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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
MARCELO MARTINS BUENO
A Gênese do conceito de liberdade no pensamento de
Thomas Hobbes
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM FILOSOFIA
DOUTORADO
São Paulo
2009
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MARCELO MARTINS BUENO
A Gênese do conceito de liberdade no pensamento de
Thomas Hobbes
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de Doutor em Filosofia, sob
orientação da Profª. Drª. Maria Constança Peres Pissarra.
São Paulo
2009
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MARCELO MARTINS BUENO
A Gênese do conceito de liberdade no pensamento de
Thomas Hobbes
BANCA EXAMINADORA
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São Paulo
2009
DEDICATÓRIA
Para meus filhos Rodolfo e Gabriela, razões das minhas maiores alegrias e que em
muitos momentos, mesmo privados da minha presença, souberam entender e até incentivar o
meu trabalho, cada qual a sua maneira. A eles, a versão mais pura do meu amor.
Para os meus pais Antônio Bueno e Gabriela Bueno, meus maiores exemplos de
trabalho, dedicação, coragem, persistência, força e amor. A eles, hoje somente em minhas
memórias, o meu profundo respeito, saudade e minha sempre e terna gratidão.
AGRADECIMENTOS
A Deus, fonte de toda sabedoria, pela força e pela coragem que me concedeu,
permanecendo ao meu lado em todo o percurso desta caminhada.
À Universidade Presbiteriana Mackenzie pela oportunidade de galgar novos
horizontes profissionais.
À professora Drª. Maria Constança Peres Pissarra, cuja orientação e discussões foram
fundamentais para que esse trabalho se tornasse uma realidade.
Aos professores do Departamento de Filosofia da PUC e do Mackenzie, que me
incentivaram desde o início desse trabalho; aos amigos Abel, Cláudio e Vilson quer pelas
calorosas discussões, quer pelas indicações de textos e livros.
Agradecimento especial à professora Drª. Terezinha Jocelen Masson, diretora, amiga
e companheira, com quem tenho aprendido a ver o mundo pelo viés das Ciências Exatas.
Aos professores Saly da Silva Wellausen, Márcio Alves da Fonseca e Maria das
Graças Nascimento que também leram com muita atenção meu trabalho, levantando questões
importantes da pesquisa e sugestões que foram todas bem vindas e em muito contribuíram
para a sua finalização.
Aos amigos e companheiros de trabalho Maria Carolina, Graciela, Paulo Fraga,
Ronaldo, Roger, Ângela, Sônia, Milton, Rita e Orlando que me apoiaram desde os primeiros
passos desta empreitada acadêmica, os meus sinceros agradecimentos.
Agradecimento especial à professora Regina Buongermino Pereira, pelo
acompanhamento e revisão desta tese, mais do que isso, pela paciência, o carinho, a
dedicação, a amizade e o amor maternal com que ao longo dos últimos anos tem marcado
minha vida pelas suas experientes e sábias palavras.
Aos meus irmãos, família querida, sempre presentes nas horas atribuladas, apoiando
e incentivando a realização deste trabalho.
À Claudia, esposa sempre presente que, com amor, carinho e paciência, me ajudou
muito a finalizar esse trabalho.
“Não existe essa tal tranqüilidade perpétua para a mente enquanto vivemos
aqui; porque a vida é apenas movimento, e nunca se pode estar sem desejo,
nem sem medo, muito menos sem uma sensação.”
Thomas Hobbes(1588-1679)
RESUMO
Pretende-se, com o presente trabalho, oferecer uma análise e uma interpretação da
origem do conceito de liberdade no pensamento de Thomas Hobbes, à luz da ciência nascente do
século XVII. O texto se inicia dando um panorama da história da ciência, destacando os
principais pontos da física aristotélica, que será o grande alvo da nova ciência, passando pelos
medievais até culminar com a Revolução Científica. Neste aspecto, realizar-se-á um recorte
exclusivamente no campo da física e, mais precisamente ainda, na conceituação de movimento no
pensamento de Galileu Galilei e Descartes que Hobbes tomará como paradigma para sua
filosofia.
Da apropriação da tradição da ciência moderna, mais objetivamente das reflexões sobre
o movimento que resultou no princípio de inércia, serão identificados os principais pontos na
teoria política do filósofo inglês, principalmente no que se refere à concepção de liberdade, como
sendo moldada nos ideais daquela nova maneira de encarar o conhecimento.
Para tanto, a partir da leitura de comentadores do autor, verificar-se-á, num primeiro
momento, se Hobbes foi ou não influenciado pelas novas descobertas da ciência setecentista, que
em tese admite-se que sim, e desta premissa compreender como foi tratado o problema da
liberdade nas obras do teórico político inglês.
Tendo a nova ciência como paradigma, será demonstrado como o conceito de liberdade
está em sintonia com a concepção de movimento daquele período, uma vez que liberdade, para
Hobbes, significa a ausência de oposição, identificando, desta forma, a gênese deste conceito
como resultado das reflexões que ocorreram sobre o movimento no século XVII.
Destacando o conceito de liberdade e entendendo-a como um tema complexo, objetiva-
se compreender como o autor dará conta da vida dos homens em sociedade, com todas as
limitações impostas por um Estado, que necessariamente precisa ter seus poderes ilimitados para
garantir a paz e a segurança e mesmo assim assegurar as liberdades individuais.
E nesta perspectiva, compreender que, para Hobbes, o Estado é fruto da criação humana,
ou seja, artificial, e necessariamente precisa-se ter um poder maior para que de fato a sociedade
seja organizada e a liberdade garantida.
Assim, o poder monárquico e ilimitado proposto por Thomas Hobbes deve ser entendido
como resultado de uma vontade geral, isto é, não se trata aqui de realizar a vontade dos
indivíduos, mas que os representantes políticos agissem para realizar a vontade da unidade dos
indivíduos, ou seja, o Estado deve ser compreendido como criação dos indivíduos para sua
representação. Por isso, a teoria política proposta pelo pensador deve ser entendida não
simplesmente como absolutista, pois trata-se de uma verdadeira teoria da soberania.
Palavras-chave: ciência, movimento, liberdade, filosofia natural, filosofia civil, Estado e
soberania.
ABSTRACT
We intend with this work to offer an analysis and an interpretation of the origin of the
concept of freedom in Thomas Hobbes's thought, at the beginning of science in the 17
th
century.
The text gives a scenery of the history of science, distinguishing the Aristotelian physics main
ideas that will be the objective of the new science, going by the medieval age up to the Scientific
Revolution. In this aspect, we will analyze exclusively in the physics field and, more precisely, in
the movement as understood in Galileu Galilei's thought and Descartes that Hobbes will take as
paradigm for his philosophy.
Our work will start with the appropriation of the tradition of the modern science, more
specifically the reflections on the movement that resulted in the inertia principle and we will
identify the main ideas in the English philosopher's political theory, mainly the ones which refer
to the conception of freedom, as being shaped in the ideals of that new way of facing knowledge.
For that reason we begin with the reading of the author's commentators to verify, in a first
moment, if Hobbes was influenced or not by the new discoveries of the science of that period and
with this premise we try to understand how the problem of freedom was treated in the theoretical
English politician's works.
With the new science as paradigm, we will show how the concept of freedom is in
syntony with the conception of movement of that period, as freedom, for Hobbes, means the
absence of opposition, identifying in this way, the genesis of this concept as a result of the
reflections that happened in the movement in the 17
th
century.
Distinguishing the concept of freedom and understanding it as a complex theme, we
intend to understand as the author will deal with men's life in society, with all limitations
imposed by a State that necessarily needs to have its unlimited power to guarantee peace and
safety and even so assure the individual freedoms.
With this view in mind we try to understand that, for Hobbes, State is a human creation,
that is, artificial and necessarily needs to have its power so that society is organized and the
freedom guaranteed.
Then, the monarchic and unlimited power proposed by Thomas Hobbes should be
understood as a result of a general will, that is, it is not treated here the individuals' will, but that
the political representatives acted to accomplish the will of the individuals, in other words, State
should be understood as the individuals' creation for their representation. Therefore, the political
theory proposed by the thinker should be understood not only in an absolutist manner, but as a
true theory of supreme power.
Keywords: science, movement, freedom, natural philosophy, civil philosophy, State and
supreme power.
SUMÁRIO
Introdução.........................................................................................................................09
Capítulo I
CIÊNCIA NATURAL E MOVIMENTO
1. A Ciência Moderna: o solo da filosofia hobbesiana...................................................20
1.1 O nascimento da Ciência Clássica..............................................................................22
1.2 A física aristotélica.....................................................................................................24
1.3 Galileu e a lei da inércia.............................................................................................34
1.4 Descartes e a Ciência Moderna..................................................................................40
1.5 Descartes e o princípio da inércia..............................................................................45
Capítulo II
FILOSOFIA E CIÊNCIA
2. Thomas Hobbes: mecanicismo e ciência....................................................................51
2.1 A concepção de movimento.......................................................................................54
2.2 Thomas Hobbes e o conceito de inércia.....................................................................58
2.3 Movimento, conhecimento e ciência..........................................................................62
2.4 Movimento e o conceito de conatus...........................................................................74
2.5 Inércia e liberdade......................................................................................................79
2.6 Liberdade e deliberação: as expressões das paixões..................................................83
Capítulo III
LIBERDADE E ESTADO
3. Liberdade e estado de natureza...................................................................................93
3.1 O direito natural..........................................................................................................93
3.2 O estado de natureza...................................................................................................98
3.3 Liberdade e estado de sociedade..............................................................................118
3.4 A formação do Estado e a soberania........................................................................122
3.5 Formas de governo: soberania e liberdade...............................................................131
3.6 Liberdade e funcionamento do Estado....................................................................140
3.7 A autoridade do Estado e a liberdade.......................................................................159
Considerações finais.......................................................................................................168
Referências bibliográficas..............................................................................................181
9
INTRODUÇÃO
O estudo superficial de fragmentos das obras de Thomas Hobbes, especificamente
em manuais ou livros didáticos e interpretações recortadas e desatentas, freqüentemente tem
levado à formação de pré-conceitos perpetuados ao longo do tempo como se fossem idéias
defendidas por ele, embora muitas vezes não condigam com a real opinião do autor, levando a
deturpações que o estigmatizam.
No caso de Thomas Hobbes, estranha-se que um pensador de sua envergadura fosse,
segundo esses manuais, defensor não apenas de um poder forte do Estado, mas, sobretudo, do
absolutismo. Entretanto, quando se busca a origem de suas idéias, fazendo uma análise mais
detalhada de suas reflexões sobre o homem e a sociedade, encontra-se um fio condutor que
leva a compreender sua real intenção, a saber: defender a soberania absoluta e não o
absolutismo.
Assim, o objetivo principal desta tese é realizar uma reflexão acerca do conceito de
liberdade na filosofia hobbesiana, bem como seus fundamentos e desdobramentos na vida em
sociedade.
Para atingi-lo, o desenvolvimento do capítulo II desta tese fundamentou-se, em
tradução própria, na obra Elements of Philosophy – Concerning body
*
, mais especificamente
na Seção I, Partes I e III, em que Hobbes, tendo como base a filosofia da natureza, isto é, a
física, e tomando como paradigma a nova ciência que está surgindo no século XVII com
Kepler, Galileu, Descartes, entre outros, usará os novos conceitos emergidos para elaborar
uma filosofia original em que o conceito de liberdade terá suas raízes fundamentadas nesta
nova perspectiva.
Thomas Hobbes desenvolverá uma filosofia civil buscando uma ligação com a nova
ciência e com a metafísica. As bases metodológicas e gnosiológicas de sua concepção
filosófico-política modelam-se nas concepções metodológicas e nos ideais de exatidão das
ciências naturais e matemáticas da modernidade.
Sua proposta será criar uma filosofia que estude as leis da conduta humana, as
guerras e suas causas, as regras civis, enfim, uma ciência da paz, mas que produza um saber
tão útil e confiável como o das ciências matemáticas. Nesta perspectiva, Hobbes entende que
*
O texto original, De Corpore, foi escrito em latim e publicado em 1655, sendo traduzido para o inglês no ano
seguinte, sob o título Elements of Philosophy – Concerning Body, The English Works of Thomas Hobbes of
Malmesbury. Londres, John Bohn, 1839. Editado por William Molesworth, Second Reprint, 1966. Para a Parte I,
Seção I, consultamos a tradução de José Oscar de Almeida Marques (Sobre o corpo. Cadernos de tradução nº 12.
São Paulo: IFCH/UNICAMP, 2005). Para facilitar a identificação desta obra, decidiu-se que em todas as citações
desta fonte, o nome aparecerá como no original, a saber: De Corpore.
10
se há guerras é porque falta este entendimento, esta ciência no campo dos interesses e
negócios humanos, ou seja, falta um saber confiável sobre a paz. Falta, portanto, na
concepção de Hobbes, uma filosofia moral que, a exemplo das ciências naturais, seja livre e
independente de valores subjetivos, podendo proporcionar aos homens no campo da filosofia
civil os mesmos benefícios proporcionados pela filosofia natural:
A causa da guerra, entretanto, não é que os homens tenham vontade de travá-la, pois
a vontade só pode ter como objetivo o bem, ou, pelo menos, aquilo que parece ser
um bem. Nem é que os homens desconheçam que os efeitos da guerra são maléficos,
pois quem é que não pensa que a pobreza e a perda da vida sejam grandes males? A
causa da guerra civil, portanto, é que os homens não conhecem as causas nem da
guerra nem da paz, havendo apenas uns poucos no mundo que aprenderam os
deveres que unem e mantêm os homens em paz, ou seja, que aprenderam
suficientemente as regras da guerra civil. Ora, o conhecimento dessas regras é a
filosofia moral. Mas por que eles não as teriam aprendido, senão porque ninguém até
agora as ensinou segundo um método claro e exato? (HOBBES, De Corpore, 1966,
p.08).
Ao longo da história da filosofia prática, ou seja, civil, sua utilidade sempre foi
questionada porque não apresenta a verdadeira causa da guerra. A simples vontade dos
homens de fazê-la não é suficiente como justificativa pois eles podem estar amparados por
bons ou aparentemente bons motivos. Também não se pode recorrer ao desconhecimento dos
males que ela pode gerar, pois é sabido que os efeitos da guerra são trágicos: discórdia,
matança, solidão e escassez. Apenas os conhecimentos da vida civil podem esclarecer a
ocorrência da guerra e eles deverão ser obtidos por meio da filosofia moral proposta por
Hobbes.
Por que os homens desconhecem tais regras? Para Hobbes, a resposta é objetiva: por
incompetência da filosofia civil:
(...) Ora, o que lhes falta é principalmente uma regra verdadeira e certa de nossas
ações, pela qual pudéssemos conhecer se o que tencionamos fazer é justo ou injusto.
Pois de nada vale estar obrigado a agir corretamente em tudo antes que se tenha
estabelecido uma regra certa e um padrão do que está correto, coisa que ninguém
havia feito até então. Assim, dado que do desconhecimento dos direitos civis, isto é,
da falta de uma ciência moral decorrem as guerras civis e as maiores calamidades da
humanidade, podemos muito bem atribuir a essa ciência a produção das
comodidades contrárias (HOBBES, De Corpore, 1966, pp. 09 e 10).
Eis para Hobbes a grande utilidade da filosofia, fornecer a base para uma vida em
sociedade, sem guerras e conflitos, onde as verdades a priori da física e da geometria possam
servir de paradigma para a filosofia política.
11
Partindo deste pressuposto, a estrutura do trabalho estará configurada como se
apresenta a seguir.
No primeiro capítulo, serão estudadas as bases da filosofia da natureza no século
XVII, mais precisamente a Revolução Científica, que, decerto, após o nascimento da filosofia
na Grécia Antiga, foi, o acontecimento mais importante na História da Filosofia, pois causou
profundas transformações no campo intelectual, principalmente com o surgimento da física
moderna ou, mais exatamente, clássica.
O caráter fortemente inovador e original da filosofia neste século marcará
decisivamente os séculos subseqüentes, pois serão formulados princípios notadamente
originais. Situado entre o Renascimento e o Iluminismo, o século XVII será responsável pelo
florescimento das ciências que darão impulsos essenciais à religião, à economia, à política, à
sociedade e sobretudo à filosofia, que ganhará novas metodologias para a busca de novos
elementos teóricos, de novas verdades até então incontestáveis.
Tendo como pano de fundo todas essas alterações advindas da ciência nascedoura, a
proposta deste primeiro capítulo será fazer um recorte exclusivamente no campo da física e
mais precisamente, ainda, na conceituação de movimento no pensamento de Galileu Galilei e
Descartes. Não se terá a pretensão aqui de tratar deste tema exaustivamente, mas sobretudo
apontar sua possível influência na filosofia hobbesiana. O mecanismo da física clássica
galilaica e cartesiana, ciência nova, ativa e operativa, será um marco decisivo no pensamento
de Thomas Hobbes, porque tomará o movimento (inércia) como o primeiro princípio de sua
filosofia. Aceitará que tudo o que existe consiste em corpos e movimento; além de fazer
prevalecer a geometria como ciência primeira da qual dependem a física e, igualmente,
poderão depender a moral e a política. Nesta perspectiva, propõe-se, ainda, identificar os
comentadores da História da Filosofia que já buscaram uma possível relação entre a filosofia
natural e a filosofia política hobbesiana.
No segundo capítulo, tendo compreendido o movimento e conceituado inércia, com
Galileu e Descartes, o objetivo será demonstrar como esses conceitos servirão na filosofia
hobbesiana de modelo para a origem do conceito de liberdade. Tendo a preocupação de
respeitar a especificidade de cada autor, serão mostradas as principais afinidades entre eles,
realizando possíveis adaptações para que o princípio do movimento e conseqüentemente o de
inércia sejam entendidos na filosofia de Hobbes como a gênese do conceito de liberdade.
O problema da liberdade foi pensado por Hobbes, como por tantos outros autores
modernos, no sentido de indagar como viver em sociedade, como criar um Estado onde a
liberdade possa ser compatível. Pode-se dizer que a filosofia hobbesiana é um ensaio sobre a
12
liberdade: a liberdade natural, a origem da liberdade no Estado de soberania e a liberdade dos
cidadãos. Caminho este que será percorrido nesta tese, mostrando a evolução do conceito no
pensamento de Thomas Hobbes.
Tendo a nova ciência como paradigma, em que havia um desprezo pelas
propriedades sensíveis dos objetos, isto é, aquelas que se apresentam imediatamente na
faculdade da sensibilidade, Hobbes tomará a característica deste novo expediente
observacional, em que a determinação dos objetos será apenas pelas relações quantitativas,
para formular o seu conceito de liberdade com uma característica bem peculiar.
Para que se sustente a tese de que a filosofia hobbesiana tem algo em comum com a
ciência nascente, uma vez que não há consenso e os comentadores estão divididos, optou-se
pela interpretação de Spragens
1
que, embora não afirme categoricamente essa relação, faz
uma analogia, pois reconhece que falar em fundamento ou dedução é inviável, uma vez que a
concepção hobbesiana de natureza não é antropomórfica, ao contrário da metafísica clássica.
Assim, para Spragens fazer uma analogia ou mesmo traçar um paralelo entre o fenômeno
natural e o comportamento humano é homogeneizar as ações naturais e não se pode excluir as
ações humanas.
Nessa mesma perspectiva, retomar a tese clássica de Leo Strauss
2
que em 1936
desenvolveu um extenso trabalho com o propósito de demonstrar que a filosofia política de
Hobbes não poderia estar sustentada sobre sua filosofia natural. Uma tal dependência
destruiria a fonte moral de sua filosofia civil. Como para Strauss há nas obras de Hobbes uma
base moral, estas não podem basear-se na ciência moderna.
Segundo Strauss (1963), Hobbes pode até ter sido levado à ciência moderna, uma vez
que as filosofias moral e política se baseavam na metafísica tradicional, mas teria feito um
caminho análogo, ao colocar a ciência moderna no lugar da metafísica. Porém, como as
metafísicas tradicionais baseavam-se no senso comum, ou melhor, nas coisas humanas e no
cotidiano, não poderiam servir de fundamento para a moral e a política, pois no seu
nascedouro a ciência moderna tentou fundamentar-se rejeitando esse expediente puramente
humano, e a filosofia moral e política, na opinião de Strauss, não pode ser enquadrada neste
propósito e também porque quando Hobbes tornou-se um filósofo mecanicista as bases de sua
filosofia já estavam consolidadas.
Assim, a concepção antropológica da filosofia hobbesiana não pode ter origem na
ciência setecentista, mas na experiência do cotidiano, ou melhor, nas relações de cada homem
1
T.A.Spragens, The politics of motion – The world of Thomas Hobbes. Kentucky: University Press, 1973.
2
L.Strauss, The political philosophy of Hobbes – Its basis and its genesis. Chicago: University Press, 1963.
13
com os outros. Em síntese, para Strauss, a busca incessante de poder pelos homens, na análise
hobbesiana, mostra que a base desta filosofia só pode ser moral, e essa aparente amoralidade,
decorrente de uma visão mecanicista, fica sem fundamento quando se analisam as relações
humanas.
Tendo como fundamento esses comentadores e levando em consideração pensadores
brasileiros modernos que também se dedicam ao tema, procurar-se-á expor os diferentes
pontos de vista acerca das possíveis relações entre a concepção de movimento, resultado das
reflexões da ciência do século XVII e a filosofia moral e política de Hobbes. Evidentemente,
como já afirmado, alguns obstáculos textuais devem ser ultrapassados a fim de que se possa
estabelecer tal relação.
Neste capítulo mostrar-se-á ainda que na Ciência Moderna a novidade está no fato de
que o princípio de inércia, ou seja, de experimento mental não dependerá de nenhum grau de
experiência bruta. Assim, Hobbes será um geômetra da política porque o conceito de
movimento (inércia) da nova ciência será sua grande motivação. Desprezará a história das
nações para elaborar um modelo que se aplique a todas.
Desta forma, a origem do Estado será uma obra de ficção da razão, uma grande
invenção que se compara às descobertas científicas do século XVII, requerendo o mesmo grau
de abstração da prova do conceito de inércia de Galileu e Descartes.
As bases conceituais para esse entendimento Thomas Hobbes pouco desenvolveu no
Leviatã
**
e no De Cive
***
, suas obras principais. Elas estão nas primeiras partes do De
Corpore, mais precisamente nas partes I e III, que serão destacadas para melhor compreensão
da teoria do corpo físico e todas as suas implicações. O conceito de liberdade está implícito
nesta obra, em que o autor a vinculará ao movimento. Nas obras mencionadas, porém, o autor
já destacava o tema:
(...) a liberdade, podemos assim a definir, nada mais é que ausência dos
impedimentos e obstáculos ao movimento; portanto, a água represada num vaso não
está em liberdade, porque o vaso a impede de escoar; quebrado o vaso, ela é
libertada. E todo o homem tem maior ou menor liberdade, conforme tenha mais
espaço ou menos para si: como o que está numa ampla prisão é mais livre do que
numa apertada. E um homem pode ser livre para um rumo e contudo não o ser para
outro, assim como o viajante está aprisionado deste e daquele lado pelas cercas vivas
ou muros de pedras (para que não estrague as vinhas ou o cereal) adjacentes à
**
Leviathan, or Matter, Form, and Power of a Commonwealth Ecclesiastical and Civil. Harmondsworth,
Penguin Books, 1968. Utilizada a excelente tradução em português de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz N.
da Silva, da Coleção Os Pensadores, Abril Cultural, São Paulo, 1974.
***
Mais conhecido na tradução inglesa de 1651 como Philosophical Rudiments concerning Government and
Society. Nova York, S.P. Lamprecht, ed, 1949. Utilizada a edição em português Do Cidadão. Trad., apr. e notas
Renato Janine Ribeiro, São Paulo, Martins Fontes, 1998.
14
estrada. E estas espécies de impedimentos são externas e absolutas. Neste sentido,
são livres todos os servos e súditos que não se encontram agrilhoados e aprisionados
(HOBBES, 1998, pp.148 e 149).
Examinando detalhadamente o conceito de inércia, resultado das reflexões acerca do
movimento, constata-se que a definição acima de liberdade apresenta algo em comum com as
provas que o conceito requer, pois pressupõe um estado ideal de ausência de impedimentos
para que se possa conceber um corpo num estado cinético qualquer indefinidamente. Essa
será a relação abordada neste trabalho, a saber: a definição de liberdade hobbesiana, sendo
extraída da noção de movimento.
No capítulo terceiro, o conceito de liberdade será explorado nas obras políticas do
autor, a saber: De Cive e Leviatã, cujas citações serão identificadas no transcorrer da tese
pelos anos das edições utilizadas em português, Leviatã (1974) e De Cive (1998). A liberdade
será estabelecida no âmbito da sociedade civil, caracterizando, de modo objetivo, a liberdade
natural para dar o suporte para o pacto social e, aí sim, abordar as relações de poder na esfera
civil.
Destacando o conceito de liberdade e entendendo-a como um tema complexo, o
objetivo deste capítulo será entender a reflexão de Hobbes a esse respeito, pois, sendo um
defensor da idéia de soberania absoluta, dedicou-se exaustivamente a um tema que parece
situar-se como antagônico a todo seu trabalho.
Nesta perspectiva, a idéia é analisar o pensamento de Thomas Hobbes e percorrer sua
trilha, apontar o que havia de liberdade no estado de natureza dos homens, que liberdade eles
tiveram para deflagrar o pacto social, sujeitando-se a um sistema político absoluto e, ainda
assim, serem livres, sem o intuito de esgotar o tema, mas compreender o caráter relativo que
Hobbes dará ao conceito de liberdade, pois demonstra que apesar de perdermos parte de nossa
possibilidade de ação, somos livres, porque a mesma se dá sob determinadas condições.
A concepção de liberdade na filosofia hobbesiana no âmbito da sociedade civil
decorre da análise que o autor faz dos conceitos de direito e poder, pois preconiza um Estado
investido de uma autoridade instituída pelos próprios cidadãos, no qual esses se fazem
necessários. Como o Estado surge de um contrato, o que Hobbes quer demonstrar é
justamente que ele é fruto da vontade humana e que necessariamente deve refletir os seus
interesses, pois, no Estado de soberania, reinará a liberdade individual, a garantia da
propriedade, a preservação da paz, a segurança, a liberdade de comprar e vender, realizar
contratos mútuos, escolher sua residência, sua profissão, instruir os filhos e uma série de
15
outras garantias que só serão possíveis mediante um poder superior, capaz de fazer com que
tais regras não sejam violadas.
Eis o paradigma de liberdade apresentado por Hobbes. Em o Leviatã, o autor
esclarece que por:
liberdade se entende, de acordo com o significado próprio da palavra, a ausência de
impedimentos externos, impedimentos que com freqüência reduzem parte do poder
que um homem tem de fazer o que quer; porém não podem impedir que use o poder
que lhe resta, de acordo com o que seu juízo e razão lhe ditem (HOBBES, 1974,
p.133).
É importante destacar que, para Hobbes, a liberdade civil existe, mas não em sua
acepção total, ou seja, o homem parece livre para caminhar para qualquer direção, mas não
em todas, pois há um conjunto de leis artificiais que estabelecem os limites para uma vida em
sociedade. Assim sendo, todo homem tem seu limite, ou seja, a liberdade tem fronteira. E são
exatamente estes limites que impedem a total liberdade do homem e que vão garantir aos
demais a não invasão de seus próprios limites. Nesse sentido, a teoria hobbesiana parece
aproximar-se do princípio básico de que, no estado civil, o direito de um indivíduo termina
exatamente quando se inicia o direito do próximo.
Para Hobbes, o conceito de liberdade pode ser visto de modos diferentes, ou seja,
embora haja outras formas de interpretação, há em sua concepção a liberdade civil e natural,
que serão analisadas no transcorrer da tese.
Nas considerações finais, será apresentado o fio condutor do conceito de liberdade,
desde sua origem no mecanicismo da ciência clássica de Galileu, mais especificamente na
física, passando pelo estado de natureza até desembocar na vida em sociedade.
Como manter a liberdade dos indivíduos num Estado que tem seus poderes
ilimitados? Eis a principal questão de todos aqueles que vêem na teoria hobbesiana um
modelo de Estado autoritário e opressor, por isso não acreditam em uma resposta positiva para
esta indagação, isto é, declaram ser impossível existir liberdade neste tipo de Estado.
Sob este viés de interpretação, temos a leitura de Norberto Bobbio
3
que, embora não
aponte para um absolutismo, é um crítico da ausência de liberdade na filosofia hobbesiana. De
acordo com ele:
Para Hobbes a liberdade aparecia apenas como causa de desagregação e, por isso,
ele a suprimiu; o pensamento era visto como semeador de desordem e, por isso,
queria que fosse controlado e humilhado; a religião era encarada como o principal
germe da desobediência e da dissolução dos Estados e, por isso, apequenou-a a
ponto de reduzi-la a mero instrumento de obediência ao poder civil; o homem,
3
N. Bobbio. Thomas Hobbes. Trad. Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Campus, 1989.
16
finalmente, era apontado por ele como o ser que tem medo, e ao medo só se pode
responder com o medo. E é por isso que o Estado hobbesiano tem uma face tão
ameaçadora: é a resposta do medo organizado ao medo desenfreado. Mas o medo é
uma essência (BOBBIO, 1989, p.111).
De certa forma, este questionamento parece ter fundamento, pois o próprio Hobbes
admite que o conatus
4
, aquele desejo às vezes incontrolável, ainda permanece no homem
mesmo no estado civil, podendo levá-lo a cometer crimes ou injustiças, porque, na ânsia da
satisfação deste, poderá infringir as leis estabelecidas: “... Pois é pela alma que o homem tem vontade,
isto é, pode querer ou não querer
(HOBBES,1998, p.115). Isso demonstra que por meio da razão o
homem não consegue ter pleno controle sobre suas paixões, vindo a cometer atos proibidos, e
automaticamente deverá arcar com as conseqüências destes.
São essas também as preocupações de Bobbio (1989) ao analisar as leis naturais e
positivas em Hobbes, pois entende que, embora o autor seja classificado na História da
Filosofia como um jusnaturalista, surge um grande problema em sua concepção de Estado,
pois como seria possível o caráter absoluto do poder estatal se a vontade do soberano estiver
sob a lei natural? É nesta perspectiva que Bobbio procura mostrar que as leis naturais, na
filosofia hobbesiana, indicam o que é bom ou mau em relação a um determinado fim e não
como queriam as concepções tradicionais de que a reta-razão prescreve o que é bom ou mau
em si mesmo. Assim, para Bobbio, a função da lei natural não é estabelecer um código de
conduta para o homem, mas dar um fundamento racional àquele sistema de leis positivas que
é o Estado, em outras palavras, as leis naturais servem para justificar a obediência e
fundamentar o Estado e é por isso que, para ele, Hobbes soube como ninguém utilizar-se deste
expediente:
(...) Pois bem: Hobbes manipula, com tal perícia de rábula, os termos da questão,
que consegue demonstrar que o pacto mediante o qual os cidadãos constituem o
poder soberano não pode ser revogado pelos indivíduos que o estabeleceram sem o
consentimento do soberano. Os adversários afirmavam que a presença de uma lei
natural acima das leis positivas legitimava a resistência do cidadão contra a
opressão. Pois bem: Hobbes é tão competente em trazer água para seu moinho que
consegue demonstrar que a obediência absoluta e incondicional é, nada mais, nada
menos, que o ditame primeiro e fundamental da própria lei natural (BOBBIO, 1989,
p.109).
4
Um dos conceitos mais importantes na filosofia hobbesiana, que se refere diretamente às suas preocupações,
define o conatus como o movimento que tem lugar através da longitude de um ponto do tempo, bem como para
descrever os movimentos do ser vivo. Esse movimento, que consiste em prazer e dor, é uma solicitação ou
provocação para aproximar-se do que agrada ou retirar-se do que desagrada. Tal solicitação é o esforço ou
começo interno do movimento animal.
17
O conceito de liberdade na filosofia hobbesiana também mereceu de Renato Janine
Ribeiro
5
uma atenção especial. Para o filósofo brasileiro, como Hobbes é um autor
nominalista não se deixa levar pelos valores retóricos que se atribuem às palavras. Conceitos
como liberdade e igualdade ficam recheados de entusiasmos e por isso os homens se deixam
levar pelos seus amplos significados e isso pode acarretar um risco para o contrato social e
conseqüentemente para a ordem, a paz e a própria liberdade. Assim, a interpretação de Renato
Janine Ribeiro difere um pouco da de Bobbio, ao identificar nas obras de Hobbes uma
liberdade mesmo que parcial.
Neste aspecto, é importante insistir no que afirma Renato Janine Ribeiro:
O soberano não perde a soberania se não atende aos caprichos de cada súdito. Mas,
se deixa de proteger a vida de determinado indivíduo, este indivíduo (e só ele) não
lhe deve mais sujeição. Os outros não podem aliar-se ao desprotegido, porque o
governante continua a protegê-los. E pouco importa se o soberano fere o ex-súdito
tendo ou não razão (afinal, repetimos, ninguém pode julgar o soberano). O que
desfaz a sujeição política é que o governo não confia mais no súdito, e prendendo-o
com ferros liberta-o das obrigações jurídicas que assumiu com ele (RIBEIRO, 1996,
p.70).
Isso demonstra a verdadeira razão de ser do Estado na concepção de Renato Janine
Ribeiro. Se Hobbes entende que a liberdade está na sujeição ao Estado, este terá plenos
direitos sobre os cidadãos, desde que garanta a “real” liberdade e não aquela ilusória do
estado de natureza que leva os homens ao conflito e à ausência de liberdade.
O cientificismo
6
da política, na concepção de Renato Janine Ribeiro
7
, também pode
ser entendido nas obras de Hobbes não como uma relação de dependência ou de fundamento,
mas de dedução:
A filosofia política pode ser deduzida da filosofia natural, da ciência física; mas
também pode ser aferida pela experiência pessoal (do leitor): e então se situa entre
duas confissões. O filósofo refina e cifra, como teoria ou “doutrina”, a própria
experiência; o leitor confronta com a sua experiência essa ciência que recebeu, e
assim pode também metamorfosear em ciência a sua prudência (RIBEIRO, 1999,
p.21).
5
R.J.Ribeiro. Hobbes: O medo e a esperança. In: WEFFORT, Francisco (Org.). Clássicos da política 1. São
Paulo: Ática, 1996.
6
Termo empregado na acepção extraída do Dicionário Houaiss da língua portuguesa, que define a tendência
intelectual que preconiza a adoção do método científico tal como é aplicado às ciências naturais, em todas as
áreas do saber e da cultura (filosofia, ciências humanas, artes etc). Instituto Antônio Houaiss. Editora Objetiva,
Rio de Janeiro, 2001.
7
R.J.Ribeiro. Hobbes: Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra o seu tempo. Belo Horizonte: UFMG,
1999.
18
Se a filosofia de Hobbes propõe uma seqüência em que se vai do corpo ao homem e
deste ao cidadão, é incontestável que afirme a necessidade de estudar o homem tanto como
corpo natural quanto como corpo político. Todavia, não é fácil compatibilizar o propósito da
trilogia hobbesiana quando o próprio autor afirma: “Assim sucede que aquilo que era último na ordem
veio a lume primeiro no tempo, e isso porque vi que esta parte, fundada em seus próprios princípios
suficientemente conhecidos pela experiência, não precisaria das partes anteriores” (HOBBES, 1998, p.18).
Ao tomar a citação acima ao pé da letra, entende-se que, para Hobbes, mesmo
aqueles que não compreendem as primeiras partes da filosofia, a saber: a geometria e a física,
podem alcançar os princípios da filosofia civil e na obra De Corpore parece reforçar a tese:
(...) uma vez que os princípios da política resultam do conhecimento dos
movimentos da mente, e que este conhecimento deriva da ciência das sensações e
das idéias, mas ainda aqueles que não apreenderam a primeira parte da filosofia, a
geometria e a física, podem, entretanto, chegar aos princípios da filosofia civil pelo
método analítico (HOBBES, De Corpore, 1966, p.74).
Porém, na opinião de Renato Janine Ribeiro (1999), Hobbes não está desprezando e
muito menos dispensando a filosofia primeira, aliás esta foi a interpretação de Macpherson
8
,
um rousseauista lendo Hobbes, e por isso fez em sua filosofia um recorte que deu margem a
interpretações que não condizem com a opinião de Hobbes, como por exemplo: o homem
burguês que enxerga, bem como o desprezo pela física ao anexar a política à psicologia.
É por isso que Renato Janine Ribeiro entende que como a obra Do Cidadão (1642)
precede em dezesseis anos a Do Homem (1658), a intenção de Hobbes foi totalmente alterada
uma vez que a obra De Corpore também só ficou pronta em 1655. Assim, não coaduna com a
interpretação de Macpherson e identifica na filosofia política hobbesiana ao menos uma
autonomia:
Trata-se de fazer uma genealogia do Estado; os homens são criadores do político, a
quem o texto revela a sua criação. Seremos súditos leais porque somos os sujeitos
que instituíram; obedeceremos porque geramos o Estado, que deixa de aparecer
como alteridade opressora, para manifestar-se representante. Com isso se assegura a
inteligibilidade: porque, se o modelo desta é a geometria, a qual conhecemos porque
suas figuras e conceitos nós criamos, então só poderemos ter uma ciência do Estado
quando também o reconhecermos produto nosso. O contrato não é uma tese
antropológica, duvidosa; mas a condição para a certeza na ciência política
(RIBEIRO, 1999, p.30).
Eis o ponto de partida de Thomas Hobbes para a conceituação de liberdade e sua
possível e necessária conciliação com a soberania do Estado. A noção de liberdade tem, como
8
C.B.Macpherson. A teoria política do individualismo possessivo: De Hobbes até Locke. Trad. Nelson Dantas.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
19
pode-se constatar, uma relação com a concepção dos movimentos dos corpos, na medida em
que se pode afirmar que qualquer corpo, quando se encontra amarrado ou preso de um modo
que não possa se mover, impedido pela oposição de outro corpo externo, não tem liberdade.
Dessa forma, é possível entender que a liberdade para Hobbes significa a ausência de
oposição e por isso definiu um homem livre como: “aquele que, naquelas coisas que graças a sua força
e engenho é capaz de fazer, não é impedido de fazer o que tem vontade de fazer
(HOBBES, 1974, p.133).
O autor compara a liberdade com o medo, afirmando que estes eram compatíveis,
pois o homem poderia não fazer alguma coisa, só que, às vezes, por medo, decide praticar
aquela ação pensando nas conseqüências que poderiam lhe ocorrer. Afirma, também, que a
liberdade e a necessidade são compatíveis, porque compreendia que as ações praticadas
voluntariamente derivam da liberdade. Ao comentar sobre a liberdade dos súditos num Estado
instituído ou adquirido, declarou que os homens podem fazer o que a razão de cada um
sugerir, desde que não contrariem as leis estabelecidas.
Portanto, em primeiro lugar, dado que a soberania por instituição assenta num pacto
entre cada um e todos os outros, e a soberania por aquisição em pactos entre o
vencido e o vencedor, ou entre o filho e o pai, torna-se evidente que todo súdito tem
liberdade em todas aquelas coisas cujo direito não pode ser transferido por um pacto
(HOBBES, 1974, p.137).
Neste intuito, o objetivo desta tese é mostrar que algumas interpretações de que
Thomas Hobbes é avesso às liberdades e garantias individuais são fruto de leituras menos
rigorosas de sua obra, pois para o autor há a possibilidade de se ter liberdades no Estado
instituído, ou seja, Estado e liberdade podem ser compatíveis. Partindo-se de uma leitura mais
rigorosa das suas principais obras, é possível mostrar que o Estado será fruto da própria
escolha humana, sendo, desta forma, resultado da sua própria racionalidade e que a forma
absoluta refere-se exclusivamente à idéia de soberania, sem a qual as liberdades e garantias
individuais não seriam possíveis. Neste sentido, entende-se porque Thomas Hobbes dedicou
grande parte de sua vida a um tema dessa magnitude.
20
Capítulo I
Ciência Natural e Movimento
1. A Ciência Moderna: o solo da filosofia hobbesiana
Thomas Hobbes, na primeira parte do De Corpore, capítulo I, propõe que a função
da filosofia é promover uma vida melhor para os homens, proporcionada pelas ciências no
campo da filosofia prática enquanto a filosofia moral é melhor avaliada quando de sua
ausência que acarreta as calamidades advindas das guerras.
Dividindo a filosofia em duas partes, Hobbes estabelecerá seu objetivo, pois entende
que existem dois tipos de corpos bem distintos: o natural, que é obra da natureza, e o que é
produto das vontades e do acordo entre os homens, chamado República. Surgem aí as partes
da filosofia: natural e civil; esta última ainda subdividida em ética e política.
A intenção de Hobbes já está evidente com tais distinções, a saber: a filosofia natural
e a geometria trouxeram para a humanidade uma vida mais confortável, pois desenvolveram
técnicas fundamentais de domínio e conhecimento da natureza, proporcionando benefícios e
comodidades. Já no campo da filosofia civil, não se atingiram tais objetivos, uma vez que, na
história da humanidade, as guerras sempre estiveram presentes, evidenciando a falta de
entendimento do que seria este saber.
A preocupação da filosofia hobbesiana encontra nesta questão um ponto crucial de
reflexão, a saber: quais motivos levam os homens às guerras e à morte? Seria por que
desconhecem suas causas? Embora saibam, pela experiência, que tudo isto é ruim, é maléfico
para suas vidas, por que continuam a praticá-lo?
Para Thomas Hobbes, a resposta está no fato de que os homens nunca aprenderam
suficientemente bem como evitar tais problemas, ou melhor, nunca ensinaram as verdadeiras
regras da vida em sociedade. Nunca ensinaram, porque nunca se teve um método verdadeiro,
claro e objetivo sobre a filosofia moral e civil.
Diferentemente da filosofia natural e da geometria, cujos estudiosos desenvolveram
um saber claro, exato e objetivo que não proporcionava controvérsias nos temas de que
tratavam, ampliando a ciência e o desenvolvimento, a filosofia civil apresentava seus
preceitos, na maioria das vezes, de acordo com o que lhe conviesse, pois seus estudiosos, na
crítica de Hobbes, visavam a seus interesses, chegando até a estabelecer regras e preceitos
como verdades universais, embora não o fossem.
21
Eis o desafio da filosofia de Thomas Hobbes: dar à filosofia civil o mesmo estatuto
das ciências naturais, cujas verdades possam ser comprovadas e servir de suporte para a vida
em sociedade sem os males da guerra e proporcionando o seu progresso.
Tendo como paradigma a ciência nascente na Europa setecentista, especialmente na
Itália, que promoveu mudanças significativas no modo de pensar, é possível também que
Hobbes tenha tido sua vida intelectual marcada por essas alterações.
O século XVII, vivenciado pelo autor, é um período de profundas mudanças em
quase todos os aspectos, principalmente com o advento da chamada revolução científica que
introduziu novas formas de encarar o mundo. Todas as mudanças trazem alterações radicais
que terão reflexos no comportamento humano. O mundo agora será pensado em termos
mecânicos, tudo está em movimento e será observado, as coisas estão em constantes
modificações, ou seja, aquele mundo estático, fixo e hierarquizado da Idade Média começa a
ser questionado.
As conseqüências sociais, políticas, econômicas e também religiosas deste período
trouxeram grandes alterações, que exercerão influências lentas, mas graduais, no
comportamento humano. O objetivo agora é entender como se processou toda essa mudança e
como Hobbes foi tocado por ela.
A história do pensamento científico atinge seu apogeu com as descobertas de Galileu
Galilei. Este processo lento tem suas raízes já no Renascimento, porém não deixa de ser,
também, conseqüência das reflexões dos filósofos clássicos. Assim, pode-se dizer que o
pensamento científico divide-se em três etapas, a saber: a física aristotélica, a física do
impetus medieval e a física matemática ou galilaica.
Na presente reflexão, o intuito será o de resgatar um conceito fundamental da história
da ciência que, decerto, revolucionou até então todos os estudos elaborados pelos pensadores,
na medida em que tal conceito expressará mudanças estruturais nas bases científicas. Trata-se
do conceito de inércia que porá fim a todas as especulações sobre as causas do movimento,
objeto de reflexão dos pensadores nas três etapas do pensamento científico citadas acima.
A formulação e a prova do princípio da inércia no século XVII tiveram um caminho
bastante complexo. O objetivo será o de resgatar tal conceito e mostrar porque as reflexões
sobre o movimento serão relevantes para a filosofia de Thomas Hobbes. É importante
observar como grandes pensadores, como Galileu e Descartes, percorreram este caminho até a
conceituação do princípio.
22
1.1 O nascimento da Ciência Clássica
Para entender a confiança depositada na Física Clássica, em especial no
mecanicismo
9
do século XVII, é importante, mesmo a grosso modo, estabelecer as principais
características da sociedade neste período.
“Minha mãe pariu gêmeos, eu e o medo” (apud RIBEIRO, 1999, p.17). Essa frase de Hobbes
sintetiza toda sua filosofia, que remonta à Inglaterra protestante do final do século XVI,
temerosa pela invasão espanhola, não faltando alarmes a todo momento para anunciar que as
tropas invencíveis da Espanha haviam chegado. Esse medo, que fez com que Hobbes
nascesse precocemente, pois sua mãe o deu à luz aos sete meses, será o seu parceiro
praticamente durante toda a vida. Já no século XVII, presenciou duas outras grandes
revoluções, que de certa forma espalharam um grande medo pela Europa, porque trouxeram
mudanças radicais e, conseqüentemente, foram importantes na estruturação de sua filosofia.
Uma delas foi na própria Inglaterra, onde a luta pelo poder desencadeou uma ampla guerra
civil pelo país, que foi descrita por Hobbes como guerra irracional
10
. A outra grande mudança
foi, praticamente, continental, decorrente da revolução científica iniciada por Galileu Galilei
que, embora tenha trazido conseqüências benéficas para a sociedade, teve seu início marcado
também pelo medo, na medida em que as afirmações e descobertas anunciadas trouxeram
uma nova maneira de encarar o mundo e toda mudança, em princípio, gera insegurança. Esse
medo ainda o acompanhará especificamente, como ele mesmo afirma, em mais dois
momentos. O primeiro em 1640, quando foi instalado um Parlamento hostil ao governo
autoritário do rei. Hobbes foi o primeiro a fugir. Onze anos depois, em 1651, época da
publicação do Leviatã, voltou à Inglaterra, fugindo da França, pois receava que a publicação
da obra lhe valesse a morte, por achar que a Igreja Católica francesa o mandaria à fogueira, ou
pelo menos tentasse puni-lo pelas teses que concerniam à religião.
Todas essas mudanças foram significativas no modo de pensar; influenciando
naturalmente as questões da ciência e vice-versa. A gradativa substituição de uma visão de
mundo centrada nas doutrinas teológicas e religiosas pelo estudo sistemático da natureza, que
9
Mecanicismo: compreende-se por explicação mecanicista a que utiliza exclusivamente o movimento dos
corpos, entendido no sentido restrito de movimento espacial. Nesse sentido, é mecanicista a teoria da natureza
que não admite outra explicação possível para os fatos naturais, seja qual for o domínio a que eles pertençam,
além daquela que os interpreta como movimentos ou combinações de movimentos de corpos no espaço.
10
O autor aborda os detalhes da guerra civil na Inglaterra em sua obra Behemoth ou Longo Parlamento,
traduzida para o português em 2001, por Eunice Ostrensky e com prefácio e revisão de Renato Janine Ribeiro.
Em forma de diálogos entre personagens anônimos, Hobbes acusa de responsáveis pela guerra os presbiterianos
e os democratas da Câmara dos Comuns.
23
tiveram suas bases no Renascimento, consolidava-se cada vez mais. O século XVII
preparava-se para uma revolução que mudaria radicalmente a visão do mundo.
Um dos maiores representantes dessa nova concepção foi o italiano Galileu Galilei
(1564 – 1642) que será o principal responsável pela fundamentação científica do movimento
da Terra.
A física de Galileu é uma física da queda dos corpos, aliás, a primeira das leis da
física clássica, formulada por ele em 1604; mostrando que esse movimento da queda dos
corpos é natural ou, ainda, o único movimento natural que admite.
Como uma lei fundamental da dinâmica moderna, a lei da queda dos corpos é
importantíssima e ao mesmo tempo simples, pois é assim definida: a queda dos corpos é um
movimento uniformemente acelerado.
Mas qual é a causa desse movimento? Eis uma questão sobre a qual Galileu se
debruçará longa e trabalhosamente e por isso, ao conseguir respondê-la, será conhecida como
a revolução galilaica.
Tudo advém de suas observações feitas por um instrumento óptico para olhar os
céus: a luneta, que acabara de ser inventada pelos holandeses, e que foi por ele aperfeiçoada.
Seu interesse e suas reflexões girarão em torno dessa nova realidade, que contraria
absolutamente a física até então em vigor: a aristotélica.
24
1.2 A física aristotélica
Com o propósito de compreender a crítica galilaica à física aristotélica, recuperar-se-
ão alguns pontos desta, de forma resumida, apontando as divergências fundamentais.
Segundo Koyrè (1986), a física aristotélica é uma teoria altamente elaborada, hoje
reconhecida como falsa e, portanto, prescrita. Embora suplantada, teve um papel importante
na fundamentação da física clássica, pois serviu de alicerce para as novas descobertas.
Baseada no senso comum, portanto, não matematizável, a física de Aristóteles (384 – 322
a.C) era bem elaborada, coerente, severa e se apoiava em duas idéias fortemente enraizadas
nesta observação empírica, a saber:
1. a Terra é imóvel e está localizada no centro do universo;
2. nos céus, os movimentos que percebemos repetem-se de modo sempre regular, como se
fossem imutáveis.
Tendo essas idéias como fundamentos, Aristóteles adiciona outras concepções.
Propôs a divisão do mundo em duas partes: o sublunar e o sobrelunar. O primeiro é o mundo
em que vivemos, onde as coisas nascem, crescem e morrem, ou seja, o mundo das
transformações. Já no segundo, o mundo celeste, os corpos estavam incrustados em grandes
esferas (estrelas fixas). Considerado o mundo perfeito, para Aristóteles, os movimentos que lá
ocorriam eram naturais e harmônicos, isto é, circulares; terminavam em si mesmos. Não havia
espaço vazio, pois todo seu espaço era preenchido pelo mais puro e leve elemento, o éter.
Neste mundo fixo, quase estático e perfeito cabia a aplicação da Matemática, considerada a
ciência das formas perfeitas.
O mundo terrestre era descrito qualitativamente, denominado de sublunar, não cabia
o recurso à Matemática, pois era considerado o mundo das coisas mutáveis, não perfeitas e da
corrupção.
No que tange à questão da queda dos corpos, dos movimentos, objeto desta reflexão,
uma vez que se afirma ser Galileu um estudioso do assunto que se opõe a Aristóteles, há a
necessidade de resgatar a idéia de movimento para este, entendendo, assim, a crítica galilaica.
Para o filósofo grego, os corpos eram formados por quatro elementos: terra, água,
fogo e ar, cada um tendo seu lugar próprio, ou seja, lugar natural, que é dessa forma definida
por ele: “a natureza é princípio ou causa do ser movido e do estar em repouso naquilo que a possui
primariamente em virtude de si mesma e não acidentalmente” (Aristóteles, Física, II, 1, 192b22-23)
.
Os movimentos eram divididos em naturais e violentos. Os primeiros, de subida e
descida dos corpos, eram o retorno destes aos seus lugares naturais. Assim, os corpos
25
compostos de terra e água tinham um movimento natural para baixo; enquanto os compostos
por ar e fogo dirigiam-se naturalmente para cima. Já os movimentos violentos, eram todos
aqueles que não eram o retorno do corpo ao seu lugar natural como, por exemplo, o
lançamento de uma pedra, pois Aristóteles considerava ser indispensável a aplicação de uma
força para manter os corpos em movimentos violentos. Desta forma, a tendência natural dos
corpos era o repouso, qualquer movimento, não natural, necessitava de uma causa e era
considerado uma desordem.
Assim, qualquer movimento implica uma desordem cósmica, uma ruptura de
equilíbrio, quer ele mesmo seja efeito imediato de uma tal ruptura, causada pela
aplicação de uma força exterior (violência), ou, pelo contrário, efeito do esforço
compensatório do ser para reencontrar o seu equilíbrio perdido e violado, para
reconduzir as coisas aos seus lugares naturais, convenientes, onde elas poderiam
repousar e repousar-se. É este regresso à ordem que constitui justamente o que nós
chamamos movimento natural (KOYRÈ, 1986, p.23).
Este universo fechado, fixo e hierarquizado de Aristóteles sustentou-se por séculos e
séculos e a principal razão de seu sucesso foi, além de ser uma teoria bem elaborada e
sofisticada, estar baseada no senso comum. Aliás, cabe lembrar que para os gregos havia uma
separação entre a teoria, considerada uma atividade nobre, e a prática, a técnica, considerada
de menor relevância; sem prestígio social.
Um outro fator importante da difusão da cosmofísica aristotélica está ancorado nas
razões históricas. A apropriação deste pensamento que, de certa forma, representava um
antropomorfismo depurado, vem ao encontro de uma visão teológica e serviu de fundamento
para a Igreja Católica consolidar-se.
A obra aristotélica, no que tange à física, é tratada nos dias atuais com certo
menosprezo, pois sabe-se que era baseada no senso comum e, portanto, falsa. Porém é
importante salientar que a física clássica só foi possível, pois a teve como fundamento e o
próprio Galileu a respeitava como uma doutrina bem elaborada.
Nesta perspectiva, retome-se a reflexão feita por Galileu quanto ao movimento dos
corpos. Sabe-se que sua física é antagônica à de Aristóteles, portanto, haverá novos
argumentos que estarão alicerçados, também, em novos modelos.
No que se refere à queda dos corpos propriamente dita, os primeiros questionamentos
a respeito dos graves
11
foram registrados no século XVI e são anteriores a Galileu.
11
Denominação dada aos corpos em queda, surgindo, desta forma, a palavra gravidade.
26
O mérito de Galileu com relação à queda dos graves foi ter chegado à expressão
matemática da lei da queda dos corpos obtida por meio de suas experiências com a queda dos
corpos em um plano inclinado, cotejando espaço e tempo percorridos, portanto, um estudo
cinemático que servirá de suporte para novas descobertas, sobretudo abrindo caminho para a
conceituação de inércia.
Para Galileu, o peso não é mais do que uma tendência natural dos graves para se
moverem e se dirigirem para o centro da Terra, pois todos os corpos têm peso, nenhum é
privado deste e, conseqüentemente, nenhum é leve
12
, diferentemente do que propunha
Aristóteles. Desta forma, o movimento para cima também não é natural, pois nenhum corpo
move-se para cima por si só, se isso ocorrer é porque um corpo mais pesado o expulsou.
Assim, para Galileu, todo movimento de ascensão é um movimento de extrusão.
Como para Galileu o peso é uma propriedade natural dos corpos e uma fonte do
movimento, aliás única propriedade natural e única fonte, só poderia produzir, em todos os
corpos, um movimento natural para baixo. Embora não tenha como provar e o senso comum
indicava isto, mantém a concepção de que os corpos graves caem, não por uma propriedade
teórica deles, mas uma propriedade empírica, uma qualidade do senso comum e é por isso que
Galileu evita falar em gravidade, utilizando o termo corpos graves.
Assim, o peso era responsável pela tendência natural dos corpos de se moverem para
o centro da Terra ou do universo, que para Galileu era a causa do movimento, senão ficariam
no mesmo lugar. Qualquer corpo deixado em liberdade, se não estiver preso, se movimentará
e de forma que irá acelerar continuamente, uma vez que a aceleração começa em um estado
de lentidão suprema, ou seja, o repouso.
Partindo deste pressuposto, Galileu iniciava seu longo caminho para responder a
questão sobre a origem dos movimentos. Começa por tentar definir ou dissociar o centro da
Terra do centro do mundo, se é que há um centro, na medida em que as idéias de Copérnico
13
12
Para Aristóteles, os corpos tinham uma qualidade própria denominada leveza e o movimento para cima
poderia ser natural como, por exemplo, o ar e o fogo.
13
Nikolaj Kopernik ( 1473-1543) sacerdote polonês, estudou matemática, medicina, teologia, línguas clássicas
e direito. Teve uma formação intelectual completa e ganhou destaque principalmente no campo da astronomia e
matemática. Por volta de 1529, o sistema geocêntrico de Ptolomeu já parecia insatisfatório para Copérnico e
muitos outros astrônomos. Freqüentemente, as observações pareciam desmentir a teoria, o que forçava os
astrônomos a reverem os arranjos de deferentes e epiciclos. Copérnico supunha que as órbitas dos planetas eram
circulares, percebeu que a idéia do sol como centro das órbitas dos planetas fazia sentido, era mais lógica do que
a idéia geocêntrica. Mas o geocentrismo era um artigo de fé, não apenas um preconceito científico. E o padre
guardou para si o que o cientista descobrira. Por isso, dizia tratar-se não de uma nova teoria revolucionária, mas
de simples hipótese, destinada a simplificar a computação de certos dados astronômicos. Ainda assim, a
sinceridade de Copérnico transparece no corpo do seu livro sobre o tema. No texto e nos diagramas, ele situa o
Sol no centro do sistema, Mercúrio e Vênus em torno dele, nessa ordem, a Terra com a Lua em volta, Marte,
Júpiter e Saturno, todos em gravitação circular em torno do Sol. Por fora, a esfera das estrelas. Em resposta a
27
já são bem conhecidas. Que os corpos caem, a experiência bruta nos mostra, porém qual a
causa, ou se é interna ou externa a eles, Galileu ainda não sabe. Uma coisa são os fatos, outra
é explicá-los. O fato de se repetirem mil vezes não garante a essência do princípio do
movimento, apenas são atribuídos nomes como gravidade, virtude impressa, impetus, peso,
entre outros.
