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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
TESE DE DOUTORADO
MAR DE POETA
A metáfora do oceano nas líricas de Cecília Meireles e Sophia Andresen
Karin Lilian Hagemann Backes
Prof. Dr. Ana Maria Lisboa de Mello
Orientadora
Porto Alegre, dezembro de 2008
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2
KARIN LILIAN HAGEMANN BACKES
MAR DE POETA:
a metáfora do oceano nas líricas de Cecília Meireles e Sophia Andresen
Tese apresentada como requisito
para obtenção do grau de Doutor
pelo Programa de Pós-graduação da
Faculdade de Letras da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande
do Sul
Orientadora: Prof. Dr. Ana Maria Lisboa de Mello
Porto Alegre, dezembro de 2008
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4
Para André, sempre.
Para Júlia e André, maior orgulho.
5
Agradeço ao meu avô, Luiz Ernesto Hagemann,
in memoriam, por estantes com Seleções de cinco décadas.
Agradeço aos meus pais, pelo Mundo da criança, O minotauro,
Tesouro da juventude, Clássicos Jackson e muito mais.
A Ana Maria Lisboa de Mello, minha orientadora,
devo interlocuções privilegiadas com essa
profunda e apaixonada conhecedora de poesia.
Não poderia faltar aqui a simpática e preclara figura
do Irmão Elvo Clemente, uma lembrança saudosa.
E agradeço, sobretudo, às duas Marias, Maria Luíza Remédios
e Maria da Glória Bordini, minha aeterna poeticae magistra,
cuja mão segura me guiou nos meus anos de PUC
pelas veredas de todos os poetas, a ela sou muito grata.
6
O mundo é grande, mas em nós ele é profundo como o mar.
Rilke
Ao mar que me nutriu (...) meu coração está ligado
mais solidamente que a tudo no mundo.
Swinburne
7
TEORIA DA LITERATURA
RESUMO
Nosso objetivo é analisar o oceano como metáfora nas ricas de Cecília Meireles
(1901-1964) e Sophia Breyner Andresen (1919-2004), a partir do texto do filósofo
Paul Ricoeur, A metáfora viva. A proposta de Ricoeur é demonstrar que a
competência metafórica está incompleta sem o apoio psicológico da imaginação e
do sentimento, em que a imagem é tomada como o último momento de uma teoria
semântica. Sua teoria da competência metafórica será utilizada para comprovar
como cada poeta emprega essa figura de linguagem para atingir determinados
propósitos em suas líricas, com base em influências comuns. Cecília está orientada
na direção do místico e busca a transcendência, enquanto Sophia, por conta da
cultura grega de raiz clássica, é mítica e imanente. As metáforas do mar, nas duas
obras, se prestam como um meio poético privilegiado desses posicionamentos.
8
THEORY OF LITERATURE
ABSTRACT
Our object is to analyze the ocean as a metaphor in Cecília Meireles (1901-1964)
and Sophia Breyner Andresen‟s (1919-2004) lyrics, starting with philosopher Paul
Ricoeur‟s text, The Rule of Metaphor: The Creation of Meaning in Language.
Ricoeur‟s proposal is to demonstrate that the metaphoric competence is incomplete
without the psychological backing of imagination and feeling, where the image is
taken as the last moment in a semantic theory. His metaphoric competence theory
will be utilized to prove that every poet employs that language‟s figure to arrive at
their purposes in the lyrics, bases in common influences. Cecilia is oriented in the
direction of the mystical and searches for transcendence, whereas Sophia, due to the
Greek culture of classical origin, is mythical and immanent. In both works, the sea‟s
metaphors are the poetic privileged way to reach these points.
9
SUMÁRIO
1
10
2
2.1
15
2.2
26
2.3
38
2.4
51
2.4.1
51
2.4.2
53
2.4.3
54
2.5
56
3
3.1
59
3.2
69
3.2.1
73
3.2.2
82
3.2.3
90
3.2.4
99
3.2.5
106
4
4.1
117
4.2
125
4.2.1
125
4.2.2
141
4.2.3
151
4.3.4
160
5
5.1
173
5.2
179
6
188
7
196
Sophia Andresen........................................................................................... 216
1 INTRODUÇÃO
O Brasil está separado de Portugal por um oceano, o Atlântico, onde
quinhentos anos, por longo tempo navegaram as caravelas que trariam, entre tantas
coisas, a língua portuguesa utilizada por Cecília Meireles e Sophia Andresen para
compor seus versos, constituindo o primeiros traço de afinidade entre ambas.
A excelência da lírica das duas poetas
1
é o primeiro entre os motivos que
justificam esta tese. O segundo, a construção de uma poesia num estilo que alguns
denominariam de clássico, radicada de uma ancestralidade comum, podemos
mesmo dizer genealogia poética, trazendo consigo alguns dos nomes mais notáveis
entre aqueles que escreveram versos no idioma de Camões, incluindo os do próprio
e o de Fernando Pessoa, e também de autores estrangeiros, como é o caso de
Rilke.
Além disso, ainda a partilha da língua portuguesa num gênero, o lírico,
no qual a tradução arrasta consigo, por melhor que seja, o germe da variação e um
véu diáfano que transtorna a vista perfeita da palavra, do som e da métrica, quando
um poema é transposto para outro idioma. A correspondência entre as duas poéticas
com certeza teria a perder numa análise caso houvesse diferença de léxico, e até
mesmo a identificação de um pequeno grupo de poemas na obra de cada uma,
ligados de modo particular, se tornaria uma tarefa mais difícil em idiomas distintos
2
.
Porém, sem esquecer as outras, uma razão relevante para justificar essa
aproximação é a afinidade estreita das duas líricas com o mar, de tal maneira que se
torna difícil pensar nas obras de Cecília, que abre Mar absoluto declarando “Foi
desde sempre o mar”, e de Sophia também, sem a presença do oceano. Para tal
1
Doravante, vamos nos referir as duas autoras como poetas, e não poetisas como quer uma parte da
crítica. Nosso entender é de que os poetas, como os anjos, prescindem de gênero. Além disso, diz a
própria Cecília Meireles (...) não sou alegre nem sou triste, sou poeta, em termo genérico, não para
negar sua condição feminina, mas sim para, dentro de seu projeto universalizante, integrar-se ao
mundo afastando as diferenças (nota da A.).
2
Sophia Andresen dizia “(…) quando alguém me traduz, as diversões e derivações dos tradutores,
por mais brilhantes que sejam, arrepiam-me sempre”. In: ANDRESEN, Sophia. SENA, Jorge de.
Correspondência. Lisboa: Paz e Terra, 2006. p. 127.
11
afirmação ser comprovada, nem é preciso abrir um livro de poesia, basta uma visita
ao oceanário de Lisboa, em cuja entrada um verso de Livro Sexto que diz,
“Quando morrer voltarei para buscar os instantes que o vivi junto do mar”, e onde
esses poemas são onipresentes.
A escolha desse elemento comum, o mar, não significa que Cecília e
Sophia se utilizem dele do mesmo modo. Na verdade, vamos propor que elas
utilizam essa figura de linguagem que é a metáfora para alcançar propósitos
distintos, a partir desse locus comum.
A enorme carga simbólica do elemento aquático reserva para ele oito
páginas do Dicionário de Símbolos
3
. Numa tradição que remete aos antigos textos
dos Vedas na Ásia, e continua na tradição judaico-cristã, ele significa a origem da
criação: “(...) e o espírito de Deus era levado por cima das águas” (nesis, 1:2), “As
águas que estão debaixo do céu, ajuntem-se num mesmo lugar” (nesis, 1:9),
trajetória seguida mais tarde pelos versos de Hesíodo na Teogonia, “E pariu a
infecunda planície impetuosa de ondas/ o Mar, sem o desejoso amor./ Depois pariu
do coito com Céu: Oceano de fundos remoinhos”
4
.
É por conta dessa poderosa carga simbólica que poemas lhe foram
dedicados desde as civilizações mais remotas. Para Gaston Bachelard, “Mais do que
nenhum outro [elemento], a água é uma realidade poética completa”
5
. Borges nos
o exemplo de um kenning em que o mar é chamado de “caminho da baleia”
6
, e
pergunta se acaso o saxão que há um longo tempo cunhou essa metáfora
engenhosa, tinha idéia de como o tamanho da baleia servia para dar uma idéia da
imensidão do mar.
Em todas as latitudes, é palco de grandes epopéias, serviu a línguas
vivas e mortas, a do vate grego que cantou as viagens de Odisseu e a do luminar
português que narrou as travessias do Gama. Pompeu, general romano (106-48
a.C.), inspirava Pessoa quando dizia que “Navegar é preciso, viver não é preciso”
7
.
Através dos séculos, a violência das águas e os mistérios que a cercavam foram
sempre um material irresistível para os poetas. Gaston Bachelard, em a água e os
3
CHEVALIER, Jean. GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 14. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1999.
4
HESÍODO. Teogonia. Trad. Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2006. p. 109.
5
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 17.
6
BORGES, Jorge Luis. Esse ofício do verso. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 45.
7
“Navigare necesse; vivere non est necesse”, cf. Plutarco, Vidas de Sertorio y Pompeyo. Madrid:
Akal, 2004.
12
sonhos, diz que “O apelo da água exige de certa forma uma doação total, uma
doação íntima”, e que ali “a vitória é mais rara, mais perigosa, mais meritória”
8
.
Nesse imaginário marítimo, terreno tão rico para a verve poética, a
metáfora é figura de linguagem privilegiada. Em A metáfora viva (1975), o filósofo
francês Paul Ricoeur faz um estudo do tropo que parte de Aristóteles e de seus
textos fundadores na Retórica e na Poética, recuperando seu caminho durante mais
de dois mil anos. São revistas e analisadas obras de filósofos, lingüistas e teóricos,
posicionamentos contra e a favor da figura e também as conseqüências dessas
idéias para a poesia.
Por trás da reconstituição da extensa trajetória percorrida pela metáfora,
transparece como dividendo, não intencional, uma história da teoria literária e dos
valores que ela privilegiou em cada época. Ao longo de tal estudo, Ricoeur constrói
sua teoria da metáfora, unindo peças soltas e formulando hipóteses através de uma
criteriosa escolha entre todo o vasto material do qual dispôs, e acaba por organizar
uma estrutura que coloca em ordem lógica os processos sofridos pelo tropo nesse
período. O resultado é a sua formulação de uma teoria semântica da metáfora e uma
teoria da imaginação e do sentimento tomada em bases psicológicas
9
, aplicadas à
linguagem poética.
O trabalho de Paul Ricoeur vai nos servir como base teórica para a
análise das formações metafóricas nas líricas das duas poetas, a brasileira Cecília
B. de Carvalho Meireles, e a portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen.
Nosso marco teórico inicial será uma releitura de alguns dos teóricos
eleitos pelo filósofo para construir suas proposições, partindo de Aristóteles e
seguindo com uma abordagem das questões do imaginário. Todos os textos, entre
aqueles escolhidos pelo autor francês para construir seu estudo da metáfora,
comparecem nas referências e são consultados aqui a partir das obras originais, em
língua portuguesa, ou em traduções próprias a partir desses originais, caso de
Richards e Max Black, que estão em inglês e espanhol, ou do canônico Les figures
du discours, de Pierre Fontanier, aqui com a edição de 1977 do texto publicado em
1821; o mesmo se com autores externos à Metáfora viva, como o britânico Cecil
Day Lewis e seus estudos da imagem em The poetic image. Após o marco teórico,
8
BACHELARD, Gaston. Op. cit., p. 169.
9
RICOEUR, Paul. A metáfora viva. Trad. Dion Davi Macedo. São Paulo: Edições Loyola, 2000. p.
319.
13
apresentamos a proposta do filósofo francês para o estudo da metáfora poética, que
será utilizada para focalizar nas duas líricas a presença das metáforas do mar.
Os termos mar”, “oceano”, “águas” serão referidos aqui indistintamente,
tanto em Cecília como em Sophia. A eleição dos poemas nas obras das duas
autoras obedece a um critério voltado para aqueles em que os temas marinhos são,
preferencialmente, centrais, ou ao menos privilegiados, em detrimento de outros em
que constituem matéria aleatória, não deixando despercebidos também os aspectos
estéticos.
De Cecília, vão constituir o corpus apenas as obras mais significativas
relacionadas ao tema escolhido, dentre os volumes incluídos pela autora na única
edição de sua obra poética supervisionada por ela própria, a que foi publicada pela
Aguilar em 1958. São eles: Viagem (1939), Vaga música (1942), Mar absoluto e
outros poemas (1945), Retrato natural (1949), Doze Noturnos de Holanda (1952) e
Metal rosicler (1960), além da sua derradeira herança poética, Solombra (1963).
De Sophia, contamos com a última edição da Editorial Caminho, com
texto fixado por Luis Manuel Gaspar e supervisão de Maria Andresen de Souza
Tavares, em que a obra poética está dividida nas edições autônomas originais,
depois de muitas translações onde os poemas circularam por diversos títulos. Tais
volumes englobam Poesia (1944), Dia do Mar (1947), Coral (1950), No tempo
dividido (1954), Mar novo (1958), Livro Sexto (1962), Geografia (1967), Dual (1972),
O nome das coisas (1977), Navegações (1983), Ilhas (1989), Musa (1994) e O búzio
de Cós e outros poemas (1997). Em novembro de 2000, Maria Andresen de Souza
Tavares, a pedido da e, organizou uma antologia, Mar, onde esse topos é
privilegiado. No entanto, ao invés de partir dessa seleção, optamos por fazer uma
escolha pessoal dos poemas a partir de seu contexto original.
Todos os poemas analisados constam dos anexos ao final do texto,
separados por autora, em ordem cronológica.
Em Cecília Meireles, as siglas utilizadas para as obras serão VI
(Viagem), VM (Vaga música), MA (Mar absoluto e outros poemas), RN (Retrato
natural), DN (Doze Noturnos de Holanda), MR (Metal rosicler) e SO (Solombra),
sempre referenciadas pela Poesia completa, supervisionada por Antônio Carlos
Secchin, que a Editora Nova Fronteira imprimiu no centenário da autora, em 2001.
Nos volumes de Sophia Andresen, são elas PO (Poesia), DM (Dia do
Mar), CO (Coral), TD (No tempo dividido), MN (Mar novo), LS (Livro Sexto), GE
14
(Geografia), DU (Dual) NC (O nome das coisas), NA (Navegações), IL (Ilhas) e BC
(O búzio de Cós e outros poemas), de acordo com a edição da Editorial Caminho.
Nosso propósito aqui é caracterizar e comparar a metáfora marinha nas
duas poetas, a partir dos pressupostos da análise que aliam a semântica da
metáfora a uma poética da imaginação, para verificar se coincidem ou divergem
quanto aos sentidos que lhe atribuem.
15
2 POESIA, METÁFORA E IMAGEM
2.1 ARISTÓTELES E O PERCURSO DA METÁFORA
Sobre a transmissão da obra de Aristóteles, “Poucas coisas mais belas e
patéticas registrará a história”, diz Jorge Luis Borges, “além [da] consagração de um
médico árabe aos pensamentos de um homem de quem o separavam catorze
séculos; às dificuldades intrínsecas, devemos acrescentar que Averróis, ignorando o
grego e o siríaco, trabalhava sobre a tradução de uma tradução”
10
.
Como é habitual no autor argentino, as informações de seus textos
misturam realidade e ficção, sendo merecidamente tomadas por seus leitores com
algum receio, no entanto, A busca de Averróis, conto de O aleph, é relato fidedigno
do modo pelo qual o corpus aristotelicum chega até nós
11
.
Num certo período da Idade Média, Aristóteles se torna conhecido como
“O Filósofo”, numa referência à larga reputação desfrutada nas universidades
medievais. Estabelecida em bases sólidas, mas divergente dos estatutos teológicos
da época, a conciliação entre fé e razão, desenvolvida por meio da doutrina
aristotélica pela figura central da universidade de Paris, Santo Tomás de Aquino,
custou ao filósofo alguma vigilância pelo temor da heresia
12
, mas depois de quase
dois mil e quinhentos anos, continua a ser referência inescapável nos campos da
Retórica e da Poética. No primeiro capítulo de sua Retórica, Aristóteles a define
como “a contrapartida da Dialética, pois ambas se referem a assuntos de interesse
da compreensão humana e não pertencem a uma ciência definida”
13
.
Precursor no estudo da metáfora, primeiramente na Poética e depois
também na Retórica, onde retoma o assunto com mais vagar, Aristóteles percebe na
10
BORGES, Jorge Luis. A busca de Averróis. In: ___. O aleph. São Paulo: Globo, 1996. p. 72.
11
ECO, Umberto. Quase a mesma coisa. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 195.
12
O aristotelismo adquiriu legitimidade no Ocidente através de Santo Tomás. Antes disso, sua leitura
em aula fora proibida pelo Sínodo de Sens (1210), e o Concílio de Paris impedira o ensino de Física.
In: História do pensamento. Escolástica: o nome da rosa. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 172.
13
ARISTÓTELES. Retórica. Op. cit., p. 19.
16
complexidade dessa figura de linguagem uma habilidade impossível de ser
transmitida, “não é o tipo de coisa que pode ser ensinado de um homem a outro”
14
.
Do juízo feito tão longo tempo pelo mestre do Liceu aos dias de hoje o
debate permanece, pois as dificuldades impostas pela metáfora continuam a ser
objeto de estudo, e também de controvérsia, dos retóricos aos lingüistas, dos
filósofos aos poetas. Nos idos de 1909, o poeta argentino Leopoldo Lugones, no
prefácio de seu livro Lunario sentimental
15
, escreve que cada palavra é uma
metáfora morta. Século antes, Quintiliano observava como “esse é um assunto que
tem dado origem a discussões intermináveis entre os docentes de literatura, que
discutem não menos violentamente com os filósofos que entre eles mesmos, sobre o
problema do gênero e das espécies nos quais os tropos podem ser divididos, seu
número e sua correta classificação”
16
. Na quase totalidade dessas obras, a
referência inescapável a Aristóteles e sua contribuição ao assunto, da qual radica o
posicionamento mantido durante séculos pela Retórica de perceber na metáfora uma
estreita afinidade com a semelhança.
No capítulo XXI, a Poética nos diz que “A metáfora é a transferência de
uma palavra que pertence a outra coisa, ou do gênero para a espécie, ou da espécie
para o gênero, ou de uma espécie para outra ou por analogia”
17
, definição clássica
sempre retomada quando se fala do tema. No capítulo II da Retórica, ao comentar a
metáfora, Aristóteles estabelece regras para sua utilização na poesia e na prosa,
mas na contramão de seu mestre Platão, que a condena, defende o seu valor, pois o
tropo “dá clareza ao estilo, charme e distinção como nenhuma outra [espécie de
palavra] pode dar”
18
. Acrescenta também que tal figura, como outros ornatos, “eleva
a linguagem acima do vulgar e do uso comum”, e “revela o engenho natural do
poeta”
19
.
14
ARISTÓTELES. Retórica. São Paulo: Rideel, 2007. Op. cit., p. 151.
15
De acordo com Borges, Lugones estava convencido de que os poetas usavam sempre as mesmas
metáforas, e com a lua como pretexto, inventou várias centenas delas. In: BORGES, Jorge Luis. A
metáfora. Esse ofício do verso. Op. cit., p. 30.
16
PREMINGER, Alex; BROGAN, T. V. F. The New Princeton Encyclopedia of Poetry and Poetics.
New York: MFJ Books, 1993. p. 760. (Trad. da A.)
17
ARISTÓTELES. Poética. Prefácio de Maria Helena da Rocha Pereira. Tradução e notas de Ana
Maria Valente. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. p. 83. As notas fazem um reparo ao
sentido mais amplo que o atual, conforme Haliwell, 1999:105, abrangendo as figuras hoje chamadas
de sinédoque e metonímia.
18
ARISTÓTELES. Retórica. Op. cit., p. 151.
19
ARISTÓTELES. Poética. Op. cit., p. 222-223.
17
Em sua obra A metáfora viva, Paul Ricoeur observa que, num simples
exame do índice da Retórica de Aristóteles, é possível constatar que a teoria das
figuras chega até nós através de uma disciplina que já feneceu, mas também que foi
amputada em dois dos três campos que a compunham, a teoria da argumentação e
a teoria da elocução, restando apenas a teoria da composição do discurso,
perdendo assim o nexo que a ligava à filosofia através da dialética. O resultado do
afastamento dessa disciplina seria a ênfase excessiva dada à classificação das
figuras, tornada depois um fim em si mesma, que a transforma “numa disciplina
errática e fútil”
20
, mas que no auge da Retórica fora temida como perigoso objeto de
persuasão.
Alguns dos ataques mais conhecidos feitos por Platão sobre os efeitos
maléficos da mímese e da persuasão constam do Sofista, do Górgias, e do livro X da
República, onde ele discorre sobre a influência da poesia que, para o filósofo da
Academia, decorre de que
(...) o poeta aplica a cada arte cores adequadas, com suas palavras e
frases, de tal modo que, sem ser competente senão para imitar, junto
daqueles que, como ele, vêem as coisas segundo as palavras, passa
por falar muito bem, quando fala, observando o ritmo, a métrica e a
harmonia, quer da sapataria, quer da arte militar, quer de outra coisa
qualquer, tal o encanto que esses ornamentos têm naturalmente e em si
mesmos! Despojadas de seu colorido artístico e citadas pelo sentido que
encerram, sabes bem, creio eu, que figura fazem as obras dos poetas (...).
21
Neste excerto dos diálogos entre Sócrates e Glauco na República, é
perceptível o peso do conceito de imitação como cópia depreciada da realidade,
porém também fica claro que na arte de fazer versos é observada a necessidade de
algum engenho como ritmo, metro e harmonia. Mas o ponto que nos interessa está
na última linha, na menção ao “encanto que esses ornamentos têm naturalmente e
em si mesmos”. A afirmação tanto atesta a importância do papel das figuras de
linguagem como estabelece que uma distinção entre seu uso corriqueiro e sua
utilização de modo poético. Mais adiante, Platão declara seu temor quanto aos
efeitos que elas provocam em relação ao amor, à cólera e as paixões da alma,
porque “(...) o certo seria secá-las (...), para nos tornarmos melhores e mais felizes,
em vez de sermos viciosos e miseráveis”
22
.
20
RICOEUR, Paul. A metáfora viva. Trad. Dion Davi Macedo. São Paulo: Edições Loyola, 2000. p. 18.
21
PLATÃO. A República. o Paulo: Nova Cultural, 2004. p. 328.
22
PLATÃO. Op. cit., p. 336.
18
A condenação da poesia por Platão como prejudicial a polis pôde ser
afastada por Aristóteles, segundo Lubomir Dolezel, porque este desatou os laços
que atrelavam a mímese com a metafísica. Assim, ela se tornou “uma função da
produtividade artística, um procedimento de poiesis
23
, deslocada do termo
“imitação” para “representação” e para “criação (invenção)”, tomando assim um
sentido diferente daquele que lhe foi dado por Platão na República.
A separação platônica entre paixão e razão e a influência nociva dos
ornamentos sobre a linguagem tem um adepto em John Locke, que tratou do
assunto em seu Ensaio sobre o entendimento humano (1690). Para o filósofo inglês,
o entendimento é o principal fim da comunicação na linguagem, devendo haver o
mesmo significado nas palavras tanto para aquele que pronuncia como para aquele
que ouve. Para Locke “os sons não têm nenhuma ligação natural como nossas
idéias, mas (...) tiram toda a sua significação da imposição arbitrária dos homens”
24
.
O empirista britânico segue os passos de Aristóteles na Retórica quando
toma como principal finalidade da linguagem a perfeita compreensão entre quem
pronuncia e quem ouve, entretanto, recrimina como um abuso de linguagem uma
certa “obscuridade afetada, quer por dar às antigas palavras significações novas e
não habituais, quer por introduzir termos novos e ambíguos sem definir nem uns,
nem outros, quer por juntá-los de tal maneira que se possa confundir o sentido que
têm vulgarmente”
25
.
De procedência nitidamente platônica e basilar nos estudos da metáfora é
a parte do ensaio em que Locke advoga contra os nomes errados que enchem a
cabeça de “quimeras” ao juntar “idéias incompatíveis”;
Uma vez que o espírito e a imaginação encontram um acolhimento mais
fácil no mundo do que a verdade nua e crua e o conhecimento real, os
discursos figurados e as alusões serão dificilmente admitidos como uma
imperfeição ou abuso da linguagem. Confesso que nos discursos onde
procuramos mais prazer e deleite do que informação e aperfeiçoamento,
quase não se pode passar por erros estas espécies de ornamentos que
pedimos emprestados às figuras. Contudo, se queremos falar das coisas
como elas são, devemos reconhecer que toda a arte retórica, excetuando a
ordem e a clareza, toda a aplicação artificial e figurada das palavras, que a
eloqüência inventou, não servem para outra coisa senão para insinuar
idéias erradas, mover as paixões e, por esse meio, enganar o bom senso;
e, assim, são de fato perfeitas fraudes. Por conseguinte, por mais louvável
ou admirável que a oratória as torne, nos discursos populares, está fora de
dúvida que devem ser absolutamente evitadas em todos os discursos que
pretendem informar ou instruir; e todas as vezes que se trate da verdade e
23
DOLEZEL, Lubomir. A poética ocidental. Fundação Calouste Gulbenkian. p. 58.
24
LOCKE, John. Ensaio sobre o entendimento humano. Lisboa: FCG. 1999. p. 650. vol. II.
25
Op. cit., p. 672.
19
do conhecimento, não podem deixar de ser consideradas como um grande
erro, quer da linguagem, quer da pessoa que delas se serve.
26
Enquanto para Paul de Man, essas observações de Locke sobre a
metáfora representam uma autodisciplina típica da retórica iluminista
27
, sobre as
mesmas linhas Ted Cohen
28
acrescenta que, no período que compreende do
empirismo britânico ao positivismo vienense, havia essa tendência na filosofia
ocidental de negação do valor da metáfora. Isto era patente também no Leviatã de
Hobbes, que listava como quarto e último uso geral da linguagem o brincar com as
palavras, por diversão ou por adorno, todavia, sob um ponto de vista menos virulento
daquele exposto no Ensaio sobre o entendimento humano.
Trinta anos depois de Locke é publicada a primeira versão da Ciência
nova (1725), de Giambattista Vico, que proclama ser a metáfora, entre todos os
tropos, “a mais luminosa e, por mais luminosa, a mais necessária e a mais espessa,
que tanto mais louvada se faz quanto às coisas insensatas ela sentido e paixão”
29
.
Para Vico, cada metáfora é uma “pequena fábula”, e o desenvolvimento
da linguagem, algo inseparável do desenvolvimento humano, havendo uma
diferença nítida entre linguajar mítico “pois os primeiros poetas deram aos corpos o
grau entitativo de substâncias animadas, capacitadas, no entanto, apenas de quanto
lhos pudessem conferir, isto é, de sentido e paixão, e assim deles se fizeram as
fábulas” e o silogístico, “que todas as metáforas assumidas (...) de forma a
significarem trabalhos de mentes abstratas devem ser dos tempos nos quais
começaram a desbastarem-se as filosofias”
30
.
O mesmo tipo de relação seria feito muito mais tarde por Mikel
Dufrenne, para quem existe uma força dando origem à consciência que liga a
natureza ao homem: O homem é, indissoluvelmente, consciência e Natureza,
correlato e elemento da Natureza: sua encarnação nada mais significa. E a
26
Op. cit., p. 692.
27
MAN, Paul de. A epistemologia da metáfora.In: SACKS, Seldon (org.). Da metáfora. São Paulo:
Pontes, 1992. p. 19.
28
COHEN, Ted. Metáfora e o cultivo de intimidade. In: SACKS, Seldon (org.). Da metáfora. São
Paulo: Pontes, 1992. p. 9.
29
VICO, Giambattista. Princípios de uma Ciência Nova Sobre a Natureza Comum das Nações. o
Paulo: Nova Cultural, 1988. Col. Os Pensadores. p. 195.
30
Op. cit., p. 195.
20
fenomenologia deve buscar no corpo as raízes do transcendental
31
.
Porém é preciso notar que mesmo que Vico tenha valorizado um
conceito de fala e de fantasia articuladas a partir de semelhanças e
comparações que colocam em relevo a linguagem poética, isso não quer
dizer que elas estejam relacionadas a um caráter ilógico, enquanto o
silogismo continuaria como propriedade dos preceitos cartesianos, seu alvo
crítico de eleição.
De acordo com Vico, a evolução da humanidade estava dividida em três
etapas distintas, a idade divina, a idade heróica e a idade humana, correspondendo
a três espécies de línguas. Na primeira delas, em que os homens haviam ascendido
há pouco ao que ele chama de condição humana, imperava
(...) uma língua muda, mediante sinais e caracteres que mantinham nexos naturais
com as idéias que os mesmos desejavam significar.
A segunda falou-se com intentos heróicos, ou seja, com o uso de similitudes,
comparações, metáforas e descrições naturais, que constituem o maior contingente
da linguagem heróica, ao que sabemos, falada no tempo em que reinavam os
heróis. A terceira foi a língua humana, mediante vocábulos convencionados pelos
povos
32
.
Essas interações entre linguagem e processos mentais, para Vico se
alteraram através do tempo, enquanto os sentidos tomados pelas metáforas em
outras épocas eram muito diferentes daqueles que conhecemos no discurso atual,
pois serviam para manifestar o entendimento de uma realidade na qual os termos
necessários para a denominação do mundo ao redor ainda estavam em sua fase
incipiente. O filósofo italiano via a percepção humana que relacionava natureza e
mundo resultando na construção de novos termos na linguagem, com palavras
gerais ou abstratas em que a metáfora era instrumento privilegiado, considerado por
ele como uma faculdade humana das mais sofisticadas:
Por todas essas razões se demonstrou que os tropos (que ao todo se
reduzem a quatro), até hoje tidos em conta de engenhosíssimos inventos
dos escritores, corresponderam a necessaríssimos modos de
expressarem-se todas as primeiras noções poéticas, guardando, em sua
origem, toda a sua nativa propriedade. Depois, no entanto, com o
progressivo desenvolver-se da mente humana, inventaram as palavras que
significam formas abstratas, ou gêneros que compreendiam as suas
espécies, ou que compunham com suas partes as integralidades,
passando tais falares das noções primitivas a transportes.
33
31
DUFRENNE, Mikel. O poético. Porto Alegre: Globo, 1969. p. 209.
32
VICO, Giambattista. Op. cit., p. 129.
33
VICO, Giambattista. Op. cit., p. 197.
21
Segundo Umberto Eco, é de Emanuele Tesauro o mérito de, no período
barroco italiano, reapresentar ao mundo que conhecia a física de Galileu uma
nova maneira de encarar os problemas das ciências humanas através das teorias
poéticas de Aristóteles, no seu Cannochiale aristotelico. Também segundo Eco, no
início de século seguinte,
(...) esta mesma cultura italiana foi fecundada por aquela Ciência Nova de
Vico, que colocava em causa cada preceito aristotélico, para falar de uma
linguagem e de uma poesia que se desenvolviam fora de qualquer regra.
Ao fazê-lo enquanto na França, de Boileau a Batteux, de Le Bossu a
Dubos, e até a Encyclopédie, buscavam-se ainda, com as regras do gosto,
as regras da tragédia Vico abria, sem querer, a porta para uma filosofia e
uma lingüística e uma estética da imprevisível liberdade de espírito.
34
Entre as datas dos ensaios de Locke e Vico, uma nítida transformação
nos modos de perceber a metáfora, como bem notou Umberto Eco, por conta das
idéias do filósofo napolitano.
Por todo o tempo em que vigoraram os preceitos da antiga retórica a
tônica foi dada pelos textos de matriz aristotélica que regulavam as regras tanto da
composição da tragédia como da persuasão e da poética. Podemos ressaltar como
a posição de Locke é notável entre os estudos da metáfora o por se constituir
numa negação radical de seu valor, mas por se posicionar ao lado de um conceito
que começaria a ruir a partir da visão proposta por Vico. O autor da Ciência nova
liberta a poética de suas amarras aristotélicas e à metáfora um lugar de
importância que fora atestado pelo próprio Aristóteles, mas negado por Platão e
filósofos empiristas como Hobbes e Locke.
Eco nota, assim como Paul Ricoeur, que o estagirita se utiliza de uma
metáfora para definir o próprio tropo, e comenta que, “com efeito, a teoria aristotélica
nos coloca diante do problema fundamental de qualquer teoria da linguagem, ou
seja, se a metáfora é um desvio em relação a uma literalidade subjacente ou o lugar
de nascimento de qualquer grau zero da escritura”
35
.
Tomando como base o trabalho realizado em A metáfora viva, Paul
Ricoeur procura fazer uma delimitação entre as teorias semânticas da metáfora e
uma teoria da imaginação e do sentimento tomada em bases psicológicas; o
conceito de teoria semântica é entendido como a capacidade da metáfora de
produzir sentidos novos, modificando a realidade proposta no texto através do que
34
ECO, Umberto. Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003. p. 219.
35
Op. cit., p. 231.
22
ele denomina por insight. A proposta de Ricoeur indaga se tais competências
metafóricas se mostram completas sem o auxílio da imaginação e do sentimento em
suas bases psicológicas, em que a teoria semântica se completa no último momento
com o auxílio da imagem
36
.
Herança da antiga Retórica, as teorias clássicas dos estudos tropológicos
encaram a metáfora de acordo com suas acepções de raiz aristotélica, definida pelo
papel da semelhança que possui entre o sentido original e o novo sentido, sendo
esta semelhança a razão desse empréstimo, pois “com efeito, bem saber descobrir
as metáforas significa bem se aperceber das semelhanças”
37
. O complicado quadro
dos tropos, resumidos por Vico a quatro (metáfora, metonímia, sinédoque e
ironia), foi simplificado pela lingüística estrutural e dividido em apenas dois, a
metáfora, o tropo por semelhança, e a metonímia, o tropo por contigüidade, numa
oposição que ao tempo dos antigos retóricos, como Fontanier, o existia, e se
instituiu apenas com os neo-retóricos contemporâneos.
Segundo Ricoeur, o estatuto essencialmente retórico dado à metáfora
pela Retórica clássica resultava numa posição de privilégio dado à palavra, ao nome
e a denominação na teoria da significação, em detrimento do processo semântico
que toma a frase como sua primeira unidade. Enquanto no primeiro caso a metáfora
é um tropo, uma figura de linguagem que desvia a significação da palavra de seu
sentido original, no segundo ela é um fato de predicação, uma “atribuição insólita”
dentro do plano do discurso e da frase.
O afastamento da Retórica das teorias da composição e da
argumentação, restando aos tropos, inclusive a metáfora, o papel de mero
ornamento, também atesta o juízo que Platão faz no Górgias, ao englobar Retórica e
Sofística como artes ligadas a “simulacros”, visando a “lisonja” e a “cosmética”
(Platão, Górgias, 461 e ss.).
O tratado de Pierre Fontanier, Les Figures du discours (1830), faz uma
recuperação escrupulosa desse campo e opta, entre o propósito geral do discurso e
o campo restrito dos tropos, pelo caminho intermediário da análise das figuras,
“somente as figuras, mas todas as figuras”, reafirmando o primado da palavra e
definindo os tropos a partir da relação entre palavra e idéia. “Os tropos são certos
36
RICOEUR, Paul. O processo metafórico como cognição, imaginação e sentimento. In: SACKS,
Seldon. Da metáfora. São Paulo: EDUC/Pontes, 1992. p.145.
37
ARISTÓTELES. Poética. Op. cit., p. 223.
23
sentidos mais ou menos diferentes do sentido primitivo que oferecem na expressão
do pensamento as palavras aplicadas às novas idéias”
38
, diz Fontanier.
Para Gerard Genette, que faz uma introdução ao tratado do antigo mestre
francês, o principal mérito da obra é dispor tropos e não-tropos sob a mesma noção
de figura, que não constitui nem palavra, nem enunciado. Assim, para Fontanier a
unidade típica não será nem o discurso, nem a palavra; tal posição, que Genette
mais como gramatical e menos como retórica, estabelece uma terceira alternativa
que faz do trabalho, diz ele, “uma obra-prima de inteligência taxionômica”
39
, por
conta da meticulosa enumeração e também da classificação sistemática pela qual se
guia.
Figuras, na acepção de Fontanier, “são as formas, os traços ou os
contornos mais ou menos assinaláveis e com um efeito mais ou menos feliz pelos
quais o discurso, na expressão de idéias, distancia-se mais ou menos do que foi a
expressão simples e comum”,
40
, independente de referir-se à palavra, frase ou ao
discurso. Quando pergunta a si sobre o que dizer das figuras enquanto tal, ele
responde utilizando uma metáfora: “O discurso, embora não sendo um corpo, mas
um ato de espírito, tem em suas diferentes maneiras de significar e de expressar,
alguma coisa de análogo às diferentes formas e traços que se encontram nos corpos
verdadeiros.”
41
Vico não é mencionado, mas o filósofo italiano tem na Ciência Nova um
conceito bastante semelhante ao que está exposto de maneira resumida por
Fontanier:
Isto é digno de nota: que em todas as línguas a maior parte das
expressões a respeito de coisas inanimadas efetuam-se mediante
translações do corpo humano e de suas partes, assim como dos sentidos
humanos e das humanas paixões. Assim, cabeça, por cimo ou princípio;
fronte, espáduas, adiante e atrás; olhos das videiras ou os que se chamam
os primeiros lumes penetrados na casas; boca, toda e qualquer abertura;
lábios, bordas de um vaso ou de outro; dente do arado, do rastelo, da
serra, do pente; barbas, as raízes; língua do mar; fauce ou foz dos rios ou
montes; garganta de terra; braço do rio; mão, por pequeno número; seio do
mar, isto é, golfo; (...) planta por base ou fundamento; carne e ossos dos
frutos; veio de água, pedra ou mina; sangue da videira, o vinho; vísceras da
terra; ri o mar, o céu; sopra o vento; murmura a onda.
42
38
FONTANIER, Pierre. Les Figures du discours. Introduction par Gerard Genette. Paris: Flammarion,
1977. p. 39.
39
GENETTE, Gerard. La Réthorique des Figures. In: FONTANIER, Pierre. Les Figures du discours.
Paris: Flammarion, 1977. p. 13.
40
FONTANIER, Pierre. Op. cit., p. 64.
41
Op. cit., p. 63.
42
VICO, Giambattista. Op. cit., p. 195.
24
Enquanto Fontanier generaliza ao englobar em sua definição todos os
tropos, Vico credita o que ele chama de capacidade do homem de erigir um mundo a
partir de si diretamente à metáfora, a “fabulazinha minúscula” que toma o ser
humano como medida para a formação de suas estruturas de linguagem.
O próprio Genette, seguindo os rastros de Vico, define a metáfora e as
figuras de modo geral, ou pelo menos as chamadas “figuras de substituição” como a
metáfora e a metonímia, antífrase, litotes ou hipérbole, como ficções verbais ou
ficções em miniatura, fazendo um corte em algumas das listadas nos tratados
tradicionais, como a simples comparação. Para ele, trata-se de um enunciado
literal ou de analogia parcial.
Outros casos são as anáforas, antíteses, elipses ou pleonasmos, e
oxímoros, que considera simples esquemas verbais ou deslocamentos de sentido
que se diferenciam de uma figura como a metáfora, semanticamente forte, em suas
palavras, e que realiza um “prodígio”
43
por efeito de um traslado de sentido.
Outra contribuição importante do tratado de Fontanier, bem notada por
Genette, é a diferença estabelecida entre sinédoque e metonímia. O primeiro é
explicado como tropo por conexão, numa relação de dependência interna, como
parte/todo, gênero/espécie, e o segundo, por correspondência, numa dependência
externa, por exemplo, causa/efeito, contingente/conteúdo, numa caracterização que
nem sempre se faz clara no intricado quadro das figuras.
De acordo com o autor de Les figures du discours, a metáfora consiste
em “apresentar uma idéia sob o signo de outra idéia mais evidente ou mais
conhecida”
44
, e para Ricoeur essa caracterização ao modo retórico implica dois
postulados, sendo o primeiro o de que “o emprego figurado de palavras não
comporta nenhuma informação nova”, ou seja, uma paráfrase da metáfora nada
ensina, é o postulado da informação nula, e o segundo, decorrente do primeiro, o de
que o tropo, nada ensinando, tem função apenas decorativa, destinando-se a
agradar ornamentando a linguagem, “ao dar a „cor‟ ao discurso, uma „vestimenta‟ à
expressão nua do pensamento”
45
. Sua conclusão é de que tais asserções procedem
43
GENETTE. Gerard. Metalepsis: de la figura a la ficción. El Salvador; Buenos Aires: Fondo de
Cultura Econômica, 2004. p. 22.
44
FONTANIER, Pierre. Op. cit., p. 99.
45
RICOEUR, Paul. A metáfora viva. São Paulo: Edições Loyola, 2000. p. 81.
25
da decisão inicial de tratar a metáfora como uma maneira insólita de designar as
coisas.
As três espécies de tropos acima - metonímias, sinédoques, metáforas -
são distinguidas em Fontanier respectivamente por meio da correlação ou
correspondência, da conexão, e da semelhança, pois segundo ele, “acontecem por
meio desses três tipos de relação”. Para Ricoeur, sob essas relações, “é numa
palavra que o tropo consiste, mas caso se possa dizer, é entre duas idéias que ele
acontece, por transporte de uma a outra”, pois como na epífora de Aristóteles, o
tropo sempre acontece “a partir de dois”
46
.
Porém ele nota que “correspondência” para Fontanier significa coisa bem
diferente da contigüidade à qual o funcionamento da metonímia foi reduzido por
seus sucessores, entendendo-a como a relação que aproxima dois objetos, dos
quais cada um forma “um todo absolutamente à parte”. Eis porque, diz Ricoeur, a
metonímia se diversifica, por sua vez, “segundo a variedade de relações que
satisfazem a condição geral da correspondência: relação da causa ao efeito, do
instrumento ao fim, do continente ao conteúdo, da coisa ao seu lugar, do signo à
significação, do físico ao moral, do modelo à coisa”
47
.
Na relação de conexão, para Fontanier, dois objetos formam “um
conjunto, um todo, ou físico ou metafísico, a existência ou a idéia de um
encontrando-se compreendida na existência ou na idéia do outro”
48
. Isso inclui, diz
Ricoeur, “numerosas espécies, da parte ao todo, da matéria à coisa, da
singularidade à pluralidade, da espécie ao gênero, do abstrato ao concreto, da
espécie ao indivíduo”
49
. Nos dois casos, tanto da metonímia quanto da sinédoque,
um objeto é designado pelo nome de outro objeto, numa relação de exclusão ou de
inclusão.
Porém, por conta do jogo da semelhança, o caso da metáfora é diferente.
Apesar de ela admitir espécies como os anteriores, tem um alcance mais longo,
“pois não somente o nome, mas ainda o adjetivo, o particípio, o verbo e todas as
espécies de palavras o de seu domínio”
50
. A extensão da metáfora para todos os
tipos de palavras e a restrição da metonímia e da sinédoque aos nomes é
46
RICOEUR, Paul. Op. cit., p. 94.
47
RICOEUR, Paul. Op. cit., p. 95.
48
FONTANIER, Pierre. Op. cit., p. 87.
49
RICOEUR, Paul. Op. cit., p. 95.
50
FONTANIER, Pierre. Op. cit., p. 99.
26
interpretada por Ricoeur como uma alteração importante, apenas reconhecida dentro
de uma teoria propriamente predicativa da metáfora.
Ricoeur ressalta que Fontanier não parece incomodado com a
circularidade do processo de denominação da metáfora como figura, e de a palavra
“figura” ser de origem metafórica. Mais relevante é a parte nomeada pela neo-
retórica de Fontanier como “desvio”, afirmando que a mesma “distancia-se mais ou
menos do que foi a expressão simples e comum”, sendo colocada sem ligação direta
com a palavra, frase ou discurso. Para Ricoeur, este é um dos postulados essenciais
de seu estudo, o postulado do desvio, que, diz Genette em seu prefácio, é o traço
pertinente à figura.
2.2 METÁFORA E SEMÂNTICA
Ricoeur vai adiante, depois de passar de Aristóteles a Fontanier e da
preeminência da palavra em sua “terceira versão da retórica como versão estilística,
no sentido moderno”, segundo as palavras de Genette. Até aí, sua análise da
metáfora em Fontanier toma a palavra como suporte da mudança de sentido no
tropo denominado, na retórica antiga e na clássica, como metáfora. O passo
seguinte é adotar “uma definição de metáfora que a identifica à transposição de um
nome estranho a outra coisa, a qual, por isso, não recebe denominação própria”
51
.
Porém, a investigação do trabalho de sentido gerado pela transposição do nome,
rompe tanto o quadro da palavra quanto o próprio. Impõe-se então o privilégio do
enunciado como meio contextual para essa transposição, chamado agora de
“enunciado metafórico”
52
.
Ressalta-se na seqüência a importância do papel das teorias propostas
por I. A. Richards em the Philosophy of Rethoric
53
, em dois capítulos denominados
Metaphor e The command of Metaphor, em que o autor elabora e discute dois
termos por ele denominados de “teor”
54
(tenor) e “veículo” (vehicle), introduzidos por
conta da necessidade de, segundo ele, distinguir as metades da metáfora.
51
RICOEUR, Paul. Op. cit., p. 107.
52
Op. cit., p. 107.
53
RICHARDS, I. A. The Philosophy of Rhetoric. London; Oxford: Oxford University Press, 1965.
54
Em A metáfora viva “tenor” está traduzida como “conteúdo”, porém aqui adotamos a denominação
mais conhecida do termo como “teor”.
27
Ao nos perguntarmos como a linguagem trabalha, estamos nos
perguntando tanto sobre a maneira como os pensamentos e sentimentos são
processados, quanto a respeito da atividade da mente que nos permite apreender o
comando da metáfora, que, contrariamente às proposições de Aristóteles, para
Richards pode ser compartilhado com outros. Segundo o autor, o vocabulário
utilizado, em geral, separa tais termos apenas por frases descritivas toscas, como “a
idéia original” e a “emprestada”, “o que está realmente sendo dito de” e “o que é
comparado com”, “a idéia subjacente” e a “natureza imaginada”, “o objeto principal” e
“o que ele assemelha”; ou, numa confusão ainda maior, diz ele, “simplesmente o
significado e a metáfora, ou a idéia e sua „imagem‟”
55
.
Segundo Stephen Ullmann, a estrutura básica da metáfora é muito
simples, havendo sempre dois termos presentes, a coisa de que falamos e a coisa
que queremos comparar; ou, na terminologia de Richards, “o primeiro é o teor, o
segundo o veículo, enquanto que o traço ou traços que têm em comum constituem o
fundamento da metáfora”
56
.
Para Ullmann, quatro diferentes tipos de metáforas. A primeira delas,
vista em Giambattista Vico, são as “metáforas antropomórficas”, expressões em
que os objetos inanimados são referidos por transferência do corpo humano e de
suas partes, das paixões e dos sentidos humanos, havendo, é claro, transferências
na direção oposta, como “maçãs do rosto”. O segundo tipo são as metáforas
animais, como “gato” para “ladrão”, por exemplo, cujas raízes são comuns às obras
de Esopo, La Fontaine, George Orwell, e à Batraquiomiomaquia, a partir de um
tempo em que para se aludir às deusas, eram referidos seus “olhos bovinos”. O
terceiro tipo consiste em traduzir experiências abstratas em termos concretos, como
“iluminar”, por “fazer compreender”. E o quarto e último tipo são as metáforas
sinestésicas, baseadas nas transposições de um sentido para o outro, onde Ullmann
o exemplo de “voz quente”
57
, sendo elevadas ao nível de doutrina estética por
Charles Baudelaire em Correspondências “(...) Os sons, as cores e os perfumes se
harmonizam.//Há aromas frescos como a carne dos infantes,/Doces como o oboé,
55
Op. cit., p. 96. (Trad. da A.)
56
ULLMANN, Stephen. Semântica: uma introdução à ciência do significado. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1964. p. 442.
57
Op cit., p. 451.
28
verdes como a campina (...)”
58
. A partir daí, entre as diversas tentativas feitas para
sistematizar as correspondências entre os sentidos, a mais conhecida é o soneto
das vogais, as “Voyelles de Rimbaud.
Segundo Richards, a utilização da palavra metáfora para a “unidade dupla
inteira” é tão insensata como o outro artifício pelo qual nós
(...) usamos “o significado” aqui às vezes para o trabalho que a unidade
dupla inteira faz e às vezes para o outro componente o teor, como eu
estou chamando aqui a idéia subjacente ou o objeto principal que o
veículo ou figura representa
59
.
Duas palavras são consideradas por ele especialmente enganosas,
“figura” e “imagem”. Por vezes, ambas representam a unidade dupla inteira, e em
outras somente uma parte, o veículo, como oposta a outra, o teor. Adicionalmente,
elas causam confusão quanto ao juízo que percebe uma imagem como uma cópia
ou reapresentação de um sentido-percepção de alguma espécie.
Para o autor, tal fato foi responsável pelo julgamento equivocado dos
retóricos de pensarem que uma figura de discurso, uma imagem, ou uma
comparação imaginativa, deve ter algo a ver com a presença de imagens em seu
outro sentido, o da percepção mental ou auditiva. Para Ricoeur, é necessário afastar
o juízo de Hume no qual a imaginação é vista como uma percepção tênue e também
o ardil que confunde imagem e figura de estilo, ressaltando que não é possível,
contudo, falar em teor “(...) fora da figura, ou tratar o veículo como um ornamento
sobreposto: é a presença simultânea do [teor] e do veículo e sua interação que dão
origem à metáfora”
60
.
Na retórica reflexiva de Richards, o par teor-veículo passa ao largo da
distinção entre sentido literal e sentido metafórico, permanecendo como único
critério o compartilhado com o Dr. Johnson, de que a expressão metafórica é matéria
de excelência dentro do estilo “quando é usada com propriedade, porque a você
duas idéias por uma”, fazendo interagir teor e veículo.
Numa formulação simples, afirma Richards,
(...) quando nós usamos uma metáfora nós temos dois pensamentos de
coisas diferentes operando juntos e sustentados por uma única palavra, ou
frase, cujo significado é resultante dessa interação
61
.
58
BAUDELAIRE, Charles. As Flores do mal. Trad., introdução e notas de Ivan Junqueira. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p. 115.
59
Op. cit., p. 97.
60
RICOEUR, Paul. Op. cit., p. 130.
61
RICHARDS, I. A. Op. cit., p. 93. (Trad. da A.)
29
Sendo assim, esse critério também permite definir o sentido literal, pois se
é impossível distinguir teor e veículo, a palavra pode ser provisoriamente tomada
desse modo. No entanto, esse estado não é irrecuperável, pois resulta da maneira
como funciona a interação, ou, nos termos de Ricoeur, a base do teorema do
sentido contextual. Para Richards, os processos metafóricos na linguagem,
(...) e as mudanças entre os significados das palavras que nós estudamos
nas metáforas verbais explícitas, estão superpostas sobre um mundo
percebido que é em si mesmo um produto de metáforas primitivas ou
inconscientes, e nós não iremos lidar com elas corretamente se nós
esquecermos que isto é assim
62
.
De novo retornamos a Giambattista Vico e suas teorias da linguagem
heróica, berço das comparações e da linguagem metafórica, e como nota o autor
inglês, as relações que envolvem ambas são comentadas em toda parte, sendo
possível considerar se entre teor e veículo a mesma relação de envolvimento
existente entre metáfora e comparação.
Comparar seria, talvez, manter duas coisas juntas e operando em
conjunto, ou apreciar suas semelhanças, ou ainda, apreender determinados
aspectos de uma delas pela presença da outra, mas nós não devemos, como no
século XVIII, supor que as interações entre teor e veículo estão confinadas às suas
semelhanças, pois também ações díspares. Na visão de Richards, poucas
metáforas nas quais as disparidades entre teor e veículo não são tão operativas
quanto as similaridades. Porém o mais importante é o esforço da mente ao ligar
duas coisas pertencentes a ordens de experiência muito diferentes, pois “a mente só
opera por conexão e pode conectar duas coisas quaisquer num número
indefinidamente vasto [e] de maneiras diferentes”
63
, em assertivas percebidas por
Ricoeur como uma teoria da tensão dando espaço tanto à semelhança como à
dessemelhança.
O projeto retórico em The Philosophy of Rhetoric, diz o filósofo francês, “é
dedicado a restabelecer os direitos do discurso a expensas dos da palavra (...) em
nome de uma teoria francamente contextual de sentido”
64
, revertendo a relação de
prioridade entre a palavra e a frase. A fixação das palavras em seus valores de uso
62
Op. cit., p. 109. (Trad. da A.)
63
Op. cit., p. 125.
64
RICOEUR, Paul. Op. cit., p. 124.
30
deu origem a uma crença falsa de que as palavras m um sentido, consolidando o
preconceito da significação própria das palavras.
Na opinião de Richards, os elizabetanos eram muito mais hábeis que nós
no uso da metáfora, tanto na questão do significado quanto na da interpretação, “um
fato que tornou Shakespeare possível”
65
. No entanto, é o emprego literário das
palavras que faz com que cheguemos a um resultado construído somente através
das possibilidades interpretativas do todo da enunciação, que nos termos do autor,
não é um mosaico, mas sim um organismo.
Para Ricoeur, com I. A. Richards entramos em uma semântica da
metáfora que “ignora a dualidade de uma teoria dos signos e de uma teoria da
instância do discurso, e que se edifica sobre a tese da interanimação de palavras na
enunciação viva”
66
.
Contudo, é preciso notar que não é possível eliminar a definição de
Aristóteles em termos de palavra e de nome, porque ainda é a palavra a portadora
do sentido metafórico. Ricoeur adota então a linguagem de Max Black, e a palavra
mantém o “foco” (focus), ela permanece como suporte do efeito metafórico porque
sua função no discurso é encarnar a identidade semântica, enquanto a frase é
denominada como “quadro” (frame), o que é nomeado por este autor de teoria da
interação, oposta à teoria substitutiva. O processo dessa análise semântica da
metáfora é agora estabelecido em meio ao enunciado como um todo, mas centrado
na mudança de sentido que continua sob o domínio da palavra.
Tal processo não se reduz apenas à substituição de uma palavra ou nome
por outro, mas constitui uma interação entre sujeito e predicado lógicos. Renovando
a maneira de explicar a metáfora como um desvio, ela é descrita agora como uma
predicação alterada, e não como denominação alterada.
Na opinião de Ricoeur, as teorias de Max Black não suplantam I. A.
Richards em The Philosophy of Rhetoric, mas três pontos decisivos no trabalho.
O primeiro deles, diretamente implicado aqui, está na proposição de que a
metáfora se constitui no enunciado inteiro, porém este é considerado metafórico e se
justifica em razão da presença de uma palavra particular. Assim, a metáfora seria
uma frase em que algumas palavras são tomadas metaforicamente, enquanto outras
não, constituindo o traço diferencial entre metáfora, provérbio, alegoria e enigma, diz
65
RICHARDS, I. A. Op. cit., p. 94.
66
RICOEUR, Paul. Op. cit., p. 127.
31
Black, pois nos três últimos “todas as palavras são empregadas metaforicamente”.
Tal detalhe circunscreve o fenômeno e permite isolar a palavra metafórica do resto
da frase, corrigindo também os reparos que o autor faz aos conceitos de “teor” e
“veículo” e suas “significações demasiado flutuantes”
67
.
A teoria de Max Black afastaria o perigo de retornar a um juízo que desse
à palavra um significado em si, usando o termo foco” para designar essa palavra e
“quadro” para o resto da frase, contudo, ainda que também para Richards a metáfora
proceda da interação entre ambas, Ricoeur considera o vocabulário de Black mais
preciso.
A segunda contribuição de Black é o afastamento decisivo entre uma
teoria da interação, proveniente da análise anterior, e as teorias clássicas da
substituição, acrescentando uma teoria da comparação; essa é vista como um
enfoque mais geral da linguagem figurada, de que “toda figura de dicção que tenha
uma mudança semântica (não meramente uma mudança sintática, como a inversão
da ordem normal das palavras) consiste em certa transformação do significado
literal”
68
.
Quando pergunta a si mesmo qual seria a função transformadora
característica da metáfora, Black responde que é ou a analogia ou a semelhança, a
primeira valendo para as relações e a segunda, para as coisas ou as idéias. Porém o
benefício de opor a teoria da interação às outras torna esse tipo de metáfora, de
interação, não insubstituível, “pois exige”, diz o autor, “que o leitor utilize um
sistema de implicações (...) como meio de selecionar, acentuar e organizar as
relações em um campo distinto”
69
, mas também intraduzível “sem perda de
conteúdo cognitivo”. E sendo intraduzível, é portadora de informações, logo, ela
ensina, diz Ricoeur.
A terceira e última contribuição de Max Black se refere ao funcionamento
da interação, e versa sobre a questão que indaga de que modo o termo focal age
sobre o contexto dando origem a uma nova significação, que seja irredutível tanto à
paráfrase como ao uso literal. Ele usa como exemplo a frase “O homem é um lobo”,
no entanto, “lobo” não está na sentença em sua significação normal, mas num
67
RICOEUR, Paul. Op. cit., p. 55
68
BLACK, Max. Modelos y metáforas: Madrid: Editorial Tecnos, 1966. p. 45. (Trad. da A.)
69
Op. cit., p. 55. (Trad. da A.)
32
“sistema de lugares comuns”
70
relativos aos lobos, e um ouvinte idôneo será
conduzido a construir correspondências referentes ao assunto principal em outro
sistema, levando Black a dizer que a metáfora pode ser vista como um filtro (p. 49),
ou como uma tela (p. 51): assim, “a metáfora do lobo suprime certos detalhes e
acentua outros; dito brevemente, organiza nossa visão do homem”
71
.
Mas diz Ricoeur que chegaremos mais perto da chamada “função de
semelhança” se indagarmos como se obtém essa predicação alterada a Jean
Cohen, que em Estrutura da linguagem poética fala de tal desvio do ponto de vista
da não-pertinência semântica, significando a violação desse código e dos seus
predicados de uso normal.“A poesia só destrói a linguagem corrente para reconstruí-
la num plano superior”, diz ele
72
.
Ele escolhe como ponto de vista inicial para seu estudo uma linguagem
menos marcada pela retórica e pelas figuras, de um grau zero relativo, a linguagem
científica, comparando-a não somente com a linguagem poética, mas estabelecendo
diferenças na evolução do desvio umas frente às outras, da poesia clássica à
romântica e, finalmente, à poesia dos simbolistas. Assim, “o estilo poético será o
desvio médio do conjunto dos poemas, a partir do qual seria teoricamente possível
medir a „taxa de poesia‟ de um poema determinado”
73
. Essa análise das figuras é
feita em dois níveis, o fônico e o semântico, em que rima e metro, no primeiro, se
referem às funções de dicção e de contraste, e no segundo, as três funções de
predicação, determinação e coordenação distinguem na metáfora o operador
predicativo, no epíteto o determinativo e a incoerência como operadora da
coordenação.
A contribuição mais importante dessa teoria, para Ricoeur, está na
relação entre desvio e a idéia de uma “redução de desvio”, uma vez que a
mensagem poética constitui uma violação ao código de pertinência, o regulador dos
significados do discurso no nível semântico; mesmo que a sintaxe esteja correta,
eles podem se tornar absurdos, deixando de fazer sentido, pela impertinência do
predicado.
Em toda frase predicativa, é necessário que o predicado seja pertinente
ao sujeito, função evocada por Platão no Sofista ao falar sobre O problema da
70
Op. cit., p. 50.
71
Op. cit., p. 51.
72
COHEN, Jean. Estrutura da linguagem poética. São Paulo: Cultrix, 1974. p. 45.
73
Op. cit., p. 17.
33
predicação e a comunidade dos gêneros, de que há alguns gêneros “que são
mutuamente concordes e (...) outros que não podem suportar-se”
74
. O que Jean
Cohen denomina de lei de pertinência semântica são os arranjos combinatórios das
frases recebidas como inteligíveis, que manifestam significados satisfatórios, nesse
caso, um “código da fala”.
Portanto, se a sentença “O homem é o lobo do homem” tem outro
significado, que viola o código da língua e lhe uma decodificação nova, é porque
a frase no primeiro sentido, o literal, é impertinente, enquanto o segundo sentido lhe
pertinência, “a metáfora intervém para reduzir o desvio criado pela impertinência”
75
. Tais desvios são complementares e não estão colocados no mesmo nível
lingüístico, pois enquanto a impertinência infringe o código da fala - é um desvio
sintagmático, a metáfora é uma violação ao código da língua - está no plano
paradigmático. Assim, para o autor, a fala é superior à língua, pois “esta aceita
transformar-se para dar sentido àquela”
76
.
A expressão metafórica faz a redução desse desvio sintagmático
agregando um novo significado a ele. Esse novo significado é mantido pela
produção de um desvio lexical, ou seja, um desvio paradigmático, o mesmo tipo de
desvio descrito na retórica clássica, que na verdade o estava equivocada, mas
descrevia o “efeito do sentido” no nível da palavra, ignorando a alteração semântica
no nível do sentido. E se o efeito do sentido está contido na palavra, então a
produção do sentido opera dentro do enunciado como um todo, fazendo com que a
teoria da metáfora dependa de uma semântica da sentença.
A impertinência, introduzida no meio da frase, é imediatamente percebida
como tal e aciona o mecanismo de redução lingüística. (...) é esse
mecanismo que introduz aqueles valores semânticos de outra ordem que
constituem o sentido poético.
77
Segundo Jean Cohen, enquanto o discurso habitual se coloca em
conformidade com o sistema e suas leis, no discurso poético ele é invertido, aceita
transformar-se, mas “(...) não é preconcebido. É o caminho inelutável pelo qual o
poeta deve passar, se quiser fazer a linguagem dizer aquilo que a linguagem nunca
diz naturalmente”
78
, e nesse desvio lingüístico que se pode chamar de figura está o
74
PLATÃO. O sofista. In: ___. Diálogos. o Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 176.
75
COHEN, Jean. Op. cit., p. 94.
76
Op. cit., p. 94.
77
Op. cit., p. 97.
78
Op. cit., p. 110.
34
“verdadeiro objeto da poética”. A metáfora, diz ele, é “uma passagem da língua
denotativa para a conotativa”, obtida por meio do desvio da fala, perdendo o sentido
ao nível da primeira “para reencontrá-lo ao nível da segunda
79
. Logo, ela não é o
desvio em si, mas a redução de desvio, e, como figura, restabelece a ameaça feita
ao discurso por parte da incoerência semântica, só existindo desvio quando as
palavras são tomadas em seu sentido literal. Para Jean Cohen, “o objetivo de toda
poesia [é] obter uma mutação da língua que (...) é ao mesmo tempo uma
metamorfose mental”
80
.
O criador de metáforas, possuidor dessa habilidade que Aristóteles
considerava impossível de ser ensinada, é visto por Paul Ricoeur como um artesão
verbal que confere ao enunciado literal incoerente um significado predicativo original,
o qual surge a partir do colapso do anterior, percebendo-se agora a metáfora não
como um enigma, mas como a sua solução.
A partir dos neo-retóricos contemporâneos a tropologia foi restringida a
uma oposição entre metáfora e metonímia, e com Roman Jakobson o papel da
semelhança foi enfatizado pela condição que a opõe ao seu único correspondente, a
contigüidade. Para Ricoeur, tal papel é fundamental, por ligar uma dualidade retórica
e tropológica a uma polaridade de maior importância que não se restringe ao seu
uso figurativo somente, mas também ao seu funcionamento. Assim, metáfora e
metonímia, mais do que caracterizarem figuras e tropos, dessa maneira ficam
ligadas aos processos gerais da linguagem, reforçando a idéia de substituição e
semelhança como dois conceitos inseparáveis.
Esse monismo do signo, que Ricoeur vê como característico de uma
lingüística puramente semiótica, para ele confirma a hipótese de que a teoria da
metáfora-substituição ignora a diferença entre semiótico e semântico, caracterizando
assim a metáfora como “um processo semiótico geral e de modo algum uma forma
de atribuição que demande previamente a distinção do discurso e do signo”
81
.
Desse modo seria possível a aproximação do par “sintaxe-semântica ao par
combinação-seleção, (...) contigüidade-similaridade, (...) ao par dos los
metonímico e metafórico”
82
.
79
Op. cit., p. 173.
80
Op. cit., p. 94.
