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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Suzana Almeida Araújo
JOVENS IDENTIFICADOS COMO AUTORES DE ABUSO SEXUAL:
SENTIDOS DA VIOLÊNCIA
FLORIANÓPOLIS
2008
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Suzana Almeida Araújo
JOVENS IDENTIFICADOS COMO AUTORES DE ABUSO SEXUAL:
SENTIDOS DA VIOLÊNCIA
Dissertação apresentada como requisito
parcial à obtenção do grau de Mestre em
Psicologia, Programa de Pós-Graduação em
Psicologia, Mestrado, Centro de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Federal
de Santa Catarina.
Orientadora: Maria Juracy Filgueiras Toneli.
FLORIANÓPOLIS
2008
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4
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos meus pais, por ainda me "aturarem" e tornarem possível a
realização do mestrado.
À Eduardo, Raquel e Josué, pelos incontáveis momentos de lazer e diversão,
fundamentais para garantir o "bom funcionamento".
Ao Hugo, pelo carinho desmedido e companheirismo, sempre a postos para me
"socorrer" nos momentos de crise.
À Rita, amiga querida, que marcou presença forte em todas as etapas desse
trajeto (incluindo as escapadas), e à Marcela, parceira já de muitos anos, sempre
disposta a ouvir e ajudar, parte importante de muitos momentos da minha vida. Foi
ótimo repartir com vocês esse caminho, tanto dentro como fora da Academia.
Ao André, pelas horas de bate-papo e, com seu jeito muito peculiar, pelo
estímulo para seguir.
À Jura, essa pessoa linda, acolhedora e compreensiva. Uma orientadora
preocupada, acessível e descontraída, que me mostrou ser possível mesclar trabalho e
diversão. Sou muito grata por todos esses cinco anos de parceria, que espero possam se
estender muito mais.
À Mara, por ter me proporcionado a experiência de estágio, o que me rendeu
grande aprendizado.
Às/Aos amigas/os do núcleo Margens, pessoas dispostas, empenhadas,
interessadas, em especial àqueles/as que acompanharam de perto o trabalho, ou que,
pelo menos, estiveram presentes de alguma forma neste percurso, talvez sem nem saber
o quanto estavam contribuindo – Adri, Alex, Arthur, Juli, Dani, Karlinha, Nandu...
A toda a equipe do Projeto Fênix, pela oportunidade de participar de um
trabalho que tanto me acrescentou. Em especial à Dani, por ter possibilitado meu
encontro com os jovens.
A todos/as os/as amigos/as que, de perto ou distante, sempre me proporcionam
muitas alegrias.
À Janete, sempre prestativa e pronta para esclarecer minhas dúvidas.
À CAPES, pela concessão de bolsa do Programa de Fomento à Pós-Graduação.
5
ARAÚJO, Suzana Almeida. Jovens identificados como autores de abuso sexual:
sentidos da violência. Florianópolis, 2008. 117f. Dissertação (Mestrado em
Psicologia) – Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal de
Santa Catarina.
Orientadora: Maria Juracy Filgueiras Toneli.
Defesa: 07/07/2008.
RESUMO
A literatura estrangeira aponta que significativa parte dos abusos sexuais perpetrados
contra crianças o cometidos por adolescentes. No Brasil trata-se de um tema ainda
pouco explorado, tanto no meio acadêmico como em ões interventivas. Tal situação
se agrava no que concerne à investigação e à intervenção voltada para os jovens autores
de violência sexual. A presente pesquisa teve como objetivos: investigar motivações
dos autores da violência, sentidos que atribuem ao ato praticado e se o reconhecem de
fato como uma violência; como percebem o outro - o sujeito agredido -, bem como
resultados da violência e danos conseqüentes. Para tanto, foram entrevistados três
adolescentes identificados/notificados como praticantes de abuso sexual, bem como as
responsáveis por dois deles. Em visita às várias instituições que intervêm de alguma
forma nas situações de violência sexual envolvendo crianças e adolescentes, optou-se
por entrevistar também os profissionais que atuam diretamente com essa população,
buscando averiguar que concepções possuem acerca da violência sexual, como lidam
com este problema, quais as implicações para o adolescente que comete este tipo de
agressão, quais as intervenções realizadas, que sentidos atribuem à prática do abuso,
totalizando oito entrevistas. Como referencial teórico, encontra-se a Psicologia Social
Crítica, tomando como categorias fundamentais as noções de gênero e violência. São
referenciados/as autores/as que tratam das masculinidades, estando esta no cerne da
investigação, na medida em que se apresenta como fundamental no entendimento da
violência perpetrada por homens, dialogando também com autores/as que discutem
especificamente este tema sob a luz dos estudos de gênero. Na tentativa de definir com
maior precisão o objeto de pesquisa, qual seja, violência sexual, são exploradas algumas
conceituações e problemáticas em torno dele. Por fim, são traçados aspectos e
normativas presentes na legislação brasileira acerca do tratamento jurídico dado à
questão da violência sexual. O método utilizado na pesquisa se configura como
qualitativo, orientado para a produção de sentidos. Os adolescentes entrevistados tinham
idades entre 15 e 16 anos e encontravam-se em situações bem diversas. O primeiro foi
notificado por ter abusado uma menina de seis anos, tendo sido a ele aplicada a medida
sócio-educativa de liberdade assistida. Foi em seguida encaminhado para atendimento
terapêutico. O fato foi tipificado como estupro, pois teve conjunção carnal. O segundo
foi também notificado por ter abusado um menino de menor idade, o que, no entanto,
o foi confirmado pelas insncias responsáveis pela investigação. Ainda assim, foi
encaminhado para atendimento terapêutico como uma medida, acredita-se, preventiva.
O terceiro era residente de uma casa abrigo para meninos, identificado pela
coordenadora da casa como praticante de abusos contra outros residentes. O caso não
foi reportado aos meios legais, pois, além de não ter sido confirmado, optou-se por fazer
um trabalho de orientação com todos os jovens, dada a freqüência com que essas
6
situações ocorriam. Pôde-se observar a inexistência de um atendimento estruturado
voltado à população de jovens autores de crimes sexuais. O número de registros de
ocorrências é muito baixo, tendo sido identificados poucos casos. A conduta violenta é
explicada em função de uma patologia ou como reprodução de experiências anteriores.
Ao falar de violência sexual, todos os profissionais entrevistados mencionam a idade
dos envolvidos como um critério importante para definir um ato como tal. Entre os
adolescentes, um defende que foi acusado injustamente, negando qualquer
envolvimento com o menino que fez a notificação. Os outros dois assumiam
participação no ato, mas não nomeavam como uma violência. Entendem a prática do
abuso como um ato impensado, movido pelo desejo ou pela curiosidade. A violência
sexual mostrou-se um tema de difícil acesso, seja pela sua indefinição conceitual, pela
dificuldade em encontrar sujeitos sob o recorte proposto, ou pela recusa destes em falar
sobre o assunto.
Palavras-chave: violência sexual, jovens autores de abuso sexual, masculinidades.
7
Adolescents identified as practitioners of sexual abuse: senses of the violence
ABSTRACT
The foreign literature suggests that a significant part of sexual abuses perpetrated
against children are committed by adolescents. In Brazil it's still a largely unexplored
theme both in academia and interventions. This situation is aggravated in investigations
and intervention directed at young authors of sexual violence. The present research had
as its objectives to: investigate the motivations of violence authors, the senses attributed
to the practiced act and if they recognize the fact as violence; how they perceive the
other the subject that was the target of the aggression -, as well as the results of the
violent act and its subsequent damage. Three adolescents identified/notified as
practitioners of sexual abuse, as well two of those legally responsible for them were
interviewed. While visiting various institutions that intervene in any way in situations
related to sexual violence involving children and adolescents it was opted to interview
the professionals that act directly at this population too, with the objective of assessing
which conceptions they formulate about sexual violence, how they deal with this
problem, which are the implications to the adolescent who perpetrates this type of
aggression, what are the interventions made and what senses are attributed to practice of
abuse, totaling eight interviews. Critical Social Psychology serves as a theoretical basis,
taking the categories of gender and violence as fundamental notions. Authors that write
about masculinities are also utilized, as masculinity is in the core of the investigation, in
the measure that it presents itself as fundamental in the understanding of violence
perpetrated by men, also debating with authors that work specifically under the light of
gender studies. In the attempt of defining with better precision the research object, such
as, sexual violence, a few concepts are explored and the problems around it. In the end,
aspects and norms present in the Brazilian legislation are traced on the question of
sexual violence. The method utilized in the research is configured as qualitative,
oriented to the production of senses. The interviewed adolescents were aged between 15
and 16 years and were found in diverse situations. The first was notified by the practice
of sexual violence against a six years old girl, and to him was applied an assisted-
freedom socio-educative measure. After that, he was directed to therapeutic service. The
fact was typified as rape, because it had carnal conjunction. The second was also
notified for having abused an underage boy, that was, however, not confirmed by the
responsible instances for the investigation. He was, even so, directed to therapeutic
service like a preventive measure. The third resided in a shelter home for boys,
identified by the house's coordinator as a practitioner of sexual abuses against other
residents. The case was not reported to the legal instances, because, besides not having
being confirmed, an orientation work was preferred involving all residents, so it was
situations that were taking place with great frequency. It was observed during this work
that a structured attention program geared toward this population is lacking. Also the
number of registered occurrences is very low, few cases have been identified. The
violent conduct is explained through pathology or as reproductions of anterior
experiences. When speaking about sexual violence all the interviewees mention the age
of the persons involved as an important criteria for the definition of the act as such.
Between the adolescents, two of them assumed participation in the act, but did not name
8
it as violence. They put the practice of the sexual abuse as an unplanned act, moved by
desire or curiosity. The third defends that he's been unjustly accused, denying any
involvement with the boy who made the notification. Sexual violence showed itself as
being a theme of difficult access, be that by its undefined concept, by the difficulty in
finding subjects under the proposed population or by their denial in speaking about the
subject.
Key-words: sexual violence, young authors of sexual violence, masculinities.
9
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ....................................................................................................
10
2. REFERENCIAL TEÓRICO ................................................................................
17
2.1 GÊNERO E VIOLÊNCIA NA PSICOLOGIA SOCIAL CRÍTICA..............................
17
2.1.1 Gênero e Masculinidade ......................................................................
21
2.1.2 Violência sexual ....................................................................................
25
2.2 MODELOS TEÓRICOS EXPLICATIVOS DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO..................
29
2.2.1 Sobre os autores de agressão sexual ...................................................
33
2.3 ASPECTOS JURÍDICO-NORMATIVOS DA VIOLÊNCIA SEXUAL NO BRASIL .......
39
3. MÉTODO ..............................................................................................................
45
3.1 O PERCURSO DO CAMPO..................................................................................
46
3.2 LOCALIZAÇÃO DOS SUJEITOS E PROCEDIMENTO PARA LEVANTAMENTO DE
INFORMAÇÕES ......................................................................................................
48
3.2.1 Os adolescentes identificados como praticantes de abuso sexual e
respectivas responsáveis ...............................................................................
52
3.3 ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES...........................................................................
53
4. RESULTADOS ......................................................................................................
54
4.1 ADOLESCENTES IDENTIFICADOS COMO PRATICANTES DE ABUSO SEXUAL ...
54
4.1.1 Wilmar: o estupro notificado ..............................................................
54
4.1.2 Diogo: entre a experimentação e o abuso ..........................................
59
4.1.3 Lucas: agressor ou agredido? .............................................................
68
4.2 PROFISSIONAIS QUE OPERAM NO TRATAMENTO DA VIOLÊNCIA SEXUAL
ENVOLVENDO CRIANÇAS E ADOLESCENTES .........................................................
74
4.2.1 Percurso legal e resultados das intervenções .....................................
76
4.2.2 Concepções sobre o autor de agressão sexual ...................................
87
4.2.3 Concepções sobre a violência sexual ..................................................
94
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................
99
6. REFERÊNCIAS ....................................................................................................
104
7. APÊNDICES...........................................................................................................
113
10
1. INTRODUÇÃO
A idéia de trabalhar com a temática da violência sexual emergiu a partir de
outros dois projetos que estavam sendo desenvolvidos no âmbito do Núcleo de Pesquisa
Modos de Vida, Família e Relações de nero (MARGENS), no qual venho realizando
atividades desde 2003. O primeiro refere-se a um mapeamento dos programas de
atendimento a homens autores de violência contra mulheres, com ênfase, embora não
exclusiva, na violência sexual
1
. Tratava-se de um trabalho conjunto do núcleo com o
Grupo de Pesquisa Representações, Práticas Socioculturais e Processos de Exclusão da
Universidade Federal do Espírito Santo, o Núcleo de Pesquisa em nero e
Masculinidades (GEMA) da Universidade Federal de Pernambuco e Instituto PAPAI
(ONG de Recife).
No segundo projeto, intitulado Violência sexual infanto-juvenil: atenção a
vitimizadores sexuais jovens, suas vítimas e acompanhantes no município de
Florianópolis (conhecido como Projeto Fênix), propunha-se realizar uma experiência
piloto de atendimento a jovens autores de violência sexual encaminhados pelo Conselho
Tutelar, junto à Rede de Atenção Integral às Vítimas da Violência Sexual Secretaria
Municipal de Saúde de Florianópolis, referente a grupos terapêuticos envolvendo os
autores da violência e as crianças ou adolescentes que a sofreram, bem como seus
familiares. As atividades aconteceram no CAPS AD, que cedeu espaço para a
implementação do projeto.
Minha inserção nestes trabalhos se deu com a execução de algumas das
atividades de campo do primeiro projeto - realização de entrevistas e visitas aos centros
de atendimento -, e no planejamento e discussão acerca dos grupos terapêuticos da
experiência piloto. A participação nas discussões e o acesso à literatura especializada,
tornaram evidente a necessidade de um entendimento mais aprofundado da dinâmica da
violência, em especial no que concerne aos autores de agressão. Para isso fez-se
premente ouvir suas vozes, conhecer suas hisrias de vida, o que pensam acerca do ato
cometido.
1
Projeto de pesquisa "Violência sexual e saúde mental: análise dos programas de atendimentos a homens
autores de violência sexual", que contou com apoio da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres,
do Ministério da Saúde e do CNPq.
11
A escolha em trabalhar com homens autores de agressão sexual assume grande
importância no tratamento
2
da violência. Muitos são os serviços de atendimento às
mulheres em situação de violência, bem como as pesquisas e intervenções realizadas, o
que não acontece com a mesma proporção no caso da população masculina. Heleieth
Saffioti (2004) defende que para que haja uma real transformação da relação violenta é
preciso trabalhar com as duas partes, pois ambas devem ter o desejo de mudança. Ao se
trabalhar apenas com as timas, a outra parte permanece na mesma situação, mantendo
o habitus, podendo inclusive aumentar os episódios de agressão. "Todos percebem que
a tima precisa de ajuda, mas poucos vêem esta necessidade no agressor" (Saffioti,
2004, p.68). Busca-se o envolvimento dos homens para a promoção da equidade de
gênero, pelo fim da violência perpetrada contra mulheres e crianças.
Além disso, faz-se necessário compreender o contexto em que são socializados
esses homens, articulando as discussões acerca da masculinidade, nero e violência,
entendendo que essa abordagem traz a participação da família e da cultura na produção
de homens violentos e inclui questões sobre a violência estrutural de gênero, como uma
construção social que determina uma relação desigual e opressiva entre as pessoas.”
(Souza, 2005, p.61).
A importância do envolvimento dos homens no campo da saúde e dos direitos
sexuais e reprodutivos, em especial na prevenção da violência contra mulheres e
crianças, ganha destaque a partir da IV Conferência Internacional sobre Populão e
Desenvolvimento, em 1994, no Cairo, e a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, em
1995, em Pequim (Arilha, 2005). Como esta autora destaca, ainda são poucas as
experiências concretas com a população masculina, mas, gradativamente elas vão se
consolidando. A inclusão do homem para a prevenção e combate à violência ganha
ênfase ao se perceber que intervenções outras, não centradas apenas na idéia de punição,
podem alcançar resultados positivos, e que tão importante quanto dar suporte às vítimas,
é se pensar formas para prevenir a prática da violência incidindo diretamente sobre os
perpetradores.
Dessa maneira, os objetivos da presente pesquisa foram: investigar as
motivações dos autores da violência, os sentidos que atribuem ao ato praticado e se o
reconhecem de fato como uma violência; como percebem o outro - o sujeito agredido -,
2
Utilizo esse termo em muitos momentos não no sentido clínico, de cura, mas como trato, modo de
proceder.
12
bem como os resultados da violência e danos conseqüentes. Optei por delimitar a
pesquisa na população jovem
3
, já que a minha participação no projeto Fênix
possibilitaria o acesso necessário. Ainda, a literatura estrangeira aponta a existência de
grande número de casos de abuso sexual perpetrados por jovens.
No percurso do campo, entretanto, deparei-me com uma grande dificuldade para
encontrar sujeitos para a pesquisa. Em visita às várias instituições que intervêm de
alguma forma nas situações de violência sexual envolvendo crianças e adolescentes,
optei por entrevistar também os profissionais que atuam diretamente com essa
população, buscando averiguar que concepções possuem acerca da violência sexual,
como lidam com este problema, quais as implicações para o adolescente que comete
este tipo de agressão, quais as intervenções realizadas, que sentidos atribuem à prática
do abuso.
Muitos/as autores/as revelam que é comum que agressores adultos iniciem os
episódios de abuso sexual ainda quando adolescentes (Mora, 2002; Messerschmidt,
2000; Acosta e Barker, 2003; Save the Children, 2000; Grant, 2000). Dados encontrados
em outras pesquisas demonstram que muitas denúncias de abuso sexual têm como autor
um adolescente. Em relatório elaborado por diversas agências da Save the Children da
União Européia (2000), indicou-se que em 1/3 dos abusos cometidos no Reino Unido o
agressor tinha 17 anos ou menos. Na Irlanda do Norte 36% do abuso sexual infantil é
cometido por um adolescente. O centro canadense de informação sobre a violência
familiar (The National Clearinghouse on Family Violence - NCFV, 1990) aponta que
1/4 das ofensas sexuais são perpetradas por adolescentes. Relatório da Victorian Law
Reform Comission (Melborne, Austrália) (2004) reuniu dados de variadas fontes e
indica que: 436 casos de ofensas sexuais foram reportados em Victoria no ano de
2001/2002 tendo como autor um adolescente (equivalente a 12,4% do total de
denúncias); um estudo na Inglaterra sobre agressões sexuais sofridas por mulheres com
idade abaixo dos 16 anos encontrou que 16% dos estupros e outras agressões são
cometidas por agressores com menos de 19 anos. Infelizmente, no entanto, não se
possui dados dessa ordem publicados no Brasil. Tenho clareza que experiências
estrangeiras não necessariamente condizem com a nossa realidade, mas esses dados são
indicativos da extensão do problema.
3
Adolescentes, com idades entre 12 e 18 anos incompletos, conforme demarcado pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente (Brasil, 1990).
13
A ausência de trabalhos com foco nos autores de violência sexual se reflete na
parca produção literária brasileira encontrada acerca da temática, em especial quando se
trata de adolescentes. Buscando traçar um panorama da produção acadêmico-científica
nacional, sem, no entanto, ter a intenção de esgotá-la, acessei a Biblioteca Virtual em
Saúde BVS, utilizando o descritor violência sexual (pesquisa realizada em novembro
de 2006). Entre os trabalhos encontrados, um grande número o tinha relação com o
tema, sendo assim, delimitei a pesquisa aos artigos que apresentavam as duas palavras
no resumo. Dessa forma, apareceram 148 referências, sendo que destas 37 repetiam-se,
totalizando, então, 111 artigos. Em muitos destes a violência sexual estava presente,
associada a outros tipos de violência, principalmente no meio familiar ou conjugal, não
ocupando um lugar de destaque. Na Tabela 01 encontra-se o número de artigos
distribuídos por temas.
Tabela 01: Distribuição dos resumos analisados segundo os temas
investigados.
Tema
Violência contra a mulher 36
Violência contra crianças e adolescentes 29
Ações de assistência a pessoas em situação de violência 14
Violência sexual 7
Agressores 2
Violência doméstica 2
Violência cometida por adolescentes 2
Outros 6
Não têm relação direta com o tema 13
Total
111
Fonte: Biblioteca Virtual em Saúde – BVS.
Dentre os artigos pesquisados, a maioria trata da violência contra mulher (36),
abordando questões como: características, fatores associados e conseqüências da
violência, bem como características das timas, suas vivências e percepções acerca da
violência, além de discutir formas de atenção às timas. Cinco caracterizam-se como
trabalhos teóricos sobre violência de nero, relações de nero e tratamento à mulher
ao longo da história.
Em segundo lugar aparecem os artigos com foco sobre a violência contra
crianças e adolescentes (29). Os aspectos discutidos mantêm a mesma linha dos artigos
citados anteriormente, dedicando-se a questões como características da violência ou das
timas, conseqüências e efeitos para as timas, prevalência e freqüência da ocorrência,
14
atendimento a essa população, sendo que aqui aparecem ainda aspectos associados à
prostituição infantil e formas para identificação da violência.
Muitos deles abordam as ações de assistência a pessoas em situação de violência
(14), fazendo uma análise/apresentação de programas de atenção à vítima ou discutindo
a atuação de profissionais, seja em termos de preparação para lidar com o problema ou
para detectar os maus-tratos. Sete artigos tratam da violência sexual de forma mais
ampla, envolvendo questões como sistema jurídico, perícia sexológica, relação da
violência sexual com doenças sexualmente transmissíveis. Dois discutem as
características e a prevalência da violência doméstica. Apareceram ainda: aborto legal
(02); violência contra homossexuais (01); violência sofrida por residentes médicos (01);
duas coletâneas, uma sobre maus-tratos contra crianças e adolescentes, violência
familiar, rede de serviços, e outra sobre a visão do Estado e sociedade civil sobre a
violência cotidiana.
Referente à violência praticada por adolescentes, um artigo se detém a traçar as
características de adolescentes violentos, sem especificação do tipo de violência ou a
quem era dirigida (Serfaty, Casanueva e Zavala et al, 2003), e outro aborda as
características da violência praticada por esta população, direcionada contra seus pares
(Camargo, Santos e Souza, 1999). Apenas dois artigos tinham como foco os agressores:
o primeiro discute aspectos psicossociais de pais e responsáveis que agridem os filhos
(Monteiro, Cabral e Morgado, 1995) e o segundo elabora uma caracterização de jovens
agressores sexuais (Mora, 2002, comentado no item 2.2.1).
Na literatura estrangeira, principalmente de países como Canadá, Estados
Unidos, Reino Unido e Austrália, uma mudança nesse quadro. Pode-se encontrar
muitos artigos que relatam experiências de tratamento com agressores ou que discutem
os aspectos associados à prática da violência (NCFV, 1990; Messerschimidt, 2000;
Grant, 2000; Victorian Law Reform Comission - VLRC, 2004; Center for Sex Offender
Management, 1999; Totten, 2003, apenas para citar alguns). No entanto, a grande
maioria é de acesso restrito. Nestes países mencionados existe uma série de programas
que atendem autores de agressão sexual adolescentes, com uma experiência
relativamente longa e fortemente articulados entre si.
Apesar da defasagem quanto aos números exatos das ocorrências de violência
sexual no Brasil, apresento aqui alguns indicativos. Cecília de Mello e Souza e Leila
15
Adesse (2005) destacam que no ano 2000 foram registrados 14.881 casos de estupro e
12.088 casos de atentado violento ao pudor no país. Uma pesquisa realizada no Rio de
Janeiro a partir de atividades das instituições Promundo e NOOS revelou que, dos 749
homens que responderam um questionário, com idades entre 15 e 60 anos, 17,2%
haviam praticado violência sexual contra a parceira pelo menos uma vez e 2% forçaram
a parceira a manter relações sexuais (Acosta e Barker, 2003). Sônia Maria Dantas-
Berger e Karen Giffin (2005) apresentam um estudo nacional baseado em 3.193
entrevistas com usuárias de 19 serviços de saúde, no qual 40% das mulheres declararam
ter sofrido violência física, exclusiva ou conjugada com a forma sexual, sendo que 5%
indicaram casos exclusivos de violência sexual. Segundo dados do NAV (Gryner,
2003), centro que atende timas de violência, bem como autores de agressão, 48% das
queixas recebidas referem-se a abuso sexual. Dos 181 casos confirmados até 2003, a
principal violência foi a sexual. Conforme dados do Dossiê Mulher 2, apresentado pelo
Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (Miranda, Pinto e Lage, 2007), em
2006 foram contabilizadas 1.278 timas de estupro e 1.922 vítimas de atentado violento
ao pudor. Destas últimas, 62,5% tinham idade até 17 anos; entre as timas de estupro,
54,1% tinham entre 12 e 24 anos. Em um levantamento realizado pelo Programa
Sentinela no ano de 2002, 27.747 crianças foram atendidas no território nacional, sendo
que destas 14.011 (50,4%) tinham sofrido violência sexual, dentre os quais 11.492
(82%) eram meninas (Vivarta, 2003).
No panorama internacional Karen Giffin (1994) destaca um trabalho que reuniu
dados de 35 estudos em 24 países e revela a alta incidência de violências praticadas
contra as mulheres. Nos Estados Unidos detectou-se que entre 1/5 a 1/7 das mulheres
são timas de estupro durante sua vida. Um estudo canadense estima que 25% das
meninas sofrem algum tipo de abuso sexual antes dos 17 anos. Entre as mulheres que
sofrem habitualmente com a violência do parceiro, 46% na Colômbia e 58% na Bolívia
e Porto Rico declararam que já foram forçadas a fazer sexo contra sua vontade.
Não se trata de números exatos, visto que a violência sexual, principalmente
aquela praticada por parceiros íntimos ou demais familiares, é pouco evidenciada. Uma
dificuldade encontrada por muitas pesquisas é a precariedade dos registros policiais nos
Boletins de Ocorrência, que não contemplam todas as informações dos casos
notificados. Além disso, verifica-se que o mero de casos reais sobrepõe-se
16
consideravelmente aos números de casos notificados (Souza e Adesse, 2005; Ministério
da Saúde, 2002; Drezett, 2000; Rifiotis, 2004; Giffin, 1994; Lopes et al, 2004; Vargas,
1999, entre outros). A isso se atribuem aspectos como: banalização/permissividade para
a prática de abusos sexuais, principalmente no ambiente familiar; incredulidade nos
meios legais para resolução imediata de situações de conflito; receio em lidar com o
sistema de justiça criminal; vergonha, medo, sentimento de impotência e insegurança
das timas, diante das ameaças daquele que pratica o abuso; culpabilização da tima,
como aquela que provocou a situação.
Tradicionalmente as mulheres aprendem a manter o estupro em sigilo,
condicionadas a lidar com a violência como um problema de ordem pessoal. Esse
treinamento social é realizado pelos discursos que circulam, descrevem e constroem o
estupro. A própria forma de operar do sistema de justiça expressa sexismo,
discriminações e estereótipos envolvendo a mulher, o homem e a forma como eles se
relacionam. Este viés de nero é em grande parte responsável pelo baixo número de
denúncias e pela pequena taxa de condenações nos julgamentos de estupro. (Figueiredo,
2000).
O reduzido número de casos notificados de abusos sexuais perpetrados por
adolescentes, por sua vez, pode ser decorrente do fato de que se confundem muitas
vezes com curiosidade ou experimentação, componentes de seu desenvolvimento
sexual, não se configurando como uma violência, sendo tratados, portanto, no próprio
ambiente familiar. Ou, ainda, mesmo que assumida a violência, os responsáveis podem
optar por proteger o praticante das intervenções legais, consideradas muitas vezes
prejudiciais, no sentido de criminalizar e expor o jovem às sansões penais.
Diante desse quadro, pretendo com a presente pesquisa obter informações mais
acuradas quanto às situações de violência sexual envolvendo jovens na condição de
autores, indo ao encontro deles, para melhor entender como se posicionam frente ao ato,
com a finalidade última de fornecer subsídios para o enfrentamento deste tipo de
violência.
17
2. REFERENCIAL TEÓRICO
Discorro a seguir os eixos teóricos/temáticos norteadores deste trabalho,
partindo da perspectiva da Psicologia Social Crítica e como ela se intercala com as
noções denero e violência. Apresento autores/as que tratam das masculinidades,
estando estas no cerne da investigação, na medida em que se apresentam como
fundamentais no entendimento da violência perpetrada por homens, trazendo também
autores/as que discutem especificamente este tema sob a luz dos estudos de gênero. Na
tentativa de definir com maior precisão o objeto de pesquisa, qual seja, violência sexual,
apresento algumas conceituações e problemáticas em torno dele. Por fim, traço aspectos
e normativas presentes na legislação brasileira acerca do tratamento jurídico dado à
questão da violência sexual.