Embora não sabendo bem o que é, Galileu começa a se aproximar do conceito da
gravidade, sabe que a Terra funciona como um grande ímã
14
e é algo imprescindível provar e
conceituar. Começa mostrando sobretudo que esses corpos que se movem não têm essa
característica como propriedade de suas naturezas, o movimento parece ser exterior a eles.
De forma análoga a Descartes, para mostrar que a gravidade é exterior aos corpos,
distingue a natureza destes de todas as suas propriedades. O fato que constitui a sua essência
são as propriedades matemáticas; o número, a figura, o movimento: a aritmética, a geometria
e a cinemática. Como Descartes, exclui as qualidades sensíveis, tais como a cor, o odor, o
calor ou o som. A essência dos corpos, ou da matéria, ou seja, o que faz estes serem pensados,
ou simplesmente serem, são as suas propriedades matemáticas, que não têm qualquer
realidade objetiva, apenas existem no sujeito cognoscente.
A gravidade não está incluída por Galileu nem nas essências dos corpos nem nas
qualidades sensíveis. Encontra-se entre o ser e o nada, o nada das aparências sensíveis e o ser
do real matemático. Existe de fato, não se pode negar, uma vez que os corpos físicos caem,
não os corpos geométricos, pois esses não têm em si mesmos nenhuma propensão nem para o
movimento nem para o repouso. Porque de fato os corpos físicos caem espontaneamente e
colocam-se em movimento, faz da física uma ciência especial e diferente da geometria.
Mas os corpos são graves e a gravidade não pode ser uma noção clara, matemática e
designar uma qualidade essencial do corpo e, por isso, a física não pode da gravidade
prescindir. Os corpos da física matemática, os corpos galilaicos, arquimedianos, não são outra
coisa que não sejam corpos geométricos, euclidianos
15
, dotados de gravidade, ou seja, a
Ptolomeu sobre o movimento da Terra, para Copérnico, os corpos fazem parte de um todo que é a Terra, que
possui um movimento que é natural, portanto, não é desastroso e muito menos violento. Quanto ao movimento
retilíneo, os corpos não ficariam para trás, numa queda, porque estes participam igualmente deste movimento,
para nós imperceptível. Todas as coisas possuem um movimento duplo: retilíneo e circular.
14
William Gilbert (1544 – 1603) físico e médico inglês conhecido por seus estudos sobre eletricidade e
magnetismo, foi o primeiro a utilizar termos tais como força elétrica, atração elétrica e pólo magnético, sendo
sua maior contribuição a demonstração experimental da natureza magnética da Terra. Foi o principal divulgador,
na Inglaterra, do sistema copernicânico de mecânica celestial, postulando que as estrelas fixas não estavam todas
à mesma distância da Terra.
15
Euclides (330 – 260 a.C) nasceu na Síria e estudou em Atenas. Foi um dos primeiros geômetras e é
reconhecido como um dos matemáticos mais importantes da Grécia Clássica e de todos os tempos. Em sua obra
mais importante Os Elementos são postas as bases da geometria de forma clara, concisa e com um modelo lógico
preciso cujas definições, os axiomas ou postulados (conceitos e proposições admitidos sem demonstração que
28
gravidade é a única propriedade física que eles possuem. Os corpos arquimedianos são graves
por definição e por isso são móveis, possuem uma tendência natural para mover-se para
baixo, o que não acontece com os corpos geométricos.
A gravidade está ligada ao movimento, sem o qual não há física e o movimento está
ligado ao fato da gravidade. Esta é a influência de Arquimedes
16
no pensamento de Galileu
que, com seu caráter realista, não procurou construir um mundo matemático, mas apreender a
essência da matemática do mundo real, móvel e portanto temporal, o que o impediu de
formular corretamente o princípio da inércia. Galileu sofreu influência, também, do espírito
científico de provas empíricas.
Galileu publicou em 1632 uma obra intitulada Diálogo Acerca dos Dois Sistemas
Principais do Mundo
17
, em que participavam três personagens, os quais desempenham papéis
distintos. Filippo Salviati, gentil homem florentino, amigo e porta-voz de Galileu que se
refere a ele como o nosso Acadêmico, defensor do sistema heliocêntrico ou copernicano. Já
Simplício, tem o nome de um conhecido comentador grego perfeitamente identificado com a
Física e o Tratado do Céu de Aristóteles. Quanto ao terceiro, era também um personagem
real, Giovanni Francesco Sagredo, gentil homem veneziano inteligente e culto, que exercia o
papel de mediador entre os dois debatedores. Embora o assunto central fossem as teorias
geocêntrica e heliocêntrica do Sistema Solar, em certa altura Galileu começa a expor sobre a
importância do assim chamado princípio da relatividade, em que as velocidades deveriam ser
sempre medidas e informadas em relação a um ponto de referência.
Argumenta Galileu que tudo o que está num navio movimenta-se à mesma
velocidade, ou seja, a velocidade deles em relação à do próprio navio é nula. Logo, era
necessário um ponto de referência fora do navio, para se perceber que ele estava em
constituem os fundamentos especificamente geométricos e fixam a existência dos entes fundamentais: ponto,
reta e plano) e os teoremas não aparecem agrupados ao acaso, mas antes expostos numa ordem perfeita. Cada
teorema resulta das definições, dos axiomas e dos teoremas anteriores, de acordo com a demonstração rigorosa e
abstrata.
16
Arquimedes de Siracusa (287 – 212 a.C) existem inúmeras referências a Arquimedes nos escritos de sua
época, dada a reputação que ganhou neste período. Embora afirmasse que a matemática em sua forma mais pura
era a única coisa que valia a pena, fez grandes descobertas e invenções como máquinas para serem usadas na
guerra, armas que particularmente foram eficientes na defesa de Siracusa contra os Romanos. Suas contribuições
foram importantíssimas para o desenvolvimento e propagação da matemática e da geometria. Em suas obras
aborda os princípios fundamentais da mecânica, usando métodos geométricos. Descobriu teoremas fundamentais
a respeito do centro de gravidade de figuras planas, em particular encontra o centro de gravidade do
paralelogramo, do triângulo e do trapézio.
17
Em 1624 Galileu iniciou a escrita do livro, por ele intitulado Diálogo sobre as Marés, em que discutia as
hipóteses ptolomaicas e copernicanas sobre a física das marés. Em 1630 os censores da Igreja Católica
concederem a licença de publicação alterando, entretanto, o título para Diálogo Acerca dos Dois Principais
Sistemas do Mundo, sendo finalmente publicado em 1632. Apesar da licença de publicação, no ano seguinte,
Galileu foi intimado pela Inquisição a responder pelo processo de suspeita de grave heresia, o que lhe valeu a
sentença de prisão perpétua domiciliar e a ordem de que o livro fosse queimado.
29
movimento. Por outro lado, se o navio estivesse em movimento uniforme, em águas
tranqüilas, um objeto jogado do alto do mastro dos veleiros atingiria o seu convés sempre no
mesmo ponto. Com isso, Galileu pretendia argumentar que essa poderia ser uma prova de que
estando a Terra em rotação uniforme, tudo seria despercebido, tal como se estivesse em
repouso, embora já tivesse ciência de que em todo movimento de rotação aparecem forças
centrífugas, que hoje sabemos serem muito pequenas em relação ao peso. Essa
impossibilidade Galileu apresentou na obra Diálogo:
Fechai-vos com algum amigo no maior compartimento existente sob a coberta de
algum grande navio, e fazei que aí existam moscas, borboletas e semelhantes
animaizinhos voadores; seja também colocado aí um grande recipiente com água,
contendo alguns peixes; suspenda-se ainda um balde, que gota a gota verse água em
outro recipiente de boca estreita que esteja colocado por baixo e, estando em repouso
o navio, observai diligentemente como aqueles animaizinhos voadores com igual
velocidade vão para todas as partes do ambiente; ver-se-ão os peixes nadar
indiferentemente para todos os lados; as gotas cadentes entrarem todas no vaso posto
embaixo; e vós, lançando alguma coisa para o amigo, não a deveis lançar com mais
força para esta que para aquela parte, quando as distâncias sejam iguais; ... fazei
mover o navio com quanta velocidade desejardes; porque (sempre que o movimento
seja uniforme e não flutuante de cá para lá) não reconhecereis uma mínima mudança
em todos os mencionados efeitos, nem de nenhum deles podereis compreender se o
navio caminha ou está parado... (GALILEU, 2004, p.268).
Novamente recai-se sobre a questão da gravidade, que para Galileu continua sendo a
fonte do movimento, aliás a única que se parece conhecer. Neste ponto, temos também um
desacordo ao pensado por Aristóteles, em cuja física não se admite que a gravidade seria a
única fonte, aliás não se fala em gravidade, e sim em movimento natural para baixo, pois teria
que admitir a unicidade da matéria e não aceitar a divisão do cosmo em dois mundos distintos
e reconhecer que as mesmas leis e a mesma física têm validade idênticas nos céus e na Terra.
Eis a tese galilaica da uniformidade das leis, isto é, aplica aos céus os princípios estabelecidos
para a Terra. Assim, o movimento das quedas dos graves é para ele natural, ou seja, o único
movimento natural na Terra, e o mesmo acontece nos céus, pois o movimento circular dos
planetas é um movimento natural, espontâneo, igual aos da Terra.
Voltando à dinâmica da queda, os corpos caem segundo a mesma lei e com a mesma
velocidade. Embora o senso comum mostrasse o contrário, ou seja, o movimento de queda
não era uniforme e sim acelerado, por meio de Simplício retoma-se o princípio aristotélico de
que havendo dois corpos cujas velocidades naturais (quedas) são distintas por terem massas
distintas, se unidos, o de menor massa deveria atrasar a queda do objeto maior, porém o que
ocorre é que, quando unidos, sua velocidade natural é ainda maior. Aqui Galileu percebe que
tais alterações são motivadas não pelo tamanho (massa) dos objetos, mas pela resistência do
30
ar e conclui a ligação do argumento com o principio da inércia, o qual postula que, quando a
resistência do ar é eliminada, todos os corpos caem com a mesma velocidade. Uma afirmação
apriorística já que, na época, não poderia ser comprovada na natureza, pois todos podiam
constatar que objetos diferentes caem com velocidades distintas.
Nesta dinâmica da queda, Galileu realiza um dos seus maiores feitos, ou seja, a
aplicação da matemática ao movimento, pois todos observavam que quando a pedra cai do
alto do mastro do navio, seu movimento não é uniforme e sim progressivamente acelerado.
Isso se dá porque a relação dos espaços percorridos é igual à dos quadrados do tempo, assim
tem-se uma das grandes descobertas, o movimento de queda segue a lei do número, isto é,
descobrem-se as leis matemáticas do movimento.
Galileu baseia a dinâmica da queda no postulado de que o móvel, em planos
inclinados, tem os graus de velocidade adquiridos igualmente quando as alturas dos planos
também o forem. As velocidades serão iguais, pois embora em planos inclinados distintos, o
móvel parte sempre da mesma altura.
O postulado da queda do móvel, em que Galileu estabelece graus para a velocidade,
ainda está longe de ser atribuído à força da gravidade, aliás, nele, Galileu não menciona força
e nem causa alguma, apenas diz que é evidente que qualquer móvel posto em um plano
inclinado descerá.
As provas do postulado de Galileu requerem um senso de abstração, por isso se
insiste na idéia de que para esse experimento ser real, deve-se afastar todos os impedimentos
acidentais e exteriores. As leis de sua física são ideais e abstratas e não da realidade da
experiência cotidiana a que se estava acostumado.
Com isso, Galileu não recorre a Deus para explicar o movimento e, como a própria
criação dos corpos já era difícil de ser concebida no campo científico, entende que é
importante não recorrer a tais argumentos, o que não se caracterizaria como ciência. Aliás, o
movimento que Deus criasse diretamente não poderia ser um movimento natural.
Novamente temos uma oposição a Aristóteles, pois este desenvolve a tese de que
Deus é o primeiro motor ao qual necessariamente se filia a cadeia dos movimentos ou a
primeira causa de que decorrem séries causais, inclusive a das causas finais. É justamente
nesse sentido, ou seja, causa final, que Deus é o criador da ordem do universo. Afirmava,
também, que o movimento circular dos planetas é espontâneo e com isso provava a diferença
de natureza entre a Terra e os céus, enquanto para Galileu o movimento dos planetas é
concebido como derivado e os dois possuem uma natureza comum.
31
Regressando ao movimento, tem-se em Galileu que a velocidade se adquire na e pela
descida do móvel e só se perde na ascensão. Essa concepção implica que a translação se faça
sem o dispêndio de energia, ou melhor, seja qual for a distância que o móvel percorreu, esta é
quase irrelevante, pois o impetus
18
adquirido é o mesmo. Assim, para que ocorra a elevação
de um grave, faz-se necessário que a energia (impetus) adquirida por ele na descida seja igual,
para fazê-lo tornar a subir.
Sabe-se hoje que essa concepção levou Galileu a conceber o estudo do pêndulo, esse
postulado e, mais tarde, o teorema demonstram que a velocidade de um corpo em descida
depende da altura de sua queda, independente da distância percorrida. A lei da queda faz,
dessa forma, com que a velocidade dependa da duração da descida (tempo transcorrido) e é
diferente quando em queda vertical ou no plano inclinado. Porém, Galileu mostra, por meio
do referido teorema, que a lei da queda que admite ser válida para a descida dos graves no
plano inclinado é que a velocidade de um móvel que parta do repouso aumenta com o tempo e
os espaços percorridos por ele estão na razão dupla dos tempos, em decorrência dos graus de
velocidade.
Como esta velocidade depende do impetus inicial e esse varia, porque é proporcional
a cada espaço percorrido e também à inclinação do plano, conclui-se que o móvel que desce
mesmo que mais devagar e se utilizando de um espaço maior percorrido chegará ao seu fim
com a mesma velocidade do que se caísse verticalmente. Esse fenômeno despertou-o para o
estudo do pêndulo. Conta a história que, ainda estudante, Galileu, observando as oscilações de
um lustre na catedral de Pisa, percebeu que essas oscilações diminuíam de amplitude, mas o
tempo de ida e volta era sempre o mesmo e constante.
Até por volta de 1600, o oscilar de um pêndulo era explicado como sendo devido a
dois movimentos: um em direção ao centro da Terra, considerado natural, e outro, violento,
não natural. Neste pêndulo, a esfera se afastava da terra até a velocidade que o movimento
natural lhe desse, e até onde o fio em que estava preso permitisse. Assim, ocorria
sucessivamente até parar. A regularidade do período em que o fenômeno se passava fez com
que Galileu esquecesse os dois movimentos e tentasse conciliá-los.
Motivado por tal interesse, descreveu o movimento por aquilo que ele tem de regular,
verificou as condições em que esse período se conservava ou se modificava, fez experiências
18
A teoria do impetus, exposta pelos escolásticos do século XIV, constitui a primeira crítica ao princípio
aristotélico de que tudo o que se move é movido necessariamente por alguma coisa, e a primeira manifestação da
noção de inércia. Ao princípio de Aristóteles, Guilherme de Ockham opôs o exemplo da flecha, ou de qualquer
outro projétil, que recebe o impulso e o conserva, mesmo sem ser acompanhado em sua trajetória pelo corpo que
lhe transmitiu o impulso.
32
e medições sucessivas que mostravam que o peso da esfera suspensa não interferia no tempo
da oscilação, mas o comprimento do fio que a suspendia, sim. Se o pêndulo era um peso,
suspenso por um fio que oscilava ao longo de um arco e que levava um certo tempo para
percorrê-lo, Galileu verificou que, em boa aproximação, se aumentasse a amplitude, o período
não se alterava, mudando-se o peso e mantendo fixo o comprimento do fio, o período também
não se alterava, mas em se mudando o comprimento do fio, o tempo do percurso se
modificava.
O fato de que o movimento, apesar de ir diminuindo lentamente até parar,
conservava o tempo de oscilação constante fazia concluir que, independentemente da
distância percorrida pelo pêndulo, o tempo para completar o movimento era sempre o mesmo.
É a descoberta do isocronismo das oscilações pendulares. O isocronismo é a propriedade dos
pêndulos apresentarem oscilações de mesma duração (período) para diferentes extensões do
percurso oscilatório (diferentes amplitudes).
Ao mesmo tempo em que isso era extraordinário, pois somente nos céus, onde até
então a física era outra, isso poderia ocorrer. A conservação do tempo do vai e vem do
pêndulo mostrou a Galileu que na Terra também havia possibilidade de permanência e
conservação. Ver no teorema do pêndulo traços da perfeição dos céus mudou os rumos da
ciência moderna, pois as suspeitas de que a Terra pertencia aos céus e os movimentos que
aqui se encontram são semelhantes aos dos corpos celestes seriam confirmadas mais tarde e
Galileu deu os primeiros passos nesta direção.
O ajustamento entre o espaço e o tempo, na prova do postulado de Galileu, faz-se,
assim, por meio de noções dinâmicas, ou seja, os movimentos estão relacionados às forças
que os produzem, dessa forma, a velocidade do grave na descida está intimamente ligada à
grandeza do impetus inicial.
Essa conclusão retoma a questão da causa do movimento, ou melhor, não se percebe
em Galileu um avanço significativo, na medida em que recupera a idéia de que o movimento
requer uma força inicial, uma causa e principalmente o afasta da conceituação de inércia.
Galileu volta, assim, ao conceito de impetus, porém com características diferentes da
denominação medieval.
Para Koyrè (1986), embora Galileu resgate a concepção de impetus, dá-lhe um novo
significado, já se aproximando da noção do cálculo da força na física moderna, porém
afastando-se da conceituação de inércia, pois sua física é uma física dos graves.
Próximo da confirmação da gravidade, Galileu desenvolve suas teorias com o
objetivo de provar a origem, a causa, da queda dos corpos. Para ele, a velocidade dos corpos
33
depende das inclinações dos planos; na vertical, atingem a maior velocidade, ao passo que nas
linhas inclinadas essa diminui à medida em que se afastam da vertical. Assim, o impetus é
diminuído no móvel pelo plano em que ele se apóia e desce; chegando a velocidade,
finalmente, a ser anulada na linha horizontal, onde, para Galileu, o móvel permanecerá
indiferente tanto ao repouso quanto ao movimento e, por si só, não terá tendência a qualquer
estado cinético.
O impetus do móvel neste estado será nulo, porque é impossível para ele mover-se
naturalmente para cima, como bem constatou Galileu que a tendência dos corpos pesados é
para o centro da Terra e, na horizontal, o centro de gravidade do móvel está próximo ao da
Terra.
A partir de experimentos e cálculos, Galileu conclui que a Terra possui uma força
tratora e nesta perspectiva continua o desenvolvimento dos seus estudos, afirmando que o
impetus de um móvel é resultado da força de gravidade e admitindo que o movimento não é
interno ao graves, mas externo. É o mesmo que a sua energia, ou seja, é o resultado do peso
pela velocidade. Um corpo, ao chegar ao final de uma descida, é a energia total; naquele que
inicia seu movimento, é o produto do peso pela velocidade inicial e para um corpo em
repouso, a energia é apenas a velocidade virtual.
O impetus ou movimento inicial, a impulsão ou diferencial de velocidade dependem
da inclinação em que o corpo se encontra e para comprovar sua teoria Galileu realiza cálculos,
faz experimentos e consegue medir a velocidade dos corpos utilizando-se da gravidade de
outro corpo, como resistência. Pelos seus cálculos sabe que o impetus de um corpo na descida
é tão grande quanto sua resistência e essa servirá de força mínima para o deter ou impedi-lo
de descer, bastando achar o ponto de equilíbrio entre o peso dos dois corpos. Com isso,
consegue medir o impetus pela resistência, em última instância, pelo peso que contrabalança a
impulsão para o movimento.
Desta forma, o impetus de Galileu é uma grandeza que associa, assim, a dinâmica
19
à
estática
20
. Isso é uma transposição do raciocínio de Arquimedes, pois Galileu interpreta
dinamicamente a gravidade.
Eis porque Galileu não formulou o princípio da inércia, o que coube a Descartes,
pois no fundo sua dinâmica era arquimediana e baseada na noção de peso; ou seja, muito
dependente ainda da prova empírica.
19
Mecânica que estuda o movimento dos corpos, relacionando-os às forças que os produzem.
20
Mecânica que estuda o equilíbrio dos corpos sob a ação de forças.
34
1.3 Galileu e a lei da inércia
Um outro aspecto da dificuldade de conceituar inércia advém da concepção do
movimento retilíneo. Para Galileu, o movimento em linha reta dos corpos é absolutamente
impossível, isto é, para poder afirmar a tendência dos corpos ao movimento, especificamente
em linha reta, sem qualquer suporte para sustentá-los, teria que conceber o movimento de
queda como não natural, isto é, seria um movimento violento, tendo como causa uma força
externa.
21
Isso significa que Galileu teria que levar até o fim o matematicismo de sua filosofia
e excluir a gravidade não só da constituição essencial do corpo, mas também da sua
constituição efetiva, só que, desta forma, ele estaria muito mais próximo de Descartes, pois
estaria reduzindo o ser efetivo de um corpo às suas determinações essenciais; e isso não fará,
pois está muito influenciado pelas concepções de Arquimedes, que o afastam efetivamente do
conceito de inércia.
Com efeito, observa-se que o caminho de Galileu está praticamente obstruído para
levá-lo ao conceito de inércia, porém os resultados obtidos pelo seu método, embora não
foram suficientes para dar conta da complexidade do conceito, talvez sejam o seu maior
legado à ciência moderna porque recorreu à experimentação, pondo fim à separação entre a
teoria e prática, realizando, assim, a união destas duas esferas da atividade humana.
É importante destacar que, para Galileu, a experimentação não se reduz à mera
observação, supõe a formulação de uma hipótese matematizada, portanto, uma abstração das
relações entre as variáveis do fenômeno estudado. Conforme ele próprio explicitou, os
segredos da natureza estão escritos em linguagem matemática, de modo que, sem conhecer
essa linguagem, não se conhece o mundo, então, formular uma hipótese é inventar uma idéia
preliminar sobre o objeto de estudo. Tal idéia deverá ser expressa em termos matemáticos
para ser submetida a um teste empírico. Aqui está, talvez, sua maior dificuldade, pois o
conceito de inércia requeria um grau de abstração maior, que Galileu não pôde atingir,
criando barreiras intransponíveis para o seu pensamento.
A experiência astronômica do movimento circular dos planetas, mostrando sua
naturalidade, aliada à uniformidade das leis e à crença na finitude do universo astral, opunha-
se à criação do conceito de inércia por Galileu, para quem a física celeste encontrava-se em
perfeito acordo com a física terrestre, que estava baseada na dinâmica da gravidade, origem
do movimento e propriedade constitutiva e inadmissível dos seus corpos, assim, não podendo
21
Vale lembrar que até essa época o movimento em linha reta dos projéteis era evidente. Estes só se encurvavam
no final dos seus trajetos.
35
admitir o caráter privilegiado do movimento em linha reta, uma vez que na física celeste este
não ocorria.
O interesse pelo movimento da queda dos corpos motivou as hipóteses e os
experimentos realizados por Galileu na ânsia de entender e explicá-los. Isso lhe valeu as
descobertas de algumas teorias e o fez entrar para a história como um dos principais
representantes da ciência moderna. Seus estudos, porém, chegaram muito próximo do
princípio de inércia, mas não o suficiente para estabelecê-lo e os motivos serão analisados a
seguir.
Para o historiador da ciência Koyré (1986), por três vezes Galileu chegou muito
próximo do princípio, mas por causa de algumas concepções e teorias via-se desviado do
caminho. São elas: recusa-se a renunciar inteiramente à idéia de cosmos, ou seja, de um
mundo bem ordenado; e a admitir francamente a infinidade do espaço e, por fim, é incapaz de
conceber o corpo físico privado do caráter constitutivo de gravidade.
No que se refere à primeira recusa, Galileu não conseguiu libertar-se totalmente da
física aristotélica, a idéia de um cosmo com uma certa ordem não está definitivamente
descartada, até mesmo por falta de provas.
Quanto à infinidade do espaço, o argumento anterior também é válido, o universo
galilaico ainda é finito. O interessante é que Galileu já tem conhecimento das obras de
Giordano Bruno
22
, porém, não se sabe o motivo por que ele as recusa.
Quanto à gravidade, é pelo fato de não saber o que ela é realmente. Sabe abstrair-se
de qualquer teoria do peso, como fez de forma espetacular, porém não da gravidade, dado
imediato e do senso comum. Galileu não consegue explicá-la e é possível dizer que em sua
época já existe uma teoria física da gravidade diferente da de Arquimedes que, não sabendo o
que era, via-se obrigado a admiti-la como um fato, ou seja, tem-se a tese de Gilbert, de que a
Terra era um grande ímã, que Kepler adota, modificando-a.
22
Giordano Bruno (1548 - 1600) adota o heliocentrismo de Copérnico (1473 – 1543) a partir do qual concebe
um universo infinito e infinitamente ocupado por outros mundos. O copernicanismo de Bruno é exposto em seu
livro A Ceia das Cinzas, publicado em 1584, que desde o título denuncia seu caráter teológico ao mencionar a
última Ceia e portanto o dogma da eucaristia. Nessa perspectiva, converteu uma teoria astronômica numa
doutrina religiosa. A adoção de uma filosofia natural que reivindicava o heliocentrismo copernicano era apenas,
para Bruno, um passo anterior a uma proposta de reforma radical da teologia, ética, sociedade e política. Assim,
rejeitou o dogmatismo da teologia católica e a ditadura de suas instituições e optou pela liberdade de uma
filosofia que a Igreja não poderia aceitar. Carente de seguidores e de pessoas influentes a apoiá-lo, sem recursos
financeiros próprios nem a proteção de mecenas, acabou por ser considerado um perigoso subversivo e toda a
Europa Cristã o abandonou à sua própria sorte. Dessa forma, em 1592, foi acusado de blasfêmia e heresia pela
Inquisição e, na hora de seu julgamento, seu copernicanismo teve um peso moderado face as suas opiniões
heréticas sobre teologia católica. Recusando a se retratar perante a Igreja Católica foi condenado à fogueira em
1600.
36
Galileu Galilei não a utiliza, apesar de conhecê-la e aceitá-la, simplesmente porque a
natureza magnética da gravidade não é matemática, nem sequer matematizável. Embora
admirador de Gilbert, pois aceita a idéia do grande ímã, Galileu não a utiliza, porque para
aquele a atração da Terra é uma força animada, pois crê nas almas dos astros, enquanto para
Kepler
23
não é, embora do seu passado animista conserve a faculdade da Terra poder dirigir-
se por si própria para o seu objeto, sabendo onde deve ir, onde está o corpo que precisa atrair.
Tudo isso são mistérios para Galileu, que não conseguiu explicar, esclarecer, matematizar,
enfim, utilizar, não chegando, assim, a formular o princípio de inércia.
Analisando e explicando melhor os três momentos em que Galileu está muito
próximo do conceito, é forçoso admitir que, por alguns detalhes em seu pensamento, não foi
capaz de conceituar a inércia. Evidentemente, toda sua teoria serviu de suporte para os outros
grandes cientistas, seus sucessores, que identificaram no método galilaico um caminho
indispensável para a nova ciência. Observem-se mais alguns detalhes em que Galileu no
limite da inércia, acaba recuando.
No primeiro momento, o debate se dá com Ptolomeu
24
, em relação ao princípio do
movimento circular. Para este, o movimento circular da Terra não era possível, pois geraria
uma força centrífuga tão forte que faria as coisas voarem; até a própria Terra.
Desta tese, Galileu defende-se, argumentando que o movimento é quase nulo e
imperceptível para as coisas que dele participam em conjunto, por isso o movimento de
23
Johannes Kepler (1571 – 1630) - homem ainda ligado à Idade Média, filosoficamente está mais perto de
Aristóteles do que de Galileu e Descartes. Para ele, os corpos têm uma tendência natural ao repouso, pois todo
movimento requer uma causa. Assim, o repouso e a paragem são naturais. Não mais admite o lugar natural dos
corpos, ou seja, seu lugar natural é o espaço, assim como o de Bruno. Os corpos só mudam de lugar neste espaço
homogêneo, se uma força os expulsar de lá. Para Kepler, a força magnética de atração da Terra faz com que os
corpos se encontrem ligados a ela como por laços ou correntes formando um sistema ou unidade real. Essa força
de atração substitui o movimento natural dos corpos que Copérnico invocara.
24
Claudius Ptolomeus (83 – 161 d.C) - o nome deste astrônomo alexandrino sugere que tenha origem grega, mas
pouco se sabe de sua vida. Viveu na época da dominação romana. Em seu modelo geocêntrico, retoma e
aperfeiçoa o Sistema Deferente-Epiciclo, proposto pelos astrônomos por volta de 300 anos antes de Cristo.
Deferente: é um círculo imaginário em volta da Terra, em cuja periferia se movem aparentemente os astros.
Epiciclo: é o círculo em que um planeta se move e cujo centro se desloca ao mesmo tempo sobre a
circunferência de um círculo maior. O centro do círculo não coincide com a Terra. A velocidade angular é
constante em relação a outro ponto chamado equante. O sistema de esferas giratórias torna-se mais complexo
com a adição do equante e de um número ainda maior de pequenos círculos giratórios. Este sistema possui,
portanto, três pontos mais significativos: o Centro geométrico do deferente circular, que não coincide com a
Terra; a própria Terra, que está fora do centro do deferente e o Equante, ponto ao redor do qual a velocidade
angular do deferente é constante. O equante foi uma das principais objeções de Copérnico ao sistema
ptolomaico, pois introduzia uma variação artificial na regularidade do movimento circular. Porém, para a época,
o sistema de Ptolomeu era o mais refinado, aliado a um detalhado ajuste de parâmetros com os novos dados
experimentais oriundos de observações astronômicas, pois permitia verificar os movimentos e a luminosidade
dos planetas, obtendo um sucesso sem precedentes em suas predições. No que se refere especificamente ao
movimento da Terra, Ptolomeu é aristotélico, pois afirmava que não há movimento algum por parte da Terra,
porque se isso ocorresse seria um desastre, na medida em que o movimento de rotação expulsaria os corpos, bem
como não haveria movimento retilíneo dos mesmos.
37
rotação da Terra, também, é quase imperceptível, pois o seu diâmetro muito grande a impede
de arremessar as coisas e a si própria, porque a velocidade que se deve considerar é a angular.
Para chegar a essa conclusão, Galileu realizou inúmeros experimentos com rodas de diversas
circunferências, baldes amarrados com cordas para serem girados, com água ou pedra dentro
deles, ou seja, embora se saiba hoje que sua tese é falsa, porque confunde velocidade linear
com angular, via-se em Galileu a influência decisiva do novo método científico, que rompia
definitivamente com a distinção ontológica aristotélica entre o movimento e o repouso,
tornando-os relativos, como bem aponta Mariconda e Vasconcelos:
Assim, o movimento não é simplesmente o deslocamento de um corpo de um lugar
para outro, mas uma modificação da sua constituição interna, cuja natureza se realiza
plenamente quando ele chega ao repouso em seu lugar natural. O movimento é,
portanto, um processo que afeta a constituição natural interna das coisas que o
sofrem, e o repouso é o termo e a finalidade do movimento. Por isso, o repouso é
caracterizado como um estado que só pode ser alterado por violência. A concepção
de Galileu, expressa por sua caracterização relativística, é inteiramente diferente. O
movimento é totalmente extrínseco à natureza das coisas, porque é definido como
simples modificação das relações entre elas, as quais não têm sua constituição
natural interna alterada por estarem em movimento ou repouso. Em outros termos,
movimento e repouso são simples estados dos corpos, definidos pelas relações
espaço-temporais que os corpos mantêm entre si. Ou ainda, para deixar assentado
esse importante ponto: movimento e repouso são estados relativos dos corpos
(MARICONDA; VASCONCELOS, 2006, pp.139 e 140).
Enfim, quanto a esse primeiro momento, observa-se que Galileu em muito se esforça
para demonstrar que, seja qual for a velocidade da Terra, os seus efeitos jamais poderão ser
aqueles idealizados por Ptolomeu, pois para este o movimento circular só é natural para os
corpos celestes e para as esferas, privadas de gravidade, e de maneira nenhuma é para os
corpos graves, enquanto para Galileu são justamente estes que possuem um movimento
circular privilegiado.
Com tais reflexões, Galileu revela um fato de suma importância: qualquer impulsão
para o movimento se dá em linha reta e o movimento circular dos graves não é mais do que
uma resultante de dois movimentos retilíneos. Embora seja uma constatação importante, há
erros que Galileu conhecia muito bem. Sabe, por exemplo, que uma dada força pode ser
vencida e ultrapassada pela força centrífuga, desde que o movimento de rotação seja rápido.
Isso ele não pode admitir, pois teria que admitir a tese ptolomaica.
Desta forma, continua a admitir que os graves possuem uma força natural (peso) que
os atrai ou que os empurra para o centro da Terra. A gravidade age natural e constantemente,
e vai mais longe, afirmando que para que a força centrífuga a pudesse vencer, o corpo teria
que vencer e ultrapassar a si próprio. Isso equivale a dizer que, para Galileu, a gravidade
38
fundamenta e explica a faculdade que o corpo possui de receber e armazenar o movimento: é
o mesmo corpo que, por causa da mesma gravidade, recebe a impulsão linear de rotação
terrestre e tende para o centro da Terra.
Assim, para Galileu, o impetus é retilíneo, porém o movimento não, em decorrência
da gravidade. Com isso, não reconhece o movimento em linha reta, uma vez que o impetus se
dá num instante, porém nenhum movimento se dá no instante. A bala do canhão, o projétil, a
pedra, a flecha, devido ao impetus violento, partem em linha reta, mas nunca se movem em
linha reta.
Com tal raciocínio, pode-se afirmar que Galileu está próximo do conceito de inércia,
na medida em que afirma a impossibilidade do movimento retilíneo, ou seja, nenhum
movimento real se dá em linha reta, em virtude da gravidade, a não ser que esse movimento se
desse em um corpo privado da gravidade, a saber, um corpo abstrato.
O interessante é que Galileu não vai adiante, não ultrapassa essa linha tênue entre a
experiência real e a abstrata e mais uma vez o conceito lhe foge, porque afirmará
resolutamente o caráter natural do movimento para baixo dos corpos, sendo incapaz de
abstrair o peso. Acrescenta, ainda, que os corpos ao caírem aceleram e que esse movimento se
afrouxa quando numa ascendente; e que esses corpos só se movimentarão na horizontal se
estiverem submetidos a algum plano; fora deste, cairão. Desta queda, se formará um
movimento, composto do horizontal do plano e do naturalmente acelerado da queda, que
denominará movimento de projeção (semiparábola).
Vale relembrar que o limiar do princípio da inércia estava evidente porque nesta
época, aliás, no mundo arquimediano, ao qual Galileu pertencia, o plano horizontal, no qual o
movimento uniforme se dá eternamente, é geométrico infinito e não uma superfície esférica.
Isso equivale a dizer que qualquer corpo sendo colocado em movimento neste plano se
moverá eternamente, com um movimento retilíneo e uniforme, infinitamente. Mesmo assim,
Galileu não se deixou levar por isso, reafirmando que na falta do plano que sustenta os corpos
e os leva em linha reta, estes cairão, não mais se movendo retamente.
Hoje se sabe que os corpos estão submetidos à lei da gravidade, no entanto, há ainda
para Galileu uma confusão entre gravidade e massa. Para ele, a gravidade não é uma força que
age no corpo, é algo a que o corpo está submetido; algo inerente a ele, resultando daí que ele
não sofra qualquer variação, nem no tempo, nem no espaço.
25
25
Tal concepção advém da tese galilaica da uniformidade das leis, em que aplica aos céus os princípios
estabelecidos para a Terra. O corpo pesa o que pesa, sempre e em qualquer lugar e cai com a mesma velocidade,
esteja onde estiver, perto do centro da Terra ou nas estrelas.
39
No entanto, como já se ressaltou, Galileu conhece a física de Arquimedes, podendo,
assim, considerar isoladamente a realidade e desprezar a direção real que a gravidade tem na
Terra, utilizando-se da tese arquimediana, cuja lei da queda é uma aproximação da lei real,
mais complexa; e o seu mundo é partindo do mundo geométrico, uma primeira aproximação
do mundo físico e, por isso, não pode levar a abstração para mais além, porque a gravidade é
uma propriedade constitutiva e inseparável do corpo físico. Por isso, pode-se dizer que a física
de Galileu é errônea, pois explica aquilo que é (gravidade), por aquilo que não é (massa).
Enfim, Galileu chegou a tocar o conceito de inércia, no entanto a tarefa coube a
Descartes, simplesmente porque para aquele o movimento retilíneo era impossível e essa
impossibilidade não era exterior aos corpos, ou seja, não podiam mover-se em linhas retas
pelos seus próprios pesos e não porque encontravam obstáculos. O movimento para baixo é
resultante de seus pesos e, se esses fossem suprimidos, os seus movimentos não seriam
recuperados, desapareceriam com o próprio ser físico do corpo. Eis o grande erro galilaico.
40
1.4 Descartes e a Ciência Moderna
Para a ciência moderna, chegar à conceituação do princípio de inércia era um marco
decisivo e fundamental para que as reflexões acerca do movimento tivessem um eixo comum,
pois, até então, as conjecturas eram de toda ordem, faltando um ponto de convergência que a
pudesse fazer erigi-la.
De acordo com os historiadores da ciência, apesar de René Descartes
26
(1596 –
1650) ter conceituado inércia, sua física foi um fracasso total, pois estabelecia uma física
matemática, pom sem matemática.
A formulação do conceito também é resultado da busca incessante de uma resposta
para explicar a queda dos corpos. Viu-se todo o trabalho de Galileu que, em 1604, já a
estabelecia como a primeira lei da física.
O trabalho de Descartes nesta área inicia-se em 1618, quando Isaak Beeckman
27
,
físico, nos primeiros contatos com ele, percebe os seus dons extraordinários e pede-lhe para
resolver o problema da queda dos corpos.
Evidentemente que Descartes, conhecedor dos problemas da física nascente, não
trabalhou sozinho, pois o próprio Beeckman teve um papel preponderante, na medida em que
já conhecia que a Terra exercia uma força atrativa nos corpos e por isto estes caíam, bem
como, neste cair, aumentavam de velocidade simplesmente porque, a cada instante da queda,
os corpos tinham novas atrações e conservavam as anteriores, resultando, assim, num
aumento da velocidade.
Assim, a contribuição de Beeckman para a conceituação de inércia foi
imprescindível e não seria correto atribuir somente a Descartes tal façanha, pois os
conhecimentos de Beeckman sobre a física setecentista eram formidáveis e, já em 1613, tinha
formulado a lei de conservação do movimento, ou seja, o que uma vez está posto em
movimento permanece em movimento eternamente. Tese a que Galileu também havia aderido
ao realizar o experimento com as bolas em planos no declive, no aclive e na horizontal.
Porém, apelou a Descartes para resolver o problema de integração que não foi capaz de fazer.
26
Filósofo francês cujo nome latino era Cartesius (daí seu pensamento ser conhecido como cartesiano), é
considerado o precursor do racionalismo. Em 1628, enquanto morava na Holanda dedicou-se à composição de
uma obra que deveria abarcar o conjunto da física, intitulado Tratado do Mundo e da Luz. Em 1634, quando este
trabalho ficou pronto para impressão, Descartes renuncia à publicação do mesmo, após tomar conhecimento da
condenação de Galileu, motivada por uma tese a que ele também havia aderido: o movimento da Terra.
27
Por volta de 1618 Descartes ingressa na carreira militar indo para os Países Baixos, onde estabelece forte
amizade com Isaak Beeckman, médico e estudioso da física matemática, que em muito influenciou o
desenvolvimento do pensamento racional cartesiano.
41
O problema da queda dos corpos Beeckman domina perfeitamente no campo da
física, porém encontrar uma fórmula matemática para o cálculo da velocidade e a trajetória
que os graves percorrem, isso ele pedirá a Descartes.
Descartes antecede as conclusões finais do princípio da inércia, aprimorando ainda
mais a matematização do mundo. Com seu método peculiar e fiel a ele, inicia sua hipótese de
existência de um espaço fundamental de base, ou seja, um espaço ideal e matemático, no qual
seria possível tirar conclusões compatíveis com as novas descobertas e, assim, reconstrói o
mundo com suas próprias idéias.
Partindo dos pressupostos propostos por Beeckman, porém a todo momento
esquecendo-se daqueles e estabelecendo os seus, Descartes parte para a resolução do
problema da queda dos corpos.
Isaak Beeckman, como já foi apontado, adere ao pensamento de Gilbert e Kepler no
que tange à atração dos corpos pela Terra, ou seja, os corpos caem porque são atraídos por ela
e na queda eles se aceleram porque são, a cada instante do movimento, atraídos de novo pela
Terra, e estas novas atrações conferem-lhes, a cada novo instante, um novo grau de
movimento, enquanto os movimentos de que estavam já animados permanecem, ou seja, a
velocidade aumenta na proporção dos espaços percorridos. Está evidente a ação da gravidade,
em Beeckman, na geração de aceleração.
Disto conclui-se que, para ele, está certa a não necessidade do impetus, mostrando-
se, inclusive, irrelevante para compreender o movimento de queda livre; porém como
solicitou a Descartes para solucioná-lo, coube a este a formulação do princípio de inércia.
Nas palavras de Koyrè (1986), Descartes ao iniciar os seus cálculos, isto é, medir a
distância percorrida e o tempo empregado na queda dos corpos, cometerá um grande erro,
chegando a uma resposta inexata, que Beeckman não percebeu.
Primeiramente, a maneira como Descartes concebe o movimento é diferente da de
Beeckman, pois entende a queda dos corpos como um movimento que tem um fim natural, ou
seja, a Terra. Entretanto, ao abordar a queda livre dos corpos, utiliza-se do mesmo expediente
de Beeckman, de que os corpos, ao serem atraídos pela Terra, percorrem um espaço e que na
medida em que vão desenvolvendo esse movimento recebem sempre novas trações, e
conseqüentemente aumentam de velocidade até atingirem o chão. O movimento da queda é,
portanto, um movimento violento. Esse raciocínio é suficiente para resolver o problema
colocado e calcular o tempo da queda.
A solução apresentada por Beeckman, por meio de seus cálculos, é correta, a saber:
os espaços percorridos são proporcionais aos quadrados dos tempos. Teoria que Galileu já
42
havia comprovado, em Pisa, denominando de lei matemática da queda dos corpos. Essa lei
mostra que, após intervalos Δt de tempos iguais, a bola percorre sucessivamente distâncias
(acumuladas) 1d, 4d, 9d, 16d etc., isto é, a bola desce após um tempo 1Δt uma distância 1
2
d,
após 2Δt uma distância acumulada 2
2
d, após 3Δt uma distância acumulada 3
2
d, e assim por
diante. Porém, esta não foi a solução proposta por Descartes, que o fez por meio da pirâmide,
ou seja, admitindo a força tratora da Terra e a sua conservação, essas seriam somadas e a cada
instante haveria uma variação de velocidade, sempre crescente em forma de cubos e não como
quadrados.
Por ser um matemático, um geômetra e não físico, Descartes não se preocupa com
essa possibilidade do crescimento da força atrativa, apenas trata de estabelecer uma relação
entre as duas séries de grandezas variáveis, fugindo dos princípios estabelecidos por
Beeckman e ao mesmo tempo solucionando a questão erroneamente; mais precisamente, parte
da idéia da queda dos corpos acabada, ou seja, de forma parada, apenas atendo-se à trajetória
dos corpos, eliminando o tempo. O que para Beeckman representava o tempo transcorrido,
para Descartes era a trajetória. Restava, assim, o cálculo deste trajeto, ou melhor, determinar a
velocidade em cada ponto dele.
Dessas acepções, pode-se ressaltar que aqui está a interpretação errônea de
Descartes, na medida em que, para Beeckman, esse trajeto era o espaço percorrido, enquanto
para o primeiro referia-se ao movimento do corpo, isto é, soma de velocidades realizadas. O
erro está em conceber o movimento uniformemente acelerado como um movimento em que a
velocidade cresce proporcionalmente ao caminho percorrido e não proporcionalmente ao
tempo transcorrido.
A relação entre espaço e tempo, a geometrização em excesso e conseqüentemente a
negligência do aspecto físico são as principais causas dos erros cometidos por Descartes, que,
de fato, não compreendeu os princípios da física de Beeckman.
Segundo Koyrè (1986), os cálculos elaborados por Descartes, com seu rigor
matemático característico, são, porém, falhos do ponto de vista da física, inclusive resgatando
o conceito de impetus, pois substitui o princípio de conservação do movimento, que
Beeckman brilhantemente formulou, pelo conceito de força. Parte da idéia de que velocidade
é proporcional à força e que força constante produz velocidade constante. Parece haver aqui
um retrocesso no campo da filosofia natural.
Descartes parece ainda não estar preparado para algo tão específico e é por isso que
evita o princípio de conservação de Beeckman, pois este situa-se entre a matemática, a
43
geometria e a física no sentido temporal. Uma prova desta dificuldade é sua fuga do
movimento, um estado do móvel que pode ser passado para outro e, ao mesmo tempo em que
encarna a mudança, se mantém idêntico. Essa entidade paradoxal ainda lhe é demasiadamente
insólita e nova, por isso prefere algo mais denso e mais claro, a saber: a força motriz e a
trajetória.
O problema da queda dos corpos continua ainda sem definição unânime e só será
resolvido dez anos mais tarde quando o próprio Descartes, admitindo o princípio de
conservação de movimento, elaborado por Beeckman, após apresentar novos cálculos, adota-o
e curiosamente invoca o princípio divino. Afirma Descartes:
Después de haber examinado la naturaleza del movimiento, es preciso que
consideremos su causa. Puesto que puede ser considerada en dos formas,
iniciaremos su estudio por la primera y más universal de ellas, esto es, por la causa
general de todos los movimientos que son en el mundo. Consideremos, a
continuación, la otra, esto es, la razón de que cada parte de la materia adquiera un
movimiento que antes no tenía. En relación con la primera causa del movimiento,
me parece que es evidente que no es otra que Dios, quien en razón de su
Omnipotencia ha creado la materia con el movimiento y con el reposo y que ahora
conserva en el universo, mediante su concurso ordinario, tanto movimiento y reposo
como el producido al crearlo (...) También conocemos que hay perfección en Dios
no sólo en razón de la inmutabilidad de su naturaleza, sino también porque obra de
una forma que nunca cambia. De tal modo que no debemos suponer otros cambios
en sus obras, si no se le desea atribuir inconstancia, que los cambios que nosotros
apreciamos en el mundo, aquellos otros cambios que nosotros creemos, porque Dios
los ha revelado, que han acontecido y que sabemos que han de acontecer en la
naturaleza sin que quepa argüir que ello conlleva inconstancia alguna por parte del
Creador. De donde se sigue que Dios conserva en la materia la misma cantidad de
movimiento, puesto que ha movido de formas diversas las distintas partes de la
materia cuando las ha creado, y puesto que las mantiene a todas ellas de igual
manera y siguiendo incesantemente las mismas leyes que ha hecho observar en su
creación (DESCARTES, 1995, pp.96 e 97).
Como Descartes tem sua própria cosmologia e partindo de sua concepção sobre os
objetos reais e a realidade, cria uma nova imagem do universo. Para ele, o que é essencial na
matéria é extensão e movimento, assim, o universo é uma entidade extensa e infinita, e
conseqüentemente é pleno, não vazio; pois o vácuo não existe. No que se refere a esta
extensão do mundo afirmou:
(...) la materia extensa que compone el universo no tiene límites, puesto que,
cualquiera que fuera la parte en la que deseemos fingir estos límites, aún podemos
imaginar un más allá de los espacios indefinidamente extensos, que nosotros no solo
imaginamos, sino que concebimos ser en efecto tales como los imaginamos; de
suerte que contienen un cuerpo indefinidamente extenso, porque la idea de la
extensión que nosotros concebimos en un espacio, cualquiera que sea, es la
verdadera idea que debemos tener del cuerpo (DESCARTES, 1995, pp.85 e 86).
44
Tendo como base esses pressupostos, Descartes estabelece seu postulado, a saber:
Deus quando criou o universo de extensão infinita lhe conferiu também um movimento. A
quantidade de movimento total criada é imutável não podendo aumentar nem diminuir,
porém, localmente o movimento de um corpo pode ser alterado pela troca com outro e
enquanto um deles perde movimento o outro ganha a mesma quantidade. Com este
pensamento Descartes estabelece a terceira lei de natureza afirmando que:
(...) si un cuerpo que se mueve y que alcanza a otro cuerpo tiene menos fuerza para
continuar moviéndose en línea recta de la que este otro cuerpo tiene para resistir al
primero, pierde la determinación de su movimiento... sin perder nada de su
movimiento; pero si tiene más fuerza, mueve este otro cuerpo y pierde tanto
movimiento como transmite al otro. Así vemos que un cuerpo duro que nosotros
hemos lanzado contra otro, que es más grande y más duro y está en reposo, retorna
hacia el mismo punto de donde procede y no pierde nada de su movimiento; ahora
bien, si el cuerpo con el que choca es blando, entonces se detiene porque le
transfiere su movimiento. Las causas particulares de los cambios que acontecen a los
cuerpos están todas comprendidas en esta regla, al menos aquellas causas que son
corporales, pues no cuestiono en este momento si los ángeles o los pensamientos de
los hombres tienen la fuerza de mover los cuerpos; ésta es una cuestión que reservo
para su estudio en un tratado que espero construir sobre el hombre (DESCARTES,
1995, pp.101 e 102).
Também afirmava que cada corpo permanece em seu estado de movimento retilíneo –
que é a forma geométrica mais simples, criada por Deus ao dar partida ao movimento geral –
permanecendo neste estado até que o corpo seja afetado por alguma força externa:
De acuerdo con la segunda ley de la naturaleza, cada parte de la materia,
aisladamente considerada, no tiende a seguir su movimiento trazando líneas curvas,
sino seguiendo líneas rectas, aunque varias de sus partes sean frecuentemente
obligadas a desviarse, por que encuentran otras en su camino, y aunque cuando un
cuerpo se mueva, siempre se forme un círculo o un anillo de toda la materia que es
movida a la vez. Esta regla, como la precedente, depende de que Dios es inmutable y
de que conserva el movimiento en la materia en virtud de una operación muy simple,
pues no conserva el movimiento tal y como ha podido conservarlo en algún
momento anterior, sino como precisamente lo hace en el mismo instante que lo
conserva. Y aunque sea verdad que el movimiento no se produce en un instante, sin
embargo es evidente que todo cuerpo que se mueve está determinado a moverse
siguiendo la línea recta y no una curva... (DESCARTES, 1995, pp.100 e 101).
Assim, entende-se que para Descartes o mundo passa a ser geometria generalizada e
o movimento uma translação geométrica. O tempo seria uma dimensão geométrica da mesma
natureza que o espaço.
Embora Descartes, por sua concepção peculiar da cosmologia, crie uma
impossibilidade, pois o movimento retilíneo e uniforme só existe no vácuo, pode-se atribuir-
lhe o título de formulador final do Princípio da Inércia, porque sobre suas idéias emergirá o
estabelecimento do contexto teórico moderno das ciências.
45
1.5 Descartes e o princípio da inércia
A solução final do Princípio de Inércia, que já poderia ter ocorrido em anos
anteriores, não foi possível porque tanto Descartes como Beeckman não vêem diferenças
entre espaço e tempo, quando do cálculo de seus estudos. Se Beeckman aceita a solução
cartesiana, a saber, que a velocidade é proporcional ao espaço percorrido, e ele entendia
velocidade proporcional ao tempo percorrido, é evidente que entende as duas soluções como
equivalentes. Isso é explicável por tratar-se de Beeckman, um excelente físico, porém um
matemático mediano, justamente o inverso de Descartes.
Alguns anos mais tarde, Descartes teve uma nova oportunidade para rever seus
conceitos, pois o mesmo pedido feito por Beeckman desta vez foi solicitado pelo amigo
Mersenne
28
, e Descartes, nas palavras de Koyrè (1986), novamente cometeu os mesmos erros:
a questão do impetus, a velocidade do corpo em função do espaço percorrido e não do tempo,
a dificuldade de precisão de conceitos como mover-se eternamente, ou com a mesma
velocidade, isto é, há ainda muitas arestas a serem aparadas. Por isso, segundo outros
especialistas do período, nem Beeckman e nem Descartes formularam o Princípio da Inércia,
até porque o conceito de impetus, quanto ao aumento e conservação do movimento, é
recuperado com convicção por Descartes a Mersenne.
Exemplificando melhor como Descartes comete esse erro, ou seja, passar do tempo
para o espaço e do físico para o geométrico, pode-se afirmar que ele vê o surgimento dos
impetus, um após o outro, somando-se sucessivamente em momentos específicos quando
refere-se ao mecanismo físico (real), porém ao tratar-se do estudo matemático do movimento,
interessantemente substitui o tempo pelo espaço, ou seja, o tempo transcorrido pelo espaço
vencido.
Os cálculos de Descartes a Mersenne, que de início não os compreende muito bem,
mostram o aumento da velocidade pelo acúmulo dos impetus como já apontado
anteriormente, ou seja, um corpo partindo de A terá sua velocidade aumentada na medida em
que, durante a trajetória de sua queda, receberá a cada instante infinitamente pequenos novos
impetus, que somados aos já adquiridos só o farão aumentar de velocidade até a queda final.
28
Marin Mersenne (1588 – 1648) - matemático, teórico musical, padre, teólogo e filósofo francês. Teve papel
fundamental no século XVII na divulgação das novas descobertas que se faziam por toda a Europa. Mersenne
era o centro da divulgação científica, correspondendo-se com os maiores cientistas seus contemporâneos, como
Descartes, Hobbes, Galileu, Fermat, Pascal e Torricelli. Organizava encontros entre estes cientistas e viajava
com freqüência pela Europa para se encontrar com alguns deles levando correspondências. Este círculo alargado
de cientistas europeus é por vezes designado por Academia de Mersenne. Uma precursora da Académie des
Sciences, fundada poucos anos após o seu falecimento.
46
Com o exemplo acima citado, fica evidente que as concepções de Descartes
recuperam o pensamento dos teóricos do impetus, não há diferenças, a gravidade age nos
corpos e os faz cair. Porém, de forma sutil, afirma que um corpo ao iniciar o movimento
continuará a mover-se por si próprio e, se não for detido por uma força exterior, continuará
movendo-se eternamente no vazio. Estamos bem próximos do Princípio da Inércia.
Isso ocorrerá especificamente por volta de 1630, quando Descartes, de maneira
profunda e radical, promove uma revolução em seu próprio pensamento. Mudando
drasticamente a maneira de encarar os fatos, suas meditações sobre o próprio pensamento
humano, a reflexão metódica, o fizeram reconstruir o mundo físico e a física sob a luz da
razão e não da matéria.
Tal revolução no pensamento o afastará de tentar dar uma fórmula para o problema
da queda dos corpos, não mais procurará estabelecer uma lei, pois sua física não mais contém
fórmulas matematicamente expremíveis, o que o afasta da ciência nascente. Porém, lhe
permitirá, nas palavras de Alexandre Koyrè:
(...) captar, e apresentar-nos, com uma clareza insuperável, o novo conceito de
movimento, fundamento da ciência nova; permite-lhe determinar a estrutura e a
natureza ontológica daquele; permite-lhe exprimir, com uma perfeita clareza, tudo
aquilo que era apenas obscuramente pressentido e que estava implicitamente contido
no pensamento de um Beeckman e de um Galileu – tudo o que tivemos de explicitar
no decurso do nosso estudo; permite-lhe, enfim, formular o princípio de inércia;
conquistas que colocam o Descartes sábio no mesmo plano do Descartes filósofo;
isto é, no primeiro plano (KOYRÈ, 1986, p.159).
O fato de sua física ser fracassada, pois propunha uma física matemática sem
matemática, que inclusive o afasta dos ideais da revolução científica do século XVII, explica-
se porque embora Descartes afirmasse a importância desta e mesmo querendo que os
raciocínios matemáticos penetrassem toda sua física, isso não ocorreu. Afirmava que o
estatuto da Matemática é singular, pois não está nem no nível da Metafísica, base da ciência e
fornecedora dos seus princípios, nem no nível das demais ciências, que pelo pensamento
reconstroem as causas, explicando seus efeitos.