81
RICOUER, Paul. Op. cit., p. 271.
82
Op. cit., p. 271.
35
Jakobson percebe também na polaridade dos processos metonímicos e
metafóricos uma correspondência em relação aos estilos pessoais e ao
comportamento verbal que exprimem a preferência das formas poéticas por uma ou
outra forma de coordenação, com predominância da metonímia no realismo e da
metáfora no romantismo e no simbolismo.
O monismo semiológico de Jakobson, que para Ricoeur minimiza ao
extremo a diferença entre signo e discurso por não permitir opor os fenômenos do
discurso aos da língua, é reformulado nas teses de Michel Le Guern, que lhe faz
dois acréscimos, mas preserva a polaridade metonímico-metafórica. Seu aporte se
refere aos procedimentos emprestados de Jakobson de seleção-substituição e
combinação-contextura agregados à distinção que Frege faz entre sentido e
referência, reportando a metáfora à substância da linguagem, ou seja, às relações
de sentido, enquanto a metonímia é vista como modificadora da própria função
referencial. Não haveria metáfora se não houvesse um desvio da homogeneidade
semântica do enunciado, ou seja, entre a isotopia do contexto e o sentido figurado
de uma palavra, estabelecendo uma diferença importante com a metonímia, cujos
lexemas não são considerados estranhos à isotopia. Assim, é necessário incorporar
a ruptura da isotopia à definição de metáfora, processo extraído da relação entre
denotação e conotação e que constitui a primeira contribuição de Le Guern às teses
de Jakobson.
Na metáfora, combinam-se um fenômeno denotativo, referido pela
redução sêmica, e um conotativo, exterior à função lógica do enunciado. A essa
informação dada pelo sentido lógico da expressão é acrescentado o que o autor
denomina de “imagem associada”, que intervém num nível de consciência diverso
daquele no qual se forma a significação lógica, onde a censura que separa o
significado da metáfora não interfere mais. Como essa interpretação depende do
leitor, para Le Guern a produção da “imagem associada” é um fenômeno ligado à
personalidade, pois “Dada uma palavra, a eleição entre uma imagem associada e
outra parece livre, até o ponto em que pode haver aqui uma fonte de erro na
interpretação do enunciado”
83
. Entretanto, a liberdade desse caráter arbitrário é
retirada pela metáfora ao mesmo tempo em que opera o mecanismo da imagem
associada, impondo ao espírito do leitor, em superposição à informação lógica
83
LE GUERN, Michel. La metáfora y la metonimia. Madrid: Ediciones Cátedra, 1976. p. 48.
36
contida no enunciado, “uma imagem associada que corresponde àquela que se
formou no espírito do autor no momento em que formulava o dito enunciado”
84
.
O segundo contributo de Le Guern reside na questão da semelhança, na
qual a analogia deve ser introduzida ao mesmo tempo em que a imagem associada,
estabelecendo uma relação entre um termo da isotopia e um termo estranho, a
imagem, que, operando no núcleo lógico do significado permite estabelecer a
similaridade que resulta na ordenação do conjunto dos fatos da linguagem.
Nessa visão da analogia, que para o autor, é “imposta na metáfora e
surge como único meio de suprir a incompatibilidade semântica”
85
, Ricoeur a
afirmação mais importante das teses de Le Guern, mas que somente pode ser
valorizada dentro de uma teoria da metáfora-enunciado. O estatuto semântico da
imagem é apenas incorporado à metáfora quando aquela se vincula não só à
percepção de desvio, mas também à sua redução, que seria “a instauração da nova
pertinência cuja redução de desvio no nível da palavra é somente um efeito”
86
. O
ponto em comum entre metáfora e analogia é, portanto, a intervenção de uma
“representação mental alheia ao objeto da informação que motiva o enunciado”
87
,
ou seja, uma imagem.
Questionando o papel da analogia em curso na metáfora, se ela poderia
ou não ser chamada de semântica, Ricoeur opina que, para seja convincente, é
necessário completar a análise de Le Guern com outra que incorpore com mais
clareza o papel da imagem na redução de desvio; sendo somente uma imagem
associada, diz, arrisca-se a permanecer como fator extralingüístico enquanto
imagem.
É dentro das mutações características da inovação semântica que tanto a
similaridade quanto a imaginação desempenham sua função, diz Ricoeur. Porém, ao
contrário do que proclamam teóricos como Jakobson, ela não deveria ser entendida
como uma escolha que se divide entre contigüidade ou similaridade, opondo o
processo metafórico ao metonímico. Na proposta do filósofo em A metáfora viva as
formas de funcionamento da similaridade e da imaginação operam ao mesmo tempo
e são imanentes ao processo predicativo, elas não são extrínsecas a ele, e o
84
Op. cit., p. 48.
85
LE GUERN, Michel. Op. cit., p. 67.
86
RICOEUR, Paul. Op. cit., p. 287.
87
LE GUERN, Michel. Op. cit., p. 62.
37
trabalho da semelhança deve ser adequado e homogêneo tanto ao desvio como à
singularidade do novo significado semântico.
No dossiê de acusação da semelhança, a peça principal é o papel
desempenhado entre esta e a substituição, demonstrados na teoria de Jakobson,
de que é no interior de uma esfera de semelhança que se faz a passagem de um
termo para outro. a interação “é compatível com quaisquer tipos de relação”
88
,
diz Ricoeur.
Num segundo argumento, mesmo quando um enunciado metafórico
coloca a analogia em jogo, ela não explica nada, pois a semelhança muitas vezes
aparece entre coisas em que não haveríamos sonhado fazer uma relação, logo, ela
é antes o resultado do enunciado que a sua causa ou razão. Segundo Ricoeur, eis
porque a teoria da interação esforça-se para dar conta da teoria da semelhança sem
incluí-la em sua explicação, (...) a aplicação do tema principal ao predicado
metafórico é similar a uma tela ou filtro “que seleciona, elimina, organiza as
significações o tema principal; a analogia não está em causa nesta aplicação”
89
.
O uso por Aristóteles de ao menos três empregos diferentes do termo
confirmaria a fraqueza lógica da semelhança e da analogia, introduzindo apenas
confusão na análise, como terceiro argumento contra a semelhança. Não alusão
aparente à lógica da proporção e da comparação quando o mestre do Liceu nos diz
que apreender uma metáfora implica bem perceber suas semelhanças e que isso é
algo que não pode ser compartilhado.
O último e mais grave argumento contrário recai sobre a associação
freqüente entre a semelhança e a imagem, como num retrato ou numa fotografia,
refletida até mesmo em alguma crítica literária de certo tempo, na qual indagar
sobre as metáforas de um determinado autor implicava descobrir quais imagens -
visuais, auditivas, sensoriais lhe seriam familiares.
O equívoco, para Ricoeur, embasa-se no dizer de Aristóteles de que
perceber bem a metáfora é “pôr sob os olhos”. O mestre francês pondera se acaso
apresentar um pensamento apoiado em outro não seria mostrar o primeiro por meio
dos traços mais vivos do segundo, ou até mesmo, se não caberia à figura o papel de
fazer surgir o discurso.
88
RICOEUR, Paul. Op. cit., p. 293.
89
RICOEUR, Paul. Op. cit., p. 294.
38
Apontados os pontos fracos que recaem sobre as teorias da semelhança
no estudo da metáfora, em sua defesa Ricoeur propõe que ela é ainda mais
necessária numa teoria da tensão que numa teoria da substituição; que ela não
apenas constrói, mas guia e produz o enunciado metafórico, e ainda, que o seu
caráter icônico deve ser reconstruído de modo que a imaginação se torne, dentro do
enunciado metafórico, um momento semântico.
2.3 POÉTICA DA IMAGEM
Num ciclo de conferências das Clark Lectures proferidas em 1946 no
Trinity College, em Cambridge, o poeta inglês Cecil Day Lewis escolhe como seu
tema as imagens na poesia, no que mais tarde deu origem ao volume The poetic
image. Férteis, inovadoras, audazes, ele apresenta as imagens como o ponto forte
da poesia moderna, apontando-as como seu fator constante e sustentando que
“cada poema é em si mesmo uma imagem”
90
, que as tendências vêm e vão, a
dicção se altera, os modismos da métrica mudam, até os temas e assuntos variam a
ponto de não serem reconhecidos, mas a metáfora fica, pois ela é o teste principal
para a glória de um poeta.
Reforçando seu ponto de vista, após referir Aristóteles, ele menciona a
frase em que Herbert Read afirma que nós deveríamos julgar um poeta pela força e
originalidade de suas metáforas, fazendo ainda referência a Dryden, que sustenta
ser a imaginação, em si mesma, a força vital da poesia. Day Lewis retorna aos
séculos XVI, XVII e XVIII para uma crítica aos literatos e filósofos que tomavam o
imaginário como mero ornamento, igual a cerejas ornamentando um bolo, até que as
coisas começaram a mudar, a partir do movimento romântico.
Indagando o que se entende por imagem poética, o poeta inglês comenta
que um epíteto, uma metáfora, um símile, podem criar uma imagem, mas que toda
imagem poética é, de algum modo, metafórica, e mesmo as emocionais e
intelectuais trazem algum traço do sensível que as move do tipo mais comum, as
visuais, conclamando também os outros sentidos.
O assunto é desenvolvido até serem reunidos os termos que definem a
imagem poética, em seus termos, como uma cena sensível em palavras, em certo
90
DAY LEWIS, Cecil. The poetic image. New York: Oxford University Press, 1947. p. 17.
39
grau metafórica, com uma nota de emoção humana em seu contexto; ressalta,
porém, que essa não é uma definição perfeita, pois faltam os ingredientes da
emoção e da paixão, vistos por Coleridge como indispensáveis na associação
entre pensamentos e imagem.
De fato, há um ponto central na questão das imagens poéticas que não
permite interpretá-las como produto de uma mente genial e veículo para emoções
como medo, desejo, ódio, tristeza, mas fatores importantes para saber fazer a
distinção entre emoção humana e paixão poética.
Lewis também aborda outra questão, o porquê de nos excitarmos com as
metáforas, e qual seria o processo secreto pelo qual as imagens nos transmitem
prazer. Se mesmo um poeta deve ver as coisas como elas são, e essa noção de
realidade envolve relacionamentos, o que conduz às emoções humanas, é
justamente essa necessidade de expressar as relações entre coisas e sentimentos
que impele o poeta à metáfora. Ainda que o mundo poético seja artificial, ele faz
sentido para nós através das correspondências entre os padrões de suas imagens e
as do mundo real, ou nas palavras de William Blake, citado pelo autor, “Se as portas
da percepção forem abertas, todas as coisas aparecerão ao homem como elas são,
infinitas”.
Para Lewis, se uma imagem tem o frescor e o poder evocativo percebidos
por ele como a expressão principal da poesia moderna, de mostrar alguma coisa
nunca realizada antes, é porque ela concentra em si, em sua dicção e em seu
material poético, o que nós mais prezamos, a grandeza de significado num espaço
pequeno que evoca uma resposta a essa paixão poética.
E uma imagem intensa, diz ele, é o oposto de um símbolo, que é
denotativo e se coloca em razão de uma coisa somente, sendo que as “imagens em
poesia raramente o puramente simbólicas, porque são afetadas pelas vibrações
emocionais de seus contextos, de modo que a resposta de cada leitor a elas está
apta a ser modificada por sua experiência pessoal”
91
.
A esse respeito, Paul Ricoeur manifesta pontos de vista diferentes de
Cecil Day Lewis, percebendo no símbolo uma estrutura de duplo sentido em que
algo de semântico e de não-semântico também, para ele, o mesmo caso da
metáfora. Três dos campos de investigação englobando mbolos foram explorados
91
DAY LEWIS, Cecil. Op. cit., p. 41. (Trad. da A.)
40
por Ricoeur: a psicanálise, que se ocupa dos sonhos e de outros objetos
relacionados como simbólicos nos conflitos psíquicos; a poética num sentido amplo,
em que os símbolos são entendidos como as imagens que dominam as obras de
um autor ou de uma escola de literatura, ou as figuras persistentes dentro das quais
toda cultura se reconhece a si mesma”
92
. E por fim, as grandes imagens
arquetípicas que, ignorando as diferenças culturais, são celebradas pela
humanidade como um todo. Mircea Eliade explorou com profundidade aspectos
que reconhecem em entidades concretas como árvores, labirintos, escadas e
montanhas
93
, símbolos de espaço, tempo e transcendência, sinalizando ainda algo
além, manifestado neles próprios numa tal proliferação de forma que torna ainda
mais complexa a sua investigação.
Mas além dos múltiplos campos, outra dificuldade é o caráter duplo que
divide os símbolos em dois universos, de ordem lingüística e não-lingüística. A
comprovação do caráter do primeiro está em que é possível a construção de uma
semântica dos símbolos em termos de sentido ou significado. A outra natureza, não-
lingüística, vista por Ricoeur como tão óbvia quanto a primeira, está sempre se
referindo a alguma coisa além, no caso da psicanálise, associando-a a conflitos
psíquicos ocultos, no do crítico literário, ao desejo de relacionar literatura e
linguagem, e no do historiador das religiões, de ver no símbolo uma manifestação do
sagrado,como as hierofanias de Eliade.
Ricoeur faz uma tentativa de esclarecer os símbolos utilizando a teoria da
metáfora, primeiro, identificando seu cerne, ainda que eles sejam de natureza as
mais diversas, a partir da mesma estrutura de sentido que opera nas expressões
metafóricas; em segundo, por meio de um método de contraste, com o
funcionamento metafórico da linguagem, ao isolar o estrato não-lingüístico dos
símbolos, ou seja, o princípio de sua disseminação. Essa nova compreensão dos
símbolos concorre não para auxiliar no desenvolvimento da teoria da metáfora,
desvendando dados que permaneceriam ocultos, mas completando-a e
preenchendo algumas lacunas existentes.
É a expressão metafórica que permite identificar os traços semânticos de
um símbolo por meio de uma diretriz que distingue entre sentido literal e sentido
metafórico, relacionando toda forma de um símbolo à linguagem e assegurando a
92
RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação. Lisboa: Edições 70, p. 65.
93
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. o Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 188.
41
sua unidade. Para Ricoeur, “o símbolo suscita pensamento se, primeiro, suscitar
a fala”, e a metáfora “é o reagente apropriado para trazer à luz o aspecto dos
símbolos que tem uma afinidade com a linguagem”
94
. A opção do filósofo é pela
teoria da torção metafórica sofrida pelas palavras quando expostas à impertinência
semântica, tomada “como modelo para a extensão de sentido operante em cada
símbolo”. Nas três áreas, símbolo é tomado nos termos de Ricoeur como um
“excesso de significação”, tanto na psicanálise como na poética ou nos mitos
babilônicos.
Como na metáfora, o significado em excesso pode opor-se ao significado
literal, mas sempre que oportunizadas as duas interpretações. Na significação
simbólica, porém, não sentido literal e metafórico, mas um único significado que
passa de um a outro por meio ou através do primeiro, o significado literal, modo
privilegiado de se trasladar de um nível a outro, o do significado excedente,
fornecendo “o sentido de um sentido”, traço que diferencia um símbolo de uma
alegoria. A alegoria, diz Ricoeur, é um “procedimento didático”, facilita a
aprendizagem, mas não é necessária ao se tratar com um conceito.
A distinção entre símbolo e alegoria é estabelecida a partir do
Romantismo, em especial nos escritos de Goethe, Schlegel e Coleridge. Enquanto
Schlegel defendia que havia uma alegoria em todas as obras de arte, Goethe
negava, e fazia a distinção entre ambos:
A simbólica transforma o fenômeno em idéia, a idéia em imagem, e de tal
modo que na imagem a idéia permanece sempre infinitamente eficaz e
inatingível e, ainda que pronunciada em todas as línguas, continuaria a ser
indizível. A alegoria transforma o fenômeno num conceito, o conceito em
imagem, mas de tal modo que na imagem o conceito permanece limitado e
suscetível de ser completamente apreendido e usado, e pronto para ser
expresso por essa mesma imagem
95
.
Segundo Wellek e Warren, Coleridge também apontava o valor da
alegoria como secundário, pois enquanto
(...) a alegoria é meramente uma transposição de noções abstratas para
uma linguagem pictórica, que em si própria mais não é do que uma
abstração de objetos dos sentidos..., um símbolo é caracterizado por uma
transferência do especial [a espécie] no indivíduo, ou do geral [o gênero] no
especial...; acima de tudo, pela transferência do eterno através do temporal
e no temporal
96
.
94
RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação. Op. cit., p. 66.
95
GOETHE, J. W. Máximas e reflexões. Lisboa: Círculo dos Leitores, 1992. p. 189.
96
WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da literatura. 5ª. Ed. Lisboa: Europa-América, 1987. p.
233.
42
Walter Benjamin recupera o valor da alegoria trazendo-a para o campo da
Estética, percebida como a revelação de uma verdade oculta, havendo dois tipos de
alegoria: a cristã, visando a finitude do homem num mundo absurdo, e a moderna,
exemplar em Baudelaire, mostrada como a representação da degradação e da
alienação humanas. Na distinção entre alegoria e símbolo, Benjamin mostrava a
primeira como temporal, um fragmento arrancado à totalidade do contexto social,
enquanto o símbolo é essencialmente orgânico
97
.
No trabalho da semelhança, Paul Ricoeur percebe uma ligação entre
símbolo e metáfora, mas no símbolo essas relações estão mais confusas por não
serem tão articuladas a nível lógico. Porém é sua percepção ao perceber que o
símbolo, mais do que buscar a semelhança, assimila, a maior contribuição para
elucidar essas diferenças.
Outras colocações importantes, como a de que os símbolos admitem uma
exegese interminável, e nenhuma categorização é capaz de elencar a completude
de suas possibilidades de interpretação, vêm ao lado da proposta de novos modos
de articulação entre campos semânticos antes separados. É a ligação do caráter dos
símbolos ao cosmos que constitui sua diferença em relação à metáfora, que é uma
“invenção livre do discurso”. É a capacidade de significação do cosmos que
possibilita a capacidade de falar dentro do universo sagrado, é dele que deriva a
lógica do sentido. E é por meio do discurso que se manifesta a lógica do Sagrado,
as correspondências que fazem ligações simbólicas:
(...) entre o solo arável e o órgão feminino, entre a fecundidade da terra e o
ventre materno, entre o sol e os nossos olhos, o sêmen e as sementes, a
sepultura e a semeadura dos cereais, o nascimento e o retorno da
primavera
98
.
Além disso, diz Ricoeur que o simbolismo só atua quando sua estrutura é
interpretada, onde exige uma hermenêutica mínima, não podendo ter início sem ser
validado pela relação entre aparência e sentido da hierofania que vai revelar o
caráter sagrado da natureza no seu dizer-se simbólico.
Nessa relação entre símbolo e metáfora, somos convidados a refletir
sobre o funcionamento da última num sistema reticular. É um conjunto de inter-
significações que as resgata da total evanescência e permite expressar a diferente
temporalidade dos símbolos, ou a sua insistência, pois, com efeito, na tradição
97
BENJAMIN, Walter. A origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 197.
98
RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação. Op. cit., p. 74.
43
hebraica Deus é chamado de Senhor, Rei, Pai, Pastor, Juiz, e também Rocha,
Fortaleza, etc. Tal processo gera uma rede de metáforas de raiz, que, conjugando
metáforas parciais e permitindo um número ilimitado de interpretações, forma as
metáforas dominantes e organiza a lenta evolução do nível simbólico, e também do
nível metafórico, mais instável.
O segundo aspecto que aproxima metáforas e símbolos é a constituição
hierárquica original de um dado conjunto de metáforas, onde subjazem vários níveis
de organização, dependendo de elas estarem formuladas em frases isoladas,
inseridas num poema, serem elas as preferidas de um poeta, ou específicas de certa
comunidade lingüística. Para Ricoeur, há indicações de que
A experiência simbólica exige um trabalho de sentido, a partir da metáfora,
um trabalho que ela em parte fornece mediante a sua rede organizacional e
os seus níveis hierárquicos. Tudo indica que os sistemas simbólicos
constituem um reservatório de sentido, cujo potencial metafórico importa
ainda mencionar. E, de fato, a história das palavras e da cultura parece
indicar que, se a linguagem nunca constitui o estrato mais superficial da
nossa experiência simbólica, este estrato profundo apenas se torna
acessível a nós na medida em que se forma e articula a um nível lingüístico
e literário, uma vez que as metáforas mais insistentes se pegam ao
entrelaçamento da infra-estrutura simbólica e da superestrutura metafórica
99
.
Estendendo por fim a teoria da metáfora aos traços mais específicos dos
símbolos, distinguem-se as conexões entre modelos e metáforas apontadas por
Max Black em direção à sua dimensão referencial. Tanto a linguagem poética como
a científica somente alcançam a realidade por meio de um desvio, necessário para
negar a nossa visão ordinária e a linguagem habitualmente usada para descrevê-la,
objetivando uma realidade “mais real do que as aparências”, e criando a poesia,
desse modo, seu próprio mundo através de um discurso de direção centrípeta.
A proposta de Ricoeur é denominar como metáforas insistentes àquelas
“que mais se aproximam das profundidades simbólicas da nossa existência às
metáforas que devem o seu privilégio de revelar aquilo a que as coisas se
assemelham à sua organização em enredos e níveis hierárquicos (...)”
100
. E conclui,
em relação ao símbolo, haver mais na metáfora, porque ela clarifica seus
significados semânticos, sua parte nebulosa; mas mais no símbolo do que na
metáfora porque esta é uma forma bizarra de predicação na qual se deposita o
poder simbólico, que continua a ser um fenômeno bidimensional, com uma face
99
RICOEUR, Paul. Op. cit., p. 77.
100
Op. cit., p. 80.
44
semântica e outra não-semântica. Diz Ricoeur que o símbolo se liga de forma não
presente na metáfora, que ele tem raízes e que as metáforas são justamente sua
superfície lingüística, e elas devem seu poder de “relacionar a superfície semântica
com a superfície pré-semântica nas profundezas da experiência humana à estrutura
bidimensional do símbolo”
101
.
Quanto às distinções entre metáfora e símbolo, Wellek e Warren retomam
um autor também citado por Day Lewis, Middleton Murry, que inclui símile e
metáfora na classificação formal da retórica e aconselha o uso do termo “imagem”
abrangendo ambos, mas advertindo que o termo não deve ser entendido como
exclusivamente visual. As imagens, diz Murry, podem ser visuais, auditivas ou
inteiramente psicológicas, citando ambientes de autores distintos como
Shakespeare, Emily Brönte e Poe para exemplificar como eles usam metáforas ou
símbolos para situar cenas, em mares encapelados, castelos em ruínas e lagos
escuros. A amplidão de campos que incluem os símbolos é apontada e também a
questão das diferenças entre estes, metáforas e imagens, cuja resposta para os
autores está na persistência dos símbolos, como foi assinalado por Paul Ricoeur.
Uma imagem, dizem, pode ser apresentada como metáfora, mas sua repetição
insistente pode torná-la um símbolo, que por sua vez tem o poder de alcançar um
lugar dentro do sistema simbólico e até mítico.
Para Gaston Bachelard, antes de caber à imaginação o papel de formar
imagens, ao contrário, cabe a ela deformar o que é fornecido pela percepção, pois
sua função é libertar-nos das imagens prontas, “(...) uma imagem estável e acabada
corta asas à imaginação”
102
. O imaginante na linguagem é verdadeiramente
sentido quando procuramos “(...) a propósito de todas as palavras, os desejos de
alteridade, os desejos de duplo sentido, os desejos de metáfora”
103
, acrescentando
ser natural na linguagem poética exceder os limites do pensamento, pois essa é uma
das formas da audácia humana, fazer o irreal parecer verdadeiro. Valendo-se do que
foi estabelecido por Empédocles de Agrigento, Bachelard propõe uma lei das quatro
imaginações materiais que, ao vincular a imaginação criadora a um dos quatro
elementos, ar, água, fogo e terra, enfatiza essa caracterização que põe em ação
101
Op. cit., p. 81.
102
BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento. Trad. António
de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 2.
103
Op. cit., p. 3.
45
grupos de imagem formando grandes sínteses e cujo papel é dar propriedades mais
regulares ao imaginário.
Para o autor há uma diferença entre a imaginação como registro de
experiência e a imaginação manifestada através do poder criativo, ou seja, a
imagem percebida, ou reprodutora, não está no mesmo patamar da imagem criada.
Quanto à imaginação literária, ela é vista “na categoria de uma atividade natural que
corresponde a uma ação direta da imaginação sobre a linguagem”
104
. E o mérito de
ser reconhecida como imagem literária vem somente através da originalidade,
transformando um sentido desgastado em um novo significado, acrescido de um
onirismo novo, “significar outra coisa e fazer sonhar diferentemente, tal é a dupla
função da imagem literária. A poesia não exprime algo que lhe permanece estranho.
(...) a imagem literária não vem revestir uma imagem nua, não vem dar a palavra a
uma imagem muda”
105
ela é a emergência da imaginação e representa um desejo
humano.
Como se constata, o autor de O ar e os sonhos percebe na imagem
literária a função mais inovadora da linguagem, evoluindo mais por conta daquela
que por seu esforço semântico, “Em suma, a imagem literária põe as palavras em
movimento, devolve-as à sua função de imaginação”
106
.
Bachelard propõe o esclarecimento filosófico do problema da imagem
poética por meio de uma fenomenologia da imaginação, um estudo do fenômeno
dessa imagem “no momento em que ela emerge na consciência como um produto
direto do coração, da alma, do ser do homem tomado na sua atualidade”
107
. a
fenomenologia, considerando o início da imagem a partir de uma consciência
individual, é capaz de restabelecer a subjetividade das imagens e medir seu sentido,
amplitude e força, mesmo que elas não possam ser determinadas em definitivo, pois
são variacionais. E a origem da linguagem é sempre o poeta, pois segundo o autor,
antes de ser uma fenomenologia do espírito, a poesia é uma fenomenologia da
alma, exatamente as duas linhas de análise que dão conta da ação psicológica
dentro de um poema.
Ainda que algumas contribuições sejam tomadas a Bachelard na teoria
de Paul Ricoeur, elas se limitam à psicologia da imaginação, uma vez que o primeiro
104
Op. cit., p. 18.
105
Op. cit., p. 257.
106
Op. cit., p. 259.
107
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Nova cultural, 1988. p. 96.
46
não considera a hipótese do estudo da metáfora pelo método fenomenológico, que
seria na visão do autor de A poética do espaço “uma imagem fabricada, sem raízes
profundas, verdadeiras, reais”
108
.
Na mesma linha de Bachelard, Mikel Dufrenne faz uma ligação entre
natureza e imagem, estabelecendo o conceito de “natureza naturante” e pondo em
relevo seu papel na criação poética, pois é ela quem alimenta o homem com este
poder, “(...) seja para dizê-lo, seja para descobri-lo, o estado poético é inspirado por
um ser poético da Natureza”
109
.
Para Dufrenne, “penetrar no mundo de um poeta não é descobrir certas
imagens obsessivas, é aprofundar um sentido”
110
, pois a poesia não exprime uma
emoção, mas através de seu assunto, exprime um mundo.
É essa natureza falante e inspiradora, operando tanto no poético como na
linguagem que, embora provocada pelas coisas percebidas, como céus, cores,
perfumes, denominadas pelo autor de “natureza naturada”, se revela a nós por meio
delas. A poesia opera através da linguagem e transforma a linguagem comum em
outro sentido não ditado pela necessidade lógica, mas pela estética, e “(...) cada
poema nos propõe diversas imagens infinitamente variadas: a poesia fala uma
língua de imagens”
111
.
O estado poético é sempre inspirado por um ser poético da Natureza,
percebido por Dufrenne numa estreita correspondência entre homem e mundo. “Pelo
caráter natural da linguagem poética, pelo mundo ilimitado de sentido oferecido por
essa linguagem, pela docilidade do poeta inspirado por essas imagens de um
mundo que lhe é proposto pela Natureza”
112
, isso é visto pelo autor como “o real do
lado de cá da consciência”, “o real como transbordante”.
Em The phenomenology of Aesthetic Experience, Dufrenne estreita os
laços entre mente e corpo por meio da imaginação, pois é ela a responsável por esta
ligação, e mesmo ao sugerir e fazer ver, está enraizada no corpo. Nós não podemos
alcançar um alto vel de percepção se rejeitamos o nível da presença, salientando
o autor que a representação é a herdeira das experiências corporais
113
, e
108
Op. cit., p. 157.
109
Op. cit., p. 175.
110
DUFRENNE, Mikel. O poético. Porto Alegre: Editora Globo, 1969. p. 97.
111
Op. cit., p. 163.
112
Op. cit., p. 179.
113
DUFRENNE, Mikel. The Phenomenology of the Aesthetic Experience. Evanston: Northwestern
University Press, 1973. 301.
47
novamente podemos nos reportar ao que fora estabelecido por Giambattista Vico
em fins do século XVIII.
Segundo Dufrenne, a matéria da poesia é o som particular da palavra dita,
e não a voz que diz a palavra. O sensível deve aparecer de modo claro, se a obra
composta pontuar de forma adequada os esquemas rítmicos e harmônicos que
integram a linguagem na qual ela será expressa.
Tais esquemas desempenham duas funções, definir e classificar os
elementos da linguagem estética, determinando regras exclusivas para esses
elementos e até mesmo concedendo certos privilégios, em nome da tradição cultural
ou também do próprio artista. Ao selecionar e ordenar esses elementos numa
escala, o poeta dá à obra um caráter único, por meio do que o autor denomina como
“espectro de palavras”, isto é, a escolha particular do vocabulário que se constitui de
termos mais simples ou mais rebuscados, “variando da modéstia dos autores
clássicos à ostentação dos modernos”
114
. Mas não razão, diz Dufrenne, para
zombarmos mais das chamas de Corneille ou das sombras de Hugo, que do
bestiário de Lautréamont, do ouro de Valéry, ou dos espelhos de Mallarmé.
Outra função dos esquemas harmônicos é estabelecer a acentuação e
organizar a escala descrita, conferindo à obra um fascínio especial. Para Dufrenne,
na poesia um “pano de fundo” poético, um “murmúrio de palavras não
enfatizadas” que servem de moldura aos termos que sobressaem no poema. “A arte
existe não só para a contemplação, mas para a compreensão”
115
.
Além da ligação entre homem e natureza na linguagem poética,
enfatizada através da idéia de “natureza naturante” e de sua importância na
constituição das imagens, os conceitos de Mikel Dufrenne, estabelecendo que um
objeto estético é um objeto percebido, são essenciais para um autor como Marcus
Hester, que coloca a linguagem em primeiro plano, tentando estender o conceito de
L. Wittgenstein de “ver como” ao funcionamento da poética.
Ao acrescentar o trabalho de Hester em The meaning of Poetic Metaphor,
Paul Ricoeur atinge um dos pontos essenciais na construção das metáforas vivas.
Esses estudos estão no lado oposto das teorias semânticas que se opunham à
entrada, não só da imagem, percebida como fator psicológico, mas também à
114
Op. cit., p. 306.
115
Op. cit., p. 313.
48
redução da metáfora como imagem mental, assim permitindo que o jogo da
semelhança ficasse restrito a uma teoria do discurso.
Ponto-chave da obra de Ricoeur, com o auxílio de Hester, se coloca a
proposta de considerar a imagem o último momento de uma teoria semântica que a
recusou como momento inicial”
116
, pois haveria a necessidade de incorporar o
momento sensível da metáfora, ou, o que Aristóteles percebia como sua capacidade
de pôr sob os olhos. Porém Ricoeur toma extremo cuidado para que sua proposta
opere longe de um psicologismo e mais próxima do que é denominado de momento
lógico e momento sensível, ou, de um momento verbal e um o-verbal, convivendo
na fronteira da semântica e da psicologia.
A proposta básica de Marcus Hester é a ampliação do conceito de “ver
como” de Wittgenstein, o ato que leva à descoberta do significado metafórico,
envolvendo a imagem de modo essencial. Nas Investigações Lógicas, o conceito de
“ver como” não está ligado nem às imagens nem as metáforas, mas é considerado
através da figura ambígua do pato/coelho, como um exemplo de que ver isto” e
dizer “vejo agora como” são coisas diferentes. Tal conceito é incorporado por Hester
como um fator revelado pelo ato da leitura
117
, uma relação que identifica sentido e
imagem. Em outras palavras, diz o autor que o significado da metáfora poética
envolve o imaginário (os termos “imagem” e “imaginário” são usados pelo autor
indistintamente).
Wittgenstein é atacado quando nega que o significado seja uma
experiência interna, e ainda que envolva experiência interna. Na verdade, o discípulo
de Bertrand Russel não nega que essas imagens internas existam ou ocorram, mas
sim que elas sejam necessárias ao uso ordinário da linguagem, pois “significado é
uso”. Ele é acusado por Hester de construir suas teorias da linguagem à custa da
linguagem poética, que na verdade não consta dos exemplos de seus “jogos de
linguagem”, “parte de uma atividade ou de uma forma de vida” elencados nas suas
Investigações filosóficas
118
.
Para Hester, o poema é um “objeto de leitura”, comparado à epokhé
husserliana que, ao suspender toda posição de realidade natural, libera o direito
original de todos os data, pois a leitura é também uma suspensão do real e uma
116
RICOEUR, Paul. Op. cit., p. 317.
117
HESTER, Marcus. The Meaning of Poetic Metaphor. Le Hague; Paris: Mouton, 1967. p. 21.
118
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo; Nova
cultural, 1989. p. 19.
49
abertura ativa ao texto. O ato de ler atesta que o traço essencial da linguagem
poética não é a fusão do sentido e do som, mas a fusão do sentido com um fluxo de
imagens evocadas ou ativadas; essa fusão constitui a verdadeira “iconicidade do
sentido”.
O autor utiliza os termos sense e sensa quando pretende incluir não
somente sentido e som, mas sentido, som e imagem. Para Hester, os sensa seriam
as sensações relevantes a todos os sentidos, “A linguagem poética é aquela
linguagem na qual os sentidos e o som funcionam iconicamente, permitindo assim
uma fusão de sense e sensa
119
.
Hester coloca-se ao lado de Mikel Dufrenne na ênfase da percepção
como o modo apropriado de ver o trabalho de arte, mas no que toca às imagens
metafóricas, especifica que elas estão sempre aliadas ao meio físico da linguagem.
Desse modo, o conteúdo de um ato de leitura não é livre, pois o poema não é um
convite a uma livre associação, como no sono. E o imaginário não é livre porque nós
associamos as palavras, elementos atômicos da poesia, e seus contextos, em nossa
memória.
A linguagem é o meio do poeta, dividindo as qualidades do sentido, som e
imaginário. Suas intenções e estilo aparecem através das metáforas, como Dufrenne
também percebe.
A cada elemento da metáfora, diz Hester, deve ser permitida a
possibilidade de integração ao poema como um todo, enquanto o imaginário
metafórico é controlado, porque faz parte do propósito intencional ou estrutural do
poema. “A metáfora como objeto estilizado tem uma intenção definida”, assim, ao
ser lida, ela apresenta um imaginário estruturado ou intencional, controlado pela
experiência de “ver como”
120
, juntando o sentido verbal ao imagístico. O controle
metafórico do imaginário utiliza a associação simultânea de palavra e imagem na
memória, mas também, a associação de estruturas verbais complexas com estrutura
imagísticas complexas.
Outra razão para as imagens das metáforas não serem livres é porque
nós dividimos um conjunto comum de associações históricas. Essas duas razões
que fazem com que a leitura das metáforas não seja livre derivam da associação
119
Poétic language is that language in which both sense and sound function iconically, thus yelding a
fusion of sense and sensa” (Trad. da A.). In: HESTER, Marcus. Op. cit., p. 96.
120
HESTER, Marcus. Op. cit., p. 149.
50
entre linguagem e ambiente comum, diz Hester, uma associação que é direta
através da nossa memória ou indireta através das convenções históricas e culturais
dadas. O poeta pressupõe uma linguagem que não é totalmente alheia ao seu
contexto, se aquele contexto é nossa própria experiência, ou se ele estiver
impregnado em nossa herança cultural, arremata.
A linguagem e suas associações, Hester denomina de “enchimento” do
trabalho do poeta. A linguagem é o meio do poeta, tendo as qualidades do sentido,
som e imaginário. As qualidades do “enchimento” dado ou tomado pelo poeta são
divididas, por conseguinte, entre poeta e leitor.
ainda uma terceira razão para as imagens não serem livres, diz ele.
Assim como o escultor não nos apresenta uma pedra não lapidada, o poeta não
apresenta uma linguagem não trabalhada, ela é sempre estilizada, intencional. E ali
sua intenção mais relevante, diz Hester, está em estruturar a metáfora. Ainda que os
estilos tenham diferenças, caso seja um poeta metafísico ou um simbolista, ele
sempre sustenta, através da metáfora, as intenções ou desejos dos poetas.
Ao ler uma metáfora, para o autor americano, nós devemos proceder
como se cada elemento dado no ato da leitura fosse intencional; tal coisa é dizer,
com Dufrenne, que uma abertura permitindo os direitos originais de todos os
dados. A cada elemento na metáfora deve ser permitida a possibilidade de
integração com o poema como um todo. Estilo e metáfora vão contra a natureza
acidental da livre associação. Por último, a metáfora é controlada, diz Hester, pelo
ato-experiência de “ver como”, pois “ver como” é definitivo no imaginário; seleciona
os aspectos relevantes da imagem metafórica, que estão sempre ligados à
linguagem, por meio das nossas memórias, de convenções históricas, e das
intenções do poeta de integrá-las na metáfora
121
.
Ricoeur conclui que a teoria do “ver como” apropriada por Hester “designa
a mediação não-verbal do enunciado metafórico. Dizendo isto, a semântica
reconhece sua fronteira e, ao fazer isto, encerra sua obra”
122
.
121
Op cit., p. 150.
122
RICOEUR, Paul. A metáfora viva. Op cit., p. 328.
51
2.4. ASSIMILAÇÃO PREDICATIVA, DIMENSAO PICTÓRICA E
REFERÊNCIA DIVIDIDA
Ao pensar uma metodologia analítica da metáfora com base nas
teorizações de Paul Ricoeur, não é demais lembrar que o filósofo tenciona completar
a semântica da metáfora com o auxílio da psicologia da imaginação. O primeiro
passo, diz ele, é romper com a visão de Hume da imagem como uma percepção
sensorial enfraquecida, “um resíduo perceptual”
123
, para não compreender mal o
papel desempenhado pela similaridade e pela imaginação no processo da mudança
semântica.
2.4.1 A assimilação predicativa e suas operações semântico-
perceptuais
A primeira das três fases de integração entre essas teorias é denominada
pelo autor francês como “assimilação predicativa”. Nesta fase, a imaginação é
entendida como uma visão do discurso ainda homogênea, mas que por meio deste
vai dar origem a uma alteração da distância lógica, ou seja, um insight que ocorre
dentro dos parâmetros aristotélicos da metáfora por analogia, de perceber relações
entre termos semelhantes, e que constituem aí tanto um pensar como um ver.
Pensar, segundo ele, porque constitui uma reestruturação dos campos semânticos,
e um ver,
(...) no sentido de que o insight consiste na captação instantânea das
possibilidades combinatórias oferecidas pela proporcionalidade e
conseqüentemente o estabelecimento da proporcionalidade pela
proximidade entre as duas razões
124
.
Desse modo, uma operação em consonância com a predicação, ato
nuclear da linguagem, torna semelhantes e semanticamente próximos os termos do
enunciado metafórico.
Exemplificando, nos versos de Cecília Meireles em Miséria (VI, 319), O
mar imóvel dos teus olhos/ Pode estar perto, e defronte, o estágio da assimilação
predicativa - de “ver e pensar” - coloca próximos os termos “mar” e “olhos”. Por meio
123
RICOEUR, Paul. O processo metafórico como cognição, imaginação e sentimento. In: SACKS,
Sheldon. (org.) Da metáfora. São Paulo: EDUC, 1992. p. 148.
124
RICOEUR, Paul. Op. cit., p. 149.
52
de um insight, o significado primeiro se apaga para encontrar na analogia de
Aristóteles uma relação que identifica o mar aos olhos, fonte de lágrimas salgadas
como suas águas, reestruturando, segundo Ricoeur, os campos semânticos e
realinhando os termos do enunciado metafórico.
Toda uma série de relações que conhecemos, como “olhos rasos
d‟água”, ou os afamados “olhos de ressaca” da Capitu de Machado, intervém para
auxiliar nessa relação. Richards, em The Philosophy of Rethoric, denomina isso de
“sistema de lugares comuns associados”, do mesmo modo que Marcus Hester fará
mais tarde, quando eles são adicionados aos significados sintáticos e semânticos
das palavras. Forma-se um código de implicações mais ou menos livre, mas sempre
particular. Por meio de uma compatibilidade nova que se sobrepõe à
incompatibilidade anterior, e se torna a solução entre congruência e incongruência
semânticas, é que obtemos um significado novo, que vem com a metáfora.
O mar, o “foco” para Max Black, ou o “veículo” para Richards, toma um
sentido distinto do comum para recompor e dar ao verso, que é o “quadro” ou o
“teor”, um novo significado; aqui, ele tanto pode incluir o elemento comum da água,
quanto o tom e a cor do oceano, em geral azul ou verde, comparado aos olhos em
outra metáfora bem conhecida, “mar de lágrimas”, tão banal a ponto de perder seu
caráter poético.
Quanto ao fato de Ricoeur apresentar a imaginação como responsável
pela assimilação de um predicado num termo de linguagem, em sua defesa ele
recorre a “Ryle [e a seus] “deslizes de categoria” que consistem em apresentar os
fatos pertencentes a uma categoria em termos apropriados a outra”
125
.
O raciocínio segue defendendo que a metáfora é obtida identificando-se a
incompatibilidade anterior por meio da nova compatibilidade, portanto, a assimilação
predicativa se estabelece não tanto entre uma tensão existente em meio a sujeito e
predicado, mas entre congruência e incongruência semânticas. É dessa maneira que
a assimilação produz tipos novos sem suprimir as diferenças, mas ao contrário, com
o auxilio e apesar dessas mesmas diferenças, segundo o modelo de Max Black de
“foco” e “quadro”.
125
RICOEUR, Paul. Op. cit., p. 150.
53
2.4.2 A metáfora enquanto quadro imagético
O segundo passo do processo interativo entre a semântica da metáfora e
a psicologia da imaginação nos leva ao juízo de Gaston Bachelard na Poética do
espaço, onde a imagem é percebida como “um ser pertencente à linguagem”
126
.
Nesse estágio, após a inclusão da dimensão pictórica da metáfora,
incorporam-se as teorias de I. A. Richards de “teor‟‟ e veículo”, que ultrapassam as
distinções entre “foco” e “quadro” feitas por Max Black, pois enquanto os últimos
englobam apenas o termo que é portador da mudança de significado dentro da
sentença como um todo, ou seja, a ambientação contextual, os termos de Richards
alcançam, além do significado conceitual, seu “envoltório pictórico”.
Tal significa que os termos “teor” e “veículo” nos apresentam a maneira
pela qual esse processo se esquematiza, e ainda como é retratado. As distinções
entre signo e ícone de Charles Sanders Peirce, em que o signo veicula informação,
enquanto do ícone se pode derivar informação, pois é um signo por semelhança
e leva a determinar a idéia de um objeto, são tomadas por Paul Henle em Metaphor:
Language, Thought and Culture para inferir que se uma metáfora nos coloca dois
pensamentos, um deles é intencional, enquanto o outro é a base sobre a qual o
primeiro se apresenta. Assim, leva-nos a pensar o discurso figurativo como uma
análise entre dois termos equivalentes, o que constituiria a maneira icônica de
significar, concluindo que, se um elemento icônico na metáfora, ele não nos é
apresentado, mas somente descrito.
A partir da teoria de Henle, Ricoeur conclui que o que está em causa é o
desenvolvimento de
uma esquematização para uma apresentação icônica, (...) e seu enigma
está na maneira pela qual a representação ocorre na assimilação
predicativa: algo aparece e a partir dele percebemos a nova conexão. O
enigma permanece não-resolvido enquanto pretendemos tratar a imagem
como uma figura mental, ou seja, como uma réplica de algo ausente.
Assim, a imagem deve permanecer à parte do processo, extrínseca à
assimilação predicativa
127
.
Agora é preciso que entendamos de que modo, após o estabelecimento
da analogia entre os termos, no estágio da assimilação predicativa, certa produção
de imagens origem ao segundo estágio, que é a concepção da dimensão
pictórica.
126
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Nova Cultural, 1988. p.
127
RICOEUR, Paul. Op cit., p. 151.
54
Quando o discurso propõe uma torrente de imagens, gera proximidade
entre elas e inicia mudanças na distância lógica. Portanto, a formação de imagens é
o meio concreto através do qual percebemos analogias, ou, no dizer de Ricoeur,
“Imaginar, assim, não é ter uma figura mental de alguma coisa, mas expor relações
de maneira figurativa”
128
, fazendo justiça ao conceito de “ver como”. Seu criador,
Wittgenstein, na verdade, não o estendeu para além do campo da percepção e do
processo de interpretação, como no famoso desenho pato/coelho.
Marcus Hester, entretanto, propõe esse conceito como uma chave para o
entendimento das imagens poéticas com sua teoria das “imagens interligadas”,
representações concretas provocadas pelo elemento verbal e controladas por ele,
fazendo uma complementação concreta do processo metafórico em que o
significado é lido sobre essa imagem. Por exemplo, “mar” e “olhos”, no poema
“Miséria” (VI, 319), projetam imagens controladas por tais palavras, enquanto nós
formamos uma figura mental personalizada. Ela pode ser a dos olhos de Capitu, de
uma pessoa querida, ou ainda, alcançar o status intelectual do sentido da visão
como símbolo de percepção intelectual, já assinalado pelo Taoísmo, pelo Bhagavad-
Gita, e por Santo Agostinho e São Paulo
129
. Acrescentado o adjetivo “imóvel”, leva a
concluir que a condição do ser a quem o eu lírico se dirige é de inércia, de morte até,
o que, tratando-se de Cecília Meireles, para quem tais temas são caros, não é
improvável.
A conclusão desse tópico para Paul Ricoeur é de que “o sentido
metafórico é gerado pela densidade da cena imaginada, retratada pela estrutura
verbal do poema. Tal é, a meu ver, o funcionamento da apreensão intuitiva de uma
conexão predicativa”
130
.
2.4.3 A referência dividida e a suspensão de juízo
O terceiro passo da metodologia ricoeuriana que busca integrar semântica
e imaginação dentro do processo metafórico trata do momento de negatividade, ou
seja, da interrupção trazida pela imagem, e para isto é preciso retornar à noção
básica de significado quando aplicado a uma expressão metafórica, que nos termos
de Frege é chamada de Sinn, sentido, em oposição à Bedeutung, referência ou
128
Op. cit., p. 151.
129
CHEVALIER, Jean. GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 14. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1999. p. 653.
130
RICOUER, Paul. Op. cit., p. 152.
55
denotação. Diz Ricoeur que “Perguntar sobre o que uma expressão metafórica versa
é alguma coisa diferente de perguntar o que ela diz
131
. Comentando as teorias de
Roman Jakobson sobre a função poética da mensagem oposta à função referencial,
em que a primeira salienta a mensagem colocando a ênfase na parte palpável dos
signos, o autor de A metáfora viva alega que estes pontos de vista, que percebem
tanto a literatura quanto a poesia como mutações na linguagem, apesar de não
serem falsos, dão uma idéia errônea do processo de referência do discurso poético,
pois o próprio Jakobson admite que a referência se torna ambígua, mas não é
extinta. O duplo sentido da mensagem se divide entre receptor, emissor e referência
divididos, então, Ricoeur sugere que na discussão referencial da expressão
metafórica seja empregado o termo “referência dividida”, a qual implica que a
linguagem poética, ao dizer a realidade, utiliza uma estratégia mais sofisticada, e
que necessita tanto da suspensão como da “anulação da referência comum ligada à
linguagem descritiva”
132
.
É nesse momento que entramos na discussão do papel ocupado pela
epoc (suspensão) e suas conexões, referidas aos objetivos ontológicos do
discurso poético, onde o apagamento do sentido literal é a face negativa que permite
o nascimento do sentido metafórico, mas mantém a visão habitual, em tensão com
outra que nos é proposta.
Nos versos de Cecília, por meio da redução fenomenológica, nós
suspendemos os significados usuais que “mar” tem num documento oficial da
Marinha, e de “olhos” num tratado de oftalmologia, por exemplo, para buscar aquilo
que o poema deseja transmitir, ou seja, um lirismo que alia o elemento humano,
inerte, à natureza. Portanto, “o mar imóvel dos teus olhos” possibilita uma leitura dos
versos em que o eu lírico utiliza-se da metáfora do mar para se dirigir a um
interlocutor ausente, a alguém que não está mais aqui.
A argumentação do mestre francês agora propõe que
(...) uma das funções da imaginação é dar uma dimensão concreta ao
apagamento ou epoché próprio à referência dividida. A imaginação não
apenas esquematiza a assimilação predicativa entre termos pelo seu
insight sintético em similaridades nem simplesmente retrata o sentido
graças à exposição de imagens controladas pelo processo cognitivo. Ao
contrário, contribui concretamente ao epoché de referência usual e à
projeção de novas possibilidades de reescrever o mundo
133
.
131
Op. cit., p. 153.
132
Op. cit., p. 154.
133
Op. cit., p. 155.
56
E a seguir arremata com uma avaliação em que é perceptível o
enraizamento de sua base filosófica nas disciplinas fenomenológicas, “De alguma
maneira, toda epoché é o trabalho da imaginação. Imaginação é epoché
134
,
enfatizando que o cerne da questão está na afinidade entre esta última e a
competência para idealizar novas possibilidades.
2.5 O SENTIMENTO POÉTICO
Além dos três tópicos discutidos por Ricoeur, ele deixa um espaço para
introduzir uma teoria do sentimento aliada ao “mood” nos mesmos termos
estabelecidos por Northrop Frye
135
, pois considera que um lugar importante para
o sentimento dentro do processo metafórico, que alcança até mesmo seu teor
semântico. Nessa apreciação, estados da mente dirigidos para o interior e
experiências mentais ligadas a distúrbios físicos como medo, dor, ira e prazer, ficam
separados daquilo é considerado um sentimento genuíno, e que não o emoções,
como é o caso dos sentimentos poéticos. O sentimento, diz Frye, é
(...) um processo de interiorização que segue um movimento de
transcendência intencional dirigido para algum estado objetivo de
situações. Sentir, no sentido emocional da palavra, é tornar nosso o que foi
colocado a distância pelo pensamento em sua fase de objetivação. Os
sentimentos, por isso, m um tipo muito complexo de intencionalidade.
Não são exatamente estados interiores, mas pensamentos interiorizados.
Assim sendo, acompanham e completam o trabalho da imaginação como
esquematização de uma operação sintética
136
.
Além disso, os sentimentos têm uma função pictórica que acompanha e
completa a imaginação. Ligado a uma estrutura verbal própria, esse “mood” é
gerado por uma corrente singular de palavras que nos afeta como ícone, “o icônico
como é sentido”, diz Ricoeur.
E por último, o terceiro juízo sobre os sentimentos, no que seria sua
função mais importante, assinala sua contribuição para a referência dividida no
discurso poético, quando expõem uma estrutura compartida que completa aquela
134
Op. cit., p. 155.
135
FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. São Paulo: Cultrix, 1973.
136
Op. cit., p. 157.
57
pertencente ao componente cognitivo da metáfora, implicando uma espécie de
epoché de nossas emoções corpóreas.
As teorias de Paul Ricoeur em A metáfora viva apresentam os passos
percorridos pelo filósofo para estruturar sua teoria de aliar a semântica da metáfora a
uma psicologia da imaginação. Neste processo, Ricoeur parte do pioneiro
Aristóteles, que erigiu a definição clássica da metáfora como a figura que a uma
coisa o nome de outra, por transporte ou por analogia, enaltecendo seu valor pela
clareza e charme dados ao estilo, e por revelar a maestria do poeta. De seu mestre
Platão, apontamos as ressalvas quanto aos ornamentos da linguagem, postura mais
tarde compartilhada por empiristas britânicos como Hobbes e Locke, onde o último
via nos discursos figurados a imperfeição e o abuso das palavras, insinuando idéias
erradas e enganando o bom senso.
Mas surgiu Giambattista Vico e em fins de século XVIII a metáfora foi
definida na Ciência nova como uma “pequena fábula”, recuperando o valor do tropo
como um instrumento de expressão dos mais sofisticados. Em meados do culo
XIX, Pierre Fontanier escreve um dos últimos tratados à moda da velha Retórica,
primazia à palavra e dispõe tropos e não-tropos sob a mesma noção de figura,
procedendo a uma enumeração meticulosa e classificando-os sistematicamente.
A seguir, vem I. A. Richards e sua The Philosophy of Rethoric, e Max
Black com Models and Metaphors, dois tratados clássicos que versam sobre a
metáfora, onde são expostos os conceitos de “teor e veículo” e de “quadro e foco”
para referenciar, num dos exemplos de Ricoeur, “a idéia original e a idéia
emprestada”
137
, e cuja interação origem à metáfora. A contribuição maior de
Jean Cohen, em Estrutura da linguagem poética, está na idéia que percebe na
metáfora um desvio, seguido por uma “redução de desvio”, causada pela sua “lei da
pertinência semântica”. Se uma sentença metafórica lida em sentido literal é
absurda, é a própria metáfora que recompõe o significado pela redução desse
desvio. Michel Le Guern vai adiante e agrega sobre as bases de Cohen o que ele
denomina de “imagem associada”, correspondendo àquela criada no espírito de
cada autor quando é formulado o enunciado metafórico.
Na teoria da imagem, o poeta inglês Cecil Day Lewis apresenta as
metáforas como fator constante da poesia contemporânea, retoma Dryden e critica a
137
RICOEUR, Paul. A metáfora viva. Op. cit., p. 130.
58
visão de que sejam um mero ornamento, vendo ainda o símbolo como algo
denotativo. para Ricoeur, o mbolo tem duplo sentido, um semântico e um não-
semântico, admitindo uma exegese interminável. A imagem literária, vista por
Gaston Bachelard como importante para despertar a imaginação, tem como papel
primordial não a formação dessa imagem, mas a deformação do que é proposto à
percepção; além disso, também sugere que a imagem poética seja analisada do
ponto de vista filosófico por uma fenomenologia da imaginação.
Mikel Dufrenne propõe a teoria da “natureza naturante”, falante e
inspiradora, operando tanto no poético como na linguagem, onde as coisas
percebidas, como o céu, a cores, as árvores, denominadas de “natureza naturada”,
se revelam a nós por meio delas. Para Dufrenne, a poesia opera transformando a
linguagem comum, aprofundando o sentido sem o compromisso de descobrir certas
imagens de modo obsessivo. Com o termo “espectro de palavras”, ele define o estilo
de um autor como algo marcado pela escolha de determinado vocabulário, mais
sóbrio ou mais rebuscado, secundado pelo murmúrio de palavras o enfatizadas”
que fazem sobressair as demais.
Seguindo o conceito de Dufrenne de ver no objeto estético um objeto
percebido, Marcus Hester propõe as teorias de Wittgenstein de “ver como”
incorporadas ao funcionamento da linguagem poética, com o auxílio da metáfora e
das teorias do imaginário. O poema, diz Hester, é um “objeto de leitura” aproximado
da epoché de Husserl, onde se fundem o sentido e um fluxo de imagens provocadas
ou ativadas, em que a experiência de “ver como” junta o sentido verbal ao
imagístico. Tal teoria, segundo Ricoeur, estabelece a fronteira não-verbal do
enunciado metafórico, e é essa a fronteira que encerra suas possibilidades
semânticas.
Os desdobramentos na obra de Paul Ricoeur, A metáfora viva, das teorias
formuladas pelos autores acima, são utilizados para ordenar as proposições em que
se une a semântica da metáfora a uma teoria da imaginação e do sentimento. Esta
nos servirá como base de apoio teórica durante a análise das metáforas do mar nas
obras da autora brasileira Cecília Meireles e da portuguesa Sophia Andresen.
3 ENTRE MAR NEGRO E ESPUMAS BREVES: NAVEGANDO COM CECÍLIA
3.1 UM RETRATO NATURAL DE CECÍLIA MEIRELES
No verbete sobre poesia brasileira, em The New Princeton Encyclopedia
of Poetry and Poetics, Cecília Meireles é definida como “The highest feminine poetic
genius of Brazil”
138
, numa tradução livre, o mais alto gênio da poesia feminina
brasileira. A publicação americana a situa ligada ao grupo simbolista da revista
Festa, mencionando também seu vínculo com a corrente místico-religiosa que inclui
Augusto Frederico Schmidt e Murilo Mendes, fazendo ainda menções como a
influência da natureza e da lírica medieval, e apontando a recuperação do passado
heróico feita no Romanceiro da Inconfidência como sua obra mais relevante.
Cecília, colocada por Luciana Stegagno Picchio ao lado de Sophia
Andresen, de Rosalía de Castro e de Florbela Espanca, como “uma das vozes
femininas mais puras da poesia de expressão portuguesa de todos os tempos”
139
,
publica seu primeiro volume, Espectros, em 1919. A obra ficou desaparecida por
muitos anos em virtude de suas influências parnasianas terem sido mais tarde
rejeitadas pela autora, apesar de alguns críticos reconhecerem nela certos méritos e
o substrato da poesia maior que viria a seguir. Outras obras que surgiram mais
tarde, como Nunca mais... e Poema dos Poemas (1923) e Baladas para El-Rei
(1925), tiveram igual sorte, tendo a autora reconhecido em sua Obra poética, editada
pela Aguilar em 1958 e a única que efetivamente supervisionou, apenas o que foi
publicado a partir de Viagem. Entretanto, o conjunto completo pode ser apreciado na
edição organizada pela Nova Fronteira em 2001, sob a supervisão de Antônio Carlos
Secchin, trazendo uma contribuição importante para a avaliação da gênese dessa
lírica.
138
PREMINGER, Alex; BROGAN, T. V. F. The New Princeton Encyclopedia of Poetry and Poetics.
New York: MFJ Books, 1993. p. 145.
139
PICCHIO, Luciana Stegagno. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.
p. 558.
60
Otto Maria Carpeaux, em Livros na mesa (1959), avalia que, não
obstante Cecília ocupar um lugar de destaque nas nossas letras, ela não participa
de sua evolução, o que fica comprovado em suas próprias palavras:
Também não me preocupam as escolas literárias senão de um ponto de
vista histórico. Não sei se me faço entender. Acho que todos aprendemos
com todos. Mas eu não gostaria de fazer discípulos, de ser chefe...etc. Não
creio tanto em mim.
140
Para Manuel Bandeira, se as quatro diretrizes do grupo de Festa
velocidade, totalidade, brasilidade, universalidade - estão bem definidas nos poemas
do principal porta-voz do grupo, Tasso da Silveira, são incapazes de dar conta das
características da poesia de Cecília Meireles, cuja voz a esse tempo se distinguia
entre os nossos poetas pela maestria no manejo de sua arte, em que jamais a
mensagem foi prejudicada em favor de uma destreza técnica. Em Cecília, a forma,
longe de ser apenas um adorno, identifica-se com a mensagem do poema.
Depois de afastada a sombra parnasiana dos primeiros poemas, cuja raiz
na realidade objetiva e no cientificismo na verdade não se prestava de modo
adequado à feição natural de Cecília, mais voltada em direção ao mundo
transcendente, o controle da forma permaneceu de maneira indelével. Assim
mostram as notas pontuais a esse respeito da parte de críticos como Carpeaux e
Manuel Bandeira, e a perfeita divisão dos hemistíquios nos alexandrinos de sua
última obra, Solombra.
Cecília, diz Bandeira,
(...) está sempre empenhada em atingir a perfeição, valendo-se para isso
de todos os recursos tradicionais ou novos (...) [onde se percebem] as
melhores sutilezas do gongorismo, a nitidez dos metros e dos consoantes
parnasianos, os esfumados de sintaxe e as toantes dos simbolistas, as
aproximações inesperadas dos super-realistas. Tudo bem assimilado e
fundido numa técnica pessoal, segura de si e do que quer dizer
141
.
É essa força poética que a faz se destacar num volume como The poem
itself: 45 modern poets in a new representation
142
, uma antologia organizada por
Stanley Burnshaw e datada de 1960, onde seu nome está ao lado dos mais
representativos poetas dos últimos cem anos, nos idiomas italiano, alemão, francês,
140
DAMASCENO, Darcy. Notícia biográfica. In: MEIRELES, Cecília. Obra poética. Rio de Janeiro:
Aguilar, 1958. p. 64.
141
BANDEIRA, Manuel. Apresentação da poesia brasileira. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do
Brasil, 1957. p. 156.
142
A presença de Cecília no volume não consta da edição da Poesia completa da Nova Fronteira
organizada por Antônio Carlos Secchin (Nota da A.).
61
espanhol e português. Neste último domínio, constam os nomes de Fernando
Pessoa, Cecília Meireles, Manuel Bandeira e Jorge de Lima.
De Cecília, os poemas escolhidos para análise por Ernesto Guerra da
Cal, encarregado da poesia portuguesa e espanhola, e para quem ela é um dos
mais destacados poetas vivos em seu idioma, são De longe te hei de amar e
Motivo, metapoema de Viagem onde proclama seu credo poético nos versos que
dizem: Eu canto porque o instante existe/e a minha vida está completa./Não sou
alegre nem sou triste:/ sou poeta.//(...) Sei que canto. E a canção é tudo./Tem
sangue eterno a asa ritmada./ E um dia sei que estarei mudo:/- mais nada”. A
autorização para publicação foi dada pela própria autora, e seu nome consta dos
agradecimentos.
Ivan Junqueira, para quem sem Rimbaud o Simbolismo não existiria, diz
que os lideres desse movimento se equivocaram ao creditar em seu favor Les
illuminations (1873-1875) e Une saison en enfer (1873), que não seriam nem poesia
simbolista, nem mesmo pré-simbolista, mas na mesma direção de C. M. Bowra em
The heritage os Symbolism, “constelações de prosa” antecipando o o próprio
movimento, mas toda a poesia moderna
143
.
Na lição de Carpeaux, o Simbolismo brasileiro foi um movimento falhado
cujos maiores expoentes, Alphonsus de Guimarães e Cruz e Souza, morreram sem
conhecer a fama, e o pós-simbolismo, fenômeno incomum entre os movimentos
literários, seria o que melhor acomoda a poesia de Cecília Meireles. A essa
apreciação podemos juntar o nome de Mário de Andrade quando compara os versos
de Terra aos poemas de Valéry.
A recriação do Simbolismo por autores como Valéry, George, Blok, Yeats
e Rilke, na ótica do mesmo Bowra, serve a Carpeaux como termo de comparação
com a autora brasileira no poema Reinvenção, onde os versos A vida só é
possível/ reinventada.//Anda o sol pelas campinas/ e passeia a o dourada/ pelas
águas, pelas folhas.../ Ah! tudo bolhas/que vêm de fundas piscinas/ de ilusionismo...
mais nada” (VM, p. 411), refletiriam um equilíbrio que não se entrega às novas
realidades, num modernismo à Apollinaire.
Mas Cecília também o se retira esteticamente do mundo, como fizeram
os simbolistas, adeptos de um escapismo idealista à moda de Villiers de LIsle-
143
JUNQUEIRA, Ivan (coord). Escolas literárias no Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro: Academia Brasileira
de Letras, 2004. p. 541.
62
Adam em Axel, obra lida com cuidado religioso por Yeats e chamada de Fausto do
século XIX”. Em seu protagonista Edmund Wilson o herói típico do Simbolismo,
podendo ser resumido à frase “Viver? Nossos criados viverão por nós... Oh, o
mundo exterior!
144
. Sua obra deve ser entendida através de uma postura filosófica
bastante influenciada pelo pensamento oriental,
(...) cujo núcleo essencial é o reconhecimento de um espírito universal o
UM origem de todas as coisas e seres, estando neles onipresente. A
identificação desse princípio conduz necessariamente à idéia de que a
multiplicidade de entes no plano cósmico, bem como o seu
desaparecimento, é pura ilusão
145
.
Mesmo acusado de evasionista e nefelibata, o movimento que postulou a
recuperação dos mbolos na poesia trouxe conquistas do ponto de vista estético-
formal que alcançaram também a poesia modernista, como a renovação da métrica
pelo verso livre e o abandono dos processos rímico-rítmicos tradicionais, com o
emprego de um estilo elíptico e de um intenso jogo metafórico
146
.