2.1 GÊNERO E VIOLÊNCIA NA PSICOLOGIA SOCIAL CRÍTICA
Por muito tempo a Psicologia manteve-se imersa nos pressupostos da ciência
moderna, positivista, atrelada aos princípios de objetividade, neutralidade e
imparcialidade. A partir da década de 60 acontece o que Sofia Neves e Conceição
Nogueira (2004), junto com outros/as autores/as por elas mencionados, chamam de crise
da Psicologia, quando se passa a refutar os ideais da ciência psicológica individualista,
abrindo espaço para o surgimento das perspectivas críticas, que na Psicologia
distinguem-se
por desafiarem as instituições e os valores sociais dominantes,
propondo alternativas à sua conceptualização. Nesta óptica, as
abordagens críticas fazem com que a psicologia deixe de ser uma
ciência orientada por uma ideologia universal centrada em
problemas individuais, para passar a ser uma ciência comprometida
com questões sociais, a partir da análise dos factores estruturais,
políticos e culturais (Neves e Nogueira, 2004, p.125).
A Psicologia Social Crítica toma forma a partir das propostas do
construcionismo social. Trata-se de uma perspectiva que tem como foco de investigação
18
"the process by which people come to describe, explain, or otherwise account for the
world (including themselves) in which they live" (Gergen,1985, p.266), buscando a
exterioridade dos processos e estruturas da interação humana. Keneth Gergen (1985) foi
um dos pioneiros em trabalhar a psicologia social na perspectiva construcionista. Este
faz uma crítica às bases do conhecimento tradicional, na medida em que questiona o
acesso a uma essência do mundo, a ser revelada por meio da observação e métodos
empíricos. Os critérios de identificação de atributos observáveis que utilizamos estão
totalmente circunscritos pela cultura, pelo contexto social, ou seja, trata-se de uma
convenção. "The terms in which the world is understood are social artifacts, products of
historically situated interchanges among people(Gergen, 1985, p.267). Dessa forma,
entende-se que o conhecimento é um produto das trocas interativas entre as pessoas,
uma construção compartilhada. Conhecer é dar sentido ao mundo, sendo o sentido
uma construção social, um empreendimento coletivo, mais
precisamente interativo, por meio do qual as pessoas na dinâmica
das relações sociais historicamente datadas e culturalmente situadas
constroem os termos a partir dos quais compreendem e lidam
com as situações e fenômenos a sua volta (Spink e Medrado, 2000,
p.41).
Assim, nega-se a existência de uma realidade independente; ela é apreendida a
partir de nossas categorias, convenções, práticas e linguagem processos de
objetivação. Desta forma, a noção de conhecimento como representante de uma
realidade é contestada. Nesse ínterim, questiona-se a postulação de verdades objetivas,
universais e a-hisricas. Estas são construídas "a partir de convenções pautadas por
critérios de coerência, utilidade, inteligibilidade, moralidade, enfim, de adequação às
finalidades que designamos coletivamente como relevantes" (Spink e Frezza, 2000,
p.29-30).
A validação e a manutenção de uma forma de entendimento se dão a partir das
vicissitudes dos processos sociais, ou seja, aquilo que é mantido num determinado
momento, pode vir a ser rechaçado em decorrência das circunstâncias sociais. "Afirma-
se a primazia dos relacionamentos na sustentação do conhecimento produzido" (Borges,
2007, p.31). É a partir de nossas relações, interações e negociações de sentido que
produzimos conhecimento, e, com isso, definimos formas de ação. “Descriptions and
explanations of the world themselves constitute forms of social action” (Gergen, 1985,
19
p.268). Por meio da linguagem construímos e reconstruímos sentidos, e, por
conseguinte, a realidade, circunscrevendo formas de agir no mundo. A linguagem,
portanto, se coloca como prática social, como agente de coordenação das relações e
ações humanas. Ela não provê simplesmente palavras para conceitos existentes, como
um reflexo da realidade, mas cristaliza e estabelece idéias.
O foco do construcionismo recai sobre as práticas discursivas, na "compreensão
das ações e práticas sociais, e, sobretudo, dos sistemas de significação que dão sentido
ao mundo" (Medrado,1997, p.50). Práticas discursivas podem ser entendidas como
"linguagem em ação, isto é, as maneiras a partir das quais as pessoas produzem sentidos
e se posicionam em relações sociais cotidianas" (idem, p.45), correspondentes aos
momentos ativos do uso da linguagem. Têm como elementos constitutivos os
enunciados, as formas e os conteúdos. Os primeiros referem-se ao processo de
interanimação dialógica presente numa conversação. "...os enunciados de uma pessoa
estão sempre em contato com, ou são endereçados a uma ou mais pessoas, e esses se
interanimam mutuamente" (Spink e Medrado, 2000, p.45-46). As formas correspondem
aos gêneros de fala, ou seja, o estilo ocasional das enunciações, moldado pelo contexto
em que o sujeito se insere num determinado momento (situação, interlocutores, espaço,
tempo). Para tanto, fazemos uso de dispositivos linguísticos que constroem versões das
ações, eventos e fenômenos que nos circundam. São os repertórios interpretativos,
utilizados para dar sentido às nossas experiências, perfazendo o "conjunto de termos,
lugares-comuns e descrições usados em constrões gramaticais e estilísticas
específicas" (Spink e Frezza, 2000, p.34).
Os repertórios são as unidades de construção das práticas discursivas que
circulam na sociedade, marcados por diferentes temporalidades, e, por conseguinte,
contextos diversificados. Ao se trabalhar com o contexto discursivo, Spink e Medrado
(2000) e Medrado (1997) propõem a divisão de três tempos históricos:
O tempo longo é constituído pelos conhecimentos que antecedem a vivência
pessoal, mas que se fazem presentes por meio da reprodução social; trata-se do
contexto cultural. nesse tempo histórico que podemos apreender os
repertórios disponíveis que serão moldados pelas contingências sociais da época,
constituindo as vozes de outrora que povoam nossos enunciados" (Spink e
Medrado, 2000, p.51). Corresponde ao imaginário social, ou seja, os significados
20
construídos e re-interpretados ao longo da história, que circulam por meio de
diversas instâncias – religião, arte, política, ciência, mídia, etc.
O tempo vivido corresponde às experiências do sujeito no decorrer de sua
hisria pessoal contexto social. É definido como o processo de resignificação
dos conteúdos históricos a partir dos processos de socialização, situando-se no
terreno do habitus
4
.
O tempo curto refere-se às interações diretas de comunicação entre os
interlocutores (contexto interacional), "pauta-se, portanto, pela dialogia e pela
concorrência de múltiplos repertórios que são utilizados para dar sentido às
experiências humanas" (Medrado, 1997, p.53). Daqui se apreende de forma
contígua as produções de sentido.
É na interface entre esses três tempos que se processa a produção de sentidos.
Trabalhar no âmbito da produção de sentidos é buscar entender "tanto as práticas
discursivas que atravessam o cotidiano (narrativas, argumentações e conversas, por
exemplo) como os repertórios utilizados nessas produções discursivas" (Spink e
Medrado, 2000, p.42).
Assim, entende-se que as falas trazidas pelos sujeitos se entrecruzam com as
produções histórico-culturais acerca da sexualidade e como homens e mulheres a
vivenciam, estabelecendo o território em que se produz a noção de violência sexual, ou
seja, a imposição de atos sexuais ou a exposição de pessoas a situações que lhes são
desagradáveis ou consideradas impróprias, como um ato que transpõe as barreiras do
que é moralmente aceitável. Os posicionamentos dos sujeitos refletem as concepções e
valores que permeiam o ambiente em que vivem, a partir dos quais comem os
julgamentos acerca das vivências particulares, como se colocam na situação e a
compreendem, do mesmo modo que percebem os demais sujeitos envolvidos nestas
situações.
4
Termo emprestado de Pierre Bourdieu (1994), que diz respeito às "disposições adquiridas a partir da
pertença em determinados grupos" (Spink e Medrado, 2000, p.52).
21
2.1.1 Gênero e Masculinidade
A noção de gênero presente na Psicologia foi sendo desenvolvida com base nos
pressupostos da ciência moderna, onde, segundo Conceição Nogueira (2001), duas
posturas se sobressaem: a perspectiva empiricista e a s-moderna. Esta primeira pode
ser dividida entre a abordagem essencialista e a de socialização. A primeira confere o
gênero a características inatas, bipolares, onde a diferenciação sexual é determinada
biologicamente, enquanto a segunda defende que o gênero é aprendido por processos de
imitação e modelagem, que irá formar a personalidade individual, estável e inerente.
Ambas entendem o gênero por meio de diferenças dicotômicas, mantêm os conceitos
convencionais de feminilidade e masculinidade, defendendo a existência de atributos
fundamentais, internos e persistentes. O que as caracteriza por essencialistas é “o fato de
assumir a existência de qualidades ou características de e nos indivíduos” (Nogueira,
2001, p.142), não contribuindo, portanto, para aquilo que os estudos feministas se
propunham: desconstruir estereótipos e retirar a mulher da marginalidade e do lugar de
outro.
Aparece então uma nova postura crítica e reflexiva, inscrita no feminismo pós-
moderno, que recusa os discursos universalizantes e generalizáveis, entendendo a
construção do gênero como um processo e não um fim. A categoria sexual passa a ser
compreendida como produto ideológico, onde o gênero se “desenvolve mediante peças
de discurso, organizadas num sistema de significados disponíveis aos indivíduos de
forma a darem sentido às suas posições, o que historicamente é reconhecido como
respostas femininas e masculinas” (Nogueira, 2001, p.147). O gênero não é apenas
imposto socialmente, mas trata-se de escolhas, escolhas essas permeadas por
constrangimentos institucionais, hierarquia social e relações sociais de poder que
limitam a ação do indivíduo.Constrangimentos e expectativas leva-os [homens e
mulheres], frequentemente, a tomar decisões distintas relativamente ao seu repertório de
opções. Dessa forma, reafirmam os arranjos baseados nas categorias sexuais [...]
legitimando consequentemente a ordem social” (Nogueira, 2001, p.148).
Nessa ótica, o gênero não está substancializado nos corpos, mas é produzido
discursivamente, fruto do contexto social e hisrico. Por se tratar de uma norma, possui
22
caráter flexível, ou seja, não se aplica em termos gidos, sendo passível de
reconfiguração por parte dos sujeitos sociais.
Coerente com esta perspectiva, encontra-se o trabalho de Robert Connell (1997),
que tem como foco as masculinidades. Segundo este autor, o conceito de masculinidade
é inerentemente relacional, existe em contraste com a feminilidade. Considera que os
estudos sobre masculinidade devem, ao invés de defini-la como objeto, centralizar nos
processos e relações pelos quais homens e mulheres “levam suas vidas impregnadas no
gênero”. O autor faz uso do conceito de hegemonia ao referir-se às normas, regras e
exigências que configuram um modelo socialmente idealizado de ser homem. "En
cualquier tiempo dado, se exalta culturalmente una forma de masculinidad en lugar de
otras […] la masculinidad hegemónica encarna una estrategia corrientemente
aceptada." (Connel, 1997, p.39-40). Arrisca uma definição de masculinidade dispondo
que es al mismo tiempo la posición en las relaciones de género, las prácticas por las
cuales los hombres y mujeres se comprometen con esa posición de nero, y los efectos
de estas prácticas en la experiencia corporal, en la personalidad y en la cultura”
(Connell, 1997, p.35)
Fátima Regina Cecchetto (2004) apresenta um debate sobre masculinidade,
dialogando com diversos autores. Menciona Connel, para o qual a masculinidade é
entendida como “configurações de prática”, ou seja “como um conjunto de
representações e valores que surgem ou desaparecem ao longo do tempo” (Cecchetto,
2004, p.72). Propõe-se uma interconexão entre estrutura e prática, salientando o
contínuo entrelaçamento entre a vida pessoal e a estrutura social” (idem, p.64). Dessa
forma, é possível analisar as relações entre masculinidades sem fazer menção a tipos
fixos, mas sim configurações de práticas constituídas em situações particulares e
mutáveis.
Diante das constantes transformações ocorridas no âmbito das relações de
gênero, acarretadas principalmente pelo movimento feminista, alguns estudos fazem
menção a um suposto desconforto provocado no homem, que explicaria a prática da
violência contra as mulheres. (Boris, 2004; Nolasco, 1995). Na medida em que muitos
homens não se vêem mais inseridos em conformidade com esse contexto, ao mesmo
tempo que têm dificuldade de aceitar a nova posição conquistada pela mulher no âmbito
social, aparece a chamada “crise da condição masculina”, atestada por autores/as como
23
crates Nolasco (1995), Maria Regina Azevedo Lisboa (1998) e Georges Daniel Boris
(2004). Esta é apontada como resultante das transformações no comportamento das
mulheres e na moral sexual, e do questionamento da posição dominadora e patriarcal
dos homens na sociedade e na família [...] O modelo hegemônico de masculinidade é
contestado (Lisboa, 1998, p.131-132). Segundo Nolasco (1995), a legitimidade da
representação masculina associada a comportamentos viris, agressivos, de poder, é
relativizada, portanto “não se acredita mais que exista o masculino como único conceito
norteador e gerador de referências para o comportamento dos indivíduos” (Nolasco,
1995, p.19).
5
Nesse sentido, Pedro Paulo de Oliveira (1998) lança um debate, acerca das
linhas discursivas sobre a masculinidade, apontando para um discurso vitimário da
condição masculina, que destaca os aspectos problemáticos de ser homem, seja numa
abordagem psicologizante, ou centrada nos papéis masculinos. Algumas correntes se
contrapõem a essa visão, apresentando um debate crítico, atentando para a dinâmica das
relações e a estrutura de poder que as fundamenta. Criticam a culpabilidade conferida
aos papéis sociais, na medida em que ao transferir a culpa ao sistema, exime a
responsabilidade individual. Este autor questiona a emergência de um “novo homem”;
concorda que houve um abalo na masculinidade tida como natural, abrindo-se espaço
para novos modelos de ser masculino, porém,
questiona-se [...] se as tais alterações alardeadas por muitos
cientistas sociais no comportamento masculino não seriam apenas
mudanças de estilo, restritas a um segmento de classe média, sem
alterações efetivas e substanciais no contexto das relações de poder
que permeiam as relações de gênero (Oliveira, 1998, p.109).
O autor observa um movimento de homens para “modernizar a masculinidade
hegemônica”, sem, no entanto, abrir mão de seus privilégios. Aponta para a necessidade
5
Cabe ressaltar que o questionamento quanto ao poder masculino e aos lugares ocupados por homens e
mulheres na sociedade, não é algo exclusivo da atualidade, mas ocorreu também em outros momentos da
história, como defende Batinder (1993). Esta autora aponta "crises" já a partir do séc. XVII, que foram se
desenrolando aos dias atuais. A diferença dos movimentos anteriores reside no fato de que estes se
restringiam apenas às camadas dominantes, e hoje possui abranncia mais extensa. Estes
questionamentos são expressões do feminismo, sendo que a pauta de reivindicações tinha particularidades
em cada um desses momentos. Ainda assim, ao que tudo indica, estas inquietações estavam mais
presentes nas mulheres, tendo pouca aceitação por parte dos homens.
24
real de se discutir as formas de dominação nas relações de gênero, não se prendendo a
questões de comportamentos mais ou menos viris por parte dos homens.
O que se pode observar é que diferentes modelos de masculinidade coexistem,
mais ou menos distanciados do ideal hegemônico. No entanto, a organização social de
gênero ainda é fortemente marcada pela desigualdade de direitos e assimetria de
poderes. A suposta condição inferiorizada de mulheres e crianças perdura como
justificativa para a perpetuação da violência. Como veremos mais adiante, a violência
sexual tem profundas raízes na constituição social das relações de gênero, que nos
circunscreve e nos posiciona na complexa trama das relações sociais.
Nesse sentido, Benedito Medrado e Jorge Lyra (2003) destacam a importância
de considerar os processos de socialização
6
e os significados de ser homem na
sociedade para entender o contexto em que a violência ocorre. A educação masculina é
permeada pelo risco e pela agressividade, experimentados cotidianamente, seja nas
brincadeiras, na rua, nas casas, bares, quartéis, prisões, etc. A brutalidade perpassa o
tornar-se homem, pois a violência é, muitas vezes, considerada uma manifestação
tipicamente masculina para a resolução de conflitos. Enquanto devem reprimir emoções,
a raiva e a violência tornam-se as formas socialmente aceitas para exprimir seus
sentimentos.
O campo da sexualidade é também regido por uma série de normativas,
incidindo diretamente na constituição das masculinidades. Como destacam Fracher e
Kimmel (1995), é através do entendimento que se tem da masculinidade que a
sexualidade é construída, e é através da sexualidade que se confirma o sucesso da
construção da identidade de nero gênero informa sexualidade, a sexualidade
confirma o gênero. A necessária evitação e repúdio aos comportamentos associados ao
feminino, postulada por estas normas, requer um patrulhamento constante dos limites e
da performance pessoal para garantir que se é suficientemente masculino. Meninos são
instruídos desde cedo, por uma amplitude de mecanismos, a separar as emoções da
expressão sexual, devem rejeitar a passividade e estar sempre dispostos à prática sexual,
pondo em evidência sua potência sexual. São ensinados a tentar sempre ir "mais além",
deixando que a mulher imponha os limites, entendendo que a penetração é o único fim
6
Entendo por socialização o complexo processo intersubjetivo pelo qual os indivíduos se apropriam do
arcabouço social que engendra as formas de ser no mundo, norteadas por valores, crenças e normas.
25
apropriado de qualquer encontro sexual, é o objetivo a ser alcançado. Todos estes
aspectos se imbricam no desenrolar de condutas sexualmente violentas.
No entanto, concordo com a colocação de Medrado e Lyra (2003) de que a
maioria dos homens o agride suas parceiras ou outras mulheres, e que nem todo
homem é por princípio agressivo, questionando a afirmação de que a violência faz parte
da identidade masculina. É nossa função rever esses modelos de socialização e
envolver os homens [...] nos esforços pelo fim da violência contra a mulher [...] A
violência de nero é um femeno social, e, portanto, deve ser enfrentado através de
um conjunto de estratégias poticas e de intervenção social direta” (idem, p.24).
2.1.2 Violência sexual
A violência o existe como fato no mundo, mas é um recurso de rotulação, e
deve ser compreendida em seu contexto, como um processo relacional, produzida na
dialogia, contemplando as especificidades em sua manifestação. Neuza Guareschi,
Andrei Weber, Luciele Comunello e Milena Nardini (2006) compreendem a violência
como um fenômeno que, ao contrário do que é comumente encontrado no campo da
Psicologia, vai além da esfera individual (“identidade agressiva”, “essência violenta”),
mas se trata de uma prática complexa, constituída por múltiplos vetores socialmente
produzidos, que se interpelam na significação dos diferentes marcadores identitários”
(p.125).
Violência é um termo genérico que não possui uma caracterização fechada,
definida. Conforme Alba Zaluar (1999), é um termo polifônico, que possui ltiplas
manifestações; é a percepção do limite e da perturbação (e do sofrimento que provoca)
que vai caracterizar um ato como violento, percepção essa que varia cultural e
historicamente. (Zaluar, 1999, p.28). O termo violência é utilizado como um
generalizante que não condiz exatamente com a diversidade de atos e situações em que
se tenta limitar e tipificar. Ressalto aqui a dificuldade em se estabelecer um equivalente
empírico àquilo que se tem por violência, visto não haver um padrão de regularidade,
algo que se possa capturar de imediato ao se nomear dessa forma. É necessário ater-se
às especificidades situacionais, buscar as circunstâncias da interação, de modo a melhor
26
caracterizar o uso do termo. “É na perspectiva de uma abordagem, digamos, mais
vivencial, mais próxima das experiências concretas, que podemos começar a pensar na
pluralidade da violência e sua significação” (Rifiotis, 1997, p.4).
O debate acerca da violência é amplo, mas é possível observar alguns elementos
consensuais, como destaca Tiago Nogueira H. C. Rodrigues (2006): "qualquer forma de
violências envolve a noção de coerção ou força (como indica a raiz latina vis, ou seja, força,
vigor, potência), e a dano que se inflige a indivíduo ou grupo, seja esse dano físico, moral
ou psicológico" (p.32). Além disso, este autor aponta três aspectos comuns ao falar de
violência: 1. negatividade (ela é moralmente condenável); 2. exterioridade sempre
atribuída ao outro); 3. homogeneização (a violência é tratada como um fenômeno único,
retirando-se as características específicas do ato).
Ainda assim, inexiste um consenso semântico ou cultural para falar de violência.
Diante disso,
parece mais adequado à análise contemporânea das violências
buscar captar [...] os sentidos e valores que a violência’ recebe nas
experiências dos diversos grupos sociais, reconhecendo
singularidades, diferenças e especificidades que se apresentam nas
diversas configurações sociais. (Cecchetto, 2004, p.39).
Durante muito tempo o homem obteve direitos legítimos sobre mulheres e
crianças, o que autorizaria o uso da violência para manutenção da ordem, obediência ou
como defesa da honra masculina. Foi com o movimento feminista, a partir da década de
1970, que esse fato ganhou visibilidade e passou a ser fervorosamente combatido,
instituindo-se a violência contra mulheres e crianças como um campo de ação política e
de reflexão teórica. Acontecimentos anteriormente vistos como práticas habituais de
regulação das relações de gênero, adquirem estranhamento, passando ao status de
agressões e violências. A partir do momento em que é reconhecida, inicia-se o processo
de classificação e conceituação. Ao passo em que reduz suas diversas formas de
manifestação em categorias, esvai-se do sentido original, configurando-se novas versões
por parte daqueles que a vivenciam ou que lidam com ela. Por sua vez, ganha
visibilidade, e possibilita a articulação de estratégias para lidar com o problema.
Como destaca Figueiredo (2000), problemas sociais não são apenas reflexos de
condições objetivas, mas são também socialmente definidos. A construção discursiva de
um problema como a violência sexual, proveniente da mídia, do sistema legal, da
27
família ou dos movimentos de combate, exerce grande influência na forma como ela é
vista e como os perpetradores e as vítimas são tratados.
O termo violência de nero é comumente utilizado, mas não uma
delimitação clara para o conceito, sendo este igualado muitas vezes com violência
conjugal, doméstica ou familiar. Saffioti (2004) distingue os tipos de violência da
seguinte maneira: a violência de gênero pode ser perpetrada pelo homem contra a
mulher, mas pode também se direcionar de um homem para outro, de uma mulher
contra outra mulher ou de mulher contra homem; em geral trata das relações regidas
pela gramática sexual” (p.71), baseadas na hierarquia e desigualdades de nero. Na
violência familiar estão envolvidos membros de uma mesma família, extensa ou
nuclear, e pode ocorrer no interior do domicílio ou fora dele. A violência doméstica
atinge pessoas que vivem, parcial ou integralmente, no domicílio do agressor, não
necessariamente pertencente à família. Estas classificações referem-se basicamente à
relação existente entre agressores e agredidos e ao ambiente onde a violência ocorre.
Quanto às formas de violência às quais às mulheres estão sujeitas, na Convenção
de Belém do Pará
7
(Agende, 2004) foram classificadas da seguinte maneira:
Violência sica: aquela perpetrada no corpo da mulher;
Violência sexual: a tima é obrigada a manter relações ou a praticar atos
sexuais contra sua vontade, pelo uso da força física, coerção ou ameaça;
Violência psicológica: atinge a auto-estima da mulher que sofre agressões
verbais constantes, como ameaças, insultos, humilhações, etc., ou tem sua
liberdade tolhida.
A violência sexual pode ser entendida como uma violência de gênero, que se
caracteriza pelo abuso do poder, quando a tima é induzida ou forçada a praticar atos
sexuais, sem seu consentimento ou sem que tenha condições para o fornecer. Não se
trata apenas de brutalidade direta e física, mas também pressão ou chantagem afetiva
(Garcia, Gomes e Almeida, 2005). Etienne Krug, Linda Dahlberg, James Mercy,
Anthony Zwi e Rafael Lozano (2003), em um trabalho editado pela Organização
Panamericana de Saúde, definem a violência sexual como todo acto sexual, la tentativa
de consumar um acto sexual, los comentarios o insinuaciones sexuales no deseados, o
7
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, tratado
internacional ratificado pelo Brasil que se refere à promoção e defesa dos direitos das mulheres.
28
las acciones para comercializar o utilizar de cualquier otro modo la sexualidad de una
persona mediante coacción por otra persona” (p. 161). Ainda, para além do ato em si,
deve-se olhar para os atores envolvidos na situação de violência, por quem é proferida e
a quem é dirigida, em que circunstâncias, com que intenção, para melhor caracterizá-la.
A ruptura da integridade da tima é comumente tomada como um critério de
avaliação para o ato como violento, situando, assim, no terreno da individualidade
(Saffioti, 2004). O que caracteriza uma violência sexual depende, sim, da forma como é
significada pelos atores da relação; mas, tal posicionamento se constitui mediante
atributos sociais, regidos por determinados padrões de moralidade que irão configurar as
concepções acerca do que é abuso sexual, que extrapola os limites acordados. Na
própria relação violenta pode-se olhar de dois lugares, do agressor e do agredido.
Autores de agressão muitas vezes o entendem seus atos como violentos, assim como
acontece com aqueles/as que são as supostas timas. A intervenção, por sua vez, se
pauta basicamente no reconhecimento de condutas como violentas, para, assim, poder
suprimi-las. Se um ato tem como conseqüência um dano, mas, não foi movido por essa
intenção, é menos violência? O próprio desejo, a vontade do sujeito, não é determinante,
que adultos o podem manter relações sexuais com adolescentes, mesmo diante do
consentimento destes, pois parte-se do princípio que não são capazes de decidirem por
si (Simioni, Pinhal e Schiocchet, 2003). Existem os critérios da norma jurídica,
porém, suas tipificações não contemplam as vicissitudes do fenômeno, na medida em
que ao classificar em digos as experiências subjetivas, encerram-nas nestas
categorias, limitam-nas, perdendo-se as singularidades que compõem os fatos.
8
Nesse
sentido, aponto para a inconstância do uso do termo. Utilizo-o como uma unidade de
análise, bem como abuso e agressão sexual de forma equivalente, não partindo, no
entanto, de uma iia pré-concebida, determinada a priori.
8
Essas indagações me foram suscitadas ao entrar em contato com casos relatados por pessoas ou pelos
meios de comunicação de situações onde estaria presente a violência. Para ilustrar cito alguns exemplos.
Um menino que, movido pela curiosidade sexual, se engaja em atos sexuais com outro, o que acaba por
acarretar danos, ainda que sem a intenção, estaria cometendo uma agressão? Uma jovem que se diz
apaixonada, se coloca, consentidamente, em situações sexuais que lhes são desagradáveis, para satisfazer
o namorado, é uma vítima de violência? Um adulto que expõe a uma criança material pornogfico, para
além do "atentado violento ao pudor", como disposto pela norma jurídica, está cometendo uma violência?
Um mesmo ato pode se configurar como violência para uma pessoa e o mesmo não ocorrer com outra.
Dessa forma, para a caracterização de atos violentos parece imprescindível olhar a relação, o processo, e
não apenas os danos resultantes ou as motivações do que os pratica. Ainda assim, será sempre um olhar
exteriorizado.
29
Isso posto, faz-se necessário um resgate histórico do femeno da violência, em
especial a violência sexual, para entender como ela se desenrola no seio das relações
sociais, como parte de um contexto de desigualdades sociais, de poder patriarcal que
confere ao homem donio sobre as mulheres e crianças, uma sociedade que exige que
o homem reafirme sua masculinidade todo o tempo, sendo a violência uma das formas
aceiveis para expressar suas emoções. Ainda assim, não se espera práticas coerentes e
homogêneas entre os sujeitos, visto que cada um confere sentidos particulares às suas
vivências, destacando-se a necessidade de compreender suas hisrias de vida, em que
lugar ele se situa, qual o seu entendimento acerca da prática da violência, o que o
motiva. Rejeito, nesse sentido, qualquer inclinação “natural” do homem para práticas
agressivas. Busco, com este trabalho, compreender os sentidos presentes em situações
identificadas como violentas, tanto por meio dos que a vivenciam, como por aqueles
que lidam com essas situações. Para tanto, lanço mão dos processos de socialização e
dos significados de ser homem em nossa sociedade, como fatores legitimadores da
violência, atentando para não situar em lugares fixos agressores e timas. Estas não são
categorias estanques, além de que limitam o sujeito a uma condição cristalizada. Opto
pela designação autores de violência sexual, por entender que estes podem assumir
outras posições no mundo, resignificar suas experiências e condutas, não os reduzindo
ou definindo conforme seus atos.