A matemática, para Descartes, faz parte da física, pois, como ciência da extensão,
condiciona diretamente o conhecimento das coisas sensíveis. Isso significa que é por ela, por
ser modelo de dedução rigorosa, que se inicia o exercício do método, porque toma para o
objeto o que há de mais simples nas coisas, de mais acessível nelas, as idéias claras e
distintas; tornando-se um meio, um exercício, para chegar ao que tanto almejava, a relação
desta com sua física.
47
A física cartesiana se propõe a elucidar as coisas deste mundo, que são matéria e
movimento, explicitando a distinção entre o corpo e a alma.
Por matéria, entende uma extensão compacta, não qualificada que, por causa do
movimento, pode ser modificada pela, como ele denomina, teoria da comunicação dos
movimentos, ou seja, choque dos corpos. Nesta perspectiva entende o céu e a Terra como
tendo a mesma matéria, por isso afirmava que:
(...) no es difícil inferir de todo esto que la tierra y los cielos están formados de una
misma materia; que, aunque existiera una infinidad de mundos, estarían hechos de
esta misma materia. De ello se sigue que no pueden existir varios mundos, a causa
de que concebimos manifiestamente que la materia, cuya naturaleza consiste solo en
que es una cosa extensa, ocupa ahora todos los espacios imaginables en que esos
mundos podrían existir y, por otra parte, no podríamos descubrir en nosotros idea de
alguna otra materia (DESCARTES, 1995, p.86).
Em decorrência disto, entende o movimento como o transporte de uma parte da
matéria de um corpo para outro, na medida em que se chocam. Esse movimento é entendido
por Descartes, em seu uso comum, como a ação pela qual um corpo passa de um lugar para
outro. Porém, no que se refere ao movimento propriamente dito, numa concepção específica
afirmava:
(...) el movimiento, diremos, con el fin de atribuirle una naturaleza determinada, que
es la translación de una parte de la materia o de un cuerpo de la vecindad de los que
contactan inmediatamente con él y que consideramos como en reposo a la vecindad
de otros. Entiendo por un cuerpo o bien por una parte de la materia todo lo que es
transportado a la vez, aunque esté compuesto de partes diversas que emplean su
agitación para producir otros movimientos. Y digo que es la translación y no digo la
acción o la fuerza que transporta con el fin de mostrar que el movimiento siempre
está en el móvil y no en aquel que mueve, pues me parece que no existe costumbre
de distinguir con cuidado estas dos cosas. Además, entiendo que es una propiedad
del móvil y no una substancia, de igual modo que la figura es una propiedad de la
cosa que tiene figura y el reposo lo es de la cosa que está en reposo (DESCARTES,
1995, pp.87 e 88).
Como já afirmado anteriormente, não há vazio na natureza para Descartes; o que há,
portanto, são os deslocamentos das partes da matéria que vão substituindo umas as outras nos
seus contatos. Assim, o movimento só seria possível se houvesse uma fragmentação da
matéria ao infinito, ocorrendo uma troca de partes bem pequenas da matéria. Na realidade,
para Descartes, existem no mundo turbilhões de matérias, tudo criado por Deus que é perfeito
e imutável.
Da imutabilidade divina, Descartes ainda entende que qualquer alteração do estado
de movimento de um corpo precisa de uma causa e que todo corpo que está em movimento
48
tende a continuar a fazê-lo de forma retilínea, só mudando de direção se chocar-se com um
mais forte, não perdendo nada de sua quantidade de movimento, e se chocar-se com um mais
fraco, perde tanto movimento quanto transfere ao outro. Eis o início da formulação do
Princípio da Inércia, que Descartes estabelece como a primeira lei da natureza. Dizia que:
(...) cada cosa en particular se mantiene en el mismo estado en tanto que es posible y
sólo modifica en razón del encuentro con otras causas exteriores. Así vemos todos
los días que cuando una cierta parte de esta materia es cuadrada, permanece con esta
forma si nada acontecer que modifique su figura; de igual modo, apreciamos que si
está en reposo, no comienza a moverse por sí misma. Pero que cuando ha
comenzado a moverse, no tenemos alguna razón para pensar que deba jamás cesar
de moverse con la misma fuerza mientras no encuentre algo que retarde o que frene
su movimiento. De modo que, si un cuerpo ha comenzado a moverse, debemos
concluir que continuará moviéndose y que jamás se detendrá por sí mismo. Pero,
puesto que habitamos una tierra cuya constitución es tal que todos los movimientos
que se hacen en torno nuestro cesan en poco tiempo y frecuentemente cesan en
razón de causas que están ocultas a nuestros sentidos, hemos juzgado desde el inicio
da nuestra vida que los movimientos que cesan de producirse por razones
desconocidas, se detienen por sí mismos; por ello tenemos en el presente una gran
inclinación a juzgar de parecido modo acerca de todos los otros movimientos que
son el mundo, a saber, que naturalmente cesan por sí mismos o que naturalmente
tienden al reposo; juicio que hacemos, porque nos parece que hemos hecho la
experiencia en circunstancias diversas. Y sin embargo, no es sino un falso prejuicio
que repugna manifiestamente a las leyes de la naturaleza, pues el reposo es contrario
al movimiento y nada en razón del instinto propio de su naturaleza tiende en contra
suya o bien tiende a la destrucción de sí mismo (DESCARTES, 1995, pp. 98 e 99).
Esse princípio, de que os corpos conservavam o movimento, era empregado por
vários outros filósofos para muitas idéias, inclusive para o repouso. Porém, a novidade da
física cartesiana está no fato de que o movimento é entendido como movimento estado, ou
seja, mantém-se por si só, prosseguindo indefinidamente em linha reta no espaço infinito
geometrizado. O Princípio da Inércia está criado e foi Descartes que o fez.
Vemos la prueba todos los días de esta primera regla cuantas veces lanzamos cosas a
los lejos. No existe otra razón para que continúen moviéndose estos cuerpos, cuando
han abandonado la mano de quien los ha lanzado, sino que, de acuerdo con las leyes
de la naturaleza, todos los cuerpos que se mueven continúen moviéndose hasta que
su movimiento sea detenido por algunos otros cuerpos… Y es evidente que el aire y
los otros cuerpos líquidos entre los cuales apreciamos que se mueven estos cuerpos
así propulsados, disminuyen poco a poco la velocidad de su movimiento; es más,
nuestra misma mano nos permite sentir la resistencia del aire si procedemos a
sacudir con bastante velocidad un abanico que estuviera abierto; asimismo, no hay
cuerpo fluido sobre la tierra que no oponga resistencia, aún más manifiestamente,
que el aire a los movimientos de los otros cuerpos (DESCARTES, 1995, p.99).
Temos neste momento uma ruptura com a física aristotélica e medieval que
entendiam o movimento como processo, ou seja, necessitando de uma causa constante.
Ruptura em excesso, pois a concepção cartesiana de movimento excede a dos filósofos e
49
também a dos físicos, o movimento a que ele se referia era o movimento dos geômetras, seus
seres eram geométricos, portanto, sem velocidade e sem tempo. Geometrizar em excesso, ou
seja, dissolver o mundo real, eliminar o tempo e a velocidade, conservando apenas o espaço,
conduziu Descartes ao intemporal que não lhe permitiu corretamente o cálculo da queda dos
corpos.
O problema cartesiano, não conseguir dar conta da queda dos corpos, está no fato de
não admitir o vazio. Vale ressaltar a crítica que fez ao uso indevido do termo vazio. Dizia:
En relación con el vacío, en el sentido en el que los filósofos toman esta palabra, a
saber, entendiendo por tal un espacio en el que no hay substancia, es evidente que
no puede darse en el universo, ya que la extensión del espacio o del lugar interior no
difiere de la extensión del cuerpo. Y como, a partir de que un cuerpo es extenso en
longitud, anchura y profundidad, tenemos razón para concluir que es substancia, ya
que concebimos que no es posible que lo que no es tenga extensión, debemos
concluir lo mismo del espacio que se supone vacío: a saber, que dado que en él hay
extensión, necesariamente hay en él substancia (DESCARTES, 1995, p.82).
Como Beeckman e o próprio Galileu, Descartes entende que a lei da queda dos corpos
é uma lei abstrata, que necessitava rigor, para ser válida, na suposição do vazio. Porém,
elaborara sua tese partindo do pressuposto de que na natureza o vazio não existe, aliás é
impossível, pois compreende toda a Terra preenchida de matéria e de movimento, fazendo
com que os corpos sejam impelidos a ela por uma grande nuvem de partículas que giram em
turbilhões à volta do globo. Assim, para Descartes, o peso do corpo também não é
responsável pela sua atração à Terra, mas sim o movimento ora referido.
Vale ressaltar, ainda, que em função desta concepção do movimento para Descartes,
o movimento de queda dos corpos também não será uniforme, haja vista que a aceleração ou a
lentidão destes dependerá do tamanho dos graves e principalmente da violência do choque
que ocorre entre eles. Com isso, Descartes parece desconhecer a própria lei da relatividade do
movimento e se distingue completamente da lei da queda dos corpos, anteriormente
formulada por Galileu.
O problema da queda dos corpos novamente volta à tona. Quem tem razão? Os
cálculos de quem estão corretos? Galileu, ao afirmar que os corpos caem com a mesma
velocidade ou Descartes, que considera os movimentos independentemente? A solução parece
caminhar mesmo para a abstração, pois naquele mundo setecentista havia ainda inúmeras
dúvidas e divergências que parecem ser razoáveis para uma ciência ainda tão incipiente.
Os problemas do vazio e da resistência do ar impedem que se dêem respostas
matemáticas definitivas. É notório que Descartes conhece os princípios da física, a força da
gravidade, o movimento da Terra, o peso, mas compreende também a complexidade do tema
50
e a infinidade de possibilidades e, por isso, recusa-se a dar uma resposta matemática, ou seja,
em forma de cálculos, para resolver o problema da queda dos corpos.
Apesar de para alguns Descartes ser o formulador do princípio fundamental da
ciência moderna, o Princípio da Inércia, mais uma vez não deu conta de um problema físico,
pois, embora identificando a extensão e a matéria, sua física foi substituída pela geometria, ou
seja, uma abstração em excesso, e isso corroborou, além do problema do peso, para a
infelicidade de sua física.
Pode-se afirmar, ainda, que sobre Descartes paira a responsabilidade do
estabelecimento do contexto teórico moderno das ciências, porque é com base neste mundo
cartesiano que as leis da mecânica são formuladas. Estas leis são válidas em todo referencial
inercial e o mundo de Descartes é infinitamente povoado por corpos animados de velocidade
retilínea e uniforme de tal modo que cada um constitui um referencial inercial, pelo fato de se
encontrarem em um estado de movimento inercial. A relatividade de Giordano Bruno e
Galileu é levada a um alto grau de sofisticação na formulação científica moderna pois, ao se
estabelecer que todos os sistemas inerciais são equivalentes para a descrição das leis da
Mecânica, reviveu-se a ontologia cartesiana do movimento: o repouso e o movimento são
estados de uma mesma entidade. Quanto à Dinâmica, é outra infelicidade cartesiana, pois,
eliminando o vazio de sua cosmologia, tentou interpretar o movimento curvilíneo dos planetas
por ações de contato, mediante a ação de turbilhões que arrastariam os corpos em suas
trajetórias.
Finalmente, seria oportuna uma observação sobre o fato de Descartes atribuir à
criação divina a existência de um mundo preenchido de corpos em perpétuos movimentos e
cuja quantidade de movimento total é constante em conformidade com a imutabilidade divina.
Ora, não é de se estranhar que, qualquer que seja sua origem, uma teoria hipotética é sempre
uma teoria hipotética. Porém, os ideais propostos pela nova ciência puseram fim àquele
cosmo ordenado, heterogêneo, esférico e finito de Aristóteles e da tradição medieval, fazendo
emergir o universo homogêneo, sem forma e infinito de Bruno, Kepler, Galileu e Descartes, o
mundo do sistema solar com o Sol ao centro e os planetas ao seu redor, sobre o qual
trabalharão os cientistas do século XVIII.
51
Capítulo II
Filosofia e Ciência
2. Thomas Hobbes: mecanicismo e ciência
Por ter vivido quase todo o século XVII, Hobbes nasceu em 1588 e faleceu somente
em 1679, século este considerado o da revolução científica, pode-se afirmar que ele não
passou incólume a um período de grandes transformações.
A filosofia setecentista, de Descartes a Kant, derivou da matemática grande parte de
seu conceito da natureza do conhecimento humano e acredita-se que Hobbes não foi exceção.
Considerado um filósofo de difícil classificação, pois era empirista como Locke, Berkeley e
Hume, mas ao mesmo tempo um admirador do método matemático. Em sua biografia, escrita
por um amigo, consta que durante uma de suas viagens para a França, já com mais de 35 anos
de idade, Hobbes foi atraído pelo método demonstrativo de Euclides, o que lhe faria mudar
decisivamente a forma de encarar o conhecimento. As verdades a priori da geometria
euclidiana e a nova ciência natural de Galilei foram importantes para o pensamento
hobbesiano, bem como serviriam de modelo para sua filosofia.
Neste sentido, o mérito de Hobbes é grande, pois, na Inglaterra, o empirismo
prevalecia, sendo pouco influenciado pelas matemáticas, enquanto na Europa tem-se um
exagero ao considerar a matemática como um conhecimento independente de experiência,
chegando a ponto de reduzir ao mínimo o papel desempenhado pela percepção. Eis o mérito
de Hobbes, na medida em que está propenso às matemáticas, ao pensamento puro, porém não
desprezando o papel das sensações neste processo do conhecer. Tal concepção fez com que
fosse bem acolhido por muitos dos principais matemáticos e homens de ciência do seu tempo.
Sua filosofia política sofrerá influência deste momento, isto é, da ciência nascente,
das concepções da geometria e das próprias ambições políticas dos ingleses divididos entre
liberais e monarquistas.
O lugar de destaque que Hobbes dá à geometria, em sua concepção de ciência,
advém do fato de identificá-la como um conhecimento de base sólida e coerente, pretendendo
dar às suas teorias um estatuto infalível, na medida em que os princípios básicos da geometria
podem ser demonstrados por regras certas e infalíveis. Esta é a novidade que o filósofo inglês
introduz no campo da política: partindo de um método bom e ordenado como o é o
geométrico, tentará modelar as regras da sociedade e do Estado por uma demonstração lógica
e insofismável, garantindo, assim, sua eficácia.
52
Thomas Hobbes considerava a geometria uma ciência autêntica. O raciocínio era
para ele da natureza do cálculo e deveria partir de definições que não fossem contraditórias
para chegar a demonstrações verdadeiras. A demonstração não constitui para Hobbes um
método exclusivamente geométrico, mas evidencia uma possibilidade grande de
previsibilidade na medida em que se faz uma aplicação correta das regras dos silogismos.
Afirmava:
Quando alguém raciocina, nada mais faz do que conceber uma soma total, a partir da
adição de parcelas, ou conceber um resto a partir da subtração de uma soma por
outra; o que (se for feito com palavras) é conceber da conseqüência dos nomes de
todas as partes para o nome da totalidade, ou dos nomes da totalidade e de uma
parte, para o nome da outra parte (HOBBES, 1974, p.31).
Tal concepção de raciocínio aplicava-se não somente à lógica ou à geometria, mas a
todas as áreas do conhecimento, até mesmo a política e o estabelecimento de leis; pois para
Hobbes a arte de raciocinar é mais envolvente do que a mera seqüência das operações
geométricas. Assim, sempre que o assunto a ser estudado permitisse relações, comparações e
conclusões, seria permitido o raciocínio, porque este poderia ser submetido à razão, que em
Hobbes são as operações que possibilitam reproduzir o pensamento, como define a seguir:
(...) podemos definir (isto é, determinar) que coisa é significada pela palavra razão,
quando a contamos entre as faculdades do espírito. Pois razão, neste sentido, nada
mais é do que o cálculo (isto é, adição e subtração) das conseqüências de nomes
gerais para marcar e significar nossos pensamentos. Digo marcar quando calculamos
para nós próprios, e significar quando demonstramos ou aprovamos nossos cálculos
para os outros homens (HOBBES, 1974, p.31).
Com isso, o método lógico-filosófico em Hobbes serve tanto para a investigação de
algo como para a sua demonstração. Aquilo que não puder ser demonstrado requer ao menos
uma explicação.
O encanto hobbesiano pela geometria euclidiana é percebido quando a utiliza como
paradigma para suas argumentações, respeitando-se os respectivos campos de atuação do
saber; como por exemplo a questão dos sentidos, da sensação, que é para Hobbes a origem do
processo do conhecer. É evidente que o seu interesse maior pela geometria de Euclides está
no fato desta possuir um método que julga irrefutável e Hobbes o identifica como um modelo
a ser seguido.
O que Thomas Hobbes não deixa claro, quando do uso da geometria, é o fato de não
identificar que forma epistemológica priorizará, ou seja, se termos básicos evidentes, se
verdades teóricas, se convenções lingüísticas ou mesmo se evidências do senso comum. O
53
importante é saber que Hobbes verá na geometria euclidiana uma possibilidade de, por meio
do método que esta utiliza, servir de inspiração para dar à ciência política o mesmo estatuto
apodítico daquela.
Atribuindo à geometria e à filosofia natural os benefícios que a sociedade havia
desenvolvido, Hobbes será levado a fazer de sua filosofia política um conhecimento que seja
tão extraordinário quanto aqueles, ou seja, os que acolherem tais conhecimentos não
necessitarão de convencimentos. Sua filosofia política será isenta de qualquer relação com o
presente, o passado e o futuro; deverá ser recebida como as verdades daquelas ciências, a
saber, de forma natural pela racionalidade sem apelos às emoções. O ato de se ensinar a
ciência moral e política requererá a mesma naturalidade com que se ensinam as operações
aritméticas; ou seja, à luz natural da razão, fazer brotar o que de certa forma já está nos
indivíduos. Por isso, apresenta a Filosofia Política no mesmo patamar de outros
conhecimentos, afirmando:
(...) Pois do mesmo modo que os aritméticos ensinam a adicionar e a subtrair com
números, também os geômetras ensinam o mesmo com linhas, figuras (sólidas e
superficiais), ângulos, proporções, tempos, graus de velocidade, força, poder, e
outras coisas semelhantes. Os lógicos ensinam o mesmo com conseqüências de
palavras, somando juntos dois nomes para fazer uma afirmação, e duas afirmações
para fazer um silogismo, e muitos silogismos para fazer uma demonstração; e da
soma, ou conclusão de um silogismo, subtraem uma proposição para encontrar a
outra. Os escritores de política adicionam em conjunto pactos para descobrir os
deveres dos homens, e os juristas leis e fatos para descobrir o que é certo e errado
nas ações dos homens privados. Em suma, seja em que matéria for que houver lugar
para a adição e para a subtração, há também lugar para a razão, e onde aquelas não
tiverem o seu lugar, também a razão nada tem a fazer (HOBBES, 1974, p.31).
54
2.1 A concepção de movimento
A influência da Revolução Científica no pensamento hobbesiano pode ser percebida
em quase toda a obra De Corpore, na medida em que o filósofo inglês apresenta conteúdos
destinados aos temas de mesma ordem e relevância para a ciência nascente.
Embora Hobbes raramente seja considerado um teórico essencial da ciência
moderna, seus estudos, suas teorias, teses e experimentos de certa forma foram marcantes e
influentes para um mundo onde a ciência dava seus primeiros passos. Aliás, vale destacar que
Hobbes conseguiu dar conta do mundo material sem recorrer aos postulados teológicos, o que
para a época era uma novidade e dava autonomia à ciência.
O sistema filosófico de Hobbes, já imbuído deste espírito racionalista de seu tempo e
em seu caso particular, também materialista, se procede de forma que esses fundamentos
servirão de alicerces para o seu pensamento. Para o filósofo inglês, essas noções fundamentais
são as concepções de corpo e de movimento.
Para sustentar sua tese de que a realidade é composta de corpos em movimento,
Hobbes propõe-se a provar como um corpo em movimento age sobre outro.
O conceito de corpo é explicitado por Hobbes na parte II do De Corpore e é assim
definido:
Após o entendimento do que é o espaço imaginário, no qual supomos que nada
permanece sem nós, exceto todas aquelas coisas a serem destruídas que, por existir,
deixam imagens de si mesmas em nossas mentes; vamos agora supor que algumas
delas devem ser colocadas no mundo ou criadas novamente. É necessário, assim,
que esta nova criação ou reposição não preencha apenas algumas partes do espaço
mencionado anteriormente ou seja coincidente e coextensa com ele, mas também
que ele não tenha dependência de nosso pensamento. E isto é o que chamamos,
normalmente, por extensão, de corpo; não depende do nosso pensamento, dizemos
que ele subsiste de si próprio; como também existe, sem nós; e, por último, é
chamado de sujeito, pois ele é tão bem colocado e sujeitado ao espaço imaginário
que pode ser entendido pela razão, como também percebido pelos sentidos. A
definição, assim, de corpo, pode ser esta: um corpo é aquele que, não tendo
dependência de nosso pensamento, é coincidente e coextenso com algumas partes do
espaço (HOBBES, De Corpore, 1966, pp.101 e 102).
A partir da definição de corpo, Hobbes mostrará como um age sobre outro
provocando o movimento, definindo o papel de cada um nesse processo: “Assim, um corpo
quando avança sobre outro, e nele provoca movimento, chama-se agente e o outro no qual o movimento é assim
gerado chama-se paciente” (HOBBES, De Corpore, 1966, p.120)
.
Destes entrechoques de corpos, Hobbes definirá efeito como sendo o acidente
produzido no paciente, com isso caracterizará o movimento como sendo uma relação de
causalidade. As categorias de causalidade com as quais Hobbes trabalha são: causa eficiente e
55
causa material, que servem de fundamentos para suas teorias, como por exemplo: todas as
coisas que existem (corpos) se encontram em um estado cinético qualquer, ou seja, o estado
no qual um determinado corpo se encontra não advém de sua natureza específica, assim,
alguma força nele atuou como causa desse efeito.
Para exemplificar como se dá a transmissão do movimento, Hobbes parte da
concepção de que todos os seres eram corporais e como estes existiam sempre em movimento
eram sujeitos de todas as ações.
Para finalizar como se processa essa transmissão de movimento, Hobbes na III parte
do De Corpore, mais precisamente no capítulo XV, que denomina “Proporções dos
movimentos e das grandezas”, sugere que o leitor tenha em mãos os trabalhos de Euclides e
Arquimedes, pois não teria sentido refazer o que estes já haviam feito; porém dará sua
contribuição mesmo em não se tratando de algo novo.
Antes porém de realizar suas considerações acerca do movimento, Thomas Hobbes
resgata a definição de seis importantes conceitos para o melhor entendimento deste processo,
a saber: esforço, impetus, resistência, pressão, contra-pressão e força. O conceito de esforço
ou conatus nesta obra adquire uma característica bem peculiar. Entendido como uma
característica das paixões humanas em suas relações para a autopreservação, Hobbes dará
aqui uma conceituação que está relacionada aos problemas estudados na época, como por
exemplo: movimento, espaço e tempo e assim define:
Primeiro, defino esforço como sendo o movimento formado no menor espaço e no
menor tempo dados, ou seja, menor do que possa ser determinado por exposição ou
mensuração; ou seja, o movimento ocorre na duração de um ponto em uma
determinada fração de tempo (HOBBES, De Corpore, 1966, p.206).
O conceito de impetus é assim apresentado:
Segundo, defino impetus ou aceleração de um movimento como sendo a velocidade
de um corpo em movimento, mas considerado em todos os pontos do tempo pelo
qual ele se move. Neste sentido, impetus não é nada mais do que a quantidade ou
velocidade do esforço. Mas, considerado todo o tempo, ele é toda a velocidade com
a qual o corpo se move juntamente com todo o tempo e equivalente ao produto de
uma linha que representa o tempo, multiplicada por uma linha que representa a
média aritmética do impetus ou aceleração (HOBBES, De Corpore, 1966, p.207).
O conceito acima não apresenta novidades em relação ao já tratado anteriormente, na
medida em que o identifica a uma força que pode ser maior ou menor, que atuará nos corpos
fazendo-os acelerar, isto é, aumentar a velocidade; ou retardar; isto é, diminuir a velocidade.
56
O terceiro conceito exposto por Hobbes é a resistência, que é a atuação de um corpo
em sentido contrário ao movimento de outro.
Terceiro, defino resistência como o esforço de um corpo em movimento totalmente
ou em parte contrário ao esforço de outro corpo também em movimento, os quais se
tocam. Digo totalmente ao contrário, quando o esforço de dois corpos acontece na
mesma linha reta provenientes de extremos opostos, e em parte contrário, quando
dois corpos possuem o esforço em duas linhas, as quais procedem de pontos
extremos de uma linha reta que igualmente se encontram (HOBBES, De
Corpore,1966, p.211).
Os conceitos a seguir são decorrentes do anterior e são denominados por Hobbes
como pressão e contra-pressão. Neste sentido, e como ponto relevante, segue-se a citação:
Quarto, ocorre pressão quando dois corpos estão em movimento e um faz pressão
sobre o outro quando estes possuem esforços, fazendo com que, total ou
parcialmente, o outro corpo saia de seu local.
Quinto, se um corpo é pressionado e não totalmente removido, ou seja, reintegrado a
si mesmo, quando o corpo que o pressiona é retirado, as partes que são movidas
fazem, pela razão da construção interna do corpo pressionado, retornar cada qual
para o seu local (HOBBES, De Corpore,1966, p.211).
Para ilustrar os dois últimos conceitos Hobbes emprega o exemplo de elásticos
mostrando que quando são pressionados, esticados por outros corpos, estes, por terem
recebido uma força, modificam sua forma e tamanho; porém, quando se retira esse corpo que
faz a pressão, os elásticos se restauram e voltam à forma anterior.
Por fim, definirá a força como sendo:
(...) o ímpeto ou velocidade do movimento multiplicado por ele mesmo ou pela
grandeza do movimento, por meios onde o mesmo movimento funciona, mais ou
menos, em relação ao corpo o qual lhe oferece resistência (HOBBES, De
Corpore,1966, p.212).
Para confirmar a importância de Hobbes na atividade científica setecentista, os
conceitos expostos por ele refletem os principais temas tratados pelos cientistas e filósofos
seus contemporâneos. O rigor e a precisão com que busca suas definições asseguram sua
participação na nova ciência que começa a ser produzida.
As preocupações de Hobbes sobre o movimento são frutos destas reflexões que se
tornaram importantes para o desenvolvimento de todo seu trabalho. Com isso, após a
definição de conceitos que julga essenciais para a retomada das discussões acerca do
movimento, Hobbes o define como sendo a contínua privação de um local e a aquisição de
outro pelos corpos.
57
Esse movimento deve ser considerado em três tempos, a saber: o passado, o presente
e o futuro. Isso porque para onde quer que o corpo se mova, não é para um ponto qualquer
determinado, uma vez que esse movimento é constante, embora haja períodos de repouso,
quando um corpo permanece por algum tempo em um lugar do plano onde o movimento
ocorre; por isso a consideração em três tempos.
É por isso que, para Hobbes, o movimento pode ser mensurado através do tempo,
haja vista que um corpo que se move, resultado de uma força nele aplicada, adquire uma certa
velocidade que pode ser determinada pela linha do tempo, uma vez que percorre uma certa
distância. Com isso afirmava que os movimentos são equivalentes à velocidade, quando os
tempos e as distâncias são correspondentes:
(...) movimentos podem ser considerados equivalentes quando a velocidade de um
corpo em movimento comparada com toda parte de sua grandeza é equivalente à
velocidade de um outro corpo, da mesma forma correspondente em todas as partes
de sua grandeza. Por este motivo, pode-se perceber que movimentos equivalentes e
movimentos de igual velocidade não possuem o mesmo significado; quando dois
cavalos estão emparelhados, o movimento de ambos é maior do que o movimento de
cada um separadamente; mas, a velocidade de ambos é igual à velocidade de cada
um (HOBBES, De Corpore,1966, p.205).
Com tais definições e antes de ingressar especificamente no conceito de inércia,
resultado destas reflexões, Hobbes quer demonstrar que é por meio do movimento que sua
filosofia se sustentará, porque movimento transmite movimento, gerando nos corpos uma
cadeia constante e instantânea, pois um corpo em repouso move-se rapidamente ao ser por
outro tocado, independentemente da força de um e da resistência do outro.
58
2.2 Thomas Hobbes e o conceito de inércia
O conceito de inércia, apresentado no capítulo I desta tese como uma das grandes
descobertas da ciência nascente, pode ser identificado em Hobbes na seção II da obra De
Corpore, capítulo VIII, em que se percebem as mesmas questões debatidas por Galileu,
Descartes e outros.
O conceito de inércia no pensamento de Thomas Hobbes é resultado também de suas
reflexões acerca do movimento:
(...) quando um corpo está em repouso permanecerá neste estado, a não ser que
outro corpo o desloque. E uma vez que esteja em movimento, sempre estará em
movimento a não ser que haja outro corpo ao seu lado, que o detenha (HOBBES, De
Corpore,1966, p.115).
O conceito pode ser identificado também na obra Leviatã em que o autor afirma:
Nenhum homem duvida da verdade da seguinte afirmação: quando uma coisa está
imóvel, permanecerá imóvel para sempre, a menos que algo a agite. Mas não é tão
fácil aceitar esta outra, que quando uma coisa está em movimento, permanecerá
eternamente em movimento, a menos que algo a pare, muito embora a razão seja a
mesma, a saber, que nada pode mudar por si só (HOBBES, 1974, p.15).
É evidente que tais constatações são resultados do mecanicismo do século XVII, que
no caso de Hobbes servirá de fundamento para suas intenções.
Regressando às caracterizações acerca do movimento, o filósofo inglês demonstra
que quando um corpo é movido a partir do repouso, a causa inicial deste movimento foi o
movimento de algum outro corpo em contato com ele e o mesmo vale para que quando um
corpo estiver em movimento, sua velocidade será constante, a menos que seja atrapalhado por
um outro corpo.
O movimento é para Hobbes formado por vários aspectos, sendo o primeiro acerca
da divisibilidade. Quando o movimento é realizado por um corpo em linha reta, chamamos
indivisível, porque este é considerado um ponto. Quando se decompõe o movimento em
várias partes do corpo, ou seja, pensa-se em partes, denomina-se divisível.
O segundo aspecto é denominado diversidade de regulação do movimento em um
corpo, considerado indivisível. Algumas vezes uniforme, quando linhas equivalentes são
sempre correspondentes a tempos equivalentes, ou multiforme, quando o espaço é
correspondente a um tempo maior e a um tempo menor.
59
O terceiro aspecto é considerado pelo autor no que tange ao número de movimentos,
a saber: um deslocamento é causado por apenas um movimento e outros deslocamentos são
causados pela afluência de muitos movimentos.
Já o quarto aspecto apontado refere-se à posição do movimento, que pode ser
perpendicular, oblíquo e paralelo, sempre em referência à posição de um corpo em relação à
outra linha.
O quinto aspecto ainda é decorrente da posição do movimento em relação aos
corpos, que Hobbes chama de movimento dirigido (empurrado) e traçado (tracionado). O
primeiro refere-se ao movimento que faz o corpo mover-se para a frente. Já o movimento
traçado, refere-se ao movimento que o corpo faz quando é puxado por outro, seguindo-o.
Em sexto lugar apresenta o conceito de instante que se refere ao movimento aplicado
a um corpo já em movimento, ou seja, instante corresponde ao excesso de movimento no
próprio movimento.
Para Hobbes, em sétimo lugar, o movimento tanto pode ser realizado no vácuo, como
em meios pastosos e fluídos. Esse movimento pode ser simples ou composto. Será simples,
quando um corpo for constituído por partes e estas descreverem linhas equivalentes. Por fim,
será composto quando as linhas descritas não forem equivalentes. Por entender que o
movimento também se dá no vácuo, o conceito de inércia na filosofia hobbesiana será
possível, diferentemente de Descartes:
(...) Portanto, não há causa alguma do movimento num corpo além da de um corpo
contíguo em movimento. Pelo mesmo motivo, pode-se provar que tudo o que se
move o fará sempre pelo mesmo caminho e na mesma velocidade, a não ser que se
veja impedido por outro corpo contíguo e movido, e, em conseqüência, nenhum
corpo, nem em repouso nem por meio do vazio, pode gerar, extinguir ou diminuir o
movimento em outro corpo. Alguém escreveu que o que está em repouso opõe mais
resistência ao que se move que o que se move em sentido contrário, por considerar
que o repouso é mais contrário ao movimento que o movimento mesmo. E o disse
enganado pelo termo, porque os nomes repouso e movimento são contraditórios,
mas no que se refere à realidade, o que luta com o movimento é o movimento
contrário e não o repouso (HOBBES, De Corpore, 1966, p. 125).
Destes aspectos que formam o movimento, Thomas Hobbes afirmará ainda que todo
movimento tende em direção determinada pela força do ímpeto. Como o corpo já possuía um
movimento antes deste ímpeto, com a influência de novos ímpetos poderá mudar de direção,
porém, a tendência é esforçar-se para manter-se no mesmo movimento, a saber: se retilíneo,
retilíneo ou se em movimento circular, circular.
Já quando o movimento de um corpo for composto pela afluência de dois
movimentos, quando um deles cessar, o corpo seguirá o movimento do último; como por
60
exemplo quando um corpo se movimenta pela força de duas correntes de ar, se uma delas
parar, ele continuará se movendo na direção da corrente que permanece soprando.
Assim como outros pensadores do século XVII, Hobbes dará ao movimento um
sentido relativo, pois todo corpo se encontra em um estado cinético qualquer, que não deriva
de sua natureza específica, mas sim é resultado de alguma força que foi aplicada nele. Isso
significa que se estiver em repouso permanecerá desta forma se não receber um impetus para
movê-lo. O mesmo vale para que quando um corpo estiver em movimento permanecerá neste
estado, mesmo que encontre um outro em repouso; pois no primeiro toque este cederá.
Como para Hobbes todos os seres eram corporais e existiam sempre em movimento,
o repouso para ele nada significava. Afirmava que falta de movimento não causa falta de
movimento, o que está em movimento permanece neste estado e com a mesma velocidade até
que seja interrompido por uma força maior que atua em sentido contrário. Neste sentido, o
movimento também não faz qualquer alteração no estado do corpo que mantém sua natureza,
ou seja, um corpo é idêntico a si mesmo independentemente do estado cinético em que se
encontra em um dado momento.
Os méritos de Hobbes, em se tratando da ciência nascente, estão no fato de que usará
os conceitos ora surgidos como paradigmas para o desenvolvimento de sua filosofia que terá
propósitos específicos diferentes de um Galileu e outros cientistas do século XVII.
Pela lei da inércia, afirmava que o movimento se dá ao infinito, defendendo a tese de
que os corpos estão em movimento constante. Para isto apresenta aqui um experimento
mental, que não dependerá em nenhum grau de uma experiência bruta:
Todo esforço, seja forte ou fraco, se propaga no infinito; para seu movimento. Se,
porém, o primeiro esforço de um corpo for realizado no vácuo, ele sempre manterá a
mesma velocidade, já que ele não sofre nenhuma resistência estando no espaço vazio
e, conseqüentemente, (pelo artigo 7, capítulo 9), ele se manterá na mesma trajetória
e com a mesma velocidade (HOBBES, De Corpore, 1966, p.216).
Porém, o princípio da inércia também é apresentado por Hobbes no plano da
experiência concreta, como afirma a seguir:
Se este esforço acontecer em um espaço não vazio, o movimento provocado por ele
será infinito, uma vez que os obstáculos próximos a ele sempre forem removidos e
em um esforço futuro, novamente removidos os obstáculos próximos, o movimento
também será infinito. Portanto, a propagação do esforço, de uma parte do espaço
preenchido a outra, procede infinitamente, mesmo que encontre obstáculos a
qualquer instante e a qualquer distância, assim como o primeiro esforço remove o
que está próximo a ele, o segundo também o faz e, portanto, todo esforço, estando
ele no espaço vazio ou no espaço preenchido, percorre, não só qualquer distância,
61
não importando a sua grandeza, mas também qualquer tempo, não importando o
quão pequeno seja (HOBBES, De Corpore, 1966, pp.216 e 217).
Com tais afirmações temos em Hobbes que o princípio dos corpos é o movimento e
não o repouso, os corpos só operam porque são pressionados por outros que também estão em
movimento e atuam como forças contrárias. No entanto, essa afirmação levava a uma nova
teoria, a saber: qual a origem do movimento? Essa resposta Hobbes não tem de imediato e
por isso recorre, como tantos outros autores, à idéia do motor primeiro:
(...) aquele que de qualquer efeito que vê ocorrer infira a causa próxima e imediata
desse efeito, e depois a causa dessa causa, e mergulhe profundamente na
investigação das causas deverá finalmente concluir que necessariamente existe
(como até os filósofos pagãos confessavam) um primeiro motor. Isto é, uma
primeira e eterna causa de todas as coisas, que é o que os homens significam com o
nome de Deus (HOBBES, 1974, p.70).
A noção de movimento dos corpos abarcou, também, aqueles que aparentemente se
encontravam em repouso e, para Hobbes, os homens acreditavam estar parados porque “...
avaliam, não apenas os outros homens, mas todas as outras coisas por si mesmos e, porque depois do movimento
se acham sujeitos à dor e ao cansaço, pensam que todo o resto se cansa do movimento e procura naturalmente o
repouso, sem meditarem se não consiste em qualquer outro movimento este desejo de repouso que encontram em
si próprios” (HOBBES, 1974, p.15)
.
Assim, a idéia de movimento estendeu-se para todos os corpos: inclusive aos que não
tinham um movimento aparente, como os “corpos inanimados”. Como decorrência dessa
concepção, Hobbes passa a assumir que os corpos tinham uma espécie de movimento, não
perceptível ao olho, mas que era interno.
Para explicar a idéia de movimento, deve-se recorrer à origem de seus estudos,
principalmente à sua paixão pela física e às suas polêmicas com Descartes, no intuito de
tentar estabelecer uma definição para a sua filosofia.
62
2.3 Movimento, conhecimento e ciência
Pode-se afirmar que a filosofia hobbesiana é uma espécie de meio termo entre o
racionalismo e o empirismo; isso não significa que o autor tenha se deixado levar pelo
fundamento das duas correntes e que tenha tentado conciliá-las. Seu objetivo era outro, ou
seja, impor à razão e à experiência um modo particular de vida comum, isto é, relacionando-
as. É evidente que, ao percorrer essa época histórica, notar-se-á a presença decisiva da
orientação baconiana (empirismo) e do caminho proposto por Descartes (racionalismo); dessa
forma, o autor não será exceção.
Já do ponto de vista estritamente hobbesiano, nota-se a originalidade de sua filosofia,
porque é no campo do racionalismo que ele tentará fundamentar suas teses empiristas.
Tudo advém das objeções de Thomas Hobbes às Meditações Metafísicas, de
Descartes. O debate entre ambos possibilita entender melhor o pensamento hobbesiano. O
ponto de partida para Descartes era buscar uma verdade primeira que não pudesse ser
colocada em dúvida. Para isso criou um procedimento muito peculiar, a dúvida metódica, em
que começa duvidando de tudo, das afirmações do senso comum, dos sentidos, da realidade
do mundo exterior, do corpo, dos argumentos e das verdades inferidas pelo raciocínio. O
objetivo é livrar-se de tudo que seja duvidoso para o pensamento, porque algumas idéias se
apresentam duvidosas e confusas e outras são claras e distintas, assim, o pensamento pode
oferecer com segurança ao espírito um conjunto de regras que deverão ser obedecidas para se
chegar à veracidade de um conhecimento.
Todas essas dúvidas só serão interrompidas mediante o seu próprio ser, porque se há
dúvida é porque existe o ser que duvida, ou seja, se duvido, penso; se penso, existo. Eis o
ponto de partida para a construção de toda a teoria cartesiana. É importante deixar claro que
este “eu” cartesiano é puro pensamento, um ser pensante, pois a realidade do corpo, coisa
externa, foi posta em dúvida. Este será o ponto central da discórdia com Thomas Hobbes, uma
vez que, para esse, a existência do pensamento dependerá de um corpo.
É a partir desta polêmica que ambos trocarão algumas cartas por intermédio de
amigos em comum, especialmente padre Mersenne, que será o grande interlocutor deste
período, e o próprio Descartes ao publicar suas teorias responderá às objeções levantadas por
Hobbes. Em um dado momento das objeções, Hobbes aceita que o conhecimento da
proposição “eu existo” possa depender do conhecimento da proposição “eu penso”. Dessa
forma, aceita a célebre frase de Descartes: “Penso, logo existo”, mas levanta uma indagação:
de onde viria o conhecimento da proposição “eu penso”? Ele mesmo responde de maneira
63
objetiva, afirmando que não podemos conceber qualquer ato sem seu sujeito, isto é, uma
coisa que pensa é alguma coisa corporal.
Sem dúvida, Descartes se oporá frontalmente a tal conclusão, afirmando que nem
todas as coisas são corpóreas e que os sujeitos dos atos são entendidos como substâncias, ou
matérias e até matérias metafísicas, portanto, não apenas como corpos. E vai mais longe,
reafirmando seu dualismo
29
, ao dizer que existem duas substâncias, uma extensa, corpórea;
outra espiritual, pensante.
A substância extensa são os atos chamados corporais como a grandeza, a figura, o
movimento; esses atos, sim, residem em corpos. Já as substâncias espirituais, são os atos que
chamamos de intelectuais como o querer e o imaginar, que dependem do pensamento, da
consciência e do conhecimento, residindo em uma “coisa que pensa”, que não tem qualquer
afinidade com os corpos. Com isso Descartes conclui categoricamente que o pensamento, a
consciência e o conhecimento diferem totalmente do corpo (extensão). Ele afirmou:
Para começar, pois, este exame, noto aqui, primeiramente, que há grande diferença
entre espírito e corpo, pelo fato de ser o corpo por sua própria natureza sempre
divisível e o espírito inteiramente indivisível. Pois, com efeito, quando considero
meu espírito, isto é, eu mesmo, na medida em que sou apenas uma coisa que pensa,
não posso aí distinguir partes algumas, mas me concebo como uma coisa única e
inteira. E, conquanto o espírito todo pareça estar unido ao corpo todo, todavia um
pé, um braço ou qualquer outra parte, estando separada do meu corpo, é certo que
nem por isso haverá aí algo de subtraído a meu espírito. (...) E isso bastaria para
ensinar-me que o espírito ou a alma do homem é inteiramente diferente do corpo (...)
(DESCARTES, 1962, pp.194 e 195).
Mesmo após essas afirmações feitas por Descartes, Thomas Hobbes mantém a sua
idéia de que o sujeito do pensamento é corporal e vai mais longe, defendendo a idéia de que o
raciocínio é apenas uma reunião e encadeamento de nomes pela palavra “é”; ou seja, afirma
que pela razão não se conclui nada no que se refere à natureza das coisas, mas só às suas
denominações; dessa forma, conclui que pela razão apenas conseguimos observar se reunimos
bem ou mal os nomes das coisas. A partir de tais afirmações radicaliza, defendendo a idéia de
que a existência do raciocínio dependerá de nomes, que dependerão da imaginação, e esta
dependerá do movimento dos órgãos corporais; assim, o espírito não será outra coisa senão
um movimento em certas partes do corpo orgânico. Desta forma, volta à sua primeira
indagação, na qual defende a tese de que o pensamento para existir depende de uma coisa
corpórea; confrontando-se com Descartes, que afirma jamais poder existir uma conciliação,
29
O jusnaturalista alemão Christian Wolff (1679–1754) define como dualismo a admissão da existência de
substâncias materiais e espirituais. Esse foi o significado que se tornou mais comum e difundido na tradição
filosófica. Para ele, o fundador do dualismo seria Descartes, que reconheceu a existência de duas espécies
diferentes de substâncias: a corpórea e a espiritual.
64
ou sequer aproximação, entre espírito e movimento; o que Hobbes tentará contestar, provar e
demonstrar.
Indiscutivelmente, continuará afirmando que tudo é material (corpo e alma) e
mecânico, estabelecendo a primazia da razão que também é transformada em puro
mecanismo. Neste ponto se estabelece o distanciamento de Descartes, que considerava
mecânico e material apenas o corpo, atribuindo à alma um estatuto imaterial, indispensável à
produção de conhecimento. No que se refere ao movimento há também divergências entre
ambos, pois como se viu no capítulo I, embora Descartes tenha conceituado inércia, não deu
conta de um problema físico, que o levou a uma abstração em excesso, afastando-se dos
objetivos da ciência nascente. Hobbes ao priorizar os corpos e o movimento parece estar em
uma sintonia maior com a sua época. Entretanto, os dois pensadores aproximavam-se na
valorização que emprestavam à ciência como o caminho para transformação e aprimoramento
da vida humana. A noção de inércia, aprendida de Galileu, permitiu a Hobbes afirmar que
tudo, conhecimento, homem, sociedade, natureza, está submetido a leis mecânicas
determinadas, ou seja, toda sua teoria pode ser sintetizada pelo nome de filosofia mecanicista.
Essa sua visão determinista e mecanicista do mundo visava exclusivamente servir de suporte
para uma justificativa do estado natural conflituoso, pois, no mundo em constante movimento
de corpos, o seu entrechoque é inevitável e neste processo o conflito entre os homens existirá,
já que são corpos como quaisquer outros e também se encontram sujeitos aos movimentos do
universo.
A interpretação de uma aparente amoralidade nas obras de Hobbes, resultado de uma
análise mecanicista, interpretação corrente da maioria dos comentadores do autor, não
encontra ecos na concepção de Leo Strauss
30
(1899-1973), para quem existe claramente uma
base moral proposta por Hobbes, quando desenvolve suas reflexões acerca do homem e a
sociedade.
As interpretações sobre as relações entre a filosofia natural e civil em Hobbes têm
caminhado para inúmeras conjecturas na medida em que não se pode afirmar categoricamente
tal relação ou dependência, pois em suas obras encontram-se argumentos para que se sustente
tal concepção, bem como totalmente ao contrário. Talvez disto decorra o fato do autor, ainda
30
Filósofo político americano de origem judaica. Especialista no estudo da filosofia política clássica, passou a
maior parte de sua carreira como professor de ciência política na Universidade de Chicago, onde foi mestre de
várias gerações de estudantes. Fundou a escola de pensadores “Straussians” e foi um forte crítico da filosofia
moderna. A partir de 1918 estudou filosofia na Universidade de Hamburgo, onde foi orientado por Ernest
Cassirer, na elaboração de sua tese sobre teoria do conhecimento. Até 1937 estudou os manuscritos de Thomas
Hobbes sendo forte crítico de seu pensamento.
65
hoje, causar grandes controvérsias, levando a uma relação de, para usar suas próprias
palavras, amor ou aversão.
Iniciando as reflexões pela leitura do prefácio ao leitor da obra Do Cidadão, pode-se
imediatamente inferir que quanto ao tema abordado não há nenhuma dúvida de Thomas
Hobbes quanto à posição da filosofia política na ordem de seu método de trabalho, parecendo
evidente a dependência desta à filosofia natural na medida em que sua proposta se configura
da seguinte forma:
(...) em três partes conforme o seu grau, pensava escrevê-los da seguinte forma: de
modo que na primeira trataria do corpo, e de suas propriedades gerais; na segunda,
do homem e de suas faculdades e afecções especiais; na terceira, do governo civil e
dos deveres dos súditos. De modo que a primeira parte conteria a filosofia primeira,
e certos elementos de física; nela consideraríamos as razões de tempo, lugar, causa,
poder, relação, proporção, quantidade, figura e movimento. Na segunda
discutiríamos a imaginação, a memória, o intelecto, o raciocínio, o apetite, a
vontade, o bem e o mal, o que é honesto ou desonesto, e coisas parecidas. O que a
última parte aborda é o que acabo de vos expor (HOBBES, 1998, pp.17 e 18).
Porém, ao traçar essa trilogia como proposta de trabalho o autor invoca os
acontecimentos políticos da Inglaterra setecentista, para na seqüência fazer a seguinte
afirmação: “Assim sucede que aquilo que era último na ordem veio a lume primeiro no tempo, e isso porque
vi que esta parte, fundada em seus próprios princípios suficientemente conhecidos pela experiência, não
precisaria das partes anteriores” (HOBBES, 1998, p.18).
Ao deparar com uma afirmação tão categórica como a citada acima tem-se a
concepção inversa da anterior, pois o autor parece não deixar dúvidas quanto à independência
da filosofia civil em relação à filosofia natural.
Com a divulgação deste prefácio, entende-se que a intenção de Hobbes num primeiro
momento era, segundo sua concepção metodológica, constituir argumentos que pudessem dar
a idéia de dedução contínua em sua trilogia, a saber: a geometria estabelecendo as bases da
mecânica, esta servindo para as verdades da física que serviria para os fundamentos da moral
e da política.
Porém autores como Strauss, Taylor e Warrender, ao depararem com a afirmação de
Hobbes de que o conhecimento da filosofia moral e política é independente nesta trilogia e
que está fundado sobre princípios que podem ser conhecidos pela experiência, não hesitaram
em desenvolver suas teses negando a influência da ciência nascente nas concepções
filosóficas de Hobbes.
Os argumentos de Strauss, o mais categórico nesta leitura, partem do princípio de
que o desejo de poder, tão bem explorado como uma característica natural do homem, é a
66
maior demonstração de que a filosofia política hobbesiana tem uma base moral, negando,
portanto, essa como sendo resultado de um processo mecânico.
A tese principal de Strauss (1963), ao publicar um extenso argumento com o
propósito de demonstrar que a filosofia política de Hobbes não poderia estar sustentada sobre
sua filosofia natural, é de que a base de sua filosofia está na busca incessante do homem pela
sua auto-preservação, ou melhor, no apetite animal deste pela busca de poder e isto bastaria
para dar a toda estrutura filosófica hobbesiana uma fundamentação moral. A filosofia política
está fundada no conhecimento obtido por intermédio do auto-conhecimento e auto-exame do
próprio indivíduo, sem recorrência à ciência natural ou à própria metafísica.
Apesar de Strauss não admitir que a busca incessante pelo poder seja resultado de um
processo mecânico, o conceito hobbesiano de conatus torna sua crítica inviável por ser
abstraído de uma concepção mecanicista.
Do ponto de vista do comentador, num primeiro momento, a doutrina política de
Hobbes já estava formada e estabelecida quando ele se tornou um filósofo mecanicista, pois o
próprio admite que seu contato com a geometria euclidiana se dá em uma fase de sua vida
mais madura. Porém o argumento maior advém da concepção de que existe uma base moral
na filosofia hobbesiana. Em outras palavras, admitir uma base mecanicista, na crítica de
Strauss, mascara a verdadeira base moral, dando uma falsa concepção de amoralidade.
Entender a concepção do conatus como um processo mecânico, que leva a um desejo
infinito, é reduzir em muito a verdadeira intenção de Hobbes que, para Strauss, soube como
ninguém analisar o desejo de poder que o homem traz consigo, e por isso entende que este
motivo fundamenta sua filosofia, isto é, dá-lhe uma base moral, pois todo poder é bom e mau
e gera conseqüências boas e más, admissíveis ou inadmissíveis e os homens sabem e jogam
com estas possibilidades, por meio de sua racionalidade.
Outro argumento utilizado por Strauss para corroborar sua tese é o fato de que a
ciência moderna, baseada em uma nova concepção de mundo, como conseqüência das
reflexões de Giordano Bruno, Kepler e Galileu, entre outros, que compreendia um universo
homogêneo, sem forma e infinito, o novo mundo do sistema solar com o Sol ao centro e os
planetas ao seu redor, não poderia utilizar-se de um expediente que se fundamentasse na
metafísica tradicional uma vez que esta, segundo Strauss, utiliza-se de concepções
antropológicas e, para uma ciência que precisava se consolidar, deveria rejeitar todo esse
procedimento tradicional e emergir como algo eminentemente novo. Assim, como Hobbes era
um conhecedor desta nova interpretação do mundo, soube fazer a distinção de ambas as
67
concepções e compreender que esse novo expediente não contribuiria em nada para o
entendimento das coisas humanas, como por exemplo: a moral e a política.
Desta forma, o argumento de Strauss é de que a própria natureza da ciência do século
XVII jamais serviria de base para a moral e a política, na medida em que:
As metafísicas tradicionais eram, para usar uma linguagem dos sucessores de
Hobbes, antropomórficas e, portanto, constituíam uma base apropriada para a
filosofia das coisas humanas; por outro lado, a ciência moderna, que tentou
interpretar a natureza renunciando a todos os antropomorfismos, todas as
concepções de propósito e perfeição, não poderia contribuir em nada para a
compreensão das coisas humanas, para a fundamentação da moral e da política
(STRAUSS, 1963, p.09).
É notório que o propósito estabelecido por Hobbes em sua metodologia, partir da
filosofia da natureza para derivar a filosofia política, logo de imediato não pôde ser levado às
últimas conseqüências, tendo, por razões históricas, que iniciar seu projeto pela parte final.
Aqui cabem as reflexões sobre essas razões e utilizando-se das interpretações de Spragens e
outros compreender a mudança de rota estabelecida por Hobbes, porém sem mudar o destino.
Se para Strauss, o desejo incessante de poder, por si só, demonstra a inclinação
natural dos homens à auto-preservação, não como conseqüência de um processo mecânico,
mas como a fundamentação de uma doutrina moral, baseada na noção do justo e do injusto,
do certo e do errado, do bem e do mal; para Spragens o caminho é outro, ou seja, a explicação
das relações comportamentais dos homens teria feito Hobbes entender o homem natural a
partir da aplicação da teoria mecanicista do movimento, que não tem causa e é constante.
Spragens (1973) entende que ao fazer a análise do homem vivendo em estado natural
e conseqüentemente em sociedade, uma vez que a natureza deste não muda conforme o
tempo, ou a história, ou a vida social; Thomas Hobbes isenta o comportamento valorativo
destes homens em todas as áreas, bem como a moral que compreende como uma parte da
filosofia que estuda as relações humanas a partir da aplicação das leis da física, que regem o
comportamento dos corpos em geral e não como um ramo do conhecimento fundamentado
nas noções do certo e do errado.
Thomas A. Spragens (1917–2006), filósofo americano, corroborará a interpretação
segundo a qual Hobbes modelará sua filosofia nos ideais da ciência nascente.
Antes de apresentar o principal argumento de Spragens que trabalhará com a
concepção de analogia na trilogia exposta por Hobbes em De Corpore, De Homine e De Cive
e não com a de dependência de uma em relação às outras que, para ele, fica inviabilizada pois,
nas obras citadas, não se encontra absolutamente afirmado que as verdades da mecânica são
68
deduzidas a partir das verdades da geometria, mas sim que são deduzidas depois das verdades
da geometria. Tão pouco afirma-se que a filosofia moral e civil são demonstradas a partir da
física, e sim após essa.
A título de colaboração nesta reflexão de fundamentação da filosofia política e moral
na filosofia natural, autores como Renato Janine Ribeiro e Norberto Bobbio também fizeram
referências ao tema. Para Ribeiro (1996), Hobbes ao afirmar que a ciência política
31
não é
mais antiga que sua obra De Cive, não só está desqualificando o pensamento político
aristotélico, como também inovando ao utilizar o termo ciência para a política. Isso por si só
demonstra as intenções de Hobbes:
No tempo de Hobbes, o modelo para a ciência estava nas matemáticas. Os teoremas
da geometria, por exemplo, não dependem em nada da observação empírica para
serem verdadeiros. Quando dependemos da experiência, estamos sempre sujeitos ao
engano. Mas, se nos limitamos a deduzir propriedades de figuras ideais, não há risco
de erro. E isso, antes de mais nada, porque as figuras geométricas não resultam da
observação (não existe, na natureza, círculo ou triângulo perfeito...), mas são criação
de nossa mente. Em suma: só podemos conhecer, adequada e cientificamente, aquilo
que nós mesmos engendramos. Dessa perspectiva não pode haver ciência, por
exemplo, dos corpos animais (biologia) comparável em certeza à geometria
(RIBEIRO, 1996, p.76).
Renato Janine Ribeiro acrescenta ainda que a concepção de Estado na filosofia
hobbesiana é resultado do argumento acima exposto e afirma:
Assim entendemos o papel do contrato. Na matemática, podemos conhecer porque
as figuras foram concebidas, feitas, por nós. Da mesma forma na ciência política: se
existe Estado, é porque o homem o criou. Se houvesse sociabilidade natural, jamais
poderíamos ter ciência dela, porque dependeríamos dos equívocos da observação.
Mas, como só vivemos em sociedade devido ao contrato, somos nós os autores da
sociedade e do Estado, e podemos conhecê-los tão bem quanto as figuras da
geometria. De um só golpe, o contrato produz dois resultados importantes. Primeiro,
o homem é o artífice de sua condição, de seu destino, e não Deus ou a natureza.