A adoção pelo Simbolismo desse despojamento formal foi encampada,
além dos pós-simbolistas, pelos modernistas, como Bowra percebe. E não deve ser
esquecida quando se procede a uma análise de poética ceciliana. Por vezes inserida
no movimento modernista (caso de Alfredo Bosi), a lírica de Cecília Meireles tem
marcas que a colocam, acertadamente, ombreada a versos como os do Cemitério
marinho, obra que muito deve à poesia pós-simbolista, que, a rigor, pertence ao
modernismo
147
. Assim, se a inserção da autora no Modernismo se deve à versos
em que maior liberdade da forma, cabe perguntar se essa é uma conquista que
veio com ele, ou se é herança devida, como em Valéry, ao influxo simbolista. Mas
Bosi acerta quando diz que ela, como Murilo Mendes, nada deve ao grupo de Festa,
que caminhou em direção contrária ao grupo de Oswald de Andrade
148
.
Por outro lado, a múltipla filiação estética ceciliana apontada por Bandeira
não se restringe ao período que poderíamos situar entre Baudelaire e T. S. Eliot,
mas retroage a Camões e à lírica trovadoresca. Tal poética utiliza não somente os
valores em voga no presente, mas avalia também o quê, em estilos e autores
144
WILSON, Edmund. O castelo de Axel: estudo sobre a literatura imaginativa de 1870 a 1930. São
Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 258.
145
MELLO, Ana Maria Lisboa de. Oriente e ocidente na poesia de Cecília Meireles. Porto Alegre:
Libretos, FAPA, 2006. p. 31.
146
JUNQUEIRA, Ivan (coord.). Escolas literárias no Brasil. Op. cit., 545.
147
Op. cit., p. 553.
148
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994. 35 ed. p. 343.
63
distantes, melhor lhe serve como instrumento para o que deseja expressar. Dessa
maneira, é afirmada uma singularidade poética passando ao largo do transitório,
para se posicionar dentro da voz mais legítima, não sendo incorreto afirmar com
Junqueira que, por conta da ascendência simbolista, Cecília Meireles, vista por
Carpeaux como possuidora de uma rica legitimamente brasileira, como Henriqueta
Lisboa, operava na contracorrente do influxo modernista em 1922.
De qualquer modo, o absoluto rigor dos hemistíquios em Solombra, de
matar de inveja um parnasiano, atesta que seu depoimento é verdadeiro e as modas
literárias não a interessam, estabelecendo a universalidade de sua poesia, dotada
de “perfeição intemporal”
149
. Disso são prova os versos que dizem Pousa//teu
nome aqui, na fina pedra do silêncio,/no ar que freqüento, de caminhos extasiados,/
na água que leva cada encontro para a ausência//com amorosa melancolia (SO, p.
1.263).
Acusada de falta de nacionalismo, o amadurecimento poético conquistado
com os versos de Viagem foi recompensado inicialmente em Portugal, lugar da
primeira impressão da obra dedicada aos amigos portugueses, e pomo da discórdia
entre os acadêmicos como ganhadora do prêmio de poesia da Academia Brasileira
de Letras em 1938.
Descendente de açorianos, órfã muito cedo e criada pela avó oriunda da
ilha de São Miguel, Cecília casa-se aos vinte anos com o ilustrador Fernando
Correia Dias, pai de suas três filhas. Ela sempre conviveu de perto não com a
cultura formal portuguesa, mas também com as cantigas e parlendas aprendidas
com a avó e Pedrina, sua babá. Correia Dias, que chega ao Brasil em 1914, era
capista d‟ A Águia, revista onde Fernando Pessoa faz sua estréia como articulista
em 1912. O recebimento pelo marido de publicações portuguesas mesmo após sua
mudança para o Rio de Janeiro é a hipótese mais provável do conhecimento
precoce dos autores do Modernismo português por parte de Cecília Meireles, que
em O Espírito vitorioso, tese apresentada no concurso para a cadeira de literatura da
Escola Normal do Distrito Federal, em 1929, exibia trechos da Ode Triunfal de Álvaro
de Campos
150
.
149
CARPEAUX, Otto Maria. Poesia intemporal. In: ___. Livros na mesa. Rio de Janeiro: São José,
1960. p. 207.
150
GOUVÊA, Leila V. B. Cecília em Portugal: ensaio biográfico sobre a presença de Cecília Meireles
na terra de Camões, Antero e Pessoa. São Paulo: Iluminura, 2001.
64
Se O Espírito Vitorioso não logrou a intenção de conseguir a vaga de
professora para uma candidata oposta à Igreja e defensora do estudo laico, numa
banca constituída, entre outros, pelo pensador católico Alceu Amoroso Lima, é texto
relevante por conta da apreciação feita pela autora de poetas portugueses e
brasileiros. Revelam-se no processo intenções e preferências pessoais, fazendo
sobressair os nomes de Bocage, Tomás Antônio Gonzaga, e do por ela chamado de
“inaugurador verdadeiro” do Simbolismo no Brasil, o catarinense Cruz e Sousa.
A proeminência dada ao poeta indica as afinidades de Cecília com o
movimento quando enaltece no autor de Broquéis o cuidado formal, o requinte dos
vocábulos e a “linguagem deslumbrada diante da dor” sem lamentos nem queixas
Vai, peregrino do caminho santo,/ Faz da tua alma lâmpada de cego,/ Iluminando,
pego sobre pego,/ As invisíveis amplidões do pranto. Fala Cecília:
Cruz e Souza (sic) ficará sendo, inestimávelmente, o iniciador do
Simbolismo, entre nós, (...) ele foi o que sentiu a suprema beleza das
formas espiritualizadas, e ascendeu aos segredos invioláveis, de que todos
os poetas se afligiram, inutilmente, por essa dolorosa mas luminosa
ascensão da intuição mística. Intuição mística: isto é, nenhuma tonalidade
religiosa ou filosófica. A simples sublimação do mundo e das criaturas por
uma profunda aspiração da virtude
151
.
Não é preciso mais. A passagem é notável por revelar, na avaliação de
Cruz e Sousa, tonalidades poéticas encontradas de modo expressivo na rica de
Cecília, não apenas na forma, mas no teor da mensagem que ela própria deseja
transmitir, percebendo como virtude “a tendência a assistir com serenidade a
decadência do individuo, ao fracasso dos sucessos materiais, à ruína das
aparências, ao despojamento, à quase involuntária perda de si mesmo”
152
.
A constituição estética de sua obra, onde prevalecem notas de matiz
interior, manifesta apreço também pelo Simbolismo de origem lusitana de Eugênio
de Castro e António Nobre, este, segundo Antônio Cândido, o último autor português
com influência na literatura brasileira, onde elogios aos versos Longe dos homens
maus, dos pecadores,/ Numa herdade do céu, entre charruas,/ A cavar entre simples
lavradores,/ Semeando estrelas e plantando luas... são indicativos do caminho a ser
trilhado por ela nos anos seguintes, mantendo em comum sugestões sonoras,
gráficas e rítmicas e provocando pensamentos que escapam a uma relação
imediata.
151
MEIRELES, Cecília. O espírito vitorioso. Rio de Janeiro: Editora Anuário do Brasil, 1929. p. 107.
152
Op. cit., p. 107.
65
Já em Eugênio de Castro,
Surpreendem-se musicalidades na construção do verso, como querendo
traduzir o mais o visível, o concreto, o palpável, mas o espírito, a
irradiação, a essência misteriosa que anima cada forma
153
.
O elogio do Simbolismo refletido em O espírito vitorioso será para sempre
marca inexorável de Cecília, todavia distanciado da obscuridade de sua raiz
francesa e mais condizente com um pós-simbolismo à Valery nos versos de
Cemitério marinho, provável inspiração dos versos de Mar absoluto. Porém, a
poeta mantém no léxico marcas de nacionalidade e um modo de dizer que provam
sua identificação com o linguajar poético à brasileira, ao qual fora acusada de
faltar. Esse intimismo, aliado ao interesse por aquela matéria que não sem alguma
soberba chamamos metafísica, como fala Borges, molda sua artesania de maneira
singular, ao lado do apuro formal que, a princípio, seria contrário à simplicidade e à
leveza de seus versos.
O prosseguimento da linha filosófica de interpretação será uma das
bases de Ana Maria Lisboa de Mello para o trabalho A poesia de Cecília
Meireles: encontro com a vida, que também aborda a filosofia pessoal da
própria poeta, examinando sua visão de mundo ao longo da trajetória
literária. De que modo sua poeticidade resulta em uma visão determinada, é
um dos propósitos da análise, dividida pela autora em quatro partes. A nosso
ver, principal é a segunda, em que os subcapítulos são: O Ser Absoluto o
Um, “O eterno e o efêmero, O exílio terreno e O cumprimento do destino ”.
A ensaísta nos poemas de Cecília a influência dos estóicos, numa obra
eclética marcada pelo misticismo e pelas religiões orientais.
Outro ponto abordado é o tratamento dado ao tempo, visto como
um fluir inexorável que escapa ao controle de todos os seres viventes e lhes
dá o sentido de brevidade da vida, no qual as lembranças fazem parte de um
passado que não retorna, desvanecendo a vida no momento presente:
Observando a natureza, o Eu poético sente que sua trajetória no mundo
fenomênico repete a história de todos os entes que estão no mundo.
Essa visão das categorias do tempo está dividida, como parte
essencial da poética ceciliana, entre um plano superior, transcendente, e um
153
Op. cit., p. 91.
66
plano inferior, imanente. A idéia de finitude é aceita pela poeta com
resignação e tranqüilidade. Visão idêntica condiciona a vida, a existência e o
plano terreno a passagens necessárias para o crescimento espiritual, numa
poesia que supera a ilusão de multiplicidade e finitude
154
.
É dentro do espaço textual que a apreciação espiritualista do
mundo, pelos olhos de Cecília Meireles, ganha sentido, diz a autora. Ali, as
imagens e a poeticidade cecilianas se constituem a partir da contemplação e
inventário das formas de vida e de existir
155
. Sobre Viagem, a autora do
ensaio vê no título da obra que trouxe reconhecimento à poeta não só um
termo geográfico, mas também metafórico, em que o eu lírico navega entre
mares e navios, buscando um destino que está aliado tanto ao seu próprio
eu, como a um fado comum, que une os movimentos de sua alma aos da
humanidade.
O papel do símbolo, que tem estreita relação com essa lírica, além
das análises dos aspectos imagéticos e da investigação dos mitos, é tema
desenvolvido na obra Poesia e imaginário,
156
em que a autora vê a influência
da tradição literária, religiosa e humanista, manifestando-se através da
preocupação central da poética ceciliana, a transcendência. Os estudos da
imaginação na obra do filósofo francês Gaston Bachelard, e sua influência
sobre Durand, conduzem a base filosófica desse trabalho que investiga as
relações entre a lírica e o imaginário.
Um olhar abrangente da matéria poética ceciliana não prescinde de outro
elemento importante, a lusitanidade, esta abarcando uma variedade de modos que
alcançam o período largo de vai de Camões a Fernando Pessoa, este último, uma
influência arrevesada, se podemos dizer, que a poeta tinha dificuldade em
reconhecer.
A intenção manifesta pelos nossos modernistas de romper laços com sua
pátria-mãe de além mar em busca dos legítimos valores nacionais, conta com
154
MELLO, Ana Maria Lisboa de. A poesia de Cecília Meireles: encontro com a vida. 155 f. 1984.
Dissertação (Mestrado em Letras) Instituto de Letras e Artes, Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre. p. 48.
155
MELLO, Ana Maria Lisboa de. Construções do imaginário na poesia de Cecília Meireles. In:___.
Cecília Meireles e Murilo Mendes. Porto Alegre: FAPA, 2002, p. 22.
156
MELLO, Ana Maria Lisboa de. Poesia e imaginário. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002.
67
testemunhos candentes, como os de Ronald de Carvalho (“ignoramos tudo quanto
se passa no mundo das letras em Portugal”, em 1920) e rio de Andrade (um
“paisinho desimportante” para os modernistas, em 1925). Junte-se o juízo de Alceu
Amoroso Lima, o Tristão de Ataíde (Portugal deixou, de todo em todo, de exercer
sobre nós qualquer espécie de influência literária” em 1928), seguido da
contundente opinião juvenil de Carlos Drummond de Andrade, que num artigo de
1924 dispara contra os lusitanos ( um “povo que gerou Os Lusíadas e morreu”)
157
.
Refutando o que João do Rio chamaria de “onda lusófoba”, em
contrapartida às críticas demolidoras sofridas por brasileiros em Portugal, Arnaldo
Saraiva questiona se na verdade essa nave chegou a zarpar. Se alguma vez o Eça
das Farpas modelou o brasileiro como de maus bofes, e José de Alencar queixava-
se do desdém português contra nossa incipiente literatura, uma rede de relações
que incluía diplomatas, acadêmicos e livreiros, à parte a epistolografia que acusa o
trânsito cultural entre escritores de Brasil e de Portugal, corria lateralmente à cizânia.
Alheia à polêmica, Cecília Meireles mantinha larga correspondência com
autores lusos, um deles, o de Literatura brasileira (1926), José Osório de Oliveira, de
quem Mário de Andrade proclama, com algum exagero, que antes dele “a bem dizer,
não havia literatura brasileira em Portugal”
158
. Osório era grande admirador da
poesia de Cecília, cuja obra conheceu em 1923 através do segundo livro, Nunca
mais... e Poema dos poemas, e foi o responsável por sua recepção e encontro com
poetas portugueses, requisitados por ela na sua primeira visita ao país, em
companhia de Correia Dias, no ano de 1934. Trocou larga correspondência com a
autora ao longo da vida, e foi dos seus mais próximos amigos em terras lusas
159
.
Uma antologia organizada por ela em 1944, Poetas novos de Portugal, faz
a apresentação oficial do autor de Mensagem aos brasileiros, trazendo entre outros,
os nomes de Adolfo Casais Monteiro, Camilo Pessanha, Jorge de Sena, José Régio
e Miguel Torga. A obra também circula em Portugal, onde não é bem vista pelo
salazarismo, e inverte o caminho de Viagem, trazendo ao conhecimento dos
lusitanos nomes ainda ignorados, segundo Eduardo Lourenço:
A antologia foi a primeira consagração, com um olhar de fora, da poesia
modernista portuguesa, e por meio dela tomei conhecimento também da
157
SARAIVA, Arnaldo. Modernismo brasileiro e modernismo português: subsídios para o seu estudo e
para a história das suas relações. Campinas: Editora da UNICAMP, 2004. p. 21.
158
Op. cit., p. 40.
159
GOUVÊA, Leila V. B. Op. cit., p. 37.
68
poesia de Pessoa, que naquela época ainda era quase desconhecido
mesmo em Portugal
160
.
Cecília Meireles foi, provavelmente, a única brasileira a ler a grande obra
de Pessoa cerca do período em que foi publicada, escrevendo sobre o autor
português, diz Arnaldo Saraiva, “com admirável penetração”
161
. Fala a autora de
Mar absoluto:
Fernando Pessoa é o caso mais extraordinário das letras portuguesas.
Nascido em 1888, possuidor de qualidades líricas tão raras que dulcificam,
eternizam a língua em que escreveu, tornando-a um instrumento de
delicadeza nova, sensível ao mais abstrato toque, - não se limitou a viver a
sua personalidade: desdobrou-se em outras diferentes, mas igualmente
poderosas, realizando assim a obra de quatro poetas que fossem
igualmente geniais.
162
É a Pessoa que Cecília dedica seu comentário mais largo, onde faz uma
apresentação dos heterônimos e discorre sobre suas distintas “biografias” e
personas poéticas. Ela opina que, apesar de Mensagem ser seu único volume
reunido em vida, é o que menos o caracteriza, salientando que o próprio, como
poeta, não é um caso simples; lírico da mais clara essência é, ao mesmo tempo,
esotérico, e súbito se faz profético e patriótico”
163
.
Na viagem que fez a Lisboa em 1934, Cecília desejava encontrar-se com
Fernando Pessoa. Telefona ao poeta e marca um encontro no café A Brasileira, no
Chiado. Ela espera por ele das doze às quatorze horas, em vão. Mais tarde,
passando pelo hotel onde ela e o marido estão hospedados, Pessoa deixa o volume
de Mensagem, acabado de sair, com a dedicatória:
À Cecília Meireles, alto
poeta, e a Correia
Dias, artista, velho
amigo, e até
cúmplice (vide “Águia”,
etc...),
na invocação de
Apolo e de Atena,
160
GOUVÊA, Leila V. B. Op. cit., p. 22.
161
SARAIVA, Arnaldo. Op. cit., p. 188.
162
MEIRELES, Cecília. Poetas novos de Portugal. Rio de Janeiro: Dois Mundos, 1944. p. 38.
163
MEIRELES, Cecília. Poetas novos de Portugal. Op. cit., p. 44.
69
Fernando Pessoa
10 XII 1934.
De acordo com informações do segundo marido de Cecília, Heitor Grilo, a
explicação de Pessoa ao não comparecer foi de que o horóscopo feito por ele
naquela manhã não prenunciava bons augúrios
164
.
Apesar de desapontada, é provável que a autora brasileira
compreendesse as razões do poeta de Tabacaria, segundo colocado entre os dez
poemas mais importantes do culo XX, seguido de Cemitério Marinho, de Paul
Valéry
165
. A veia mística de Pessoa não contradiz as inclinações metafísicas da
própria Cecília, a que escreveu os versos de Noções (...) Mas, nesta aventura do
sonho exposto à correnteza,/ recolho o gosto infinito das respostas que não se
encontram (VI, 271), parte dessa poética vista por José Paulo Paes como “uma
região de terras altas, mais perto das nuvens que da cidade dos homens em
baixo”
166
. Afinal, no Rio de Janeiro dos anos vinte, predominava entre a jovem
intelectualidade carioca o gosto pela filosofia oriental e pelo culto a Tagore, que ela
viria a traduzir
167
.
Cecília finalmente vai conhecer o país que tanto admira no início dos anos
cinqüenta, quando viaja para a Índia em companhia do marido, e na ocasião, recebe
o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Nova Déli. A longa estada
produz frutos tanto na prosa como na poesia, surgindo em 1953 os Poemas escritos
na Índia. Daí se pode dizer que a alma poética de Cecília Meireles transita entre
estes dois oceanos, o Atlântico, reduto por excelência dos navegadores portugueses
e divisa de águas com o Brasil, e o Índico, também local privilegiado das caravelas
lusas e palco eleito por Camões para a grande epopéia marinha d‟ Os Lusíadas.
3.2 ENTRE AREIAS E NUVENS, A MÚSICA DE SEDA
164
SARAIVA, Arnaldo. Op. cit., p. 188. O volume faz parte da biblioteca que hoje pertence às filhas de
Cecília Meireles.
165
Em primeiro lugar, está T. S. Eliot, com The waste land. Eleição feita pelo jornal FSP, com dez
críticos brasileiros. Folha de São Paulo. Caderno Mais! Número 412. 02/01/2000. p. 6. A eleição, vista
sem surpresas por Ivo Barroso, um dos críticos, segundo ele atenta para a excelência da poesia
modernista, que contribui com o maior número de poemas.
166
PAES, José Paulo. Os perigos da poesia. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. p. 34.
167
LAMEGO, Valéria. Itinerário de uma cronista. In: Dossiê Cecília Meireles. Poesia sempre.
Fundação Biblioteca Nacional. Ano 8. nº 12. Mai/2000. p. 234.
70
“Foi desde sempre o mar”, dizem os versos de Mar absoluto, que dentre
os volumes de versos da autora, é aquele em que o tema se destaca mais.
Entretanto, falar da poética ceciliana é falar, inescapavelmente, de mar. Em suas
primeiras obras, como o rejeitado Espectros, ao qual se seguiram Nunca mais...e
Poema dos poemas, e ainda Baladas para El-Rei, essa presença não é identificada,
porém, a partir de Viagem, entra para seu decálogo poético particular como um tema
que não seria mais abandonado até as linhas derradeiras de Solombra.
na carga simbólica do elemento marinho uma identificação ligada de
modo imediato com a interioridade melancólica revelada pelo eu lírico nos versos de
Cecília, que já aparece como marca indelével em Viagem, continua com Vaga
música, para alcançar o ponto máximo em Mar absoluto. Em Retrato natural essa
presença é mais tênue, mas sobressai novamente três anos depois nas páginas de
Doze noturnos de Holanda. Nesse espaço, volumes em que ela se dedica a
outros temas, como a poesia dos trovadores inspirada no Amadis de Gaula, de Amor
em Leonoreta, e os longos anos dedicados à pesquisa que resultaram no
Romanceiro da Inconfidência.
Aqui é preciso voltar ao juízo de Mário de Andrade, que faz um reparo a
Viagem em O empalhador de passarinho, onde ele clama por uma indicação das
datas em que os poemas foram escritos
168
. Para se referir a essa composição
aleatória da obra, Mário usa como metáfora a expressão “bordado búlgaro que nem
sempre me pareceu feliz”
169
, impossibilitando uma leitura de seu desenvolvimento, e
do que ele chama de “viagens exteriores”.
O problema não se restringe apenas a esse volume. Nos demais, salvo
indicativo do ano de edição, nada consta sobre as datas em que os poemas foram
escritos. A organização da obra póstuma por Darcy Damasceno tentou amenizar o
problema, anotando sempre que possível, as datas, ou o ano, nas edições
estabelecidas por ele. Contudo, voltando ao pai de Macunaíma, a escolha por
Cecília do método casual não permite uma análise do tema, as metáforas do mar,
dentro de um desenvolvimento cronológico. No entanto, seu vocabulário marítimo de
eleição está semeado ao longo da maior parte do volumes publicados, modificando-
se, atenuado, apenas em Solombra, um ponto ao qual vamos fazer reparo.
168
Nos poemas de Viagem, as datas estariam entre 1927 e 1935 (Nota da A.).
169
ANDRADE, Mário. O empalhador de passarinho. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2002. p. 165.
71
Mas é perceptível que na obra de Cecília, ao longo dos anos, os poemas
poderiam ser organizados formando certos núcleos, por conta de um caráter
intrínseco, que Mikel Dufrenne chamaria de “espectro de palavras”, revelando em
escritos publicados em datas diversas, uma definição estética característica que
permite reuni-los em conjuntos denunciando termos, espaços, metros e ritmos afins.
Assim, em nossa percepção particular da poética ceciliana, a partir de
seu primeiro livro, Espectros, até o último, publicado um ano antes de falecer, que é
Solombra, ela poderia ser dividida em cinco grandes blocos estéticos, a saber: o
primeiro deles, o da fase inicial sob influência parnasiana, Espectros (1919), e os
demais, que mostram influência do influxo simbolista, a saber, Nunca mais... e
Poema dos Poemas (1923), Baladas para El-Rei (1925), Cânticos (1927) e Morena,
Pena de Amor (1939)
170
. Como sabemos, essa fase foi rejeitada por Cecília mais
tarde.
O segundo é o grande período de Viagem (1939), Vaga música (1942),
Mar absoluto e outros poemas (1945), e onde incluímos Romanceiro da
Inconfidência (1953), Pistóia, Cemitério Militar Brasileiro (1955) e Canções (1956).
Aqui a autora alcança sua maturidade poética e o mar se torna o centro irradiador de
sua poesia. O terceiro, o da poesia iluminada de Retrato natural (1949), Poemas
escritos na Índia (1953) e Poemas Italianos (1953-1956), quando o influxo terreno se
torna mais presente e seus versos, mais solares. O quarto, a poesia de inspiração
trovadoresca e religiosa, com Amor em Leonoreta (1951), Pequeno Oratório de
Santa Clara (1955) Romance de Santa Cecília (1957) e Oratório de Santa Maria
Egipcíaca (1957). E o derradeiro, cujos títulos são Doze Noturnos de Holanda e O
Aeronauta (1952), Metal rosicler (1960) e Solombra (1963), marcado pelo
desvanecimento cada vez maior dos dados sensíveis, e que alcança o cume no
último volume.
Se a divisão do primeiro e do quarto grupos talvez não suscite
controvérsias, incluir no segundo grupo Romanceiro da Inconfidência e Canções,
sem a presença de obras como Retrato Natural pode ser mais difícil. Nossa
argumentação é de que em Mar absoluto, Cecília publica “Este é o lenço” (MA,
170
Segundo Antonio Carlos Secchin, Darcy Damasceno datava o volume de 1939; até 1953, data do
Romanceiro da Inconfidência, Cecília anunciava o lançamento do livro, o que nunca se concretizou
em vida da autora. Sua primeira edição data de 1973, e ele encontra-se no volume 6 das Poesias
completas organizadas por Damasceno. In: SECCHIN, Antônio Carlos. In: MEIRELES, Cecília.
Poesia completa (Org. Antônio Carlos Secchin). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 170.
72
473) e em Retrato Natural, “Balada de Ouro Preto” (RN, 648), insinuando a gestação
do poema sobre a Inconfidência. No caso de Canções, entendemos que esse
volume constitui uma reunião de poemas que por qualquer motivo a autora deixou
reservados, mas que pertencem ao mesmo grupo estético.
No caso do terceiro grupo, com Retrato Natural, Poemas escritos na Índia
e Poemas Italianos, percebemos uma nota diferenciada que migra da atmosfera
soturna e tristonha característica de seus versos oceânicos para adentrar a terra,
com temas pastoris privilegiando a vida na natureza. As mesmas notas são
perceptíveis nos outros dois volumes. Aqui, o apêndice denominado “Os dias
Felizes”, que consta em Mar absoluto, com certeza ficaria mais bem integrado.
O quarto grupo, com a poesia temática de inspiração religiosa, julgamos
que dispensa maiores comentários.
Quanto ao quinto grupo, de Doze Noturnos de Holanda e O Aeronauta,
Metal rosicler e Solombra, nele transparece uma nítida mudança de tom. Cecília
Meireles pode contar, mesmo em seus livros renegados, com alguns versos de
grande inspiração, numa lírica que joga de modo admirável com as palavras, as
imagens e os sons - os sense e sensa de Marcus Hester. Mesmo temas como a
perda, a morte, os afogados, transfiguram-se numa aura nova e surgem nos poemas
transformados, num olhar mais afastado do pavor da civilização ocidental sobre
esses temas e mais próximo da perspectiva do Oriente, onde são vistos como parte
do grande ciclo da vida.
Ela, que para Alfredo Bosi é a poeta que melhor trabalhou os metros
breves
171
, faz sica quando escreve versos, mesmo que os temas sejam tristes,
mas no quinto grupo, julgamos que o caso é diferente. A forma cuidada se mantém,
mas a sonoridade é mais surda, menos melodiosa, a plasticidade das imagens se
transforma, e os poemas ganham um ritmo novo que se aproxima mais da estética
modernista, explicando porque em alguns manuais é listada ao lado dos grandes
nomes desse movimento.
Alguns dos mais assombrosos poemas cecilianos fazem parte desse
grupo, estrofes que dizem “Como as ervas do chão, como as ondas do mar,/os
acasos se vão cumprindo e vão cessando./Mas, sem acaso, o amor límpido e exato
jaz” (SO, 1270). Nesse volumes, sobressaem os poemas de estro modernista, ainda
171
BOSI, Alfredo. Op. cit., p. 461.
73
que a liberdade da forma seja apenas aparente, e para isso basta uma leitura mais
cuidadosa dos versos de Solombra.
Contudo, queremos reiterar que a divisão acima obedece apenas à nossa
percepção particular da obra de Cecília Meireles, e sob um enfoque estético,
afastado do cronológico, na impossibilidade de se poderem confirmar nossas
hipóteses. Esse árduo trabalho ainda está por fazer.
3.2.1. A Epopéia de Viagem (1939)
A Viagem de Cecília Meireles, já referida no título do volume
vencedor do prêmio da Academia, é entendida por David Mourão-Ferreira
como termo que alude a uma noção de espaço percorrido ou
sucessivamente habitado -, com a referência explícita a lugares concretos
172
. Tal observação pode ser correta, mas com a maturidade poética
alcançada no livro, essarica privilegiou um locus por excelência, o mar.
Toda a obra de Cecília - da qual podemos dizer que liga autor e eu lírico de
modo muito estreito é uma escrita poematizada de uma viagem interior,
independente do espaço situado. Ali, a dimensão real do objeto se apaga
para ceder lugar a uma recriação do mundo que alguns já descreveram como
alucinatória. Para Ana Mello, Viagem (1939)
(...) marca o início de uma trajetória segura nos domínios de um
lirismo sem fronteiras estéticas e temporais, com predileção pelas
indagações de ordem metafísica, expressas através da harmonia
entre ritmos e expressões simbólicas afinadas com a tradição, com
ressonâncias míticas e místicas e, ao mesmo tempo, em sintonia
com a modernidade pelo ecletismo das fontes, o diálogo com seus
predecessores e contemporâneos, bem como pela liberdade formal.
173
.
Tal se comprova já nos primeiros versos de Canção (VI, 243):
No desequilíbrio dos mares,/as proas giravam sozinhas.../Numa das
naves que afundaram/é que tu certamente vinhas.
No primeiro verso, a analogia entre os termos desequilíbrio‟ e „mares‟,
sugere por meio do insight um mar revolto, de ondas encapeladas, formando a idéia
da tempestade. No segundo verso, referindo-se à parte dianteira do navio, a
172
MOURÃO-FERREIRA, David. Hospital das letras. Lisboa: Imprensa Nacional, 1964. p. 154.
173
Op. cit., p. 246.
74
sinédoque em „proas‟ que navegam sem rumo, estabelece o sentido de nau
desgovernada, sem piloto, confirmado pelo naufrágio percebido em „afundaram‟,
finalizado com o fatal verbo no pretérito imperfeito, „vinhas‟.
A formação da imagem do náufrago e do navio abandonado segue-se
naturalmente, sem grande esforço, após a leitura dos versos, e ainda não implica um
significado metafórico, mas ele se abre na segunda estrofe:
Eu te esperei todos os séculos,/ sem desespero e sem desgosto,/ e morri
de infinitas mortes/ guardando sempre o mesmo rosto/.
A impossibilidade humana de aguardar por um período de tempo tão
longo, sem a decrepitude do corpo, e morrendo várias vezes, resulta no insight que
afasta o sentido literal para repor o significado metafórico, permitindo substituir os
termos dos versos pela idéia nova do período de tempo infinito que dura uma espera
dolorosa:
Quando as ondas te carregaram,/ meus olhos, entre águas e areias,/
cegaram como os das estátuas,/ a tudo quanto existe alheias/.
Na terceira estrofe, a imagem do afogado é nítida entre as ondas,
seguindo-se a metonímia que posiciona o eu lírico entre terra e água, e aqui não
sabemos se um sentido literal de alguém que observa da praia, ou se é metáfora
para situá-lo entre dois mundos. A comparação com o olhar das estátuas revela na
imagem aquele que olha e não vê, indicando um desapego por todas as coisas após
a perda:
Minhas mãos pararam sobre o ar/ e endureceram junto ao vento,/ e
perderam a cor que tinham/ e a lembrança do movimento.
Nessa estrofe a poeta volta à comparação anterior com a estátua para
retomá-la como metáfora, onde a imagem do corpo endurecido nos conduz à idéia
que identifica imobilidade com desinteresse, num retrato físico desse abatimento
interior:
E o sorriso que eu te levava/ desprendeu-se e caiu de mim:/ e ele
talvez ainda viva/ dentro dessas águas sem fim.
Na conclusão do poema, Cecília prossegue com a idéia da inércia através
do sorriso que cai do rosto como uma máscara, adereço mortuário que afunda nas
mesmas águas do afogado, levando consigo uma parte do eu lírico, talvez a última a
permanecer viva. No poema, a imagem está dividida entre o oceano agitado onde
está o afogado e o eu lírico que observa da praia, e possibilita uma leitura metafórica
75
dividindo entre terra e mar o mundo dos vivos e o mundo dos mortos; este, de águas
infinitas que repartem o olhar do observador com a terra, onde a dor da separação o
petrifica como as estátuas. Ele está em terra, porém uma parte de si mesmo foi
levada pelas águas junto com o afogado, oportunizando a metáfora da perda
dolorosa.
Anunciação” (VI, 230) é um poema em que sobressai a afeição de Cecília
pela música em versos de uma melopéia encantatória, semelhantes ao suave
balanço de um barco no mar:
Toca essa música de seda, frouxa e trêmula,/ que apenas embala a noite
e balança as estrelas noutro mar.//Do fundo da escuridão nascem vagos navios de
ouro, /com as mãos de esquecidos corpos quase desmanchados no vento.//”
E o vento bate nas cordas, e estremecem as velas opacas, /e a água
derrete um brilho fino, que em si mesmo logo se perde./Toca essa música de
seda, entre areias e nuvens e espumas.//”
Os remos pararão no meio da onda, entre os peixes suspensos; /e as
cordas partidas andarão pelos ares dançando à toa.//”
O espaço marítimo aqui é lugar de passagem para a transcendência,
situado entre terra e u, onde os homens navegam achegar ao outro lado, o
espiritual. Na embarcação de metal dourado o valor intrínseco das coisas materiais
é questionado, adaptando-se a impressão generalizada de desfazimento aos
extensos versos livres com ausência de rimas, e demonstra o temor do eu lírico de
que seus versos também se desfaçam.
O ambiente está colocado de maneira sofisticada e intercala na
mensagem impressões de beleza e de fragilidade vaporosas, expressando um
sentido geral de apagamento em que o som da música é sutil
174
e, como vai tudo o
mais, vai desaparecendo aos poucos; quando o poeta coloca ênfase em palavras
como “frouxa”, “trêmula”, “fino”, “opacas”, “suspensos”, “à toa”, “partidas”, assume
174
Margarida Maia Gouveia nota a recorrência em Cecília Meireles de termos
relativos aos gêneros, instrumentos, e à música em geral: canção, canto, cantiga,
cantiguinha, cantar, balada, serenata, viola, piano, harpa, música, acrescentando que
alguns deram títulos a poemas ou livros, como Baladas para El-Rei, Vaga música, Cânticos,
sem esquecer os oratórios, Oratório de Santa Clara e Oratório de Santa Maria Egipcíaca.
Cecília constrói a música de seus versos com rimas, aliterações, assonâncias, por meio do
alongamento das palavras, da duração, da intensidade, jogando com sílabas fracas e
fortes e com o timbre. In: GOUVEIA, Margarida Maria. Cecília Meireles: uma poética do
eterno instante.Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2002.
76
um tom de aniquilamento gradual em que é perceptível a ação do tempo roendo
tudo, e também o que é belo e é precioso. De certa maneira, é uma estetização da
morte.
A fala do eu lírico está dividida entre presente, no qual ele atua como
testemunha, e futuro, sobre o qual faz um vaticínio, separados pelas palavras que
iniciam os versos numa súplica, Toca essa música de seda, dividindo a canção do
poeta entre os dois mundos, material e espiritual. A melodia das ondas, que toca
frouxa e trêmula e na água alcança também as estrelas que balançam noutro mar,
será mais tarde apenas uma música de sombra, pois as metáforas separam os dois
espaços entre som e silêncio, movimento e imobilidade, colorido e incolor, carne e
pó.
“Cessará essa sica de sombra, que indica apenas valores de ar./Não
haverá mais nossa vida, talvez não haja nem o pó que fomos.//”
“E a memória de tudo desmanchará suas dunas desertas,/e em navios
novos homens eternos navegarão.//”
A opacidade mostrada ao fim do poema transmite a sensação de que o
barco e seus lúgubres tripulantes chegam ao fim de sua viagem, transitando entre
vida e morte, num lirismo triste que marca a preocupação de Cecília Meireles com o
fenecer e o inexorável.
“Canção” (VI, 237) é um dos poemas mais conhecidos de Cecília, e em
seus versos o eu lírico revela uma dor profunda, causada pela renúncia de um
desejo, explorando ao máximo as possibilidades sensórias num misto de agonia e
beleza,
“Pus o meu sonho num navio/e o navio em cima do mar; - depois, abri o
mar com as mãos,/para o meu sonho naufragar.//Minhas mãos ainda estão
molhadas/do azul das ondas entreabertas,/e a cor que escorre dos meus
dedos/colore as areias desertas.//
O vento vem vindo de longe,/a noite se curva de frio;/debaixo da água vai
morrendo/meu sonho, dentro de um navio...//Chorarei quanto for preciso,/para fazer
com que o mar cresça,/e o meu navio chegue ao fundo/ e o meu sonho
desapareça.//”
Depois, tudo estará perfeito:/praia lisa, águas ordenadas,/meus olhos
secos como pedras/ e as minhas duas mãos quebradas.//”
77
Nos primeiros versos de Canção, o estágio da assimilação predicativa
indica a materialização de “sonho”, e a indicação do eu rico de que é colocado um
navio sobre o mar, para depois abri-lo, conduzindo ao naufrágio.
A impossibilidade de tomar um desejo nas mãos proporciona um
primeiro sinal que suspende o sentido literal no verso, acrescentando o fator onírico
a vontade manifestada pelo eu lírico.
Como „sonhos‟ é substantivo abstrato, a formação da imagem nos deixa
perceber navio, mar e um par de mãos. Nessa primeira quadra, a metáfora é clara
quanto à decepção do eu lírico de um desejo cujo cumprimento é impossível.
Na segunda quadra, o recurso da cor que escorre das palmas deixando
azulada a orla marítima guarda dentro dos versos uma ligação estreita da água com
o eu poético, onde a cor azul líquida que escorre das mãos intersecciona dois
sentidos, visão e tato. Como uma das características da água é ser incolor, o azul
que escorre das palmas acende um sinal para o leitor da impossibilidade de leitura
literal desses versos. O azul do oceano e o azul de um tinteiro não são o mesmo
azul, diz o bom senso. Mas por analogia, eles são a mesma cor. A essa constatação
se junta a imagem das mãos onde pinga água do mar numa doação simbólica, e
profundamente poética, dessa faculdade de ser azul.
Na terceira quadra, suas dores têm a natureza como companheira na
personificação da noite e do sonho alinhados à morte e ao sofrimento. A promessa
de tantas lágrimas que farão crescer o mar, soçobrando navio e sonho, indica, mais
que firmeza, um desgosto profundo que terá fim com a transformação da imagem
nos versos finais. Neles, o eu lírico fica distante do mar de águas calmas, está na
praia lisa, e a aridez dos olhos comparados a uma secura de pedra contrasta com as
mãos, antes molhadas do azul, e agora partidas. Os versos terminam com a
metáfora que indica uma busca incansável para a cura de uma dor infinita,
expressando uma interioridade muito cara à poética ceciliana.
Corpo no mar (VI, 266) continua o tema, agora sob uma perspectiva de
imobilidade onde a metáfora é formada por adjetivos apontando para esse estado de
inércia mantido nos versos seguintes:
Água densa do sonho, quem navega?/Contra as auroras, contra as
baías,/barca imóvel, estrela cega//
78
O poema opõe aos substantivos tocados pela beleza, como estrela e
auroras, atributos disfuncionais que os tornam inúteis. A empreitada da viagem
malogra, pois cada objeto apresentado se quebra ou acidenta:
Bate o vento na vela e não a arqueia./-Não foi por mim!/Partiram-se as
cordas, rodaram os mastros,/os remos entraram por dentro da areia...//Os remos
torceram-se, e trançaram raízes./- Inútil forçá-los alastram-se, fogem/na sombra
secreta de eternos países...//Mudou-se a vela em nuvem clara!/Choraram meus
olhos, minhas mãos correram.../- Alto e longe! Não foi por mim...//”
Na quinta estrofe, o corpo do náufrago está dentro da barca, e a poeta
substitui a fórmula gasta, “à mercê das ondas”, por outra palavra para referenciar o
estado indefeso:
E apenas pára/ um corpo na barca vazia, / à mercê das metamorfoses,/
olhos vertendo melancolia...//O vento sopra no coração.//
“Ah! sobrevive o mar no meu ouvido.../Marinheiro! Marinheiro! //”
Nos últimos versos, (Ilhas... Pássaros... Portos... nesse ruído./ - O
mar!... O mar...! O mar inteiro!...)//Mas é tempo perdido! recupera-se uma amostra
tênue da vida, da natureza e da segurança do cais - de tudo que contém; porém,
um lamento derradeiro clama pela inutilidade de se voltar atrás.
Na verdade, dentro da perspectiva universalizante da poética ceciliana, o
que a união de imagem e metáfora propõe é quão pouca margem de manobra há,
tanto para o marinheiro do poema quanto para o homem, no sentido lato, diante de
um destino que não controlam. Na leitura dos olhos melancólicos, cabe tanto o
desencanto como a tristeza dessa autoconsciência.
em Noções (VI, 271), uma postura menos dolorida e mais
meditativa, com o desdobramento do eu lírico no duplo, dividido pela longa distância
que há entre nossos desejos e as nossas reais possibilidades: Entre mim e mim, há
vastidões bastantes/para a navegação dos meus desejos afligidos.
Os versos continuam com uma imagística inusitada:
Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos. /Cada lâmina
arrisca um olhar, e investiga o elemento que a atinge.//Mas, nesta aventura do
sonho exposto à correnteza,/só recolho o gosto infinito das respostas que não se
encontram//.
Aqui as metáforas multiplicam-se ao longo dos versos, a cada palavra
que se acrescenta. Se a aproximação dos termos „vastidões bastantes‟,
79
“navegação‟, „desejos afligidos‟, projeta a imagem de um espaço largo, necessário
para conter as frustrações do eu lírico no ambiente marinho, os navios espelhados
salientam o quanto essa navegação é cuidadosa. O reflexo da água no espelho
continua com „lâmina‟, induzindo à visão da faca e a lembrança do fio que corta, mas
também reflete. A travessia perigosa é como uma briga de facas, onde o lutador
„arrisca‟, „investe‟ [investiga], „atinge‟. É interessante notar como a leitura isolada do
verso o transfere para outro contexto, contudo, o espaço retorna à água na estrofe
seguinte.
Em „sonhos exposto à correnteza‟ se repete o sentido do primeiro verso,
„navegação dos meus desejos afligidos‟. E a seguir, o queixume do poeta é metáfora
para o desgosto com a falta de sentido da vida, na sinestesia que explora o paladar
ao evocar o sabor.
O poema é um jogo de espelhos um tema muito ao gosto de Cecília
Meireles - aonde o eu lírico mira sua vida: Virei-me sobre a minha própria
existência, e contemplei-a./Minha virtude era esta errância por mares contraditórios,
e este abandono para além da felicidade e da beleza.
A inútil procura por respostas finaliza com a deprecação:
Ó meu Deus, isto é a minha alma:/ qualquer coisa que flutua sobre o
meu corpo efêmero e precário,/ como o vento largo do oceano sobre a areia passiva
e inúmera...//.
Numa comparação admirável unem-se alma e vento, corpo e areia,
comungando homem e natureza, na imagem que nos transporta de volta à
terra, sentindo soprar a brisa. Para Ana Mello, essa é uma uma poeticidade
que privilegia os aspectos imagéticos, divididos entre um mundo imanente e
um transcendente, e que dá importante papel ao símbolo:
No emprego dos pares simbólicos água-mar/areia; noite/dia;
céu/terra observa-se que os símbolos de transcendência (água-
noite céu) são os mais utilizados pela Autora, sendo que seus
opostos, empregados com menos freqüência, servem
fundamentalmente para caracterizar a diferença de planos e
reconhecer a existência de uma realidade sobre-humana, em
contraposição à qual o plano da areia, dia ou terra é mera ilusão.
175
175
MELLO, Ana Maria Lisboa de. A poesia de Cecília Meireles: encontro com a vida, 1984. 152 p.
Dissertação (Mestrado em Letras) PUCRS, 1984. p. 72.
80
Mas ainda uma metáfora do fim, notabilizada pelo grupo de palavras
inconsúteis, „flutua‟, „efêmero‟, „precário‟, „passivo‟, que, no resquício da imagem, nos
dá apenas o vazio.
Sereia (VI, 279) mostra uma poesia menos melancólica, centrada na
figura do ser mitológico metade peixe, metade mulher, dividido entre dois mundos,
terra e água, e inspirado nas cantigas galaico-portuguesas. Os versos contam com
as mesmas quatro estrofes, ou cobras, do seu formato costumeiro:
Linda é a mulher e o seu canto,/ ambos guardados no luar./Seus olhos
doces de pranto/ - quem os pudera enxugar/devagarinho com a boca, /ai!/ com a
boca, devagarinho...
O tom do eu lírico exalta a formosura sensualizada da sereia, indicada
pelo título, muito bela, cantando à luz da lua. Ela chora lágrimas doces, e não
salgadas, impelindo à vontade de enxugá-las de mansinho com beijos, e conjuga
beleza com melancolia. Na doçura das lágrimas, o poema metaforicamente edulcora
a mulher-peixe quando empresta aos olhos, e através do paladar, uma característica
que resulta num adjetivo abstrato do ser, a meiguice da sereia. Os últimos versos
funcionam como refrão, repetidos em forma invertida, com os „ais‟ peculiares a essas
cantigas reforçando o sofrimento do cantador. A graça e as lágrimas doces
acentuam, de modo terno, a tristeza de sua figura:
Na sua voz transparente/giram sonhos de cristal./Nem ar nem onda
corrente/ possuem suspiro igual,/ nem os búzios nem as violas,/ai!/nem as violas
nem os búzios...”.
Como a voz tem timbre, mas não tem cor, e o giro de sonhos de cristal é
uma impossibilidade em termos concretos, no estágio da assimilação predicativa tais
termos são percebidos como tributos à voz da sereia, vistos como elogios ofertados
pelo eu lírico ao canto que nem búzios, nem violas, são capazes de igualar. A
dimensão pictórica acrescenta à figura da sereia cantora as pequenas conchas e a
guitarra, incapazes de soar como essa voz encantatória. Os búzios são ainda um
atributo dos Tritões, e lugar de nascimento de Afrodite, simbolizando aqui seu uso
como instrumento musical e sua relação com águas primevas.
O cantar que enfeitiçou os marinheiros de Ulisses aparece com a
sinestesia, evocada através da visão num manejo hábil da poeta, que alinha esses
versos em imagens abstratas e sem uso da cor, reafirmando novamente a qualidade
dessa voz, comparada ao vento, ao som de búzios e de violas. Com a adesão das
81
conchas aos instrumentos musicais, formando uma orquestra inusitada, temos um
auxílio maior na composição da imagem que, no entanto, continua limpa, quase
incolor. Nessa segunda estrofe, o eu lírico continua a louvar os vários atributos da
mulher-peixe, obedecendo ao esquema da poesia trovadoresca.
Tudo pudesse a beleza,/ e, de encoberto país,/ viria alguém, com
certeza,/ para fazê-la feliz,/ contemplando-lhe alma e corpo,/ ai!/ alma e corpo
contemplando-lhe...”.
Como nas fábulas de princesas encantadas, também a sereia espera por
alguém que vem de longe, enfeitiçado por sua beleza, num tom condicional, „tudo
pudesse‟, para, no encadeamento, corroborar a sua crença, „viria‟ „com certeza‟ na
realização desse desejo, mantendo o tom dubitativo quanto ao futuro, como é usual
nas terceiras estrofes dos poemas trovadorescos.
Os últimos versos contêm a metáfora da dupla beleza, da inteireza do ser
que é belo de corpo e espírito, pois a impossível contemplação da alma induz o leitor
a pensar numa abstração desse conhecimento que permita admirar também o ser
interior. A epoché suspende o sentido usual de „contemplar‟ para adequá-lo à
percepção de um „ver‟ espiritual das qualidades intrínsecas da sereia.
“Mas”, na quarta estrofe, inicia o “momento de recuperação do trovador”
176
: Mas o mundo está dormindo,/ em travesseiros de luar./ A mulher do canto lindo/
ajuda o mundo a sonhar,/ com o canto que a vai matando,/ ai!/ E morrerá de cantar”.
Na interpretação dos travesseiros de luar é necessário recorrer ao
simbolismo da lua como princípio do feminino
177
, que permite a leitura do verso
como metáfora do cantar que adormece o mundo. Nos últimos versos há uma
intersecção da persona da sereia com o eu lírico, também ele um cantador, na
profecia de que o canto lhe custará a morte.
Em Sereia, Cecília compõe um metapoema sob a perspectiva de um ser
mitológico, famoso pelo poder de encantar até causar a morte, como ocorre aos
marinheiros de Ulisses na Odisséia. Porém, esse feitiço que consome quem o ouve
também arrasta a figura do próprio aedo, por conta do sacrifício necessário quando
escolhe doar a vida ao seu canto.
176
SPINA, Segismundo. A lírica trovadoresca. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
1996. p. 49.
177
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Op. cit., p. 561.
82
3.2.2 O sopro de uma Vaga música (1942)
Em Vaga música (1942), Menotti del Picchia “o desdobramento mais
pleno de Viagem, mais enriquecido de substância poética
178
. Outra parte da crítica
ressalta a abrangência de ritmos líricos variados como uma das principais
características da obra, “clássica pela nitidez e pelo equilíbrio de suas arquiteturas
métricas; moderna porque inteligível à sensibilidade atormentada destes tempos
179
.
Para João Gaspar Simões, é a partir de Vaga música que a poeta começa a se
afastar da musicalidade lusíada apresentada em Viagem e se torna mais consciente
do valor fonético da poesia à moda do Brasil
180
.
O primeiro título escolhido é “Epitáfio da navegadora” (VM, 328), que nos
uma direção dos pensamentos do eu lírico no poema iniciado em tom reflexivo,
“Se te perguntarem quem era/ essa que às areias e gelos/quis ensinar a primavera”
nos versos compostos na terza rima oriunda de Dante, uma tradição seguida por
Chaucer, Byron e T. S. Eliot. Ao emparelharmos “areias”, “gelos” e “primavera”,
temos três texturas diferentes e ainda, estados físicos distintos que, acoplados ao
verbo “ensinar”, rejeitam a nossa leitura em sentido literal. O estágio inicial de ver e
pensar”, como diz Ricoeur, conduz à percepção de “primavera” através dos “lugares
comuns associados” de I. A. Richards, como a estação das flores – no plural.
Então, agora temos “areias”, “gelos” e “flores” no estágio da dimensão
pictórica, onde esses elementos verbais controlam a formação das imagens
induzindo também a uma apreensão do sentido tátil. Separa a aspereza mineral da
areia e a frieza da água gelada como menos agradáveis à sensação que as pétalas
de uma flor, formando a metáfora.
No estágio da referência dividida, o significado banal da água e da areia
cede à suspensão do juízo com a epoc, permitindo a construção do tecido
metafórico ligado a uma perspectiva renovada, onde se introduz uma idéia nova ao
alinhavar esses dois elementos àquilo que é frio e desagradável nas relações entre
os seres humanos. A isso, podemos também associar um aspecto descolorido. A
178
PICCHIA, Menotti del. Sobre Vaga música. In: MEIRELES, Cecília. Obra poética. Rio de Janeiro:
Editora Nova Aguilar, 1958. p. 45.
179
PIMENTEL, Oscar. Cecília e a poesia. In: MEIRELES, Cecília. Obra poética. Rio de Janeiro:
Editora Nova Aguilar, 1985. p. 39.
180
SIMÕES, João Gaspar. Fonética e poesia ou o Retrato Natural de Cecília Meireles. In: MEIRELES,
Cecília. Obra poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1958. p. 53.
83
metáfora espelha um desejo de renovação através das tonalidades, do perfume e da
beleza trazidos com as flores quando chega a primavera, no entanto, o uso dos
verbos no passado e o fato de ser uma elegia fúnebre refletem o destino malogrado
desse projeto.
Seguem os versos: “e que perdeu seus olhos pelos/ mares sem deuses
desta vida,/ sabendo que, de assim perdê-los, //ficaria também perdida;/ e que em
algas e espumas presa/ deixou sua alma agradecida.”
As duas estrofes seguintes ainda expõem essa visão desesperançada,
que perde os olhos
181
e a si mesma em “mares sem deuses”. Óculos se perdem,
mas o os olhos, pois a perda da visão é aqui metáfora de um dano maior sofrido
pelo eu lírico.
Nas quarta e quinta estrofes, “essa que sofreu de beleza/ e nunca
desejou mais nada;/ que nunca teve uma surpresa//em sua face iluminada,/ dize: “eu
não pude conhecê-la,/ sua história está mal contada,//mas seu nome, de barca e
estrela, foi: SERENA DESESPERADA”.
É no último verso que está a metáfora da dicotomia do eu lírico, dividido
entre barca e estrela. O nome, que por excelência designa e constitui o ser, é
marcado pelo simbolismo da barca, presente em todas as civilizações, de conduzir a
morte, e cujo exemplo mais conhecido é a de Caronte, na mitologia grega. Para
Bachelard, antes de se lançarem ao mar, os antigos colocavam os ataúdes na água,
fazendo da barca a primeira viagem, e não a última, “só o navegador da morte é um
morto com o qual se pode sonhar indefinidamente. (...) e “o adeus à beira-mar é
simultaneamente o mais dilacerante e o mais literário dos adeuses”
182
.
A estrela guarda o simbolismo da iluminação, do brilho do espírito, em
vários livros da Bíblia. O último verso do poema revela no verbo “foi” um tempo
passado, combinado ao oxímoro da “serena desesperada”, dividindo o ser entre
aparência e essência. O que a metáfora do nome definido por este eu poético como
“de barca e estrela” resume, portanto, é sua estreita aderência a tudo que cerca a
obscuridade, a finitude e a morte, de um lado, e o brilho do espírito, a iluminação e a
eternidade, de outro.
181
Os olhos, segundo os vitorinos, têm duas funções, uma intelectiva e uma amorosa. A expressão
olho do espírito ou do coração também está assinalada em Plotino, Santo Agostinho e São Paulo. IN:
CHEVALIER, Jean. GHEERBRANT, Alain. Op. cit., p. 654.
182
BACHELARD, Gaston. O complexo de Caronte. In: ___. A água e os sonhos. São Paulo: Martins
Fontes, 2002. p. 77.
84
A perspectiva heideggeriana do homem como um ser marcado para a
morte também está presente no poema seguinte, “O rei do mar” (VM, 329):
“Muitas velas. Muitos remos./Âncora é outro falar.../ Tempo que
navegaremos/ não se pode calcular./ Vimos as plêiades. Vemos agora a estrela
Polar./ Muitas velas. Muitos remos./ Curta vida. Longo mar.”
Os artefatos náuticos como velas, remos, âncoras, seguem o título
definindo o espaço do poema. Antes de formar a metáfora, eles funcionam como
metonímia do barco que navega, não se sabe por quanto tempo. As reticências
depois de “âncora” dão o sinal de alerta para a abertura do significado oculto dos
versos. Ao invés da tripulação nos barcos, são apresentados as velas e os remos.
As velas têm destino mais fácil, são levadas pelo vento, os remos, necessitam de
força, num paralelo com a sorte dividida que o destino nos envia. Estabelecida a
metonímia, acrescenta-se ao estágio inicial da proporcionalidade a dimensão
pictórica que nos uma imagem bastante clara dos instrumentos marítimos. Com
“âncora”, alcançamos o estágio da referência dividida que separa o aspecto utilitário
do objeto daquele proporcionado pela bifurcação do sentido, fazendo nascer a
metáfora do imóvel leia-se aqui, estático, sem vida e sem movimento. Esses três
termos fazem a analogia entre a âncora e a morte, o fim da viagem e o fim da vida.
No poema noturno, os navegantes avistam as Plêiades e a estrela Polar.
As primeiras, também chamadas de Sete Estrelo
183
, na mitologia grega eram as
filhas de Atlas e Pleione. Cansadas de serem perseguidas por Órion, pediram a
Zeus que as transformasse em estrelas. Formam uma constelação que pode ser
vista nos hemisférios Norte e Sul. Mas talvez a principal referência do poema tenha
sido o livro de Amós: “Ele que faz as Plêiades e o Órion, que transforma as trevas
em manhã, que escurece o dia em noite, que convoca as águas do mar e as despeja
sobre a face da terra, Senhor é o seu nome!” (Am 5-8); ou talvez, o Livro de Jó, onde
duas referências ao Sete Estrelo e à constelação de Órion. Sobre a estrela Polar,
é a única que permanece fixa no firmamento em relação ao eixo da terra, e desde
tempos imemoriais serve como guia aos viajantes. Como os navegadores
passaram pelas Plêiades, vistas nos dois hemisférios, e agora alcançam a estrela
183
lendas indígenas brasileiras referentes à criação do Sete Estrelo” (vide Mundo da criança: a
vida em vários países. Vol. 5. p. 129, onde o nascimento da constelação é explicado pela subida ao
céu dos filhos negligenciados de uma índia.
85
Polar, vista somente no hemisfério Norte, logo, eles seguem na direção norte, rumo
ao alto.
“Por água brava ou serena/ Deixamos nosso cantar, vendo a voz como é
pequena/sobre o comprimento do ar./ Se alguém ouvir, temos pena:/ cantamos
para o mar...”
Na estrofe seguinte, é abordada a herança deixada para trás, e o cantar
do poeta é metáfora do resumo essa existência, medida em ar.
“Nem tormenta nem tormento/ nos poderia parar./ (Muitas velas. Muitos
remos./ Âncora é outro falar...) /Andamos entre água e vento/procurando o Rei do
Mar.”
Na última estrofe, uma singela vogal faz a diferença entre a angústia e a
procela, tormento/tormenta, incapazes de alterar esse destino inexorável. Da água
para o vento, os dados sensíveis vão se desvanecendo, e o verso segue entre
parênteses, concluindo lentamente. A procura pelo “Rei do Mar”, a essa altura, para
Cecília Meireles, a poeta que viveu pelo eu rico, terminou. Nós, porém, dele
ainda nada sabemos.
“Mar em redor” (VM, 330) consta de um terceto, um quarteto, e um
quinteto, monólogo do eu lírico clamando sem resposta, “Meus ouvidos estão como
conchas sonoras:/ música perdida no meu pensamento,/ na espuma da vida, na
areia das horas...”
Aqui voltam as conchas e seu simbolismo ligado à audição, tão importante
para o aedo. Se “espuma da vida” conduz a uma leitura metafórica que resulta numa
imagem pouco clara, “areia das horas” nos a visão mais real da ampulheta, esse
relógio milenar por onde o tempo escorre de modo implacável, numa tristeza
marcada pelas reticências.
“Esqueceste a sombra no
184
vento./ Por isso, ficaste e partiste,/ e finos
deltas de felicidade/ abrindo os braços num oceano triste.”
A abstração do verso segue direto ao metafórico, pois a materialidade
permite a sombra
185
. O alheamento do ser que deixou o eu lírico esquecido no
vento conduz a essa força elementar da natureza, o liberta, ligada ao sopro e aos
184
Aqui uma gralha. Na comparação com a versão da Obra poética editada pela Nova Aguilar em
1958, consta, na página 144, “Esqueceste a sombra no vento”. Porém, como na edição que nos serve
de base o verso faz menos sentido, “Esqueceste a sombra do vento”, optamos pela primeira (Nota da
A.).
185
Uma das explicações para a ausência de sombra é a libertação das limitações da existência
corporal. In: CHEVALIER, Jean. GHEERBRANT, Alain. Op. cit., p. 842.
86
Titãs, que nos textos bíblicos está relacionada ao influxo espiritual de origem celeste.
A condição dissociada de ficar e partir remete à dúvida, pois se fica a matéria, vai o
espírito, na perspectiva melancólica do eu lírico de apontar numa direção “triste”, de
felicidade “fina”
“Soltei meus anéis nos aléns da saudade./ Entre algas e peixes vou
flutuando a noite inteira./ Almas de todos os afogados/ chamam para diversos lados/
esta singular companheira”.
Na quintilha, temos o anel e seu simbolismo de compromisso, lançado ao
mar no qual o eu lírico flutua por entre as águas
186
, numa imagem fantasmagórica,
chamado pelos afogados e nos revelando o secreto desejo de ficar para sempre no
mar dessa “singular companheira”, que vive, mas mantém o pensamento no mundo
transcendente. Toda a estrutura do poema está ligada ao abstrato, ao volátil, exceto
pelos peixes e algas que reforçam a estranheza da presença de um ser vivo em
meio aos afogados, deslocado do ambiente ao qual pertence. A metáfora induz a
uma leitura da irresistível atração provocada por esse mundo etéreo na figura
flutuante, cuja aspiração é não ser.
em “Pequena canção da onda” (VM, 330), a perspectiva do eu poético
é um tanto diferente:
“Os peixes de prata ficaram perdidos,/ com as velas e os remos, no meio
do mar./A areia chamava, de longe, de longe,/ ouvia-se a areia chamar e chorar!”
Menos atraído pelas forças oceânicas, o eu lírico está dividido entre terra
e mar, nesta pequena canção. Unindo as palavras “velas” e “remos” a “peixes de
prata”, os dados são tornados próximos em razão de seu valor intrínseco para a
navegação, que agrega aos peixes uma qualidade de metal nobre, “de prata”. A
imagem formada a seguir é bastante clara, com o olhar próximo da água e mais
distante da areia, que assume aqui a postura aflita de quem teme um afogamento,
pedindo com súplicas, (chorar por „orar‟) uma volta à segurança da terra.
“A areia tem rosto de música e o resto é tudo luar!”, comprova a
antropomorfização da areia que agora, está de posse de um rosto, mas a complexa
imagem “rosto de música” deixa espaço para uma metáfora também não muito
simples; porém, é possível adicionar as qualidades intrínsecas à beleza e sedução
186
O tema é recorrente em poesia. nos Cantos de Ezra Pound um poema em que um anel é
jogado nos canais de Veneza, onde o poeta viveu. O ato era parte de uma cerimônia que perdurou
por séculos, simbolizando a aliança entre a cidade e o mar (Nota da A.).
87
exercidas pela música ao rosto da areia, dando origem a um ser que é cantador ou
poeta. A areia, porém, é instável e pode se desfazer. Para explicar o fascínio que
exalta o eu lírico ao terminar o verso em ponto de exclamação, num espaço no qual
nada mais é perceptível, há a presença da lua, símbolo do feminino.
“Por ventos contrários, em noites sem luzes,/ do meio do oceano deixei-
me rolar!/Meu corpo sonhava com a areia, com a areia,/ desprendi-me do mundo do
mar!”
Às vezes, a lua é uma providencial lanterna, mas aqui ela está em outro
sentido, e o ambiente na praia é dominado pela presença do vento, cujo simbolismo
remete ao sopro divino e, nas antigas tradições persas, ao papel de suporte do
mundo e de regulador dos equilíbrios cósmicos e morais
187
. Esse corpo se deixa
arrastar pelo vento, desejando alcançar a areia e ficar em terra, e por sua vontade,
ficar longe do mar.
“Mas o vento deu na areia./A areia é de desmanchar./Morro por seguir
meu sonho,/longe do reino do mar.”
Tal figura, no entanto, não alcança praia, pois o vento chega até a areia,
que não permanece no lugar. Numa última deprecação, o eu lírico ainda clama por
seu sonho, ficar distante do mar. A metáfora, aqui, pode ser lida como a vontade de
manter a estabilidade terrena e deixar de lado a navegação marítima, com todos os
significados simbólicos contidos no mar, o que, em Cecília Meireles, é uma postura,
e também um poema, um tanto inusitados.
“Naufrágio antigo” (VM, 402), dedicado a Margarete Kuhn, conta vinte e
nove estrofes, a grande maioria em tercetos, e difere um pouco dos poemas
anteriores. Ele escapa da atmosfera em tom de plica que lembra as cantigas de
amor trovadorescas, onde o eu rico e seu interlocutor demonstram uma relação
mais pessoal. A figura da qual se fala é a vítima de um naufrágio apontada nos
primeiros versos:
“Inglesinha de olhos tênue, corpo e vestido desfeitos/ em águas
solenes;//Inglesinha do veleiro./ com tranças de metro e meio/embaraçando os
peixes.”
Os longos cabelos da mocinha de olhos esmaecidos nos dão um indício
da época do naufrágio, quando não se costumava cortar os cabelos, deixando as
187
CHEVALIER, Jean. GHEERBRANT, Alain. Op. cit., p. 935.
88
madeixas crescer livremente. A imagem que flutua nas águas, corpo e vestido
desmanchados na moldura das tranças, é quase fantasmagórica.