2.2 MODELOS TEÓRICOS EXPLICATIVOS PARA A VIOLÊNCIA DE GÊNERO
Ao falar de violência sexual remete-se imediatamente à violência perpetrada
contra a mulher. Ela é abordada por muitos autores nesse contexto, com a justificativa
de que são as mulheres que mais sofrem com esse tipo de agressão. Safiotti (2004), por
exemplo, ressalta que 90% dos casos de violência sexual são cometidos contra as
mulheres. No entanto, a própria autora menciona que casos de abuso envolvendo
homens são menos publicizados por questões que envolvem vergonha e medo de serem
rotulados como homossexuais, mantendo-se assim em segredo. Por sua vez, os homens
são, em gritante maioria, os que mais praticam esse tipo de violência (Araújo, 2002;
Saffioti, 2004). Provavelmente existem mais mulheres que cometem agressões sexuais
30
do que temos conhecimento (o que não foge à "regra geral" quando se trata da
visibilidade da violência sexual), pom, são os homens os principais perpetradores.
Assim, apresento aqui algumas autoras que abordam a questão da violência contra a
mulher, tomada principalmente no âmbito doméstico ou familiar. A violência sexual é
pouco abordada e, em geral, aparece atrelada aos outros tipos de violência no contexto
do lar. No entanto, as discussões formuladas por estas autoras mostram-se importantes,
que estamos todas falando de violência de gênero.
Cecília Santos e Wânia Izumino (2005) identificam três correntes teóricas nos
trabalhos de referência aos estudos da violência contra a mulher:
a primeira, que denominamos de dominação masculina, define
violência contra as mulheres como expressão de dominação da
mulher pelo homem, resultando na anulação da autonomia da
mulher, concebida tanto como "vítima" quanto como "cúmplice" da
dominação masculina; a segunda corrente, que chamamos de
dominação patriarcal, é influenciada pela perspectiva feminista e
marxista, compreendendo violência como expressão do patriarcado,
em que a mulher é vista como sujeito social autônomo, porém
historicamente vitimada pelo controle social masculino; a terceira
corrente, que nomeamos de relacional, relativiza as noções de
dominação masculina e vitimização feminina, concebendo
violência como uma forma de comunicação e um jogo do qual a
mulher não é "vítima" senão "cúmplice" (s/p.).
Marilena Chauí (1985) entende que a violência contra as mulheres é produto da
dominação masculina, fruto de uma condição geral de subordinação. Explica a
violência como conseqüência de uma ordem normativa, que hierarquiza padrões de
comportamento para os sexos. Aparece um agente que coage, reprime e agride, e o que
é vitimado por essas ações. A autora trata as mulheres como mplices dessa violência,
porém, esta cumplicidade não se baseia em uma escolha ou vontade, pois elas são
‘instrumentos’ da dominação masculina. Em seu entendimento, as mulheres foram
constituídas como sujeito para o outro, numa relação de dependência, especialmente em
decorrência da maternidade. A violência é definida por Chauí (1985) como violação da
liberdade e do direito de alguém ser sujeito constituinte de sua própria história, vista
como a expressão das diferenças convertidas em relações hierárquicas com fins de
dominação e exploração, numa ação que trata o sujeito como coisa.
31
Maria Luiza Azevedo (1985) analisa a violência contra a mulher como forma
específica de violência interpessoal nas relações conjugais. Entende essa violência como
um fenômeno de múltiplas determinações, não considerada como mero resultado da
violência estrutural do sistema capitalista. Ela busca compreender porque ocorrem as
manifestações de força física perpetradas pelos homens contra as mulheres,
considerando que o homem possui uma disposição inerente (socialmente construída)
para agredir sua companheira, uma vontade latente ou explícita apenas à espera de um
pretexto para manifestá-la. Essa vontade seria um produto de um processo global de
dominação de um sexo sobre o outro e expressa um conflito de interesses entre os sexos.
Para Saffioti (1987), teórica marxista, a violência de gênero deriva da
organização social de nero, que privilegia o masculino; é resultante da dominação
patriarcal. Dada sua formação de macho, o homem julga-se no direito de espancar sua
mulher. Esta, educada que foi para submeter-se aos desejos masculinos, toma este
‘destino’ como natural (idem, p.79). Loreley Garcia, Rosa Gomes e Alexandre
Almeida (2005) compartilham dessa idéia e explicam a violência sexual como um
produto do patriarcado, uma forma de submeter as mulheres, subordinando-as à vontade
do homem. “O estupro não deve ser entendido a partir das taras pessoais, mas em
termos de valores masculinos; ele é expressão da misoginia mais que qualquer desejo
sexual exacerbado” (Garcia, Gomes e Almeida, 2005, s/p).
Em seu estudo, Maria Filomena Gregori (1993) defende a pluralidade das
relações violentas, entendendo que seus atores assumem diferentes posições, não
fixados na oposição de timas e algozes. Para a autora, a violência conjugal trata-se de
um jogo relacional, uma forma de comunicação, onde a mulher não é sujeito passivo,
mas possui autonomia. Ela é também protagonista nas cenas de violência conjugal e,
através das queixas, no momento da denúncia, se representa como tima. A autora
inaugura uma nova discussão, pela qual a utilização da expressão “mulheres vítimas de
violência passa a ser substituída por “mulheres em situação de violência”, cunhada
pelo Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde de São Paulo.
Nesse sentido, Ricardo Pimentel Mello e Benedito Medrado (2008) atentam para
as práticas discursivas que fomentam e sustentam posições antagônicas como de
agressores e timas, pensando nos jogos discursivos que constituem essa relação. Têm-
se como foco a linguagem como "prática social, historicamente datada e
32
contextualizada, que possibilita a circulação de conteúdos, produz efeitos e gera
posicionamentos." (Idem, p.79). A questão central é como as pessoas se posicionam e
são posicionadas em práticas de poder e jogos de verdade, sendo "imprescindível
compreender os recursos discursivos e não-discursivos que instauram, inauguram,
constroem e mantêm uma prática." (Idem, p.79). Assim, para compreender a violência
perpetrada por homens contra as mulheres, apóiam-se nos processos de socialização
masculina e nos repertórios interpretativos sobre masculinidade que circulam no meio
social.
Vicente de Paulo Almeida (2006) discute perspectivas e desafios para a
intervenção com agressores sexuais, pautado em sua experiência de atendimento a
autores de agressão contra crianças e adolescentes. Apresenta algumas perspectivas que
tratam do universo do agressor para entender a origem da violação. Separa basicamente
em quatro modelos explicativos, além de um quinto direcionado para resolão das
situações de abuso:
Perspectiva cultural: deposita nos valores patriarcais a sustentação de
representações sociais que colocam mulheres e crianças em posição de
submissão ao homem, para manutenção da ordem social e familiar. Para
eliminar os abusos seria preciso reconstruir as representações sociais.
Perspectivas estruturais: tensões resultantes das desigualdades sociais
levariam ao abuso. Para acabar com ele seria necessária a transformação da
sociedade em uma mais justa e igualitária.
Perspectivas psicopatológicas: considera a conduta agressiva uma forma de
patologia individual, como uma psicopatia ou uso de álcool/drogas. O
tratamento das disfunções do agressor seria a solução para o abuso.
Perspectivas interacionistas: o primeiro modelo entende que o tipo de
relação estabelecida na família de origem irá fundamentar a conduta do
agressor, ou seja, o comportamento de abuso seria aprendido, seguindo os
modelos familiares, e se manteria porque confere conseqüências positivas ao
agressor, como, por exemplo, o controle sobre outro. Um segundo modelo,
conhecido como cognitivo conductual, propõe uma relação entre emoções,
pensamentos e conduta.
33
Perspectiva jurídica: o propõe a compreensão dos fatores que levam ao
abuso, mas sim, o aumento do número de casos detectados, de denúncias e
de condenação dos agressores.
Vale ainda acrescentar as perspectivas de cunho biologicista, que incidem sobre
a influência dos hormônios sobre o comportamento do agressor ou remetem a
disfunções do sistema nervoso.
Almeida (2006) considera que nenhuma dessas perspectivas é suficiente para
explicar ou resolver o fenômeno, mas as tem como complementares e não
necessariamente contradirias. O autor coloca que um fator importante no tratamento
ao agressor é a sua relação com o abuso, ou seja, se ele justifica, nega suas ações ou
responsabiliza a tima, além do grau de relação que tem com ela. Um dos fatores que
dificultam a aceitação da responsabilidade seria o temor das conseqüências do ato,
como afastamento da família e prisão com atos hostis por parte de policiais e detentos.
Outro fator é o não reconhecimento de seu ato como violento. O autor trabalha no
sentido de haver uma mudança de conduta e de atitude do agressor, estando a conduta
no campo dos hábitos e a atitude no campo das compreensões. Porém, percebe que as
atuais formas de intervenção estagnam na mudança das condutas, pois uma mudança de
atitudes passaria pela reconstrução de representações sociais, fortemente sustentadas na
cultura e na história, e que requer o envolvimento de vários setores sociais na
prevenção, proteção, intervenção e responsabilizão no trato da violência de gênero.
2.2.1 Sobre os autores de agressão sexual
Alguns estudos tomam os depoimentos dos próprios autores de violência,
buscando acessar suas compreensões acerca dos atos cometidos. James Messerschmidt
(2000) lança a questão: como podemos entender a violência sexual praticada por
homens, se não entendemos o que ela significa para o próprio agressor? Este autor trata
particularmente de adolescentes e realiza um estudo com dois ofensores sexuais –
meninos que por meio de coerção ou manipulação tiveram contatos sexuais com pessoas
legalmente incapazes de oferecer consentimento –, analisando suas histórias de vida.
Ele traça alguns aspectos das histórias dos dois jovens, revelando suas concepções
34
acerca da violência praticada. Um dos meninos experenciou diversas formas de
violência em casa, enquanto o outro cresceu num lar afetivo e acolhedor. Ambos
vivenciaram diversas situações humilhantes na escola, e a isso eles atribuíam o fato de
o serem fisicamente atrativos e não estarem em conformidade com o padrão de beleza
idealizado. Os dois apresentavam sentimentos de inadequação e insegurança quanto ao
ideal de masculinidade e impotência diante da incapacidade de revidar às agressões que
sofriam. Sentiam-se também incapazes de terem relações com meninas da mesma idade.
O autor associa a violência e o abuso sexual a situações de desafios à
masculinidade”, onde, sem encontrar outra alternativa para constituir uma “identidade
masculina”, o sujeito recorre a abusos como forma de se localizar como homem na
sociedade. Os sentimentos de inadequação quanto às normas da masculinidade são
atenuados nestas situações de controle e dominação envolvendo o uso do poder sexual.
A violência sexual aparece como uma forma que esses meninos encontram para se
tornarem “verdadeiros homens”.
Lia Zanotta Machado (1998) apresenta um ensaio sobre modalidades de
construção da virilidade, tendo como objeto as falas de nove homens acusados e
condenados por estupro. Entre eles apenas um praticou o estupro contra alguém
próximo, no caso, a esposa. Também apenas um assumiu que a culpa não seria das
mulheres. Os entrevistados faziam referência ao momento do estupro como uma
“fraqueza”, “tentação do demônio”, efeitos da droga ou bebida, algo que atuaria sobre
eles fazendo-os cometer o ato. Quando reconhecem que “erraram”, aparece em suas
falas a idéia de que sempre souberam que podiam se “aproveitardas mulheres, diante
da “oferta”. Virilidade está associada ao lugar simbólico do masculino como lugar da
iniciativa sexual. (Machado, 1998, p.240). Mencionam a fraqueza, supondo que o
homem deve estar sempre disposto à relação sexual, é aquilo que ele tem de mais
natural. Em caso da negação da mulher, cabe ao homem transformá-la em um sim,
entrando em jogo sua capacidade de conquista.
O entrevistado que estuprou a esposa alega que não concordava com o fato desta
trabalhar fora de casa; esta, além de não “obedecer”, o deixou e foi morar com os pais.
O ato da imposição sexual aparece como imposição de poder, reafirmação da identidade
masculina, ao recolocar simbolicamente a mulher em seu lugar hierarquicamente
subordinado. Estuprar guarda o sentido positivo de ‘ter moral de macho’, embora,
35
quando negativamente representado, se associe a cair na tentação do ‘mal’.” (Machado,
1998, p.245). Eles o em seu ato como um estupro, o identificam dessa forma
porque sabem que a mulher disse não. No entanto, espera-se que a mulher diga não,
mesmo querendo dizer sim, pois faz parte do seu jogo de sedução. A mulher seduz e
induz ao estupro, é seu papel provocar. Com exceção de um homem, todos sabem que
tiveram relações com uma mulher que não os queria, mas, afinal de contas, queria.
Fazem uma distinção entre a “mulher direita, de família” e a “vadia, prostituta”,
sendo esta última permitida a todos os homens, que o é possível violar uma mulher
o interditada. O feminino é todo ele pensado como objeto e como interdito [...]
Apresenta-se como a construção de uma sexualidade de gênero que se funda no transitar
entre a posão de seduzir e a posão de esquiva, entre a posição de feminino sagrado e
de feminino impuro.” (Machado, 1998, p.252). Estabelece-se uma ambivalência entre o
estigma de estuprador, quando se reconhece que uma "mulher direita" pode ter sido
estuprada, e a banalização do estupro, quando pensam que nada estão violentando. O
estupro é considerado um dos crimes mais hediondos – inclusive pelos próprios presos –
, como é também o ato mais banal da reafirmação da identidade masculina. Se não é
praticado contra uma "mulher de família", é justificado e a responsabilidade transferida
às mulheres.
Naeemah Abrahams, Rachel Jewkes, Margaret Hoffman e Ria Laubsher (2004)
aplicaram um questionário para 1368 homens trabalhadores da Cidade do Cabo,
envolvidos em relacionamentos significantes nos 10 anos precedentes, procurando
averiguar características pessoais e de relacionamento, bem como o uso de violência
contra suas parceiras. 15,3% dos homens referiram ter agredido sexualmente suas
parceiras. Os fatores associados à violência foram: participação em conflitos sicos fora
do lar, problemas com consumo de álcool, o fato de ter mais de uma parceira e abuso
verbal contra a parceira. Dois tipos de fontes de conflito com a parceira aparecem
associados ao risco de violência sexual: os derivados da recusa sexual e as desavenças
provenientes do desafio à autoridade do homem. Segundo as autoras, uma importante
relação entre violência sexual e o ideário das relações de nero. Nos relatos aparece
um suposto direito do homem a ter acesso sexual à sua parceira quando têm vontade,
noções patriarcais de masculinidade envolvendo posições hierárquicas distintas de
gênero e definições de sucesso masculino em termos de controle sobre a mulher.
36
Núbia Angélica de Jesus (2006) apresenta um estudo realizado com um homem
que cumpria pena há 11 anos por atentado violento ao pudor contra dois adolescentes,
um de 13 e outro de 14 anos. Foram realizadas 29 sessões de atendimento, em encontros
semanais. A autora relata que ele começou a trabalhar em fazendas quando ainda
criança, e aos 10 anos foi violentado por seu patrão, sendo privado de liberdade,
sofrendo sucessivas agressões durante três dias. Em seguida, conseguiu fugir e nunca
contou a ninguém sobre o que aconteceu. Ao falar sobre o abuso que praticou, diz que
queria descontar em outros o que havia acontecido com ele, como uma forma de
exteriorizar a raiva que sentia. Ele expressava o desejo de se sentir forte, poder
manipular o medo do outro e humilhar, invertendo a situação anterior. Dessa forma, a
prática da violência ganha outra dimensão que não a busca de satisfação sexual. O
sentido da psicoterapia foi voltar ao passado repetidas vezes para que ele pudesse
reviver alguns sentimentos e resignificar o abuso sofrido, podendo assumir uma outra
posição e romper com o ciclo de violência.
Figueiredo (2000) menciona uma pesquisa realizada em 1990 com "estupradores
convictos", que tinha como foco de investigação o vocabulário de motivos apresentados
por estes, como eles interpretam e explicam seus atos, de modo a lhes conferir uma
imagem social e culturalmente aceitável. Discursivamente falando, eles são
enquadrados em duas categorias: "admitters" e "deniers". Os admitters utilizam
desculpas para explicar porque seu comportamento foi um estupro, porém não se
consideram estupradores. Os deniers admitem que o estupro habitualmente o é
permissível, mas, questionados sobre isso em seus casos particulares, apresentaram
justificativas que tornaram seu comportamento apropriado. A tima e seu
comportamento eram frequentemente descritos pelos deniers de forma que o estupro
fosse situacionalmente aceitável. A autora conclui que: the mastery of a certain
vocabulary seemed to be basic in the process of learning to accept, justify and carry out
a rape” (Figueiredo, 2000, p.38). O estupro é considerado, sob esse ponto de vista,
comportamento aprendido, adquirido da mesma forma como qualquer outra forma de
comportamento: socialmente, em associação direta com os outros, bem como
indiretamente por meio do contato cultural, aduzindo que aprender inclui não apenas
repetição de comportamento, mas também a assimilação de crenças e valores, que são
compatíveis com agressões sexuais contra as mulheres.
37
Walter R. Mora (2002) se propõe a traçar um perfil de jovens agressores sexuais
inseridos em um programa de tratamento em Costa Rica. Foram entrevistados 34
adolescentes. Alguns resultados que o autor verificou foram: 79,4% viviam com a mãe e
o pai, sendo que o restante contava apenas com a mãe, encarregada do lar; 76,5%
cometeram abusos desonestos” – carícias nos genitais, masturbação, sexo oral, e 23,5%
violação; 79,4% cometeram o abuso antes dos 15 anos de idade, sendo que este número
sobe para 97% entre os que o cometeram antes dos 17; 85% tiveram educação sexual
nas escolas ou em seus lares, baseada principalmente nas mudanças físicas pelas quais
passam os jovens (59%); 88,2% deles tinham uma relação próxima com a tima, sendo
que 44% eram iros; suas timas eram na maioria meninas (85,3%); 88,2% tinham
acesso à pornografia; 47,1% possuíam uma história de transtornos de conduta (roubo,
fuga do lar, agressividade); 35,2% haviam sofrido algum tipo de abuso, onde destes
41,7% correspondia a abuso físico, 33,3% a abuso sexual e 25% emocional; 91% deles
reconheciam a sua responsabilidade diante do fato ocorrido; 50% explicavam como um
desejo de experimentar novas sensações, 23,5% mencionaram fantasia sexual, 20,6%
indicaram um desejo incontrolável. O autor conclui que,
la educación sexual dirigida hacia lo biológico, el acceso a la
pornografía sin la guía de un adulto responsable, las historias de
violencia de los adolescentes en sus hogares, la falta de contención
en el hogar y las distorsiones de la sexualidad y masculinidad,
figuran como elementos relevantes para la predicción y prevención
de los delitos sexuales en jóvenes (Mora, 2002).
O autor descreve alguns aspectos que aparecem em comum entre os
adolescentes entrevistados, como elementos a se levar em conta para predizer uma
conduta sexual abusiva, como possíveis fatores de risco. Porém, no meu entender, não
podem ser tomados como determinantes, visto que muitos jovens vivenciam as mesmas
situações sem incorrer em nenhuma forma de violência, e que nem todos os autores de
abuso tiveram experiências similares. Ele remete os delitos sexuais a uma forma
anormal de desenvolvimento, distorções da sexualidade ou, ainda, uma reação
desadaptada, não deixando claro, entretanto, o que isto significa.
Explicações semelhantes são encontradas nos trabalhos internacionais. A
maioria das referências acessadas, provenientes principalmente da Europa, Estados
Unidos, Canadá e Austrália, tratam de relatos de experiências de tratamento ou outras
38
formas de intervenção com adolescentes autores de abuso sexual. Em geral trazem
dados compilados de diversos autores, abordando questões como perfil dos
adolescentes, determinantes da violência, características da agressão, abordagem de
trabalho, entre outras. No entanto, não me pareceram muito esclarecedores na medida
em que mencionam tais dados de pesquisas feitas por estes autores sem nenhuma
contextualização. As pesquisas se inserem principalmente nas perspectivas
comportamentalistas, em relação estreita com a psiquiatria.
Em geral, explicam a prática de abusos sexuais como efeitos de abusos sexuais
anteriormente sofridos (distúrbio de estresse pós-traumático) ou imitação de modelos de
comportamento agressivo na interação com os outros. Em referência aos adolescentes,
elencam uma série de características que seriam comuns a eles: dificuldades de
aprendizagem; abuso de drogas; distúrbios de conduta; comportamentos impulsivos e
compulsivos; déficit de auto-estima e de competência social, bem como dificuldade para
formar e manter relações interpessoais saudáveis; delinqüência; imaturidade; problemas
de saúde mental significativos; etc. (Whittle, Balley e Kurtz, 2006; Ryan et al, s/d;
CSOM, 1999). O que se pode concluir é que a prática do abuso sexual seria apenas mais
um "distúrbio de conduta", indicativo de uma personalidade disfuncional.
Não fica claro nesses trabalhos o que definem por abuso sexual. Como destaca o
relatório da Save the Children (2000), as primeiras intervenções com jovens autores de
abuso tendiam a considerar que eles estavam apenas experimentando, que suas
agressões eram mais leves comparadas às perpetradas por adultos, e que parariam de
cometê-las à medida que crescessem. Ao se darem conta disso, as intervenções que se
seguiram passaram a considerar que nenhuma situação se tratava de experimentação,
que todos eram agressores perigosos e que nenhum deixaria de cometer abusos ao
crescer. Nos Estados Unidos, por exemplo, crianças que cometiam abusos eram
consideradas "mini-agressoras" ou "mini-pervertidas". Atualmente, o relatório aponta
que os casos têm sido avaliados de forma individual, adequando a duração, intensidade
e o programa indicado ao jovem conforme nível de risco, necessidades terapêuticas e
situação de vida.
Como se pode observar, a maioria dos estudos nacionais aqui apresentados
utiliza a perspectiva de gênero, estabelecendo relações entre o ideário de masculinidade
e a prática de violência. Esta aparece como uma forma de assegurar a masculinidade,
39
como parte do poder do macho, que se impõe e deve manter o controle sobre os outros.
A violência contra a mulher é legitimada como um direito do homem para garantir a
manutenção da ordem e da obediência. A imposão de práticas sexuais é banalizada
como algo que foge do controle do homem, cabendo à mulher se proteger. Fica visível o
quanto as configurações sociais de nero corroboram para a instauração da violência
sexual. Esta se apresenta como "um ato pseudo-sexual, um padrão de comportamento
sexual que se ocupa muito mais com o status agressão, controle e donio do que com o
prazer sexual ou a satisfação sexual. Ele é comportamento sexual a serviço de
necessidades não sexuais.” (Kolodny, Masters e Johnson, 1982, citado por Andrade,
2005, p.96).
Como destaca Rodrigues (2006), "as violências devem ser vistas, como todo
comportamento, a partir de seu contexto social, como engendradas pela interação social,
e definidas em termos de todas as complexidades de situações particulares" (p.34).
Diante da complexidade de queses acerca das raízes da violência, para Kaufman
(1995) o essencial não está em saber se o homem possui uma predisposão para a
violência, mas no que a sociedade faz com essa violência.
2.3 ASPECTOS JURÍDICO-NORMATIVOS DA VIOLÊNCIA SEXUAL NO BRASIL
Ao tratar com sujeitos identificados por um sistema de controle, que cumprem
medidas corretivas/protetivas designadas pelo Conselho Tutelar ou Poder Judiciário,
fez-se necessário percorrer o tratamento dado à violência sexual e aos autores de
agressão sexual no meio jurídico, posto que minha principal via de acesso aos sujeitos
foi por esse meio.
A Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988) reconhece pela primeira vez o
fenômeno da violência familiar, e estabelece, no Art.226 parágrafo 8º, que “O Estado
assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando
mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”. Dessa forma, a
violência doméstica é tomada como uma obrigação do Estado e não mais como um
assunto do âmbito privado. Os tratados e convenções internacionais sobre direitos
humanos ratificados pelo governo brasileiro são equivalentes às emendas
40
constitucionais (Art. § 2º), incluindo os relativos aos direitos humanos das mulheres
como a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a
mulher, de 1979, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher, de 1994 e a Convenção Internacional dos Direitos da
Criança, de 1990 (Souza e Adesse, 2005).
Na legislação vigente a violência sexual enquadra-se como ‘crimes sexuais’, que
se desdobram em uma série de tipificações, mas aqui vou me ater às que ocorrem com
mais freqüência, conforme atestam Cecília de Melo e Souza e Leila Adesse (2005), e
que são de nosso interesse: o estupro e o atentado violento ao pudor (AVP). No Código
Penal (CP) (Brasil, 1940) estão dispostos no Título VIDos crimes contra os costumes,
Capítulo I – Dos crimes contra a liberdade sexual, e são assim definidos:
Estupro: Art. 213 – Constranger mulher à conjunção carnal, mediante
violência ou grave ameaça.
AVP: Art. 214 Constranger alguém, mediante violência ou grave
ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso
diverso da conjunção carnal.
Esses crimes agrupam-se na Lei 8.070/1990 que dispõe sobre os crimes
hediondos, seja na forma simples ou qualificada, quando resultam em lesão corporal de
natureza grave ou morte. Neste último caso, a pena a ser cumprida pelo acusado é
aumentada. Se a vítima é menor de 14 anos; é alienada ou débil mental, e o agente
conhecia esta circunstância; ou não pode, por qualquer outra causa, oferecer
resistência”, a violência é presumida (Art. 224, CP, Brasil, 1940), ou seja, independe do
uso de força ou ameaça.
A violência sexual aparece ainda na Lei 11.340/2006, conhecida como Lei
Maria da Penha, criada para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a
mulher. No Art. 7º é citada como uma das formas de violência que a mulher vivencia no
ambiente familiar, entendida como:
qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a
participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação,
ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a
utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar
qualquer todo contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à
gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem,
41
suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus
direitos sexuais e reprodutivos (Brasil, 2006, s/p).
De acordo com o Art. 225 do CP (Brasil, 1940), a ação penal se deriva de
decisão privada, mediante queixa, ou seja, é a vítima ou seus responsáveis legais que
decidem mover a ação contra o agressor. Se o crime é cometido com abuso de pátrio
poder, pelo padrasto, tutor ou curador, se a família da tima não pode arcar com as
despesas do processo ou se acarreta em lesão grave ou morte, é movida então uma ação
pública, sendo que a ação do Ministério Público depende de representação da tima no
primeiro caso.
A pena por estupro ou atentado violento ao pudor pode ser de reclusão, de seis a
dez anos, sendo que nas formas qualificadas sobe para de oito a 25 anos. Ela é
aumentada em metade se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão,
cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por
qualquer outro título tem autoridade sobre ela” (Art. 226, CP, Brasil, 1940).
As relações incestuosas cometidas por pai, padrasto ou responsável legal o são
consideradas como crime em si, mas, como foi colocado, acarretam no agravamento da
pena. Joana Domingues Vargas (1999) buscou averiguar uma possível diferença no
tratamento dado a agressores conhecidos e desconhecidos da vítima no Sistema de
Justiça Criminal. Ela verificou que “os suspeitos conhecidos, principalmente familiares
[...] são os mais culpabilizados pelo sistema [...] os autores desconhecidos parecem só
ser penalizados quando cometem estupros considerados graves(Vargas, 1999, p.79).
Ficou visível “a predisposição [...] em punir o incesto [...] a absolvição, nestes casos, é
decorrente sobretudo da atitude das vítimas de desmentir a queixa” (idem, p.79). Alguns
fatores estão aqui implicados: há grande dificuldade para comprovação da materialidade
do estupro, a palavra da vítima é a maior prova; em muitos casos de autor desconhecido,
o suspeito não é identificado a partir do trabalho de investigação da pocia; é comum a
retirada da queixa quando o agressor tem uma relação próxima com a tima; os exames
de perícia médica o costumam ser conclusivos; entre outros. Tais aspectos dificultam
consideravelmente o seguimento dos processos por crimes sexuais.
Não uma completa convergência entre dados encontrados nas pesquisas sobre
os autores de agressão, como defende Vargas (1999), porém m-se observado com
freqüência que, em geral, os agentes são pessoas próximas da tima, mantendo na
42
maioria das vezes grau de parentesco com ela (Ribeiro, 2004; Dantas-Berger e Giffin,
2005; Gryner, 2003; Araújo, 2002). Outras pesquisas indicam que, quando os agredidos
são crianças, os autores do abuso costumam ser parentes na maior parte dos casos,
porém, quando se tratam de mulheres adolescentes ou adultas, as agressões sexuais são
praticadas por desconhecidos (Ministério da Saúde, 2004; Drezett, 2000). Deve-se
considerar que tais dados referem-se a situações registradas. Nesse ínterim, o número de
agressões perpetradas por familiares ou parceiros íntimos pode ser maior, porém são
menos publicizadas.