Segundo, o homem pode conhecer tanto a sua presente condição miserável quanto os
meios para alcançar a paz e a prosperidade (RIBEIRO, 1996, pp.76 e 77).
Norberto Bobbio (1909-2004), filósofo político italiano, ao analisar a filosofia
política de Hobbes, também entende que o autor tem a preocupação de dar uma sustentação
31
Thomas Hobbes foi um otimista em relação à ciência, combate a física, a filosofia e a metafísica tradicionais,
realocando-as ao novo estatuto do saber gerado pela revolução científica do século XVII, demonstrando sua
tentativa de dar à filosofia um caráter científico. Tanto que, para ele, filosofia é ciência, e ciência é o
conhecimento das conseqüências dos acidentes dos corpos, ou seja, das relações de causa e efeito, seja nos
corpos naturais ou políticos. Essa identificação leva-o à necessidade imediata do estabelecimento de um método.
Acredita que, somente com base no método, a filosofia pode se tornar um raciocínio seguro e se caracterizar
como uma ciência prática que investiga o que a vida humana necessita para sua perpetuação, segurança e
conforto.
69
balizada nos ideais da ciência nascente como forma de dar validade absoluta ao seu sistema
político:
Hobbes, apesar de seu nominalismo e de seu convencionalismo, é movido pela
ambição de estabelecer, seguindo a vocação racionalista de seu tempo, um sistema
político absolutamente válido, tão válido quanto a geometria, ou melhor, tão válido
quanto se supunha ser a geometria. Mas, para dar validade absoluta ao sistema,
havia apenas um único caminho: colocá-lo no pedestal das leis naturais, ou seja,
apoiá-lo numa lei que fosse evidente como um axioma matemático, ou que fosse
derivável racionalmente de outra lei natural evidente por si mesma (BOBBIO, 1989,
p.125).
Bobbio ainda é mais enfático, ao estabelecer as leis naturais em Hobbes como
teoremas, ou melhor, como princípios científicos:
E, com essa observação, retornamos precisamente ao ponto de partida: para Hobbes,
as leis naturais não são leis, e sim teoremas, ou melhor, não são normas jurídicas, e
sim princípios científicos; não ordenam, mas demonstram; não obrigam (ou
coagem), mas tendem a convencer; não pertencem à esfera do dever ser, mas do ser.
As leis naturais não valem como norma jurídica, mas pela demonstração que podem
dar da validade de um determinado sistema de normas jurídicas (BOBBIO, 1989,
pp.126 e 127).
Evidentemente que as passagens citadas pelos comentadores estão cada qual no
contexto dos propósitos de suas obras que visam a outra finalidade e não especificamente à
reflexão desta tese, porém compreende-se a relevância do tema quando é abordado por
inúmeros comentadores. Todavia, apesar da força persuasiva das passagens citadas, tanto de
Renato Janine Ribeiro como de Norberto Bobbio, outros argumentos podem igualmente ser
trazidos no intuito de reivindicar, na filosofia de Thomas Hobbes, a existência de um
verdadeiro sistema filosófico em que haveria uma relação lógica, seja de dedução,
continuidade, analogia ou paralelismo, nas diferentes partes de sua trilogia, como por exemplo
as teses clássicas de Brandt, Herbert, Tuck, Spragens e recentemente os trabalhos dos
brasileiros Yara Frateschi e Júlio Bernardes.
Embora para Spragens, não exista uma base para a filosofia política e moral em
relação às ciências naturais, não se pode desprezar a importância destas no século XVII, na
medida em que existem outras formas de relação: “Há mais de um modo pelo qual a transformação
teórica da idéia de natureza no século XVII, que Hobbes abraça, pode ter exercido um impacto positivo sobre a
sua filosofia política” (SPRAGENS, 1973, p.166).
Para Spragens (1973), é possível estabelecer uma relação de analogia entre o
mecanicismo e a filosofia política hobbesiana. Diferentemente de Strauss, acredita que
70
Hobbes tenha se deixado levar genuinamente pelos ideais da nova ciência e estava convencido
de que a filosofia natural poderia servir de modelo para a filosofia política e moral:
É possível que a filosofia da natureza exerça impacto considerável sobre a filosofia
das coisas humanas, mesmo que essa filosofia da natureza não seja antropomórfica
(...) mesmo uma filosofia não antropomórfica pode trabalhar por analogia para
formar, sugerir, limitar, consolidar, expandir, substancializar, estabilizar, reforçar
formalmente modelos paralelos da vida política (SPRAGENS, 1973, p.175).
Viu-se no capítulo I desta tese que a grande novidade da ciência nascente do século
XVII estava no fato de compreender o movimento a partir de novas reflexões realizadas pelos
pensadores que, ao contrário de Aristóteles, davam novas concepções ao conceito, inclusive
identificando-o sem a necessidade de uma causa (conceito de inércia). É essa concepção de
movimento que Spragens entende que o autor utilizará para sua teoria sobre a filosofia moral
e política.
Para o comentador, os homens movem-se inercialmente como todos os corpos, não
apenas como movimentos externos, mas também as suas emoções se movem sem fim e sem
repouso. Eis a conceituação de inércia: todos os corpos tendem à persistência e o homem, por
ser uma criatura natural, não pode ser exceção neste processo.
A relação analógica realizada por Spragens pode ser mais bem entendida quando se
observa o método estabelecido por Hobbes, pois este procurará explicar como os corpos
exteriores afetam o corpo humano e neste produzem as percepções e os fenômenos que deles
dependem. Afirma que os movimentos dos corpos exteriores afetam os sentidos, que seriam
colocados em movimento também, chegando ao cérebro e, daí, ao coração. A partir deste
processo, começaria o movimento de reação, ou seja, um sentido inverso, constituindo a
sensação; que é o princípio do conhecimento e de onde tudo seria derivado; isto é, seria um
encadeamento de significações. Esse princípio do conhecimento, Hobbes afirma ter
encontrado em uma análise individual da natureza humana e com um método muito peculiar:
Quanto ao método que empreguei, pensei que não me bastava usar um estilo claro e
evidente, mas que era necessário começar pela própria matéria do governo civil,
depois tratar de sua forma e geração, e da primeira origem da justiça. Pois todas as
coisas são mais bem entendidas através de suas causas constitutivas. Pois assim
como em um relógio, ou em qualquer outra máquina autômata, não podemos
conhecer bem a matéria, a figura e o movimento das roldanas senão se o
desmontamos; assim, na investigação dos direitos dos Estados e dos deveres dos
súditos é necessário, eu digo, não dissolver o Estado, mas considerá-lo como se ele
estivesse dissolvido, quer dizer, é preciso entender qual é o natural dos homens, o
que é que os torna próprios ou incapazes de formar Estados, e como é que devem
estar dispostos aqueles que querem se reunir em um Estado sobre bons alicerces
(HOBBES, 1998, p.13).
71
Assim, o conhecimento para Hobbes advém do contato dos objetos com o corpo dos
homens, através dos órgãos dos sentidos, num processo mecânico, já que para o autor todo
corpo está sempre em movimento. O objeto atua externamente em relação ao corpo, pelos
olhos, ouvidos ou qualquer parte do corpo. Origina-se, então, a sensação que produz uma
variedade de aparências. Para Hobbes, não existe outra concepção no intelecto humano que
não tenha sido recebida totalmente ou em parte, anteriormente, pelos órgãos dos sentidos.
Quando o objeto atua diretamente no órgão próprio de cada sentido, seu efeito é a
sensação, neste decurso passa a produzir uma série de deslocamentos por pressão que chegam
até o cérebro, produzindo a aparência, que é formada de dentro para fora. Os homens dão o
nome a essa aparência ou fantasia de sensação, que consiste, de acordo com o pensador
inglês, para o olho, em uma luz ou cor figurada; para o ouvido, um som; para o nariz, um
odor; para a língua ou paladar, um sabor; para o resto do corpo, calor, frio, aspereza,
suavidade e diversas outras qualidades que se distinguem através da sensação. Todo o
processo da sensação nada mais é do que o movimento das matérias ou corpos, cuja aparência
constitui para nós uma fantasia, estando acordado ou dormindo.
A imagem é produto da reflexão do objeto em nossa mente, como num espelho. O
resultado é que uma coisa é o objeto e a outra é a imagem ou fantasia. Portanto, as sensações
em todos os casos, são meras fantasias, isto é, movimentos das coisas externas sobre os
órgãos dos nossos sentidos.
O movimento de um corpo qualquer é iniciado quando outro corpo em movimento o
atinge, provocando uma reação. Quando já está em movimento, pode ser detido por algum
obstáculo, mas não pára imediatamente, o que ocorrerá gradualmente. A retenção dos objetos
que é a imagem criada pela visão e pelos demais sentidos é denominada pelos latinos de
imaginação, já os gregos denominavam fantasia, que quer dizer aparência, valendo para todos
os sentidos. A imaginação é a imagem retida na mente, só que não a predominante, e sim a
debilitada.
A debilitação das sensações no homem em estado de vigília não é o enfraquecimento
do movimento das sensações, no sentido de cessar esse movimento; tal debilitação é uma
obscuridade em que outras imagens se sobrepõem. Somente a imagem predominante é
sensível, quando nossos olhos, ouvidos e órgãos recebem a reflexão dos corpos externos não
nos apercebemos das demais reflexões, como no exemplo dado por Hobbes:
De fato as estrelas não exercem a virtude que as faz brilhar menos durante o dia que
à noite. Porém, assim como entre as diferentes solicitações que nossos olhos, nossos
ouvidos e nossos órgãos recebem dos corpos externos, somente a predominante é
72
sensível e, sendo predominante a luz do Sol, nossos sentidos não são impressionados
pela luz das demais estrelas (HOBBES, 1974, p.15).
A impressão provocada por um objeto em nossa visão permanece mesmo quando
afastado. Quando há uma nova impressão de um novo objeto, há uma debilitação do anterior,
que é denominada imaginação e quanto maior o tempo transcorrido, mais fraca ficará a
imaginação. Como o corpo está sempre em movimento, ocorrem várias mudanças e partes das
sensações anteriores são destruídas. O mesmo ocorre com o corpo humano com o passar dos
anos; há um envelhecimento. Portanto, quando se quer expressar um objeto ou um fato
ocorrido, não se consegue relembrar os detalhes, é como olhar um objeto muito distante. A
essa tentativa chama-se memória.
A imaginação e a memória são a mesma coisa, mas possuem nomes diversos
dependendo da situação. A memória de muitas sensações é chamada experiência, enquanto a
imaginação são coisas percebidas pelos sentidos, isto é, de uma vez e por partes, em tempos
diferentes. Hobbes dividiu a imaginação em duas características: simples e composta. A
primeira é a reflexão do objeto na mente, ocorre quando alguém retém a imagem de um
homem e de um cavalo que viu anteriormente; já a segunda, é a reflexão dessas duas imagens
combinadas, resultando na imagem de um centauro.
Quando estamos em estado de sono, a imaginação se dá através dos sonhos, que são
imagens percebidas anteriormente pelos sentidos. Nesse estado, o cérebro e os nervos que são
necessários às sensações ficam apáticos, dificilmente se movem pela ação dos objetos
externos e em conseqüência não há produção de novas imaginações e nem outros sonhos,
somente o que advém da movimentação dos órgãos internos do corpo humano. Os órgãos da
sensação, como estão em estado de letargia, não sofrem ação dos corpos externos, então não
existe outro objeto que a debilite ou a domine com uma impressão mais vigorosa.
Praticamente é impossível distinguir o que é sonho e o que é sensação, quando
adormecido, pois as imagens são algumas vezes absurdas quando se sonha, não há uma
coerência de pensamento. Quando se está desperto é possível reconhecer o absurdo do sonho
e, saber que não se está sonhando, mas em estado de sono ocorre o inverso, pois acredita-se
estar acordado.
A influência da teoria mecanicista também se revela na concepção de Hobbes sobre o
sonho, pois acredita que os movimentos externos que afetam o corpo em estado de vigília são
armazenados na memória e reproduzidos, mesmo que transformados, durante o sono.
73
Sendo assim, preocupações derivadas de movimentos externos dificultam o
discernimento entre o sonho e o pensamento. Neste estado, não se consegue dormir, de fato,
devido ao movimento interno que provoca fantasias, impedindo de perceber a realidade.
Devido à incapacidade de distinguir um estado do outro, o homem pode tornar-se
dependente de manipuladores que, sob pretexto de crenças, agem de acordo com os seus
interesses.
Observa-se que as pessoas cumprem regras ou se portam de acordo com
conveniências pré-estabelecidas, porque não têm o conhecimento real, são somente imagens
condicionadas, que resultam em aparências, daí o medo de serem rejeitadas, excluídas,
maltratadas por pessoas persuasivas que invadem e violentam os seus direitos como, por
exemplo, à vida, à propriedade e à liberdade. Isso ocorre em todos os tipos de comunidade.
Por isso, a razão tem um papel preponderante na filosofia hobbesiana, apesar de ser
um uso aperfeiçoado da imaginação pela aplicação correta da análise (descobertas de
definições e noções pela experiência) e da síntese (conclusões retiradas das deduções das
primeiras idéias) e sua função será imprescindível para o desenvolvimento do processo de
conhecer.
O que Thomas Hobbes quer deixar claro é que o conhecimento humano é explicado a
partir do entrechoque de corpos, que os coloca em movimento, inclusive o corpo humano.
Tais movimentos atingem os sentidos, chegando ao espírito, que para ele não passa de um
corpo sutil, repercutindo uns nos outros e derivando tudo, inclusive a ciência. Propõe uma
vinculação entre os movimentos dos corpos e os problemas práticos do homem, isto é, o seu
relacionamento com os demais, no cotidiano, mostrando que estes são conseqüências e
reflexos dos entrechoques dos corpos. É neste sentido que Spragens afirma que podemos
entender as relações entre a ciência nascente e esse processo desenvolvido por Hobbes, ou
seja, as análises, reflexões e descobertas sobre o movimento servirão de instrumentos para os
novos ideais filosóficos a partir de então.
74
2.4 Movimento e o conceito de conatus
O ponto de partida da análise sobre o movimento do corpo humano para Thomas
Hobbes é uma reflexão a respeito da igualdade entre os homens no estado natural,
principalmente quando se refere ao aspecto físico. Ele afirmou:
A natureza fez os homens tão iguais quanto às faculdades do corpo e do espírito que,
embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou de
espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isto em
conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável
para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro
não possa também aspirar, tal como ele (HOBBES, 1974, p.78).
Mais adiante no mesmo texto, afirma que no estado natural somos iguais em
inteligência e sabedoria:
Pois a natureza dos homens é tal que, embora sejam capazes de reconhecer em
muitos outros maior inteligência, maior eloqüência ou maior saber, dificilmente
acreditam que haja muitos tão sábios como eles próprios; porque vêem sua própria
sabedoria bem de perto e a dos outros homens à distância. Mas isto prova que os
homens são iguais quanto a esse ponto e não que sejam desiguais (HOBBES, 1974,
p.78).
Da concepção de igualdade entre os homens no estado natural, o autor do Leviatã
elaborará o conceito de conato (conatus), isto é, o esforço ou empenho. Esse conceito é
explicitado detalhadamente na obra Elementos de Lei Natural e Política, em que afirma ser o
movimento uma resposta do corpo ao estímulo recebido, que consiste no prazer e no desgosto,
ou seja, é uma solicitação ou provocação para se aproximar do que agrada ou para se afastar
do que desagrada, sendo essa solicitação o esforço primeiro ou começo interno do movimento
animal.
Para entender melhor a conceituação do conatus, é necessário o aprofundamento na
filosofia hobbesiana, buscando sua fundamentação novamente na idéia de movimento. Deve-
se primeiramente considerar as noções de corpo, corpo em movimento e de movimento que
envolve a ação de uma força externa ao corpo, que foram básicas para a construção de uma
concepção mecanicista de movimento. Da mesma maneira que a noção de conatus se aplica
tanto ao movimento dos corpos inanimados como ao dos corpos animados, entre os quais o
homem, também a concepção de movimento mecânico abrangia os corpos inanimados e
animados, estendendo-se até a explicação do processo de conhecimento humano.
75
Dessa forma, o conhecimento só era possível porque os homens eram capazes de ter
sensação, imaginação e entendimento. O mecanismo pelo qual, a partir das sensações,
chegava-se à imaginação ou pensamento sobre os objetos ou fenômenos aos quais estes se
referiam envolvia, na realidade, processos, segundo Hobbes, comuns aos animais e ao homem
como indivíduo e como espécie. Neste sentido, tais capacidades eram inerentes à espécie
humana e serviam de base a todo o conhecimento que seria produzido pelo homem.
Já a sensação, como foi visto, é um processo mecânico, baseado nas noções de
movimento e de seres corporais. Nesse mecanismo, os objetos sensíveis afetavam os órgãos
sensoriais de forma que se produzisse, nos seres vivos, a sensação, provocada pelo objeto,
mas que não se confundia com ele. Hobbes escreveu:
A causa da sensação é o corpo exterior, ou objeto, que pressiona o órgão próprio de
cada sentido, ou de forma imediata, como no gosto e tato, ou de forma mediata,
como na vista, no ouvido e no cheiro; a qual pressão, pela mediação dos nervos e
outras cordas e membranas do corpo, prolongada para dentro em direção ao cérebro
e coração, causa ali uma resistência, ou contrapressão, ou esforço do coração, para
se transmitir; cujo esforço, porque para fora, parece ser de algum modo exterior. E é
a esta aparência, ou ilusão, que os homens chamam sensação. (...) Todas essas
qualidades denominadas sensíveis estão no objeto que as causa, mas são muitos os
movimentos da matéria que pressionam nossos órgãos de maneira diversa. (...) E do
mesmo modo que pressionar, esfregar, ou bater nos olhos nos faz supor uma luz, e
pressionar o ouvido produz um som, também os corpos que vemos ou ouvimos
produzem o mesmo efeito pela sua ação forte, embora não observada. Porque se
essas cores e sons estivessem nos corpos, ou objetos que os causam, não podiam ser
separados deles, como nos espelhos e nos ecos por reflexão vemos que eles são, nos
quais sabemos que a coisa que vemos está num lugar e a aparência em outro. E
muito embora, a uma curta distância, o próprio objeto real pareça confundido com a
aparência que produz em nós, mesmo assim o objeto é uma coisa, e a imagem ou
ilusão uma outra. De tal modo que em todos os casos a sensação nada mais é do que
a ilusão imaginária, causada (como disse) pela pressão, isto é, pelo movimento das
coisas exteriores nos nossos olhos, ouvidos e outros órgãos a isso determinados
(HOBBES, 1974, pp.13 e 14).
Com tal afirmação, Hobbes esclarece mais objetivamente a compreensão do conatus,
partindo da idéia do movimento dos corpos e como estes afetam o corpo humano, produzindo
ali sensações que poderão ou não ser positivas, mas que de algum modo estimularão os
indivíduos para almejarem ou não tais objetos, para que seus impulsos sejam saciados.
A descrição a seguir de dois processos básicos, dos quais dependeu todo o
conhecimento humano, mostra como Hobbes estendeu a concepção de movimento mecânico
ao conhecimento. Nos dois processos o movimento é provocado por um agente externo
(como, por exemplo, um objeto), que, agindo sobre uma das partes do organismo (por
exemplo, os órgãos do sentido), passa a produzir uma série de deslocamentos, sempre
mantidos da mesma forma (por exemplo, a pressão por diversas vias chega ao cérebro). Essa
76
mesma concepção de movimento sustentou, também, a descrição que ele apresentou para as
denominadas cadeias de pensamentos ou imaginações, momento seguinte do processo de
conhecer. Afirmou Hobbes:
Quando um corpo está em movimento, move-se eternamente (a menos que algo o
impeça), e seja o que for que o faça não pode extinguir totalmente num só instante,
mas apenas com o tempo e gradualmente, como vemos que acontece com a água,
pois muito embora o vento deixe de soprar, as ondas continuam a rolar durante
muito tempo ainda. O mesmo acontece naquele movimento que se observa nas
partes internas do homem, quando ele vê, sonha, etc; pois após a desaparição do
objeto, ou quando os olhos estão fechados, conservamos ainda a imagem da coisa
vista, embora mais obscura do que quando a vemos. E é a isto que os latinos
chamam de imaginação, por causa da imagem criada pela visão, e aplicam o mesmo
termo, ainda que indevidamente, a todos os outros sentidos. Mas os gregos
chamam-lhe de fantasia, que significa aparência, e é tão adequado a um sentido
como a outro. A imaginação nada mais é portanto senão uma sensação diminuída,
e encontra-se nos homens, tal como em muitos outros seres vivos, quer estejam
adormecidos quer estejam despertos (HOBBES, 1974, p.15).
Desta constatação, Hobbes dividiu as cadeias de pensamento em dois tipos: cadeias
livres quando os pensamentos pareciam não ter uma direção determinada e cadeias reguladas
quando os pensamentos eram regidos por uma finalidade. Estas últimas, por sua vez,
dividiam-se em outros dois tipos.
Para Hobbes, esse último tipo de cadeia, isto é, as reguladas, era condição para
produção de conhecimento científico, na medida em que possibilitava a previsão. Entretanto,
o conhecimento científico não se resumia nem se confundia com as sensações ou com o
pensamento ou imaginação, embora não pudesse deles prescindir. O processo de produção de
conhecimento científico era eminentemente um processo lógico e racional, só possível aos
homens e, propriamente, começava no momento em que se encerrava o processo iniciado na
sensação e terminado na imaginação ou pensamento, como exposto nas citações anteriores.
Antes de discutir o conhecimento científico é interessante destacar a importância
atribuída à linguagem, que para Hobbes era própria do homem e requisito necessário e
fundamental para a ciência. Era também a mais nobre das invenções porque por meio dela
passou-se a formar o discurso mental; através dos nomes o homem teve a condição de
comunicar-se verbalmente e não foi diferente com a escrita, que é o registro impresso do
conhecimento. O homem pôde nomear novas coisas que apareciam, com isso armazenou
conhecimento, possibilitando a evolução do saber.
A linguagem, ao mesmo tempo em que é absolutamente necessária para o processo
de produção de conhecimento, não deveria passar de um instrumento para representar o
pensamento. A caracterização que fazia da linguagem e o papel que atribuía a ela na produção
77
de conhecimento têm lhe valido o adjetivo de nominalista.
32
Seu nominalismo é explicitado
na íntima relação que estabelecia entre linguagens e critério de verdade e entre linguagem e
ciência.
Como a filosofia hobbesiana está sintetizada na concepção mecanicista do mundo, o
que ela defende são os fenômenos singulares, pois têm existência real e concreta. Já a
linguagem, embora tenha grande importância por expressar nossos pensamentos, está repleta
de termos, signos, palavras que não representam uma existência concreta de algo no mundo.
Apesar das contradições que dela surgem, Hobbes apresenta dois pontos fundamentais do seu
uso para o homem de uma maneira geral:
O uso geral da linguagem consiste em passar nosso discurso mental para um
discurso verbal, ou a cadeia de nossos pensamentos para uma cadeia de palavras. E
isto com duas utilidades, uma das quais consiste em registrar as conseqüências de
nossos pensamentos, os quais podendo escapar de nossa memória e levar-nos deste
modo a um novo trabalho, podem ser novamente recordados por aquelas palavras
com que foram marcados. De maneira que a primeira utilização dos nomes consiste
em servirem de marcas ou notas de lembrança. Uma outra utilização consiste em
significar, quando muitos usam as mesmas palavras (pela sua conexão e ordem), uns
aos outros aquilo que concebem, ou pensam de cada assunto, e também aquilo que
desejam, temem, ou aquilo por que experimentam alguma paixão. E devido a esta
utilização são chamados sinais (HOBBES, 1974, p.25).
O conhecimento científico, dessa forma, dependia das sensações e da imaginação ou
pensamentos, material sobre o qual se construía o conhecimento. Dependia, também, da
linguagem, instrumento necessário para a representação desse material, instrumento
necessário, mas não suficiente, já que a ciência devia buscar explicações, descobrir as
relações causais entre os fenômenos de forma que se pudesse saber como e quando
ocorreriam. É pelo uso da razão que se chega a tais relações. Os raciocínios compunham-se de
nomes que eram associados para formar as proposições e de proposições que se ordenavam e
que eram compostas como se fossem operações aritméticas, mas que, em última instância,
advinham das sensações ou das impressões dos objetos sensíveis aos homens. Dessa forma,
como já apontado, o raciocínio nada mais é do que um resultado extraído pela razão da adição
ou subtração de nomes marcados e significados em nosso pensamento.
Para Hobbes, essa concepção de raciocínio aplicava-se não apenas às ciências exatas,
mas a todas as áreas do conhecimento, até mesmo à política e ao estabelecimento de leis. Para
ele, sempre que o objeto do conhecimento permitisse a “adição ou subtração”, permitiria a
32
No pensamento hobbesiano, é possível reduzir conceitos a palavras e significações ideais a significações
convencionais; ou seja, são nominalistas os que acreditam que, além das substâncias singulares, só existem os
nomes puros e, portanto, eliminam a realidade das coisas abstratas e universais.
78
ciência, porque o objeto poderia ser submetido à razão. A razão fica reduzida, dessa forma, às
operações que possibilitam reproduzir o pensamento.
Podemos inferir, assim, que o conhecimento científico dependia de processos que
eram habilidades naturais à espécie humana, mas não exclusivos do homem, como a sensação
e o pensamento, e de processos, como o raciocínio e a linguagem, que eram possibilidades
contidas apenas nos homens, mas que precisavam ser desenvolvidas. A ciência dependia,
assim, de todos esses elementos para constituir-se e aí está, talvez, a razão pela qual se
atribuem os adjetivos de empirista tanto como de racionalista a Hobbes, pois este desenvolve
uma relação entre ambas as teorias.
O autor distinguia dois tipos de conhecimentos associados aos processos de sensação
e pensamento e de raciocínio e linguagem, e afirmava:
Por aqui se vê que a razão não nasce conosco como a sensação e a memória, nem é
adquirida apenas pela experiência, como a prudência, mas obtida com esforço,
primeiro através de uma adequada imposição de nomes, e em segundo lugar através
de um método bom e ordenado de passar dos elementos, que são nomes, a asserções
feitas por conexão de um deles com o outro, e daí para os silogismos, que são as
conexões de uma asserção com outra, até chegarmos a um conhecimento de todas as
conseqüências de nomes referentes ao assunto em questão, e é a isto que os homens
chamam ciência. E enquanto a sensação e a memória apenas são conhecimento de
fato, o que é uma coisa passada e irrevogável, a ciência é o conhecimento das
conseqüências, e a dependência de um fato em relação a outro, pelo que, a partir
daquilo que presentemente sabemos fazer, sabemos como fazer qualquer outra coisa
quando quisermos, ou também, em outra ocasião (HOBBES, 1974, p.34).
Assim, todas essas características para a produção do conhecimento, resultantes do
esforço humano que, segundo Hobbes, possui capacidades ilimitadas, levam à conclusão de
que todo empenho humano resultará na tentativa de construir uma sociedade harmônica,
baseada nesta racionalidade, garantindo desse modo a coexistência pacífica entre tantos
corpos que estão em constante movimento e que às vezes poderão se tocar e o conflito será
sempre iminente. Eis aqui, se assim se pode dizer, a influência da ciência nascente na filosofia
hobbesiana.
79
2.5 Inércia e liberdade
Desenvolver as ciências em geral é buscar as causas dos aspectos comuns a todas as
coisas, isto é, as causas dos “universais” e “simples”. Na filosofia hobbesiana, em todos os
corpos tais causas são geométricas, com ênfase no movimento, pois a variedade de figuras
também nasce da variedade de movimentos pelos quais elas se constroem e o movimento não
tem outra causa senão o próprio movimento.
Em tal filosofia a exposição do homem e da psicologia humana constitui-se em
termos estritamente mecânicos, junto com algumas reflexões filosóficas de caráter geral sobre
a linguagem e a epistemologia. Afinal, tudo que experimentamos é causado pelo movimento
mecânico dos corpos externos, ao passo que visões, sons e odores não estão nos objetos, mas
sim são intrínsecos aos seres humanos. Assim, o próprio conhecimento depende dos
pressupostos mecanicistas e suas raízes estão na revolução paradigmática da física moderna,
que, para Hobbes, foi iniciada por Galileu.
Para compreender a possível relação que Hobbes fará entre o conceito de inércia,
recém descoberto, e o modelo de liberdade é fundamental a aceitação da premissa de que a
realidade se constitui de matéria e movimento e, portanto, o conhecimento será daí derivado.
Retomando o princípio de inércia, fruto da descoberta da nova ciência por Galileu e
Descartes, mostrar-se-á como Hobbes, de posse deste princípio, fará para desenvolver o
conceito de liberdade tendo como modelo as reflexões sobre o movimento.
A marca registrada da filosofia hobbesiana está no fato de explicar todos os
fenômenos em termos mecânicos, igualando os processos físicos, biológicos e sociais ao
funcionamento das máquinas. Explica o mundo corporal apelando para o jogo de
movimentos, não fazendo diferença específica entre os corpos. Assim, o conceito de liberdade
não fugirá à regra. Ora, mediante isso, pode-se notar a presença dos ideais da física nascente
no pensamento do filósofo inglês. O conceito de liberdade está relacionado a corpos e
movimentos.
Trazendo novamente o princípio de inércia e analisando-o detalhadamente, pode-se
observar como este será utilizado pelo autor para o desenvolvimento de suas reflexões acerca
do conceito de liberdade.
Como analisado no capítulo I desta tese, a noção de inércia foi resultado de um
processo lento e gradual obtido das inquietações dos pensadores do século XVII motivados
pelos ideais da nova ciência e Hobbes não foi exceção. No capítulo I da obra De Corpore,
verificou-se que sua intenção era dar à ciência política as mesmas convicções de verdades da
80
chamada filosofia natural, pois acreditava que, se os filósofos políticos tivessem desenvolvido
suas teorias nos moldes dos geômetras, a vida em sociedade seria bem melhor com paz e
felicidade. Daí Hobbes desenvolver a tese das leis naturais como aquilo que se impõe à
conservação da própria vida e, portanto, a paz que a condiciona. Não é por acaso que esta
afirmação é apresentada como a primeira lei fundamental da natureza: “a lei de natureza primeira,
e fundamental, é que devemos procurar a paz, quando possa ser encontrada; e se não for possível tê-la, que nos
equipemos com os recursos da guerra” (HOBBES, 1998, p.38).
Porém, o conhecimento das regras civis ocorre diferentemente do mundo natural e
por isso Hobbes, adepto que era da nova ciência e principalmente da física fundamentada na
geometria, buscará incessantemente uma concepção de ciência política que se modele também
nesta ciência, denominada filosofia natural.
A afirmação de que na ciência como nos teoremas as verdades das conseqüências
estão contidas nas proposições vale para todo tipo de conhecimento, sem exceções. É em
virtude disto que, para Hobbes, a ciência civil é a ciência da paz, à semelhança da geometria.
Ambas são concebidas como verdadeiras, porque se dão por meio da quantidade e do
movimento. Movimento este que será utilizado na relação que estabelecerá entre liberdade e
inércia.
Ao analisar o princípio da inércia, nota-se que o conceito de liberdade proposto por
Hobbes é resultado ou amolda-se a ele. Quando afirma na obra De Corpore que um
determinado corpo manterá seu estado cinético, ou seja, se estiver parado permanecerá neste
estado se não for deslocado por outro e, se estiver em movimento, continuará eternamente em
movimento a não ser que outro corpo o detenha, é o próprio princípio que Hobbes está
retomando das reflexões elaboradas por Descartes e principalmente por Galileu.
A concepção de liberdade parece partir deste princípio, pois ao definir a liberdade
como a ausência de impedimentos internos e externos é ao princípio de inércia que o autor
recorre, porque pressupõe que não haja obstáculos, ou seja, deverá haver um estado ideal para
que isso ocorra e este estado é sem dúvida nenhuma abstrato, em se tratando da dificuldade de
comprovação do vácuo (vazio) no século XVII:
Somente podemos encontrar a causa do movimento num corpo contíguo e em
movimento. Porque se há dois corpos quaisquer não contíguos entre os quais exista
ou um espaço no meio vazio ou cheio mas com um corpo em repouso, e se supõe
que dos dois corpos propostos um está em repouso, este último estará sempre em
repouso. Já que ele se move, a causa de seu movimento estará num corpo exterior e
portanto, se entre ele e esse exterior há um espaço vazio, podemos conceber que, de
qualquer maneira que se comportem tanto os corpos exteriores como o próprio
paciente (sempre que se considere agora em repouso), permanecerá assim enquanto
não o toquem outros; e como a causa (por definição) é um acréscimo de todos os
81
acidentes, os quais estando presentes é impossível supor que o efeito não ocorra, e
os acidentes que estejam nos corpos exteriores ou no próprio paciente não podem ser
a causa de um futuro movimento, da mesma forma, assim como pode-se conceber
que o que está em repouso continue dessa forma mesmo que outro corpo toque nele,
contanto que este não se mova, a causa do movimento não poderá estar em um corpo
contíguo que esteja em repouso. Portanto, não há causa alguma do movimento num
corpo além da de um corpo contíguo em movimento (HOBBES, De Corpore, 1966,
pp. 124 e 125).
O recurso a um estado ideal para que se tenha uma ausência total de impedimentos é
a concepção para a livre movimentação dos corpos. O que Hobbes está fazendo é
naturalizando a liberdade, ou seja, submetendo-a à causalidade natural que significa não estar
apenas nos domínios humanos, mas generalizada nos demais tipos de eventos.
Tal concepção aliada ao materialismo agrega todos os ingredientes do mecanicismo
de Hobbes, que são utilizados por ele para uma explicação ampla do mundo, quase uma
completa cosmologia. É neste sentido que a concepção de liberdade tem íntima ligação com o
movimento do corpo humano, do homem enfim.
O objetivo de Thomas Hobbes de dar à ciência política o mesmo estatuto das
ciências naturais faz com que aplique a concepção de liberdade a tudo que existe, não fazendo
exceção às liberdades natural e civil que são objetos de reflexão da ciência política.
As liberdades natural e civil serão objetos de análise no capítulo 3 desta tese, porém,
em se tratando de movimento e sua relação ao princípio da inércia cabe a seguinte reflexão:
para Hobbes, os homens são livres enquanto seres corpóreos, isto é, dizer que alguém agiu
livremente é afirmar que não houve qualquer impedimento interno ou externo para o
desenvolvimento do seu movimento.
A esse respeito, observando as definições a seguir, apresentadas por Hobbes, nota-se
o conceito de liberdade tendo como paradigma as reflexões sobre o movimento, bem como o
princípio da inércia recém descoberto.
Nas obras Do Cidadão e Leviatã, respectivamente, o conceito de liberdade é assim
definido:
(...) a liberdade, podemos assim a definir, nada mais é que ausência dos
impedimentos e obstáculos ao movimento; portanto, a água represada num vaso não
está em liberdade, porque o vaso a impede de escoar; quebrado o vaso, ela é
libertada. E todo o homem tem maior ou menor liberdade, conforme tenha mais
espaço ou menos para si: como o que está numa ampla prisão é mais livre do que
numa apertada. E um homem pode ser livre para um rumo e contudo não o ser para
outro, assim como o viajante está aprisionado deste e daquele lado pelas cercas vivas
ou muros de pedras (para que não estrague as vinhas ou o cereal) adjacentes à
estrada. E estas espécies de impedimentos são externas e absolutas. Neste sentido,
são livres todos os servos e súditos que não se encontram agrilhoados e aprisionados
(HOBBES, 1998, pp.148 e 149).
82
liberdade se entende, de acordo com o significado próprio da palavra, pela ausência
de impedimentos externos, impedimentos que com freqüência reduzem parte do
poder que um homem tem de fazer o que quer; porém não podem impedir que use o
poder que lhe resta, de acordo com o que seu juízo e razão lhe ditem (HOBBES,
1974, p.133).
Já o princípio de inércia está assim definido nas obras De Corpore e Leviatã,
respectivamente:
(...) quando um corpo está em repouso permanecerá neste estado, a não ser que
outro corpo o desloque. E uma vez que esteja em movimento, sempre estará em
movimento a não ser que haja outro corpo ao seu lado, que o detenha (HOBBES, De
Corpore, 1966, p.115).
Nenhum homem duvida da verdade da seguinte afirmação: quando uma coisa está
imóvel, permanecerá imóvel para sempre, a menos que algo a agite. Mas não é tão
fácil aceitar esta outra, que quando uma coisa está em movimento, permanecerá
eternamente em movimento, a menos que algo a pare, muito embora a razão seja a
mesma, a saber, que nada pode mudar por si só (HOBBES, 1974, p.15).
Na filosofia hobbesiana o conceito de liberdade e o princípio de inércia apresentam a
idéia de obstáculo que impede o movimento. Em um sentido geral, a ausência de todos os
tipos de impedimentos para a ação humana é o centro desta reflexão, pois esta idéia está
presente em ambos os conceitos. Em virtude disto pode-se inferir que a definição de liberdade
na filosofia de Thomas Hobbes tem como modelo a ciência setecentista nascente ou mais
precisamente as reflexões acerca do movimento que desembocam no princípio de inércia.
83
2.6 Liberdade e deliberação: as expressões das paixões
Um impasse que surge nesta reflexão elaborada por Hobbes é o fato de que ao
naturalizar tudo, inclusive o conceito de liberdade e submetê-lo a uma concepção mecanicista,
como se poderá afirmar que o homem é livre na medida em que tudo está submetido a esse
processo, ou seja, tudo é causalmente determinado?
Para tentar solucionar tal impasse, Hobbes fará uma distinção entre deliberação e
liberdade. Porém, para o entendimento desta, fez-se necessária uma análise das paixões
humanas em que, para o autor, estão contidas as causas deste processo.
Hobbes expõe que nos animais existem dois tipos de movimentos, os chamados
vitais que se iniciam no ser humano a partir do momento em que é gerado e o acompanham
em toda a sua existência. São eles: circulação do sangue, pulsação, digestão, excreção etc. Os
outros movimentos são chamados de voluntários, são eles: andar, falar, mover um dos
membros. São provocados pelas sensações, iniciam-se a partir do que se vê, ouve, sente etc,
ou seja, pela ação dos movimentos dos corpos externos que entram em contato com as partes
do corpo humano. Neste processo tem-se também a imaginação que é apenas a sensação
diminuída, isto é, o resíduo deste mesmo movimento. Como os movimentos voluntários
dependem de uma antecipação pela mente, Hobbes dirá que todos os movimentos voluntários
têm suas origens internas na imaginação.
O princípio dos movimentos existe de fato, embora às vezes os homens não
consigam perceber, devido suas limitações, pois o que os move ou o espaço em que se movem
é invisível ou muito pequeno, como ocorre internamente nos corpos, só são percebidos
quando externados no andar, falar e nas ações visíveis; porém seu princípio está lá
independentemente de nossas percepções. A esse processo Hobbes denominará de conatus.
Trazendo novamente o conceito de conatus, apresentado por Hobbes na obra De
Corpore, como sendo um movimento dado no menor espaço e no menor tempo, que de tão
rápido não possa ser mensurado, observa-se notadamente as reflexões sobre o movimento da
nova ciência nesta conceituação e principalmente o princípio de inércia, pois embora
imperceptíveis, esses movimentos existem, a saber: os movimentos internos do corpo humano
e alguns movimentos externos aos corpos. Ambos precisam da abstração para serem
entendidos. Afirma Hobbes:
Porque um espaço nunca é tão pequeno que aquilo que seja movido num espaço
maior, do qual o espaço pequeno faz parte, não deva primeiro ser movido neste
último. Esses pequenos inícios do movimento, no interior do corpo do homem, antes
84
de se manifestarem no andar, na fala, na luta e outras ações visíveis, chamam-se
geralmente esforço (HOBBES, 1974, p.36).
A concepção de Hobbes ao identificar o conatus como simplesmente uma paixão
humana, ou seja, em prazer e dor como resposta a uma solicitação ou provocação para
aproximar-se do que agrada, ou retirar-se do que desagrada, aqui é explicitada mecanicamente
e para melhor compreensão Hobbes lembra que não devemos considerá-lo como um ponto
que não tenha quantidade e não possa ser dividido, uma vez que isso não existe na natureza,
mas como algo cuja quantidade é irrelevante, ou seja, nem sua totalidade nem algumas de
suas partes podem ser demonstradas pela experiência.
Aqui o pensador inglês está se referindo à experiência no sentido de comprovação,
isto é, experiência bruta. Como isso não pode ser realizado, porém não se pode negar sua
existência, este ponto a que se refere não será tomado como indivisível, mas como algo não
divisível, bem como o instante é tomado por um não tempo não dividido e não por um tempo
indivisível. Assim, o conatus é considerado como movimento, que não pode ser mensurado e
nem demonstrado, mas existe.
Na consideração do conatus como expressão das paixões humanas, sua causa será
chamada de Apetite, Desejo ou Aversão. O Apetite e o Desejo são a busca do ser humano
para possuir um objeto, enquanto a Aversão é o esforço para mantê-lo afastado. Desta forma,
quando o objeto está próximo denomina-se amor; e ódio, quando não se consegue afastá-lo.
Assim, Hobbes lembra que a idéia de movimento está contida nessas duas palavras, que vêm
do latim e significam movimento de aproximação e afastamento respectivamente.
Presume-se a partir daí que Bom e Mau são determinados pelo que se quer perto ou
longe, quer dizer, Bom é Apetite e Desejo daquilo que se quer perto e Mau é Aversão daquilo
que se quer longe. A Depreciação é a ausência de apetite ou a aversão de uma determinada
coisa, sendo que estas questões de Bom, Mau e Depreciação estão sujeitas às avaliações dos
homens, pois não procedem da natureza das coisas. A concepção de Depreciação também está
relacionada ao movimento porque para Hobbes, se não desejamos, nem odiamos
determinados objetos, sentimos desprezo, ou seja, uma indiferença em relação a ele, ou
melhor, uma imobilidade na medida em que não afeta o conatus. É neste sentido que a crítica
de Leo Strauss (1963) não procede, pois todo esse processo é mecânico, não cabendo
portanto, uma base moral.
Tais avaliações nada mais são do que movimentos causados pelas ações dos objetos
por meio das sensações, são apenas aparências, pois o efeito que causam, partindo dos órgãos
dos sentidos, é o esforço, que consiste em Apetite ou Aversão pelo objeto, que se denomina
85
Deleite ou Transtorno da Mente. Como a constituição do corpo humano está sempre em
modificação, isto é, movimento, esses desejos, apetites e aversões podem também ser
alterados em determinados momentos, ou seja, o que era aversão pode se tornar desejo e vice-
versa.
Mas seja qual for o objeto do apetite ou desejo de qualquer homem, esse objeto é
aquele a que cada um chama bom; ao objeto de seu ódio e aversão chama mau, e ao
de seu desprezo chama vil e indigno. Pois as palavras bom, mau e desprezível são
sempre usadas em relação à pessoa que as usa. Não há nada que o seja simples e
absolutamente, nem há qualquer regra comum do bem e do mal, que possa ser
extraída da natureza dos próprios objetos. Ela só pode ser tirada da pessoa de cada
um (quando não há Estado) ou então (num Estado) da pessoa que representa cada
um; ou também de um árbitro ou juiz que pessoas discordantes possam instituir por
consentimento, concordando que sua sentença seja aceite como regra (HOBBES,
1974, p.37).
A análise que Hobbes faz referente ao movimento que se chama Apetite, que em sua
manifestação é denominado Deleite ou Prazer, é a conseqüência do que é agradável e ajuda o
fortalecimento dos movimentos vitais, enquanto as coisas que perturbam esses movimentos
são chamadas de Molestas ou Ofensivas. Assim, a aparência do que é Bom denomina-se
Prazer ou Deleite e a aparência do que é mau, Molestação ou Desagrado. Desta forma, “todo
apetite, desejo e amor é acompanhado por um deleite maior ou menor, e todo ódio e aversão por um desprazer e
ofensa maior ou menor”
(HOBBES, 1974, p.38).
Alguns Prazeres ou Deleites são causados pela presença de objetos e são definidos,
segundo Hobbes, como Prazeres dos Sentidos, visto que, ligados especificamente ao corpo,
são agradáveis à visão, audição, olfato, gosto e tato. Sendo assim, os Prazeres da Mente que
causam agrado são denominados Alegria.
Na Molestação ou Desagrado sente-se aversão por objeto que possa provocar a dor,
enfraquecendo ou perturbando os movimentos vitais, conseqüentemente gerando o medo e a
tristeza.
As paixões como Apetite, Desejos, Amor, Aversão, Ódio, Alegria e Tristeza são
consideradas por Hobbes paixões simples porque, dependendo das considerações e relações,
recebem outros nomes:
Em primeiro lugar, quando uma sucede à outra, são designadas de maneiras diversas
conforme a opinião que os homens têm da possibilidade de conseguirem o que
desejam. Em segundo lugar, do objeto amado ou odiado. Em terceiro lugar, da
consideração de muitas delas em conjunto. E em quarto lugar, da alteração da
própria sucessão (HOBBES, 1974, p.38).
86
No quadro a seguir, as relações entre as paixões consideradas simples ficam mais
bem compreendidas.
Paixões para Thomas Hobbes: (Leviatã, Cap. VI, págs. 38 a 43)
ESPERANÇA Apetite unido à idéia de alcançar.
DESESPERO
Apetite sem a idéia de alcançar.
MEDO Aversão ligada à idéia de ser ferido pelo
objeto.
CORAGEM Quando se tem esperança de poder evitar
ferimento pelo objeto.
CÓLERA
Coragem repentina.
CONFIANÇA PRÓPRIA
Esperança constante.
DESCONFIANÇA DE SI MESMO
Desespero constante.
INDIGNAÇÃO
A ira, diante de grande dano feito a outrem,
quando se conclui que foi feito injustamente.
BENEVOLÊNCIA, BOA VONTADE,
CARIDADE. (Se referente ao homem, em
geral, BONDADE NATURAL).
O desejo de bem ao próximo.
COBIÇA
Desejo de riqueza.
AMBIÇÃO
O desejo de posição ou proeminência
PUSILANIMIDADE
O desejo que dificilmente conduz às metas e
é obtido de coisas que opõem alguns
obstáculos para serem alcançadas.
MAGNANIMIDADE O desprezo por ajuda ou obstáculos
insignificantes.
CORAGEM, FIRMEZA A magnanimidade em perigo de Morte ou
Ferimentos.
87
LIBERALIDADE A magnanimidade no uso das riquezas.
TACANHICE, MISÉRIA E PARCIMÔNIA
(segundo seja aceitável ou não).
A pusilanimidade com respeito às riquezas.
AMABILIDADE Amor pelo próximo em sociedade.
LASCÍVIA NATURAL Amor às pessoas, por mesma complacência.
LUXÚRIA
Amor do mesmo gênero, através de
maquinação insistente, por imaginação do
prazer passado.
PAIXÃO AMOROSA Amor particular por alguém, com desejo de
ser reciprocamente amado.
CIÚMES Amor particular por alguém, junto com o
receio de que esse não seja recíproco.
AFÃ DE VINGANÇA
Desejo de fazer mal a outrem, obrigando-o a
lamentar algum fato ocorrido.
CURIOSIDADE
Desejo de saber por que e como. Existe
exclusivamente no homem.
SUPERSTIÇÃO
O temor invisível, imaginado pela mente ou
baseado em relatos públicos, quando são
proibidos (quando são permitidos chama-se
Religião, quando o poder imaginado é,
realmente, como imaginamos, Religião
Verdadeira).
TERROR, PÂNICO
O medo, sem apreensão do como ou do
porquê.
ADMIRAÇÃO
Alegria pela compreensão de uma novidade.
GLORIFICAÇÃO
Alegria gerada pela imaginação da própria
força e capacidade do homem.
CONFIANÇA
Glorificação na experiência de ações
passadas.
CRUELDADE O Desprezo ou indiferença pela desgraça
alheia.
DESALENTO
A tristeza devido à convicção da falta de poder.
88
VANGLÓRIA Invenção ou suposição de capacidades que se
sabe não possuir.
IMPRUDÊNCIA Desprezo pela boa reputação.
PIEDADE/COMPAIXÃO A tristeza perante a desgraça alheia.
EMULAÇÃO
A tristeza suscitada pelo êxito de um
competidor por riquezas, honra e outros bens,
quando unida ao propósito de fortalecer
nossas próprias aptidões para igualá-lo e
superá-lo.
INVEJA
Emulação se estiver associada com o
propósito de suplantar ou criar obstáculo a
um competidor.
DELIBERAÇÃO
A soma de Desejos, Aversões, Esperanças e
Temores que continuam até que a coisa seja
feita ou considerada impossível.
VONTADE
Na Deliberação, o último Apetite ou Aversão
imediatamente próximo à ação ou omissão
correspondente.
FELICIDADE
O êxito contínuo da obtenção das coisas
desejadas pelo homem, isto é, sua
perseverança contínua.
ELOGIO
A forma pela qual os Homens externam sua
opinião sobre a bondade de algo.
EXALTAÇÃO
A capacidade e a grandeza de algo.
Na visão de Hobbes, o homem tem a faculdade de deliberar entre o fazer ou não
fazer, de acordo com o seu apetite ou aversão, que são paixões que o inclinam à ação. No
entanto, a vontade poderá determinar ações voluntárias, que são primeiro imaginadas na
mente. A imaginação é o primeiro sinal interno de todos os movimentos voluntários, enquanto
o princípio do movimento, antes de ser percebido em “ações visíveis”, é chamado de esforço;
temos a noção de conatus.
Porém, quando esse conatus vem alternadamente no homem, gerando
simultaneamente apetites, aversões, esperanças e medos, ou seja, provocando o ato de querer
ou não, traz consigo a indecisão, pois o homem, ao pensar nas diversas conseqüências
possíveis de sua ação, que poderão ser boas ou más, se sente indefinido.
89
Quando surgem alternadamente no espírito humano apetites e aversões, esperanças e
medos, relativamente a uma mesma coisa; quando passam sucessivamente pelo
pensamento as diversas conseqüências boas ou más de uma ação, ou de evitar uma
ação; de modo tal que às vezes se sente um apetite em relação a ela, e às vezes uma
aversão, às vezes a esperança de ser capaz de praticá-la, e às vezes o desespero ou o
medo de empreendê-la; todo o conjunto de desejos, aversões, esperanças e medos,
que se vão desenrolando até que a ação seja praticada, ou considerada impossível,
leva o nome de deliberação (HOBBES, 1974, p.41).
A vontade distingue-se da inclinação, pois quando o homem tem vontade de fazer
alguma coisa e não faz, significa inclinação e não ação voluntária. A vontade não se torna
ação, mas a ação depende da inclinação, pois das inclinações nasce a vontade, ou seja, de
todas as inclinações que vão afetando o homem, este, por meio da deliberação, encontra
aquela que é sua vontade mesmo que haja confusão em determinado momento em que a
inclinação se torna apetite, determinando sua ação, portanto, sua vontade.
A ação de uma decisão pessoal é a vontade, o último apetite da deliberação que
significa pôr um fim à liberdade que temos de realizar ou omitir de acordo com o nosso
apetite ou aversão. Essa ação gera no homem um conflito, pois nesse momento pondera a
respeito da ação que praticará, visto que nem sempre a ação escolhida é determinada pela sua
vontade, pois pode ser levado à inclinação, não tendo certeza se será um deleite ou desagrado.
Nota-se aqui a influência mecânica neste processo, é a idéia de movimento que gera
movimento na filosofia hobbesiana, bem como acontecia na ciência nascente. Assim, a
deliberação não é racional, pois é chamada fim quando é tomada ou quando se chega à
conclusão de que é impossível. A razão difere da deliberação porque não termina na vontade,
sua finalidade é a ciência, quer dizer, chegar às conclusões das causas e efeitos.
As ações voluntárias, portanto, nascem tanto dos apetites como das aversões,
dependendo exclusivamente da vontade do homem que delibera sobre qualquer coisa que
poderá considerar bem ou mal. Por isso, uma decisão tomada pelo medo poderá ser
considerada uma ação livre, porque foi tomada mediante as ponderações de suas
conseqüências.
Fica assim manifesto que as ações voluntárias não são apenas as ações que têm
origem na cobiça, na ambição, na concupiscência e outros apetites em relação à
coisa proposta, mas também aquelas que têm origem na aversão, ou no medo das
conseqüências decorrentes da omissão da ação (HOBBES, 1974, p.42).
Por fim, o importante é entender a relação que Hobbes fará entre a ação, a vontade e
a liberdade: a ação estará sempre de acordo com a vontade, ou seja, a ação revela a vontade
90
do indivíduo. Tem-se, assim, em Hobbes, a concepção de que ninguém poderá agir contra sua
vontade, pois em um processo mecânico o efeito é sempre resultado de uma causa.
Nesta perspectiva, se alguém agiu motivado pelo medo ou pela confiança em sua
força, igualmente agiu de acordo com sua vontade. Para Hobbes, não é possível agir contra
sua vontade ou agir forçado porque toda deliberação é resultado do processo pelo qual o
indivíduo ponderou sobre os sentimentos antagônicos em relação às possíveis conseqüências
de sua decisão; porém, determinada a vontade, isto é, a causa da ação, a liberdade que ocorre
neste tempo de ponderação chega ao fim. A vontade é o último momento neste processo de
desejos e aversões, é dela que provém a ação, porém, quando ela ocorre já não há mais
liberdade.
Durante o período de ponderação, o homem recorre à experiência acumulada por
meio da memória, antecipando a ação no pensamento, de modo que a experiência o fará evitar
a repetição daquilo que para ele foi desagradável.
Assim, como deliberar constitui uma escolha, essa sempre se dará visando à
satisfação de preferências e desejos como expectativas positivas, uma vez que todo ser
esforça-se no sentido daquilo que é próprio a lhe conservar a vida e a torná-la viável,
preferencialmente de forma confortável, ou seja, agradável.
Quanto à liberdade, que Hobbes define como a ausência de impedimentos, só é
possível aos corpos, pois são estes que estão sujeitos ao movimento. Os homens são livres
enquanto seres corporais e, assim, não há atos voluntários contra a razão.
O materialismo mecanicista da filosofia hobbesiana ajudará a compreensão deste
processo, a saber: a liberdade é uma propriedade da ação cuja eficiência será considerada e
toda ação eficiente é a ação de um corpo em movimento. Há, assim, três pontos fundamentais:
a causalidade considerada é a eficiente, o mecanicismo e o materialismo. Deste modo, as
paixões, enquanto resultado dos movimentos, podem ser relacionadas às leis mecânicas da
natureza, uma vez que, pelo movimento, os objetos afetam as sensações e essas, numa relação
causal, levam ao movimento vital, que por sua vez leva ao apetite e às demais paixões
humanas. É esse processo mecânico que será utilizado por Hobbes para a compreensão dos
movimentos de todos os corpos naturais, inclusive o homem, isto é, tendo como fundamento a
concepção de movimento inercial, a saber: todos os corpos existem sempre em movimento e o
repouso é apenas um instante em que os corpos são impelidos pela força maior de outro
corpo, procurará demonstrar que a vida do homem não é mais do que movimentos de seus
membros, mas, por ser dotado de razão, poderá por meio desta realizar cálculos e fazer a
91
previsão de eventos futuros. Isso porém não oferece uma base moral para sua filosofia, pelo
contrário, neste mecanicismo proposto fundamenta-se a amoralidade do seu pensamento.
Assim, essa concatenação de movimentos mecânicos é uma necessidade causal que,
para Hobbes, não diminui sua natureza racional, já que compreende no mecanicismo a única
explicação racional do mundo, no corpo e no movimento os dois únicos princípios de
explicação, não reconhecendo outras realidades fora deles.
A compatibilidade entre a liberdade e a necessidade se dá por meio deste processo e
é assim entendida: toda causa eficiente é ela mesma causada, pertencendo a uma cadeia causal
e contínua, isto é, uma rede de causalidade que, se mergulhada na sua origem, levará à noção
de Deus:
(...) Pois aquele que de qualquer efeito que vê ocorrer infira a causa próxima e
imediata desse efeito, e depois a causa dessa causa, e mergulhe profundamente na
investigação das causas, deverá finalmente concluir que necessariamente existe
(como até os filósofos pagãos confessavam) um primeiro motor. Isto é, uma
primeira e eterna causa de todas as coisas, que é o que os homens significam com o
nome de Deus (HOBBES, 1974, p.70).
Vale destacar que na filosofia hobbesiana a referência a esta causa primeira é no
sentido aristotélico, apenas em termos mecânicos, pois como se viu, para Aristóteles o
movimento natural é teleológico, ou seja, é a atualização do que é em potência. No caso de
Hobbes, o movimento é apenas mudança de lugar, sem qualquer relação teleológica: os
movimentos dos homens que se dão na busca de benefícios almejados e não na direção da
atualização de sua essência são exclusivamente por efeito de causas eficientes.
Segue-se assim que, enquanto para Aristóteles a causa eficiente é necessária para
explicar o movimento, porém é insuficiente, porque a causa deste é a causa final; isso para
Hobbes não ocorre, aliás das quatro causas aristotélicas, reconhece apenas a eficiente e a
material, porque o movimento para ele é explicado unicamente pela causa eficiente, não
havendo espaço para a causa final.