Com “Medusas róseas nos dedos,/ algas pela cabeça,/ azuis e verdes.//
Desceu muitos degraus de seda/ e atravessou muitas paredes/de vidro fresco.”,
Cecília inicia a pintura desse quadro submerso, ela que sempre usou a paleta de
cores com maestria. A quarta estrofe guarda a metáfora da atual morada da
inglesinha, de seda e vidro fresco, agregando à leveza do ambiente aquático maciez
e transparência. Nesse estágio, a imagem traduz uma beleza semelhante à pintura
impressionista.
“Naufrágio antigo” aponta de modo exemplar o que Mikel Dufrenne
denomina de “espectro de palavras”, isto é, a escolha pessoal do poeta por um
grupo de palavras que ressoam nos versos e emitem seu timbre poético de maneira
inconfundível. Veleiro, redes, estrelas, algas medusas, anêmonas, moluscos, peixes
estão disseminados ao longo de cada linha, agregados à lua que desloca muitos de
seus poemas para o ambiente noturno:
“Mira a lua seus dentes,/ seus olhos de oceano cheios,/ seus lábios
hirtos de sede./ Muito tempo, muito tempo.../ Medusas róseas nos dedos,/ pelo peito,
estrelas,/brancas e vermelhas.
Visão, fala, tato, misturam-se ao colorido do mar num paradoxo quase
barroco, dispondo o corpo esmaecido no centro da imagem rodeado por toda sorte
de seres vivos e coloridos presentes na fauna marinha, como adereços macabros
enfeitando a inglesinha:
“Moluscos fosforescentes/ cobiçam os arabescos/de suas orelhas.”,
“Peixes de olhos densos/bebem suas veias/ azuis e violetas”.
Por vezes, o olhar do eu lírico é deslocado para fora do oceano,
focalizando a saudade e a perda em terras distantes, enquanto a mocinha,
“Embalada em seus cabelos/noutros mundos entra,/sempre mais imensos.” Segundo
Cecília, há oceano mais largo que aquele singrado por caravelas lusitanas e veleiros
ingleses.
Nas últimas estrofes, o eu lírico expõe o corpo decompondo-se ao longo
do tempo:
“Branca ampulheta/ foi vertendo, vertendo/ séculos inteiros.
//Desmanchou-lhe o seio, desfolhou-lhe os dedos/e as madeixas, //medusas,
estrelas,/róseas e vermelhas, e algas verdes,” //.
89
A ação implacável do tempo agindo a favor dos elementos agora
transmuta a imagem impressionista recolocando a fantasmagoria das figuras de
Francis Bacon no lugar das coloridas telas de Renoir. A inglesinha de tranças “cor de
lua nascente” que há culos foi tragada pelo mar no naufrágio de um veleiro é uma
grande metáfora englobando temas caros a Cecília Meireles. O primeiro deles é a
brevidade da vida, está claro. Mas também o tempo implacável que devora tudo aos
poucos, explorado por ela quando numa estrofe nos apresenta a ampulheta, para
depois atingir os restos da jovem, e num efeito surpresa, continuar, levando consigo
também toda a vida no mar que cercava a inglesinha; quando pensamos que essa
fúria se acalmou, o tempo continua a devorar, em rallentando, consumindo ainda:
“e
188
a voz do vento/que na areia/sofrera.// E a existência e a queixa//de
quem teve/pena,/antigamente.
Tal furor se abranda aos poucos, apenas quando é hora, quando não
sobrou mais nada, e numa palavra de cinco sílabas bem escolhidas que remetem ao
passado, termina num arpejo manso, nos deixando somente, acima do tempo, o eco
do poema.
“Canção dos três barcos” (VM, 423) também apresenta o tema do
náufrago, porém o espaço se distribui entre terra, céu e mar, “Meu avô me deu três
barcos:/ um de rosas e cravos,/ um de céus estrelados,/ um de náufragos,
náufragos..//ai, de náufragos!
Novamente é perceptível a nota da poesia trovadoresca no cantar
magoado do eu lírico que segue o toar das parlendas. um barco carregado de
flores insinuando cor e perfume, um de céu noturno, coberto de estrelas, trazendo o
brilho, e um de náufragos, insinuando a morte e sobrepondo à exaltação dos
sentidos a imobilidade, a palidez e o emaciado dos corpos inertes privados dessa
faculdade.
“Embarcara no primeiro,/dera em altos rochedos,/ dera em mares de
gelo,/ e partira-se ao meio...// ai, no meio!” Na viagem do eu lírico com o primeiro
barco, encontrando “altos rochedos” e “mares de gelo”, ele se quebra e naufraga.
um mesmo grupo de palavras de eleição mencionadas no “Epitáfio da
navegadora”, flores, gelo e rochas ou areia. O significado metafórico está
188
A ligação das estrofes por meio de conjunções, procedimento comum na lírica trovadoresca e que
Cecília adota no poema, leva o nome de atafinda. Aqui, está ligada ao encavalgamento, quando o
conteúdo de um verso fica truncado e se completa no seguinte. Ver MOISÉS, Massaud. A literatura
portuguesa. São Paulo: Cultrix, 2005. p. 25.
90
transportado para “Canção dos três barcos”, acrescido dos infortúnios causados
nessa viagem.
“No segundo me embarcara,/ e nem sombra de praia, e nem corpo nem
alma/ e nem vida nem nada...//ai, nem nada!” e quando a segunda incursão também
não tem sucesso, há o último barco: “Embarcara no terceiro,/e que vela e que remo!/
e que estrela e que vento!/ e que porto sereno!//ai, sereno!”
no poema um contra-senso entre essência e aparência. As viagens
nos dois primeiros barcos, de rosas, cravos e estrelas, resultaram em fracassos, e a
única bem sucedida foi aquela feita em companhia dos náufragos, contrariando a
expectativa comum. O eu lírico retoma o tema na última estrofe: “Meu avô me deu
três barcos:/ um de sonhos quebrados,/ um de sonhos amargos, e o de náufragos,
náufragos!//ai, de náufragos.
Nos versos, uma adaptação ceciliana do soneto de disseminação e
recolha, perceba-se a diferença no artigo definido para o barco salvador, “o”,
colocado agora numa relação de privilégio frente aos outros. A serenidade, afinal,
diz a metáfora, foi conquistada num sítio degradado, enquanto a beleza devolveu
apenas decepção, numa tentativa de conciliação com o inexorável.
3.2.3. Em direção ao Mar absoluto (1945)
Com Mar absoluto (1945), a temática marinha na poética ceciliana chega
ao ponto mais alto, e segundo Paulo Rónai,
(...) o mar tangível e verdadeiro está para o seu Mar absoluto como os
objetivos da realidade para as idéias de Platão (...). A poetisa dispõe o
apenas de sentidos apurados para captar-lhe as emanações, mas também
de finíssimos instrumentos as imagens para exprimir aquela recôndita
essência”
189
.
Aqui o assunto se mostra evidente, a começar pelo título, que porta
alguns dos poemas mais relevantes sobre o universo marítimo escritos em língua
portuguesa, como seus versos da abertura (MA, 448):
“Foi desde sempre o mar./E multidões passadas me empurravam/ como a
barco esquecido.” // Agora recordo que falavam/da revolta dos ventos,/de linhos, de
cordas, de ferros,/de sereias dadas à costa.//E o rosto de meus avós estava
189
NAI, Paulo. Mar absoluto. In: MEIRELES, Cecília. Obra poética. Rio de Janeiro: Editora Nova
Aguilar, 1958. p. 50.
91
caído/pelos mares do Oriente, com seus corais e rolas,/ e pelos mares do Norte,
duros de gelo.”
A forma aqui se mostra mais liberta em estofes que vão de duas a sete,
sempre contemplando o leitor com um rico espectro de imagens, cores, sons e
texturas. O poema de Cecília recupera um passado ao mesmo tempo pessoal, de
seus ascendentes navegadores, mas também histórico, das odisséias lusas que
cruzaram o mundo em antigas caravelas. O instrumental marítimo é apresentado de
modo intenso e violento nesse longo olhar do eu lírico atingindo acontecimentos
seculares, as “multidões” que sofreram com as tempestades no mar, à mercê dos
ventos, lutando com ferros e cordas e contando histórias de sereias. As longas
distâncias percorridas pelos barcos lusos que levaram os jesuítas ao Japão pelo
Pacífico, e Camões ao Oriente pelo Índico, nem sempre permitiram o retorno de
seus marinheiros, os “rostos” cuja tumba é o mar.
Como foi apontado, críticos como Mário de Andrade relacionaram a
poesia de Cecília à do francês Paul Valéry, e, como Otto Maria Carpeaux, Ivan
Junqueira também percebe ecos de Cemitério marinho nos poemas de Mar
absoluto. A intertextualidade é possível, e cabe reparar em alguns versos do autor
francês, onde se lê:
“Este teto tranqüilo, onde andam pombas,/Entre os pinheiros palpita, entre
as tumbas;/O meio-dia em ponto aí pincela chamas/O mar, o mar, sempre
recomeçado! Oh, após um pensamento ser recompensado/Com este longo olhar
sobre a calma dos deuses!”
Aqui há um contraste interessante com a vibrante introdução ceciliana,
ainda que a perspectiva seja a mesma, a da perenidade marinha em face do fenecer
humano sepultado na água, revelando como nas escritas de primeira grandeza uma
influência é sempre uma transformação.
Em seus noventa e cinco versos, “Mar absoluto” está dividido entre uma
exaltação oceânica e a homenagem feita por Cecília Meireles aos seus mortos e
margeia a busca da transcendência que aparece como marca indelével em toda a
sua obra, entrelaçando os temas, “E tenho de procurar meus tios remotos
afogados./Tenho de levar-lhes redes de rezas,/campos convertidos em velas,/barcas
sobrenaturais/com peixes mensageiros/e santos náuticos”, tecendo nas águas a
mortalha eterna que os prenderá para sempre ao mar.
92
Essa afinidade entre natureza e poesia cumpre à perfeição o papel da
primeira, segundo Mikel Dufrenne, inspirando o poeta pelas imagens infinitas que ela
lhe propõe. O fluxo de imagens provocadas pelas palavras na poesia, ligando sense
e sensa, sentido, som e imagem, na teoria de Marcus Hester, tem um exemplo
perfeito nos poemas de Cecília, que não deixa qualquer aspecto desassistido.
Não é nossa intenção abordar aqui a poética ceciliana em suas relações
com a biografia pessoal de Cecília Meireles, porém em alguns de seus poemas,
como no caso de “Mar absoluto”, julgamos que tal aspecto é incontornável na
constituição de uma perspectiva mais ampla desses versos. A longa série de perdas
sofridas pela autora, algumas sabidamente traumáticas, deixaram uma marca
permanente tanto em seus temas quanto em seu timbre poético, de uma melancolia
etérea. No poema, diz o eu lírico “Meu sangue entende-se com essas vozes
poderosas”, listadas como “meu sangue‟, “meus avós”, “meus tios remotos”, “gente
passada”, “antigos mortos”, expondo a poderosa ascendência que esses mortos
ainda mantém sobre os vivos.
Ela compactua com esse amor ancestral pelo mar
“Queremos a grande ilusão do mar,/multiplicada em suas malhas de
perigo.//Queremos a sua solidão robusta,/uma solidão para todos os lados,/uma
ausência humana que se opõe ao mesquinho formigar do mundo,” em que a terra é
vista como um território aviltado, em referências pouco elogiosas, que falam de sua
“fraca ilusão” e “solidez monótona”.
Ao mar foi dedicada a mais alta inspiração, resultando na estrofe de força
e beleza espantosas:
“O mar é mar, desprovido de apegos,/ matando-se e recuperando-
se/correndo como um touro azul por sua própria sombra,/e arremetendo com
bravura contra ninguém, e sendo depois a pura sombra de si mesmo,/por si mesmo
vencido. É o seu grande exercício.”
A menção ao touro, na tradição grega, traz o simbolismo da força e do
arrebatamento, exemplares no Minotauro. Esses animais eram consagrados ao deus
dos mares, Posêidon, e a Dionísio, deus da virilidade e do vinho; os touros
selvagens significavam na mitologia a violência sem freios. Em Fedra, de Racine,
por exemplo, Hipólito é morto por um touro que vem do mar,
A onda se aproxima, quebra, e, numa avalanche de espuma, vomita aos
nossos olhos um monstro furibundo. A cabeça enorme é armada de chifres
93
pontiagudos (...). Touro selvagem, dragão inominável, o dorso corcoveando
em espirais tortuosas, seus gemidos sem fim estremeciam as encostas
190
.
Jorge Luis Borges fez menção de conhecer a poesia de Cecília
Meireles, mas mesmo sem um juízo do expresso do escritor a respeito do verso, o
mar “correndo como um touro azul por sua própria sombra” não faz feio ao lado do
“caminho da baleia” de suas kennings. É uma imagem notável que transfere a fúria
do animal ao mar, o qual lhe retribui doando sua cor, numa composição de
elementos díspares ajustando à perfeição cor e forma. Num belo exemplo das
metáforas complexas combinadas a imagens complexas propostas por Hester, é
preciso “ver como” a curva das ondas, adornada pela espuma clara, tem um ajuste
perfeito na meia-lua dos chifres do touro. O furor solitário do animal na arena é o
veículo, como diria I. A. Richards, exato para propor a metáfora das vagas
arremetendo contra o nada, aterminarem em pequenas gotas, como o suor que
escorre dos músculos do animal em fúria.
Continua a ode ao mar
“Não precisa do destino fixo da terra,/ ele que, ao mesmo tempo,/ é o
dançarino e sua dança./Tem um reino de metamorfose, para experiência:/ seu corpo
é o próprio jogo,/e sua eternidade lúdica/não apenas gratuita: mas perfeita.”
191
, aqui
se apresentam versos de um lirismo encantatório, revolvendo-se continuamente em
voluptuosas piruetas, menções aos volteios de um dançarino incansável que brinca
à volta dos próprios gestos num tempo infinito.
“Baralha seus altos contrastes:/ cavalo épico, anêmona suave,/ entrega-
se todo, despreza tudo,/ sustenta no seu prodigioso ritmo/jardins, estrelas, caudas,
antenas, olhos,/ mas é desfolhado, cego, nu, dono apenas de si,/ da sua terminante
grandeza despojada.”
A grandiosidade e o vigor dos seus habitantes, alguns de potência
comparável aos garanhões épicos, abriga também a delicadeza pulsante das
anêmonas, essas pequenas criaturas semelhantes a flores que dançam no ritmo do
mar, e que são símbolo do efêmero, da alma aberta às influências do espírito.
190
RACINE, Jean Baptiste. Fedra. Trad. Millôr Fernandes. Porto Alegre: L & PM, 2001. p. 101.
191
O verso faz referência a um ensaio, “Acerca do Cemitério marinho, do próprio Valéry, em que ele
compara as artes da Poesia e da Dança, opondo a primeira à prosa: “Assim, na arte da Dança, com o
estado do dançarino (ou do amante de balés) sendo o objetivo dessa arte, os movimentos e os
deslocamentos dos corpos não têm qualquer limite no espaço nenhum objetivo visível; nada que os
anule ao se juntar (...)”. In: VALÉRY, Paul. Acerca do Cemitério marinho. Variedades. São Paulo:
Iluminuras, 2007. p. 165.
94
A preocupação mística de Cecília se mostra nas últimas cinco estrofes,
em versos que transmutam o eu lírico em água, “Aceita-me apenas convertida em
sua natureza:/plástica, fluida, disponível,/igual a ele, em constante solilóquio”; e nos
seguintes, “E eu, que viera cautelosa,/por procurar gente passada,/suspeito que me
enganei,/que outras ordens, que o foram bem ouvidas;/que uma outra boca
falava; não somente a de antigos mortos,/e o mar a que me mandam não é apenas
este mar.”
É revelada no poema uma longa alegoria do passado ancestral lusitano
de Cecília, agregada ao misticismo que elege o oceano como espaço de
interlocução privilegiado, unindo as três pontas de seus temas favoritos, a tradição
portuguesa, os seus mortos e o oceano onde está “(...) a pequena concha
fervilhante,/ nódoa líquida e instável,/célula azul sumindo-se/no reino de um outro
mar:/ah! do Mar Absoluto.”
“Caramujo do mar” (MA, 477) nos apresenta um eu lírico curioso, um
caramujo que fenece na areia da praia e relembra seu passado enquanto observa o
autoprocesso de desfazimento. Na introdução e na conclusão, feitas por outro eu
lírico, um dístico denuncia o quanto a situação do caramujo é precária, “Caramujo do
mar, caramujo,/ nas areias seco e sujo”.
Fala o caramujo: Fui rosa das ondas, da lua e a aurora,/e aqui estou nas
areias, cujo/ pó vai gastando meu dourado flanco,/sem azuis e espumas, agora.//”
Ele inicia seu discurso relembrando a antiga condição de importância,
quando foi “rosa das ondas, da lua e da aurora”. O estágio de “ver e pensar”, no
caramujo e na rosa, nos faz refletir em que medida tais termos se aproximam. O
simbolismo da rosa esprimeiramente ligado ao caramujo em razão da forma que
se desdobra em direção ao centro, mas a rosa, além de símbolo das águas
primordiais, é objeto de perfeição acabada. Seu significado também está ligado ao
do coração de Cristo, nos Rosa-cruzes e na Divina comédia. Em Mar absoluto a flor
ainda comparece em outros poemas, ligada ao misticismo da poesia persa
192
, onde
tem lugar privilegiado nos cinco “Motivos da rosa”.
192
Saadi de Shiraz, poeta do século XIV, tem poema notáveis em The Orchard, O Jardim das rosas,
mas Cecília menciona o autor do Rubayat, Omar Khayyam, que também se dedica ao tema (Nota da
A.).
95
Depois de agregados os predicados da rosa ao caramujo, a dimensão
pictórica acrescenta a imagem que permite perceber e “ver como”, e em que medida,
o formato do caramujo e da rosa coincidem,
Na referência dividida, a epoc suspende o significado de rosa e
caramujo para um naturalista, por exemplo, para agregar uma acepção nova
formando a metáfora do caramujo como rosa, um coração pulsante das ondas, da
lua e da aurora.
Outro aspecto relevante no poema é a variedade da paleta de cores, onde
rosa entra também com sentido de cor, e ainda o dourado, o azul, o branco. A
textura seca da areia contrasta com o brilho da carapaça do caramujo, que fica
opaco longe do mar, aqui por sinédoque, “sem azuis e espumas”.
Nas três estrofes seguintes, “Vai secando ao sol meu coração
branco,/meu coração d‟água, divino, divino,/onde a origem do mundo mora.//Vou
ficando ao vento todo cristalino,/quanto mais me perco, me transformo e fujo/do
intranqüilo mundo de outrora.//Minha essência plástica e pura/docilmente se
transfigura /e vai sendo vida sonora.”, alguns pontos importantes; o primeiro, no
coração que é branco, de água, da mesma água onde se origina a vida, confirmando
a sacralidade do caramujo. A secura num sentido espiritual designa o estágio
transitório da alma na ascensão ao místico.
Aqui a imagem não tem cor, é branca, de água ou cristalina, mas longe de
ser mera variação estética, ela permite observar a lenta aniquilação que vai
consumindo e desaparecendo com a matéria, aesta ser transfigurada em “vida
sonora”, e aqui alcançamos o outro significado de caramujo, o da concha cuja forma
e profundidade lembram o órgão feminino, como se percebe nas pinturas da
americana Georgia O‟Keefe, e também no pavilhão da orelha, “Órgão da percepção
auditiva, instrumento da percepção intelectual, e a pérola, é, no caso, a palavra, o
Verbo”
193
.
Emparelhando tais campos semânticos, por trás da figura do caramujo
es desenhado o aedo em forma feminina, com o apagamento imagético como
metáfora da expiração próxima do “Morto vivo, em silêncio rujo;/da praia rasa,
absorvo a altura,/ e celebro as ondas, as luas, a aurora...
194
/as águas que dançam, a
193
CHEVALIER, Jean. GHEERBRANT, Alain. Op. cit., p.Op. cit., p. 150.
194
A aurora é o símbolo da esperança e do reencontro com a luz. Op. cit., p. 101.
96
espuma que chora...//, e também da poeta que declama o dístico antes de dar a voz
do eu lírico ao caramujo, pranteado nesse adeus apenas pelas ondas do mar.
Em “Beira-mar” (MA, 488), o eu lírico declama:
“Sou moradora das areias, das altas espumas: os navios/passam pelas
minhas janelas/como o sangue nas minhas veias,/como os peixinhos nos rios...//”
Em voz feminina, a afinidade marinha relaciona a água salgada na qual
estão os navios e os peixes ao sangue que corre pelas artérias, conjugando o fluxo
dos elementos líquidos à estrutura radicular dos vasos sanguíneos, numa metáfora
sutil entre o fluido que nos mantém vivos e a razão de viver no mar.
Na segunda estrofe, uma oitava, “Não têm velas e têm velas;/e o mar tem
e não tem sereias; e eu navego e estou parada,/vejo mundos e estou cega,/porque
isto é mal de família,/ser de areia, de água, de ilha.../E até sem barco navega /quem
para o mar foi fadada.//”, o poema se divide entre o oceano real de navios sem as
mitológicas sereias, navegando pelo mundo, e o outro, de barcos à vela circulando
em águas habitadas por mulheres-peixe, percebido quando o eu lírico fecha os
olhos, quando está parado. Nos dois últimos versos, descobrimos quem é o
navegante que viaja em navios de verdade e também nas barcas da imaginação,
“Deus te proteja, Cecília,/ que tudo é mar e mais nada”, reunindo em volta do eu
poético, as duas metades da realidade e do sonho.
“Evelyn” (MA, 489) revela o desejo do eu lírico de preservar do
esquecimento essa figura feminina:
“Não te acabarás, Evelyn.//As rochas que te viram são negras, entre
espumas finas;/sobre elas giram lisas gaivotas delicadas,/e ao longe as águas
verdes revolvem seus jardins de vidro.//”
A imagem do poema é quase uma figura padrão do nosso imaginário
marítimo, com espumas brancas batendo em rochas negras e gaivotas circulando
pelo céu, com o verde mar ao fundo. A poeta quebra o arquétipo ao adicionar os
“jardins de vidro”, palavras que remetem às algas presentes na flora marinha
proporcionando a metáfora das plantas mergulhadas no oceano.
A decisão é reafirmada pelo eu lírico “Não te acabarás, Evelyn.//Guardei o
vento que tocava/ a harpa dos teus cabelos verticais,/e teus olhos estão aqui, e são
conchas brancas/ docemente fechados, como se vê nas estátuas.”
A relação entre as cordas do instrumento e os fios dos cabelos de Evelyn
se completa com “verticais”, numa referência às longas madeixas e aos compridos
97
fios da harpa. No poema, os tempos verbais passados guardam a indicação de que
essa situação se alterou, e que agora ela descansa, de olhos fechados como
conchas brancas, entre os jardins de vidro.
“Guardei teu lábio de coral róseo/e teus dedos de coral branco./E estás
para sempre, como naquele dia,/comendo, vagarosa, fibras elásticas de
crustáceos,/mirando a tarde e o silêncio/ e a espuma que te orvalhava os pés.
Era costume guardar os fios da cabeleira por sua ligação com a força
vital, como Sansão na Bíblia. Mas a beleza de Evelyn é relembrada através de cores
existentes no jardim do mar, como os corais brancos e rosados, enquanto o eu lírico
rememora um certo dia em que a maré roçava, e que vai se perpetuar para sempre,
pois, “Eu te farei aparecer entre as escarpas, sereia serena/ e os que não te viram
procurarão por ti/ que eras tão bela e nem falaste.
ainda um raro terceiro interlocutor do eu lírico, “Evelyn! disseram-
me,/apontando-te entre as barcas.//E eras igual a meu destino://Evelyn entre a
água e o céu./Evelyn entre a água e a terra./Evelyn sozinha entre os homens e
Deus.”
Evelyn, que agora vive para sempre na água, é como o fado do eu lírico,
um ser entre a terra dos homens e o u de Deus, guardando a metáfora não do
perecer, mas do esquecimento que arrasta, depois da partida do corpo, a memória
do espírito que o eu poético tenta resguardar.
Outro dos poemas na seleção de Mar absoluto é “Canção” (MA, 550),
dedicado a Norman Fraser, e composto na voz de um eu lírico masculino:
“Vela teu rosto, formosa,/que eu sou um homem do mar:/Que de fazer
de uma rosa quem vive de navegar?/- se qualquer vento a desfolha,/qualquer sol a
faz secar,/se o deus dos mares não olha/por quem se distrai a amar?”
Aqui o eu lírico é um marinheiro que inicia o poema com uma advertência
à sua interlocutora, comparada à delicadeza de uma flor que escapa do simbolismo
que lhe foi dado nos poemas anteriores, referida às suas características estéticas
como textura aveludada, cor e perfume. A rosa é aqui uma metáfora da impotência
humana diante das forças da natureza como o vento, o sol e a violência dos mares,
onde paira a sombra de Netuno, um deus desapiedado.
“Pela grande água perdida,/anda, barca sem amor!/Cada qual tem sua
vida:/ uns de deserto, uns, de flor./Vela teu rosto, formosa,/ que eu sou um homem
do mar./Poupa ao teu cetim de rosa o sal que ajudo a formar...”
98
Na última estrofe, o marinheiro observa a vastidão marinha em companhia
da solidão, e avisa a flor dos perigos que ela corre na maresia. Nas cantigas de
amigo, a presença por trás dos versos era, na verdade, de amantes; aqui, o poema
permite uma leitura inversa, em que a relação entre a rosa e o homem do mar é na
verdade uma metáfora para as relações humanas, entre as mais fortes, e as mais
delicadas e sujeitas aos desgostos.
Em “Noturno” (MA, 452), o eu lírico viaja por um mar ignorado:
“Brumoso navio/o que me carrega/por um mar abstrato./Que insigne
alvedrio prende à idéia cega/teu vago retrato?//A distante viagem/adormece a
espuma/breve da palavra:/ - máquina de aragem que percorre a bruma/e o deserto
lavra.//”
A figura presente diz navegar por mar desconhecido, num navio
misterioso. Mesmo que a imagem para essas linhas seja clara, concreta, o tom
poético nos remete para um significado que ultrapassa o literal. uma pergunta
sobre a quem cabe a decisão fatal, expressa em “idéia cega”, dessa travessia em
que a metáfora para o interlocutor é “vago retrato”, e que não encontra resposta,
mas o grupo de palavras incluindo brumoso, abstrato, cega, vago, „”breve‟‟,
„‟bruma, já indica um cenário ilusório que requer uma identificação fora da realidade
palpável.
“A distante viagem/adormece a espuma/breve da palavra:/ - máquina de
aragem/que percorre a bruma/e o deserto lavra.//Ceras de mistério/selam cada
poro/da vida entregada./Em teu mar, no império/de exílio onde moro./tudo é igual a
nada.//”
Após o tempo longo da travessia, uma metáfora indica o metapoema
expressando a palavra como “espuma breve” e, unida à efemeridade do poema,
exibe a descrença do passageiro, corroborada pela sua descrição da poesia como
fazedora de ar, a “máquina de aragem” que viaja arando o deserto. A idéia da
palavra como uma semente que brota, e aqui cai no deserto, era expressa na
bíblia e foi aproveitada pelo padre Vieira no “Sermão da Sexagésima”. Nos termos
“império de exílio” e “tudo é igual a nada” está expresso um profundo niilismo.
“Capitão que conte/quem és, porque existes,/deve ter havido./Eu? bebo
o horizonte.../Estrelas mais tristes./coração perdido.//Sonolentas velas/hoje
dobraremos:/ - e a nossa cabeça./Talvez dentro delas/ou nos duros remos/teu
NOME apareça.
99
O eu lírico ignora a identidade desse interlocutor, e “deve ter havido”
ilustra a possibilidade de que tal curiosidade não se restringe a quem fez a pergunta,
que responde de si, “bebo o horizonte”, num apelo sinestésico em que o sentido da
visão é evocado por meio do paladar. Em “estrelas mais tristes”, a expressão do eu
lírico empresta à imagem do céu noturno seu próprio estado de ânimo, reforçado
com “coração perdido”. Coração não é guarda-chuva, para ser perdido, logo, enseja
o desgosto dessa figura que está aportando depois da lenta travessia, como nos
revela a última estrofe, com “sonolentas”, e “dobraremos” as velas. No poema, o ato
de mudar de direção vem seguido de “cabeça”, que aparece em lugar de olhos, pois
a chegada se vislumbra. Quem sabe, diz o eu lírico, essa identidade misteriosa
venha impressa, como o nome dos navios, nessas velas ou nos remos.
Esse melancolia mostra o eu lírico numa travessia em que o navio, o mar
e o companheiro são ignorados, enquanto especula sobre a eficácia do poema e,
de modo obscuro, aponta a metáfora velada dirigida para indagações metafísicas. A
noite, o oceano infinito envolto em neblina, o navio desconhecido, todos os
elementos do imaginário comum dos ambientes misteriosos são utilizados no poema
para criar o espaço propício à sensação de fantasmagoria, inclusive, com a
estratégia de perguntas não respondidas a um interlocutor que não se revela.
3.2.4. À luz de um Retrato natural (1949)
Retrato natural é um ponto diferenciando na poética de Cecília Meireles
por expor, ao contrário dos poemas ligados à temática marinha vistos até este ponto,
um conjunto mais voltado para a presença da vida longe da água, em terra; nesse
conjunto, são observadas outras manifestações da natureza e é privilegiada nos
poemas uma visão luminosa e ensolarada, substituindo o cenário lunar que paira em
boa parte dos seus versos mais melancólicos.
Todavia, é preciso alertar de que tal juízo refere-se à totalidade da obra,
editada em 1949, e não ao grupo de poemas focalizando as metáforas marinhas que
constituem o núcleo desse trabalho e serão analisados a seguir. Voltamos à crítica
de Mário de Andrade sobre a falta de datas, com o indício de que um poema de
Viagem, “Corpo no mar”, tem correspondência estreita com o “Pranto no mar” que
aparece em Retrato natural, publicado dez anos após o primeiro.
100
O poema de Viagem traz os termos „água‟, „barca‟, „vela‟, „olhos‟, e a
deprecação “Mas é tempo perdido!”, enquanto “Pranto no mar” responde com „água‟,
„barca‟, „mastro‟, „olhos‟, e a deprecação muda o tempo do verbo, “Mas foi tempo
perdido.”, além das correspondências como „baía‟ por „porto‟, „funda cova‟ por
„caixão‟, e „sombra‟ por „escuridões‟.
Mesmo que seja possível, duvidamos que Cecília tivesse buscado
inspiração em papéis de mais dez anos, quando a parte mais inspirada de Retrato
natural está nitidamente voltada em outra direção; mantendo o mesmo nível poético,
mas um tanto afastada de seu espectro nostálgico, ela compõe versos luminosos
como os de “Ar livre” (RN, 600), A menina translúcida passa./Vê-se a luz do sol
dentro dos seus dedos./Brilha em sua narina o coral do dia.” Por conta disso, em
nosso parecer os poemas relacionados ao oceano reunidos no volume têm boa
probabilidade de pertencer ao período de trabalho que compreende a fase que vai
de Viagem a Mar absoluto.
Os primeiros versos de Retrato natural são os do poema “Apelo” (RN,
601):
“Abri na noite as grandes águas/criadas no tempo de chorar./Levantai os
mortos do sonho/que trouxestes para viajar./Fechai os olhos, despedi-vos/atirai os
mortos ao mar!//
O poema abre com uma invocação que lembra o ritmo e a verbalização
de um trecho bíblico, como um ordenamento sagrado que deve ser seguido para
que tudo corra bem. No primeiro verso, a abertura da águas, compartilhando do
simbolismo judaico-cristão, nos leva diretamente ao Mar Vermelho onde as águas se
abriram para permitir que o povo judeu se libertasse do cativeiro do Egito. O adeus
necessário aos mortos implica deixar para trás uma parte do passado e a voz ordena
que haja uma despedida, numa metáfora que significa o descanso para quem não
pode cumprir essa viagem.
“Por amor às vossas estrelas,/chamai ventos de solidão./Em voz alta,
dizei responsos,/descarregai o coração!/Aos mortos que descem das águas,/mandai
amor, pedi perdão!”
Na segunda estrofe, a fala ordenatória instrui o interlocutor do eu rico a
entoar cânticos noturnos, numa voz imperativa que colabora para emprestar aos
versos um tom de hierofania
101
“Fazei-vos marinheiros límpidos,/Dizei que, à procura dos deuses,/com
um rumo sobrenatural,/necessitais da despedida/de toda lembrança mortal.”
O poema continua a ordenar as tarefas necessárias para essa espécie de
“ablução” espiritual, palavra a que somos conduzidos pelo adjetivo emprestado aos
marinheiros, “límpidos”, aproximado do sentido de pureza. Nessa estrofe, após as
ordens, a voz esclarece a necessidade de libertação dos mortos antes da viagem
para esse distante mar, um rumo sobrenatural. Mesmo pontuado por metáforas, em
poucos poemas Cecília aborda o tema da passagem entre vida e morte de maneira
tão direta.
“Ide, com o esbelto movimento,/a graça da libertação,/à proa das naves
solenes/que aos deuses vos transportarão.//Mas não fiteis a densa vaga/ que se
arquear em redor de vós!/- O rosto dos mortos flutua para sempre. E é um longo
cometa a aérea franja da sua voz.”
O eu lírico ordena ao seu interlocutor que vá, mas não sem antes lhe
dirigir uma advertência, tal como na Bíblia e na mitologia grega
195
, “não fiteis”. Na
destruição de Sodoma, os anjos dizem a Ló, “não olhes para trás(Gen. 19-17), para
não se deixar arrastar pelo que ficou. Em vez do fogo bíblico, no poema é uma
pesada onda o elemento da destruição. O alcance do lamento dos mortos se
propaga no céu, tão longo e tão belo como a cauda de um cometa, numa construção
singular unindo o comprimento da voz ao astro brilhante no firmamento.
A metáfora do poema adverte que a dificuldade de enfrentar a morte não
reside somente na nossa angústia de abandonar a vida, mas também nos afetos
que nos prendem a ela, e talvez seja essa a parte mais dolorosa.
“Apresentação” (RN, 606) contém apenas oito dísticos onde o eu lírico se
apresenta unindo beleza e simplicidade nos substantivos abstratos aliados à
concretude da imagem nesse auto-retrato metafórico da marinheira-poeta:
“Aqui está a minha vida esta areia tão clara/com desenhos de andar
dedicados ao vento traz a metáfora da existência, definida na imagem luminosa da
areia levada pela brisa, um exemplo perfeito de destino volátil.
“Aqui está minha voz esta concha vazia,/sombra de som curtindo o seu
próprio lamento.”, aproxima voz e concha alinhando as parecenças, depois aderindo
a imagem da garganta como produtora de som à conformação oca que ambas m
195
SCHWAB, Gustav. As mais belas histórias da antiguidade clássica. o Paulo: Paz e Terra, 1996.
p. 123.
102
em comum; Cecília brinca com a metáfora, em “sombra de som” há um eco que
ressoa tal como a concha, no “próprio lamento”.
“Aqui está minha dor este coral quebrado,/ sobrevivendo ao seu patético
momento”.
A capacidade de relacionar amargura e beleza encontra na forma do coral
um exemplo perfeito para encarnar essa dor tão mansa. Irregular, eriçado, cortante,
esse animal simboliza na natureza os três reinos, animal, vegetal e mineral.
Segundo uma lenda grega, ele teria surgido do sangue da Medusa, quando Perseu
decepou sua cabeça, o que “parece coerente, segundo a dialética interna dos
símbolos, quando se atenta para o fato de que a cabeça da Medusa tinha a
propriedade de petrificar os que a fitavam”
196
.
“Aqui está minha herança este mar solitário,/que de um lado era amor e,
do outro esquecimento.”
A última estrofe está reservada para o legado do eu lírico, um mundo de
água subdividido entre afeição e olvido nessa minúscula biografia que reúne em si o
mínimo essencial, definindo a vida, a obra, os tormentos e a herança das suas
afeições. É uma espécie de versão poética de necrológio, dentro dos termos em que
a pessoa mais gostaria de se ver apresentada, e uma espécie de epitáfio
antecipado.
Vejamos os versos de “Dia submarino” (RN, 637):
No fundo do mar/estão entretidos/os náufragos.//Tão entretidos, tão
entretidos,/que não sentem a água pelos seus vestidos.//E não precisam
chorar;/porque o mar é só de lágrimas./Só de lágrimas, o mar.//A água é diamante
197
em seus olhos parados./E há mágicas luzes por todos os lados.”
“Não tem sede, nem fome./Livres agora, para sempre, os lábios,/sem
palavras, sem sorriso,/sem memória nem do seu nome.//ah, tudo livre agora,/ não se
fala nem se chora”
É uma tétrica liberdade a desses lábios sem serventia nem para comer,
nem para beber, sorrir, chorar ou falar, combinados aos estáticos - e duros - olhos
de diamantes.
196
CHEVALIER, Jean. GHEERBRANT, Alain. Op. cit., p. 283.
197
O diamante representa, com sua limpidez e luminosidade, o símbolo maior da perfeição, mesmo
que seu brilho não seja benéfico. Op. cit., p. 338.
103
Esses versos guardam alguma semelhança com o poema “Naufrágio
antigo”, que será analisado no capítulo cinco, e que faz parte do conjunto de Vaga
música. A principal imagem do poema o os náufragos, meninos afogados que
estão no fundo do mar. Mais do que melancólica, ela é dolorosa quando vai
colocando, ao longo dos versos, a visão das roupas, uma característica da
civilização que ali está deslocada, traz a cena para perto da realidade humana e lhe
dá um aspecto trágico.
“Mas os braços dos meninos movem-se ao peso das águas, pois são
leves, são de limbo, líquido limbo das mágoas”.
A estrofe traz de volta ao poema uma imagem nítida com os braços das
crianças flutuando no fundo do mar, e recupera o quadro ampliado dessa visão
tenebrosa reforçando-a com “leves” e “limbo”; na primeira palavra, o significado
semântico, de peso ínfimo, nos transporta para a delicadeza da forma infantil,
enquanto a outra conduz ao estado de olvido que paira nas profundezas marinhas,
de um esquecimento atemporal.
“E as mães pensam/que talvez as crianças/precisem colher as algas,
198
//e
que estão sofrendo as crianças,/por inúteis esperanças,/sem palavras e sem
lágrimas...//Isso é que tolda a alegria/no paraíso dos náufragos.”
A última estrofe desloca o espaço para as mães, preocupadas com a
obscuridade do destino de seus filhos, persistindo nas mesmas preocupações
maternas rotineiras, fome e solidão.
Como “Apelo”, “Dia submarino” também fala da dolorosa separação entre
os vivos e os mortos; porém, quando o poema é colocado na perspectiva dessa
separação entre mães e filhos, ainda crianças, a metáfora se torna bem mais sofrida.
“Desenho” (RN, 655) é um pequeno poema de duas quadras onde o eu
lírico adverte o pescador sobre o peso da justiça divina:
“Pescador o entretido/numa pedra de sol,/esperando o peixe ferido pelo
teu anzol,//há um fio do céu descido/sobre o teu coração:/de longe estás sendo
ferido/por outra mão.”
Na primeira quadra, a imagem se apresenta límpida, pueril, com o
pescador sentado sobre uma pedra mirando o horizonte, nas mãos uma vara de
pescar com a linha perdida na água, enquanto aguarda a sorte.
198
As algas, no mar, simbolizam uma vida que não pode ser aniquilada, o alimento primordial. Op.
cit., p. 30.
104
Na segunda quadra, a essa imagem une-se um longo fio descido do u
sobre a figura do pescador, quase como um desenho de cartunista; Deus também
pesca, diz essa metáfora marota.
“O afogado” (RN, 655) é um prenúncio dos poemas que surgiriam três
anos depois, em 1952, com Doze Noturnos de Holanda, versos de uma atmosfera
entre o onírico e o fantasmagórico, marcados pela água e pelas cores frias:
“Pelo mar azul,/pela água tão clara,/caminhava o morto/esta
madrugada.//Subia nas vagas,/bordado de espuma,/seu corpo sem roupa,/sem força
nenhuma.//O sol cor-de-rosa,/nascido nas águas,/via o navegante/procurar a praia.”
quatorze estrofes compostas em quadras, de ritmo menos sincopado
que nas obras anteriores, onde Cecília consegue a proeza de compor versos
elegantes sobre um cadáver que vem dar à praia usando um par de sapatos. Ela
empresta ao corpo, por meio do calçado, uma referência não só humana, mas
civilizatória, seguida de uma capacidade que ele não possui mais, a de caminhar.
Além disso, adorna o corpo nu e desprotegido com os bordados da espuma,
tratando da figura como se ela buscasse chegar à terra por vontade própria,
investida de uma dignidade humana, e não como o peso inerte de um morto. Na
alvorada de “róseos dedos” que lembra Homero, testemunha solitária da derradeira
viagem, o sol assiste ao flutuar sem heroísmo e sem glória do navegante sem barco.
Sem voz e sem olhos,/chegava de longe./Chegava e ficara além do
horizonte./Por dias e noites/viera atravessando/caminhos salgados/como o suor e o
pranto./Dançarino estranho/de passos macabros,/com o corpo despido/e grossos
sapatos.”
O eu lírico reforça a perda das faculdades sensórias com a morte, não
apenas recordando, mas insistindo naqueles detalhes particulares que diferenciam,
como timbre e cor dos olhos. Vir de longe significa estar ainda mais distante da
origem nesse estágio de abandono. O tempo transcorre entre as estrofes do poema,
como se percebe pelos tempos verbais, pois ele “chegava”, mas “ficara” atrás da
linha de rebentação. Os caminhos salgados, aqui, tanto podem ser o mar, quanto
uma metáfora para o desgosto, a agonia.
A tétrica dança do caver flutuando nas ondas é acentuada pelo
aparecimento do par de sapatos, novamente chamando a atenção para o fato de
que ali um homem. De alguma maneira, um corpo nu é mais aceitável e está
mais integrado à natureza, mas, do mesmo modo que os “vestidos” dos meninos em
105
“Dia submarino”, esses adereços de civilidade transtornam a idéia de uma
integração perfeita entre homem e mundo natural.
Dançando e dançando,/por noites e dias,/chegou dentro da alva/às
areias frias.//O mar e a neblina/que um morto navega/são muito mais fáceis/que, aos
vivos, a terra.//Vencera a inconstante /planície intranqüila/numa silenciosa,/cega
acrobacia.”
Dançar é outro prazer humano que terminou para a figura que chega à
terra com a alvorada. Os versos seguintes talvez sejam uma explicação metafórica
para essa morte, a dificuldade de viver. E aqui vale para o outro verso, também; nós
não sabemos se a planície que foi vencida com uma acrobacia cega nos indica um
suicídio ou se são apenas as marés trazendo o corpo para a beira da praia.
E então se deteve/seu corpo dobrado/por aquele imenso,/póstumo
cansaço.//Era como os peixes/finalmente quietos:/ o peito, gelado/ e os olhos,
abertos.//Um fio de sangue/corria em seu rosto/ irreconhecível/de secreto morto.”
Quando chega à terra, o corpo pára, não se move, perto do “descanse
em paz”, e agora o eu lírico vai retirando a humanidade do cadáver, comparado aos
peixes mortos na beira da praia, gelado e de olhos abertos. Um filete de sangue
relembra a violência, mas, como os peixes, ele permanece sem identidade.
“Miravam com pena/sua dúbia face./Quem era? Quem fora?/Nas ondas
gastara-se.//Nu como nascera/ali se caía./Só tinha os sapatos:/lembrança da vida.”
Nas duas últimas estrofes, testemunhas olham tristonhas para o cadáver,
curiosas de saber quem era, ou quem fora, numa metáfora que usa os tempos
verbais do pretérito imperfeito e do mais-que-perfeito como demonstração de um
rápido esquecimento. O arremate do poema devolve ao cadáver sua condição inicial
de nudez ao nascer. Como única herança, um par de grossos sapatos
“O afogado” é um poema que permite uma longa discussão, mas alguns
pontos são centrais, como a chegada pela água, no nascimento e na morte, e as
metáforas da dificuldade na vida. Porém é crucial a nudez que reduz o corpo a um
estado desprotegido absoluto alcançando mesmo a perda da identidade, sem os
adornos artificiais que funcionam como uma couraça de proteção, do status no
mundo. Por fim, a extrema solidão da morte, que reduz a esse mínimo, a tão
pouco. Nem sequer sobra a posse do corpo, a mais pessoal de todas, chamado
por Cecília de “invólucro transitório”. É isso que o poema quer apontar.
106
3.2.5 A fina pedra do silêncio
O último conjunto de poemas abrange três obras, Doze noturnos de
Holanda (1952), Metal Rosicler (1960) e Solombra (1963), unidos por uma estética
da rarefação; excetuando Metal rosicler, os outros dois títulos “são as obras mais
representativas da simbologia da noite, concebidas como estado indiferenciado,
transcendente
199
.
Como já apontamos, o poema anterior tem relação direta com o conjunto
de Doze noturnos, e, entre eles, é com o de número doze que guarda maior
correspondência, então, começaremos por ele:
“Sem podridão nenhuma, jazerá um afogado/nos canais de
Amsterdão.//Quem passar entre as casas triangulares,/quem descer estas breves
escadas,/quem subir para as barcas oscilantes,/repetirá perplexo:/ um claro
afogado nos canais de Amsterdão.//É um pálido afogado, sem palavras nem
datas,/sem crime nem suicídio, um lírico afogado,/com os olhos de cristal repletos de
horizontes móveis,/ e os longínquos ouvidos recordando na água trêmula/realejos
grandes como altares,/festivos carrilhões,/mansos campos de flores. (DN, 722)
Em Doze Noturnos, Cecília constrói a figura do afogado de maneira
bastante semelhante à do poema anterior, mas transfere o espaço da praia para o
ambiente da cidade, entre os canais da cidade holandesa. O refrão conta com uma
palavra de conotação semântica forte, “podridão”. Na procura ao dicionário, a maior
parte dos sinônimos é referida ao sentido figurado, como desonestidade e
corrupção. Num dos mais belos poemas bíblicos, o Livro de Jó, quando este servo
de Deus é testado pela vontade divina, ferido por uma chaga maligna, ele “(...)
raspava com um pedaço de telha a podridão (Jó, 2-8). era justo aos olhos de
Deus, lacerado no corpo, mas de alma . No afogado do canal, o corpo está
preservado da deterioração
200
da carne e mantém a forma limpa, não em razão de
qualquer pudor por parte da autora, mas para exaltar como metáfora a pureza do
espírito que em Jó aparece por contraste.
199
MELLO, Ana Maria Lisboa de. Oriente e ocidente na poesia de Cecília Meireles. Porto Alegre:
Libretos, FAPA, 2006. p. 50.
200
O simbolismo primordial de putrefação conduz à idéia de desfazimento e renovação numa vida
nova, porém aqui ele é utilizado no sentido inverso. (Nota da A.).
107
O poema é um microcosmo da Holanda, conduzindo os olhos do leitor
através das ruas com casas de tetos triangulares, com suas estreitas escadas,
coladas uma a outra, à beira dos canais.
Tal como em Retrato natural, o afogado é desconhecido, não reclamado
por ninguém; nos versos, o eu lírico transfere os nossos sentidos para dentro do
olhar do próprio afogado, da sua visão da cidade com o balanço das águas, onde a
linha do casario tremula; o foco é alterado em favor da audição quando os sinos
badalam, e soa a antiga memória de um realejo, culminando com o sopro suave do
vento sobre a imagem dos campos, talvez de tulipas, do maior exportador de flores
do mundo.
“Sem podridão nenhuma,/jazerá um afogado nos canais de
Amsterdão.//Os lapidários podem vir mirar seus olhos:/não houve esmeralda assim,
nem diamante, nem ditosa safira./Mas ninguém pode tocar nesses olhos
transparentes,/que se tornariam viscosos e opacos, fora desse descanso/onde os
encantados cintilam.// Poderão os profetas vir mirar seus finos vestidos:/bordados de
mil desenhos comuns e desconhecidos;/ah! seus vestidos de água, com todas as
miragens do mundo,/seus nues vestidos como não nos museus, nos
palácios/nem nas sinagogas.../Mas não se pode tocar nesse ouro, nessa prata,
nessa resplandecente seda:/pois apenas se encontraria limo, areia, lodo./Porque a
morte é que o veste dessa maneira gloriosa,/a morte que o aguarda nos braços
como um belo defunto sagrado.
A autora dedica aos olhos do afogado um cuidado especial. Misturando o
brilho das águas ao reflexo das gemas que nenhum lapidador viu tão belas, outra
referência aos Países Baixos, reconhecido centro de lapidação de pedras vários
séculos, relacionando o alto valor das pedras e dos olhos.
Aqui o afogado também está literalmente nu, mas, como o rei das
histórias de Hans Christian Andersen, veste uma roupagem metafórica de grande
beleza, de ouro, prata e seda, emprestada pela dignidade da morte. Com os ricos
detalhes que o poema vai acrescentando, terminamos por compor uma imagem com
as mãos pálidas e os trajes suntuosos que cobriam as figuras dos mestres
flamengos. Tal magnificência não é encontrada nem nos museus e palácios, nem
nas belas sinagogas, em mais uma referência histórica
201
.
201
A sinagoga portuguesa de Amsterdam, a Esnoga, data de 1672 e é uma das mais antigas da
cidade. O país acolheu a comunidade judaica após a perseguição religiosa e o declínio econômico
108
Sem podridão nenhuma, jazerá um afogado nos canais de Amsterdão.//
Para sempre jazerá, e quem quiser pode vir vê-lo,/com seus cabelos estrelados,/com
suas brandas mãos flutuantes, livres de tudo,/sem qualquer posse,/com sua boca de
sorriso outonal, cor de libélula,/e o coração luminoso e imóvel, detido como grande
jóia,/como o nácar mutável, pela inclinação das horas.//Todo mundo o verá, com lua,
com chuva, com escuridão,/navegar nos canais, recostado em sua própria leveza e
claridade.”
O eu lírico delineia o afogado com a beleza dos mártires nas telas dos
grandes mestres, enfatizado pelo coração, “luminoso e imóvel”, e marcado de
maneira incisiva pelas palavras de semântica alva, como a “cor de libélula”, “nácar”,
“claridade”, como se ele brilhasse na escuridão sob um foco de luz, assim como uma
pintura de Rembrandt.
Sem podridão nenhuma,/ jazerá um afogado nos canais de
Amsterdão.//E eu sei quando ele caiu nessas águas dolentes./Eu vi quando ele
começou a boiar por esses líquidos caminhos./Eu me debrucei para ele, na borda da
noite,/e falei-lhe sem palavras nem ais,/e ele me respondeu tão docemente,/que era
felicidade esse profundo afogamento,/e tudo ficou para sempre numa divina
aquiescência/entre a noite, a minha alma e as águas.”
A noite, outro tema recorrente em Cecília, é mais um símbolo ligado
ao mar:
Em Doze noturnos de Holanda (1952) e Solombra (1963), a noite é a
imagem que traduz e pontua a viagem a um plano metafísico.
Nesses dois livros, os poemas têm entre si um fio narrativo que os
interliga e assinala o progressivo alcance da dimensão espiritual
pelo sujeito lírico, que vai revelando seus assombros e dúvidas,
suas perplexidades.
202
A nota sobre a “borda” anuncia o cair da noite e nessa hora o eu lírico
trava uma conversa com o afogado “sem palavras nem ais”, mas que permite
perceber a afinidade profunda entre ambos e o fascínio do primeiro pelo locus
aquático.
“Sem podridão nenhuma, jazerá um afogado nos canais de
Amsterdão.//Não nada que se possa cantar em sua memória:/qualquer suspiro
seria uma nuvem sobre essa nitidez.”
que se seguiu na península Ibérica, caso da família do filósofo holandês Baruch de Espinosa, que
viveu e faleceu ali (Nota da A.).
202
MELLO, Ana Maria Lisboa de. Op. cit., p. 28.
109
Nos últimos versos, o eu lírico reforça o estado de pureza e de
integridade humana do afogado, ficando dispensadas quaisquer litanias, sob o risco
de macular a sua memória, pois essa pureza intrínseca dispensa as honras do
mundo.
A idéia do corpo como envoltório temporário, que separado de sua
essência não permite mais a interação com o mundo natural, é recorrente em Doze
noturnos e aparece também no de número cinco:
“Claro rosto inexplicável,/límpido rosto de outrora,/quase de água, de
areia,/o que vai seguindo a noite/pelas nuvens, pelas dunas, desmanchado no ar de
outono,/dolorido e sorridente,/livre de amor e de sono...//”
“Pobre rosto quase de cinza/ transformado no nevoeiro/em flor de sal e de
vento, com seu perfil estrangeiro.//”
“O mar no Norte está perto,/pelas dunas abraçado./E vê passar esse rosto
de si mesmo deslembrado. /Entre as estrelas e a lua,/passa pelo mar no Norte/um
breve rosto sem datas,/curta pétala de morte.//‟
“Passa já de olhos fechados.../Intermináveis cortinas,/silêncio de água nas
flores, versões de coisas divinas...” (DN, 715)
No que Fontanier chamaria de sinédoque, o rosto conta como figura do
afogado que vaga pelas águas geladas do Mar do Norte, adjetivado como “claro”,
“límpido”, que é de areia, quase de cinza, pois essas palavras valem aqui pelo pó ao
qual todos retornaremos. Porém, o corpo está em comunhão com a água, e vai
seguindo ao longo da praia em noite de nuvens e de lua, onde é perceptível uma
escuridão e uma friagem tumulares. O cadáver desaparece do mundo com
metáforas e, após “desmanchado”, se liga a termos como “nevoeiro”, “flor de sal e de
vento”, imagens níveas ou abstratas que referem o corpo implicando também o
apagamento do espírito. Nos últimos versos, “cortinas” são aproximadas de “olhos”,
que estão com as pálpebras cerradas, agora para sempre, incapazes de ver as
flores que o eu lírico aponta como manifestações do divino.
No poema a seguir, o décimo primeiro noturno, temos versos pontuados
pela conjunção “mas”, que inicia algumas estrofes, como se o texto fosse a
continuação de uma história anterior:
“Mas a pequena areia caminha com seu passo invisível;/do cristal
quebrado, da montanha submersa,/a areia sobe e forma paisagens, campos,
países...//Mas o esquema do peixe e da concha modela seus desenhos/e desenrola-
110
se a anêmona, /e o fundo do mar imita o inalcançável firmamento./Mas a flor está
subindo, próxima,/cheia de sutis arabescos. (DN, 721)
Na verdade, essa é realmente uma história que está sendo contada
vários milênios, e da qual faremos parte apenas por um breve tempo. A areia que
forma a montanha e o cristal tem o simbolismo do inumerável, é dócil e onipresente,
e está sempre em mutação, pois “Nada se edifica sobre a pedra, tudo sobre a areia,
mas nosso dever é edificar como se fora pedra, a areia...”
203
.
Em outro ambiente, a água, os três reinos são um simulacro da vida na
terra. A areia sopra, os peixes nadam, a flor nasce, enquanto no próximo verso,
“Mas a água está palpitando entre o pólo e o canal,/viva e sem nome e sem
hora.//mas o sonho está sendo alargado como as imensas redes,/ao vento do
mundo, à espuma do tempo,/e todas as metamorfoses caídas se
agitam,/resvalando entre as malhas muito exíguas/que separam o que é vida do que
é morte.”
Tudo se move, modifica e renova, na natureza e no homem, num ciclo
perene e contínuo, mas para a água o tempo não passa, nem para a areia, e nem o
peixe e a anêmona que se agitam no fundo do mar lhe dão qualquer importância;
porém para o homem que sonha, as malhas são estreitas, a espuma do tempo,
ligeira, e a duração do tempo em que vai perdurar a nossa curta metamorfose, um
enigma.
Seguem as duas últimas estrofes:
“E a mão que dorme está sendo lavrada pela noite, pela noite que
conhece todas as veias, que protege e destrói tala e cartilagem,/a pequena larva
da água/e o touro que investe contra o nascer do dia...//Porque o dia vem. E a nossa
voz é um som que se prolonga, através da noite./um som que tem sentido na
noite./Um som que aprende, na noite,/a ser o absoluto silêncio.”
Os últimos versos desse poema de Doze noturnos de Holanda, assim
como os do poema anterior, mais e mais se aproximam da região das “terras altas”,
segundo a percepção de José Paulo Paes da poética ceciliana
204
. As imagens nos
m à mente com facilidade, pois os termos em seu sentido unilateral, dicionarizado,
têm um significado semântico delimitado e bem conhecido. Assim, forma, cor e
203
BORGES, Jorge Luis. Fragmentos de um evangelho apócrifo. In:___ Elogio da sombra. São Paulo:
Círculo do Livro, 206.
204
PAES, José Paulo. Os perigos da poesia. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. p. 34.
111
perfume entranham os versos, com a noite escura, a mão e suas veias azuis e
vermelhas, as pétalas e a flor, e por fim, a minúscula e pálida larva e o touro violento
e negro, num esquema de oposição.
Até aqui, não problemas no entendimento do poema, são imagens
simples de visualizar. Porém, estruturadas como metáforas, a situação é diferente.
Cecília adensa os significados metafóricos nas três obras, Doze noturnos, Metal
rosicler e Solombra e, para ficar nas figuras de linguagem, uma teia envolve esses
versos, de tal maneira, que não é difícil ser apanhado.
No décimo segundo noturno, algumas marcas históricas e culturais
holandesas colaboraram para estruturar a interpretação dentro de certos limites,
porém nas referências ao afogado havia um apagamento da mensagem
impossibilitando uma leitura rasa. Aqui, da mesma maneira, metáforas rarefeitas
fazem o fechamento do poema, e quanto mais aberto o significado, mais complexas
elas se tornam. Naturalmente que a leitura de um poema, mesmo compartilhando
uma memória cultural e histórica comum, sempre vai possibilitar a visão pessoal de
cada leitor, mas como diz Hester, essa nunca é uma liberdade completa, pois fica
sempre atrelada a essa memória. Assim, “lapidários” está em Doze noturnos porque
é uma profissão secular na Holanda, servindo tanto ao propósito do poema quanto
ao do poeta de localizar os versos num espaço determinado.
Portanto, os três estágios de formação da metáfora segundo Paul
Ricoeur, aliando teoria semântica e psicologia da imaginação, nessas obras de
Cecília Meireles, em razão de uma abertura de sentido maior, mais e mais
necessitam desse imaginário, tornando a tarefa de elucidá-lo mais complexa e mais
cerca dos substantivos abstratos que nos aproximam desse mundo inconsútil.
Mas voltando ao poema, a palavra “mão” está aqui como metonímia da
figura indefesa diante do poder da noite, que conhece cada “veia” e cada ser, da
larva ao “touro” ou, as águas no horizonte quando nasce o dia. “Porque o dia vem”,
diz o verso, como a água e a areia, fatalmente ele vem, e não sabemos se é o
período de sol, ou um dia temido pelo eu lírico. Mas diz a voz ser um som que
apenas se prolonga e tem sentido na noite, imagem do inconsciente e que
engendrou “o sono e a morte
205
, os sonhos e as angústias, a ternura e o engano. O
som dessa voz, talvez pertença àquela mão que toma da pena para escrever versos,
205
O verso talvez seja inspirado numa fala de Shakespeare, quando Macbeth menciona “o sono,
irmão da morte”, uma herança que já vem de Homero (Ilíada, XIV) e de Hesíodo (Teogonia, 212-213).
112
atenta ao escoar do tempo, som que “aprende, na noite, a ser o absoluto silêncio”, a
se calar, aguardando o tempo em que a metamorfose acaba.
Este noturno é um metapoema menos conhecido que “Motivo” (VI, 227);
no entanto, seu eu lírico retoma o mesmo assunto sob metáforas mais veladas, mais
complexas, como o passar do tempo, as mudanças na natureza, e suas medidas
cronológicas tão mais amplas que as nossas, além da angústia de saber, como no
poema de Viagem, “se fico, ou passo”, esperando o fatal “E um dia sei que estarei
mudo: - mais nada”.
Metal rosicler, volume de 1960, é nome retirado, segunda a epígrafe da
autora, da obra de Antonil, Cultura e opulência do Brasil (1711). Seria uma pedra
negra cujo pó, misturado a água, resulta primeiro numa tinta avermelhada, e depois
em prata. O último poema do livro, não numerado, diz:
“Negra pedra, copiosa mina/do que imita a vida e a morte;/ - e o metal
rosicler descansa.//Na noite densa que se inclina, por faca ou chave que abra ou
corte,/estremece em nue lembrança.//Pois um sangue vivo aglutina/dados
coloridos da sorte,/para uns acasos de esperança.” (MR, 1257).
Fernando Cristóvão observava como essa operação tem afinidades com a
artesania poética ceciliana, em razão da presença da água, e também por conta de
um grupo de palavras que sobressaem entre as demais, como lágrimas, pranto,
mar, chuva”, nos poemas em que a água é onipresente, quer como semema, quer
em metáforas com ela relacionadas
206
.
No terceiro poema de Metal rosicler, dizem os versos:
“O gosto da vida equórea o da lágrima na boca:/porém a profundidade
é o pranto da vida toda!/Justa armadura salgada, pungente e dura redoma/que não
livra dos perigos, mas reúne na mesma onda/os monstros no seu império/e o
amargo herói que os defronta./Sob a lisa superfície, que vasta luta revolta!/Cada
face que aparece/logo se transforma noutra (MR, 1211)
A primeira metáfora do poema é simples, a vida na água tem gosto de
lágrima, é salgada, mas se retornarmos ao clichê, “mar de lágrimas”, percebemos
que é dessa profundidade que o eu lírico fala. Nos versos seguintes, a união
peculiar do elemento líquido representado como “uma justa armadura” ligada à
imagem da redoma, transportando o mar para dentro dum aquário, num efeito
206
CRISTÓVÃO, Fernando. A alquimia poética de Metal rosicler. In: GOUVÊA, Leila V. B. Ensaios
sobre Cecília Meireles. São Paulo: Humanitas, FAPESP, 2007. p. 64-65.
113
inusitado. A capacidade de proteção é questionada em razão da luta violenta, oculta
pela placidez da superfície, entre heróis e monstros.
Lida a primeira estrofe do poema, é possível encontrar um sentido de
metapoema cujas metáforas de simbolismo sofisticado remetem ao embate entre o
poeta, solitário em sua redoma, armado de caneta e papel, e o léxico; as faces que
se transformam são as palavras, em seu sentido literal e no sentido poético.
“Nenhuma palavra existe./Horizonte não se encontra./Deus paira acima
das águas,/e o jogo é todo de sombras./Nas claras praias alegres,/é a espuma do
mar que assoma:/combate, vitória, enigma,/jamais se movem `a tona./O herói
sozinho se mede/e a memória é a sua força./E quando vence o perigo,/na vitória não
repousa:/a disciplina é o sentido/da luta que o aperfeiçoa.//”
O mesmo espírito da estrofe anterior é seguido no lamento da luta que
percebe Deus afastado desse embate, que o aedo luta sozinho. A dualidade
permanece opondo o jogo de sombras à alegria da praia, a profundeza à superfície.
Tal esforço não é aparente e passa despercebido pelo leitor, emergindo a beleza
do poema, simbolizada pela espuma clara.
A tarefa do lutador é incessante, exigindo um regramento permanente,
apoiado na lembrança, na memória que guarda a habilidade de construir esse
processo, e seu aprimoramento depende disso, disciplina e auto-regramento, para
conseguir sobreviver. Na menção à memória, cabe a mítica da linguagem vista como
manifestação divina na figura de Mnemosýne, a Memória; como uma das Musas, ela
representa a transcendência do canto e a garantia de que há nele uma manifestação
da vontade divina. Os versos também espelham o significado das lutas interiores
travadas dentro de nós mesmos, com a internalização desses esforços refletindo
externamente uma placidez que não os revela
207
.
Os últimos versos, “Deixa a medusa perfeita/em sua acúlea coroa./E a
pérola imóvel deixa/na sua sorte da intacta concha, recuperam duas figuras
marinhas muito presentes na poética de Cecília. A medusa, alva, fluida, parece não
oferecer perigo em seus tentáculos, mas também remete ao mito do herói grego
Perseu, que degolou a cabeça da Medusa, uma das três Górgonas e outrora uma
bela mulher, que possuía serpentes em vez de cabelos e petrificava quem a visse. A
simbólica da Medusa significa o inimigo a abater.
