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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Katia Peixoto dos Santos
O CIRCO ELETRÔNICO EM FELLINI
DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
SÃO PAULO
2009
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Katia Peixoto dos Santos
O CIRCO ELETRÔNICO EM FELLINI
DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
Tese apresentada à Banca Examinadora
como exigência parcial para obtenção do
título de Doutor em Comunicação e
Semiótica pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, sob a orientação do
Prof. Doutor Arlindo Machado
SÃO PAULO
2009
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Banca Examinadora
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Aos meus adorados pais, Romualdo e Zuleide
Aos meus queridos filhos, Geisly e Leandro
Ao meu grande amor, Matías
Ao meu amado neto, Ítalo
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AGRADECIMENTOS:
Considero que a elaboração de uma tese de doutorado seja fruto de um
solitário trabalho de pesquisa e escrita da redação. No entanto, para a consolidação
desse processo fui premiada com a contribuição de várias pessoas, as quais sou
grata de todo coração.
Quero começar meus agradecimentos pela Secretaria da Educação e a
CEMP, a quem devo o mérito de estudar na PUC, pois sem a bolsa que me foi
concedida não poderia realizar esse doutorado.
Ao Professor Dr. Arlindo Machado, orientador da tese, que com suas
maravilhosas aulas e orientação pude enriquecer meu trabalho de forma definitiva.
Às Professoras Dras. Cecilia Almeida Salles e Christine Greiner, que fizeram
parte de minha Banca de Qualificação e, com um discurso democrático,
engendraram contribuições importantes à redação final.
À Professora Dra. Lucrécia D’Alessio Ferrara que, em suas aulas, pude
adentrar o mundo das espacialidades, ficando claro todo o amor e dedicação que
tem com seu trabalho. Ao Professor Dr. Norval Baitello Júnior, pelas aulas
inesquecíveis nas quais aprendi a importância de se discutir o tema e a estrutura da
tese, e por ver em seus olhos e sorriso uma enorme sensibilidade. Ao Professor Dr.
José Luiz Aidar, pela oportunidade de publicação na Revista Galáxia.
Ao Professor Dr. Eugênio R. Trivinho e à professora Dra. Ana Claudia M. de
Oliveira, pela seriedade e comprometimento na Coordenação do Programa de
Comunicação e Semiótica da PUC.
À Professora Dra Ana Maria Dietrich, amiga, carinhosa e sempre disposta em
ajudar-me.
Aos meus queridos filhos, Geisly Conca e Leandro Daniel Santos Carvalho,
pelo companheirismo, amor e ajuda.
Aos meus queridos pais, Romualdo Ribeiro dos Santos e Zuleide Peixoto dos
Santos, por tudo que fizeram por mim.
A Matias Augustín Rodríguez Varela que, incansavelmente, foi sempre
companheiro, querido e amigo.
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“Quando tinha sete anos, meus pais me levaram ao circo. Os
palhaços me causaram um medo terrível. Não entendi se eram
animais ou espíritos e não os achei nem um pouco
engraçados. Mas tive um sentimento estranho: a sensação de
que me esperavam por lá. Naquela noite, e em muitas noites
nos anos seguintes, sonhei com o circo. Ainda não sabia que
meu futuro era o cinema: o circo-cinema”
Federico Fellini
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RESUMO
O estudo parte da premissa de Luis Renato Martins, na qual, em seu livro
Conflito e interpretações em Fellini (1994), se contrapõe a voga de cinema
autobiográfico para a obra de Fellini estabelecendo no lugar, vertentes mais
interessantes e pertinentes às leituras e análises fílmicas, como por exemplo: a
paródia como arma crítica, a discussão da cultura de massa, o fascismo e suas
matrizes históricas. Afastando-se dos cineastas neo-realistas, Fellini conta sobre a
realidade social italiana via espetáculos populares. Os artistas assumem o papel de
mediadores da crítica felliniana e, a partir deles, estabelece-se uma oposição: o
crescente mundo industrial em conflito com a identidade italiana anteriormente
estabelecida. Nesse sentido, de construção de uma análise mais fundamentada, é
que esse trabalho se envereda, considerando a questão da estruturação fílmica
felliniana que converge circo, teatro, televisão e cinema, documentário e ficção
criando uma intrigante possibilidade audiovisual proporcionada pela inserção da
linguagem televisiva na obra clowesca e cinematográfica de Fellini.
O fator exógeno, ligado à marcada influência norte-americana, se apossa do
terreno cultural italiano, transformando-o. Fellini retrata o encontro do mundo dos
espetáculos e do cinema com a mídia televisiva que, na esteira do desenvolvimento
tecnológico, fincou raízes em solo italiano. Entre perdas e danos, os filmes ressaltam
o constante movimento e adaptação dos espetáculos, da linguagem cinematográfica
e do próprio estilo felliniano frente ao novo referencial.
Considerando essas imbricações, o estudo privilegia a importância do
percurso fílmico felliniano para defender a hipótese da reestruturação de sua
linguagem a partir do advento da TV como meio de comunicação de massa, fato
evidenciado em seu primeiro filme realizado para a TV, Block Notes di un Regista
(1969). No intuito de argumentar essa hipótese, fez-se necessário considerar e
analisar outros filmes de Fellini realizados para a TV: I Clowns (1970) e Prova
d’orquestra (1978). Outros três filmes feitos para o cinema, porém com temática
televisiva, Ginger e Fred (1985), Intervista (1987), La Voce della Luna (1989),
também foram elucidados e avaliados. Assim pôde-se constatar que a estética
fílmica de Fellini partiu dos espetáculos populares para atingir a televisão em suas
linguagens e propósitos, convergindo documentário e ficção, televisão e cinema.
Palavras-chave: Federico Fellini, Espetáculo, Cinema, televisão.