Álvaro Morales e Fermin Schramm (2002) analisam a moralidade do abuso
sexual em crianças e adolescentes, levando em conta as questões éticas da dinâmica do
abuso sexual intrafamiliar. Crianças e adolescentes são reconhecidos pela falta de
experiência, competência e maturidade. Duas correntes se oem quanto ao seu
estatuto: a protecionista argumenta que crianças e adolescentes estão ainda em condição
de vulnerabilidade, requerendo tutela e representação por parte dos adultos; a
liberacionista se oe a essa perspectiva, considerando-a uma forma de opressão
paternalista e defende direitos iguais para aqueles. Estabelece-se uma controrsia: “em
nome de um novo direito do menor ao acesso aos direitos tradicionalmente reservados
aos adultos, a comar pelo direito à sexualidade e ao prazer [...] resultaria do conflito
entre a proteção do menor, por um lado, e sua autodeterminação, por outro” (Morales e
Schramm, 2002, p.266). Via de regra, a relação entre adultos e crianças e adolescentes é
concebida com base numa estrutura de poder assimétrica e se configura como abuso,
quando o adulto ocupa uma posição de vantagem por ter mais idade ou possuir
autoridade. “Uma relação sexual o é moralmente legítima quando uma ou ambas as
partes carecem da capacidade de consentir, livre e espontaneamente, ao ato sexual,
amplamente entendido” (idem, 2002, p.269).
Casos de violência em que a tima é criança (até 12 anos) ou adolescente (12 a
18 anos incompletos) possuem algumas particularidades. A notificação deve ser feita ao
Conselho Tutelar, que tomará providências legais e sociais. De acordo com o Protocolo
de Atenção às Vítimas de Violência Sexual do Município de Florianópolis
9
, a criança ou
adolescente deve ser encaminhada ao hospital, que acionará o Departamento de Polícia
9
Produzido pela Rede de Atenção Integral às Vítimas de Violência Sexual/Prefeitura Municipal de
Florianópolis, 2002.
43
para registro obrigatório do BO; o dico legista é chamado ao hospital para exame de
corpo de delito.
Atos infracionais
10
praticados por crianças ou adolescentes são processados com
base no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Brasil, 1990). Em caso de
infração cometida por criança, deve ser aplicada Medida de Proteção, conforme Art.
101. Quando o infrator é um adolescente, são aplicadas Medidas Socioeducativas, de
acordo com Art. 112, que correspondem a:
I - advertência;
II - obrigação de reparar o dano;
III - prestação de serviços à comunidade;
IV - liberdade assistida;
V - inserção em regime de semi-liberdade;
VI - internação em estabelecimento educacional;
VII - qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI (a saber: I - encaminhamento
aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade; II - orientação, apoio e
acompanhamento temporários; III - matrícula e freqüência obrigatórias em
estabelecimento oficial de ensino fundamental; IV - inclusão em programa comunitário
ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente; V - requisição de tratamento
dico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; VI -
inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a
alcoólatras e toxicômanos).
Adolescentes que cometem atos infracionais o de competência do Poder
Judiciário, que determina o tipo de medida a ser cumprida. Pom, quando a medida
indicada é de proteção, o Conselho Tutelar tem a atribuição de aplicá-la. Os órgãos
diretamente comprometidos no tratamento da violência sexual envolvendo crianças e
adolescentes no município investigado são a Vara da Infância e da Juventude, a
Delegacia Especializada de Atenção à Mulher, à Criança e ao Adolescente, programas
que acompanham o cumprimento de medidas (Liberdade Assistida, Semi-Liberdade,
Centros Educacionais e de Internação Provisória) e programas de proteção (Sentinela,
Conselho Tutelar). Não de fato um programa voltado a autores de agressão sexual
que forneça atendimento específico, como no caso das timas. Essa era a proposta do
10
Conduta descrita como crime ou contravenção penal.
44
Projeto Fênix, que, no entanto, deparou-se com a morosidade dos órgãos públicos
responsáveis pelo encaminhamento dos jovens e a dificuldade para estabelecer um
protocolo estruturado para tal. Essa, inclusive, foi umas das diligências do projeto.
Tratava-se de um trabalho com a intenção de englobar todos aqueles envolvidos
de alguma forma com a situação de violência, visando a interrupção do ciclo de geração
e reprodução desta. Este projeto enfatizava a necessidade de atenção aos autores das
agressões, tendo como objetivo propiciar aos adolescentes autores de crimes sexuais a
responsabilização pelo ato, potencializando uma vivência sexual saudável. (Luiz, 2007).
A legislação atual vislumbra a implementação de programas de atendimento
que envolvam os agressores. A Lei Maria da Penha dispõe no Título V/Art.30 que os
Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher podem contar com uma
equipe de atendimento multidisciplinar, a quem compete desenvolver trabalhos de
orientação, encaminhamento e prevenção para a mulher, o agressor e os familiares
(Brasil, 2006). Porém, não se trata de uma determinação a ser cumprida, e apenas se
aplica àquilo que se caracteriza como violência doméstica, não abarcando, portanto,
violências que não se enquadrem dessa forma. Ainda assim, se pode observar uma
mudança de perspectiva na qual o homem passa a ser incluído nas poticas para
promoção da saúde e bem-estar social, especialmente no que se refere à violência contra
mulheres e crianças, envolvendo-os na luta pela igualdade de gênero.
45
3. MÉTODO
O todo aqui utilizado se configura como qualitativo, na medida em que se
direciona para o universo de significados, para as motivações, crenças, valores, sendo
este aspecto característico desse tipo de pesquisa, como aponta Maria Cecília de Souza
Minayo (1999). Optei por este método por apresentar menor rigidez e possibilitar o
acesso àquilo que se pretende investigar, qual sejam, os sentidos da violência
identificados nas falas dos sujeitos, buscando compreender o processo de construção de
significados e acessar suas histórias de vida particulares. “Numa busca qualitativa,
preocupamo-nos menos com a generalização e mais com o aprofundamento e
abrangência da compreensão seja de um grupo social, de uma organização, de uma
instituição, de uma potica ou de uma representação” (Minayo, 1996, p.102).
Na perspectiva da produção de sentidos como abordagem teórico-metodológica,
se trabalha com a idéia da explicitação dos processos por meio dos quais as pessoas
descrevem e explicam o mundo em que vivem, rejeitando a existência de uma realidade
material que contenha significados fixos e universais. Trata-se de um processo
interativo, socialmente construído, datado e localizado num contexto, que permite lidar
com as situações e fenômenos do mundo social, orientado por práticas discursivas.
Esse processo de significação engendra e posiciona os sujeitos em redes discursivas,
fazendo com que produzam determinado modo de ser e de viver” (Guareschi et al,
2006, p.125).
Propõe-se, assim, partindo das falas dos adolescentes entrevistados, averiguar
que sentidos atribuem à prática do abuso sexual, e, a partir disso, de que maneira se
percebem, na medida em que foram identificados como agressores. Busquei investigar
valores e crenças que estariam norteando suas condutas, quais suas motivações para a
prática do ato, como percebem o sujeito agredido e possíveis danos resultantes.
Ao entrevistar os profissionais direta ou indiretamente ligados ao campo
judicial, busquei identificar os discursos circulantes nesse meio, que embasam suas
práticas e determinam o modo de tratamento conferido aos sujeitos por eles atendidos,
entendendo que as noções culturais e ideológicas acerca das relações sociais, em
especial as relações de gênero, circunscrevem as práticas e os textos judiciais, que por
46
sua vez constroem e reforçam as noções de comportamento social e sexual. O discurso
jurídico sobre a violência sexual se sustenta em modelos que não são restritos ao
sistema legal, mas funciona simbioticamente com a forma como a violência sexual é
tratada na sociedade como um todo (Figueiredo, 2000).
A seguir serão descritos os procedimentos para localização dos sujeitos,
levantamento de informações e análise das mesmas.
3.1 O PERCURSO DO CAMPO
Primeiramente considero importante pontuar alguns aspectos que se
evidenciaram no decorrer do trabalho de pesquisa. Ficou muito clara a dificuldade em
abordar o tema, ainda mais em se tratando de jovens como os autores de agressão. Foi
difícil encontrar sujeitos para pesquisa, pois não há um protocolo de intervenção
estruturado para adolescentes que cometem crimes sexuais, a não ser aquele que atende
atos infracionais como um todo. Percorri diversos espaços que de alguma forma
intervêm nessas situações, e verifiquei algumas informações desencontradas quanto ao
processo pelo qual o jovem deveria passar. Na Vara da Infância e da Juventude não
existem dados compilados que forneçam informações como idade do agressor, tipo de
delito cometido, cumprimento de medida. Em visita a esta instituição, consegui apenas a
informação de quantos casos foram atendidos no período entre janeiro e setembro de
2007: 703 atos infracionais, sendo um deles uma situação de estupro. No entanto, não
obtive a informação do que foi feito neste caso. De qualquer forma, uma das promotoras
entrevistadas mencionou a questão do sigilo, e, portanto, ela não poderia identificar os
jovens atendidos nessa instituição.
Segundo o juiz da Vara da Infância e da Juventude, para os casos de abuso
sexual perpetrados por adolescentes, em geral, é aplicada a medida sócio-educativa de
Liberdade Assistida. No entanto, ao entrevistar a coordenadora deste programa, ela
mencionou que poucos casos ali atendidos são decorrentes de abusos sexuais, não tendo
lembrado de nenhum específico, afirmando que o Programa Sentinela seria responsável
por esse atendimento. Porém, não foi o que verifiquei na entrevista com a coordenadora
deste programa. Em geral, os profissionais contatados mencionam ter atendido poucos
47
casos de violência sexual praticada por adolescentes. Fica a dúvida se realmente a
incidência é baixa ou se há pouca visibilidade.
Percebi também um receio por parte de alguns profissionais responsáveis quanto
ao consentimento para a realização de entrevista sobre a temática proposta, numa
intenção, acredito, protetora, por se tratar de um assunto mobilizador, que traria
lembranças que foram suprimidas e assim deveriam permanecer. Acreditava-se que
poderia também ser contraproducente entre aqueles que estavam em processo
terapêutico, pois o foco de abordagem era justamente o problema que os levou para
atendimento.
Num outro plano, deparei-me ainda com a recusa dos que concederam a
entrevista em falar sobre o ocorrido. O fato de eu não ter vínculo com esses jovens, ou
seja, uma relação de confiança para que eles pudessem falar abertamente sobre o
assunto, foi um dos motivos, acredito, para esta recusa. Além disso, eles não tinham
garantia, além da minha palavra, de que o que fosse dito ficaria em sigilo e não lhes
traria implicações ou represálias. Trata-se também de um tema que provoca sentimentos
de vergonha e culpa. A moralidade que permeia o sexo faz deste um assunto da ordem
do privado, que deve ser mantido em segredo. Isso se realça ao se tratar de uma situação
identificada como violência. Outro fator que acredito ter sido relevante, foi o tempo
decorrido entre a ocorrência do fato até o momento da entrevista - haviam se passado
anos.
Além das dificuldades de ordem prática, ressalto também a inquietação
provocada em estar tratando um tema como este. Esteve sempre presente a preocupação
de não culpabilizar o sujeito, mas ao mesmo tempo tendo em mente que seu ato podia
ter provocado sofrimento em outra pessoa. digos morais e regras de boa conduta
perpassavam esse trajeto, sendo necessário um exercício de reconstrução, para deixar
emergirem os sujeitos em suas particularidades. Mas, ao ponto de tornar uma situação
de abuso sexual tolerável? Mesmo quando surgia a questão: será que se trata de fato de
um abuso? Até que ponto não houve consentimento da outra parte? E se houve, deixa de
ser uma violência, em se tratando de crianças? Têm as crianças e adolescentes
condições de fornecer consentimento? O envolvimento em atos sexuais, em sua ampla
acepção, requer necessariamente um tal grau de racionalidade, indicativa da capacidade
de decisão? Em que momento estamos falando de moralidade e em que momento de
48
proteção? A que ponto estava assumindo uma postura crítica, ao questionar certas
normas, ou estava sendo por demais conivente e permissiva? O fato de não ter tido
contato com as vítimas talvez tenha favorecido esse distanciamento. Ouvi algumas
vezes, seja por parte de profissionais que atendem crianças abusadas ou das pessoas em
geral, a afirmação de que, diante delas, o reflexo primeiro é pensar no agressor como
um ser cruel, perverso, desprovido de sentimento, cujo único destino deve ser a prisão,
com uma ponta de desejo de que ele sofra em dobro todo o sofrimento que ele
provocou, tal qual. Enfim, penso que talvez não tivesse que responder a essas questões,
deixando os sujeitos falarem por si mesmos.
3.2 LOCALIZAÇÃO DOS SUJEITOS E PROCEDIMENTO PARA LEVANTAMENTO DE
INFORMAÇÕES
Participei por um período do projeto da Rede de Atenção Integral a Vítimas de
Violência Sexual – Projeto nix – que oferecia assistência a crianças e adolescentes em
situação de violência sexual, tanto na condição de timas como de vitimizadores, bem
como seus acompanhantes. Pude acompanhar junto à equipe a dificuldade para os
encaminhamentos dos jovens, dificuldade essa por parte dos próprios profissionais que
seriam responsáveis, por não haver naquele momento um protocolo estruturado para tal.
Uma das atividades do projeto foi inserir essa possibilidade de trabalho com o autor de
agressão no protocolo da rede de atendimento. Os jovens que chegavam ao projeto
teriam cometido o abuso muitos anos antes, evidenciando-se a demora no tratamento de
situações como essas. Além disso, apesar de terem sido encaminhados por meio do
Juizado da Infância e Juventude, o havia um acompanhamento preciso pelos meios
legais que os fizessem cumprir com os atendimentos. Acompanhei o desenvolvimento
do projeto por cerca de um ano, participando das reuniões semanais para estruturação e
planejamento dos atendimentos. Decorrido esse tempo, acabei por me afastar, devido à
falta de atividades nas quais eu pudesse estar envolvida, visto não ter sido formado o
grupo como proposto de início, tendo sido realizados apenas atendimentos individuais.
Ainda assim, mantive contato com os profissionais envolvidos, o que me permitiu
posteriormente ter acesso a dois jovens que participaram do projeto como praticantes de
49
abuso. Realizei também uma entrevista com a psicóloga que os atendeu, no intuito de
obter informações sobre a experiência de trabalho com os jovens e possíveis resultados
alcançados. Esta aconteceu em sua residência, com o uso do gravador.
Ao percorrer os diversos espaços pelos quais passam os adolescentes que
cometem crimes sexuais, no intuito de procurar sujeitos para participar da pesquisa,
entrevistei também alguns profissionais que atuam diretamente com essa população,
buscando investigar quais as concepções acerca da violência sexual, como este
problema é lidado, quais as implicações para o adolescente, que tipo de intervenções são
realizadas e os resultados de tais intervenções. O roteiro de entrevista utilizado era
elaborado previamente ao encontro, conforme a especificidade das situações, mas, tendo
em vista os temas citados (Apêndice 1). Entre as instituições identificadas estavam:
Conselho Tutelar; Delegacia Especializada de Atenção à Mulher, à Criança e ao
Adolescente; Juizado e Promotoria da Vara da Infância e da Juventude; Programa
Sentinela; Programa Liberdade Assistida; Centro Educacional e de Internamento
Provisório. A seguir descrevo em detalhes as instituições visitadas.
Conselho Tutelar: Mediante exigência da coordenadora do Projeto Fênix para a
realização de entrevistas com os adolescentes participantes do mesmo, busquei
autorização dos conselheiros responsáveis pelo encaminhamento dos jovens, localizados
em duas unidades diferentes. Um deles me concedeu entrevista, no entanto, não
permitiu que fosse gravada, havendo, portanto, grande perda de informações.
Centro Educacional e de Internamento Provisório: Visitei o centro com o
intuito de verificar se havia adolescentes em regime de internação pela prática de crimes
sexuais. Naquele momento não havia nenhum. Segundo informação cedida pela
assistente social que me atendeu, em geral os poucos meninos que são encaminhados
para lá não permanecem por muito tempo, pelo perigo de haver represálias por parte dos
demais internos, caso haja vazamento de informação. Eles costumam ser transferidos
para outras instituições que internam um número menor de adolescentes, usualmente no
interior do estado.
Hospital Infantil: conforme consta no Protocolo da Rede de Atenção Integral às
Vítimas de Violência Sexual, crianças e adolescentes vitimizadas/os são
encaminhadas/os para o Hospital Infantil para exame de corpo de delito. A partir do
contato com uma psicóloga conhecida, esta me concedeu um telefone de uma pessoa
50
que atua no hospital na unidade de atendimento a essas crianças e adolescentes. A idéia
inicial seria que, por meio das timas, eu tivesse informações a respeito dos autores de
agressão. Tentei por duas vezes marcar uma entrevista, mas ela não pôde comparecer.
Porém, por telefone esta me informou que para ter acesso aos prontuários e um possível
contato com as timas, eu teria que entrar com um pedido de estágio para inserção no
hospital, inviabilizando, portanto, meu acesso por esse meio.
Cidade da Criança: Trata-se de um complexo que desenvolve diversos
programas de atenção à criança e ao adolescente. Entre estes programas estão o
Sentinela e o Liberdade Assistida. No Programa Sentinela (serviço de enfrentamento à
violência, abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes) duas famílias estavam
em atendimento decorrente de uma situação de abuso perpetrada por adolescente. Em
um dos casos, o menino compareceu apenas três ou quatro vezes para o atendimento em
dois anos. Ou seja, não obrigatoriedade quanto ao cumprimento. O segundo, estava
iniciando com os atendimentos, não sendo possível, portanto, entrevista-lo, visto não ter
sido feito ainda o diagnóstico situacional. Vale salientar que o foco desta instituição são
as timas de violência, sendo assim o trabalho com o agressor é secundário ele é
envolvido nos atendimentos apenas se for um membro da família. Quanto ao Programa
Liberdade Assistida, trata-se de uma medida sócio-educativa que presta
acompanhamento e orientação ao adolescente autor de ato infracional. Naquele
momento não havia nenhum adolescente cumprindo medida decorrente de crime sexual.
Realizei entrevistas com as coordenadoras dos dois programas, bem como com uma das
psicólogas que estava atendendo uma família por situação de abuso praticada por
adolescente. Todas elas aconteceram no próprio complexo, de forma individual, em
salas onde eram realizados os atendimentos, com a utilização do gravador.
Vara da Infância e Juventude: obtive o contato da assessora do juiz desta
comarca com a atendente do SOS Criança, localizado na Cidade da Criança. Nessa
instituição pude entrevistar o juiz e duas promotoras. A primeira entrevista foi realizada
no próprio escritório do juiz. Na realização da segunda entrevista, em momento
posterior, estavam presentes as duas promotoras, sendo que uma delas o pôde
permanecer durante todo o tempo. Todos/as consentiram o uso do gravador.
Delegacia Especializada de Atenção à Mulher, à Criança e ao Adolescente:
Minha inserção nesta instituição se deu por meio de um outro projeto desenvolvido pelo
51
Núcleo Margens, referente à investigação e identificação dos padrões de violência
encontrados nos relatos de boletins de ocorrência
11
. Com o desenvolvimento das
atividades estabeleci contato com os/as psicólogos/as que ali atuam, sendo uma delas
responsável pelo atendimento a jovens autores de ato infracional. Esta me concedeu
uma entrevista, realizada em uma sala na delegacia. Mantive um contato freqüente com
a mesma, que se diss a me comunicar quando houvesse casos registrados de crimes
sexuais. Ela me indicou um menino que havia sido retirado da Casa Lar em que vivia
por ter abusado sete crianças menores. Fui chamada para conversar com ele, porém, no
atendimento com a psicóloga, este se recusou a falar a respeito, sendo assim não foi
possível entrevistá-lo.
Casa Lar: A partir de um contato em uma instituição de formação para
psicólogos, soube de um trabalho que havia sido realizado em uma Casa Lar para
meninos que foram destituídos de suas famílias, a partir de uma demanda de contenção
de situações de abuso que estavam ocorrendo na casa. Assim, fiz uma visita ao
estabelecimento e entrevistei a coordenadora da mesma, bem como um menino por ela
identificado como praticante de abuso sexual. As entrevistas aconteceram no mesmo
dia, em momentos diferentes, em uma sala da residência, com a utilização do gravador.
O objetivo da entrevista com a coordenadora diferiu da realizada com os demais
profissionais, pois teve o intuito de esclarecer as situações de abuso que ocorriam na
casa e averiguar quais foram as providências tomadas. Visitei ainda uma outra unidade,
porém, em conversa com as assistentes sociais, estas me informaram que não havia
ocorrências de abusos sexuais naquele estabelecimento. Esta mesma informação me foi
dada por uma psicóloga que trabalhava como voluntária em uma terceira unidade, que
indicou nunca terem sido identificados casos de abuso.
A seguir apresento tabela sinóptica com a relação dos profissionais entrevistados
e respectivas instituições de atuação (Tabela 02).
11
Recorte do projeto “Violência sexual e saúde mental: análise dos programas de atendimentos a homens
autores de violência sexual”, anteriormente mencionado.
52
Tabela 02: Relação de profissionais entrevistados*.
Nome Instituição Cargo/Função
A. S.
Delegacia Especializada de Atenção
à Mulher, à Criança e ao Adolescente
Psiloga
B. M.
Programa Sentinela Coordenadora
F.
Programa Sentinela Psiloga
M. R.
Liberdade Assistida Coordenadora
F. O.
Juizado da Infância e Juventude Juiz
A. L. e V.W.
Promotoria da Infância e Juventude Promotoras
D. A.
Projeto nix Psiloga
* Todos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Apêndice 2).
3.2.1 Os adolescentes identificados como praticantes de abuso sexual e
respectivas responsáveis
Foram entrevistados três adolescentes, que se encontravam em situações bem
diversas. O primeiro deles, Diogo
12
, 15 anos, era morador de uma Casa Lar, identificado
como praticante de abuso sexual pela coordenadora da residência. Esta foi a mediadora
para a realização da entrevista. Diogo o foi notificado às instâncias legais por não ter
sido confirmado o abuso. Optou-se naquele momento por realizar um trabalho de
orientação e prevenção com todos os moradores da casa. Por intermédio da
coordenadora o adolescente consentiu em participar da pesquisa. A entrevista foi
realizada em uma sala na Casa Lar e durou cerca de 20 minutos. A coordenadora
assinou o termo de consentimento (Apêndice 3).
Os outros dois entrevistados participavam naquele momento dos atendimentos
oferecidos pelo Projeto Fênix. Obtive autorização dos conselheiros tutelares
responsáveis pelo encaminhamento dos adolescentes, da coordenadora do projeto, da
psicóloga que os atendia, bem como das mães dos meninos, para a realização das
entrevistas. Ambas aconteceram individualmente, em uma sala cedida no CAPs-AD
(local onde se realizavam os atendimentos), com a utilização do gravador. Os
adolescentes chegaram acompanhados de suas mães, que assinaram o termo de
consentimento. foi possível realizar as entrevistas dado o encerramento do projeto.
Até então, acreditava-se que poderia ter efeitos negativos para o andamento do trabalho.
12
Nomes fictícios.
53
O convite para participar da pesquisa foi feito aos adolescentes pela psicóloga do
projeto (D.A.), obtendo consentimento dos dois. O primeiro, Wilmar
12
, 15 anos, foi
notificado por ter abusado sexualmente uma menina de seis anos na época. Cumpriu a
medida cio-educativa de Liberdade Assistida, sendo posteriormente encaminhado ao
projeto. Dispôs-se a ceder entrevista, mas não forneceu muitas informações,
respondendo apenas o que eu perguntava, de forma muito breve. Diante disto, conversei
também com sua mãe, Ana, o que me possibilitou colher mais informações sobre o
caso. As entrevistas duraram em média 15 minutos cada.
O segundo, Lucas
12
, 16 anos, foi notificado por prática de abuso sexual contra
um menino dois anos mais novo e encaminhado ao projeto. No entanto, conforme
indicado por ele, bem como pela psicóloga que o atendia, não houve confirmação do
fato. Sendo assim, a entrevista girou em torno da experiência de ter sido notificado,
repercussões em sua vida, os motivos que acreditava terem levado à denúncia. A
conversa durou cerca de 20 minutos.
3.3 ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES
Para análise das entrevistas, foi realizada análise de conteúdo temático, que
permite organizar as informações por temas, conforme o objetivo analítico visado. O
foco aqui pretendido não se ateve à análise sintática das falas dos sujeitos, mas aos
conteúdos por eles trazidos, problematizando o contexto discursivo.
As entrevistas foram todas transcritas e impressas. Após leitura, as informações
foram separadas em eixos temáticos. As entrevistas dos profissionais foram divididas
nos seguintes temas: percurso legal pelo qual passa o adolescente notificado como
praticante de abuso sexual, intervenções realizadas e os resultados destas; concepções
sobre o agressor, o que leva à prática do abuso; o que considera abuso/violência sexual.
Em seguida esses recortes foram compilados e discutidos separadamente, cotejando-se
com a literatura especializada.
As entrevistas dos adolescentes, bem como de suas respectivas responsáveis,
possuíam poucos elementos em comum. Sendo assim, foi feita a leitura das mesmas,
destacando-se os aspectos considerados relevantes para o objetivo em questão. As
informações foram explanadas e discutidas em separado.
54
4. RESULTADOS
Apresento aqui as informações coletadas, separadas em dois momentos: no
primeiro item, exponho e discuto as falas dos adolescentes, bem como de suas
respectivas responsáveis. Considerando-se a particularidade das situações em que cada
um se encontrava, optei por apresentá-los separadamente. No segundo item, trago as
informações obtidas com os profissionais entrevistados.
4.1 ADOLESCENTES IDENTIFICADOS COMO PRATICANTES DE ABUSO SEXUAL
A seguir são apresentadas e analisadas as informações obtidas com os três
adolescentes que cederam entrevista: Lucas, Wilmar e Diogo, juntamente às entrevistas
realizadas com as responsáveis destes dois últimos.
4.1.1 Wilmar: o estupro notificado.
No momento da entrevista Wilmar estava com 15 anos e vivia com a mãe e dois
irmãos menores. Falava muito pouco, respondia apenas o que eu perguntava, sem
maiores explicações, apresentando-se muito retraído e inexpressivo. Aproveitei a
presença da mãe, Ana, e conversei também com ela, no intuito de colher mais
informações sobre o caso. De acordo com Ana, ele foi notificado pela mãe da menina
que sofreu o abuso; foi chamado a comparecer na delegacia, passou pela Promotoria da
Infância e da Juventude, onde foi determinada a medida sócio-educativa de Liberdade
Assistida. Foi atendido durante seis meses por uma psiloga do LA, ainda em 2005.
Em 2007, foi encaminhado para o atendimento no Projeto Fênix, onde estava cerca
de seis meses. Ana não queria que ele participasse do Programa Sentinela porque ele
estaria envolvido com outros meninos que praticaram um ato, segundo ela, realmente
violento, o que não seria o caso dele.
55
Naquele momento Wilmar estudava e trabalhava como mecânico. Disse não
gostar muito de sair, ir a festas, preferindo ficar pelo bairro em que vive com os amigos,
andando de bicicleta. O adolescente, apesar de assumir a participação no episódio do
qual foi acusado, recusava-se a tocar no fato em si, respondendo de forma breve todas
as perguntas. Se falar de sexo já é algo delicado, o fato de ter sido praticado com uma
criança e que lhe trouxe repreendas legais, tornou o acesso ainda mais difícil. Eu já
contava com uma possível recusa, afinal ele não tinha obrigação nenhuma de se expor
para uma pessoa com a qual não possuía vínculo algum. Além disso, autores que
passaram pela experiência de pesquisa ou intervenção com jovens praticantes de abusos
sexuais associam a não admissão por parte destes de sua conduta abusiva a fatores como
vergonha, constrangimento, medo de punição ou rejeição, fazendo com que se tornem
menos acessíveis (Children's Protection Society, s/d; Elms, 1993; NCFV, 1990).
O fato ocorreu dois anos antes, quando Wilmar estava com 13 anos de idade e
foi praticado contra uma menina com seis anos na época. Ela era sua vizinha, filha de
uma prostituta, conforme afirmação de Ana. Costumava freqüentar a casa de Wilmar
para brincar com seus dois iros menores. O fato aconteceu enquanto Ana estava fora,
trabalhando. Segundo Wilmar, um dos seus irmãos estava presente na casa, mas por um
momento ficou sozinho com a menina. Seus amigos também foram chamados para
depor, mas não ficou claro se eles estavam envolvidos no momento da ocorrência.