Na filosofia hobbesiana, as causas eficiente e material são partes de uma causa
inteira que juntas produzem um efeito: a causa eficiente, enquanto agregado de acidentes no
agente necessários para a produção do efeito; a causa material, enquanto agregado de
acidentes no paciente necessários para a produção do efeito. Já as causas formal e final são o
mesmo que a eficiente, por isso Hobbes, mais uma vez na crítica a Aristóteles, entende que
este apenas utiliza outros nomes à mesma coisa: “os escritores de metafísica enumeram outras causas
além da eficiente e da material, qual seja, a Essência, que alguns chamam de causa formal, e o Fim, ou causa
final; as quais são, entretanto, causas eficientes” (HOBBES, De Corpore, 1966, p.131).
92
Desta forma, toda ação humana livre ou não, que é apenas o efeito considerado, é
resultado deste encadeamento necessário de causas e efeitos, e essa ação, como efeito, cumpre
necessariamente a causa primeira que não é por nada impedida.
A definição de liberdade assim estabelecida é compatível com a mais estrita
necessidade; pois sendo considerada como movimento de um corpo, isto é, oposta ao repouso,
a faculdade subjetiva da vontade está necessariamente a serviço da liberdade objetiva de
querer ou não realizar determinadas ações:
(...) tal como as águas não tinham apenas a liberdade, mas também a necessidade de
descer pelo canal, assim também as ações que os homens voluntariamente praticam,
dado que derivam de sua vontade, derivam da liberdade; ao mesmo tempo que, dado
que os atos da vontade de todo homem, assim como todo desejo e inclinação,
derivam de alguma causa, e essa de uma outra causa, numa cadeia contínua (cujo
primeiro elo está na mão de Deus, a primeira de todas as causas), elas derivam
também da necessidade. De modo tal que para quem pudesse ver a conexão dessas
causas a necessidade de todas as ações voluntárias dos homens pareceria manifesta
(HOBBES, 1974, p.134).
Para Hobbes, tal compatibilidade ocorre porque o homem quer o agir e não o querer.
A vontade, enquanto ação, equivale à deliberação. Assim, um homem é livre para realizar a
ação que projeta quando não se depara com nenhum impedimento, mesmo que sua vontade
tenha infinitas causas. Os animais, por exemplo, deliberam porque também têm vontades;
assim como nos homens, essas ações são resultados do querer voluntário em e por si mesmo,
isto é, os desejos necessários para a vida como a fome, a sede, os apetites sensíveis, entre
outros.
Na filosofia hobbesiana, a concepção de liberdade pode ser estendida a tudo que
existe. As definições de liberdade natural e civil, tão bem desenvolvidas pelo autor nas obras
De Cive e Leviatã, serão objeto de reflexão no capítulo 3 desta tese. Porém, vale lembrar que
ambas as definições vêm ao encontro dos ideais dos movimentos, emergidos no século XVII,
bem como do conceito de inércia na medida em que um homem é considerado livre quando
não encontra impedimentos à sua ação, se alguém age livremente é porque não encontra
qualquer obstáculo interno ou externo para o desenvolvimento de sua ação, corroborando a
idéia de que todos os corpos mantêm seu estado cinético (repouso ou movimento) a não ser
que outros corpos os façam mudar.
93
Capítulo III
Liberdade e Estado
3. Liberdade e estado de natureza
Na raiz de sua filosofia, Hobbes é medieval. Nas folhas e frutos, ele é moderno. Esse
contraste se expressa na intersecção entre uma concepção de um Estado forte e a preocupação
com o ideal de liberdade. Isso torna sua filosofia política singular.
A concepção de liberdade elaborada por Hobbes quando da idealização do contrato
para a construção da sociedade civil tem sua origem na análise que fará do homem vivendo
fora do estado de sociedade, ou seja, no estado natural.
O problema da liberdade no estado de natureza será objeto de reflexão neste trabalho,
pois ali se encontra a raiz de toda a preocupação do autor na elaboração de sua teoria da
soberania. É no estado de natureza que está a razão de ser da filosofia hobbesiana, toda
análise que o autor fará sobre o homem e a liberdade tem seu fundamento no homem natural.
Para que não se perca o fio condutor do conceito de liberdade elaborado por Hobbes,
sua trilha será percorrida para que se entenda o verdadeiro papel que esse conceito terá em sua
filosofia.
3.1 O direito natural
Voltando à discussão proposta na introdução deste trabalho, ou seja, a tentativa de
desmistificar a idéia de que Thomas Hobbes é avesso às garantias das liberdades individuais,
é importante o resgate dos ideais jusnaturalistas e, a partir daí, mostrar a relação existente
entre a idéia dos movimentos dos corpos e o que isso teria acarretado nos homens vivendo em
estado de natureza, isto é, o entrechoque de corpos humanos numa realidade em que não há
normas e nem regras sociais.
Os pensadores jusnaturalistas
33
, sem a preocupação de fixar uma época cronológica e
histórica, estão de acordo quando afirmam que em algum momento o homem teria vivido um
estado puro de natureza, sendo seus objetivos principais fazer uma análise do homem neste
estado, isto é, sua forma de encarar o mundo, a natureza de seu ser, e principalmente seu
33
Jusnaturalismo: Doutrina segundo a qual existe e pode ser conhecido um direito natural, isto é, um sistema de
normas de conduta intersubjetiva diverso do sistema constituído pelas normas fixadas pelo Estado (direito
positivo). Este direito natural tem validade em si, é anterior e superior ao direito positivo e, em caso de conflito,
é ele que deve prevalecer.
94
relacionamento com os demais homens e com a própria natureza e, a partir daí, demonstrar o
que teria levado esses indivíduos ao estado de sociedade.
A corrente jusnaturalista é assim definida e usada com o objetivo de referir-se ao
desenvolvimento e à difusão que a antiga e recorrente idéia do direito natural teve durante a
Idade Moderna entre os séculos XVII e XVIII. A conceituação desse direito é um tanto
quanto complexa, pois seu significado é muito amplo e na História da Filosofia aparecem no
mínimo três versões fundamentais no sentido de identificar sua origem, a saber: a primeira é a
crença de uma lei divina, revelada aos homens; a segunda é a tese de uma lei natural inerente
a todos os seres animados e, por fim, a de uma lei ditada pela razão, assim presente
exclusivamente no homem.
A origem do jusnaturalismo moderno é marcada com a publicação da obra de Hugo
Grócio (1588 – 1625), intitulada “De iure belli ac pacis”
34
, e teve com o alemão Samuel
Pufendorf, seu discípulo, uma grande divulgação, pois este afirmava que antes de Grócio
ninguém distinguia exatamente os direitos naturais dos direitos positivos e que, por isso, para
ele, Grócio era considerado o pai do direito natural. É notável que as reflexões de Grócio
tenham sido um marco decisivo para uma definição do direito natural moderno, mas não se
pode esquecer que ele não partiu do nada e teve como fundamento de sua teoria um cabedal
de análises já realizadas desde os gregos, passando pelos pensadores medievais até a
modernidade, e certamente sofreu as influências das discussões já realizadas em todo esse
período, por sinal muito fértil no que concerne a este tema.
As análises jusnaturalistas remontam à Grécia antiga, já presentes na tragédia de
Sófocles, em que a figura de Antígona simbolizará e dará origem a essa reflexão. Na obra,
Antígona não aceita as ordens do rei, porque as considera inferiores às leis estabelecidas pelos
deuses, que são superiores e eternas. Tem-se aqui, portanto, um embrião que percorrerá toda a
História da Filosofia, na qual o cerne da discussão será se o justo por natureza se contrapõe ao
justo por lei, permitindo que surjam argumentos e hipóteses os mais diversos possíveis, e
estará presente em quase todas as reflexões filosóficas em que o tema sociedade civil for
debatido.
Ainda na Antigüidade, observa-se em Platão e Aristóteles que o tema jusnaturalismo
será motivo de muitas especulações, pois para estes toda a natureza era governada por uma lei
universal racional e imanente. Tais discussões serão depois difundidas pelos estóicos,
principalmente por Cícero, que defende a existência de uma lei verdadeira, conforme a razão,
34
O direito da paz e da guerra (1625).
95
imutável e eterna, que não se modifica com os povos e com os tempos e que os homens não
podem violar sem renegar a própria natureza humana.
A tese de um direito natural ditado pela razão será também motivo de reflexões em
todo o período medieval. Embora com significados antagônicos, várias teses a esse respeito
caminharão juntas neste período, passando por Santo Agostinho, São Tomás de Aquino,
Guilherme de Ockham, entre outros.
Na História Moderna o jusnaturalismo, que assume características laicas e no campo
político liberais, foi resultado, em grande parte, das influências da doutrina de Cícero do
direito natural e também do próprio São Tomás de Aquino, para quem a lei natural foi
imposta por Deus e se acha presente na razão humana, portanto, como norma racional. Esta
tese apesar de forte e muito difundida sofrerá uma grande oposição, primeiro por Guilherme
de Ockham, para quem o direito natural é sim ditado pela razão e revelado por Deus, mas ao
homem também é dado o direito de modificá-lo, uma vez que este possui o livre arbítrio.
Voltando à tese de Hugo Grócio, ele não só se oporá a São Tomás, como também irá
mais longe, afirmando que o direito natural é de fato ditado pela razão, sendo independente
não só da vontade de Deus, como também da sua própria existência. A tese de uma doutrina
natural como fundamento de um direito que pudesse ser reconhecido como válido por todos
os povos, isto é, um direito que tenha como fonte exclusiva de validade a sua conformidade
com a razão humana e não como algo sobrenatural, motivou definitivamente os pensadores
modernos a encararem o tema a partir desta nova versão. Esta afirmação marcará o
jusnaturalismo moderno e influenciará a sociedade no campo moral, político e do direito, isto
é, uma nova cultura será desenvolvida, agora laica e antiteológica, embora as discussões de
um direito herdado ou convencional ainda permaneçam como centro das reflexões na
modernidade.
As principais características do jusnaturalismo moderno, após Grócio, ganharão
novos enfoques e permearão toda a discussão acerca das leis positivas e o fundamento do
Estado. Em virtude disso, tem-se a chamada “Escola do direito natural”, que abrangerá
autores e correntes diversos, tais como os grandes filósofos Hobbes, Leibniz, Locke e Kant,
entre outros, que se preocuparam com problemas de ordem jurídica e política e também
juristas-filósofos como Pufendorf, Thomasius e Wolff que, ao tratar a questão do direito
natural, se dedicaram ao estudo do direito privado e público, mas com maior ênfase ao
primeiro. Por outro lado, os filósofos, especialmente Hobbes, Locke e Rousseau, terão como
tema central quase exclusivamente o direito público, o problema do fundamento e da natureza
do Estado.
96
Evidentemente, não se pode afirmar que todos esses pensadores tivessem o mesmo
nível de preocupação, pois, embora partam dos conceitos de direitos inatos, estado de
natureza, estado civil, contrato social, entre outros, o caminho a ser percorrido é específico em
cada um e às vezes apresentam diferenças profundas, tais como enquanto para alguns esses
conceitos são tratados como fatos realmente acontecidos, particularmente para Rousseau e
Kant são apresentados como meras idéias, ou seja, têm uma justificativa apenas racional e
não histórica.
Ainda que o tema acarrete inúmeras discussões, pode-se perceber nos autores um
ponto comum de convergência de idéias tão amplas e generalizadas, que é justamente o
método racional utilizado para o desenvolvimento de um estudo sobre o assunto, permitindo
tratar questões do direito, da ética, da filosofia prática, da moral e da política de uma forma
jamais adotada, ou seja, a partir da ótica da natureza humana. Assim, os temas abordados
pelos autores, com suas causas e conseqüências, são fundamentados no próprio homem e não
possuem uma explicação divina. Dessa forma, a noção de unidade dos chamados
jusnaturalistas é precisamente a idéia de que é possível uma verdadeira ciência da moral,
estabelecendo e descobrindo regras universais de conduta, através do estudo da natureza do
próprio homem. É nesta perspectiva que Hobbes procurará desenvolver sua filosofia tendo
como paradigma os ideais de exatidão das ciências naturais.
As discussões decorrentes das idéias jusnaturalistas trouxeram uma preocupação
antropológica, já que se perdeu espaço para uma justificação senhoril de tudo o que existia e
acontecia no mundo, através da teologia racional aristotélico-tomista. A partir dessas idéias, o
homem passa para o centro das preocupações e descobre-se que possui capacidades sem
limites com a autonomia do conhecimento. Assim, ele rompe as barreiras do tempo, alarga os
horizontes do conhecimento e descobre que não necessita esperar intervenções divinas para
resolver seus problemas, pois é capaz de resolvê-los pelas suas próprias forças.
Depois de Hugo Grócio, é com Thomas Hobbes que essa discussão volta à tona, ou
seja, com a preocupação antropológica dessa nova concepção do homem moderno, ressurge a
discussão do direito natural, pois, junto ao paradigma da modernidade, constituiu-se a questão
do progresso, do desenvolvimento que se estabeleceu na sociedade. A busca de uma
fundamentação a partir do direito natural consiste em saber se o homem em algum momento
viveu em um estado puro de natureza e em que consistiu tal estado. E, ainda, se no momento
em que o homem deixa o estado de natureza e passa a viver na sociedade civil, deixa de
existir como estado de natureza ou o mesmo continua existindo em seu espírito.
97
É possível que Hobbes tenha uma resposta para essas questões. Mas para respondê-
las com eficácia, será necessário, em primeiro lugar, recorrer ao pensamento hobbesiano
quanto à vida do homem em estado natural.
98
3.2 O estado de natureza
Entre todos os pensadores da modernidade é em Thomas Hobbes que se encontrará a
discussão do homem natural mais detalhada, mostrando sua análise de todo o processo, com
um método muito peculiar:
Todas as paixões da mente humana, com uma só exceção, podem ser observadas em
outras criaturas vivas. Elas sentem desejos de toda espécie, amor, ódio, medo,
esperança, ira, piedade, emulação etc; apenas da curiosidade, que é o desejo de
conhecer as causas das coisas, nunca vi sinal em nenhuma criatura viva exceto o
homem (HOBBES, 1646 apud RIBEIRO, 1999, p.44).
Antes, porém, de qualquer análise sobre o estado de natureza, é necessário explicitar
dois conceitos básicos utilizados por Hobbes e que percorrerão toda a sua teoria. A partir da
citação acima, já se percebe quais são esses conceitos, que de uma forma geral estão
entrelaçados e que serão o cerne da filosofia hobbesiana, a saber: as paixões e a razão. Na
obra Leviatã, Hobbes afirma:
O desejo de saber o porquê e como chama-se curiosidade, e não existe em qualquer
criatura viva a não ser no homem. Assim, não é só por sua razão que o homem se
distingue dos outros animais, mas também por esta singular paixão. Nos outros
animais o apetite pelo alimento e outros prazeres dos sentidos predominam de modo
tal que impedem toda preocupação com o conhecimento das causas, o qual é um
desejo do espírito que, devido à persistência do deleite na contínua e infatigável
produção do conhecimento, supera a fugaz veemência de qualquer prazer carnal
(HOBBES, 1974, p.39).
Estes conceitos permearão toda a teoria hobbesiana e, portanto, cabe aqui uma
reflexão mais detalhada sobre eles. O próprio autor, na citação anterior, afirma que as paixões
estão presentes em todos os seres vivos, mas o desejo de conhecer-lhes a razão somente no
homem, o que demonstra seu objetivo de diferenciar a natureza humana da dos demais
animais.
A presente reflexão começa por esta afirmação, mostrando o que seriam tais paixões,
como estão presentes em todos os animais e porque a razão é exclusividade do homem. Veja-
se como Hobbes as definiu.
Como o século XVII, vivenciado pelo autor, foi um período de profundas mudanças,
principalmente com o advento da chamada revolução científica que introduziu novas formas
de encarar o mundo, Hobbes não ficou incólume a elas. O objetivo agora é entender como se
processou toda essa mudança e como Hobbes será um grande colaborador dessa nova ordem.
99
O que se pode afirmar é que, antes do homem pensar em termos mecânicos, as coisas
eram representadas de forma teleológica, isto é, as explicações eram baseadas nos conceitos
de utilidade e Bem. O Bem é o valor maior que todos devem buscar, assim, há uma estrutura,
uma hierarquia de valores na sociedade, que culmina com o Sumo-Bem, que deve ser
almejado por todos. Tal estrutura durará por séculos e servirá de guia para todas as paixões
humanas.
Analisando de uma forma mais objetiva, percebe-se que o Bem era a causa final, a
tendência natural dos homens, já que todos o almejavam. Esse, portanto, pode ser encarado
como a felicidade, a perfeição, a realização, entre outros, ou seja, valores que eram tidos
como superiores e a que todos os sujeitos deveriam aspirar. Dessa forma, existe a necessidade
de conhecimento dos valores do Bem, pois só assim o sujeito tenderá para ele. Conhecendo-o,
ele o amará e fará disso o norteamento de sua vida.
Cabem neste momento algumas indagações a respeito de tais valores, apenas a título
de contribuição, pois não serão objetos de estudo desse trabalho, mas servirão como meios
para entender o papel que Thomas Hobbes assumirá na discussão a respeito das seguintes
indagações: Por que o homem tem uma tendência para o Bem ? O que é o Bem ? Como
conhecê-lo ? Evidentemente todas essas questões não são fáceis de serem respondidas e
durante toda a existência humana os pensadores e intelectuais das mais diversas correntes e
segmentos sociais buscaram respostas para elas, causando grande celeuma na sociedade, na
Igreja e nas instituições em geral. A natureza humana será colocada num tribunal em que
todos farão conjecturas a respeito, na ânsia de encontrar respostas para essas questões e o
interessante é que todos as encontrarão, mas de formas divergentes, o que acirrará ainda mais
essas discussões. Mas a maioria concorda num ponto: existe no homem uma tendência para
algo, como se fosse um motor, um desejo, uma vontade, que podem ser denominados paixões.
Essas discussões, teorias e conjecturas ganharão um interlocutor incisivo quando, no
século XVII, o mundo passa a ter acesso às idéias de Hobbes que, por ser um pensador
sistemático, busca por meio de um método muito peculiar entender a natureza humana. Seu
objetivo é saber qual o fundamento em que se assentam as sociedades políticas e para isso
fará um estudo detalhado do homem, como que se isolasse cada indivíduo para conhecê-los
no seu mais íntimo ser e a partir daí remontá-los, desvendando cada um dos seus segredos, até
a formação da sociedade civil, a fundamentação do Estado e o problema da liberdade.
O que Hobbes tenta estender aos domínios da ética e da política são os fundamentos
da física, da geometria e das ciências exatas. Realiza seu projeto filosófico em obras
100
concernentes à física, que manifestam um encadeamento lógico-dedutivo ou nas obras
políticas em que o procedimento é o mesmo.
Vários de seus textos são taxativos e estão escalonados, sucedendo-se uns aos outros
em rigorosa construção lógica, quase todos visando ao ponto central a respeito da política e da
física. Veja-se a afirmação:
Mas para aqueles que buscam a ciência indefinidamente, que consiste no
conhecimento das causas de todas as coisas, o tanto quanto este possa ser alcançado
(e as causas das coisas singulares são compostas pelas causas das coisas universais
ou simples) é necessário que eles conheçam as causas das coisas universais, ou de
tais acidentes enquanto eles são comuns a todos os corpos, isto é, a toda matéria,
antes de poderem conhecer as causas das coisas singulares, quer dizer, daqueles
acidentes pelos quais uma coisa é distingüida de outra. E, novamente, eles precisam
conhecer o que são essas coisas universais, antes de poderem conhecer suas causas.
Além disso, visto que as coisas universais estão contidas na natureza das coisas
singulares, seu conhecimento deve ser adquirido pela razão, isto é, por resolução
(HOBBES, 1998, p.116).
Na análise sobre as paixões, Hobbes parte do seguinte princípio: todos os homens
são iguais por natureza.
Tal afirmação mostra que naturalmente os homens são iguais entre si e que toda a
desigualdade que se percebe hoje é fruto da lei civil. É justamente dessa igualdade natural que
se originam o medo recíproco e a tendência que o homem tem à dominação de outrem.
Dessa forma, o autor reduz as faculdades da natureza humana a quatro espécies:
força física, experiência, razão e paixão; sendo as últimas objeto desta reflexão. A partir daí
tentará demonstrar quais dessas faculdades conduzirá o homem para a formação da sociedade
civil.
Thomas Hobbes definiu dois tipos de movimentos específicos nos animais, a saber: o
movimento vital, que nasce com a geração e continua até o final da vida, sem interrupção. Já
o outro movimento foi definido como movimento voluntário, porque depende sempre de um
pensamento anterior. O que ele evidencia com essas divisões de movimentos animais é que a
origem dos movimentos dos corpos ocorre pelo simples fato destes se tocarem (entrechoques),
ou seja, a sensação nada mais é do que um resultado do choque dos corpos humanos que,
após esse primeiro contato, o mantêm armazenado na imaginação, garantindo a evolução
desses movimentos. Assim, o primeiro movimento interno humano é a própria imaginação e,
mesmo que esses movimentos que afetam os corpos sejam quase imperceptíveis e
insensíveis, não deixam de existir.
101
Retomando a idéia de movimento e como isso afeta o corpo humano, existe,
portanto, um movimento que é microscópico, capilar, quase imperceptível, que dá início ao
movimento no interior do corpo, antes mesmo de manifestar-se objetivamente, denominado
esforço, o conatus, que se caracteriza, pensando na relação sujeito-objeto, naquilo que vai ao
encontro de algo que o provocou.
Como vimos, esse pequeno movimento interno no homem antes de se manifestar
visivelmente chama-se esforço. Quando vai em direção a algo que o causa, chama-se apetite
ou desejo e, quando se dirige ao sentido contrário, define-se por aversão. Mas a origem de
ambos não deixa de ser o próprio movimento, de modo que derivam da experiência e da
própria comprovação humana de seus efeitos. A tendência, portanto, é aproximar-se daquilo
que dá prazer (desejos) e evitar o que causa dano (aversão); embora muitas vezes tenhamos
aversão pelo que ainda não conhecemos nem provamos, pelo simples fato de não sabermos o
resultado que isso trará para nós, podendo causar-nos dano. Mesmo assim, o primeiro impulso
é sempre provar.
Esse conceito é, sem sombra de dúvida, o elemento central da teoria hobbesiana, isto
é, toda natureza humana é sintetizada nessa idéia elementar do conatus, do desejo de atingir
algo. Este será o grande impacto que tal teoria trará para a sociedade. Aderir a esse
pensamento significa simplesmente admitir que já não mais existe um império da razão, pelo
contrário, o papel que as paixões desempenharão neste processo será muito relevante.
Na perspectiva de entender as influências do conatus no homem, chega-se à
definição de um outro conceito que também será muito requisitado pelo autor, cuja
explicitação em muito ajudará o entendimento da teoria como um todo. Trata-se da reta-
razão.
35
Segundo Hobbes, a verdadeira razão faz parte da natureza humana como qualquer
outra faculdade, por isso pode ser definida como natural e não pode ser considerada infalível,
já que o ato de raciocinar é peculiar e verdadeiro para cada homem. Essa afirmação retoma
uma discussão antiga na História da Filosofia (desde o período Helenístico: entre os séculos
III e I a.C.), que tem como precursores os estóicos, porque foram os primeiros a relacionarem
a razão à natureza humana. Neste período, a filosofia é constituída por grandes sistemas ou
doutrinas, isto é, explicações sobre a natureza, o homem, as relações entre ambos e destes
35
Reta-razão: Critério ou medida racional das coisas, ou seja, o princípio para julgá-las. Para Platão, a reta-razão
do nome é mostrar o que a coisa é, entendendo que este é o critério para julgar acerca da justeza do nome.
Aristóteles a usa com o mesmo sentido, identificando-a com a sabedoria. Mas foram sobretudo os estóicos que
deram o significado técnico ao termo, ao designarem com ele a conveniência ou bem, que consiste em estar de
acordo com a natureza.
102
com a divindade. As especulações ocorreram quando da dominação da Grécia pelo Império
Romano e os filósofos já não podiam ocupar-se diretamente com política, física, teologia e
religião.
Dentre os estóicos, encontramos Cícero (106 – 43 a.C.), que sustenta a tese de que a
razão foi dada pela natureza e é isso que nos faz superiores aos animais, porque graças a ela
podemos concluir, demonstrar, expor, refutar etc. A razão é comum a todos os homens, pois
todos partilham da mesma natureza, assim, a todos também foi dada a reta-razão, isto é, a lei,
já que é a reta-razão que proíbe ou aprova os atos humanos. Podemos inferir, assim, que se
existe lei, que é natural, também existe o direito. E como para todos foi dada a razão,
conseqüentemente também o direito foi concedido a todos. É justamente neste ponto que
Hobbes mais se aproximará de Cícero, uma vez que ambos defenderam a lei natural como
imutável e comum a todos. Escreveu Hobbes:
As leis de natureza são imutáveis e eternas: o que elas proíbem nunca pode ser lícito;
o que ordenam jamais pode ser ilegal. Pois a arrogância, a ingratidão, a quebra de
contrato, a desumanidade, a contumélia nunca serão lícitas, nem as virtudes a elas
contrárias jamais poderão ser ilícitas, se as entendermos como disposições do
espírito, isto é, assim como serão consideradas no tribunal da consciência, único
lugar onde obrigam, e onde são leis (HOBBES, 1998, p.71).
É importante salientar que como os homens possuem igualdade natural em suas
faculdades, a reta-razão será o ponto de equilíbrio, uma vez que servirá de norteamento tanto
no estado de natureza quanto no estado civil.
O pressuposto para uma reflexão sobre a liberdade dos indivíduos, fora da sociedade
civil, ou seja, em estado de natureza é, sem dúvida, demonstrar que o homem difere das
demais criaturas vivas, ainda que às vezes sinta as mesmas paixões, pois é o único que,
movido pela razão, busca entender as causas das paixões. Portanto, o estado de natureza é
apenas um instante na vida do homem que, ao compreender seu verdadeiro significado, busca,
ainda que se sinta dominado pelo medo, uma solução para superar esta condição, sob pena de
sua própria destruição.
A teoria elaborada por Hobbes, no que se refere ao estado de natureza, afasta-o da
grande parte dos filósofos políticos, que afirmam existir no homem uma tendência natural
para se agrupar em sociedade. Já em sua obra Do Cidadão, tece argumento contrário a esta
tese, e principalmente contra Aristóteles,
36
para quem o homem é um animal social e já está
naturalmente incluído numa ordem ideal, isto é, acredita que o Estado é uma criação natural
36
Aristóteles. A Política. Trad. Roberto Leal Ferreira, livros I e II. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
103
da vida do homem em sociedade. O primeiro agrupamento social verificado foi a formação da
família objetivando o suprimento das necessidades diárias, sem qualquer imposição ou
contrato, na medida em que essa célula-mãe do Estado deu-se de forma natural, sem qualquer
tipo de intervenção humana ou divina.
Aristóteles parte de um estado pré-político no qual tem início a sociedade, isto é, a
família como núcleo de todas as formas sociais posteriores, entendendo a sociedade como
familiar, no sentido amplo de organização da casa. Isso significa que há uma relação
hierarquizada, como nas relações entre pais e filhos e senhores e escravos. A interpretação
hobbesiana quanto ao estágio pré-político é bem diversa desta, pois afirma que o princípio
está no indivíduo, sendo caracterizado como um estado em que os homens vivem isolados e
fora de qualquer organização social. Aqui não há uma relação de hierarquia, já que é um
estado de liberdade e igualdade.
Depois da solidificação da família no tempo, Aristóteles afirma que se verificou uma
nova espécie de união, agora entre as famílias, também de forma natural, e que objetivou a
consecução de finalidades maiores não atingidas pela família de forma isolada, como defesa,
por exemplo, dando ensejo assim ao aparecimento de aldeias.
A união das aldeias formadas por diversas famílias deu origem às cidades e a união
dessas derivou a formação das Cidades-estado que objetiva a consecução do bem comum. A
construção desse modelo, que se diz natural, foi resultado de um processo lento e gradual, que
apresentou condições bem objetivas, como por exemplo a ampliação do território, o aumento
populacional, a necessidade de defesa, a própria inventividade para obtenção dos meios
necessários à subsistência, a divisão do trabalho etc. Todos esses fatores aliados à necessidade
humana desencadearam na formação da Cidade-estado. Portanto, entre a sociedade primitiva e
originária e a sociedade civil e perfeita, que é a Cidade organizada, há uma relação de
continuidade, de evolução ou de progressão. Assim, neste processo o homem passou por fases
intermediárias, que fazem da sociedade civil não a antítese do estado pré-político, mas a
conseqüência natural e o ponto de chegada necessário, que, após diversas etapas obrigatórias,
culminou nesta fase, bem mais evoluída.
Para Aristóteles, a Cidade-estado, em última análise, nada mais é que o resultado
natural da união dos indivíduos que habitam um determinado território. Não há, portanto,
intervenção humana na sua origem, ou seja, a passagem de uma fase à outra, do pré-político
para o estado político, ocorre por um processo natural de extensão das sociedades menores à
sociedade maior, não se devendo a um contrato, a um ato racional, mas sim ao efeito das
causas naturais já salientadas.
104
Em Hobbes isso não ocorre; e é justamente contra essa teoria que elaborará o seu
conceito sobre estado de natureza, deixando claro que os homens não vivem em cooperação
natural, como fazem as abelhas e as formigas; o acordo entre essas é natural e entre os
homens é puramente artificial:
A maior parte daqueles que escreveram alguma coisa a propósito das repúblicas ou
supõe, ou nos pede ou requer que acreditemos que o homem é uma criatura que
nasce apta para a sociedade. Os gregos chamam-no zoon politikon; e sobre este
alicerce eles erigem a doutrina da sociedade civil como se, para se preservar a paz e
o governo da humanidade, nada mais fosse necessário do que os homens
concordarem em firmar certas convenções e condições em comum, que eles próprios
chamariam, então, leis. (...) Pois aqueles que perscrutarem com maior precisão as
causas pelas quais os homens se reúnem, e se deleitam uns na companhia dos outros,
facilmente hão de notar que isto não acontece porque naturalmente não poderia
suceder de outro modo, mas por acidente (HOBBES, 1998, pp.25 e 26).
Destas afirmações, percebe-se claramente que o objetivo do autor é preparar o
caminho para a definição de estado de natureza, uma vez que os homens são movidos por
paixões como o apetite, o desejo, o amor, o ódio, a aversão, a alegria e a tristeza. É natural
que essas, que são causadas pela ação de corpos externos, provoquem nos homens a atração
ou a rejeição de objetos que lhes causem sensações, donde se conclui que, em um dado
momento, o desejo pelo mesmo objeto pode ocorrer e o conflito será inevitável, já que a
sensação de bom e mau está no próprio homem e não no objeto. Assim, percebe-se a idéia de
que o homem na sua condição natural manifesta uma pluralidade indefinida de desejos (e
prazeres), sem que haja um controle ou mesmo uma hierarquia, pois cada indivíduo possui um
grau de desejo. Viver em sociedade resulta, basicamente, em um embate de corpos, um
cruzamento indefinido de desejos, impossível de serem controlados.
Dessa concepção, pode-se extrair do autor a definição de desejo, que em essência é o
fundamento específico de cada sujeito:
É ele quem aciona toda a máquina passional do sujeito e todas as paixões derivadas
(esperança, coragem, cólera, ambição, ciúme, admiração, glória, vergonha, piedade
etc.) nada mais são que derivações dos três pares fundamentais (desejo/aversão;
amor/ódio; prazer/desprazer), para estes, como vimos, que têm como eixo o próprio
desejo e nada mais são do que modalidades dele. Essa derivação supõe a colocação
em jogo do espaço inter-humano e através dela instaura-se o lugar do ser humano no
estado de natureza (MONZANI, 1995, p.87).
É isso que produz um estado de natureza conflituoso. Naturalmente, jamais poderá
ser um espaço de harmonia e concórdia, porque cada indivíduo tem graus específicos de
vontade, obedecendo uma lei que lhe é interna e da qual ele, sujeito, será a expressão,
105
podendo a qualquer momento deixar aflorar e entrar em confronto com os demais, já que não
existe neste estado uma regra geral, que seja aceita por todos. Portanto, a sua regra será regra
geral, na sua concepção. Desta forma, se o conflito não for real, é em potencial e é esse estado
que regula a ação dos indivíduos. Assim, Hobbes rompe com uma longa tradição, segundo a
qual a sociabilidade é algo natural aos homens, caracterizando, deste modo, o estado de
natureza como antagônico ao civil.
Para Thomas Hobbes, se for observada a natureza humana, será percebida uma
tendência clara e objetiva de qualquer homem para a busca, em primeiro lugar, de suas
satisfações pessoais e interesses específicos e, a partir daí, ser destacado por isso, para que
seja reconhecido pelos demais. O que está em jogo evidentemente é, portanto, a idéia da
autopromoção e a busca da própria vã glória. Ele analisa esse comportamento como o
primeiro instinto humano de auto-preservação, ou seja, na ânsia da auto-defesa (medo), o
homem busca o ataque, mesmo que de maneira sutil, pois ser reconhecido e respeitado pelos
demais já é uma garantia de não ser atacado. Por isso, o autor escreveu:
Mas, se acontecer que, numa reunião, se passe o tempo contando histórias, e alguém
comece a narrar uma que lhe diz respeito, imediatamente todos os demais, com a
maior avidez desejam falar de si próprios: se um conta alguma maravilha, os demais
narrarão milagres, se os tiverem, se não tiverem os inventarão. Finalmente,
permitam-me dizer algo daqueles que pretendem ser mais sábios que os demais; se
eles se reúnem para falar de filosofia, sejam eles quantos forem, tantos serão os que
desejariam ser estimados mestres, e se não o forem não apenas não amarão seus
próximos, mas até os perseguirão com seu ódio. Assim esclarece a experiência, a
todos aqueles que tenham considerado com alguma precisão maior que a usual os
negócios humanos, que toda reunião, por mais livre que seja, deriva quer da miséria
recíproca, quer da vã glória, de modo que as partes reunidas se empenham em
conseguir algum benefício, ou aquele mesmo eudokimein (fama) que alguns
estimam e honram junto àqueles com quem conviveram (HOBBES, 1998, p.27).
O medo recíproco que impera entre os homens no estado de natureza decorre, sem
dúvida, da igualdade natural entre eles, pois a qualquer momento tanto podem ferir como ser
feridos, em decorrência da fragilidade do próprio corpo que, ao ser perecido, destroem-se
também a força, o vigor e a sabedoria, de onde se conclui que não há superioridade de um
homem sobre os outros.
Partindo da premissa de que todos os homens são iguais por natureza, tentarão de
várias maneiras causar danos aos demais como forma de auto-preservação, utilizando-se de
diversos recursos, às vezes pela simples arrogância de se acharem superiores e, portanto, com
mais poder, outras para defender sua liberdade e seus bens da própria violência de outrem,
106
tentando também garantir a preservação do seu espaço e do seu interesse. Isso significa que
para Hobbes:
Todo o prazer e alegria da mente consistem em encontrar pessoas que, se nos
comparamos a elas, nos fazem sentir triunfantes e com motivo para nos gabar; por
isso é impossível que os homens não venham eventualmente a manifestar algum
desprezo ou desdém pelo outro, seja por meio de risada, ou de palavras, ou de
gestos, ou de um sinal qualquer. Não há maior humilhação para o espírito do que
esta, e possivelmente nada poderá causar maior desejo de ferir (HOBBES, 1998,
p.30).
É fundamental antes de quaisquer afirmações a respeito do estado de natureza,
esclarecer o que Hobbes denomina como direito e, conseqüentemente, liberdade. O que ocorre
neste estado é justamente um eterno conflito, como já se demonstrou na questão dos
movimentos dos corpos, simplesmente pelo fato de que os desejos naturais impulsionam os
homens para a busca daquilo que lhes dê prazer, porque todo homem almeja o que é bom para
ele. Assim, movidos pelos seus desejos poderão acarretar os entrechoques de seus corpos.
Para Hobbes, a noção de direito tem seu fundamento na teoria mecanicista, isto é, o homem é
concebido como um corpo qualquer que está submetido aos movimentos do universo e neste
processo pode se chocar com outros, iniciando assim o conflito, que via razão tentará superar,
estabelecendo regras. Desta concepção, o autor define como direito, evidentemente no estado
natural, a liberdade que todo indivíduo possui para utilizar suas faculdades naturais em
consonância com a reta-razão, já que esta é a principal característica da natureza humana e
todas as demais não devem ferir esse princípio fundamental, porque seriam consideradas
injustas:
Portanto, a verdadeira razão é uma lei certa, que (já que faz parte da natureza
humana, tanto quanto qualquer outra faculdade ou afecção da mente) também é
denominada natural. Por conseguinte, assim defino a lei da natureza: é o ditame da
reta-razão no tocante àquelas coisas que, na medida de nossas capacidades, devemos
fazer, ou omitir, a fim de assegurar a conservação da vida e das partes de nosso
corpo (HOBBES, 1998, p.38).
Isto posto, é inevitável que os homens entrarão em conflito, porque os desejos pelas
mesmas coisas ocorrerão e muitas não serão compartilhadas e desfrutadas em comum e,
portanto, o que definirá sua posse é justamente a força, o embate. Essa é a primeira
fundamentação do direito natural, ou seja, é direito de todo indivíduo, para proteger seu corpo
e membros da morte e dos sofrimentos, usar todos os meios possíveis para essa auto-defesa e
preservação da vida:
107
Ora, aquilo que não contraria a reta razão é o que todos os homens reconhecem ser
praticado com a justiça e direito; pois, pela palavra direito, nada mais se significa do
que aquela liberdade que todo homem possui para utilizar suas faculdades naturais
em conformidade com a reta razão. Por conseguinte, a primeira fundação do direito
natural consiste em que todo homem, na medida de suas forças, se empenhe em
proteger sua vida e membros (HOBBES, 1998, p.31).
Em decorrência do direito natural, isto é, de todo indivíduo ter direito à vida, ao que
é necessário à sobrevivência do seu corpo e à liberdade, ainda que por natureza uns sejam
mais fortes e outros mais fracos, no estado natural tudo pertence a todos e a solução, ou
melhor, o direito está na vantagem que um levará sobre o outro, já que é legítimo ter tudo e
tudo cometer, pois não há leis. É notório que esse direito e essa liberdade serão limitados, na
medida em que tanto um quanto outro poderão reivindicar a posse de todas as coisas e,
portanto, o desfrute de tal coisa é perigoso, pois a qualquer momento se corre o risco de
perdê-la para outrem e conseqüentemente o conflito torna-se outra vez inevitável.
A origem deste constante conflito é descrita por Thomas Hobbes como uma
conseqüência natural do próprio homem, uma vez que todo o movimento inicial de ação
humana é determinista, isto é, movido pelo desejo constante, que é inerente a todos os corpos
e se faz presente no homem como resposta a essa solicitação, ou seja, esse movimento animal
interno, definido como conatus (esforço/empenho), é o ponto de partida de suas ações.
Se essas paixões (desejos) valem para todos os homens, será inevitável que a busca
por algo que lhes agrade será desenvolvida e almejada por todos, daí decorrendo a razão mais
comum por que os homens desejam ferir-se sempre uns aos outros. Ao mesmo tempo, todos
têm um apetite (desejo) pela mesma coisa, que na maioria das vezes não pode ser dividida,
nem utilizada em comum e a conseqüência é o confronto, do que se conclui que o mais forte
há de possuí-la. Sobre o direito natural, Hobbes escreveu:
A natureza deu a cada um um direito a tudo; isso quer dizer que, num estado
puramente natural, ou seja, antes que os homens se comprometessem por meio de
convenções ou obrigações, era lícito cada um fazer o que quisesse, e contra quem
julgasse cabível, e portanto possuir, usar e desfrutar tudo o que quisesse ou pudesse
obter. Basta um homem querer uma coisa qualquer para que ela já lhe pareça boa, e
o fato de ele a desejar já indica que ela contribui, ou pelo menos lhe parece
contribuir, para sua conservação. (...) E é este o significado daquele dito comum, ‘ a
natureza deu tudo a todos’, do qual portanto entendemos que, no estado de natureza,
a medida do direito está na vantagem que for obtida (HOBBES, 1998, pp.32 e 33).
Este é o ponto de discórdia para aqueles que entendem que a filosofia hobbesiana
tem uma base moral. Para Leo Strauss (1963), que desejava combater o relativismo moral por
meio da reflexão filosófica, o ideal era não identificar a filosofia de Hobbes à ciência
108
moderna, pois, como esta se separa da ética, permitiria o livre curso do relativismo e Strauss
deseja vê-lo entre os filósofos que entendiam que os fins naturais dos seres humanos
validavam seus deveres morais.
Neste estado natural descrito por Hobbes, é importante ressaltar as faculdades da
natureza humana por ele analisadas; sem dúvida as paixões serão responsáveis pela condução
dos homens à formação da sociedade civil, isto porque as outras três faculdades, a saber:
razão, experiência e força física, não serão capazes de tirar os homens deste estado de
natureza conflituoso, donde conclui-se que, respondendo à questão proposta no início deste
capítulo, ou seja, quais faculdades da natureza humana levarão os homens à sociedade civil, a
resposta é objetiva: o medo (paixão), uma vez que todos os homens buscam a felicidade, isto
é, aquilo que lhes dá prazer e que lhes agrada. E não há exceção. Independentemente dos
diversos meios que empregam, o fim é o mesmo. O que leva um homem a lançar-se à guerra e
outros a evitá-la é o mesmo desejo, embora revestido de visões diferentes. O desejo só dá o
último passo com este fim; é isto que motiva as ações humanas:
As paixões que fazem os homens tender para a paz são o medo da morte, o desejo
daquelas coisas que são necessárias para uma vida confortável e a esperança de
consegui-las através do trabalho. E a razão sugere adequadas normas de paz, em
torno das quais os homens podem chegar a acordo (HOBBES, 1974, p.81).
Os principais autores que tentaram buscar um fundamento para a origem da
sociedade civil sempre partiram da premissa de que existe uma pré disposição do homem para
a vida em sociedade, de forma que afirmam existir uma aptidão natural para tal feitio e que a
organização social ocorreu de modo pacífico, isto é, os homens concordando em firmar
acordos e convenções para viver socialmente. Tal concepção sob a visão hobbesiana é
totalmente descabida, simplesmente pelo fato de que esses autores, fora algumas exceções,
como por exemplo Maquiavel, nunca analisaram a natureza humana de uma forma profunda,
pois se o fizessem entenderiam o verdadeiro motivo: o medo da morte. Para Thomas Hobbes,
se:
(...) tivessem todos os homens tal natureza, não seria necessário o Leviatã, monstro
que governa pelo medo: mas então eles não seriam guerreiros hobbesianos, nem
animais sociais ao feitio aristotélico: simplesmente deuses. Enquanto é para a
dividida condição humana que Hobbes faz a sua política: o homem é para o homem
lobo e deus – não é apenas lobo porque não suportaria o governo, na frase de sir
William Temple, nem é carneiro, pois dele não necessitaria. ‘A paixão com que se
deve contar é o medo’(Leviathan, XIV, p.200) – mas isso para aqueles que se
animalizam, correndo sempre por riquezas, poder e prazeres (RIBEIRO, 1999, p.44).
109
Assim, pode-se dizer que toda filosofia hobbesiana percorre a trilha do medo, porque
este é o eixo central de todas as discussões que envolvem o tema, determinando assim a base
para a fundamentação do Estado: “(...) Porque é devido ao medo da carnificina recíproca que um homem
se submete ao domínio de outro” (HOBBES, 1998, p.47).
O fato de Hobbes ter na essência de sua filosofia o fator medo como sendo de grande
relevância para a deflagração do pacto social torna-a singular, pois eleva o medo da morte, ou
melhor, a preservação da vida, ao estatuto de princípio de filosofia moral e civil.
Dos filósofos chamados contratualistas, Hobbes foi um dos que melhor analisaram a
natureza humana, passando por diversas reflexões, chegando à conclusão de que somente
pelas leis da natureza o homem não conseguiria preservar sua paz e muito menos a própria
vida, porque no estado natural ambas estavam sempre sendo ameaçadas, evidentemente,
porque neste estado tudo é permitido, porque todos são iguais e, dessa forma, a lei natural
mais temida é o medo da morte e é esta lei que conduzirá o homem à formação da sociedade
civil. Por isso, para o autor:
A passagem da guerra à paz, do olhar ao privilégio da produção, vincula-se ao
agravamento irreversível da desigualdade entre os homens. No estado de natureza
estes são iguais, mas essa igualdade, acompanhada de instável desigualdade, só
aparece face à morte, a sempre possível morte de cada pessoa nas mãos de seu
próximo. Os homens nascem iguais: porque morrem da mesma maneira, porque
qualquer um pode matar qualquer um. (...) É a igualdade que dá aos homens a
vontade de se matarem e roubarem uns aos outros, que os faz almejarem o poder
sobre seus semelhantes; é na igualdade entendida como agressão, em suma, que se
encontra a raiz das diferenças, ou seja, da desigualdade (RIBEIRO, 1978, pp.19 e
20).
Parece ocorrer uma contradição na teoria hobbesiana, quando afirma que no estado
natural impera a guerra ao mesmo tempo que a lei fundamental e primeira da natureza ordena
que a paz deva ser procurada. Apesar de ser clara a oposição entre as idéias de que a busca da
paz é a maior lei da natureza e o homem vive em guerra constante no estado de natureza,
Hobbes tem uma explicação para isso e demonstra que não há contradição alguma. O
princípio de sua reflexão é a igualdade dos homens no estado natural, pois como já se
afirmou, esta igualdade está no aspecto físico e também na inteligência e na sabedoria.
É a igualdade que será causa do medo e da insegurança, embora os homens almejem
a paz e a liberdade, terão necessidades e desejos e, como também já foi explicitado, a busca
pela satisfação destes ocorrerá surgindo a competição e, inevitavelmente, o conflito; daí
decorre que não há contradição, pois embora os homens almejem a liberdade e a paz, têm
desejos que, como afirma Hobbes, são movimentos incontroláveis e algumas vezes até
110
imperceptíveis que os conduzirão à busca dos objetos que lhes darão prazer e a satisfação
desses desejos. Assim, não havendo controle, a desordem será instaurada, bem como o desejo
de dominação de outrem.
Pode-se entender que o cerne do pensamento hobbesiano está no aspecto da
competição, principalmente porque para ele a ação humana é determinista, ou seja, tudo tem
uma causa, inclusive as decisões da vontade, não havendo, portanto, uma liberdade humana.
Assim, os sentimentos de alegria, tristeza, prazer, dor, bondade, maldade serão causados pela
posse ou não de determinados objetos. A vida é encarada como uma constante competição,
em que o importante não é apenas participar, e sim vencer sempre.
Partindo deste pressuposto, conclui-se que estado de natureza é sinônimo de estado
de guerra e, conseqüentemente, sem liberdade, porque os homens têm os mesmos desejos e a
necessidade de vencer sempre, o que faz com que seja instaurado um conflito constante no
estado natural, fomentado principalmente pela necessidade de posse de determinados objetos.
Deste modo, o mais forte entra em competição com o mais fraco até vencê-lo e impor-lhe sua
vontade e seu desejo. Disto decorre o estado de guerra e, de acordo com Thomas Hobbes,
existem três causas principais da discórdia humana, a saber: a competição, a desconfiança e a
glória:
De modo que na natureza encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro,
a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória. A primeira leva os
homens a atacar os outros tendo em vista o lucro; a segunda, à segurança; e a
terceira, à reputação (HOBBES, 1974, p.79).
Sob o estado de natureza, o direito significa aquilo que é útil e isso fará com que os
homens necessariamente busquem e tentem conquistar o bem que lhes dará prazer e utilidade.
Assim, para o autor, apesar de parecer que os homens têm uma tendência para o egoísmo, ou
seja, uma inclinação natural, um perpétuo desejo de poder, este é resultado de um processo
mecânico que se inicia na sensação e será a causa geradora do constante conflito:
Alguns objetam que, se este princípio for admitido, necessariamente se seguirá, não
apenas que todos os homens sejam perversos (...) mas que o são por natureza. Mas
essa proposição, de que os homens são maus por natureza, não decorre deste
princípio; pois, embora os perversos fossem inferiores em número aos justos, no
entanto, porque não temos como distingui-los, temos a necessidade de suspeitar, de
nos acautelar, de prevenir, de nos defender, necessidade esta que afeta até os mais
honestos e de melhores condições. E disso não decorre absolutamente que aqueles
que são maus o sejam por defeito de natureza, isto é, de seu próprio nascimento:
porque, sendo criaturas meramente sensíveis, eles têm a disposição que ora exponho:
imediatamente e quanto puderem, eles desejam e fazem tudo o que melhor lhes
agrada, e dos perigos que deles se acercam eles ou fogem, por medo, ou com vigor
111
tratam de repeli-los; mas isso não é razão para considerá-los maus ou perversos
(HOBBES, 1998, pp.14 e 15).
Na guerra de todos contra todos, é impossível saber o que é justo e o que é injusto,
pois não há um poder mediador para julgar. Segundo Hobbes, não existe lei e onde não há lei,
não há injustiça. Não existe a concepção do que é bom e nem do que é mau, posto que não há
nada que diga ou estabeleça o que seja bom e o que seja mau. Neste caso, a lei é o que
prescreve as determinações das boas ações humanas, isto é, dos mais fortes.
Deste modo, fica estabelecido que o homem tem um direito fundamental que é a
auto-conservação e, inevitavelmente obedecendo seu próprio instinto de conservação,
buscará na violência a saída para que esse direito seja preservado, sendo essa a principal
característica da lei natural e portanto não há contradições.
Da análise do estado de natureza e da idéia de que os homens teriam uma propensão
natural a se ferirem uns aos outros, a conclusão a que se chega é a de que é sinônimo de
estado de guerra, uma vez que a liberdade que cada homem possui neste estado de usar seu
próprio poder da forma e maneira que quiser, para preservação de sua própria natureza, ou
seja, de sua vida e, naturalmente, realizar aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe
indiquem para alcançar seus objetivos, será geradora de insegurança e os homens deixados a
si próprios viverão num estado de anarquia, imperando a angústia e o medo. Hobbes assim o
definiu:
(...) não haverá como negar que o estado natural dos homens, antes de ingressarem
na vida social, não passava de guerra, e esta não era uma guerra qualquer, mas uma
guerra de todos contra todos. Pois o que é a guerra, senão aquele tempo em que a
vontade de contestar o outro pela força está plenamente declarada, seja por palavras,
seja por atos? O tempo restante é denominado paz (HOBBES, 1998, p.33).
Desta perspectiva, estado de natureza será constantemente estado de guerra. Como
em tal estado não existe poder regulador, a todo momento a guerra está declarada, porque
sempre haverá uma disputa quer pela força, quer por atos, quer por palavras, na medida em
que a busca pelas mesmas coisas será o objetivo maior dos homens vivendo sob este estado.
Pode-se afirmar, então, que o homem estava caminhando para sua própria destruição, pois a
guerra eterna é inadequada para que a espécie humana seja conservada; é perpétua justamente
pelo fato dos homens possuírem uma igualdade natural e, como o ponto de partida da ação
humana é o conatus, isto é, o esforço para adquirir algo, o conflito também é inerente. Isto
porque como já foi abordado, na concepção do movimento dos corpos, existir é existir no
espaço, é ser corpo em movimento e, portanto, a qualquer momento poderá ser afetado pelos
112
movimentos dos objetos ou de outros corpos exteriores, determinando dessa forma o conflito,
já que para Hobbes essa concepção de movimento não é válida somente para os corpos, como
defendia Descartes, mas também é válida para a natureza humana, ou seja, para explicar o
que acontece no mundo intelectual, na ordem psicológica, nas paixões, entre outros.
Caso alguém saísse vitorioso deste conflito, será que seria o fim do embate? Hobbes
responde negativamente, propondo que o vencedor está sujeito a tanto perigo, que será quase
impossível a manutenção dessa vitória por muito tempo, haja vista que a qualquer momento
este poderá ser atacado, quer por alguém com mais força física, já que os anos passam e a
idade chega, corroendo essa força que o manteria no poder, quer de maneira traiçoeira, ou
simplesmente pelo fato de todos possuírem os mesmos direitos. Dessa forma, todas as coisas
serão permitidas a todos, uma vez que por necessidade natural o homem almeja sempre aquilo
que é bom para ele; assim não é de se estranhar que a alegria seja causada pela posse de um
objeto que favoreça o indivíduo e lhe dê prazer. A tendência para a conquista desse objeto,
motivada pelo conatus e a sua eventual posse chama-se bem; o mal seria, ao contrário, a
aversão àquilo que lhe causa dor e, conseqüentemente, um estado em que reina o conflito, a
dor e a ausência de liberdade será um estado de aversão para os homens, em que estes farão
de tudo para se livrarem desta condição. Dessa forma, Hobbes defende a tese de que qualquer
organização social será melhor do que a permanência no estado natural:
Por isso, quem quer que sustente que teria sido melhor continuarmos naquele estado,
em que todas as coisas eram permitidas a todos, estará se contradizendo. Pois todo
homem, por necessidade natural, deseja aquilo que para ele é guerra de todos contra
todos, que é a conseqüência necessária daquele estado. Portanto sucede que, devido
ao medo que sentimos uns dos outros, entendemos que convém nos livrarmos dessa
condição, e conseguirmos alguns associados para que, se tivermos de travar guerra,
ela não seja contra todos, nem nos falte algum auxílio (HOBBES, 1998, p.34).
Desta análise hobbesiana, de que estado de natureza é sinônimo de estado de guerra,
fica o homem nesta situação condenado ao desaparecimento, uma vez que o conflito é eterno.
Mas como a natureza humana também é dotada de outras faculdades, advém uma nova
interpretação, segundo a qual a lei da natureza é um preceito ou regra geral estabelecida pela
reta-razão, cujo objetivo principal é que cada indivíduo preserve a sua vida. Hobbes escreveu:
O direito de natureza, a que os autores geralmente chamam jus naturale, é a
liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser,
para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e conseqüentemente
de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios
adequados para esse fim (HOBBES, 1974, p.82).
113
Como o homem se sente ameaçado por todos os lados, a busca pela paz torna-se uma
necessidade proveniente do próprio medo da morte. A lei fundamental da natureza ordena que
todos procurem a paz e na busca pela paz são firmados acordos de transferência de direitos,
em que cada um deixa de ter direitos sobre todas as coisas em prol da defesa de si mesmo e a
máxima da liberdade é: “não faça aos outros o que não gostaria que fizessem a você” (HOBBES, 1974,
p.83).
Desta interpretação, a busca pela paz se faz presente na razão humana e é isto que
remete os indivíduos a essa busca, pois o seu objetivo final são, do ponto de vista utilitarista, a
paz e a liberdade.
Em última análise, dentre os filósofos contratualistas, Hobbes talvez tenha sido o
primeiro pensador da época moderna a repensar radicalmente os fundamentos tradicionais da
antropologia, porque busca na própria natureza humana o seu entendimento e, como se
desmembrasse o corpo humano, procurou entender o significado e o funcionamento de cada
parte, mostrando depois no conjunto o seu desenvolvimento para melhor compreensão.
Partindo da idéia dos movimentos dos corpos, fundamentou toda sua teoria no que
concerne aos movimentos, afetando o corpo humano, idealizando o conceito de conatus, que é
o movimento interno do homem. Esse primeiro conceito de desejo acarretou uma série de
conseqüências, das quais a principal é o conceito de conservação de si, de auto-conservação,
que pode ser entendido tanto num sentido estrito, que significa uma conservação biológico-
vital, quanto mais amplo, ao referir-se à manutenção das condições de vida, condições estas
entendidas como algo prazeroso, como a própria liberdade.
Como para Hobbes as leis da natureza são imutáveis e eternas, chega-se à conclusão
de que devido às paixões serem incontroláveis, pois são movimentos até imperceptíveis, a
tendência humana é pela busca de sua satisfação e é esse conatus, gerador do estado de
guerra, que ameaça constantemente cada indivíduo, no que se refere diretamente à sua vida e
à sua segurança.
Das análises das leis da natureza, a fundamental e talvez a mais importante delas
ordena que o homem deve buscar constantemente a paz, mesmo que para isso haja a
necessidade do conflito. Trata-se, pois, de podermos afirmar que existe um impasse, na
medida em que as leis imutáveis ordenam que se busque a paz ao mesmo tempo em que
existem as paixões, na maioria das vezes incontroláveis, que são leis naturais, também
gerando o conflito. Entretanto, o diferencial humano é o fato de que o homem é o único
animal que busca conhecer as causas das coisas e, portanto, possui um discernimento, que
114
advém do uso da própria razão. Assim, das faculdades da natureza humana, a que será
responsável pela tentativa de um estado sem conflito será a reta-razão:
Mas os homens não podem esperar uma conservação duradoura se continuarem no
estado de natureza, ou seja, de guerra, e isso devido à igualdade de poder que entre
eles há, e a outras faculdades com que estão dotados. Por conseguinte o ditado da
reta-razão – isto é, a lei de natureza – é que procuremos a paz, quando houver
qualquer esperança de obtê-la, e, se não houver nenhuma, que nos preparemos para a
guerra (HOBBES, 1998, pp.35 e 36).