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ABSTRACT
The study starts from the Luis Renato Martins’ premise, which, in his book
Conflito e interpretações em Fellini (1994), he countered the autobiographical cinema
vogue for Fellini’s work and established in its place, a more relevant and interesting
trend for readings and filmic analysis, e.g.: the parody as critical weapon, the
discussion of the mass culture, the fascism and its historical matrix. Getting away of
the neo-realistic filmmakers, Fellini tells about the Italian’s social reality throw popular
shows. The artists assume a role of mediator of Fellini’s critic and, from them,
establish a contradiction: the arising industrial world in conflict with the Italian identity
previously established. Accordingly, the construction of a more structured analysis is
where this work goes, considering Fellini’s filmic organization issue which converges
circus, theater, television and cinema, documentary and fiction creating an intriguing
audiovisual possibility provided by television language insertion in the clownish and
cinematographic work of Fellini.
The exogenous factor, linked with the north american influence, gets hold of
the cultural italian ground, changing it. Fellini portrays the encounter between the
world of the spectacle and the cinema with televisable media, which, in the path of
technological development, planted root in Italian ground. Between losses and
damage, the films emphasize the constant movement and adaptation of the
spectacles, of the cinematographic language and the own Fellini’s style forefront a
new differential.
Considering those implications, the study focus in the importance of the
Fellini’s filmic route to defend the hypothesis of the restructure of his language from
the advent of TV as a means of mass communication, fact shown in his first movie
realized for TV, Block Notes di un Regista (1969). In order of arguing this hypothesis,
was made necessary considering and analyzing another Fellini’s movies realized for
TV: I Clowns (1970) e Prova d’orquestra (1978). Another three movies made for
cinema, nevertheless with televisable thematic, Ginger e Fred (1985), Intervista
(1987), La Voce della Luna (1989), also was elucidated and evaluated. Therefore
could have seen that Fellini’s filmic aesthetics came from the popular spectacles to
gain television in its languages and purposes, converging documentary and fiction,
television and cinema.
Key words: Federico Fellini, Spectacle, Cinema, Television.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO:...........................................................................................................1
1 A RELEVÂNCIA DOS ESPETÁCULOS POPULARES NOS FILMES DE
FEDERICO FELLINI: O PROCESSO CRIATIVO......................................................7
1.1 O CIRCO DE LONA E O TEATRO DE VARIEDADES: ELEMENTOS DO CIRCO ELETRÔNICO, TV.17
1.2 A PERSONAGEM CLOWN NO CIRCO E EM FELLINI ............................................................24
2 A CONSTRUÇÃO DA LINGUAGEM TELEVISIVA NA OBRA DE FEDERICO
FELLINI.....................................................................................................................37
2.1 OS ENCANTOS DO DOCUMENTÁRIO E DA FICÇÃO ............................................................ 42
2.2 OS ENCANTOS DAS IMAGENS NO DECORRER DA HISTÓRIA...............................................46
2.3 FEDERICO FELLINI E A CONSTRUÇÃO DO CINEMA IMAGINATIVO E DOCUMENTAL ................57
2.4 FELLINI E SUA FICÇÃO DOCUMENTÁRIA ..........................................................................58
3 DA CRISE EXISTENCIALISTA DO PÓS-GUERRA AO MUNDO TELEVISIVO EM
I CLOWNS E GINGER E FRED, NA LINGUAGEM CLOWESCA DE FELLINI.......67
3.1 O CIRCO NA ERA DA TV ................................................................................................70
3. 2 GINGER E FRED E O ESPETÁCULO TELEVISIVO...............................................................73
3.3 A ESTÉTICA DA TV CRIA NOVOS TEMPOS E ESPAÇOS ...................................................... 77
3.4 A REESTRUTURAÇÃO DO ESPAÇO E TEMPO NO PROGRAMA “COM VOCÊS”.......................84
4 AS CONVERGÊNCIAS DOS MEIOS: A ARTE E A COMUNICAÇÃO NO
IMPERALISMO DA TV .............................................................................................89
4.1 OS CINEASTAS NA TV...................................................................................................96
4.2 BLOCK-NOTES DI UN REGISTA: UMA CELEBRAÇÃO À CRIAÇÃO NUMA CRÍTICA AO
CINEMA DE AUTOR ...........................................................................................................102
4.3 A CONSTRUÇÃO DO LUGAR: ELEMENTOS VISUAIS E SONOROS ORIUNDOS DA LINGUAGEM
TELEVISIVA E DOCUMENTAL EM PROVA D’ORCHESTRA ....................................................... 112
4.4 AS ENTREVISTAS COLOCAM EM EVIDÊNCIA AS PERSONAGENS ....................................... 120
5 ENTRE O CHOQUE E A ACEITAÇÃO: INTERVISTA E LA VOCE DELLA LUNA,
A TV NO CINEMA...................................................................................................125
5.1 A EXPERIÊNCIA DE FAZER CINEMA NA ERA DA TELEVISÃO.............................................. 129
5.2 O CONFRONTO E A CONTEMPLAÇÃO EM LA VOCE DELLA LUNA ......................................137
CONSIDERAÇÕES FINAIS:...................................................................................150
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:......................................................................153
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LISTA DE ILUSTRAÇÃO
FIGURA 1 – Gelsomina e Zampanò em La Strada.
FIGURA 2 – Idem
FIGURA 3 – Fellini e sua equipe de filmagem em I Clowns
FIGURA 4 – Os palhaços em I Clowns
FIGURA 5 – A dupla de palhaços em I Clowns
FIGURA 6 – I Clowns
FIGURA 7 – Pippo e Amélia em Ginger e Fred
FIGURA 8 – Cena dos bastidores do programa em Ginger e Fred
FIGURA 9 – Maurizio em Intervista
FIGURA 10 – Um close de uma personagem em Block-Notes di un Regista
FIGURA 11 – Pippo e Amélia em Ginger e Fred
FIGURA 12 – Apresentador do Programa Com Vocês em Ginger e Fred
FIGURA 13 – Palco do Programa Com Vocês em Ginger e Fred
FIGURA 14 – Cena de Block-Notes di un Regista
FIGURA 15 – Idem
FIGURA 16 – Cena de Prova d Orchestra
FIGURA 17 – Idem
FIGURA 18 – Fellini em Intervista
FIGURA 19 – La Voce della Luna
FIGURA 20 – Salvini e Pinóquio em La Voce della Luna

INTRODUÇÃO:
Os debates primordiais que, posteriormente motivaram este trabalho, se
originaram no programa de pós-graduação da Escola de Comunicação e Artes da
Universidade de São Paulo, na disciplina Conflito e Interpretação em Fellini:
Construção da Perspectiva do Público, tendo como professor responsável Jean-
Claude Bernardet, e como professor convidado Luis Renato Martins.
