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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
KARLA BOTREL
A INVALIDAÇÃO DAS LICENÇAS URBANÍSTICAS PELA ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA E O DEVIDO PROCESSO LEGAL
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para obtenção do
título de Mestre em Direito do Estado, área de
concentração em Direito Urbanístico, sob a
orientação do Prof. Dr. Márcio Cammarosano.
SÃO PAULO
2009
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2
Banca Examinadora
________________________________
________________________________
________________________________
3
Ao meu marido Helton, com imenso e sincero amor.
Ao meu filho Henry, por me fazer ainda mais feliz.
4
AGRADECIMENTOS
Os agradecimentos são extensos, do que muito me orgulho. Significa que
não estive sozinha nesse longo caminho e agora que chegamos ao fim, é hora de
dividir os méritos com quem me ajudou a percorrê-lo.
Ao meu orientador, Dr. Márcio Cammarosano, acadêmico e advogado de
admirável experiência, pelas lições valiosas de Direito, pela compreensão e
inestimável confiança.
Ao meu mestre, Dr. Toshio Mukai, pelo irretocável exemplo de profissional e
de ser humano, pela generosidade em compartilhar todo seu conhecimento e
experiência. Obrigada pelo estímulo efetivo e pelas oportunidades de debates e
reflexões.
Aos colegas de escritório, Sylvio, Ana Cândida, Luciana, Josie e Emanuel,
por me acompanharem durante todo esse percurso, ajudando sempre que preciso.
Em especial ao Dr. Paulo Lomar, pelo apoio e discussão de ideias.
A Mariana Mencio, pelo gentil auxílio.
Ao meu marido, por todo seu amor, respeito, constante estímulo e enorme
paciência. Por compreender e aturar tantos dias entre livros, papéis e algum mau-
humor.
5
Ao meu filhinho, de cuja doce companhia precisei abdicar por diversas
vezes, mas que sempre me recebeu, em seguida, com sorriso no rosto, para mais
uma brincadeira.
À minha família, por acreditar em mim e nas minhas realizações mais do que
eu mesma. Laelson, Gláucia, Tessália e Júnior, muito obrigada.
Milton e Eliana, tenho muito a agradecer a vocês também.
Às minhas amigas Alice, Jamille e Anna Sofia que, mesmo longe, sempre
estiveram bem perto.
À Lílian, por dividirmos nossas aventuras acadêmicas.
6
“Não existe meio de verificar qual é a
boa decisão, pois o existe termo de
comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e
sem preparação.”
Milan Kundera
A insustentável leveza do ser
7
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo estudar os reflexos do princípio do devido
processo legal nas decisões da Administração Pública relativas à invalidação das
licenças urbanísticas.
Assim, a dissertação aborda o poder da Administração Pública de impor as
limitações à propriedade e à liberdade dos indivíduos, o conceito e os aspectos
essenciais das licenças urbanísticas, a análise da cláusula do devido processo legal,
sua evolução histórica, sua concepção atual e aplicabilidade no âmbito da
Administração Pública e dos processos administrativos, abrangendo, ainda, a
invalidação das licenças urbanísticas e suas consequências, tais como as possíveis
limitações desse dever de autotutela.
Ao final do trabalho, conclui-se que a observância do princípio do devido processo
legal em suas duas acepções, material e formal, nos processos administrativos para
invalidação das licenças urbanísticas, serve como diretriz para que a Administração
Pública possa, no caso concreto, definir o comportamento mais adequado à
satisfação do interesse público e à manutenção da ordem jurídica, o que poderá se
constituir na efetiva invalidação do ato ou, eventualmente, significar o dever de
estabilizar a situação ilegal e se abster do dever de invalidar em face de outros
princípios jurídicos presentes concretamente, como a segurança jurídica e a boa-fé.
Palavras-chave: Licenças urbanísticas, invalidação do ato administrativo, princípio
do devido processo legal, processo administrativo.
8
ABSTRACT
The goal of the present work is to study the reflexes of the due process of law on the
public administration decisions referring to urban licenses declaration of invalidity.
Therefore, the dissertation analyzes the power of the public administration to impose
limits to individual property and freedom, the concept and the essential aspects of
urban licenses, the due process of law, its historical evolution, its contemporary
concept and applicability in the ambits of public administration and administrative
processes, comprehending also the declaration of invalidity of the urban licenses and
its consequences, such as the possible limits to the juridical duty of the public
administration of controlling its own acts’ legality.
The conclusion drawn from this research was that the observation of the due process
of law in its two aspects, material and formal, in administrative processes for
declaration of invalidity of urban licenses serves as a guideline to the public
administration when defining, in the concrete cases, the most adequate behavior in
order to achieve public interest and maintain the stability of the juridical system,
which can be done through the effective declaration of invalidity of the administrative
act or, eventually, through the stabilization of the legal situation and refrain from
declarating its invalidity in recognition of other juridical principles concretely
present in the case, such as legal certainty and good faith.
Key words: Urban licenses, declaration of invalidity of the administrative act, due
process of law, administrative process.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...........................................................................................................11
CAPÍTULO 1 - AS RESTRIÇÕES IMPOSTAS PELO PODER PÚBLICO
À PROPRIEDADE PRIVADA...........................................................13
1.1 A NOÇÃO DE PROPRIEDADE.......................................................................13
1.2 AS LIMITAÇÕES IMPOSTAS PELO PODER PÚBLICO À LIBERDADE
E À PROPRIEDADE: O PODER DE POLÍCIA...............................................16
CAPÍTULO 2 - AS LICENÇAS URBANÍSTICAS......................................................26
2.1 A LICENÇA ADMINISTRATIVA.......................................................................26
2.2 A LICENÇA URBANÍSTICA.............................................................................35
2.2.1 Licença urbanística como gênero..................................................
.
......39
2.2.2 A natureza jurídica das licenças urbanísticas..............................
.
..
.....40
2.2.3 Competência para expedição das licenças urbanísticas...............
..
...49
2.3 O ASPECTO PROCESSUAL...........................................................................52
2.3.1 O processo de obtenção de licenças....................................................53
2.3.2 O silêncio administrativo..................................................................
.
.....54
CAPÍTULO 3 - PROCESSO ADMINISTRATIVO E DEVIDO PROCESSO
LEGAL...............................................................................................56
3.1 O PROCESSO ADMINISTRATIVO.................................................................56
3.1.1 A importância do processo administrativo....................................
..
....56
3.1.2 Processo ou procedimento administrativo......................................
..
..58
3.2 OS PRINCÍPIOS INFORMADORES DO PROCESSO ADMINISTRATIVO....62
3.2.1 Princípio do contraditório.............................................................
.
........63
3.2.2 Princípio da ampla defesa.................................................................
..
...64
3.2.3 Princípio da oficialidade......................................................................
.
..66
3.2.4 Princípio da verdade material................................................................66
3.2.5 Princípio do formalismo moderado...............................................
..
......67
3.3 O DEVIDO PROCESSO LEGAL......................................................................67
3.3.1 Síntese histórica...........................................................................
..
.........67
10
3.3.2 O devido processo legal no âmbito do processo administrativo.....
..
71
3.3.3 Devido processo legal: sentido formal e material...............................73
CAPITULO 4 - A INVALIDAÇÃO DAS LICENÇAS URBANÍSTICAS.................
.
.
....78
4.1 PANORAMA GERAL DE EXTINÇÃO DAS LICENÇAS...............................
.
...78
4.2 PERFEIÇÃO, VALIDADE E EFICÁCIA DO ATO ADMINISTRATIVO........
..
..
.
.86
4.2.1 Perfeição.............................................................................................
..
...86
4.2.2 Validade...................................................................................................88
4.2.3 Eficácia....................................................................................................89
4.3 CLASSIFICAÇÃO DAS INVALIDADES...........................................................90
4.4 CONVALIDAÇÃO E INVALIDAÇÃO................................................................95
4.4.1 Vício de competência.............................................................................96
4.4.2 Vício de formalidade.......................................................................
..
......97
4.4.3 Vício de requisitos procedimentais......................................................97
4.4.4 Vício de motivo.......................................................................................98
4.4.5 Vício de conteúdo.....................................................................
.
.............98
4.4.6 Vício de causa...................................................................................
.
.....99
4.4.7 Vício de finalidade................................................................................100
4.5 OBJETO DA INVALIDAÇÃO...............................................................
..
.........100
CAPÍTULO 5 - A INVALIDAÇÃO DA LICENÇA URBANÍSTICA
E O DEVIDO PROCESSO LEGAL............... .................................105
5.1 LICENÇA INVÁLIDA E A RESPONSABILIDADE PELOS DANOS
CAUSADOS...................................................................................................105
5.2 LIMITES À INVALIDAÇÃO...........................................................................
.
.110
5.3 O PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL COMO FORMA
DE NORTEAR O DEVER DE INVALIDAR, DA ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA.......................................................................................................120
CONCLUSÃO...................................................................................................
.
.......127
FONTES E BIBLIOGRAFIA.....................................................................................129
11
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo demonstrar os reflexos da
observância do devido processo legal nos processos administrativos em que a
Administração Pública pretende proceder à invalidação de licenças urbanísticas.
Para tanto, essa dissertação apoia-se em obras clássicas do Direito, bem
como em publicações jurídicas mais recentes e específicas.
O estudo terá inicio pela abordagem da noção do direito de propriedade em
sua conformação atual, tomando como base a Constituição da República e o Código
Civil, passando, em seguida, pela análise do poder de polícia, forma pela qual pode
o Poder Público impor limitações à propriedade e à liberdade, sendo este o
fundamento das licenças em geral.
Colocados esses pressupostos, passar-se-á ao estudo dos conceitos de
licença administrativa e de suas características essenciais, para, logo em seguida,
analisar o conceito de licença urbanística, perquirindo, por relevante, as
especificidades que tornaria esta última um instituto distinto, destacando-se, ainda, o
aspecto processual que antecede sua expedição.
Em razão da importância do assunto para o desenvolvimento do trabalho,
será feito um estudo sobre a cláusula do devido processo legal, abrangendo uma
síntese histórica, sua aplicabilidade aos processos administrativos, bem como o
conteúdo de suas acepções formal e material.
12
O trabalho inclui, ainda, um panorama geral das formas de extinção das
licenças, com ênfase no estudo da invalidação e da possibilidade de saneamento da
invalidade, tendo como fundamento a teoria do ato administrativo.
Ao final, passa-se à análise das consequências da invalidação e das
situações em que esse dever de invalidar pode ser afastado em razão de princípios
como a segurança jurídica e a boa-fé, exigindo, para tanto, com maior rigor, a
aplicação da cláusula do devido processo legal.
13
CAPÍTULO 1 - AS RESTRIÇÕES IMPOSTAS PELO PODER PÚBLICO
À PROPRIEDADE PRIVADA
1.1 A NOÇÃO DE PROPRIEDADE
Para o desenvolvimento do presente trabalho, cujo foco principal são as
licenças urbanísticas, necessário se faz passar pela noção de propriedade em seu
contexto atual.
Não é demais lembrar, como fez Lúcia Valle Figueiredo, em sua obra
intitulada Disciplina Urbanística da Propriedade
1
, que qualquer direito, assim como o
direito de propriedade, somente pode ser delineado em face do ordenamento
jurídico vigente em determinado país, em determinado momento.
Diante dessa consideração, entende-se por bem esclarecer que o objetivo
deste trabalho resume-se, tão somente, em apresentar a concepção do direito de
propriedade sob a luz da Constituição e demais leis vigentes em nosso país, e
expondo uma de suas manifestações, o direito de construir, sem aprofundar-se em
toda a evolução histórica do direito de propriedade, tema que, por si só, permitiria
enormes digressões.
Não é demais, contudo, recordar que o direito de propriedade nasceu como
um direito absoluto, exclusivo e perpétuo. Essa concepção de propriedade
1
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Disciplina Urbanística da Propriedade. São Paulo: Malheiros, 2005. p.21.
14
assegurava, ao proprietário, amplos e totais poderes sobre a coisa, abrangendo tudo
o que se encontrasse, inclusive, no subsolo ou na superfície.
Contudo, no início do século XX, ainda afirmando-se os direitos individuais
dos proprietários, essa acepção inicial foi absorvendo, aos poucos, novas ideias, no
sentido de que a propriedade não poderia se restringir à satisfação dos interesses
meramente individuais. Essa ideia da propriedade entendida como função social foi
amplamente difundida por Léon Duguit
2
, por meio de sua obra Les Transformations
Du Droit Privé depuis Le Code de Napoléon.
Observem-se as considerações de Toshio Mukai
3
:
Porém, superado o conceito absolutista de propriedade, como
um direito inviolável e sagrado, pela forma consagrada por
Léon Duguit, para quem a propriedade não é mais o direito
subjetivo do proprietário; é a função do detentor da riqueza”, a
Constituição de 1934 introduz o conceito de função social da
propriedade, herdada da Constituição de Weimer de 1919.
Passa, assim, o exercício do direito de propriedade a ser
restringido pelo interesse social da coletividade, devendo
adequar-se às relações de vizinhança impostas pelo direito civil
e ao interesse social concretizado nas limitações urbanísticas à
propriedade particular.
Houve, portanto, uma evolução no conceito de propriedade, que passou a
ser conformado pelo princípio da função social. O reflexo no texto constitucional de
1988 deu-se com a inclusão, no rol de direitos e garantias fundamentais do art. 5º,
dos seguintes dispositivos:
2
Apud SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo Ordenador. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 62-
3.
3
MUKAI, Toshio. Direito Urbano-ambiental Brasileiro. 2ªed. São Paulo: Dialética, 2002. p.56.
15
XXII – é garantido o direito de propriedade;
XXIII – a propriedade atenderá sua função social;
No que diz respeito à propriedade urbana, a que se limita o presente estudo,
a Constituição da República dispõe em seu art. 182, parágrafo segundo:
A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende
às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas
no plano diretor.
Como se pode inferir da norma constitucional acima, a mudança na
concepção de propriedade, paulatinamente absorvida pelos sistemas jurídicos, veio
produzir reflexos concretos em outros institutos relacionados a ela. A função social
da propriedade urbana está vinculada, como visto, às previsões contidas no plano
diretor. Sobre o assunto, Maria Sylvia Zanella Di Pietro afirma:
Hoje, prevalece o princípio da função social da propriedade,
que autoriza não apenas a imposição de obrigações de não
fazer, como também as de deixar fazer e, hoje, pela
Constituição, a obrigação da fazer, expressa no art. 182, § 4º,
consiste no adequado aproveitamento do solo urbano.
4
Com essas colocações quer-se demonstrar que o antes impensável, impor
ao proprietário do solo algum condicionamento ao seu direito em razão do interesse
da coletividade - visto que esse direito era considerado como absoluto, exclusivo e
perpétuo - passa agora a ser um princípio estruturante do próprio direito de
propriedade, que já nasce conformado por sua função social.
Contudo, essa noção do direito de propriedade, alterado em sua origem, não
impede que venha, posteriormente, a sofrer limitações outras, de forma a
4
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 20ª ed. São Paulo: Atlas, 2007. p.110-1.
16
compatibilizar o seu exercício com o interesse público, consubstanciado nos
regramentos urbanísticos com fundamento no poder de polícia. É o que se verá a
seguir.
1.2 AS LIMITAÇÕES IMPOSTAS PELO PODER PÚBLICO À LIBERDADE E À
PROPRIEDADE: O PODER DE POLÍCIA
Se, por um lado, um direito ou liberdade é juridicamente garantido, por outro,
é necessário que sejam juridicamente limitados, a fim de que todos os cidadãos
possam exercê-los concomitantemente, sem instaurar-se uma situação de conflito
entre eles. Nesse contexto está inserido o chamado poder de polícia.
Vale dizer, essa designação tem sido amplamente criticada e uma das
razões, dada por Celso Antônio Bandeira de Mello, é o fato de abranger “coisas
radicalmente distintas: submetidas a regime de inconciliável diversidade: leis e atos
administrativos”
5
. Há, ainda, a mancha de recordar o Estado de Polícia que
antecedeu o Estado de Direito.
Em razão disso, o tema tem sido tratado sob o título de limitações à
liberdade e à propriedade. Contudo, uma vez feitas as ressalvas acima e delimitando
com maior clareza o que se entende por poder de polícia, far-se-á o uso dessa
expressão já tão consolidada no Direito Administrativo pátrio.
5
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 26ªed. São Paulo:
Malheiros, 2009. p.815.
17
Celso Antônio Bandeira de Mello
6
, em seu célebre Curso de Direito
Administrativo, introduz o estudo do tema com as seguintes considerações:
Através da Constituição e das leis os cidadãos recebem uma
série de direitos. Cumpre, todavia, que o seu exercício seja
compatível com o bem-estar social. Em suma, é necessário
que o uso da liberdade e da propriedade esteja entrosado com
a utilidade coletiva, de tal modo que não implique uma barreira
capaz de obstar a realização dos objetivos públicos.
Por sua vez, pondera Maria Sylvia Zanella Di Pietro
7
:
O tema relativo ao poder de polícia é um daqueles em que se
colocam em confronto esses dois aspectos: de um lado, o
cidadão quer exercer plenamente os seus direitos; de outro, a
Administração tem por incumbência condicionar o exercício
daqueles direitos ao bem estar coletivo e ela o faz usando de
seu poder de polícia.
Acrescenta, ainda, a autora, que os poderes abrangidos pelo direito de
propriedade não podem ser exercidos de forma ilimitada, visto que “coexistem com
direitos alheios, de igual natureza, e porque existem interesses blicos maiores,
cuja tutela incumbe poder público exercer, ainda que em prejuízo de interesses
individuais”. Resta, portanto, bem esclarecido, o fundamento do poder de polícia do
Estado.
Como se depreende do estudo do assunto, a primeira acepção do tema
estava ligada à atividade, pela Administração, da contenção dos abusos de direito
por parte dos particulares (conteúdo eminentemente repressivo) ou, ainda, em impor
limitação ao exercício de direitos em decorrência do interesse público.
6
Ibidem. p.705.
7
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit., 2007. p.101.
18
Entretanto, o poder de polícia vai além, podendo disciplinar de forma
preventiva, conforme esclarece Edmir Netto de Araújo
8
:
Por outro lado, além de atuar na forma repressiva, a atividade
de polícia também passou a disciplinar preventivamente
situações específicas, o que veio a lhe retirar aquela conotação
negativa inicial, de vedações ou proibições, para admitir a
imposição de comportamentos e disciplina de eventos,
adequando o exercício dos direitos individuais ao bem estar
comum.
No direito brasileiro, existe a definição de poder de polícia no Código
Tributário Nacional, em seu art. 78, visto que seu exercício é fato gerador da taxa
(art. 145, inciso II , da Constituição):
Considera-se poder de polícia a atividade da administração
pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou
liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em
razão do interesse público concernente à segurança, à higiene,
à ordem, aos costumes e à disciplina da produção e do
mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes
de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade
pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais
ou coletivos.
Os conceitos de poder de polícia dados pela doutrina pátria não se mostram
muito divergentes. Para Di Pietro
9
, poder de polícia é a “atividade do Estado
consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse
público”.
Hely Lopes Meirelles, ao seu passo, designa como poder de polícia “a
faculdade de que dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso
8
ARAÚJO, Edmir Netto de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005. p.981.
9
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit., p.103.
19
e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do
próprio Estado”
10
.
De forma semelhante, Toshio Mukai
11
sustenta que poder de polícia “é a
faculdade, inerente à Administração Pública, para disciplinar e restringir atividades, o
uso e gozo de bens e de direitos, bem como as liberdades dos administrados, em
benefício da coletividade.
A seu turno, Celso Antônio Bandeira de Mello
12
seu conceito de poder de
polícia, em sentido amplo, como sendo uma atividade estatal de limitação da
propriedade e da liberdade por meio de leis e de atos administrativos. Desse modo,
essa acepção abarcaria os atos emanados do Poder Legislativo (leis) e os do Poder
Executivo (tanto atos gerais e abstratos, como regulamentos, quanto atos
administrativos concretos, como licenças e autorizações).
Contudo, em sentido estrito, a expressão se reporta tão somente aos atos
expedidos pelo Poder Executivo, conforme bem delineado nas palavras do
referido mestre
13
:
A expressão “poder de polícia” pode ser tomada em sentido
mais restrito, relacionando-se unicamente com as intervenções,
quer gerais e abstratas, como os regulamentos, quer concretas
e específicas (tais as autorizações, as licenças, as injunções),
do Poder Executivo destinadas a alcançar o mesmo fim de
prevenir e obstar ao desenvolvimento de atividades particulares
contrastantes com os interesses sociais. Esta acepção mais
limitada responde à noção de polícia administrativa.
10
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 33ªed. São Paulo: Malheiros, 2007.
p.131.
11
MUKAI, Toshio. Direito Administrativo Sistematizado. 2ªed. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p.103.
12
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., 2009. p.797.
13
Ibidem. p.798.
20
Como características do poder de polícia, a doutrina é relativamente pacífica
em apontar a auto-executoriedade, a coercibilidade e a discricionariedade
14
. Essa
primeira característica diz respeito à possibilidade do Poder Público de executar, por
seus próprios meios, as suas decisões, sem necessidade de recorrer ao Poder
Judiciário. A coercibilidade, se refere à imposição coativa das decisões tomadas pela
Administração.
Quanto à discricionariedade, Di Pietro
15
destaca que essa margem de
liberdade deixada ao administrador se dá somente quanto a certos elementos. Ainda
assim, apesar de estar presente na maioria das medidas de polícia, também
aquelas nas quais a atuação administrativa se dá vinculadamente.
Celso Antônio Bandeira de Mello
16
, temendo a má interpretação da assertiva
de que o poder de polícia é uma atividade discricionária, faz questão de ressaltar ser
tal afirmação só válida enquanto entendido o poder de polícia em seu sentido amplo,
como atribuído ao Poder Legislativo, abarcando as leis condicionadoras da liberdade
e da propriedade voltadas ao bem estar coletivo, visto que no Estado de Direito não
se pode falar em um poder, propriamente dito, que seja discricionário fruível pela
Administração Pública”. E acrescenta:
Há, isto sim, atos em que a Administração Pública pode
manifestar competência discricionária e atos a respeito do
quais a atuação administrativa é totalmente vinculada. Poder
discricionário abrangendo toda uma classe ou ramo de atuação
administrativa é coisa que não existe.
14
A exemplo do que faz Di Pietro e Hely Lopes Meirelles. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit.,
2007. MEIRELLES, Hely Lopes. Op. cit., 2007.
15
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit., 2007. p.107-8.
16
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., 2009. p.829-30.
21
No caso específico da polícia administrativa é fácil demonstrá-
lo. Basta considerar que, enquanto as autorizações, atos
típicos da polícia administrativa, são expedidas no uso de
competência exercitável discricionariamente, as licenças,
igualmente expressões típicas dela, são atos vinculados,
consoante pacífico entendimento da doutrina.
Em suma, não seria exato afirmar ter, o poder de polícia, necessariamente, a
característica da discricionariedade, o que resta comprovado pela existência da
atuação vinculada da polícia administrativa no caso das licenças.