Há ainda um outro aspecto que não pode ser esquecido: sob o estado de natureza,
tudo é possível e ao mesmo tempo não, pois tudo ser possível a todos significa que o desfrute
de tal coisa será objeto de desejo de muitos e, dessa forma, somente um poderá obtê-la:
Mas foi pequeno benefício para os homens assim terem um comum direito a todas as
coisas; pois os efeitos desse direito são os mesmos, quase como se não houvesse
direito algum. Pois, embora qualquer homem possa dizer, de qualquer coisa, ‘isto é
meu’, não poderá porém desfrutar dela, porque seu vizinho, tendo igual direito e
igual poder, irá pretender que é dele essa mesma coisa (HOBBES, 1998, p.33).
O estado de natureza de Hobbes evidencia uma percepção social como luta entre
fracos e fortes, vigorando a lei da selva ou o poder da força; enquanto perdurar esse estado de
coisas, não haverá segurança, paz e muito menos liberdade. A situação dos homens deixados a
si próprios é de anarquia, geradora de insegurança, angústia e medo.
(...) Com isso se torna manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem
um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela
condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra
todos os homens. Pois a guerra não consiste apenas na batalha ou no ato de lutar,
mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é
suficientemente conhecida. (...) Portanto, tudo aquilo que é válido para um tempo de
guerra, em que todo homem é inimigo de todo homem, o mesmo é válido também
para o tempo durante o qual os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes
pode ser oferecida por sua própria força e sua própria invenção. Numa tal situação
não há lugar para a indústria, pois seu fruto é incerto; conseqüentemente não
cultivo da terra, nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser
importadas pelo mar; não há construções confortáveis, nem instrumentos para mover
e remover as coisas que precisam de grande força; não há conhecimento da face da
Terra, nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não há sociedade; e, o que é
pior do que tudo, um constante temor e perigo de morte violenta. E a vida do
homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta (HOBBES, 1974, pp.79 e
80).
Dessa concepção, a reta-razão ordena que numa relação conflitante, para que a vida
seja preservada, haja a renúncia da posse de certas coisas, para que se tenha a manutenção da
paz e da própria vida:
115
(...) Mas já que todos reconhecem que é conforme ao direito aquilo que não viola a
razão, devemos considerar injustas apenas as ações que repugnem à reta-razão, ou
seja, que contradigam alguma verdade segura, inferida por um correto raciocínio a
partir de princípios verdadeiros. E a injustiça que é cometida, dizemos que é
cometida contra a lei (HOBBES, 1998, p.38).
No estado de natureza reinava a pluralidade e um desejo insaciável e inesgotável
inerente à natureza humana. Assim, pode-se inferir que o objetivo principal é limitar o campo
de desejo, que gera uma relação entre os homens quase insuportável, concluindo-se, então,
que a paz é a melhor alternativa:
Como a razão declara que a paz é uma boa coisa, segue-se, pela mesma razão, que
todos os meios necessários para a paz igualmente o são; e, portanto, que a modéstia,
a eqüidade, a confiança, a humanidade, a misericórdia (que demonstramos serem
necessárias à paz) são boas maneiras ou hábitos bons, isto é, virtudes (HOBBES,
1998, p.72).
Isto posto, a conclusão a que se chega é que pela razão os homens almejam a paz e a
liberdade. Hobbes acredita que não é bem assim, uma vez que a razão até faz parte integrante
desta escolha, mas o primeiro motor que de fato levará o homem à promoção da paz e suas
conseqüências será sem dúvida a paixão (medo), porque é devido a ela que experimentará o
que é bom ou mau para ele, cabendo depois à reta-razão apenas o discernimento e a escolha.
É a grande novidade do pensamento hobbesiano, pelo mérito de mudar a concepção
de homem, diferente do período medieval que colocava Deus no centro de todas as
preocupações e a fé como base de todo e qualquer conhecimento. A partir de Hobbes, a
natureza humana é encarada de outra forma e o próprio poder também é concebido como algo
histórico e, de fato, artificial, por isso, pode-se afirmar que com Hobbes também advém uma
nova noção de valores, resultado deste conflito humano.
Tendo como ponto de partida o novo enfoque, o autor mostra um outro aspecto dessa
concepção da sociedade civil, tendo como base de sustentação a própria racionalidade
humana. Ao desenvolver sua filosofia política, entrelaça questões antropológicas, mostrando
que a sociedade civil é fruto de uma inventividade que só o homem, como animal mais
importante na natureza, poderia ter capacidade para criar, com o objetivo de proteção mútua e
a promoção da paz.
Já no estado de natureza, a paz e a liberdade seriam, praticamente, impossíveis de
serem mantidas, porque a análise a respeito deste estado nos mostra que, antes de qualquer
sociabilidade, o homem desfrutava de todas as coisas, realizava seus desejos e era dono de um
poder ilimitado, que poderia usar da forma que quisesse, principalmente para a preservação de
116
sua própria natureza e, conseqüentemente, baseado na sua racionalidade, usaria o meio mais
eficaz, ou seja, a força, para adquirir aquilo que seria do seu interesse. Evidentemente, se
predominasse tal estado, na verdade não existiriam paz e liberdade, haja vista que os homens,
buscando seus interesses particulares, viveriam num estado constante de anarquia, angústia,
insegurança e principalmente medo.
Na seqüência de sua teoria, apresenta-se um caminho para a evolução do homem ao
estado de sociedade, de modo que seria impossível viver naquele estado de medo. Hobbes
pondera que o homem reconhece a necessidade de renunciar ao seu direito a todas as coisas,
contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que a todos será
permitida e também em relação a si mesmo.
A evolução para a sociedade civil é descrita pelo autor como conseqüência de todo
esse processo desencadeado desde o estado de natureza, que não é um lugar onde o indivíduo
vive somente isolado, pelo contrário, existe uma coexistência sem regras universais, ou seja,
estar frente a um grupo de pessoas, uma multidão, sem um poder moderador e onde todos são
movidos por seus interesses estritamente peculiares e egoístas, já que o pressuposto de todos
é almejar a realização dos seus desejos, prazeres e deleites. Na ânsia pela realização destes e
com a ausência de normas, o próprio indivíduo é o árbitro de si mesmo e pela razão tenta
resolver tais questões; mas como o desejo (conatus) é a regra e a norma de conduta e, na
maioria das vezes, não controlável pela razão, a tendência é, portanto, pela realização destes
desejos de forma integral, decorrendo, assim, a possibilidade de colisão com outros indivíduos
que almejam as mesmas coisas. Nesta perspectiva, Hobbes escreveu:
Mas a razão mais freqüente por que os homens desejam ferir-se uns aos outros vem
do fato de que muitos, ao mesmo tempo, têm um apetite pela mesma coisa; que,
contudo, com muita freqüência eles não podem nem desfrutar em comum, nem
dividir; do que se segue que o mais forte há de tê-la, e necessariamente se decide
pela espada quem é mais forte (HOBBES, 1998, p.30).
O primado central da filosofia de Hobbes refere-se à concepção do desejo (conatus),
que tem como conseqüência grandes influências no homem e na formação da sociedade civil.
Desta forma, a base, a origem, ou seja, o pressuposto para essa formação se dá através da
análise da natureza humana, que leva ao conceito de conservação de si, de auto-conservação.
Portanto, toda teoria hobbesiana tem como eixo central a análise das paixões e o que suas
influências acarretam para o homem vivendo em grupo.
E a única forma que os homens têm para sair do estado de constante ameaça à sua
auto-conservação e sem liberdade é a instituição de um pacto pelo qual todos os homens
117
renunciam aos seus interesses particulares a favor de um homem ou de uma assembléia de
homens, como representantes de seus interesses. Esse seria o Estado, com poder para criar e
aplicar as leis, regular, decidir e instituir as normas, tornando-se autoridade política; dessa
forma, o contrato social funda a soberania. Nasce, então, a sociedade política, diferentemente
de Aristóteles, para quem essa surgia de forma natural, mas que, em Hobbes, é o próprio
estado de guerra que ameaçava constantemente cada indivíduo, isto é, o medo da morte e o
desejo de conservação de si (paixão/razão) são os ordenadores fundamentais para a
deflagração do pacto civil.
Os homens abdicam de suas liberdades, dando pleno poder ao Estado absoluto, a fim
de proteger suas próprias vidas. Além disso, o Soberano, representante legítimo, deve
garantir, de fato, que aquilo que pertença exclusivamente ao indivíduo seja respeitado,
garantindo a propriedade individual. Aliás, para Hobbes, a propriedade privada não existia no
estado de natureza, em que todos tinham direito a tudo e na verdade ninguém tinha direito a
nada. Daí decorre a concepção de uma nova ordem moral, já que os homens se submeteram
ao pacto e não foram obrigados a ele, no sentido de uma imposição externa. Dessa forma,
todos têm o dever de prestar obediência ao soberano, ao passo que a obrigação surge não
diretamente pelo pacto, mas indiretamente: “(...) A obrigação de prestar obediência nasce não
diretamente do pacto pelo qual transferimos todo o nosso direito à Cidade, mas indiretamente, do fato de que
sem ela o direito sobre a Cidade seria frustrado e, por conseguinte, não se constituiria Cidade alguma”
(HOBBES, 1998, p.109).
A sociedade civil só seria livre e estaria organizada, de fato, mediante o contrato, ou
seja, a organização social só se fundamentaria com um poder soberano e mediador, capaz de
manter os homens num novo estado.
118
3.3 Liberdade e estado de sociedade
Viu-se que no estado de natureza, apresentado por Hobbes, a possibilidade de existir
liberdade é nula, ou melhor, é ilusória, pois se trata de um estado em que as paixões imperam
e, segundo o autor, destas, a única coisa que se pode esperar é a tentativa de dominação de um
homem sobre o outro. Tais paixões, como resultado de um processo mecânico, só poderão
gerar mais paixões e conseqüentemente mais inseguranças e conflitos. Assim, a única maneira
de salvaguardar suas vidas é a instituição do contrato social, em que a paz e a liberdade
poderão existir efetivamente:
Diz-se que um Estado foi instituído quando uma multidão de homens concordam e
pactuam, cada um com cada um dos outros, que a qualquer homem ou assembléia de
homens a quem seja atribuído pela maioria o direito de representar a pessoa de todos
eles (ou seja, de ser seu representante), todos sem exceção, tanto os que votaram a
favor dele como os que votaram contra ele, deverão autorizar todos os atos e
decisões desse homem ou assembléia de homens, tal como se fossem seus próprios
atos e decisões, a fim de viverem em paz uns com os outros e serem protegidos dos
restantes homens (HOBBES, 1974, p.111).
A fundamentação do Estado na perspectiva de Hobbes se dá pela simples situação à
qual cada homem estava submetido quando vivia em estado de natureza.
O objetivo a partir de agora será o de tentar demonstrar o significado do papel do
Estado na visão do autor, sua origem, seu desenvolvimento e os seus objetivos maiores, a
saber: a conquista e a manutenção da paz e da liberdade e, a fim de que isto seja possível, em
hipótese alguma o soberano poderá ficar sujeito às leis civis, de forma que a sua supremacia
em relação à sociedade civil seja fundamental para que tais objetivos sejam postos em prática.
O desenvolvimento do conceito hobbesiano de Estado é um processo natural que tem
sua origem na análise do homem em estado de natureza, de forma que são definidas as leis
naturais e o ponto em que se dá a passagem destas para a situação posterior, isto é, a criação
da comunidade por meio de um pacto, daí decorrendo a fundamentação do poder do soberano
e das leis civis.
O processo de formação do Estado tem seu início já no estado de natureza, no qual
são apontados dois aspectos: no primeiro, os indivíduos são considerados isoladamente,
governados exclusivamente por paixões e também por suas razões; no segundo aspecto, o
mais importante, observa-se que as leis da razão, ou a própria reta-razão, são definidas com a
consideração dos direitos do outro que, como já se afirmou, será o motivo pelo qual se
fundamentará o Estado.
119
Thomas Hobbes dá ao estado de natureza original uma definição bem peculiar
quando atribui ao homem um direito natural e não derivado de todas as coisas, embora este
direito natural seja comumente chamado de direito a tudo, sendo esta uma das razões de sua
concepção de estado de natureza ser associada ao estado de guerra.
De uma forma geral, sua argumentação quanto a essa denominação ao estado de
natureza não se dá pelo simples direito a tudo, isso é primordial, mas existem outras causas
que são igualmente importantes como, por exemplo: a competição, a vaidade, a falta de
liberdade, o apetite; além do direito maior, a preservação da própria vida, que o homem
poderá utilizar caso julgue necessário. Pode-se inferir, a partir destes conceitos simples, que a
própria formação do Estado já se encontra neste seio, justamente pelo fato de que o direito a
tudo significa ao mesmo tempo um direito a nada, uma vez que para conseguir tal direito o
homem terá de competir com outro, que também tem para si que tudo pode. Isso significa que
o conflito é inerente, é possível que aconteça a qualquer momento, de modo que os homens
não poderão agir somente pelas paixões, porque seriam levados à própria extinção.
Assim, deve-se observar que, embora todos considerem legítimo este direito a tudo,
ou seja, uma liberdade total, existe um elemento de reciprocidade, de forma que os homens
não podem reconhecer o direito de outrem a todas as coisas, pois dessa maneira estariam
negando a si próprios tal direito, já que o outro também tudo pode. Assim, pode-se concluir
que o direito primário não tem por base a razão e o que o autor faz é transformar, deste modo,
cada homem em um átomo completamente isolado, sozinho, ou seja, resgatando sua idéia
original dos movimentos dos corpos, na qual o homem é tratado como todos os demais corpos
que existem, isto é, sempre em movimento, resultado obtido pelos seus entrechoques, já que
habitam num mesmo universo.
É dessa forma que Hobbes argumenta que o direito a tudo não é fundamentado pela
razão, e sim resultado de um movimento físico que acontece em todos os corpos, inclusive no
homem, como já foi abordado nos capítulos anteriores, ou seja, os conflitos são inerentes aos
homens, o que explica sua conceituação sobre o estado de natureza e a ausência de liberdade
neste estado.
Assim, o conceito de Estado também é inerente ao homem, pois se usasse apenas
suas paixões (conatus), caminharia para a própria destruição. Desta concepção, pode-se
perceber que a idéia de Estado já se encontra presente nos homens decorrente do uso da razão
e que, portanto, mesmo no estado de natureza já se pode perceber o embrião que dará origem
ao Estado.
120
A noção de Estado
37
moderno começa a se configurar mais claramente no período
Renascentista, tendo sido exaltada como potência plena desde Maquiavel. Já a expressão
pacto social, sendo de origem jurídica e consagrada na Europa entre os séculos XVI e XVIII,
pressupõe a celebração de um contrato juridicamente perfeito, entre seres humanos racionais,
dotados de vontades e exercitando os limites de suas liberdades.
De certa forma, a noção de poder político sempre esteve associada à idéia de
comando ditado por aqueles que detêm a autoridade, que desde a formação da sociedade civil
será oriunda do pacto entre os indivíduos. Portanto, para Hobbes, as concepções de Estado e
de contrato já faziam parte dos indivíduos, mesmo que em potência, vivendo em estado de
natureza. Muitas vezes tais conceitos são tratados como sendo características do pensamento
moderno, mas um percurso pela História da Filosofia mostra justamente o contrário, ou seja,
desde os pensadores clássicos esses temas já eram objetos de reflexões. Vale destacar e
relembrar que para Hobbes este processo de formação do Estado não será de forma natural.
Ao fazer esta afirmação, o que se pretende é demonstrar o que de fato encaminhou os
indivíduos ao estado civil, que para ele foi o próprio conatus, diferentemente de Aristóteles,
para quem o homem já está incluso, de certa forma, em uma organização social, ainda que
primitiva. Isso para Hobbes não acontece, pois concebe os indivíduos isolados, lutando por
seus interesses, e será este conflito o motor propulsor do estado civil.
A partir de agora, as reflexões serão centralizadas especificamente na organização da
sociedade civil, em que se realiza a plena liberdade, que só será possível mediante a
elaboração do contrato e conseqüentemente a elevação de um poder para garantia e
funcionamento do pacto social, o que Thomas Hobbes soube esclarecer e fundamentar muito
bem.
Viu-se que a permanência dos homens no estado natural os levaria à própria
destruição, haja vista que entre homens vivendo juntos, com as mesmas características e as
mesmas potencialidades, a possibilidade de conflito estava instaurada e, portanto, a vida era
ameaçada a todo instante, impossibilitando a convivência social, pois o medo do outro e da
morte estavam sempre presentes. Naquele estado imperava o domínio das paixões (conatus), a
força que impele os indivíduos a cometerem atos às vezes independentemente da vontade,
37
Segundo Nicola Abbagnano (1998) - Dicionário de Filosofia – Em geral Estado significa a organização
jurídica coercitiva de determinada comunidade. O uso da palavra Estado, no sentido moderno do termo, deve-se
a Maquiavel. Podem ser distinguidas três concepções fundamentais: a primeira denomina-se organicista,
segundo a qual o Estado é independente dos indivíduos e anterior a eles; a segunda denomina-se atomista ou
contratualista, segundo a qual o Estado é criação dos indivíduos e a terceira concepção chama-se formalista,
segundo a qual o Estado é uma formação jurídica. As duas primeiras concepções alternam-se na história do
pensamento ocidental; a terceira é moderna e, na sua forma pura, foi formulada só nos últimos tempos.
Trabalhou-se nesta tese com a segunda concepção.
121
pois, como impulsos, apareciam nos homens como forma de necessidades causadas pelo
mecanicismo, o que conseqüentemente acarretaria a falta de liberdade, gerando a insegurança
e o medo.
Porém, este estado de constante instabilidade em que os homens naturais viviam
servirá como mola propulsora para que estes dêem um salto para o estado de sociedade, em
que a liberdade será possível, pois os homens carregam em si essa aparente contradição, ou
seja, ao mesmo tempo em que querem a liberdade, desejam o domínio sobre os demais e é
nesta dicotomia que passarão de um estado para outro, como necessidade, ou melhor, como
forma de garantir a vida, a paz e a liberdade que é o seu propósito:
O fim último, causa final e desígnio dos homens (que amam naturalmente a
liberdade e o domínio sobre os outros), ao introduzir aquela restrição sobre si
mesmos sob a qual os vemos viver nos Estados, é o cuidado com sua própria
conservação e com uma vida mais satisfeita. Quer dizer, o desejo de sair daquela
mísera condição de guerra que é a conseqüência necessária das paixões naturais dos
homens, quando não há um poder visível capaz de os manter em respeito, forçando-
os, por medo do castigo, ao cumprimento de seus pactos e ao respeito àquelas leis de
natureza que foram expostas... (HOBBES, 1974, p.107).
Assim, é em conseqüência do medo e pelo uso da reta-razão que os homens
caminharão para a formação da sociedade civil e delegarão o poder a um soberano, capaz de
mantê-los e organizá-los nesta nova condição de vida.
122
3.4 A formação do Estado e a soberania
O Estado hobbesiano tem origem na necessidade dupla de segurança e bem-estar e,
usando as próprias palavras utilizadas na obra Do Cidadão, é o império da razão. Demonstra,
dessa forma, que somente os homens dotados de paixões, mas conscientes do que essas são
capazes de produzir, darão origem ao Estado, fundamentado por um pacto, isto é, pela reta-
razão.
A necessidade da formação de um governo civil advém especificamente da
observância das leis naturais, pois essas são contrárias às paixões humanas que tendem para o
orgulho, a parcialidade, a vingança, a honra própria, entre outras, de tal forma que numa
grande multidão, se não houvesse um inimigo comum, ocorreriam guerras entre seus
componentes, pois não observariam os preceitos naturais e não tendo um poder maior capaz
de fazê-los observar, permaneceriam neste confronto constante:
Porque as leis de natureza (como a justiça, a eqüidade, a modéstia, a piedade, ou, em
resumo, fazer aos outros o que queremos que nos façam) por si mesmas, na ausência
do temor de algum poder capaz de levá-las a ser respeitadas, são contrárias as nossas
paixões naturais, as quais nos fazem tender para a parcialidade, o orgulho, a
vingança e coisas semelhantes (HOBBES, 1974, p.107).
Voltando à polêmica entre Hobbes e Aristóteles, em que este defende a tese de que o
homem é um animal social e, portanto, já possui uma ordem ideal, Hobbes rebate, afirmando
que entre os homens impera a competição pela honra e pela dignidade, decorrendo assim a
inveja e o ódio e, portanto, a guerra. Outro aspecto é que entre os homens a felicidade está na
comparação com outros e o que dará prazer é justamente ser superior. Tais características não
são perceptíveis nos animais, mesmo entre abelhas ou formigas, para citar o exemplo de
Aristóteles. Ademais, há as características estritamente humanas como a razão e a linguagem.
Assim, pode-se até afirmar que o acordo entre os animais é natural, enquanto entre os homens
surge necessariamente através de um pacto, isto é , de forma artificial.
Se a sociedade civil é puramente artificial, é evidente que para que funcione
necessitará automaticamente de algo além do pacto, isto é, haverá a necessidade de um poder
comum que mantenha a ordem e o respeito e que faça valer as regras do contrato,
promovendo o benefício comum e a liberdade:
E os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar qualquer
segurança a ninguém. Portanto, apesar das leis de natureza (que cada um respeita
quando tem vontade de respeitá-las e quando pode fazê-lo com segurança), se não
123
for instituído um poder suficientemente grande para nossa segurança, cada um
confiará, e poderá legitimamente confiar, apenas em sua própria força e capacidade,
como proteção contra todos os outros (HOBBES, 1974, p.107).
Isto ocorrendo, ou seja, se todos se submeterem ao contrato, teremos a formação do
Estado, isto é, a multidão unida por uma só pessoa: “Cedo e transfiro meu direito de governar-me a
mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito,
autorizando de maneira semelhante todas as suas ações” (HOBBES, 1974, p.109).
Estabelecido o contrato e respeitando as leis naturais fundamentais de busca da paz e
de cumprimento dos contratos, todos a partir daí serão considerados súditos, porque aquele
que representará o Estado será portador do título de soberano e de todo poder daí decorrente
pelo simples fato de ser considerado o grande Deus mortal (Leviatã), pois abaixo do Deus
imortal, ele será responsável pela vida, pela paz e pela liberdade de todos os seus
comandados.
A preocupação da filosofia hobbesiana com o problema de liberdade faz o autor
percorrer a trilha da soberania, ou seja, ao tratar da concepção do poder do Estado visando à
maneira em que esse se dá, denota a preocupação de garantir aos indivíduos, após a criação do
estado, a plenitude da soberania, isto é, a garantia plena dos direitos individuais que só o
Estado instituído poderá oferecer.
O poder dos soberanos na concepção de Hobbes pode ser obtido de duas formas. A
primeira refere-se à conquista do poder pela força, pela dominação, imposto pela guerra, isto
é, os indivíduos são submetidos a outrem pelo próprio medo que este causa, preferindo a
submissão a perderem suas vidas ou serem feridos. Essa espécie de soberania denomina-se
Estado por aquisição. A outra é quando há uma concordância voluntária dos indivíduos em
submeterem-se a um poder mediador, na esperança de obter a paz e a proteção contra todos os
outros. Este é chamado de Estado por instituição. Da mesma forma, não deixa de ser oriundo
do medo, pois se no poder por aquisição o medo advém do soberano, no poder instituído é
resultado das relações entre os próprios indivíduos, advindo daí a necessidade da soberania
para o controle dessas relações que são conflituosas.
O Estado por instituição é assim chamado porque é fruto de um pacto entre os
homens, que concordam entre si em se submeter a ele voluntariamente em troca de proteção,
paz e liberdade, não cabendo em hipótese alguma, sem exceções, contrariar todos os atos e
decisões do representante ou dos representantes deste Estado. Para Renato Janine Ribeiro
(1999), Hobbes sabe que esse Estado é monstruoso: compara-o ao monstro bíblico Leviatã. O
Estado é um monstro não tanto pelo poder absoluto que detém sobre os homens; o que há de
124
monstruoso é o seu caráter artificial: quem o ocupa pode ser um homem ou vários homens,
mas não na qualidade de indivíduos naturais, pois são antes de mais nada representantes de
uma única vontade consolidada pelo pacto entre os homens. O Estado está acima dos
indivíduos, mas como criação destes e como sua representação. Hobbes não é propriamente
um pensador absolutista: é antes o grande teórico da soberania.
O consentimento dado ao soberano pelos indivíduos lhe confere poder absoluto,
levando a todos a necessidade de observar as seguintes obrigações.
1. Cumprir o pacto integralmente, ou seja, não firmar contratos para se submeterem a
outrem, pois assim estariam violando as próprias leis naturais e também gerando novos
conflitos e, conseqüentemente, a paz novamente estaria ameaçada. Evidente que, ao
participar do pacto, os indivíduos transferem ao soberano um direito absoluto e este, como
fruto de uma vontade geral, passa a ter plenos poderes e, portanto, aqueles que tentarem
romper qualquer uma das regras estabelecidas estarão realizando um ato ilegal contra si
próprios e automaticamente cometendo uma grande injustiça. Disso decorre que se
alguém for punido ou até mesmo morto na tentativa de violar o pacto será o próprio
causador de sua punição, isto é, o autor de seu próprio castigo.
Por isso, para Hobbes, uma falta grave é justamente quando alguns homens tentam
em nome de Deus fugir às regras do pacto, estabelecendo um poder paralelo. Estariam
também cometendo injustiças e violando as leis naturais, porque ninguém pode fazer pacto
com Deus, pois pacto para ser válido requer a aceitação de ambas as partes e neste caso isso
não pode ocorrer; além de que o próprio soberano é o representante desse Deus, o mediador, o
detentor da soberania abaixo dele, o Deus-mortal. Nesta perspectiva, Hobbes afirmou:
segue-se que ninguém pode firmar pacto com quem não declare sua aceitação. E é
por isso que não podemos pactuar com os animais, nem a eles podemos dar, ou deles
tirar, qualquer espécie de direito – já que eles não têm fala nem entendimento. Pela
mesma razão, homem algum pode firmar convenções com Deus, ou obrigar-se para
com Ele por meio de um voto (HOBBES, 1998, pp.44 e 45).
2. Respeitar o poder do soberano, pois este representa o direito de todos, sem exceções,
sendo fruto de um acordo de cada homem com cada homem, isto é, resultado de um
consentimento geral. Assim, não há pacto entre o soberano e a multidão, nem com cada
um em particular. Dessa forma, fica estabelecido que o soberano não deve ficar submisso
a nenhum pacto, pois na qualidade de parte integrante dele teria de submeter-se ou
cumprir esses acordos com cada um em particular ou com toda a multidão. Assim, a
sociedade civil estaria ameaçada por interesses particulares, devendo-se a isso o soberano
125
estar sempre acima de qualquer contrato, para que nesta condição faça valer as regras
desses acordos e manter a ordem:
É evidente que quem é tornado soberano não faz antecipadamente qualquer pacto
com seus súditos, porque teria ou de celebrá-lo com toda a multidão, na qualidade de
parte do pacto, ou de celebrar diversos pactos, um com cada um deles. Com o todo,
na qualidade de parte, é impossível, porque nesse momento eles ainda não
constituem uma pessoa (HOBBES, 1974, p.112).
3. Participando de um pacto, isto é, ingressando em uma assembléia na qual já se vivencia
um poder soberano, o ingressante não poderá em hipótese alguma contrariar os decretos
por ele estabelecido, juntamente com todos aqueles que já faziam parte da assembléia,
mesmo os que discordam, pois no momento em que pactuam não têm mais vontade
própria no que se refere aos atos para com a assembléia. Todos agora, sem exceções,
transferiram o direito de decisão e não cabe qualquer discordância sob pena de serem
excluídos da congregação e deixados na condição de guerra. A soberania em hipótese
alguma pode ser ameaçada, pois este seria o maior problema porque, numa sociedade em
que os interesses particulares ainda permanecem, o risco de uma perda de unidade levaria
ao fracasso do Estado. Por isso, para Hobbes, mais importante do que qualquer outro
aspecto é o caráter indivisível do poder, só assim a liberdade de cada um poderá ser
garantida.
4. Não acusar o soberano de cometer injustiças, haja vista que esse é representante legal da
vontade de todos e por eles foi elevado a tal condição. Dessa forma, acusá-lo de injustiça e
injúrias é acusar a si próprios, uma vez que o Estado nada mais faz do que representá-los,
além de ser impossível causar injúria a si próprio. O soberano pode até cometer
iniqüidades, mas injustiças e injúrias não.
5. Como já ficou esclarecido que os súditos são autores dos atos do soberano, fica
estabelecido que o soberano não pode ser morto nem punido, pois se isso acontecesse
estariam castigando aos outros e a si mesmos.
6. Reconhecer no soberano o juíz para todas as causas, pois será o responsável pela
manutenção da paz. Dessa forma, tudo e todos que venham a causar discórdia e
hostilidade para a congregação encontrarão no soberano, representante de todos, as
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respostas para tais negligências e poderão ser punidos em defesa da harmonia e do bem
estar comum.
7. Respeitar o direito de propriedade instituído pelas leis civis e garantido pelo soberano,
pois cabe a este a preservação da paz pública e a garantia a todos os súditos aos bens de
que podem usufruir, sem serem incomodados por outros.
8. Ver na figura do soberano a autoridade judicial constituída, com plenos poderes para
julgar todas as possíveis contradições que ocorrerem na sociedade, pois mesmo vivendo
neste estado os homens ainda tendem, por instinto natural, à auto-conservação, levando-os
ao estado de guerra, e é justamente por isso que o papel fundamental do Estado é garantir
as resoluções de todos os impasses sociais.
9. No que se refere às forças armadas, o soberano será sempre a autoridade suprema, com
poderes para nomear os generais de exército, promover a paz ou declarar guerra às outras
nações. Assim, o soberano é quem decide quando a guerra se faz necessária e tudo que se
refere a esta será de sua inteira responsabilidade, quer seja convocar os súditos para
formação do exército, ou mesmo cobrar tributos para que todas as despesas oriundas com
a guerra sejam pagas, visando sempre à defesa do bem comum.
10. A instituição do Estado se dá principalmente para a defesa do bem comum, por isso recai
sobre o soberano a capacidade de escolha de todos aqueles que o ajudarão a realizar tal
propósito, isto é, os conselheiros, ministros, magistrados e funcionários serão diretamente
indicados pelo soberano que possui capacidade para melhor escolher aqueles que
desempenharão estas funções.
11. Observar que o soberano possui poderes ilimitados, portanto com direito de recompensar
com riquezas e honras e de punir quer fisicamente ou com desonras todos aqueles súditos
que tentarem a violação das ordens estabelecidas. E mesmo que não haja uma lei
determinada, o soberano, sendo o portador da vontade geral, terá capacidade e
discernimento para considerar o que é melhor para todos.
12. Respeitar a ordem hierárquica estabelecida pelo soberano, pois compete a este conceder
leis de honra para alguns homens que se destacarem por servir ao Estado com dedicação.
127
Cabe, dessa forma, a todos os súditos aceitar e praticar o respeito aos condecorados, quer
nos encontros públicos ou privados.
Na soberania institucionalizada esses são os direitos fundamentais que a constituem,
isto é, localizam-se e residem naquele que ocupará o cargo de soberano, são direitos
incomunicáveis e inseparáveis. Em hipótese alguma, cabe a divisão da soberania, podem até
ocorrer algumas transferências de prerrogativas do soberano, desde que sejam subalternas à
soberania e não afetem a paz e a vida dos súditos. Um Estado Político dividido está sujeito à
instauração de estado de guerra e, por isso, para Hobbes, a soberania é indivisível:
Se examinarmos cada um dos referidos direitos, imediatamente veremos que
conservar todos os outros menos ele não produzirá qualquer efeito para a
preservação da paz e da justiça, que é o fim em vista do qual todos os Estados são
instituídos. E esta é a divisão da qual se diz que um reino dividido em si mesmo não
pode manter-se, pois, a menos que esta divisão anteriormente se verifique, a divisão
em exércitos opostos jamais poderá ocorrer (HOBBES, 1974, p.115).
Pode-se concluir que a transmissão do poder dos indivíduos ao soberano deve ser
total, caso contrário, um pouco que seja conservado da liberdade natural do homem, instaura-
se de novo a guerra. E se não há limites para a ação do governante, não é possível aos súditos
julgar se o soberano é justo ou injusto, tirano ou não, pois seria contradição afirmar que o
Estado abusa do poder; porque não há abuso se este possui um poder ilimitado. Além disso,
Hobbes afirma que cabe ao soberano, com o objetivo de preservar a paz e garantir a liberdade,
julgar sobre o bem e o mal, sobre o justo e o injusto; não pode haver discordância, pois tudo
que o soberano faz é apenas o resultado do investimento da autoridade consentida pelos
súditos:
Dado que o fim é a paz, a primeira lei natural derivada é aquela segundo a qual o
direito a tudo não deve ser conservado, mas alguns direitos devem ser transferidos
ou abandonados. Porém, por meio da renúncia ao direito a tudo e da transferência
deste direito a outros, o homem sai do estado de natureza e constitui o estado civil.
Portanto, a primeira lei de natureza é aquela que prescreve constituir o Estado. Isto
significa que o Estado é o meio mais eficaz para alcançar a paz (BOBBIO, 1989,
p.107).
A novidade do pensamento hobbesiano está em promover uma conciliação entre
poder ilimitado e pacto social, porque não existe contradição em defender um poder soberano,
decorrente de um pacto, aliás não existe pacto que se sustente sem a intervenção do poder do
Estado. A inovação de seu pensamento é justamente a idéia de um Estado oriundo da
necessidade do próprio homem, por isso Hobbes rejeita a concepção de um direito divino dos
128
reis, uma vez que tal teoria advém de uma explicação teológica, ao mesmo tempo que
introduz um pacto paralelo, dentro de uma sociedade que já vive sob um contrato, o que para
ele é inadmissível. Isso o faz um filósofo diferenciado, pois trata a questão do poder
desvinculada da religião, o que naquele momento histórico era uma novidade que causou
muita polêmica.
A teoria hobbesiana teve o grande mérito de mudar a concepção sobre o homem,
diferente do período medieval que colocou Deus no centro de todas as preocupações e a fé
como base de todo e qualquer conhecimento; dessa forma de encarar o poder como algo
histórico e humano advém uma nova noção de ética e moral, que ele tentará demonstrar e
fundamentar.
Voltando à reflexão sobre a indivisibilidade da soberania, pode-se percebê-la
também sob outra ótica, ou seja, como os homens abdicam de suas liberdades, dando pleno
poder ao Estado absoluto a fim de proteger suas próprias vidas. O soberano, representante
legítimo, deve garanti-las de fato, além de garantir que aquilo que pertença exclusivamente ao
indivíduo seja respeitado, possibilitando, assim, a propriedade individual. Aliás, para Hobbes,
a propriedade privada não existia no estado de natureza, em que todos tinham direito a tudo e
na verdade ninguém tinha direito a nada. Daí decorre a concepção de uma nova ordem moral,
já que os homens se submeteram ao pacto e não foram obrigados a ele, no sentido de uma
imposição externa. Desta forma, todos têm o dever de prestar obediência ao soberano, ao
passo que tal obrigação surge não diretamente pelo pacto, mas indiretamente.
Partindo desse pressuposto, a sociedade civil só estaria organizada de fato mediante o
contrato, ou seja, a organização social só se fundamenta dentro do parâmetro defendido por
Hobbes, pois para ele a cidade é o resultado das vontades particulares: “Cidade é uma pessoa cuja
vontade, resultante do pacto de muitos homens, é aceita como vontade de todos os homens a fim de poder ela
utilizar a força e os recursos de cada um para a meta, com o objetivo de paz e da defesa comum” (HOBBES,
1998, p.97).
O Estado, resultado das vontades particulares, passa a ser a expressão maior e com
plenos poderes mediante a cidade, pois é o instrumento legítimo que a sociedade criou para
defesa de seus interesses. A sociedade civil abdica de suas vontades particulares e as transfere
para o soberano, que passa a ser a expressão da vontade de todos e por isso não há limites
para suas ações, o que ele determinar todos os cidadãos devem cumprir sob a pena da lei.
Aqui está o cerne do conceito de liberdade para Hobbes.
A liberdade está na submissão às leis, por isso Hobbes fará uma análise fundamental
sobre a importância do cumprimento destas determinadas pelo soberano e o risco que a
129
sociedade corre se não houver tal cumprimento. Ao comparar a cidade com o corpo humano,
cujos membros são os indivíduos, embora o soberano esteja na direção, não exerce uma
relação de cabeça com os seus membros, mas uma relação de corpo e alma, porque é
justamente na alma humana que residem a vontade e o querer:
Os que costumam comparar a Cidade e os cidadãos com o corpo humano e os
membros, geralmente dizem que quem detém o poder soberano na Cidade está em
relação com o todo da Cidade como a cabeça está para o todo do homem. Aliás, do
acima exposto resulta que quem está investido nessa autoridade, seja um indivíduo,
seja a corte, tem para com a Cidade, não uma relação de cabeça, mas a de alma do
corpo (HOBBES, 1998, p.115).
Nesta mesma linha, Renato Janine Ribeiro (1999) comenta que o Leviatã mesmo,
aquele monstro que é o Estado, constitui-se em analogia com o corpo físico dos homens.
Reconhecê-lo (o que é essencial na analogia) torna-se a saída para o grande problema na
política hobbesiana, que consiste em os súditos não perceberem que o Estado é deles, que o
Estado são eles, e que aí reside a razão maior para sua obediência. A analogia é assim algo
que não vem de pronto, que não está dado, mas é uma saída construída, artificial, para
assegurar a obediência dos espíritos e a paz entre os homens.
Pode-se concluir que a lei civil é prescrita pela sociedade, objetivando a vida, a paz e
a liberdade sem ferir as regras humanas, pois é uma conseqüência natural de uma sociedade
que possuía suas leis naturais, que eram regras morais, os ditames da reta-razão, e que de uma
evolução natural teve a necessidade do pacto e deste acordo instituiu-se a lei civil, ou seja,
determinações que, escritas em códigos, devem ser cumpridas por todos os cidadãos, exceto o
soberano, pois cabe a ele interpretá-las de acordo com sua vontade: “Mas, num estado civil, no
qual existe um poder que pode compelir ambas as partes, aquele que combinou ser o primeiro a cumprir assim
deve fazer – porque, como o outro pode ser forçado pelo poder a desempenhar a sua parte, desaparece a causa
que ele teria para temer o não cumprimento por seu parceiro” (HOBBES, 1998, p.44).
A concepção de Estado hobbesiano, de uma forma geral, não fere os valores éticos
decorrentes dessa nova abordagem sobre a origem da sociedade civil, pois o que Hobbes
preconiza é justamente um Estado, investido de uma autoridade instituída pelos próprios
cidadãos, onde o poder se faz necessário:
Porque as leis de natureza por si mesmas, na ausência do temor de algum poder
capaz de levá-las a serem respeitadas, são contrárias as nossas paixões naturais, as
quais nos fazem tender para a parcialidade, o orgulho, a vingança e coisas
semelhantes. E os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar
qualquer segurança a ninguém (HOBBES, 1974, p.107).
130
Como o Estado surge de um contrato, o que Hobbes quer demonstrar é justamente
que este é fruto da vontade humana e que necessariamente reflete os seus interesses, pois no
Estado de soberania reinará a liberdade individual, a garantia da propriedade, a preservação da
paz, a segurança, a liberdade de comprar e vender, realizar contratos mútuos, de cada um
escolher sua residência, sua profissão, instruir os filhos e uma série de garantias que só serão
possíveis mediante um poder superior capaz de fazer com que tais regras não sejam violadas.
Eis o paradigma de liberdade para Hobbes. Percebe-se a influência das ciências nascentes do
século XVII, ou seja, o mundo passando a ser pensado mecanicamente e sem as intervenções
divinas.
E para que tudo isso seja mantido faz-se necessária a supremacia da soberania e
também a sua indivisibilidade, pois o poder e a honra do soberano devem estar acima de todos
e, embora possa haver uma ordem hierárquica entre os homens, em sua presença todos devem
ser considerados apenas súditos:
Do mesmo modo que o poder, assim também a honra do soberano deve ser maior do
que a de qualquer um, ou a de todos os seus súditos. Porque é na soberania que está
a fonte de honra. Os títulos de lorde, conde, duque e príncipe são suas criaturas. Tal
como na presença do senhor os servos são iguais, sem honra de qualquer espécie,
assim também o são os súditos na presença do soberano. E embora alguns tenham
mais brilho e outros menos, quando não estão em sua presença, perante ele não
brilham mais do que as estrelas na presença do sol (HOBBES, 1974, p.116).
A partir da citação anterior, percebe-se uma coerência no raciocínio de Thomas
Hobbes, porque tudo aquilo que foi escrito e defendido por ele se fundamenta muito bem na
própria organização da sociedade civil e, de uma maneira geral, é resultado da própria
vontade humana. Portanto, o Estado tem que ser forte para assegurar a vida, preservar a paz
social e garantir a liberdade, pois devido ao espírito natural a que todos os homens tendem,
isto é, o desejo de posse das coisas que levará à guerra de todos contra todos,
necessariamente deverá haver um poder soberano e mediador capaz de manter os homens no
estado de sociedade.
131
3.5 Formas de governo: soberania e liberdade
No Estado por instituição, Hobbes define a existência de três formas de governo, a
saber: Monarquia, Democracia e Aristocracia. Monarquia, quando a soberania reside em um
só homem. Democracia, quando a soberania se encontra em uma assembléia em que todos os
cidadãos podem votar. Aristocracia, quando a soberania reside em uma assembléia em que
apenas uma parte tem o direito de participação. Desta maneira, a forma de governo
caracteriza-se de acordo com a quantidade de pessoas envolvidas na soberania, o que
impossibilita outras formas, pois a soberania será exercida ou por um homem ou por um
grupo de homens, ou ainda por todos os homens. Os termos anarquia, oligarquia e tirania são
respectivamente referentes à democracia, aristocracia e monarquia e são assim designados por
pessoas que discordam ou sentem-se oprimidas pelo regime e, portanto, não o aceitam e
fazem esse tipo de julgamento de forma pejorativa. É importante caracterizar que a diferença
entre as três formas de governo não diz respeito ao poder que o soberano exerce em cada uma,
mas sim à “...capacidade para garantir a paz e a segurança do povo, fim para o qual foram instituídas”
(HOBBES, 1974, p.119).
Resumidamente, comparando as três espécies de governo pode-se observar que:
1. na Monarquia, o interesse pessoal coincide com o público;
2. na Monarquia, o monarca recebe conselhos de quem, onde e quando lhe apraz;
3. na Monarquia, a resolução do monarca está sujeita a uma única inconstância, aquela
própria da natureza humana;
4. na Monarquia, o monarca não pode discordar de si mesmo;
5. na Monarquia, embora também haja a possibilidade de um súdito ser prejudicado, esta é
menor do que nas outras formas;
6. na Monarquia, embora possa ocorrer disputa sobre o governo de um menor de idade, tal
não se deve à forma da Monarquia, mas à ambição dos súditos e ignorância de seu dever.
Para Renato Janine Ribeiro, “as preferências pessoais de Hobbes ... o levariam sem equívocos
para a monarquia” (RIBEIRO, 1978, p.37)
e isso fica explícito quando o autor faz a confrontação
entre as formas de governo no Leviatã, afirmando a possibilidade do interesse público ser
melhor atendido na monarquia, visto que o interesse pessoal do soberano confunde-se com o
interesse público, enquanto na democracia e na aristocracia a ambição e a corrupção podem
ocorrer com freqüência. É notável que em suas obras principais sempre aparecem elogios à
monarquia, mostrando que o aconselhamento para a tomada de decisões é facilitado quando
se tem apenas uma pessoa, dessa forma suas decisões estão sujeitas a menos inconstância.
132
Argumenta ainda que em governos mistos podem ocorrer grandes discordâncias, gerando até
mesmo guerras civis. Por fim, coloca-se que o favoritismo é substancialmente menor quando
a soberania recai sobre uma só pessoa:
A riqueza, o poder e a honra de um monarca provêm unicamente da riqueza, da
força e da reputação de seus súditos. Porque nenhum rei pode ser rico ou glorioso,
ou pode ter segurança, se acaso seus súditos forem pobres, ou desprezíveis, ou
demasiado fracos, por carência ou dissensão, para manter uma guerra contra seus
inimigos. Ao passo que numa democracia ou numa aristocracia a prosperidade
pública contribui menos para a fortuna pessoal de alguém que seja corrupto ou
ambicioso do que, muitas vezes, uma decisão pérfida, uma ação traiçoeira ou uma
guerra civil (HOBBES, 1974, p.119).
No que se refere à questão sucessória, é a monarquia a forma de governo a apresentar
maior dificuldade. Em uma democracia, é impossível que a multidão que a compõe esteja
totalmente ausente para que seja escolhido um entre tantos e, se isso ocorrer, não há mais o
Estado; já em uma aristocracia os membros restantes elegem quem vai substituir os ausentes,
mas na monarquia, o problema começa ao se determinar quem deverá escolher o sucessor do
soberano. Hobbes afirmou: “Com respeito ao direito de sucessão, a maior dificuldade ocorre no caso da
monarquia. E a dificuldade surge do fato de, à primeira vista, não ser evidente quem deve designar o sucessor,
nem muitas vezes quem foi que ele designou” (HOBBES, 1974, p.123).
Mas como saber quem foi que o atual monarca designou como seu herdeiro?
- Palavras expressas ou testamento.
- Costume.
- Que o governo continue sendo monárquico.
- Que seu filho seja preferido; dentre seus filhos, mais os do sexo masculino; na
falta de sua descendência, antes um irmão do que um estranho, e o de sangue
mais próximo antes que o remoto.
No caso de um monarca eletivo, isto é, quando o poder soberano é colocado nas
mãos de um monarca por um prazo determinado, que pode ser vitalício, ele deve decidir em
vida quem será o seu herdeiro e expressar sua decisão por palavras, documentos ou por outras
formas que sejam consideradas suficientes. Essa maneira respeita as tradições do Estado em
questão, pois se o costume for que o parente masculino mais próximo assuma o trono e o
monarca não declarar isto em vida, é ponto passivo que a vontade do monarca será o que o
costume determinar. E fica mais uma vez afirmado, após o contrato social estabelecido e o
homem almejando uma vida sem o temor da guerra com o seu próximo, que o Estado é uma
instituição que busca sua auto-alimentação, pois só assim o homem pode almejar a paz e a
133
liberdade perpétuas. E a vontade de paz, que é a vontade de cada homem, é a vontade do
homem ou assembléia de homens que recebe de cada um o poder para dirigir suas vidas.
Ainda na perspectiva de uma reflexão sobre a teoria da soberania, temos o Estado por
aquisição, que é aquele em que a soberania foi imposta, isto é, adquirida pela força. Os
indivíduos são submetidos por medo de perderem suas vidas ou do cativeiro. Assim os
homens, coagidos, consentem a outro, ou a uma assembléia, o poder sobre suas vidas e
liberdades. Tanto neste Estado ou no Estado instituído, o medo é o fator que facilita a
construção e concordância ao contrato e a obediência a este tem a mesma validade, ou seja,
todos os direitos e conseqüências da soberania no Estado por instituição são válidos também
no Estado por aquisição e as razões são as mesmas analisadas anteriormente.
Quanto ao domínio, há duas maneiras de adquiri-lo. A primeira, por geração ou
paterno, deriva do consentimento expresso ou argumentos suficientemente declarados e não
de forma natural, como um pai que desejasse ter domínio sobre os filhos apenas por gerá-los
sem que eles aceitassem essa situação. Já o domínio despótico é adquirido pelo vencedor
quando o vencido, por medo e necessidade de garantir sua vida, expressa a vontade de que o
vitorioso tenha direito de uso de sua vida e de suas capacidades (enquanto lhe for permitido
viver), sendo-lhe servo, mas não escravo, podendo a qualquer tempo rebelar-se contra seu
senhor, matá-lo ou torná-lo cativo, mas “... por servo entende-se a quem se permite a liberdade
corpórea e que, após prometer não fugir nem praticar violência contra seu senhor, recebe a confiança deste
último” (HOBBES, 1974, p.128)
. Não é a vitória que concede o direito ao domínio sobre o
vencido, mas um pacto com este, que o obriga a submeter-se ao vencedor: “...que todo homem
prometa obediência àquele que tem o poder de salvá-lo ou de destruí-lo” (HOBBES, 1974, p.127).
Mediante a aquiescência, obediência, pré-autorização e pré-reconhecimento do servo,
o senhor tem direito a tudo o que ele possui, como seus bens, trabalho e filhos. O servo é,
inclusive, considerado responsável pelos atos do senhor, mesmo os praticados contra o
próprio servo, bem como qualquer forma de levante contra o senhor será uma revolta contra si
mesmo.
Não existe diferença na constituição do domínio (geração e despótico), assim como
na constituição do poder soberano (instituição e aquisição), sendo distintas apenas na forma
como se dá a conquista, mas ambas são igualmente válidas, pois embora oriundas do medo
garantem a liberdade. Se fosse possível existir vários tipos de “soberania”, não existiria
soberania alguma, pois todos os homens poderiam proteger-se e governar-se, da forma que
cada qual achasse ser a mais correta, gerando, assim, estado de guerra, isto é, sem liberdades.
Por isso, o Domínio e o Poder Soberano visam à construção de um Estado caracterizado, uno
134
e indivisível, que muitas vezes até se mostra feroz e cruel que, para Hobbes, se faz necessário
porque:
De modo que aparece bem claro a meu entendimento, tanto a partir da razão quanto
das Escrituras, que o poder soberano, quer resida num homem, como numa
monarquia, quer numa assembléia, como nos Estados populares e aristocráticos, é o
maior que é possível imaginar que os homens possam criar. E, embora seja possível
imaginar muitas más conseqüências de um poder tão ilimitado, apesar disso as
conseqüências da falta dele, isto é, a guerra perpétua de todos os homens com seus
vizinhos, são muito piores (HOBBES, 1974, p.131).
O raciocínio de Hobbes, quanto às formas de governo, tem uma simplicidade
exemplar: se o poder soberano for dividido não será mais soberano. Aqui está para ele a chave
da estabilidade do Estado, só a soberania será capaz de garantir a liberdade dos cidadãos.
Assim, os atributos fundamentais da soberania serão o seu caráter absoluto e a sua
indivisibilidade. Só esta soberania será capaz, com sua força, que é superior à força conjunta
de todos os indivíduos, de fazer valer efetivamente que o que pertença a cada indivíduo,
pertença exclusivamente a ele, assegurando dessa forma o sistema de propriedade individual,
que em última instância é a própria liberdade.
Como manter a liberdade dos indivíduos num Estado que tem seus poderes
ilimitados? Eis a principal questão de todos aqueles que vêem na teoria hobbesiana um
modelo de Estado autoritário e opressor, por isso não esperam uma resposta positiva para esta
indagação, isto é, declaram ser impossível existir liberdade neste tipo de Estado.
Em princípio, este questionamento parece ter certo fundamento, pois o próprio
Hobbes admite que o conatus, aquele desejo às vezes incontrolável, ainda permanece no
homem mesmo no estado civil, podendo levá-lo a cometer crimes ou injustiças, porque, na
ânsia da satisfação deste, poderá infringir as leis estabelecidas:
“... Pois é pela alma que o homem
tem vontade, isto é, pode querer ou não querer” (HOBBES, 1998, p.115)
. Isso demonstra que por meio da
razão o homem não consegue ter pleno controle sobre suas paixões, vindo a cometer atos
proibidos, e automaticamente deverá arcar com as conseqüências destes.
Eis o ponto de partida de Thomas Hobbes para a conceituação de liberdade e sua
possível e necessária conciliação com o Estado absoluto. A noção de liberdade tem uma
relação com a concepção dos movimentos dos corpos, na medida em que se pode afirmar que
qualquer corpo, quando se encontra amarrado ou preso de um modo que não pode mover-se,
impedido pela oposição de outro corpo externo, não tem liberdade.
135
Dessa forma, é possível entender que a liberdade para Hobbes significa a ausência de
oposição e por isso definiu um homem livre como: “aquele que, naquelas coisas que graças a sua força
e engenho é capaz de fazer, não é impedido de fazer o que tem vontade de fazer” (HOBBES, 1974, p.133)
.
O autor compara a liberdade com o medo, afirmando que estes eram compatíveis,
pois o homem poderia não fazer alguma coisa, só que às vezes, por medo, decide fazer aquela
ação pensando nas conseqüências que poderiam lhe ocorrer. Afirma, também, que a liberdade
e a necessidade são compatíveis, porque compreendia que as ações praticadas
voluntariamente derivam da liberdade. Ao comentar sobre a liberdade dos súditos num Estado
instituído ou adquirido, declarou que os homens podem fazer o que a razão de cada um
sugerir, desde que não contrariem as leis estabelecidas:
Portanto, em primeiro lugar, dado que a soberania por instituição assenta num pacto
entre cada um e todos os outros, e a soberania por aquisição em pactos entre o
vencido e o vencedor, ou entre o filho e o pai, torna-se evidente que todo súdito tem
liberdade em todas aquelas coisas cujo direito não pode ser transferido por um pacto
(HOBBES, 1974, p.137).
A liberdade dos súditos está nas coisas que o soberano permitir: comprar e vender,
realizar contratos mútuos, como escolher residência própria, alimentação preferida, profissão,
instrução dos filhos. Thomas Hobbes defendia a tese da liberdade do Estado e não da
liberdade do indivíduo, afirmando que, tanto nas Sagradas Escrituras quanto na experiência da
Grécia, o Estado tinha direitos sobre as pessoas e, portanto, sua conclusão era de que o
soberano, para manter a paz, estabelecia as regras e os limites dos súditos e estes, por sua vez,
eram livres dentro das fronteiras delimitadas pela lei. Apesar da afirmação de que não
aceitava a “unção divina” para os reis, fica evidente que transferiu os direitos divinos para a
soberania.
Dessa concepção, afirmava ainda que o direito individual era o mesmo, independente
do sistema político que um Estado tivesse, pois o que valia de fato era o pacto que havia sido
concretizado por vontade dos súditos ou dos membros de uma comunidade democrática.
Assim, conclui o seu raciocínio dizendo que a liberdade está intimamente ligada ao silêncio
da lei. Caso não haja uma regra clara por parte do soberano, o súdito tem a liberdade de agir
ou omitir-se, além da liberdade de não fazer algo que lhe cause dor, dano ou morte.
Apesar de tais liberdades, o soberano tem todo direito de dispor da vida do súdito,
porque nada que o soberano representante faça a um súdito pode, sob qualquer pretexto, ser
propriamente chamado de injúria ou injustiça, pois os atos do soberano representam a vontade
dos que lhe investiram deste poder. Embora Hobbes afirme que o soberano possa dispor da
136
própria vida do súdito, não tira o direito deste de se defender, em caso de ameaça. Assim, se o
súdito em defesa da própria vida desafiar a soberania, estará indo contra a lei civil e não
contra a lei natural, que o impele à conservação da vida.
A verdadeira liberdade dos súditos encontra-se naquilo que mesmo ordenado pelo
soberano podem recusar-se a fazer. O que se percebe com esta liberdade é que o pacto
apresenta alguns itens que não podem ser negociados, pois existem os aspectos que este não
pode prescrever como direito do soberano. Hobbes, na tentativa de demonstrar que tal
liberdade se aplica pela falta de direitos do soberano e porque em certos casos o súdito pode
se recusar a obedecer, como por exemplo na defesa do próprio corpo; disse:
Se o soberano ordenar a alguém (mesmo que justamente condenado) que se mate, se
fira ou se mutile a si mesmo, ou que não resista aos que o atacarem, ou que se
abstenha de usar os alimentos, o ar, os medicamentos, ou qualquer outra coisa sem a
qual não poderá viver, esse alguém tem a liberdade de desobedecer (HOBBES,
1974, p.137).
Nesta passagem, pode-se notar que apesar de ser limitada a liberdade dos súditos em
relação a outros pontos, quando se trata da defesa da vida tem todas as liberdades, pois está
defendendo aquilo para que o soberano foi instituído e não está cumprindo tal papel, pois,
como disse Hobbes, ninguém apenas por ter assentido no pacto será obrigado a matar-se.
Um dos aspectos mais interessantes em relação à soberania e à liberdade dos súditos
é que a obrigação destes para com o soberano dura apenas enquanto este consegue garantir a
paz e a proteção da vida. Assim, a liberdade em Hobbes, apesar de suas limitações, não priva
o súdito do seu bem mais precioso, que é a vida. A paz aqui é vista como uma espécie de
liberdade, pois esta garantia que o homem tem no estado civil é que dá significado ao pacto.