No decorrer do curso, foram exibidos e discutidos doze filmes de Fellini,
oportunamente divididos em quatro módulos temáticos, abrangendo desde a década
de 1950, com as perspectivas de expressão nos discursos do pós-guerra, a1980,
com a representação do agudo diagnóstico da cultura e da sociedade na era do
marketing.
Contrapondo-se à voga do cinema de Autor e à visão autobiográfica para
pensar a obra de Fellini, os professores enveredaram por vertentes mais
interessantes e pertinentes, estabelecendo assim parâmetros mais contextualizados
com as leituras fílmicas. Para tanto, foram analisados elementos comuns aos filmes
como: a paródia como arma crítica, a discussão da cultura de massa, o fascismo e
suas matrizes históricas.
O filme La Strada (1954) foi o escolhido para a monografia final do curso.
Aproveitando discussões oriundas das aulas, o estudo pôde se aprofundar nas
ações e reações físicas e emocionais das personagens Gelsomina e Zampanò.
Foram levantados e analisados elementos evidentes da relação da dupla, como o
autoritarismo, a ingenuidade e a falta de comunicação entre eles. Assim,
reconhecendo-os como tipos caricatos, clowns e artistas mambembes, a dupla
passou a representar, comparativamente, as questões e valores políticos e culturais
vigentes no período contemporâneo ao filme.
O estudo de La Strada se tornou, portanto, o embrião do trabalho de
mestrado, que teve como tema: A presença marcante do espetáculo circense,
mambembe e do teatro de variedades no contexto fílmico de Federico Fellini,
dissertação defendida em 2001, na Escola de Comunicação e Artes da Universidade
de São Paulo, com orientação da profa Dra Mariarosaria Fabris.
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A continuação desse processo de estudos em Fellini se deu na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação do prof. Dr. Arlindo Machado.
A pesquisa de doutorado propôs um paralelo entre a reformulação fílmica felliniana e
a inserção da televisão como meio de comunicação de massa na Itália, fato ocorrido
por volta de 1960. Nos filmes realizados após esse período, puderam-se constatar
elementos próprios da linguagem televisiva associados aos preceitos circenses e
espetaculares de Fellini.
Nesse sentido, o objetivo deste trabalho de doutorado é comprovar a hipótese
de uma reestruturação da linguagem felliniana a partir de Block-notes di un Regista
(1969), primeiro filme de Fellini realizado para a TV, no qual o diretor incorpora, mais
evidentemente, elementos da estética documental e televisiva. Defendendo essa
idéia central, os argumentos se articulam, exemplificando como as técnicas e
linguagens documentais e televisivas foram imbricadas às características
mambembes, circenses e populares. É importante evidenciar como esses meios
distintos de linguagem, eletrônicos e artesanais diferem-se e convergem
mutuamente para a estética fílmica felliniana.
Dos vinte e quatro filmes realizados por Fellini em um espaço de 40 anos, o
estudo privilegiou mais especificamente nove deles, com os quais se pôde efetuar a
pesquisa, valorizando o percurso fílmico do diretor.
Na tese, contemplam-se análises de filmes da década de 1950, com contextos
mais humanistas baseados nas artes populares, vistos em Luci del Varietà (1950),
Lo Sceicco Bianco (1952) e La Strada (1954), que mereceu atenção especial neste
primeiro instante, por ser um filme voltado às condições humanas da sociedade
italiana do s-guerra e a um referente importante quanto à identidade clowesca de
Fellini. Assim sendo o filme pode ser considerado um marco na construção da obra
do diretor. Com esses filmes, pode-se comprovar a construção da linguagem
felliniana em confluência com a arte popular: a caricatura, o espetáculo de variedade
e o circo, com o qual Fellini edificou sua estética, fato que o diferenciou de seus
contemporâneos neo-realistas.
Na década de 1960, evidencia-se a frustração do homem com o mundo
moderno, antecipando uma consciência decepcionante do mundo tratado em La
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Dolce Vita (1960), no qual a linguagem fílmica felliniana começava a apresentar
contornos mais fragmentados de forma menos linear.
Outros dois filmes realizados para a TV depois de Block-notes di un Regista, I
Clowns (1970) e Prova dorchestra (1978), e mais três filmes realizados para o
cinema com temática ou estética televisiva, Ginger e Fred (1985), Intervista (1987) e
La Voce della Luna (1990), também foram elucidados.
I Clowns e Ginger e Fred são os mais emblemáticos e ilustrativos para
exemplificar como aconteceram as convergências entre o espetáculo popular - circo,
teatro mambembe, teatro de variedade - e a televisão - meio eletrônico de
comunicação de massa.
Prova d’orchestra e Intervista também corroboram com a pesquisa e são
apresentados no decorrer das análises, principalmente por possuírem em suas
estruturas fílmicas evidências da aproximação da linguagem felliniana à estética
televisiva. Nesses filmes, surgem elementos da linguagem documental, da televisão
e do telejornal como meios de uma construção mais aberta, a despeito dos
estanques conceitos de documentário e ficção. Possuem como eixo dramático a
televisão e sua inserção de forma massiva na sociedade italiana.
Em I Clowns, Fellini discute o circo por meio dos palhaços, tecendo um
diagnóstico da situação dessa personagem na França e na Itália da década de 1970.