Questionado sobre o motivo que o levou ao atendimento, ele responde: Porque
um tempo atrás eu estuprei uma guria.E complementa: foi por pilha mesmo. [...]
meus amigos tinham agarrado ela, eu entrei na pilha deles pra agarrar também. [...]
eles falaram, vai [...] daí eu peguei e fui.”. Wilmar afirma que não foi forçado, que
ela disse que queria. Ele minimiza o ocorrido ao colocar que foi um fato [...] Foi
uma coisa que aconteceu, é passado. Atinha esquecido isso.”, desconsiderando as
implicações que possam ter havido para a menina. Essa posição é compartilhada pela
e: mas foi assim, não foi nenhum absurdo, o foi como se ele tivesse machucado
totalmente a menina, que tivesse deixado a menina com hematoma, foi uma penetração
que machucou” (Ana). Se a penetração não resultasse em machucados, portanto, não
seria uma violência, não levando em conta a dimensão psicológica do abuso, além do
fato de ter sido praticado com uma criança.
56
Num segundo momento ele afirma não saber se a menina queria realmente
participar. Questiono o que o levou, então, à decisão de ter relações sexuais com ela. Ele
responde: vontade, ”. A sua vontade, portanto, ganha prioridade, e deve ser
satisfeita, independente do desejo dela. Wilmar considera que o que acarreta a
imposição de uma prática sexual é atração, alguma coisa assim”, sendo que ao
perpetrador atribui burrice”. Nesse sentido ele dá a entender que o fato do homem
desejar, é suficiente para tomar para si o objeto de desejo, provavelmente num ato
impensado, irracional.
Quando Wilmar diz que entrou na pilha deles”, traz também o envolvimento
dos amigos como influenciador da sua conduta. Rita Laura Segato (1999) apresenta
alguns temas recorrentes que aparecem no discurso de homens que cometeram estupro,
e entre estes aparece a imposição do ato sexual como demonstração de força e
virilidade direcionado para uma comunidade de pares” (Segato, 1999, p.405), no intuito
de provar sua competência sexual e sica. Mesmo que o grupo não esteja presente no
momento do ato, ele está no “horizonte mental” do jovem. Nesse sentido, para além da
satisfação de um desejo sexual, trata-se ainda de exibição da capacidade viril.
Por ser filha de prostituta, a menina, segundo Ana, já teria alguns traços”, que
permitiam supor que estaria disponível. Como ela tava muito tempo solta, na rua, com
os meninos, acabou acontecendo [...] não [foi] muito prolongada a situação do Wilmar
porque foi falado , que a menina ficava atirada, que brincava com os meninos
(Ana). Mais uma vez a responsabilidade recai sobre aquela que sofre o abuso. A
culpabilização da tima, bem como a atribuição da responsabilidade a fatores externos,
aparecem de forma recorrente como justificativa para o abuso (Bandeira, 1999; NCFV,
1990; Machado, 1998; Elms, 1993). Em tais situações os pais tendem a minimizar o
ocorrido ou buscar outras justificativas, muitas vezes por não saberem como lidar com o
problema (NCFV, 1990).
Não é novidade que ao avaliar situações de violência sexual, a moralidade da
tima seja colocada em xeque, questionando-se até que ponto ela própria não se
mostrou vulnerável ou induziu o outro de alguma forma. Homens, no lugar de sujeitos
ativos no exercício da sexualidade, estariam sempre propensos à prática sexual, cabendo
às mulheres não “atiçá-los” e não se colocarem em risco. A criança carrega, por
extensão da mãe, o estigma da prostituta, a mulher de rua, permitida, portanto, a todos
57
os homens. Por esta lógica, a mulher que apresenta uma moral duvidosa estaria mais
acessível às investidas masculinas.
No entender de Ana, o fato de não ter provocado hematomas ou ter tido outras
decorrências sicas, diminui a gravidade do ocorrido, como se o ato da penetração o
resultasse em danos, entendendo que o ato sexual em si o foi uma violência. “A
menina não ficou internada, nada, nada, não foi uma coisa grave, né, foi mais pelas
providências que foram tomadas.” Em sua fala, parece que o que foi feito do caso é que
lhe imputa a gravidade. Até então, se não chegasse ao conhecimento da mãe da menina,
teria sido uma simples brincadeira de criança que acabou machucando(Ana). Como
coloca Lia Zanotta Machado (1998) em seu trabalho com homens apenados por estupro,
o ato sexual impositivo é reconhecido como crime quando publicizado, denunciado,
uma vez que “estupros, muitas vezes, são feitos com expectadores e parceiros e são
considerados feitos sexuais, atos viris. Não sendo vistos como crime, são brincadeiras”
(Machado, 1998, p.254). O preocupante seria o estigma de estuprador, ser identificado
como tal. Na opinião de Ana, o fato não trouxe maiores conseqüências para o
adolescente. Isso não interferiu na nossa relação com as pessoas, até pelo fato de
conhecerem a mãe da menina”. Aparentemente todos concordam que foi uma
brincadeira que deu errado e que a reputação da mãe estendida à criança autorizaria o
ato.
Também chama atenção o posicionamento de profissionais que atuam em casos
como esse:
Quando a gente foi na delegacia a delegada falou que, ela tava
bem clara, assim ó, não vai dar muita coisa não [...] foi uma
penetração que não ficou ali, então, mas a menina não teve
hematoma. Foi qualificado como estupro, foi, mas não teve assim...
até porque ela deixou né. Pela idade, como o promotor mesmo
falou, ele deveria ter raciocinado, pensado, que ele era mais velho,
então ele fez esse erro e devia... mas ele não foi preso, não foi
nada, não foi detido, essas coisas assim, não, não foi, foi tudo
resolvido numa boa, tranqüilo. (Ana).
Os próprios profissionais parecem subestimar situações como essa. Se por um
lado a violência sexual é extremamente censurada, conferindo ao autor deste tipo de
agressão forte reprovação e desprezo social, ela é muitas vezes acatada como uma
situação corriqueira, que não gera maiores implicações para os envolvidos. O descaso é
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maior, acredito, por se tratar de adolescentes, reconhecidamente em fase de
desenvolvimento, um período de constantes mudanças, de transição, e que não
carregam, portanto, o estigma do agressor. nia T. Felipe e Jeanine N. Philippe (1996)
chamam ateão para a importância da atuação dos profissionais no reconhecimento e
tratamento da violência, pois estes, a partir do ato de denúncia, passam a exercer papel
decisivo no encaminhamento do caso e no modo como o resto da sociedade encara a
tima e o violentador” (p.18).
Questionado sobre o que considera violência, Wilmar responde: violência pra
mim é matar”, e em casos de violência sexual, a pessoa fica mal também”. O estupro,
via de regra, caracteriza-se como uma violência. Ele nomeia seu ato como um estupro,
porém, nega tratar-se de uma violência. Aqui entra a importância da legitimação
institucional para esse reconhecimento. Ele é um jovem que foi identificado e notificado
como praticante de um abuso sexual, que, tecnicamente, é denominado estupro, pois
houve conjunção carnal. Assim ele designa, mas o necessariamente significa, que
no seu entendimento foi apenas um “fato que aconteceu. Assim, o trabalho de
intervenção deve ser orientado para que se reconheça a agressão, não apenas a infração.
Ana considera que o processo pelo qual passou trouxe resultados positivos.
Se ele não tivesse tido esse acompanhamento que ele teve com
psicólogo, eu acredito que talvez ele se retraísse mais, seria mais
fechado, não teria tido a visão que hoje ele tem, ele sabe que fez
errado, hoje ele sabe se ele tiver uma namorada ele não pode
abusar, sabe que não pode ser agressivo, isso tudo, devido a esse
tratamento todo que ele teve. (Ana).
Questionei Ana se havia observado mudanças na vida de Wilmar posterior ao
abuso e ao processo pelo qual passou. Ela afirma que não, porém nota que desde então
ele o se envolveu afetiva ou sexualmente com nenhuma menina.
A única coisa assim que eu noto é que ele vai fazer 16 anos e até
hoje, que eu sei, é que ele não teve nenhuma namorada, e antes ele
até ficava com as menininhas né, e de pra cá ele não ficou mais,
que eu sei ele se reservou mais. Tem uma menina que ele mantém
contato pela internet... que nós somos evangélicos, nós vamos a
uma igreja evangélica, agora ele se converteu e ela ta participando
dos cultos, eu vejo que ele se aproxima dela como amigo, mas
até agora assim, namorada ele não teve nada, isso até às vezes me
preocupa né, mas... ele é tranquilão, é na dele. (Ana).
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Nos poucos minutos de entrevista cedida, Wilmar deu poucas informações que
me fornecessem respaldo para tirar conclusões. Fica evidente, no entanto, o quão banal
uma situação de estupro pode se tornar. Seja para obter gratificação sexual, seja para se
afirmar perante os amigos, Wilmar achou conveniente se apropriar sexualmente de uma
menina de seis anos que não tinha, em termos consensuais e legais, maturidade para
optar por isso. Pode-se argumentar que legalmente ele também estaria na condição de
incapaz por responder por seus atos, visto ter na época 13 anos de idade. No entanto,
o parece se configurar como uma relação eqüitativa. Por mais que não houvesse a
intenção do dano, a menina ocupa o mero lugar de objeto para obtenção de prazer.
Vejo como o contexto ganha lugar de destaque em situações como essa. Filha de
prostituta, que costumava ficar sem roupa na presença de meninos, que passava boa
parte do tempo na rua, sempre na companhia de outros meninos, que, segundo Wilmar,
também haviam tido envolvimento sexual com ela. Todos esses aspectos são
utilizados como argumentos para atenuar a responsabilidade de Wilmar. Nesse cenário,
ele supôs que poderia ter relações sexuais com ela. Atuaria ele da mesma forma em
outras circunstâncias? Antes de situá-lo na condição irreparável de abusador, fica clara a
necessidade de formular estratégias de enfrentamento da violência que levem em
consideração esses significantes, que legitimam, autorizam a imposição de práticas
sexuais, de modo a desconstruir determinados valores e crenças que possam vir a
justificar esses atos.
4.1.2 Diogo: entre a experimentação e o abuso.
Diogo, um adolescente de 16 anos, é residente de uma Casa Lar para meninos,
onde mora desde os nove. Viveu com a família de origem até os dois anos e em seguida
passou a morar com uma tia. Diz que era uma casa normal”, que ficava numa brica
fechada, mas que era bem bonitinha, bem civilizada, bem legal” (Diogo). No entanto,
era pequena para quatro pessoas, sendo assim foi adotado por um casal e passou a viver
em outro município. Ficou cinco anos com essa família, mas por queses de conflito
com a mãe, que, segundo Diogo, tinha ciúmes e fez com que o pai escolhesse entre ele e
ela, foi devolvido e passou a viver na Casa Lar. Antes disso percorreu outros espaços,
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como casa de passagem e creche. Não tem contato com a família de origem, sabe pouco
sobre eles. Segundo Diogo, tem uma boa relação com os moradores e coordenadores da
Casa Lar, se queixa apenas da responsabilidade que carrega por ser um dos mais velhos
e ter que, por isso, estar sempre servindo de exemplo para os menores.
A coordenadora da casa, Sabrina, me informou que não houve confirmação do
abuso praticado por Diogo, portanto, não foram acionados os meios legais, optando-se
por fazer um trabalho com todo o grupo de orientação e prevenção, já que havia muitos
meninos envolvidos.
Quando começou a virar uma coisa comum na casa lar, o abuso
né, a gente ia na promotora, toda vida denunciando, toda vida,
né, até que um dia ela chamou realmente nossa atenção, disse
'olha, cadê a responsabilidade de vocês?' Cadê né, e deu um estalo
assim, a gente realmente teve que acordar e começar a trabalhar
com essas crianças né, porque, daqui a pouco um vai abusando do
outro, e ninguém vai fazendo nada e vai ficando né. (Sabrina).
Em geral o procedimento padrão é ouvir a criança, verificar se há machucados, e
se for confirmado, é enviado um relatório para o Juizado da Infância e da Juventude, é
registrado um Boletim de Ocorrência (caso o praticante seja um adolescente) e pede-se
a transferência deste para outra entidade. Porque é complicado, manter a vítima e o
agressor junto na mesma instituição. Isso é muito difícil, pra ambas as partes. Fica
difícil pro agressor porque acaba sendo isolado dos outros né, e a vítima também não
consegue mais ficar próximo dele, começa a ter medo” (Sabrina)
Pode-se questionar se a retirada do menino da casa não seria uma medida
extremada, expondo-o a uma condição de vulnerabilidade. No entanto, deve-se pensar
na condição das crianças que vivem na residência, a mercê de constantes abusos, e que
por mais cuidado e controle que se tenha, não estão completamente seguras. É uma
situação de fato delicada onde não parece haver uma solução favorável a todos.
Segundo Sabrina, em geral eles tomam conhecimento dos abusos por meio dos
próprios meninos. “A gente chama ele, conversa, ou, o que tentou né, conversa e
pergunta o que aconteceu, aí depois chama esse que entregou, na frente, a gente
conversa tudo junto, e eles falam na frente, afirmam.” (Sabrina). Todos os moradores
têm ciência de que a prática do abuso pode levar à saída do autor da casa. Mas, diante
da freqüência em que essas situações ocorriam, consideraram necessário um trabalho
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conjunto, bem como um controle mais intensivo de vigia, tanto por parte dos monitores,
como dos meninos que assumiram uma postura protetiva para com os menores.
Diogo me revela que tinha entre nove e dez anos quando aconteceu o suposto
abuso e o outro menino era um ano mais novo. Ah já passei de eu fazer e eu ter que ser
usado. passei por isso, já, já. (Diogo). Em sua fala, bem como de Sabrina, fica
aparente que eram situações rotineiras, em que muitos meninos estavam envolvidos,
vivenciando os "dois lados". Nesse sentido não me parece possível situá-los entre
agressores ou timas, além de dar a entender que, pelo menos em alguns momentos,
tratava-se de uma experimentação. É meio difícil porque é uma casa de homem né,
existe lá fora o que a gente não tem aqui, é difícil, porque lá, eu posso namorar lá fora,
mas aqui... [...] se tu tivesse oito anos, conhecesse um guri de oito anos, se tu visse isso
tu ia querer experimentar, pra ver como é que era, a pessoa não pensa” (Diogo).
Antes de chegar na casa, ainda quando vivia com os pais adotivos, Diogo teve
um envolvimento com uma menina da mesma idade, sua vizinha. É porque naquela
época a gente nem sabia, não tinha coisa aí, o tinha saber de nada, aquilo pra
gente era uma brincadeira, mas agora que a pessoa vai crescendo já vai sabendo mais,
sabe que tem doenças, tem um monte de coisa.(Diogo). Ele parece se apropriar da
noção negativa atribuída à vivência da sexualidade, bem como de que qualquer
envolvimento em atos sexuais deve ser consciente, racionalizado. Se antes foi
experimentado com um caráter lúdico, ao refletir a respeito entende que o era hora,
centrando-se nas conseqüências negativas.
Diogo coloca que se envolvia nessas situações quando ingressou na casa, mas
que hoje é um “exemplo”, assumindo uma postura protetiva para com os demais,
confirmado também por Sabrina.
Foi no começo da casa que eu fazia. Daí a tia pegou um dia
comigo, conversou, daí agora eu já sou um exemplo já, tenho...
ela sempre fala pros pequenos, 'ah, você não pode fazer isso,
porque, olha, o Diogo é um exemplo, que também passou por
isso, você tem que superar isso também'. É meio difícil morar numa
casa que tem homem, passa coisa na tv, um monte de coisa, a
pessoa fica meio esquisito né, mas com essa idade eu já consigo me
controlar, eu sei diferenciar. [...] não tenho mais essa
dificuldade, antes eu tinha essa dificuldade, mas daí eu fui e
parei, destruí a barreira, não dava certo. (Diogo).
62
Diogo comenta que duas pessoas que "faziam isso" já haviam sido retiradas da
casa. "Você dava o toque que não era pra fazer, mas eles continuaram fazendo, daí
minha tia chegou e falou 'ah vocês vão ter que, vão ser mandado embora'. Já passei por
isso, a tia me falou 'ah se tu continuar vai ter que sair', eu cheguei fiquei quieto
então". Num primeiro momento, sob a ameaça de punição, ele se contém e pára de
praticar tais atos. Aos poucos ele se apropria das sanções e proibições e define seu
comportamento como errado, desregrado.
Diogo, assim como os jovens em geral, está diante de discursos que se
contradizem e geram confusão. Os discursos religiosos, institucionais, educacionais
pregam a abstinência e a contenção dos impulsos sexuais. O que não está em
conformidade com a atual realidade social e a exposição massiva aos meios de
comunicação, que por sua vez estão impregnados de conteúdo erotizante e apelo ao
sexo. Como destaca Tayse Schiocchet (2006), inseridos numa cultura paternalista, esses
jovens não são preparados para tomar decisões autônomas diante da infinidade de
escolhas apresentadas pelos meios de comunicação e da "multiplicidade de valores,
práticas e significados em torno da sexualidade" (p.105). As noções de pureza e
ingenuidade ligadas à infância dividem espaço com uma crescente produção cultural de
imagens erotizadas de crianças e adolescentes.
Todo o tempo Diogo traz a experiência como algo errado, uma dificuldade pela
qual passou e que quer esquecer. Essa atribuição pode se dar por três motivos: (1) por
ele hoje considerar ser errado manter relações sexuais numa idade ainda jovem, quando
o se tem consciência do que está fazendo; (2) pelo fato de estar mantendo relações
com pessoas do mesmo sexo; ou, ainda, (3) por algumas das experiências terem de fato
envolvido força ou coerção.
Eu sei que mulher é com homem e homem com mulher, não é
homem com homem. A não ser se ele quiser outro destino, daí é
outra coisa. Eu penso que quando sair da casa vou ter mais
liberdade, posso ter uma mulher, liberado, porque aqui tu não
pode trazer uma mulher assim pra casa, essas coisas, não, não
posso porque tem criança, não vou fazer isso na frente de todo
mundo. É difícil. (Diogo).
Ah, foi ruim, eu não sabia, era novo, a pessoa nem imagina, uma
coisa que tu não sabe o que acontece, tu nem sabe, nem sabe o que
que ta acontecendo, não sabe do que que aquilo vai tirar benefício
63
pra ti, não sabe do que que aquilo é bom pra ti, depois quando tu
começa a crescer tu imagina, a pessoa começa a ter defesa, a
mesma coisa que acontece em família, não tem nenhuma diferença,
pior que a família os pais pegam as filhas, essas coisas, daí é bem
difícil. (Diogo).
As trocas afetivas, consideradas fundamentais para o desenvolvimento
psicossexual, são marcadas por sentimentos de culpa e ansiedade, pois são comumente
repreendidas pelos adultos. "A partir dessa vivência, tudo que se refere à sexualidade
passa a ter um sentido negativo, associado à vergonha e ao pecado" (Costa, 1994,
p.123). A sensação de excitação passa a evocar constrangimento. "Os sentimentos
sexuais passam a ser considerados segredos invioláveis, e suas manifestações, uma
contravenção às normas morais impostas pelos adultos" (idem, p.123). Mas, apesar da
constante vigilância a que são submetidos, não é possível sufocar "a curiosidade e o
interesse, conseguindo, apenas, limitar sua manifestação desembaraçada e sua expressão
franca." (Louro, 2000, p.27).
A Casa Lar é mantida pela Igreja Católica, portanto, cerceada por todos os
preceitos que nela subsistem, entre eles, contenção da sexualidade, finalidade
reprodutiva desta e repúdio às relações homoeróticas. Diogo comenta que não pratica
mais tais atos porque hoje tem consciência de que homem tem que ficar com mulher,
pois é uma lei da natureza, homem é com mulher, pra ter reprodução. Você não acha
que um homem vai ter reprodução com homem? Ainda não descobriram como fazer
isso.Reduz-se, assim, a sexualidade ao campo da reprodução, sendo vetada qualquer
relação que não tenha esse fim.
Diogo associa o fato de não viverem numa família tradicional à propensão a
manter contatos erótico-sexuais entre os meninos:
É uma dificuldade porque eles [meninos menores] não querem
isso, isso acontece, é difícil, tu morar numa casa sendo menino,
[...] tu coisas, tu não... tipo é meio esquisito. Porque tipo tu
morando com uma família tu já vai saber o que é uma família, mas
a gente não mora com uma família, a gente não sabe o que que é,
amor de menino, é meio difícil. Com a mãe e com o pai tu consegue
conversar isso. (Diogo).
A mãe e o pai, portanto, também serviriam como um modelo de relação a ser
seguido, e a ausência destes favoreceria o manifestar deste "amor de menino", pois não
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estaria dada a priori a forma ideal de relacionamento. A noção de família apresenta
também a norma sexual atrelada à reprodução, restrita à relação heterossexual, não
sendo concebidas outras possibilidades de organização familiar que o permitam a
procriação.
A coordenadora traz também a vivência apenas entre meninos como facilitadora
desse contato, visto que, sendo comum ao desenvolvimento a curiosidade e
experimentação sexual, estas crianças que vivem no abrigo acabam por se envolverem
umas com as outras.
A gente também explica pra eles, tudo tem sua hora, quando tu
encontrar uma namorada né, então a gente acaba sempre... mas
eles têm muito forte essa figura masculina né, que é por ser uma
necessidade mesmo né, do afeto, identificação, que é o que eles
convivem né, e as brincadeiras deles né, 'ah, vamo namorar,
namorar a parede, namora aquele homem lá da parede'. Então
sempre tem a figura masculina pra eles. [...] o namorar, ou
qualquer outra coisa, aparece essa figura masculina. [...] não tem
assim, ah, beija aquela mulher lá, é sempre o sexo masculino.
(Sabrina).
Quando tento abordar o fato em si, Diogo se recusa a falar, dizendo que isso
pra mim é passado, eu tenho que esquecer o passado, não vou lembrar uma coisa ruim
que já passou.[...] porque foi ruim, foi uma fase da minha vida que eu tinha, que eu
consertei, e não queria tocar mais naquilo, não me faz bem. Coloca que os outros
meninos também têm essa “dificuldade”, mas que o esperado é que com o tempo eles
superem essa fase, assim como ele.
É, tem uns ainda que têm essa dificuldade, não conseguiram
superar, mas eles com a ajuda do pessoal aqui eles vão superar
isso aí. [...] é uma fase difícil na vida deles, mas eles nem pensam
ainda que é uma fase difícil, eles não sabem, deixa eles crescer
mais um pouco eles vão pensar, daí eles o parar, vão
concertar, vão fazer a mesma coisa que eu, não vão querer
lembrar o que passou pelo passado, vão querer cortar isso da vida.
(Diogo).
Para isso, conta com as orientações psicopedagógicas que recebem. Acredita
que o trabalho de grupo desenvolvido anos antes trouxe mudanças positivas.
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Antes era bem diferente, antes não tinha tanta segurança e agora...
antes qualquer um fazia o que queria com o outro, era bem
diferente antes, daí melhorou a casa, agora os tios estão tudo de
olho, em cima, e até eu que passei por isso to ajudando agora. Eu
já passei por isso e to ajudando agora. (Diogo).
Ainda que com um discurso orientado para a postergação do início da vida
sexual, o reconhecimento da sexualidade destes jovens, sendo a eles fornecido um
espaço para falar a respeito. importante satisfazer a curiosidade da criança
respeitando seus limites de entendimento e a especificidade da dúvida que ela
apresenta" (Nunes e Silva, 2000, p.55). Sob o prisma de "pecado" (Sabrina), este era um
assunto velado; não se falava sobre sexo, nem mesmo numa dimensão informativa.
Dessa forma, os meninos não se sentiam seguros pra reportar os abusos. Aos poucos foi
se amadurecendo a idéia de trabalhar este aspecto tão presente na casa. "Olha, a gente
tem que trabalhar, porque isso não vai acabar." (Sabrina). A demanda, no entanto, era
a de prevenção, de que as crianças pudessem se defender dos abusos e se sentissem
seguras ao gerar uma relação de confiança entre eles e os tutores. Muitos casos passados
foram descobertos após a intervenção. Sabrina diz que depois que esse trabalho foi
feito, diminuiu a ocorrência dos abusos, e os meninos passaram a adquirir um
comportamento protetivo, não só com eles mesmos, mas para com os outros também.
Além disso, segundo Sabrina, os meninos que chegaram a cometer abusos passaram a
ter um comportamento de auto-controle.
O que acontece é a gente ter o adolescente hoje que ele era o
agressor, ta, ele próprio quer se ajudar pra sair dessa, então onde
tavam os pequenos, ele procurava não tá. Ele mesmo acabava se
isolando, ele mesmo sabia que ele não podia ali, né. [...] E é
como ele conseguiu se ajudar mesmo, evitando junto, evitando
brincar com aquele, ou tendo uma relação amigável com aquele
menino que sabe se proteger, que se tentar alguma ele vai falar, '
não posso'. (Sabrina).
Os atendimentos com o psicopedagogo são quinzenais e separados em dois
grupos, o de crianças e o de adolescentes. eles falam sobre sexualidade, doenças
sexualmente transmissíveis, comportamento preventivo, etc. Procura-se alertá-los
também sobre "o que é uma violência sexual, o que é realmente o sexo" (Sabrina). Essa
diferenciação apontada por Sabrina não fica muito clara ao longo da entrevista, já que
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todo o tempo o sexo é mencionado como algo negativo, um ato que traz conseqüências
indesejáveis, que deve acontecer de forma tardia, indicado apenas quando puderem ter
uma namorada. Tal posicionamento parece refletir uma preocupação centrada no
envolvimento de meninos com meninos, para além da questão da violência.
A gente aprende do que que uma relação pode trazer, das doenças
transmissíveis, que ele explica pra gente também, e que quando a
gente sair da casa mais a gente, a gente vai ter mais, vai ta um
pouco mais desenvolvido nisso [...], a gente vai ter alguma coisa
sabendo já, vamos saber alguma coisa, uma base. (Diogo).
O trabalho de... [falar] abertamente sobre sexualidade, das
doenças sexualmente transmissíveis, fala-se a linguagem deles
mesmo, o que eles querem saber. E com os pequenos, com os
menores, é trabalhado a questão da prevenção, de como pedir
ajuda, de como eles devem se defender né, mais nesse sentido. E
isso tem dado muito resultado na casa. (Sabrina).
Conforme aponta Aparecida Fonseca Moraes (2002), para evitar ou reverter
determinadas experiências dos jovens, consideradas "desviantes", é transmitido um tipo
de conhecimento sobre o corpo e a sexualidade com a função primeira de impedir a
manifestação de doenças sexualmente transmissíveis, iniciação sexual precoce,
violência sexual, relações homossexuais, etc. Nunes e Silva (2000) acreditam que a
melhor forma de educação sexual nessa fase é "tratar com naturalidade estas expressões
infantis, proporcionando às crianças as respostas às suas perguntas e trabalhando em sua
formação social, afetiva e intelectual. [...] A verdadeira educação sexual quer resgatar
um conceito positivo da sexualidade que nossa cultura perdeu" (p.96).
No entanto, como se observa na fala de Sabrina e Diogo, essas vivências entre os
meninos muitas vezes se configuravam como abusos. Nesse sentido, precisavam ser
contidos. Mas, percebe-se uma tendência a generalizar essas experiências, sendo
atreladas indiscriminadamente à violência sexual. Essa tendência é comumente
observada entre profissionais encarregados das instituições de abrigo para crianças e
adolescentes em situação de abandono, conforme aponta o trabalho desenvolvido por
Moraes (2002). Aparecem de forma muito tênue as barreiras que separam a descrição da
vida sexual das agressões e abuso sexual, dos quais seriam os/as jovens timas (ou
agressores) em potencial. Sexo e abuso sexual são tomados como equivalentes. A noção
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estabelecida de que os jovens apresentam, tendo em vista suas trajetórias de vida,
desvios de conduta, justifica a necessidade de mecanismos de controle da sexualidade,
visando sua proteção e recuperação.
"Aquilo que acreditamos que o sexo é, ou o que ele deveria ser, estrutura nossa
resposta a essa questão. É difícil separar os significados particulares que damos à
sexualidade das formas de controle que defendemos." (Weeks, 2000, p.74). Se o sexo é
considerado perigoso e perturbador, tende-se a assumir posturas de controle autoritário e
rígido abordagem absolutista –, supondo que "as forças perturbadoras do sexo podem
ser controlados apenas por uma moralidade muito cristalinamente definida" (idem,
p.75), inscrita em instituições sociais: casamento, heterossexualidade, vida familiar,
monogamia. A posição libertária, por sua vez, aparece como uma oposição, "cuja tarefa
tem sido a de expor as hipocrisias da ordem dominante em nome de uma maior
liberdade sexual" (idem, p.75). Adota-se um conjunto de valores mais flexíveis,
entendendo o sexo como benigno e liberador. Entre essas duas, conforme o autor,
encontra-se a posição liberal, que o está segura em decidir se o sexo é bom ou ruim,
mas acredita que há desvantagens tanto no autoritarismo moral quanto no excesso.
A educação apresenta a intricada função de, por um lado, incentivar uma
sexualidade normalizada, enquanto, simultaneamente, deve contê-la. Como destacam
Nunes e Silva (2000), a educação formal de adequar a criança para a satisfação de
suas necessidades dentro dos cânones sociais, mas, atentam para não considerar os jogos
de descobertas e explorações corporais como desvios.