207
TORRANO, Jaa. O mundo como função de musas. In: HESÍODO. Teogonia. São Paulo:
Iluminuras, 2006. p. 16.
114
No poema de Cecília, o monstro é deixado em paz e permanece ileso
com sua coroa pontiaguda. A pérola, símbolo místico da iluminação e do nascimento
espiritual, evoca o que está oculto, abrigado, difícil de se atingir. Ela também possui
o significado da lua e do feminino, da sublimação dos instintos e da “luz intelectual
no coração”
208
. Deixada dentro da concha, mostra um saber que não aparece, que
não vem à luz. de novo a oposição entre a treva e a claridade, a ignorância e o
saber. O que a metáfora subentende é a dificuldade do poeta ao lidar com sua
matéria, a língua, que permanece intacta nesse embate, em que, por vezes, a pérola
se recusa a sair de dentro da concha.
Seguindo com Metal rosicler, no vigésimo poema são perceptíveis sinais
do progressivo esvaziamento dos dados sensíveis que resultariam num conjunto
cuja estrutura é integral quanto à forma, objeto e eu lírico, nesta que é a última obra
de Cecília, Solombra:
(MR, 1226): “Tristes /essas mãos na areia/levantando dunas.// Sonho
solitário,/vãs arquiteturas:/sopre simples brisa,/deslizem espumas,/ morrem os
zimbórios/do império das dunas/e os vultos amados/nas suas colunas.”
Mais e mais, os possíveis indícios de auxílio para adentrar na significação
do poema escasseiam, a começar pela ausência de título. Na primeira estrofe, um
terceto, a palavra “tristes” é colocada sozinha, enfatizando a melancolia do eu lírico.
Na imagem, um par de mãos mergulhadas na areia em que o ato do manuseio
implica um desejo de voltar ao ventre materno. Na arquitetura inútil em que
desmoronam as abóbadas, se percebe um templo sagrado, com as figuras dos
santos nos nichos. Toda a imagem induz a uma visão de desfazimento, nas
espumas, dunas e na brisa que sopra, e não nenhum ser vivo presente, exceto a
voz do eu lírico.
“Tristes/essas mãos na areia/trabalhando obscuras.//Voltam ao princípio
em sonhos e lutas, contra os altos ventos/e as tênues espumas./e estes grãos tão
finos - sílex e fagulhas! - /que queimam os olhos!/E as lágrimas duras/que jamais
enxugam/nem os ventos altos/nem tênues espumas...”
Volta o refrão, com a troca de um termo, “obscuras”; a imagem, após
“sonhos e lutas”, apenas permite visualizar ou sentir um sopro de vento, e as
espumas leves. O eu lírico chora um pranto interminável, que nem os ventos nem as
208
CHEVALIER, Jean. GHEERBRANT, Alain. Op. cit., p. 712.
115
espumas conseguem secar. A dureza da pedra e das fagulhas, abrasando os olhos,
retorna como adjetivo das lágrimas, com uma tênue imagem da natureza
enfurecida investindo contra o pranto dessa figura solitária.
“Tristes/essas mãos na areia/levantando dunas.//Moram longe aqueles/
das felizes ruas:/ não sabem que estradas/ longas e soturnas/ conduzem às
praias/do mar, inseguras./Não sabem de ventos,/não sabem de espumas,/dos
curvos zimbórios,/das lentas colunas,/das mãos soterradas/nestas esculturas...”
O refrão retorna ao modelo inicial, e mantém a visão das mãos com areia
escorrendo por entre os dedos, quando o eu lírico rememora um lugar longe dali, em
que há felicidade, ignorante dos perigos do mar, das praias e espumas, e dos domos
que desabam. “O domo representa universalmente a abóbada celeste. O conjunto
de um edifício que tem cúpula é, assim, a imagem do mundo”
209
. É a única
representação ligada ao mundo dito civilizado, tudo o mais é natureza onde
prevalece a violência do vento, símbolo da espiritualidade celestial.
Uma possível metáfora desse hermético poema é a chegada do eu lírico a
um sítio além do mar, do grande oceano, que não é o Atlântico, nem o Pacífico, nem
o Índico. O eu lírico chora em estado convulso, enquanto o vento sopra num cenário
de terra arrasada. Poderíamos dizer que esse é um exercício poético de visualização
do “lá”, uma prospecção do imaginário além da finitude, concorde com Eliane
Zagury, que vê na obra “exercícios místicos de morte”
210
.
Do onipresente mar, agora com praias perigosas, restam as espumas,
e é interessante notar como num certo grupo de poemas de Metal rosicler sucede
o mesmo que em Solombra, o abandono do elemento da água, substituído por outro,
o ar, marcando-se os versos com uma onomatopéia rumo à sibilância. Há um grande
número de palavras onde a autora usa o [s], simulando o sopro do vento.
Por fim, em Solombra, como tentamos demonstrar, a presença do mar é
incomum. Ela foi substituída pelos ventos e pela presença difusa do eu lírico num
cenário desolado, onírico, em que os apelos sinestésicos se mostram bastante
apagados. Elegemos alguns versos onde aparece vagamente a presença do mar:
No mar da vida, ser coral de pensamento.” (SO, 1265)
Tudo são praias onde o mar afoga o amor.” (SO, 1266)
209
Op. cit., p. 347.
210
ZAGURY, Eliane. Cecília Meireles. Petrópolis: Vozes, 1973. p. 95.
116
“Arco de pedra, torre em nuvens embutida,/ sino em cima do mar e luas
de asas brancas... /Meu vulto anda em redor, abraçado a perguntas.” (SO, 1267)
(...) olhos com jaspes frágeis de distância,/lábios em que a palavra se
interrompe:/medusas da alta noite e espumas breves.” (SO, 1267)
“Esses adeuses que caíam pelos mares,/declamatórios, a pregar sua
amargura,/emudeceram: já não há tempos nem ecos.” (SO, 1281)
Tais versos escapam do foco de analisar as metáforas em que o espaço
preferencial do poema seja o oceano, mas é perceptível que a preferência da autora
pelo elemento definha. A presença do vocabulário relativo ao oceano é reduzida
consideravelmente, tomando em conta as obras anteriores. Ainda que se sejam
contados, entre os vinte e oito poemas de Solombra, aqueles em que o espaço do
poema claramente não é o mar, mas onde se vêem menções soltas ao universo
marinho, há uma redução significativa.
Cecília Meireles é uma poeta que pode contar uma rara unidade poética
em sua produção, a partir do princípio. Mesmo os volumes exilados por ela são
importantes para se perceber o desenvolvimento da sua obra, contudo, colocados
lado a lado com os seguintes, sofrem do pecado fatal de não alcançar um padrão
estético tão elevado numa seleção que nunca é menos que rigorosa.
Os blocos estéticos em que dividimos sua obra, para caracterizar a
coesão de sua tessitura metafórica, se intercomunicam e jamais se distanciam
demasiado do rigor da forma, da escolha estética, do padrão vocabular, e da sutil
melopéia percebida sempre que se lê um poema de Cecília Meireles.
4. DE AREIAS, ILHAS E CORAIS: O MAR DE SOPHIA
4.1 O NOME DAS COISAS SEGUNDO SOPHIA ANDRESEN
Um poema de João Cabral de Melo Neto, grande amigo da poeta, abre a
Antologia publicada pela Portugália Editora, em 1968, “Elogio da usina e de Sophia
de Mello Breyner Andresen”:
“O engenho bangüê (o rolo compressor,/mais o monjolo, a moela de
galinha,/e muitas moelas e moendas de poetas)/vai unicamente numa direção: na
ida./Ele faz quando na ida, ou ao desfazer/em bagaço e caldo; ele faz o informe;/faz-
des-faz na direção de moer a cana,/que deixa; e que de mel nos moldes/madura
só, faz-se: no cristal que sabe,/o do mascavo, cego (de luz e corte).//2//Sofia vai de
ida e de volta (e a usina);/ela desfaz-faz e faz-refaz mais acima,/e usando apenas
(sem turbinas, vácuos)/ algarves de sol e mar por serpentinas./Sofia faz-refaz, e
subindo ao cristal, em cristais (os dela, de luz marinha)”
211
.
Apresentados por amigos comuns quando João Cabral era cônsul na
Espanha, nessa ocasião ele elogia os poemas de Sophia, onde encontrava muitos
“substantivos concretos”
212
. Nesse louvor de Cabral à amiga, Fernando J. B.
Martinho observa como se conservam elementos representativos do universo
cabralino ao nível “(...) lexical, imagético, tmico e sintático”, ou seja, o poeta não
abdica de si mesmo nesse processo, nem “do seu mundo, da sua linguagem
213
.
Entretanto, se o autor de “O cão sem plumas” é fiel a si ao enaltecer Sophia, nem
211
MELO NETO, João Cabral de. A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1997. p. 7.
212
Entrevista de Sophia Andresen a Maria Maia. Sophia, substantiva e concreta. In: Jornal da UBE.
n. 105. out.2003, p. 12.
213
MARTINHO, Fernando J. B. Modernismo português e brasileiro: olhares e escritas cruzadas. In:
Scripta. Belo Horizonte: Editora PUC Minas. V. 6 n. 12. p. 205.
118
por isso mascara a feição poética que é própria a ela, nas palavras finais que a
definem em cristais “de luz marinha”, até porque a secura solar dos seus versos não
divide com a autora de Dia de Mar a preferência pelo elemento aquático.
Mas a influência de Cabral não escapa a Eugênio de Andrade quando
nota que Ela vinha de Pascoaes, dos românticos ingleses (toda a vida foi fiel a
Byron), dos românticos alemães, particularmente Hölderlin e Rilke. (...) encontrou
Camões no seu caminho, e Pessoa (ou, se preferem, Ricardo Reis) e o brasileiro
João Cabral”, e foi a autora “dos mais notáveis poemas da Revolução de Abril”
214
.
Na descrição de Eduardo Lourenço, Sophia é apresentada “Não alheia,
mas aquém ou além da história, intensamente imersa na Natureza. De que é
incandescente musa e sílfide”
215
, e desponta para a poesia ao decorar os versos da
Nau Catarineta, aos quatro anos de idade. De família aristocrática com raízes
escandinavas, nasceu no Porto a 6 de novembro de 1919, e ainda permanece pouco
conhecida no Brasil fora do círculo restrito das atividades acadêmicas.
Num volume intitulado The uses of poetry (1978), Denys Thompson faz
um estudo da utilização da poesia desde os tempos mais remotos. Na obra, o autor
discorre sobre o emprego da lírica como instrumento na vida diária pré-tecnológica
216
, e aqui estamos falando de antes de Gutenberg e até mesmo dos copistas
medievais. Nessa tradição, a arte do verso estava ligada a uma condição de
imanência que a unia ao mundo real, longe das proposições romântico-metafísicas
que surgiriam séculos depois e relacionaram a poética com um universo onírico e
diáfano, numa identificação que ainda se mantém diante do senso comum nos dias
de hoje. A poesia era parte da vida diária, instrumento necessário à memorização,
guardadora da tradição, da faina, do conhecimento. É dessa poesia que Sophia
trata, o poema necessário, não o diáfano, mas o que se forma nos interstícios da
vida, pois segundo ela:
Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi
sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro
do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da
luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma
relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente
levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa
com o homem. Aquele que o espantoso esplendor do mundo é
logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo. (...) O artista
não é, e nunca foi, um homem isolado que vive no alto de uma torre de
214
ANDRADE, Eugênio. Saudades de Sophia. In: Relâmpago. n. 9-10, p. 94-95, 2001.
215
LOURENÇO, Eduardo. Com Sophia no país dos sovietes. In: Relâmpago, n. 9-10, p. 90-91, 2001.
216
THOMPSON, Denys. The uses of poetry. Cambridge: Cambridge University Press, 1978.
119
marfim. O artista, mesmo aquele que mais se coloca à margem da
convivência, influenciará necessariamente, através da sua obra, a vida e o
destino dos outros
217
.
João Rui de Souza se refere à obra de Sophia como uma “dialética entre
o intento da unidade, pressuposta através duma operação de idealizante filtragem
do real, e a ruptura e a dispersão que uma agudizada atenção ao quotidiano e à
circunstância histórica não pode deixar de refletir”
218
. Quatro anos após a sua morte,
não ainda um razoável volume de crítica sobre a obra de Sophia, mas surgem
obras de maior fôlego, em livro, e não apenas comentários, mais ou menos largos,
da crítica especializada em magazines e periódicos. Nas bibliotecas portuguesas, a
maioria dos trabalhos versando sobre a autora era, até pouco tempo atrás, dedicada
à sua literatura infantil, mas esse panorama tem se alterado rapidamente.
Uma das causas para o lapso, segundo Jorge de Sena e Eduardo Prado
Coelho, seria, para o primeiro, as dificuldades apresentadas por meio da “sua pureza
essencial de sentimento e de expressão, a sua imagística de árvores e ventos, de
praias e de mar, de noite e de sol coado pela vibração do momento envolvidas
numa dicção fluente que mascara a concentração e “o rigor da exigência ética
aplicada (...) à vivência poética”
219
. Sena vê nessa obra uma atmosfera austera e
fascinante na qual Sophia toma o lugar de “sibila mítica, fria e distante” que repele a
análise.
Eduardo Prado Coelho, autor de um ensaio denominado “Sophia, a lírica
e a lógica”, diz que essa poesia tem o poder de paralisar a crítica, deixando-a muda
de admiração, “Porque a limpidez dessa linguagem dificilmente autoriza sua
duplicação sob a forma de comentário”
220
.
Na verdade, para Prado Coelho, o que ele chama de “laboriosas
máquinas analíticas da crítica contemporânea” não contam com a mercê de uma
poesia que diz somente o essencial; quase todos os textos (passados quarenta anos
da estréia da autora), diz ele, são mais resenhas que análises, apenas inventariando
temas e linhas de interpretação, com alguns nomes de exceção onde se contam
217
Discurso proferido no almoço em homenagem à autora pelo prêmio conferido a Livro Sexto, na
data de 11 de julho de 1964. In: ANDRESEN, Sophia. Livro Sexto. Op. cit., p. 73.
218
SOUZA, João Rui de. Sophia de Mello Breyner Andresen. Colóquio/Letras, Lisboa, n. 12, p.85,
mar. 1973.
219
SENA, Jorge de. Colóquio-Revista de Artes e letras, n. 1, 1959, p. 54.
220
COELHO, Eduardo Prado. A mecânica dos fluidos: literatura, cinema, teoria. Lisboa: INCM, 1984,
p. 109.
120
Oscar Lopes, Gastão Cruz, João Gaspar Simões e principalmente, Eduardo
Lourenço.
Para o último, segundo Coelho, a poética andreseana é responsável por
modificar na poesia portuguesa a tendência negativista e as dialéticas de
consciência oferecendo, em seu lugar, um sentido positivo e original que canta a
realidade em seu esplendor transitório e etéreo, identificado com o coração do
mundo. Alguns dos aspectos mais relevantes dos seus versos, que iniciam em 1944
com Poesia, seriam uma adjetivação que não apenas adorna, mas informa,
confirmando um dizer exato da experiência visual, numa “exaltação afirmativa do
real”
221
.
Outros traços seriam o tema recorrente da passagem, como as aves que
atravessam o céu, as cavalgadas do mar largo, e é claro, um lugar privilegiado para
o mar. Também são percebidos “o caráter escultórico da sua concepção estética do
mundo: a paixão humana que cria é feita de estátuas vibrantes”, e uma “identificação
inicial entre o homem e o animal e o homem e a natureza (que se indiferenciam)”
222
,
acrescentando-se ainda que esses poemas revelam um jogo incessante entre
deuses e humanos. A poeta recusa a problemática do inconsciente, “assumindo-se
como transparente face ao rosto liso e puro da paisagem”, e afastando os “nós
conflituais da vida psíquica”
223
, donde Coelho conclui que a poesia de Sophia
“oscila entre uma transcendência sem peso e uma imanência que se agita, paira e
flutua”
224
.
Silvina Rodrigues Lopes publica em 1990 um dos primeiros volumes
inteiramente dedicados à obra poética de Sophia, embora não constem ali os seus
dois últimos livros de versos, Musa (1994) e O búzio de Cós (1997). Apesar disso, é
um texto bastante didático para uma introdução aos seus poemas, onde consta uma
pequena biografia, os pontos mais relevantes de sua trajetória literária, uma
apreciação dos seus aspectos principais, e onde, ao final da obra, há uma antologia.
São assinaladas em marcas pontuais, como a não integração ao grupo da
“Presença”, nem a quaisquer grupos, movimentos ou escolas literárias, e a
colaboração em diversas revistas literárias, entre elas, os Cadernos de Poesia,
221
Op. cit., p. 111.
222
Op. cit., p. 118.
223
Op. cit., p. 130.
224
Op. cit., p. 131.
121
publicados entre 1940 e 1942, onde se contavam as presenças de Tomás Kim, José
Blanc de Portugal, e Rui Cinatti, os fundadores, e ainda o amigo Jorge de Sena.
Silvina salienta de que maneira, na modernidade literária, marcada por
elementos distintivos como ruptura e inovação, a tendência do que se costuma
chamar de clássico tanto no sentido de relação com a civilização Greco-romana,
quanto naquele do que escapa às variações de gosto e época, é o desaparecimento,
pois na modernidade os entraves à percepção aumentam:
A generalização da comunicação faz-se à custa do apagamento de
singularidades e conseqüente homogeneização de sentido. Nessa
paisagem urbana, a resistência da poesia exerce-se pela afirmação da
diversidade e da heterogeneidade: com uma poesia de excesso que se
volta para experiências no limite da percepção, intensificando os efeitos da
vertigem, coexistem múltiplos rostos de poesia, entre eles o daquela que,
voltando-se para as coisas simples e elementais, não deixa por isso de ser
também atenção ao progresso técnico e às alterações sociais (...)
225
Segundo a crítica, o repúdio por Sophia da cidade, lugar degradado onde
os aspectos da vida tendem à lógica da mercantilização, é contraposto pela
rememoração do passado como momento positivo e fuga do efêmero. A paixão de
Sophia pelo exterior, compartilhada com muitos poetas que não escaparam ao
fascínio da civilização helênica, iniciada com Teixeira de Pascoaes
226
, não apresenta
os excessos românticos desse autor.
No que toca às obras, para Silvina, em Poesia, Dia do Mar e Coral há
“uma nostalgia e um desejo de regresso à natureza onde está quase ausente a
problemática das relações humanas”. Se No tempo dividido e em Mar Novo, uma
atenção voltada para a história, Livro Sexto é um ponto de nitidez e de veemência
das coisas exibidas na sua exterioridade, iluminadas por uma “espécie de
eternidade”
227
.
Em Geografia e Dual ela se volta para “a celebração de lugares e
monumentos, sobretudo gregos (...) [e à] meditação sobre a arte, a justiça, o tempo
do exílio e a possibilidade/necessidade de um tempo de inteireza”
228
, enquanto em
O Nome das Coisas aparecem implícitos os acontecimentos do 25 de Abril.
225
LOPES, Silvina Rodrigues. Apresentação crítica. In:___. (Org.) A poesia de Sophia de Mello
Breyner. Lisboa: Comunicação, 1990.p. 16.
226
Também esta, uma influência em comum com Cecília Meireles, bem apontada por Margarida Maia
Gouveia. In: GOUVEIA. Margarida Maia. Cecília Meireles: uma poética do eterno instante. Lisboa:
INCM, 2002. p. 92.
227
LOPES, Silvina Rodrigues. Op. cit., p. 19.
228
Op. cit., p. 18-19.
122
Navegações, onde a evocação de Camões é clara, a unidade temática
aponta para “a coincidência da aventura poética e das descobertas, expondo um
pensamento e paixão presentes ao longo da obra”
229
. A partir desse título, Silvina
propõe que:
A navegação, como a poesia, sua homóloga, resulta de um feliz
entendimento da transparência e da imaginação. O ar e o mar são meios de
transparências diferentes, o seu contacto, na superfície dos oceanos sem
fim, é apelo ao desconhecido onde se confundem a imaginação e a visão
230
.
Iniciação aos mistérios da poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen,
de Carlos Ceia, é um estudo das relações com o mundo elemental, destacando-se a
ação do vento, a luminosidade solar, o desafio do mar e a estética edênica do
jardim, no que é chamado pelo autor de “trabalho propedêutico de conquista da
ilusão sofística”
231
dessa poesia. A segunda parte do terceiro capítulo, denominado
“A via elemental”, é intitulada “O desafio do mar” e refere a perspectiva do oceano
nos versos de Sophia, que para o autor, tem domínios marinhos confinados à
Granja, ao Norte de Portugal, ao Atlântico e, depois de Livro Sexto, ao Algarve, ao
Mediterrâneo e ao mar Egeu. Apesar de falar constantemente do mar e dos seus
habitantes, as referências marítimas de Sophia, são, na maior parte, segundo Ceia,
oriundas de observações realizadas nas praias, resultando mais numa “poética da
navegação onírica de quem prefere contemplar o mar a percorrer realmente as suas
águas”
232
, e é apenas nesse sentido que ela pondera sobre o amor e a morte.
O outro volume de Ceia, O estranho caminho de Delfos, é um conjunto
de ensaios, publicados individualmente, versando sobre a “filomitologia”
233
e a
cultura grega, em diálogo com os versos da autora de Dual.
A visão da poeta portuguesa como leitora nos é oportunizada com Sophia
Andresen: leitora de Camões, Cesário Verde e Fernando Pessoa (2001), de Márcia
Barbosa, perseguindo um caminho no qual:
(...) as idéias de leitor e de leitura expressas pela poeta em distintas
ocasiões são, de modo parcial ou total, colocadas em prática ou
229
Op. cit., p. 19.
230
Op. cit., p. 44.
231
CEIA, Carlos. Iniciação aos mistérios da poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen. Lisboa:
Vega, 1996. p. 9.
232
Op. cit., p. 64.
233
CEIA, Carlos. O estranho caminho de Delfos. Lisboa: Vega, 2003. p. 12.
123
consideradas no momento em que ela estabelece uma interlocução com
outros escritores
234
.
Nessa volta à poética camoniana e às obras de Cesário Verde e
Fernando Pessoa, tanto o perfil de leitor instituído por ela, quanto o de leitor
pressuposto, para a autora, concordam com seus depoimentos, observações e
projetos, no que tange à questão da leitura e da percepção da arte em geral. Nessa
dialética com seus pares literários, segundo Barbosa, sobressaem no
comportamento da Sophia leitora o som, a imagem e a despersonalização, e é o
segundo ponto o que toma maior atenção, por conta da relevância assumida nas
obras dos três autores
A escritora capta a natureza e o movimento do olhar de seus antecessores;
visualiza as imagens que eles deixaram gravadas nos textos de sua autoria,
assimilando-as, recuperando-as com suas próprias palavras, decifrando-as
ou reinventando-as. Evidenciar essa aptidão é descobrir um novo sinal da
fisionomia da leitora em que Sophia se transforma
235
.
Sua não identificação por inteiro como destinatária do texto lido é vista
sob duas razões: a primeira, seu repúdio ao sentimentalismo, o que talvez seja
explicado pelo diálogo com autores cuja literatura é marcadamente
despersonalizada. A segunda, o distanciamento que ela mantém em relação às
concepções que essas leituras projetam, numa adesão que é apenas parcial
236
. No
dossiê dedicado à Sophia em 2001 pela revista Relâmpago, a percepção aguda de
Herberto Helder aponta onde está a diferença entre a poesia que Sophia exercita e a
de seus pares:
A ciência e inteligência de Sophia foi praticar (...) uma arte que fornecesse,
contendo em si a intensidade e o tremor instintivos, mas elidido o sujeito, a
referência literal. Em registro estrito e imediato exemplifica-se a dignidade
do mundo. O poema existe por si, é uma forma impessoal que as mãos
limpas arrancam à desordem para apresentar como ordem objetiva no meio
das corrupções, inclusive as corrupções da nomeação. Fascina-me
tamanho sonho, tão sobranceiramente natural, sonho irredutível, é a prova
do próprio mundo. Forçoso aceitá-lo, trata-se do concreto absoluto da
percepção. “Vê-se” o verso liso e homogêneo; o corpo do poema não
apresenta nenhuma ferida ou cicatriz. É a excelência.
237
Sophia de Mello Breyner Andresen: um cruzamento original de
tendências, é o título dado por Maria de Fátima Marinho a um estudo publicado na
234
BARBOSA, Márcia Helena Saldanha. Sophia Andresen: leitora de Camões, Cesário Verde e
Fernando Pessoa. Passo Fundo: UPF, 2001. p. 21.
235
Op. cit., p. 166.
236
Op. cit., p. 167.
237
HELDER, Herberto. Paradiso, um pouco. In: Relâmpago, n. 9-10, p. 97-99, 2001.
124
revista Mathesis, em outubro de 2001. O estudo, segundo Marinho, parte do que é
designado como “um cruzamento original de tendências e práticas discursivas ou
temáticas”, alcançando da mítica Grécia do inconsciente coletivo ocidental” ao 25
de Abril . Também é abordada a preocupação de Sophia com a problemática do
mundo, dividido entre “o eufórico e o ameno” e a “angústia e a morte”, e a questão
temporal oscilando entre as trevas e a luz, que nesses versos “se compraz numa
memória que (...) ultrapassa a de um tempo perdido na infância para se perder num
passado arquetípico”
238
.
Nessa poesia, a busca incessante da utopia, diz ela, “culmina nas “várias
definições de uma poética que, se deixa transparecer as vozes que nela ecoam, não
se afirma com menor originalidade e força”. Como essas referências surgem de
modo aleatório, Marinho também as enumera de modo caótico, com os nomes de
Rilke, Horácio, Homero, Ovídio, Fernando Pessoa e seus heterônimos, Byron,
Camões, Rimbaud, Lorca, Pascoaes, Ruy Cinatti, João Cabral de Melo Neto,
Cesário Verde e ainda, Goethe.
239
. Nesse leque tão amplo, tal filiação:
tanto se pode verificar na prática textual intrínseca como se cingir à mera
referência ou à glosa mais ou menos explícita. Numa autora onde não
uniformidade estrófica ou métrica (...). As paráfrases ou a paródia apontam
indubitavelmente para o entrecruzamento de discursos que são em
uníssono o mesmo e o alheio
240
.
A paixão de Sophia pelos mitos gregos é o foco central de Sophia de
Mello Breyner Andresen: mitos gregos e encontro com o real (2004), de António
Manuel dos Santos Cunha, centrado no estudo do mitos que sua poesia aborda com
mais freqüência, os de Orfeu e Eurídice, O Labirinto, de Apolo e Dioniso, e de
Ulisses e Penélope, incluídos também os que versam sobre membros da Casa dos
Atridas e da Casa dos Labdácidas.
Um olhar retrospectivo dessas críticas enseja a visão da poética
andreseana como tributária de uma série de poetas que pontuam da Antiguidade à
Idade Média e alcançam a poesia contemporânea, sobressaindo a percepção
desses versos, por demais enfatizada, em ligação estreita com o real, seja o do
cotidiano, da realidade histórica de um passado remoto, ou da situação política do
tempo presente. Para Maria João Reynaud, transita-se em um fundo histórico
238
MARINHO, Maria de Fátima. Sophia de Mello Breyner Andresen: Um cruzamento original de
tendências. Máthesis, n. 10, p. 59072, 2001. p. 59.
239
Op. cit., p. 59.
240
Op. cit., p. 60.
125
dividido entre diferentes desígnios, o primeiro, “perfeito, indiviso e fechado em sua
imanência”, e, ao lado, a visão da injustiça, sofrimento e opressão que seu âmago
rejeita, num “quotidiano hostil, de ameaça e humilhação colectiva, que se contrapõe
à pureza do mar da sua infância e às praias da adolescência”
241
.
Em junho de 2007, na esteira da coleção poética andreseana, a Editorial
Caminho publica um volume intitulado A Sophia: homenagem à Sophia de Mello
Breyner Andresen, de pouco mais de cento e quarenta páginas, onde algumas
dezenas de autores (na verdade, sessenta e um), prestam um tributo à poeta, a
maioria, com versos e depoimentos, mas também dois ensaios. Como a lista é
grande, vamos nos abster de elencar mesmo os mais conhecidos, porque são
muitos. Entre eles, há poetas, escritores e críticos, num rol que inclui os nomes mais
expressivos da literatura portuguesa, manifestando por meio dessas páginas a
materialização do respeito que a obra de Sophia infunde em seus pares. Tal fato diz
mais sobre a qualidade ímpar dessa poeta que antepor a ela quaisquer adjetivos,
mesmo os mais poéticos, o que, aliás, já foi feito.
4.2 UMA GEOGRAFIA MARINHA: DAS MUSAS ÀS NEREIDAS
4.2.1. Meus gestos são gaivotas que se perdem: Poesia (1944), Dia
do Mar (1947), Coral (1950)
Poesia, obra inaugural de Sophia, contém poemas escritos entre seus
dezesseis e o vinte e três anos e foi primeiramente publicado numa edição do autor
com trezentos exemplares. “Atlântico”, na abertura, era verso de um poema longo
que constava na primeira edição e foi excluído parcialmente, onde um stico de
linhas singelas combinados com a metáfora expressiva indica fascinação pela figura
humana diante da imensidão marinha:
“Mar;
Metade da minha alma é feita de maresia.” (PO, 12)
As três letras dessa palavra mínima ganham destaque, sozinhas no
primeiro verso, mas, apesar da simplicidade da exposição, dizem um mundo nesse
241
REYNAUD, Maria João. Sophia: na luz branca da escrita. In: A Sophia: homenagem de vários
escritores a Sophia de Mello Breyner Andresen. Lisboa: Editorial Caminho, 2007. p. 133.
126
espaço onde o sinal gráfico é uma pausa da respiração necessária ao leitor para que
esse largo significado seja apreendido.
No segundo verso, a assimilação do mar como predicado da alma nos
conduz ao primeiro passo da formação da metáfora, quando dois substantivos
abstratos, “alma” e “maresia” encontram afinidades comuns através da atmosfera
marinha. A alma do eu lírico é definida por uma característica intrínseca ao oceano,
o cheiro salgado das águas à beira-mar. A rigor, não é possível falar em sinestesia,
pois a alma não está ligada a um sentido particular, ela é nosso lado imaterial e
confunde-se com nossa consciência orgânica e psicológica, enquanto a maresia
está ligada ao olfato e é passível de apreensão pelos sentidos. Na verdade,
“maresia” es aqui por metonímia, como extensão do mar, relacionando a
satisfação de sentir o odor de água salgada com o prazer espiritual desse contato.
Na imagem proporcionada pelos elementos verbais, um mar ao qual
cada leitor é conduzido pela visão imaginada e pela sensação do odor particular.
“Metade” da alma, diz o eu lírico, é de maresia, referenciando nessa medida o
quanto de si mesmo é doado ao amor pelo oceano, pois a palavra está aqui também
no que Fontanier chamaria de sinédoque, subentendida numa ligação com o corpo e
o prazer dos sentidos que ele transmite.
Mas para Jorge Fernandes da Silveira, o poema “é uma das mais sólidas
interpretações da água como elemento de ligação entre uma vivência subjetiva e a
sua memória cultural
242
, e o Atlântico, o mar que divide as afeições de Sophia entre
duas metades, Brasil e Portugal. Na metáfora se incorporam o odor da maré vazante
e o espírito humano, envolvendo numa absorção completa sensações que o eu lírico
escolhe para definir a si próprio por meio dessa afeição ao elemento marinho.
O poema seguinte, “Apolo Musageta” (PO, 18), é dedicado ao deus das
artes e maestro do coro das Musas, Musageta:
“Eras o primeiro dia inteiro e puro/Banhando os horizontes de
louvor.//Eras o espírito a falar em cada linha/Eras a madrugada em flor/Entre a brisa
marinha./Eras uma vela bebendo o vento dos espaços/Eras o gesto luminoso de
dois braços/Abertos sem limite./Eras a pureza e a força do mar/Eras o conhecimento
pelo amor.//”
242
SILVEIRA, Jorge Fernandes da. Dobre/mosdobre: Sophia. In: Relâmpago, n. 9-10, p. 57-66, 2001.
127
Os dois primeiros versos se referem ao carro do Sol, que era conduzido
pelo deus, enquanto o terceiro menciona o oráculo de Delfos, onde ele falava pela
voz da pitonisa. Apolo reunia os ideais gregos mais sagrados e preciosos, a beleza,
a verdade, a inteligência e a harmonia, e foi conhecido como deus da música,
poesia, da profecia, da medicina, e também da caça, ao lado de sua irmã Diana. As
qualidades listadas no poema vão no sentido contrário da antropomorfização, que
é a figura humana que se ajusta aos elementos naturais, como o sol, o mar e a brisa.
Sophia brinca com o mesmo estratagema dos deuses olímpicos, contumazes no uso
desse disfarce para, como ventos, afundarem navios, ou como chuva, seduzirem
donzelas.
No quarto verso, o sol despontando no horizonte do mar serve como
metáfora para a relação entre as flores e a madrugada. Os semas justapostos nos
devolvem o ponto comum da estridência das cores no jardim e no raiar da manhã,
agregando no estágio da dimensão pictórica a imensidão do céu colorido, que
suspende com a epoché o mero período de tempo em que o sol retorna, para se
aproximar de um sentido poético. E como um barco, Apolo vem pelos ares, leve
como a vela tocada pelo vento; empregando a metáfora do carro do sol para
construir outra metáfora, Sophia repõe “carro”, transporte terrestre utilizado como
figura para o sol que desponta no céu, a seu gosto, numa terceira opção que o
desloca para o mar, como um barco à vela.
“Sonhos e presença/De uma vida florindo/Possuída e suspensa.//Eras a
medida suprema, o non eterno/Erguido e puro, perfeito e harmonioso/No coração
da vida e para além da vida/No coração dos ritmos secretos.”
Todo o poema é desenvolvido ao redor dos simbolismos que regem a
figura do mais belo deus grego, enaltecendo sua figura e exigindo um prévio
conhecimento dessas estruturas para codificação. Tais versos, alinhando de um lado
abstrações semânticas como “sonhos” e “suspensa”, nos levam ao caráter
extracorpóreo dos habitantes do monte Olimpo. Nas esculturas, Febo, para os
gregos, tem uma representação material de estética perfeita, definida em “erguido e
puro”, “perfeito e harmonioso”.
Em O nu na Antiguidade clássica, Sophia diz que na Grécia o divino
precede os deuses, e que “a lisura brilhante e azul das águas, contém em si a
majestade e o esplendor de Zeus e de Apolo”:
128
(...) O divino é interior à natureza, consubstancial à natureza. O ser esna
physis. O mundo está como que percorrido por uma alegria essencial que
se mostra, que emerge. Descobrir a ordem da natureza, descobrir a
felicidade e a harmonia múltipla e radiosa da natureza, será descobrir o
divino.
243
Como deus da medicina, é apresentado metaforicamente em “coração da
vida”, como deus do amor, “para além da vida/No coração dos ritmos secretos”.
“Apolo Musageta” é um bom exemplo de poema no qual todo o complexo metafórico
exige um conhecimento precedente, que nós compartilhamos, do simbolismo das
figuras mitológicas na cultura ocidental. Sem esse saber anterior, dificilmente o
entendimento dessas metáforas alcançaria as mesmas conclusões.
Em “Casa branca” (PO, 26), o eu lírico assume um tom de recuperação
da memória:
“Casa branca em frente ao mar enorme,/Com o teu jardim de areia e
flores marinhas/E o teu silêncio intacto em que dorme/O milagre das coisas que
eram minhas.//”
Os dois primeiros versos apresentam uma descrição da casa à beira-mar,
ao lado de um jardim oceânico, onde pontua submersa a estranha beleza da
vegetação marinha. A metáfora do terceiro verso, quando “silêncio” e “dorme” aliam
seus campos semânticos, permite pensar na quietude do lugar como sítio de
repouso que guarda as lembranças queridas do passado. uma linha separando a
primeira estrofe das duas seguintes, uma pausa para a reflexão do eu lírico, que
planeja:
“A ti eu voltarei após o incerto/Calor de tantos gestos
recebidos/Passados os tumultos e o deserto/Beijados os fantasmas, percorridos/Os
murmúrios da terra indefinida.//”
O ponto central é encontrado em “incerto”, que, quando unido aos
gestos de calor, coloca em dúvida a veracidade desses afetos. Sophia usa dois
termos, “tumultos” e “deserto”, como figurativos das atribulações existenciais, ou do
seu vazio. Ato impraticável, beijar os fantasmas nos devolve a metáfora da afeição
do eu lírico por pessoas que se foram, mas nem é necessário que sejam pessoas,
pois também os objetos materiais ligados ao passado possibilitam a manutenção da
243
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. O nu na Antiguidade clássica. Lisboa: Caminho, 1992. p.
17.
129
memória e podem, como uma velha boneca, por exemplo, fazer parte desse
contexto.
“Em ti renascerei num mundo meu/E a redenção virá nas tuas
linhas/Onde nenhuma coisa se perdeu/Do milagre das coisas que eram minhas”.
Gaston Bachelard diz que a casa é o nosso canto no mundo, nosso
primeiro universo, um verdadeiro cosmos. Nesse espaço, “memória e imaginação
não se deixam dissociar” e, quando voltam (...) “lembranças das antigas moradias,
viajamos até o país da Infância Imóvel, imóvel como o Imemorial”
244
. A leitura do
filósofo desvenda uma boa parte dos versos de Sophia sobre a casa na praia, onde
“nenhuma coisa se perdeu”, pois a memória guarda tudo que é precioso. A idéia de
renascer propõe de maneira figurativa um reinício, onde o verbo entra com esta
acepção. “Linhas” trazem o sentido de geometria necessário à construção, adaptado
metaforicamente para abranger todos os limites da casa como espaço arquitetônico,
sem esquecer que é a proximidade marítima e seu jardim submerso que fazem dela
um lugar tão especial.
O último verso repete parte da primeira estrofe, em que o eu lírico
demonstra a felicidade da posse de um espaço que guarda os rastros da memória
no poema e que é, do ponto de vista metafórico, um hino ao lugar que mantém os
atributos da meninice. Ele continua a ser um abrigo depois que essa infância
passou, permanecendo como ponto de ligação importante entre duas etapas da
vida, e é ali que esse sujeito se percebe em completude.
“No alto mar” (PO, 43) conta com uma epígrafe, “À memória de meu pai”;
“No alto mar/ A luz escorre/Lisa sobre a água./Planície infinita/Que
ninguém habita.//O sol brilha enorme/Sem que ninguém forme/Gestos na sua luz.//”
Como estamos falando sobre metáforas, podemos dizer que o título de
um poema é uma espécie de biruta, apontando para onde o vento sopra. Assim, “No
alto mar”, seguido da epígrafe que dedica os versos a alguém que se foi, é uma
pista para iniciar a leitura metafórica partindo de um mar que nunca é nomeado em
cartas marítimas. Porém, no poema algumas peculiaridades que o relacionam
aos versos de “Cemitério marinho”, o que é apropriado, considerando que Sophia
quer fazer uma homenagem stuma ao seu pai. Relembrando os versos de Paul
Valéry, temos nas duas primeiras estrofes:
244
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Op. cit., p. 112.
130
“Este telhado quieto, onde andam pombas,/Entre os pinheiros palpita,
entre as tumbas;/O meio-dia em ponto pincela chamas/O mar, o mar, sempre
recomeçado!/Oh, após um pensamento ser recompensado/com este longo olhar
sobre a calma dos deuses!//”
“Que pura obra de sutis fulgurações consuma/Tanto diamante de
imperceptível espuma,/E que paz parece então se conceber!/Quando sobre o
abismo um sol repousa,/Criações puras de uma eterna causa,/O tempo resplandece
e o sonho é saber.”
Primeiramente, nas afinidades percebidas entre os versos de Valéry e de
Sophia, encontramos a definição de mar, “telhado quieto”, por “planície infinita”. Se
no francês “O meio-dia em ponto pincela chamas”, ela responde com “A luz
escorre lisa sobre a água”.
algumas palavras no poema andreseano sobressaindo de maneira a
deslocar o espaço poético de Valéry para um ambiente um tanto mais longe, no
“alto” mar. Os versos emprestam à luz a fluidez da água, quando ela escorre pela
planície, adjetivada como “infinita”, que quer dizer “sem fim”, para sempre,
metaforizando a imensidão aquática que nos devolve um mar verdejante como uma
campina fúnebre.
A planície ensolarada não é habitada, informa o eu rico sobre a imagem
comum, e os dois versos seguintes, avisando que não se formam “gestos na sua
luz”, reforçam com a metáfora um sentido de imaterialidade e de ausência.
Na terceira estrofe de “Alto Mar”, “Livre e verde a água ondula/Graça que
não modula/O sonho de ninguém.//”
Se a vista da água é para Valéry “este longo olhar sobre a calma dos
deuses”, a autora a vê como uma graça em estado de abandono, e no verso Sophia
recupera com a ondulação oceânica a topologia suave de um campo santo. A
palavra “ninguém” participa de todas as quatro estrofes do poema. Por meio dessa
presença reiterada do termo, a autora especifica o sentido de ausência do lugar,
pois “São claros e vastos os espaços/Onde baloiça o vento/E ninguém nunca de
delícia ou de tormento/Abriu neles os seus braços”. A última estrofe incide
novamente sobre o status de solidão, agora com “claros e vastos” definindo a
imensidão do mar onde “baloiça” o vento, sem freio nenhum. Pessoa alguma,
arremata o último verso, desfrutou dessa vastidão, conduzindo à última metáfora,
que indica, por sua vez, o caráter de última morada dessas profundezas.
131
Em algumas cerimônias fúnebres dos vikings, na Escandinávia, a remota
terra ancestral de Sophia Andresen, os enterros eram no mar. Numa lírica tão
inserida no universo marítimo, e ainda por conta de raízes dinamarquesas e
portuguesas, faz sentido a escolha do espaço submerso de águas solenes como
idealização metafórica para o repouso eterno.
Dia do Mar, volume seguinte, segundo Maria Andresen de Souza
Tavares, filha da autora e organizadora da edição definitiva, foi o que mais sofreu
alterações, com a adição de treze poemas que não fazem parte da Obra Poética I.
“Jardim do mar” (DM, 10) é um poema com pentimento, onde sob os
versos nos quais se pode perceber a descrição do país num microcosmo, há uma
segunda leitura escondendo um eu lírico irônico:
“Vi um jardim que se desenrolava/Ao longo de uma encosta
suspenso/Milagrosamente sobre o mar/Que do largo contra ele
cavalgava/Desconhecido e imenso//”
Numa rápida leitura, somos levados aos versos do século XIX que
serviram, inclusive, a folhetos turísticos no período do salazarismo como definição
das terras lusas, “Jardim da Europa à beira-mar plantado”
245
.
A frase consta do poema A Portugal”, de autoria do político e poeta
bissexto Tomás Ribeiro (1831-1901). O flamante poema de quinze oitavas, no
entanto, é desenvolvido por Sophia numa releitura onde Portugal é visto sob uma
perspectiva irônica e desagradável. Enquanto o poema de Ribeiro demonstra um
acentuado pendor nacionalista e exalta as belezas naturais da “Pátria! Filha do sol e
das primaveras,/rica dona de messes e pomares”, Sophia faz a partir desses versos
uma transposição inversa. Na primeira estrofe, por meio do “jardim” e do “mar”,
suspensos na encosta vizinha ao oceano largo, vislumbra-se com facilidade o mapa
de Portugal, vizinho do Atlântico, servindo ao propósito de situar o poema no espaço
geográfico.
“A Portugal” desfia um “laranjal em flor sempre odorante, (...)/minha noute
de estrelas rutilante, meu vergado pomar de um rico outono; porém, “Jardim do mar”
devolve um “Jardim de flores selvagens e duras/E cactos torcidos em mil
dobras,/Caminhos de areia branca e estreitos/Entre as rochas escuras/E, aqui e
além, os pinheiros/Magros e direitos//”.
245
RIBEIRO, Tomás. A Portugal. In: ___. Dom Jaime. Porto: Moré, 1874. p. 3.
132
Sophia salienta no poema uma estética oposta através de termos como
“selvagens e duras”, indo na contramão do cenário exuberante de Ribeiro. A
descrição dos cactos retorcidos retrata uma imagem não apenas feia, mas disforme.
No reino mineral, a caracterização degradada segue com as rochas negras e os
caminhos de areias brancas, porém estreitos. Em vez da floresta cerrada, pinheiros
esquálidos
246
, ou seja, nada é belo aos olhos do eu lírico.
“Jardim do sol, do mar e do vento,/Áspero e salgado,/Pelos duros
elementos devastado/Como por um obscuro tormento:/E que não podendo como as
ondas florescer em espuma,/Raivoso atira para o largo, uma a uma,/As pétalas
redondas/Das suas raras flores.//”
Nos versos acima, o “mar” “salgado” nos devolve a figura do autor de
Mensagem em “Mar português”
247
, inserindo dentro do poema uma, diríamos,
metáfora emprestada que, nos versos de Pessoa, exalta o sentido do sacrifício
necessário a uma grande conquista se a alma não for pequena. Portanto, na
referência indireta, Sophia aprofunda o sentido dos versos com um metapoema. No
quarto verso, sugerimos como metáfora de “obscuro tormento” o estado de exceção
reinante no país, seguido pelas medidas de vigilância da polícia política culminando
num êxodo em que muitos emigrantes abandonaram Portugal, vindo morar no Brasil.
“Jardim que a água chama e devora/Exausto pelos mil esplendores/De
que o mar se reveste em cada hora.//Jardim onde o vento batalha/E que a mão do
mar esculpe e talha./Nu, áspero, devastado,/numa contínua exaltação,/Jardim
quebrado da imensidão./Estreita taça/A transbordar da anunciação/que às vezes nas
coisas passa.//”
A última estrofe faz menção ao hino do país, também um texto de
exaltação, mas de sentido bélico, impelindo às armas para o ressurgimento da
nação, “Levantai hoje de novo/o esplendor de Portugal”. Na exaustão dos mil
esplendores, percebe-se um sentido metafórico no qual o eu lírico deseja se referir
ao contínuo guerrear entre nações na ânsia da conquista. A última imagem do jardim
arrola quatro termos depreciativos, nu, áspero, devastado e quebrado,
arrematados por outra figura, a da taça, simbólica da abundância, que o cantador
246
A escolha não deve ser casual. No Oriente, o pinheiro simboliza a imortalidade, e no Japão, a
força inquebrantável. In: CHEVALIER, Jean. GHEERBRANT, Alain. Op. cit., p. 718.
247
PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005. p. 82. Sobre a influência
de Fernando Pessoa na obra de Sophia Andresen, ver: BARBOSA, Márcia. Sophia Andresen: leitora
de Camões, Cesário Verde e Fernando Pessoa. Passo Fundo: UPF Editora, 2001.
133
desesperançado adjetiva como “estreita” e transbordante, prenunciando o advento, a
“anunciação” de uma mudança, quem sabe, política.
A despeito do lirismo do poema e da suave melopéia dos seus versos,
Sophia usa, nos termos de Genette, a transtextualidade
248
para fazer uma crítica
política ao Portugal de 1958. Por meio dos poemas de Ribeiro, de Pessoa e do hino
nacional português, ela censura de forma ácida o estado de coisas no país.
Novamente, é necessário um conhecimento prévio para a interpretação do
significado metafórico do poema, mas esse hipertexto, para Genette, deve se
constituir como leitura auto-suficiente em relação ao hipotexto, e no caso de uma
leitura isolada, perde uma parte importante da dimensão que lhe é intrínseca.
Ao poema seguinte do volume Dia do mar o foi dado um título, mas
apesar da falta dessa indicação, sempre um auxílio do que o poeta deseja
expressar, em suas poucas linhas a metáfora adquire um sentido que se afasta do
sofrimento em estado puro revelando um estado de expiação, como numa catarse
cumprida.
“Esgotei o meu mal, agora/Queria tudo esquecer, tudo
abandonar,/Caminhar pela noite fora/Num barco em pleno mar.//
“Mergulhar as mãos nas ondas escuras/Até que elas fossem essas
mãos/Solitárias e puras/Que eu sonhei ter.//” (DM, 15)
Ao modo abreviado de Sophia se coloca aqui como a presença do mar
interage com o eu lírico, por meio do uso da cor e das sinestesias. É emprestada à
água uma faculdade de ablução que não apenas purifica, mas através da imersão
permite um isolamento que não é um estado melancólico, mas um regozijo pelo
contato com a penumbra do oceano. uma vontade libertária de partir numa busca
onde o elemento marítimo participa não como locus do desgosto, não constituindo
apenas um caminho, mas é apontado como um fim em si mesmo. É quando a água
toma um sentido elementar de purificação, com o mergulhar das mãos nas ondas
expiando o mal do qual o sujeito deseja se afastar.
“Eurydice” (DM, 91) é um poema dedicado à linda esposa do filho de
Febo, Orfeu, o cantador, que ficou presa ao reino de Hades e Perséfone após ser
picada por uma cobra.
248
GENETTE, Gerard. Palimpsests. Lincoln; London: University of Nebraska Press, 1997. p. 74.
134
“A noite é o seu manto que ela arrasta/Sobre a triste poeira do meu
ser/Quando escuto o cantar do seu morrer/em que o meu coração todo se
gasta.//Voam no firmamento os seus cabelos/Nas suas mãos a voz do mar ecoa/Usa
as estrelas como uma coroa/E atravessa sorrindo os pesadelos//”
A figura feminina vestindo um manto, não de noite, mas de sol, e coroada
de estrelas, nos é algo familiar, pois está no Apocalipse de São João (Apc. 12-1); ela
simboliza não a S.S. Virgem Maria, mas toda a humanidade, e mais tarde empresta
as características dessa imagem às representações artísticas de Nossa Senhora
249
.
Para Maria Helena da Rocha Pereira, no poema uma evidente
identificação de Eurídice com a poesia, somadas ainda as imagens cósmicas mais
caras a Sophia, como a noite, o firmamento, o mar e as estrelas, Mas, por trás, está
o motivo rilkeano da perda da existência, da caducidade do ser
250
.
Eurydice, isolada no Érebo, é uma metáfora da angústia da morte
revelada pelo eu lírico, coberto por uma poeira triste numa materialização metafórica
da capa da imobilidade e da melancolia. No “cantar do seu morrer”, a canção da
morte traz duas marcas, o inexorável e o perene. Um coração falha, envelhece, mas
o termo “gasto” tenta emprestar a esse músculo palpitante, que os antigos julgavam
ser o centro das emoções, o caráter utilitário de um objeto com muito uso.
Veio com ar de alguém que não existe,/Falava-me de tudo quanto
morre/E devagar no ar quebrou-se, triste/De ser aparição, água que escorre.//
A ninfa é representada no poema em comunhão com o céu, o mar e as
estrelas, numa atitude serena e alheia aos sonhos maus, porém, conta o eu lírico,
ela fala da morte, significando a mulher em solidão, retirada do mundo. A postura de
Euridyce espelha a visão que os antigos gregos tinham do reino de Hades e
Perséfone, refletida nos versos de Homero e Virgílio. Não lugar para redenção,
independente de o morto ser um herói ou um traidor, pois os poetas sempre o
apresentam como um espaço tétrico e sombrio. No fim do poema, o ser etéreo
assume uma forma capaz de se quebrar, triste. Avaliando as semelhanças entre os
dois termos, chegamos ao sentido metafórico do desgosto insuportável que esfacela
o corpo e altera a forma para o estado líquido, transformando a terrena ninfa dos
pastos em uma Náiade, uma ninfa da água que escoa.
249
BÍBLIA SAGRADA. Trad. do padre Antônio Pereira de Figueiredo. Notas de Mons. José Alberto L.
de Castro Pinto. Rio de Janeiro: Edição Barsa, 1971. p. 232.
250
ROCHA PEREIRA, Maria Helena da. Novos ensaios sobre temas clássicos na poesia portuguesa.
Lisboa: INCM, 1988. p. 312.
135
A figura feminina e solitária dos ínferos serve ao poeta para expressar a
sensação dolorosa do fenecer que acontece de modo inesperado, pois Eurídice não
cumpriu sua missão na terra, na existência que durou pouco e não deixou
descendência ao seu amado Orfeu. A respeito do assunto, em sua última obra J. M.
Coetzee diz que a história de Eurídice está mal contada, e que seu tema verdadeiro
é a solidão da morte. Ela acredita que Orfeu vem para salvá-la, mas esse amor não
é forte o bastante, e ele volta para terra, para sua vida. Assim como o sujeito lírico
nesse poema lamenta a separação e a intangibilidade, também Coetzee faz ver que:
A história de Eurídice nos relembra que a partir do momento da morte
perdemos todo o poder de eleger nossos companheiros. Somos levados
num vórtice para o destino a nós reservado; não nos compete decidir ao
lado de quem passaremos a eternidade. A visão grega do além-túmulo me
parece mais verdadeira do que a cristã. O além-túmulo é um lugar triste e
parado
251
.
Em “Exílio” (DM, 97), o eu lírico se presentifica na esposa de Ulisses:
“Espero tecendo os dias/Imagino e contemplo.//Num país sem flores onde
o mar não é mar/ E enigma são os navios,/Eu não entendo o sentido das
velas/Tenho fome e sede de horizontes frios.
Tal qual Penélope, o eu lírico sofre com uma longa espera, apontada nos
versos em “tecendo os dias”, aguardando a passagem do tempo como a esposa de
Ulisses. Porém, há outra tecedeira famosa nos mitos gregos entre as três Parcas, na
Láquesis que tece o fio da vida, e que veste azul. A grande diferença entre ambas
reside no fato de que Penélope desfazia sua teia à noite, mas a trama tecida pela
parca era inalterável. De qualquer modo, entendemos que a metáfora reflete a
espera ansiosa do ser desolado que, solitário, imagina e contempla.
No outro verso, podemos fazer novamente a leitura do poema de Ribeiro
em “país sem flores”, seguido da anulação do significado simbólico da água como
“fonte de vida, meio de purificação, centro de regenerescência”
252
. No queixume do
eu lírico de que os navios são enigmas, é necessário recorrer à ilação do barco cujo
destino depende do capitão, implicando uma metáfora da desconfiança que, somada
ao verso seguinte, significa uma descrença na atitude das pessoas. No último verso,
em “horizontes frios”, pode-se fazer uma relação com países europeus situados nos
paralelos mais altos, quem sabe uma metáfora desejosa de um ambiente mais
251
COETZEE, J. M. Diário de um ano ruim. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 11.
252
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Op. cit., p. 15.
136
democrático, ou, no sentido contrário a uma situação quente, em sentido metafórico,
um ambiente mais libertário e menos sufocante.
Navio naufragado(DM, 42) a poesia de Sophia ressoa ainda dentro da
temática política:
“Vinha dum mundo/Sonoro, nítido e denso./E agora o mar o guarda no
seu fundo/Silencioso e suspenso.//É um esqueleto branco o capitão,/Branco como
as areias,/Tem duas conchas na mão/Tem algas em vez de veias/E uma medusa em
vez de coração.//
Em seu redor as grutas de mil cores/Tomam formas incertas quase
ausentes/E a cor das águas toma a cor das flores/E os animais são mudos,
transparentes./E os corpos espalhados nas areias/Tremem à passagem das
sereias,/As sereias leves de cabelos roxos/Que têm olhos vagos e ausentes/E
verdes como os olhos das videntes.//”
Sophia Andresen, numa composição marcada pelo viés político, utiliza o
capitão fantasmagórico e seu barco para montar uma visão desagradável de outro
comandante, que à época não estava morto, e que ainda iria durar mais vinte anos.
Cada uma das quatro estofes de Navio naufragado pode ser interpretada
como uma segunda camada, a que está por trás da primeira leitura, e que mostra na
primeira quadra um Portugal ligado ao universo marinho referido desde Camões
até Pessoa, outrora “sonoro, nítido e denso” e que agora está “silencioso e
suspenso”.
A segunda estrofe descreve o capitão como um esqueleto branco em que
nossa leitura percebe a figura de Oliveira Salazar, sem sangue nas veias e com
“uma medusa em vez de coração”, no que talvez seja a intenção principal dessa
releitura poética, apresentar a persona do ditador lusitano como o mais que pálido
capitão de um mundo inerte. O estado de coisas num país dominado pela ditadura é
expresso pelas metáforas que colocam “incertas” e “ausentes” como indicativas da
repressão que vigorava na época e encerrou a liberdade de manifestação e a
democracia.
No quarto verso dessa estrofe, o povo português está “mudo” e
“transparente”, deixado sem voz e ignorado em sua vontade, o que pode explicar a
preferência de Sophia pelo vocábulo “animais” homens incluídos num poema
que fala, a princípio, de mar. O mar como artifício metafórico segue a longa tradição
137
poética em que a crítica política, também pela veia satírica, aparece por meio desse
estratagema que exige de seu leitor um grano salis para o perfeito entendimento.
O poema seguinte já pertence a Coral (CO, 18):
“Dia do mar, construído/Com sombras de cavalos e de plumas.//Dia do
mar no meu quarto cubo/Onde os meus gestos sonâmbulos deslizam/Entre o
animal e a flor como medusas.//
Dia do mar, dia alto/Onde os meus gestos o gaivotas que se
perdem/Rolando sobre as ondas, sobre as nuvens.” (CO, 18)
Sophia não nomeia o poema de Coral, mas isso é irrelevante, pois os
versos falam por si. A ingerência do ambiente marinho invade todos os espaços, e a
jornada se ordena de acordo com as imagens marítimas em que predominam as
cores claras, ancoradas na brancura das ondas que inspiram o galope dos cavalos e
que, no leve sopro da espumas, lembram a leveza das penas. A maresia invade
também o espaço da casa, o cubo, cenário para o eu lírico sonolento movendo-se
com a lentidão dos animais submarinos e seguindo os gestos das medusas. A
imagem que o poema nos devolve é de luz intensa, dividida entre a paisagem
marítima e a casa.
O verso seguinte repete a introdução, enfatizando que o dia radioso
pertence ao mar, e projeta a imagem para o alto, para o céu aberto em que a
largueza dos gestos se compara ao abraço amplo das gaivotas que mergulham
livremente entre o céu e o mar:
“Dia do mar, dia alto/Onde os meus gestos são gaivotas que se
perdem/rolando sobre as ondas, sobre as nuvens.”
A poeta empresta às aves marítimas a habilidade das ondas, na imagem
onde se unem, sob o elemento comum do mar, o sentimento do branco, primeira
semelhança entre as vagas e as aves, palavras que são entre si quase um
anagrama. também uma capacidade de seguir em frente, ondas e gaivotas, sem
freios, sem impedimento algum que não seja a dança circular em que dividem o mar
e a terra.
Se uma metáfora, ou imagem importante no poema que deva ser
realçada, além do desejo poético de comungar desse clima marítimo, ela é com
certeza simples e clara como esses versos: fala da beleza luminosa desse dia à
beira-mar.
138
“Pã” (CO, 51) é um exemplo da capacidade de Sophia de compor um
grande poema com versos mínimos por meio das metáforas antropomórficas de que
falava Giambattista Vico:
“Os troncos das árvores doem-se como se fossem
[os meus ombros/
Doem-me as ondas do mar como gargantas de cristal./
Dói-me o luar branco pano que se rasga.”
O deus Pã, como Eurydice, é uma divindade pastoril, protetor dos
bosques e dos pastos. Ele também é cantor, representado com a flauta de sete
tubos que o caracteriza, a syrinx. uma identificação panteísta nos versos que
indicam a figura do deus de chifre e s de bode no título, para depois mencioná-lo
apenas indiretamente. Tal identificação ficaria muito ao gosto de Vico, que disse que
as primeiras metáforas nasceram dessas correspondências do corpo com a
natureza. Assim, os troncos se alinham com o contorno dos braços, em razão do
comprimento, além de, é claro, estar consagrada a metáfora morta em que “tronco”
serve para expressar outra parte do corpo.
O espaço no poema passa do campo para o mar, quando uma qualidade
da água, a de ser incolor, é atrelada à limpidez do vidro mais puro, o qual, por seu
lado, a devolve dando a materialidade do cristal ao torvelinho das águas. A curva
suave e transparente das vagas se une ao vaso de cristal para formar a metáfora
onde na assimilação predicativa elas se unem em razão da forma arredondada, e
aqui nós percebemos como o elemento verbal tem o controle da imagem, que é
submetida a ele, para criar a garganta marinha do poema.
A visualização envolvendo o cristal e as águas é com certeza complexa,
assim como a epoché que suspende a fluidez líquida do oceano para adentrar na
concretude do tubo transparente por onde flui a voz, mas o verso seguinte é bem
mais simples. Ver e pensar na alvura da lua e na brancura do tecido torna os dados
próximos facilitando bem mais a formação da imagem quando é dada a dimensão
pictórica, e com facilidade o juízo literal é suspenso para que nasça a metáfora do
astro luminoso como um pano claro.
A beleza dessa lanterna noturna não se mostra em completude, pois ela
está dividida quando empresta seu brilho claro como adjetivo para o tecido alvo,
criando a imagem do pano rasgado no céu. Versos simples e imagens muito belas
são reveladas com a metáfora dessa comunhão estreita entre ser vivo e espaço
139
natural. Subjacente aos versos há uma metáfora totalizante, por assim dizer, de uma
assimilação tão perfeita entre ser e mundo que cada transformação ocorrida na
natureza é sentida como uma modificação acontecendo no próprio sujeito.
Em “Praia” (CO, 69), os versos iniciam em terra, mas apenas para mais
tarde ceder essa primazia ao mar:
“Os pinheiros gemem quando passa o vento/O sol bate no chão e as
pedras ardem.//Longe caminham os deuses fantásticos do mar/Brancos de sal e
brilhantes como peixes.//”
Pinheiros são inanimados, mas o verbo “gemer” é usado como
prosopopéia para exprimir os sons uivantes de um bosque aonde sopra o vento. O
sol não golpeia o chão, porém este verbo também é de uso comum para falar da
incidência dos raios, com a ardência das pedras levando diretamente ao calor
excessivo. Dentro da via marítima, de maneira surpreendente, os deuses do oceano
“caminham”, e no uso do verbo terrestre, Sophia lhes confere um lado carnal que ela
afasta em seguida, imerge-os em uma brancura nevada, com a textura escamosa
dos habitantes marinhos colada aos caracóis e ao tridente de Netuno, entrelaçando
características do humano e do divino. Toda a natureza se revela como potência
vibrante, em calor e movimento.
“Pássaros selvagens de repente,/Atirados contra a luz como
pedradas,/Sobem e morrem no céu verticalmente/E o seu corpo é tomado nos
espaços.//As ondas marram quebrando contra a luz/A sua fronte ornada de
colunas.//”
Nos versos acima uma comparação das aves com pedras jogadas no
ar e nossa atenção é movida para “selvagens”, que divide seu campo semântico
com um ato violento, as “pedradas”. Tal significado inclui a cor arenosa das pedras
conduzindo, por sua vez, ao tom das penas dos pássaros. “Morrem” está aqui como
metáfora da queda súbita dos rasantes e mergulhos das aves pelo céu, enquanto
uma palavra similar, “marram” também é metafórica das ondas que quebram na
praia, imitando um ataque de carneiros com os cornos, essa “fronte ornada de
colunas”.
“E uma antiqüíssima nostalgia de ser mastro baloiça nos pinheiros.//”
253
253
As madeiras nobres usadas na construção dos navios eram protegidas por lei e cortadas na lua
certa, mas mesmo assim, um século depois as florestas estavam dizimadas. Cada caravela consumia
140
Estas últimas linhas são uma reverência em forma de metáfora na qual a
terra se curva diante do mar. Se nos fixarmos em “antiqüíssima”, deslocamos os
ancestrais desses pinheiros para o tempo das caravelas, transformados em mastros
altivos e direitos. A poeta inicia e finaliza os versos com o foco nos pinheiros,
passando pelas imagens da praia para retornar às árvores, que testemunham o
cenário marinho de longe, saudosas dessa remota navegação.
“Pirata” (CO, 71) é um poema de três quadras retratando uma
personagem emblemática entre os marujos, a do fora-da-lei que tem por morada o
navio nunca atracado, e cuja presença em nosso imaginário continua bastante viva:
“Sou o único homem a bordo do meu barco./Os outros são monstros que
não falam,/Tigres e ursos que amarrei aos remos,/E o meu desprezo reina sobre o
mar”.