Por um lado, o filme possui uma linguagem cinematográfica poética e lúdica. Por
outro lado, a utilização da forma telejornalística, caracterizada pelo uso de luzes
diretas, por uma equipe de filmagem itinerante e uma direção improvisada, casual e
atrapalhada, servem como elementos para ironizar a reportagem televisiva. Fellini
entrevista ex-palhaços e atores circenses, que interpretam a si mesmos nessas
intervenções, valorizando a veracidade dos depoimentos.
Na primeira parte do filme, a voz-off remete às memórias de um menino que,
através das lembranças infantis, faz surgir um mundo surpreendente de pessoas
que se assemelham a clowns de circo pelo seu comportamento ingênuo ou
autoritário, como a dupla de palhaços Brancos e Augustos. Essas personagens
desvendam as relações de poder, autoritarismo, medo e fascínio, decorrentes do
regime fascista. Assim, o filme discute a inserção do circo na vida das personagens
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que, essencialmente, representam o povo italiano. Essa relação entre o passado e a
realidade vigente, contemporânea ao filme, é enfatizada nos depoimentos dos ex-
palhaços e na reportagem atrapalhada, além da intercalação dos relatos de Maya e
de Fellini, entre as falas, sugerindo a aproximação de elementos do circo, da TV e
do cinema.
Em Ginger e Fred, Fellini critica a televisão em um filme realizado para o
cinema e elege um programa de auditório, Com Vocês, como eixo dramático.
Percebe-se o tom clowesco, caricato e fantástico das personagens, inseridas na
trama de forma oportunista e pitoresca diante da televisão, como personagens ou
como telespectadores, sugerindo uma relação que vai do fascínio à angústia e vice
versa. A propaganda televisiva e de rua, insistentemente abordadas, imprimem um
olhar mais atento à sociedade capitalista em voga na contemporaneidade referente
ao filme.
Em Prova d’orquestra, Fellini assimila a televisão e a concebe como dentro da
perspectiva do espectador, tendo como referencial a transformação da arte nos
tempos passado e presente. As câmeras estão no ensaio de uma orquestra e
denunciam as angústias, frustrações e inquietudes do copista, dos músicos e do
maestro na era moderna. Num mesmo local, uma antiga tumba de bispos e papas,
os sicos se vêem à beira de uma crise quando os barulhos insistentes e surdos
teimam em soar. É interessante notar como a televisão se faz presente durante o
filme, mesmo sem ser vista, pois ela se apresenta apenas pela voz-off do locutor da
TV e pelas luzes que se acendem nos rostos do músicos.
A impostação do maestro para a câmera obriga-o a falar sobre seus
incômodos em relação à música e aos seus músicos. A televisão, como cúmplice,
denuncia a crise da arte artesanal na era do marketing e presencia a anarquia e
revolta perante o poder. Nesse filme se uma crise extensiva entre o maestro e a
orquestra, deixando claro o ingresso da cultura italiana na era moderna. As
pancadas surdas, no momento que os músicos deflagram contra o não pagamento
de um extra para participarem da reportagem, sobrepõem-se a outras, que culminam
com o desmoronar das estruturas, promovida pela grande bola.
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A linguagem de Fellini, nesse filme, assume um compromisso dialético: de um
lado, ironiza o belo e a arte e, de outro, mostra, na intimidade da câmera subjetiva, a
beleza do amor à arte, descrita em cada história contada pelos músicos. Numa
ambientação cênica única, Prova dorquestra, no olhar da objetiva de uma
reportagem jornalística, refaz o caminho do passado e do valor da arte, reativado
com o tempo presente. Numa mesma ótica, Fellini faz em Intervista esse caminho da
lembrança testemunhada pelas câmeras de TV. As personagens de La Dolce Vita
são revividos 26 anos depois na frente das câmeras de TV japonesas. Fica evidente
como o passado-presente foram abordados na perspectiva de avaliar como os
meios de comunicação e artísticos se constroem na medida do tempo nos quais
estão inseridos. Em La Voce della Luna, a loucura e a poética de Salvini servem
como referência para o espectador olhar o mundo moderno. A televisão,
incansavelmente, aparece para vigiar e reafirmar a degradação do homem perante
as mazelas do mundo moderno.
Nesse sentido, esse estudo faz um retrato da filmografia felliniana na intenção
de demonstrar como sua estética e temática fílmica foram articuladas para
representar as inquietudes e as transformações do homem perante as novas formas
de expressão artística e comunicacional. As dores do homem do s-guerra ou as
incertezas do homem moderno foram relatadas via espetáculo, ora mambembe e
clowesco, ora televisivo e eletrônico. A televisão, tanto em seu processo de
produção quanto de exibição e condução das idéias, figura constantemente nos
filmes como um incômodo não resolvido por Fellini, ao qual, em alguns momentos,
ele se rende e, em outros, serve de alimento para sua criação.

Fig.1.
La Strada
Fig. 2
Idem
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1 A RELEVÂNCIA DOS ESPETÁCULOS POPULARES NOS FILMES DE
FEDERICO FELLINI: O PROCESSO CRIATIVO
A estética fílmica de Fellini advém de dois fatores determinantes: sua
bagagem individual artística, decisiva para a elaboração dos tipos caricatos
aclamados como fellinianos; e a experiência política e cultural vivenciada por ele em
sua infância, adolescência e no período contemporâneo às suas produções
cinematográficas.
A infância e a juventude de Fellini foram cercadas pelo encanto do universo
criativo enaltecido pela sua enorme capacidade de imaginação, tornando possível a
invenção de situações com tipos mágicos e únicos, revelados posteriormente nas
caracterizações de suas histórias e personagens. Seu interesse pelas artes se
manifesta primeiramente por meio do desenho e do teatro, rabiscando papéis,
brincando com teatro de fantoches, indo ao circo ou lendo historietas acompanhadas
de desenhos alegres e bem feitos, como Corriere dei Piccoli, o Gato Felix, Mio Mao,
os italianos Bonaventura e o recruta Marmittone. Mais tarde, formado jornalista, sua
capacidade lúdica de unir histórias e fatos reais a desenhos e caricaturas
proporcionou-lhe a possibilidade de elaborar textos e ensaios acompanhados de
ilustrações irônicas e sagazes a la H.Q., determinando assim um estilo próprio.