Sabrina diz que atualmente essas situações estão controladas, que o houve
novas ocorrências. No entanto, afirma que todos estão sempre atentos, mantendo um
cuidado constante para evitar que elas se repitam. Ainda assim, cerca de dois meses
após a realização da entrevista, soube de um caso reportado na delegacia de um menino
que estava sendo retirado da casa por ter abusado sete crianças menores. Como
mencionado, não foi possível entrevistá-lo, mas me chamou atenção o fato de que,
mesmo tendo conhecimento das conseqüências, isso não o impediu. Além disso, não foi
um caso isolado, mas sim múltiplas ocorrências. Na conversa com Sabrina ela também
me relatou um outro caso de um menino de 11 anos que, premeditadamente, comprou
uma camisinha e abusou um menor, com penetração. Em seguida foi também retirado
da casa. Questiono-me sobre os motivos que os levaram a praticar esses atos, qual a
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intencionalidade. Não que a possibilidade de punição seja suficiente enquanto
interditora de condutas que transgridam as normas. Mas, para além da gratificação
sexual, esses meninos poderiam estar utilizando o abuso como um meio para atingir um
possível objetivo, que seria a saída da casa. Trata-se apenas de uma conjetura, no
entanto, vale para pensar nas variadas formas que podem configurar uma relação de
abuso, tendo em vista essas particularidades.
Essas ocorrências na Casa Lar parecem se configurar de diferentes
formas. Penso o que faz dessa prática algo tão corriqueiro neste estabelecimento, ainda
mais considerando que nas outras duas casas existentes no município não aparecem
situações como essa - pelo menos não que se tenha conhecimento. Talvez se possa falar
em reprodução da violência, um hábito que se instaurou na resincia e se tornou lugar
comum. Sabrina traz essa noção, colocando que os meninos que sofreram violências nas
suas trajetórias e nas famílias de origem, passam a replicá-la no abrigo. Talvez se
configure de fato como uma experimentação, curiosidade comum a crianças e
adolescentes, e que tendo um convívio tão próximo, sem relação de parentesco, acaba
por facilitar essas trocas erótico-sexuais, tomando forma muitas vezes de abusos,
principalmente quando a relação é entre uma criança e um adolescente.
Diogo foi identificado como um agressor sexual, assim como os outros meninos,
que em um momento assumiam a posição de tima, e, posteriormente, a de agressores.
Mas, essa lógica não me parece coerente com as situações por eles vividas. A
intervenção aplicada pelos responsáveis pautava-se na idéia de que a partir dela seria
possível reverter o quadro, na medida em que fossem orientados de que não "era hora",
e ao persistirem poderiam sofrer conseqüências. Alguns, como o Diogo, apropriaram-se
desse discurso, assumindo uma nova postura, inclusive de protetores. Outros, entretanto,
o o acataram as regras, como podem ter feito uso delas para outros fins.
4.1.3 Lucas: agressor ou agredido?
Lucas estava com 16 anos e participava naquele momento dos atendimentos do
Projeto Fênix. Em março de 2005 foi notificado ao Sentinela pelo Conselho Tutelar por
ter supostamente abusado um menino dois anos mais novo. Apenas em dezembro do
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mesmo ano o CT foi à sua casa, conversar com ele e sua mãe, para averiguar o fato.
Lucas afirma que foi chamado e compareceu ao Sentinela apenas uma vez, no início de
2006. Segundo ele, sua e frequentemente contatava o CT para acompanhar o
andamento do caso, e a informação obtida era de que o processo não teria
prosseguimento, pois o abuso parecia não ter sido confirmado. Ainda assim, em 2007
foi encaminhado para o Projeto Fênix, cerca de dois anos após o ocorrido. Apesar de
relutante, comparecia assiduamente aos atendimentos, porém não entendia porque o
deveria fazer, defendendo que não havia feito nada.
Eu ficava sem saber porque eu tava vindo, na real, daí eu ficava
sentido, pô, por que que eu vou ter que ir por uma coisa que eu não
fiz? Se fosse alguma coisa que eu fizesse, daí tudo bem, eu taria
pagando pelo que eu fiz, mas como eu não tinha feito, não tinha
porque. (Lucas).
Lucas e o menino que fez a denúncia viviam no mesmo bairro, mas não tinham
uma relação próxima. “Eu quase não vejo ele, eu cumprimento. [...] não tive assim tanto
contato pra mim chegar... porque geralmente quando eu vejo ele é o que, às vezes ele ta
na rua brincando, que eu não sei porque geralmente eu fico em casa [...] daí se eu
vejo eu cumprimento, é mais assim.” Afirma não saber porque foi acusado. Segundo
Lucas, nem o Sentinela ou o CT lhe passou o conteúdo da denúncia, apenas obteve
informações com a psiloga do Projeto Fênix.
Ela me explicou o que que chegou pra ela, mais ou menos como é
que foi a denúncia, isso ela me passou, o que chegou pra ela, ela
me passou, porque nem isso eles fizeram [...] pra julgar uma
pessoa ela pelo menos tem que saber do que que ela ta sendo
acusada. (Lucas).
Questionado sobre possíveis motivos que levariam o menino a notificá-lo,
responde: “ah não sei, pode ter sido outra pessoa. Na real uma pessoa não vai tirar isso
do nada, não vai chegar do nada e falar, não sei se foi medo, alguma coisa que
aconteceu” (Lucas). Diz ainda que devido à falta de um contato próximo entre ambos,
o seria possível que se colocassem em alguma situação que levaria o menino a supor
uma tentativa de abuso. Também por isso nunca chegaram a conversar sobre o assunto.
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Ah, eles perguntaram se tinha acontecido, não sei que, às vezes
como uma brincadeira, coisas assim, e eu não, não aconteceu, e eu
assim, não aconteceu porque é uma pessoa que eu não tenho muito
contato, não tem como... não tem nem como ter acontecido uma
brincadeira que ele pudesse ter interpretado desse lado, porque eu
não tenho intimidade com ele pra ter esse tipo de brincadeira.
(Lucas).
Segundo Lucas o fato de ter sido notificado não lhe trouxe maiores implicações
legais. As provincias tomadas limitaram-se a visitas domiciliares e ao
comparecimento aos órgãos responsáveis para prestar esclarecimentos, não tendo sido
acionado o Juizado da Infância e da Juventude. Menciona, no entanto, a indignação por
ter sido acusado de algo que, segundo ele, não cometeu, e ter que cumprir com
atividades impostas que não lhe faziam sentido.
Eu acho que isso pra mim foi superado na real, pra mim não
tem mais peso nenhum, importância nenhuma, eu até dava mais
importância pra isso, agora não. Tanto é que eu chegava aqui e
ficava bem chateado, chegava até a chorar, eu chegava a chorar
até de raiva às vezes. Agora pra mim ta tranqüilo, ta superado. [...]
Às vezes eu olho assim pra trás, vontade de rir, parece uma
coisa, não sei, parece uma coisa, assim, não acredito que
aconteceu isso comigo. (Lucas).
Acredito que a postura adotada pelos profissionais do Projeto Fênix tenha
colaborado para esse posicionamento de Lucas. A proposta de intervenção da equipe
o tinha um caráter acusatório, permitindo ao adolescente se expressar livremente,
deixando-o expor seu ponto de vista e como se colocava na situação, possibilitando que
se trabalhassem outros aspectos além do suposto abuso.
Em conversa com a psicóloga do projeto que o atendeu, esta coloca que tanto
ela, como a psiloga que atendeu o adolescente que teria sofrido o abuso, tinham fortes
razões para crer que o abuso o aconteceu. O diagnóstico situacional, que confirmaria
ou o o fato, é realizado pelo Programa Sentinela. Apesar deste ter indicado que de
fato havia ocorrido o abuso, até então a informação passada para a mãe de Lucas era de
que o caso não teria prosseguimento. Para proferir tal diagnóstico foram realizados
atendimentos com a suposta tima e com sua mãe. No que concerne ao acusado, foi
71
ouvido apenas uma vez, da mesma forma que sua mãe, e realizada uma visita
domiciliar.
A conclusão, portanto, foi a de que Lucas era o responsável por ter perpetrado o
abuso contra o outro adolescente. Ainda assim, dois anos passados da notificação,
Lucas é chamado para atendimento.
Aponto aqui para duas falhas deste sistema de encaminhamento: de um lado
tendo Lucas como praticante do abuso, e do outro tendo sido acusado injustamente.
Enquanto responsável pelo abuso, ele teve que esperar dois anos para que se tomassem
provincias de fato, caindo em questionamento a efetividade dessa intervenção. Como
medida protetiva para contenção dos abusos, foi ineficaz na medida em que ambos
continuavam a ter contato na comunidade em que vivem.
Os procedimentos realizados para a confirmação do abuso não parecem ter sido
suficientes. A acusação pautava-se basicamente na indicação do adolescente
supostamente abusado. Claro que, em situações de violência sexual, a ausência de
provas materiais desloca para o testemunho dos envolvidos a principal fonte
contestatória. Mas, como colocado por Lucas, ele foi acusado antes mesmo de ter sido
devidamente ouvido. Este reprova o tratamento recebido dos outros profissionais:
As que foram em casa até que foram legalzinhas, mas a que foi
já foi me acusando, parecia que eu era o culpado, ela era o juiz,
ela ia dar minha sentença, ela mesmo ia fazer. Tipo ah vai ter que
morrer ou ia me matar, assim, ela ia dar e já ia fazer o que tinha
que fazer, porque, como ela falava, ela falava que eu tinha
feito. (Lucas).
Diante de uma denúncia de abuso sexual, não se pode simplesmente ignorá-la
por falta de evincias. A investigação e a intervenção se fazem necessárias para romper
com a violência e prover proteção às timas. No entanto, uma investigação eficaz
requer instrumentalização, tempo e preparo profissional para não incorrer em erros o
que, ainda assim, não é inteiramente evitável. Os programas do governo se encontram
defasados quanto ao número de profissionais, que devem atender uma demanda muito
superior às suas reais capacidades, podendo um caso se desenrolar por anos até que se
um desfecho. A psicóloga do P. Fênix, chama atenção para a necessidade de se
investigar com maior aprofundamento as notificações antes de elaborar conclusões,
porque
72
isso também interfere na construção de cada um, isso também
deixa marcas, então que a gente às vezes questionava,
paradoxalmente, aquele que era o julgado como o autor do abuso
sexual poderia ser a vítima, poderia se inverter os lugares. [...] O
material dos relatórios às vezes era muito questionável. [...] Na
dúvida sempre é melhor acreditar que sim, que houve o abuso, mas
é preciso investigar um pouquinho mais pra dizer qualquer coisa.
(D.A.).
A entidade responsável pela investigação da autoria e a materialidade do ato
infracional é a pocia (Franco, 2004). No entanto, em casos de violência sexual
envolvendo crianças e adolescentes, o Programa Sentinela tem a função de elaborar o
diagnóstico situacional, ou seja, proferir se a notificação procede ou o. Isto serve para
auxiliar a investigação policial, e, por sua vez, embasa o judiciário para a resolução do
caso. Dessa forma, o programa, em conjunto com o Conselho Tutelar, acaba por
assumir também o encargo da investigação.
As medidas cio-educativas podem ser aplicadas mediante instauração do
processo judicial, "com observância estrita dos princípios do contraditório e da ampla
defesa" (Franco, 2004, p.60), enquanto que as medidas de proteção podem ser aplicadas
diretamente pelo Conselho Tutelar. Estas últimas, como o próprio nome aponta, destina-
se à proteção de crianças e adolescentes que têm seus direitos violados, como também é
indicada em casos de ato infracional praticado por crianças, podendo também ser
aplicada para adolescentes, sozinha ou cumulada com a medida cio-educativa (ECA,
Art. 99). A escolha da medida a ser aplicada está atrelada às circunstâncias e à
gravidade da infração (ECA, Art.112, § 1º).
A aplicação de medida cio-educativa requer um procedimento mais acurado,
sendo imprescindível a apresentação de defesa para o autor da infração. Ao que tudo
indica, o mesmo não é necessário para aplicação da medida protetiva, pois tem-se por
princípio que esta irá proporcionar o bem-estar daquele que a recebe. Assim, destitui-se
do rigor necessário, pois seu cumprimento não apresenta grandes implicações (como
privação de liberdade, por exemplo). Sob essa lógica, Lucas foi encaminhado para
atendimento, mesmo diante da incerteza do seu envolvimento no suposto abuso. Para
Lucas, pode não ter acarretado maiores conseqüências, mas, ainda assim, trata-se de
uma imposição que gera obrigações que, se descumpridas, podem ensejar o emprego de
73
medida mais rígida e restritiva (Franco, 2004). Dessa forma, a proteção resulta em
imposição, muito mais do que como uma garantia de direitos.
Isso posto, conclui-se: que o ato foi considerado de menor gravidade e por isso a
medida de proteção era suficiente; ou que, na ausência de confirmação da autoria, Lucas
foi mandado para atendimento para maiores esclarecimentos como uma medida
preventiva para que, em sendo de fato o autor, fosse responsabilizado e não voltasse a
agredir.
A violência sexual, ao ser convertida em objeto de interdição do Estado,
possibilitou a criação de estratégias de enfrentamento mais eficazes e diretivas,
fornecendo suporte àqueles que a vivenciam cotidianamente sem condições para sair da
situação sem um apoio externo. Dessa forma, se apresenta como uma "oportunidade de
garantia dos direitos humanos", construindo "um contexto possível de reconhecimento
ou instauração da demanda por ajuda" (Costa et al, 2007, s/p.). Por sua vez, a
formulação e a implementação do ECA impunham limites à intervenção estatal pelo
Direito Penal, apresentando alternativas à punição, com enfoque na educação e
ressocialização de jovens que cometem delitos.
Porém, pode-se questionar os efeitos reais de tal interveão, na medida em que,
por um lado, despersonaliza a atuação a partir da tipificação e classificação dos delitos,
apagando as diferenças constitutivas. Por outro, a iia de proteção e garantia de
direitos se desfaz quando se colocam as medidas educativas como uma obrigação.
Nesse sentido, Monteiro (2004) destaca que as medidas devem ser aplicadas "levando
em consideração a necessidade e o direito do adolescente à educação, assim como sua
possibilidade de reabilitação a partir da educação, e não como instrumentos de
imposição da educação de qualquer maneira e a qualquer preço" (p.72). Defende ainda
que o adolescente deve ter o direito de se opor ao cumprimento da medida quando esta
resulte de "imposição de um ato decisório produzido sem sua participação direta e
pessoal e que, portanto, não seja respeitoso com o seu direito de se manifestar e ser
escutado" (p.72).
Certeza quanto à autoria do ato, o se tem; a dúvida vai sempre permanecer.
Critérios mais rigorosos de investigação são necessários antes de se determinar sansões
legais, sejam de que ordem for. Lucas foi acusado sem as devidas clarificações, sendo
obrigado a cumprir com atividades contra sua vontade, sob a alegação de proteção. O
74
sistema de justiça se coloca como a opção mais diretiva para a resolução de conflitos, e
para reprimir e punir condutas socialmente indesejáveis. Mas, não é infalível, e não
necessariamente ifornecer uma resposta conforme a demanda, dando margem à toda
sorte de contrariedades aos que por ele passam.
4.2 PROFISSIONAIS QUE OPERAM NO TRATAMENTO DA VIOLÊNCIA SEXUAL
ENVOLVENDO CRIANÇAS E ADOLESCENTES
A seguir descrevo brevemente a área e tempo de atuação dos profissionais
entrevistados, bem como as atividades por eles desenvolvidas.
V.W. e A.L.: são promotoras da Vara da Infância e da Juventude; atuam nesta
localidade há cerca de oito meses. São responsáveis pela audiência de apresentação do
adolescente que comete ato infracional, encaminhado pela delegacia. A promotoria ouve
os adolescentes e responsáveis, verifica o histórico de ato infracional, a situação familiar
e pessoal do adolescente, repercussão do ato infracional, e decide se dá prosseguimento
ao processo, aplica uma medida ou arquiva o caso. V.W. diz que já atendeu
adolescentes praticantes de abuso sexual, no entanto, a parcela é muito pequena,
comparada aos outros tipos de infração.
A.S.: psiloga da Delegacia de Atenção a Crianças e Adolescentes. É responsável por
colher o depoimento de crianças e prestar atendimento para adolescentes, tanto na
condição de timas como de autores de ato infracional. O atendimento ao adolescente é
feito após dado o depoimento ao escrivão, no intuito de obter mais informações sobre o
fato, fornecer esclarecimentos para crianças, adolescentes e familiares acerca dos
procedimentos que eles vão seguir, e realizar o encaminhamento. Atua na delegacia
um ano e nesse período atendeu cerca de cinco adolescentes por prática de abuso. Não
possui informação sobre a situação atual dos casos, pois depois de encaminhados ao
juizado, eles não têm mais contato com o adolescente. Está tentando implementar uma
maneira de obter retorno por parte do juizado, para que tenham conhecimento do
desfecho dos casos.
75
B.M.: coordenadora do Programa Sentinela desde abril de 2007. Trabalha nos
programas de proteção na Cidade da Criança há 11 anos. O trabalho do Sentinela é
separado em três frentes: a equipe de prevenção, que atua com famílias e oferece
capacitação para profissionais da rede de saúde e de educação como também para
comunidades; a equipe de diagnóstico, que recebe a solicitação do Conselho Tutelar e
sai a campo para fazer a investigação, fazendo atendimento em loco, abordando pessoas
envolvidas na denúncia e determina qual será o encaminhamento; a terceira é a equipe
de acompanhamento, responsável pelos atendimentos. B.M. atua na parte administrativa
e com orientação técnica, que seria receber os encaminhamentos do Conselho Tutelar e
solicitações de atendimento do Juizado da Infância e da Juventude e da delegacia, am
de dar orientação aos técnicos. Antes de assumir a coordenação fazia atendimento
técnico, ou seja, diagnóstico situacional, investigação das denúncias de violência
doméstica, e em outro momento atuava no acompanhamento das famílias em que
havia sido detectada a situação de violência.
F.: psiloga do Programa Sentinela três anos. Atua na equipe de acompanhamento
psicossocial da família em situação de violência, ou seja, faz atendimento psicológico
individual e familiar, além de visitas domiciliares e institucionais (posto de saúde,
escola, etc.). No momento da entrevista atendia 30 famílias, sendo que em uma delas
havia um caso de abuso sexual perpetrado por adolescente.
F.O.: juiz da Vara da Infância e da Juventude. Atende situações que envolvem violação
dos direitos da criança e do adolescente, bem como adolescentes que praticaram atos
infracionais. Passou a atuar nesta comarca em 2003, e desde então atendeu cerca de
cinco casos de abuso sexual.
M.R.: assistente social, coordenadora do Programa Liberdade Assistida dois anos.
Trabalhou oito anos em um Centro de Internamento Provisório (instituição para
internação de jovens autores de ato infracional), três anos no LA (antes de assumir a
coordenação) e um ano na central de penas alternativas com adultos. Além de
coordenar, atua também nos atendimentos ao adolescente e à família. A proposta do LA
é acompanhar o adolescente nos diversos segmentos da vida dele, buscando junto com
76
ele um novo projeto de vida para que não volte a praticar atos infracionais. Durante a
permanência neste programa atendeu apenas um menino autor de abuso sexual.
D.A.: psiloga do Projeto Fênix, atendia os adolescentes notificados por prática de
abuso sexual. Durante a vigência do projeto, trabalhou com quatro adolescentes, sendo
que a duração dos atendimentos variou de três meses a um ano. Tratava-se de sessões
semanais, individuais, com duração de uma hora. Com o encerramento do projeto, os
adolescentes foram desligados.
4.2.1 Percurso legal e resultados das intervenções
Meu acesso aos sujeitos de pesquisa incidiu diretamente no sistema judicial,
tendo sido este o único meio do qual eu dispunha para identificação dos mesmos.
Portanto, o intuito primeiro ao percorrer os espaços designados para lidar com a
população alvo da pesquisa era averiguar possíveis casos em andamento que me
possibilitassem um contato. No entanto, apesar dos entrevistados já terem lidado
diretamente com situações de abusos perpetrados por adolescentes, todos comentam que
o número de notificações ou de ocorrências é muito baixo. Não desconsideram a
existência de casos dessa ordem, mas acreditam que não costumam ser denunciados.
Como justificativa atribuem: desqualificação da tima (F.O.); o
reconhecimento de uma ação violenta, por tratar-se de adolescentes (B.M.). B.M. coloca
que situações como estas são preferencialmente tratadas no próprio ambiente familiar,
sem o envolvimento dos óros de proteção. Para V.W. a própria família da tima pode
optar por não publicizar o abuso, no intuito de preservar a criança.
Existe uma cultura na sociedade que [...] se um adolescente de 12,
13 anos, mexe com prima, com a irmã de oito, nove, isso é muito
trabalhado a nível de casa, entendeu, porque não é considerado
uma violência sexual, quer dizer, os pais trabalham com aquele
adolescente, diz 'não faça mais isso', de uma maneira punitiva
severa, usando de violência, ou então a partir da conversa. Quer
dizer, esse tipo de violência ainda ta muito intrínseco nas famílias,
eles ainda trabalham isso dentro do próprio contexto, sem passar
isso pra fora. em caso de adulto, isso é mais escraxado, ah,
porque é adulto esse tem que ser mais denunciado. Existem essas
77
duas nuances, em caso de adulto existe mais denúncia, em caso de
criança e adolescente a família já procura resolver no âmbito
familiar, sem necessariamente passar pelos órgãos de proteção, ta.
Então, ocorre, mas é pouco denunciado. (B.M.).
Nesse sentido, a intervenção judicial pode ser considerada prejudicial, tanto sob
a ótica da tima como daquele que comete a agressão. No que concerne à vítima, a
exposição aos operadores e procedimentos judiciais pode ser tão invasiva, que
acarretaria mais danos, levando ao que autores/as chamam de vitimização secundária
(Dobke, 2001; Correia e Vala, 2003), o que envolve minimização do sofrimento,
desvalorização e culpabilização da vítima. Em prol da preservação de sua imagem,
muitas vezes marcada pelo preconceito, torna-se melhor calar do que se expor ao
julgamento social. Quanto ao agressor, a denúncia implica em sua criminalização, e,
consequentemente, no cumprimento de penas que muitas vezes não estão em
conformidade com a demanda das timas, principalmente quando se trata de um ente
familiar ou de adolescentes. Além disso, é de conhecimento geral as represálias e
violências a que estão sujeitos os perpetradores deste tipo de violência, sob a lógica da
retaliação.
Quando há a notificação, os procedimentos a serem realizados são baseados no
Estatuto da Criança e do Adolescente e nas medidas por ele estipuladas. Na delegacia,
conforme aponta A.S., o adolescente presta depoimento ao escrivão, acompanhado de
um responsável, e posteriormente recebe atendimento da/o psiloga/o, com o intuito de
levantar mais informações sobre o caso e fornecer ao adolescente também
esclarecimentos sobre os procedimentos legais. A instauração do inquérito é de decio
do/a delegado/a; isso acontece se há alguma prova que confirme o fato. Foi instalado na
delegacia um projeto de atendimento familiar, coordenado por um instituto de formação
para psicólogos. O comparecimento aos atendimentos fica a critério da família, mas tem
se tentado estabelecer atendimento compulsório, por meio do juizado, como
complemento ao cumprimento da medida.
Segundo Rifiotis e Santos (2006), citando Martin (1997), a inserção do serviço
de Psicologia neste órgão era voltada para o atendimento e acompanhamento das
pessoas que registravam o Boletim de Ocorrência, numa tendência conciliatória, de
mediação, informação e aconselhamento, distinta de ação penalizante. No entanto, na
fala de A.S., sua atuação o parece ter um caráter necessariamente de prestação de um
78
serviço clínico, na medida em que sua função é colher informações para elucidar o caso.
O psicólogo assume, portanto, a figura de policial. Apesar da presença desse
profissional, não é feito de fato um acompanhamento terapêutico na delegacia, pelo
menos no que concerne aos adolescentes ali atendidos. Sua atuação parece se
diferenciar da do policial apenas no que se refere à instrumentalização para um
levantamento de informações mais cuidadoso, que busca em certa medida preservar o
adolescente de uma intervenção mais invasiva, além de fornecer a ele e à família
esclarecimentos quanto aos procedimentos a seguir.
A partir do BO é feita a investigação para apurar os fatos. Faz-se o levantamento
de provas, materiais e testemunhais, por meio de exame médico e depoimento das
timas, familiares e pessoas próximas. É redigido um relatório contendo todas as
informações do caso e encaminhado ao Juizado da Infância e da Juventude. Lá, o
adolescente é atendido primeiramente pela promotoria, que realiza a audiência de
apresentação, um direito do adolescente onde ele tem a oportunidade de “contar a
versão dele, pra autoridade que é depois a que tem atribuição pra oferecer
representação ou não, ou oferecer uma medida” (A.S.). É feita uma avaliação da
situação, do histórico de ato infracional, situação familiar, repercussão do ato, e,
havendo indícios, a promotoria o representa ou aplica medida. Caso contrário, é pedido
o arquivamento.
Segundo V.W. e F.O. na maior parte dos casos de abuso é aplicada a medida de
prestação de serviços à comunidade ou de liberdade assistida, cumulado com uma
medida de proteção para atendimento psicológico, realizado pelo CAPS-I, na rede de
saúde mental ou em consultório particular, quando a família do adolescente pode arcar
com as despesas. Essas medidas são aplicadas já pela promotoria. Se for considerado
um caso grave, inicia-se um processo e, ao final, ele pode receber uma medida de semi-
liberdade ou internação, aplicada pelo juiz. O ministério público vendo que o caso é
muito grave, [...] propõe uma representação e o adolescente vai ser ouvido, vai
oferecer defesa, vão ser ouvidas testemunhas, o ser oferecidas alegações finais de
uma parte e de outra e o juiz vai proferir sua decisão final.(V.W.). Caso entenda-se
que o adolescente precisa ser retirado de circulação como uma medida emergencial
ainda durante a tramitação do processo, por possuir um perfil agressivo”, ser multi-
79
reincidente ou por representar perigo para a vítima, existe o recurso de contenção
proviria, em que ele fica retido por cerca de 40 dias.
Segundo F.O. a medida de liberdade assistida vai trabalhar com o adolescente
“no sentido de tentar descobrir porque que aconteceu aquilo e evitar que aconteça de
novo”. A inclusão do adolescente em programa de acompanhamento sócio-familiar está
baseada no artigo 101 das medidas de proteção do ECA: “inclusão em programa
comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente; requisição de
tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial”
(Brasil, 1990). F.O. esclarece que aqui se encaixa a possibilidade de encaminhamento
do adolescente para o programa Sentinela.
V.W. explica que apesar da atuação do juizado voltada à proteção, o adolescente
o é tratado como uma vítima, mas como alguém que
precisa de instrumentos, pra superar o que fez e voltar pra
sociedade, continuar sua vida de uma forma melhor. [...] O
estatuto quer justamente isso, que nós tenhamos uma oportunidade
de recuperação, condições de recuperação, muito mais ideais,
muito melhores do que tem o sistema penitenciário. (V.W.).
As medidas protetivas visam potencializar os efeitos das cio-educativas. Estas
duas formas de medida se complementam, de modo que uma responsabiliza o
adolescente, e a outra fornece acompanhamento psicossocial, fazendo com que ele
possa rever e melhorar sua situação. Veronese (2005) destaca que, constitucionalmente,
adolescentes e crianças são inimputáveis, ou seja, não se lhes atribui responsabilização.
Mas, apesar de serem inimputáveis em termos penais, são responsabilizados
estatutariamente. Nesse sentido, mesmo não tendo um caráter punitivo, o ECA pre
que os adolescentes respondam por seus atos, numa ótica também de proteção. A
aplicação de medidas protetivas implica em uma concepção de que a punição não é a
única resposta ante o conflito com a lei.
O Estatuto compreende que a melhor forma de intervir junto ao
adolescente em conflito com a lei é incidir positivamente na sua
formação, servindo-se, para tanto, do processo pedagógico, como
um mecanismo efetivo, que possibilite o convívio cidadão do
adolescente autor de ato infracional em sua comunidade.
(Veronese, 2005, p.113).
80
A educação se apresenta, portanto, como uma estratégia de intervenção. No
entanto, apesar de ser uma alternativa ao sistema penal, ela carrega também alguns
problemas. Esta finalidade educativa não está orientada para o desenvolvimento da
autonomia do jovem e promoção de sua emancipação, mas com um intuito de
ressocialização e prevenção de novos delitos. “O objetivo é fazer com que o adolescente
seja capaz de aprender e respeitar valores reconhecidos na sociedade, de maneira a
promover sua integração como parte dessa mesma sociedade, a fim de que não volte a
delinqüir.” (Monteiro, 2006, p.70). Porém, não significa que com a intervenção ele tome
consciência do erro, opte pela mudança e não volte a cometer infrações, visto que se
trata de um processo subjetivo não passível de controle. Além disso, trata-se de uma
intervenção desconectada da realidade do adolescente, centrada no indivíduo, que
desconsidera o contexto social que conduziu à prática do crime.