O tom do corsário que assume a voz do eu lírico na primeira quadra é
impetuoso, peremptório, e de completo desrespeito ao referir os “tigres e ursos”,
amarrados ao convés inferior. Sua condição humana é desprezada e seu valor
medido pela velocidade dos remos que movem a embarcação. Estabelecendo uma
paridade entre homens e animais, Pela assimilação predicativa, é estabelecida em
ambos a mesma condição de mamíferos não domesticados.
No segundo estágio, ver como tais elementos verbais controlam a
imagem nos apresenta a crueldade das condições subumanas dos porões dos
navios, fétidos e insalubres, num cenário execrável. No terceiro, retira-se o sentido
usual do homem para acrescentar a selvageria do animal, restando a metáfora da
transformação grotesca dos marinheiros que, por vontade ou a contragosto,
tripulavam os navios séculos atrás.
Mas na segunda quadra, o tom vai se aplacando a cada verso, à medida
que o pirata abre seus sentimentos sobre a vida em companhia do oceano:
“Gosto de uivar no vento como os mastros/E de me abrir na brisa com as
velas,/ E há momentos que são quase esquecimento/Numa doçura imensa de
regresso.//”
O pirata se coloca como uma extensão do próprio navio e em comunhão
com esse irmão do mar, o vento, que volta na quadra seguinte, em que o tom fica
ainda mais cálido:
mil e oitocentos paus de pinho e dois mil e duzentos de sobro. In: BUENO, Eduardo. A viagem do
descobrimento. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998. p. 71.
141
“A minha pátria é onde o vento passa,/A minha amada é onde os roseirais
dão flor,/O meu desejo é o rastro que ficou das aves,/E nunca acordo desse sonho e
nunca durmo.//”
A atmosfera poética se adensa quando o corsário usa metáforas para
especificar o espaço geográfico da pátria como todos os lugares em que a brisa
sopra, englobando todos os oceanos e mares do planeta. A figura da mulher
também é definida de maneira metafórica através da beleza da rosa, ou seja, o eu
lírico fala de um lugar por meio de um elemento abstrato, e depois alude a um
elemento concreto por meio de um lugar. Nesse último, entenda-se que não por
acaso, a “amada”, no singular, está ligada a “roseirais” no plural, para com o auxílio
da figura de linguagem exprimir a variedade dos amores do pirata, com “um amor
em cada porto”. Nos dois últimos versos, uma metáfora da ausência do desejo
indicada nos “rastros das aves”, e a expressão de atemporalidade marca a vida que
é passada entre o oceano e o vento, sempre mirando a ampla infinitude do mar azul.
“Pirata” é metafórico no desejo da vida ao lado do mar, sem outro
compromisso que não seja o da maresia. A “atividade profissional”, vamos dizer
assim, é quase uma desculpa para esse contato que afasta das preocupações e da
monotonia terrenas, num exercício de autoconhecimento e de solidão em que a
permanência dentro desse espaço circundante torna difícil separar o sonho da
realidade.
4.2.2 O florir das ondas ordenadas: No tempo dividido (1954), Mar
Novo (1958), Livro Sexto (1962)
O próximo poema, do volume No tempo dividido, é um exemplo puro de
imanência do ser que adere ao real, e de certa forma é um paradoxo, pois da
materialidade das coisas retira sua completude numa inteireza que prescinde do
transcendente:
“Iremos juntos sozinhos pela areia/Embalados no dia/Colhendo algas
roxas e os corais/Que na praia deixou a maré cheia.//” (TD, 29)
Os versos são claros, tanto em relação ao intento quanto à sua imagem
luminosa, descortinam a praia de areia fina onde o par caminha,
como crianças, no balanço do dia, porque a poeta transporta a oscilação das ondas
142
para a terra. O espectro de cor é aumentado com o acréscimo dos corais e das
algas num tom exuberante, o roxo, que assume o foco da imagem,
“As palavras que me disseres e que eu disser/Serão somente as palavras
que nas coisas/Virás comigo desumanamente/Como vêm as ondas com o
vento.//”
A atmosfera calcada no real assume o controle do poema em tom
imperativo, conduzindo a atenção para a materialidade das coisas presentes e
absorvendo com avidez as sensações desse contato com o mundo concreto.
“Desumanamente” é escolhida pelo poeta para rogar ao interlocutor uma
aderência ao mundo sensível, afastado do que caracteriza o homem em relação aos
animais, o raciocínio.
“O belo dia liso como um linho/Interminável será sem um defeito/Cheio de
imagens e conhecimento.//”
A comparação que reforça a amplitude e a pureza da luz é subterfúgio
revelado pelo próprio poeta, sem “defeito”, e a última imagem que resta é o largo,
claro pano de linho, branco como o dia, sem conhecimento nem informação
nenhuma que não seja a da comunhão com a beleza daquilo que é real e está ao
alcance.
No tempo dividido conta com um par de poemas que são apresentados
pela autora em páginas diferentes, “O arco das espumas” (TD, 28) e Praia” (TD,
31), mas que julgamos mais interessante apreciar como um trabalho em espelho:
No primeiro, “O mar rolou as suas ondas negras/Sobre as praias tocadas
de infinito”.
No segundo, “As ondas desenrolam os seus braços/E brancas tombam de
bruços”.
O primeiro ponto em comum é um verbo e seu antônimo, “rolou” por
“desenrolam”, seguido da escolha do gênero, masculino no primeiro e feminino no
segundo, “o mar” e “as ondas”, para depois trocar por feminino e masculino, “as
ondas” e “os braços”. Sophia continua a brincadeira ao mudar a cor, “negras” por
“brancas”, formando uma metáfora que é bem simples e fala dos ciclos da vida: a
maré que sobe, a maré que desce. Tudo nos poemas é complementar, claro e
escuro, num jogo poético em que Sophia brinca de metáfora Yin e Yang e os
opostos formam, desde tempos imemoriais, a inteireza do mundo.
143
“Caminho da Índia” (TD, 44) é homenagem prestada ao cantador da
grande epopéia lusitana:
I: “Ante o seu rosto pára a história/E detém-se o exército dos ventos/Tinha
o futuro por memória.//Coração atento em frente à linha lisa/Do horizonte/Vontade
inteira e precisa/Exacto pressentimento.//”
A imagem contida na metáfora das primeiras linhas nos descortina a
figura do grande vate luso, com seu olho ferido na guerra e a coroa de louros
conferindo o alto estro, que parou a história no período das navegações para abrir
com sua epopéia um espaço mais largo na memória coletiva. O poema recupera um
episódio de Os Lusíadas em que os deuses do Olimpo intercedem para evitar o
naufrágio das caravelas portuguesas, e aqui a visão de Walter Benjamin do anjo da
história voltado para o passado se inverte, pois, segundo Sophia, Camões o
recupera com um olhar no futuro, “Exacto pressentimento”.
II: “Que no largo mar azul se perca o vento/E nossa seja a nossa própria
imagem.//Desejo de conhecimento/As tempestades deram-nos passagem.//E os
lemes quebrados dos capitães mortos/E os náufragos azuis do fim do mundo/Na rota
de todos os portos/No fundo do mar profundo/Com os seus braços ossos/E seus
verdes destroços/Marcaram o caminho.//”
Na segunda parte, o eu lírico exalta a imensidão desconhecida e
amedrontadora dos oceanos “nunca dantes navegados”, e é reafirmada a vontade
de que a versão dessa história deve ser escrita pelos próprios portugueses, e
“Cesse tudo que a Musa antiga canta/Que outro valor mais alto se alevanta”, dando
passagem a esta “fúria grande e sonorosa” (Os Lusíadas, Canto I); são nomeadas
as perdas com a grande aventura das navegações, tempestades, capitães mortos,
náufragos, e no fundo do oceano, uma trilha de ossos que é metáfora reveladora da
progressão lenta das rotas marítimas, feitas de tentativa e erro, paga a preço alto.
Em sua homenagem a Camões, Sophia Andresen dialoga com os afamados versos
da epopéia lusitana, porém, fiel a seu estilo conciso, revela nas entrelinhas os
dizeres que sua parcimônia resguarda.
Os poucos versos alinhados ao fim do poema encobrem uma miríade de
poemas sobre as perdas e os sacrifícios necessários para que “fosses nosso, ó mar”
254
, entre eles o “Mar português” de Fernando Pessoa, revelando a destreza poética
254
“Ó mar salgado, quanto do teu sal/São lágrimas de Portugal!/ Por te cruzarmos, quantas mães
choraram,/Quantos filhos em vão resaram! Quantas noivas ficaram por casar/ Para que fosses nosso,
144
dessa mestra, que num verso tão conciso entrelaça referências dos dois maiores
vates portugueses, como apontam os versos abaixo.
“Prece” (TD, 45) é exemplo em que o lirismo mais alto empresta a pena,
não para louvar, mas para moldar o próprio universo à volta do seu objeto de
afeição:
“Que nenhuma estrela queime o teu perfil/Que nenhum deus se lembre do
teu nome/Que nem o vento passe onde tu passas.//”
“Para ti eu criarei um dia puro/Livre como o vento e repetido/Como o florir
das ondas ordenadas”.
No estágio metafórico inicial, as analogias entre “estrela” e “queima
conduzem ao astro de quinta grandeza que nos permite viver, mas a invocação é
mais ampla, dirigida a todos os astros do universo. Aos imperfeitos deuses do
Olimpo, possuidores das fraquezas que fazem o eu lírico temer pela lembrança do
nome, podemos acrescentar algumas figuras, percebendo, de qualquer modo, que o
desejo manifesto aqui é manter a negra Átropos e sua tesoura a uma boa distância.
Depois do sol, a súplica continua para alcançar até a suave brisa que nos
desmancha os cabelos, e como a deusa nórdica Friga, zelosa mãe de Balder
255
, no
poema também se pede a cada elemento da natureza que não cause nenhum dano
ao ente querido, numa sutil lembrança da saga escandinava.
A imagem apresentada é sutil, e cada um de nós percebe nesse bem-
amado uma figura de nossa própria afeição, porém a presença do sol e do vento, e
também da poeta Sophia Andresen por trás do eu lírico, colocam o cenário numa
atmosfera de muita luz, completada com “puro”, fixando na imagem radiosa esse
adjetivo imaculado. A liberdade plena do ar retorna com o vento e a promessa de
contínua florescência das ondas, que a par das semelhanças com as flores, se
apresentam a nós como brancas, crespas, belas, numerosas.
é mar!//Valeu a pena? Tudo vale a pena/Se a alma o é pequena./Quem quer passar além do
Bojador/ Tem que passar além da dor./Deus ao mar o perigo e o abysmo deu, /Mas nelle é que
espelhou o céu.” PESSOA, Fernando. Mar português”. In: Mensagem. Obra poética. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 2005. p. 82.
255
Friga, esposa de Odin, é vidente e prevê a morte de Balder. Sai pelo mundo pedindo a todos os
seres da natureza que jurem não lhe fazer mal, mas Balder é morto de modo involuntário pelo próprio
irmão, Hoder, com um dardo envenenado pelo deus Loke num ramo de visgo pequenino que não fez
o juramento. As sagas nórdicas foram primeiramente narradas por Snorri Sturluson (1178-1241),
autor muito citado por J. L. Borges. In: ___STURLUSON, Snorri. The Prose Edda. Introd. Rasmus B.
Anderson. Chicago: Scott, Foresman and Co., 1901, p. 135.
145
Na metáfora do poema é perceptível através da prece não só uma oração,
mas também uma oferenda. Esse amor é presente volátil e não vem em pacotes
bem feitos, mas seu significado transcende a posse do material; ele alcança por
meio da natureza uma maneira de possuir que, de certo modo, é ainda mais
completa, e como as vagas do oceano, interminável.
O arquiteto João Andresen, irmão de Sophia, com um projeto de nome
Mar Novo venceu em 1955 o concurso para a construção de um monumento ao
Infante D. Henrique, em Sagres, mas a ditadura salazarista impediu sua construção.
Numa afirmação política, Sophia adota o título para o livro publicado em 1958.
O primeiro poema de Mar novo que vamos analisar será “Náufrago” (MN,
36):
“Agora morto oscilas/Ao sabor das correntes/Com medusas em vez de
pupilas.//Agora reinas entre imagens puras/Em países transparentes e de vidro,/Sem
coração e sem memória/Em todas as presenças diluído.//”
A primeira imagem revela o corpo do náufrago levado pelas águas do
mar, aderente ao oceano que lhe empresta o animal marinho elástico, de branca
transparência, para a analogia que substitui a visão. Os afogados flutuando na morte
parecem continuar sonhando, de acordo com Bachelard, pois a água partilha dos
mesmos poderes da morte e da noite.
O caráter límpido desse espaço é reiterado através de termos como
“puras”, “transparentes”, “de vidro”, notabilizando uma relação sutil em que as
imagens do fundo do mar são referenciadas, mas na verdade esses adjetivos
parecem pertencer ao náufrago. Ao mencionar a perda do coração, órgão crucial à
vida que reúne uma poderosa carga semântica, junto da memória, sede das nossas
lembranças e eixo central sobre o qual gira a construção do nosso ser, o eu lírico
exibe o processo de total desumanização desse corpo e a perda completa da sua
essência vital.
“Agora liberto moras/Na pausa branca dos poemas./Teu corpo sobe e cai
em cada vaga,/Sem nome e sem destino/Na limpidez da água.//”
Separado do que foi o espírito de si mesmo, o envoltório passageiro
agora está enfim livre da dor, da fome, do frio, de todas as agonias do corpo,
flutuando metaforicamente na expressão do eu lírico, “pausa branca dos poemas”,
como que incorporado à alvura da página mostrada nos versos em afinidade com a
água.
146
A imagem do cadáver desconhecido que fica à deriva no mar volta na
última estrofe associado novamente à “limpidez”, termo utilizado para expressar um
sentido de purificação total que abarca a vida, a memória, a identidade. Fica apenas
uma casca, expurgada de tudo o mais de modo radical, regressando ao estágio
bíblico primevo, que aqui não é o do retorno ao pó, pois numa perspectiva
andreseana, ele só poderia ser em comunhão com a água.
No poema seguinte, “Seqüência” (MN, 37), como o título indica, o tema
é retomado,
“A sua face transpôs os temporais/O vento azul rolou entre os seus
braços//A penumbra subiu e rodeou/O seu rosto aceso as suas mãos iguais//Dos
seus ombros nasceram as estátuas/E o gesto dos seus dedos/Encantou os
navios//Baloiça um enforcado na baía/Mãos sem corpo levam castiçais//Uma cortina
enrola-se na brisa/Uma porta bate e de repente/Um corredor fica vazio.
“Seqüência” inicia com uma sinédoque, onde “face” vale pelo corpo do
enforcado que flutua em meio às tempestades marinhas. No próximo verso, “rola” o
vento, em vez de soprar, pois ele se adapta à estrutura cilíndrica dos braços do
morto. A chegada da noite indica também a passagem do tempo, por meio do verbo
“subir”, cobrindo as faces de escuro.
As linhas seguintes são enigmáticas, numa lembrança vaga do
nascimento da deusa Palas Athena, surgida da cabeça de Zeus, depois que este
pediu a Hefestos que a partisse ao meio com seu martelo. Mas talvez a leitura dos
versos adiante indique um caminho no ofício do enforcado, quem sabe um escultor.
A menção aos castiçais levados por mãos “sem corpo” lembra um afastamento em
que o espírito sofre, prevalecendo sobre a materialidade do indivíduo, nas linhas
completadas com três imagens de ausência, a cortina ao vento, o bater da porta,
quem sabe um sinal de adeus, e a casa vazia.
O poema de Sophia é obscuro, permitindo leituras variadas, mas de
algum modo parece contar uma história em flash back, em que o intróito consta do
poema anterior, “Náufrago”. O objeto dos versos era nomeado como náufrago,
porém na continuação, a causa da morte é definida como enforcamento. Neste
resumo poético surge o enforcado, sua breve biografia, alguém sozinho, e por fim
uma discussão. Mas esta é apenas uma possibilidade entre tantas.
“Os navegadores” (MN, 57) mostra a atividade no barco e visualiza o alto
mar:
147
“Eles habitam entre um mastro e o vento.//Têm as mãos brancas de sal/E
os ombros vermelhos de sol.//Os espantados peixes se aproximam/Com olhos de
gelatina.//”
O poema inicia com uma metáfora da liberdade da vida ao do ar livre,
utilizando um termo abstrato, o vento, ao lado do mastro, concreto, para situar os
marinheiros no espaço ao qual pertencem. São versos coloridos onde Sophia brinca
com a vida e com a cor; mãos, ombros, olhos, são brancos, são vermelhos, ou de
transparente gelatina.
“O mar manda florir seus roseirais de espuma”, desloca a campina para o
largo oceano, unindo as vagas e a espuma às imagens das rosas em botão, para
depois mudar o foco do nosso olhar para o alto,
“No oceano infinito/Estão detidos num barco/E o barco tem um
destino/Que os astros altos indicam.//”
A primeira leitura possível desses versos une o céu, o navio e as estrelas;
ou então, pode-se dizer de outro modo, que o mar é largo, a viagem é longa, e a rota
depende das cartas celestes e do astrolábio. Nessa opção, as ondas quebram nas
águas deixando espuma.
Mas outra escolha, a terrestre, digamos assim: a vida nos apresenta
muitas possibilidades, porém o destino é inexorável e não está em nossas mãos,
enquanto na campina ao longe, os roseirais abrem seus botões.
Ou seja, a metáfora se presta para terra e mar, marinheiros ou
camponeses, mas sejamos nós navegadores ou camponeses, na vida nunca
garantia - e também não há refúgio.
“Lusitânia” (MN, 60) é mais um poema em que um protesto, na
verdade, não muito velado:
“Os que avançam de frente para o mar/ E nele enterram como uma aguda
faca/A proa negra dos seus barcos/Vivem de pouco pão e de luar.”
Em “Lusitânia” não há metáfora no primeiro verso, há uma comparação no
segundo, e a metáfora se forma com a totalidade do poema, aproximando as formas
acutiladas da proa e da faca, onde fica evidente a intenção do poeta de apontar um
malefício. Na última metáfora, o alimento do corpo, o pão, ou no caso, a falta dele,
entra por conta das carências a que as longas viagens por mares desconhecidos
submetiam os marinheiros, numa oposição à presença da lua, foco de beleza que
ilumina o navio solitário navegando na penumbra do oceano, abastecendo a alma.
148
Numa carta a Jorge de Sena datada de janeiro de 1960, Sophia diz estar
dispersa, “escrevendo uma coisa muito construída em que quase não tinha
pensado”, e que “o mundo da Poesia, do Dia do Mar, do Coral morreu e o mundo do
Mar Novo foi ultrapassado”
256
.
Livro Sexto foi o vencedor do Grande Prêmio de Poesia promovido pela
Sociedade Portuguesa de Escritores em 1964, vencendo Metamorfoses, do próprio
Jorge de Sena, no desempate. É uma de suas obras mais conhecidas.
Em “Musa” (LS, 16) uma invocação ao modo dos antigos poemas
épicos:
“Musa ensina-me o canto/Venerável e antigo/O canto para todos/Por
todos entendido//Musa ensina-me o canto/O justo irmão das coisas/Incendiador da
noite/E na tarde secreto//Musa ensina-me o canto/Em que eu mesma regresso/Sem
demora e sem pressa/Tornada planta ou pedra//Ou tornada parede/Da casa
primitiva/Ou tornada o murmúrio/Do mar que a cercava//(Eu me lembro do chão/De
madeira lavada/E do seu perfume/Que me atravessava)//”
A primeira referência cabe ao aedo grego que cantou a ira de Aquiles,
“Canta, ó Musa”, diz Homero. A invocação, componente tradicional da poesia épica
e parte dos ensinamentos retóricos, segundo Aristóteles, consta não apenas da lírica
grega, mas também da Eneida e dos Lusíadas, onde Camões faz uma substituição,
conclamando as náiades do Tejo e do Mondego. Na Retórica, Aristóteles enfatiza a
necessidade de antecipar o tema para que ele seja bem compreendido, como
também quer Sophia. Na estrofe seguinte, ela usa dois termos, “incendiador” para a
noite, e “secreto” para o dia, estabelecendo uma diferença entre poemas, o discurso
velado e o discurso ardente.
Sophia volta aos gregos quando implora por um retorno à moda de
Narciso, que voltou na beleza de uma flor, ou, como as vítimas da Górgonas,
transformadas em pedra. Tal desejo vai além da identificação com o mundo natural e
alcança a metamorfose à moda clássica dos mitos helênicos, em que todas as
espécies são intercambiáveis, englobando os elementos num ciclo único
257
.
256
ANDRESEN, Sophia. SENA, Jorge de. Correspondência. Lisboa: Paz e Terra, 2006. p. 32.
257
Zeus, grande sedutor, fazia muito uso desse recurso, transformando-se em chuva ou em cisne, em
geral, motivado pela recusa de donzelas reticentes. In: Dicionário Oxford de Literatura Clássica grega
e Latina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 303.
149
Mas deixa o Letes e retorna às suas águas de eleição, ao Atlântico e a
casa da sua infância, esclarecendo um desejo do eu lírico de integração em torno do
lugar a que pertence, seu marco inicial. O olfato aparece como agente reativador da
memória nessa volta à meninice que tenta resgatar um período temporal precioso,
cujas lembranças guardadas têm tamanha profundidade que induzem a essa
integração com a casa e a maresia.
“Musa ensina-me o canto.Onde o mar respira/Coberto de brilhos/Musa
ensina-me o canto/Da janela quadrada/E do quarto branco//
Que eu possa dizer como/A tarde ali tocava/Na mesa e na porta/No
espelho e no copo/E como os rodeava//
Pois o tempo me corta/O tempo me divide/O tempo me atravessa/E me
separa viva/Do chão e da parede/Da casa primitiva//
Musa ensina-me o canto/Venerável e antigo/Para prender o brilho/Dessa
manhã polida/Que poisava na duna/docemente seus dedos/E caiava as paredes/Da
casa limpa e branca//
Musa ensina-me o canto/Que me corta a garganta//
O eu lírico implora à musa não o canto de ira do herói dos aqueus, mas o
caminho poético que recupera o espaço sagrado da memória feliz através da
materialidade dos objetos, como a janela, a mesa, o espelho, o copo. A simplicidade
das formas guarda em si uma perspectiva inicial de apreensão do mundo, na tenra
idade em que a realidade sólida do espaço circundante começa a ser nomeada.
qualquer coisa de psicanalítico nesse retorno ao imaginário infantil que retém na
memória formatos, cheiros, sombras e, evocados, transportam de volta a um tempo
no qual as imagens do mundo e a sua apreensão traziam o assombro, mas que ao
longo da vida vão se tornando banais.
O eu lírico se queixa de que o tempo separa, divide e atravessa essas
duas fases, impedindo o nosso imaginário de perceber o comum e o essencial com
uma visão de criança que repõe o seu real valor. Cantar o brilho da manhã é o seu
pedido à Musa, a fim de guardar o momento em que os raios do sol “polem” as
areias claras e pintam de cal as paredes da casa, mesmo consciente de que o
instante lhe dói como ao Lorca do Romanceiro gitano, na “ferida que tenho do peito
150
até a garganta”
258
. Mas, insistindo com a Musa, ainda pede ajuda para continuar
com o canto fatal.
“Barcos” (LS, 12) nos apresenta uma imagem de cartão postal, “Um a um
para o mar passam os barcos/Passam em frente aos promontórios e
terraços/Cortando as águas lisas como um chão//E todos os deuses são de novo
nomeados/Para além das ruínas dos seus templos//”
A imagem das naves singrando as águas da península, com os terraços
dos prédios na linha do horizonte, induz em nosso imaginário a visão de Lisboa,
apoiada na metáfora que afasta as ondas e essas águas em completa lisura; ali,
os barcos deslizam mansos como as notas de um fado, com sua tripulação tomando
as alcunhas dos argonautas ou da sua descendência, os marinheiros que um
longo tempo se lançaram ao mar em mais de mil navios em busca da mulher de
Menelau.
E por falar em marinheiros, o poema seguinte nos apresenta mais um
deles, “Pescador” (LS, 11):
“1 Irmão limpo das coisas/Sem pranto interior/Sem introversão//2 Este que
está inteiro em sua vida/Fez do mar e do céu seu ser profundo/E manteve com
serena lucidez/Aberto seu olhar e posto sobre o mundo//”
A proximidade com a água produz a metáfora da purificação na pessoa
do pescador, um asseio que se apresenta por dentro e por fora, num ente descrito
pelo eu lírico como os heróis épicos por Lukács, ou seja, sem questionamentos e
numa integração perfeita com o mundo, onde complementa o u e o mar. Dessa
certeza na constância de todas as coisas resulta um cotidiano sereno, paciente e
submisso à ordem cósmica, onde a metáfora elege um oficio milenar para propor um
acordo entre nós, homens angustiados, e o nosso destino.
Em “A vaga” (LS, 20), a poeta de “Dual” recupera o mote do animal
selvagem, simbólico da força sem controle:
“Como toiro arremete/Mas sacode a crina/Como cavalgada//Seu próprio
cavalo/como cavaleiro/Força e chicoteia/Porém é mulher/Deitada na areia/Ou é
bailarina/Que sem pés passeia//”
As semelhanças entre a força do animal e a força das águas formam a
primeira metáfora, numa imagem complexa que se transforma a cada verso, pois
258
LORCA, Federico García. Romance sonâmbulo. In: ___. Romanceiro gitano. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1996. p. 321.
151
nas linhas seguintes se incorpora outra figura, quando entram os eqüinos com suas
longas crinas, comparadas pelo eu lírico com a curva das ondas.
Depois do touro e do cavalo, agora a vaga toma o lugar do cavaleiro,
açoitando as águas que se curvam como a linha de um chicote; mas, como no
oceano as ondas se sucedem infinitamente, também aqui no poema, uma após da
outra, a imagem se transforma, porque do mesmo modo que no mar, cada uma é
diferente. E vem agora, depois da violência, a visão inesperada dessa curva
associada ao elemento feminino, redonda, uma aquática Vênus calipígia, ou, na
próxima vaga, quebrando mansa na conclusão do poema, em versão de sílfide, uma
longilínea bailarina.
4.2.3. Tudo é divino como convém ao real: Geografia (1967), Dual
(1972), O Nome das Coisas (1977)
No primeiro poema de Geografia, o “muito belo” “Procelária” (GE, 17), na
opinião de Jorge de Sena
259
, a tempestade é motivo para Sophia brincar com a
onomatopéia ao fazer crítica pessoal:
“É vista quando há vento e grande vaga/Ela faz o ninho no rolar da fúria/E
voa firme e certa como bala//As suas asas empresta à tempestade/Quando os leões
do mar rugem nas grutas/Sobre os abismos passa e vai em frente//”
Primeiro veremos o poema sob o significado dicionarizado do título, de
ave marítima, os mesmos fura-buxos que anunciaram a presença de terra aos
marinheiros de Pedro Álvares Cabral. Vivendo na crista das ondas, são conhecidas
por anunciar as tempestades no mar, as procelas. Assim, a imagem descortina um
mar encapelado onde o vento sopra forte, reafirmado na estrutura onomatopaica
com palavras iniciadas com [v], até surgir a metáfora no segundo verso.
Ali, temos a palavra “ninho”, semelhante quanto à forma circular com o
anel formador das ondas, e que recebe mais destaque no poema após o emprego
do verbo “rolar”; assim, palavra por palavra, o poema vai construindo uma imagem
indelével de redemoinho. Os campos semânticos unidos pelo espaço aéreo em
“vento”, “ninho”, “voa”, “asas” se alinham sugerindo um imaginário que fixa diante de
nós a presença viva do pássaro, possuidor de uma brancura profunda. Nos versos
259
ANDRESEN, Sophia. SENA, Jorge de. Correspondência. Lisboa: Paz e Terra, 2006. p. 58.
152
seguintes, em que a sibilância da ventania se fixa com o [s], um primeiro significado
percebe a passagem destrutiva do vento furioso perto do mar e dos abismos.
“Ela não busca a rocha o cabo o cais/Mas faz da insegurança sua força/E
do risco de morrer seu alimento//Por isso me parece imagem justa/Para quem vive e
canta no mau tempo//”
Nesta estrofe, após sugerir os portos seguros onde se pode atracar um
navio, a imagem fica mais apagada; o emprego de “procelária” para um cantador
feliz em dia nublado é em si uma metáfora, todavia, o verso fará mais sentido
quando visto sob uma perspectiva metafórica completa.
Com o poema sob um segundo panorama, os termos “vento”, “vaga”,
“fúria” e “tempestade” são metáforas exprimindo um estado social convulso.
Construir o ninho dentro da tempestade toma o sentido de alguém que luta em meio
a uma situação de dificuldade e, “Firme” e “certa” como uma bala, delineia um
propósito inabalável. O ruflar de “asas” ao sabor da tempestade, assim como a
passagem sobre os abismos quando surgem os leões, são uma composição
metafórica para exemplificar o comportamento desenvolto do ser que atravessa
incólume todos os obstáculos. Como as procelárias, aves de alto mar, não procura
abrigo seguro, sobrevoando os ares; no último verso diz o eu lírico que os versos
retratam de maneira adequada um cantador que sobrevive no mau tempo.
Outra ave, o abutre, foi modelo para a persona de Oliveira Salazar em
Livro Sexto, num poema que Sophia gostava muito de recitar, “O velho abutre é
sábio e alisa suas penas“asas”
260
/A podridão lhe agrada e seus discursos/Têm o
dom de tornar as almas mais pequenas” (LS, 68), conforme depoimento da própria
autora a Gastão Cruz
261
.
O título de um filme sobre o ocaso de uma veterana atriz, “Crepúsculo dos
deuses” (GE, 70)
262
, serve para Sophia discorrer poeticamente sobre a queda das
divindades olímpicas:
260
No que é o mais intenso estudo sobre a maldade, segundo Frank Kermode, Macbeth, de
Shakespeare, traz uma longa lista onde as aves simbolizam mudanças da natureza, o mau agouro e
o lado negro do ser humano, numa tradição literária que Sophia continua. Citando algumas delas,
corvos, morcegos, gaviões, martinetes, corujas, pombas, pegas, gralhas, harpias e abutres, entre
outros. In: SHAKESPEARE, William. The Riversides Shakespeare. Boston; New York: Houghton
Mifflin Company, 1997. p. 1.355.
261
A entrevista, que também contou com a presença de Eucanaã Ferraz, foi publicada na edição do
jornal Público, de 10/07/04 na semana seguinte ao falecimento de Sophia. (Nota da A.)
262
WILDER, Billy. Crepúsculo dos deuses. Gloria Swanson, Erich Von Stroheim, William Holden.
Paramount, 1950.
153
Um sorriso de espanto brotou nas ilhas do Egeu/E Homero fez florir o
roxo sobre o mar/ O Kouros
263
avançou um passo exactamente/a palidez de Athena
cintilou no dia//Então a claridade dos deuses venceu os monstros nos/ [frontões de
todos os templos/E para o fundo do seu império recuaram os Persas//Celebramos a
vitória: a treva/Foi exposta e sacrificada em grandes pátios brancos/O grito rouco do
coro purificou a cidade//
Sophia faz menção ao épico grego e ao vate português quando nos
apresenta o alvorecer na linha do verso, aludindo aos versos da Odisséia que falam
da alva como a “Aurora de róseos dedos”, porém, alterando a cor para o roxo que
vigorava no tempo de Camões, quando essa coloração é dada ao mar nos Lusíadas.
Sobre os kouroi, antiga estatuária que reúne os espíritos diversos da
cultura jônica e dórica, Sophia diz que “Partindo de uma imagem que é o homem, o
Kouros é um modelo para o homem”, porque “não pertence a um mundo teórico,
nem a outro mundo, mas ao mundo em que estamos”
264
. Essas estátuas, afirma,
reúnem características do homem jônico como a inteligência e a alegria vital, e “o
amor da nudez, das formas claras e simples, o amor da ordem e da austeridade”
265
que vem dos dórios. Um Kouros em especial, o de Milo,rmore jônico de cerca de
540 a. C., é objeto de maior atenção, pois
O seu corpo intensamente diurno diz a distância que separa o sagrado do
divino, diz que o mundo em que estamos é pátria do ser. De acordo com a
lei da frontalidade, ele avança unicamente um passo. Mas esse passo deixa
para trás o mundo difuso do terror primitivo, e mundo em que os deuses são
chacais e serpentes, o mundo dos deuses devoradores sombrios do
homem, e introduz-nos num mundo de formas precisas, lisas, maravilhadas
e livres. Apolo matou o Python e Theseu venceu o Minotauro. As
métopas e os frontões de todos os templos começam a celebrar o triunfo da
claridade
266
.
O trecho do ensaio é auto-explicativo e aponta para a metáfora que
resume o poema, confirma a cintilação da deusa da sabedoria, em linguagem
figurada onde o dia luminoso refletido na palidez de Atena aponta para uma
clarificação do saber, representado na menção à Homero e na atitude do Kouros
263
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. O nu na Antiguidade Clássica. Op. cit., p. 35. Kouros,
plural kouroi, feminino Korai, é o nome dado às representações masculinas dos nus gregos no
período arcaico, persistindo até o início do período clássico que trouxe à escultura greco-romana uma
forma mais naturalista. Os kouroi mostram grande influência da arte oriental do antigo Egito. Os
exemplares mais antigos foram encontrados na ilha de Delos, sendo que uma de suas funções era
representar o deus Apolo.
264
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. O nu na Antiguidade Clássica. Op. cit., p. 45.
265
Op. cit., p. 36.
266
Op. cit., p. 52.
154
com um adiante do outro, pois os antigos deuses animais agora cedem a
primazia ao antropomorfo.
O recuo dos persas alude às guerras Médicas
267
que expulsaram os
exércitos de Xerxes e garantiram a hegemonia ateniense na Ásia Menor, iniciando o
áureo período do século de Péricles em que floresceram as bases da cultura
ocidental, cabendo ainda uma menção da poeta portuguesa ao nascimento da
tragédia quando resgata “o grito rouco do coro”.
Em carta a Jorge de Sena em novembro de 1969, diz Sophia que “A
catharsis, o extasis, a alegria veemente e trágica da nossa vida estavam na
actualidade inesgotável e lucidíssima dos Kouroi e das Kourai
268
.
“Como golfinhos
269
a alegria rápida/Rodeava os navios/O nosso corpo
estava nu porque encontrara/A sua medida exata/Inventamos: as colunas de Sunion
imanentes à luz/O mundo era mais nosso a cada dia//
Mas eis que se apagaram/Os antigos deuses sol interior das coisas/Eis
que se abriu o vazio que nos separa das coisas/Somos alucinados pela ausência
bebidos pela ausência/E aos mensageiros de Juliano a Sibila respondeu:/„Ide dizer
ao rei que o belo palácio jaz por terra quebrado/Phebo não tem cabana nem
loureiro profético nem fonte/[melodiosa/A água que fala calou-se. *//
* Resposta do Oráculo de Delphos a Oríbase, médico de Juliano, o Apóstata
270
(Cedrenus, Resumo da História).
O poema vai se desenvolvendo em torno de metáforas que recuperam o
período da supremacia grega no mar Egeu, unindo essa vocação marítima ao lirismo
apolíneo das kouroi, onde o escultor busca através da proporção e da geometria a
fórmula mais exata porque o Kouros é a imagem fundamental, o homem „medida de
todas as coisas‟, a imagem das imagens”
271
.
267
Nos Lusíadas, Canto X, Camões alude a Dario, às batalhas das Termópilas e de Maratona e à
Ausônia de Tusco na Eneida, de Virgílio (Nota da A.).
268
ANDRESEN, Sophia. SENA, Jorge de. Correspondência. Op. cit., p. 107.
269
O sétimo Hino Homérico relata a prisão de Dionysos por piratas tirrênios, mas ele se transforma
em leão e faz crescer uma vinha no mastro. Apavorados, o piratas jogam-se ao mar e se transformam
em golfinhos. Como deus do vinho, ele inspirava os homens para a música e a poesia. In: Dicionário
Oxford de literatura clássica grega e latina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 168.
270
Juliano, o Apóstata, foi o ultimo imperador romano pagão, apesar de ter sido educado no
cristianismo. Fez o possível para preservar o helenismo e restaurar a religião antiga. In: Dicionário
Oxford de literatura clássica grega e latina. Op. cit., p. 297.
271
ANDRESEN, Sophia. Op. cit., p. 46.
155
O crepúsculo dos deuses se aproxima, trazendo o ocaso da imanência e
o vazio, a morte do loureiro e a ca da fonte de Apolo. A metáfora melancólica do
poema estabelece alguns fatos que possibilitaram a ascensão da mitologia greco-
romana e a queda que nos afastou, como os heróis, da nossa essência, abrindo um
vazio que, para o eu lírico, continua a nos perturbar até os dias de hoje.
“Vou publicar um livro”, diz Sophia, “e não sei como lhe hei de chamar.
Talvez Dual mas é erudito demais (...) porque dual é uma forma arcaica que
Homero usa”
272
. “Ariadne em Naxos” (DU, 63) é o seguimento poético do poema
anterior em Dual, “O Minotauro”, onde o eu lírico visita o palácio de Cnossos, em
Creta, morada do homem-touro. Neste poema, é recuperada a história da princesa
que se apaixona por Teseu e oferta o fio de linha que permite a saída do labirinto
depois de matar o monstro:
“Tu Teseu que abandonas amadas/Junto de um mar inteiramente
azul/Invocavam deixadas/No deserto fulgor de Junho e Sul//
Junto de um mar azul de rochas negras/Porém Dionysos sacudiu/Seus
cabelos azuis sobre os rochedos/Dionysos pantera surgiu//
E pelo Deus tocado renasceu/Todo o fulgor de antigas primaveras/Onde
serei ou fui por fim ser eu/Em ti que dilaceras//
Ariadne foi abandonada por Teseu na ilha de Dia (Naxos), depois de
Dionysos ameaçá-lo dizendo que era noivo da moça. Temente aos deuses, Teseu
obedece a ordem e abandona Ariadne. Mais tarde, encontrada por Dionysos, ela
casa-se com ele
273
.
Os versos sem pontuação do poema podem deixar o leitor perdido como
a jovem desamparada e sozinha na ilha, pois o entendimento das falas do eu lírico
exige alguma atenção. Porém, se desrespeitarmos o hipérbato, com o auxílio da
rima, a reprimenda do eu lírico ao matador do Minotauro fica mais clara,
principalmente se a inicial maiúscula em “Sul” nos servir de guia.
Na primeira quadra, está claro que é de Ariadne que o eu lírico fala,
chamando por Teseu no calor deserto numa ilha do Sul. Na segunda estrofe, porém,
a similaridade da pantera com o deus grego se apóia na selvageria do deus do
272
ANDRESEN, Sophia. SENA, Jorge de. Correspondência. Op. cit., p. 123.
273
O casamento de Teseu e Ariadne é mencionado por Hesíodo na parte referente aos deuses
olímpicos, 947-949: “Dioniso de áureos cabelos à loira Ariadne virgem de Minos tomou por esposa
florescente e imortal e sem-velhice tornou-a o Cronida”. IN: HESÍODO. Teogonia. São Paulo:
Iluminuras, 2006. p. 153.
156
vinho, haja vista o método utilizado para afastar o rival. Os cabelos longos e azuis,
sacudidos por Dionysos, exibem um símbolo de masculinidade como o de Sansão
na Bíblia, ligado ao forte e indomável que não admite submissão.
Na terceira estrofe, “fulgor de antigas primaveras” é uma expressão
metafórica indicativa de um ressurgimento amoroso, provocado pelo toque do deus.
A primavera é a estação em que no hemisfério norte a vida ressurge depois do frio
do inverno, e a poeta utiliza um termo, “fulgor”, contextualizado de tal maneira que
amplia o significado de luminosidade, atingindo a sensação cálida proporcionada
pela chama do sentimento.
O relato do eu lírico, nos dois últimos versos, passa para a primeira
pessoa e ele se acusa, mostrando essa voz como a da própria Ariadne, que no
passado foi, ou que no futuro será, ao lado de Dionysos, “todo ser que em ti
dilaceras”; o antigo fulgor agora renasce, e como as flores soterradas sob a neve,
cresce novamente. Porém a última palavra especifica como tal processo pode ser
doloroso, pois para extinguir um sentimento tão forte dentro de nós, não basta a
simples morte, é preciso mais, é preciso extirpar dentro de nós mesmos algo que
não deve mais permanecer ali.
“Os gregos” (DU, 65) é uma espécie de resumo poético sobre a maneira
como a poeta portuguesa percebe os habitantes do monte Olimpo que tanto admira:
“Aos deuses supúnhamos uma existência cintilante/ Consubstancial ao
mar à nuvem ao arvoredo à luz/Neles o longo friso branco das espumas o tremular
da vaga/A verdura sussurrada e secreta do bosque o oiro erecto do trigo/O meandro
do rio o fogo solene da montanha/E a grande abóbada do ar sonoro e leve e
livre/Emergiam em consciência que se /Sem que se perdesse o um-boda-e-festa
do primeiro dia -/”
À imagem dos deuses olímpicos, a poeta adere o adjetivo cintilante”,
buscando assemelhar um sinônimo de brilho à majestade inerente a certas
características do sagrado, como imortalidade e poder sobre a natureza. A esse
quadro se introduz uma visualização da água, ar, terra e fogo, aqui substituído pela
luz, conduzindo o panorama do poema em direção à filosofia pré-socrática, a
Heráclito de Éfeso e aos quatro elementos, por ele chamados de “raízes” do mundo.
Depois de citados no segundo verso, o eu lírico explana poeticamente a existência
de cada um, deixando o ar por último e associando-o à grande abóbada celeste que
abarca em si todos os outros. Essa interação com a imanência das coisas vem ao
157
lado do termo “consciência”, representado como dado afastador da percepção desse
mundo como espaço de trevas e magia, numa alusão velada ao estudo dos
fenômenos da physys e das ciências pelos antigos gregos.
“Esta existência desejávamos para nós próprios homens /Por isso
repetíamos os gesto rituais que restabelecem/O estar-ser-inteiro inicial das coisas -
/Isto nos tornou atentos a todas as formas que a luz do sol/ [conhece/E também à
treva interior porque somos habitados/E dentro da qual navega indicível o brilho.”
Neste verso o eu lírico faz uma associação entre a figura humana e os
deuses, que, mesmo imortais e poderosos, manifestavam em si defeitos iguais aos
dos homens, como ciúmes, acessos de raiva, paixão descontrolada, etc. A porta que
comunicava esses dois mundos eram as cerimônias ritualísticas onde o humano e o
divino interagiam, e é desse convívio que resultou o hibridismo que aglutina lados
opostos; agora, semelhantes aos deuses, os homens conhecem tanto “a luz do sol”
como a “treva interior”. Os dois termos são metáforas para o conhecimento do
mundo e para a ciência de si mesmo que impulsionam a raça humana, que agora
sabe que é nela que habitam os deuses, pois dentro dessa sombra, navega manso
um indizível brilho.
No entanto, é preciso notar que o olhar do eu rico abrange um largo
período de tempo, o qual recua a uma época em que o entendimento do mundo não
é o de hoje. Essas visões que distinguem a dicotomia entre o interior subjetivo e o
exterior objetivo são traços culturais, porém, ao tempo de um poeta como Hesíodo
eram percebidas de outro modo, e muitas
(...) das atribuições que hoje por nós são entendidas como meramente
humanas, [seus] contemporâneos entendiam como privilégios da Divindade,
inacessíveis aos mortais, - e o que na moderna perspectiva cristã se cinge
exclusivamente ao Divino, os gregos arcaicos o compartilhavam em sã
consciência com os seus Deuses
274
.
De qualquer modo, mesmo que as características do que era sagrado e
do que era humano tenham se alterado nesse período, a metáfora coordena a idéia
exibida no poema do humano mantendo em si um sopro bafejado pelo divino.
Pelo volume O nome das coisas, Sophia recebe, em 1977, o Prêmio
Teixeira de Pascoaes. “Como o rumor” (NC, 18) apresenta a água do mar como
espaço originário de criação da vida:
274
TORRANO, Jaa. O mundo como função de musas. In: ___ HESÍODO. Teogonia. São Paulo:
Iluminuras, 2006. p. 49.
158
“Como o rumor do mar
275
dentro de um búzio/O divino sussurra no
universo/Algo emerge: primordial projecto”.
A brevidade dos três versos embute um tema que foi abordado na
Bíblia e na Teogonia e que hoje em dia freqüenta as páginas de revista científicas, a
origem da vida na água. Quando o eu lírico compara o murmúrio do divino no
universo ao som de um zio, duas palavras se sobressaem, “rumor” e “sussurra”,
ambas dentro do campo semântico do som, da audição. Sussurra traz a sibilância
dos [s], e “rumor”, onde os [r] vibram alto, implica a metáfora não apenas do primeiro
som que propaga a vontade divina, mas a assertiva de um “projecto”, pois o mundo
não surge como obra do acaso. “Algo” emerge: não imagem, apenas o
pressentimento da substância microscópica que traz em si a respiração da vida.
Quanto ao búzio, as conchas são formações existentes milhares de anos e tanto
no batismo de Cristo, na Bíblia, como no nascimento de Vênus, celebrado na pintura
de Botticelli, simbolizam o receptáculo do ser. A metáfora do breve poema fala desse
plano primordial a partir do qual fomos criados, ou seja, esses versos falam de nós.
As metáforas do mar coexistem em todas as fases da poética
andreseana, e não seria ao pegar da pena dois dias após a Revolução dos Cravos,
a 27 de abril de 1974, que sua ausência se faria sentir.
“Revolução” (NC, 29): “Como casa limpa/Como chão varrido/Como porta
aberta//Como puro início/Como tempo novo/Sem mancha nem vício//Como a voz do
mar interior de um povo//Como página em branco/Onde o poema emerge//Como
arquitectura/Do homem que ergue/Sua habitação//”
O poema escrito por Sophia denuncia sua esperança de renovação com a
mudança do regime político português. As comparações demonstram uma
perspectiva onde prevalece a clareza e na qual comparece um adjetivo muito caro a
ela, “puro”, circundado por outros ligados a ele semanticamente, como “sem
mancha”, “novo”, “limpo”, “varrido” e “aberta”.
Este espectro de palavras que aprofundam um sentido de higienização
escapa do sentido original de limpeza material, para se integrar à idéia abstrata de
limpeza ética e moral, devendo ser somado a uma expectativa que, no lado oposto,
percebe nos antônimos dessas palavras o olhar de Sophia sobre a ordem anterior,
275
Poetizando a criação do universo na água, Sophia mantém uma tradição mítica que conta a
origem da vida nesse elemento por diferentes povos, finlandeses, escandinavos, japoneses,
micronésios, siberianos, indianos. In: RAGACHE, Claude-Catherine; LAVERDET, Marcel. A criação
do mundo: mitos e lendas. São Paulo: Ática, 1994.
159
como “impuro”, “manchado”, “velho”, “sujo”, “empoeirado” e “fechado”. O país,
morada de todos os portugueses, é visto como um macrocosmo da casa que
necessita passar por um processo de higienização total, à moda do século XIX no
hemisfério norte
276
, quando a neve ia embora e chegava a primavera. A autora
descarta essa figura de linguagem mais exigente quanto à interpretação que é a
metáfora, e escolhe a clareza da comparação, de modo a não deixar dúvidas quanto
à verdadeira intenção do que quer dizer. Nesse procedimento aparecem os sentidos
por imanência, na visão que deseja uma brancura sem mácula, no olfato
percebendo o odor agradável do limpo, na audição que escuta a voz das ruas, e no
tato movimentando tudo que é necessário para essa assepsia radical.
O poema junta comparação e metáfora para exprimir o cansaço da
população com mais de quarenta anos sem democracia às águas do mar que são
tão essenciais à configuração da alma lusitana, pois o mar é mostrado aqui como
algo intrínseco a esse interior. Num verso simples transparece o panorama que
permite recuperar tanto a história dos descobrimentos quanto o quase afogamento
de Luis de Camões, os versos de Pessoa, ou a jangada de pedra de Saramago,
confirmando essa afinidade estreita.
Sophia Andresen também aproveita para unir ao seu ofício a metáfora da
página em branco onde tudo está por escrever e onde jaz o poema, com o começo
de uma nova história surgindo por meio da palavra, na imagem percebida de uma
folha imaculada. O sentido de renovação política e de construção do poema
continua na última estrofe, unido novamente à figura da casa, “arquitetura do homem
que ergue sua habitação”. A escritura de um verso, a estrutura de uma casa, a
construção de um país novo, começa a partir dessa base íntegra, diz a metáfora.
“Estações do ano” (NC, 72), último poema de O nome das coisas, tem o
sopro saudoso das memórias da infância, e até mesmo lembra, nos tons lúdicos das
primeiras linhas, os versos escolares recitados em festas colegiais:
Primeiro vem Janeiro/Suas longínquas metas/São Julho e são
Agosto/Luz de sal e de setas//A praia onde o vento desfralda as barracas/E vira
guarda-sóis/Ficou na infância antiga/Cuja memória passa/Pela rua à tarde/Como
uma cantiga//”
276
Ver Wilder, Laura Ingalls. Os nove livros da série da autora americana descrevem a vida de sua
família durante os anos de 1870-1889.
160
O primeiro mês do ano abre os versos com seus dias a perder de vista e
objetivos ainda a uma distância longa, mas na terceira linha se passaram seis
meses e chega o primeiro dia de julho, usado pela poeta para fazer um trocadilho,
pois é a data em que o martirológio cristão comemora o dia de São Júlio; a este,
segue-se o mês de agosto, que não é de Santo Augusto e sim do imperador
romano, mas está santificado por ser mês de férias e de calor na Europa e isto,
para Sophia Andresen, significa ficar perto do mar. “Luz de sal” abrange a beira-mar
luminosa incorporada às águas salgadas, impelindo à sinestesia, evocando através
da brancura das ondas o gosto do tempero. “Setas” será tomado aqui como
substantivo concreto e placa sinalizadora das vias rodoviárias orientando motoristas
em férias. Nessa volta ao passado, o eu lírico revela através da metáfora o
imaginário da infância que o vento carregou, assim como foram levados os guarda-
sóis cravados na areia. A audição comparece e se agrega aos outros sentidos na
canção antiga, trazida da meninice pela memória recuperada. Transpondo tempo e
espaço, o poema volta à época atual, em verbos no presente que expõem um
queixume, pois na atualidade há mais calor e menos vento. O significado da
“frescura” desses estios de antigamente, nos dias de hoje, permite um sentido
metafórico no qual os anos de frescor do eu lírico são algo que ficou no passado.
“É verão onde hoje moro/É mais duro e mais quente/Perdeu-se a
frescura/Do verão adolescente//”
“Aqui onde estou/Entre sal e cal/Sob o peso do sol/Nenhuma folha
bole/Na manhã parada/E o mar é de metal/Como um peixe-espada”
Com “sal”, “cal”, “metal” e “sol”, forma-se um imaginário que conjuga o
calor das construções da cidade à temperatura do verão. As lembranças do eu lírico
falam do vento movimentando as coisas na praia, opostas à imobilidade abrasadora
da temporada urbana. “Duro” não é apenas o concreto armado, ou ter de suportar a
temperatura elevada, o próprio mar se metaliza, associado às escamas do peixe
espada, valendo o mar por existência, metáfora usual da poeta
4.2.4. Mediterrânica noite azul e preta: Navegações (1983), Ilhas
(1989), Musa (1994), O búzio de Cós (1997)
Os poemas de Navegações partiram de uma encomenda governamental,
em 1977, quando o Conselho da Revolução convidou Sophia Breyner Andresen
161
para tomar parte na celebração do Dia de Camões, no que seria sua primeira
viagem ao Oriente. Em discurso proferido na entrega do Prêmio do Centro
Português da Associação de Críticos Literários, em 1984, diz Sophia que em tais
poemas “há um intrincado jogo de invocações e ecos mais ou menos explícitos. E
também através dos poemas navega a frase em que algures Maria Velho da Costa
se refere aos „visionários do invisível
277
.
À medida que os poemas iam surgindo ia-se decidindo em mim a vontade
de os editar ao lado dos mapas da época, os mapas onde ainda é visível o
espanto do olhar inicial, o deslumbramento perante a diferença, perante a
multiplicidade do real, a veemência do real mais belo que o imaginado, o
maravilhamento perante os coqueiros, os elefantes, as ilhas, os telhados
arqueados dos pagodes. E também a revelação de um outro rosto do
humano e do sagrado.
278
O conjunto de versos de Navegações está dividido em duas partes, a
primeira denominada de “Ilhas” e a segunda, “Deriva”. Após a conclusão dos
poemas, o desejo de Sophia de publicá-los ao lado de mapas da época se cumpriu
com o auxílio da Imprensa Nacional- Casa da Moeda, numa edição que inclui
traduções para o inglês e o francês, e que vai nos servir de base para a análise ao
lado da última, da Editorial Caminho.
As Ilhas, I (NA, 11): Navegámos para Oriente - /a longa costa/Era de um
verde espesso e sonolento//Um verde imóvel sob o nenhum vento/Até à branca praia
cor de rosas/Tocada pelas águas transparentes//Então surgiram as ilhas
luminosas/De um azul tão puro e violento/Que excedia o fulgor do
firmamento/Navegado por garças milagrosas//E extinguiram-se em nós memória e
tempo//”
279
O primeiro poema de Navegações assume a voz de Luis Vaz de Camões
e penetra no olhar do poeta sobre a costa do oceano Índico, colocando a visão de
Sophia sobre a do eu rico da epopéia camoniana, que no Canto I fala da
“espessura de silvestre arvoredo abastecida”. A imagem da praia branca cor de
“rosas” recupera o motivo da flor, tradicional na poesia do Oriente. As ilhas tão azuis,
segundo a própria Sophia, são a visão aérea da costa do Vietnã, “três ilhas de coral
azul-escuro. cercadas por lagunas de uma transparência azulada”
280
.
277
ANDRESEN, Sophia. Navegações. Lisboa: Caminho, 2004. p. 41.
278
Op cit., p. 42.
279
Segundo nota da autora, o poema I é uma invocação da voz de Camões. Op. cit., p. 39.
280
Op. cit., p. 41.
162
Deriva, II (NA, 22): Era a rota do oiro/Porém nos grandes mares/Ou em
praias baloiçadas por coqueiros/O espanto nos guiava - /Água escorria de todas as
imagens//”
O espanto das coisas encontradas no Oriente era maior do que o
aparecimento de um tesouro por conta do nunca antes visto, daquilo que nos parece
mágico, mas se apresenta em sua dimensão real. Sophia vai traçando o caminho
desse espanto com metáforas que exploram o metal dourado, a água azulada, a
vegetação muito verde em um cenário multicolor visto pelos olhos arregalados de
assombro do europeu de quinhentos anos atrás.
Deriva, V (NA, 25): “Dos homens nus e negros contarei/E de como não
havendo connosco/quem de seu falar algo entendesse/Juntos dançamos pra nos
entendermos//”
281
Na rota das navegações portuguesas não poderia faltar menção à
chamada certidão de nascimento brasileira, a carta do escrivão-mor de Dom Manuel
I, que em certo trecho diz: Neste dia, enquanto ali andaram, dançaram e bailaram
sempre com os nossos, ao som dum tamboril dos nossos, em maneira que são
muito mais nossos amigos que nós seus”
282
.
Entre os poemas desse grupo, a edição ilustrada de Navegações traz um
atlas da costa brasileira datado de 1519, “Lopo Homem Reinéis”, pertencente à
Bibliothèque Nationale de Paris, extensamente escrito e apresentando um contorno
da costa brasileira bastante fiel, com ilustrações dos índios, nus ou cobertos de
penas, aves e animais. Nessa altura já aparece, entre “momte pasquall” e “porto
seguro”, o nome “brasyll”.
Deriva, X (NA, 30): “Sombrios deuses/Senhores do medo antigo/O sopro
como estátuas suspendendo/Na movediça luz as lamparinas” (NA, 30)
No Canto X dos Lusíadas
283
, conta-se o naufrágio “triste e miserando”
sofrido por Camões na foz do rio Mekong, onde as páginas de sua obra máxima
quase se perderam. Não por acaso, o décimo poema de Navegações faz uma
alusão às lamparinas e aos antigos deuses, trazendo ao lado, no volume ilustrado,
281
Segundo nota da autora, o poema V é uma glosa livre da Carta de Pêro Vaz de Caminha. Op. cit.,
p. 39.
282
CAMINHA, Pero Vaz de. A Carta. Introd. Rubem Braga. Rio de Janeiro: Editora Sabiá, 1968. p. 82.
283
Não é demais lembrar que em Mensagem “Mar português” também tem o número X, numa
referência de Pessoa a Camões, porém entendemos que aqui Sophia faz alusão apenas ao último.
(Nota da A.)
163
um mapa do “Reino da China” de 1571, de Fernão Vaz Dourado, pertencente ao
Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
A reflexão sobre os antigos deuses orientais serve para Sophia explorar o
exotismo com que se apresenta essa estatuária, tão diferente dos modelos
ocidentais, porém nota-se, com a menção ao sopro suspenso, a vivacidade
intrínseca de que o dotadas a despeito de serem representações do imaginário.
Ela acentua ainda a atmosfera exótica com o auxílio das tradicionais luminárias
chinesas que cercam a imagem poética de tons difusos de vermelho.
XIV (NA, 34): “Através do teu coração passou um barco/Que não pára de
seguir sem ti o seu caminho”
284
.
O poeta Jorge de Sena, um dos grandes amigos de Sophia, é o
homenageado do verso singelo em que ela recupera sob a linguagem do mar a
figura do escritor, que morou no Brasil e aqui deu aulas, para mais tarde se fixar com
a família nos Estados Unidos e onde permaneceu até falecer. Homem de
temperamento combativo, Jorge de Sena dividia com Sophia a admiração pela
poesia de Cecília Meireles, considerada por ele injustiçada no Brasil por não
desfrutar da fama que seu talento merecia, (...) nem um poeta como a Cecília eles
em verdade admiram, porque não é nunca convencionalmente “brasileira”
285
.
O conjunto de poemas de Navegações inclui o ciclo português dos
descobrimentos e abarca as viagens dos marinheiros que singraram culos por
todos os mares, trazendo mapas da Ásia, África e América, mas como na
homenagem a Jorge de Sena, também espaço para prestar tributo aos amigos,
ignorando tempo e espaço históricos. Tal procedimento não é novo, e Dante o
utilizava em favor ou desfavor de amigos e desafetos. O volume, afinal, acaba por
ser um microcosmo dos Lusíadas
286
, composto ao modo econômico de Sophia, mas
como provam as notas reveladas pela própria autora, esses pequenos indícios
nos iluminam o caminho para uma percepção mais ampla dos poemas, que de
qualquer modo, são autônomos, independendo de mapas ou pés de página.
Para mim, diz Sophia,
(...) o tema das Navegações não é apenas o feito, a gesta, mas
fundamentalmente o olhar, aquilo a que os gregos chamavam aletheia, a
284
Segundo nota da autora, o poema XIV é uma invocação de Jorge de Sena. Op. cit., p. 39.
285
ANDRESEN, Sophia. SENA, Jorge de. Correspondência: 1959-1978. Lisboa: Paz e Terra, 2006. p.
99.
286
Com esta apreciação, também concorda Jorge Fernandes da Silveira. In: SILVEIRA, Jorge
Fernandes da. Op. cit., p. 58.
164
desocultação, o descobrimento. Aquele olhar que às vezes está pintado à
proa dos barcos.
287
Em seu último período de produção, antes do volume final nomeado como
O búzio de Cós, estão os versos de Ilhas e Musa; em ambos, se faz sentir um
adensamento das imagens mais terrenas. A presença do mar, ainda que compareça
com bons poemas, não fornece o tema para as linhas mais inspiradas, tomados
de outra parte. Sophia relata ao amigo Jorge de Sena algumas de suas impressões
sobre a viagem que fizera à Grécia:
O que eu sabia da Grécia adivinhei-o através de pedras, pinhas, resinas,
água e luz. Mas apenas como fragmentos dispersos que a minha
imaginação reuniu. Ali encontrei as coisas todas inteiras e presentes na sua
unidade. Não estou a falar de coisas, mas da ligação do homem com as
coisas (...), uma intensa felicidade de existir que nos lava de tantas feridas.
288
.
Não te esqueças nunca” (IL, 16) é um reflexo desse encontro feliz:
“Não te esqueças nunca de Thasos nem de Egina/O pinhal a coluna a
veemência divina/O templo o teatro o rolar de uma pinha/O ar cheirava a mel a
pedra e a resina/Na estátua morava a tua nudez marinha/Sob o sol azul e a
veemência divina//Não te esqueças nunca Treblinka e Hiroshima/O horror o terror a
suprema ignomínia//”
Os primeiros versos falam de duas ilhas gregas conhecidas pela beleza,
enquanto o eu lírico vai desfiando um imaginário atemporal com pinheiros, colunas e
templos. No terceiro verso, é introduzida uma palavra preciosa para a cultura grega,
“teatro”, proporcionando o que Gaston Bachelard chamaria de “explosão de
imagens” e trazendo aos nossos olhos a morte de Antígona, a fúria de Medéia, ou
Édipo Rei cego.
Disse Aristóteles que a história do jovem que decifrou o enigma da
Esfinge é a maior de todas; de qualquer modo, ainda que o teatro grego não seja
apenas tragédia, a força violenta da catharsis nos impele, de modo geral, à
recuperação das cenas causadoras de maior comoção. O pinhal já foi mencionado,
mas agora a imagem revela uma pinha que cai. Depois de alinhados o templo, lugar
de sacrifício, e o teatro, espaço da catarse, essa queda nos faz pensar que talvez a
separação da árvore aponte para algo mais, para seu formato de pequena cabeça,
287
Op. cit., p. 42.
288
Op. cit., p. 70.
165
por exemplo. A essa altura, quando são acrescentados os antiqüíssimos cheiros de
mel, de pedra e de resina, o poema está dividido entre dois significados distintos,
o primeiro deles, solidamente materializado, enquanto o segundo ainda se mantém
suspenso.
No quinto verso, há a beleza apolínea da estatuária grega e a presença
do mar, do largo e azul oceano inundando o poema com sua cor. No entanto, essa
promessa do belo não se conclui, pois o poema se retrai quando a imagem
apresenta um inusitado sol azul ao lado da veemência divina. Sophia nos um
espaço para respiração e conclui o pressentimento fatal na segunda estrofe, onde
reitera o título, “não te esqueças nunca” seguido dos nomes que gritam, Treblinka,
Hiroshima. Apesar da abstração, os dois substantivos, horror, terror, são quase
palpáveis, e algo onomatopaicos na sua exigência de sopro impelindo à catarse.
Mas o é possível, diz a metáfora, pois o imaginário proposto na primeira parte
pertence a um mundo perdido há séculos no tempo.
Agora, os versos tomam outra dimensão e as palavras suspendem seu
significado anterior, Thasos torna-se Treblinka e Egina vira Hiroshima. A imagem
clara da paisagem helênica cede lugar a um trico cinza, o templo e o teatro se
tornam a cidade arrasada e o campo rodeado pelo arame farpado. O cheiro doce do
mel e da resina passagem ao odor macabro dos fornos e da explosão do sol azul,
quando a imagem se completa revelando um cogumelo atômico após a explosão
nuclear. A nudez perfeita, à imagem e semelhança de Deus, que encontramos no
“Discóbolo”, se torna a nudez vergonhosa da roupa que desapareceu queimada pela
bomba e das filas desnudas, expoliadas, seguindo para as câmaras de gás.
Neste poema, a metáfora tem sua chave tanto no título como nos
topônimos, iniciado com a beleza de Thasos e Egina e concluído com duas
referências históricas do que foi capaz a barbárie humana no século XX,
aproximando o belo e a ignomínia, e sugerindo que a memória deve guardar para
nunca repetir - nem mesmo como farsa.
Um panorama azulado, fundindo céu e mar, é a proposta do próximo
poema de Ilhas, “Madrugada” (IL, 29):
“Um leve tremor precede a madrugada/Quando mar e céu na mesma cor
se azulam/E são mais claras as luzes dos barcos pescadores/E para além de
insânias e rumores/A nossa vida se vê extasiada//”
166
Por meio da palavra “tremor”, o poema enfatiza o momento em que céu e
mar se complementam, formando um complexo azulado que a linha do horizonte mal
divide. Essa inteireza em que não se sabe se é o céu que toma a cor do mar, ou se
é o mar que adere aos tons do céu, é salpicada pelas pequenas luzes das estrelas
distantes que pontuam no céu, e pelos barcos pesqueiros, que estão próximos e
iluminam o mar. Mais do que uma metáfora do oceano, o poema é uma homenagem
ao céu, ao mar e ao azul, onde o eu lírico se mostra mais do que agradecido,
“extasiado”, por desfrutar da beleza dessa imagem.