Escreveu esquetes para o teatro de revista e programas de rádio e, a partir de 1943,
começou sua carreira como roteirista. Teve duas indicações ao Oscar de melhor
roteiro por Roma Città Aperta (1946) e por Paisà (1949), ambos dirigidos por
Roberto Rossellini.
Historicamente, as primeiras produções de Fellini, como diretor de cinema,
nasceram logo após o período do neo-realismo italiano, o principal fenômeno
cinematográfico internacional do pós-guerra (MARTINS, 1994:13). Rossellini, um
dos mais fecundos representantes do neo-realismo, antecipou o conceito de autoria,
que se formaria em meados da década de 1950, a chamada “política dos autores”
1
.

1
"Politique des Auteurs", expressão criada por François Truffaut (teoria autoral, em português) para
designar um estilo de fazer filme que continha características autorais bem definidas, reveladas
principalmente na figura do diretor de cinema. Essa expressão surgiu pela primeira vez no Cahiers Du
Cinema, no.44, de fevereiro de 1955, revista especializada em cinema criada por André Bazin e
outros em abril de 1951.

A partir de Roma Città Aperta e Paisà, evidenciou-se a importância da expressão do
diretor diante de outras variantes, como o predomínio da participação de atores
hollywoodianos famosos e aclamados pelo público como elemento de valorização
dos filmes.
Desde seu primeiro filme, no qual dividiu a direção com Lattuada, Luci del
Varietà (1950), Fellini propôs novos olhares para a cinematografia italiana, focando
principalmente o mundo marginal e os espetáculos mambembes e populares. Nos
filmes: Lo Sceicco Bianco (1952), I Vitelloni (1953), Agenzia Matrimoniale. In:
L’amore in Città (1953), La Strada (1954), Il Bidone (1955) e Le Notti di Cabiria
(1957), evidências de suas influências e referências oriundas das artes plásticas
e cênicas.
Em 1943, 1944, a Itália tinha sido liberada e tudo estava nas mãos dos
americanos: jornais, rádios, revistas e sobre as telas se viam os seus
filmes, para a grande alegria do público que jamais havia esquecido os
deuses do único cinema verdadeiro, aquele que lhes presenteava com
divertimento, sonhos, evasão, aventura. Quem é que tínhamos? Besozzi,
Viarisio, Macario, Greta Gonda. Como se poderia competir com a volta de
Gary Copper, Clark Gable, os irmãos Marx e Carlitos, e todas as belíssimas
estrelas, e seus assistentes de direção? (FELLINI, 1980:10).
Nesses filmes da década de 1950, se pode perceber forte presença de
questões humanistas e existenciais, relacionadas ao universo fantástico e lúdico dos
espetáculos, dos quadrinhos e da fotonovela, evidenciadas na construção das
personagens e das cenas. Esses elementos utilizados por Fellini, de forma
particular, serviriam para construir uma linguagem criativa e surpreendente,
diferenciando-se das produções cinematográficas dos cineastas neo-realistas.
Fellini passou a contar histórias via espetáculos populares, aprofundando-se
nas questões sociais e culturais, caminhando para um cinema essencialmente
analítico e político com críticas ao neo-realismo, ao cinema de autor e à cultura
totalizante. Em seus filmes, revela uma Itália preponderantemente agrária, com
conflitos marcados pela rápida industrialização e pelo despreparo do povo para tais
transformações. A busca de Fellini pela autenticidade cinematográfica o colocou em
contato com experiências criativas nas quais pode se descolar das premissas neo-
realistas, galgando por terrenos imprevistos e únicos.
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Nesta perspectiva, este trabalho sustenta que o cinema de Fellini,
em vez de nostálgico e vivencial ou exasperadamente pessoal
como julgam muitos, na linha do cinema de autor – será radicalmente
analítico e político e, enquanto tal, fundamentalmente impessoal.
Desse modo sua obra efetuaria a crítica das premissas do cinema de
autor, como do neo-realismo, desconstruindo a fabricação do
cinema. E, ao mesmo tempo, examinaria as transformações
históricas de uma cultura totalitária, com fundo agrário e provinciano,
para uma sociedade marcada pelos mecanismos de mercado e
essencialmente conflituosa, nos termos do processo de
industrialização e urbanização, implementado na Itália republicana.
Nesse sentido, frente a um quadro de complexidade nova, Fellini se
contraporia pelo distanciamento e pela ironia à estética neo-realista,
apoiada na busca de uma expressão popular, carregada de
autenticidade, dos atores e dos autores empenhados na crítica do
cinema de estúdios e espetaculoso da era fascista. (MARTINS,
1994:18)
Segundo Ennio Bispuri (2003: 14-16), Fellini passou por três fases evolutivas
em seu cinema. A primeira, de 1950 a 1957, chamada pelo autor de realismo
elegíaco, foi marcada por sete filmes, nos quais fica explícita a poética realística
representada num mundo fantástico e dominado pelo sonho.
Quanto à primeira fase, articulando-a com o pensamento de Bispuri, pode-se
avançar evidenciando especialmente três filmes desse período em que Fellini se
valeu dos espetáculos para mostrar os valores e a situação social do s-guerra na
Itália: Luci del Varietà, na representação do teatro de variedades, em que desvenda
a realidade das pequenas companhias que vivem à margem do show-business
italiano; Lo Sceicco Bianco, onde a fotonovela, vendedora de sonhos, se torna o
centro da trama e faz com que Wanda deixe seu marido em plena lua-de-mel para
tentar encontrar o galã da fotonovela, confundindo ficção e realidade; e La Strada,
com a triste vida da dupla Gelsomina e Zampanò, que percorrem as estradas da
Itália vivendo do parco dinheiro conseguido pelas apresentações de um mesmo
número circense de quebra de correntes.