Monteiro (2006) entende que a finalidade educativa das medidas aplicáveis ao
adolescente é um “mito que se alimenta para justificar a legitimidade da intervenção
estatal (p.71). O ECA se coloca como uma possibilidade de regulação por parte do
Estado para a prevenção e solução de conflitos que envolvam crianças e adolescentes.
Na prática se observa a total ausência desse caráter pedagógico.
Para a escolha da medida a ser aplicada serão averiguados o perfil daquele
adolescente, quem que ele é, o que ele fez, ele estuda, ele não estuda, em que
comunidade ele vive, pertence a uma gang, em que condições se deu esse ato, tudo isso
é importante pra atribuição de que medida deve ser aplicada (V.W.). Busca-se
averiguar também o possível histórico de violência vivenciado pelo adolescente. É
importantíssimo que se recupere nele, é, o que aconteceu, se solucione isso, se
encaminhamento pra isso, pra resolução desse problema. O tratamento é muito mais
voltado para o jovem, para aquilo que aconteceu naquele momento no hisrico dele,
do que no caráter de uma forma genérica” (V.W.).
Como se pode observar, o ato em si não é o fator mais relevante para a avaliação
do caso. O foco recai sobre a situação de vida do adolescente que cometeu o ato
infracional. Nesse sentido, o sistema judicial faz uso de estereotipias, que irão respaldar
a medida a ser tomada. Aparece o que Vera Regina Andrade (2005) chama de
criminalização seletiva. …impunidade e criminalização (e também a vitimação) o
orientados pela seleção desigual de pessoas de acordo com uma fortíssima estereotipia
81
presente no senso comum e dos operadores do controle penal, e não pela incriminação
igualitária de condutas” (Andrade, 2005, p.82). Buscar-se-ão indícios que confirmem o
crime baseados em suas condutas e situação de vida, sendo que aqueles que mais se
adequam ao estereótipo são mais facilmente imputados. “Em um processo penal não se
julga o crime sexual isoladamente, mas, sobretudo, os indivíduos envolvidos”
(Ardaillon e Debert, 1987, p. 12). São acionados determinados atributos de tima e de
agressor que possam explicar, justificar, confirmar ou negar a ocorrência do fato. Tais
atributos são norteados também pela condição social dos envolvidos, sendo que aqueles
pertencentes às camadas menos favorecidas estão mais vulneráveis à intervenção do
Estado. Tanto a qualidade da pessoa que sofre a violência como a de quem a pratica
aumenta ou diminui o crime.
"A distância social modula a escala de gravidade dos crimes em
uma sociedade de classes, distribuindo o peso das violências
segundo a condição das timas. A posição social é decisiva. [...] A
pobreza do autor do estupro, ao contrário, aumenta a gravidade do
seu gesto, conseqüência igualmente mecânica da distância social"
(Vigarello, 1998, p.23).
Basta observar a população carcerária (Andrade, 2005) e os registros colhidos ao
longo da história dos processos penais (Vigarello, 1999) para ter uma amostra da
seleção desigual.
No programa Liberdade Assistida, que atende também a medida de prestação de
serviços à comunidade, o adolescente é acompanhado durante no mínimo seis meses,
por um profissional do serviço social ou da psicologia,
que acompanha esse adolescente nos diversos segmentos da vida
dele. [...] O primeiro, o objetivo maior é criar um vínculo de
confiança pra que esse técnico conheça o adolescente, estabeleça
esse vínculo né, e o adolescente a mesma coisa, e a partir dali eles
comecem a buscar juntos um projeto de vida, ne, pra que ele saia
daquele momento do ato infracional. (M.R.).
Os atendimentos podem ser semanais ou quinzenais, dependendo do caso.
Durante os seis meses são feitos relatórios situacionais e encaminhados ao juiz para
acompanhamento. Ao final desse período é realizado um estudo de caso para analisar se
o adolescente já está apto a ter o processo dele exonerado. É comunicado ao juiz se ele
cumpriu a medida ou se deve permanecer no programa.
82
Existem nove profissionais atuando no LA, para uma demanda de 500
adolescentes. Por vezes os adolescentes encaminhados ficam sem atendimento, por não
haver um número de profissionais suficiente. Se o jovem descumpre com a medida,
comunica-se ao juiz e pede-se uma advertência, a ser dada em audiência. Isso pode levar
meses, podendo acarretar em perda do contato com o adolescente. É um processo
lento e gradual” (M.R.).
Segundo M.R. os casos de abuso não costumam passar pelo LA, mas são
direcionados ao Sentinela. O juiz também coloca que os encaminhamentos são feitos
para este programa como parte da medida de proteção. No entanto, o Sentinela não é
responsável pelo atendimento do autor de agressão, mas sim das vítimas e suas famílias.
Apenas se o agressor é membro da família, este é inserido nos atendimentos. Nesse
caso, o adolescente que pratica um abuso irá receber atendimento psicossocial com
psicóloga e assistente social. Participaria de atendimentos individuais e grupais,
envolvendo a família. Em decorrência da demanda ser muito alta, suspenderam-se os
atendimentos grupais. Existe a proposta de formação de grupo de agressores, mas no
momento é inviável.
B.M. coloca que o atendimento direcionado ao adolescente é diferenciado
daquele fornecido ao adulto.
Com o adolescente, nós temos que trabalhar a perspectiva que
possa ter sido apenas um ato isolado, ta, que ele esteja
descobrindo sua sexualidade, é aquela história, não é que eu estou
justificando a agressão dele, ele cometeu um ato infracional,
que eu, na perspectiva do adolescente tenho que trabalhar o vel
psicossocial, que ele entenda que aquilo foi um ato errado que ele
cometeu, mas que isso não vai influenciar na sexualidade dele no
futuro. E vai querer reprimir a sexualidade dele, muito pelo
contrário, a gente quer que ele tenha uma sexualidade normal.
(B.M.).
Considera que no caso de agressores adultos a probabilidade diminui, por se
tratar de uma pessoa que já teria consciência do que faz, de que praticou um ato
considerado crime, e deve ser responsabilizado por isso. Portanto, a abordagem é
diferente. Uma é aquele que a gente ainda pode vir a trabalhar pra que não, né, que
ele possa ter um desenvolvimento normal sem cometer violência, o outro teve todas
as chances e cometeu, digamos assim. (B.M.). F., por sua vez, coloca que o
83
procedimento é o mesmo. Ele é chamado para atendimento psicológico junto com a
família, porém, “vai dele o comparecimento ou o”.
O fato de serem adolescentes parece diminuir a gravidade do ato, por se tratar de
um período da vida caracterizado como de transição, de mudanças, portanto, ainda não
cristalizados na condição de abusadores. A incongruência de responsabilizar uma
pessoa que não pode ser legalmente responsabilizada (em termos penais) aparece todo o
tempo. Se por um lado o adolescente é um ser em mudanças que não atingiu maturidade
suficiente para ter plena consciência pelos seus atos, ele deve responder por eles na
medida em que infligiu a lei. Tal ambivalência se repercute na atuação dos
profissionais, que oscila entre um caráter protetivo e voltado à recuperação do jovem, e
em outros momentos, entendendo-o como alguém que deve ser dotado de
discernimento acerca do que é certo ou errado, e, portanto, capaz de evitar condutas
inaceiveis.
Observa-se que não há de fato um sistema estruturado para lidar com
adolescentes autores de abuso sexual. A medida aplicada pelo juizado não parece ser
coerente com a situação específica de abuso, sendo tratada como um ato infracional
como um todo. Nesse sentido, não uma orientação que trabalhe aspectos relativos à
prática do abuso. Em geral, a medida aplicada toma forma de punição, pois o
adolescente se vê obrigado a cumprir com as atividades imposta por esta. Os programas
Liberdade Assistida e Sentinela são considerados os espaços onde poderia ser feita a
orientação psicopedagógica, mas nenhum dos dois parecem estar instrumentalizados
para tal, quando se trata de abusos sexuais praticados por adolescentes, lembrando que o
foco do Sentinela são as timas, e não os agressores. Como destacam Mello e Medrado
(2008),
A função punitiva não logra compreender os meandros de uma
relação que descamba em violência, nem serve como medida que
inquiete os autores de violência impedido-os de agir com violência
por medo da punição. Assim, a punição o tem ajudado na
prevenção nem na compreensão da situação, especialmente
porque a Lei universaliza as situações. (p.83).
Questionados sobre os possíveis resultados das intervenções para a contenção da
violência, os entrevistados o possuíam informões concretas quanto à ocorrência de
reincidências, nem um número suficiente de casos atendidos para que pudessem avaliar
84
a efetividade destas intervenções. No entanto, todos acreditam que é possível, pelo
menos em algumas situações, evitar novos episódios de violência. A.S. se pauta na idéia
de esclarecimento, que o adolescente perceba sua conduta violenta, e assim, deixe de
exercê-la.
Eu acredito que em alguns casos seja possível, é, assim, a partir
dessa primeira abordagem que pretende né, estranhar, nomear a
violência né, falar também sobre a violência sofrida pelo
adolescente, e, juntando essas duas coisas, encaminhar, então
assim, eu acredito que é possível, é, romper com essa violência.
(A.S.)
No entanto, chama atenção para a morosidade no tratamento de situações como
essa, podendo se estender por anos, desde a notificação ao cumprimento da medida. Tal
demora por vezes é decorrente da própria recusa do adolescente em se envolver com o
processo, o comparecendo às audiências ou negando-se a cumprir as medidas
aplicadas. A.S. acredita que quando tem a adesão da família, os efeitos o mais
positivos. Ainda assim, o trabalho que ela realiza na delegacia é apenas o início, existem
muitas outras instituições que irão lidar com o problema. Nesse ínterim, ela traz a
violência sofrida pelo próprio adolescente nesse percurso.
O caminho é muito longo [...] tem a conclusão dos procedimentos
policiais, tem a fase judicial, que demora, [...] o cumprimento da
medida é complicado, toda a estrutura né, [...] não tem pessoal,
aqui também né, quando a gente não consegue localizar, a família
se muda, então os meses vão se passando. [...] Eu acredito que se
tiver uma pessoa né, se tiver algum efeito em alguma dessas
intervenções né, do adolescente perceber algumas coisas, da
família aderir em algum atendimento desses, né, mas realmente,
são tantas as pessoas que participam desse processo, que eu não
sei mesmo da efetividade. Eu até tenho conversado sobre isso,
sobre as outras violências que eles sofrem, durante os
atendimentos, né, que às vezes buscam proteger, mas não
protegem, às vezes nem buscam né, nem buscam mesmo. (A.S.).
B.M. coloca que são poucos os casos de reincidência, mas atenta para a
necessidade de se trabalhar com toda a família, incluindo o autor da agressão, para
diminuir a probabilidade de ocorrerem novos episódios. Mas, apesar de acreditar na
intervenção, acha necessário um monitoramento constante sobre o autor.
85
Existe reincidência, existe sim, que felizmente é um número bem
reduzido de reincidência, ta, porque quando se trabalha bem com a
família e com aquela vítima e quando se trabalha também com o
agressor, claro que a probabilidade de reincidir se torna bem
mais, né, bem mais difícil. Mas a gente entende que tem que ter
tratamento pra todos [...] porque eu vou ta colocando um agressor
em potencial na rua, quer dizer, ele saiu daquele contexto, daquela
família, mas nada não me garante que não venha a abusar outra
criança, então é preciso que se tenha um atendimento eficaz
também com esse agressor, né, ele precisa ser monitorado, né,
monitorado constantemente senão vai voltar a atacar de novo.
(B.M.)
F.O. afirma não saber se é possível evitar a repetição da violência, no entanto
coloca: Eu tenho que confiar na intervenção , eu acredito na intervenção, não
nessa, mas como todas as outras ”. Acredita que abusos praticados por adolescentes
em geral são episódicos. Porém, parte do princípio que as pessoas não mudam, né, vão
aprender a lidar de alguma forma, vão aprender a lidar, com a angústia, né, com o que
leva ela a fazer aquilo, então de alguma forma ela vai aprender a lidar com aquilo e
talvez lidar de uma outra forma que não cause danos ao outro.Tanto F.O. como B.M.
parecem querer acreditar na intervenção, e na possibilidade desta conter a violência. No
entanto, a prática do abuso parece arraigada ao sujeito, como uma característica
constituinte, havendo mudanças, portanto, apenas no âmbito de sua conduta.
A promotora V.W. estende a questão a qualquer forma de ato infracional, e
coloca que a intervenção por si não produz mudanças em decorrência da conjuntura
social em que o jovem está inserido. Acredita possuírem bons instrumentos, mas a falta
de pais que sejam modelos exemplares para os filhos, a dissociação existente entre o
que a escola oferece e as necessidades dos jovens, a realidade em que vivem, o
envolvimento com o tráfico e a força do grupo,o empecilhos, no seu entender, para se
alcançar bons resultados.
A possibilidade da mudança aparece atrelada ao esclarecimento e ao tratamento,
como meios para fazer com que o autor do ato infracional resignifique seu ato,
reconhecendo a conduta violenta, ou, pelo menos, infratora, e apreenda outras formas de
agir, dentro dos parâmetros legais. Com a idéia de esclarecimento subentende-se que
aquele que comete o abuso o faz de forma impensada, sem noção de que está praticando
uma violência, e, ao tomar consciência disto, deixaria de exercê-la princípio
86
pedagógico. o tratamento, pode indicar também uma finalidade educativa, mas, am
disso, a presença de uma patologia que precisa ser curada. De qualquer maneira, o
objetivo parece estar mais na prevenção, do que necessariamente numa terapêutica.
Um tratamento dessa ordem, prescrito judicialmente, carece de um componente
fundamental, como destaca Amal Hachet (2005), que é a demanda do sujeito. O efeito
de tal terapia sob injunção permanece ilusória, diante da ausência de uma verdadeira
vontade, por parte do sujeito concernido, de nela inscrever-se ativamente” (Hachet,
2005, p.53). No entanto, o relatório da Save the Children (2000) indica que experiências
em outros países demonstram que adolescentes autores de agressão que receberam
tratamento, em sua maioria, não reincidem. Mas, destaca também que recidivas não são
comuns, mesmo entre aqueles que não receberam intervenção. D.A, psicóloga do
Projeto Fênix, comenta que o desejo de mudança muitas vezes faz parte daqueles que
cometem agressão, pois tal condição é também geradora de sofrimento para eles.
Eu trabalhei com adolescentes, é outra coisa, mas em casos de
adultos existem estudos que mostram isso, que, nessa questão do
incesto, tem pai que não quer, se sente mal, sente culpa, mas não
consegue parar, então com certeza é possível fazer um trabalho em
relação a isso. (D.A.)
Esta, ao relatar sua experiência de atendimento com adolescentes notificados
pela prática do abuso, menciona que todos apresentaram resistência ao atendimento,
"alguns bem mais do que outros", sempre negando a autoria dos abusos. Um deles
admitiu a participação no ato, mas o o reconhecia como abuso. Com o tempo foram-
se quebrando essas resistências, e eles passaram a freqüentar as sessões por vontade
própria. Por sua vez, a demanda do projeto era a responsabilização desses jovens,
supondo que eram autores de abuso sexual. Mas, com o desenrolar do processo
terapêutico, via-se que em alguns casos essa não era exatamente a orientação mais
apropriada para o trabalho. Por mais que os atendimentos tenham sido uma imposição,
D.A. comenta que sempre havia uma demanda.
Mesmo que seja uma demanda de ter se sentido injustiçado, por ter
sido encaminhado pra esse trabalho, então tem uma demanda. O
que eu fiz foi construir o vínculo e descobrir essa demanda. Foi
assim, deixando eles à vontade, brincando com jogos, com os
menores a brincadeira ajudava a construir esse vínculo, pegando
nos interesses deles. (D.A.)
87
Obviamente não existem garantias quanto à eficácia da intervenção, mas, há que
se partir de algum lugar. Para tanto é necessário adequá-la às situações específicas,
levando em conta os aspectos que estão norteando e conduzindo à prática do abuso.
Seria pensar uma intervenção particularizada, projetada para as demandas dos sujeitos
envolvidos, em situações singulares. No entanto, não é essa a forma de operar do
sistema de justiça. Ele traduz determinadas condutas sociais em códigos, passíveis de
interdição. Dessa forma, o mesmo tratamento será dado a todas as situações que sejam
classificadas como uma violência sexual.
4.2.2 Concepções sobre o autor de agressão sexual
Procurei averiguar, partindo da experiência dos profissionais no contato com
adolescentes que praticaram abusos, que concepções possuem acerca destes, que
aspectos consideram importantes como desencadeantes dessa prática. Em geral, fazem
uma distinção entre o abusador ocasional, episódico, que se vale de uma determinada
situação, e aquele que pratica abusos sistemáticos, atribuindo-se a este uma condição de
patologia, provocada pela própria vitimização durante a infância. A.S. traz a prática do
abuso como reprodução da violência, quando aquele que sofre passa depois a se
identificar com o perpetrador, atuando da mesma forma:
Eu tenho visto é realmente a reprodução da violência, né, é, os
adolescentes [...] todos, todos tem histórico de violência, de ter
sofrido violência, [...] vários tipos né, de violências físicas, sexuais,
né, psicológica, negligência [...] Então, o que eu tenho visto é
realmente a reprodução da violência, de várias formas, [...] da
criança que sofreu a violência né, crescendo e se identificando
com o agressor né, mudando do papel de vítima pra agressor né, e
atuando, atuando a violência sofrida, isso eu tenho visto nesse
tempo de experiência em violência, no contato com vítimas e
agressores, até os adultos né. (A.S.).
O juiz concorda que os pais têm papel importante para a perpetuação de
situações de abuso, tanto no sentido de terem vitimizado os filhos, como também de não
88
terem lhes conferido o devido cuidado. Parte do princípio que os pais atuam como
modelo, que será posteriormente mantido pelos filhos.
Sempre que eu vejo essas situações, eu olho pro pai e pra mãe de
um modo muito desconfiado sempre, eu acho que esse guri foi
vítima de abuso, de alguma forma foi sexualizado antes do tempo,
de alguma forma ele teve contato com isso de uma forma
equivocada. [...] Das poucas vezes que eu vi aqui essa sensação foi
muito forte, pelo tipo de adolescente, pelo tipo de pai, né, [...] pelo
tipo da mãe, principalmente pelo tipo do pai, né, parecendo assim
um cara que menospreza a vítima, sabe, que lida com a vítima com
menosprezo. Teve um mesmo assim que ficou nítido pra mim isso,
é, tirando pela tese de que os filhos são os pais em regra né, então,
pô, taí, ta explicado então. (F.O.).
Hilary Eldridge (Save the Children, 2000), embasada em sua experiência no
Reino Unido, afirma que não mais que 50% dos agressores sofreram abusos sexuais na
infância. Em pesquisa realizada para investigar fatores que fazem com que jovens que
o sofreram abusos agridam sexualmente outros jovens, verificou-se que um fator de
risco seria a experiência de outras formas de violência e de rejeição no ambiente
familiar. A violência e a negligência, portanto, continuam presentes. Outros autores
defendem essa relação (CSOM, 1999; NCFV, 1990; Jesus, 2006), colocando ainda que
os meninos que testemunham a violência doméstica tendem a ter comportamentos
agressivos mais presentes que no caso das meninas. A exposição a situações de
violência, não na família, mas na comunidade como um todo, podem também influir
para a conduta violenta. Tais indicativos podem servir de base para a intervenção com
os jovens, mas jamais devem ser tomados como preditores de agressividade.
A reconhecida prevalência de ações violentas praticadas por meninos, ainda que,
conforme autores/as revelam (Safiotti, 2004; Vivarta, 2003), as meninas estejam mais
propensas a sofrerem abusos sexuais, demonstra que tais condutas não se restringem
apenas à repetão de experiências vividas. Como destaca Kaufman (1995), para todo
ato de violência existe um contexto social constituinte. As histórias dos dois
adolescentes relatadas por Messerschimidt (2000) (apresentado no item 2.2.1)
demonstram que existem muitas outras circunstâncias que a justificam, fortemente
instauradas numa cultura permissiva e instigadora de determinadas condutas violentas.
Não significa, com isso, deslocar a fonte geradora da violência para o meio. É preciso
89
investigar como esses adolescentes constroem e dão sentido aos seus mundos
particulares e compreender as maneiras pelas quais eles interpretam suas vidas e o
mundo ao redor deles.
As duas entrevistadas do Sentinela chamam atenção para a especificidade de
cada caso; não consideram possível estabelecer um padrão ou uma causa determinante.
Por atuar num programa de proteção a timas, B.M. ressalta a necessidade de
responsabilizar legalmente o agressor, como medida para a contenção da violência.
Existem várias linhas de pensamento, né, é, que dizem que é um
distúrbio psiquiátrico, que é pedófilo, que é um abusador
situacional, depende da situação né, mas existem várias linhas de
pensamento. Eu penso, cada caso pra mim é um caso, a gente vai
ter que avaliar o que levou a pessoa a fazer aquilo, entendeu?
Pode ser realmente um distúrbio psiquiátrico, que tem que ser
trabalhado como um distúrbio psiquiátrico, mas a nível de
proteção, ele tem que ser visto como um agressor, entendeu, e ele
vai ter que responder por isso. [...] Então a gente pela experiência
que a gente tem entende que uma coisa tem que seguir com a outra,
entendeu, o processo de criminalização e a terapia tem que seguir
juntos. (B.M.)
Eu acho que o que leva em si são uma soma de fatores né, [...] eu
acho que, aquela história, cada caso é um caso e a gente tem que
avaliar assim, [...] se ele foi uma vítima também quando ele era
menor né, se realmente a criação que ele teve, o histórico dele, a
família que ele tem, como é que ele foi criado, questão cultural
também né. (F.).
A criminalização do agressor pode ser necessária para a tomada de medidas mais
imediatas que retirem a tima da situação de violência, no entanto, pode ser
contraproducente no sentido de que os responsáveis, mesmo cientes da conduta abusiva,
evitem inserir o adolescente em programas de tratamento, receosos da intervenção legal.
A promotora V.W. diferencia dois perfis de adolescentes que praticam abusos, o
situacional e o patológico. No primeiro caso, a promotora A.L. traz a atuação da tima
como incentivadora, ressaltando o papel da sedução. Geralmente a menina tende a um
perfil de, um pensamento muito mais adulto do que ela representa, tem uma estatura,
tem um porte, mesmo um jogo de sedução ali que eles não conseguem identificar
como sendo uma relação de adolescente ou entre criança e adolescente, agem como se
adulto fossem assim, né” (A.L.) No segundo caso, afirma que a vitimização seria
90
completa, visto tratar-se na maioria das vezes de crianças como alvo do abuso.
Novamente aqui a violência aparece como resultado de situações semelhantes
vivenciadas pelo adolescente, que passa a reproduzir o padrão:
Eu vejo dois perfis distintos de adolescente, o adolescente que
comete o atentado violento ao pudor ou o estupro, é, abusando de
uma determinada ocasião criada pra que o ato acontecesse. Ele
tinha uma namorada que queria muito e não conseguiu e comete o
ato, ou ele queria, não era uma namorada, mas ele queria aquela
determinada menina que faz parte de uma gang e exerce seu
domínio naquele momento pra subjugar a vítima. Existe um outro
perfil de adolescente que é o adolescente que normalmente
sofreu um abuso [...] e que se vale da sua condição de
adolescente pra vitimizar crianças, normalmente crianças muito
menores que eles, normalmente atentado violento ao pudor, e
normalmente numa relação homossexual. Então são dois perfis
bem distintos, o primeiro caso normalmente vai ser um caso
episódico, vai haver aquele único ato na vida dele e esse ato não
vai se repetir, em outro caso, onde uma história, é, de
patologia, onde ele foi vitimizado por um parente, por um vizinho,
aí sim há condições de, de replicar aquele fenômeno né. (V.W.)
Ao diferenciar situações em que a vitimização seria completa, e outras em que
uma suposta participação da mulher como provocadora, ainda que não
propositadamente, fica clara a manutenção de princípios que a culpabilizam de alguma
forma, se o como responsável pelo ato, mas como partícipe. Isso diminui a
importância do ato sexual impositivo, ao selecionar critérios de vitimização,
desqualificando as experiências singulares.
Até recentemente (alteração feita em 2005) alguns tipos penais referentes aos
crimes sexuais faziam menção à mulher honesta (art. 215 e 216 do digo Penal),
restringindo assim a populão de mulheres timas, pois aquelas que possuíam uma
conduta sexual socialmente condenável estavam excluídas. A legislação mudou, mas
o significa que esta mudança vai se refletir de imediato nos valores sociais e na forma
de operar do sistema judicial. Se o comportamento por si , sua conduta sexual, deixa
de ser determinante, seu papel no desencadeamento da violência, no entanto, parece
ainda se configurar como relevante, na medida em que a mulher tima é
responsabilizada por se colocar em situação de risco e estimular a ação do homem que a
agride.
91
Uma limitação do julgamento de crimes sexuais é que eles acontecem em geral
sem a presença de testemunhas e a única prova material registrada são os possíveis
danos corporais causados na tima, sendo de especial relevância, portanto, a sua
palavra (Andrade, 2005). Assim, abre-se margem para a investigação de “outros
elementos probatórios” (idem, p.92), ou seja, indícios que corroborem sua palavra,
entrando em cena a vida pregressa da mulher, seu caráter e sua moral. Na medida que
ela recorre ao sistema jurídico e solicita julgamento, acaba tendo que provar que é uma
tima real e não simulada” (idem, p.93).
Tal posicionamento não é exclusivo do sistema de justiça. Andrade (2005)
destaca que não de fato uma ruptura entre as relações familiares, profissionais, as
relações sociais em geral, que violentam e discriminam as mulheres, e o sistema penal
que as protegeria, mas faz parte de um continuum entre controle social informal
(especialmente a família) e o formal exercido pelas instituições jurídicas. O que se
observa é uma "sociedade complacente diante da tese da provocação feminina", numa
"tendência a reduzir a mulher que 'realizou' o ato ao estado de mulher que consente"
(Vigarello, 1998, p.31-43).
Quanto ao agressor, o critério de patologia a ele atribuído parece estar baseado
no número de ocorrências e no alvo do abuso. Se a vítima é uma criança, é inconcebível
qualquer participação no ato, sendo de total responsabilidade do agressor, que é, então,
patologisado e tem sua conduta explicada pelo processo de vitimização vivenciado por
ele. Já se a violência é praticada contra pessoa de idade próxima e/ou mulher, é um caso
episódico, e conta com a participação da tima. A repetição está atrelada à patologia,
enquanto aquele que se aproveita de uma dada ocasião é considerado um agressor
episódico. Não parece ser possível conceber o uso sistemático da violência se não pela
patologia. Figueiredo (2000) destaca que para o sistema legal, a violência sexual é
motivada pelas necessidades sexuais do agressor. Para além dessa perspectiva, atenta
para a relação entre o estupro e relações de poder, utilizado como um instrumento para
subjugar, dominar e humilhar a tima.
This two different focuses, or views, imply different objects of
punishment: when we focus on the sexual aspect of the offence, the
presence of physical violence becomes and important matter, and
the offender is punished and possibly sent to prison to protect
society from his ‘uncontrollable’ sexual drive. On the other hand,
when we focus on the elements of power and domination expressed
92
in a rape, the intrinsic violent nature of the act comes to the fore
and physical violence is no longer measure to determine the
seriousness of the offense. According to this second interpretation,
what should be punished and controlled by a legal decision on a
rape case is the wish to dominate and humiliate the other, a wish
that can be satisfied through several means, of which forced sex is
just one. (p.34-35).
Os entrevistados afirmam não existir um padrão característico entre
perpetradores de abuso sexual, pelo menos que possam ter identificado em suas
experiências com essa população. A.S. menciona apenas que, além do histórico de
violência, da falta de uma pessoa, de alguma pessoa que tivesse sido referência, que
tivesse acreditado na violência, que tivesse tentado proteger”, em geral são
adolescentes muito sozinhos, [...] que, por exemplo, que os pais não conhecem os
amigos, não sabem o que eles fazem durante o dia, né, são adolescentes muito sozinhos,
isso eles me relataram.”. B.M. coloca que, ao observar os números gerais dos
atendimentos, a maioria dos autores são pais e padrastos, com idade entre 35 e 45 anos,
no entanto, tem ciência de que não se trata de um perfil, até pelo fato de que estes
podem ter iniciado as práticas de abuso quando mais jovens. F. menciona a evitação, o
o reconhecimento do ato violento ou de sua participação nele.