O conceito de liberdade ainda é enfocado pelo autor na medida em que estabelece as
formas de organização social e política de todos os súditos na sociedade civil.
Na constituição do Estado, os indivíduos se agrupam em sistemas que podem ser
regulares ou irregulares. São regulares quando existe um objetivo comum e institui-se um
homem ou uma assembléia como representante de todo o conjunto. Quando todos estão
sujeitos apenas a seu próprio representante, o sistema regular é absoluto e independente,
sendo o tipo característico dos Estados. Se, por outro lado, todos estão subordinados a um
poder soberano, inclusive o representante do grupo, o sistema regular é dependente, podendo
ser político quando criado e reconhecido pelo poder soberano e privado no caso de ser criado
pelos súditos entre si ou por estrangeiros. Este último tipo será legítimo se permitido pelo
Estado e ilegítimo em caso contrário.
137
Os sistemas são irregulares quando não há representantes e as pessoas se reúnem,
com autorização do Estado, em busca de soluções para os problemas comuns. Nesse caso,
mesmo irregulares, estes sistemas são legítimos. No entanto, se houver intenção maléfica dos
indivíduos e o Estado não autorizar suas reuniões, os sistemas irregulares serão considerados
ilegítimos.
No corpo político, o poder do representante é limitado pelo soberano, uma vez que a
soberania é absoluta e representa os súditos de uma maneira geral. Dessa forma, ao
representante cabe apenas o que o Estado lhe autorizar, pois se assim não fosse criaria um
novo poder dentro do Estado, tornando a administração impraticável. Assim, o poder do
representante de um corpo político depende de dois fatores: dos escritos ou cartas que recebe
da soberania e das leis que regem o Estado.
As cartas são sinais da autoridade soberana, concedidas por ela, para que com o
passar do tempo, num Estado instituído ou adquirido, todos tenham ciência dos limites de
suas funções, principalmente quando comandam algum sistema político. Já as leis do Estado
são estabelecidas pelo soberano, representante legítimo de todos, tendo como objetivo
determinar aos súditos o que é legítimo ou não, pois as cartas podem não contemplar os
direitos e deveres globais. Com isso, as leis do Estado são fundamentais e servem de
norteamento e de organização da sociedade, bem como a garantia da plena liberdade. Desta
forma, os atos dos representantes dos corpos políticos só têm validade se estiverem em
consonância com as cartas e as leis, instrumentos legítimos da soberania sobre os súditos, o
mesmo valendo para uma assembléia se esta for representante do corpo político.
A aplicação das punições previstas nas cartas e nas leis do Estado são imputáveis,
seguindo regras de conduta do representante: se for um homem, deverá ser punido como
sendo um ato individual. Se for uma assembléia, os punidos serão apenas aqueles que
aprovaram tal conduta e aos que foram contra nada será aplicado.
Como o soberano não pode estar presente ao mesmo tempo em todos os lugares,
elege as assembléias para que em seu nome exerçam a soberania, mas tais assembléias estão
sujeitas como qualquer súdito ao soberano, não cabendo portanto a estas julgar a si próprias,
pois entrariam em contradição consigo mesmas devido ao seu caráter de corpo único e
inseparável. Somente ao soberano ou aos juízes por ele eleitos cabe o poder de julgar os seus
atos.
Os direitos reservados a uma assembléia são os mesmos aqui estabelecidos, quer seja
no governo de uma província, de uma cidade, uma universidade, um colégio, uma igreja, ou
para aqueles que fazem relações comerciais com o exterior. Só assim a soberania garante a
138
sua hegemonia, podendo dessa forma evitar prejuízos para o povo, motivo pelo qual foi
instituída.
Os corpos privados regulares podem ser legítimos ou ilegítimos. Legítimos,
38
quando
são constituídos sem cartas ou autoridade escrita, mas obedecem às leis comuns estabelecidas
a todos os súditos. Ilegítimos,
39
quando são constituídos por uma só pessoa representativa sem
qualquer espécie de autoridade pública, como por exemplo os mendigos, ladrões e ciganos
que se unem para melhor organizar suas ocupações.
Os corpos privados irregulares nada mais são do que as ligas de súditos que, por
terem uma semelhança de inclinações e vontades, se reúnem na perspectiva de terem seus
interesses mútuos defendidos. Podem ser legítimos ou ilegítimos, mas isso depende dos atos
de cada indivíduo que os constitui.
Na filosofia hobbesiana, fica descartada qualquer possibilidade de grupos ou
assembléias que reunidos não fiquem abaixo da estrutura do Estado. Apesar de se dar ênfase à
necessidade do capital em prol de uma suposta liberdade de atuação das elites, nem por isso
admite-se a possibilidade de uma não sujeição de todos, sem exceções, às leis da soberania.
Desta forma, considera-se um ataque ao Estado, à soberania e à própria liberdade qualquer
tipo de levante ou conspiração aos seus padrões de ordem, sendo que a ele tudo é permitido,
pois tem a aprovação de todos os seus súditos para agir da forma que quiser, como e quando
lhe for necessário. Assim, quem respeita as leis está funcionando como uma peça de uma
engrenagem perfeita, mas quem não estiver respeitando é considerado como uma peça
defeituosa que, portanto, deve ser substituída, isto é, deixado na condição de guerra.
Interpretar a teoria hobbesiana apenas como absolutista é delimitar demais o grau de
importância que esta filosofia introduziu na modernidade. Seu significado deve ser encarado
como bem mais amplo, de modo que todo seu pensamento seja concebido de uma forma
global e analisado o seu verdadeiro significado, isto é, a teoria da soberania e assim entender a
noção de liberdade proposta pelo autor.
A liberdade do súdito é referente ao que não pode ser transferido pelo pacto e àquilo
em que a lei silencia, deixando-se espaço para que o súdito aja em conformidade com os
ditames da razão; além do mais o grande monstro, que é o Estado, deve ser entendido como a
própria sociedade. Os súditos não podem esquecer nunca que este é resultado de suas
38
Geralmente referem-se ao espaço privado, no âmbito familiar. São regulares pois se encontram unidos a uma
pessoa representativa, no caso o pai, responsável por toda a família, este tem toda autoridade sobre os filhos e
servos, evidentemente depois daquilo que o Estado determinar.
39
Podem ser assim classificados também como uma corporação de homens que, sob o domínio de um
estrangeiro, buscam a desestabilização do Estado, pois propagam doutrinas e idéias contrárias à ordem
estabelecida.
139
vontades, só existe porque os indivíduos o criaram, ou seja, o Estado são eles, então estar
submetido é ser livre, na medida em que o Estado é o reflexo da vontade de todos.
E quando, afinal, o próprio Hobbes pergunta se não é muito miserável a condição de
súdito diante de tantas restrições, ele mesmo conclui que nada se compara à condição
dissoluta de homens sem senhor ou às misérias que acompanham a guerra civil:
Mas poderia aqui objetar-se que a condição de súdito é muito miserável, pois se
encontra sujeita aos apetites e paixões irregulares daquele ou daqueles que detêm em
suas mãos poder tão ilimitado (...) Ora, o poder é sempre o mesmo, sob todas as
formas, se estas forem suficientemente perfeitas para proteger os súditos. E isto sem
levar em conta que a condição do homem nunca pode deixar de ter uma ou outra
incomodidade, e que a maior que é possível cair sobre o povo em geral, em qualquer
forma de governo, é de pouca monta quando comparada com as misérias e horríveis
calamidades que acompanham a guerra civil, ou aquela condição dissoluta de
homens sem senhor, sem sujeição às leis e a um poder coercitivo capaz de atar suas
mãos, impedindo a rapina e a vingança (HOBBES, 1974, pp.116 e 117).
140
3.6 Liberdade e funcionamento do Estado
Como já analisado anteriormente, sobre os direitos dos soberanos e a liberdade que
compete aos súditos, pode-se inferir que cada súdito é autor de todos os atos praticados pelo
soberano, recaindo sobre este, portanto, a capacidade de escolha de todos aqueles que o
ajudarão na defesa do bem comum, haja vista que o próprio soberano, como portador desta
vontade geral, terá capacidade e discernimento suficientes para considerar o que será melhor
para todos. Isto ocorrendo, ficará estabelecida uma estrutura hierárquica em que todos
deverão praticar e respeitar, sob pena da lei, as ordens determinadas pela soberania.
A delegação de poderes por parte do soberano se dá exclusivamente para que o
Estado seja melhor administrado e não implica em hipótese alguma numa vontade do
soberano de transferir a soberania, porque esta é indivisível:
“Pois em que consiste dividir o poder de
um Estado senão em dissolvê-lo, uma vez que os poderes divididos se destroem mutuamente uns aos outros?”
(HOBBES, 1974, pp.198 e 199).
Assim, Hobbes visando à consolidação da sociedade, isto é, o seu pleno
funcionamento, que em síntese é a garantia das liberdades individuais, procurará não dividir o
poder, como se viu, mas nomear súditos que terão poderes especiais, enquanto partícipes da
soberania, para colaborar na condução desta. Começa pela nomeação de um ministro público
que é encarregado pelo soberano de qualquer missão oficial e, portanto, tem autoridade para
representar a pessoa do Estado.
A soberania apresenta duas capacidades: uma natural e outra política, pois nela reside
a pessoa do Estado e também a dos homens que a exercem. Os servidores em sua capacidade
natural não são ministros públicos, são apenas servos. Alguns ministros públicos podem
administrar o reino todo ou parte dele. Uns chegam à administração geral porque se tornam
protetores do rei, quando este ainda se encontra na menoridade, cabendo aos súditos a
obrigação de obedecer as ordens estabelecidas por eles, pois representam o próprio soberano.
No caso da administração de uma só parte do reino ou província, o monarca ou uma
assembléia soberana podem entregar sua administração a governadores, vice-reis ou prefeitos,
e os habitantes também serão obrigados a fazer tudo o que eles determinarem em nome da
soberania.
Existem também os ministros públicos que têm administração especial no país ou
fora dele. Em primeiro lugar, no país, há o ministro da economia que tem autoridade relativa
ao tesouro, cuida dos impostos e dos rendimentos públicos; são ministros porque estão a
141
serviço da autoridade máxima, isto é, o soberano, não podem fazer nada sem sua ordem ou
sem sua autorização, e são públicos porque o servem em sua capacidade política.
Em segundo lugar, temos os ministros públicos que cuidam dos assuntos
relacionados à paz e à ordem interna e externa, isto é, os comandantes das forças armadas, que
possuem capacidades para formar a milícia, controlar os fortes e portos, fazer o recrutamento,
comandar os soldados e fazer provisões necessárias para a conduta de uma guerra. São de fato
de suma importância, pois a soberania se fundamentará e será cada vez mais forte na medida
em que a ordem e as leis por ela estabelecidas forem cumpridas, cabendo a estes também tal
papel.
Há ainda aqueles que têm autoridade para ensinar ao povo os deveres para com o
poder soberano; cabe a estes instruir os súditos para adquirirem conhecimento do que pode ou
não ser feito, do que é certo ou errado, para promover a paz e a harmonia e prepará-los para
resistirem ao inimigo. Os ministros não fazem tudo isso apenas pela sua própria autoridade,
mas também em nome do soberano, que abaixo de Deus possui autoridade para garantir a
instrução do povo.
Os ministros públicos que cuidam da justiça representam o soberano e as suas
sentenças são dele próprio, porque todo poder judicial está intimamente ligado à soberania,
com poder para resolver todas as controvérsias que ocorrerem na sociedade. Esses juízes, cujo
trabalho deve ser o de fazer com que as leis sejam cumpridas, devem ser confiáveis e jamais
apresentar uma aparência de improbidade, pois servem à soberania, não devendo usar as
prerrogativas das leis em benefício próprio, já que as representam.
Há também os ministros nomeados pelo soberano para as relações internacionais,
com poderes de representá-lo, são eles: os embaixadores, os mensageiros, os agentes e
arautos. Só serão de fato representantes na medida em que estiverem em missão oficial, em
qualquer outra hipótese serão apenas pessoas privadas. Existem ainda os ministros públicos da
ouvidoria que são aqueles designados pelo soberano para receber petições e outras
informações. E, por fim, os ministros privados, aqueles conselheiros que representam a
opinião do monarca ou a transmitem aos outros.
A partir das definições de igualdade e liberdade é possível constatar que, no Estado
absoluto hobbesiano, os indivíduos possuem um direito que é primordial, isto é, a garantia de
suas vidas, mas mesmo sendo um direito fundamental, estas, na sociedade civil, ainda serão
movidas e marcadas pelo medo. Por isso, a preocupação do autor para que essas vidas, e tudo
delas decorrente como a paz e a liberdade, sejam de fato garantidas por esta estrutura
hierárquica idealizada por ele.
142
Em virtude do medo, que ainda impera mesmo após a constituição de um pacto e a
elevação do poder soberano, será necessário, para uma melhor governabilidade, a manutenção
da paz e a garantia das liberdades individuais, que o soberano e somente ele faça o
gerenciamento, a nutrição e a procriação do Estado, de forma que todos os bens e materiais
necessários à sobrevivência dos indivíduos serão de sua exclusiva competência.
Antes porém de analisar como se dará o gerenciamento do Estado, deve-se apresentar
o conceito de mercadoria na concepção de Hobbes. Ele limitou-se a dizer, primeiramente, que
as mercadorias são os materiais necessários à vida, os quais os homens obtêm da natureza
com ou sem trabalho e, em segundo lugar, que estas se dividem em nativas, quando oriundas
do próprio território e estrangeiras, quando importadas do exterior, porque nenhum Estado
pode ser auto-suficiente, necessitando, portanto, para melhorar a vida de seus súditos, da
realização de importações, seja através de troca, de justa guerra ou de trabalho.
Como o Estado não surgiu apenas devido ao medo da morte, mas sim da esperança
de se ter uma vida melhor, livre e mais confortável, Hobbes depositará na soberania todo o
poder econômico, para que este objetivo seja concretizado. É possível afirmar que o
pensamento econômico hobbesiano apresenta traços evidentes da política mercantilista
40
porque as recomendações políticas ao soberano tinham sempre o objetivo de incentivar a
produtividade e a acumulação de capital, para aumentar assim a riqueza da nação,
naturalmente, defendendo a idéia de que o Estado deveria encarregar-se de tudo isso.
É por isso que em todas as suas obras afirma que a propriedade, de uma forma geral,
pertence ao soberano e que este deve atribuir a todos os homens uma porção, conforme o que
considerar compatível com a eqüidade e com o bem comum, pois onde não há um poder
absoluto, há uma constante guerra entre os homens, na qual cada coisa é de quem a apanha e a
conserva pela força, o que não é propriedade, nem comunidade, mas sim incerteza. Dessa
forma, o direito que um súdito tem em suas terras é o de poder excluir todos os outros súditos
do uso destas, mas não de excluir o soberano, já que este é quem garante o seu uso e posse.
Além da distribuição de terras, também compete ao soberano a decisão sobre em que
lugares e com quais mercadorias os súditos estão autorizados a negociar com o estrangeiro,
porque se competissem às pessoas privadas tais decisões, algumas seriam levadas pela ânsia
do lucro a se beneficiarem usando métodos escusos, ou ainda poderiam fornecer ao inimigo os
meios para prejudicar o Estado. Assim, é necessário também que os homens distribuam o que
são capazes de poupar, transferindo a propriedade mutuamente uns aos outros, através da
40
Macpherson, C.B. A Economia Política de Hobbes. Artigo apresentado na Universidade de São Paulo em
setembro de 1979, em comemoração aos 300 anos da morte de Hobbes.
143
troca e dos contratos mútuos (compra, venda, troca, empréstimo e arrendamento),
evidentemente mediante regras estabelecidas pela soberania.
Como todos os bens e mercadorias não poderão ser imediatamente consumidos pelos
indivíduos, deverão ser armazenados e reservados para uma nutrição posterior, mas como este
armazenamento implicaria em atrapalhar o movimento das pessoas de lugar para lugar, uma
vez que seria em grande quantidade, faz-se necessária a criação da moeda para que sirva em
qualquer lugar para a nutrição dos indivíduos e com isto venha a servir de valor de troca,
estabelecendo assim a comercialização dos produtos e mercadorias dentro e fora do Estado. A
este processo Hobbes dá o nome de acondicionamento e o equipara ao sangue humano, que
garante a vida aos indivíduos: “... A tal ponto que este acondicionamento é como se fosse a corrente
sangüínea de um Estado, pois é de maneira semelhante que o sangue natural é feito dos frutos da terra; e,
circulando, vai alimentando pelo caminho todos os membros do corpo do homem” (HOBBES, 1974, p.157).
É evidente que a cunhagem de moedas é de responsabilidade do Estado, inclusive
estabelecendo os seus valores, dependendo das circunstâncias econômicas do país, e por isso
o seu valor é somente local. Já o ouro e a prata têm os seus valores devido às próprias
matérias das quais são feitos, não podendo, portanto, ser alterados pelo poder de um Estado,
nem pelo de um certo número de Estados, pois são a medida comum dos bens em todos os
lugares e seus valores elevados servem de relações econômicas entre as nações.
A procriação de um Estado se dá quando grupos de pessoas são enviadas pelo
soberano, sob direção de um chefe ou governador, com o propósito de povoar um território
estrangeiro, que se encontre vazio ou que tenha ficado em conseqüência da guerra.
Estabelecida a colonização, esta colônia passa a fazer parte do Estado, dependendo totalmente
de sua metrópole. Quando adquire independência, constitui por si só um Estado autônomo,
dispensado da sujeição ao soberano. Aqui está um dos fatores de que a filosofia hobbesiana
não pode ser apenas interpretada como absolutista ou totalitária, pois a preocupação é sempre
visar ao perfeito funcionamento do Estado, cabendo, inclusive, a autonomia de partes deste,
como por exemplo as colônias. Se a preocupação fosse exclusivamente o poder, tal hipótese
seria inconcebível:
(...) plantações ou colônias, são grupos de pessoas enviadas pelo Estado, sob
a direção de um chefe ou governador, para povoar um país estrangeiro, quer
este já se encontre vazio de habitantes, quer seja tornado vazio através da
guerra. E, depois de estabelecida a colônia, ou esta constitui por si só um
Estado, dispensado da sujeição ao soberano que a enviou, e neste caso o
Estado de onde partiram era chamado sua metrópole, ou mãe, e não exigia da
colônia mais do que os pais costumam exigir dos filhos a quem emancipam e
libertam de seu governo doméstico, ou seja, a honra e a amizade; ou então
permanece unida à metrópole, como as colônias do povo de Roma, e neste
144
caso não são Estados independentes, mas províncias e parte integrante do
Estado que as enviou (HOBBES, 1974, p.158).
Para que a estrutura de funcionamento do Estado não seja atrapalhada pelo uso
errôneo de certos conceitos, Hobbes analisa os aspectos que levaram a um uso cotidiano das
palavras ordem e conselho, demonstrando que entre elas há uma tênue linha que muitas vezes
fica muito além da percepção de seus verdadeiros significados, ou seja, a Ordem é dirigida
para benefício de quem a dá e o Conselho para benefício de outrem. Conseqüentemente, a
ordem pressupõe um cumprimento por parte daquele que foi ordenado, já o conselho, não.
Assim, quem ordena sempre o faz visando seu próprio benefício, ao manifestar sua vontade.
Porém, existem leis e regulamentos, que também são ordens, que manifestam o desejo de um
Estado, religião e comunidade, visando sempre ao bem ou ordem comum da coletividade. Já
um conselho, que dependendo das intenções daquele que o dá é feito em benefício daquele
que o pediu, não sendo uma ordem, fica por conta do livre arbítrio do solicitante em segui-lo
ou não, em detrimento do resultado de sua escolha. Entretanto, àquele que aconselha mediante
solicitação nunca caberá a responsabilidade das conseqüências da escolha do solicitante, pois
quando se pede um conselho, se confere a liberdade ao outro de opinar da maneira que achar
melhor, a menos que este conselho seja contrário às leis ou regulamentos estabelecidos,
cabendo, portanto, uma punição por parte da soberania, uma vez que ninguém pode contrariar
as regras determinadas, mesmo que alegando seu desconhecimento, porque a ignorância da lei
não é desculpa suficiente.
A exortação e a dissuasão são conselhos acompanhados de uma veemente
insistência, utilizados quando alguém se dirige a uma multidão e tendo em vista seu próprio
benefício, geralmente são artifícios usados por conselheiros corruptos e mal intencionados, na
ânsia de ver seus interesses difundidos.
A seguir, Hobbes apresenta algumas características peculiares que devem nortear a
conduta dos conselheiros oficiais, isto é, que fazem parte da administração do Estado, a saber:
não ter relações e interesses com aqueles a quem aconselham; usar sempre um discurso claro
e objetivo, com uma linguagem acessível, que permita a todos seu entendimento, evitando
expressões confusas, ambíguas ou obscuras; ter experiência, estudo e conhecimento para que
aquilo que for analisado seja sempre concluído de uma forma que não venha a colocar o
Estado e seus súditos sob ameaças ou que prejudique a paz e a ordem e, por fim, que os
conselheiros sejam sempre ouvidos em particular, para que se evitem as influências e os
interesses de outros.
145
De qualquer forma, para se dar um conselho qualquer que seja a situação, ou a
multidões ou em particular, é preciso se cercar de muitos cuidados: ter conhecimento de
causa, examinar as probabilidades, razões e até mesmo prever ou antever todas as suas
conseqüências. Na realidade, dar ordens e aconselhar só é fácil para as pessoas
inconseqüentes, de má fé ou que visam a interesses particulares.
No que se refere ao bom desempenho do soberano, na administração do Estado,
Hobbes descreve, a seguir, uma estrutura hierárquica de leis que deverão ser colocadas em
prática para que o mesmo tenha êxito em seu governo. Para ele, as leis civis são aquelas que
os homens são obrigados a respeitar, não por fazerem parte deste ou daquele Estado, mas por
serem membros de um Estado. O conhecimento das leis particulares é exclusivamente da
competência daqueles que as estudam em seus países, mas o conhecimento da lei civil é de
caráter geral e de competência de todos os homens. Assim, a lei não é um conselho, mas uma
ordem e, portanto, consiste na declaração ou manifestação da vontade de quem ordena, quer
oralmente, quer por escrito.
Quanto à lei civil, é ordenada pelo Estado e a ninguém compete a sua elaboração,
pois a sujeição é unicamente para com o Estado e as ordens devem ser expressas por sinais
suficientes, pois de outro modo ninguém saberia como obedecê-las: “Portanto o que faz a lei não é
aquela júris prudentia, ou sabedoria dos juízes subordinados, mas a razão deste nosso homem artificial, o Estado,
e suas ordens” (HOBBES, 1974, p.168).
É importante destacar que, para Hobbes, a liberdade existe, mas não em sua acepção
total, ou seja, o homem parece livre para caminhar para qualquer direção, mas não em todas,
pois há um conjunto de leis artificiais que estabelece os limites para uma vida em sociedade.
Assim sendo, todo homem tem seu limite, ou seja, a liberdade tem fronteira. E são exatamente
estes limites que impedem a total liberdade do homem e que vão garantir aos demais a não
invasão de seus próprios limites. Nesse sentido, a teoria hobbesiana parece aproximar-se do
princípio básico de que, no estado civil, o direito de um indivíduo termina exatamente quando
se inicia o direito do próximo. Por isso, para Hobbes o único legislador é o soberano, em
qualquer Estado, seja este um homem, uma monarquia, uma assembléia, uma democracia ou
uma aristocracia, porque legislador é aquele que faz a lei e como o Estado só é uma pessoa,
com capacidade para fazer seja o que for, na figura do seu representante, conclui-se que o
soberano é, assim, o único legislador e ninguém pode revogar uma lei já feita, a não ser ele
próprio. Desta forma, o soberano não poderá em hipótese alguma ficar sujeito às leis civis,
visto que tem o poder de fazer e revogar as leis. Pode, quando lhe aprouver, libertar-se desta
sujeição, revogando as leis que estorvam e fazendo outras novas.
146
Quando um costume de uma determinada região for prolongado e adquirir a
autoridade de uma lei, não é a grande duração que lhe dá autoridade, mas a vontade do
soberano expressa por seu silêncio e só permanece como lei enquanto o soberano mantiver
esse silêncio, pois a decisão sobre o que deve ou não ser abolido pertence a quem faz a lei,
isto é, o soberano.
A lei de natureza e a lei civil contêm-se uma à outra e são de idêntica extensão,
porque as leis de natureza, que se baseiam na eqüidade, na justiça, na gratidão e outras
virtudes morais que destas dependem, na condição de simples natureza, não são propriamente
leis, mas são qualidades que fazem com que os homens tendam para a paz e a obediência.
Essas leis só se concretizam de fato quando o Estado for instituído, porque passam a ser
determinadas por ele e, portanto, serão consideradas leis civis, já que para declarar, nas
dissensões entre particulares, o que é eqüidade, o que é justiça e o que é virtude moral, e
torná-las obrigatórias, são necessárias as ordenações do poder soberano e punições
estabelecidas para quem as infringir. Assim, a lei de natureza faz parte da lei civil em todos os
Estados do mundo e, reciprocamente, a lei civil faz parte dos ditames da natureza. Isso não
significa que haja uma lei natural, servindo única e exclusivamente para a promoção da paz,
uma vez que, para Hobbes, devido à igualdade natural dos homens, todos terão o direito de
usar a força necessária para defender suas vidas e seus interesses. Neste aspecto, não existe
jamais a certeza de que a lei será respeitada por todos e, dessa forma, a mesma perde toda sua
eficácia. Somente através do poder coercitivo do Estado, que terá o monopólio de fazer e
aplicar leis, todos, sem exceções, serão levados a cumpri-las. Deste modo, a tese hobbesiana
que concerne ao direito é sintetizada pela idéia de que não existe um direito anterior ao
Estado, pois o único direito que tem valor é o civil, isto é, do Estado. Sobre este aspecto
Norberto Bobbio comentou:
No estado de natureza, segundo Hobbes, existem leis (direito natural); mas, ele se
indaga, são tais leis obrigatórias? Sua resposta é digna de ser sublinhada, visto que
conclui um raciocínio paradigmático para todos os juspositivistas. Segundo Hobbes,
o homem é levado a respeitá-las em consciência (isto é, diante de si mesmo e, se crê
em Deus, diante de Deus), mas tem ele uma obrigação diante dos outros? Diante do
outro, afirma o filósofo, sou levado a respeitar as leis naturais somente se e nos
limites nos quais o outro as respeita nos meus confrontos (BOBBIO, 1995, p.34).
No entanto, o direito de natureza, isto é, a liberdade natural do homem pode e deve
ser limitado e restringido pela lei civil, sem a qual não será possível a liberdade. E a lei tem
como objetivo fundamental impedir que os indivíduos causem danos uns aos outros e, em vez
disso, se ajudem e se unam contra o inimigo comum. Assim, se o soberano de um Estado
147
subjugar um povo que tenha vivido sob outras leis escritas, essas serão a do Estado vencedor e
não a do Estado vencido, pois a validade das leis não tem correlação com a ordem e o tempo
em que foram feitas, mas com quem tem autoridade para fazer com que sejam cumpridas.
Todos os atos dos tribunais de justiça são atos da soberania e os juízes, que são
subordinados e representantes desta, devem considerar a razão que levou o soberano a fazer
determinada lei, para que sua sentença seja conforme a esta, pois, se isso não ocorrer, a
sentença proferida não representará a soberania e sim a do próprio juiz e, portanto, será
considerada injusta.
No entanto, a ordem do Estado só é lei para aqueles que têm capacidade de
compreendê-las, não se aplicando então aos débeis naturais, às crianças e aos loucos, nem
tampouco aos animais. Estes não têm capacidade de discernir o justo do injusto e nunca
tiveram como se organizar sob qualquer pacto e, desta forma, nunca aceitaram autorizar as
ações do soberano, como é necessário que façam para a criação de um Estado.
Como no pensamento hobbesiano a liberdade dos homens está na submissão ao
Estado, ou seja, os homens são livres quando sujeitos às leis civis, faz-se necessário examinar
quais os argumentos e sinais suficientes para o conhecimento destas e do que é da vontade do
soberano, tanto nas monarquias como em outras formas de governo.
Primeiro: Se for uma lei obrigatória para todos os súditos sem exceções, e não estiver
de modo algum publicada em lugares onde todos possam informar-se, trata-se de uma lei de
natureza, porque tudo o que os homens conhecem como lei, não através das palavras de outros
homens, mas cada um através de sua própria razão, deve ser válido para a razão de todos os
homens, o que não pode acontecer com uma lei a não ser a lei de natureza. Assim, as leis
naturais não precisam ser publicadas nem proclamadas, porque já se encontram nesta única
sentença que foi aprovada por todos: não faças aos outros o que não consideras razoável que
seja feito por outrem a ti mesmo.
Segundo: Toda lei que não seja escrita, ou de alguma maneira publicada por aquele
que a faz, só pode ser conhecida através da razão daquele que obedece a ela, sendo uma lei
também natural e não apenas civil, devendo tomar como instruções os ditames da razão,
porque a vontade de alguém só pode ser compreendida através de suas palavras ou atos, os
quais devem sempre ser considerados, na pessoa do Estado, como conformes à eqüidade e à
razão. É necessário ainda que haja sinais manifestos de que ela deriva da vontade do
soberano
41
.
41
Na Antigüidade, quando a maioria do povo era inculta, muitas vezes as leis eram colocadas em versos, para
que tivessem prazer em cantá-las e recitá-las, assim pudessem facilmente guardá-las na memória.
148
Em todos os Estados, o soberano é o legislador, pois foi constituído com o
consentimento de todos. Embora quando a recordação de alguns se desvanece e deixam de
levar em conta qual poder costuma defendê-los dos inimigos, mesmo assim não é possível
alegar como desculpa a ignorância de onde reside a soberania. E ninguém deve enfraquecer
este poder, cuja proteção todos pediram ou conscientemente aceitaram, sendo isso um ditame
da razão natural.
Todos os homens têm a obrigação de se informar de todas as leis escritas que possam
ter relação com suas ações futuras. No entanto, a natureza da lei não consiste na letra, mas na
intenção, isto é, na autêntica interpretação da lei e, desta forma, só o soberano ou aquele
indicado por ele podem ser intérpretes. Se assim não for, a astúcia de qualquer outro intérprete
pode fazer com que a lei adquira um sentido contrário àquilo que o soberano quis dizer, deste
modo o intérprete tornar-se-á legislador, contrariando a soberania. Todas as leis, escritas ou
não, têm necessidade de uma interpretação e, assim, nenhuma, quer seja expressa em poucas
ou em muitas palavras, pode ser bem compreendida sem um perfeito entendimento das causas
finais para as quais foram feitas e o conhecimento das causas finais está com o legislador.
Além do mais, as leis devem estar na medida certa, isto é, nem longas e nem curtas para se
evitarem as diversidades de interpretações.
Num Estado a interpretação das leis de natureza não depende dos livros de filosofia
moral. Sem a autoridade do Estado, a autoridade de tais filósofos não basta para transformar
em leis suas opiniões, por mais que sejam verdadeiras porque, como bem destaca Hobbes, a
filosofia moral não conseguiu os ideais de precisão das ciências exatas, portanto, são
suscetíveis a várias interpretações que podem gerar polêmicas e controvérsias.
A interpretação da lei de natureza é a sentença do juiz constituído pela autoridade
soberana para ouvir e determinar as controvérsias que dela dependem e consiste na aplicação
da lei ao caso em questão, porque no ato da judicatura o juiz não faz mais do que examinar se
o pedido de cada uma das partes está compatível com a eqüidade e a razão natural, sendo sua
sentença uma interpretação da lei de natureza, interpretação esta que não é autêntica por ser
sua sentença pessoal, mas por ser dada pela autoridade da soberania, mediante a qual torna-se
uma sentença do soberano, que então vira lei para as partes em litígio.
Dessa forma, é impossível afirmar que poderão ocorrer erros nas leis, pois estas são
baseadas nas leis naturais e seguem os ditames da razão. Podem ocorrer interpretações
contraditórias que venham penalizar uns mais do que outros, mas cabe aos juízes, a partir dos
princípios de sua razão natural, buscar e aplicar sempre a eqüidade. Mesmo após a
constatação de um erro, devem alterá-lo em conformidade com a lei. É em virtude disto que
149
não pode haver interpretadores das leis escritas, a não ser que tenham autorização do
soberano, justamente para impedir que inúmeras interpretações sejam feitas e dêem margens a
novas controvérsias e comentários, gerando dúvidas.
O juiz, no entanto, não precisa preocupar-se antecipadamente com o julgamento,
porque tudo aquilo de que necessitará em matéria de fatos será relatado pelas testemunhas, o
que, como autoridade, interpretará no próprio local. As características de um bom juiz, ou um
bom intérprete da lei, são: uma correta compreensão daquela lei principal da natureza a que se
chama eqüidade, que não depende da leitura das obras de outros homens, mas apenas da
sanidade da própria razão e meditação natural de cada um; o desprezo pelas riquezas
desnecessárias e pelas preferências; a capacidade no ato do julgamento de despir-se de todo
medo, raiva, ódio, amor e compaixão e, enfim, paciência para ouvir e atenção para reter na
memória, entender e aplicar o que ouviu.
A diferença e divisão das leis foi feita de diversas maneiras, conforme os diferentes
métodos daqueles que escreveram sobre elas, por isso, a título de ilustração, reproduzem-se a
seguir, conforme o estabelecido nas Instituições de Justiniano, no Império Romano, as sete
espécies de leis civis:
1. Os editos: Constituições e epístolas do príncipe, isto é, do imperador, porque todo o poder
do povo residia nele. São semelhantes a estes as proclamações dos reis da Inglaterra.
2. Os decretos de todo o povo de Roma: (incluindo o Senado) Inicialmente estes eram leis
em virtude do poder soberano que residia no povo e os que não foram revogados pelos
imperadores continuaram sendo leis pela autoridade imperial.
3. Os decretos do povo comum
: (excluindo o Senado) Os que não foram revogados pelo
imperador continuaram sendo leis pela autoridade imperial. Eram semelhantes a estes as
ordens da Câmara dos Comuns na Inglaterra.
4. Senatus consulta, as ordens do Senado: Quando o povo de Roma se tornou demasiado
numeroso para poder reunir-se sem inconveniente, o imperador considerou preferível que
se consultasse o Senado em vez do povo. Estas tem semelhança com os atos de conselho.
5. Os editos dos pretores
e (em alguns casos) os dos edis, tal como os dos juízes supremos
nos tribunais ingleses.
6. Reponsa prudentum
: Sentenças e opiniões dos juristas a quem o imperador dava
autorização para interpretar a lei e para responder a todos quantos em matéria de lei
pediam seu conselho. Respostas essas que os juízes, ao proferirem suas sentenças, eram
obrigados a respeitar pelas constituições do imperador.
150
7. Os costumes não escritos: (que são por natureza uma imitação da lei) são autênticas leis,
pelo consentimento tácito do imperador, caso não sejam contrários à lei de natureza.
Para Thomas Hobbes, as leis também podem ser divididas em naturais e positivas.
As leis naturais são assim consideradas desde toda a eternidade e não são apenas chamadas
naturais, mas também leis morais. Consistem nas virtudes morais, como a chamada justiça,
eqüidade e todos os hábitos de espírito propícios à paz e à caridade. As leis positivas são as
que advêm da vontade daqueles que tiverem o poder soberano sobre outros. Podem ser
escritas ou então dadas a conhecer aos homens de qualquer outra forma de acordo com a
vontade de seu legislador. As leis positivas podem ser humanas e divinas. As leis positivas
humanas por sua vez subdividem-se em distributivas e penais. As distributivas são as que
determinam os direitos dos súditos, declarando a cada um por meio do que adquire e conserva
a propriedade de terras ou bens e um direito ou liberdade de ação. As penais são as que
declaram qual a penalidade que deve ser aplicada àqueles que violam a lei e são dirigidas aos
ministros e funcionários encarregados da execução destas. Essas leis são em sua maioria
escritas juntamente com as leis distributivas e por vezes chamadas julgamentos.
De acordo com a concepção de Hobbes, o direito, isto é, a lei civil emana única e
exclusivamente de quem detém o poder, ou seja, o soberano. Assim, deste ponto de vista,
direito é o que aquele que detém o poder soberano ordena aos seus súditos, proclamando em
público ou em claras palavras o que podem ou não fazer. Nesta definição, fica clara sua
intenção de reafirmar que tudo o que se refere às leis seja monopólio do Estado, uma vez que,
a partir do surgimento deste, qualquer lei deixa de ter o valor de direito natural e passa a ser
normatizada pelo poder civil, isto é, pelo soberano.
As leis positivas divinas são as que, sendo os mandamentos de Deus, são declaradas
como tais por aqueles a quem Deus autorizou. Deus, no caso, pode ordenar a um homem por
meios sobrenaturais que comunique as leis aos outros homens. Embora ninguém possa
infalivelmente saber pela razão natural que alguém recebeu uma revelação divina, pode
apenas ter uma crença mais firme ou mais frágil, conforme seus sinais pareçam maiores ou
menores e, no entanto, até aqueles que não acreditassem por não ter recebido uma revelação
pessoalmente, deveriam obedecer mesmo assim, pois são obrigados; desde que essas não
ferissem as leis naturais e fossem declaradas aceitas pelo Estado. Como exemplo temos o
pacto que Deus fez com Abraão de maneira sobrenatural e todos deveriam obedecer. Nesta
perspectiva, Hobbes afirmou: “... Em tudo o que não seja contrário à lei moral (quer dizer, à lei de
natureza), todos os súditos são obrigados a obedecer como lei divina ao que como tal for declarado pelas leis do
Estado” (HOBBES, 1974, p.177).
151
Existe ainda uma outra distinção entre as leis: as fundamentais e as não
fundamentais. A lei fundamental é aquela que, se eliminada, o Estado é destruído e
irremediavelmente dissolvido, como um edifício que tem seus alicerces arruinados. Os súditos
são obrigados a sustentar qualquer poder que seja dado ao soberano, quer seja um monarca ou
uma assembléia, sem o qual o Estado não poderia subsistir, como é o caso do poder da guerra
e da paz, o da judicatura, o da designação dos funcionários e o de fazer o que considerar
necessário para o bem público. Essas leis são fundamentais, pois sem as quais o Estado não se
organizaria e nem se sustentaria. As leis não fundamentais são aquelas que se forem
revogadas não causam a dissolução do Estado, como é o caso das leis relativas às
controvérsias entre os súditos.
Com base na concepção hobbesiana de que não existe um direito anterior ao Estado e
independente dele, serão estabelecidos os critérios para a punição ou não dos atos que ferem
as normas estabelecidas pela soberania.
A desobediência às leis não é apenas um pecado, é também a manifestação de
desprezo pelos legisladores, que representam a figura do soberano, portanto, podem-se
considerar como crimes: atos, palavras ou omissões que transgridem as leis estabelecidas pelo
Estado. Quando os atos que transgridem as leis estabelecidas não se manifestarem, isto é,
ficarem apenas como pensamentos e intenções, não se configuram como crimes, mas são
considerados pecados, dado que Deus, que vê até os pensamentos humanos, poderá condená-
los. Nunca poderá haver uma acusação quando as intenções não forem visíveis.
Para Hobbes, as origens dos crimes podem ser atribuídas a algum defeito de
entendimento, erro de raciocínio ou ainda alguma força brusca interna das paixões (conatus).
A ignorância das leis não pode servir de desculpa para ninguém, pois o homem é dotado de
razão e a lei maior da natureza refere-se a que ninguém faça aos outros o que não gostaria que
fizessem a si mesmo e, dessa forma, o indivíduo sabe claramente o que pode ou não ser feito.
Da mesma maneira que a ignorância das leis civis não constitui desculpa, a não ser que o
indivíduo se encontre num país estranho, pois até que a lei lhe seja declarada, não se torna
obrigatória. Em todos os outros casos estará submetido à pena.
O homem que vive sob a proteção do Estado instituído jamais pode ignorar o poder
soberano, pois tem por obrigação saber quem o protege e lhe dá a garantia da liberdade. Em
qualquer Estado, a punição é uma conseqüência necessária para todos aqueles que violarem as
leis, de forma que esta deve ser aplicada com rigor para que sirva de exemplo e não seja um
convite à prática de desobediências, insurreições, rebeliões que só enfraquecem o poder
institucional.
152
Por erro de raciocínio os homens são capazes de transgredir as leis de três maneiras:
a) Por presunção de falsos princípios, isto é, quando ações injustas são cometidas e não
ocorrem punições, isto poderá abrir um precedente ao descumprimento e desrespeito às
leis.
b) Quando os súditos são induzidos por falsos mestres, que deturpam as leis de natureza ou
ensinam doutrinas incompatíveis com as leis civis, de forma que são levados
enganosamente a um ato de transgressão.
c) Por conclusões errôneas de princípios verdadeiros, muitas vezes por precipitação e
excesso de confiança em seus atos.
Nenhum destes atos referentes à transgressão das leis por erro de raciocínio pode
servir de desculpa para um crime, porque todos os homens são dotados de razão e só a falta
desta serviria de fundamento para a desculpa, podendo em alguns casos até servir de
atenuante, mas não de perdão.
Das paixões humanas, a que mais freqüentemente pode ser causa de crime é a
vanglória, ou seja, uma super estimação do próprio valor, como se os homens fossem
diferentes entre si, esquecendo-se de que os títulos, as honras e glórias são atribuídos pelo
soberano e até que isso seja feito todos são súditos. Muitos se aventuram em praticar alguns
crimes na perspectiva de serem perdoados, por imaginar que pelo fato de possuírem fortuna
poderão corromper a justiça, ou pelo simples fato de terem algum grau de parentesco com
pessoas poderosas poderão valer-se disso para violar as leis sem nada sofrer. Existem ainda os
que usam a retórica, isto é, uma falsa opinião para transgredir as leis, como se tivessem
autoridade para definir o que pode ou não ser feito. Há também os que praticam atos escusos,
enganam as pessoas e acreditam que são suficientemente astutos e jamais serão punidos.
Enganam-se, pois mais cedo ou mais tarde serão descobertos, porque seus atos perturbam a
ordem do Estado e, portanto, afloram.
No que se refere às paixões do ódio, Hobbes afirma que é óbvio que muitos crimes
poderão ocorrer, já que são inerentes à natureza humana, de forma que tudo o que os homens
odeiam é porque lhes causa um inevitável incômodo, acarretando, portanto, o desejo de
eliminar o que os incomoda e na maioria das vezes é impossível que isso ocorra sem a
violação das leis.
De todos os movimentos internos e incontroláveis, isto é, as paixões, a que menos
leva os homens a violar as leis é o medo; pois, é a única que os leva a respeitá-las. Entretanto,
também existem muitos crimes que são praticados pelo medo. Não se configura como crime
de morte o indivíduo que reagiu em legítima defesa contra um ataque inesperado, mas alguém
153
matar um homem que, devido aos seus atos ou ameaças, pressupõe que irá matá-lo
futuramente é crime, porque o indivíduo dispôs de tempo suficiente para pedir proteção ao
Estado e não o fez. Também constitui crime o indivíduo que matar o outro porque sofria de
agressões por palavras desagradáveis ou pequenas injúrias, mesmo que justifique temor que
estas o tornassem objeto de desprezo no futuro e, motivado pelo medo, violou as leis. E, por
fim, aqueles que violarem as leis motivados por sonhos e visões próprios ou de outrem, ou
ainda numa fantasia do poder dos espíritos invisíveis, cometerão crime, pois estarão se
afastando das leis naturais e contrariando o que o Estado lhes permite.
Diante da diversidade das fontes dos crimes, fica claro que nem todos são da mesma
natureza, ao contrário do que pretendiam os estóicos
42
. Embora todos sejam considerados
injustos, existem crimes de maior ou menor relevância. Além disso, é preciso considerar as
desculpas, mediante as quais se prova não ser crime aquilo que parecia sê-lo e também as
atenuantes, mediante as quais um crime que parecia grande se torna menor. Assim, para que
um ato fosse inteiramente desculpado, só se a lei não tivesse caráter obrigatório, porque todos
os atos contrários às leis serão considerados crimes.
A falta de informação sobre o que as leis prescrevem não pode ser considerada como
desculpa, pois as leis naturais são decorrentes da razão e só os loucos e as crianças estão
desculpados pelos descumprimentos destas. Só em um momento caberá a desobediência, ou
seja, quando alguém encontrar-se sob o domínio de outrem e sua vida correr perigo, sendo
obrigado a praticar um ato contrário à lei para permanecer vivo. Este ficará inteiramente
desculpado, pois a defesa da própria vida é a lei maior da natureza. Hobbes escreveu: “... E é
conforme a lei, para resgatar minha vida, prometer, e mesmo dar, aquilo que eu quiser dos meus bens a qualquer
pessoa que seja, até mesmo a um ladrão” (HOBBES, 1998, p.47).
Podemos inferir que também não se configura crime quando a ordem partir da
própria soberania para que haja uma violação da lei. Neste caso o ato será totalmente
desculpado, porque o soberano é quem será o autor e como os seus atos estão acima das leis,
automaticamente, se revogarão os dispositivos contrários. E, por fim, todos os atos praticados
contra o Estado sempre serão considerados crimes maiores, haja vista que este é o
representante de todos e, dessa forma, quem praticar um crime contra ele será considerado um
criminoso maior, pois estará cometendo um crime contra toda a sociedade. Em defesa desta
soberania Hobbes comentou:
42
Os estóicos consideravam crimes igualmente graves matar uma galinha, contra a lei, como também matar o
próprio pai.
154
Porque, se para nosso bem exigimos de nossos concidadãos que prestem obediência
a um determinado poder, então, por esta mera exigência, nós o reconhecemos como
legítimo. E assim, nunca pode ser justa a desculpa de que ignoramos em quem reside
o poder de decretar as leis: porque todo e qualquer homem sabe o que ele próprio
praticou (HOBBES, 1998, p.224).
Para um perfeito desenvolvimento do Estado e a manutenção do pacto social, bem
como a possibilidade de se ter as liberdades individuais protegidas, Hobbes não vê outra saída
a não ser via punição, decorrendo daí a necessidade de se estabelecerem as penas para aqueles
que infringirem as normas públicas, e também recompensas para incentivar a ordem social.
Define como pena, portanto, um dano infligido pela autoridade pública a quem fez ou omitiu,
o que pela mesma autoridade é considerado uma transgressão da lei, garantindo assim que a
vontade dos homens fique mais disposta à obediência.
Quando os homens fundam um Estado, isto é, compactuam, renunciam ao direito de
defender os outros, mas não o de defender-se. Assim, ninguém é considerado obrigado pelo
pacto a abster-se de resistir à violência, o direito de punir pertence ao Estado, mas qualquer
indivíduo poderá colaborar na punição de outrem, mas não na sua própria, pois foram os
súditos que deram ao soberano tal direito ao renunciar ao seu, reforçando o uso que ele pode
fazer do seu próprio, para a preservação de todos.
É em virtude deste poder, atribuído à soberania, que esta terá plenos poderes para a
aplicação de qualquer mecanismo de punição para que a ordem seja mantida.
No que se refere à definição de pena, Hobbes demonstra que nem as vinganças
pessoais nem as injúrias de particulares podem propriamente ser classificadas como penas,
pois não derivam da autoridade pública; não constitui pena ser esquecido ou desfavorecido
pela preferência pública; os danos causados pela autoridade pública, sem condenação anterior,
não devem ser classificados como penas, mas como atos hostis; os danos infligidos pelo poder
usurpado ou por juízes não autorizados pelos soberanos também não são penas, mas atos de
hostilidade; todo dano infligido sem intenção ou possibilidade de predispor o delinqüente, ou
outros homens, através do exemplo, à obediência às leis, não é pena; certas ações que
implicam por natureza diversas conseqüências danosas, como quando ao atacar outrem
ocorrer morte ou ferimento, podem infringir as leis naturais, que são dadas por Deus, portanto
são penas divinas, mas não podem ser consideradas penas em relação aos homens; se um dano
infligido for menor que o benefício, tal dano não é abrangido pela definição e é mais preço ou
redenção do que pena aplicada por um crime, uma vez que a natureza das penas tem por
objetivo predispor os homens a obedecerem às leis; se houver uma pena determinada e
prescrita pela própria lei e depois de cometido o crime for infligida uma pena mais pesada, o
155
excesso não é pena, e sim ato de hostilidade, visto que a finalidade das penas não é a vingança
e sim o terror que esta causa; os danos infligidos por um ato praticado antes de haver uma lei
que o proibisse também não são penas, mas atos de hostilidade; são também atos de
hostilidade e não penas os danos infligidos ao representante do Estado e, por fim, os danos
infligidos a quem é um inimigo declarado não podem ser classificados como penas, pois este
nunca esteve sujeito à lei e, portanto, não pode haver transgressão a esta. Já numa situação de
hostilidade declarada, é legítimo infligir qualquer espécie de danos.
As penas podem ser distribuídas entre divinas e humanas. As penas divinas foram
abordadas por Hobbes mais detalhadamente na parte final da obra Leviatã, em que são
analisadas características do Estado Cristão e todos os aspectos da Sagrada Escritura. Por isso
tal concepção não será abordada, pois o objetivo deste capítulo é compreender como as leis
civis são o principal instrumento que o governo tem para a garantia das liberdades. Já as penas
humanas são aquelas infligidas por ordem dos homens e podem ser corporais, pecuniárias, a
ignomínia, a prisão, o exílio ou uma mistura destas.
As penas corporais são aplicadas diretamente ao corpo e conforme a intenção de
quem as aplica, como a flagelação, os ferimentos ou privação dos prazeres do corpo de que
antes legitimamente se desfrutava. As penas podem ser capitais ou menos do que capitais.
Capital é a morte, ocorrida de modo simples ou com tortura. Menos do que capitais são a
flagelação, os ferimentos ou qualquer dano corporal que não cause a morte.
As penas pecuniárias são as que consistem não apenas no confisco de uma soma em
dinheiro, mas também de terras e quaisquer outros bens que geralmente podem ser
comercializados. A ignomínia consiste em punir com um mal considerado desonroso dentro
do Estado ou em privar de um bem considerado honroso dentro do mesmo, porque algumas
coisas são honrosas por natureza, outras são tornadas pelo Estado, como os títulos e cargos
que podem ser tirados pelo soberano como um ato de punição.
A prisão ocorre quando alguém é privado da liberdade pela autoridade pública e pode
ser imposta tendo em vista dois fins diferentes, sendo um deles a segura custódia do acusado e
o outro a aplicação de uma pena ao condenado. Já o exílio ou banimento ocorre quando, por
causa de um crime, alguém é condenado a sair do território sob o domínio do Estado ou de
uma de suas partes, por durante um tempo determinado ou para sempre ficar impedido de
voltar.
Todas as penas aplicadas a súditos inocentes, quer sejam grandes ou pequenas, são
contrárias à lei de natureza, pois as penas só podem ser aplicadas por transgressão à lei, não
podendo, assim, inocentes sofrer punições. Infligir qualquer dano a um inocente que não seja
156
súdito, se for para o benefício do Estado e sem a violação de qualquer pacto anterior, não se
configura desrespeito à lei de natureza, porque este, não sendo mais súdito, tornou-se inimigo
e, portanto, uma ameaça ao Estado e se não for punido poderá juntamente com outros
organizar rebeliões, que se configuram como guerra.
As recompensas podem ser por dádivas ou por contratos. Por contrato chama-se
salário ou ordenado, que é o benefício devido ao indivíduo que presta serviços de uma forma
geral, e por dádiva um benefício proveniente da graça de quem o confere, a fim de estimular
ou capacitar alguém para lhe prestar serviços.
Os benefícios outorgados pelo soberano a um súdito, por medo de seu poder ou de
sua capacidade, não são propriamente recompensas e também não são salários, porque, neste
caso, não se supõe a existência de qualquer contrato. Também não são graças, porque são
oriundos do medo, o qual nunca deveria afetar o poder soberano, são apenas sacrifícios feitos
por este com o propósito de aplacar o descontentamento de quem se considera mais poderoso
do que ele próprio. Tal atitude da soberania poderá causar sérios problemas ao Estado, como
levá-lo ao enfraquecimento e até mesmo à dissolução.
Quando o benefício dos juízes e ministros dos tribunais resulta da grande quantidade
de causas que são levadas a seu conhecimento, ocorrem necessariamente dois inconvenientes:
a multiplicação dos processos, porque quantos mais houver, maiores serão os benefícios e, em
decorrência disto, haverá a competição acerca da jurisdição, pois cada tribunal procura
atribuir-se o maior número possível de processos para julgamento. Nos cargos executivos
estes inconvenientes não se verificam, porque o lucro não pode ser aumentado por qualquer
esforço que se possa dispender.
Assim, Hobbes conclui afirmando que é da natureza humana a submissão ao Estado,
pois movidos pelas paixões, honra, vã glória, orgulho, medo, os indivíduos seriam levados à
destruição. E muitas vezes, já no Estado instituído, tais características poderiam sobressair e
gerar conflitos, daí resultando as penalidades, porque mesmo no homem com toda
racionalidade tais paixões às vezes são incontroláveis e, portanto, devem ser tratadas da
mesma forma, isto é, pelo medo oriundo do Leviatã, que garantirá a paz, a segurança e a
liberdade: “Deus, após ter estabelecido o grande poder do Leviatã, lhe chamou Rei dos Soberbos. Não há nada
na terra, disse ele, que se lhe possa comparar. Ele é feito de maneira a nunca ter medo. Ele vê todas as coisas
abaixo dele, e é o Rei de todos os filhos da Soberba” (HOBBES, 1974, p.195).
A opção por fazer uma descrição similar à de Thomas Hobbes sobre a importância
das leis civis foi proposital e deve-se ao fato de que na perfeita compreensão da legislação e
da total autonomia que o governo deve ter para aplicá-la é que está o cerne da reflexão sobre a
157
liberdade, pois, como bem afirmou, se não houvesse um poder que faça com que os homens
cumpram os pactos, por meio das leis, a liberdade de cada um e a de todos estaria ameaçada:
Uma lei pode ser obrigatória para todos os súditos de um Estado, mas uma liberdade
ou carta destina-se apenas a uma pessoa, ou apenas a uma parte do povo. Porque
dizer que todo o povo de um Estado tem liberdade em determinado caso é o mesmo
que dizer que, para tal caso, não foi feita lei alguma, ou então que, se o foi, está já
revogada (HOBBES, 1974, p.178).
Assim, percebe-se o que Hobbes entende por liberdade e por que, e em nome de que,
o homem deve abrir mão da plenitude do termo, pois para ele a liberdade está na vida civil. O
homem é livre quando está submetido ao Estado, ou seja, às leis. É por isso que, para o autor,
a soberania não reside nem na pessoa natural do monarca, nem em uma associação de pessoas
naturais, mas na pessoa artificial do Estado. Autorizados pelos súditos, aqueles que conduzem
essa pessoa artificial são os que detêm legitimamente o poder soberano, isto é, são
autoridades; é justamente aqui que está a liberdade de todos.
A evolução do conceito de liberdade nas obras políticas do autor requer que se
apresentem, até mesmo de forma descritiva, as principais características dos homens vivendo
nos dois estados apresentados por ele, antagônicos justamente pelo fato de apresentarem
concepções distintas do conceito de direito, porque é a partir deste que o conceito de liberdade
será decorrente. No estado de natureza todos os homens podiam tudo, isto é, existia uma falsa
liberdade; no estado de sociedade a lei será a garantia da liberdade. Desta forma, entende-se o
interesse de Hobbes em tentar modelar as leis, ou melhor, a filosofia moral e política nos
rigores das ciências exatas, pois só assim ter-se-ia a convicção de que a paz e a liberdade não
seriam ameaçadas, uma vez que, tendo como fundamentos a matemática e a geometria, a
organização social seria garantida pelos Estados sem a necessidade de recorrer à imposição do
poder por meio do medo:
Porque mesmo que em todos os lugares do mundo costumassem construir sobre a
areia as fundações de suas casas, daí não seria possível inferir que é assim que deve
ser feito. O talento de fazer e conservar Estados consiste em certas regras, tal como a
aritmética e a geometria (HOBBES, 1974, p.127).
Assim, para Hobbes, a liberdade pode ser vista de formas diferentes, a saber:
1. a liberdade que impera no estado de natureza, uma vez que os homens não se respeitam, ou
melhor, respeitam apenas seus desejos particulares, independente do ônus que possa lhe
causar o desejo alheio. E isso resulta em conflito de todos contra todos;
158
2. a liberdade que diz respeito ao direito de ir e vir. Ou seja, aquela liberdade que não
aprisiona o homem. Para Hobbes, o homem já desfruta dessa liberdade;
3. a liberdade que permite ao homem, rodeado pelas leis, clamar por mais “liberdade”. E no
que diz respeito a esse tipo, o autor mostra que o Estado deve estar pronto para punir com a
força aqueles que tentarem se contrapor às regras. Nesse caso, o resultado mais trágico é um
retorno ao estado de natureza;
4. a liberdade que se relaciona às leis naturais que, casualmente, sejam desrespeitadas pelas
leis artificiais, sobretudo no caso de levar o homem a atentar contra a sua própria vida, que é
seu maior direito. Nesse caso, o homem tem a liberdade de voltar-se contra o soberano e lutar
pela sua sobrevivência;
5. a liberdade do soberano, que é a maior de todas as liberdades. Para Hobbes, em trecho Do
Cidadão, a diferença entre um súdito livre e um servo está no fato de que é verdadeiramente
livre quem serve apenas a sua cidade, enquanto é servo aquele que também serve quem como
ele é súdito. Toda outra liberdade é uma isenção das leis da cidade e convém apenas àqueles
que detêm o poder. Ou seja, o súdito obedece de acordo com as regras, mas o soberano faz as
regras e age de acordo com o que considera ideal.