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Esses filmes possuem uma trama linear, um único plot e um eixo dramático
trágico, ao mesmo tempo repleto de cenas cômicas. O sonho e a esperança nascem
das personagens que, a princípio, se mostram caricatas e superficiais. Seres
humanos diante do mundo, das carências, das dificuldades e da complexidade de
sentimentos e emoções. Alguns temas servem de eixos dramáticos principais
desses filmes: a guerra, a trapaça, a traição, a prostituição, a fome, a família e a
difícil vida dos artistas mambembes, argumentos sempre elucidados em uma
atmosfera de ironia e comicidade.
As produções de Fellini da década de 1950 apontam para a negação do neo-
realismo e do cinema de autor e acenam a uma realidade mais intimista e fantástica:
mais embalada num lirismo das desesperanças do que nas agruras do mundo real.
Como pano de fundo desses filmes, vê-se uma Itália devastada pela guerra com
personagens sofridos perante as circunstâncias econômicas e sociais vigentes.
Tendo como base essas questões humanas, Fellini se debruça sobre as
estranhezas e as mazelas existenciais da humanidade; suas personagens são
colocadas em situações limites e se mostram perdidas no vai-e-vem das
circunstâncias. Elas se distanciam da razão e passam a divagar pelos sonhos;
entretanto, como em uma ilusão que se acaba, terminam sempre caindo nos braços
da realidade nua e crua. Os filmes representam o desmoronar das certezas antigas
frente às guerras e aos conflitos humanos e o apontar de novos referenciais
ideológicos com base na aculturação norte-americana. Os personagens padecem de
medos, dúvidas, anseios, desejos e inquietudes provenientes do contato com esse
momento de mudança de identidade cultural italiana.
Os protagonistas de La Strada escancaram esses medos e desejos mal
resolvidos, explicitados na forma como a dupla se comunica e se relaciona entre si e
com o mundo externo. A personagem Gelsomina possui uma carência altruísta e
contraditória: sabe de sua desgraça, de sua condição de escrava, porém a aceita
com uma passividade peculiar, agindo com conformismo diante dos fatos
apresentados - foi vendida para um brutamontes, é maltratada e humilhada por ele
e, assim mesmo, tem de respeitá-lo. Talvez, acostumada a sofrer, ela se tenha
tornado atônita e inerte diante das circunstâncias e assim passe a gostar de
Zampanò, um artista grosseiro e sem criatividade. Perdida, parece ver nele a única
chance de sobreviver. Em um viés oposto, tem-se uma seqüência no momento em

que a consciência desse clown singelo, Gelsomina, parece surgir. Nessa seqüência
ela a possibilidade de sair do seu mundo hostil, quando conhece o equilibrista-
poeta-filósofo-palhaço, ou simplesmente o personagem Louco. Apesar de seu nome,
ele representa a lucidez perante a vida, estabelecendo um ponto de equilíbrio para
Gelsomina. Numa seqüência, o Louco conversa com a pobre clown, filosofando
sobre a importância de cada coisa existente no mundo, deixando claro que nada que
existe na terra é inútil, nem mesmo Gelsomina com sua cabeça de alcachofra; pela
primeira vez ela sente-se notada. A atitude do Louco em valorizá-la se contrapõe à
de Zampanò, de humilhá-la, criando uma oposição: de um lado está o Louco,
trazendo a possibilidade de ela sentir-se importante para o mundo, representando
um princípio de liberdade; de outro, Zampanò, que lhe oferece segurança, trabalho e
comida. Zampanò, acuado diante de sua limitação, mata o poeta-equilibrista e
depois abandona Gelsomina. Após algum tempo, ele descobre que ela morreu de
tristeza e chora de ódio de si mesmo. Personagens perdidas perante vidas perdidas
em um mundo cruel e insólito, formando um retrato social do pós-guerra na Itália.
Em Luci del Varietà, pode-se efetuar a relação do mundo dos espetáculos
hollywoodianos com as companhias mambembes da Itália. A história da trupe Poeira
de Estrelas é o foco da trama. No filme, vêem-se fragmentos do teatro de variedades
com números alegres de apelos simples e de ópera buffa, que levam os
espectadores a momentos de êxtase. Essa relação também pode ser vista em Roma
(1971), filme realizado posteriormente em que Fellini explora o mesmo tema,
mostrando números de variedades do Teatro da Barafonda como uma das únicas
diversões do período conturbado em meados da década de 1940. O espetáculo
funciona como mediador das dificuldades enfrentadas na Itália, como numa cena na
qual nem mesmo a indisciplina da platéia constrange a apresentação dos números
de canto, comicidades e dança, evidenciando a beleza dos espetáculos populares.
Por outra ótica, num período posterior à guerra, em Luci del Varietà é possível
vivenciar a existência sacrificada dos artistas mambembes das pequenas
companhias, sem dinheiro e “mambembando” pelos teatros da Itália. Nesse primeiro
momento fílmico da obra de Fellini, observa-se uma linguagem própria baseada na
concepção dos espetáculos populares e na observação irônica das situações de
conflito do pós-guerra, com personagens sofridas, perdidas e cômicas.

Num segundo momento, que compreende o período de 1959 a 1971, Fellini
realiza oito filmes que emergem numa perspectiva que aponta mais para a memória
e para a busca da consciência de seus personagens do que para o sofrimento
ingênuo e inevitável de antes. Percebem-se nesses filmes personagens mais
conscientes e muitas vezes frustradas diante do cotidiano de uma grande cidade,
explicitando um desconforto com o mundo moderno. Esses fatores podem ser
percebidos em La Dolce Vita (1960), onde ocorre um questionamento do cinema, da
arte e da autoria, colocando em voga o homem e suas aptidões perante o mundo
social e capitalista. Enfatiza-se o confronto entre o talento dos artistas e a obrigação
de capitalizar sua arte. Nesse período temos personagens frustradas, colocadas em
situações de desencanto com o mundo, notando-se uma maior consciência destas
comparadas àquelas apresentadas no primeiro período. Em Otto e Mezzo (1963),
por exemplo, as fraquezas do diretor de cinema são desveladas, colocando em
xeque sua capacidade de realizar filmes.