Colocadas essas considerações acerca do poder de polícia e seu
fundamento, e associando-se as noções acerca do direito de propriedade, claro está
que, se por um lado tal direito nasce com uma conformação influenciada pelo
princípio da função social a que está submetido constitucionalmente, por outro, pode
sofrer ainda novas delimitações em seus contornos, decorrentes das leis aplicadas
aos casos concretos pela Administração Pública.
Essas limitações impostas à propriedade em decorrência do poder de polícia
são classificadas de maneira bastante variada pelos autores. Um pequeno
apanhado é suficiente para demonstrar essa diversidade. Observa-se na doutrina de
Hely Lopes Meirelles
17
que tais restrições albergam as seguintes espécies: limitação
administrativa, servidão administrativa e desapropriação.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro
18
expressa seu posicionamento afirmando
existirem as seguintes modalidades de restrição do Estado sobre a propriedade
17
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito de Construir. 9ªed. São Paulo: Malheiros, 2005. p.87.
18
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit., 2007. p.111-2.
22
privada: limitação administrativa, ocupação temporária, tombamento, requisição,
servidão administrativa, desapropriação, parcelamento e edificação compulsórios.
De sua parte, José Afonso da Silva
19
entende que as limitações ao direito de
propriedade, de acordo o ramo do direito em que se fundam, podem ser dispostas
em duas categorias: limitações de direito privado e limitações de direito público.
Dentre estas, estão as limitações de direito constitucional, de direito administrativo e
de direito urbanístico e, dentre estas, por sua vez, encontram-se as restrições, as
servidões e a desapropriação.
As limitações administrativas (para o autor acima referido corresponderiam à
restrição administrativa) interferem no caráter absoluto do direito de propriedade, ou
seja, abrangeria a faculdade do proprietário de retirar do bem as vantagens que ele
lhe possa gerar, o direito de usar, modificar, ocupar e alienar, se assim o desejar. As
demais características, exclusividade e perpetuidade, permaneceriam intocadas
nessa hipótese
20
.
Em razão de constituírem uma delimitação do direito de propriedade
podendo o proprietário exercer seus direitos de acordo com os regramentos
impostos pelo Poder blico - a doutrina é pacífica ao afirmar que as limitações
administrativas não geram direito a indenização. Noutras palavras, como não
sacrificam direito - interferindo diretamente na sua conformação e exercício, em
19
SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 4ªed. São Paulo: Malheiros, 2006. p.399.
20
Ibidem. p.400.
23
razão do restante da sociedade - não haveria, portanto, o que ser indenizado. A
esse respeito, observem-se as considerações feitas por Adilson Abreu Dallari
21
:
Ao estabelecer limitações administrativas, a lei não lesa quem
quer que seja, não sacrifica direitos, mas, assim, apenas
estabelece os contornos do direito de propriedade, daí porque
não se que falar em indenização pelo fato de a lei posterior
ter estabelecido limitações mais estreitas do que as
anteriormente existentes.
Suponha-se que alguém era detentor de um terreno no qual
alguém poderia construir cinco andares, mas a lei nova reduziu
esse limite para três andares. Certamente houve uma perda
econômica, mas não um sacrifício de direito: não houve
“desapropriação” de dois andares, não cabendo, portanto,
qualquer indenização.
A inexistência de direito à indenização é destacada também por Celso
Antônio Bandeira de Mello
22
:
Portanto, as limitações ao exercício da liberdade e da
propriedade correspondem à configuração de sua área de
manifestação legítima, isto é, da esfera jurídica da liberdade e
da propriedade tuteladas pelo sistema. É precisamente esta a
razão pela qual as chamadas limitações administrativas à
propriedade não são indenizáveis. Posto que através de tais
medidas de polícia não interferência onerosa a um direito,
mas tão-só definição que giza suas fronteiras, inexiste o
gravame que abriria ensanchas a uma obrigação pública de
reparar.
Tais conclusões decorrem da diferenciação, feita pelo referido autor em seu
Curso de Direito Administrativo
23
, entre o direito e sua expressão concreta. Segundo
ele, “não se deve confundir liberdade e propriedade com direito de liberdade e direito
de propriedade. Estes últimos são as expressões daquelas, porém tal como
21
DALLARI, Adilson Abreu; DI SARNO, Daniela Campos Libório (Coord.). Direito Urbanístico e
Ambiental. Belo Horizonte: Fórum, 2007. p.34-5.
22
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., 2009. p.813-4.
23
Ibidem. p.811.
24
admitidas em um dado sistema normativo”: Em razão disso, conclui ser descabido
falar em limitações administrativas ao direito de propriedade, que estas
determinam a própria estrutura do direito, sendo correto falar, portanto, em
limitações à propriedade, donde retira as razões para concluir que as limitações
administrativas não geram indenização ao proprietário.
Destaque-se, as limitações ora analisadas não retiram a substância mínima
do direito de propriedade
24
, restringindo, como visto, seu caráter absoluto sem,
entretanto, suprimir a exclusividade e perpetuidade do direito.
Nesse aspecto, relevante destacar as considerações de Berçaitz que se a
limitação chegar ao extremo de se constituir numa proibição, destruição ou mesmo
confisco do bem, deixa de ser razoável
25
. E, nesse caso, mesmo a transmutação
para outra categoria jurídica, deixando de consistir em limitação administrativa.
Nessa hipótese seria possível falar-se em indenização.
Em face do acima exposto, compreende-se a importância das limitações à
propriedade privada como instrumento de realização da atividade urbanística pelo
Poder Público, tendo em vista a possibilidade de impor ao particular obrigações de
não fazer, de deixar de fazer e, até mesmo, obrigações de fazer.
26
Acresça-se, a Lei 10.257, de 10 de julho de 2001, o chamado Estatuto da
Cidade, enumera as limitações administrativas como um dos instrumentos jurídicos e
24
SILVA, José Afonso da. Op. cit., 2006. p.400.
25
BERÇAITZ, Miguel Angel. Problemas Jurídicos del Urbanismo. Buenos Aires: Abeledo Perrot,
1972. p.45.
26
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit., 2007. p.110-1.
25
políticos a serem utilizados pela Administração Pública para a execução da política
urbana.
Destaque-se, ainda, que o poder de polícia deverá ser exercido pelo ente
competente para legislar sobre a matéria, como se verá oportunamente.
Essas considerações acerca das limitações administrativas à liberdade e à
propriedade (mais enfaticamente a esta), muito conhecidas como poder de
polícia, esclarecem, portanto, a natureza do instituto principal do presente estudo, as
licenças urbanísticas, visto ser essa uma de suas expressões. Essa compreensão
facilitará, portanto, a apreensão de suas características específicas, estudadas com
mais detalhes no capítulo a seguir
27
.
27
Diferentemente do exposto, Lúcia Valle Figueiredo não fundamenta as limitações administrativas e
urbanísticas no poder de polícia. A autora, ao fim da análise do poder de polícia e a interferência do
Estado na propriedade, conclui: Não verificamos, de conseguinte, qualquer ligação necessária entre
‘poder de polícia’ e a disciplina urbanística da propriedade.” FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Op. cit., 2005.
p.31.
26
CAPÍTULO 2 - AS LICENÇAS URBANÍSTICAS
2.1 A LICENÇA ADMINISTRATIVA
Nos dias de hoje, é inegável a autonomia adquirida pelo Direito Urbanístico
em nosso Direito (considerado, pois, como um ramo específico), constando tal
expressão até mesmo no próprio texto constitucional (art. 24, inciso I
28
). Embora
autônomo, parece não haver controvérsias na afirmação de que a raiz da maioria de
seus institutos está no Direito Administrativo, como as próprias licenças, as
autorizações, a desapropriação, o tombamento, entre outros.
Portanto, o estudo de diversos institutos utilizados pelo Direito Urbanístico
conduzem à necessidade de sua análise a partir de suas origens. Assim se passa
com a licença urbanística a exigir, para sua compreensão, uma retomada de
diversos tópicos de estudo do Direito Administrativo.
Esse entendimento resta bastante explícito nas palavras de Márcia Walquíria
Batista dos Santos:
A licença urbanística nada mais é do que uma das ramificações
da licença administrativa. A essência da licença, como ato
unilateral, vinculado e que pressupõe a existência de direito
precedente, é mantida no Direito Urbanístico.
29
É certo, porém, que a inserção desse instrumento no contexto jurídico
urbanístico lhe atribuiu novas características, em razão da finalidade específica que
28
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
I – direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico;
29
SANTOS, Márcia Walquíria Batista dos. Licença urbanística. São Paulo: Malheiros, 2001. p.98.
27
passou a ter, a ser visto adiante. Primeiramente, far-se-á o estudo da licença, como
concebida pelo Direito Administrativo.
O termo licença refere-se, de acordo com a classificação de Celso Antônio
Bandeira de Mello, a um ato administrativo em espécie, classificado em relação ao
seu conteúdo, consistindo em:
ato vinculado, unilateral, pelo qual a Administração faculta a
alguém o exercício de uma atividade, uma vez demonstrado
pelo interessado o preenchimento dos requisitos legais
exigidos.
30
Em construção assemelhada, Maria Sylvia Zanella Di Pietro averba: “Licença
é o ato administrativo unilateral e vinculado pelo qual a Administração faculta àquele
que preencha os requisitos legais o exercício de uma atividade”
31
.
No mesmo sentido, a doutrina de Lúcia Valle Figueiredo: “Licenças o atos
vinculados, que facultam ao beneficiário o desfrute de situação regulada pela norma
jurídica.”
32
De modo geral, os conceitos acima transcritos, como também de outros
dados pela doutrina, apontam as características essenciais do instituto, havendo
assim uma grande semelhança entre eles. A característica comum indicada pelos
autores apontados é que a licença é um ato administrativo vinculado, ou seja, a lei
determina objetivamente todos os requisitos para sua prática. Não pode, a
30
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 26ªed. São Paulo:
Malheiros, 2009. p.432.
31
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2007. p.213.
32
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
p.183.
28
Administração Pública, desse modo, afastar-se dos ditames legais para a outorga,
não lhe cabendo, portanto, qualquer juízo de discricionariedade (de conveniência e
oportunidade), cabendo-lhe analisar de forma objetiva o preenchimento, por parte do
interessado, das condições impostas pela lei para a obtenção da licença.
Muito se escreveu, e ainda se escreve, sobre o tema da vinculação e
discricionariedade dos atos administrativos, tão caro ao Direito Administrativo. No
presente trabalho, essa distinção se restringirá a uma síntese suficiente para a
adequada compreensão do conceito de licença, ato vinculado, e sua diferenciação
de institutos assemelhados, como a autorização, visando separação adequada entre
esses institutos.
Celso Antônio Bandeira de Mello
33
explica que os fundamentos da
discricionariedade podem ser das mais diferentes ordens. Em síntese, poder-se-ia
afirmar, somente porque a lei almeja a solução perfeita, adequada às situações
concretas, havendo, entretanto, infinitas possibilidades, é que se vê obrigada a
outorgar ao agente certa margem de liberdade para ele, fazendo uma avaliação das
circunstâncias, poder alcançar a verdadeira finalidade da norma.
Em decorrência desse pressuposto, a discricionariedade pode ser verificada
em duas circunstâncias: quando a lei se utiliza de certos conceitos imprecisos, que
vão necessitar de certa apreciação subjetiva do agente público, ou quando descreve
a situação de fato em termos objetivos, mas ao legislador certa margem de
liberdade, relativas a praticar ou não o ato, o momento adequado para fazê-lo, ou
33
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2ªed. São Paulo:
Malheiros, 2006. p.9-48.
29
optar pela forma do ato, ou autorizando o agente a decidir acerca de pelo menos
duas alternativas.
Importante ressaltar que o motivo e a finalidade indicados na lei para a
prática do ato em questão servirão de baliza para o exercício da discricionariedade
administrativa. Além disso, quando a discricionariedade existir em relação a
conceitos plurissignificativos, diante da situação concreta, essa zona de incerteza do
conceito se restringe, até se chegar ao ponto em que as soluções possíveis
atenderão, todas, à finalidade buscada pela lei.
Pode-se, em apertada síntese, expor assim o entendimento do autor:
- Atos ditos discricionários, e que melhor se denominariam atos praticados no
exercício de competência discricionária, são os que a Administração pratica
dispondo de certa margem de liberdade para decidir-se, pois a lei regulou a matéria
de modo a deixar campo para uma apreciação que comporta certo grau de
subjetivismo.
- Atos vinculados são os que a Administração pratica sem margem alguma de
liberdade para decidir-se, pois a lei previamente tipificou o único possível
comportamento diante de hipótese prefigurada em termos objetivos. Dentre esses
incluem-se as licenças urbanísticas, como entende de maneira bastante tranquila a
doutrina brasileira.
30
Como visto em outros autores, também Luís Manuel Fonseca Pires
34
, ao
analisar o caráter vinculado das licenças, entende que tal aspecto lhe atribuí um
caráter de definitividade:
E ainda por ser a licença um ato vinculado deve comportar um
caráter de definitividade, ou seja, não espaço à
Administração, em princípio, para unilateralmente retirar a
licença do seu titular, o que, contudo, não deve ser confundido
com a hipótese perfeitamente válida de a própria lei
estabelecer um prazo para a sua eficácia, como ocorre, à guia
de exemplo, com a licença que se obtém para dirigir veículos
automotores.
Entenda-se, então, que a licença não é precária porque não
incerteza quanto ao termo final daí se dizer que
definitividade -, mas é absolutamente compatível ao conceito a
idéia de termo certo para a extinção de seus efeitos, o que não
impede, como é importante realçar, a possibilidade de
renovação da licença por novo lapso.
Essa presunção de definitividade das licenças é ressaltada por Hely Lopes
Meirelles
35
:
Licença é o ato administrativo vinculado e definitivo pelo qual o
Poder Público, verificando que o interessado atendeu todas as
exigências legais, faculta-lhe o desempenho de atividades ou a
realização de fatos materiais antes vedados ao particular,
como, por exemplo, o exercício de uma profissão, a construção
de um edifício em terreno próprio. A licença resulta de um
direito subjetivo do interessado, razão pela qual a
Administração não pode negá-la quando o requerente satisfaz
todos os requisitos legais para sua obtenção, e, uma vez
expedida, traz a presunção de definitividade. Sua invalidação
pode ocorrer por ilegalidade na expedição do alvará, por
descumprimento do titular na execução da atividade ou por
interesse público superveniente, caso em que se impõe a
correspondente indenização.
34
PIRES, Luís Manuel Fonseca. Regime jurídico das licenças. São Paulo: Quartier Latin, 2006. p.20.
35
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 33ªed. São Paulo: Malheiros, 2007.
p.177.
31
Em razão do exposto, essa presunção de definitividade parece ir além da
presunção de legitimidade
36
, presente nos atos administrativos em geral. Além de
denotar a presunção do ato ter sido praticado em conformidade com todas as
disposições legais pertinentes, ou seja, estando conforme as leis e o Direito, infere-
se que ele tem sua duração no tempo presumivelmente assegurada, proporcionando
certo grau de segurança jurídica ao interessado, no sentido de que - e aqui se
remete à doutrina de Canotilho
37
- esse ato do Poder Público, que incide sobre sua
esfera de direitos, seria relativamente estável, possuindo efeitos duradouros,
previstos e calculados com base nesse mesmo ato.
Desse modo, a presunção de definitividade, como destacado pelo próprio
Hely Lopes Meirelles, tem consequências diretas na invalidação da licença, que
serão vistas mais detidamente adiante.
Ainda sobre as características essenciais das licenças, alguns autores
destacam o fato de que elas são atos administrativos declaratórios de direitos,
utilizando, como parâmetro de comparação, as autorizações, as quais seriam
constitutivas de direitos. É o que faz, por exemplo, Oswaldo Aranha Bandeira de
Mello
38
. Esse aspecto, contudo, será analisado no tópico a seguir, quando do estudo
das licenças urbanísticas especificamente.
36
Esse é também um aspecto do ato administrativo que enseja diferentes posicionamentos por parte
dos doutrinadores. Para Celso Antônio Bandeira de Mello, a presunção de legitimidade é um atributo
do ato administrativo que faz com que se presumam verdadeiros e conformes ao Direito, até prova
em sentido contrário. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., 2009. p.413.
Para Lúcia Valle Figueiredo, os traços fundamentais do regime jurídico do ato administrativo
relacionados seriam a sua estrita conformidade à lei e ao direito e a presunção juris tantum de
legitimidade. FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Op. cit., 2006. p.177.
37
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra:
Almedina, 2007. p.257 e sgs.
38
BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios Gerais de Direito Administrativo. ed. São
Paulo: Malheiros, 2007. p.577-8.
32
Outra característica presente no conceito de licença administrativa é o da
unilateralidade. Nesse ponto, faz-se importante recordar que o nome licença é usado
para designar um determinado conjunto de atos administrativos de aspectos
semelhantes. Em outras palavras, trata-se de uma espécie de ato administrativo em
sentido estrito, classificado em relação ao seu conteúdo, e esses atos são, por sua
vez, assim definidos, por Celso Antônio Bandeira de Mello
39
:
declaração unilateral do Estado no exercício de prerrogativas
públicas, manifestadas mediante comandos concretos
complementares à lei (ou, excepcionalmente, à própria
Constituição, de modo plenamente vinculado) expedidos à
título de lhe dar cumprimento e sujeitos a controle de
legitimidade por órgão jurisdicional.
Assim, compreende-se a unilateralidade das licenças como uma
característica essencial desse instituto. Por outro lado, para deflagração do processo
de licenciamento é necessária a solicitação pelo próprio interessado, devendo haver,
por certo, sua participação ativa, como também em outros momentos do processo
que antecede a outorga. Contudo, não se questiona que o ato final, o qual recebe o
nome de licença, seja inequivocamente um ato administrativo unilateral, visto não
ser resultante de um acordo de vontades.
Em tendo sido mencionada a participação do interessado, acrescente-se
aqui, por oportuno, que a licença é um ato administrativo em sentido estrito, ou seja,
é dotado de concreção, não é geral, destinado a uma categoria de sujeitos
indeterminados, mas consubstancia-se na aplicação da lei em um caso concreto. É,
39
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., 2009. p.380.
33
ainda, um ato administrativo individual (singular ou não, caso dirija-se a um ou mais
sujeitos).
Luís Manuel Fonseca Pires formula seu conceito enfatizando esse aspecto
de que a licença é um ato administrativo e que se dá, portanto, no exercício da
função administrativa:
Por ser ato administrativo, reveste-se de todas as
características inerentes a este instituto, isto é, como
acolhemos o conceito de ato administrativo de Lúcia Valle
Figueiredo, devemos considerar que a licença é expressão da
função administrativa e, portanto, submete-se ao regime
jurídico administrativo, e como todo ato administrativo, a licença
é ato unilateral e individual, é dizer, não resulta de um
consenso de vontades em sua elaboração e não se dirige a um
número indeterminado de destinatários porque é uma norma
concreta
40
.
Hely Lopes Meirelles insere as licenças entre os atos administrativos
negociais que são, na verdade, atos em que a declaração do Poder Público coincide
com a pretensão do particular, podendo ter como objetivo a realização de negócios
jurídicos públicos ou à atribuição de vantagens ou direitos ao interessado,
mantendo, porém, a característica de manifestação unilateral da Administração
41
.
Com esteio na doutrina de Enterría e Fernandéz
42
, bem como na de Celso
Antônio Bandeira de Mello
43
, as licenças podem ser classificadas, ainda, como atos
ampliativos de direito. De acordo com os primeiros, tais atos podem favorecer o
destinatário com a ampliação de seu patrimônio jurídico, com a outorga ou
40
PIRES, Luís Manuel Fonseca. Op. cit., 2006. p.18.
41
MEIRELLES, Hely Lopes. Op. cit, 2007. p.187.
42
ENTERRÍA, Eduardo Garcia de; FERNANDÉZ, Tomás-Ramón. Curso de Direito Administrativo.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p.494.
43
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., 2009. p.389.
34
reconhecimento de um direito ou faculdade ou, ainda, liberando-o de uma limitação,
dever ou gravame, resultando, em qualquer hipótese, num resultado vantajoso para
o particular.
Importante salientar, a licença não se confunde com o alvará, que é apenas
o meio pelo qual aquele ato administrativo se externa. Alvará é, portanto, apenas a
forma.
Com relação à natureza jurídica da licença, é um aspecto bastante
controverso na doutrina, havendo posicionamentos no sentido de que, como apenas
reconhece um direito preexistente, seria um ato meramente declaratório. Outros
autores, demonstrando entendimento diverso, veem a licença como constitutivo de
direito ou, ainda, como ato constitutivo-formal. Esse assunto será retomado adiante,
quando for estudada a licença urbanística.
Em síntese, de todas as considerações expostas, pode-se afirmar que a
licença, sendo um ato administrativo em sentido estrito, tem como características
essenciais: a vinculação (exercício da competência), a unilateralidade (expedida por
um sujeito apenas, a Administração Pública), a concreção (ato que particulariza a
norma em um caso específico, em oposição à generalidade), a individualidade (tem
por destinatário um sujeito ou sujeitos determinados), a definitividade (pressupõe a
conformidade com o direito e a duração no tempo presumivelmente assegurada) e
constituir-se como ato negocial e ampliativo de direito. em relação aos seus
efeitos, a licença permite a um dado sujeito a prática de determinada atividade ou
35
direito e funciona como um meio de limitação do exercício do direito dos particulares,
pelo do Poder Público.
2.2 A LICENÇA URBANÍSTICA
Como mencionado anteriormente, a licença urbanística tem, em princípio, as
mesmas características da licença administrativa, tendo sido apontadas, no tópico
anterior, aquelas consideradas principais para o presente estudo. Contudo, a sua
finalidade específica de conformar a propriedade urbana à prescrição definida em
lei, com viés urbanístico, lhe acrescenta certas particularidades.
José Afonso da Silva afirma a própria transformação da natureza da licença,
fazendo nascer uma peculiar licença urbanística:
Essa transformação da natureza das licenças que atuam no
campo urbanístico, mediante as quais se controla um sem-
número de atividades urbanísticas de diversas índoles a
ponto de passarem a ser denominadas licenças urbanísticas,
antes que meras licenças de construção -, foi bem assinalada
por Clavero Arevalo, advertindo que estas “licenças”, sem
deixar de constituir uma atividade de polícia, enquanto
controlam o exercício de direitos subjetivos, converteram-se
também num instrumento de execução do urbanismo e por elas
não se controla tão-só a estética de um projeto ou sua
acomodação às normas da polícia da construção, mas sua
acomodação ao planejamento urbanístico, ao plano de etapas,
à urbanização programada.
44
Essa transposição do conceito de licença administrativa para o âmbito do
Direito Urbanístico é percebida também na formulação de José Marcelo Ferreira
Costa:
44
SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2006. p.440-1.
36
No capítulo anterior apresentamos o regime jurídico que
permeia a licença administrativa. Agora, a operação a ser
desenvolvida pretenderá contrastar o assunto pertinente às
licenças administrativas quando relacionadas aos espaços
urbanos. Melhor esclarecendo: iremos concluir que as licenças
administrativas, oportunamente destinadas ao disciplinamento
da atuação dos interessados nas propriedades localizadas nos
espaços urbanos, ou a ele equiparáveis, recebem o rótulo de
licenças urbanísticas.
