfeita por dores atrozes,
retorcia-se sobre o solo, em intenso estertor
(Hino Homérico a Apolo, v. 356).
22
A dicotomia definida por Mircea Eliade instaura duas referências religiosas principais: Caos e Cosmos. Segundo o
autor, “O que caracteriza as sociedades tradicionais é a oposição que elas subentendem entre o seu território habitado
e o espaço desconhecido e indeterminado que o cerca: o primeiro é omundo‟, mais precisamente, „o nosso mundo‟,
o Cosmos; o restante não é um Cosmos, mas uma espécie de „outro mundo‟, um espaço estrangeiro, caótico,
povoado de espectros, demônios, „estranhos‟ (equiparados, aliás, aos demônios e às almas dos mortos). À primeira
vista, essa rotura no espaço parece consequência da oposição entre um território habitado e organizado, portanto,
„cosmizado‟, e o espaço desconhecido que se estende para além de suas fronteiras: tem-se de um lado um „Cosmos‟ e
de outro um „Caos‟” (ELIADE, 2001, p. 32-33).
A serpente está associada, em inúmeros sistemas religiosos, à selvageria, ao erro, à
perdição humana e ao caos. Matá-la significa dar fim à desordem, sacralizando o espaço e
tornando-o propício à vida em sociedade
23
. É com esta finalidade evidente que Apolo se utiliza
de seu arco, visando estabelecer a harmonia nos ambientes habitados pelos homens e consolidar
seu prestígio como um deus colonizador. Segundo as palavras que os aedos atribuíram ao deus,
“Ora aqui te aprodreças, sobre a terra nutriz de varões,
feral excídio aos viventes mortais não mais
serás; eles, que comem o fruto da terra feraz,
hecatombes perfeitas virão aqui me ofertar;”
(Hino Homérico a Apolo, vv. 363-366)
Para Marcel Detienne, a intervenção do deus fundador assume uma caráter de purificação,
pois seu movimento fez transformar a terra produtora de monstros em terra portadora de frutos
(DETIENNE, 2001, p. 222). Apolo é um deus amigo dos homens, que institui pelas virtudes que
lhe são próprias um compromisso de lealdade, uma ordem social e uma ética tipicamente
helênica.
Se as características gerais de Apolo, quando comparadas a Hermes, mostram inúmeras
recorrências, no caso da itinerância e dos movimentos colonizadores elas ficam ainda mais
evidentes. Obviamente, inúmeras particularidades e adequações diferenciam os deuses, cujo culto
era particularizado pelos gregos antigos. De todo modo, depreende-se um movimento, consciente
ou não, de caracterização de Apolo e Hermes como deuses similares segundo a lógica da difusão
cultural helênica através dos espaços não-gregos.
23
Uma variante desta história é encontrada na Teogonia, quando Hesíodo descreve a morte que Zeus inflinge a
Tifeu. Na descrição do poeta beócio a respeito de Tifeu, consta que “ele tem braços dispostos a ações violentas e
infatigáveis pés de Deus poderoso. Dos ombros cem cabeças de serpente, de víbora terrível, expliam línguas
trevosas” (HESÍODO, Teogonia, vv. 823-836). Zeus mata Tifeu fazendo uso do raio, relâmpago e trovão, armas
associadas ao fogo que, por sua vez, possui simbolicamente a associação com a civilidade. Zeus também é, por si só,
um deus civilizador.
Hermes é um deus que resguarda sempre um aspecto de mobilidade espacial. Entre os
símbolos usados para caracterizá-lo desta forma, tanto na documentação textual como na
documentação imagética, identifica-se o caduceu (kerykeion) e as sandálias aladas. O caduceu era
uma espécie de bastão, similar ao cajado comumente utilizado pelos viajantes andarilhos do
período. As sandálias aladas, de modo ainda mais evidente, denunciam uma propriedade
aparentemente exclusiva na mitologia grega do Período Arcaico: a capacidade de se deslocar,
materialmente, pelo ar. Uma variante desta característica pode ser observada no Ícaro cretense,
mas que provavelmente se consolidou em tradições mitológicas diferentes ou posteriores, que
na documentação que selecionamos, somente a Ilíada faz uma menção a ele, ainda assim de
modo bastante furtivo (HOMERO, Ilíada, II, 145). Em alguns momentos, estes dois símbolos de
mobilidade espacial aparecem unidos nas descrição de Hermes e evidenciam com mais ênfase
esse aspecto do deus:
O mensageiro brilhante, de pronto, ao mandato obedece.
Calça, sem perda de tempo, nos pés as bonitas sandálias
de ouro e divinas, que por sobre as águas, sem mais, o conduzem,
como, também, pela terra infinita, qual sopro do vento;
arma-se do caduceu com que os olhos dos homens encanta
tendo-o seguro na mão, voa o forte e brilhante correio.
(HOMERO, Odisséia, V, 43-49)
As características deste Hermes que abre caminhos, reconhece espaços e se desloca com
facilidade, associadas ao uso articulado e habilidoso com as palavras, fez com que fosse legada a
ele, na tradição homérica, a incumbência de servir de mensageiro dos deuses. Dentre os epítetos
que caracterizam esse seu aspecto, encontram-se “porta-voz divino”, “cursor-veloz e
“mensageiro”. É Hermes quem conduz Príamo na difícil e arriscada missão de levá-lo ao
acampamento dos aqueus para que o rei troiano suplicasse, diante de Aquiles, pelo corpo morto
de seu filho Heitor (HOMERO, Ilíada, XXIV, 331-345). Outros epítetos, como “benfazejo” e
“guia brilhante”, denunciam que esta mobilidade também é utilizada em benefício dos homens. É
Hermes quem atua junto a Odisseu durante seu périplo para fazer valer as vontades dos deuses,
que compactuam, independentemente das dificuldades impostas por Posêidon, para que o herói
retorne à casa. O deus, a pedido de Zeus, intercede junto à Calipso pedindo que a deusa
interrompa o “cárcere amoroso” que retarda o retorno do filho de Lartes (HOMERO, Odisséia, V,
28-29). É Hermes também quem um antídoto que livra Odisseu do pharmakón que Circe
utilizara para transformar seus companheiros em animais (HOMERO, Odisséia, X, 307-308). Em
outras palavras, quando um desvio dos valores helênicos, o deus mensageiro se faz presente
para corrigir o equívoco e alterar os rumos dos acontecimentos. Hermes é um deus extremamente
antropomórfico, justo, próximo e amigo dos homens. Como destaca Jean-Pierre Vernant, ao
contrário dos deuses longínquos, que residem em um além, Hermes é um deus próximo que
freqüenta este mundo. Vivendo em meio aos mortais, em familiaridade com eles, é no próprio
coração do mundo humano que se insere a sua presença divina (VERNANT, 1990, p. 191-192).
Assim como Apolo, Hermes é um deus civilizador e colonizador: ele altera o rumo dos
acontecimentos para que os valores helênicos tenham sempre proeminência sobre as ações dos
povos não-gregos. Deste modo, é possível conjecturar que Hermes foi assim representado para
assumir justamente a itinerância e o helenismo que os aedos buscavam difundir ao longo do
Mediterrâneo através de sua poesia. Hermes, assim como Apolo, é um registro metapoético da
itinerância exercida pelos próprios aedos. As ações que praticava em nome de Zeus seriam
correlatas às expectativas confiadas pela aristocracia aos poetas orais durante este processo de
reconhecimento e colonização.
As várias recorrências deste tipo de representação, as características particulares do deus e
as diversas associações com Apolo, funcionam como excelentes argumentos para transformar
esta conjectura em uma evidência segura. Ajudam, inclusive, a referendar as análises deste Apolo
colonizador, que se alia ao mensageiro dos deuses em símbolos partilhados pelo universo do
recitato aédico. O Hino Homérico a Hermes IV é uma das referências mais importantes neste
sentido, corroborando as perspectivas já apresentadas pelas epopéias de Homero. A sobrevivência
destas representações de Hermes também pode indicar que os aedos se esforçaram para mantê-lo
associado à itinerância e às práticas poéticas das quais eram legítimos portadores.
O Hino Homérico descreve o nascimento de Hermes, desenha seus traços, glorifica seus
primeiros feitos e assinala os caminhos percorridos pelo deus para assumir legitimidade diante
dos deuses olímpicos. A associação com a Apolo é reiterada permanentemente, de modo que, nos
mitos de infância de Hermes descritos pelo proêmio, a imagem do irmão mais velho é
indissociável do filho mais novo de Zeus.
Após a habitual invocação às Musas, a narrativa do Hino descreve brevemente a
genealogia de Hermes e antecipa suas características principais: “Maia pariu-lhe um menino
embusteiro, multiardiloso, meliante, ladrão de gado, guia da tropa dos sonhos, o ronda-portas
esperto e noite-aceso” (Hino Homérico a Hermes IV, vv. 13-15). De fato, tais atributos são
responsáveis pela própria precocidade do filho de Zeus: “Nascido na aurora, meio dia tocava a
cítara” (Hino Homérico a Hermes IV, v. 17). À noite, Hermes transporia o limiar da caverna onde
nasceu à procura das vacas de Apolo.
Roubar as vacas de Apolo parece ter sido um rompante, cujo resultado final Hermes
antevia. Herdando a métis de Zeus, consegue produzir estratagemas e antever o término antes de
principiar a trama. No afã de colocar seu plano em prática, Hermes transpõe o limiar da caverna.
Pouco tempo após seu nascimento, começa a realizar o movimento de driblar os caminhos,
acessar os espaços, reconhecer as distâncias, romper as barreiras. No caminho, encontra a
tartaruga que fará surgir a cítara, interrompendo temporariamente seus planos. À noite,
prosseguimento ao intento inicial e parte para o furto do rebanho apolíneo.
Chegando à Piéria, onde o filho de Leto pastoreava suas vacas divinas, separa cinqüenta
reses. Novamente, desbravando caminhos, procura conduzi-las para o interior de sua caverna.
Sua artimanha não lhe faltou na condução das vacas: inverteu os rastros, fazendo-as andar de
costas e fez para si sandálias com ramos entrelaçados de tamargueira e mirto. Além de
reconhecer os espaços, de ir além, Hermes transforma os caminhos com base em sua astúcia,
fazendo com que tudo conspire a seu favor. Cria-se uma espécie de jogo, através do qual Hermes
e Apolo fazem uso dos quinhões que lhes são próprios para fazer valer suas vontades. Seu
estratagema só não foi perfeito porque um velho pastor vira o jovem passar com as vacas.
Hermes não deixou de ir falar a ele, coagindo-o a nada dizer para evitar males vindouros. Assim
conduziu as cinqüenta vacas.
em sua caverna, separa duas reses para imolar. Assim como Apolo consagra o espaço
em Delfos, onde cria seu oráculo, Hermes consagra o espaço em que nasceu, utilizando os ritos
de comensalidade e as práticas religiosas helênicas para cosmizá-lo. A caverna, vista pelas
caracterísitcas que lhes são próprias como um espaço bravio e inacessível, torna-se sacralizada
pelos ritos de fundação. Hermes cortou um loureiro (árvore tradicionalmente associada a Apolo),
cavou o chão e depositou a lenha, fazendo uma fogueira
24
. Separou duas vacas e golpeou-as,
tirando-lhes a vida. Separou as carnes, estendeu as peles e talhou os animais em doze porções,
oferecendo uma a cada deus olímpico (incluindo-se na divisão). Logo em seguida, retornou ao
berço e cobriu-se com o lençol, assumindo novamente a aparência de uma criança inocente.
Observa-se que o ato de cobrir-se pode ser associado à tartaruga por ele utilizada para criar a
24
Segundo o Hino, Hermes teria inventado os meios de produzir o fogo. Trata-se, obviamente, de um fogo
sacrificial, justificando nesse sentido a origem da tradicional queima dos ossos em oferenda aos deuses olímpicos
(Hino Homérico a Hermes IV, v. 111).
cítara, que se esconde em seu casco para proteger-se de ameaças externas. Para Hermes, a
ameaça seria sua mãe, Maia, que percebeu que algo de errado tinha acontecido. Ela inquiriu o
filho que, por sua vez, dissuadiu-a, evocando sua tenra idade como fator que o impossibilitaria de
elaborar qualquer feito que parecesse grandioso.
Hermes procura fundar um espaço, sacralizar um ambiente, torná-lo grego. A escolha da
caverna se associa às suas características inatas: a caverna é o local do ocultamento. Hermes se
utiliza do fogo elemento civilizador, considerado em diversas tradições míticas como um
presente de Zeus para os homens para consolidar-se como um deus cosmopolita, próximo aos
mortais; do mesmo modo, apesar dos ardis que lhe são próprios, Hermes respeita profundamente
os ritos religiosos, como o sacrifício e a oferenda dos ossos aos deuses soberanos. Ele procura
ratificar uma tradição para se incluir e se mostrar como legítimo participante dela. Cria-se, neste
sentido, uma tríade simbólica associada aos ritos de fundação, às práticas de itinerância e aos
discursos sobre a consolidação de um espaço helênico: a fundação do oráculo de Delfos e a
consagração da caverna são variantes numinosas dos movimentos colonizadores empreendidos
pela aristocracia do Período Arcaico ao longo do espaço mediterrâneo.
Outra associação de Hermes com a prática dos aedos e as razões de sua itinerância se
torna evidente quando comparamos o deus benfazejo com Odisseu, herói colonizador que
também assume a palavra poética como uma de suas características notáveis. Durante seu périplo,
Odisseu é aconselhado por Calipso a navegar até ao Hades para consultar o adivinho Tirésias. De
modo semelhante, Hermes assume, desde a Odisséia, a qualidade de um deus πομπαιος, que leva
os mortos até o mundo subterrâneo. Após a chacina dos pretendentes, é Hermes quem conduz até
as almas dos mortos pelo arco de Odisseu (HOMERO, Odisséia, XXIV, 1-5).
O Hades é o espaço mais insólito da experiência religiosa helênica. Apesar de ser
percebido como um espaço físico, é notável que a chegada até ele é quase que exclusivamente
restrita àqueles que perderam a vida. O Hades é o lugar do outro, o outro que é si mesmo em
uma condição distinta e irrevogável. Trata-se de um espaço inatingível, ou atingível somente por
indivíduos excepcionais. Depois de Héracles, nas tradições do Ciclo Tebano, somente Odisseu
conseguiu chegar até lá. Em primeiro lugar, a chegada do filho de Laertes ao Hades desnuda um
aspecto interessantíssimo: sua habilidade como navegador é inigualável e sua itinerância não
possui limites, já que consegue extrapolar os limites impostos pela própria condição humana. Em
segundo lugar, demonstra que o herói da Odisséia consegue sobreviver à própria morte.