“Os navegadores” (IL, 33) contrasta o fascínio do novo mundo descoberto
com a repressão religiosa:
“O múltiplo nos inebria/O espanto nos guia/Com audácia desejo e
calculado engenho/Forçámos os limites -/ Porém o Deus uno/De desvios nos
protege/Por isso ao longo das escalas/Cobrimos de oiro o interior sombrio da
igrejas//”
Guiados pelo título, a leitura do poema conduz o leitor pelas sendas dos
bravos descobridores que singraram os mares sem saber se cairiam pelas bordas do
fim do mundo ou se os monstros marinhos chegariam primeiro, pois o Atlântico era
temido pelos marinheiros como lugar que monstros e de águas ferventes perto do
Equador. A analogia entre “múltiplo”, e sinônimos como „vários‟, „diversos‟, são o
motor da renúncia da pátria e da família para seguir em busca de aventuras, prêmios
e glória, quem sabe até mesmo um título de nobreza, guiados também pela avidez
de contato com o desconhecido. Mas para isso, é preciso, além de coragem e
conhecimento das lides do mar, enfrentar calmarias e ousar ir além dos limites das
águas do mundo, protegidos dos desvios da rota por Deus Uno, levando a sua
palavra aos reinos pagãos. Em paga por essa proteção, os retábulos dourados e os
santos esculpidos testemunham quão agradecidos e tementes a Deus eram esses
bravos aventureiros.
Apesar dos desvios do pecado, por intermédio dos sacramentos havia o
perdão de Nosso Senhor Jesus Cristo. Por isso, ao longo das “escalas”, leia-se aqui,
iniqüidades, saques e violência que vieram no rastro do período dos
descobrimentos, a escuridão das igrejas medievais é metáfora para esse negro
interior que cobria com o brilho do ouro os altares, tentando, com o pagamento
dessa régia indulgência, comprar a mercê de Deus.
“Ondas”, (MU, 9)
167
“Onde ondas mais belos cavalos/do que estes ondas que vós
sois?/Onde mais bela curva do pescoço/Onde mais bela crina sacudida/Ou
impetuoso arfar no mar imenso/onde tão ébrio amor em vasta praia?
A beleza do movimento eqüestre é retomada no poema de Musa para,
junto da onomatopéia, falar do movimento ondulante das vagas. Com o auxílio da
vogal [o], o caráter circular das palavras toma a estrutura arredondada das vagas,
que, por sua vez, se adaptam ao galope sinuoso dos cavalos. Na assimilação
predicativa, a semelhança é encontrada nos farrapos da espuma igualados à crina,
apresentando uma imagem em que percebemos as ondas se movimentando como a
cabeleira dos animais. Sophia também explora a presença do mar através da
audição, comparando ao ressoar das vagas o respirar arfante dos eqüinos. Por fim,
a sensação de liberdade desse galope é análoga ao correr das marolas, então, a
quem o eu lírico dedica seu amor, se aos cavalos ou à praia, quem sabe a ambos, é
a questão que permanece.
“Os amigos” (MU, 33)
Voltar ali onde/A verde rebentação da vaga/A espuma o nevoeiro o
horizonte a praia/Guardam intacta a impetuosa/ Juventude antiga - /Mas como sem
os amigos/Sem a partilha o abraço a comunhão/Respirar o cheiro a alga da
maresia/E colher a estrela do mar em minha mão//”
É um sentimento de memória e de saudade, essa palavra tão portuguesa
cujas sete letras estão demasiado gastas para serem usadas num poema, que surge
da leitura de tais versos, onde é posto em relevo um tipo de afeto mais raramente
cantado, o da amizade. Conjuga-se aqui essa ternura marcada pela ausência das
pessoas queridas, à presença de outras coisas caras ao eu lírico, como as do
imaginário oceânico.
Esse contato estreito se apresenta através de vários aspectos sensórios,
na audição que ouve a rebentação das ondas, na visão do horizonte e da praia, no
olfato que respira a maresia e no tato que recolhe a estrela do mar.
O eu lírico enumera uma rie de componentes ligados ao universo
marinho, vaga, espuma, praia, que, dizem os versos, mantém a memória dessa
juventude: além disso, também a onda, o resquício da espuma, a maresia, estão
sempre em companhia uns dos outros sem perder o viço. É como se o poeta
enumerasse uma lista onde os nomes de seus amigos perdidos fossem substituídos
pelas coisas do mar, e de certa maneira, esse bem-querer aos elementos da
168
natureza, daquilo que sempre foi percebido de maneira tão próxima e tão estreita, de
repente fizesse parte de um universo separado. Por conta da condição humana do
eu lírico, ele é mantido dentro do outro grupo, de um tempo efêmero, e cuja
transitoriedade desfruta da companhia desse oceano eterno apenas por um breve
período.
Nas palavras “impetuosa juventude antiga”, a metáfora exprime um desejo
de regresso a essa época, conservada pela memória da natureza na vaga, na
maresia, na praia, onde os ciclos do tempo são marcados em outra medida, e então
Outros amarão as coisas que eu amei” (DM, 77). O eu lírico demonstra uma
nostalgia da vida onde seu olhar se coloca ao lado dos amigos que se foram. Mas
como já foi dito em um poema de Livro Sexto, há uma saída, porque “Quando morrer
voltarei para buscar os instantes que não vivi junto do mar”
O autor da Epístola aos Pisões é homenageado por Sophia numa
releitura de suas Odes em “À maneira de Horácio” (MU, 40):
“Feliz aquele que disse o poema ao som da lira/À mesa do banquete
entre os amigos/E coroado de rosas e de mirto//Seu canto nascia da solar memória
dos seus dias/E da pausa mágica da noite - /Seu canto celebrava/Consciente da
areia fina que escorria/Enquanto o mar as rochas desgastava//”
A chave para esses versos é a palavra “lira”, que situa o leitor no tempo
longínquo em que os poemas eram acompanhados por música, como na época de
Horácio, um dos primeiros tópicos de que trata Aristóteles em sua Poética. O
segundo verso, ao mencionar a forma do banquete, descortina o imaginário da
Antiguidade em que os convidados, sentados em longos bancos, com suas túnicas e
peplos
289
, provavam finas iguarias em cenário idílico com perfume de flores
290
, numa
visão estereotipada do entretenimento nos tempos áureos de Roma. No entanto, por
trás dessa visão, nos é proporcionada a materialização da filosofia epicurista com a
qual Horácio compactuava, numa linhagem que continuou através do tempo e onde
o vinho, as rosas e a brevidade da vida foram temas explorados por outros poetas,
como no Rubayat de Omar Kayyam, por exemplo.
Horácio, que recusou o convite do imperador Augusto para ser seu
secretário particular, graças ao seu grande amigo Mecenas, a quem foi apresentado
289
O peplo, peça masculina, era o manto usado sobre a túnica, ou quíton. In: LOBATO, Monteiro. O
minotauro. São Paulo: Círculo do Livro, 1989. p. 114.
290
A jovem ninfa Erato, musa da poesia lírica e erótica, era representada com uma coroa de rosas e
de mirto, segurando uma lira na mão direita e um arco na esquerda.
169
por outro amigo comum, o poeta Virgílio, pode retirar-se para Tivoli dedicando-se
inteiramente aos seus versos
291
. Assim, entre a “solar memória dos dias” e a “pausa
mágica da noite”, celebrava seu canto.
A metáfora utilizada para demonstrar a passagem do tempo também é do
século I a. C., a imagem da areia correndo na ampulheta, e como são versos de
Sophia, se acrescenta ainda um oceano perene e azul desgastando os rochedos
para falar do implacável Cronos, o tempo que corrói tudo.
“O búzio de Cós” (BC, 10)
“Este búzio não o encontrei eu própria numa praia/Mas na mediterrânica
noite azul e preta/comprei-o em Cós numa venda junto ao cais/Rente aos mastros
baloiçantes dos navios/E comigo trouxe o ressoar dos temporais//Porém nele não
oiço/Nem o marulho de Cós nem o de Egina/Mas sinto o cântico da longa vasta
praia/Atlântica e sagrada/Onde para sempre minha alma foi criada//”
“Os búzios têm muito bom ouvido, ouvem tudo, são os ouvidos do mar”,
diz a pequena bailarina em A menina do mar
292
. Como a menina do mar,
personagem das histórias infanto-juvenis de Sophia, o eu lírico aqui também é
feminino, “eu própria”, dizem os versos. Ou seja, o búzio não apareceu por obra do
acaso num passeio à beira-mar, ele foi parte da transação comercial numa intenção
manifesta, oposta no poema ao espontâneo maravilhamento de ser encontrado. Na
escuridão da noite do mar Mediterrâneo, numa ilha grega onde há milênios os
navios aportam, os mastros baloiçantes lembram a personagem de Homero que
pediu para ser amarrado no convés e ouvir cantarem as sereias.
O eu lírico guarda com ele não o mavioso canto, mas o eco das
tempestades marítimas que não vem das praias gregas, mas da longínqua praia
lusitana que lhe devolve um cântico de outras águas, atlânticas e venerandas e à
qual ele adere o próprio ser. Entre os diversos sentidos evidenciados no poema,
temos a visão que percebe o cais, os navios e a noite, e o tato que toma o búzio em
suas mãos, mas os aspectos mais relevantes comparecem através da audição, que
ouve o sibilo dos mastros, o ressoar dos temporais, os marulhos de Cós e de Egina,
e finalmente, os cânticos da praia tocada pelo Atlântico. Como o balanço de um
291
Ao falecer, Horácio era o poeta laureado, seguindo seu amigo Virgílio. De acordo com Afrânio
Coutinho, seus funerais tiveram honras de Estado e a presença do imperador Augusto. In:
Enciclopédia Barsa, vol. 9. p. 118.
292
ANDRESEN, Sophia. A menina do mar. Ilustrações de Luís Noronha da Costa. Lisboa:
Figueirinhas, 2004. p. 26.
170
navio, a sensação de movimento também é mostrada no agito dos barcos e na
oscilação da tempestade, e ainda um movimento a mais que está implícito nos
versos: o da alma do eu lírico, marinheira que navega entre o oceano Atlântico e o
Mar Mediterrâneo.
“Foi no mar que aprendi” (BC,11)
“Foi no mar que aprendi o gosto da forma bela/Ao olhar sem fim o
sucessivo/Inchar e desabar da vaga/A bela curva luzidia do seu dorso/O longo
espraiar das mãos de espuma//Por isso nos museus da Grécia antiga/Olhando as
estátuas frisos e colunas/Sempre me aclaro mais leve e mais viva/E respiro melhor
como na praia//”
No primeiro versos o eu lírico faz uma apreciação estética sobre a forma
das ondas que enseja a sinestesia, pois se “gosto” vale para “julgamento”, também
vale para assuntos do paladar, e de maneira inconsciente um sabor salgado se faz
sentir com o emparelhamento da palavra ao lado das vagas. A estatuária grega se
faz presente na relação eqüestre entre o galopar das ondas e o movimento dos
animais em “bela curva luzidia do seu dorso”, inspirada nos alvos contornos dos
mármores do Partenon onde Fídias esculpiu uma cavalgada, brancura que alcança a
praia rendada
293
. Sophia novamente explora diversos sentidos, como o ressoar das
ondas e as “mãos” de espuma.
Na estrofe seguinte, eu lírico faz uma crítica do juízo ao explicar como
desenvolveu esse olhar a partir da contemplação do horizonte marítimo, que como
elemento liberto proporciona a visualização de uma infinidade de contornos, numa
relação que vai da fluidez da água à sólida textura do mármore, os mesmos
percebidos nos museus em “estátuas, frisos e colunas”; por isso, conclui, respira
“melhor como na praia”. Nessa parte se acrescenta, com a visão e o olfato, uma sutil
insinuação de branco que vem dos versos anteriores e se reafirma na persona do
eu lírico em pessoa, “aclara”; desse modo, ele cerra fileiras ao lado do oceano, das
estátuas e da alvura da areia à beira-mar, elencando na lista diminuta, as razões
293
A relação entre o movimento das ondas, o galope eqüestre e a estatuária grega, além de versos
inspirados refletindo o gosto de Sophia pela cultura helênica, está assentada na perspectiva crítica
que aponta o Discóbolo (450-440 a.C.), de Míron, o mais velho dos grandes escultores do século de
Péricles, ao lado de Fídias e Policleto, como a impressão suprema de movimento nessa arte. Míron
foi atleta e analisou o lançamento de um disco em suas diversas fases, dando-lhe um ritmo em que
se ausentam a fadiga e o esforço, na primeira obra clássica de que se tem notícia. In: Enciclopédia
Barsa. Rio de Janeiro; São Paulo: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações, 1994. vol. 11. p.
111.
171
singelas que desvendam quase todos os poemas da obra de Sophia vistos até
agora.
“O infante” (BC, 21) é uma homenagem ao primeiro desbravador, o
visionário que iniciou a epopéia marítima portuguesa criando a Escola de Sagres, o
Infante D. Henrique
294
.
“Aos homens ordenou que navegassem/Sempre mais longe para ver o
que havia/E sempre para o sul e que indagassem/O mar a terra o vento a
calmaria/Os povos e os astros/E no desconhecido cada dia entrassem//”
Com o primeiro verso, o poema define bem a pessoa do filho de d. João I,
homem austero que respondeu rudemente a Gil Eanes, após uma tentativa frustrada
de ultrapassar o Bojador no início de 1434, dizendo-lhe que tentasse novamente.
Foram mais de quinze empreitadas com esse fim, entre 1424 e 1433. Sua
curiosidade geográfica era lendária, e ele nunca mediu esforços para avançar no
mar, vencer na terra e superar a falta de vento, o que foi enfim conseguido em maio
de 1434, quando Gil Eanes passou além da dor, como disse Pessoa, vencendo o
traiçoeiro Bojador.
A caravela, apesar de adaptada do “caravo”, pesqueiro árabe, foi uma das
maiores obras do engenho lusitano, que sob as ordens de D. Henrique começou a
modificar o estreito mundo dos geógrafos medievais e a esboçar os contornos do
globo moderno. A comunidade cosmopolita reunida em Sagres, na maioria, judeus
oriundos de Castela que fugiam da perseguição religiosa, desenvolveu novos
instrumentos de navegação como o astrolábio, a agulha de marear e a balestrilha, e
aprimorou os antigos portulanos, mapas náuticos árabes feitos de pele de carneiro
ou pergaminho
295
.
Não cabe aqui o levantamento da biografia do grande nobre lusitano, pois
a despeito de apenas seis versos sucintos, nos entremeios da linguagem caberiam
várias ginas com os relatos da vida desse homem religioso ao extremo, cuja
inteligência tenaz e firmeza de propósitos empurraram os súditos desse pequeno
294
D. Henrique, ao fundar a Escola de Sagres, atraiu ao Algarve sábios, cartógrafos, astrônomos e
astrólogos, pois decidira “descobrir a verdade sobre a terra que estava além das Canárias, porque até
então não havia ninguém na cristandade que disso soubesse, nem das cartas de marear nem de
mapas-múndi”. Derrotado ao tentar conquistar as terras castelhanas, viu-se forçado a enviar seus
navios para a costa africana, ao sul dessas ilhas, e tentar ultrapassar o chamado “Cabo o”, o
Bojador. In: BUENO, Eduardo. A viagem do descobrimento. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998. p. 58.
295
BUENO, Eduardo. Op. cit., p. 73.
172
país oceano adentro, revolucionando a ciência, a geografia, a economia e a história
do mundo. É à grandeza dessa personagem que Sophia dedica os versos.
“Harpa” (BC, 23):
“A juventude impetuosa do mar invade o quarto/A musa poisa no espaço
vazio à contraluz/As cordas transparentes da harpa//E no espaço vazio dedilha as
cordas ressoantes
A última composição de O búzio de Cós é um metapoema.
Um eu lírico em terceira pessoa nos fala sobre a “juventude impetuosa” do
mar, o mar-oceano que não tem idade, que é e será jovem para sempre,
metaforicamente invadindo o quarto, por meio da visão, ou até da lembrança. A
primeira imagem do poema nos transporta para uma das nove filhas de Zeus e
Mnemósine, Érato
296
, representada com uma coroa de rosas e de mirto, a lira e o
arco. Porém, a figura com uma túnica de pregas, com flores nos cabelos, dedilhando
um instrumento tão antigo, é uma representação de um tempo passado que não
cabe em nosso imaginário contemporâneo, então, ela é substituída por outra musa,
talvez não tão jovem, porque se sente idosa comparada ao mar. Essa musa, como a
outra, está ligada à poesia, e à meia-luz deposita uma folha pautada, “espaço vazio”
de “cordas transparentes”. uma pausa, e na estrofe seguinte, esta outra musa
dedilha no “espaço vazio” da página as “cordas ressoantes”, ou, as palavras que são
a música do poema.
Aqui também um interregno de tempo largo, anterior aos poemas de
Horácio, que alcança a praia lusitana do século XX onde a música continua a soar, o
poema a ser escrito, e a musa, como as ondas no mar, aparenta ser mais do que
jovem, tem um ar imortal.
Segundo a lição de João Barrento, a poesia de Sophia Andresen não vive
no plano do ideal. É uma poesia “de combate” que nomeia coisas concretas, “e
sonha com o Ser inteiro num tempo e numa civilização que não sabem o que isso é,
porque vivem de estratégias, de conveniências e de contingências”. Para se falar
dela, é preferível nomear as coisas que, mesmo parecendo pertencer à ordem do
abstrato, habitam o mundo sensível, “como as cores, a liberdade, as palavras, o Ser”
297
.
296
Dicionário Oxford de Literatura Clássica grega e Latina. Trad. Márcio da Gama Kury. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 350.
297
BARRENTO, João. Sophia substantiva. Público. Lisboa, 10 abr. 2007.
173
5 CONCLUSÃO: INTERSEÇÕES, METÁFORAS E
IMAGINÁRIO MARÍTIMO EM CECÍLIA E SOPHIA
5.1 UMA POÉTICA DO OCEANO: DE VIAGENS E MARES
ABSOLUTOS A DIAS DE MAR
Num ensaio publicado na revista Cidade Nova em 1956 com o título A
poesia de Cecília Meireles, Sophia Andresen diz que “Falar dum poeta é como
querer apanhar água com as mãos. Prendemos as nossas próprias palavras,
enquanto o poeta nos foge
298
.
Além das dificuldades que a autora de Dia do mar percebe na empreitada,
uma primeira aproximação entre as duas poetas começa com a espinhosa tarefa de
enquadrá-las num movimento literário definido, pois tanto uma quanto a outra
buscaram trilhar caminhos próprios que rejeitaram as correntes, fossem elas
essencialmente estéticas ou ligadas a determinado perfil ideológico, que corriam
lateralmente ao tempo histórico vivido. Assim, discute-se a questão de qual
movimento acolheria melhor a poesia de Cecília Meireles, Simbolismo ou
Modernismo, ao passo que Sophia permanece à margem tanto do grupo da
Presença como do programa neo-realista. A procura por novos paradigmas
estéticos, que marcou as primeiras décadas do século XX, recusava os modelos
clássicos, influência comum das duas autoras, que, todavia absorveram da novidade
o tanto que lhes servia para constituir, nos dois casos, espécimes poéticos que a
crítica tem alguma dificuldade em situar.
Outro ponto de interlocução entre ambas é a lusitanidade, na poeta
brasileira cognominada no Brasil de modo pejorativo como “portuguesa”, por conta
das ligações estreitas de sua poesia com a cultura ancestral, e a colega da cidade
298
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. A poesia de Cecília Meireles. In: FERRAZ, Eucanaã (org).
Os trabalhos e os dias de Sophia de Mello Breyner Andresen. Metamorfoses, Rio de Janeiro, nº 1, p.
61-71, 2000. (Publicado primeiramente na revista Cidade Nova, IV série, n. 6, pp. 341-352, nov.
1956).
174
do Porto que cresceu vendo a avó assombrar-se com os versos de Manuel Bandeira
e, entre os poucos ensaios que se dedicou a escrever, redige o acima citado por
ocasião de uma visita da consagrada poeta Cecília Meireles a Portugal. A afeição
da brasileira por essa terra, pátria do falecido marido, permaneceu por toda a vida e
manteve no país amizades que permaneceram por décadas, tanto no continente
quanto nos Açores, lugar de nascimento de seus avós. Do mesmo modo, também
Sophia admirava e mantinha amizade com poetas brasileiros, entre eles o próprio
Bandeira, Murilo Mendes e João Cabral de Melo Neto, a quem conheceu por
intermédio de amigos comuns numa visita ao então cônsul do Brasil na Espanha.
Além da influência de poética clássica e da lírica camoniana, Sophia e Cecília ainda
partilham uma admiração evidente, e que alcança o diálogo poético, pela obra de
Fernando Pessoa, apresentado aos brasileiros pelas mãos da poeta carioca.
Separadas por uma diferença de dezoito anos (07/11/1901 e 06/11/1919),
Cecília era autora reconhecida quando, em fins de 1951, depois de um lapso de
dezessete anos, retorna a Portugal e aos Açores, tendo sido programado um
banquete para homenag-la com a presença dos poetas Adolfo Casais Monteiro,
David Mourão-Ferreira, Jorge de Sena, Alberto de Lacerda e outros. E, entre eles,
Sophia de Mello Breyner Andresen. Cecília, entretanto, não comparece a nenhuma
das duas efemérides programadas
299
, mas o desapontamento da poeta portuguesa
com sua ausência não escapa a João Gaspar Simões
300
.
Numa entrevista a Maria Maia
301
, Sophia relata que mais tarde recebeu
de Cecília uma cesta com frutas de Natal, porém elas não se encontrariam mais. A
autora brasileira é objeto de vários estudos de escritores portugueses, e está entre
os autores mais citados nas epígrafes de obras literárias naquele país, além de
contar com um poema da própria Sophia, escrito por ocasião de seu falecimento
NA MORTE DE CECÍLIA MEIRELES
Seu canto permanece
Alinhando nas páginas dos livros
Verso por verso letra por letra
Canto de pedra
Canto
299
Sophia toca no assunto também em entrevista a João Almino, publicada na Folha de São Paulo.
Caderno Mais! , de 26/09/1999.
300
GOUVÊA, Leila V. B. Cecília em Portugal. São Paulo: Iluminuras, 2001. p. 108.
301
MAIA, Maria. Sophia, substantiva e concreta. Jornal da UBE, São Paulo, n. 105, p. 12, out. 2003.
175
Interior a tudo
Canto de Cecília
A profunda a secreta
Construtora de um dia
Amargo e ledo
Construtora de um espaço clássico
Num arquipélago nebuloso e medido
Cecília cinza
As palavras no meio do mar permanecem enxutas
302
O primeiro e mais importante fator de comunhão é, porém, um diálogo
íntimo com a natureza em todas as suas formas de representação, mas no qual
prevalece o mar e sua extensa carga de simbolismos. É também aqui que se
percebe, a despeito desse objeto comum compartilhado, que é justamente ele o
primeiro fator de ruptura entre as poéticas de Cecília e de Sophia.
Valendo-se do oceano como interlocutor basilar de seus poemas, as duas
escritoras alcançam através desse meio, objetivos e modos de dizer diversos, e
pode-se acrescentar, diametralmente opostos.
A poesia de Cecília Meireles está imersa no que Jorge de Sena com
felicidade chamou de lirismo de “íntima meditação abstrata”, de feição metafísica e
cuja preocupação essencial está na transcendência, à qual foi impelida através da
dor e da perda. Fortemente embasada numa perspectiva espiritual que desde
sempre foi sua marca, já revelada nos poemas de inspiração parnasiana e simbolista
de suas obras iniciais, não é possível, no entanto, denominá-la de teocêntrica ou
religiosa no sentido mais estrito. O termo teocêntrico não lhe cabe de maneira
adequada, porquanto os horizontes espirituais revelados através de seus poemas
são muito mais amplos do que o sentido estrito da palavra permite perceber. Mística,
mantendo o olhar de seu eu lírico na distância, no “lá”, a transcendência, temática
central da poesia de Cecília, permite maiores possibilidades exploratórias dos
“sensa”, como Hester chama os desdobramentos icônicos do sentido no imaginário,
prevalecendo nessa poética uma perspectiva em que vamos utilizar o termo
“teocêntrico” no sentido mais lato.
302
O poema, anteriormente publicado em Geografia, agora não consta em nenhuma das obras
publicadas em volumes independentes pela Editorial Caminho (nota da A.).
176
Sua obra está seguramente estruturada em torno de um núcleo metafísico,
ou do que Baruch de Espinosa chama de “substância que consta de infinitos
atributos (...), uma essência eterna e infinita (...)”
303
. No entanto, esse eixo não gira
em torno uma única, nem se restringe ao cristianismo ou às outras religiões de
extração monoteísta. Segundo Roberto Calasso, um lingüista ilustre, Jacob
Wackernagel, observou que na língua grega não se declina theos, “deus”, no
vocativo. Théos tem, antes de tudo, um sentido predicativo: indica algo que acontece
304
. A partir de uma perspectiva similar, a obra de Cecília Meireles abrange um
panteísmo que alcança as religiões orientais e que, no fundo, revela uma procura de
diálogo com essa “essência eterna”, independente de rótulos e sectarismos.
Quanto à preferência da autora carioca por uma lírica que, na aparência,
pode sugerir alheamento quanto às coisas do mundo, não cabe a acusação de
alienada de que foi vítima. Um olhar cuidadoso sobre a sua obra distingue uma
intensa preocupação com o destino humano perceptível na quase totalidade de seus
poemas, sem contar aqueles ligados a fatos históricos como o Romanceiro da
Inconfidência e Pistóia, Cemitério Militar Brasileiro, além de esparsos incluídos em
vários de seus livros. Suas preocupações com a educação infantil, criadora da
primeira biblioteca para crianças no Brasil, situada junto ao Pavilhão Mourisco, e
seus artigos que atacavam o governo ditatorial de Getúlio Vargas quanto à política
cultural, e que resultou no seu subseqüente fechamento, fizeram com que fosse
proibida de publicar suas crônicas nos meios de comunicação. Em alguns poemas
de Mar absoluto, Cecília Meireles mostra sem peias seu repúdio pelos horrores
passados durante a Segunda Guerra, onde o maior número de baixas, incluídas as
de civis, aconteceu no mar, com o ataque dos submarinos alemães a navios
brasileiros.
De sua parte, os fortes laços que ligam Sophia à cultura grega e ao seu
imaginário de realidade histórica com notável influência no processo civilizatório,
acabam por definir sua opção na direção de uma perspectiva antropocêntrica que
caminha no sentido inverso ao de Cecília. As indagações metafísicas e espirituais
dão lugar, na lírica da portuguesa, a um questionamento que busca dar conta da
vida agora, do homem plantado firmemente em seu mundo. O tempo do eu lírico, em
Sophia, é o dia de hoje. Mesmo quando reflete sobre o passado, essa poeticidade
303
ESPINOSA, Baruch de. Ética. São Paulo: Nova Cultural, 1989. p. 21.
304
CALASSO, Roberto. A literatura e os deuses. Op. cit., p. 11.
177
evidencia certo viés que poderia ser chamado de existencialista, mostrando nesse
olhar um compromisso com a perspectiva do belo e do tempo vivido absorvendo a
realidade circundante no tempo presente.
As representações concretas provocadas pelo elemento verbal,
propiciando as “imagens interligadas” de Marcus Hester, se abrem revelando na
obra de Sophia uma reorganização poética do mundo calcada numa perspectiva
histórica. Nela são privilegiados os relatos míticos, estes “restos esquecidos num
acampamento abandonado”
305
, e a cultura grega, resultando numa lírica
antropocêntrica e mítica que mantém o olhar na realidade humana e no tempo
vivido, no “aqui”.
Intrinsecamente ligada à physis e aos contornos do real, uma filosofia da
natureza, ou das considerações da natureza à maneira de Empédocles de
Agrigento, de certo modo expressa os axiomas que guiam a poética andreseana. Na
perspectiva da poeta portuguesa, a figura humana é colocada não apenas como
testemunha ou catalisadora entre homem e mundo, mas como um destinatário
privilegiado de tudo que se apresenta a ele por meio dos quatro elementos de
Empédocles, nomeados pelo filósofo de “raízes”, a terra, a água, o fogo e o ar.
Com um passado político atuante cujo posicionamento lhe valeu o
desagrado da ditadura salazarista e inclusive o confisco de seu passaporte pela
PIDE, esse engajamento transparece de maneira evidente em sua obra,
especialmente a partir de Mar Novo
306
, e constitui parte importante no conjunto de
seus poemas. Entretanto, para Sophia, por um longo tempo, não foi possível fazer
denúncia com liberdade. A fim de retratar a realidade histórica do momento em
Portugal, era preciso recorrer a um artifício poético como a metáfora, escrevendo
poemas que, como o deus grego Jano, tem duas faces. Numa leitura desavisada
não é perceptível esse processo de palimpsesto poético no qual as imagens ocultam
uma segunda camada; ali, transparece o inconformismo da autora com os rumos
políticos de seu país.
As observações acima m por objetivo situar não o embasamento
comum, as inter-relações e influências partilhadas que propiciam o diálogo entre as
305
CALASSO, Roberto. A literatura e os deuses. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 9.
306
É essa a opinião de parte da crítica, mas com a reestruturação da obra poética de Sophia após a
Revolução dos Cravos, introduzindo nos volumes poemas que foram escritos, mas que não
passariam pelo crivo da PIDE naquele período, podemos perceber que o tema político se formava,
esparso, a partir de No tempo dividido (Nota da A.).
178
duas poetas, mas também esclarecer de que modo Cecília e Sophia exibem nas
suas obras preocupações relacionadas diretamente com a realidade e o momento
histórico.
ainda uma questão pouco vista na intersecção das duas líricas: a
influência de Cecília sobre Sophia. Sabemos do encontro frustrado, do ensaio, da
cesta de pinhas, da elegia. Mas alguns poemas de Sophia que remetem
diretamente a poemas de Cecília
307
, e cuja presença passa ao largo das análises da
crítica na avaliação da poeta portuguesa como leitora de poesia e dos resultados
que esses diálogos trazem à sua lírica, que pretendemos abordar aqui.
A leitura de Sophia Andresen dos poemas de Cecília Meireles, através
dessa figura de palavra que é a metáfora, os transforma e lhes uma direção em
rumo a um objetivo diferente daquela que poeta brasileira busca atingir. Segundo
Jorge Luis Borges, “embora possam ser encontradas centenas e mesmo milhares de
metáforas, todas elas podem ser reconduzidas a uns poucos modelos simples”.
Porém, a essa observação, ele faz um adendo, “(...) isso não precisa nos preocupar,
que cada metáfora é diferente: toda vez que o modelo é usado, as variações são
diferentes”, concluindo ainda que metáforas como “o caminho da baleia” não cabem
nos modelos definidos
308
, o que a essa figura de linguagem perspectivas
promissoras.
Gerard Genette, em Palimpsests, propõe o uso do termo
“transtextualidade” para tudo aquilo que coloca determinada escrita em relação,
manifesta ou oculta, com outros textos
309
. No caso da hipertextualidade, uma das
cinco categorias de transtextualidade listadas pelo autor, um texto tem sua origem a
partir de outro, sem o qual não poderia existir. A hipertextualidade, diz Genette, parte
da definição de Lévi-Strauss de bricolagem, construindo a partir de dado objeto, algo
novo, aqui apresentado como a transposição dos poemas de Cecília num esquema
renovado, ao qual Sophia acrescenta um viés adaptado à sua poética e ao seu
modo de ser particular, alcançando também a mensagem política. Essa
transposição, segundo Genette, tem por função aproximar a obra de seu público.
307
Na primavera de 2008, graças à gentileza de Ana Maria Domingues de Oliveira, recebemos o
trabalho que Maria Inês Tavares Cavalcanti defendeu na Sorbonne em 2005, Poèmes em regard:
Cecília Meireles et Sophia de Mello Breyner, em que a autora trata da visão de Sophia Andresen dos
poemas de Meireles.
308
BORGES, Jorge Luis. Esse ofício do verso. Op cit., p. 49.
309
GENETTE, Gerard. Palimpsests: Literature in Second Degree. Lincoln; London: University of
Nebraska Press, 1997. p. 1.
179
5.2 NUMA LÍRICA DA ÁGUA, A PASTORA E A SIBILA
Na análise de alguns poemas que guardam essa relação intertextual, a
temática marinha permanece como nosso foco central. Como não se trata aqui
apenas de metáforas, mas também de relações intertextuais entre as duas autoras
que nos interessam apontar, a respeito de poemas a cuja análise se procedeu,
serão enfatizados, sobretudo, a coincidência entre o espectro de palavras, muito
similar, e o sentido metafórico, quase sempre divergente.
Um poema de Viagem, “Motivo”, aos olhos de Sophia é um caso exemplar
por refletir em versos o posicionamento de Cecília diante da vida e também de si
própria, havendo ali todos os componentes da beleza de suas obras: “a limpidez da
sua linguagem, a densidade de cada palavra, a exatidão das suas imagens, a nudez
do seu pensamento, a serenidade da sua atitude, a ressonância grave e profunda da
sua voz”
310
. A constância nos aspectos formais e a fidelidade nos temas doam tais
qualidades a volumes que se estendem até Solombra, mas como admiradores de
sua obra, podemos devolver tais adjetivos aos poemas da própria Sophia.
Os primeiros poemas em que vamos apontar tais relações são “Canção”
(ver p. 74), poema de Viagem, e os versos de Dia do mar iniciados com “Esgotei o
meu mal...” (ver p. 132).
O que Mikel Dufrenne denominava de “espectro de palavras”, aquelas
que aparecem com mais evidência no poema, aparecem em Canção de três a
quatro vezes, porém a única palavra dessa lista utilizada por Sophia mais de uma
vez é “mãos”, escolha que desloca a imagem para essa parte do eu lírico, dividida
com o cenário marinho. Outra opção é transpor o ato de imergir em água,
naufragar, por mergulhar, pois no poema de Sophia o eu lírico mergulha as mãos
nas águas enquanto em Cecília ele é observador da nau que soçobra. Outras
relações são navio, que aparece quatro vezes em “Canção, por barco, no poema
da autora portuguesa. Mar é utilizado três vezes em Cecília, e apenas uma vez em
Sophia; noite e ondas, citados uma vez cada um, nos dois poemas, e finalmente
sonho”, que a poeta portuguesa verbaliza como sonhei.
310
ANDRESEN, Sophia. A poesia de Cecília Meireles. Op. cit., p. 61.
180
E finalmente, o azul das ondas/ a cor que escorre dos meus dedos de Cecília,
transforma-se em as mãos nas ondas escuras” nos versos de Sophia.
Em Sophia, os dois primeiros versos do poema funcionam como uma
operação metafórica miniaturizada para expor os sentimentos do eu lírico, num
processo de sintetização poética colocado de modo perfeito nesse paralelo com o
poema ceciliano. Por conta da extensão dos versos, a poeta brasileira revela diante
dos olhos do leitor sentimentos e imagens formando um conjunto mais amplo,
explorando sensações, cores e sinestesias, onde transparece sua técnica exemplar,
que jamais ornamenta sem informar, utilizando a forma exata. Todavia, por meio da
cuidadosa escolha dos termos utilizados, Sophia nos oferece, numa versão mais
enxuta, as penas desse eu lírico mais contido e das suas penas, que nos parecem
menos dolorosas.
“Naufrágio antigo” (ver p. 85) é um longo poema de Vaga música, que ao
lado de “Anunciação” (ver p. 73), de Viagem, revela no conjunto uma escala de
palavras em comum com “Navio naufragado” (ver p. 135), de Dia do mar
311
.
O espectro que apresenta similaridade entre “Anunciação” e “Navio
naufragado” conta mar, fundo, mãos, águas, areias e suspensos. Em lugar do
adjetivo “vago”, utilizado por Cecília, a poeta de Coral escolhe “incertas” e
“ausentes”, para nomear as formas desse universo marinho. Ao invés de “peixes”,
denomina seus habitantes de “animais”, simplesmente.
Olhos, corpo, águas, medusas, algas, verdes, areia, transparentes, mar,
veias, cabelos, moluscos ao invés de conchas”, violeta, em lugar de roxos, e
branco, ao invés de branca. É ainda mais longa a lista dos termos em comum
entre “Naufrágio antigo” e o poema de Sophia. Como foi apontado na análise, ele
serve a um objetivo determinado, criticar a política salazarista.
“Mar absoluto (ver p. 89), que também dá nome ao volume publicado em
1945, com seu espectro de palavras nos envia a um poema de Livro Sexto, “A vaga”
(ver p. 149).
O oceano que nos versos de Cecília corre “como um touro azul por sua
própria sombra”, sendo ao mesmo tempo “o dançarino e sua dança”, em Sophia fica
nos limites mais diminutos das ondas, que “como toiro arremete/Mas sacode a
crina/Como cavalgada” e também “é bailarina que sem pés passeia”. Nos dois
311
Em seu trabalho, Maria Inês T. Cavalcanti também analisa “Naufrágio antigo” com “Navio
naufragado”, mas sem incluir “Anunciação” (Nota da A.)
181
poemas, uma referência implícita ao ensaio de Valéry sobre “Cemitério marinho”
(ver p. 92). Se em “Mar absoluto, o “cavalo épico, anêmona suave,/entrega-se todo,
despreza tudo, sustenta no seu prodigioso ritmo”, ele não se mostra menos forte no
poema de Sophia, “Mas sacode a crina/Como cavalgada//Seu próprio cavalo/como
cavaleiro/força e chicoteia”.
Recuperação do passado remoto, ode ao mar, caminho para a outra vida,
o poema de Cecília Meireles é longo e reflete sentidos amplos, mas o que fica é uma
longa relação entre a própria poeta e a pátria ancestral funcionando como um
microcosmo da ligação entre o oceano e os homens, que muito tempo tentam
domar essa larga, líquida aventura profunda e azul.
Neste par de poemas, no entanto, pode-se perceber como Sophia
Andresen trabalhou imagens já consagradas no teatro de Racine (ver p. 92) que
também constam dos versos de “Mar absoluto”, escolhendo algumas das mais belas
dentre as presentes nos versos. Enfeixando sua versão em poucas linhas, ela
privilegia especialmente a sensação de movimento, o do mar, do cavalo e do touro,
e a dança da bailarina. Em “A vaga”, é perceptível, mais do que uma mensagem
imagética e metafórica, a intenção estética que move a autora.
O quarto núcleo, com “O afogado (ver p. 102), de Retrato natural, e
“Náufrago” (ver p.144), de Mar novo, é o que mantém a maior distância entre as
datas de publicação das obras. Cecília publica seu livro em 1949 e Sophia, em 1958.
Nas palavras coincidentes, morto, corpo, vaga, água e em termos equivalentes,
navegas/oscilas, olhos/pupilas, clara/limpidez e agora reinas entre imagens puras
substituindo pela água tão clara”. Onde Cecília escreve “Sem voz e sem olhos”,
Sophia opta por “Sem coração e sem memória”. Enquanto o poema de Cecília
apresenta versos pungentes com uma visão degradada do afogado, mesmo
preservando sua dignidade de morto, no eu lírico de Sophia ele adere ao mundo
natural, incorpora-se à natureza e se mistura à água renovando o ciclo, numa
perspectiva mais apaziguada e menos dolorosa da morte.
No último grupo, o quinto poema (ver p. 107), de Os doze noturnos de
Holanda, de 1952, nos conduz a “Seqüência” (ver p. 145), de Mar novo, que Sophia
Andresen publica em 1958. Entre todos, é aqui que as palavras coincidentes se
mostram em menor número, e duas sobressaem, rosto” e “cortinas”. Em comum,
um afogado no mar, em cenário noturno, está à deriva, solitário. Se “rosto” é
sinédoque nos dois poemas, “cortinas” para Cecília Meireles é metáfora ampla da
182
perda da visão, da escuridão da morte e do apagamento do mundo, mas em Sophia
o pano mantém o significado literal de proteção às janelas, e o tecido “enrola-se na
brisa”.
Ela também altera o cenário, conduzido pelo eu lírico, que muda o olhar
sobre o enforcado nas águas do mar para o espaço terreno da casa. Em Cecília, a
penumbra e a solidão da morte encobrindo o aniquilamento físico dão o tom dos
versos, mas “Seqüência” tem um sentido diferente, conduzido pela menção ao
enforcamento seguido pela mudança de panorama. A metáfora ceciliana fala a
respeito da angústia universal que assola o homem no sentido heideggeriano, da
consciência da mortalidade, mas Sophia Andresen relata um drama que de certa
maneira conduz ao panorama da existência vivida, e a morte é ali apenas o capítulo
final.
Quanto ao conjunto da obra, outra diferença entre elas é o tom
confessional aberto adotado por Cecília para os cantares de seu eu lírico, enquanto
Sophia despersonaliza seus versos por meio de um hermetismo que transfere o
olhar do leitor para outro foco do poema, mesmo quando fala de si.
Em Cecília somos levados a uma leitura das dores do eu poético
intrinsecamente ligada ao sentimento de perda, de solidão e desamparo. Parece-nos
que sua afinidade com o oceano revela por meio de suas metáforas um
entendimento que poucas vezes se mostra apaziguado. O mar noturno de Cecília é
metaforicamente uma entidade misteriosa que guarda corpos, navios carregando
sonhos, desgostos, desencantos, lutas seculares, inglesinhas de tranças, e a
postura do seu lírico é sempre de submissão temerosa frente a esse poder
imensurável. Esse receio se traduz nessa poesia através de uma diplomacia poética
que tenta ultrapassá-lo por meio da proximidade e do entendimento, mas não se
mostra bem sucedida. As metáforas do mar na poesia de Cecília Meireles espelham
invariavelmente a desproporção entre a fragilidade e a pequenez humana e a
grandeza e a força do divino.
Sophia Breyner Andresen adota outra postura. Mesmo na primeira
pessoa, o eu lírico andreseano desloca a visão particularizada do ser humano para a
visualização da imagem num plano amplo. Para Sophia, o mar não é, como em
Cecília, uma entidade metafísica, ele é um elemento natural ao qual ela incorpora
características de deslumbramento perante a potência do real. A grande força na
sua poesia não é o oceano ao qual se declara tanta afeição, é o homem. E a ele se
183
aderem traços que o aproximam do divino, “que humano foi como um deus grego”
(Du, 18), numa paridade com o elemento natural que afasta qualquer temor
respeitoso.
Em Cecília, as metáforas que aglutinam mar e humanidade estão em
geral ligadas ao desfazimento e ao fim do ciclo da vida, que se incorpora às águas
num destino sem remédio. Na autora portuguesa, o sentimento diante dessa
comunhão com o mar não apenas o é temido, mas é buscado. O oceano é
revelado como um espaço desejável, tanto que “Quando morrer voltarei para buscar/
Os instantes que não vivi junto do mar” (LS, 43), na hipótese desagradável, para o
eu lírico, de não se encontrar na companhia das águas na eternidade. Eduardo
Prado Coelho, poucos dias após o falecimento da autora, escreve uma crônica sobre
esses versos, onde aponta que, para Sophia, é:
(...) do lado de lá, no espaço da morte, que deverá ser a vida mais vida,
como que a capacidade de regenerar o que foi o tempo inútil e todo o
tempo em que não se viveu junto ao mar é tempo perdido. (...) neles se
inscreve lapidarmente uma fórmula de vida: esta oscilação entre a vida e a
morte, entre o que está à flor da água e a transcendência de um mar
profundo. E uma espécie de felicidade indizível em falar destes
“instantes que vivi junto ao mar”- numa linha de tal modo fina e litoral,
desenhada e transparente, que entre mim e o mar, entre o corpo e as
águas, entre o meu corpo e o teu corpo, todas as diferenças se rasuram.
Sim, Sophia, “como as ondas do mar dançam em mim os pés do teu
regresso.”
312
.
Nessa poética, o cenário onde pontuam as ondas é sempre mostrado com
clareza e movimento, comparado à energia do galopar dos cavalos animais
submissos ao homem e sempre lembrado de maneira saudosa. O mar é revelado
como um aliado em Sophia e com ambigüidade em Cecília, , numa tentativa de
conciliação. A perspectiva nas duas está colocada de maneira inversa, pois
enquanto na autora de Viagem o mar é a parte mais forte refletindo um panorama
desproporcional, para Sophia Andresen a prioridade é o elemento humano.
Entretanto, é curioso notar como na poeta carioca o foco está localizado
na direção do humano, o mais frágil, mas a autora de Dual , sem se inclinar diante
dessa força, desvia o olhar para os elementos da natureza. É como se a imagem na
poesia de Cecília colocasse diante dos nossos olhos a figura que narra, ao passo
que na poética de Sophia essa voz está em off, dando primazia à paisagem.
312
COELHO, Eduardo Prado. Sophia. Público, Lisboa, 10/04/2007.
184
Mesmo nas metáforas marítimas que remetem a uma recuperação do
passado histórico, aliás, comum, entre as autoras, Cecília quase sempre rememora
as lutas e os sofrimentos. Sophia, no entanto, propõe uma visão camoniana dos
navegadores e, ainda que não se esqueça da labuta imensa e dos sacrifícios que
foram necessários, flui nos seus versos um sentimento de conquista após o domínio
dessa força natural tão imensa.
Na construção metafórica dos poemas de Cecília e Sophia, invertendo os
três passos propostos para a análise por Ricoeur, na epoché o significado literal
cede espaço para o sentido metafórico, e isso, é claro, acontece tanto em uma
quanto em outra. Mas a concepção da imagem que aparece por meio da imaginação
e do sentimento, e que constitui o último momento da formação da metáfora, e
também o estágio da assimilação predicativa, revelam como nas duas autoras isso é
estruturado de modos diferentes.
Cecília utiliza na construção de suas metáforas substantivos concretos
para induzir a um imaginário abstrato que vai diretamente ao seu objetivo de apontar
para o transcendente, enquanto na imanente Sophia, o concreto é colocado em seu
sentido exato. Nessa espécie de poética da concretude se revelam imagens menos
difusas, ao passo que a poesia ceciliana dispõe estruturas formais mais longas e
mais trabalhadas, o que seria comprovado com outros pontos de análise que não
foram abordados aqui.
Tal hipótese talvez explique alguma dificuldade ao analisar o trabalho de
Sophia, por conta da apresentação de imagens poéticas onde as coisas são o que
realmente são, e às quais se adere um sentido metafórico. A dificuldade está em
colocar no contexto exato essas imagens que mostram uma limpidez ilusória, como
permitem ser percebidas e alcançam esse sentido metafórico que a analogia do
primeiro estágio, através dos termos equivalentes, mantém sob controle, pois como
diz Marcus Hester, essa liberdade de apreensão nunca é totalmente livre, e está
sempre circunscrita às palavras.
No entanto, não é demais lembrar que tal julgamento fica delimitado, em
ambas, ao conjunto da poética marinha, que na poesia de Cecília Meireles contém,
numa divisão por temas, os mais melancólicos entre todos, enquanto nos poemas
mais tristes que Sophia já escreveu o mar não desponta como cenário onipresente.
Assim, as metáforas do mar em Cecília e Sophia não apenas apontam
para diferentes identidades ou encaminham seus barcos para portos distintos, mas
185
também se compõem por meio de estratégias desiguais. Mas é interessante notar
como o recurso do espectro de palavras de Dufrenne propicia um panorama em que,
no espaço relativamente diminuto dos poemas, um mesmo grupo toma roupagem
nova e se ajusta sob medida a essa perspectiva nova.
ainda uma observação a fazer: nas duas autoras, o auge da técnica
foi alcançado na segunda metade de suas trajetórias literárias, o que é corroborado
pela própria Sophia em depoimento. Quanto a Cecília, se a partir de Viagem seu
tratamento da forma era louvado pelos colegas, no estágio final de sua obra ela
alcança uma destreza raramente vista. E, igualmente, em ambas a presença do mar
se dilui ao fim dessa jornada, cedendo lugar a outros temas, mas sem esquecer
totalmente os motivos marinhos.
Concluímos aqui nossa proposição de que o oceano como metáfora nas
poéticas de Cecília Meireles e Sophia Andresen adquire significados diversos a partir
dos pressupostos da análise que aliam a semântica da metáfora a uma psicologia da
imaginação.
Neste pequeno estudo sobre algumas relações de semelhança entre
alguns poemas de Cecília Meireles e de Sophia Andresen, cabem breves
considerações quanto ao conhecimento pela poeta portuguesa das obras da autora
brasileira. Acreditamos ter assinalado o quanto esse entendimento foi profundo num
trabalho em que, além dos outros pontos comuns apontados, uma mesma
língua que ambas compartilham. A linguagem literária não é passível de manter-se
isolada, os escritos e as influências se comunicam e se transformam numa relação
interdependente.
Enquanto Cecília Meireles escreve poemas cuja melodia mais vibrante os
torna mais fáceis de memorizar, eles se mostram, de modo singular, um tanto
melancólicos sob essa capa musical.
Sophia, no entanto, apresenta em sua temática, por que não dizer, mais
feliz, um ritmo menos exuberante, mais sereno, e um tanto mais contido. Ainda que
este trabalho aponte um campo vocabular semelhante, a estrutura formal da poética
andreseana se mostra não apenas mais enxuta, mas dotada de uma identidade
própria que dota o conjunto de um caráter único. Na escolha dos títulos, ela
denuncia o vínculo com os versos cecilianos de modo muito claro. A inteireza e a
pungência de seus poemas se apresentam a nós com o ganho literário adicional de
poder examiná-los em perspectiva mais larga, e apontando para lados opostos,
186
como flores de colorido diferente. Segundo o próprio depoimento da autora, “ser
influenciado não quer dizer copiar ou ser parecido influencia-me a pessoa que
revela qualquer coisa”
313
.
Cecil Day Lewis diz que pisando através do espelho em alusão à Alice
de Lewis Carroll - dentro do recinto da crítica, o que parecia no início o reflexo de um
mundo familiar tem fronteiras muito esgarçadas que ali são chamadas de
“influências”, com um aviso, “Não pise na grama” e “Não colher os asfódelos –
propriedade de W. Wordsworth”
314
. É mais uma metáfora expressando como a
poesia, e com ela o mar, está marcada desde os tempos dos aedos como Homero,
recitando seus poemas de memória, a o anel que cai nas águas de Veneza
Sereníssima nos versos de Ezra Pound, por elementos do mundo natural que são
intermináveis em seus significados, poéticos ou literais. Pois sempre será possível
compor uma metáfora nova, uma vez que as metáforas vivas vão aos poucos se
transformando em metáforas mortas, mas graças aos poetas a beleza da língua
continua, renovada e pulsante, em arranjos novos da figura que Aristóteles julgava
impossível ensinar.
Em sua lírica, a brasileira Cecília manifesta uma influência nítida da pátria
ancestral que remete aos seus poetas canônicos, como Camões, do mesmo modo
que Sophia, mas a portuguesa vai beber também nas fontes da antiguidade clássica,
sem esquecer a admiração de ambas pela poesia persa e pelo autor das Elegias de
Duíno, Rilke. Distingue-se nessas poéticas seu modo particular, sintético e
característico de fazer poesia. Bebendo ambas das águas marinhas, enquanto o mar
de Sophia tem sempre ao lado praias de uma brancura luminosa, o mar de Cecília,
muito azul, é o alto mar em que o sol se pôs, em águas mais profundas e mais
salgadas.
A capacidade de compor variações a partir de um tema era uma entre as
muitas grandezas que Bach e Mozart possuíam, mas a dificuldade de Tchaikovsky
nesse campo, para alguns críticos, desabona seu nome e faz dele um compositor
menor. E se podemos dizer assim, poemas o como os parques públicos, um
313
Sophia de Mello Breyner Andresen fala a Eduardo Prado Coelho. In: ICALP, N. 6, p. 76. ago.dez.
1986.
314
DAY LEWIS, Cecil. Op. cit., p. 15. A flor era usada na antiga Grécia nas cerimônias fúnebres, pois
se acreditava que forrava o chão dos Campos Elíseos. Como Daffodil, de Wordsworth, Sophia
Andresen também tem um poema sobre ela, Os asphodelos e provavelmente assinaria ao lado de
Cecil Day Lewis.
187
responsável por eles, mas por conta de sua beleza, deveriam ser acessíveis a todos.
E quanto mais belos e aprazíveis, mais desejável essa proximidade se torna.
Assim, esperamos ter alcançado o objetivo de oportunizar de que modo
se o inter-relacionamento entre essas duas grandes poetas, em que tem a
ganhar a literatura.
188
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196
7 ANEXOS
CECÍLIA MEIRELES
VIAGEM
CANÇÃO
No desequilíbrio dos mares,
as proas giravam sozinhas...
Numa das naves que afundaram
é que tu certamente vinhas.
Eu te esperei todos os séculos,
sem desespero e sem desgosto,
e morri de infinitas mortes
guardando sempre o mesmo rosto.
Quando as ondas te carregaram,
meus olhos, entre águas e areias,
cegaram como os das estátuas,
a tudo quanto existe alheias.
Minhas mãos pararam sobre o ar
e endureceram junto ao vento,
e perderam a cor que tinham
e a lembrança do movimento.
E o sorriso que eu te levava
desprendeu-se e caiu de mim:
e só ele talvez ainda viva
dentro dessas águas sem fim.
CORPO NO MAR
Água densa do sonho, quem navega?
Contra as auroras, contra as baías,
barca imóvel, estrela cega.
Bate o vento na vela e não a arqueia.
- Não foi por mim!
Partiram-se as cordas, rodaram os mastros,
197
os remos entraram por dentro da areia...
Os remos torceram-se, e trançaram raízes.
- Inútil forçá-los 0 alastram-se, fogem
Na sombra secreta de eternos países...
Mudou-se a vela em nuvem clara!
Choraram meus olhos, minhas mãos correram...
- alto e longe! Não foi por mim...
E apenas pára
um corpo na barca vazia,
à mercê das metamorfoses,
olhos vertendo melancolia...
O vento sopra no coração.
Adeus a todos os meridianos!
Deito-me como num caixão.
Ah! sobrevive o mar no meu ouvido...
„Marinheiro! Marinheiro!‟
(Ilhas... Pássaros... Portos... nesse ruído
- O mar!... O mar...! O mar inteiro!...)
Mas é tempo perdido!
CANÇÃO
Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.
Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.
O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...
Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.
198
Depois, tudo estará perfeito:
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.
NOÇÕES
Entre mim e mim, há vastidões bastantes
para a navegação dos meus desejos afligidos.
Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos.
Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que a atinge.
Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza,
só recolho o gosto infinito das respostas que não se encontram.
Virei-me sobre a minha própria existência, e contemplei-a.
Minha virtude era esta errância por mares contraditórios,
e este abandono para além da felicidade e da beleza.
Ó meu Deus, isto é a minha alma:
qualquer coisa que flutua sobre o meu corpo efêmero e precário,
como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e inúmera.
SEREIA
Linda é a mulher e o seu canto,
ambos guardados no luar.
Seus olhos doces de pranto
- quem os pudera enxugar
devagarinho com a boca,
ai!
com a boca, devagarinho...
Na sua voz transparente
giram sonhos de cristal.
Nem ar nem onda corrente
possuem suspiro igual,
nem os búzios nem as violas,
ai!
nem as violas nem os búzios....
Tudo pudesse a beleza,
e, de encoberto país,
viria alguém, com certeza,
199
para fazê-la feliz,
contemplando-lhe alma e corpo,
ai!
alma e corpo contemplando-lhe...
Mas o mundo está dormindo
em travesseiros de luar.
A mulher do canto lindo
ajuda o mundo a sonhar,
com o canto que a vai matando,
ai!
E morrerá de cantar.
VAGA MÚSICA
EPITÁFIO DA NAVEGADORA
Se te perguntarem quem era
essa que às areias e gelos
quis ensinar a primavera;
E que perdeu seus olhos pelos
mares sem deuses desta vida,
sabendo que, de assim perdê-los,
ficaria também perdida;
e que em algas e espumas presa
deixou sua alma agradecida;
essa que sofreu de beleza
e nunca desejou mais nada;
que nunca teve uma surpresa
em sua face iluminada,
dize: “Eu não pude conhecê-la,
sua história está mal contada,
mas seu nome, de barca e estrela,
foi: SERENA DESESPERADA”.
200
O REI DO MAR
Muitas velas. Muitos remos.
Âncora é outro falar...
Tempo que navegaremos
não se pode calcular.
Vimos as plêiades. Vemos
agora a estrela Polar.
Muitas velas. Muitos remos.
Curta vida. Longo mar.
Por água brava ou serena
Deixamos nosso cantar,
vendo a voz como é pequena
sobre o comprimento do ar.
Se alguém ouvir, temos pena:
só cantamos para o mar...
Nem tormenta nem tormento
nos poderia parar.
(Muitas velas. Muitos remos.
Âncora é outro falar...)
Andamos entre água e vento
procurando o Rei do Mar.
MAR EM REDOR
Meus ouvidos estão como conchas sonoras:
música perdida no meu pensamento,
na espuma da vida, na areia das horas...
Esqueceste a sombra no vento.
Por isso, ficaste e partiste,
e há finos deltas de felicidade
abrindo os braços num oceano triste.
Soltei meus anéis nos aléns da saudade.
Entre algas e peixes vou flutuando a noite inteira.
Almas de todos os afogados
chamam para diversos lados
esta singular companheira.
PEQUENA CANÇÃO DA ONDA
Os peixes de prata ficaram perdidos,
com as velas e os remos, no meio do mar.
A areia chamava, de longe, de longe,
ouvia-se a areia chamar e chorar!
201
A areia tem rosto de música
e o resto é tudo luar!
Por ventos contrários, em noites sem luzes,
do meio do oceano deixei-me rolar!
Meu corpo sonhava com a areia, com a areia,
desprendi-me do mundo do mar!
Mas o vento deu na areia.
A areia é de desmanchar.
Morro por seguir meu sonho,
longe do reino do mar.
CANÇÃO DOS TRÊS BARCOS
Meu avô me deu três barcos:
um de rosas e cravos,
um de céus estrelados,
um de náufragos, náufragos...
ai, de náufragos!
Embarcara no primeiro,
dera em altos rochedos,
dera em mares de gelo,
e partira-se ao meio...
ai, no meio!
No segundo me embarcara,
e nem sombra de praia,
e nem corpo nem alma
e nem vida nem nada...
ai, nem nada!
Embarcara no terceiro,
e que vela e que remo!
e que estrela e que vento!
e que porto sereno!
ai, sereno!
Meu avô me deu três barcos:
um de sonhos quebrados,
um de sonhos amargos,
e o de náufragos, náufragos!
ai, de náufragos!
202
NAUFRÁGIO ANTIGO
Inglesinha de olhos tênues,
corpo e vestido desfeitos
em águas solenes;
Inglesinha do veleiro,
com tranças de metro e meio
embaraçando os peixes.
Medusas róseas nos dedos,
algas pela cabeça,
azuis e verdes.
Desceu muitos degraus de seda
e atravessou muitas paredes
de vidro fresco.
Embalada em seus cabelos,
navegava frios reinos
de personagens lentos:
Mira a lua seus dentes,
seus olhos de oceano cheios,
seus lábios hirtos de sede.
Muito tempo, muito tempo...
Medusas róseas nos dedos,
pelo peito, estrelas,
brancas e vermelhas.
Em praias de triste areia,
o vento, sem o veleiro,
chorava de pena.
Inglesinha de olhos tênues,
ao longe suspensa
em líquidas teias!
Vestidos sem consistência:
medusas róseas no ventre,
algas pelos joelhos, azuis e verdes.
Landes ermas
vão sofrendo e morrendo
porque a perderam.
Pelas águas transparentes,
203
suspiros que foram vê-la
ficaram prisioneiros.
E as lágrimas que correram
extraviaram-se, na rede
da espuma crespa.
Inglesinha de olhos tênues
volteia, volteia,
no mar, em silêncio.
Moluscos fosforescentes
cobiçam os arabescos
de suas orelhas.
Peixes de olhos densos
bebem suas veias
azuis e violetas.
Embalada em seus cabelos
noutros mundos entra,
sempre mais imensos.
Por entre anêmonas,
nadadeiras trêmulas,
súbitos espelhos.
A cor dos planetas
pinta seu rosto de cera
e banha seus pensamentos.
(Porque ela ainda pensa:
algas pelo ventre,
azuis e verdes,
medusas pelos artelhos.
E ainda sente.
Sente e pensa e vai serena,
embalada em seus cabelos.)
Inglesinha de olhos tênues,
com tranças de metro e meio,
cor de lua nascente.
Branca ampulheta
foi vertendo, vertendo
séculos inteiros.
Desmanchou-lhe o seio,
204
desfolhou-lhe os dedos
e as madeixas,
medusas, estrelas,
róseas e vermelhas,
e algas verdes,
e a voz do vento
que na areia
sofrera.
E a existência
e a queixa
de quem teve
pena,
antigamente.
MAR ABSOLUTO
CARAMUJO DO MAR
Caramujo do mar, caramujo,
nas areias seco e sujo...
Fui rosa das ondas, da lua e a aurora,
e aqui estou nas areias, cujo
pó vai gastando meu dourado flanco,
sem azuis e espumas, agora.
Vai secando ao sol meu coração branco,
meu coração d‟água, divino, divino,
onde a origem do mundo mora.
Vou ficando ao vento todo cristalino,
quanto mais me perco, me transformo e fujo
do intranqüilo mundo de outrora.
Minha essência plástica e pura
docilmente se transfigura
e vai sendo vida sonora.
Morto vivo, em silêncio rujo;
da praia rasa, absorvo a altura,
e celebro as ondas, as luas, a aurora...
205
as águas que dançam, a espuma que chora...
Caramujo do mar, caramujo,
nas areias seco e sujo...
BEIRA-MAR
Sou moradora das areias,
das altas espumas: os navios
passam pelas minhas janelas
como o sangue nas minhas veias,
como os peixinhos nos rios...
Não têm velas e têm velas;
e o mar tem e não tem sereias;
e eu navego e estou parada,
vejo mundos e estou cega,
porque isto é mal de família,
ser de areia, de água, de ilha...
E até sem barco navega
quem para o mar foi fadada.
Deus te proteja, Cecília,
que tudo é mar e mais nada.
EVELYN
Não te acabarás, Evelyn.
As rochas que te viram são negras, entre espumas finas;
sobre elas giram lisas gaivotas delicadas,
e ao longe as águas verdes revolvem seus jardins de vidro.
Não te acabarás, Evelyn.
Guardei o vento que tocava
a harpa dos teus cabelos verticais,
e teus olhos estão aqui, e são conchas brancas
docemente fechados, como se vê nas estátuas.
Guardei teu lábio de coral róseo
e teus dedos de coral branco.
E estás para sempre, como naquele dia,
comendo, vagarosa, fibras elásticas de crustáceos,
mirando a tarde e o silêncio
e a espuma que te orvalhava os pés.
Não te acabarás, Evelyn.
206
Eu te farei aparecer entre as escarpas,
sereia serena
e os que não te viram procurarão por ti
que eras tão bela e nem falaste.
Evelyn! disseram-me,
apontando-te entre as barcas.
E eras igual a meu destino:
Evelyn entre a água e o céu.
Evelyn entre a água e a terra.
Evelyn sozinha entre os homens e Deus.
CANÇÃO
Vela teu rosto, formosa,
que eu sou um homem do mar.
Que há de fazer de uma rosa
quem vive de navegar?
- se qualquer vento a desfolha,
qualquer sol a faz secar,
se o deus dos mares não olha
por quem se distrai a amar?
Pela grande água perdida,
anda, barca sem amor!
Cada qual tem sua vida:
uns de deserto, uns, de flor.
Vela teu rosto, formosa,
que eu sou um homem do mar.
Poupa ao teu cetim de rosa
o sal que ajudo a formar...
NOTURNO
Brumoso navio
o que me carrega
por um mar abstrato.
Que insigne alvedrio
prende à idéia cega
teu vago retrato?
A distante viagem
adormece a espuma
breve da palavra:
- máquina de aragem
207
que percorre a bruma
e o deserto lavra.
Ceras de mistério
selam cada poro
da vida entregada.
Em teu mar, no império
de exílio onde moro,
tudo é igual a nada.