Nesse diapasão, entendemos que a prescrição estatal firmada
sob o regime da licença urbanística consubstancia-se no
provimento decorrente do poder de polícia administrativa,
exercitado à luz da competência vinculada, destinado a
constituir uma relação jurídica de caráter ampliativo de direito
entre o Poder Público e o interessado, a propósito dos espaços
urbanos ou a ele equiparáveis (solo urbanizável).
45
Independentemente do grau de transformação que se admita, não como
negar, todas aquelas características da licença administrativa estão também
presentes na licença urbanística.
Essa ideia mostra-se também presente no desenrolar do texto de José
Afonso da Silva:
As licenças urbanísticas, mormente as edilícias, são
informadas por alguns princípios gerais, tais como: (a)
necessidade, no sentido de que o interessado é obrigado a
requerê-las nos casos em que o exercício de sua atividade as
exija; no sentido de sua indispensabilidade e de que são
insubstituíveis, valendo dizer que a Administração urbanística
não poderá dispensá-las nem substituí-las por outra exigência
ou compensação; (b) caráter vinculado, que se manifesta no
momento de sua outorga, entendendo-se, por isso, que não
podem ser legitimamente negadas quando o requerente
demonstra ter preenchido todas as exigências e requisitos
previstos em lei para o exercício da faculdade licenciável, sem
embargo da existência de boa margem de discricionariedade
técnica da Administração; (c) transferibilidade, segundo lição de
Hely Lopes Meirelles: “transmite-se automaticamente aos
sucessores com a alienação do imóvel, não sendo lícito à
Prefeitura opor-se à expedição ou transferência do alvará ao
novo proprietário ou compromissário comprador”; (d)
autonomia, no sentido de que não têm efeito relativamente às
45
COSTA, José Marcelo Ferreira. Licenças urbanísticas. Belo Horizonte: Fórum, 2004. p.80.
37
relações privadas do requerente, pelo quê a Administração não
pode discutir a propriedade dos terrenos para os quais se
solicita as licenças, a fim de não se envolver em questões civis
para as quais não é competente; a outorga da licença,
portanto, não prejulga questões de domínio, nem prejudica
direitos de terceiros; (e) definitividade, dentro, porém, de prazo
de vigência a que ficam subordinadas, nos termos da lei, e sem
embargo da possibilidade de invalidação e de revogação em
certas circunstâncias, que veremos. As licenças de localização
e de funcionamento de atividades são outorgadas, por regra,
apenas por um ano
46
.
Doutra margem, como se disse, além das características que são
somadas à licença administrativa, também a sua finalidade lhe um caráter
especial, como se dos pressupostos objetivos delineados pelo autor acima
referido, que seriam a execução de construções (incluídas as edificações,
instalações, reconstruções, reformas e demolições) e a localização e funcionamento
de atividades comerciais, industriais, institucionais ou de prestação de serviços.
Conveniente acrescentar, ainda, uma diferenciação das licenças
urbanísticas em relação às licenças administrativas, o fato daquelas serem
outorgadas, normalmente, com prazo de vigência. Seria razoável, portanto,
questionar se a definitividade, ora vista como característica essencial do instituto,
pode ser considerada presente também nas licenças urbanísticas, como aspecto
fundamental.
Impende, primeiramente, destacar a natureza desse chamado prazo de
vigência dado às licenças urbanísticas. Esse prazo seria um período de tempo que o
titular da licença disporia para o exercício do direito nela consubstanciado. No caso
46
SILVA, José Afonso da. Op. cit., 2006. p. 441.
38
de uma licença para construir, o particular deve dar início às obras dentro do prazo
estabelecido sob pena de não mais poder vir a fazê-lo.
Como destacado por José Afonso Da Silva, esse prazo não tem, na verdade,
natureza de prazo prescricional, como é comum atribuir-lhe. Ao contrário, constitui-
se, na verdade, de prazo de perempção, “cujo transcurso, sem utilização da licença,
conduz a caducidade desta
47
. Expõe, mais adiante, o autor citado:
Trata-se, em verdade, de prazo de perempção, que é prazo
que torna sem efeito um ato e os direitos dele decorrentes, em
concreto; vale dizer: torna caduco o ato com os direitos dele
defluentes.
A caducidade da licença ocorre, pois, com o transcurso do
prazo de preempção quando, durante ele, não se tiver dado
início às obras licenciadas. Mas também se prevê a caducidade
em conseqüência de paralisação prolongada da obra ou de
uma delas, no caso de conjunto; a legislação marca o prazo de
interrupção capaz de gerar esse efeito.
Diga-se ainda que no caso de transcorrido tal prazo de perempção de uma
licença, é possível requerer uma nova aprovação do projeto.
Voltando à questão, se a existência de tais prazos poderia retirar das
licenças urbanísticas o caráter de definitividade, necessário recordar, embora
brevemente, o que foi dito a esse respeito.
Essa característica, a definitividade, teria, em síntese, dois aspectos. O
primeiro, significando a presunção do ato ter sido produzido em conformidade com a
ordem jurídica e que, portanto, somente poderia ser revisto ou retirado do mundo
jurídico por razões de ilegalidade ou interesse público superveniente, situação na
47
Ibidem. p.450-1.
39
qual seria necessária a indenização do particular. O segundo, decorrente do
primeiro, a de sua duração no tempo presumivelmente assegurada, em
conformidade com o princípio da segurança jurídica.
Ao que se vê, a instituição do prazo de perempção para as licenças
urbanísticas não prejudica em nada as características decorrentes da sua
definitividade. Ou, por outro lado, tal prazo não é capaz de lhe atribuir precariedade,
visto que a esse conceito estaria atribuída a noção de sujeição à sua retirada, a
qualquer momento e a critério da Administração, sem qualquer direito à indenização.
2.2.1 Licença urbanística como gênero
Como estudado, a licença urbanística corresponde a uma espécie do gênero
licença administrativa. Entretanto, licença urbanística, por sua vez, corresponde a
um subgênero.
Analisando a doutrina sobre licenças urbanísticas, nota-se a inexistência de
precisão terminológica no uso da expressão. Em algumas situações, licença
urbanística é utilizada como sinônimo de licença para construir, noutras, se
constituiria, como dito, também a um gênero (ou subgênero), abarcando espécies
tais como a própria licença para edificar, demolir, localização e funcionamento, entre
outras
48
.
48
A exemplo do que faz José Afonso da Silva (op. cit., 2006) e José Marcelo Ferreira Costa (op. cit.,
2004).
40
Partindo-se da compreensão atual do Direito Urbanístico como o ramo do
Direito Público que abrange as normas relativas à ordenação dos espaços
habitáveis, com vistas a proporcionar às pessoas condições de habitar, trabalhar,
circular e obter lazer com qualidade de vida, ele não se restringe, portanto, ao direito
de construir. Desse modo, a utilização do adjetivo urbanístico deverá corresponder,
na medida do possível, a essa noção mais ampla e atual.
Assim, seriam consideradas licenças urbanísticas todas aquelas que
tivessem como finalidade a ordenação dos espaços habitáveis, ou seja, do uso e
ocupação do solo urbano, ainda que não diretamente relacionados ao direito de
construir, embora seja essa sua expressão mais relevante, por ser a que causa
impactos mais significativos no ambiente urbano.
Nessa ordem de ideias, de forma bastante sintética, para não fugir ao foco
do trabalho, poder-se-ia mencionar, como espécies de licença urbanística: licença
para edificar, licença para reforma, licença para reconstrução, licença para reparo,
licença para demolir, licença para habitar, licença para localização e funcionamento
de atividades comerciais, industriais e institucionais, licença para parcelar o solo
(inclusive loteamento e desmembramento).
2.2.2 A natureza jurídica das licenças urbanísticas
Como mencionado a respeito das licenças administrativas, talvez a questão
mais controversa em relação a esse instituto refira-se à sua natureza jurídica, ou
seja, se constitui um ato declaratório ou constitutivo de direito.
41
Em se tratando de licenças urbanísticas e, em especial, da licença para
construir, essa discussão parece tomar ainda maior lego, visto relacionar-se ao
reconhecimento do direito de construir, ínsito ao direito de propriedade.
Antes de adentrarmos às discussões sobre o tema, útil se faz a
conceituação de atos constitutivos, desconstitutivos e os de constatação, que, na
verdade, consistem em uma classificação dos atos em relação aos seus efeitos,
conforme se infere das lições de Hely Lopes Meirelles
49
:
Ato constitutivo: é aquele pelo qual a Administração cria,
modifica ou suprime um direito do administrado ou de seus
servidores. Tais atos, ao mesmo tempo que geram um direito
para uma parte, constituem obrigação para a outra.
Ato desconstitutivo: é aquele que desfaz uma situação jurídica
preexistente. Geralmente vem precedido de um processo
administrativo com tramitação idêntica à do que deu origem ao
ato a ser desfeito.
Ato de constatação: é aquele pelo qual a Administração verifica
e proclama uma situação fática ou jurídica ocorrente. Tais atos
vinculam a Administração que os expede, mas não modificam,
por si só, a situação constatada, exigindo um outro ato
constitutivo ou desconstitutivo para alterá-la. Seus efeitos são
meramente verificativos.
49
Essas são as definições constantes na obra Direito Administrativo Brasileiro, 25ª edição, p.167. Na
edição mais recente, a 33ª, verifica-se que os atualizadores alteraram a conceituação anterior,
limitando, principalmente, a noção de ato constitutivo, como se observa:
“Ato constitutivo: é o que cria uma nova situação jurídica individual para seus destinatários, em
relação à Administração. Suas modalidades são variadíssimas, abrangendo mesmo a maior parte das
declarações de vontade do Poder Público. São atos dessas categorias as licenças, as nomeações de
funcionários, as sanções administrativas e outros mais que criam direitos ou impõem obrigações aos
particulares ou aos próprios servidores públicos.”
“Ato extintivo ou desconstitutivo: é o que põe termo a situações jurídicas individuais, v.g., a cassação
de autorização, a encampação de serviço de utilidade pública.”
“Ato declaratório: é o que visa a preservar direitos, reconhecer situações preexistentes ou, mesmo,
possibilitar seu exercício. São exemplos dessa espécie a apostila de títulos de nomeação, a
expedição de certidões e demais atos fundados em relações jurídicas anteriores.”
42
Como se vê, os atos constitutivos criam ou modificam direitos, ao passo que
os atos declaratórios (ou de constatação) apenas verificam dada situação fática ou
jurídica.
Nesse sentido, também é a doutrina de Celso Antônio Bandeira De Mello,
classificando, quanto aos efeitos, como atos constitutivos, aqueles dos quais se
origina uma situação jurídica, produzindo-a originalmente, extinguindo ou
modificando. Por outro lado, os atos declaratórios são aqueles que apenas afirmam
a preexistência de uma situação de fato ou de direito
50
.
Pois bem. De modo geral, resta assentado pela doutrina que o direito de
construir é inerente ao direito de propriedade, restando explícita essa correlação no
art. 1299 do Código Civil que estabelece: “O proprietário pode levantar em seu
terreno as construções que lhe aprouver, salvo o direito dos vizinhos e os
regulamentos administrativos”
51
.
A lição de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello - a que mais reverbera em
toda a doutrina nacional reconhece, na licença para construir, aspectos
declaratórios e constitutivos:
Discute-se se ela é constitutiva de direito, porque esse direito
preexistia no seu titular. Realmente, não é constitutiva quanto
ao gozo de direito, porém o é quanto ao seu exercício. Este
pode licitamente ser levado a efeito depois de licenciada a
atividade que alguém tinha o gozo do direito. Por isso se diz
que é constitutiva apenas sob o aspecto formal
52
.
50
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., 2009. p.419.
51
Deve-se entender a expressão “regulamentos administrativos” de forma ampla, abrangendo o
conjunto de todas as normas urbanísticas.
52
BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Op. cit., 2007. p.578.
43
Afirma, o autor, com bastante clareza, que “a licença remove obstáculo ao
exercício de um direito, qual seja, o de construir” e ao diferenciá-la da autorização
(ato que cria direito), assevera constituir-se, a licença, numa “declaração recognitiva
de direito, de asseguramento de situação jurídica”.
Seguindo essa linha de pensamento, encontra-se Lúcia Valle Figueiredo
53
:
A licença para construir não inova no mundo jurídico, na
medida em que o direito à construção se encontra ínsito no
direito de propriedade. Apenas libera o exercício desse direito.
E, mais adiante:
Assim conceituada, verificamos ser a licença para construir um
ato administrativo constitutivo-formal, possibilitando àquele em
favor de quem é expedida, o direito de levar a cabo a
construção, nos termos em que lhe foi deferida: isto é, de
acordo com o projeto aprovado e no prazo estipulado.
Ressalta, por fim, a autora:
Deveras, trata-se de acertamento constitutivo, indispensável à
possibilidade de edificar, mas que, à diferença da autorização
discricionária -, nada agrega à esfera jurídica do indivíduo,
posto que deva ser deferido, se satisfeito os pressupostos
legais. Preexiste o direito ao deferimento do pedido.
Contudo, outros autores deixam em destaque apenas o fato da existência do
direito de construir, que precede a licença. Esta configuraria, portanto, um
reconhecimento desse direito preexistente, o que lhe garantiria natureza
53
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Disciplina urbanística da propriedade. 2ªed. São Paulo: Malheiros,
2005. p.128.
44
declaratória. José Afonso da Silva
54
afirma, acerca das licenças urbanísticas em
geral:
A licença reconhece e consubstancia um direito do requerente.
Trata-se, porém, de um direito cujo exercício é condicionado ao
preenchimento de determinadas exigências e de alguns
requisitos impostos em lei.
Márcia Walquiria Batista dos Santos é clara ao se posicionar no sentido de
que as licenças têm natureza meramente declaratória. Em suas considerações,
comenta a posição de outros autores, como Oswaldo Aranha Bandeira de Mello,
para quem a licença remove um obstáculo ao exercício de um direito, como visto,
justificando, a autora, as razões do seu posicionamento. Observe-se:
Com respeito à posição de Oswaldo Aranha, não nos parece
ser possível separar o gozo e o exercício do direito, em
especial no que toca aos seus efeitos. Para nós a licença em
nenhum aspecto é constitutiva, visto estar ligada ao
preenchimento de requisitos que autorizam a sua emissão. Não
constituição de situação jurídica, simplesmente a
Administração reconhece ou não a presença dos pressupostos
para a expedição da licença, e se reconhecer não estará
conferindo direito, mas sim possibilitando o pleno exercício
deste.
55
Mais adiante, a autora citada rebate a ideia de que o direito de construir
estaria incorporado ao patrimônio do particular como um direito adquirido - menção
existente na doutrina de Carlos Ari Sundfeld, como se verá - argumentando tratar-se,
na verdade, de um direito subjetivo, definido como integrante do conjunto de direitos
do particular, mas que não foi exercido.
54
SILVA, José Afonso da. Op. cit., 2006. p.438-9.
55
SANTOS, Márcia Walquíria Batista dos. Op. cit., 2001. p.71.
45
Posicionando-se de outro modo, Carlos Ari Sundfeld
56
compreende que
tratar as licenças como atos meramente declaratórios constituiria uma visão muito
simplificada da questão, que ao proprietário é defeso edificar sem a obtenção
prévia da licença:
O proprietário é legalmente proibido de edificar sem a prévia
obtenção de licença. De conseguinte, o ato que faculta o início
da construção não pode ser meramente declaratório. Sua
expedição pressupõe, decerto, haver o Poder Público
constatado que, por atender aos requisitos da lei, o proprietário
tem o direito de ver deferida a licença (se se quiser: tem o
direito de construir); nesse aspecto, o ato é recognitivo de
direito. No entanto, não é meramente declaratório, mas
também constitutivo, visto atribuir ao proprietário faculdade de
que não dispunha antes: a de iniciar as obras. Por mais que se
queira classificar a licença como ato declaratório, ninguém
negará que o proprietário não tem qualquer espécie de direito
de iniciar a edificação antes dela.
Expõe, ainda:
Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, intervindo na polêmica
sobre o conteúdo da licença, esclarece o ponto: “Discute-se se
ela é constitutiva de direito, porque esse direito preexista no
seu titular. Realmente, não é constitutiva quanto ao gozo do
direito, porém o é quanto ao seu exercício. Este pode
licitamente ser levado a efeito depois de licenciada a atividade
de que alguém tinha o gozo do direito. Por isso se diz que é
constitutivo apenas sob o aspecto formal”.
Essa lição permite perceber com clareza que o proprietário
tem, desde logo, pelo fato de sê-lo, apenas o direito ao
deferimento do pedido de licença, não o direito de construir.
Esse último surgirá após o ato administrativo que, destarte,
é constitutivo do direito (ou do exercício do direito, como diz
Oswaldo Aranha).
56
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo Ordenador. São Paulo: Malheiros, 2003. p.42-3.
46
Mesmo estando o direito de construir ínsito no direito de propriedade – o que
é ainda mais evidente em se tratando da propriedade urbana – é inequívoca a
proibição legal de se proceder à construção sem a devida licença, de forma que
esse ato faz mais do que somente declarar um direito, como assevera Sundfeld.
A Administração Pública, por sua vez, durante o processo de outorga e, em
seguida, no ato de emissão da licença, mais do que reconhecer o referido direito de
construir, verifica se o projeto está em consonância com toda a legislação pertinente
em vigor naquele dado momento. Age, portanto, com fundamento no seu poder de
polícia, ou, noutros termos, procede à delimitação jurídica do direito de construir e,
portanto, do direito de propriedade, por meio da determinação dos liames em que
ele poderá ser exercido. O mesmo ocorre em relação, por exemplo, à licença para
lotear ou a de localização e funcionamento. uma delimitação do direito no caso
concreto, liberando, assim, seu exercício ao seu titular.
Há, nesse mesmo ato, conforme pode se inferir da doutrina, dois pontos a
serem destacados: se por um lado a licença reconhece um direito e retira obstáculos
para seu exercício, por outro é inegável que, em sendo uma forma de limitação
administrativa, estabelece, mediante a legislação vigente, os contornos do direito a
ser exercido.
No caso da licença para construir, de um lado há, portanto, o
reconhecimento do direito de construir do proprietário, permitindo que o exerça,
concretamente, iniciando as obras; de outro lado, limitação desse mesmo direito
47
de construir
57
de acordo com a circunscrição feita pela lei, de modo a conformar o
uso da propriedade com a disciplina urbanística posta.
Carlos Ari Sundfeld aponta esse aspecto de liberação, por parte do
proprietário, do exercício de um direito:
[...] os atos ampliativos praticados pela administração
ordenadora, típicos atos administrativos negociais, investem os
particulares em situação ativa cujo conteúdo não é a
possibilidade de exigir a prestação administrativa, mas sim de
exercer certo direito sem perturbação por parte do Estado e de
terceiros. A licença para construir libera o exercício de um dos
poderes inerentes a poderes inerentes à propriedade; a
autorização para explorar atividade perigosa atribui o direito de
atuar em setor normalmente interditado; o registro de marca
assegura a exclusividade dela.
58
Bastante incisiva, nesse aspecto, a afirmação de Celso Antônio Bandeira De
Mello, para quem “a licença é ato que remove obstáculo ao exercício de um poder
jurídico preexistente e que descende diretamente da lei”
59
. Contudo, a polícia
administrativa, na qual se insere a atividade da Administração de outorgar licenças,
se expressa também, conforme expõe o autor, em atos concretos, - no caso em
análise com o objetivo “de condicionar, com fundamento em sua supremacia geral
e na forma da lei, a liberdade e propriedade dos indivíduos”
60
.
57
Convém recordar que para Celso Antônio Bandeira de Mello, assim como para Lúcia Valle
Figueiredo, “descaberia falar em limitação a direitos, pois os atos restritivos, legais ou administrativos,
nada mais significam senão a formulação jurídica do âmbito do Direito”. Ou, noutros termos do
mesmo autor, “não se deve confundir liberdade e propriedade com direito de liberdade e direito de
propriedade. Estes últimos são expressões daquelas, porém tal como admitidas em um dado sistema
normativo.” BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., 2009. p.813. FIGUEIREDO, Lúcia Valle.
Op. cit., 2006. p.811.
58
SUNDFELD, Carlos Ari. Op. cit., 2003. p.41.
59
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Ato administrativo e direito dos administrados. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1981. p.173.
60
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., 2009. p.830.
48
Esse caráter de contenção existentes nas licenças (insertas dentre as
restrições urbanísticas) fica ainda mais evidente nas palavras de José Afonso da
Silva
61
, visto que elas afetam, de maneira restritiva, os caracteres do direito de
propriedade:
Então, podemos dizer que restrições urbanísticas são as
limitações impostas às faculdades de fruição, de modificação e
de alienação da propriedade, no interesse da ordenação do
território.
Constituem condições ao exercício dessas faculdades; sendo
assim, não extirpam a substância mínima do direito de
propriedade. [...]
Em relação à licença para edificar, acrescenta:
A licença para edificar constitui mais que simples remoção de
obstáculos; constitui técnica de intervenção nas faculdades de
edificar, reconhecida pelas normas edilícias e urbanísticas, com
o objetivo de controlar e condicionar o exercício daquelas
faculdades ao cumprimento das determinações das
mencionadas normas edilícias e urbanísticas, incluindo as
determinações dos planos urbanísticos. Ela é como nota G.
Spadaccini “um ato que não se exaure com a remoção de
um limite, mas que constitui, além disso, novos limites para
aquela atividade privada que deve ser exercida pelo sujeito”.
Esse aspecto parece ressaltar que a natureza das licenças urbanísticas não
é tão somente declaratória, havendo a configuração objetiva de uma faculdade antes
prevista de forma genérica, sem contornos concretamente delimitados, dentro do
âmbito do direito de propriedade. Ainda que se diga que esse contorno existe, é
inegável a necessidade da conferência da Administração dessa situação, o que se
constituirá no ato de licença.
61
SILVA, José Afonso da. Op. cit., 2006. p.400.
49
Ademais, ao se considerar a licença um ato ampliativo de direito, parece
incongruente afirmar que sua natureza seja tão somente declaratória. Se se amplia o
direito, não se está simplesmente reafirmando sua preexistência.
Esse pensamento torna-se mais claro ao se atentar para o fato de que
acertamentos constitutivos, para consubstanciarem uma situação jurídica, precisam,
necessariamente, reconhecê-la antes. O reconhecimento de um direito pela lei é
questão preliminar para que essa mesma lei possa determinar qualquer providência
em relação a ele, até mesmo a liberação de seu exercício. Ante esse pressuposto,
as licenças urbanísticas não são puramente constitutivas, havendo, sem dúvida,
uma parcela declaratória em sua natureza jurídica.
2.2.3 Competência para expedição das licenças urbanísticas
A competência para a expedição das licenças urbanísticas é do ente
federativo municipal. Contudo, para se compreender como está delineada essa
competência no texto constitucional, é relevante traçar um panorama geral das
competências urbanísticas.
A Constituição de 1988 distribuiu competências em matéria urbanística a
todos os entes da federação, sejam elas administrativas (materiais) ou legislativas.
O art. 21 da Constituição delineia as competências materiais da União
abrangendo, por exemplo, a instituição de diretrizes para o desenvolvimento urbano,
inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos (inciso XX).
50
O art. 22, por sua vez, trata das competências legislativas federais
exclusivas (privativas). Nesse aspecto, cabe à União a elaboração de normas sobre
desapropriação e diretrizes da política nacional de transportes.