O acesso ao inatingível não é a única característica que associa Odisseu e Hermes aos
aedos. A anámnesis de determinado tema para a récita também é vista como uma travessia. O uso
da memória permite ao aedo percorrer distâncias inimagináveis, entrar em contato com o não-
visto, sondar o improvável. Para Vernant, a memória transportaria os poetas ao coração dos
acontecimentos antigos, em seu tempo (VERNANT, 1990, p. 138). É por isso que a viagem que
assinala a morte é marcada pela tensão entre Memória e Esquecimento. Ainda segundo Vernant,
Esquecimento é pois uma água da morte. Ninguém pode abordar o reino das
sombras sem ter bebido nessa fonte, isto é, sem ter perdido a lembrança e a
consciência. Ao contrário, Memória aparece como uma fonte de imortalidade,
da qual falam certas inscrições funerárias e que assegura ao demônio a sua
sobrevivência até no além. Precisamente porque a morte se define como o
domínio do esquecimento, aquele que no Hades guarda a memória transcende a
condição de mortal (VERNANT, 1990, p. 144-145)
Como assinala Marcel Detienne, amparando-se nos resultados das pesquisas de Jean-
Pierre Vernant, a memória dos gregos não responde, de modo algum, aos mesmos fins que a
nossa; ela não visa, em absoluto, reconstruir o passado segundo uma perspectiva temporal. A
memória sacralizada é, em primeiro lugar, privilégio de alguns homens organizados em
confrarias: assim sendo, ela se diferencia radicalmente do poder de se recordar que possuem os
outros indivíduos. Nesses meios de poetas inspirados, a Memória é a uma onisciência de caráter
divinatório (DETIENNE, 1991, p. 17). O fato dos aedos terem construído as características deste
Hermes viajante, que faz sua memória resistir ao Hades, nos ajuda na tarefa de associá-los às
práticas enunciatárias destes poetas, do mesmo modo que esta itinerância de Hermes ajuda a
validar os argumentos que sustentam as itinerâncias aédicas.
Obviamente, a existência de Hermes e Apolo é anterior aos movimentos de colonização
empreendidos pelos gregos a partir do século VIII. As representações divinas da itinerância e dos
gestos de fundação a ela associados ajudam a entender a ligação destes deuses com os poetas
orais que fizeram uso de suas representações no esforço de consolidar seus papéis sociais. Esta
tendência se instaura definitivamente nos Hinos Homéricos, que se dedicavam quase que
exclusivamente a narrar eventos que ajudassem na caracterização dos deuses louvados. É através
destes proêmios que os principais temas associados à fundação de cidades e à sacralização de
espaços helênicos se tornam evidentes. Entretanto, como vimos, essa tendência remonta à Ilíada
e à Odisséia, onde as representações dos deuses justificam sua escolha por parte dos aedos.
O uso de Apolo é mais evidente. Como assinala Carol Dougherty, os oráculos de Apolo
tinham o poder de autorizar, no imaginário helênico, a fundação de novas cidades
(DOUGHERTY, 1993, p. 15). Associar essa autoridade religiosa apolínea às práticas
enunciatárias parece ter sido um excelente mecanismo para incluir neste processo expansionista a
figura do aedo com indivíduo fundamental para consolidar a identidade helênica nestas regiões a
serem conquistadas.
A condição oracular, que autoriza a itinerância colonizadora, não é evidente em Hermes.
Entretando, a mobilidade espacial está associada ao deus desde suas representações mais remotas.
Seus atributos de viajante são extremamente particulares, não sendo percebidos da mesma forma
em nenhum outro deus, apesar de termos vislumbrado uma tendência similar nas representações
de Apolo, mas nem de longe tão euforizada como nas de Hermes.
Dentre as similitudes, percebe-se uma orientação extremamente antropomórfica tanto de
Apolo como de Hermes. Nos épicos homéricos, o primeiro assume esta postura com mais
destaque na Ilíada, enquanto o segundo o faz na Odisséia. Nos Hinos Homéricos, é Apolo que se
caracteriza como mais próximo dos humanos, orientando pessoalmente os cretenses no
movimento de fundação de seu oráculo em Delfos. Esta característica em comum motivou os
aedos a reconhecerem em Hermes e Apolo os deuses de quem poderiam se apropriar para a
construção de um referencial numinoso que legitimasse sua errância. Deuses próximos aos
homens são mais suscetíveis às inclinações, práticas e comportamentos humanos, principalmente
quando suas representações são forjadas pelos principais responsáveis por levar aos demais o
conhecimento do universo divino.
Através de negociações, os aedos ajudavam a consolidar o poder das elites palacianas,
informando através das récitas a supremacia dos heróis e reis gregos nas áreas ocupadas; como
contrapartida, os aristocratas sustentavam o estilo de vida luxuoso e o aprimoramento profissional
daqueles que decidem, através da lembrança e do esquecimento, a imortalidade na memória dos
homens. Hermes e Apolo podem ter exercido papel importantíssimo neste diálogo, figurando
como um excelente argumento para justificar os méritos de seus ofícios. Como veremos, suas
representações presidindo e praticando a poesia também atuou neste sentido.
Capítulo V
Apolo, Hermes e Musas: divindades poéticas
Como muitos helenistas costumam defender, é praticamente impossível separar os
aspectos religiosos dos profanos da vida em se tratando de Grécia Antiga. Este problema se torna
ainda mais evidente quando estudamos o Período Arcaico e os períodos a que os épicos de
Homero fazem menção. Praticamente todas as façanhas individuais, características físicas, ações,
dádivas, méritos, deméritos e infortúnios eram percebidos como resultado direto da ação divina.
São eles que decidem o tempo de duração da guerra de Tróia, os vencedores e os vencidos, os
mortos e os sobreviventes, os lembrados e os esquecidos. Determinam o tempo de errância de
Odisseu e os estrategemas a serem adotados em cada momento de seu périplo. Em Hesíodo esta
questão é ainda mais evidente, que sua proposta é cantar uma cosmogonia que referende o
lugar de destaque conquistado por Zeus durante as lutas sucessórias e a maneira pela qual
conseguiu estabelecer uma ordenação ao antigo mundo caótico. Nos Hinos Homéricos a narrativa
é igualmente orientada para a celebração de alguma divindade, pois se dedica a mostrar de que
modo o deus estabeleceu sua origem, forjou suas características e requisitou seus domínios de
competência.
Este sistema religioso dispensou a existência de sacerdotes profissionais, livros sagrados e
dogmas que orientassem as condutas. Com isso, acabou por atribuir aos poetas orais a
possibilidade de amoedar os mitos, criá-los e difundi-los com uma razoável fluidez. Um aedo
prestigiado, com a autoridade de Demódoco ou a fama de um eventual “Homero”, teria um
razoável poder de mobilizar a ação dos deuses em favor de suas perspectivas políticas, ambições
pessoais, padrões estéticos ou demais interesses. Os aedos não se furtaram de aproveitar esse
espaço e orientaram a narrativa de modo que ela ajudasse a estabelecer seu papel social com a
deferência tão almejada.
Obviamente, não como aferir o grau de liberdade de que os aedos dispunham para
louvar seus próprios méritos. Também não como determinar as maneiras pelas quais outros
indivíduos, dotados de algum tipo de autoridade religiosa (sacerdotes, anciãos, adivinhos, etc.),
exerciam controle sobre o recitato aédico. É fácil presumir que diversas forças coercitivas
atuavam sobre seu exercício oratório. A audiência estava habituada a assistir apresentações de
aedos em palácios, jogos e festivais, conhecendo assim as tradições. O poeta era coagido a cantar
os temas tradicionais com certa fidedignidade. Quando o tema de seu canto era novo, adquirido
através da errância e do contato com outros aedos, tinha seu poder criador igualmente limitado
pelo risco de que outros poetas, em apresentações futuras, apresentassem aquelas histórias com
dados e detalhes diferentes, fazendo com que ambos caíssem em uma contradição que colocaria
em xeque sua credibilidade. Em uma sociedade de honra e vergonha, a credibilidade é um dos
bens mais preciosos para aqueles que têm na palavra dita oralmente seu meio de sobrevivência
25
.
Mesmo que de modo cauteloso, os aedos fizeram uso de discursos religiosos para se
incluir na narrativa. É possível identificar três caminhos utilizados para manipular a religiosidade
em seu favor. Em primeiro lugar, percebe-se o cuidado em atribuir uma atmosfera tica ao
canto, fazendo com que deixe de ser percebido unicamente como um trabalho técnico ou
resultado de um esforço especializado para se mostrar como uma manifestação evidente da
presença divina diante dos seres humanos. Em segundo lugar, evidencia-se a prática constante de
25
Aristófanes, em As Aves, satiriza esta questão através do diálogo de Pisetero com um adivinho. O primeiro
considera o segundo um charlatão, que visava lucrar com a fundação da cidade nas nuvens. O adivinho, que tentava
ludibriá-lo através das palavras, é agredido por Pisetero e recomendado por ele a ir “profetizar em outra parte”. Na
comédia, fica muito claro que, para gozar de um razoável prestígio social, as palavras do adivinho devem ter
credibilidade (ARISTÓFANES, As Aves, 959 ss.)
100
reiterar um acesso diferenciado às divindades, que se apresentariam a eles de modo muito mais
enfático. Em terceiro lugar, é igualmente notável a recorrência com que divindades como as
Musas, Apolo e Hermes foram representadas exercendo a atividade poética de modo
extremamente louvável, atribuindo ao Olimpo expectativas tipicamente humanas.
5.1 Aspectos míticos do canto
Em diversos momentos se manifestam os poderes encantatórios das palavras enunciadas
por entidades ou indivíduos dotados de alguma característica excepcional. Ao canto foi atribuída
a capacidade de provocar enthousiásmos, êxtase, frenesi. Este traço revela um investimento
tipicamente religioso na cultura oral, pois o produto das récitas dos aedos passa a ser percebido
como o veículo pelo qual a divindade se torna acessível aos sentidos humanos. As palavras
seduzem e se tornam um excelente phármakon para os problemas cotidianos. Hesíodo nos
informa primorosamente a esse respeito, descrevendo o modo pelo qual as dádivas das Musas são
percebidas e recebidas pelos mortais:
Se com angústia no ânimo recém-ferido
alguém aflito mirra o coração e se o cantor
servo das Musas hineia a glória dos antigos
e os venturosos Deuses que têm o Olimpo,
logo esquece os pesares e de nenhuma aflição
se lembra, já os desviaram os dons das Deusas.
(HESÍODO, Teogonia, vv. 98-103)
Esta caracterísitca louvacional se amparava nas emoções que os cantos entoados pelos
aedos despertavam (empneuein), com as tão proclamadas belas vozes e ritmos cadenciados,
devidamente adequados aos juízos de valor estético dos períodos. Neste sentido, é comum lermos
descrições que mencionam a qualidade do canto, justamente pelo fato de que é digna de ser
101
recordada. As Musas de Hesíodo, por exemplo, quando cantam o presente, o passado e futuro, o
fazem com vozes aliadas de modo que “infatigável flui o som das bocas, suave” (HESÍODO,
Teogonia, vv. 39-40). De modo semelhante, nos banquetes homéricos, os convivas
testemunhavam “canto doce-mel” (HOMERO, Ilíada, XIII, 637) ou dançavam “ao compasso do
canto agradável” (HOMERO, Odisséia, XVIII, 304). Odisseu também louva os méritos desta
beleza particular quando afirma ser “delicioso, de fato, podermos ouvir tão sublime e inolvidável
cantor, cuja voz se assemelha à dos deuses” (HOMERO, Odisséia, IX, 3-4). Assim também o faz
seu filho Telêmaco, quando diz que “não nada mais belo que um canto escutar delicioso”
(HOMERO, Odisséia, I, 369). As donzelas de Delos, que entoavam os cantos votivos descritos
no Hino Homérico a Apolo, também possuiam este poder de encantar, pois “a falar, tão bem seu
belo canto se amolda (Hino Homérico a Apolo, v. 164). O mesmo acontece com Hermes,
quando “num lindo canto o deus fazia improviso” (Hino Homérico a Hermes IV, vv. 54-55).
No Hino Homérico a Hermes IV, o poder encantatório do canto aparece de modo
decisivo. Recordemos a querela que Hermes instaurou com Apolo ao roubar suas vacas sagradas.
O roubo fez com que ambos fossem parar diante de Zeus, para que o pai arbitrasse sobre a
questão. Apolo estava encolerizado pela atitude do filho de Maia que, além de ter roubado suas
reses, agia como se nada tivesse acontecido. A austeridade e gravidade apolíneas contrastavam
com o cinismo e irreverência de Hermes. Zeus, apesar de admirado com a métis de seu filho mais
jovem, ordenou que as vacas de Apolo fossem devolvidas. Hermes conduz Apolo a sua caverna
onde escondia o rebanho e, durante a devolução, pega a lira que havia criado e começa a tanger
as cordas com o plectro: “a seus dedos surdia som penetrante. Riu-se o radioso Apolo feliz: o
som sedutor tocou-lhe o peito, daquela divina voz, deleitável desejo se lhe entranhando enquanto
a ouvia” (Hino Homérico a Hermes IV, vv. 419-423). O deus astucioso, celebrando a glória dos
102
deuses ao som do instrumento, provocou uma mudança quase que repentina na sua relação com o
irmão mais velho: “Irresistível desejo sentiu Apolo no peito” (Hino Homérico a Hermes IV, v.
414). A descrição do canto de Hermes é enfática:
Ouço a voz maravilhosa, toda nova, e te confirmo
que nunca a qualquer mortal ela mostrou-se, e a nenhum
dos imortais que possuem sublimes paços no Olimpo,
mas só a ti, roubador, filho de Zeus e de Maia.
Que arte é essa? Que musa assim aplaca as severas
angústias? Que via segue? Pois três prazeres reúne:
alegria, amor e sono de uma languidez suave!
(Hino Homérico a Hermes IV, vv. 443-449)
Este episódio altera o rumo da narrativa e conduz o proêmio a um novo caminho. Após o
encantamento provocado pelo canto, os distúrbios entre Apolo e Hermes acabam e os deuses
estabelecem um vínculo de philía através de uma troca de dons. Assistindo a situação, “alegrou-
se Zeus prudente e fez com que os dois se amassem. Hermes, de fato, passou a gostar do filho de
Leto, como até hoje” (Hino Homérico a Hermes IV, vv. 506-508). Percebe-se que o poder de
despertar paixões que o canto possuía tornava-o um saber praticamente mântico. Não dúvidas
de que era atribuído aos detentores desta habilidade um estatuto social privilegiado.