Capitão que conte
quem és, porque existes,
deve ter havido.
Eu? bebo o horizonte...
Estrelas mais tristes.
Coração perdido.
Sonolentas velas
hoje dobraremos:
- e a nossa cabeça.
Talvez dentro delas
ou nos duros remos
teu NOME apareça.
RETRATO NATURAL
APELO
Abri na noite as grandes águas
criadas no tempo de chorar.
Levantai os mortos do sonho
que trouxestes para viajar.
Fechai os olhos, despedi-vos
atirai os mortos ao mar!
Por amor às vossas estrelas,
chamai ventos de solidão.
Em voz alta, dizei responsos,
descarregai o coração!
Aos mortos que descem das águas,
mandai amor, pedi perdão!
Fazei-vos marinheiros límpidos,
isentos do bem e do mal.
208
Dizei que, à procura dos deuses,
com um rumo sobrenatural,
necessitais da despedida
de toda lembrança mortal.
Ide, com o esbelto movimento,
a graça da libertação,
à proa das naves solenes
que aos deuses vos transportarão.
Mas não fiteis a densa vaga
que se arquear em redor de vós!
- O rosto dos mortos flutua
para sempre. E é um longo cometa
a aérea franja da sua voz.
APRESENTAÇÃO
Aqui está a minha vida esta areia tão clara
com desenhos de andar dedicados ao vento.
Aqui está minha voz esta concha vazia,
sombra de som curtindo o seu próprio lamento.
Aqui está minha dor este coral quebrado,
sobrevivendo ao seu patético momento.
Aqui está minha herança este mar solitário,
que de um lado era amor e, do outro, esquecimento.
DIA SUBMARINO
No fundo do mar
estão entretidos
os náufragos.
Tão entretidos, tão entretidos,
que não sentem a água pelos seus vestidos.
E não precisam chorar;
porque o mar é só de lágrimas.
Só de lágrimas, o mar.
A água é diamante em seus olhos parados.
E há mágicas luzes por todos os lados.
209
Não tem sede, nem fome.
Livres agora, para sempre, os lábios,
sem palavras, sem sorriso,
sem memória nem do seu nome.
Ah, tudo livre agora,
não se fala nem se chora
Mas os braços dos meninos
movem-se ao peso das águas
pois são leves, são de limbo
líquido limbo das mágoas.
E as mães pensam
que talvez as crianças
precisem colher as algas,
e que estão sofrendo as crianças
por inúteis esperanças,
sem palavras e sem lágrimas...
Isso é que tolda a alegria
no paraíso dos náufragos.
DESENHO
Pescador tão entretido
numa pedra de sol,
esperando o peixe ferido
pelo teu anzol,
há um fio do céu descido
sobre o teu coração:
de longe estás sendo ferido
por outra mão.
O AFOGADO
Pelo mar azul,
pela água tão clara
caminhava o morto
esta madrugada.
Subia nas vagas
bordado de espuma,
seu corpo sem roupa,
sem força nenhuma.
210
O sol cor-de-rosa,
nascido nas águas,
via o navegante
procurar a praia.
Sem voz e sem olhos,
chegava de longe.
Chegava e ficara
além do horizonte.
Por dias e noites
viera atravessando
caminhos salgados
como o suor e o pranto.
Dançarino estranho
de passos macabros,
com o corpo despido
e grossos sapatos.
Dançando e dançando,
por noites e dias,
chegou dentro da alva
às areias frias.
O mar e a neblina
que um morto navega
são muito mais fáceis
que, aos vivos, a terra.
Vencera a inconstante
planície intranqüila
numa silenciosa,
cega acrobacia.
E então se deteve
seu corpo dobrado
por aquele imenso,
póstumo cansaço.
Era como os peixes
finalmente quietos:
o peito, gelado
e os olhos, abertos.
Um fio de sangue
corria em seu rosto
irreconhecível
de secreto morto.
211
Miravam com pena
sua dúbia face.
Quem era? Quem fora?
Nas ondas gastara-se.
Nu como nascera
ali se caía.
Só tinha os sapatos:
lembrança da vida.
DOZE NOTURNOS DE HOLANDA
ONZE
Mas a pequena areia caminha com seu passo invisível;
do cristal quebrado, da montanha submersa,
a areia sobe e forma paisagens, campos, países...
Mas o esquema do peixe e da concha modela seus desenhos
e desenrola-se a anêmona,
e o fundo do mar imita o inalcançável firmamento.
Mas a flor está subindo, próxima,
cheia de sutis arabescos.
Mas a água está palpitando entre o pólo e o canal,
viva e sem nome e sem hora.
Mas o sonho está sendo alargado como as imensas redes,
ao vento do mundo, à espuma do tempo,
e todas as metamorfoses caídas aí se agitam,
resvalando entre as malhas muito exíguas
que separam o que é vida do que é morte.
E a mão que dorme está sendo lavrada pela noite,
pela noite que conhece todas as veias,
que protege e destrói pétala e cartilagem,
a pequena larva da água
e o touro que investe contra o nascer do dia...
Porque o dia vem. E a nossa voz é um som que se prolonga,
através da noite.
Um som que só tem sentido na noite.
Um som que aprende, na noite,
a ser o absoluto silêncio.
212
DOZE
Sem podridão nenhuma,
jazerá um afogado nos canais de Amsterdão.
Quem passar entre as casas triangulares,
quem descer estas breves escadas,
quem subir para as barcas oscilantes,
repetirá perplexo:
„Há um claro afogado nos canais de Amsterdão‟.
É um pálido afogado, sem palavras nem datas,
sem crime nem suicídio, um lírico afogado,
com os olhos de cristal repletos de horizontes móveis,
e os longínquos ouvidos recordando na água trêmula
realejos grandes como altares,
festivos carrilhões,
mansos campos de flores.
Sem podridão nenhuma,
jazerá um afogado nos canais de Amsterdão.
Os lapidários podem vir mirar seus olhos:
não houve esmeralda assim, nem diamante, nem ditosa safira.
Mas ninguém pode tocar nesses olhos transparentes,
que se tornariam viscosos e opacos, fora desse descanso
onde os encantados cintilam.
Poderão os profetas vir mirar seus finos vestidos:
bordados de mil desenhos comuns e desconhecidos;
ah! seus vestidos de água, com todas as miragens do mundo,
seus tênues vestidos como não há nos museus, nos palácios
nem nas sinagogas...
Mas não se pode tocar nesse ouro, nessa prata,
nessa resplandecente seda:
pois apenas se encontraria limo, areia, lodo.
Porque a morte é que o veste dessa maneira gloriosa,
a morte que o aguarda nos braços como um belo defunto sagrado.
Sem podridão nenhuma, jazerá um afogado nos canais de Amsterdão.
Para sempre jazerá, e quem quiser pode vir vê-lo,
com seus cabelos estrelados,
com suas brandas mãos flutuantes, livres de tudo,
sem qualquer posse,
com sua boca de sorriso outonal, cor de libélula,
e o coração luminoso e imóvel, detido como grande jóia,
como o nácar mutável, pela inclinação das horas.
Todo mundo o verá, com lua, com chuva, com escuridão,
navegar nos canais, recostado em sua própria leveza e claridade.
213
Sem podridão nenhuma,
jazerá um afogado nos canais de Amsterdão.
E eu sei quando ele caiu nessas águas dolentes.
Eu vi quando ele começou a boiar por esses líquidos caminhos.
Eu me debrucei para ele, na borda da noite,
e falei-lhe sem palavras nem ais,
e ele me respondeu tão docemente,
que era felicidade esse profundo afogamento,
e tudo ficou para sempre numa divina aquiescência
entre a noite, a minha alma e as águas.
Sem podridão nenhuma, jazerá um afogado
nos canais de Amsterdão.
Não há nada que se possa cantar em sua memória:
qualquer suspiro seria uma nuvem sobre essa nitidez.
METAL ROSICLER
3
O gosto da vida equórea
é o da lágrima na boca:
porém a profundidade
é o pranto da vida toda!
Justa armadura salgada,
pungente e dura redoma
que não livra dos perigos,
mas reúne na mesma onda
os monstros no seu império
e o amargo herói que os defronta.
Sob a lisa superfície, que vasta luta revolta!
Cada face que aparece
logo se transforma noutra.
Nenhuma palavra existe.
Horizonte não se encontra.
Deus paira acima das águas,
e o jogo é todo de sombras.
Nas claras praias alegres,
é a espuma do mar que assoma:
combate, vitória, enigma,
jamais se movem `a tona.
O herói sozinho se mede
e a memória é a sua força.
214
E quando vence o perigo,
na vitória não repousa:
a disciplina é o sentido
da luta que o aperfeiçoa.
Deixa a medusa perfeita
em sua acúlea coroa.
E a pérola imóvel deixa
na sua sorte da intacta concha.
21
Tristes
essas mãos na areia
levantando dunas.
Sonho solitário,
vãs arquiteturas:
sopre simples brisa,
deslizem espumas,
morrem os zimbórios
do império das dunas
e os vultos amados/nas suas colunas.
Tristes
essas mãos na areia
trabalhando obscuras.
Voltam ao princípio
em sonhos e lutas,
contra os altos ventos
e as tênues espumas.
E estes grãos tão finos
- sílex e fagulhas!
que queimam os olhos!
E as lágrimas duras
que jamais enxugam
nem os ventos altos
nem tênues espumas...
Tristes
essas mãos na areia
levantando dunas.
Moram longe aqueles
das felizes ruas:
não sabem que estradas
longas e soturnas
conduzem às praias
215
do mar, inseguras.
Não sabem de ventos,
não sabem de espumas,
dos curvos zimbórios,
das lentas colunas,
das mãos soterradas
nestas esculturas...
216
SOPHIA ANDRESEN
POESIA
ATLÂNTICO
Mar,
Metade da minha alma é feita de maresia.
APOLO MUSAGETA
Eras o primeiro dia inteiro e puro
Banhando os horizontes de louvor.
Eras o espírito a falar em cada linha
Eras a madrugada em flor
Entre a brisa marinha.
Eras uma vela bebendo o vento dos espaços
Eras o gesto luminoso de dois braços
Abertos sem limite.
Eras a pureza e a força do mar
Eras o conhecimento pelo amor.
Sonho e presença
De uma vida florindo
Possuída e suspensa.
Eras a medida suprema, o cânon eterno
Erguido e puro, perfeito e harmonioso
No coração da vida e para além da vida
No coração dos ritmos secretos.
CASA BRANCA
Casa branca em frente ao mar enorme,
Com o teu jardim de areia e flores marinhas
E o teu silêncio intacto em que dorme
O milagre das coisas que eram minhas.
... ...... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
217
A ti eu voltarei após o incerto
Calor de tantos gestos recebidos
Passados os tumultos e o deserto
Beijados os fantasmas, percorridos
Os murmúrios da terra indefinida.
Em ti renascerei num mundo meu
E a redenção virá nas tuas linhas
Onde nenhuma coisa se perdeu
Do milagre das coisas que eram minhas.
NO ALTO MAR
No alto mar
A luz escorre
Lisa sobre a água.
Planície infinita
Que ninguém habita.
O sol brilha enorme
Sem que ninguém forme
Gestos na sua luz.
Livre e verde a água ondula
Graça que não modula
O sonho de ninguém.
São claros e vastos os espaços
Onde baloiça o vento
E ninguém nunca de delícia ou de tormento
Abriu neles os seus braços.
DIA DO MAR
JARDIM DO MAR
Vi um jardim que se desenrolava
Ao longo de uma encosta suspenso
Milagrosamente sobre o mar
Que do largo contra ele cavalgava
Desconhecido e imenso.
Jardim de flores selvagens e duras
E cactos torcidos em mil dobras,
218
Caminhos de areia branca e estreitos
Entre as rochas escuras
E, aqui e além, os pinheiros
Magros e direitos.
Jardim do sol, do mar e do vento,
Áspero e salgado,
Pelos duros elementos devastado
Como por um obscuro tormento:
E que não podendo como as ondas
Florescer em espuma,
Raivoso atira para o largo, uma a uma,
As pétalas redondas
Das suas raras flores.
Jardim que a água chama e devora
Exausto pelos mil esplendores
De que o mar se reveste em cada hora.
Jardim onde o vento batalha
E que a mão do mar esculpe e talha.
Nu, áspero, devastado,
Numa contínua exaltação,
Jardim quebrado
Da imensidão.
Estreita taça
A transbordar da anunciação
Que às vezes nas coisas passa.
***
Esgotei o meu mal, agora
Queria tudo esquecer, tudo abandonar,
Caminhar pela noite fora
Num barco em pleno mar.
Mergulhar as mãos nas ondas escuras
Até que elas fossem essas mãos
Solitárias e puras
Que eu sonhei ter.
EURIDYCE
A noite é o seu manto que ela arrasta
Sobre a triste poeira do meu ser
Quando escuto o cantar do seu morrer
em que o meu coração todo se gasta.
Voam no firmamento os seus cabelos
219
Nas suas mãos a voz do mar ecoa
Usa as estrelas como uma coroa
E atravessa sorrindo os pesadelos.
Veio com ar de alguém que não existe,
Falava-me de tudo quanto morre
E devagar no ar quebrou-se, triste
De ser aparição, água que escorre.
EXÍLIO
Espero tecendo os dias
Imagino e contemplo.
Num país sem flores onde o mar não é mar
E enigma são os navios,
Eu não entendo o sentido das velas
Tenho fome e sede de horizontes frios
NAVIO NAUFRAGADO
Vinha dum mundo
Sonoro, nítido e denso.
E agora o mar o guarda no seu fundo
Silencioso e suspenso.
É um esqueleto branco o capitão,
Branco como as areias,
Tem duas conchas na mão
Tem algas em vez de veias
E uma medusa em vez de coração.
Em seu redor as grutas de mil cores
Tomam formas incertas quase ausentes
E a cor das águas toma a cor das flores
E os animais são mudos, transparentes.
E os corpos espalhados nas areias
Tremem à passagem as sereias,
As sereias leves de cabelos roxos
Que têm olhos vagos e ausentes
E verdes como os olhos das videntes.
220
CORAL
Dia do mar, construído
Com sombras de cavalos e de plumas.
Dia do mar no meu quarto cubo
Onde os meus gestos sonâmbulos deslizam
Entre o animal e a flor como medusas.
Dia do mar, dia alto
Onde os meus gestos são gaivotas que se perdem
Rolando sobre as ondas, sobre as nuvens.
Os troncos das árvores doem-se como se fossem
[os meus ombros
Doem-me as ondas do mar como gargantas de cristal
Dói-me o luar branco pano que se rasga.
PRAIA
Os pinheiros gemem quando passa o vento
O sol bate no chão e as pedras ardem.
Longe caminham os deuses fantásticos do mar
Brancos de sal e brilhantes como peixes.
Pássaros selvagens de repente,
Atirados contra a luz como pedradas,
Sobem e morrem no céu verticalmente
E o seu corpo é tomado nos espaços.
As ondas marram quebrando contra a luz
A sua fronte ornada de colunas.
E uma antiqüíssima nostalgia de ser mastro
baloiça nos pinheiros.
PIRATA
Sou o único homem a bordo do meu barco.
Os outros são monstros que não falam,
Tigres e ursos que amarrei aos remos,
E o meu desprezo reina sobre o mar.
221
Gosto de uivar no vento como os mastros
E de me abrir na brisa com as velas,
E há momentos que são quase esquecimento
Numa doçura imensa de regresso.
A minha pátria é onde o vento passa,
A minha amada é onde os roseirais dão flor,
O meu desejo é o rastro que ficou das aves,
E nunca acordo desse sonho e nunca durmo.
NO TEMPO DIVIDIDO
Iremos juntos sozinhos pela areia
Embalados no dia
Colhendo algas roxas e os corais
Que na praia deixou a maré cheia.
As palavras que me disseres e que eu disser
Serão somente as palavras que há nas coisas
Virás comigo desumanamente
Como vêm as ondas com o vento.
O belo dia liso como um linho
Interminável será sem um defeito
Cheio de imagens e conhecimento.
O ARCO DAS ESPUMAS
O mar rolou as suas ondas negras
Sobre as praias tocadas de infinito.
PRAIA
As ondas desenrolam os seus braços
E brancas tombam de bruços.
CAMINHO DA ÍNDIA
I
Ante o seu rosto pára a história
E detém-se o exército dos ventos
Tinha o futuro por memória.
222
Coração atento em frente à linha lisa
Do horizonte
Vontade inteira e precisa
Exacto pressentimento.
II
Que no largo mar azul se perca o vento
E nossa seja a nossa própria imagem.
Desejo de conhecimento
As tempestades deram-nos passagem.
E os lemes quebrados dos capitães mortos
E os náufragos azuis do fim do mundo
Na rota de todos os portos
No fundo do mar profundo
Com os seus braços ossos
E seus verdes destroços
Marcaram o caminho.
PRECE
Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.
Para ti eu criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas
MAR NOVO
NÁUFRAGO
Agora morto oscilas
Ao sabor das correntes
Com medusas em vez de pupilas.
Agora reinas entre imagens puras
Em países transparentes e de vidro,
Sem coração e sem memória
Em todas as presenças diluído.
223
Agora liberto moras
Na pausa branca dos poemas.
Teu corpo sobe e cai em cada vaga,
Sem nome e sem destino
Na limpidez da água.
SEQÜÊNCIA
A sua face transpôs os temporais
O vento azul rolou entre os seus braços
A penumbra subiu e rodeou
O seu rosto aceso as suas mãos iguais
Dos seus ombros nasceram as estátuas
E o gesto dos seus dedos
Encantou os navios
Baloiça um enforcado na baía
Mãos sem corpo levam castiçais
Uma cortina enrola-se na brisa
Uma porta bate e de repente
Um corredor fica vazio.
OS NAVEGADORES
Eles habitam entre um mastro e o vento.
Têm as mãos brancas de sal
E os ombros vermelhos de sol.
Os espantados peixes se aproximam
Com olhos de gelatina.
No oceano infinito
Estão detidos num barco
E o barco tem um destino
Que os astros altos indicam.
LUSITÂNIA
Os que avançam de frente para o mar
E nele enterram como uma aguda faca
A proa negra dos seus barcos
Vivem de pouco pão e de luar.
224
LIVRO SEXTO
MUSA
Musa ensina-me o canto
Venerável e antigo
O canto para todos
Por todos entendido
Musa ensina-me o canto
O justo irmão das coisas
Incendiador da noite
E na tarde secreto
Musa ensina-me o canto
Em que eu mesma regresso
Sem demora e sem pressa
Tornada planta ou pedra
Ou tornada parede
Da casa primitiva
Ou tornada o murmúrio
Do mar que a cercava
(Eu me lembro do chão
De madeira lavada
E do seu perfume
Que me atravessava)
Musa ensina-me o canto
Onde o mar respira
Coberto de brilhos
Musa ensina-me o canto
Da janela quadrada
E do quarto branco
Que eu possa dizer como
A tarde ali tocava
Na mesa e na porta
No espelho e no copo
E como os rodeava
Pois o tempo me corta
O tempo me divide
O tempo me atravessa
225
E me separa viva
do chão e da parede
Da casa primitiva
Musa ensina-me o canto.
Onde o mar respira
Coberto de brilhos
Musa ensina-me o canto
Da janela quadrada
E do quarto branco
Que eu possa dizer como
A tarde ali tocava
Na mesa e na porta
No espelho e no copo
E como os rodeava
Pois o tempo me corta
O tempo me divide
O tempo me atravessa
E me separa viva
Do chão e da parede
Da casa primitiva
Musa ensina-me o canto
Venerável e antigo
Para prender o brilho
Dessa manhã polida
Que poisava na duna
Docemente seus dedos
E caiava as paredes
Da casa limpa e branca
Musa ensina-me o canto
Que me corta a garganta
BARCOS
, Um a um para o mar passam os barcos
Passam em frente aos promontórios e terraços
Cortando as águas lisas como um chão
E todos os deuses são de novo nomeados
Para além das ruínas dos seus templos
226
PESCADOR
1
Irmão limpo das coisas
Sem pranto interior
Sem introversão
2
Este que está inteiro em sua vida
Fez do mar e do céu seu ser profundo
E manteve com serena lucidez
Aberto seu olhar e posto sobre o mundo
A VAGA
Como toiro arremete
Mas sacode a crina
Como cavalgada
Seu próprio cavalo
Como cavaleiro
Força e chicoteia
Porém é mulher
Deitada na areia
Ou é bailarina
Que sem pés passeia
O VELHO ABUTRE
O velho abutre é sábio e alisa suas penas
A podridão lhe agrada e seus discursos
Têm o dom de tornar as almas mais pequenas
GEOGRAFIA
PROCELÁRIA
É vista quando há vento e grande vaga
Ela faz o ninho no rolar da fúria
E voa firme e certa como bala
As suas asas empresta à tempestade
227
Quando os leões do mar rugem nas grutas
Sobre os abismos passa e vai em frente
Ela não busca a rocha o cabo o cais
Mas faz da insegurança sua força
E do risco de morrer seu alimento
Por isso me parece imagem justa
Para quem vive e canta no mau tempo
CREPÚSCULO DOS DEUSES
Um sorriso de espanto brotou nas ilhas do Egeu
E Homero fez florir o roxo sobre o mar
O Kouros avançou um passo exactamente
A palidez de Athena cintilou no dia
Então a claridade dos deuses venceu os monstros nos
[frontões de todos os templos
E para o fundo do seu império recuaram os Persas
Celebramos a vitória: a treva
Foi exposta e sacrificada em grandes pátios brancos
O grito rouco do coro purificou a cidade
Como golfinhos a alegria rápida
Rodeava os navios
O nosso corpo estava nu porque encontrara
A sua medida exata
Inventámos: as colunas de Sunion imanentes à luz
O mundo era mais nosso a cada dia
Mas eis que se apagaram
Os antigos deuses sol interior das coisas
Eis que se abriu o vazio que nos separa das coisas
Somos alucinados pela ausência bebidos pela ausência
E aos mensageiros de Juliano a Sibila respondeu:
„Ide dizer ao rei que o belo palácio jaz por terra quebrado
Phebo já não tem cabana nem loureiro profético nem fonte
[melodiosa
A água que fala calou-se‟. *
Resposta do Oráculo de Delphos a Oríbase, médico de Juliano, o
Apóstata (Cedrenus, Resumo da História).
228
DUAL
ARIADNE EM NAXOS
Tu Teseu que abandonas amadas
Junto de um mar inteiramente azul
Invocavam deixadas
No deserto fulgor de Junho e Sul
Junto de um mar azul de rochas negras
Porém Dionysos sacudiu
Seus cabelos azuis sobre os rochedos
Dyonisos pantera surgiu
E pelo Deus tocado renasceu
Todo o fulgor de antigas primaveras
Onde serei ou fui por fim ser eu
Em ti que dilaceras
OS GREGOS
Aos deuses supúnhamos uma existência cintilante
Consubstancial ao mar à nuvem ao arvoredo à luz
Neles o longo friso branco das espumas o tremular da vaga
A verdura sussurrada e secreta do bosque o oiro erecto do trigo
O meandro do rio o fogo solene da montanha
E a grande abóbada do ar sonoro e leve e livre
Emergiam em consciência que se vê
Sem que se perdesse o um-boda-e-festa do primeiro dia
Esta existência desejávamos para nós próprios homens
Por isso repetíamos os gesto rituais que restabelecem
O estar-ser-inteiro inicial das coisas
Isto nos tornou atentos a todas as formas que a luz do sol
[conhece
E também à treva interior porque somos habitados
E dentro da qual navega indicível o brilho
O NOME DAS COISAS
COMO O RUMOR
Como o rumor do mar dentro de um búzio
O divino sussurra no universo
229
Algo emerge: primordial projecto
REVOLUÇÃO
Como casa limpa
Como chão varrido
Como porta aberta
Como puro início
Como tempo novo
Sem mancha nem vício
Como a voz do mar
Interior de um povo
Como página em branco
Onde o poema emerge
Como arquitectura
Do homem que ergue
Sua habitação
ESTAÇÕES DO ANO
Primeiro vem Janeiro
Suas longínquas metas
São Julho e são Agosto
Luz de sal e de setas
A praia onde o vento
Desfralda as barracas
E vira guarda-sóis
Ficou na infância antiga
Cuja memória passa
Pela rua à tarde
Como uma cantiga
É verão onde hoje moro
É mais duro e mais quente
Perdeu-se a frescura
Do verão adolescente
Aqui onde estou
Entre sal e cal
Sob o peso do sol
Nenhuma folha bole
Na manhã parada
E o mar é de metal
Como um peixe-espada
230
NAVEGAÇÕES
I
Navegámos para Oriente
A longa costa
Era de um verde espesso e sonolento
Um verde imóvel sob o nenhum vento
Até à branca praia cor de rosas
Tocada pelas águas transparentes
Então surgiram as ilhas luminosas
De um azul tão puro e violento
Que excedia o fulgor do firmamento
Navegado por garças milagrosas
E extinguiram-se em nós memória e tempo
II
Era a rota do oiro
Porém nos grandes mares
Ou em praias baloiçadas por coqueiros
O espanto nos guiava
Água escorria de todas as imagens
IV
Dos homens nus e negros contarei
E de como não havendo já connosco
Quem de seu falar algo entendesse
Juntos dançamos pra nos entendermos
X
Sombrios deuses
Senhores do medo antigo
O sopro como estátuas suspendendo
Na movediça luz as lamparinas”
XIV
231
Através do teu coração passou um barco
Que não pára de seguir sem ti o seu caminho
ILHAS
NÃO TE ESQUEÇAS NUNCA
Não te esqueças nunca de Thasos nem de Egina
O pinhal a coluna a veemência divina
O templo o teatro o rolar de uma pinha
O ar cheirava a mel a pedra e a resina
Na estátua morava a tua nudez marinha
Sob o sol azul e a veemência divina
Não te esqueças nunca Treblinka e Hiroshima
O horror o terror a suprema ignomínia
OS NAVEGADORES
O múltiplo nos inebria
O espanto nos guia
Com audácia desejo e calculado engenho
Forçamos os limites -
Porém o Deus uno
De desvios nos protege
Por isso ao longo das escalas
Cobrimos de oiro o interior sombrio da igrejas
MADRUGADA
Um leve tremor precede a madrugada
Quando mar e céu na mesma cor se azulam
E são mais claras as luzes dos barcos pescadores
E para além de insânias e rumores
A nossa vida se vê extasiada
232
MUSA
ONDAS
Onde ondas mais belos cavalos
Do que estes ondas que vós sois?
Onde mais bela curva do pescoço
Onde mais bela crina sacudida
Ou impetuoso arfar no mar imenso
Onde tão ébrio amor em vasta praia?
OS AMIGOS
Voltar ali onde
A verde rebentação da vaga
A espuma o nevoeiro o horizonte a praia
Guardam intacta a impetuosa
Juventude antiga
Mas como sem os amigos
Sem a partilha o abraço a comunhão
Respirar o cheiro a alga da maresia
E colher a estrela do mar em minha mão
À MANEIRA DE HORÁCIO
Feliz aquele que disse o poema ao som da lira
À mesa do banquete entre os amigos
E coroado de rosas e de mirto
Seu canto nascia da solar memória dos seus dias
E da pausa mágica da noite
Seu canto celebrava
Consciente da areia fina que escorria
Enquanto o mar as rochas desgastava
O BÚZIO DE CÓS
O BÚZIO DE CÓS
Este búzio não o encontrei eu própria numa praia
Mas na mediterrânica noite azul e preta
Comprei-o em Cós numa venda junto ao cais
Rente aos mastros baloiçantes dos navios
E comigo trouxe o ressoar dos temporais
233
Porém nele não oiço
Nem o marulho de Cós nem o de Egina
Mas sinto o cântico da longa vasta praia
Atlântica e sagrada
Onde para sempre minha alma foi criada
FOI NO MAR QUE APRENDI
Foi no mar que aprendi o gosto da forma bela
Ao olhar sem fim o sucessivo
Inchar e desabar da vaga
A bela curva luzidia do seu dorso
O longo espraiar das mãos de espuma
Por isso nos museus da Grécia antiga
Olhando as estátuas frisos e colunas
Sempre me aclaro mais leve e mais viva
E respiro melhor como na praia
O INFANTE
Aos homens ordenou que navegassem
Sempre mais longe para ver o que havia
E sempre para o sul e que indagassem
O mar a terra o vento a calmaria
Os povos e os astros
E no desconhecido cada dia entrassem
HARPA
A juventude impetuosa do mar invade o quarto
A musa poisa no espaço vazio à contraluz
As cordas transparentes da harpa
E no espaço vazio dedilha as cordas ressoantes
234
Dados pessoais
Formação
acadêmica/Titulação
Formação
complementar
Atuação
profissional
Linhas de pesquisa
Projetos de
pesquisa
Áreas de atuação
Idiomas
Prêmios e títulos
Produção científica,
tecnológica e
artística/cultural
Dados
complementares
Indicadores de
produção
Outras
informações
relevantes
Curriculum Vitae
Karin Lilian Hagemann Backes
Dados pessoais
Nome
Karin Lilian Hagemann Backes
Nome em citações
bibliográficas:
BACKES, Karin L. H.
Sexo
feminino
Filiação
Ottokar Adolfo Hagemann e Thecla Hagemann
Nascimento
04/11/1960, Tubarão/SC - Brasil
Carteira de identidade
8036181942 / SJS / RS / 21/07/1984
CPF
36078824015
Endereço profissional
Porto Alegre
Endereço residencial
R: Cons. Augusto Hennig, 207/1101
Higienópolis
96820750 Santa Cruz do Sul, RS - Brasil
Telefone: (51) 84299241
E-mail: karinlh@uol.com.br
URL da home page: http://
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Formação acadêmica/Titulação
2002 -
2003
Mestrado em Lingüística e Letras.
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, PUCRS, Rio Grande do Sul, Brasil.
Título: Natureza e transcendência na lírica de Cecília Meireles: abordagem
fenomenológica. Ano de obtenção: 2003.
Orientador: Maria da Glória Bordini.
Bolsista do(a): Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, CAPES,
Brasil.
Palavras-chave: Poesia de Cecília Meireles; Fenomenologia; Imagem.
Áreas do conhecimento: Literatura Brasileira.
Setores de aplicação: Educação superior.
2000 -
2001
Especialização em Literatura Brasileira.
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, PUCRS, Rio Grande do Sul, Brasil.
1979 -
1985
Graduação em Direito.
Universidade de Santa Cruz do Sul, UNISC, Rio Grande do Sul, Brasil.
2005
Doutorado em Lingüística e Letras.
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, PUCRS, Rio Grande do Sul, Brasil.
Título: Mar de poeta: o oceano como metáfora nas líricas de Cecília Meireles e Sophia
Andresen.
Orientador: Ana Maria Lisboa de Mello.
Bolsista do(a): Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, CAPES,
Brasil.
Palavras-chave: Metáfora.
Áreas do conhecimento: Letras; Literatura Comparada.
Setores de aplicação: Educação superior.
2004
Graduação em Letras.
Universidade de Santa Cruz do Sul, UNISC, Rio Grande do Sul, Brasil.
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Atuação profissional
235
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS
Vínculo
institucional
2005 - Atual
Vínculo: Bolsista , Enquadramento funcional: Doutorando, Regime:
Dedicação exclusiva.
Atividades
3/2005 - Atual
Projetos de pesquisa, Faculdade de Letras, Departamento de Pós-Graduação em Letras.
Participação em projeto
1. Estudos Culturais e Literaturas Luso-afro-asiáticas.
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Projetos de pesquisa
2005
-
Atua
l
Estudos Culturais e Literaturas Luso-afro-asiáticas.
Descrição: Descrição: Constitui-se em relexão teórica sobre o pensamento mais recente na área da Teoria da Literatura, dedicado à relação entre literatura e sociedade, literatura e cultura. Tendo em vista as alterações das noções de nação e identidade diante das novas pressões sociais advindas dos procvessos de globalização econômica, a literatura contemporânea tem-se desdobrado em gênros híbridos, em que as fronteiras tradicionais são transgredidas, os
modelos clássicos são refundidos, os estilos se particularizam, recusando-se a asssumir os lugares estéticos consagrados pelos diversos modernismos do século XX, mas também repensando as estratégias textuais associados ao chamado pós-modernismo. Assim, a pesquisa se desenvolverá no aprofundamento de textos teóricos dos estudos culturais voltados para as margens dos sistemas, para os elementos excluídos, para as contra-hegemonias.. Situação:
Em andamento; Natureza: Pesquisa. Alunos envolvidos: Graduação ( 0) / Especialização ( 0) / Mestrado acadêmico ( 0) / Mestrado profissionalizante ( 0) / Doutorado ( 5) . Integrantes: Karin L. Hagemann Backes - Adriana Bayer - Luciana Éboli - José Luís Giovanoni Fornos - Inara de Oliveira Rodrigues - Jane Tutikian - Silvia Niederauer - Inara de Oliveira Rodrigues - Roberto Carlos Ribeiro - Celso Sisto - Maristela Girola - Márcio Strapação - Alan Santos - Alan
Neiva - Maria Luiza Ritzel Remédios - Coordenador. Finaciador(es): Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - Outra / Universidade de Passo Fundo - Cooperação / Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Cooperação / Centro Universitário Franciscano - Cooperação / Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Bolsa / Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - Bolsa.Número de orientações: 2. .
Situação: Em andamento; Natureza: Pesquisa.
Alunos envolvidos: Doutorado (5).
Integrantes: Karin Lilian Hagemann Backes (Responsável).
I1
Número de produções C, T &
AI0
: 2.
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Áreas de atuação
1
Lingüística, Letras e Artes, Letras.
2
Letras, Literatura Comparada.
3
Letras, Literaturas Lusófonas.
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Idiomas
Compreende
Espanhol (Bem), Inglês (Bem), Português (Bem).
Fala
Espanhol (Razoavelmente), Inglês (Bem), Português (Bem).
Espanhol (Bem), Inglês (Bem), Português (Bem).
Escreve
Espanhol (Razoavelmente), Inglês (Bem), Português (Bem).
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Prêmios e títulos
1999
Menção Honrosa - concurso de Histórias sobre os 150 Anos de Colonização Alemã,
UNISC.
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Produção científica, tecnológica e artística/cultural
Produção bibliográfica
Produção técnica
Produção artística/cultural
Orientações concluídas
Demais trabalhos
Produção bibliográfica
Trabalhos completos em anais de eventos
236
1
BACKES, Karin Lilian Hagemann. Aaprendizagem de Ndani, por Abdulai Sila. In: XXI
ENCONTRO DE PROFESSORES DE LITERATURA PORTUGUESA, 2007, São Paulo.
Revoluções, Diásporas, Identidades. 2007.
Palavras-chave: Literaturas Lusófonas.
Referências adicionais: Classificação do evento: Internacional; Brasil/Português; Meio de divulgação: Impresso;
Homepage: http://www.abraplip.org.br.
2
BACKES, Karin Lilian Hagemann. Estudos Culturais, identidade e diferença: Desonra, de
J. M. Coetzee. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE CRÍTICA LITERÁRIA, 2006, Porto
Alegre. 2006.
Áreas do conhecimento: Literaturas Estrangeiras Modernas.
Setores de aplicação: Produtos e serviços recreativos, culturais, artísticos e desportivos.
Referências adicionais: Classificação do evento: Nacional; Brasil/Português; Meio de divulgação: Impresso.
3
BACKES, Karin Lilian Hagemann. Madorna de Iaiá: a berceuse afro-brasileira de Jorge de
Lima. In: XX ENCONTRO DE PROFESSORES DE LITERATURA PORTUGUESA, 2005,
Niterói. XX Encontro de Professores Brasileiros de Literatura Portuguesa: No limite dos
sentidos. Niterói: 2005.
Palavras-chave: Literaturas Lusófonas.
Áreas do conhecimento: Letras.
Referências adicionais: Classificação do evento: Internacional; Brasil/Português; Meio de divulgação: Digital.
Em sua segunda fase, a poesia de Jorge de Lima expõe em vários de seus poemas as relações de entrelaçamento das
culturas branca e africana, como é o caso de "Madorna de Iaiá". Colocam-se ali alguns dos aspectos da africanidade que
a firmaram como influência cultural decisiva dentro da sociedade branca e escravocrata na qual se inseria. No poema, a
riqueza dos vocábulos nordestinos se une à melopéia africana para fazer um registro no qual o poeta alagoano constrói
uma lírica de marcada musicalidade, apoiada no ritmo modal, que ultrapassa as fronteiras sociológicas entre as culturas
branca e negra que outros poetas deixaram por explorar, estabelecendo um novo padrão estético na poesia.
4
BACKES, Karin Lilian Hagemann. Drummond: uma biografia poética de Portinari em Lição
de coisas. In: XXII SEMINÁRIO BRASILEIRO DE CRÍTICA LITERÁRIA E XXI SEMINÁRIO
DE CRÍTICA DO RIO GRANDE DO SUL, 2004, Porto Alegre. 2004.
Áreas do conhecimento: Educação.
Referências adicionais: Classificação do evento: Nacional; Brasil/Português; Meio de divulgação: Impresso.
Análise do poema "A mão", que Drummond escreve quando falece Cândido Portinari, enfatizando o cruzamento de
gêneros entre poesia e biografia.
5
BACKES, Karin Lilian Hagemann. A história de Brasil de Santa Cruz: do Império a abril de
1964. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA LITERATURA, 2003, Porto
Alegre. 2003.
Palavras-chave: História da Literatura.
Áreas do conhecimento: História Regional do Brasil.
Setores de aplicação: Produtos e serviços recreativos, culturais, artísticos e desportivos.
Referências adicionais: Classificação do evento: Internacional; Brasil/Português; Meio de divulgação: Impresso.
O trabalho procura mostrar como o autor constrói uma epopéia em que o próprio povo brasileiro conta sua história,
através da perspectiva de Brasil de Santa Cruz, personagem de Sinval Medina no "Memorial de Santa Cruz".
Encarcerado em 1o. de abril de 1964, mostra na alcunha seu caráter "antes genérico que individual" (Zilberman, 1983),
que abrange num único personagem uma galeria de tipos brasileiros, condição que alcança pela situação migratória e
pela invulnerabilidade. O espaço de tempo abrangido pela história é mostrado de maneira seletiva, de uma perspectiva
que a historiografia não atinge, por meio do apagamento dos protagonistas dos relatos oficiais, e pondo em relevo a
visão de seus coadjuvantes anônimos.
6
BACKES, Karin Lilian Hagemann. O tema da guerra na lírica de Cecília Meireles. In: III
SEMINÁRIO INTERNACIONAL EM LETRAS, 2003, Santa Maria. III Seminário
Internacional em Letras: Leitura, Escrita e Cidadania. 2003.
Palavras-chave: Poesia de Cecília Meireles; Literatura Brasileira.
Áreas do conhecimento: Ciências Humanas.
Setores de aplicação: Produtos e serviços recreativos, culturais, artísticos e desportivos.
Referências adicionais: Classificação do evento: Internacional; Brasil/Português; Meio de divulgação: Digital; ISSN/ISBN:
8588667282.
As mudanças na lírica e o enfoque dos poemas de guerra em "Mar absoluto", escritos por Cecília Meireles durante o
período do conflito e publicados em 1945, além de sua reflexão sobre os coadjuvantes anônimos, como a noiva e os pais
do soldado, são relacionados com a obra de Susan Sontag "Diante da dor dos outros", que defende que a manifestação
da ira tem primazia na representação da arte. Se, aparentemente, "escapavam de sua tensão" (Zagury, 1973), os
poemas de Meireles margeiam a busca do Absoluto, ponto central da temática ceciliana, para se fixar numa reflexão
terrena da dor.
7
BACKES, Karin Lilian Hagemann. Os dias felizes: trovadorismo e natureza na poética de
Cecília Meireles. In: XIX ENCONTRO BRASILEIRO DE PROFESSORES DE
LITERATURA BRASILEIRA, 2003, Curitiba. XIX Encontro de Professores Brasileiros de
Literatura Portuguesa, Imaginário: o não-espaço do real. Curitiba: 2003. p. 505-510.
Palavras-chave: Poesia de Cecília Meireles; Literatura Brasileira.
Áreas do conhecimento: Ciências Humanas.
Setores de aplicação: Produtos e serviços recreativos, culturais, artísticos e desportivos.
Referências adicionais: Classificação do evento: Nacional; Brasil/Português; Meio de divulgação: Digital.
Forte influência na lírica de Cecília Meireles, que tem estreitos laços com a tradição literária portuguesa, o Trovadorismo
é a base poética de "Os dias felizes", apêndice de "Mar absoluto". A presença da lírica dos trovadores, sobretudo das
237
cantigas d'amigo, num cenário que privilegia a natureza e seus elementos, está ligada à tese do filósofo Mikel Dufrenne
sobre a "natureza naturante", que defende que nessa relação entre natureza e poeta, é a natureza quem toma a
iniciativa, e por meio da linguagem, se dá a conhcer perante o mundo.
8
BACKES, Karin Lilian Hagemann. A construção da nação na obra O mulato de Aluísio
Azevedo. In: XIX SEMINÁRIO BRASILEIRO DE CRÍTICA LITERÁRIA/XVIII SEMINÁRIO
DE CRÍTICA DO RIO GRANDE DO SUL, 2002, Porto Alegre. 2002.
Palavras-chave: Literatura Brasileira.
Áreas do conhecimento: História Regional do Brasil.
Setores de aplicação: Produtos e serviços recreativos, culturais, artísticos e desportivos.
Referências adicionais: Classificação do evento: Nacional; Brasil/Português; Meio de divulgação: Impresso.
Resumos simples em anais de eventos
1
BACKES, Karin Lilian Hagemann. Da França ao Cosme Velho: Machado de Assis e a
literatura francesa. In: CONGRESSO INTERNACIONAL CENTENÁRIO DE DOIS
IMORTAIS: MACHADO DE ASSIS E GUIMARÃES ROSA, 2008, Belo Horizonte. Machado
de Assis e Guimarães Rosa: centenário de dois imortais. 2008.
Áreas do conhecimento: Literaturas Lusófonas.
Referências adicionais: Classificação do evento: Internacional; Brasil/Português; Meio de divulgação: Impresso.
Entre os nomes sempre lembrados pela crítica entre as referências literárias que serviram de inspiração para Machado
de Assis, apontado pelo próprio autor brasileiro como dos mais significativos, está o escritor inglês Laurence Sterne. Se
a lembrança do autor de Tristan Shandy é irrevogável ao se tratar do assunto, tal não acontece com alguns dos autores
daquela que é a segunda língua de Machado, o francês. Entre esses, destaca-se a influência de um autor que também
mostrava gosto notável pela ironia, Prosper Mérimée. Seu primeiro conto publicado data de 1831 e intitula-se Mateo
Falcone, história violenta que julgamos ter servido de inspiração a Machado de Assis para o seu Conto de Escola. Por
meio da análise dos dois contos, é possível reencontrar a trilha feita por Machado para reconstruir a história a seu modo,
e também esclarecer a origem de certos dados do texto que, a princípio, podem parecer aleatórios.
2
BACKES, Karin Lilian Hagemann. Da França ao Cosme Velho: Machado de Assis e a
literatura francesa. In: IX CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE
LUSITANISTAS, 2008, Funchal - Ilha da Madeira. 2008.
Áreas do conhecimento: Literaturas Lusófonas.
Referências adicionais: Classificação do evento: Internacional; Brasil/Português; Meio de divulgação: Impresso.
3
BACKES, Karin Lilian Hagemann. Faustino Manso, O Seripipi viajante: um Ulisses
africano. In: JORNADA DE PESQUISA DO GRUPO DE ESTUDOS CULTURAIS E
LITERATURAS LUSÓFONAS, 2008, Porto Alegre. Modernidade e Pós-Modernidade nas
literaturas lusófonas. 2008.
Palavras-chave: Literaturas Lusófonas.
Áreas do conhecimento: Literaturas Lusófonas.
Setores de aplicação: Educação.
Referências adicionais: Classificação do evento: Regional; Brasil/Português; Meio de divulgação: Outro.
4
BACKES, Karin Lilian Hagemann. Poesia e natureza: o imaginário na lírica de Cecília
Meireles. In: VIII CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL
DE LUSITANISTAS, 2005, Santiago de Compostela. 2005.
Áreas do conhecimento: Educação.
Referências adicionais: Classificação do evento: Internacional; Espanha/Português; Meio de divulgação: Impresso.
Capítulos de livros publicados
1
BACKES, Karin Lilian Hagemann. Karin Hagemann. In: BRASIL, Luiz Antônio de Assis.
(Org.). Oficina 30. Porto Alegre, 2003, v. 30, p. 119-126.
Palavras-chave: Contos Brasileiros; Literatura Brasileira.
Áreas do conhecimento: Ciências Humanas.
Setores de aplicação: Produtos e serviços recreativos, culturais, artísticos e desportivos.
Referências adicionais: Brasil/Português; Meio de divulgação: Impresso.
Coletânea de contos publicados ao final da Oficina Literária ministrada pelo prof. Dr. Luiz Antônio de Assis Brasil , com
duração de dois semestres, mantida pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS. A autora incluiu três
contos na coletânea: "Um par de botas vermelhas", "Cabelos" e "Sobre coelhos e balanços".
2
BACKES, Karin Lilian Hagemann. Os serões do meu avô. In: SCHNEIDER, Elenor José.
(Org.). Fragmentos de vida. Santa Cruz do Sul, 1999, p. 21-25.
Palavras-chave: História - Santa Cruz do Sul; Imigração alemã; Contos Brasileiros.
Áreas do conhecimento: História Regional do Brasil.
Setores de aplicação: Produtos e serviços recreativos, culturais, artísticos e desportivos.
Referências adicionais: Brasil/Português; Meio de divulgação: Impresso; ISBN: 8585869437.
Conto publicado na coletânea que resultou do concuso promovido pela Universidade de Santa Cruz do Sul, UNISC, por
ocasião dos 150 Anos da Imigração Alemã, aberto à toda comunidade.Os autores, protegidos por pseudônimo, foram
selecionados por uma comissão da própria universidade e por representantes da imprensa. A autora recebeu menção
honrosa pelo trabalho.
Textos em revistas (magazines)
238
1
BACKES, Karin Lilian Hagemann. Resenha: Rilke shake, de Angélica Freitas. Brasil/Brazil,
Porto Alegre, v. 35, p. 115-117, 01 jul. 2007.
Palavras-chave: Poesia Brasileira; História - Santa Cruz do Sul; Imigração alemã.
Áreas do conhecimento: Literatura Brasileira.
Referências adicionais: Brasil/Português; Meio de divulgação: Impresso; Data de publicação: 01/07/2007; ISSN/ISBN:
0103751x.
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Dados complementares
Participação em bancas
examinadoras
Participação em bancas de
comissões julgadoras
Participação em eventos
Orientações em andamento
Participação em eventos
1
Congresso Internacional centenário de dois imortais: Machado de Assis e Guimarães
Rosa. 2008. (Participações em eventos/Congresso).
Áreas do conhecimento: Literatura Comparada.
Referências adicionais: Brasil; Nome do evento: Congresso Internacional centenário de dois imortais: Machado de Assis
e Guimarães Rosa; Nome da instituição promotora: UFMG; Local: Faculdade de Letras; Cidade: Belo Horizonte.
2
Encontro do Grupo de Pesquisa em Estudos Culturais e Literaturas Luso-afro-asiáticas.
2008. (Participações em eventos/Encontro).
Áreas do conhecimento: Literaturas Lusófonas.
Referências adicionais: Brasil; Nome do evento: Modernidade e Pós-modernidade das Literaturas lusófonas; Nome da
instituição promotora: PUCRS; Local: Faculdade de Letras; Cidade: Porto Alegre.
07 e 08/07/2008 - Sala 305 Comunicação: Faustino Manso, o "Seripipi viajante": um Ulisses africano
3
IX Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas. 2008. (Participações em
eventos/Congresso).
Áreas do conhecimento: Literaturas Lusófonas.
Referências adicionais: Portugal; Nome do evento: IX Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas; Nome da
instituição promotora: Universidade da Madeira; Local: Colégio dos Jesuítas- Largo do Colégio; Cidade: Funchal.
4
VI Festa Literária Internacional de Parati. 2008. (Participações em eventos/Outra).
Áreas do conhecimento: Literaturas Lusófonas.
Referências adicionais: Brasil; Nome do evento: VI Festa Literária Internacional de Parati; Nome da instituição
promotora: Fundação Casa Azul; Local: Tenda principal; Cidade: Parati.
5
V Festa Literária Internacional de Parati. 2007. (Participações em eventos/Outra).
Áreas do conhecimento: Literatura Brasileira.
Referências adicionais: Brasil; Nome do evento: V Festa Literária Internacional de Parati; Nome da instituição promotora:
Associação Casa Azul; Local: Tendas da FLIP; Cidade: Parati.
De 08/07 a 08/07 de 2007, com as presenças de J. M. Coetzee, Nadine Gordimer e Amós Oz.
6
XVIII Congresso Internacional de Literatura Comparada. 2007. (Participações em
eventos/Congresso).
Áreas do conhecimento: Literatura Brasileira.
Referências adicionais: Brasil; Nome do evento: XVIII Congresso internacional de Literatura Comparada/AILC; Nome da
instituição promotora: Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ; Local: Universidade Federal do Rio de Janeiro;
Cidade: Rio de Janeiro.
De 29/07 a 04/08 de 2007, UFRJ. Para além dos binarismos: descontinuidade e deslocamentos em Literatura
comparada
7
XXI Encontro de professores de Literatura Portuguesa. 2007. (Participações em
eventos/Encontro).
Áreas do conhecimento: Literaturas Lusófonas.
Referências adicionais: Brasil; Nome do evento: XXI Encontro da ABRAPLIP; Nome da instituição promotora:
Universidade de São Paulo; Local: Faculdade de Letras da USP; Cidade: São Paulo.
8
Curso de Figuras da Ficção, ministrado na PUCRS. 2006. (Participações em
eventos/Outra).
Áreas do conhecimento: Literaturas Lusófonas.
Referências adicionais: Brasil; Nome do evento: Curso de Figuras da Ficção; Nome da instituição promotora: PUCRS;
Local: Faculdade de Letras; Cidade: Porto Alegre.
9
IV Festa Literária Internacional de Parati. 2006. (Participações em eventos/Outra).
Áreas do conhecimento: Literatura Brasileira.
Referências adicionais: Brasil; Nome do evento: Festa Literária Internacional de Parati; Nome da instituição promotora:
Associação Casa Azul; Local: Tendas da FLIP; Cidade: Parati.
10
VI Fórum de Literatura Brasileira e I Fórum de Literatura Portuguesa e Luso-Africanas.
2006. (Participações em eventos/Outra).
Referências adicionais: Brasil; Nome do evento: VI Fórum de Literatura Brasileira e I Fórum de Literatura Portuguesa e
Luso-Africanas: lírica moderna:uma homenagem a Mário Quintana; Nome da instituição promotora: UFRGS; Local: Casa
de Cultura Mário Quintana; Cidade: Porto Alegre.
Data : 30 de agosto a 1o. de setembro de 2006
239
11
XXIV Seminário de Crítica Literária, realizado de 05 a 07 de dezembro de 2006, registrado
sob o número 7082-79. 2006. (Participações em eventos/Seminário).
Áreas do conhecimento: Educação.
Referências adicionais: Brasil; Nome do evento: XXIV Seminário de Crítica Literária ; Nome da instituição promotora:
PUCRS; Local: Auditório deo prédio 50, na PUCRS; Cidade: Porto Alegre.
12
II Colóquio Leitura e cognição. 2005. (Participações em eventos/Outra).
Áreas do conhecimento: História da Filosofia.
Referências adicionais: Brasil; Nome do evento: II Colóquio Leitura e cognição; Nome da instituição promotora: UNISC;
Local: Faculdade de Letras; Cidade: Santa Cruz do Sul.
13
Seminário comemorativo aos 100 de nascimento do escritor Érico Veríssimo, buscando
uma atualização da visão crítica sobre o autor gaúcho segundo as tendências dos Estudos
Culturais, dos Estudos Pós-Modernos e Pós-Coloniais, com palestrantes do Brasil e de.
2005. (Participações em eventos/Seminário).
Áreas do conhecimento: História da Filosofia.
Referências adicionais: Brasil; Nome do evento: Érico: retratos de uma vida inteira; Nome da instituição promotora:
ALEV; PUCRS; Copesul; Local: Casa de Cultura Mário Quintana; Cidade: Porto Alegre.
14
VI Seminário Internacional de História da Literatura. 2005. (Participações em
eventos/Seminário).
Áreas do conhecimento: História da Filosofia.
Referências adicionais: Brasil; Nome do evento: VI Seminário Internacional de História da Literatura; Nome da instituição
promotora: PUCRS; Local: Auditório prédio 9; Cidade: Porto Alegre.
15
VIII Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas. 2005. (Participações em
eventos/Congresso).
Áreas do conhecimento: História da Filosofia.
Referências adicionais: Espanha; Nome do evento: VIII Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas; Nome
da instituição promotora: Universidade de Santiago de Compostela - Núcleo de Professores de Filologia Portuguesa -
USC; Local: Faculdade de Filoloxia da USC; Cidade: Santiago de Compostela.
Comunicação: Poesia e natureza: o imaginário na lírica de Cecília Meireles. A apreciação da obra poética de Cecília
Meireles privilegiando a formação da imagem em seus aspectos estéticos, e o gradativo espojamento dos dados
sensíveis, da primeira à última fase de produção da autora, será o tema de nossa análise, embasada de acordo com o
conceito de "natureza naturante" de Mikel Dufrenne, exposto em "O poético", de que é a própria natureza a fonte
propulsora dessa lírica e o meio pelo qual ela se dá a conhecer.
16
Workshop com Hans Ulrich Gumbrecht. 2005. (Participações em eventos/Outra).
Áreas do conhecimento: História da Filosofia.
Referências adicionais: Brasil; Nome do evento: VI Seminário Internacional de História da Literatura; Nome da instituição
promotora: PUCRS; Local: Prédio 8 - Sala Elvo Clemente; Cidade: Porto Alegre.
Título: Does literature have a specific type of historicity? What is a "literaty event"and can this concept be made useful?
17
XX Encontro Brasileiro de professores de Literatura Portuguesa. 2005. (Participações em
eventos/Encontro).
Áreas do conhecimento: História da Filosofia.
Referências adicionais: Brasil; Nome do evento: XX Encontro Brasileiro de professores de Literatura Portuguesa; Nome
da instituição promotora: Universidade Federal Fluminense; Local: Campus Gragoatá; Cidade: Niterói - RJ.
18
IX Congresso Internacional da ABRALIC. 2004. (Participações em eventos/Congresso).
Áreas do conhecimento: História da Filosofia.
Referências adicionais: Brasil; Nome do evento: IX Congresso Internacional da ABRALIC; Nome da instituição
promotora: UFRGS; Local: Auditório da Reitoria da UFRGS; Cidade: Porto Alegre.
19
6o. Encontro Nacional de Acervos Literários Brasileiros. 2003. (Participações em
eventos/Encontro).
Áreas do conhecimento: História da Filosofia.
Referências adicionais: Brasil; Nome do evento: 6o. Encontro Nacional de Acervos Literários Brasileiros; Nome da
instituição promotora: PPGL - Programa de Pós-Graduação em Letras; Local: Auditórios da Faculdade de Letras -
Campus da PUCRS; Cidade: Porto Alegre.
20
Curso de Narratologia ministrado na UNIFRA, de 10 a 12 de setembro de 2003, com carga
horária de 12 h/a. 2003. (Participações em eventos/Outra).
Áreas do conhecimento: Teoria Literária.
Referências adicionais: Brasil; Nome do evento: III Seminário Internacional em Letras: Leitura, Escrita e Cidadania;
Nome da instituição promotora: UNIFRA; Local: Faculdade de Letras; Cidade: Santa Maria - RS.
Ementa: Tópicos de Narratologia O problema da ficcionalidade. a teoria dos mundos possíveis. Ficcionalidade e
narratividade: articulações. Ficcionalidade e representação da História, ficcionalidade e representação ideológica.
Ficcionalidade e conhecimento. O romance como gênero narrativo e como cronótopo. Narratividade e modelização
ideológica. As categorias do romance e sua funcionalidade ideológica. subgêneros do romance.
21
III Seminário Internacional em Letras: Leitura, Escrita e Cidadania. 2003. (Participações
em eventos/Seminário).
Áreas do conhecimento: História da Filosofia.
Referências adicionais: Brasil; Nome do evento: III Seminário Internacional em Letras: Leitura, Escrita e Cidadania;
Nome da instituição promotora: Centro Universitário Franciscano - UNIFRA; Local: Auditório; Cidade: Santa Maria.
22
V Seminário Nacional de História da Literatura. 2003. (Participações em
eventos/Seminário).
Palavras-chave: Literatura Brasileira.
240
Áreas do conhecimento: História da Filosofia.
Referências adicionais: Brasil; Nome do evento: V Seminário Nacional de História da Literatura; Nome da instituição
promotora: Programa de Pós-Graduação em Letras - PPGL - PUCRS; Local: Auditório do Prédio 9 do Campus
Universitário da PUCRS; Cidade: Porto Alegre.
Comunicação apresentada: "A história de Brasil de Santa Cruz: do Império a abril de 1964", na mesa de comunicações
"Literatura e Identidade Nacional"
23
XIX encontro Brasileiro de Professores de Literatura Portuguesa - ABRAPLIP. 2003.
(Participações em eventos/Encontro).
Palavras-chave: Literatura Brasileira.
Referências adicionais: Brasil; Nome do evento: Imaginário - o não espaço do real; Nome da instituição promotora:
UFPR; Local: Auditório da Reitoria; Cidade: Curitiba.
24
XXI Seminário Brasileiro de Crítica Literária e XX Seminário de Crítica do Rio Grande do
Sul. 2003. (Participações em eventos/Seminário).
Áreas do conhecimento: História da Filosofia.
Referências adicionais: Brasil; Nome do evento: XXI Seminário BRasileiro de Crítica Literária e XX Seminário de Crítica
do Rio Grande do Sul; Nome da instituição promotora: Faculdade de Letras - PUCRS; Local: Auditório do Prédio 9 do
Campus Universitário da PUCRS; Cidade: Porto Alegre.
25
Donaldo e os gregos. 2002. (Participações em eventos/Seminário).
Áreas do conhecimento: História da Filosofia.
Referências adicionais: Brasil; Nome do evento: Donaldo e os gregos; Nome da instituição promotora: PUCRS - Goethe
Institut; Local: Faculdade de Filosofia; Cidade: Porto Alegre.
26
VII Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas. 2002. (Participações em
eventos/Congresso).
Áreas do conhecimento: Educação.
Referências adicionais: Estados Unidos; Nome do evento: VII Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas;
Nome da instituição promotora: Brown University - Department of Portuguese adn Brazilian Studies; Local: Brown
University; Cidade: Providence - Rhode Island.
27
XX Seminário Brasileiro de Crítica literária e XIX Seminário de Crítica do Rio Grande do
Sul. 2002. (Participações em eventos/Congresso).
Áreas do conhecimento: História da Filosofia.
Referências adicionais: Brasil; Nome do evento: XX Seminário de Crítica literária e XIX Seminário de Crítica do Rio
Grande do Sul: a transdisciplinaridade nos estudos literários; Nome da instituição promotora: PUCRS - PROEX; Local:
Faculdade de Letras; Cidade: Porto Alegre.
28
Colóquio da Associação Internacional de Lusitanistas. 2001. (Participações em
eventos/Outra).
Referências adicionais: Brasil; Nome do evento: Colóquio da Associação Internacional de Lusitanistas: Identidades
múltiplas nas literaturas de expressão portuguesa; Nome da instituição promotora: PUCRS; Local: Prédio 8, sala Elvo
Clemente; Cidade: Porto Alegre.
Data: 30 de novembro de 2001 a 1o. de dezembro de 2001 Palestrantes: Ettore Finazzi-Agrò, Laura Cavalcante Padilha,
Regina Zilberman e Carlos Reis.
29
Curso Análise do Discurso Literário: conto e crônica. 2001. (Participações em
eventos/Outra).
Áreas do conhecimento: História da Filosofia.
Referências adicionais: Brasil; Nome do evento: Curso de Análise do Discurso Literário: conto e crônica; Nome da
instituição promotora: Pró-Reitoria de Extensão Universitária; Local: Auditório Central da PUCRS; Cidade: Porto Alegre.
30
I Encontro sobre Espaço e Linguagem: modernidade e modernismo no Brasil. 2001.
(Participações em eventos/Encontro).
Áreas do conhecimento: História da Filosofia.
Referências adicionais: Brasil; Nome do evento: I Encontro sobre Espaço e Linguagem; Nome da instituição promotora:
Pró-Reitoria de Extensão Universitária; Local: Auditório Central da PUCRS; Cidade: Porto Alegre.
31
II Simposio Internacional Nuevas tendencias y perspectivas contemporáneas en la
narrativa - Centro de Estudios de Narratología. 2001. (Participações em
eventos/Simpósio).
Áreas do conhecimento: História da Filosofia.
Referências adicionais: Argentina; Nome do evento: Segundo simposio Internacional; Nome da instituição promotora:
Secretaría de Cultura del Gobierno de la Ciudad de Buenos Aires/UNESCO; Local: Facultad de Derecho y Ciências
Sociales de la universidad de Buenos Aires; Cidade: Buenos Aires.
32
IV Seminário Internacional de História da Literatura. 2001. (Participações em
eventos/Seminário).
Áreas do conhecimento: História da Filosofia.
Referências adicionais: Brasil; Nome do evento: IV Seminário internacional de História da Literatura; Nome da instituição
promotora: Programa de Pós-Graduação em Letras- PUCRS; Local: Auditório do Prédio 09 - Campus Universitário da
PUCRS; Cidade: Porto Alegre.
33
XIX Seminário Brasileiro de Crítica Literária, XVIII Seminário de Crítica do Rio Grande do
Sul: Literatura Confessional e Memorialismo. 2001. (Participações em eventos/Seminário).
Áreas do conhecimento: História da Filosofia.
Referências adicionais: Brasil; Nome do evento: XIX Seminário Brasileiro de Crítica Literária, XVIII Seminário de Crítica
do Rio Grande do Sul; Nome da instituição promotora: Pró-Reitoria de Extensão Universitária; Local: Auditório Elvo
Clemente - PUCRS; Cidade: Porto Alegre.
241
34
XVIII encontro de Professores Brasileiros de Literatura Portuguesa. 2001. (Participações
em eventos/Encontro).
Áreas do conhecimento: História da Filosofia.
Referências adicionais: Brasil; Nome do evento: XVIII Encontro de Professores Brasileiros de Literatura Portuguesa;
Nome da instituição promotora: Associação Brasileira de Professores de Literatura Portuguesa/ UFSM; Local: Campus
Universítário UFSM; Cidade: Santa Maria.
35
Jornada Internacional de Estudos Queirosianos & Exposição Internacional Eça de Queirós
e a Criação Literária. 2000. (Participações em eventos/Outra).
Áreas do conhecimento: História da Filosofia.
Referências adicionais: Brasil; Nome do evento: Jornada Internacional de Estudos Queirosianos; Nome da instituição
promotora: Curso de Pós-Graduação em Letras da Faculdade de Letras/PUCRS, Biblioteca Nacional de Lisboa,
Comissão de Comemoração do Centenário da Morte de Eça de Queirós; Local: Auditório Elvo Clemente; Cidade: Porto
Alegre.
36
XVIII Seminário Brasileiro de Crítica Literária e XVII Seminário de Crítica do Rio Grande do
Sul. 2000. (Participações em eventos/Seminário).
Referências adicionais: Brasil; Nome do evento: XVIII Seminário Brasileiro de Crítica Literária: Narratologia e Crítica
Literária; Nome da instituição promotora: PUCRS; Local: Prédio 8 sala Elvo Clemente; Cidade: Porto Alegre.
Palestrantes: Carlos Reis, Valéria de Marco, Petrona Rodríguez Pasques
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Indicadores de produção
Produção bibliográfica
Produção técnica
Produção
artística/cultural
Orientações
concluídas
Demais trabalhos
Dados
complementares
Total
Produção bibliográfica
Trabalhos em eventos
12
Completos
8
Resumos
4
Livros e capítulos
2
Capítulos de livros publicados
2
Textos em jornais ou revistas (magazines)
1
Revistas (Magazines)
1
Total
Dados complementares
Participação em eventos
36
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atualizada em 29/06/2009
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