O art. 23 define as competências comuns, de natureza administrativa, as
quais são distribuídas entre a União, Estados-membros e Distrito Federal. Dentre
outros dispositivos, destaca-se o dever de promover programas de construção de
moradia e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico (IX).
O art. 24 prescreve as competências legislativas concorrentes entre União,
Estados-membros e Distrito Federal. Esse dispositivo constitucional cria um sistema
de complementações e suplementações de legislações, muito bem sintetizado por
Daniela Campos Libório Di Sarno
62
:
Dentro da estrutura descrita no art. 24 da Constituição Federal
(competência concorrente), o desdobramento em uma
competência complementar e uma competência suplementar. A
satisfação deste artigo deve ocorrer da seguinte forma: a) a
União editará normas gerais; b) na ausência de normas gerais
(inércia da União), os Estados-membros e o Distrito Federal
podem editar normas gerais que poderão perdurar até que
sejam editadas as normas gerais federais, quando estas
deverão substituir aquelas (competência suplementar); c) os
Estados membros e o Distrito Federal, diante das normas
gerais, legislarão mediante seus interesses, complementando-
as.
O art. 25 ao Estado-membro a capacidade para, mediante edição de lei
complementar, decidir sobre a criação da região metropolitana, aglomerações
urbanas e microrregiões.
62
DI SARNO, Daniela Campos Libório. Elementos de Direito Urbanístico. Barueri, SP: Manole, 2004.
p.39.
51
Por fim, o art 30 atribui aos Municípios diversas competências,
administrativas e legislativas, incluídas as competências urbanísticas.
Apesar da não indicação dos Municípios no art. 24, que trata, como se viu,
da competência legislativa concorrente, é nesse dispositivo, art. 30, que repousa a
competência municipal para expedição de normas de caráter urbanístico. Observe-
se que a referida norma outorga aos Municípios a competência para legislar sobre
assuntos de interesse local (I); para complementar a legislação federal e estadual no
que couber (II), abrangendo, portanto, a competência urbanística, além de indicar,
de forma mais expressa, a matéria urbanística no inciso VIII: a promoção do
adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do
parcelamento e da ocupação do solo.
Acresça-se, ainda, o disposto no art. 182 da Constituição Federal que dispõe
sobre a política urbana, cuja competência é inequivocamente Municipal. A esse
respeito, citem-se, mais uma vez, por oportunas, as considerações de Daniela
Campos Libório Di Sarno
63
:
Na verdade, a instância local é quem detém competência
material e legislativa para realizar a política urbana, conforme
determina o art. 182 da Carta Magna. Significa dizer que o
Poder Executivo municipal tem um papel de grande importância
(insubstituível até) na realização e concretização da
organização e adequação do espaço urbano dentro dos
princípios e diretrizes que tragam um desenvolvimento
equilibrado e saudável para a população.
63
Ibidem. p.39.
52
Ante o exposto, observa-se ser o Município o ente competente para a edição
de normas atinentes às licenças urbanísticas cabendo-lhe, portanto, sua expedição.
2.3 O ASPECTO PROCESSUAL
Embora a licença urbanística seja uma espécie de ato administrativo, não se
pode perder de vista que tal ato somente é praticado depois da execução de vários
outros, que lhe preparam e lhe dão fundamento. Por isso, que se compreender
que o ato de outorgar uma licença urbanística é ato final de todo um processo
administrativo.
Mais adiante, far-se-á uma análise mais detida do processo administrativo,
bem como da opção de utilização dessa expressão, processo, e não procedimento
administrativo. Por ora, importante é deixar destacado que o ato de licença,
expedido ao final de um processo administrativo, não se confunde com os demais
atos que lhe antecederam. Contudo, a validade do ato de licença está
indissociavelmente ligada à validade dos atos que lhe são anteriores.
Além disso, os atos que precedem a licença podem ser praticados pela
Administração (atos administrativos) ou pelo particular, abrangendo, ainda, fatos
jurídicos
64
como, por exemplo, o decurso de tempo.
64
Conforme ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, atos administrativos estão alocados dentro da
categoria ato jurídico que, por sua vez, encontram-se dentro de um conjunto maior, os fatos jurídicos.
Estes podem ser definidos como qualquer acontecimento a que o Direito impute consequências
jurídicas. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., 2009. p.368.
53
2.3.1 O processo de obtenção de licenças
Tomando como base as lições de José Afonso da Silva
65
, pode-se dizer que
o processo
66
para obtenção das licenças urbanísticas se desenvolve em três fases:
introdutória, de apreciação do pedido e decisória.
A fase instrutória inicia-se com a apresentação do requerimento, pelo
interessado, à Administração, do pedido de licença urbanística. Ao fazê-lo, o
interessado procede, de plano, à juntada dos documentos necessários à instrução e
análise do pedido, conforme disposto pela legislação local.
A segunda fase inicia-se com o recebimento, pela Administração, do
requerimento, caso este esteja em consonância com todas as exigências
pertinentes. Em caso negativo, o mais adequado é dar-se oportunidade para
correção de falhas sanáveis em prazo razoável.
Uma vez recebido, o requerimento irá tramitar pelos departamentos técnicos
responsáveis, para que seja devidamente analisada a observância da legislação
edilícia e urbanística. Como destaca José Afonso da Silva
67
, nessa fase, pode a
Prefeitura “solicitar certas informações ao requerente, visando a complementar seu
ajuizamento técnico”. É o que se pelos comumente chamados “Comunique-se”,
que solicitam documentos ou dão ciência ao interessado de inexatidões ou
65
SILVA, José Afonso da. Op. cit., 2006. p.444-7.
66
Ao que o autor denomina procedimento.
67
SILVA, José Afonso da. Op. cit., 2006. p.444.
54
deficiências a serem corrigidas no projeto. É de bom alvitre recordar, o não
cumprimento dessas comunicações gera indeferimento do pedido.
Por fim, a fase decisória consiste no momento em que a Administração irá
deferir ou não o pedido inicial do particular, outorgando ou não a licença urbanística.
Nesse ponto, recorde-se o autor já citado:
Se tudo estiver na conformidade da legislação o pedido terá
que ser deferido, outorgando-se a licença solicitada. Essa é
uma conseqüência inelutável do caráter vinculado da licença,
que impede, de um lado, que seja outorgado quando não
sejam atendidos os requisitos legais e, de outro, impõe sua
liberação quando esses requisitos estejam preenchidos.
2.3.2 O silêncio administrativo
O silêncio administrativo ocorre quando há omissão por parte da
Administração em se manifestar acerca do requerimento do particular. Normalmente,
a lei determina à Administração um prazo para pronunciar-se acerca de um projeto
submetido ao seu exame.
A essa omissão da Administração, a lei pode prever consequências jurídicas
de duas ordens: atribuir-lhe efeitos negativos ou efeitos positivos.
No primeiro caso, a lei determina que transposto um determinado lapso
temporal, considera-se o silêncio como uma negativa da Administração à sua
outorga. Nessa situação, pode ocorrer a negativa de outorgar a licença a um
particular cumpridor de todas as condições legais para sua obtenção, o que, é
inegável, viola seu direito subjetivo à obtenção da licença.
55
A segunda hipótese constitui-se na atribuição, pela lei, de um efeito positivo,
considerando-se outorgada a licença nos termos em que foi requerida. Por seu
turno, essa situação pode gerar lesão ao interesse público, com o desenvolvimento
de atividades em desconformidade com as normas urbanísticas postas. Indo além,
tal situação poderia ensejar uma relação de desigualdade entre particulares sujeitos
à mesma legislação. Um indivíduo estaria obrigado a cumprir certas exigências
legais para obter a licença, ao passo que outro, mesmo descumprindo tais
requisitos, obteria a licença em razão da omissão da Administração.
que se dizer que nessa segunda situação é conveniente que a legislação
atribua ao proprietário e aos responsáveis pela atividade desenvolvida ou obra a
responsabilidade de adequá-la, posteriormente, às exigências da legislação.
Nesse ponto, como bem nota José Afonso da Silva
68
, uma ou outra hipótese
são ruins, visto que é um dever da Administração Pública responder às solicitações
dos particulares.
Postas essas considerações sobre o conceito jurídico de licença urbanística,
passar-se-á à análise de suas formas de extinção e suas consequências.
68
Ibidem. p.447-8.
56
CAPÍTULO 3 - PROCESSO ADMINISTRATIVO E DEVIDO PROCESSO LEGAL
3.1 O PROCESSO ADMINISTRATIVO
3.1.1 A importância do processo administrativo
É dever da Administração Pública velar pela legalidade de seus atos.
Todavia, a retirada de um ato administrativo que influencia a esfera de direitos do
administrado não pode ocorrer sumariamente, mediante uma simples verificação da
ilegalidade e com a consequente expedição de um ato invalidador. É necessária a
instauração de um processo administrativo.
O desenvolvimento do processo administrativo, com a observância dos
princípios que lhe servem de suporte, permite que o administrado saia da condição
de mero expectador das decisões da Administração, as quais têm reflexo na sua
esfera de direitos, e passe a exercer, de maneira efetiva, influência sobre tais atos.
A importância do processo administrativo encontra-se expressa com clareza
nas palavras de Clarissa Sampaio Silva
69
:
No exercício da atividade administrativa colocam-se frente a
frente as prerrogativas públicas, nas quais se inserem, de uma
[sic] lado o poder de a Administração invalidar e revogar seus
próprios atos, e de outro os direitos subjetivos dos cidadão, de
maneira que o procedimento administrativo representa um
importante instrumento para equilibrar a relação entre a
Administração e os particulares.
69
SILVA, Clarissa Sampaio. Limites à invalidação dos atos administrativos. São Paulo: Max Limonad,
2001. p.139.
57
Ideia semelhante é trazida por Mônica Martins Toscano Simões:
O elemento que harmoniza a relação existente entre a
Administração e os administrados é o processo administrativo,
através do qual estes perseguem a realização de seus direitos
e aquela exercita seu “poder” ou, mais precisamente, seu
dever-poder.
70
Esse enfoque é bastante destacado nos autores que se dedicaram ao
estudo do processo administrativo. Cite-se, como exemplo, o trabalho referido de
Mônica Martins Toscano Simões, o qual destaca o papel do administrado no
desenvolvimento do processo administrativo, superando a ideia da emissão de atos
administrativos caber tão somente à Administração, sem que haja a participação dos
interessados. Em face disso, a autora prefere dar ao processo administrativo uma
compreensão mais ampla, não restrita apenas a uma sucessão de atos
administrativos, que um dos seus principais objetivos é exatamente possibilitar ao
administrado que se manifeste anteriormente à decisão administrativa, a qual, de
alguma forma, possa vir a afetá-lo.
71
Assim, ainda que, por definição, atos administrativos em sentido estrito
sejam aqueles expedidos de forma unilateral pela Administração, não se pode
excluir a importância da participação do interessado.
Desse modo, seja o ato de outorga ou o ato de invalidação da licença
urbanística o objetivo da Administração Pública, é inquestionável que ambos
deverão ser precedidos pelo adequado e regular processo administrativo.
70
SIMÕES, Mônica Martins Toscano. O processo administrativo e a invalidação de atos viciados. São
Paulo: Malheiros, 2004. p.38.
71
Ibidem. p.39.
58
Todavia, enquanto de um lado, para a outorga da licença, o ato pressupõe a
emanação de um ato ampliativo da esfera de direitos do particular, para a
invalidação há, por reverso, uma indireta restrição do seu plexo de direitos, de forma
que, nesse caso, a observância de todos os princípios e regras aplicáveis ao
processo administrativo deverá ocorrer de maneira mais estrita e substancial.
3.1.2 Processo ou procedimento administrativo
A doutrina trata o tema processo e procedimento administrativo de forma
bastante heterogênea. Para alguns autores, o processo administrativo é a forma
pela qual age a Administração Pública. Assim como o processo legislativo, no
âmbito do Poder Legislativo, o processo judicial, no âmbito do Poder Judiciário, há,
também, no Poder Executivo, o processo administrativo. Por outro lado, o
procedimento administrativo seria sinônimo de rito, modo de realização de
determinados atos administrativos.
Nessa linha de ideias, Maria Sylvia Zanella Di Pietro
72
conceitua processo
como o instrumento para o exercício da função administrativa, a forma pelo qual a
Administração Pública opera; o procedimento se constituiria no conjunto de
formalidades a serem observadas para a prática de certos atos administrativos,
sinônimo de rito, forma de proceder.
72
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2007. p.578.
59
Da mesma forma, Hely Lopes Meirelles
73
diferencia as duas expressões,
conceituando processo como o conjunto de atos coordenados com a finalidade de
que seja proferida uma decisão sobre uma controvérsia, seja no âmbito judicial ou
administrativo. O procedimento refere-se, por sua vez, ao modo de realização do
processo, ao rito processual, a uma sucessão ordenada de operações que propiciam
a formação de um ato final almejado pela Administração. Procedimento é, portanto,
pressuposto de processo, ao passo que há procedimentos que não chegam a
constituir um processo.
Lúcia Valle Figueiredo
74
sistematiza a questão abrangendo, dentro da
expressão processo, em sentido amplo, o seguinte: a) procedimento, como forma
normal de atuação da Administração, b) procedimento, como sequência ordenada
de atos que visa a emanação de um ato final, no qual a validade dos posteriores
depende dos anteriores, c) processo, em sentido estrito, em que se observa a
presença de litigiosidade.
Por sua vez, Marcos Porta
75
destaca a acepção ampla da expressão
processo administrativo para designar a relação jurídica processual de direito
material estabelecida entre Administração e administrado e, de outro, em seu
sentido estrito, equivalente a procedimento, significando rito procedimental,
sequência de atos, materiais ou jurídicos, conectados um em relação ao outro,
direcionados a um ato final. É um pressuposto objetivo do ato administrativo.
73
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 33ªed. São Paulo: Malheiros, 2007.
p.628-9, 146.
74
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
p.436.
75
PORTA, Marcos. Processo administrativo e o devido processo legal. São Paulo: Quartier Latin,
2003. p.67 e sgs.
60
Há, ainda, juristas afirmando que as palavras processo e procedimento
compreendem o mesmo conceito, a exemplo do que faz Celso Antônio Bandeira de
Mello
76
. Com seu tratamento unívoco, define processo administrativo como uma
sucessão itinerária e encadeada de atos administrativos que tendem, todos, a um
resultado final e conclusivo. Cada ato cumpre sua função específica – daí sua
autonomia relativa -, participando para a formação, conjuntamente com os demais
atos, de uma declaração final.
Colocadas essas considerações, impende esclarecer que os termos
processo e procedimento serão utilizados nesse trabalho na acepção dada por
Bandeira De Mello, dando-se preferência para a utilização da palavra processo.
Há, todavia, diferenças entre os diferentes processos administrativos que se
desenvolvem no âmbito da Administração Pública, assim como naqueles aqui
estudados.
Não dúvida, que em relação aos atos anteriores à produção do ato de
licença, a despeito da necessidade de participação do particular dando início ao
processo
77
, inexiste litigiosidade, ou seja, contraposição de interesses declaração
unilateral da Administração), bem como não participação da vontade do
administrado na formação do ato, apesar de ser expedido também em seu interesse.
76
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 26ªed. São Paulo:
Malheiros, 2009. p.465 e sgs.
77
Celso Antônio Bandeira de Mello entende tal aspecto como um pressuposto objetivo de validade do
ato administrativo: requisito procedimental. Ibidem. p.398-9.
61
Há, contudo, a formação inequívoca de uma relação jurídica entre Administração e
particular.
No entanto, como referido, o processo objetiva a produção, ao fim, de um
ato ampliativo de direitos. Favorável, portanto, ao interessado. Durante o transcurso
do processo, poderão ser notadas falhas e incorreções que, em razão do princípio
de que o processo não é um fim em si mesmo e a ação administrativa deve ser
provida da máxima eficiência, recomenda-se que seja dada oportunidade ao
interessado de saná-las.
Caso isso não ocorra, ou que por outras razões o se certifique a
Administração Pública da presença de todos os requisitos legais para a outorga da
licença, deverá, então, indeferi-la.
Nesse momento, abre-se para o interessado a possibilidade de exercer seu
direito de recorrer. O processo recursal, em razão da contraposição de interesses
existente, possuirá, por sua vez, características próprias, obrigando a Administração
Pública a observar de forma mais estreita as regras e princípios aplicáveis ao
processo administrativo.
Doutra margem, quando a Administração for proceder à invalidação do ato
administrativo de licença, certamente
78
haverá a presença de contraposição de
interesses, litigiosidade, o que mais uma vez impõe, de forma mais severa, o
78
A menos que o particular concorde com a Administração no sentido da existência do vício de
ilegalidade e não se oponha a extinção do ato. Ainda assim é necessária sua participação no
processo.
62
acolhimento das prescrições relacionadas ao bom andamento do processo
administrativo.
Aqui, como dito, um processo que acabará por atingir o particular de
modo restritivo, visto que a invalidação da licença irá desconstituir um ato ampliativo
da sua esfera de direitos.
Assim, o devido processo legal e demais princípios e regras informadores do
processo administrativo devem ser observados em toda e qualquer circunstância.
Mas não há como negar que sua aplicabilidade mais estrita se em processos
administrativos em que o plexo de direitos do particular poderá ser atingido
restritivamente.
3.2 OS PRINCÍPIOS INFORMADORES DO PROCESSO ADMINISTRATIVO
Sobre o papel dos princípios no ordenamento jurídico, não se pode deixar de
citar a notável lição de Celso Antônio Bandeira de Mello
79
ao propor a sua
conceituação de princípio:
Cumpre, pois, inicialmente, indicar em que sentido estamos a tomar o termo
princípio, tal como vimos fazendo desde 1971, quando pela primeira vez enunciamos
a acepção que lhe estávamos a atribuir. À época dissemos:
Princípio é, pois, por definição, mandamento nuclear de um
sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que
79
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., 2009. p.53.
63
se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e
servindo de critério para exata compreensão e inteligência
delas, exatamente porque define a lógica e a racionalidade do
sistema normativo, conferindo-lhe a tônica que lhe sentido
harmônico.
O processo administrativo, a seu turno, é regido por princípios específicos
que orientam a compreensão do instituto e informam sua disciplina legal, quando
editada, bem como canalizam sua realização ao cumprimento das finalidades que
lhe são próprias
80
.
Embora o princípio do devido processo legal venha a ser analisado com
mais atenção, em razão do foco do presente trabalho, é conveniente traçar algumas
referências gerais a respeito dos demais princípios informadores do processo
administrativo.
Como também em outros pontos estudados, a forma de sistematização
desses princípios é bastante variável na doutrina pátria. Tomando como substrato
principal a doutrina de Odete Medauar
81
, pode-se alinhavar a descrição a seguir.
3.2.1 Princípio do contraditório
O princípio do contraditório pode ser sintetizado como a faculdade de se
contrapor por meio de argumentos e provas a posição contrária apresentada por
outra parte no processo. Pode ser identificado, portanto, pelo binômio informação-
80
MEDAUAR, Odete. A processualidade no direito administrativo. ed. rev., atual e ampliada. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p.100.
81
Ibidem.
64
reação, significando o direito das partes em ter conhecimento de todos os dados
relativos ao processo e facultando-lhes a possibilidade de reagir processualmente.
Relevante destacar as palavras da já referida autora, ao indicar a posição da
Administração e do administrado nos processos administrativos, fazendo alusão
direta aos direitos e deveres processuais das partes:
e na fase que antecede a formação do ato, um órgão da
Administração não se colocar no mesmo plano que o sujeito,
no tocante a direitos, ônus, ações e reações, inexiste
contraditório
82
.
Pode-se dizer, desse modo, que o princípio do contraditório além de
determinar o direito à informação e possibilidade de reação, direciona, ainda o
posicionamento da Administração no processo administrativo, devendo colocar-se
num plano de igualdade, sem prerrogativas processuais.
Além disso, sua efetivação se por meio de desdobramentos, como a
regra da informação geral (direito a obter conhecimento adequado dos fatos e
quaisquer dados do processo), a audiência da partes (incluindo o direito de ouvir a
outra parte e de ser ouvido), bem como a obtenção de uma decisão administrativa
motivada e dela tomar ciência
3.2.2 Princípio da ampla defesa
Tal princípio significa a acepção mais ampla do direito de defender-se,
indispensável para a segurança dos cidadãos. Para tanto, é necessário ao
82
Ibidem. p.104.
65
interessado o conhecimento da acusação ou de qualquer pretensão por parte da
Administração que possa vir a atingi-lo para, em seguida, poder efetivar sua reação.
Em uma apertadíssima síntese, pode-se dizer que a ampla defesa abrange a
possibilidade de rebater argumentos fáticos ou jurídicos, de forma a evitar sanções
ou prejuízos e para preservar interesses e direitos.
O contraditório e a ampla defesa são princípios indissociáveis e esse, assim
como o primeiro, também se efetiva por meio de desdobramentos, como o caráter
prévio da defesa, a possibilidade da defesa técnica, o direito de ser notificado do
início do processo, o direito ao silêncio, a inadmissibilidade das provas obtidas por
meios ilícitos e o direito de recorrer.
Quanto a este último, importante trazer à colação as considerações de
Odete Medauar:
O direito de interpor recurso administrativo independe de
previsão expressa em lei ou demais normas, visto ter respaldo
no direito de petição, que no ordenamento pátrio vem
consignado pela Constituição Federal, art. 5º, XXXIV, a,
integrante do rol dos direitos e garantias fundamentais. Além
disso, nos processos administrativos o direito de recorrer está
baseado na garantia da ampla defesa, como uma de suas
conseqüências.
83
Como se vê, pode-se considerar o direito de recorrer ínsito ao princípio da
ampla defesa e existente independentemente de previsão expressa ou, ainda, uma
decorrência do próprio princípio do devido processo legal
84
.
83
Ibidem. p.124.
84
Cf.: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., 2009. p.115.
66
3.2.3 Princípio da oficialidade
A regra, em se tratando dos processos administrativos, é que a
Administração impulsione, de ofício, os atos processuais. É, portanto, uma obrigação
da Administração providenciar o regular e adequado trâmite do processo para se
chegar à decisão final.
Desse modo, ainda que o interessado se mostre inerte, essa
responsabilidade de manter o andamento do processo até seus ulteriores termos
cabe à Administração. Exceção deve ser feita nas situações em que solicitações
feitas pelo administrado dependam de providências que ele mesmo deve tomar. A
Administração deverá, nesses casos, conceder prazo razoável, se não dispuser
expressamente a lei, para o cumprimento, encerrando o processo caso o seja
cumprido.
3.2.4 Princípio da verdade material
Esse princípio consiste no dever da Administração de buscar subsídios para
suas decisões na realidade, não ficando adstrita somente aos argumentos e provas
trazidas pelas partes aos autos do processo administrativo.
Cabe à Administração, portanto, trazer ao processo informações,
documentos e provas colhidas do mundo empírico, para embasar suas decisões.
67
3.2.5 Princípio do formalismo moderado
Esse princípio é também denominado princípio do informalismo. Para sua
compreensão, é necessário recordar que o processo é tão somente um instrumento,
de modo que as formas e ritos nele prescritos não são um fim em si mesmos, mas
objetivam um fim.