É nesta perspectiva que se pode afirmar que o autor não é avesso às garantias das
liberdades individuais, isto é, o seu projeto de um Estado forte que de fato agisse
representando a vontade geral, isto é, não realizasse a vontade dos indivíduos, mas a vontade
da unidade dos indivíduos, perdeu espaço para o culto ao individualismo, em detrimento do
outro e até mesmo do próprio Estado, que foi reduzido a uma simples interpretação de um
poder totalitário.
Antecipando e prevendo tais conclusões, Thomas Hobbes distingue o estado do
medo do estado de liberdade, que é a vida em sociedade:
É fato que todo homem, fora do estado do governo civil, possui uma liberdade a
mais completa, porém estéril: porque, se devido a esta liberdade alguém pode fazer
de tudo a seu arbítrio, deve porém, pela mesma liberdade, sofrer de tudo, devido a
igual arbítrio dos outros. Já numa cidade constituída, todo súdito conserva tanta
liberdade quanto lhe baste para viver bem e tranqüilamente, e dos outros se tira o
que é preciso para perdermos o medo deles. Fora deste estado, todo homem tem
direito a tudo, sem que possa desfrutar, porém, de nada; neste estado, cada um pode
desfrutar, em segurança, do seu direito limitado. Fora dele, qualquer homem tem o
direito de espoliar ou de matar outro; nele, ninguém o tem, exceto um único. Fora do
governo civil, estamos protegidos por nossas próprias forças; nele, pelo poder de
todos. Fora dele, ninguém tem assegurado o fruto de seus labores; nele, todos o têm
garantido. Finalmente: fora dele, assistimos ao domínio das paixões, da guerra, do
medo, da miséria, da imundície, da solidão, da barbárie, da ignorância, da crueldade;
nele, ao domínio da razão, da paz, da segurança, das riquezas, da decência, da
sociedade, da elegância, das ciências e da benevolência (HOBBES, 1998, pp. 155 e
156).
159
3.7 A autoridade do Estado e a liberdade
A trajetória desenvolvida por Hobbes desemboca na seguinte reflexão: como deverá
ser o poder do Estado para que de fato se mantenha, garantindo a vida e a promoção da paz?
A razão de ser deste só faz sentido mediante tal propósito, haja vista que o Estado será
responsável pela criação do direito e é justamente isto que será o norteador da sociedade, ou
seja, o direito civil será o regulador da vida dos homens vivendo em coletividade e o
responsável pelas liberdades individuais.
Mas como se fazer respeitar e ser reconhecido por todos, sem exceções, como o
detentor do poder, provedor das leis e conseqüentemente da paz, uma vez que os homens,
mesmo no estado civil, permanecerão com todas as suas características passionais e, de certa
forma, alguns motivados por estas não reconhecerão no Estado a autoridade soberana,
decorrendo daí sérios conflitos na luta pelo poder?
Hobbes não vê outra alternativa a não ser a instalação do poder absoluto, isto é,
ilimitado. A transmissão do poder dos indivíduos ao soberano deve ser total, caso contrário,
um pouco que seja conservado de poder nas mãos dos homens desenvolverá de novo a guerra,
levando à destruição do Estado. Nesta perspectiva, podem ser apresentados alguns pontos
fundamentais para a preservação do Estado, ou melhor, do homem vivendo em sociedade e de
suas garantias, inclusive a liberdade.
A razão primordial pela qual os Estados são destruídos tem sua origem nas relações
internas, isto é, não é pela violência externa e sim pela própria natureza humana que os
indivíduos, ao pactuar e formar o Estado, na maioria das vezes não conseguem elaborar leis
para melhor nortear suas ações, fazendo com que o desejo próprio e a busca da vanglória se
sobressaiam e gerem conflitos.
O aspecto fundamental para a instauração de um poder absoluto está nas
conseqüências que este pode trazer para a sociedade. As principais causas que podem levar
um Estado à sua dissolução são:
1. Quando é instituído de uma maneira imperfeita. A formação de alguns Estados já traz em
seu seio o germe da destruição, pois quando são concebidos, o são de maneira errada, haja
vista que alguns governantes para obter o poder se contentam em abrir mão de parte deste,
iniciando o processo de fundamentação do Estado de uma forma errônea; na história
podemos perceber vários casos desse tipo, em que o conflito interno foi a causa principal
da destruição do Estado.
160
2. A segunda doença do Estado está relacionada aos indivíduos que querem ser juízes em
causa própria e na maioria das vezes pregam doutrinas contrárias às leis estabelecidas,
incitando outros a discutir as ordens determinadas pela soberania, gerando assim a
perturbação do Estado e o seu enfraquecimento.
3. Um outro aspecto também incompatível com a sociedade civil e conseqüentemente com o
poder do Estado é a concepção de que o homem é conhecedor do bem e do mal, isto é, que
pela sua consciência pode julgar seus atos. Engana-se redondamente, pois tanto o juízo
como a consciência podem ser errôneos. Isto significa que, às vezes, motivado pela
própria consciência passa a infringir as leis civis, esquecendo-se de que num Estado a lei é
a consciência pública, pela qual todos já aceitaram ser conduzidos, de modo que não
podem se deixar levar por consciências particulares. Deste modo, também o Estado será
perturbado, pois indivíduos movidos por interesses particulares e pelas diversidades de
consciências incitarão a desobediência ao poder soberano. Os homens também às vezes
podem ser motivados por consciências particulares em relação à fé e à santidade,
afirmando que tais características não são atingidas pelo estudo e pela razão, mas sim por
inspiração divina, de modo que podem levar à dissolução do Estado, pois não se acham
sujeitos às leis civis porque são superiores, gerando desobediência e ameaçando a paz
pública.
4. Querer que o soberano esteja sujeito às leis civis é condená-lo ao desaparecimento. É
evidente que o soberano está sujeito às leis naturais, pois essas são divinas e irrevogáveis,
mas nunca pode estar sujeito às leis estabelecidas pelo Estado, porque isto significaria que
estaria sujeito a si próprio, o que não é sujeição, mas liberdade perante as leis. Aceitar que
o soberano é submisso à legislação é dizer que poderá ser punido, significando a criação
de um novo poder, a instauração de um novo soberano, havendo também a necessidade de
criar um terceiro poder para punir o segundo, criando assim uma infinita cadeia de
poderes que levariam à dissolução do Estado. Contra esta tese Hobbes escreveu:
É muito evidente, por tudo o que já dissemos, que em toda cidade perfeita reside um
poder supremo em alguém, o maior que os homens tenham direito a conferir: tão
grande que nenhum mortal pode ter sobre si mesmo um maior. Esse poder é o
que chamamos de absoluto, o maior que homens possam transferir a um homem
(HOBBES, 1998, p.108).
161
5. O que pode acarretar também a dissolução do Estado é a afirmação de que todo indivíduo
tem propriedade absoluta de seus bens, a ponto de excluir o direito do soberano,
esquecendo-se de que quem garante a propriedade particular é o próprio soberano.
Afirmar que o indivíduo é único e exclusivo proprietário é não aceitar a supremacia da
soberania e não reconhecer nesta a responsabilidade pela manutenção da propriedade
contra ataques internos e externos. Interpretar a propriedade de tal forma é condenar o
Estado ao seu aniquilamento. Disto decorre para Hobbes:
Que à propriedade de cada cidadão privado nenhum de seus concidadãos tem o
menor direito, porque eles estão obrigados pelas mesmas leis; mas essa propriedade
não exclui o direito do governante supremo – cujas ordens são leis, cuja vontade
contém a vontade de cada qual, e que foi constituído juiz supremo por cada pessoa
singular (HOBBES, 1998, p.111).
Aliás, cabe lembrar que, para Hobbes, a garantia, ou melhor, a possibilidade de se ter
propriedade e gozar da liberdade que dela emana só será possível se não se excluir o Estado,
pois é deste que advém o poder para fazer valer a manutenção de cada indivíduo sobre tais
propriedades.
6. Entre todos os fatores que podem acarretar a dissolução do Estado, o que mais se parece
contra a sua essência é justamente a tese de que pode ser dividido. Um poder dividido é o
primeiro passo para a sua dissolução, pois destroem-se mutuamente devido a tudo o que já
foi analisado até agora sobre a tendência da natureza humana à vanglória própria. Um
outro fator que contribui para a divisão do reino é a leitura de livros de política e de
história dos antigos gregos e romanos, sem a prévia censura da soberania, pois muitas
vezes tais livros apresentam façanhas de guerras praticadas pelos condutores dos
exércitos, que podem causar impressões fortes e agradáveis, motivando aqueles que vivem
sob o governo de uma monarquia a querer repetir as mesmas façanhas, causando guerras
civis. Tais guerras também podem ser oriundas das disputas entre o poder do soberano e o
da Igreja. Durante muito tempo se sustentou a idéia de que esses poderiam conviver em
harmonia, isto é, o poder temporal dos reis e o espiritual da Igreja. O que Hobbes quer
demonstrar é que súditos, estando sujeitos a dois senhores, terão de obedecer às leis
estabelecidas por eles, porque ambos querem ver suas ordens cumpridas como leis, o que
é impossível, de forma que, se um não for submisso ao outro, a soberania dos dois está
ameaçada. Tanto um quanto outro serão responsáveis pelo surgimento de rebeliões e
insurreições, levando à extinção do Estado.
162
No aspecto da indivisibilidade da soberania, Hobbes não aceita qualquer argumento
contrário porque não acredita que um poder possa controlar o outro e sua disputa geraria um
conflito maior do que todos. Disto decorre o problema da relação entre o Estado e a Igreja.
Para ele, depois da rejeição da autoridade do cristianismo medieval, o caminho proposto é o
de uma religião civil, a qual visa não à verdade incontestável, mas à paz. O Estado que
apresenta é de pessoas cristãs. Sua lei religiosa acha-se nas escrituras. Mas quem as
interpreta? O direito de interpretação, parte dos direitos do homem, tem de ser também
transferido ao homem artificial. Por isso, Hobbes conclui: “... que a pessoa, homem ou assembléia, a
quem a cidade conferiu poder supremo, tem também o direito de julgar que opiniões e doutrinas são inimigas da
paz, e o de proibir que sejam ensinadas” (HOBBES, 1998, p.107).
O projeto hobbesiano de uma religião civil, isto é, subordinada à vontade do
soberano, enfrentará logo de saída sérios obstáculos e, naturalmente, a Igreja não veria tal
situação com bons olhos. O caminho proposto pelo autor eliminaria o conflito, porque o
cristão não teria mais o problema de “servir a dois senhores”, uma vez que só haveria um
senhor, o soberano.
A argumentação de Hobbes se fundamenta exclusivamente na idéia de pacto e
conseqüentemente no cumprimento da lei; por conseguinte, nenhum súdito de nenhum Estado
cristão pode ter base para deixar de obedecer às leis do seu soberano no que se refere aos atos
exteriores; quanto à profissão da própria religião, ou seja, os aspectos de foro íntimo de cada
um não sofrerão quaisquer interferências.
Tal teoria procura uma sincronia prática entre o que é de ordem religiosa e de ordem
civil, para que os súditos não sejam enganados e envolvidos na concepção de dois poderes,
isto é, que não se ache dividido entre as ordens dos poderes religioso e civil, garantindo,
assim, a promoção da paz.
Finalizando, Hobbes compara o poder do Estado como sendo um corpo humano, mas
que pode possuir mais do que uma alma, isto é, são braços fundamentais para o
desenvolvimento do Estado, mas não podem ser vistos como poderes autônomos. Como
exemplo, cita-se o poder de arrecadar impostos, de comandar exércitos e o de elaborar as leis,
que são pontos essenciais sem os quais a soberania não funcionaria, mas não se deve entender
como facções diferentes e sim como seus membros.
Esses aspectos são problemas fatais na gerência do Estado, que se não forem tratados
de maneira especial, podem levar à dissolução do mesmo. Thomas Hobbes ainda apresenta
alguns outros problemas, de menor abrangência, mas que também podem contribuir para o
fracasso do governo, como por exemplo a falta de dinheiro, o monopólio do tesouro por
163
indivíduos particulares; a popularidade de alguém, podendo incentivar o desrespeito às leis
devido a sua eloqüência e retórica; cidades muito grandes que podem querer, por possuírem
recursos próprios, maior autonomia em relação à soberania, são todos problemas menores,
mas que se não forem corrigidos pelo Estado, fatalmente, aliados a outros maiores,
acarretarão na dissolvição do governo, permitindo a todo indivíduo a ilusão da liberdade de
proteger-se, mas tendo como conseqüência a guerra civil e novamente o homem se encontrará
naquela condição natural de guerra contra todos, voltando ao princípio do qual havia saído
com a instituição do Estado, mas, devido ao seu conatus ser às vezes maior do que a razão,
acabou imperando o instinto primitivo e inerente ao homem, ou seja, a vanglória própria.
Em conseqüência do medo que advém de uma guerra civil, se a soberania não for
respeitada como tal fracassará, bem como as vantagens dela decorrentes. Hobbes estabelece
alguns outros pontos fundamentais para um bom desempenho desta soberania: o monarca ou
uma assembléia, que ocupará o cargo de soberano, tem como objetivo principal a segurança
do povo, motivo pelo qual foi instituído. O soberano tem por obrigação garantir todas as
comodidades da vida para os súditos e cuidar para que as normas sejam respeitadas, por isso
sua função é dar instruções públicas, através de doutrinas, exemplos, mas principalmente na
execução de boas leis, pois é por meio destas que se preservarão as garantias individuais e a
liberdade.
Os direitos essenciais da soberania, analisados anteriormente, devem sempre nortear
a conduta do soberano, pois todo seu sucesso administrativo está intimamente ligado àqueles
direitos que, se forem retirados, seu poder corre sério perigo e a vida dos súditos
automaticamente estará sob ameaça.
Os fundamentos dos direitos do soberano devem ser ensinados com clareza para toda
a população, explicitando que o fracasso do Estado será o fracasso de todos e que desta forma
o cumprimento dos direitos deve ser respeitado de forma integral, não por temor ao soberano,
mas pelo uso correto da razão, percebendo que, como súdito, cada um é co-responsável pela
soberania, já que esta só se realiza pela vontade de todos.
O que Hobbes quer demonstrar neste momento é que a soberania absoluta pode ser
sustentada por princípios racionais, isto é, não no sentido de uma imposição, mas de forma
válida e até mesmo “natural”, decorrente do uso da razão. Toda sua argumentação parte do
princípio da evolução do homem e do próprio conhecimento, ou seja, não é porque nunca
existiu um Estado duradouro que necessariamente todos estarão condenados à dissolução.
Para ele, este processo se faz entre erros e acertos e a humanidade só caminhará para a
164
evolução, quando tiver a verdadeira ciência de que os direitos dos Estados são os seus e este
se consolidará automaticamente como uno e absoluto:
Concluo, portanto, que na instrução do povo acerca dos direitos essenciais da
soberania não há qualquer dificuldade, exceto aquilo que resulta de seus próprios
erros, ou dos erros daqueles a quem confia a administração do Estado; e
conseqüentemente é seu dever levá-lo a ser assim instruído e não apenas seu dever,
mas seu benefício também e segurança contra o perigo que pode vir da rebelião para
sua pessoa natural (HOBBES, 1974, p.206).
Partindo do princípio de que o povo instruído é a melhor forma de manutenção do
Estado e conseqüentemente da liberdade, alguns aspectos fundamentais dessa instrução
podem ser enumerados como, por exemplo:
1. Não comparar a forma de governo de seu país com a de outros, achando que este ou
aquele é melhor porque sua forma de governo lhe propiciou isto. Enganam-se, pois a
prosperidade da nação não está na forma de governo, mas na obediência e concórdia dos
súditos; é isto que o levará ao crescimento.
2. Instruir o povo para não se deixar levar pelas honras e virtudes de qualquer um dos seus
concidadãos, lembrando sempre que todos são súditos e que os títulos e glórias são dados
pela soberania e, desta forma, não cabe aos que as receberam utilizar de tais prerrogativas
para se vangloriar ou levar vantagem. É justamente por isso que a população deve ser bem
esclarecida: respeitar sim, porque representam a soberania em missão oficial, mas nunca
idolatrar e com isso se afastar da lealdade para com o Estado, gerando divisões no reino.
3. Comete falta grave quem fala mal do soberano ou põe em dúvida sua soberania, porque
incitará a desobediência e o desprezo pelo Estado, o que poderá acarretar a insegurança e
o enfraquecimento da sociedade como um todo.
4. Tais instruções só serão válidas e seguidas se forem sempre lembradas às populações, uma
vez que, na maioria das vezes, as pessoas acabam esquecendo e violando-as. É justamente
por isso que Hobbes aconselha que sejam designados instrutores oficiais, que possam
reunir-se com o povo (principalmente após as orações), para lembrá-los de seus deveres
para com as leis positivas.
165
Thomas Hobbes apresenta ainda algumas outras instruções que se fazem necessárias
para que a sociedade civil se consolide e desenvolva-se cada vez mais, sempre comparando e
se fundamentando nas Sagradas Escrituras como, por exemplo, a educação fundamental das
crianças, que devem ter um cuidado especial dos pais, para que se tornem cidadãos honestos,
que promovam a justiça e a paz. Após a educação básica, dada pela família, caberá às
Universidades o papel de dar continuidade a tal educação, sempre mostrando a necessidade da
obediência, da justiça e da paz.
Compete à soberania, além de preservar que todas as instruções sejam realizadas
conforme os prescritos das leis, garantir a segurança da população e, para isso, em primeiro
lugar, existe a necessidade de que a justiça seja aplicada com eqüidade, independente do
grupo social ao qual pertença o indivíduo, para que cada vez mais o Estado se fortaleça e seja
respeitado por todos, sem exceções, já que a impunidade é a causa principal para a ruína do
Estado.
Faz parte do cargo do soberano representante, para a manutenção do Estado, a
cobrança de impostos, com a colaboração de todos os indivíduos independente dos bens, haja
vista que todos devem ao Estado a garantia de suas vidas e, portanto, esses encargos são
também para suas próprias defesas. Para que tais encargos não sejam injustos, incidirão
naquilo que é consumido pelas pessoas e, dessa forma, todos pagam igualmente por aquilo
que usufruem. Os tributos também servirão ao Estado no amparo daqueles que se encontram
velhos e doentes e não são mais capazes de se manter, como também servirão de incentivo
para os desempregados, pois com impostos o Estado se encarregará, não só de fazer leis que
promovam a oferta de empregos, como também o financiamento de expedições para
colonização de terras pouco habitadas.
Ainda no tocante às funções do soberano, compete a este a elaboração de boas leis,
isto é, que garantam a justiça, embora nenhuma lei possa ser considerada injusta, porque é
feita pelo soberano poder e tudo o que é feito por ele não pode ser considerado injusto.
Soberano e povo se confundem, não podem ser separados e, desta forma, o objetivo principal
das leis é o norteamento de todas as ações do povo para que se garanta a autoridade do Estado
e conseqüentemente a paz, a liberdade e a vida dos súditos: É um soberano fraco o que tem súditos
fracos, e é um povo fraco aquele cujo soberano carece de poder para governá-lo à sua vontade” (HOBBES, 1974,
p.211).
Sendo as leis estabelecidas pelo soberano, cabe a este também a correta aplicação de
castigos e recompensas. Os castigos servirão não como vingança, mas principalmente como
correção dos ofensores e como exemplo para que todos aqueles que vivem sob o pacto não
166
sejam motivados a desrespeitar as leis. Já as recompensas
43
sempre deverão ser dadas àqueles
que prestam bons serviços ao Estado por dois motivos fundamentais: para que continuem nas
prestações destes serviços e também para que seus atos sirvam de encorajamento para outros,
resultando, assim, apenas em benefícios para o Estado.
A escolha de bons conselheiros é um dos motivos fundamentais para o sucesso do
Estado e é tarefa específica numa monarquia, haja vista que num governo democrático ou
aristocrático os conselheiros são parte da pessoa aconselhada. Dessa forma, caberá ao
soberano, para que seu governo se consolide e tenha o melhor desempenho possível, a escolha
das pessoas mais aptas em todos os sentidos para ajudá-lo no desempenho da administração
pública. Os melhores auxiliares serão aqueles que menos têm a ganhar com um mal conselho
e aqueles que possuem maior conhecimento daquilo que leva à paz e à defesa do Estado.
Dentre aqueles que ajudarão na direta administração do governo, o chefe das forças
armadas é o que gozará de maior poder e é justamente por isso que o soberano deverá
escolher um conselheiro muito fiel para tal posto, de modo que este garanta a fidelidade para
com a soberania e seja popular entre seus comandados, usando seu poder e prestígio apenas
para o bem do Estado e para o comando de seus soldados como exemplo a ser seguido.
O poder da soberania nunca será ameaçado quando aquele que a comanda for
popular, isto é, respeitado e amado pelo povo. Isso é um atributo fundamental para o
progresso do Estado, aliado à idéia de instrução popular, ou seja, a população sabendo que faz
parte direta do poder público, isto é, integra a soberania, reconhecendo no sucesso desta o seu
pleno desenvolvimento também. É justamente por não entender tal entrelaçamento que a
maior parte da humanidade nunca está satisfeita com suas formas de governo.
Nota-se aqui uma preocupação em excesso da filosofia hobbesiana com a função da
educação no processo de reconhecimento e manutenção da soberania. Percebe-se e entende-
se, assim, uma estreita relação entre a proposta de Hobbes na obra De Corpore em amoldar-
se, ou melhor, em dar à filosofia moral e política o mesmo estatuto das ciências exatas, pois
como se viu, essas proporcionaram à humanidade grandes benefícios que podem ser
observados no seu cotidiano e na sua história, pois seus argumentos não deixam controvérsias
porque foram certos e universalmente bem demonstrados, ao passo que as obras sobre Ética,
na opinião de Hobbes, sempre geraram teses antagônicas e na maioria das vezes trouxeram
mais disputas e conflitos para a humanidade do que benefícios, pois têm como paradigma as
43
Estas recompensas não poderão ser confundidas com a compra de súditos ambiciosos e populares, quer por
dinheiro ou por favores, para que fiquem quietos e desistam da agitação popular. Segundo Hobbes, isso seria um
grande erro e prejuízo para a coisa pública, pois evidenciaria a fraqueza do Estado e serviria de precedente para
chantagens de outros.
167
paixões de seus idealizadores, cujo objetivo visa mais ao interesse próprio, característica
inerente à natureza humana, do que trazer regras verdadeiras e certas para as ações humanas
na vida em sociedade, ou seja, fazer com que os indivíduos entendam os preceitos dos deveres
civis, de forma verdadeira, clara e universal:
A causa da guerra civil, portanto, é que os homens não conhecem as causas nem da
guerra nem da paz, havendo apenas uns poucos no mundo que aprenderam os
deveres que unem e mantêm os homens em paz, ou seja, que aprenderam
suficientemente as regras da vida civil. Ora, o conhecimento dessas regras é a
filosofia moral. Mas por que eles não as teriam aprendido, senão porque ninguém até
agora as ensinou segundo um método claro e exato? (HOBBES, 1966, p.08).
Eis aqui a principal ameaça para o Estado e a sociedade, por isso, para Hobbes a
educação ganha um papel de destaque, porque é por meio desta que a liberdade poderá ser
mantida, isto é, entendendo o seu verdadeiro significado, a sociedade compreenderia que a
submissão às leis, corretas e bem elaboradas, seria um único caminho para a garantia da vida,
a manutenção da paz e a defesa das liberdades individuais.
168
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho objetivou realizar uma reflexão sobre a teoria política de Thomas
Hobbes, mais precisamente a origem de seu conceito de liberdade, à luz da ciência nascente
do século XVII, freqüentemente considerado antagônico a todo pensamento político
hobbesiano que se reduz, para alguns, a uma simples interpretação absolutista.
Sabe-se, hoje, que o pressuposto na teoria política de Hobbes é o otimismo em
relação à ciência e a tudo que o homem pode realizar a partir dela. Hobbes, motivado por
essas novas descobertas e utilizando o método deste novo expediente, buscará desenvolver um
conhecimento filosófico nos moldes destas que se apresentam tão bem solidificadas.
Compreender a gênese do conceito de liberdade, tendo como paradigma os ideais da
ciência setecentista, objetivo desta tese, remete a dois pontos de reflexão, ou seja, até que
ponto Hobbes foi influenciado pelos novos conceitos ora emergidos, ou melhor, como a
ciência natural foi para ele modelo na concepção de sua teoria política e, principalmente,
como desmistificar a idéia de que o autor era um pensador político avesso à concepção de
liberdade, apresentando-o como alguém que dedicou grande parte dos seus trabalhos aos
temas ciência e liberdade.
O caminho proposto pelo pensador inglês sugere que sua intenção foi, por meio de
um método bom e ordenado, partir do estudo de certos elementos da física, ou seja, os
movimentos dos corpos, passando pelo estudo do homem e finalizando com os princípios da
filosofia civil, que é a análise do homem enquanto cidadão.
Como na História da Filosofia Contemporânea as duas reflexões ora apontadas
ganharam adeptos e as várias interpretações que um filósofo da magnitude de Hobbes
propicia, o que se pretende nestas considerações finais é apresentar alguns argumentos para
destacar os aspectos que corroboraram para a leitura aqui proposta sem o intuito de chegar a
uma conclusão categórica a respeito do assunto.
A teoria política de Hobbes não será exceção às contradições e complexidades de seu
tempo. Como em toda reflexão política, fez-se necessário recorrer à época em que o autor se
situa, identificando os principais acontecimentos para negá-los ou reafirmá-los como
influentes na teoria política proposta. A partir desta perspectiva, propôs-se compreender a
interpretação da teoria política hobbesiana, bem como sua preocupação com a liberdade,
tendo como pano de fundo os ideais da ciência nascente no século XVII.
Para que tal propósito fosse alcançado, iniciou-se com um resgate da História da
Ciência, de maneira descritiva e objetiva, dando conta das suas principais fases e destacando o
169
seu apogeu com Galileu e outros que no século XVII promoveram a chamada Revolução
Científica. Este acontecimento, bem como as revoluções inglesas do mesmo século, serão o
solo onde Thomas Hobbes pisará para dele fazer brotar suas reflexões tanto no campo da
ciência, como no da política.
Embora não tenha sido possível concluir categoricamente que a filosofia e suas
implicações com o conceito de liberdade na filosofia hobbesiana são decorrentes da ciência
nascente, procurou-se apontar que na trilogia proposta pelo autor, a saber: De Corpore, De
Homine e De Cive, existiu ao menos a intenção de utilizar os conceitos ora emergidos da
ciência como modelos de sua filosofia política.
Analisando os principais comentadores de Thomas Hobbes, percebeu-se a
complexidade de interpretações que teve nos últimos trezentos anos e mais precisamente no
século XX, evidenciando a grandeza dos seus pensamentos e, sobretudo, o seu legado
oferecido ao mundo político ocidental moderno.
Na perspectiva de compreender o solo histórico em que o autor se situava, buscaram-
se, elementos que pudessem sustentar a hipótese de que a teoria política hobbesiana bem
como suas reflexões sobre a liberdade são resultados daquele modelo científico que acabara
de ser desenvolvido. Assim, optou-se pela leitura clássica de Leo Strauss (1963), um dos
comentadores mais críticos de Hobbes, que não identificava nenhuma relação entre a ciência
nascente e os ideais políticos do autor. Viu-se que para este, quando Hobbes tem um contato
mais profundo com as teorias da nova ciência, suas reflexões políticas já estavam
consolidadas. Aliás, Strauss representou muito bem a corrente dos comentadores que
identificaram em Hobbes o “demônio rei” da modernidade.
Embora tenha compreendido pontos importantes da filosofia hobbesiana como, a
preocupação do Estado com a ordem social, as leis naturais subordinadas aos direitos naturais
para o efetivo exercício do direito, bem como a busca de um bom regime político, Strauss, ao
abordar o problema da moral em Hobbes, preferiu apenas apontar o caráter de luta pelo poder,
identificando no homem hobbesiano um monstro que só existe em função do domínio e da
sujeição de outrem, desconsiderando o mecanicismo que continha aquela filosofia e
principalmente não identificando o conatus como conseqüência deste processo.
Sob outro viés de interpretação e no sentido de colaboração com os principais
argumentos utilizados nesta tese, de que Hobbes não passou incólume aos ideais de nova
ciência, viu-se que para o comentador americano Thomas A. Spragens (1973) é possível uma
leitura da filosofia hobbesiana análoga às novas descobertas da ciência setecentista, ou
170
melhor, o método da pesquisa científica poderia ser utilizado para projetar e gerar uma ciência
moral que pudesse ser usada para explicar o comportamento social humano.
Para tanto, basta comparar a análise que Hobbes fez do homem natural e em estado
de sociedade: o mecanicismo é o mesmo, uma vez que a natureza humana não muda e por
isso pode ser isentada de valoração. Spragens entendeu que com isso Hobbes compreende a
moral como parte da filosofia e poderia ser estudada a partir da aplicação das leis da física que
regem o comportamento dos corpos de maneira geral e não baseada nas noções de bom e mau
e de certo e errado.
Foi com base neste pressuposto que Spragens compreendeu a importância da
geometria, da matemática e da física na elaboração da teoria política de Thomas Hobbes, e
que o mesmo espelhou-se nesses conhecimentos para desenvolver seus principais conceitos,
método, bem como a unidade e a organicidade de toda sua obra.
O ponto de partida deste trabalho foi a aceitação das duas interpretações da teoria
política hobbesiana que suscitam polêmica, a saber: autores como Strauss e Macpherson,
defendem que há uma base moral na filosofia de Hobbes e outros sustentam a tese de que a
teoria hobbesiana está intimamente ligada à ciência do século XVII, uma vez que o método
resolutivo-compositivo utilizado pelo autor é o mesmo de Galileu. Ainda que Richard Tuck
44
,
um dos comentadores contemporâneos da filosofia de Hobbes, considere ambas as
interpretações fundamentalmente errôneas, não cabendo aqui explicitar sua posição, nesta tese
trabalhou-se com o pressuposto de que as bases metodológicas e gnosiológicas da concepção
filosófico-política hobbesiana modelaram-se na metodologia e nos ideais de exatidão das
ciências naturais e matemáticas da modernidade e especificamente o conceito de liberdade
resulta das reflexões do autor sobre o movimento.
Tendo a nova ciência como paradigma, mostrou-se que o conceito de inércia foi
resultado de todas as descobertas sobre o movimento e que o filósofo inglês buscou
estabelecer uma filosofia política que se espelhasse na física de Galileu e na geometria de
Euclides, pois para ele interessava não as novas descobertas em si, mas o método pelo qual se
chegava a elas e o novo modelo de universo do qual elas derivavam.
Acompanhando os passos da nova ciência, viu-se que o objetivo de Hobbes era
estabelecer uma filosofia política que estudasse as leis da conduta humana, uma filosofia
moral e política que, a exemplo das ciências naturais, pudesse oferecer à sociedade um saber
isento de opiniões e interpretações diversas e que fosse de grande utilidade. Com esse intuito,
Hobbes procurou pensar em uma filosofia que pudesse dar conta de uma vida humana mais
44
R.Tuck, Hobbes. Edições Loyola, São Paulo, 2001.
171
confortável e sem as calamidades das guerras que, na sua opinião, surgem por falta deste
conhecimento. Assim, pensou em uma filosofia moral e política que se modelasse nas ciências
naturais para oferecer este entendimento confiável, levando os homens a uma vida em
sociedade livre das guerras e suas conseqüências, bem como proporcionando benefícios e
assegurando a liberdade.
Se para Hobbes até aquele momento a filosofia civil era incompetente a ponto de não
ter oferecido e ensinado aos homens as verdadeiras regras civis, agora era questão de método,
pois o modelo das ciências naturais estava exposto e era conhecido, o que faltava era aplicar à
filosofia civil um método claro e exato como aquele. De posse destes preceitos a vida em
sociedade estaria organizada de fato, sendo garantidos os direitos à vida, à paz e à liberdade.
Trabalhou-se nesta tese com a hipótese de que Hobbes tem em mais alta conta a
ciência setecentista e é a partir desta que se procurou demonstrar como o autor a transportará
para as reflexões sobre o conceito de liberdade.
A gênese do conceito de liberdade pode ser resultado das reflexões sobre o
movimento, que por sua vez resultam da busca incessante dos pensadores do século XVII da
solução do problema da queda dos corpos, uma vez que a força de gravidade da Terra ainda
não é evidente e as hipóteses sobre por que os corpos caem, ou seja, movimentam-se, têm
inúmeras interpretações.
Neste sentido pode-se dizer que o teórico inglês não foi indiferente à questão do
movimento e pareceu aderir à nova concepção conceitual que foi dada ao tema com o advento
da nova ciência, a saber: os corpos mantêm o seu estado cinético; se em movimento, assim
permanecerão e, se em repouso, também permanecerão neste estado a não ser que sejam por
outro corpo deslocados.
Tal concepção ainda é novidade, pois a tese aristotélica de que os corpos, para se
moverem, precisam de uma causa não foi totalmente descartada, porém Hobbes prefere aderir
e espelhar-se no novo modelo.
Esse novo modelo pode ser identificado no conceito de conatus, um dos mais
importantes da filosofia hobbesiana que, na obra De Corpore, se relaciona aos tipos de
movimentos:
Mas se o movimento vital é ajudado por um movimento que procede da sensação, as
partes do objeto dispor-se-ão a dirigir os espíritos de tal forma que esse movimento
se conserve e aumente na medida do possível com a ajuda dos nervos. Certamente,
este é o primeiro conatus no movimento animal, e se encontra inclusive no embrião,
que, fugindo da moléstia quando ocorre ou perseguindo o agradável, moverá seus
membros no ventre materno com um movimento voluntário. Este primeiro conatus,
172
enquanto se dirige a coisas agradáveis conhecidas por experiência, se chama apetite,
quer dizer aproximação, e enquanto moléstia, aversão e fuga (HOBBES, De
Corpore, 1966, p.388).
O conceito de conatus possui em sua estrutura genética informações básicas sobre os
três movimentos que Hobbes trabalha, a saber: sensação, vital e voluntário. Estes pequenos
inícios do movimento ou conatus, descritos como movimentos infinitesimais pertencentes a
todas as criaturas vivas equipadas com a capacidade de animação, por serem internos nos
seres vivos animados são difíceis de serem percebidos, o que não ocorre com aquele tipo de
ações visíveis como andar, falar, lutar etc; que caracterizam os movimentos voluntários
animados. Em síntese, sempre que uma ação visível é pensada ou representada mentalmente,
decorre de um trajeto posto em marcha por um objeto externo que aciona o aparelho
perceptivo da criatura sensível, o qual envia uma informação sensível que aciona a faculdade
da imaginação e, enfim, origina-se uma solicitação ou provocação que consiste nesses conatus
que se transformarão oportunamente em desejo ou aversão conforme a avaliação empírico-
cognitiva que o ser animado possui do objeto em questão no que concerne à corroboração
desse movimento que contém a vida. Constata-se, assim, uma intrínseca relação de causa e
efeito entre a teoria do conhecimento e a teoria do movimento de Hobbes: o conatus se
transforma em desejo ou aversão devido ao conteúdo empírico e sensível que orienta o
comportamento a ser tomado.
Por meio do conceito de conatus, Hobbes identifica a origem da condição conflitiva
humana e escolhe um mundo de representações na tentativa de contornar os problemas que
daí surgem. De início aponta toda impossibilidade da mudança dessa condição porque a
natureza humana não muda. Viu-se que esta é a mesma em todo tempo e lugar, o homem será
sempre um ser de movimentos, desejos e, por conseguinte, de uma surpreendente
potencialidade conflitiva. Exemplificam os mais diversos conflitos pelos quais têm passado a
história humana, a nossa condição psíquica, os eternos conflitos das relações de poder nas
quais nos inserimos, bem como o caráter móvel dos nossos desejos e paixões.
Assim, pode-se dizer que tais constatações foram resultados do mecanicismo do
século XVII e no caso de Hobbes serviu de exemplo para sua verdadeira intenção política, a
saber: pensar o problema da liberdade na sociedade civil sob a tutela de um Estado.
É relevante destacar que ao conceituar liberdade como ausência de impedimentos
internos e externos é à idéia de movimento que o autor recorreu, pois a novidade desta está
em conceber o movimento como o deslocamento no espaço pressupondo-se que não haja
obstáculos para que o mesmo se realize. Desta forma, sua concepção mecanicista deu origem
173
à idéia de que, para que os corpos tivessem uma livre movimentação, seria necessário um
estado ideal, em que houvesse uma ausência total de impedimentos.
A esse respeito e observando a definição de liberdade nas suas obras políticas pode-
se inferir que a mesma teve como paradigma as reflexões daquele período sobre o movimento
e, mais, a situação ideal para que a liberdade pudesse ser exercida plenamente só seria
possível com a instituição do Estado, este entendido como uma obra da razão, uma grande
invenção humana que se pode comparar às novas descobertas da ciência setecentista.
Quanto às interpretações de comentadores segundo os quais na teoria política do
filósofo inglês há apenas uma doutrina absolutista, construída a partir de suas preocupações
com relação às duras conseqüências de disputas, guerras, competições, poderes, vãs-glórias,
desconfianças e medos, é pouco provável que um pensador da envergadura de Thomas
Hobbes seja identificado apenas como um defensor do absolutismo monárquico. Ao
aprofundar-se a análise de suas idéias, observa-se que as teorias, hipóteses, teses e argumentos
apresentados são pertinentes, ainda que a monarquia absolutista não seja a forma de governo
ideal, pois ainda hoje merecem atenção devido à ênfase exacerbada aos valores individuais
em detrimento dos coletivos, a tal ponto que a idéia de que o homem é um animal social por
natureza está se perdendo já que na sociedade moderna o homem cada vez dá mais prioridade
a si mesmo.
A visão hobbesiana pode parecer muito pessimista e excessivamente mecanicista,
mas buscando seus fundamentos numa Inglaterra arrasada pelas lutas políticas e na
racionalidade da nova ciência, encontra-se um pensador em perfeita sintonia com seu tempo,
cuja interpretação do mundo físico-político por meio de deduções, abstrações e cálculos
matemáticos fez surgir um novo conceito de natureza que apresenta a idéia de liberdade como
o grande trunfo da era moderna.
Retomando o objetivo deste trabalho, a saber: buscar a origem do conceito de
liberdade, conclui-se que não é a forma de governo o cerne da reflexão de Hobbes, mas a
natureza do Estado, isto é, a razão de ser deste e sua indivisibilidade são os pontos
fundamentais de toda sua filosofia política, na qual o poder deve ser sempre exercido de
forma a preservar a vida e a liberdade do indivíduo.
A filosofia hobbesiana fundamenta sua ontologia no corpo. Em oposição a Descartes
que preconizava uma metafísica espiritualista, para Hobbes os corpos são os únicos objetos
possíveis da razão. Deus e nosso pensamento são corpos subsistentes por si, enquanto os
objetos que vemos são existentes e coincidentes com uma parte do espaço. Os corpos em
movimento produzem todos os atos que lhe são associados, surgindo a divisão entre filosofia
174
natural, que estuda os corpos naturais, e filosofia civil, que estuda os corpos artificiais, isto é,
as sociedades humanas.
Baseado na visão aristotélica de tempo e espaço e na questão escolástica de causa e
efeito, o autor afirma que todo corpo tem uma potência que se manifesta em ato e que a
manifestação do movimento é inerente a todos os corpos, os quais para repousar necessitam
de forças externas. Mas é a um corpo especial que a filosofia mecanicista e nominalista de
Hobbes se volta: o homem. A natureza humana antes de mais nada é corpórea e assim o
homem também tende ao movimento. A memória e o sentimento, por exemplo, são
alcançados por meio da interação dos movimentos de um homem com outros corpos. E é
neste entrechoque de corpos que surgem as sensações que dão origem ao conhecimento e é
também o ponto de partida de toda ação humana, que o autor denomina de conatus, apetite,
instinto ou desejo que leva o homem a experimentar suas potencialidades.
Esta configuração do homem como ser que está em movimento, motivado por seu
conatus, induz a compreendê-lo como um ser eternamente insatisfeito, pois os movimentos
não param nunca e os desejos e necessidades nunca se esgotam. Assim, tal movimento
quando voltado a algum objeto chama-se apetite ou desejo, e o movimento contrário, aversão.
Todas as paixões, como alegria e tristeza, esperança e medo, amor e ódio, são os diferentes
movimentos de desejo e aversão. Portanto, o bem e o mal não existem, são apenas os nomes
dados aos desejos e aversões pessoais; não existem objetos bons ou maus em si mesmos.
Desta forma, a vontade humana não é deliberada ou resolvida, é sim atributo da existência
corpórea e de sua natureza. Essa natureza humana irresolúvel é a base da sociedade civil.
Diante de tal premissa, resta apenas uma conclusão, ou seja, os indivíduos em seu
estado natural estarão em constante conflito, isto porque nesta etapa todos os homens se
igualam em suas paixões e suas ações e inclinações tendem para a realização e satisfação de
seus desejos. Na ânsia pela realização destes, os homens se tornam iguais também como
inimigos e, assim, partirão para o embate a fim de eliminar todos os obstáculos que os
impedem de realizar suas vontades, mesmo que isso inclua a morte do seu adversário. O
estado de natureza é de fato estado de guerra, uma vez que o egoísmo é a inclinação geral da
espécie humana, instigado pelo desejo de poder que levaria até a morte.
Esta guerra baseia-se, portanto, no medo da morte, no desejo de segurança, de
satisfações das paixões e auto-preservação de cada indivíduo. O estado natural exige do
homem uma saída racional, com base no instinto de conservação para garantia da vida e da
liberdade. Guiado pela razão, tal instinto o ensina a procurar a paz, mesmo que seja necessário
apelar para o combate, como um meio de obtê-la. Este medo da morte configura-se na
175
filosofia hobbesiana como um ponto de superação do estado de guerra. Tal medo nos leva a
buscar normas e princípios gerais que permitam a vida comum e impeçam a destruição da
vida de cada indivíduo. A razão, então, busca fundamentar a lei natural como uma
disciplinadora dos instintos humanos, para garantir a segurança e desfrutar a vida. Por isso,
Hobbes descreve na obra Do Cidadão vinte leis naturais as quais também configuram-se
como leis morais e, embora expressem leis civis criadas pela própria razão humana, apóiam-
se nas Sagradas Escrituras. Dentre essas leis, duas são fundamentais: 1
a
.) Procurar obter a paz
enquanto pode ser obtida; se impossível, usufruir dos benefícios e vantagens da guerra. 2
a
.)
Firmam-se entre os homens pactos para que saiam do estado de guerra e convivam em comum
e em liberdade. As demais dezoito leis naturais são derivadas destas duas primeiras e atêm-se
mais ao campo moral, enquanto estas são a base para a formação do Estado.
A origem do Estado é um dos pontos fundamentais da reflexão do autor, cujo
objetivo é tentar demonstrar porque os homens desenvolveram a sociedade civil. Uma certeza
é ponto pacífico, isto é, a sociedade civil é fruto da racionalidade humana e portanto artificial;
a hipótese de animal social por natureza é totalmente descartada.
Embora a sociedade civil seja fruto da razão humana, não podemos esquecer que,
mesmo neste momento, o conatus está presente, ameaçando a liberdade, isto é, o medo
(paixão) do outro será o ponto de partida da ação humana, que o conduzirá, aí sim, guiado
pela razão, a estabelecer um contrato – transferência mútua de direitos – e, segundo Hobbes,
esses meios racionais encontrados são chamados de leis naturais, cujos objetivos
fundamentais são a preservação da vida e a busca da paz, ditados pelo temor da morte que se
faz instável, pois sempre se corre o risco de desfazer o acordo, uma vez dissipado o medo.
Para que o contrato seja durável e a liberdade garantida, é necessário que o número de
indivíduos que desejam estabelecê-lo seja maior do que aqueles que pretendam destruí-lo.
Assim, a construção da sociedade civil torna a vida viável e é a vontade, mais forte do que os
homens, para obrigá-los à paz. Para selar a paz e instituir a liberdade, deve-se, de acordo com
a segunda lei natural, transferir os direitos mutuamente, desistindo de ser um obstáculo à auto-
preservação do outro.
Entretanto, o pacto social ainda é precário, por ser também artificial, e não suficiente
para garantir e assegurar a paz, pois sempre haverá pessoas que podem desencadear guerras
civis a fim de obter o poder. Esta conseqüência só seria evitada se cada homem submetesse
sua vontade a um único homem ou a uma assembléia determinada pela sociedade para exercer
o poder, devendo ser seguido cegamente por aqueles que compõem o corpo social. Cria-se,
assim, o Estado, sendo qualquer ato contra este um ato do indivíduo contra si mesmo. A ele
176
deve pertencer o poder de decisão, pois está acima dos indivíduos, como criação destes
mesmos para sua representação. Ao Estado é monopolizado o recurso da violência, sendo esta
distinta do estado de natureza, pois seu objetivo é garantir a vida social. O homem perde a
liberdade natural de que dispunha, mas o medo é substituído pela esperança, a garantia de
segurança, o direito à vida e a liberdade.
A pessoa que representa o Estado, isto é, a vontade geral é o soberano, todos os
demais são súditos. A teoria hobbesiana de Estado é típica do absolutismo político, no sentido
de uma teoria da soberania, uma vez que o governante não fica subordinado ao pacto, ou seja,
nega-se que ele esteja sujeito a suas leis. Por isso, a figura bíblica do Leviatã, um monstro
imortal, cuja armadura é feita de escamas que são as cabeças de seus súditos e nas mãos
segura duas espadas, uma representando o poder civil e a outra o poder religioso. Este
monstro cruel e invencível protege os peixes menores de serem engolidos pelos peixes
maiores. Esta figura representa o Estado, com força e poder para disciplinar pelo terror a
vontade de todos. Fundamenta-se tal poder acima do pacto, na medida em que o Estado é
livre, pois não se pode ter obrigações para consigo mesmo, e é formado irreversivelmente
pelos cidadãos. Tal poder não é divisível, ou seja, não pode ser transferido para outras
pessoas, deve ser exercido soberanamente:
“Poderás pescar o Leviatã com anzol
e atar-lhe a língua com uma corda?
Serás capaz de passar-lhe um junco pelas narinas,
ou perfurar-lhe as mandíbulas com um gancho?
Virá a ti com muitas súplicas,
ou dirigir-te-á palavras ternas?
Fará um contrato contigo,
para que faças dele o teu criado perpétuo?
Brincarás com ele como um pássaro,
ou amarra-lo-ás para tuas filhas?
Negociá-lo-ão os pescadores,
ou dividi-lo-ão entre si os negociantes?
Poderás crivar-lhe a pele com dardos,
ou a cabeça com arpão de pesca?
Põe-lhe em cima a mão:
pensa na tua luta, não o farás de novo.
177
A tua esperança seria ilusória,
pois somente o vê-lo atemoriza.
Não se torna cruel, quando é provocado?
quem lhe resistirá de frente?
Quem ousou desafiá-lo e ficou ileso?
ninguém, debaixo do céu”
45
.
Tal alegoria ao Leviatã demonstra a verdadeira necessidade de um Estado forte, em
decorrência da vontade humana, que mesmo no estado civil ainda se encontra presente no
homem e a qualquer momento pode manifestar-se, levando-o a cometer infrações à ordem
civil. O que Hobbes esclarece de forma bem objetiva é que somente um acordo racional não
garante a paz e a liberdade, já que o conatus poderá superar a razão. Desta forma, o Leviatã
serviria como um grande inibidor do conatus humano, pois representaria um medo (paixão)
maior do que todos, levando os indivíduos a uma ordem social, ditada pela razão, e tendo seus
desejos controlados por esse medo maior, porque na medida em que os desejos começassem a
se manifestar, o temor ao Leviatã (Estado) sobressairia, servindo de controle dos impulsos e
ordenando a sociedade civil.
Investido de um poder absoluto, o soberano representa a vontade geral, na medida
em que todos pactuaram, todos sem exceções estão compromissados, independente de
concordar ou não, dando direito ao soberano de punir aqueles que de alguma forma tentam
atacá-lo, infringir a ordem ou ameaçar a liberdade.
Cada homem deve reconhecer-se como co-autor do pacto, dando à soberania o
direito de fazer o que considera bom para todos. O soberano tem o direito de não ser
destituído ou morto. Tem o poder de prescrever leis, julgar, escolher conselheiros, ministros,
magistrados e funcionários, fazer a guerra ou declarar a paz, de acordo com o que julgue
necessário. Também possui o direito de punir ou recompensar, concedendo títulos de honra,
decidir a ordem de lugar e a dignidade que cabe a cada indivíduo na sociedade. Isto porque a
soberania se justifica exatamente por atuar em nome do povo e é o próprio Hobbes que
esclarece que todo governo existe para realizar a vontade popular:
(...) constitui um grande perigo para o governo civil, em especial o monárquico, que
não se faça suficiente distinção entre o que é um povo e o que é uma multidão. O
povo é uno, tendo uma só vontade, e a ele pode atribuir-se uma ação; mas nada disso
se pode dizer de uma multidão. Em qualquer governo é o povo quem governa. Pois
45
A Bíblia de Jerusalém, ed.Paulus. Jó. Os discursos de Iahweh, Segundo Discurso. caps. 40 e 41.
178
até nas monarquias é o povo quem manda (porque nesse caso o povo diz sua vontade
através da vontade de um homem) (HOBBES, 1998, p.211).
O soberano deve sempre se manter acima de todo e qualquer contrato, sendo o pacto
formalizado, de modo a garantir a unicidade da soberania, e não sua quebra com inúmeros
pactos. Cabe ainda à soberania o direito de censura, de prescrever regras, sendo o soberano
juiz das opiniões e doutrinas contrárias à paz. O medo e a liberdade são compatíveis, assim
como a liberdade e a necessidade, contudo, a liberdade no Estado visa suprimir tais males.
É o Estado que garante a propriedade, a segurança e a paz. O ato de submissão do
súdito faz tanto parte da obrigação quanto da liberdade. O objetivo da obediência é a proteção.
Estar submetido é ser livre. Ninguém tem o direito de se negar a obedecer o soberano. Tal
estado de situação de súdito pode até ser considerado miserável, mas, conclui Hobbes, no
estado natural a condição humana seria bem pior.
O monstro foi criado, o Leviatã, o homem artificial, que encarna o poder absoluto,
nascido do acordo coletivo, em que os homens entregam ao Estado todo seu poder e toda sua
vontade, e o fato de cada homem ser co-autor desta soberania torna seu poder indivisível. Na
teoria hobbesiana, a soberania não tem caráter divino: é criação humana, apesar de imortal,
desvinculada da característica sobrenatural do soberano, por isso a ela deve pertencer todo
poder de decisão em matéria religiosa:
Não há quase nenhum dogma referente ao serviço de Deus ou às ciências humanas
de onde não nasçam divergências que se continuam em querelas, ultrajes e, pouco a
pouco, não originem guerras: o que não sucede por falsidade dos dogmas, mas
porque a natureza dos homens é tal que, vangloriando-se de seu suposto saber,
querem que todos os demais julguem o mesmo (HOBBES, 1974, p.217).
Assim, Hobbes não vê solução para tais conflitos a não ser pela entrega de toda
autoridade religiosa ao soberano, caso contrário a religião ameaçaria a paz civil.
A concepção sobrenatural da soberania origina-se da noção medieval de imperium
(poder de fazer leis), em que foi sendo elaborada lentamente a questão de quem atribuía ao
imperador tal poder. A resposta: Deus, cujo poder o rei refletia como um espelho. A origem
deste poder ultrapassava o próprio corpo natural do rei, que possuía de certa forma dois
corpos: o político (pessoa pública) e o físico (pessoa privada). Mas a divisão da pessoa do rei
causava um grande impasse, isto é, o rei seria maior ou menor do que a lei; ele lhe devia
obediência ou não? As diferentes teorias contratualistas procuravam eliminar o embate, como
por exemplo nosso autor, que propõe procurar a origem do poder político e do Estado não em
Deus, mas na natureza, mesmo que esta seja o resultado da criação divina.
179
Desta concepção, pode-se concluir o porquê da preferência de Hobbes pela
monarquia, apesar de apontar a existência de três formas de governo por instituição, a saber:
monarquia, democracia e aristocracia. Sua preferência pela primeira decorre especificamente
da conveniência, ou seja, para ele o monarca está sempre sujeito a menos inconstâncias do
que em qualquer outra forma de governo. A luta pelo poder e a chance de intrigas, discórdias,
corrupções e guerras é menor na monarquia, haja vista que quanto maior o número de pessoas
que integram o poder, maior será a chance dos conflitos ocorrerem, pois às vezes as paixões
humanas são mais fortes do que a razão, deixando o interesse próprio sobressair em
detrimento do interesse público: “... quanto mais intimamente unidos estiverem o interesse público e o
interesse pessoal, mais se beneficiará o interesse público. Ora, na monarquia o interesse pessoal é o mesmo que o
interesse público” (HOBBES, 1974, p.119)
.
Pode-se considerar que Thomas Hobbes criou a “ciência política”, ao partir do estudo
dos corpos para o estudo da sociedade. Pela primeira vez na história do pensamento político, é
elaborada uma verdadeira teoria da representação. Sua obra foi controvertida, pois abalou os
alicerces da divindade que conferia autoridade e tratou do conceito de legitimidade.
Filosoficamente, submeteu a metafísica a uma filosofia racional de caráter prático, o que,
como exemplo de sua importância, inverteu a submissão do magistrado civil ao clérigo. Suas
definições da lei da natureza modificaram o panorama da ética, levando os homens a
inquirirem suas consciências a respeito de suas intenções.
A humanidade, apesar dos seus consideráveis avanços, apresenta seu comportamento
quase inalterado, quando este é analisado pela ótica do poder político. É assustador constatar
que os mecanismos e os desejos de dominação entre os homens pouco diferem dos da época
em que o autor se inspirou para teorizar sobre o assunto. Daí se pode afirmar que, diante da
evidente atualidade do seu pensamento, o qual tenta compreender o homem e o Estado, suas
idéias, conceitos e reflexões ultrapassam a mera tentativa de explicação histórica sobre o
momento de passagem do estado natural do homem para o estado civil. O grande objetivo de
Hobbes foi exatamente a busca dos limites necessários à persistência das vidas individuais.
Na realidade, o que Hobbes descreve é a compreensão dos processos e mecanismos
que movem o ser humano em sociedade, através de uma perspectiva extremamente realista e
profunda, ultrapassando assim, com suas reflexões, o momento político e histórico em que
viveu. Diferentemente da tradição anterior, com a modernidade, pode-se identificar a
liberdade dos corpos físicos e humanos porque a natureza já não se encontra presa a um telos
ou finalidade irrevogável. Tal idéia é legitimada pela inovadora compreensão dos movimentos
180
dos corpos, da qual Hobbes se apropriou para marcar a diferença entre seu pensamento e
aquele proposto pelas tradições aristotélicas, tanto no campo da física quanto da política.
Entendendo sua filosofia epistemologicamente, sua investigação das coisas a partir
da natureza sensível enquanto única possível à razão levou a Idade Moderna a pensar a
questão do Estado como uma investigação do homem em sua própria natureza, ampliando o
domínio do conhecimento humano. A linguagem é associada ao entendimento, de forma que o
pensamento de Hobbes passa também pela lógica formal e mostra-se um pensamento
completo, encadeado, que causou profundas reflexões aos que o sucederam.
Enfim, a história não lhe deu razão, preferindo outras soluções, e talvez por isso hoje
vê-se um Estado cada vez mais fraco e omisso perante os grandes problemas que afetam a
humanidade. O projeto de Hobbes, de um Estado forte que de fato agisse representando a
vontade dos indivíduos e ao mesmo tampo preservando a vida, a paz e garantindo a liberdade,
perdeu espaço para o culto ao individualismo, em detrimento do outro e até mesmo do próprio
Estado.
Como prevendo, conhecedor que era da natureza humana, que suas idéias trariam
grande impacto para a sociedade moderna, pois foi um dos primeiros pensadores a fazer
emergir os traços de uma reflexão sobre a vertente passional humana, Hobbes encerra assim
uma de suas obras mais importantes:
E com esta esperança volto para minha interrompida especulação sobre os corpos
naturais, na qual espero que a novidade agrade tanto quanto desagradou esta
doutrina do corpo artificial. Pois a verdade que não se opõe aos interesses ou aos
prazeres do homem é bem recebida por todos (HOBBES, 1974, p.414).
181
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