O canto das Sereias, descrito na Odisséia, é o exemplo limite dos poderes ticos do
canto. Como assinala Tzvetan Todorov, a palavra-narrativa, a palavra-arte encontra no canto das
Sereias a sua sublimação (TODOROV, 1977, p. 110). Odisseu estava fadado a passar pela região
habitada por elas, sendo necessário enfrentá-las para cumprir o périplo que o levaria de volta à
casa. Ele vai encontrá-las após conselho de Circe, devidamente acompanhado de uma
advertência: “quem quer que, por ignorância, vá ter às Sereias, e o canto hão de saudá-lo
contentes, por não mais voltar para casa. Enfeitiçado será pela voz das Sereias maviosas
(HOMERO, Odisséia, XII, 41-44). Ninguém seria imune ao encantamento provocado pelo canto,
103
nem mesmo Odisseu, que vencera a própria morte ao retornar vivo do Hades. Por este motivo, foi
recomendado que todos tapassem os ouvidos com cera doce amolgada (HOMERO, Odisséia, XII,
47-48). O filho de Laertes recusa o estratagema da cera, mas a prudência que o caracteriza faz
com que aceite o conselho de Circe: pede que seus companheiros amarrem seus braços com
bastante firmeza e que não cedam a corda em hipótese alguma (HOMERO, Odisséia, XII, 160-
162). Assim cantavam as Sereias:
Vem para perto, famoso Odisseu, dos Aquivos orgulho,
traz pra cá teu navio, que possas o canto escutar-nos.
Em nenhum tempo ninguém por aqui navegou em nau negra,
sem nossa voz inefável ouvir, qual dos lábios nos soa.
Bem mais instruído prossegue, depois de se haver deleitado.
Todas as coisas sabemos, que em Tróia de vastas campinas,
pela vontade dos deuses, Troianos e Aquivos sofreram,
como, também, quanto passa no dorso da terra fecunda”
Dessa maneira cantavam, belíssima. Mui desejoso
de escutar, fiz sinal com os olhos aos sócios que as cordas
me relaxassem; mas eles remaram bem mais ardorosos.
(HOMERO, Odisséia, XII, 184-194)
O canto das Sereias, na verdade, não se realiza. Os versos que relatam suas palavras em
primeira pessoa descrevem apenas um convite ao canto. Proclamando-se sabedoras de todas as
coisas, tal como as Musas de Hesíodo, as Sereias afirmam serem capazes de instruir os mortais.
Suas palavras sugerem que levariam ao limite a qualidade do canto tipicamente associada aos
aedos gregos: assim como Demódoco, Fêmio e o próprio Homero, cantariam as histórias em
voga na época, ou seja, sofrimentos que aqueus e troianos viveram na guerra que se passou nas
planícies de Tróia. Pietro Pucci, analisando as palavras e epítetos presentes nos versos acima,
chegou à constatação de que o poeta atribuiu às Sereias formulações tipicamente presentes na
Ilíada e que praticamente não aparecem na Odisséia. O autor neste esforço a motivação de
fazer com que o ouvinte perceba que o Odisseu da Odisséia é o mesmo da Ilíada (PUCCI, 1997,
104
p. 4). Além disso, o uso de frases e fórmulas iliádicas ajudam a sustentar o argumento de que as
Sereias, de fato, conhecem tudo a respeito de Tróia. O poeta conduziria o ouvinte, através deste
estratagema narrativo, a ter a experiência auditiva da veracidade das palavras das Sereias.
Por um lado, o canto das Sereias inverte a lógica do canto dos aedos: enquanto estes
celebram a vida, imortalizando os indivíduos cujos feitos são considerados memoráveis
26
, aquelas
conduzem ao caminho da morte e esquecimento até mesmo os mais dignos mortais. Segundo a
tese do helenista Ernst Bushor, as Musas e as Sereias representam para o canto um diálogo
antitético, pois em paralelo com as deusas mnemônicas, isto é, das dignas filhas de Mnemosýne,
são léticas, quer dizer, seres condignos das paragens do Lete: esquecimento total e fuga do
Aquém é tudo o que elas oferecem aos que se lhe entregam (BUSCHOR, 1944, p. 7). Por outro
lado, a força irresistível que seu canto possui acaba por se converter em um discurso sobre o
próprio canto, reiterando sua capacidade de encantar e despertar paixões. Recordemos que
estamos tratando de uma fala de si mesmo, de um registro metapoético, que os aedos que
transmitiram oralmente o episódio das Sereias desejavam, eles mesmos, produzir efeitos similares
em seu público ouvinte.
Estes poderes do canto, para se tornarem legítimos e efetivos, não podiam ser vistos como
uma capacidade banal, acessível a qualquer um dos mortais. É preciso investir os poetas de um
valor específico para que o canto possa se manifestar diante deles com a autenticidade e
sacralidade que lhe são próprias. É óbvio que essa investidura implicava um discurso sobre este
investimento simbólico, sendo ele próprio a investidura. Era preciso instaurar marcações que
mostrassem aos olhos de todos que aquele indivíduo era um ente excepcional, cujo acesso
privilegiado ao canto era ratificado pelos deuses.
26
Obviamente, esta lembrança tem o esquecimento como consequência inevitável, pois ao lembrarmos alguma coisa
estamos automaticamente esquecendo muitas outras. No entanto, os aedos nunca se proclamavam capazes de fazer
alguém se tornar esquecido, positivando assim suas atividades poéticas.
105
5.2 Relações entre aedos e divindades
Os discursos que buscavam estabelecer um vínculo entre aedos e divindades eram tão
eficazes que chegaram a se inscrever nas representações físicas que conhecemos dos poetas,
como atesta a questão da cegueira. Homero foi representado como um aedo cego. Demódoco, o
mais prestigiado dos aedos homéricos, também teve sua cegueira constantemente reiterada. No
Hino Homérico a Apolo vemos o poeta que assume a autoria do proêmio se identificar como o
aedo cego proveniente de Quios. Uma variante da cegueira que também pode ser considerada é a
do adivinho Tirésias
27
. Esta recorrência nos leva a crer que a cegueira era um investimento
simbólico muito antes de denotar uma incapacidade física.
Segundo Bruno Snell, em Homero não há a percepção da visão como um sentido humano.
Não a vista sob o aspecto de sua finalidade própria, como atividade peculiar do olho, que
proporciona ao homem determinadas impressões sensoriais (SNELL, 1992, p. 21). Por esse
motivo, Homero se utiliza de inúmeros versos relativos à visão, pois ver implicava em uma
experiência antes relacionada com as repercussões do objeto visto e as intenções de quem vê com
a visão propriamente. Ainda segundo Bruno Snell, os verbos homéricos da visão recebem o seu
sentido graças à gestualidade do olhar ou aos momentos afetivos (SNELL, 1992, p. 22). Assim,
quando um orador descreve habilmente um evento, com requinte e boa estrutura narrativa, faz
com que o público tenha a sensação de estar efetivamente vendo o episódio narrado,
27
Destaquemos que, segundo a orientação religiosa helênica, aedos e adivinhos partilham a idéia de que estão
associados a divindades que lhes dão a possibilidade de fazer revelações. Como defende Jean-Pierre Vernant, “entre
a adivinhação e a poesia oral tal como ela se exerce [...] nas confrarias de aedos, de cantores e músicos, há afinidades
e mesmo interferências, que foram assinaladas várias vezes. Aedo e adivinho têm em comum um mesmo dom de
vidência. [...] O deus que os inspira mostra-lhes, em uma espécie de revelação, as realidades que escapam ao olhar
humano” (VERNANT, 1990, p. 137). Para E. R. Dodds, em Homero as duas profissões são bastante distintas, mas
temos boas razões para crer que certa vez elas haviam estado unidas, pois a analogia entre as duas profissões
continuava ainda a ser sentida (DODDS, 2002, p. 87). Para Chadwick, é evidente que, através das antigas línguas da
Europa do Norte, as idéias de poesia, eloquência, informação (principalmente estudo do passado) e profecia estão
intimamente relacionadas (CHADWICK; CHADWICK, 1968, p. 637).
106
presentificando-o. Diante desta peculiaridade, o movimento de retirar dos aedos a visão implica
destitui-los das impressões momentâneas, do acesso evidente aos fatos que os demais seres
humanos possuem. O o-ver parece ser uma condição extremamente adequada à tarefa de fazer
o público ver.
O exemplo de Demódoco é extremamente interessante, pois a sua perda da visão é um
verdadeiro acontecimento. A seguinte descrição é feita no canto VIII da Odisséia, quando o aedo
em questão chega para celebrar o banquete sob os os auspícios de Alcínoo: “Já pelo arauto
trazido o cantor divinal se aproxima, que tanto a Musa distingue, e a quem males e bens
concedera: tira-lhe a vista dos olhos, mas cantos sublimes lhe inspira” (HOMERO, Odisséia,
VIII, 61-63). A cegueira parece ter sido uma contrapartida para que a Musa concedesse a
inspiração para o canto. A perda da visão e a possibilidade de ter acesso ao canto inspirado são
elementos orientados segundo uma gica de dependência. Desta forma, se configurou como um
“mal necessário” para que Demódoco pudesse se tornar aedo. Rejeitar o olhar humano é
prerrogativa para ver com os olhos das Musas. A cegueira aproximava os aedos dos deuses,
legitimando seus privilégios de poeta.
Outro exemplo típico é o do adivinho Tirésias. A Odisséia não descreve as circunstâncias
que levaram-no a ficar cego. Contudo, a participação do vate tebano nos eventos que se
relacionam com o périplo de Odisseu aparenta ter sido marcante para a sociedade grega, que
sua personalidade foi citada por diversos outros autores posteriores
28
. Existiram várias histórias
sobre a juventude de Tirésias, narrando a forma pela qual adquiriu seu talento de adivinho e se
tornou cego. Uma, em particular, é bastante sugestiva. Conta-se que Atená teria retirado a vista
dos seus olhos porque, acidentalmente, Tirésias a teria visto nua. Mas, a pedido da Ninfa Cariclo,
28
Notadamente no teatro grego do Período Clássico (séc. V ao IV), destacam-se as recorrências em “As Fenícias” de
Eurípides e “Édipo Rei”, de Sófocles.
107
para o compensar, a deusa concedera-lhe o dom da profecia (GRIMAL, 2000, p. 450). Do mesmo
modo que Demódoco, a capacidade de fazer vaticínios vem como compensador da cegueira.
Neste caso, no entanto, há uma inversão: Demódoco se torna cego para poder vaticinar, enquanto
Tirésias adquire o dom dos vaticínos por ter se tornado cego. A Odisséia também menciona o
adivinho Melampo, que se achava preso com fortes liames na casa de Fílaco, em função da
grande cegueira imposta por terrível Erínia (HOMERO, Odisséia, XV, 440-443).
Tamíris é outro caso de aedo cego, neste caso bastante peculiar. É um dos mais notáveis
exemplos de aedos itinerantes. Regressando de jogos onde, provavelmente, teria se sagrado
vencedor nas competições, viturperava sua qualidade dizendo-se superior às próprias Musas
olímpicas. Assim,
As Musas, saindo
Ao encontro do trácio Tamíris, ao canto
dão-lhe termo (de Eucália, do palácio de Êurito,
ele voltava, ufano, desafiando as filhas
do porta-escudo, Zeus, dizendo ultrapassá-las;
coléricas, as Musas o cegam. Do canto
divino o destituem e da arte da cítara)
(HOMERO, Ilíada, II, 593-599)
Segundo a interpretação de Luis S. Krausz, Tamíris estava completamente seguro de suas
habilidades, e o canto e o conhecimento da arte da cítara como um atributo próprio, de
maneira que acredita nada dever às deusas ou à sua influência imediata. Para o autor, a história de
Tamíris não pode ser concebida a menos que se considere a possibilidade da récita independente
de influências divinas (KRAUSZ, 2007, p. 70).
Esta interpretação traz um problema que se relaciona com nossa própria vivência
religiosa. Estamos habituados a categorizar as ações segundo a relação dialética que estabelece
uma diferenciação arbitrária entre ações humanas e ações divinas. Segundo essa lógica, quando
108
um indivíduo manifesta uma ação considerada sagrada, o faz omitindo qualquer influência
pessoal sobre os resultados, que teria atuado apenas como mediador de uma vontade
trascendente. Sabemos que a prática da poesia oral exigia conhecimento técnico. Os anos de
preparação faziam com que os aedos percebessem que a poesia estava sendo executada segundo
uma rigorosa tradição de narrativas orais. No entanto, não segurança para admitirmos que os
gregos faziam separação, atribuindo à realização divina os feitos que dispensavam treinamento e
dedicação pessoal. Em outras palavras, a formação técnica não exclui a idéia de concessão divina.
Em última instância, aproveitando os argumentos de E. R. Dodds, quando o aedo pede ajuda às
Musas ele se refere ao conteúdo do que vai ser dito, e não à forma. O poeta sempre pergunta o
que ele deve dizer, nunca como deve dizê-lo e as questão são sempre de fato (DODDS, 2002, p.
86). Neste sentido, não parece ser sustentável o argumento que Tamíris como um exemplo de
poeta que observa sua tekhné de modo autônomo e que entende a poesia destituída da sacralidade
que lhe é própria. Sua bris teria sido punida porque ele teria se proclamado superior, e não por
acreditar na possibilidade de fazer poesia sem a influência divina.
Julgamos mais seguro defender que o aedo trácio representara uma crítica a poetas que
estivessem, eventualmente, assumindo esta posição. A inclusão deste episódio pode ter atuado
como um magnífico mecanismo pedagógico
29
. A própria estrutura narrativa insinua esta
possibilidade. O episódio de Tamíris está presente em um canto que é, antes de tudo, um imenso
catálogo. A função deste catálogo é descrever os nomes dos chefes aqueus e os navios que se
dirigiram à Tróia para combater o exército de Príamo. Percebe-se que os versos que fazem
menção ao aedo poderiam ter sido facilmente descartados durante as récitas sem prejudicar a
29
O que se percebe é que o episódio de Tamíris revela uma notável adequação a uma característica marcante da
religiosidade helênica: entre homens e deuses uma distância incomensurável. Como recorda Jean-Pierre Vernant,
a piedade, como a sabedoria, ordena não pretender igualar-se a um deus. Os preceitos de Delfos: “Sabe quem tu és”,
“Conhece-te a ti mesmo” não têm outro sentido. O homem deve aceitar seus limites (VERNANT, 2006, p. 48-49)
109
narrativa. Sua preservação pode indicar que diversos aedos referendavam este pensamento
hegemônico, considerando plenamente aceitável que as Musas punissem aqueles que profanam
sua influência sobre a atividade poética.