Desse modo, não se pode, a título de observância das normas processuais,
opor o rigorismo das formas em detrimento do provimento final que se busca
alcançar.
As formas e ritos devem ser simples e suficientes para propiciar segurança e
certeza às partes e, doutra margem, serem interpretadas de modo flexível e
razoável.
3.3 O DEVIDO PROCESSO LEGAL
3.3.1 Síntese histórica
Esse princípio, de alta abstração jurídica e, portanto, de vasta abrangência,
está expresso no art.5º, LIV da Constituição Federal:
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem
o devido processo legal.
68
Está, ainda, intrinsecamente relacionado ao disposto no inciso a seguir, que
estabelece: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados
em geral, são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos
a ela inerentes” (LV).
Ainda que não estivesse expresso, é necessário dizer que sua aplicação
decorre diretamente do Estado de Direito, com a submissão do Poder Público às
normas que edita como forma de garantir a integridade dos direitos dos cidadãos. É,
na verdade, um princípio concretizador do Estado de Direito.
85
Contudo, para chegar à prescrição constitucional dessa garantia
fundamental, com o entendimento que dela se tem hoje, essa cláusula passou por
longo desenvolvimento histórico.
A origem da cláusula do devido processo legal remonta ao ano de 1215, ano
no qual, no direito inglês, veio a lume a Magna Carta, outorgada por João sem Terra.
Esse documento foi concebido como um instrumento limitador do arbítrio real em
face dos direitos dos senhores feudais.
Sua acepção inicial era nitidamente processual, vez que objetivava garantir a
inviolabilidade dos direitos relativos à vida, à liberdade e à terra dos nobres ingleses,
que somente poderiam ser sacrificados depois de um processo devidamente
formalizado.
85
Cf.: CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ªed. p.256 e sgs.
69
O devido processo legal nasceu sob a expressão per legem terrae e, mais
adiante, sem que se conheça o autor ou as razões, foi substituída pela expressão
due process of law
86
.
Apesar da importância desse instituto no direito inglês, foi no direito norte-
americano que essa garantia recebeu as mais ricas interpretações, alcançadas com
o transcorrer de um longo período de aplicação pelo Poder Judiciário norte-
americano.
A introdução do due processo of law no direito americano deu-se
gradativamente pela sua inclusão nas constituições das Colônias até que, em 1791,
a 5ª Emenda à Constituição Americana dispôs de forma expressa a garantia de que
ninguém seria privado da vida, da liberdade ou da propriedade sem o devido
processo legal. A 14ª Emenda (1880), por sua vez, veio completar o instituto,
acrescendo o princípio da equal protection of law. Assim, a acepção meramente
formal que continha inicialmente, alcançou também um conteúdo material,
significando a igualdade na lei.
87
Uma síntese da evolução da cláusula do devido processo legal pode ser
inferida do seguinte trecho de Carlos Roberto Siqueira Castro
88
:
86
DÓRIA, Antônio Roberto Sampaio. Direito Constitucional Tributário e due process of law. Rio de
Janeiro: Forense, 1986.
87
SAN TIAGO DANTAS, Francisco Clementino de. Problemas de direito positivo: estudos e
pareceres. Rio de Janeiro: Forense, 1953. p.42.
88
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. O devido processo legal e os princípios da razoabilidade e da
proporcionalidade. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p.29.
70
Na origem, o instituto que estamos a estudar foi confeccionado
como uma garantia tão apenas processual, ou seja, como um
princípio assecuratório da regularidade do processo, a ser
observado nas várias instâncias judiciais. Foi com essa índole
essencialmente processualista que a garantia do devido
processo legal vigorou na velha Inglaterra, por imposição da
Magna Carta, e daí ingressou nas Cartas coloniais da América
do Norte e, depois, na e 14ª Emendas da Constituição dos
Estados Unidos. Concebida, de início, como um requisito de
validade da jurisdição penal, estendeu-se em seguida, à
jurisdição civil e, mais recentemente, aos procedimentos
administrativos instaurados no âmbito da Administração
Pública.
Conforme se observa, a garantia do devido processo legal alastrou-se
também no âmbito da Administração Pública, com ênfase nas manifestações do
poder de polícia, conforme segue esclarecendo o texto do citado autor:
Do campo processual penal e civil a garantia do devido
processo legal alastrou-se aos procedimentos travados na
Administração Pública, impondo a essa rigorosa observância
dos princípios da legalidade e da moralidade administrativa.
Por sua crescente e prestigiosa aplicação, acabou por
transformar-se essa garantia constitucional em princípio vetor
das manifestações do Estado contemporâneo e das relações
de toda ordem entre o Poder Público, de um lado, e a
sociedade e os indivíduos, de outro. Assumiu específica
importância na área do poder de polícia, considerado genérica
e modernamente como a competência explícita ou implícita dos
órgãos estatais para disciplinar o exercício da liberdade
individual e a utilização da propriedade em benefício do bem
comum, ou seja, de ordenar os direitos privados em harmonia
com os superiores interesses coletivos.
Assim, somente depois de passar por inúmeras transformações é que o
conceito de devido processo legal foi inserido na Constituição brasileira, abarcando
acepção formal e material e servindo de parâmetro não para os atos do Poder
Legislativo e Judiciário, mas também para o Poder Executivo.
71
3.3.2 O devido processo legal no âmbito do processo administrativo
Conforme infere-se das lições acima delineadas, a garantia do devido
processo legal, em ambas acepções, permeia também os processos administrativos
e o exercício da função administrativa. Celso Antônio Bandeira de Mello
89
enumera-o
dentre os princípios constitucionais do direito administrativo brasileiro:
Estão aí consagrados, pois, a exigência de um processo formal
regular para que sejam atingidas a liberdade e a propriedade
de quem quer que seja e a necessidade de que a
Administração Pública, antes de tomar decisões gravosas a um
dado sujeito, ofereça-lhe oportunidade de contraditório e de
defesa ampla, no que se inclui o direito a recorrer das decisões
tomadas. Ou seja: a Administração Pública não poderá
proceder contra alguém passando diretamente à decisão que
repute cabível, pois terá, desde logo, o dever jurídico de
atender ao contido nos mencionados versículos constitucionais.
Hely Lopes Meirelles
90
também insere o devido processo legal dentre os
princípios que regem o processo administrativo e o faz sob o título de princípio da
garantia de defesa sobre o qual discorre:
[...] o princípio da garantia de defesa, entre nós, está
assegurado no inc. LV do art. da CF, juntamente com a
obrigatoriedade do contraditório, como decorrência do devido
processo legal (CF, art. 5º, LIV), que tem origem no due
process of law do Direito anglo-americano.
Por garantia de defesa deve-se entender não a observância
do rito adequado como a cientificação do processo ao
interessado, a oportunidade para contestar a acusação,
produzir prova de seu direito, acompanhar os atos da instrução
e utilizar-se dos recursos cabíveis. [...]
Processo administrativo sem oportunidade de defesa ou com
defesa cerceada é nulo, conforme têm decidido reiteradamente
nossos Tribunais judiciais, confirmando a aplicabilidade do
89
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., 2009. p.111.
90
Ibidem. p.633.
72
princípio do devido processo legal, ou, mais especificamente,
da garantia de defesa.
Em obra específica sobre o processo administrativo, rgio Ferraz e Adilson
Abreu Dallari
91
não incluem o princípio do devido processo legal entre os princípios
do processo administrativo. Ao contrário do que possa parecer, essa sistematização
ocorre em razão da enorme importância que os autores dão ao referido princípio, o
qual está, segundo eles, além do âmbito restrito do processo administrativo, sendo
seu antecedente, seu principal fator determinante. Fazem, ainda, a seguinte
constatação:
Registre-se que mesmo antes da promulgação da Constituição
de 1988, na vigência do texto constitucional anterior, onde esse
princípio não estava expressamente consignado, ele existia
e vigorava implicitamente, com todas as conseqüências dele
decorrentes, conforme sempre sustentou o Min. Carlos Velloso
(Temas de Direito Público, p. 208), apoiado nos ensinamentos
de José Frederico Marques, Geraldo Ataliba e Hely Lopes
Meirelles.
Em verdade, no conteúdo do princípio do devido processo legal
estão embutidos todos os princípios que serão adiante
especificados.
Mônica Martins Toscano Simões
92
, tecendo comentários ao princípio do
devido processo legal, destaca que, na esfera administrativa, ele tem o objetivo de
garantir que a função administrativa realize-se de forma adequada a garantir o
atendimento dos fins públicos. Reforça, assim, a ideia de que a sua observância
deve se dar em toda manifestação da vontade Estatal e não nos processos
restritivos de direito.
91
FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2001.
p.51.
92
SIMÕES, Mônica Martins Toscano. Op. cit., 2004. p.63-6.
73
Salienta, ainda, a referida autora, que o devido processo legal é a matriz dos
demais princípios informadores do processo administrativo, reforçando sua
afirmação com as palavras de Dinorá Musetti Grotti: “o devido processo legal é o
gênero do qual todos os demais princípios constitucionais do processo são
espécies”
93
.
Por fim, como se pode observar do dispositivo constante da Constituição da
República, não qualquer limitação do seu campo de incidência, de forma que se
deve reconhecer sua observância na esfera administrativa, legislativa e judicial,
como destaca Odete Medauar
94
.
Em face das considerações acima, é possível compreender a importância do
devido processo legal nos processos administrativos e, em especial, nos processos
que possam vir a restringir a esfera de direitos do particular. E se, como visto, a
outorga de uma licença urbanística consiste em um ato ampliativo de direito, sua
retirada, pela invalidação, constitui, inversamente, um ato restritivo da esfera jurídica
do particular, restando ampliada a relevância da aplicação da cláusula do devido
processo legal.
3.3.3 Devido processo legal: sentido formal e material
Como mencionado na síntese histórica, a ideia de devido processo legal
estava ligada ao desenvolvimento de um processo regular e ordenado para que se
procedesse à supressão da liberdade ou propriedade de alguém.
93
Apud Ibidem. p.66.
94
MEDAUAR, Odete. Op. cit., 2008. p.85.
74
Por interpretação da Suprema Corte norte-americana, o devido processo
legal passou a ser utilizado também como uma limitação do conteúdo dos atos
estatais, como garantia da legalidade de sua atuação. Vera Scarpinella Bueno em
estudo sobre a evolução da interpretação da referida clásula, observa:
O que é possível concluir, então, a respeito da doutrina do
devido processo legal substantivo é que ela sempre esteve
voltada e ainda está associada a alguma questão que envolva
a privação desarrazoada, por uma [sic] ato governamental
(estadual), da vida, da liberdade ou da propriedade de um
cidadão.
95
Ao chegar à nossa Constituição da República de 1988, o devido processo
legal se encontrava nesse ponto de evolução, razão pela qual não que se
negar aplicação desse instituto nesse ponto em que se encontra, ou seja, nessas
duas acepções. Sobre esse aspecto, Mônica Martins Toscano Simões:
O devido processo legal na instância administrativa nada mais
significa do que a garantia de que as decisões estatais
restringindo ou ampliando esferas jurídicas serão alcançadas
sempre com a observância do processo adequado. Para tanto,
é mister zelar pela seqüência de atos e fatos que devem
preceder o ato administrativo final (aspecto formal), bem como
considerar, no andamento do processo, as normas jurídicas
pertinentes, de forma absolutamente harmoniosa, com o
interesse público (aspecto substancial).
96
Assim, ao reafirmar-se a aplicação do princípio do devido processo legal aos
processos administrativos, considera-se a sua incidência sob as duas acepções,
formal e material.
95
BUENO, Vera Scarpinella. Devido Processo Legal e a Administração Pública no Direito
Administrativo norte-americano”. In: FIGUEIREDO, Lúcia Valle (Coord.). Devido processo legal na
administração pública. São Paulo: Max Limonad, 2001.
96
SIMÕES, Mônica Martins Toscano. Op. cit., 2004. p.65.
75
Sob o aspecto formal ou adjetivo, o devido processo legal significa a
observância de todas as formas prescritas em lei, ou determinadas por outros
princípios jurídicos, relacionadas ao andamento ordenado e regular do processo
administrativo.
Quanto ao aspecto material ou substantivo, o devido processo legal é útil
como forma de controle do próprio conteúdo das decisões da Administração Pública.
Um exemplo disso encontra-se na lição de Carlos Roberto Siqueira Castro:
A jurisprudência de nossos tribunais corrobora esse precioso
acervo doutrinário, deixando inconteste que o requisito de
motivação suficiente e legítima integra, atualmente a
abrangência do devido processo legal na órbita do Direito
Administrativo.
97
De acordo com o autor, a cláusula do devido processo legal impõe requisitos
para a problemática da revogação e anulação dos atos administrativos negociais,
que criam obrigações perante terceiros. Assim, a desconstituição desses atos não
pode chegar ao ponto de prejudicar direitos subjetivos ou causar danos aos
administrados
98
.
Impende destacar, ainda outro trecho da doutrina do ilustre autor que, a
despeito de tratar da revogação de atos administrativos, é quase inteiramente
aplicável às licenças urbanísticas:
Pode-se concluir, em suma, que a garantia do devido processo
legal desautoriza a abrupta e injustificada revogação de atos
administrativo de natureza negocial ou que gerem direitos
97
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Op. cit., 2005. p.341.
98
Ibidem. p.347.
76
perante terceiros. Não é crível, nem jurídico, que os
administrativos sujeitos a vínculos obrigacionais com a
Administração Pública possam sofrer danos mercê de
intermitentes e atabalhoadas alterações de juízos de
oportunidade e conveniência por parte dos agentes do Poder
Público. A segurança das relações jurídicas reclama um
mínimo de coerência e firmeza nas decisões administrativas
[...].
99
Como se vê, afora o fato de que as licenças urbanísticas, por serem atos
administrativos vinculados e, portanto, não sujeitos à revogação decorrentes de
juízos de conveniência ou oportunidade, também não podem ficar adstritas à
atuação administrativa por omissão ou falta de zelo, fora dos limites da legalidade. A
observância da segurança jurídica das relações e o direito de terceiros de boa-fé
também devem ser observados para as situações criadas pelas licenças
urbanísticas.
Outro campo no qual o instituto do devido processo legal reveste-se de
imensa utilidade para a salvaguarda da esfera jurídica dos administrados tem a ver
com a garantia da ampla defesa nos processos administrativos
100
, em que se
desdobra, especialmente, na observância do contraditório e na ampla defesa.
Observa-se é que o princípio do devido processo legal, além de funcionar
como um filtro de legalidade das decisões administrativas, no sentido estrito, dado
seu alto grau de abstração, permite uma análise mais ampla dessa legalidade,
abrangendo outras noções e princípios somente possíveis de vislumbrar no caso
concreto, como a segurança jurídica, a boa-fé, a razoabilidade e proporcionalidade
da decisão administrativa.
99
Ibidem. p.347.
100
Ibidem. p.354.
77
Esse desdobramento do devido processo legal substantivo em razoabilidade
e proporcionalidade das decisões administrativas encontra-se bem delineado nas
palavras de Marcos Porta
101
:
O devido processo legal substantivo compreende a
razoabilidade e a proporcionalidade a serem verificadas entre a
atuação administrativa e o ato administrativo exarado. Esses
termos acabaram assumindo, perante o Direito, identidades
próprias na medida em que passaram a ter grandezas
diferentes; todavia, andam inexoravelmente associados, como
decorrência do próprio Direito. Atrelados ao princípio da
igualdade substancial, isto é, “não basta que todos os
administrados sejam tratados da mesma forma. Na verdade,
deve-se buscar a meta da igualdade na própria lei.”
Descreve, a seguir, a noção de razoabilidade administrativa, que somente
pode ser verificada no caso concreto, e que configura a relação de congruência
lógica entre o motivo e a atuação da Administração Pública. E, quanto à noção de
proporcionalidade, relaciona-se à pertinência entre a ação adotada pela
Administração e os objetivos pretendidos.
Em face do exposto, resta demonstrada que a aplicabilidade do princípio do
devido processo legal aos processos administrativos deve atentar para o sentido
global desse princípio, em suas duas acepções, formal e material, visto que estão,
sempre, inexoravelmente associadas.
Ademais, essa visão do devido processo legal tem enorme relevância para a
invalidação das licenças urbanísticas, servindo para a construção de balizas mesmo
em face da variedade de situações concretas a serem enfrentadas pela
Administração Pública.
101
PORTA, Marcos. Op. cit., 2003. p.113.
78
CAPITULO 4 - A INVALIDAÇÃO DAS LICENÇAS URBANÍSTICAS
4.1 PANORAMA GERAL DE EXTINÇÃO DAS LICENÇAS
A invalidação das licenças urbanísticas nada mais é de que uma de suas
formas de extinção. O fundamento dessa modalidade de extinção da licença - assim
como dos demais atos administrativos - decorre do dever da Administração Pública
de rever seus atos e de retirá-los do mundo jurídico quando o se mostrarem em
conformidade com o Direito.
Em regra, os efeitos da invalidação das licenças são ex tunc, ou seja,
operam retroativamente, indo alcançar os efeitos que o ato já produziu. Nas palavras
de Lúcia Valle Figueiredo
102
, a invalidação “pretende apagar os efeitos produzidos
pelo ato até o momento da desconstituição, bem como coarctá-lo de continuar
produzindo efeitos”.
Como visto anteriormente, a invalidação não se por meio de um ato
isolado e, muito menos, que possa ser levado a cabo pela Administração de forma
arbitrária. Ao contrário, como visto, a invalidação deve ser precedida de um regular
processo administrativo, com a participação efetiva do particular que será
diretamente afetado por essa decisão e observados os princípios e regras
pertinentes.
102
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. 8ªed. o Paulo: Malheiros, 2006.
p.251.
79
A invalidação das licenças urbanísticas, assim como sua constituição,
remonta o estudo de temas do Direito Administrativo e comporta uma série de
desdobramentos a serem abordados no presente capítulo.
Antes, contudo, cumpre traçar, ainda que de modo muito sucinto, o
panorama geral de extinção das licenças urbanísticas. Essa visão ampla permite, de
forma bastante sintética, a visualização, embora sem maiores aprofundamentos, das
diferenças entre a invalidação e das outras formas de extinção, permitindo-se
delimitar, com maior precisão, o âmbito do presente trabalho.
O assunto é, sem dúvida, uma decorrência da teoria do ato administrativo e
comporta sistematizações das mais distintas. Assim, como o objetivo é a discussão
da extinção das licenças urbanísticas, o panorama geral parte desse pressuposto, a
classificação das formas de extinção desses atos especificamente por alguns
autores pátrios.
Para Lúcia Valle Figueiredo, a extinção da licença urbanística pode ocorrer
das seguintes formas
103
:
a) extinção natural: se quando cumprido o fim a que especificamente se destina
ou com o desaparecimento do objeto;
b) caducidade: se pela inércia do beneficiário, que deixa transcorrer o prazo
previsto na norma para o início das obras ou para sua paralisação;
103
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Disciplina urbanística da propriedade. 2ªed. São Paulo: Malheiros,
2005. p.149-63.
80
c) desconstituição da licença: situações em que a licença concedida deve ser
eliminada do mundo jurídico:
- invalidação: desconstituição do ato administrativo inicial por outro, em razão de
vício de ilegalidade havido no primeiro impossível de ser convalidado
(regularização da obra). Trata-se de uma competência-dever da Administração;
- revogação (revogação-expropriação): caso haja interesse público relevante,
com o pagamento de indenização
104
;
- anulação: desconstituição do ato por autoridade judicial, mediante provocação;
- cassação da licença: ocorre em razão do inadimplemento por parte do
beneficiário das obrigações assumidas.
Por seu turno, José Afonso Da Silva expõe seu entendimento com peculiar
clareza em lição extraída da sua obra Direito Urbanístico
105
:
a) anulação: ocorre quando a licença, ato vinculado, tiver sido outorgada com a
violação das normas legais pertinentes, o que as torna inválidas. Segundo o autor
“invalidade que a Administração poderá reconhecer de ofício, a fim de rever seu ato,
com sua anulação”. Poderá, ainda, ser provocada, por qualquer interessado,
utilizando-se da via judicial;
b) revogação: refere-se a uma forma de controle do rito do ato. Poderá se dar
quando houver interesse público no sentido de que não se desenvolva a atividade
104
A autora destaca que a questão da revogação das licenças urbanísticas não é assunto tão simples
quanto possa parecer. A despeito de ter endossado opinião de que a revogação deveria ser
acompanhada da expropriação do direito relativo à licença, a autora destaca que, meditando mais
sobre o tema, preferiu adotar a posição de J. J. Gomes Canotinho, utilizando-se da expressão
revogação expropriação, visto que não ocorre exatamente a expropriação, que tem rito próprio. Para
maiores esclarecimentos, vide: Ibidem. p.161, nota 66.
105
SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 4ªed. São Paulo: Malheiros, 2006. p.453-5.
81
ora outorgada, tais como na mudança das circunstâncias, pela adoção de novos
critérios de apreciação e pelo erro em sua outorga (erro de direito);
c) cassação: fundamenta-se em posterior questão de ilegalidade, mas não da
licença, mas de seu descumprimento posterior. Quando houver descumprimento, por
parte do interessado, dos termos em que foi outorgada (do projeto, da lei ou
regulamento ou de exigências contidas no alvará);
d) caducidade: ocorre em razão do transcurso do prazo legal previsto, quando o
interessado não início à atividade licenciada ou a paralisa por tempo superior ao
permitido.
Para José Marcelo Ferreira Costa
106
, a extinção das licenças urbanísticas
dá-se pelas formas seguintes:
a) Recomposição da ordem jurídica:
- invalidação: destina-se à eliminação dos efeitos do ato inválido, maculado por
vício de legalidade, pela própria Administração ou pelo Judiciário, quando
provocado;
- convalidação: é a restauração da legalidade por meio da prática de novo ato
pela Administração, reconhecendo os efeitos do ato anterior e sanando os vícios
deste;
b) cassação: pelo descumprimento, por parte do interessado, das condições em que
foi concedida a licença que, por sua vez, não comporta vícios de legalidade;
106
COSTA, José Marcelo Ferreira. Licenças urbanísticas. Belo Horizonte: Fórum, 2004. p.141-55.
82
c) expropriação do direito: uma vez concedida a licença, ato administrativo
vinculado que cria um direito para o interessado, não é possível revogá-la. A forma
de suprimir tal ato deverá ser a expropriação;
d) caducidade: quando ultrapassado o prazo estipulado no alvará sem que o
particular promova a execução da atividade licenciada;
Luís Manuel Fonseca Pires
107
, a seu turno, sistematiza a extinção das
licenças urbanísticas do seguinte modo, ressaltando que opta, por tratar, em seu
Regime Jurídico das Licenças, apenas das formas mais complexas de extinção,
excluindo, por exemplo, a renúncia expressa do interessado ou o caso fortuito ou
força maior:
a) invalidação: retirada do mundo jurídico em função de algum vício de validade,
podendo ocorrer perante a própria Administração, por sua iniciativa, ou por
provocação do interessado, ou ainda por um provimento jurisdicional, provocado
pelo próprio Poder blico por um particular, ou pelo Ministério Público, em certas
circunstâncias;
b) caducidade: consequência da inércia do particular por deixar de atender aos
prazos previstos para o exercício do direito outorgado pela licença, provocando a
extinção do ato;
c) cassação: constitui verdadeira sanção pelo descumprimento de um dever
prescrito, decorre do descumprimento das exigências previstas na licença;
107
PIRES, Luís Manuel Fonseca. Regime jurídico das licenças. São Paulo: Quartier Latin, 2006.
p.175-87.