Os últimos três filmes dessa etapa, Block-Notes di un Regista (1969), I
Clowns (1970) e Roma (1971) (os dois primeiros realizados para a TV, e Roma,
narrado por Fellini numa perspectiva making-of), possuem um ambiente mais irônico
e bizarro, oferecendo evidências de uma reestruturação da estética fílmica de Fellini.
No final desse segundo período, a televisão passa a fazer parte do universo
fílmico. Em Block-Notes di un Regista (1969), por exemplo, já se tem claros sinais da
influência da TV como meio de comunicação de massa na reelaboração da estética
e do conteúdo fílmico de Fellini.
Diversas são as diferenças entre o contexto televisivo e o cinematográfico,
que interferem de maneira significativa na condução do roteiro e da produção final.
Entre as diferenças mais evidentes, podem ser citadas a duração do filme, o tipo de
câmeras que o focaliza e a natureza dos temas abordados. A duração de um filme
realizado para a TV pode ser menor, não existindo a obrigação de realizar um média
ou longa-metragem, como no cinema. As emissoras de TV privilegiam filmes mais
curtos, dinamizando a audiência com a inserção de comerciais e diversificando o
conteúdo, evitando a monotonia e buscando a arrecadação de capital por tempo de
transmissão.
O outro fator citado também corrobora para essas mudanças, como as
câmeras de TV que são, principalmente na década de 1970, bem menores e de

mais fácil condução que as de cinema. O manuseio da câmera na mão permite a
realização de planos mais fechados, favorecendo a criação de cenas mais ágeis. A
TV oferece uma tela quadrada e infinitivamente menor que a do cinema, que figura
como uma enorme tela em formato scope, favorecendo a visualização de grandes
panorâmicas. A narração-off, que estabelece a ponte entre o ambiente interior e
exterior ao filme, proporciona um tom mais jornalístico e ao mesmo tempo
distanciado da ficção, como se em E La nave Va (1983), com a personagem
Orlando, que é um dos narradores da história e, simultaneamente, inserido na trama.
A abordagem de temas mais urbanos também contribui para essa
característica televisiva nos filmes de Fellini, tematizando o trânsito das ruas e o
metrô. Em I Clowns, os elementos narrativos se assemelham ao de um
documentário jornalístico televisivo. A equipe de filmagem de Fellini, atrapalhada e
clowesca, sai em busca dos palhaços perdidos na Itália e na França. O diretor
aparece no filme interpretando ele mesmo e dirigindo-o.
Várias entrevistas são realizadas nos padrões das reportagens jornalísticas,
fato também observado em Roma, quando Fellini aparece junto aos jovens filmando
as ruas de Roma. Em meio às filmagens de Fellini - Satyricon (1969), realizado para
cinema, Fellini realiza Block-notes di un Regista (1969), filme que representa uma
nova abordagem em relação aos filmes anteriores, os quais não dialogavam de
forma tão direta com essas linguagens próprias da TV. Evidencia-se, nesse sentido,
essa revisão estética fílmica que se inicia no final desse segundo momento.
Pode-se ainda periodizar um terceiro momento, segundo Bispuri, que vai de
1972, com a produção de Amarcord, exibido em 1973, até seu último filme, La Voce
della Luna (1993). Tal período é compreendido por nove filmes, marcados pela
presença de personagens caricatos, imbuídos de uma ironia trágica com a
acentuação do pessimismo e a visão inquietante do mundo. Desse instante, os
filmes mais relevantes na concepção do espetáculo são: E La Nave Va (1983), em
que a ópera redesenha a estrutura narrativa se valendo do cômico e do satírico na
representação das personagens; Ginger e Fred (1985), com o pessimismo e a ironia
das personagens Pippo (Fred) e Amélia (Ginger), artistas covers de Ginger Rogers e
Fred Astaire, que se apresentam em um programa de auditório; Prova d’Orchestra
(1979), com o descontentamento, a desilusão dos músicos e a descrença pela
própria arte, demonstrada nas entrevistas para a televisão; Intervista (1987), na

presença maçante da TV japonesa e a busca da memória do cinema através das
personagens fellinianas envelhecidas; finalmente, La Voce della Luna (1993), com a
loucura e a perda do romantismo ocasionadas pela era do marketing, que têm as
emissoras de TV como epicentro.
A partir de então, a entrevista televisiva passa a ser um elemento freqüente
nos filmes. Nas cenas finais de Block-Notes di un Regista, por exemplo, vemos
Fellini entrevistando várias pessoas que chegaram até ele por meio de um anúncio
no jornal que solicitava personagens para seus filmes. Cada pessoa entrevistada
demonstrava suas habilidades, consideradas por elas mesmas como artísticas. O
que poderia ser uma forma banal e incrédula de se conseguir personagens,
transformava-se em um grande acontecimento, com filas de pessoas querendo
participar dos seus filmes.
As pessoas comuns são as que interessam a Fellini. Elas possuem
características únicas e essenciais que as fazem se diferenciarem umas das outras
e, ao mesmo tempo, trazem consigo elementos comuns que as identificam como
grupo, pelas suas crenças, seus costumes e suas culturas. O ser individual é
interessante pela diversidade de propósitos e aspectos caricaturáveis; o ser social
se destaca por propósitos comuns. Para Fellini, esse contato, que ele mesmo
classificava de surreal, disponibilizava elementos para a construção de suas
personagens, parte crucial na composição de suas histórias.
Os primeiros, segundos e terceiros momentos descritos por Ennio Bispuri
(2003: 14,15,16), como fases evolutivas na linguagem de Fellini, não levam em
consideração um elemento muito forte que viria a determinar e interferir de forma
considerável a estética fílmica felliniana: a televisão como meio de comunicação de
massa.