Luis Krausz, no esforço de fundamentar sua interpretação, faz uso da aproximação entre
práticas poéticas e divinatórias
30
. Segundo ele, Calcas
31
tornou-se vidente graças a Apolo, que lhe
concedeu a vidência como um dom. A capacidade de ver o presente e especialmente o futuro
é certamente divina, porém Apolo não está sussurrando nos ouvidos do vidente no momento em
que este se dirige à assembléia dos aqueus. O vidente recebeu o dom da profecia e portanto é
capaz de perscrutar o futuro independemente. É razoável supor que o mesmo possa ter acontecido
entre Tamiris e as Musas, isto é, que as deusas lhe tenham concedido o dom da canção e que, a
partir daí, ele tenha passado a apresentar-se independentemente (KRAUSZ, 2007, p. 71). Presidir
as práticas divinatórias é um atributo que ajuda a associar Apolo à própria poesia. Além disso, o
autor tem razão quando afirma que os adivinhos, quando citados, não admitem que uma
divindade estaria presidindo as revelações. O problema do argumento é tornar regra uma notável
exceção. Em primeiro lugar, é possível que não haja registros de adivinhos praticando seus
vaticínios segundo os auspícios de uma divindade porque não foram eles que compuseram os
poemas. Os aedos podem ter insistido nesta questão pelo esforço de autoglorificação que
constantemente mencionamos. Desta forma, sem os privilégios narrativos de que os poetas
dispunham, os adivinhos não teriam tantos artifícios para louvar seus próprios méritos. Em
segundo lugar, cabe questionar as escolhas: a ausência de uma associação entre adivinhos e
30
Luis S. Krausz assinala que assim como vidente que é capaz de revelar o que está oculto num tempo que ainda não
chegou, o aedo pode vislumbrar os tempos que foram e narrar, amparado pelas Musas que estiveram presentes,
o que foi e como foi. Tanto o passado como o futuro pertencem a um âmbito remoto e envolve em mistério: ambos
são igualmente inacessíveis ao homem comum (KRAUSZ, 2007, p. 78).
31
Adivinho aqueu que faz vaticinios para orientar as ações do exército de Agamemnôn na Ilíada. Ver HOMERO,
Ilíada, I, 87.
110
divindades na hora de enunciar suas revelações é muito mais sentida que a hýbris de um poeta em
particular. Finalmente, assim como Tirésias e Demódoco, a cegueira de Tamíris referenda o fato
de que a possibilidade de conhecer passado, presente e futuro é consequência direta da ação
divina.
Não há como saber se alguns aedos prestigiados foram, de fato, cegos. Em alguma
medida, também é possível pensarmos que a cegueira tenha sido uma maneira de reafirmar o
espaço tradicional das práticas poéticas orais em um momento em que a escrita, eventualmente,
pudesse sugerir novas possibilidades de composição e registro.
A influência das divindades também se faz presente no momento em que os aedos são
iniciados em sua atividade. Apesar de sabermos que o treinamento era algo indispensável, não há
menção às maneiras pelas quais eles aprendiam as fórmulas e exercícios mnemônicos. Também
não indícios de ritos que tivessem o objetivo de apresentar à sociedade o indivíduo que
passaria a praticar a poesia oral profissionalmente a partir daquele momento.
Como vimos no exemplo de Demódoco, sua incursão no universo das atividades dos
aedos se fez pela ação direta das Musas. As filhas de Zeus estabelecem a cegueira como símbolo
iniciático: a partir do momento que coincide com a perda da visão, Demódoco se tornou capaz de
fazer vaticínios e cantar de acordo com o conhecimento transmitido pelas deusas. Não há menção
a qualquer tipo de disposição pregressa que qualificasse Demódoco a se tornar aedo.
Aparentemente, as Musas teriam-no escolhido para desempenhar as atividades de modo
arbitrário, como se a capacidade de atuar como interlocutor das filhas de Mnemosýne fosse um
privilégio que independe do esforço ou talento individuais.
111
A descrição mais interessante, contudo, vem de Hesíodo. Neste caso, não se trata de uma
personagem épica, de um indivíduo idealizado. Trata-se de um poeta comunicando ao público os
acontecimentos que giram em torno de sua vida particular:
Elas um dia a Hesíodo ensinaram belo canto
quando pastoreava ovelhas ao pé do Hélicon divino.
Estas palavras primeiro disseram-me as Deusas
Musas olimpíades, virgens de Zeus porta-égide:
“Pastores agrestes, vis infâmias e ventres só,
sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos
e sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações”.
Assim falaram as virgens do grande Zeus verídicas,
por cetro deram-me um ramo, a loureiro viçoso
colhendo-o admirável, e inspiraram-me um canto
divino para que eu glorie o futuro e o passado,
impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos
e a elas primeiro e por último sempre cantar.
(HESÍODO, Teogonia, vv. 22-34)
De modo semelhante a Demódoco, a iniciação que autorizou o agricultor da Beócia a
começar a praticar a poesia acontece quase que de modo espontâneo, onde a sua passividade é
contrastada pela participação ativa das Musas. Pela descrição, Hesíodo estava pastoreando como
faria diariamente. Sem justificativa inicial para esta deferência divina, as Musas se apresentaram,
entregaram ao pastor um ramo de loureiro viçoso que funcionou como cetro e passaram, a partir
de então, a inspirar-lhe o canto.
O cetro mencionado sugere muitas interpretações. A mais evidente é o singelo e
inteligente esforço do poeta em construir uma dupla vinculação do canto à Apolo. Por um lado,
mostra que a possibilidade de iniciar um indivíduo nos dons da canção não é exclusiva das
Musas; por outro lado, inclui com bastante sutileza a participação apolínea em seu discurso
iniciático, prestando-lhe culto. De um modo geral, como destaca Jaa Torrano, loureiro é a árvore
de Apolo, é a forma que assume no reino vegetal a cratofania de Apolo, - este deus que
112
juntamente com as Musas atribui o dom do canto e da citarodia (execução de cítara). Colherem as
Musas um ramo a um loureiro viçoso indica essa proximidade confluente destas duas forças
divinas, como confluem o canto e a cítara (TORRANO, 2003, p. 26).
O cetro de Hesíodo também pode ser um elemento que associado a Hermes. O cetro de
loureiro pode se relacionar com o kerykeion de Hermes que, por sua vez, é comparável ao bastão
que os viajantes empunham. Ora, como vimos, há uma estreita associação entre viajantes e aedos,
que a itinerância era parte consubstancial de seu ofício. O próprio Hesíodo recorda que saiu
vencedor de um concurso que participou fora da Beócia, em Cálcis (HESÍODO, Os Trabalhos e
os Dias, 654). Desta forma, o poeta agrega símbolos das três divindades que partilhavam o canto
e a poesia em seus domínios de competência: o cetro de Hermes, feito a partir do loureiro de
Apolo, concedido a Hesíodo pelas Musas.
Outra interpretação possível, que revela uma peculiaridade da obra de Hesíodo e se
relaciona com suas visões de mundo, diz respeito à tradicional ligação do cetro com o universo
dos basilêis, empunhados nas reuniões aristocráticas e assembléias guerreiras. O poeta revela que
os dons das Musas, que na tradição homérica aparecem exclusivamente associados aos aedos,
também se estendem aos reis:
A quem honram as virgens do grande Zeus
e dentre reis sustentados por Zeus vêem nascer,
elas lhe vertem sobre a língua o doce orvalho
e palavras de mel fluem de sua boca. Todas
as gentes o olham decidir as sentenças
com reta justiça e ele firme falando na ágora
logo à grande discórdia cônscio põe fim,
pois os reis têm prudência quando às gentes
violadas na ágora perfazem as reparações
facilmente, a persuadir com brandas palavras.
(HESÍODO, Teogonia, vv. 81-90)
113
Hesíodo compreende que o porte do cetro e o acesso à palavra inspirada são privilégios
tanto dos aedos quanto dos reis. Obviamente, este dado revela um esforço na direção de fazer as
Musas atuarem como mediadoras entre ele, um agricultor da beócia, e os reis, representantes
ideais da justiça em um período em que a pólis ainda era muito incipiente. Partilhando estes dons
Hesíodo procura euforizar sua influência política, comparável àqueles que deliberariam sobre a
Justiça. Procurava reverter o prejuízo oriundo da divisão de terras com o irmão Perses. Neste
caso, o cetro se converte em um símbolo que, socialmente, confere ao seu legítimo portador a
autoridade da palavra verdadeira, reveladora e determinante.
Este movimento não é, entretanto, uma inovação. Os comentários que Néstor faz a
respeito da fala de Diomedes, louvando os méritos e a nobreza de sua oratória, denunciam uma
relação semelhante entre as idéias de realeza e inspiração divina: Hoplita em armas. Tão moço e
falas aos reis, venturoso, inspirado! (HOMERO, Ilíada, IX, 59-60). A própria figura de Odisseu,
poeta e rei de Ítaca, diz muito a respeito desta associação. Charles Segal, envolvido com a
multiplicidade de leituras que estas questões possibilitam, chegou ao extremo de defender que o
presente dado pelas Musas a Hesíodo não tem, necessariamente, nenhuma conexão com a poesia.
Trata-se, na verdade, de um símbolo do poder em um sentido mais geral, que não é idêntico à
canção mas que, obviamente, se relaciona com o contato privilegiado do poeta com o reino
divino da canção a que as Musas pertencem (SEGAL, 1994b, p. 140). Outra interpretação
peculiar é E. R. Dodds, que possui um escopo de análise psicanalítico:
Quando Hesíodo conta sobre a musa e como ela lhe falou no Hélicon, não se
trata de alegoria nem de ornamento poético, mas de uma tentativa de expressar
uma experiência real em termos literários. (....) Exploradores, montanhistas e
aviadores têm às vezes experiências estranhas mesmo nos dias de hoje (...). A
influência psicológica da solidão não deve ser subestimada. (DODDS, 2002, p.
121-122).
114
Bruno Gentili também assume as considerações de Dodds, ratificando que o discurso
iniciático de Hesíodo é antes resultado de um experiência pessoal que uma alegoria poética
(GENTILI, 1990, p. 78). A despeito da aparência especulativa de algumas interpretações, o que
permanece é a certeza de que a concepção poética de Hesíodo faz vir à tona um discurso bastante
eficaz. Em primeiro lugar, ratifica o estatuto religioso da poesia e do canto. Quando se admite
que uma pessoa, seja um viajante cosmopolita ou um trabalhador do campo, se torna poeta sem
mobilizar seus esforços pessoais, mostra que a poesia acontece quase que exclusivamente pela
ação numinosa. Em segundo lugar, ajuda a desviar do poeta a responsabilidade pelos conteúdos
narrados, que teriam sido as Musas, aquelas que sabem “muitas mentiras dizer símeis aos
fatos”, as divindades que modificaram sua vida pessoal e transformaram-no, independentemente
da vontade, em poeta inspirado. Deste modo, o discurso religioso passa a assumir uma função
política extremamente engenhosa: quando o poeta transfere às Musas o valor de alethéia do
canto, ele acaba assumindo a posição de um enunciador de histórias incontestes. Duvidar de suas
palavras seria, na verdade, duvidar da filhas de Zeus.
A importância das Musas para a experiência do canto se converte na manifestação mais
evidente da religiosidade associada ao recitato aédico
32
. Seu culto era amplamente difundido.
Vários estudiosos analisam os santuários dedicados a elas, principalmente em Delfos, salientando
que sua existência é anterior ao estabelecimento do culto ao próprio Apolo
33
. O lugar de
autoridade ocupado pelas filhas de Zeus na Antigüidade era de tal modo importante que os poetas
reitaravam, a cada apresentação, as funções divinas do canto presididas pelas deusas.
32
Andrew Laird fez uma excelente discussão a respeito das formas com que os helenistas tradicionalmente abordam
o estatuto das Musas e sua relevância para o desenvolvimento da poesia épica. Consultar LAIRD, 2002, p. 117-140.
33
Para informações mais detalhadas do assunto, consultar FUENTES, 1996; NILSSON, 1967; PARKE, 1981;
KRAUSZ, 2007.
115
Os versos de invocação, notadamente uma marca da cultura oral, se apresentam como
uma formidável inscrição que este culto deixou nos poemas do período. Louvá-las nos versos
prologais parece ter sido um movimento tão importante que uma estrutura formular bastante
rígida passou a caracterizar a enunciação dos poetas que se filiavam a esta tradição. Embora haja
um número considerável de versos introdutórios em que não sejam invocadas
34
, nota-se que
inúmeras recorrências mostram a importância objetiva que as filhas de Mnemosýne tinham para
as récitas, que os aedos consideravam de fato que tinham a fala mediada pelo conhecimento
das deusas
35
. O poeta afasta de si o conhecimento verdadeiro e se coloca como interlocutor
daquelas que levariam aos homens o conhecimento divino dos feitos memoráveis. Em alguns
momentos o poeta parece se abster completamente de sua individualidade para creditar às Musas
o real conhecimento do canto: Deusa nascida de Zeus, de algum ponto nos conta o que queiras
(HOMERO, Odisséia, I, 10). Comportamento notável e bastante expressivo em termos religiosos,
já que as Musas cantavam aquilo que os aedos costumavam solicitar para atender as demandas do
público
36
. Este tipo de deferência é bastante compreensível, que neste ambiente tradicional,
fundamentalmente aristocrático, o reconhecimento social do acesso privilegiado às Musas parece
ter sido o principal meio de obtenção de prestígio. Afinal, segundo o próprio Odisseu, Todos os
homens que vivem no dorso da terra, os cantores sabem cultuar e os veneram, por verem que as
Musas os prezam como a discípulos (HOMERO, Odisséia, VIII, 479-481).
34
Segundo o levantamento de Claude Calame, que também restringiu suas análises às obras de Homero, Hesíodo e
aos Hinos, há dezoito casos em que não há menção às Musas nos versos de invocação (CALAME, 1995, p. 36).
35
Destacamos, pela notabilidade, os versos de invocação da Odisséia: Musa, reconta-me os feitos do herói
astucioso que muito peregrinou, dês que esfez as muralhas sagradas de Tróia (HOMERO, Odisséia, I, 1-2).
36
Recordemos que durante os festins na Feácia, Odisseu solicita que Demódoco cante os feitos da Guerra de Tróia,
especialmente o estratagema do cavalo de madeira (HOMERO, Odisséia, VIII, 492)
116
Diante dos chamados “catálogos”, a presença dos versos de invocação é igualmente
marcante. Apesar da notabilidade que os versos que principiam o poema assumem
37
, os que
antecedem estes espetaculares exercícios mnemônicos nos oferecem um segundo olhar sobre as
expectativas criadas pelos aedos a respeito de sua relação com as Musas. Como vimos, o
primeiro aparenta indicar uma preocupação com a audiência, já que ajuda o aedo a ser conhecido
como um indivíduo excepcional. No caso dos catálogos a mesma interpretação continua sendo
válida, mas identifica-se uma manifestação autêntica da importância que os aedos creditavam às
Musas para a consecução de seu próprio ofício.