83
d) extinção em razão de interesse público superveniente (revogação-expropriação):
supressão da licença por razões de interesse público superveniente com a devida
indenização.
Esse é, como se disse, apenas um panorama geral de uma pequena, mas
significativa, amostra da doutrina pátria sobre as formas pelas quais as licenças
urbanísticas podem ser suprimidas do mundo jurídico.
Essa visualização horizontal das formas de extinção das licenças permite
concluir que, ainda que a sistematização se de forma particular por cada autor, é
possível retirar delas a característica essencial da invalidação, ponto de
convergência entre todos: a invalidade decorre da violação da ordem jurídica
vigente.
Por outro lado, divergências significativas entre os conceitos propostos.
Não alinhamento, por exemplo, a respeito dos efeitos da invalidação, se
alcançariam o ato de licença, somente seus efeitos, ou ambos; se invalidação e
anulação são expressões sinônimas ou não; se a invalidação é um dever ou se a
reconstituição da legalidade da ordem jurídica pode se dar de outro modo, como
pela convalidação; se a declaração é, em regra, ex tunc ou pode ser também ex
nunc, pontos estes que serão objeto de reflexão adiante.
Antes de se passar ao estudo de tais questões, uma vez expostas as formas
de extinção das licenças urbanísticas, oportuno se faz tecer alguns apontamentos,
84
sobre os quais não cabe aprofundamento, por não estarem abrangidos no foco do
presente trabalho, acerca da revogação.
Em relação à revogação dos atos administrativos em geral, é importante
destacar que tem como pressuposto o fato do ato anteriormente praticadoo
atender ao interesse público, conclusão esta que decorre de um julgamento de
conveniência e oportunidade. A eficácia do ato que revoga um anterior é, em regra,
ex nunc, havendo, contudo, possibilidade de exceção. A revogação de um ato
administrativo, também em regra, não gera margem à indenização.
Sobre a revogação das licenças urbanísticas, conveniente destacar um outro
aspecto. Demonstrado ser a licença urbanística um ato administrativo vinculado -
como tranquilamente aceito pela doutrina -, ou seja, exercido com fundamento em
competência administrativa vinculada, não parece possível falar, nesse caso, em
revogação. Como muito bem destaca Celso Antônio Bandeira de Mello
108
, o
fundamento do poder de revogar deflui da mesma regra de competência que
habilitou o agente (ou o teria habilitado) à prática do anterior, que se vai revogar.
Mais adiante o referido mestre deixa claro que a revogação baseia-se numa
competência discricionária. Assim, não tendo havido competência discricionária para
a prática do ato, não se pode admitir que essa competência passe a existir no
momento da sua supressão do mundo jurídico.
Em situações excepcionais, em que o interesse público superveniente esteja
devidamente comprovado e fundamentado, caso o exercício da atividade contida no
108
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 26ªed. São Paulo:
Malheiros, 2009. p.432, 438.
85
instrumento da licença (produzida com a observância dos preceitos legais
pertinentes) pudesse vir a causar um prejuízo insuportável, a solução adequada
seria expropriação do direito
109
, conforme opinião de Celso Antônio Bandeira de
Mello
110
.
Vale ressaltar que essa mesma solução é proposta pelo referido jurista para
as situações em que lei superveniente venha a estabelecer disciplina divergente
com os termos da licença expedida sob a vigência de lei anterior: “será necessário
expropriar o ‘direito de construir’ adquirido nos termos da lei antiga, a fim de que o
prejudicado recebe prévia e justa indenização pelo sacrifício do seu direito.”
111
Acrescente-se que a expropriação do direito pode se dar tão logo tenha sido
expedida a licença, independentemente de ter sido iniciada a obra, visto que a partir
desse momento se encontra incorporada ao patrimônio jurídico do particular, ou,
nos termos de Lúcia Valle Figueiredo, ao próprio direito de propriedade
112
.
Vale transcrever, ainda, as seguintes considerações de Celso Antônio
Bandeira de Mello:
Em síntese: licença válida gera direito adquirido. Sua
supressão ulterior pode efetivar-se mediante expropriação,
que é a via constitucional prevista para a conversão de um
direito em seu sucedâneo patrimonial. Razões de conveniência
e oportunidade não se podem opor a direitos. Leis novas, por
não poderem ser retroativas, também não podem desconstituir
109
Sobre o assunto, ver: TALAMINI, Daniele Coutinho. Revogação do ato administrativo. o Paulo:
Malheiros, 2002.
110
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., 2009. p.451.
111
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Ato administrativo e direito dos administrados. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1981. p.182.
112
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Op. cit., 2005. p.161.
86
direitos anteriormente formados. A proteção aos direitos
adquiridos, estabelecida na Lei Maior, garante os que iniciaram
construção com base em licença regularmente expedida. a
expropriação pode harmonizar os choques de interesse que
exijam composição, quando ambas as partes possuem
pretensões que merecem a tutela do Direito.
Nesse último caso, destaque-se apenas que se trata da extinção de uma
licença urbanística válida em face da alteração superveniente da legislação. Nos
casos a serem vistos a seguir, a discussão refere-se às licenças inválidas, ou seja,
expedidas em desconformidade com a legislação pertinente.
4.2 PERFEIÇÃO, VALIDADE E EFICÁCIA DO ATO ADMINISTRATIVO
Mais uma vez, para se compreender questões atinentes às licenças
urbanísticas, nesse caso a invalidação, necessário o retorno à teoria do ato
administrativo.
4.2.1 Perfeição
Considera-se perfeito o ato administrativo quando completadas todas as
suas etapas de formação. Ou, nas palavras, de Oswaldo Aranha Bandeira de
Mello
113
, “quando esgotadas todas as operações necessárias a sua existência
jurídica”. Vale lembrar, tal ciclo de formação do ato encontra-se estabelecido no
próprio ordenamento jurídico, não bastando, portanto, sua simples exteriorização
fática
114
.
113
BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios Gerais de Direito Administrativo. 3ªed. o
Paulo: Malheiros, 2007. p.606.
114
ZANCANER, Weida. Da Convalidação e da Invalidação dos Atos Administrativos. 3ªed. Coleção
Temas de Direito Administrativo nº 1. São Paulo: Malheiros, 2008. p.37.
87
Para a configuração da existência jurídica do ato administrativo, é
necessária a presença de alguns requisitos relacionados ao seu processo de
formação. Para tanto, toma-se como diretriz a sistematização traçada por Celso
Antônio Bandeira de Mello
115
.
Segundo o jurista, são pressupostos de existência do ato administrativo o
objeto e a pertinência do ato ao exercício da função administrativa. Todavia, convém
lembrar que: “Sem os elementos, não ato algum, administrativo ou não”. Ou seja,
“inexistirá o próprio ser que se designa pelo nome de ato jurídico”
116
.
Desse modo, conclui-se que os chamados requisitos de existência do ato
jurídico são, na verdade, a somatória dos pressupostos de existência (objeto e
pertinência do ato ao exercício da função administrativa), bem como os elementos
do ato, conteúdo e forma.
O elemento denominado conteúdo consiste naquilo sobre o que o ato
dispõe, “o que o ato decide, enuncia, certifica, opina ou modifica na ordem jurídica.
É, em suma, a própria medida que produz a alteração na ordem jurídica”.
117
Por sua vez, a forma é o suporte material, o revestimento externo do ato.
Noutros termos, “é a disponibilização da prescrição por meio de um suporte material
115
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., 2009. p.387.
116
Ibidem. p.387.
117
Cf.: Ibidem. p.388.
88
reconhecido ou previsto pelo direito, é dizer, consubstancia-se na via adequada
(suporte físico) ao surgimento das normas aos sentidos humanos”.
118
Márcio Cammarosano
119
destaca que “à perfeição do ato opõe-se sua
inexistência”. Portanto, esgotadas as operações necessárias para a constituição do
ato administrativo
120
, posto está ele no mundo jurídico.
Não obstante esses posicionamentos acerca do plano da perfeição, que
se ressalvar, por fim, quem reconheça na noção de perfeição algo supérfluo, como
Antônio Carlos Cintra do Amaral
121
, ou, por outro lado, que ela se reduza ao conceito
de validade, como entendem Tito Prates da Fonseca e Themístocles Brandão
Cavalcanti
122
.
4.2.2 Validade
A validade do ato administrativo refere-se à sua conformidade com o
ordenamento jurídico.
118
Cf.: COSTA, José Marcelo Ferreira. Licenças urbanísticas. Belo Horizonte: Fórum, 2004. p.119.
119
CAMMAROSANO, Márcio. “Decaimento e extinção dos atos administrativos”. Revista de Direito
Público. nº 53-54. São Paulo: Malheiros, s/d. p.163.
120
As quais, para o autor, o: sujeito, conteúdo, forma, objeto, preordenação à produção de efeitos
jurídicos e exercício de função administrativa. Ibidem. p.163.
121
AMARAL, Antônio Carlos Cintra do. Teoria do Ato Administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2008.
p.53-60.
122
Apud ZANCANER, Weida. Op. cit., 2008. p.34.
89
Conforme Celso Antônio Bandeira de Mello, o ato administrativo é valido
quando for expedido com observância das exigências previstas no sistema
normativo. “Validade, por isto, é a adequação do ato às exigências normativas.”
123
São pressupostos de validade do ato administrativo: o sujeito (o agente
emissor do ato administrativo que deve ser detentor da competência para sua
prática) o motivo (pressuposto de fato que autoriza ou exige a prática do ato), os
requisitos procedimentais (atos que devem preceder a prática do ato, em razão de
previsão normativa), a finalidade (resultado do ato prescrito pela lei), causa (relação
de adequação entre o motivo e o conteúdo do ato) e, por fim, a formalização (modo
específico pelo qual o ato deve ser exteriorizado).
Uma vez encontrado vício em qualquer um desses pressupostos, o ato
administrativo estará em desconformidade com o ordenamento jurídico, sendo
possível sua invalidação pela própria Administração, em razão do seu dever de velar
pela legalidade de seus atos, ou pelo Poder Judiciário, o que somente poderá
ocorrer mediante provocação.
4.2.3 Eficácia
Eficácia do ato jurídico diz respeito à aptidão para a produção de seus
efeitos próprios, ou seja, adequados à sua tipologia.
123
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., 2009. p.383.
90
É comum, na doutrina, a diferenciação entre os efeitos típicos que, como se
disse, correspondem ao que se espera da tipologia do ato e, ainda, os efeitos
atípicos, os quais podem ser de duas ordens: preliminares, que existem entre o
período de produção do ato até o momento em que passa a gerar seus efeitos
típicos; reflexos, os que influenciam outra relação jurídica, atingindo terceiros não
envolvidos na relação jurídica objeto do próprio ato.
Se, como visto, a perfeição é o percurso das operações necessárias para o
ato existir, uma vez ultrapassado seu ciclo de produção, um ato administrativo
perfeito, ou seja, existente, pode ser: válido e eficaz, válido e ineficaz, inválido e
ineficaz e, por fim, inválido e eficaz.
Não dúvidas que basta a invalidade do ato administrativo para haver uma
reação da ordem jurídica no sentido de excluí-lo, independentemente da produção
de efeitos. Porém, não como se negar, os atos inválidos e eficazes devem ser
objeto de maior atenção por parte daqueles que devem velar pela manutenção da
legalidade, bem como, têm, inegavelmente, maior relevância prática.
4.3 CLASSIFICAÇÃO DAS INVALIDADES
A invalidação de um ato administrativo, seja uma licença urbanística ou
qualquer outro, pode ser realizada pela própria Administração, pelo dever a que está
submetida de restaurar o princípio da legalidade, ou também pelo Poder Judiciário,
mediante provocação do interessado.
91
Questão árdua no Direito Administrativo, todavia, é definir as espécies de
invalidades, ou seja, quais os atos que, em razão de sua deformidade, devem ser
necessariamente invalidados ou, por outro lado, devem ser submetidos a
procedimentos saneadores do vício, como a convalidação e a conversão.
A doutrina sobre o assunto comporta diversos posicionamentos e
aprofundadas discussões, mas o presente estudo se deterá nos assuntos essenciais
à análise do tema proposto.
Para alguns autores, entre eles Hely Lopes Meirelles e Diógenes Gasparini,
existem apenas, em Direito blico, os atos nulos
124
. De acordo com o primeiro
autor citado, o ato é “ilegítimo ou ilegal e o produz qualquer efeito válido entre as
partes, pela evidente razão de que não se pode adquirir direitos contra a lei”
125
.
Acrescenta, ainda, sobre a declaração de nulidade:
[...] essa declaração opera ex tunc, isto é, retroage às suas
origens e alcança todos os seus efeitos passados, presentes e
futuros em relação às partes, se admitindo exceção para
com os terceiros de boa-fé, sujeitos às suas conseqüências
reflexas.
126
É compreensível a preocupação do mestre ora citado com a presença de
qualquer vício de ilegalidade do âmbito do Direito Administrativo, ramo do Direito
Público que, mais do que qualquer outro, deve se incumbir de velar pela integridade
da ordem jurídica. Contudo, é inegável que atos inválidos produzem efeitos jurídicos
124
GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 10ªed. São Paulo: Saraiva, 2005. p.109.
125
Para o autor, quanto à eficácia, os atos administrativos podem ser válidos, nulos ou inexistentes.
Esses últimos têm apenas aparência de uma manifestação regular da Administração, mas não
chegam a se aperfeiçoar como tal. (Direito Administrativo Brasileiro. p. 174)
126
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 33ªed. São Paulo: Malheiros, 2007.
p.174.
92
típicos podendo, ainda, alcançar terceiros de boa-fé. Além disso, apesar da regra da
declaração de invalidade produzir efeitos ex tunc, é possível também afastá-la em
razão de princípios jurídicos aplicáveis aos casos concretos.
Antônio Carlos Cintra do Amaral
127
é enfático ao afirmar que não existe
nulidade de pleno direito porque não há ato administrativo automaticamente nulo. Há
a necessidade de declaração, nesse sentido, por algum órgão estatal competente
tanto. Além disso, entende que a classificação do Código Civil entre atos nulos e
anuláveis não pode ser transplantada para o Direito Administrativo.
Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, a seu turno, sustenta a distinção entre
atos nulos e atos anuláveis, sendo os primeiros não passíveis de convalidação, ao
contrário dos segundos
128
. Tal classificação, segundo o saudoso jurista, envolve
matéria de Teoria Geral do Direito, portanto, perfeitamente aplicável à seara do
Direito Administrativo, não se restringindo somente ao Direito Civil.
Há, ainda, a diferenciação feita por Celso Antônio Bandeira de Mello
129
. Para
o autor, apesar de não haver graus de invalidade, pode haver uma gradação quanto
à intensidade da forma como a ordem jurídica repele as várias hipóteses de cio.
Assim, justificar-se-ia a existência de atos nulos, anuláveis e inexistentes
130
. Acerca
do restabelecimento da legalidade do ato viciado, o autor afirma:
127
AMARAL, Antônio Carlos Cintra do. Op. cit., 2008. p.99.
128
BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Op. cit., 2007. p.651 e sgs.
129
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., 2009. p.454.
130
Para o autor, atos inexistentes consistem em “uma categoria de atos viciados cuja gravidade é de
tal ordem que, ao contrário dos atos nulos ou anuláveis, jamais prescrevem e jamais podem ser
objeto de ‘conversão’. Além disso, existe direito de resistência contra eles”. Ibidem. p.461.
Contudo, sob esse aspecto, esse trabalho acompanha a linha de pensamento traçada por Mônica
Martins Toscano Simões, no sentido de que os atos inválidos sequer chegam a constituir-se em atos
93
De todo modo, não negar que um ato padecente de vício é
invalidável. A possibilidade de convalidação irá categorizá-lo na
classe dos anuláveis, em oposição aos nulos e aos
inexistentes, mas a menor gravidade do vício não pode
significar imunidade contra eventual fulminação.
131
Os meios pelos quais a validade de um ato poderia ser restabelecida seriam
a convalidação e a conversão. Na primeira hipótese, a Administração profere um
segundo ato, conforme o Direito, de modo a suprir a invalidade do primeiro, com
efeitos retroativos. No caso da conversão, “o Poder Público trespassa, também com
efeitos retroativos, um ato de uma categoria na qual seria inválido para outra
categoria na qual seria válido”, conforme Bandeira de Mello, que acrescenta:
De conseguinte, ao contrário da convalidação, em que o ato
inválido tem salvaguardados os mesmos efeitos, na conversão
o ato produz, retroativamente, efeitos próprios de outro ato:
aquele que seria possível.
132
Por outro lado, autores que preferem uma diferente sistematização da
matéria, como faz Weida Zancaner
133
ao apresentar a classificação baseada na
possibilidade de saneamento. Para a autora há: atos absolutamente sanáveis, atos
absolutamente insanáveis, atos relativamente sanáveis e atos relativamente
insanáveis.
Sobre o poder ou dever de convalidar, a referida autora aponta a ideia de
que cabe à Administração o dever de proceder à convalidação, caso essa se mostre
jurídicos e, portanto, muito menos em atos administrativos. Acrescente-se que os atos inválidos, a
despeito de contrariarem a ordem jurídica, esgotaram os mecanismos para sua produção. Apesar de
inválidos, são perfeitos e, portanto, existentes. SIMÕES, Mônica Martins Toscano. O processo
administrativo e a invalidação de atos viciados. São Paulo: Malheiros, 2004. p.133-135.
131
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., 2009. p.466.
132
Ibidem. p.467-8.
133
ZANCANER, Weida. Op. cit., 2008. p.107-18.
94
possível e, somente na impossibilidade de sanar a invalidade por esse meio é que
terá a obrigação de invalidar o ato.
O presente estudo alinha-se com a concepção trazida pela referida
administrativista e, como ela mesma adverte, poderá haver situações em que esse
dever poderá ser obstaculizado, se transmutando em dever da Administração
Pública de se abster, com será visto adiante.
Assim, sobre o dever de convalidar, cite-se mais uma vez os estudos da
citada professora:
Em face do exposto, quando possível a convalidação dos atos
viciados, a Administração não poderá negar-se a fazê-lo. Não
há, nesta hipótese repita-se -, opção discricionária, pois, se a
Administração Pública deve agir com fiel subsunção à lei, o
nos parece plausível que possa ficar a critério do administrador
invalidar atos, relações jurídicas ou ambos, se existe a
possibilidade de convalidá-los, pois a convalidação atende não
ao princípio da legalidade mas, sobretudo, ao da segurança
jurídica, ressalvada a hipótese de ato discricionário maculado
por vício de competência.
134
Mesmo que a Administração exerça seu dever de convalidar, haverá
situações em que somente restará a alternativa de invalidar a licença eivada de vício
de ilegalidade e, ainda, que inválidos, tais atos gerem consequências jurídicas.
Nesse aspecto, em razão do decurso do tempo ou de alguma situação específica,
poder-se-á, inclusive, chegar a afastar o exercício do dever de invalidar da
Administração ou restringir seus efeitos, pois o contrário seria ainda mais nocivo ao
134
Ibidem. p.68.
95
Direito, afrontando a esfera de direitos do interessado ou de terceiros, por exemplo,
ferindo princípios jurídicos como a boa-fé e a segurança jurídica.
4.4 CONVALIDAÇÃO E INVALIDAÇÃO
De acordo com o exposto, a primeira diretriz a ser seguida pela
Administração Pública, ao se deparar com um ato administrativo inválido, é a
verificação da possibilidade de convalidação desse ato. Caso essa operação o
possa ser levada a cabo, deverá, em princípio, proceder à sua invalidação.
Em razão dessa afirmação, necessário se verificar em que hipóteses poderá
haver a convalidação do ato e, em que outras, esse saneamento não será possível,
devendo-se proceder à invalidação do ato. O posicionamento presente no trabalho
em pauta leva em conta a teoria traçada por Weida Zancaner
135
.
Destaca-se, por relevante, que essas orientações valem em abstrato. No
caso concreto, deve haver uma ponderação dos interesses envolvidos (com ênfase,
por óbvio, no interesse público), das normas incidentes e, em especial, dos
princípios aplicáveis ao caso, tais como os princípios da segurança jurídica e da boa-
fé, que poderão afastar o dever de invalidar da Administração Pública.
135
Ibidem. p.85 e segs.
96
4.4.1 Vício de competência
Relacionam-se, os vícios de competência, ao agente que praticou o ato
administrativo. Em relação a este pressuposto do ato, a doutrina, em sua maioria, é
pacífica ao entender a possibilidade – na verdade, o dever da Administração
proceder à sua convalidação.
Desse modo, ao ser expedido o ato de convalidação, esse o será por agente
competente para a sua expedição.
Conveniente ressaltar, o dever de convalidar existirá para atos cuja prática
decorrer do exercício da competência vinculada. Assim como se disse sobre a
invalidação, que decorre da mesma regra de competência que deu ensejo à prática
do ato, o mesmo raciocínio se aplica à convalidação.
Desse modo, os atos emanados em decorrência da competência
discricionária geram, para a Administração, não apenas o dever de convalidá-los,
mas também a faculdade, semelhante a que existiu no momento da prática do ato.
Todavia, em se tratando de licença urbanística, ato vinculado por essência e
ampliativo da esfera de direitos do administrado, haverá sempre o dever de
convalidar e, em não sendo possível, proceder-se-á à invalidação.
97
4.4.2 Vício de formalidade
Visto que a formalização é uma maneira específica exigida pela lei para a
validade do ato, caso seja esse o vício ensejador da invalidade, compreende-se que
seja possível convalidá-lo. Assim, ao emanar o ato de convalidação, a Administração
deverá observar a aparência externa determinada pela norma.
4.4.3 Vício de requisitos procedimentais
Os requisitos procedimentais (aqui chamado de processo que antecede a
outorga da licença) são outros atos que, encadeados, precedem a expedição do ato
final. Sua prática pode advir da Administração ou do particular interessado.
A convalidação desse tipo de vício é possível e se mediante duas
hipóteses. A convalidação pela Administração poderá se dar quando ausente algum
ato cuja prática posterior não venha desvirtuar a finalidade de todo o processo.
Em relação à prática de ato por particular, é necessário, para a restauração
da legalidade, que o interessado pratique o ato com a intenção expressa de fazer
retroagir seus efeitos. Nesse caso, Weida Zancaner
136
prefere utilizar a expressão
saneamento do ato, reservando a convalidação para ato da Administração.
A referida autora destaca, apenas, que a convalidação não sepossível se
vier a gerar desvirtuamento da finalidade em razão da qual o procedimento foi
136
Ibidem. p.89-90.
98
instaurado
137
. Mas, de forma geral, os autores se posicionam no sentido da
possibilidade de convalidação do procedimento.
4.4.4 Vício de motivo
O motivo é o pressuposto de fato que permite ou exige a prática do ato. É,
portanto, o suporte de fato, que ensejo ao início do processo de produção do ato
administrativo.
Se não a ocorrência, no mundo empírico, desse acontecimento, não
suporte à prática do ato. E se, ainda assim, foi expedido o ato administrativo,
trata-se de um vício de invalidade insanável, posto que não como impedir tal
acontecimento e fazê-lo retroagir à data da emissão do ato.