Tem a característica de, daquela evitação né, de dizer que não
cometeu, dizer que, ou, é, que a pessoa consentiu, ou ela tava afim,
[...] tem essa questão, do adulto, [...] de negar, por mais que tenha
mil provas e que a vítima esteja dizendo, né, mesmo que ele ser
preso, ele diz que não fez nada, que não tem culpa, ele não se
percebe né. (F.).
É de se entender essa negação do ato, visto que tal reconhecimento imputa ao
perpetrador conseqüências legais. Mas, na dinâmica da violência sexual, o não
reconhecimento da conduta abusiva vai além do temor das conseqüências. De fato se
acredita que a tima o provocou, manifestou desejo ou se colocou disponível para o
ato. La negación y la minimización del daño son dos aspectos muy frecuentes en las
pautas de comportamiento de los agresores adolescentes”. (Save The Children, 2000,
p.31). Nesse mecanismo os autores observam atribuição da culpa à tima, como
incitadora do ato, falta de empatia quantos aos efeitos que possam ter sido produzidos,
93
bem como crença de que a tima não se recordará do fato e, portanto, não acarretará
danos.
B.M. ressalta ainda que se trata de uma pessoa que vive de maneira normal”,
que o possui indicadores que o identifiquem como “abusador”. Ou seja, é uma pessoa
normal, que pratica ações anormais.
O que eu posso te dizer é que não ta escrito na cabeça dele
abusador sexual, ele é um homem, que vive na comunidade de
maneira mais normal do mundo, entendeu, é uma pessoa até livre
de qualquer suspeita, ninguém imagina que ele seja um pedófilo,
ou abusador sexual, ninguém imagina, ele é uma pessoa altamente
normal, não é um louco, 'ó, toma cuidado com aquele ali é um
louco, ele gosta de criança', não, ele é uma pessoa aparentemente
normal, que por trás dessa normalidade existe um padrão, né,
de abusador, um comportamento de abusador, que gosta de sexo
com crianças, né. (B.M.).
Apesar do reconhecimento de que qualquer pessoa pode praticar uma violência
sexual, quase todos concordam que uma patologia subjacente que explica sua
conduta, com uma etiologia fundada na vivência familiar. Não nego aqui a existência de
atos patológicos de violência ou que a violência possa ser reproduzida através das
gerações. No entanto, trata-se de um femeno que transcende a esfera individual.
Muitos/as autores/as trazem importantes contribuições inscritas nas constrões sociais
das relações de nero e, por sua vez, nos mandatos de masculinidade, intrinsecamente
relacionados às construções da sexualidade, e como esta articulação constitui o
amálgama que desenreda a violência sexual (Segato, 1999; Kaufman, 1994; Machado,
1998; Messerchimidt, 2000).
Não me parece possível traçar as raízes da violência, circunscrevendo numa
explicação generalizante o que leva à prática do abuso. Diversos podem ser os
elementos precipitadores: obtenção de prazer e satisfação de um desejo; reprodução de
condutas aprendidas; meio para resolução de conflitos; expressão de donio e poder;
reafirmação do ideal de masculinidade; demonstração da capacidade viril; uma
experimentação sexual que despropositadamente resulta em danos. Até certa medida,
"cada caso é um caso", sim, mas não perdendo de vista toda a conjuntura social,
hisrica e cultural que fundamentam nossas relações e formas de agir no mundo.
94
4.2.3 Concepções sobre a violência sexual
Ao falar de violência sexual todos os entrevistados mencionam a idade como um
critério importante para definir um ato como tal. Todos concordam que crianças e
adolescentes não possuem condições para decidir se envolver num ato sexual, e,
portanto, o fato de terem uma relação com adultos já é em si tratado como uma
violência. Quando o caso envolve adolescentes como agentes da agressão, entra em
questão a diferença de idade entre as partes.
Todos os profissionais entrevistados estão de alguma forma ligados ao campo
judicial, portanto o marco legal para a maioridade tem grande importância. B.M. é
categórica ao afirmar que todo adolescente e criança envolvidos em atos sexuais são
necessariamente tratados como timas. Menciona que quando se trata de uma criança
que comete um ato libidinoso contra outra o tratamento dado é diferenciado, no entanto,
buscam alertá-la de que se trata de um ato infracional. Parece que a orientação se pauta
basicamente no reconhecimento de uma conduta sancionada legalmente, e nesse sentido
deve ser contida.
Por exemplo, um menino de oito anos vai lá, mexeu numa menina
de cinco, seis anos. Aí, lógico, criança, a gente vai colocar a
psicologia pra funcionar com essa criança. Nós não podemos
registrar um boletim de ocorrência contra um menino de oito anos,
mas então ele é trabalhado de maneira diferenciada, mas não
esquecendo que cometeu um ato infracional. Ele não vai responder
inquérito policial nem criminal por isso, que ele vai ter que
tomar consciência a nível de psicologia que cometeu um ato
infracional (B.M.).
A dimensão infracional ganha destaque. Reconhecer uma conduta como
infração não significa reconhecê-la como violenta. Nesse ínterim, corre-se o risco, como
destaca Maria Lúcia Leal, de reduzir a violência sexual à uma ação jurídico-criminal,
ressaltando “uma concepção repressora, moralista e vitimizadora” (Vivarta, 2003, p.48),
perdendo sua dimensão social e psicológica. Deve-se considerar que os casos que
chegam ao Sentinela foram encaminhados pelo juiz, e, portanto, foram reputados como
crime, sendo impreterivelmente tratados como tal. É o juiz que vai decidir; se passou
pela nossa mão, não é uma coisa aprovado, então é uma violência sexual.” (B.M).
95
F.O. entende que a falta de escolhas é o que configura uma violência, e nesse
sentido a idade é preponderante, já que, no sistema legal, menores de 18 anos não tem
poder de escolha. No entanto, diz não saber qual seria a idade ideal, em que a pessoa
seria dotada da devida compreensão para avaliar os fatos, e coloca que isso varia
conforme a época. Situa no lugar de “psicopatas”, “sociopatas”, aqueles que nunca terão
capacidade de compreensão e noção do mal praticado. Mas, sustenta: “uma coisa é fato,
18 anos também é a maturidade, também é o fim das transformações do corpo, também
é o cara começar a se situar no tempo, espaço, na vida, né.” Além disso, considera
violência aquilo que foge ao padrão de normalidade”, aquilo que ultrapassa o que é
esperado e compatível para a idade. “O que acontece antes dos 18 que, que não parece
com a normalidade pra nós é motivo de atuação, né, de investigação.” (F.O.). Não fica
claro, entretanto, o que define essa normalidade. Ao que tudo indica, é o critério etário
que informa a partir de que momento o exercício da sexualidade pode ser considerado
normal e saudável.
Se o/a adolescente tem idade entre 16 e 18 anos, a questão do consentimento é
levada em conta. Nesses casos, quando o/a adolescente declara ter consentido o ato, as
implicações são menores para o autor, conforme atestam B.M. e V.W., pois a partir
dessa idade a palavra da tima passa a ter validade. Tal assertiva se embasa no próprio
ordenamento jurídico brasileiro que entende que pessoas com idade até 15 anos não
possuem capacidade civil, ou seja, “a prudência ou habilidade de distinguir o lícito do
ilícito, o conveniente do prejudicial para si e/ou para outrem (Simioni, Pinhal e
Schiocchet, 2003, p.19), enquanto que aqueles com faixa etária compreendida entre 16 e
18 anos incompletos se enquadram como “relativamente incapazes”, pois necessitam de
representação legal para exercerem determinados atos da vida civil (Código Civil, art. 3º
e 4º, Brasil, 2002). O digo Penal, por sua vez, considera a presunção da violência até
os 14 anos (Art. 224, Brasil, 1940), ou seja, independe do consentimento e do uso de
força ou coerção. o ECA, dispõe que o consentimento é absolutamente inválido
apenas para crianças, validando, portanto, o consentimento entre aqueles que possuem
entre 12 e 18 anos (Nacarath, 2003). Observam-se, assim, diferentes marcos para a
capacidade jurídica juvenil, que incidem diretamente no reconhecimento da violência,
visto que a presunção desta é justificada pela incapacidade de consentir, que por sua vez
está atrelada à falta de maturidade. Essa variação quanto à faixa etária correspondente à
96
responsabilidade legal dos jovens e ao reconhecimento de sua autonomia, demonstram a
dificuldade em se estabelecer um critério preciso para a maturidade.
Autonomia e capacidade traduzem um poder de escolha, mas a
diferença é que a capacidade de fato consiste numa estratificação
jurídica genérica e abstrata que despreza as particularidades do caso
e acaba gerando desigualdades. [...] A capacidade civil não perquire
o grau de cognição ou entendimento da pessoa, mas tão somente o
enquadramento ou não nas idades fixadas legalmente. (Schiocchet,
2006, p.169).
O critério evolutivo está embasado especialmente no desenvolvimento biológico
dos indivíduos, pressupondo que determinada faixa etária congrega características
físicas e psíquicas comuns a todos. Dessa forma, desconsidera-se "a importância dos
elementos de ordem institucional (organizações escolares, familiares, religiosas, entre
outras) e social (relações de gênero, classe, raça/etnia, gerações) na constituição dos
processos de passagem da infância à maturidade, determinando os lugares dos atores
sociais e sua qualidade de vida." (Toneli, 2004, p.153).
Segundo B.M, parte-se "do seguinte princípio: o corpo do outro é inviolável,
[...] só quando ele tiver noção do que é sexualidade ele pode ser, ta, manipulado; se ele
não tem noção, é uma violência.
Quem decide, portanto, se a pessoa já possui o devido discernimento para optar?
Com certeza não são os/as adolescentes. Apesar do reconhecimento destes/as como
sujeitos de direitos, quando se trata de direitos sexuais, não possuem plenas garantias.
Seu comportamento sexual é amplamente regulado e cerceado, sendo atribuído a essas
experiências um caráter negativo, centrado na violência e nas possíveis conseqüências
indesejáveis gravidez não planejada, doenças sexualmente transmissíveis, etc.
(Simioni, Pinhal e Schiocchet, 2003). No entanto, como estas autoras destacam, a
violência presumida apresenta duas faces: por um lado visa a proteção, no intuito de
coibir abusos sexuais intrafamiliares; por outro, tal presuão pode consistir numa
coibição ao exercício da sexualidade na adolescência. No ordenamento jurídico a ênfase
recai nas violações cometidas contra essa populão. "Fora as normas principiológicas,
o praticamente referência ao exercício positivo dos direitos sexuais pelos
adolescentes. Dessa forma, o legislador brasileiro parece ter negado a sexualidade
enquanto uma dimensão da vida humana e, conseqüentemente, da vida dos
97
adolescentes" (idem, p.28). Conforme Schiocchet (2006) aponta, o excesso de proteção
implica na supressão da subjetividade daqueles considerados incapazes, delegando para
terceiros o encargo de suas decisões.
Diferente dos demais, F. se pauta no dano causado na vítima, como medida para
identificar um ato como violento. Quando ela afeta uma outra pessoa assim, [...]
quando ela, é, agride outra pessoa no nível psicológico, a nível físico, quando ela
invade a outra pessoa sem a pessoa ter dado autorização, né, [...] quando ela machuca,
quando ela agride, sem a permissão da outra pessoa, né.” (F.).
Para A.S. o reconhecimento da violência é baseado, além da diferença de idade,
na forma como a tima significa a experiência, na capacidade dos envolvidos
compreenderem o fato, se foi provocado medo ou teve uso de ameaça, quais são os
sentimentos envolvidos, principalmente no que se refere a uma situação entre crianças.
Chama atenção para o cuidado ao se abordar a criança, na medida em que esta, não
entendendo o ato como uma violência, pode vir a sofrer mais danos decorrentes da
intervenção.
A intervenção foi de tentar explicar pra ele, conversar né, o que,
como que é o jogo, quando que é jogo, como que a criança se
sente, contar como se fosse contar uma história sobre isso, né, que
coisas que acontecem no jogo, como que a criança se sente nessa
situação, né, e que, quando que é com um adulto, conseqüências
que pode ter, que sentimentos que ela pode ter, então nesse caso,
que eu percebia que a criança falava dos primos, por exemplo né,
como ela se escondia né, como quem contando uma coisa que
fez errada e ria né (A.S.).
Como aponta nia Biehler da Rosa (2002), a revelação do abuso pode produzir
um dano maior que o próprio abuso. Esta autora comenta pesquisas que problematizam
a noção do impacto que o abuso acarreta na vida da criança, atribuindo as perturbações
sofridas pela tima à forma como o problema é lidado pelos pais e responsáveis. Não se
intenta minimizar o sofrimento provocado por uma situação de abuso em si, mas
salientar que a maneira com que os adultos o encaram, não necessariamente
corresponde à vivência da criança. Considerando que na investigação de casos de abuso
o depoimento dos envolvidos é de suma importância, dada a inexistência por vezes de
vestígios materiais que o comprovem, faz-se indispensável a inquirição à tima. Nesse
ínterim, Veleda Dobke (2001) destaca que a intervenção profissional deve ter como
98
objetivo primeiro evitar os danos que uma atuação descuidada pode provocar. É o que
ela chama de dano secundário, aqueles ocasionados por fatores subseqüentes ao abuso.
No que concerne ao adolescente que pratica o abuso, A.S. coloca que a
orientação da intervenção é fazê-lo entender que a criança, mesmo não oferecendo
resistência, não tem condições de decidir participar ou não. Entende que o adolescente,
por sua vez, já começa a ter mais clareza e noção de responsabilidade, apesar de
requerer um tipo de intervenção específica por estar ainda em fase de desenvolvimento.
Ele precisa saber, né, que a criança não tinha a condição de ter a decisão livre e que
ele sim.” (A.S.).
O adolescente, portanto, ainda que inserido numa etapa da vida caracterizada
pela incompletude, imaturidade e incapacidade para tomar decisões e fazer escolhas de
forma autônoma e responsável, deve possuir discernimento para evitar condutas
abusivas, mas o necessariamente para se envolver numa relação sexual por vontade
própria. Para além das experiências singulares, o critério cronológico disposto nos
rios códigos legislativos autoriza a atuação do aparato jurídico para a regulação da
sexualidade adolescente, já que supostamente este prescinde do grau de conscientização
necessário para vivenciá-la. Dessa forma, a noção de violência sexual se inscreve mais
numa lógica normativa, e menos nas implicações e significados para os envolvidos. Em
se tratando de profissionais direta ou indiretamente provindos do sistema de justiça, não
se poderia esperar algo diferente, já que a lei é o instrumento por excelência de
normatização das condutas e relações sociais.
99
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ambivalências e contradições se fizeram presentes em vários momentos deste
percurso. Ganham destaque as normas do sistema de controle, que propõem a proteção
social ao intervir sobre aqueles que ameaçam desestabilizar a ordem, mas não oferecem
uma resposta adequada às demandas sociais fomentando a mudança, nem pro
condições para que os sujeitos possam se afirmar enquanto tal, utilizando do
encarceramento e da produção do desajustamento para coibir ões indesejáveis. Num
outro plano, aparece a inconsistência no reconhecimento da responsabilidade dos
sujeitos, na medida em que usam-se atenuantes que a deslocam, seja na forma de
patologias individuais ou na noção de maturidade e tomada de consciência, ao passo
que, ainda assim, devem responder por suas condutas e arcar com as conseqüências.
Pautam-se, ainda, numa aposta de recuperação por meio da intervenção judicial, apesar
de depositarem no sujeito a marca da violência, como pessoas que requerem um
monitoramento constante, pois a qualquer momento podem voltar a delinqüir, como
algo que lhes é inerente e intransponível.
A violência sexual, por sua vez, é vista como uma forma cruel de violência, um
crime hediondo que deve ser severamente punido, ao mesmo tempo em que é
comumente banalizada, especialmente quando praticada por adolescentes ou contra
mulheres adultas, tomadas como co-responsáveis. Os danos resultantes dessa violência
são mais evidenciados em sua forma física, dirimindo a importância dos efeitos
psicológicos produzidos. O estupro é também transgressão moral, é a invasão da
intimidade de uma pessoa, que deve ser resguardada e apenas acessada por aqueles a
quem ela autoriza. Quando se exalta o ato sexual, para além da violência, entra em cena
a questão do prazer, e, portanto, o pensamento corrente é o de que mesmo diante da
negativa, pode-se, ao quebrar a resistência, obter alguma satisfação. gozo ilícito,
antes de ser ferimento ilícito" (Vigarello, 1998, p.36).
Os jovens entrevistados se posicionavam de forma diferente diante do abuso. Os
dois que assumiram a participação no ato (Wilmar e Diogo), não o reconheciam como
uma violência, apesar de Wilmar denomi-lo como estupro. Diogo, porém,
compreende como uma transgressão, algo que deve ser remediado, corrigido, alegando
100
que naquele momento não tinha consciência do que fazia por ser muito jovem. Como
motivações para o envolvimento em tais situações, apresentam o desejo e a curiosidade.
Nos dois casos a intervenção parece ter surtido efeitos, pelo menos no que se refere à
contenção de comportamentos considerados abusivos; num primeiro momento, sob
ameaça de punição (registro policial e retirada da Casa Lar), seguido por um trabalho
reflexivo e de orientação a uma sexualidade normalizada. A terapêutica realizada com
Lucas, por sua vez, parece ter se centrado justamente no fato de ter sido encaminhado
para atendimento, o que, no seu entendimento, foi injusto, pois alegava ser inocente.
O envolvimento de criaas e adolescentes em atos sexuais tem um forte viés
negativo, que se centra nas possíveis conseqüências indesejáveis. Isso se sustenta pela
noção de incapacidade e imaturidade relacionadas a este momento da vida, e, portanto,
na falta de discernimento e condições para tomarem decisões e fazerem escolhas de
forma autônoma. Daí decorre o princípio legal da presunção da violência, um aparato
jurídico que tem o intuito de proteger esses jovens dos abusos e explorações sexuais,
mas que, por sua vez, restringe suas vivências da sexualidade. A incapacidade legal está
também atrelada à condição de pessoas inimputáveis, pois não o responsáveis por si
próprios. Dessa forma, o adolescente que pratica uma violência sexual deve responder
por suas ações, pois cometeu uma infração, mas, não sob a égide do Direito Penal, e sim
do Estatuto da Criança e do Adolescente, com uma ótica de garantia de direitos e
promoção do bem-estar, que propõe o respeito à pessoa em condição peculiar de
desenvolvimento. Também por isso, atribui-se menor gravidade aos abusos por eles
praticados, pois, além de supostamente não terem consciência plena sobre seus atos,
acredita-se na possibilidade de recuperação, que não voltem a reincidir. Ainda, as
noções de sexualidade e abuso sexual aqui se misturam, ora ganhando feições de
experimentação, ora com caráter de violência, em especial quando o envolvimento é
com crianças. Tal fato explica o baixo número de ocorrências registradas de crimes
sexuais praticados por adolescentes. Além disso, sob a lógica da proteção, pode-se
identificar que as famílias dos supostos autores de violência sexual preferem lidar com a
situação no próprio ambiente doméstico, do que expor o adolescente às sansões legais.
Acredito que a intercessão do Estado no controle da violência sexual se faz
necessária, a partir das poticas de proteção às timas e na interrupção da perpetuação
das situações de violência. No entanto, as intervenções realizadas para contenção desses
101
casos ou para responsabilização dos autores, pautam-se basicamente no reconhecimento
da conduta criminosa e se resumem à punição. o é feita nenhuma orientação
específica acerca da problemática da violência sexual, sendo dado a ela o mesmo
tratamento conferido a qualquer tipo de crime/ato infracional. Saliento, assim, a
necessidade de se pensar e estruturar iniciativas que forneçam acompanhamento aos
autores de agressão sexual, que lhes possibilitem reavaliar, resignificar e reconstruir os
sentidos que legitimam essas práticas. Não existem garantias, mas que se buscar
alternativas que promovam de fato a transformação social.
Os discursos sociais, em suas variadas esferas, são ricos em repertórios que
explicam ou justificam o uso da violência sexual. Seja no meio jurídico, ao depositar na
mulher a responsabilidade pela própria vitimização, seja no campo psicológico, ao
atribuir ao homem que agride uma condição patológica, e, portanto, de impulsos
incontroláveis, ou, ainda, no meio social como um todo, que coloca o homem no lugar
da iniciativa e investida sexual, e a mulher, de resguardo e passividade. Os estudos
sobre as masculinidades se mostraram importantes na busca por entender os
mecanismos sociais e culturais que embasam e autorizam a prática da violência, tanto
no que se refere às estruturas de poder que fundamentam as relações entre homens e
mulheres, bem como às construções da sexualidade masculina e feminina. Como
lembram Mello e Medrado (2008):
Questionar as estratégias de poder-saber que constituem nossos
corpos como rigidamente e naturalmente inscritos (ou produzidos)
em performances sexistas vale para as práticas institucionais, sejam
governamentais ou não, práticas culturais e também as nossas
práticas de pesquisa nos meios acadêmicos. Inclui, também,
analisar criticamente as leis e os sistemas judiciário e penal que
regulamentam práticas sexistas, prisioneiras de concepções que
robustecem os modelos identitários contra os quais nos
posicionamos. (p.84)
A identificação de situações violentas apresenta grande complexidade, sendo de
difícil acesso enquanto objeto de pesquisa. Situar uma relação como violenta requer
uma série de marcadores que não são comuns a todas as situações, demandando um
olhar amplo, que demarca sua estrutura, e um olhar focal e pontual que caracteriza um
determinado ato.
102
As concepções apresentadas pelos sujeitos acerca da violência sexual circulam
em torno do dano provocado e da capacidade de consentimento dos sujeitos da relação.
O dano físico parece ser um forte indicativo. A.S., por sua vez, acrescenta os
sentimentos envolvidos na experiência, como os sujeitos a significam. Mas, outros
aspectos que transcendem a esfera individual o apresentados. Na Casa Lar ganha
destaque o prisma da imoralidade, pois meninos não devem manter relações sexuais
entre si. Lá também está presente uma noção de violência calcada na diferença de idade,
e assim, a orientação dada aos mais jovens se direciona para a prevenção e auto-defesa.
Entre os profissionais esse aspecto é mais marcante. A capacidade de consentimento,
definida conforme o critério etário, inviabiliza que pessoas com uma determinada idade
se engajem em relações sexuais. A despeito do dano (presunção da violência) e das
motivações pessoais, enfatiza-se a norma.
Para caracterizar o agressor, os entrevistados se valem da freqüência com que as
agressões ocorrem e contra quem são proferidas. O critério patológico é predominante,
em especial quando se tem crianças como alvo do abuso, bem como quando se tem
múltiplas ocorrências. Explicam a prática de abusos sexuais como decorrência da
vitimização anterior, acarretando numa patologia, na reprodução da violência com base
nos modelos parentais ou como comportamento aprendido.
Finalmente, é importante destacar a maneira como os sistemas de controle
estatal, como o judiciário, agem sobre os sujeitos. No caso dos meninos aqui
entrevistados, todos eles oriundos de setores sociais menos privilegiados, pode-se
afirmar a inexorabilidade da norma com força de lei e desta última aplicada sobre os
envolvidos, uma vez que mesmo aquele sobre o qual pairava a suspeita sem
confirmação, foi aplicada medida protetiva, sob o argumento de que estas tendem
exclusivamente à promoção do bem-estar.
Os diversos sentidos que a violência sexual assume no escopo deste trabalho
como: imoralidade, transgressão, ato doentio, experimentação, expressão de donio
sobre o outro, correspondem aos entrecruzamentos de campos discursivos distintos
como o do direito, o da psicologia, o da religião e o da educação. Os sujeitos
entrevistados deixam entrever em suas falas esses entrecruzamentos, por vezes de forma
a-crítica. Além disso, que se considerar a ambigüidade legal ao trazer à tona as
"medidas protetivas" que têm como objetivo a garantia de direitos e promoção do bem-
103
estar. No caso dos adolescentes supostamente autores de violência sexual, essas
medidas têm por objetivo fornecer acompanhamento psicossocial para que deixem de
infligir a lei e se tornem aptos ao convívio social. Protege-se quem, uma vez que essas
medidas, ao serem imputadas, produzem o sujeito violador? Ademais, ao acompanhar
os procedimentos, pode-se verificar a longa duração dos processos, a precariedade da
estrutura dos serviços de acompanhamento, a insuficiência do número de profissionais
para atender a demanda, as poucas oportunidades que os adolescentes têm de se
expressar e serem ouvidos, e, portanto, de serem considerados de fato sujeitos de direito
nesse cenário.
104
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113
APÊNDICES
114
APÊNDICE 1Roteiro de entrevista direcionado aos profissionais
1. Qual a fuão, atividades que exerce? quanto tempo atua na área? Possui contato
direto com os adolescentes?
2. Quais os caminhos percorridos por um adolescente infrator? E no caso de infração
sexual? Qual o tipo de intervenção realizada? Acredita na possibilidade da intervenção
evitar novos episódios de violência? São comuns casos reincidentes?
3. O que entende por abuso/violência sexual?
4. Que concepções possui acerca do autor de violência sexual? O que acha que leva uma
pessoa a cometer um abuso sexual? Acredita existir um perfil dos que cometem abusos
sexuais?
5. Possui dados compilados quanto aos casos atendidos/notificados que contemplem
informações como: tipo de infração, número de ocorrências, desfecho dos casos?
7. No momento, quantos adolescentes estão cumprindo medidas/sendo atendidos por
prática de abuso sexual?
115
APÊNDICE 2Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (profissionais
entrevistados)
Eu, __________________________________________________________,
RG _____________ estou ciente de estar participando de uma pesquisa sobre ofensas
sexuais. Minha contribuição se dará através da concessão de uma entrevista em que
serão feitas perguntas sobre violência sexual, serviços de atendimento a pessoas em
situação de violência, intervenções realizadas e outras semelhantes, de cerca de 1h, em
local que concordei ser conveniente para a realização da entrevista.
A participação o envolve custos, como também nenhuma compensação
financeira ou de outro tipo pela participação. A pesquisa não envolve riscos ou danos à
saúde. A mim, serão garantidos a confidencialidade e o anonimato, tendo também o
direito de não responder algumas das perguntas, ou de, a qualquer momento,
interromper a entrevista, podendo inclusive determinar que as informações que tenha
dado sejam colocadas de fora do resto do material coletado. A assinatura deste
consentimento não inviabiliza nenhum dos meus direitos legais.
Caso ainda haja dúvidas, posso tirá-las agora, ou em surgindo alguma vida no
decorrer da entrevista, a pesquisadora se colocará ao meu dispor para esclarecê-las. A
qualquer momento poderei contatar a pesquisadora principal, Suzana Almeida Araújo,
pelo telefone 37218215 (núcleo de pesquisa).
Após ter lido e discutido com o pesquisador os termos contidos neste
consentimento esclarecido, concordo em participar da(s) entrevista(s), colaborando,
desta forma, com a pesquisa.
Sei que assinando este consentimento não abro mão de meus direitos legais e
que me ficarão garantidos a confidencialidade e o anonimato.
____________________________________________________________
Assinatura do voluntário Data
____________________________________________________________
Testemunha Data
116
APÊNDICE 3 – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (responsáveis pelos
adolescentes)
Eu, __________________________________________________________,
RG _____________ estou ciente de que _____________________________________,
RG _____________, pelo qual sou responsável, está participando de uma pesquisa
sobre ofensas sexuais. Sua contribuição se dará através da concessão de uma entrevista
em que serão feitas perguntas quanto ao seu comportamento sexual e outras
semelhantes, com duração de cerca de 1h a 2h, em local que concordei ser conveniente
para a realização da entrevista.
A participação o envolve custos, como também nenhuma compensação
financeira ou de outro tipo pela participação. A pesquisa não envolve riscos ou danos a
saúde. Serão garantidos a confidencialidade e o anonimato, tendo também o direito de
o responder algumas das perguntas, ou de, a qualquer momento, interromper a
entrevista, podendo inclusive determinar que as informações que tenha dado sejam
colocadas de fora do resto do material coletado.
Caso ainda haja dúvidas, posso tirá-las agora, ou em surgindo alguma vida no
decorrer das entrevistas, o pesquisador se colocará ao meu dispor para esclarecê-las. A
qualquer momento poderei contactar a pesquisadora principal, Suzana Almeida Araújo,
pelo telefone 37218215 (núcleo de pesquisa).
Após ter lido e discutido com o pesquisador os termos contidos neste
consentimento esclarecido, autorizo a participação de meu tutelado na(s) entrevista(s),
colaborando, desta forma, com a pesquisa.
Sei que assinando este consentimento não abro mão de meus direitos legais e
que ficarão garantidos a confidencialidade e o anonimato.
____________________________________________________________
Assinatura do responsável Data
____________________________________________________________
Testemunha Data
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