A Ilíada é a obra em que é possível identificar com segurança a existência de catálogos
desta natureza. Como vimos, o estilo formular dos versos em hexâmetro dactílico possibilitava ao
poeta mesclar memorização e improvisação. Os catálogos foram as únicas partes da epopéia em
que este estilo formular não pôde ser aplicado. A riqueza de detalhes que apresentam denuncia a
necessidade de uma memorização quase que verso a verso. Além disso, os catálogos podiam
reproduzir uma experiência de reconhecimento do território mediterrâneo particularmente
helênica. Quando o aedo estivesse enunciando, por exemplo, o catálogo que descreve os líderes
aqueus e os navios que se dirigiram à Tróia (presente no canto II), deveria ter muita segurança a
respeito dos detalhes que iria divulgar. Uma imprecisão poderia ser vista como uma verdadeira
afronta, pois em uma sociedade de honra e vergonha, é extremamente valorizado que os méritos
de determinada pólis sejam reconhecidos pelas demais. Quando recordamos a itinerância dos
aedos, parece ainda mais evidente que esta capacidade mnemônica estivesse constantemente
sendo posta à prova.
37
Em termos discursivos, os versos mais evidentes são aqueles que aparecem no início dos poemas. Isto se deve ao
fato de que, diante da fala de um orador, as palavras iniciais tendem a ser mais eficazes. Elas ocorrem quando o
público costuma estar com as atenções mobilizadas para a audiência. Além disso, seja em uma narrativa oral ou
escrita, as palavras iniciais orientam a proposta do enunciador e criam no ouvinte/leitor uma propensão para
acompanhar ou não a récita/leitura.
117
Independentemente da frequência com que poderiam se manifestar estas tensões, os
catálogos eram momentos em que a audiência poderia julgar o esmero com que o poeta se
dedicou ao treinamento e, principalmente, a influência que as Musas tinham sobre ele. Diante da
inevitável pressão exercida pelo público, o aedo antecipa as eventuais censuras ao reafirmar sua
proximidade com as filhas de Mnemosýne. Antes, e sobretudo, invoca aquelas que devem assisti-
lo em um momento delicado. O aedo reconhece a importância de seu treinamento, mas é
consciente da falibilidade da memória. Não é sem motivo que a maior e mais detalhada
invocação aparece diante do mais complexo catálogo da Ilíada:
Ó Musas, me dizei, moradoras do Olimpo,
divinas, todo-presentes, todo-sapientes
(nós, nada mais sabendo, só a fama ouvimos),
quais eram, hegemônicos, guiando os Dânaos,
os príncipes e os chefes. O total de nomes
da multidão, nem tendo dez bocas, dez línguas,
voz inquebrável, peito brônzeo, eu saberia
dizer, se as Musas, filhas de Zeus porta-escudo,
olímpicas, não derem à memória ajuda,
renomeando-me os nomes. Só direi o número
das naves e os navarcas que assediaram Tróia.
(HOMERO, Ilíada, II, 484-494)
O aedo referenda a distância entre homens e divindades, declarando a necessidade da
influência numinosa para rememorar as informações que lhe são exigidas. A Ilíada parece ter
sido o único poema aédico em que os catálogos eram utilizados, que seu tema possui uma
amplitude maior que a errância de um herói particular ou o louvor a alguma divindade específica.
Esta prática era bastante usual, que ao longo de todo o épico nota-se a presença de catálogos
com a invocação referida:
Musa, dize-me agora qual o mais intrépido
Dos guerreiros do Atreide, qual corcel mais forte?
(HOMERO, Ilíada, II, 761-762)
118
Na primazia, arremete. Dizei-me, ó vós, Musas,
Olímpicas, aquele que primeiro vem
- Troiano ou seu aliado enfrentar Agamêmnon!
(HOMERO, Ilíada, XI, 217-219)
Ó Musas, que habitai a morada do Olimpo,
Dizei-me quem, primeiro entre os Aqueus, colheu
Troféus sanguinolentos, depois que o deus Terra-
-tremente transtornou a luta.
(HOMERO, Ilíada, XIV, 508-511)
Dizei-me, agora, Musas, da morada olímpica,
Como o primeiro fogo ateou-se às naus aquéias.
Héctor, vibrando a megaespada, avizinhou-se
(HOMERO, Ilíada, XVI, 112-114)
Assim como os versos de invocações iniciais, exemplos de catálogos em que o aedo
não reclama a inspiração das Musas
38
. Contudo, os catálogos em que a presença das Musas é
requisitada existem em maior número e são mais extensos que aqueles em que não são invocadas,
mostrando a predileção por este tipo de conduta. Além de tudo isso, pensando na pragmática do
discurso, percebemos que estas invocações funcionavam como uma excelente “pausa” na
narrativa, possibilitando ao aedo refletir sobre os conteúdos que iria enunciar sem comprometer a
continuidade da récita.
Em uma escala mais reduzida, Apolo foi outra divindade cuja associação com o universo do
canto se tornou bastante evidente. Apesar de serem mais escassas as recorrências, ao filho de
Zeus e Leto também era creditada a força numinosa que criava nos homens a propensão para a
atividade poética. O épico Margites, que Aristóteles atribui a Homero (ARISTÓTELES, Poética,
IV, 7), tem sua real autoria bastante duvidosa a despeito do testemunho do filósofo de Estagira.
De todo modo, versos fragmentários que conhecemos pelo gramático Atilio Fortunaciano,
38
“Qual o primeiro, qual o último, das armas despido pelo Priâmeo Héctor, pelo brônzeo Ares?” (HOMERO, Ilíada,
V, 703-705); “E qual, entre os Troianos, primeiro, Teucro, guerreiro imáculo, feriu de morte?(HOMERO, Ilíada,
VIII, 274-275); “Quem primeiro, quem por último tombou sob Héctor Priâmeo, glória que Zeis lhe deu?”
(HOMERO, Ilíada, IX, 299-301); “Quem mataste primeiro, quem por derradeiro, quando os deuses à morte
chamava-te, Pátroclo?” (HOMERO, Ilíada, XVI, 691-693).
119
indicam a existência de um culto apolíneo compartilhado com as Musas, indicando que este deus
também seria digno de devoção: Chegou a Colofón um ancião e cantor divino, servo das Musas
e do certeiro flechador Apolo, trazendo em suas mãos uma lira de agradável som.(Atílio
Fortunaciano, VI, 286 Keil).
A célebre cantoria de Demódoco também ratifica esta relação. Odisseu, herói
reconhecidamente conhecedor dos cultos helênicos, não se furtou de discorrer sobre o canto do
aedo e de asssociá-lo a Apolo ao refletir sobre a influência divina que o teria conduzido a
enunciar o canto com tamanha veracidade:
Mais do que a todos os outros mortais, te venero, ó Demódoco!
Foste discíp’lo das Musas, as filhas de Zeus, ou de Apolo?
Tão verazmente cantaste as desgraças dos homens Aquivos,
Quanto fizeram, trabalhos vencidos, e o mais que sofreram,
Como se o visses tu próprio, ou soubesses de alguém fidedigno.
(HOMERO, Odisséia, VIII, 487-491)
Hesíodo foi outro poeta que deu notabilidade a esta condição apolínea, quando o
responsabilizou, juntamente com as Musas, pela existência dos aedos: Pelas Musas e pelo
golpeante Apolo há cantores e citarisas sobre a terra(HESÍODO, Teogonia, vv. 94-95). É óbvio
que o culto a Apolo existia nos ambientes poéticos e tinha sua existência positivada pelas
características mais marcantes da religiosidade associada às Musas olímpicas.
As exegeses modernas, no esforço de particularizar as timaí dos deuses, acabaram por
reconhecer a emergência de um Apolo associado à poesia em períodos posteriores a Homero e
Hesíodo. Jean Defradas, por exemplo, assinala que apenas seu aspecto de divindade do arco é
persistente e próprio da personalidade do deus na Odisséia (DEFRADAS, 1954, p. 33). Walter
Otto, por outro lado, recusa a idéia de que Apolo teria sido um deus arqueiro antes de se
converter em um deus que acumulou domínios de competência. Para ele, os poetas dispunham de
120
liberdade para forjar em suas obras as características do deus que julgavam necessárias para a
elaboração dos poemas. Desta forma, Homero teria optado por representar Apolo segundo seu
aspecto arqueiro, apesar de ter à sua disposição uma série de características igualmente passíveis
de serem atribuídas ao deus (OTTO, 2005, p. 56-59). A leitura de Walter Otto, contudo, não foi
suficiente para superar esta tendência de particularização das características divinas. Parecia
inconcebível para esta historiografia tradicional reconhecer as múltiplas influências que os
domínios de competência particulares impunham ao conjunto das representações de Apolo e
demais divindades olímpicas.
Obviamente, o poeta privilegia determinados aspectos do deus assim como de qualquer
personagem que deseja representar. Este movimento, contudo, não é taxativo o suficiente para
desprezar todos os demais domínios de competência tradicionalmente associados a ele. O arco,
por exemplo, possui uma estreita relação com a cítara e, por conseguinte, com a atividade dos
citarodos. Se esta relação é difícil de se vislumbrar na Ilíada, que neste poema de guerra
tendem a aflorar as características eminentemente guerreiras das personagens, o mesmo não
ocorre na Odisséia, onde as atividades poéticas possuem maior visibilidade. A chacina dos
pretendentes oferece um magnífico exemplo.
A fúria vingadora é o arremate das façanhas de Odisseu. Ela consagra as tormentas da
guerra de Tróia e o retorno tumultuado imposto por Posêidon. A narrativa atinge seu clímax
quando o herói entesa o arco e, junto a seu filho Telêmaco, promove a morte daqueles que
usurparam seus bens, assediaram sua esposa e ambicionaram ocupar o lugar de governo que lhe
era legítimo. Apesar da constante influência de Atená, que orientou Odisseu e Telâmaco durante
toda a Odisséia, é Apolo a divindade requisitada durante este momento decisivo.
121
O dia do massacre coincide com uma festa sagrada dedicada a Apolo
39
. Odisseu, cuja
métis consegue vislumbrar o fim dos eventos futuros e levar a cabo seus planejamentos, antecipa
a necessidade de devotar culto ao filho de Zeus e Leto, certo da influência que ele teria nos
acontecimentos vindouros. Por tal motivo, faz as libações necessárias para que seja assistido
neste momento peculiar:
Mas amanhã logo cedo ordenai ao cabreiro Melântio
Que faça vir umas cabras, de todo o rebanho as mais gordas,
Para que as coxas a Apolo of’reçamos, o archeiro famoso
E o arco provemos, depois, dando fim, desse modo, ao certame
(HOMERO, Odisséia, XXI, 266-268)
Como sabemos, a prova cabal para decidir o futuro de Ítaca teve como símbolo máximo o
arco apolíneo: consistia em entesar a arma de Odisseu ainda transfigurado sob aspecto de
mendigo - e fazer com que uma seta transpassasse pelos oríficios presentes no cabo de doze
machados enfileirados. Todos os pretendentes tentaram sem sucesso. Apenas Odisseu conseguiu.
Cumpriu a prova, ratificou sua nobreza e deu início às mortes sucessivas. Sua habilidade com o
arco é descrita em pormenores:
Os pretendentes assim comentavam. No entanto Odisseu,
quando já havia o grande arco apalpado por todos os lados -,
como cantor primoroso que sabe o manejo da cítara,
mui facilmente consegue passar na cravelha uma corda
feita de tripa torcida, depois de a firmar dos dois lados:
do mesmo modo Odisseu o grande arco recurvo vergou facilmente.
Na mão direita tomando-o, fez logo a experiência da corta,
que um belo som produziu, qual se fosse o cantar de uma andorinha.
(HOMERO, Odisséia, XXI, 404-411)
Nesta passagem, Homero faz uma associação explícita entre o arco e a cítara, cujo
manejo as habilidades de poeta anteriormente associadas a Odisseu tornava possível. Além da
habilidade, comparada a de um aedo, o arco produz som harmonioso, pico do instrumento de
39
Esta festividade ocorria no primeiro dia do mês ou da lua e se chamava “Numênia”.
122
cordas que surdia diante da vibração do plectro. As mãos de Odisseu fazem surgir um Apolo-
poeta objetivamente inscrito nas ões de um deus arqueiro. Deste modo, temos indícios
suficientes para defender a tese conciliatória de que uma confluência de atributos, e não a
heterogeneidade oriunda de dois deuses distintos que foram identificados com o mesmo nome,
como defendem alguns especialistas
40
.
Os saberes mânticos de Apolo também são notáveis pois, como observado anteriormente,
uma forte imbricação religiosa entre as atividades de adivinhos e aedos. É notável que esta
característica do deus vai aflorar com o estabelecimento do culto oracular délfico e délio,
primorosamente representados pelos aedos que difundiram as tradições codificadas no Hino
Homérico a Apolo. Os poemas homéricos, contudo, testemunham a existência remota desta
agência divina apolínea, que pode ter se manifestado com menos evidência em função das
próprias características sobreviventes do poema ou mesmo, como assinalou Walter Otto, pelo
processo de escolha dos aedos.
A comparação demonstra uma similitude entre a iniciação dos poetas e adivinhos. Apolo
atua de modo muito semelhante às Musas ao tornar indivíduos capazes de fazer vaticínios: A
Polifides magnânimo fez Febo Apolo adivinho, o mais notável de todos, depois de a Anfiarau ter
matado (HOMERO, Odisséia, XV, 253-253). Homero também reserva a Apolo o dom de fazer
vaticínios atribuído ao adivinho Calcas
41
: Pelo dom de prever, graça de Febo Apolo. Disse, de
boa mente, ao povo unido na ágora (HOMERO, Ilíada, I, 72-73). Assim como ocorreu com
Hesíodo e Demódoco, não a indicação de treinamentos anteriores ou virtudes necessárias para
que estes indivíduos fossem privilegiados por esta deferência apolínea. Deste modo, parece que a
40
Exemplo desta posição pode ser encontrada em ROBERT, 1948, p. 201-220.
41
Também é interessante o fato de que Hesíodo retoma a fórmula homérica associada a Calcas: “Sabedor do que é,
do que foi, do futuro” (HOMERO, Ilíada, I, 70).