138
4.4.5 Vício de conteúdo
O conteúdo do ato é aquilo sobre o que dispõe, a enunciação da
modificação pretendida pelo ato na ordem jurídica, conforme as lições de Weida
Zancaner
139
. A autora destaca, ainda, tanto os atos que se referem a objetos ilícitos
ou impossíveis, quanto aqueles em que a modificação almejada no mundo jurídico
se apresentar defeituosa, “não podem ser reproduzidos validamente, que o erro
se repetirá quantas vezes tentarmos reproduzi-los.”.
137
Ibidem. p.89.
138
Ibidem. p.92.
139
Ibidem. p.36.
99
4.4.6 Vício de causa
A causa do ato administrativo é a correlação havida entre o motivo e o seu
conteúdo, tendo como parâmetro dessa ligação a sua finalidade. É, portanto, como
fala Bandeira de Mello
140
, um pressuposto lógico da validade.
Assim, incongruência entre o motivo e o conteúdo do ato administrativo
acarreta vício de causa, a qual não há como ser remediada.
O vício de motivo e o de conteúdo, isoladamente, são capazes, por si sós,
de gerar a invalidade do ato administrativo sem possibilidade de saneamento. O que
dizer então, de um ato em que esses dois pressupostos existem de formas
desconexas e dissociadas da finalidade legal?
Relevante destacar, sobre o assunto, as considerações de Celso Antônio
Bandeira de Mello
141
:
Através da causa vai-se examinar se os motivos em que se
calçou o agente, ainda que não previstos em lei, guardam nexo
lógico de pertinência com a decisão tomada, em face da
finalidade que, de direito, cumpre atender.
É, pois, no âmbito da causa que se examinam dois picos
extremamente importantes para a validade do ato, a saber: a)
sua razoabilidade e b) sua proporcionalidade.
140
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., 2009. p.402.
141
Ibidem. p.403.
100
4.4.7 Vício de finalidade
A finalidade consiste no bem jurídico visado pelo ato, o resultado específico
que deve produzir de acordo com o determinado pela norma.
Um ato cuja finalidade encontra-se viciada, ou seja, o corresponde ao fim
para o qual foi expedido, não tem condições de ser saneado, caracterizando-se essa
situação como desvio de finalidade ou desvio de poder
142
.
Vale dizer que o é relevante se o interesse efetivamente atendido possui
caráter público ou privado. A relevância encontra-se no “descompasso objetivo
gerado neste pressuposto, isto basta para torná-lo inconvalidável”
143
.
4.5 OBJETO DA INVALIDAÇÃO
Como se observa do título do presente estudo, trata-se aqui da invalidação
das licenças urbanísticas pela Administração Pública. Todavia, é preciso esclarecer
que a invalidação das licenças pode dar-se em relação à própria licença viciada,
como também poderá atingir seus efeitos.
142
Sobre o assunto, ver: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e controle
jurisdicional. 2ªed. São Paulo: Malheiros, 2006.
143
ZANCANER, Weida. Op. cit., 2008. p.97.
101
Essa afirmação encontra respaldo na afirmação de Celso Antônio Bandeira
de Mello acerca dos efeitos da invalidação: “consistem em fulminar o ato viciado e
seus efeitos, inúmeras vezes atingindo-o ab initio, portanto, retroativamente
144
.
Essas considerações remetem, portanto, à questão sobre qual seria o
efetivo objeto do ato de invalidação. O que se verifica da doutrina é que quando da
análise da invalidação dos atos administrativos, ou mesmo das licenças urbanísticas,
grande parte dos autores não fazem qualquer diferenciação entre a invalidação do
ato administrativo em si mesmo ou dos efeitos desse ato. É o caso de Lúcia Valle
Figueiredo, Weida Zancaner, Maria Silvia Zanella Di Pietro, entre outros
doutrinadores pátrios.
Há, contudo, autores que elaboram tal distinção, sendo oportuno conhecer
suas razões.
Para tanto, observem-se as considerações de Celso Antônio Bandeira de
Mello
145
:
O objeto da invalidação ora será um ato ainda ineficaz, ora
uma relação jurídica, ora um ato e as relações jurídicas que
produziu.
Com efeito, já se disse que, em Direito, ato administrativo
significa uma fonte, u’a [sic] matriz de efeitos jurídicos. Esta
fonte que é o ato não se confunde com os efeitos dele
nascidos. São coisas distintas o produtor (ato) e o produzido
(efeitos).
144
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., 2009. p.459.
145
Ibidem. p.455.
102
Em estudo sobre o decaimento e a extinção dos atos administrativos,
expondo pensamento semelhante, Márcio Cammarosano
146
aduz:
O ato administrativo não fica a produzir efeitos qual uma fonte a
verter água. O ato num dado instante, produz efeito. A
produção (eficácia) nem sempre é instantânea. O efeito
(resultado) é que permanece. O ato, ao cumprir sua função,
produzindo o seu efeito típico, principal o efeito a que fora
preordenado, esgota-se.
Desse modo, uma nítida diferenciação entre o que é o ato administrativo
e sua eficácia própria (típica) e os efeitos dele decorrentes.
Quando se retoma a teoria da eficácia do ato administrativo, que se
recordar, o ato administrativo eficaz é aquele apto a produção de seus efeitos
típicos, ou seja, aqueles efeitos esperados à sua tipologia específica
147
.
Sobre a questão, Celso Antônio Bandeira de Mello é claro ao afirmar que o
ato administrativo é eficaz “quando esdisponível para a produção de seus efeitos
próprios; ou seja, quando o desencadear de seus efeitos típicos não se encontra
dependente de qualquer evento posterior”
148
.
Ambos os autores parecem concordar que os atos administrativos eficazes
extinguem-se com a produção de seus efeitos e que, a partir daí, a invalidação, caso
venha a ocorrer, somente poderá incidir sobre algo que ainda exista no mundo
jurídico, ou seja, sobre o que esse ato produziu ou venha a produzir.
146
CAMMAROSANO, Márcio. Op. cit., s/d. p.166-7.
147
Diferentemente, Márcio Cammarosano entende que a eficácia comporta graus, podendo ocorrer
entre um grau mínimo e um grau máximo. Assim, o autor não restringe a eficácia dos atos
administrativos à produção dos efeitos típicos. Ibidem. p.165.
148
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., 2009. p.383.
103
Ressalte-se, todavia, que nem sempre a invalidação incide sobre atos
administrativos eficazes, podendo também ter como objeto atos administrativos
ineficazes. Esse aspecto foi apontado por Bandeira de Mello, visto que nesse caso,
o único objeto possível da invalidação é o próprio ato, uma vez que ainda não
qualquer efeito a invalidar.
Por outro lado, de maior relevância para a presente pesquisa é a análise
feita pelo autor em relação aos atos eficazes, separando-os conforme sejam eles
abstratos ou concretos
149
. Sobre a primeira situação, expõe:
Se é o ato abstrato, como o regulamento, por exemplo, sua
característica específica reside justamente em ser fonte
contínua de efeitos. Isto é, toda vez que se renove a situação
abstrata nele prevista, o ato produz novamente um fluxo de
efeitos. Em suma: o ato abstrato não se resume a produzir uma
dada relação jurídica. Pelo contrário, produzirá tantas relações,
ou seja, tantos fluxos de efeitos, quantas vezes se repetir a
situação hipotética ali prevista.
Nestes casos a invalidação surge para cumprir um duplo
objetivo: impedir que a fonte produtora de efeitos (o ato)
continue a gerar novas relações e suprimir as já nascidas.
E, quanto à segunda hipótese, de maior relevância para o estudo em pauta:
Quando o ato é concreto caracteriza-se, em oposição aos
abstratos, por se aplicável uma única vez, pois se aplicará
àquela concreta situação. Vale dizer: o ato se esgota na
produção de uma única relação jurídica. Seu significado em
Direito, que é o de ser fonte de efeitos, exaure-se de imediato.
O ato não será fonte de nada mais. Portanto, extingue-se. O
que perdura é o fluxo de efeitos que gerou, ou seja: a relação
jurídica produzida.
149
Ibidem. p.456.
104
Nestes casos, a invalidação quer eliminar e com frequência
retroativamente o que ainda existe: a relação jurídica. Do ato
não mais cuidar, pois desapareceu com sua aplicação
concreta, isto é, única.
Aplicando as considerações acima ao caso da licença urbanística, ato
administrativo concreto, como demonstrado, infere-se que seria próprio de sua
espécie a produção imediata de seus efeitos, uma relação jurídica, qual seja, a
outorga do particular da faculdade de exercer um direito (construir, reformar, parcelar
o solo, instalar determinada atividade em certo imóvel). A partir daí, tal ato já se teria
exaurido e invalidação se daria, na verdade, sobre seus efeitos.
Não obstante a existência desse posicionamento doutrinário, e considerando
que o trabalho em tela somente abarcaria a hipótese acima apontada, a opção feita
foi pela utilização da expressão genérica invalidação da licença urbanística para
abranger tanto o próprio ato de licença quanto os seus efeitos, sendo, quando
necessário, o apontamento feito de modo expresso.
105
CAPÍTULO 5 - A INVALIDAÇÃO DA LICENÇA URBANÍSTICA
E O DEVIDO PROCESSO LEGAL
5.1 LICENÇA INVÁLIDA E A RESPONSABILIDADE PELOS DANOS CAUSADOS
Conforme visto no item acima, os vícios insanáveis, que podem estar
presentes nas licenças urbanísticas, são aqueles que dizem respeito ao conteúdo,
ao motivo, à finalidade e à causa, dando ensejo, portanto, à sua invalidação.
Ao tratar da licença para construir, Lúcia Valle Figueiredo
150
afirma que, em
razão de se contrapor ao ordenamento jurídico, em algumas situações, licenças
concedidas devem ser eliminadas. Desse modo, cabe à Administração Pública
expedir outro ato administrativo com a finalidade de desconstituir o anterior,
restabelecendo a legalidade.
A autora ressalta a relevância dos efeitos do ato de invalidação, ao destacar
que as consequências jurídicas de tal ato revestem-se de importância e fazem com
que se investigue a respeito da responsabilidade administrativa e dos limites da
invalidação.
Quanto à responsabilidade, a professora ora mencionada destaca a
importância de se verificar a situação em que ocorreu o vício na expedição da
licença, o qual poderá ter sido causado por culpa exclusiva da Administração ou com
150
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Disciplina urbanística da propriedade. São Paulo: Malheiros, 2005.
p.149-61.
106
a culpa concorrente do particular, podendo ensejar diferentes desfechos. Observe-
se:
Outrossim, consideramos útil distinguir as hipóteses da
ocorrência de vício na expedição da licença quando por culpa
exclusiva da Administração ou quando se verifica a ocorrência
de culpa do particular.
É mister a verificação de quem ensejou o vício.
Evidentemente, os prejuízos advindos da conduta
administrativa hão de ser mensuráveis, de molde a ensejar a
reparação.
Tal posicionamento, a nosso ver, é o mais coerente com o
princípio da igualdade e, destarte, com o princípio de que as
cargas públicas devam ser suportadas, de igual modo, por
todos.
De fato, não se pode considerar que a invalidação de uma licença
urbanística tenha como consequência irrestrita a impossibilidade de gerar reparação
dos danos causados. Noutros termos, que se admitir, paralelamente ao dever da
Administração de velar pela legalidade dos seus atos, existe também o dever de se
responsabilizar por eles, reparando os danos eventualmente causados ao particular,
advindos de sua conduta inadequada.
Na hipótese de haver culpa exclusiva da Administração na ocorrência do
vício da licença urbanística, não pode o particular ser penalizado com a conduta
do Poder blico, situação em que, caso tenha havido algum dano, deverá ser
efetivamente indenizado.
Diferente seria a hipótese em que o particular, agindo de má-fé durante o
processo de outorga, obteve, ao final, a licença, e deu início à construção. Nesse
caso, necessário seria o sopesamento da culpa entre as partes, em razão de sua
107
conduta e/ou omissão, para se estabelecer, com critérios adequados, a necessidade
e o valor da reparação.
Trazendo à colação as palavras de Seabra Fagundes, a referida
professora confirma seu raciocínio:
Calha, ainda, a propósito, cita do eminente Seabra Fagundes:
Temos que se decisão judicial vier a dar por válido o ato
anulatório, o Estado responderá pelas perdas e danos
advindos do licenciamento indevido. A obrigação de indenizar
resulta de culpa do serviço público, que a sentença não exclui,
antes constata, ao ter como nula a concessão de licença feita
com obediência a todos os trâmites, inclusive a audiência dos
diferentes órgãos de assessoramento. Os prejuízos sofridos
pela consulente serão resultado do mau funcionamento do
serviço público, em cuja eficiência confiou de boa-fé,
elaborando projetos, adquirindo material, contratando pessoal e
serviço, dando início à obra.
151
A atenção ao sujeito causador do cio de ilegalidade também é notada na
doutrina de José Marcelo Ferreira Costa
152
:
Quanto ao primeiro aspecto, tendo o requerente da licença
maculado a confecção do provimento, a Administração deverá
invalidá-lo, sem que brotem efeitos patrimoniais a serem
ressarcidos quanto à responsabilidade do Estado (art. 37,
parágrafo 6º, da CF/88).
Na outra mão (segundo caso), se o particular agiu de boa-fé os
efeitos deverão ser distintos, pois seria um contra-senso forçá-
lo a arcar com as conseqüências advindas do ente público
violador da legalidade. Sobre o assunto Lúcia Valle Figueiredo
é incisiva: “A Administração não pode se eximir de indenizar o
administrado quando anula licença irregularmente expedida, se
foi ela que incorreu em vício”.
151
Apud Ibidem. p.154.
152
Ibidem. p.144.
108
O autor salienta, ainda:
Entendemos que a boa cautela impõe a imprescindível
averiguação, perante o caso concreto, se o vício de validade foi
causado pelo Poder Público. Em ambas as hipóteses aqui
desenvolvidas, não há dúvidas de que se faz necessário a
imprescindível restauração da legalidade. Mas, como vimos, se
o interessado procedeu de boa-fé, os efeitos decorrentes da
relação jurídica (viciada) precisam ser preservados e/ou
eventuais perdas e danos devem ser necessariamente
ressarcidas ao mesmo pelo ente estatal.
Esse aspecto também foi objeto de análise por Celso Antônio Bandeira de
Mello, o qual, sob o título de invalidação e o dever de indenizar, anotou o seguinte:
Na invalidação de atos administrativos há que se distinguir
duas situações:
a) casos em que a invalidação do ato ocorre antes de o
administrado incorrer em despesas suscitadas pelo ato viciado,
seja por atos administrativos precedentes que o condicionaram
(ou condicionaram a relação fulminada). Nestas hipóteses não
se propõe qualquer problema patrimonial que despertasse
questão sobre dano indenizável;
b) casos em que a invalidação infirma ato ou relação jurídica
quando o administrado, na conformidade deles, desenvolveu
atividade dispendiosa, seja para engajar-se em vínculo como o
Poder Público, em atendimento à convocação por ele feita, seja
por ter efetuado prestação em favor da Administração ou de
terceiro.
153
Com relação à segunda hipótese, o autor entende que se o administrado
estivesse de boa-fé, o tendo concorrido para o vício do ato, a invalidação não
poderá lhe causar prejuízos, de um lado, nem o enriquecimento ilícito da
Administração, de outro. Nesse caso, as despesas incorridas pelo particular deverão
ser indenizadas.
153
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 26ªed. São Paulo:
Malheiros, 2009. p.473-4.
109
Com efeito, a averiguação de quem deu causa ao vício de ilegalidade é de
grande relevância, visto que pode gerar consequências de diversas ordens: a
responsabilização do agente administrativo, podendo haver a eventual indenização
do particular caso a licença urbanística venha a lhe causar prejuízos patrimoniais (o
que certamente irá ocorrer, visto que as atividades decorrentes da licença outorgada
costumam ter conteúdo patrimonial) ou, ainda, a responsabilização do particular, na
hipótese de haver concorrido para a formação do vício, com, por exemplo, a
apresentação de documento falso, o que geraria, inclusive, responsabilização a
mesmo na esfera penal.
Contudo, destaque-se, somente durante o transcorrer de um processo
administrativo é que se poderão constatar todas as variáveis ora indicadas, de modo
a determinar a responsabilidade pelo vício do ato e, portanto, pelos eventuais danos
dele advindos, inclusive perante terceiros de boa-fé.
Atente-se para o fato de que as situações acima indicadas configuram
hipóteses nas quais a licença urbanística deverá ser, de fato, invalidada, com a
permanência ou não de seus efeitos, podendo gerar, em situações específicas, o
dever de indenizar por parte da Administração Pública. Por outro lado, em razão das
peculiaridades do caso concreto, poderão existir aspectos que irão, de certo modo,
limitar esse dever da Administração de proceder à invalidação da licença, como se
verá a seguir.
110
5.2 LIMITES À INVALIDAÇÃO
Como dito, em razão das especificidades do concreto e, especialmente, dos
princípios a ele aplicáveis, poderá haver situações em que o dever da Administração
de proceder à invalidação das licenças urbanísticas maculadas por vício de
legalidade sofrerá limitações. Deverá haver, portanto, na situação real, a ponderação
entre os princípios incidentes para se verificar qual deles deverá preponderar
naquela dada situação.
Da análise da doutrina, pode-se inferir que a primeira limitação seria relativa
ao efeito da invalidação no concernente aos atos ampliativos de direito. Como dito, a
regra é que os efeitos da invalidação retroagem ao tempo da prática do ato, ou seja,
a invalidação é ex tunc. Contudo, a invalidação das licenças urbanísticas, atos
ampliativos de direitos, poderá levar à determinação de efeitos apenas ex nunc. É o
que se infere das palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello
154
ao trabalhar a
questão dos efeitos dos atos inválidos, apontando a relevância da natureza do ato:
Reformulando o entendimento que sempre adotamos na
matéria, pensamos hoje que o assunto se resolve
adequadamente tomando-se em conta a fundamentalíssima
distinção e que cada vez nos parece mais importante para
uma teoria do ato administrativo entre atos restritivos e atos
ampliativos da esfera jurídica dos administrados, dsicrímen,
este, que funda uma dicotomia básica, influente sobre
inúmeros tópicos do Direito Administrativo [...].
E continua:
154
Ibidem. p.472.
111
Na conformidade desta perspectiva, parece-nos que
efetivamente nos atos unilaterais restritivos da esfera jurídica
dos administrados, se eram inválidos, todas as razões
concorrem para que sua fulminação produza efeitos ex tunc,
exonerando por inteiro quem fora indevidamente agravado pelo
Poder Público das consequências onerosas. Pelo contrário,
nos atos unilaterais ampliativos da esfera jurídica do
administrado, se este não concorreu para o vício do ato,
estando de boa-fé, sua fulminação deve produzi efeitos ex
nunc, ou seja, depois de pronunciada.
Observa-se, assim, que a própria natureza do ato administrativo serve de
limite para os efeitos do ato invalidador a ser expedido pela Administração.
Mas os limites à invalidação das licenças urbanísticas não se restringem aos
efeitos do ato invalidador, podendo alcançar a abstenção, por parte da
Administração Pública, de proceder à invalidação. Weida Zancaner afirma a
existência desses limites, aludindo também de maneira específica aos atos
ampliativos de direito:
Com efeito, atos inválidos geram conseqüências jurídicas, pois,
se não gerassem, não haveria qualquer razão para nos
preocuparmos com eles. Com base em tais atos atos
ampliativos de direitos -, certas situações terão sido
instauradas e, na dinâmica da realidade, podem converter-se
em situações merecedoras de proteção, seja porque encontram
em seu apoio alguma regra específica, seja porque estarão
abrangidas por algum princípio de Direito. Estes fatos
posteriores à constituição da relação inválida, aliados ao
tempo, podem transformar o contexto em que esta se originou,
de modo a que fique vedado à Administração Pública o
exercício do dever de invalidar, pois fazê-lo causaria ainda
maiores agravos ao Direito, por afrontar a segurança jurídica e
a boa-fé.
155
Assim, conclui a autora, ao conjugar o princípio da segurança jurídica, a boa-
fé do interessado e o transcurso de prazo razoável desde a prolação do ato
155
ZANCANER, Weida. Da Convalidação e da Invalidação dos Atos Administrativos. 3ªed. Coleção
Temas de Direito Administrativo nº 1. São Paulo: Malheiros, 2008. p.74-5.
112
ampliativo de direito, ainda que esse esteja eivado de cio de ilegalidade, poderá
ocorrer a criação de uma barreira ao dever de invalidar, com a permanência,
portanto, dos atos e de seus efeitos.
Luís Manuel Fonseca Pires
156
parece enxergar a situação sobre outro
prisma. Para o autor, a situação de ilegalidade da licença urbanística, aliada a esse
mesmo princípio da segurança jurídica, traz como consequência a invalidação do ato
e o reconhecimento da manutenção de seus efeitos:
Realmente, deve-se reconhecer a possibilidade, ainda que
excepcional, de manutenção dos efeitos de atos cuja
invalidação foi decretada (ou porque não foi possível
convalidar, apesar do vício de anulabilidade, ou porque o ato é
nulo e era impossível a conversão) quando se atingem
terceiros de boa-fé, ou o próprio administrado partícipe da
relação jurídica, desde que também de boa-fé e não tenha
causado cio, e isto com o fim de evitar-se o enriquecimento
sem causa da Administração ou um dano injusto ao
administrado [...]
Parece restar reiteradamente mencionado, ainda que de forma implícita
entre diversos autores, que para manutenção do ato ou para a manutenção dos
seus efeitos, necessária se faz a presença da boa-fé do interessado, não tendo,
portanto, concorrido para o vício do ato, o transcurso de prazo razoável (geralmente
acompanhada pela produção de seus efeitos jurídicos próprios) e o atendimento ao
princípio da segurança jurídica.
156
PIRES, Luís Manuel Fonseca. Regime jurídico das licenças. São Paulo: Quartier Latin, 2006.
p.183.
113
Sobre o princípio da boa-fé, Almiro Do Couto e Silva
157
destaca que sua
gênese se relaciona à lealdade, correção e lisura das partes, reciprocamente.
Jesús Gonzalez Pérez, em clássica obra intitulada “El principio general de la
buena fe em el Derecho Administrativo”, coloca que o princípio geral da boa-fé pode
ser delineado como a necessidade de conduta legal e honesta que se espera do
comportamento dos sujeitos de direito, somado à confiança e expectativa de
coerência do comportamento das partes nas relações jurídicas
158
.
O mesmo autor é explícito ao afirmar:
Si el principio de la buena fe pude determinar, como acaba de
señalarse, la invalidez del acto realizado en contravención del
mismo, pude conducir asimismo justamente lo contrario: en
mantenimiento de un acto que, de no operar el principio,
debería desaparecer del mundo jurídico.
El principio favor acti, la atenuación de la trascendencia de los
defectos formales, el retraso desleal en el ejercicio de la
pretensión anulatoria constituyen otras tantas manifestaciones
de la buena fe, que opera por vía de excepción frente al
ejercicio de la pretensión anulatoria y, en su caso, si las
prerrogativas de la Administración han permitido la
consumación de la anulación, por vía de acción ante la
Jurisdicción contencioso-administrativa, a fin de que anule e
lacto anulatorio, manteniendo la eficacia del acto primitivo.