123
capacidade de prover determinadas pessoas de um estatuto peculiar e do conhecimento dos
eventos passados, presentes e futuros antecedia a separação entre as atividades de áugure e poeta.
O apelo religioso de Hermes neste sentido, comparado às Musa e a Apolo, é bem mais
escasso. A única evidência de um Hermes capaz de inspirar indivíduos aparece, segundo Jean-
Pierre Vernant, no fragmentado Hino Homérico a Héstia. Para o helenista, o texto associa
Hermes e Héstia de maneira mais estreita. Começa como seis versos de invocação a Héstia;
depois, vem, sem transição, seis versos de invocação a Hermes, ao qual se pede proteção “de
acordo com a deusa venerada que lhe é cara”; o hino termina com dois versos que se dirigem
juntamente à deusa e ao deus (VERNANT, 1990, p. 190). Entretanto, graças a este excelente
estudo de Vernant, somos conduzidos a desconsiderar uma relação entre o aparecimento de
Hermes nesta invocação e um culto prestado a ele pelos poetas. A partir de estátuas de Fídias e
deste Hino Homérico, Vernant mostrou que é através de vínculos opositivos, gerando um
complexo de complementaridade, que se associam comumente as representações de Héstia e
Hermes: enquanto a primeira reside no mégaron quadrangular, a lareira micênica, no centro do
hábitat humano, Hermes tem sua presença quase sempre associada aos momentos em que estes se
distanciam da casa (VERNANT, 1990, p. 190-193). Através da relação de complementaridade
expressa pela díade fixidez-mobilidade é que se fundam as associações entre Hermes e Héstia,
sendo a invocação presente no Hino uma manifestação da relação de philía que une os deuses.
A condição oracular legada por Apolo cuja descrição encontramos no Hino Homérico a
Hermes parece ter se consolidado em períodos posteriores
42
, mas é improvável que durante o
Período Arcaico Hermes tenha assumido o estatuto de um deus que inspira e inicia os indivíduos
42
Repetimos aqui a nota feita por Ordep Serra no estudo que antecede sua bela tradução do Hino Homérico a
Hermes: “Pausânias (VII, 22,2) conta que em Faras havia um oráculo singular de Hermes: o consulente dizia sua
pergunta no ouvido de uma imagem do deus e depois tapava as próprias orelhas, dirigindo-se assim à praça do
mercado, onde as destapava. A primeira palavra que ouvisse, então, correspondia à resposta de Hermes” (SERRA,
2006, p. 83).
124
nas funções poéticas. Apesar disso, a influência que teve sobre a atividade dos aedos foi
amplamente sentida, principalmente por ter uma referência numinosa das atividades destes
poetas.
5.3 Representações numinosas de atividades poéticas
Se a associação com a inspiração e invocação são escassas ou praticamente inexistentes
nas timaí de Hermes pré-Clássico, suas representações assumindo a condição de aedos não foram
nada tímidas. Apesar dos poemas homéricos e hesiódicos terem insistido em associá-lo ao
universo da palavra, é somente no Hino Homérico a Hermes IV que os usos da condição de aedo
atingem seu ponto auge.
A importância dos mitos descritos no Hino Homérico a Hermes IV se deve,
principalmente, ao fato de que fazem menção à gênese dos domínios de competência do deus.
Sabemos que os discursos que versam sobre as origens das coisas tendem a assumir a autoridade
de atos inaugurais, ou seja, ações que fundamentam a existência e continuidade de determinado
comportamento por um impulso inato. Eles explicam como certas características são
irremediavelmente associadas a determinadas entidades. Não é sem motivo que nos mitos de
infância apresentados no Hino Homérico a Hermes IV encontramos, logo nos versos iniciais, a
descrição daquelas que seriam as caracterísitcas mais evidentes deste deus. (Hino Homérico a
Hermes IV, vv. 13-16).
Os aedos que cantaram este prelúdio parecem ter reconhecido nas representações de
Hermes uma excelente oportunidade de manifestar sua própria atividade. Tanto que o propósito
inicial de roubar as vacas de Apolo foi prontamente interrompido quando o deus encontrou uma
125
tartaruga diante da caverna em que nascera. Apesar de não -la usado imediatamente, o deus
inventivo aproveita o ensejo para criar a cítara:
Lá fora, viu a tartaruga, muito seu júbilo: Hermes
foi o primeiro que fez a tartaruga cantora
nesse dia, ao divisá-la do átrio nos limiares
da casa excelsa, pastando florente relva
com seus delicados passos; de Zeus o filho expedito
fitou-a, rompeu a rir, e disse-lhe estas palavras:
“Que bom sinal! Rica prenda, não te desdenho! Salve,
charmosa amiga da festa, sempre vibrante nas danças!
Oh, que grata aparição! Donde vens, belo brinco?
Vestes um casco bizarro ... És tartaruga da serra!
Já em casa te recolho! Já te darei serventia
pois não te desprezo, meu bem: vou te usar com primazia.
(Hino Homérico a Hermes IV, vv. 24-35)
Este atributo notável de Hermes foi observado por Jean-Pierre Vernant, que assinalou ser
característica do deus a capacidade de transformar tudo o que toca. Hermes também é aquilo que
não se pode nem prever nem reter, o fortuito, a boa ou má sorte, o encontro inesperado
(VERNANT, 1990, p. 193). Conhecedor dos símbolos religiosos, Hermes sabe que a tartaruga é
investida de um valor que pode muito bem ser transferido para as ações esperadas do canto:
viva, darás proteção contra mal de feitiçaria.; depois de morta, hás de cantar lindamente(Hino
Homérico a Hermes IV, vv.37-38).
O prelúdio descreve o modo pelo qual o deus, como um verdadeiro artesão, fabrica a
cítara:
Cortou, em boa medida, talas de cálamo exatas,
transversais as fixou ao casco da tartaruga;
pele de boi esticou e, com o tino que tem,
dois braços dispôs extremos, por uma travessa unidos;
estendeu-lhe sete cordas de tripa de ovelha, harmônicas
(Hino Homérico a Hermes IV, vv. 47-51)
126
E, para dar sentido ao fim para o qual foi criada, Hermes começa a manuseá-la: Depois
de assim fabricá-lo, tomou do brinquedo amável a experimentar as cordas, uma a uma; em suas
mãos brotava da cítara som tremendo (Hino Homérico a Hermes IV, vv. 47-51). Mais do que
evidenciar sua qualidade de citarodo, o Hino descreve o tema do canto a que o menino Hermes se
dedicava:
Cantava Zeus, o Cronida, e Maia belas-sandálias
como outrora eles palravam nos seus enlaces de amor
- que assim também celebrava a glória de sua origem
e as aias, e os aposentos da ninfa maravilhosos,
e as trípodes, e as duráveis caldeiras de sua casa.
(Hino Homérico a Hermes IV, vv. 57-61)
Há no canto de Hermes um espetacular registro metapoético. Em primeiro lugar, ratifica a
necessidade de ser referir às origens como forma de legitimar os estatutos presentes. Para celebrar
sua glória e incluir-se entre os deuses mais velhos, o jovem Hermes faz uso do pretérito
envolvimento que o Cronida teve com sua mãe Maia. Em segundo lugar, porque os aedos que
cantaram o prelúdio faziam com que Hermes praticasse a atividade que estavam praticando no
momento do canto: celebrar as divindades helênicas através de palavras acompanhadas da
execução da cítara. É neste sentido que Calame se utiliza de um termo cunhado por Benveniste
para defender a existência de uma “projeção objetiva de uma pessoa subjetiva”, ou seja, de uma
personalidade autômona que faz uso de representações externas para falar de si (CALAME, 1995,
p. 52). Apesar de coerente, o argumento deve ser visto com certas ressalvas, que particulariza
excessivamente um traço que não é necessariamente narrativo. Acreditamos que a “projeção”
defendida por Calame é, na verdade, a expressão das características sociais comumente presentes
na mitologia helênica, não sendo deste modo uma tendência restrita aos discursos poéticos, mas
ao conjunto da mitologia. No entanto, é inevitável deixar de ver nestes versos um esforço de
127
autoglorificação e de reflexão sobre o próprio papel social dos aedos, principalmente porque este
tipo de questão metapoética reaparece com um vigor muito maior alguns versos depois.
Após criar a cítara e praticar o canto, Hermes retoma o projeto de furtar as vacas sagradas
de Apolo. Vimos que chegou à Piéria, conduziu o rebanho apolíneo ao seu antro e separou duas
para o sacrifício: Prontas as carnes, Hermes de ânimo ledo tirou do fogo a feitura sua, depôs
numa laje, e doze porções talhou ao léu da sorte e um perfeito dom de honra fez de cada(Hino
Homérico a Hermes IV, vv. 127-129). Deste modo, Hermes promove através dos típicos ritos
sacrificiais uma ação semelhante àquela almejada pelo canto: louvar a si próprio e aos deuses.
Separando doze porções e incluindo-se no repasto, assinala seu pertencimento à ordem divina que
deseja louvar.
Como visto, Apolo por falta das cinqüenta vacas e principia a busca. Encontra o velho
que vira o rebanho passar, descobre o local do ocultamento pelos dons de auspício que lhes o
próprios, chega ao local e requisita a devolução. Aproveitando a aparência infantil, Hermes
desconversou furtivamente, alegando ser muito jovem para cometer tais delitos. Irritado, Apolo
conduziu o jovem irmão ao tribunal de Zeus, que julga a favor do mais velho. Hermes se dirige à
caverna e, logo em seguinda, traz à luz as vacas apolíneas. Percebendo que duas desapareceram
Apolo voltou a se encolerizar. Para acalmá-lo, Hermes assume a condição de aedo faz uso da
cítara pela segunda vez:
Portando a lira na mão esquerda, tangia
Hermes as cordas com o plectro, em harmonia; a seus dedos
surdia som penetrante. Riu-se o radioso Apolo
feliz: o som sedutor tocou-lhe o peito, daquela
divina voz, deleitável desejo se lhe entranhando
enquanto ouvia. A tanger a lira deliciosa
foi pôr-se o filho de Maia, já sem receio, à esquerda
de Apolo Febo; tocando a cítara, harmonioso,
soltou a voz num rompante som amável a seguia
128
com perfeição proclamando os deuses, a Terra escura,
como eles se originaram, e o lote de cada um.
Mnemosýne primeiro dentre os deuses gloriou;
Mãe das Musas a ela coube fadar o filho de Maia.
o nobre filho de Zeus, por ordem de antiguidade,
a geração celebrava de cada deus imortal.
Cítara em mãos, a eles todos em ordem certa cantava.
(Hino Homérico a Hermes IV, vv. 418-432)
Assim como no primeiro canto, Hermes volta a celebrar com a cítara as origens e os feitos
dos deuses, ratificando neste novo registro metapoético a função tipicamente associada aos aedos
compositores e transmissores dos Hinos Homéricos. A peculiaridade desta passagem se pelo
fato de que Hermes louva, antes de todos os outros, Mnemosýne, mãe das Musas, prestando-lhe
honras. A associação com as deusas provedoras da inspiração é evidente, tendo o próprio deus
aderido a seu culto. Amplia-se o rol de características que os aedos julgavam necessárias para seu
trabalho e desejavam ver representadas nos deuses que presidiam suas funções.
O encantamento de Apolo, como já vimos, foi decisivo para refundar a lógica das relações
entre os deuses. Ficou completamente extasiado, perguntando inclusive se os dons da canção
cabiam a Hermes por nascimento ou se algum deus o teria ensinado. O deus declarou:
Eu sou real companheiro das musas olímpias
que se desvelam nas danças, na trilha da poesia
refulgente, flórea voz, ao suave som das flautas.
Mas por nada tanto gosto senti como por teu canto
nem nas trovas inventivas dos jovens nos seus festins.
Filho de Zeus, admiro a tua graça a tocar a cítara”
(Hino Homérico a Hermes IV, vv. 450-455).
Hermes consegue levar a cabo o plano arquitetado desde sua saída da caverna. O canto foi
o arremate da rede de intrigas que começou com a transformação da tartaruga em cítara. Hermes
retruca as palavras elogiosas do irmão e promete conceder-lhe os dons poéticos sem, contudo,
129
abrir mão dos propósitos que ordenaram suas ações desde o início da trama, manifestas
principalmente pelos louvores oriundos dos cantos e pelo sacrifício das reses apolíneas:
Nesta arte que é bem minha não recuso iniciar-te.
Hoje mesmo a saberás; favorável quero ser-te
em propósito e palavras: no íntimo, tudo vês!
Tu gozas de primazia entre os deuses imortais,
tu és bravo, tu és forte, e te ama Zeus prudente:
conforme à pura justiça, dons ilustres concedeu-te
e honras. Segundo é fama, de sua boca vêm agouros
a ti, Arqueiro! Pois toda predição de Zeus procede.
Eu mesmo já tenho prova dessa fortuna que é tua.
És bem livre de aprender aquilo que tu cogitas!
Mas como teu coração te impele a tocar a cítara,
toca e canta, desfrutando da delícia que recebes
de mim e de tua parte, meu amigo, dá-me glória!
(Hino Homérico a Hermes IV, vv. 465-477)
Seguindo as típicas relações de troca
43
que orientavam as associações de nobres na Grécia
Antiga, Hermes concede à Apolo o dom do canto e solicita, como contradom, que divulgue seus
feitos de juventude. Se na variante humana não foi possível identificar o poder hermético de
iniciar alguém nos dons da poesia, na variante numinosa esta capacidade aparece claramente
manifesta nas ações de Apolo, pois assim que entregou a cítara em troca da posse definitiva das
vacas, “O nobre filho de Leto, soberano arqueiro, Apolo tangia as cordas com o plectro, medólico
e em sua mão dava a lira som vibrante, no que a bela voz cantava(Hino Homérico a Hermes
IV, vv. 500-502).
Assim como ocorre com Hermes no prelúdio que o hineia, é no Hino Homérico a Apolo
que se manifestam as principais representações do filho de Leto na condição de aedo.
Curiosamente, as similutes não se esgotam por aí. Assim como acontece com Hermes, a primeira
aparição de um Apolo-poeta mostra-se no Hino à época de seu nascimento. Leto peregrinou
43
Sobre esta problemática merecem destaque as discussões a respeito do conceito de reciprocidade em
FLORENZANO, 2003, p. 43-66 e os debates sobre dom e contradom em Homero reunidos em CARVALHO, 2003,
p. 67-94.
130
durante nove dias, sofrendo as dores terríveis dos momentos finais da gestação sem conseguir um
lugar que acolhesse o filho que estava prestes a nascer: por onde, pelo parto opressa, súplice
vinha Leto a ver se uma das terras o caro filho acolheria. Estas, porém temiam e nenhuma, a
tremer, se atrevia a aceitar o Puro Apolo, por mais florente que fosse(Hino Homérico a Apolo,
vv. 45-48). Somente em Delos conseguiu abrigo, mas ainda assim teve dificuldades de trazê-lo à
luz: Hera, sentada no palácio de Zeus e colérica por causa de ciúmes, ocultava de Ilitia a deusa
que preside os partos o conhecimento de que Leto estava prestes a parir. Contudo, as deusas
Dione, Réia, Têmis e Afrodite conseguiram fazer com que Íris fosse enviada e trouxesse Ilitia.
Quando foi comunicada, pôs-se a correr, e num átimo transpôs o amplo espaço (Hino
Homérico a Apolo, v. 108). chegando, interrompe o sofrimento de Leto. As deusas presentes
saúdam o infante, banhando-o em águas límpidas. Leto negou o leite enquanto Têmis nutriu o
recém-nascido com néctar e ambrosia. Desta forma, logo após o nascimento, aos imortais Apolo
proferiu as seguintes palavras: Que eu possua a cítara e o arco flexível; da infalível vontade de
Zeus, vate serei para os homens (Hino Homérico a Apolo, vv. 130-131). Assim como ocorre
com Hermes, com a autoridade do começo, do ato inaugural, os aedos atribuíram a tutela da
poesia a Apolo logo após seu surgimento.
O nascimento de ambos os deuses é marcado por inúmeras semelhanças. Nos dois casos,
as genitoras divinas deram à luz os filhos de modo clandestino: Maia, refugiada no ocultamento
que a caverna oferece, e Leto em Delos, igualmente ocultando o conhecimento de Hera. Além
disso, ambos precisam agir para consolidar sua presença em meio às demais divindades,
utilizando para isso as características que lhe são peculiares: Hermes pela arte do logro, Apolo
pela imposição da vontade. Em ambos os casos nota-se o uso da poesia como meio de atingir este
131
objetivo, que Hermes criou a cítara para louvar suas origens e Apolo reivindicou a tarefa de
apresentar aos homens as vontades de Zeus fazendo uso do instrumento
44
.
Obviamente, as descrições de Apolo praticando a poesia são muito mais tímidas que
aquelas observáveis no caso de Hermes. Quando pratica a poesia, o aedo descreve uma referência
divina orientando tanto a forma quanto o conteúdo da récita: uma nítida menção ao uso da
cítara e uma descrição relativamente pormenorizada do conteúdo a que Hermes se dedica a
cantar. também a sutileza de incluir os interesses pessoais que permeavam o canto. No caso
de Apolo, o que vemos é, antes de tudo, a expressão de um desejo. Assim como Hermes,
observamos que a vontade é a mesma: celebrar as façanhas dos deuses imortais. Todavia, em
versos posteriores poderemos observar Apolo praticando efetivamente o canto, celebrando ao
som da cítara aquilo a que ele se propõe:
Avança o filho da gloriosa Leto, tangendo
a cava lira ruma a pétrea Pito,
com odoras vestes imortais; e sua lira,
sob o áureo plectro, tem um som que desperta desejo.
Em seguida, da terra ao Olimpo, qual pensamento,
ao palácio de Zeus ele vai, com outros numes reunir-se;
e logo por cítara e canto anseiam os deuses imortais.
Respondendo-lhe com linda voz, as musas, concordes,
cantam eternos dons dos deuses e as desventuras
dos mortais, que os divos sempre-vivos lhes enviam,
ao viverem como insensatos e impotentes; incapazes de
encontrar antídoto para a morte, e amparo à velhice.
Porém as Graças de lindas tranças e as Horas propícias,
Harmonia, Hebe e a filha de Zeus, Afrodite,
de mãos dadas se põem todas a dançar.
canta entre elas, não sem encanto ou estatura,
Mas à vista muito imponente, preclara figura,
a sagitífera Ártemis, junto de Apolo nutrida.
Entre elas, Ares e o vigilante Argifonte
dançam, enquanto o Puro Apolo a lira pulsa,
com passadas altas, gráceis, se movendo; à sua volta,
flâmeo fulgor: fulgem-lhe os pés e a túnica impecável.
44
Interessante a reivindicação apolínea, que na tradição homérica é Hermes quem leva ao conhecimento dos
homens os desígnios de Zeus.
132
Leto de tranças áureas e Zeus sagaz
alegram o nobre coração ao contemplarem
o caro filho a dançar entre os deuses imortais.
(Hino Homérico a Apolo, vv. 182-204)
As práticas poéticas descritas nestes versos retomam a tradição homérica. Apolo pratica a
poesia em um ambiente semelhante àquele observável nos banquetes presididos por Demódoco e
Fêmio na Odisséia, onde se reuniam os convivas diante do aedo que proclamava as histórias com
o auxílio dos passos ritmados dos dançarinos. O evidente contraste com o canto introspectivo de
Hermes é curioso pelas próprias características dos deuses: o furioso deus do arco, que aniquila
inúmeros aqueus e que impõe sua vontade desde o nascimento cede espaço a um Apolo festivo,
que comanda um repasto numinoso no qual vários deuses sucumbem ao entusiasmo provocado
pelos sons de sua lira. Contudo, o que mais chama atenção neste movimento de retorno à tradição
homérica é o uso que os aedos fizeram de um tradicionalíssimo evento descrito na Ilíada:
Por todo o dia então, até o pôr do sol,
juntos banquetearam-se; de seu quinhão
nenhum privou-se, nem da lira multilinda
de Apolo, nem das Musas, alternando vozes.
(HOMERO, Ilíada, I, 601-604)
O banquete dos deuses da Ilíada ocorre durante a guerra de Tróia, em um momento em
que os aqueus ofereciam hecatombes e suplicavam pelo auxílio divino. Assim como no Hino
Homérico a Apolo, há no descaso com que os deuses tratam os homens uma nova recorrência do
discurso sobre a distância que separa mortais e imortais: enquanto no Hino em questão as Musas
e Apolo alardeavam através do canto a superioridade divina, na narrativa iliádica o próprio
afastamento que impuseram denuncia postura semelhante. Portanto, o aedo que difundiu este tipo
de narrativa era pleno conhecedor dos discursos sobre as funções poéticas representadas por
Apolo presentes nas tradições mais antigas.
133
Aliás, o acompanhamento das Musas é um elemento exclusivo das representações
poéticas de Apolo, não acontecendo com nenhuma outra divindade olímpica. Este fato é singular
pois somente nas passagens do Hino Homérico a Apolo e da Ilíada destacadas podemos dizer
com segurança que há menção a uma atividade poética desempenhada pelas Musas
45
.
A ausência deste tipo de representação pode ser creditada a inúmeros fatores. Uma
primeira possibilidade diz respeito aos atributos que caracterizam a existência das Musas entre as
divindades helênicas: sua associação com o canto. Diferentemente de Hermes, Apolo e outras
divindades olímpicas, que gozam de inúmeros domínios de competência, todas as representações
das Musas versam a respeito de sua influência sobre o fazer poético. Esta fixidez pode ter
dificultado a diversificação de seus atributos. Afinal, se por um lado os mitos gregos não são
dogmáticos e possuem razoável mobilidade para se adequarem às demandas sociais que se
apresentam, por outro lado os poetas são indivíduos fortemente apegados à tradição, pois dela
depende sua própria existência. Consolidado o culto às Musas, através do qual elas teriam se
estabilizado como divindades que iniciam os indivíduos e os inspiram na atividade de poetas,
pode ter sido difícil associar a elas novos comportamentos sem correr o risco de parecer
extravagante ou iconoclasta.
Uma segunda possibilidade diz respeito à tendência de representá-las coletivamente.
Quando o aedo invoca a Musa”, no singular, não se refere à deusa individualizada que
costumamos imaginar, mas à potência religiosa e impulso poético que se confude com seu
próprio nome. Como os aedos eram profissionais cuja atividade era desempenhada
individualmente, representar as Musas na condição de poetas exigiria separá-las. Os aedos podem
ter sentido dificuldade em fazê-lo, pois a experiência numinosa das Musas se mostra
45
uma passagem da Odisséia em que Homero teria descrito que as nove Musas, alternando vozes, entoavam um
treno (HOMERO, Odisséia, XXIV, 60-62). Contudo, assim como Victor Bérard e outros comentadores, acreditamos
que a o canto XXIV tenha sido uma adição posterior.
134
plenamente manifesta nas representações conjuntas, que cada uma tende a particularizar um
aspecto da poesia, formando um todo coerente. É possível que esta dificuldade possa ter até
mesmo estimulado a transformação de Apolo e Hermes em deuses que assumiriam a atividade
poética.
Uma terceira possibilidade, não menos importante, diz respeito à questão de gênero. Pode
ter parecido inconcebível atribuir à divindades femininas a personificação de uma atividade que,
na vida em sociedade, era desempenhada pelos homens. Recordemos que os gêneros masculino e
feminino tinham atribuições sociais bastante específicas na Antigüidade grega, e os poetas foram
os principais porta-vozes da aristocracia que buscava construir um discurso sobre a proeminência
do primeiro sobre o segundo.
A despeito das inúmeras possibilidades de interpretação, é latente que este movimento,
refletidamente construído ou não, visava dar legitimidade e informar a audiência sobre a
sacralidade de seu ofício, garantindo deferências e assegurando a legitimidade de suas palavras.
135
Capítulo VI
Conclusão
Uma peculiaridade da experiência religiosa grega é permitir que os deuses assumam
atitudes, comportamentos e atividades típicas dos mortais. Esta característica aparenta ser curiosa
porque há um constante esforço de reiterar a distância que separa homens e divindades. É notável
o vasto conjunto de antíteses que euforizam as diferenças: os deuses são eternos e os homens são
efêmeros; os deuses tudo conhecem e os homens nada sabem; os deuses são fortes e os homens
são débeis. Nos poemas uma série quase ilimitada de comparações que tem por princípio
insistir que deuses e homens são entidades marcadas por uma oposição extremamente
verticalizada.
Apesar disso, a construção das personalidades dos deuses careceu de uma referência: para
que pudessem se mostrar superiores era preciso encarnar as qualidades assumidas como ideais
pelo conjunto da sociedade, forjando um modelo exacerbado do que se consideraria característico
dos homens. A separação entre homens e deuses, portanto, não poderia ser tão distanciada como
se presume. Para prescrever o ideal de superioridade das divindades a experiência religiosa
helênica construiu deuses extremamente antropomórficos, levando ao limite as ações e
comportamentos esperados pelos homens.
Forjou-se, portanto, deuses demasiadamente humanos, tão humanos que extrapolam a
própria humanidade. É justamente nisto que reside a distância: são as características humanas
afloradas que fundamentam o status divino. Nota-se um esforço de caracterizar a própria
136
condição humana, pontuando por este distanciamento ideal o eu e o outro, com a sutileza de fazer
deste outro um eu mesmo inalcançável.
Neste sentido, quando Apolo é representado no auge de sua fúria, alvejando o exército
argivo por nove dias seguidos com suas setas, o que vemos é a representação da fúria guerreira
tão estimulada nas narrativas homéricas em seu ponto máximo. De modo semelhante, quando nos
deparamos com as narrativas sobre a virilidade expressa pelas inúmeras aventuras sexuais de
Zeus, o que vemos inevitavelmente representado é o ideal de virilidade típico de uma sociedade
que valoriza profundamente as demonstrações de masculinidade. Inúmeros exemplos poderiam
ser citados, e inúmeros estudos se preocupam em demonstrar este tipo de associação
46
.
Obviamente, este tipo de expressão religiosa é fortemente influenciada pelos poetas, que
tiveram até meados do Período Arcaico uma ligação direta com a aristocracia guerreira. A
sobrevivência da atividade poética dos aedos dependeu, em última instância, dos vínculos que os
associaram a este poderio familiar e palaciano, onde as deferências cedidas pelo rei recebiam
como contrapartida um discurso que legitimava o modo de vida e a organização social que
desejavam preservar.
Não resta dúvida de que os aedos foram muito competentes em seu projeto. A fama que
um poeta como Homero adquiriu na Antiguidade é prova cabal disto. Dificilmente poderíamos
admitir que um indivíduo independente, porta-voz de suas vontades mais íntimas pudesse assumir
um estatuto tão louvável. Mesmo que suas qualidades fossem inigualáveis, dificilmente teria
conquistado a tão almejada fama se não tivesse se esforçado para fazer valer os desejos e divulgar
os valores de uma classe social tão ciente de seus poderes e privilégios.
46
Para discussões mais detalhadas a respeito, consultar CORVISIER, 1996 e DETIENNE; SISSA, 1991.
137
É igualmente notável que nesta sociedade altamente estratificada haja a necessidade de
uma demarcação religiosa que justifique as diferenças. O discurso religioso referenda a
visibilidade que determinados indivíduos possuem. Diferentemente do sistema políade que,
séculos depois, começou a diminuir a importância particular dos indivíduos em prol da
coletividade, até meados do Período Arcaico o poder político e econômico era bastante
individualizado. Para sustentá-lo e legitimá-lo eram necessários discursos que ratificassem esta
proeminência diante dos indivíduos menos abastados, ajudando a perpetuar o poder dos basilêus.
O valor da fala de um aedo era medido pelo reconhecimento público de suas qualidades.
Não sentido em considerar a funcionalidade de um indivíduo que impunha sua palavra diante
de um público que o com descrédito. É neste cenário que se consolidam as tensões. É preciso
construir sua própria fama para que a glória daqueles que o sustentam possa ser construída. E,
como vimos, é principalmente pela via religiosa que esta fama será criada, difundida e
estimulada. Para gozarem de autoridade, precisam ser vistos como indivíduos excepcionais.
Assim, reiteravam a cada récita os préstimos oferecidos pelas Musas. Para terem seu trabalho
reconhecido, precisavam convencer que a execução das tarefas que lhes são peculiares eram
variantes de uma prática numinosa, anterior e superior ao homens mortais e passeiros. Por isso
convocaram Apolo e Hermes a assumirem a condição de aedos.
É inegável que os aedos, ao descreverem deuses praticando a atividade que lhes é
particular, estavam refletindo sobre seu próprio estatuto social. Não como discorrer sobre seu
ofício sem inscrever nos discursos as características que deseja exaltar. É deste modo que, com as
devidas ressalvas, as representações de Apolo, Hermes e das Musas eram antes de mais nada um
esforço de convencimento e reflexão sobre si, sendo um eu mesmo objetivado em um outro
idealizado.