159
Portanto, para a configuração de uma situação concreta de limitação do
dever de invalidar da Administração blica, necessária se faz a constatação do
comportamento adequado do particular, dentro das regras aplicáveis e em
157
O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no Direito Público Brasileiro e o Direito da
Administração Pública de anular seus próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da
Lei do Processo Administrativo da União (Lei nº 9.784/99), p. 2.-3.
158
PÉREZ, Jesús Gonzalez. El principio general de la buena em el derecho administrativo. ed.
ampliada. Madrid: Civitas, 1999. p.70.
159
Ibidem. p.103.
114
consonância com o princípio da boa-fé, tendo agido de forma leal, correta e honesta,
não tendo causado ou concorrido com o vício do ato de licença.
Acerca do decurso de tempo havido entre a expedição do ato de licença
urbanística e a verificação, pela Administração Pública, do vício de ilegalidade
capaz, abstratamente, de ensejar sua invalidação, trata-se de assunto de alta
complexidade, cujo exame aprofundado iria além do que propõe o presente estudo.
Contudo, necessário se faz alinhavar algumas diretrizes sobre a questão.
Toshio Mukai
160
, após analisar a posição de diversos autores estrangeiros e
nacionais, conclui que a doutrina reconhece a possibilidade de a Administração
invalidar ou manter um ato administrativo ilegal tendo em consideração, nesta última
hipótese, o princípio da estabilidade e certeza das relações jurídicas
161
. Entretanto,
com relação ao prazo para proceder à invalidação, a doutrina é bastante divergente,
posicionando-se da seguinte forma o autor:
Conclui-se, pois, que, em regra, não se pode pensar num prazo
fixo para a Administração anular seus próprios atos.
Necessário, portanto, a análise pormenorizada de cada caso
concreto, para que se possa chegar à conclusão, com certa
margem de segurança, que uma vez transcorrido razoável
lapso de tempo e produzidos os efeitos do ato, não será mais
possível proceder-se à sua anulação.
162
160
MUKAI, Toshio. Direito Administrativo Sistematizado. 2ª ed. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p.231
e sgs.
161
Em face das considerações expostas pelo autor, o princípio da certeza e da estabilidade das
relações jurídicas condiz com uma das acepções do princípio da segurança jurídica, conforme
exposto na doutrina de J. J. Gomes Canotilho e Almiro do Couto e Silva. CANOTILHO, José Joaquim
Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ªed. Coimbra: Almedina, 2007. SILVA,
Almiro do Couto e. “O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no Direito Público
Brasileiro e o Direito da Administração Pública de anular seus próprios atos administrativos: o prazo
decadencial do art. 54 da Lei do Processo Administrativo da União (Lei nº 9.784/99)”. Revista
Eletrônica de Direito do Estado. n.2. Salvador, BA: abril/maio/junho de 2005. Disponível em:
<www.direitodoestado.com.br>. Acesso em: 18/02/2009.
162
MUKAI, Toshio. Op. cit., 2008. p.239.
115
Necessário recordar que, no âmbito da União, a Lei 9.784/99 estabelece
que, após o transcurso de cinco anos, não poderá a Administração proceder à
anulação de atos administrativos dos quais decorram efeitos favoráveis para os
administrados, salvo comprovada má-fé
163
.
Contudo, como dito, essa regra é válida tão somente no âmbito federal e,
considerando a competência municipal para expedição das licenças urbanísticas,
não serve para esclarecer a questão ora posta sob análise. Necessário seria,
portanto, que cada Município legislasse nesse mesmo sentido, o quê, contudo,
configura uma situação ideal e não real.
Na ausência de tais regras, cada caso concreto deve ser avaliado, levando-
se em consideração suas especificidades, como a efetiva ocorrência dos efeitos do
ato e do prazo transcorrido, tal como aponta Mukai.
O transcurso de tempo, entretanto, é questão bastante afeita ao princípio da
segurança jurídica. Quanto a esse, relevante são as considerações feitas por Almiro
Do Couto e Silva, em artigo no qual trata do princípio da segurança jurídica e o
direito da Administração Pública de anular os próprios atos, acerca da concepção
atual do referido princípio
164
:
163
Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos
favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados,
salvo comprovada má-fé.
164
O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no Direito Público Brasileiro e o Direito da
Administração Pública de anular seus próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da
Lei do Processo Administrativo da União (Lei nº 9.784/99).
116
A segurança jurídica é entendida como um conceito ou um
princípio jurídico que se ramifica em duas partes, uma de
natureza objetiva e outra de natureza subjetiva. A primeira, de
natureza objetiva, é aquela que envolve a questão dos limites à
retroatividade dos atos do Estado até mesmo quando estes se
qualifiquem como atos legislativos. Diz respeito, portanto, à
proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa
julgada. [...]
A outra, de natureza subjetiva, concerne à proteção à
confiança das pessoas no pertinente aos atos, procedimentos e
condutas do Estado, nos mais diferentes aspectos de sua
atuação.
Explica, a seguir, que a opção dos autores no direito comparado tem sido
utilizar a expressão “princípio da segurança jurídica” quando se prestigia seu
aspecto objetivo, e a escolha da expressão “princípio da proteção à confiança”
quando a referência se faz aos aspectos subjetivos do referido princípio.
Afirma, ainda, a respeito da acepção subjetiva do princípio em questão,
referido como princípio da proteção à confiança:
Este último princípio (a) impõe ao Estado limitações na
liberdade de alterar sua conduta e de modificar atos que
produziram vantagens para os destinatários, mesmo quando
ilegais ou (b) atribui-lhes consequências patrimoniais por essas
alterações, sempre em virtude da crença gerada nos
beneficiários, nos administrados ou na sociedade em geral que
aqueles atos eram legítimos, tudo fazendo razoavelmente
supor que seriam mantidos.
As expectativas dos particulares em relação aos atos do Poder Público estão
calcadas na aparência e na presunção de legitimidade de seus atos. Assim, os
administrados acreditam que esses atos, presumivelmente legais, permanecerão no
tempo e produzirão os efeitos deles esperados.
117
J. J. Gomes Canotilho
165
, seguindo a linha de dissociação apontada acima
por Almiro do Couto e Silva, indica como características do aspecto objetivo do
princípio da segurança jurídica a garantia de estabilidade, a segurança de orientação
e realização do direito. Doutra margem, a face subjetiva refletiria os componentes da
calculabilidade e previsibilidade dos efeitos jurídicos dos atos dos poderes públicos.
Acrescenta, ainda, Canotilho
166
, os seguintes comentários sobre o princípio
geral da segurança jurídica:
O princípio geral da segurança jurídica em sentido amplo
(abrangendo, pois, a ideia de protecção da confiança) pode
formular-se do seguinte modo: o individuo tem do direito poder
confiar em que seus actos ou às decisões blicas incidentes
sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas
alicerçados em normas jurídicas vigentes e válidas por esses
actos jurídicos deixado pelas autoridades com base nessas
normas se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos no
ordenamento jurídico.
Não ignorando a referida distinção, o presente trabalho adota a expressão
princípio da segurança jurídica nesse sentido geral, com o objetivo de abarcar suas
duas acepções, visto que ambas mostram ter relevantes repercussões sobre os atos
administrativos, em especial para a configuração da hipótese de limitação do dever
de invalidar, da Administração Pública.
Necessário destacar, a segurança jurídica é um subprincípio concretizador
do Estado de Direito, como se infere da doutrina de Canotilho
167
, sendo
desnecessária, portanto, qualquer previsão explícita no ordenamento jurídico. No
165
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit., 2007. p.257.
166
Ibidem. p.257.
167
Ibidem. p.257.
118
âmbito da União, contudo, foi expressamente prevista pela Lei de Processo
Administrativo Federal, Lei nº 9.784/99, em seu art. 2º
168
.
Observa-se, do exposto, que a segurança jurídica, como subprincípio
concretizador do Estado de Direito, é imprescindível para a estabilidade das relações
jurídicas. Por outro lado, quando tais relações jurídicas envolvem atos emanados
pela Administração blica, que gozam de presunção de legitimidade, maior razão
têm, os administrados, para esperar deles a referida estabilidade, definitividade e a
produção regular de seus efeitos.
Assim, ainda que haja configuração efetiva da invalidade do ato
administrativo de licença, como no estudo em questão, a apreciação do caso
concreto, com a ponderação de outros princípios aplicáveis, poderá demonstrar a
exigência de se privilegiar a segurança jurídica, afastando o dever de autotutela da
Administração, fundado no princípio da legalidade.
É inegável, portanto, que de relações jurídicas, como as instauradas pelas
licenças urbanísticas, decorrem inúmeras outras, todas conectadas ao plexo de
direitos do particular detentor da licença. Apenas para citar exemplos, imagine-se
que da licença para construir pode decorrer a contratação de profissionais da área
de engenharia, de materiais de construção; da licença para localização e
funcionamento, a locação do imóvel para empresa de terceiro instalar seu negócio;
da licença para lotear, a venda desses lotes para terceiros.
168
Art. A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade,
motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança
jurídica, interesse público e eficiência.
119
Desse modo, além de gerarem expectativas para os particulares
participantes da relação jurídica com a Administração Pública, essas mesmas
relações são pressupostos de outras que tomam a primeira como legítima e capaz
de produzir efeitos também legítimos, abrangendo, portanto, terceiros de boa-fé.
A estabilidade da ordem jurídica, consubstanciada no sentido amplo da
segurança jurídica, associada ao princípio da boa-fé, com se viu, não significam que
os atos expedidos pelo Poder Público com vício de ilegalidade não possam vir a ser
alteradas, especialmente quando se fala em restabelecimento da ordem jurídica
violada. Contudo, eventuais direitos patrimoniais relativos a essas situações não
podem ficar fora da guarida dessa mesma ordem jurídica.
Essa ideia parece estar bem delineada nas palavras de Almiro do Couto e
Silva
169
:
É certo que o futuro não pode ser um perpétuo prisioneiro do
passado, nem podem a segurança jurídica e a proteção à
confiança se transformar em valores absolutos, capazes de
petrificar a ordem jurídica, imobilizando o Estado e impedindo-o
de realizar as mudanças que o interesse público estaria a
reclamar. Mas, de outra parte, não é igualmente admissível que
o Estado seja autorizado, em todas as circunstâncias, a adotar
novas providências em contradição com as que foram por ele
próprio impostas, surpreendendo os que acreditaram nos atos
do Poder Público.
De forma sintética, poder-se-ia dizer que as licenças urbanísticas eivadas de
vício de ilegalidade deverão, inicialmente, passar pela análise da possibilidade de
saneamento. Em havendo essa possibilidade, ela se apresenta como dever da
169
SILVA, Almiro do Couto e. Op. cit., 2005. p. 6.
120
Administração, à qual caberia, portanto, proceder à convalidação. Em não sendo
possível, a invalidação deve ser aventada.
Contudo, durante o processo administrativo instaurado para tanto, poderá
ser verificada a impertinência de se expedir, efetivamente, o ato invalidador,
devendo ser mantido o ato inválido pelas razões ora estudadas, as quais não podem
prescindir da análise das especificidades do caso concreto, dos princípios jurídicos
incidentes e dos interesses em jogo.
Assim, somente diante da realidade tica será possível a conjugação dos
vetores envolvidos e, para isso, a instauração do processo administrativo, com a
observância do princípio do devido processo legal, torna-se imprescindível.
5.3 O PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL COMO FORMA DE NORTEAR
O DEVER DE INVALIDAR, DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
De acordo com as considerações acima, restou destacado que a outorga de
uma licença urbanística decorre não de um ato isolado da Administração Pública,
mas de um processo administrativo contando com a participação imprescindível do
administrado.
Esse processo é informado por uma série de princípios e, dentre eles, o do
devido processo legal, visando salvaguardar os interesses do administrado que,
além de promover a deflagração do referido processo, nele deve atuar, trazendo ao
121
conhecimento da Administração os fundamentos de seu pedido e todos os
documentos necessários a instruí-lo.
Além disso, a doutrina, de forma majoritária, entende a licença como um ato
administrativo exercido com base na competência vinculada da Administração, ou
seja, na qual todas as condições para sua expedição estão previstas legal e
objetivamente. Desse modo, demonstrado pelo interessado o preenchimento de
todos os requisitos legais, o Poder Público não pode agir de outra forma senão
outorgando-lhe a licença.
Acresça-se que, expedida a licença, o direito nela consubstanciado
incorpora-se à esfera de direitos do indivíduo. Há, portanto, uma legítima expectativa
do interessado no exercício desse direito, que não pode ser ignorada pela
Administração Pública, mesmo quando verificar que a licença expedida padece de
algum vício de ilegalidade.
É inegável, doutra margem, o dever da Administração Pública de velar pela
legalidade de seus atos, devendo, por consequência, buscar um meio de
restabelecimento da ordem jurídica.
Importante destacar, contudo, que nessas situações, especialmente ao
proceder à invalidação da licença outorgada, a Administração Pública irá restringir a
esfera de direitos do interessado, uma vez que a licença urbanística configura um
ato ampliativo da esfera de direitos do particular.
122
Como visto, o se coaduna com o ordenamento jurídico pátrio a ideia de
que a decretação de invalidade da licença urbanística, na hipótese de culpa
exclusiva da Administração, possa gerar ao administrado prejuízos a serem por ele
suportados. Nesse caso, será imprescindível que os danos causados lhes sejam
indenizados.
Aplicando esse raciocínio ao caso de culpa do administrado, do mesmo
modo não seria admissível também onerar a Administração com as consequências
da invalidação.
Questão colocada, portanto, é que a invalidação das licenças urbanísticas
exige, caso a caso, a avaliação da participação do particular e da Administração
Pública na produção do vício de ilegalidade. A parte responsável deverá arcar com
os danos causados à outra ou, no caso de culpa concorrente, as partes deverão
dividir proporcionalmente os prejuízos.
Certo é que tais circunstâncias somente poderão ser verificadas no caso
concreto, mediante a instrução adequada de um processo administrativo, como
observado.
Por outro lado, é importante destacar, a invalidação da licença urbanística
ato ampliativo de direito - configura ato que reflete de maneira restritiva o universo
de direitos do particular. Esse aspecto encontra-se sublinhado na lição de Weida
Zancaner, ao discorrer exatamente sobre o devido processo legal e a invalidação
dos atos ampliativos de direito:
123
Portanto, todos os atos ampliativos de direito necessitam, para
seu desfazimento, que a Administração Pública instaure o
devido processo legal, para assegurar àquele que terá seu
patrimônio jurídico diminuído o direito de defesa e ao devido
processo legal. Assim como a emissão de atos restritivos de
direito exige o devido processo legal.
170
Adiante, a autora é ainda mais incisiva, concluindo que a invalidação de ato
ampliativo de direito é, por consequência, ato restritivo de direitos. Observe-se:
Sem embargo, é bom que se esclareça que, embora o
processo seja vital para sindicar o exercício do Poder, sua
necessidade se torna exponencial quando a Administração
Pública edita atos restritivos de direitos da esfera jurídica dos
administrados. E, calha, neste momento, recordar que o ato
que invalida ato ampliativo de direitos é ato restritivo de
direitos.
171
Também nessa hipótese, indispensável que o ato invalidador seja precedido
de um processo regular e formal, com a observância do devido processo legal em
ambas as acepções, além dos demais princípios atinentes a esse instituto, como
estudado anteriormente.
Somente num processo administrativo, realizado com a observância dessa
garantia constitucional, será possível ao administrado conhecer as razões da
pretendida invalidação, a sua boa-fé e a existência de relações jurídicas com
terceiros, também de boa-fé, a produção ou não de todos os efeitos típicos e
atípicos do ato, entre outras situações de fato e de direito que se refletem na
possibilidade de invalidação do ato ou na necessidade de sua manutenção pela
ordem jurídica.
170
ZANCANER, Weida. Op. cit., 2008. p.119.
171
Ibidem. p.120.
124
Sobre a importância do processo administrativo para se proceder à
invalidação, expõe Vladimir da Rocha França
172
:
A invalidação administrativa representa a processualidade que
deve preceder o ato administrativo que invalida o ato portador
de vício no regime jurídico-administrativo. Caso se trate de ato
administrativo que possa ensejar ou que tenha gerado efeito
favorável ao administrado, obrigam a Constituição Federal e a
LFPA a comunicação prévia do mesmo sobre a iminência de o
ato administrativo de invalidação e, por conseguinte, a
instauração de um processo administrativo. Aqui, a invalidação
administrativa assume para sua regularidade a natureza de
processo, pois determina a participação dos administrados que
serão atingidos pelo ato final. (grifos do original)
Nessa ordem de ideias, são as considerações de Mônica Martins Toscano
Simões
173
:
A invalidação de atos administrativos viciados pela
Administração Pública não deve ser pronunciada sem
observância do devido processo legal, sob pena de ofensa
frontal ao sistema constitucional brasileiro. Com efeito, a
autotutela administrativa (Súmula 473 do STF e art. 53 da Lei
9.784/1999) deve ser compreendida na sua devida extensão.
Se é verdade que a Administração tem o dever de autotutela,
não menos verdadeiro é o fato de que o exercício de tal dever
esbarra em limites [...]
Entretanto, ponto importante a se acrescentar é não somente o aspecto
formal de desenvolvimento do devido processo legal, mas também sua acepção
material ou substantiva como forma de balizar o conteúdo do ato invalidador.
172
FRANÇA, Vladimir da Rocha. Contraditório e invalidação administrativa no âmbito da
administração pública federal”. In: FIGUEIREDO, Lúcia Valle (Coord.). Devido processo legal na
administração pública. São Paulo: Max Limonad, 2001. p.215.
173
SIMÕES, Mônica Martins Toscano. O processo administrativo e a invalidação de atos viciados.
Coleção Temas de Direito Administrativo nº 10. São Paulo: Malheiros, 2004. p.200.
125
Como visto, o princípio do devido processo legal, desde que trazido ao
nosso ordenamento jurídico ou até mesmo antes, por ser ínsito ao Estado de
Direito possuía uma concepção dupla de forma e conteúdo e esse segundo
aspecto deve ser destacado.
O princípio do devido processo legal pode servir de critério de ponderação
dos interesses em questão, para que se possa aferir, no caso concreto, se o ato
invalidador é, de fato, a solução adequada à recomposição da ordem jurídica.
É possível, antes mesmo da emissão do ato de invalidação, verificar sua
pertinência em termos de conteúdo e, além disso, ponderar os demais princípios
envolvidos, para que a Administração possa, de fato, tomar semelhante medida.
Além disso, como se viu, o decurso de prazo é questão também relevante
para se perquirir sobre a possibilidade ou não de invalidar um ato administrativo. E,
como apontado por Miguel Reale
174
, a doutrina de José Frederico Marques está a
indicar ser essa uma exigência implícita na cláusula do devido processo legal:
Escreve com acerto José Frederico Marques que a
subordinação do exercício do poder anulatório a um prazo
razoável pode ser considerado requisito implícito no princípio
do due process of law. Tal princípio, em verdade, não é válido
apenas no sistema do direito norte-americano, do qual é uma
das peças basilares, mas é extensível a todos os
ordenamentos jurídicos, visto como corresponde a uma tripla
exigência, de regularidade normativa, de economia de meios e
formas e de adequação à tipicidade fática. Não obstante à falta
de termo que em nossa linguagem rigorosamente lhe
corresponda, poderíamos traduzir due process of law por
devida atualização do direito, ficando entendido que haverá
174
REALE, Miguel. Revogação e Anulamento do Ato Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1968.
p.85.
126
infração desse ditame fundamental toda vez que, na prática de
ato administrativo, for preterido algum dos momentos
essenciais à sua ocorrência; forem destruídas, sem motivo
plausível, situações de fato, cuja continuidade seja
economicamente aconselhável, ou se a decisão não
corresponder ao complexo de notas distintivas da realidade
social tipicamente configurada em lei.
Desse modo, resta inequívoco, a cláusula do devido processo legal é um
princípio constitucional útil para a construção de parâmetros, nos casos concretos,
para a invalidação das licenças urbanísticas, bem como das situações em que
deverá ser estabilizada a situação gerada pela licença.
Como visto, haverá situações em que o ato invalidador será capaz de gerar
ainda mais danos aos interessados, sem haver ganhos efetivos para o Poder
Público, como representante do interesse público (como dimensão coletiva dos
interesses particulares).
Nessa ordem de ideias, necessário, portanto, atentar para a aplicação do
princípio do devido processo legal aos processos administrativos invalidadores, não
no aspecto meramente formal, mas também no aspecto substancial, como forma
de balizar o conteúdo da decisão administrativa de acordo com o objetivo de
recomposição da ordem jurídica, sem perder de vista os princípios da segurança e
boa-fé que devem nortear também suas relações com os particulares.
127
CONCLUSÃO
Dentro do foco definido para o presente trabalho, buscou-se demonstrar a
obrigatoriedade da instauração do processo administrativo, com a observância
estrita do princípio do devido processo legal, tanto para a expedição da licença
urbanística quanto para proceder à sua invalidação.
Em relação ao processo de invalidação, seus princípios informadores, entre
eles o próprio princípio do devido processo legal, devem ser observados de maneira
ainda mais criteriosa e atenta, tendo em vista os incontestáveis reflexos restritivos
que o ato final poderá ocasionar na esfera jurídica do particular.
Aspecto que se buscou destacar foi a aplicação do princípio do devido
processo legal não somente em sua acepção adjetiva ou formal, relativa às garantias
processuais, mas também em sua acepção substantiva ou material, capaz de definir
limites de conteúdo para decisões proferidas pela Administração Pública.
Essa compreensão da cláusula do devido processo legal, muito aceita
pela doutrina pátria, poderá servir de parâmetro para a decisão a ser tomada pela
Administração Pública diante do fato concreto. Como visto, haverá situações nas
quais a licença urbanística inválida causainterferência em interesses de terceiros
de boa-fé, ou que sua retirada, depois de transcorrido um lapso razoável de tempo,
poderá gerar uma instabilidade nas relações jurídicas, infringindo, por consequência,
o princípio da segurança jurídica.
128
Assim, em situações como as ora apontadas, a aplicação do princípio do
devido processo legal poderá indicar em quais circunstâncias haverá a necessidade
de manutenção do ato inválido, afastando, portanto, o dever de invalidar da
Administração Pública, fazendo com que essa se abstenha, com o objetivo de que
não sejam ocasionados novos danos à ordem jurídica.
Contudo, é relevante notar que a definição de um ou outro comportamento,
pela Administração Pública, é possível em face da avaliação do caso concreto,
em que se possa sopesar todos os interesses envolvidos, do particular, de terceiros
e do interesse público, bem como de outros princípios incidentes nessas relações.
Buscou-se, assim, demonstrar que o princípio do devido processo legal,
observado especialmente em seu aspecto substancial ou material, é capaz de
fornecer diretrizes para a Administração Pública, no sentido de indicar, no caso
concreto, o comportamento mais adequado ao interesse público, à ordem jurídica, e
aos outros princípios envolvidos na situação de fato, como a segurança jurídica e o
terceiro de boa-fé, o que poderá ocasionar, em certas circunstâncias, a efetiva
invalidação e, em outras, o afastamento desse dever de autotutela.
129
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