138
Como foi possível observar, os domínios de competência dos deuses são intimamente
relacionados, tanto entre si como entre os pares numinosos. É difícil admitir, principalmente ao
fazermos uso do método comparativo, que estas potências religiosas estivessem imunes às
influências múltiplas que ajudavam a delimitar suas timaí. As próprias narrativas seguiram o
movimento de construir vinculações entre estes deuses, relacionadas ou não com a instância
poética. Ao estabelecer uma leitura seguindo a configuração da comparável representações e
discursos metapoéticos da poesia aédica, pudemos observar claramente as diversas tendências de
representação das atividades divinas. É notável o fato de que Apolo, Hermes e as Musas tenham
se tornado um locus de reflexão sobre o trabalho poético, tanto pelas suas características
individuais como pelas relações de complementaridade expressas nos momentos em que eram
representados em conjunto.
No caso de Apolo e das Musas, manifesto um antigo vínculo de philía que os une.
Inclusive, foi atribuída ao deus a sentença em que ele declara ser real companheiro das Musas
olímpicas (Hino Homérico a Apolo, v. 450). Antes do proêmio, ambos praticavam juntos o
recitato poético típico dos ritos de comensalidade em sua variante divina (HOMERO, Ilíada, I,
601-604). Ora, como as Musas, pelo impulso numinoso que o significado de seu próprio nome
evoca, estão profundamente associadas ao universo da poesia, é inevitável que qualquer
associação com Apolo se na mesma ordem: junto às Musas o filho de Leto é sempre uma
variante divina dos aedos. Se este vínculo não foi tradicionalmente construído junto a Hermes, os
poetas que compuseram seu Hino Homérico sutilmente incluiram no canto que o deus executa
uma referência inicial à Mnemosýne genitora divina das Musas para construir o vínculo tão
necessário para consolidar este quinhão (Hino Homérico a Hermes IV, vv. 428-430). Afinal,
139
assim como as Musas, Mnemosýne evoca quase que por capilaridade gramatical a potência
religiosa que seu nome indica.
As associações entre Hermes e Apolo são igualmente antigas e sintomáticas. No próprio
canto de Demódoco os deuses marcam relações. O aedo feace descrevia os amores de Ares e
Afrodite. Durante a ausência de seu marido Hefesto, a deusa convida Ares a se deitar com ele em
uma rede. Esta rede, no entanto, tinha sido forjada pelo deus demiurgo, que desconfiava da
traição. Assim que principiaram o enlace amoroso, a rede prendeu os amantes com tamanha força
que foi impossível para eles se soltarem. Hefesto retorna e convida os deuses a testemunharem o
deslize da sua esposa, ridicularizando-a pela falta cometida. Neste momento, Hermes e Apolo
travam um diálogo repleto de picardia:
Disse para Hermes Apolo, nascido de Zeus, o seguinte:
“Hermes, ó filho de Zeus, mensageiro e dador de presentes,
desejarias sentir-te enleado nas fortes cadeias,
tendo ao teu lado, deitada no leito, a divina Afrodite?”
Dando-lhe logo a resposta, retruca-lhe o guia brilhante:
“Ó Rei Apolo, que longe remessas as setas, prouvera
que tal se desse, com três vezes mais desses elos em torno,
e os deuses todos e as deusas à volta estivésseis olhando,
contanto que me deitasse no leito com a áurea Afrodite”
(HOMERO, Odisséia, VIII, 334-342)
A intimidade entre Hermes e Apolo não se revela somente através deste diálogo. Como
vimos, o principal esforço em associá-los foi empreendido pelos aedos que compuseram o Hino
Homérico a Hermes IV, onde nos informa os meios pelos quais estas duas divindades passaram a
partilhar um vínculo de philía mediado pela troca de dons relacionados com a atividade poética e
divinatória (Hino Homérico a Hermes IV, vv. 198-199). No Hino Homérico a Apolo também
uma passagem em que Hermes dança aos sons que o deus em questão produz ao cantar tangendo
a lira (Hino Homérico a Apolo, vv. 198-199). A partilha de atributos também é de grande
140
notabilidade. Como foi possível observar, ambos os deuses estão associados aos movimentos
colonizadores e de fundação através dos quais os aedos marcavam presença para legitimar diante
da comunidade os valores tipicamente helênicos. Outras, não necessariamente associadas à
poesia, também demonstram o grau de influência mútua que os deuses mantinham.
O culto a um Hermes psycopompos, responsável por conduzir a alma dos mortos ao
Hades, parece ter ligação com uma função também presidida por Apolo. Apesar de não ter sido
muito explorada possivelmente por uma série de escolhas dos poetas uma passagem que
denuncia um Apolo envolvido com a transição da vida para a morte: Mas, quando pelas cidades
os homens mortais envelhecem, Ártemis e eles, e Apolo, o deus do arco de prata, se chega, e,
com seus raios suaves, a vida dos membros lhes tiram (HOMERO, Odisséia, XV, 409-411).
Dentre os símbolos que compartilham, além da cítara, também o bastão de ouro.
Quando o Hino Homérico a Hermes IV anuncia a troca de dons entre os deuses, na qual Apolo
teria concedido o kerykeion a Hermes, nada mais faz do que retomar uma tradição remanescente
do período homérico mas não muito difundida, pois o arco e a cítara sempre figuraram como os
instrumentos que resumiam as características divinas apolíneas:
Sacerdote de Apolo, deus fechicerteiro,
veio Crises às naus dos Aqueus de couraça
brônzea. Trazia dons riquíssimos, visando
a libertar a filha. O cetro de ouro e os nastros
do deus flechicerteiro à mão. E suplicava
a todos os Aqueus e a ambos os Atreides.
(HOMERO, Ilíada, I, 370-375)
O porte deste bastão é também associado ao universo da palavra enunciada em
assembléias por indivíduos prestigiados. Como observamos, Hesíodo se utiliza destes dons
partilhados por ambos os deuses para entregar a si próprio, seguindo um eventual desígnio das
Musas, um cetro tomado a um ramo de loureiro. Esta rede de influências legou aos aedos a
141
liberdade necessária para representarem, no plano divino, estes dois deuses na condição de poetas
em conjunto com as Musas.
Essa constante reiteração de elementos das narrativas aédicas tardias pelos aedos mais
modernos é característica do tradicionalismo imanente à sua própria atividade. Diante das
expedições colonizadoras e das viagens de reconhecimento do espaço mediterrâneo os aedos
assumiram a importante tarefa de informar os costumes helênicos às comunidades locais,
ajudando a situá-las na rede de influências desta aristocracia tradicional. Quando invocavam as
Musas antes das récitas, por exemplo, informavam a seu público a respeito das tradições
poéticas a qual estavam vinculados pois, conforme assinalamos, em determinado momento do
Período Arcaico (séc. VII) a efervescência de novas formas de expressão poética fez conviverem
simultaneamente aedos, ricos e rapsodos. Por esse motivo, mesmo as representações divinas
mais recentes, apesar de estarem se adequando às demandas dos novos públicos, tinham seus
modelos forjados pelos antecedentes homéricos.
Hesíodo é um caso ímpar. As notáveis mudanças que apresenta em sua poesia, apesar da
rigidez formular com que seus versos em hexâmetro dactílico foram compostos, não oculta os
inúmeros antecedentes homéricos. Quando levamos em consideração os discursos sobre a prática
poética, percebemos que este retorno a Homero é ainda mais contundente. Por exemplo: quando
Hesíodo atribui às Musas a sentença “sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos”
(HESÍODO, Teogonia, v. 27), está retomando uma passagem da Odisséia onde se descreve a
mentira de Ulisses que, ao contar sobre sua genealogia a Penélope, diz ser filho de Deucalião, e
que teria recebido o marido dela em Creta (HOMERO, Odisséia, XIX, v. 203). O verso seguinte,
quando as Musas afirmam “e sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações” (HESÍODO,
Teogonia, v. 28), também tem por base outro verso da Odisséia, quando o porqueiro Eumeu faz
142
referência às mentiras das pessoas errantes que “jamais querem dizer a verdade” (HOMERO,
Odisséia, XIV, 124)
47
. As características peculiares da obra de Hesíodo, exponenciadas pela
inclusão de seu próprio nome e pelas reflexões sobre as problemáticas que o aflingiam, apesar de
denunciarem um movimento típico da poesia rica que iria emergir décadas depois, não deixam
de mostrar a forte vinculação que ainda mantinha com a prática aédica. Fato também notável nos
Hinos Homéricos, que se esforçam por se filiar a uma tradição com o desejo preclaro de assumir,
igualmente, um estatuto tradicional.
Diante deste cenário, inúmeras problemáticas que podem ser trazidas à lume. Vimos
que os aedos se utilizavam de discursos metapoéticos e de representações numinosas para
legitimar suas atividades. Esta questão nos coloca diante de um dilema: seriam de fato tão
prestigiados os aedos gregos como assinala Homero, principalmente ao se referir a Demódoco e
Fêmio? O esforço recorrente em atribuir aos poetas orais um papel de destaque nos ritos de
comensalidade e nas demais cerimônias religiosas não seria uma tentativa de forjar através do
canto um estatuto social que não condizia com a realidade? Finalmente, será que o público
assumia como verdadeiros os discursos sobre os méritos que costumam louvar tão
insistentemente?
Quando um determinado comportamento ou característica tem sua ênfase excessivamente
assinalada, pode ser um indicativo de que o discurso procura referendar uma condição que tem
dificuldade de acontecer na realidade
48
. Talvez, os esforços aédicos em reafirmar seus privilégios
47
Para estas considerações, destacamos a importância das notas feitas por Ana Lúcia Silveira Cerqueira e Maria
Therezinha Arêas Lyra em sua tradução da Teogonia.
48
Esta indagação segue a esteira das considerações de Fábio de Souza Lessa em seu estudo sobre a construção do
modelo de esposa ideal (mélissa) durante o Período Clássico ateniense. Para o autor, “a insistência com que os
autores gregos antigos repetiam e reafirmavam as virtudes femininas que compunham o modelo mélissa nos
inquietava. Para esta constante, chegamos a duas possíveis explicações. A primeira pode ser representada por uma
necessidade ideológica desses autores em reafirmar esse modelo convencional. Já a segunda, pode nos revelar que
este modelo existia enquanto plano teórico, mas a sua aplicação prática não acontecia efetivamente, dái a sua ênfase”
(LESSA, 2001, p. 11).
143
tenham sido um movimento que buscava consolidar um espaço que não existia, ou era muito
frágil. Porém, a sobrevivência de dois épicos com tamanho prestígio não seria possível se o
público que o ouvia não corroborasse os discursos nele apresentados. O notável grau de
autonomia que Homero possuía para louvar o papel social dos poetas orais também não foi
fortuito. Ele revestiu Demódoco de honrarias comparáveis aos basilêus e preservou Fêmio da
morte pela importância e qualidade de sua prática enunciatária. Como vimos, em Hesíodo e nos
Hinos Homéricos esta tendência também é exemplar. É plausível admitirmos que, quando a fala
dos aedos louvava sua atividade, encontra respaldo no público ouvinte: insistimos várias vezes
que a adequação do discurso aos espectadores norteia as principais orientações das récitas.
Os usos que os aedos faziam da religiosidade helênica mostram o afinco com que
buscavam abarcar as múltiplas possibilidades de se viver a experiência religiosa. Em alguns
momentos, temos a sensação de que os poetas orais teriam feito um investimento consciente
nestas elaborações. É possível que, individualmente, alguns tenham tido plena percepção das
finalidades políticas a que se prestavam os discursos metapoéticos sobre a sacralidade de sua
atividade, mas é praticamente impossível que, em algum momento da história, esta consciência
tenha se tornado coletiva e aedos organizados em confrarias tenham debatido sobre as
possibilidades de uso destes poderosos recursos discursivos. De todo modo o que temos de
evidente é que representaram deuses na condição de poetas, invocarem um acesso diferenciado
ao mundo divino e tornaram as palavras um fenômeno digno de admiração.
Afastando-se das interpretações tradicionais, foi possível fazer vir à tona uma série de
interdependências que nos ajudam a observar a produção das narrativas oriundas dos recitatos
aédicos segundo uma lógica muito mais plural. Optamos por repensar as tradicionais abordagens
historiográficas sobre o tema. Preocupados em entender os mecanismos formulares, a
144
engenhosidade da versificação e a hipotética influência da escrita, parcela considerável dos
estudiosos fez com que as tensões a que os aedos estiveram submetidos ficasse enublada diante
do fascínio provocado pelo produto de seu ofício. Aqueles que se dedicaram a compreender sua
influência diante nos processo de composição acabaram por se restrigir às representações que se
faziam evidentes, enxergando tão-somente nas idealizações de poetas um discurso sobre a poesia.
A investigação empírica resultante do comparativismo construtivo proposto por Marcel
Detienne tem, de fato, o mérito de fazer emergir determinadas questões e ângulos insólitos. Seu
enfoque ajuda a repensar antigas tendências sem nos impregnarmos do excesso de subjetivismo
que comumente acompanha as abordagens desconstrucionistas. Foi deste modo que pudemos ver
nos aedos indivíduos capazes de elaborar verdadeiras estratégias discursivas. Estes elementos
ajudaram na tarefa de fazer deles um dos principais responsáveis pela construção de uma
sensação de pertencimento ao espaço helênico, estabelecendo uma relação de poder através do
dialogismo mantido com a aristocracia.
O expressivo sucesso de seus esforços se encontra manifesto na própria fama que o
resultado de suas enunciações orais mantiveram em toda História do Ocidente. A influência
posterior dos prelúdios, concretizada pelo De Mercure publicado por Rosnard no século XVI ou
pela bela paráfrase numa passagem do romance José e seus irmãos, de Thomas Mann, são
exemplos típicos. A constante recorrência a Hesíodo que se consolidou na Magna Grécia e
adentra os estudos dos sábios bizantinos também. A Ilíada e Odisséia são, contudo, sempre mais
notáveis. A idéia de Homero tornou-se maior que qualquer Homero eventualmente existente. São
incontáveis as influências na literatura, seja em Vírgilio, Luís de Camões ou James Joyce. Foram
inúmeros os temas homéricos apropriados pelo realismo das pinturas renascentistas. Mesmo na
Ciência Nova de Giambattista Vico vemos aflorar a idéia de uma “história cíclica” que tem em
145
Homero e seu conhecimento poético o começo e o eterno retorno, em uma curva sempre
ascendente. Fascínio, inquietações, dúvidas, estudos, questões, conflitos: vemos o poeta cego de
Quios sempre rejuvenescido pelo movimento que a tradição faz em presentificá-lo. Contudo,
resgatar sua historicidade não implaca apenas o esforço de continuar valorizando sua obra, mas
sim a tomada de consciência de que, antes de ter sido Homero, este indivíduo foi, sobretudo, um
aedo.
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