O evento televisivo foi definitivo para a remodelação da estética felliniana;
desde seu primeiro filme realizado para a TV, Block-notes di un Regista (1969),
temos claros sinais de sua preocupação com a inserção da TV como meio
audiovisual contemporâneo. As considerações de Bispuri em relação às três fases
servem para refilar os diversos momentos na produção cinematográfica felliniana,
além de serem de essencial ajuda para entendê-los de acordo com os instantes
históricos.

Entretanto, o autor não destaca a relevante presença da estética televisiva
nos filmes, que seria mais visível a partir de Block-Notes (1969). Duas questões
centrais são importantes nessa confluência: como os espetáculos populares foram
reaproveitados na estética televisiva e como Fellini construiu filmes para abordar
essa questão.

Fig. 3.
I Clowns
Fig. 4.
Idem

1.1 O circo de lona e o teatro de variedades: elementos do circo eletrônico,
TV.
Quando rapaz, sob a tenda do circo, olhava encantado as coisas:
hoje a tenda me pertence, eu determino, eu provoco (GRAZZINI,
1983:125).
Da perplexidade infantil à engenhosidade criativa, o encantamento pelo
espetáculo percorreu um longo caminho na vida de Fellini, tendo como exemplo sua
admiração pelo circo, que foi cercada de lendas e mistérios. Será que aos 7 anos de
idade Fellini teria fugido com um circo? Será que o menino que acorda atônito, em I
Clowns, ao ver a armação da lona ao som de vozes roucas, é a representação de
Federico criança?
A chegada do circo durante a noite, na primeira vez que o vi, ainda criança,
teve o cunho de uma aparição. Um mundo novo, não precedido por nada.
Na noite anterior não existia e, na manhã seguinte, ali estava, diante da
minha casa.
De saída, pensei se tratar de um barco desproporcional. Logo a invasão,
pois foi isso, uma invasão, estava ligada com algo de marinho, uma
pequena tribo pirata.
Então, além do medo, o fascínio pelo clown, surgido desse clima marinho,
foi definitivo
. (FELLINI, 1980: 123).
Da perspectiva onírica ao universo fílmico, os espetáculos circenses e de
variedades ocuparam lugar importante na obra felliniana, marcando presença em
grande parte de seus filmes, refilando emoções e propósitos. Nesse sentido, o
espetáculo passa a ser mediador de momentos representativos da Itália do período
do pós-guerra, das heranças do fascismo e da aculturação norte-americana.
Muitas cenas são constituídas de referenciais retirados de espetáculos
populares e são incorporados à obra como elementos tranqüilizadores das tristezas
e agruras humanas. Essas cenas se contrapõem às decepções, revelando

momentos mágicos e sublimes. Ainda, noutros propósitos, vêem-se cenas de puro
encantamento nas quais se escondem relevantes críticas ao fascismo.
As lembranças de Fellini menino se transmutam em arquétipos coletivos de
uma Itália provinciana, num momento de crise de identidade, quando o espetáculo
era o abrigo perante a dura realidade vigente. Desde seu primeiro filme, Luci del
Varietà, o espetáculo de variedades (vaudevilles)
2
denuncia a fragmentação do
tecido social e da cultura popular, indicando a reconstrução do show-business
italiano. Forçosamente, os espetáculos mambembes perderam público e espaço
para outras companhias teatrais, mais equipadas e estruturadas. A estética da
cultura se associa ao ganho de capital. (MARTINS, 1994:19)
Em Luci del Varietà, o foco dramático constitui-se de dois elementos
enunciativos: o teatro de revista e a vida dos artistas mambembes. O paradigma
fílmico anuncia um novo tempo, na medida em que o espaço para as artes
mambembes e para os artistas de rua estão cada vez mais se estreitando. As
mulheres, artistas belas, são tratadas como mercadoria e atraem homens
endinheirados às companhias. Em Luci del Varietà, Liliana abandona Checco para ir
com Palermo, ficando evidente a crise que se precipita. Liliana, linda e jovem, deve
aproveitar a oportunidade para trabalhar em lugares mais estruturados, onde o giro
de capital é maior e, conseqüentemente, tentar melhorar sua vida financeira.
Algumas cenas do filme indicam a dualidade do mundo da arte: o contraste
do glamour das grandes companhias se opondo à dura realidade do teatro
mambembe. Pode-se presenciar essa dialética nas cenas tristes da decepção de
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2
Esse tipo de teatro popular e musicado (vaudevilles) foi característico do final do séc. XVIII como "revue de
fin d'année" (revista de fim de ano)
em Paris, França, surgindo com o intuito de fazer frente ao monopólio teatral
estatal francês. Com o tempo essa revista do ano passou a ser mais freqüente, tendo como alvo as piadas sobre a
burguesia e a sociedade capitalista. A origem do teatro de revista bufo e satírico, que remonta da Grécia
Clássica, tinha em seu humor parte integrante dos espetáculos dionisíacos, que incluíam poesia e filosofia.
Vertente do teatro popular e da comédia, o teatro de revista partiu da interação cúmplice com o público,
oferecendo aos espectadores momentos de revisão de fatos e de fantasias numa linguagem ligeira que se tornara
menos simpáticas às elites culturais. A interação com o público é evidenciada logo nas seqüências iniciais com
muita música e letras que valorizam o público.

Checco, quando fica sem Liliana e sem dinheiro. Contrapondo-se a essa melancolia,
as cenas subseqüentes surgem para dar alivio; Checco aparece na rua, cabisbaixo e
sem esperança, quando é acometido pelo som do sax de Johnny, músico negro que
aparece na trama. A partir desse encontro, ele esquece sua dor, conhecendo outros
artistas de rua, sentindo-se consolado.
Em Prova d’Orchestra (1979), por exemplo, temos uma amostra crítica e
reflexiva das condições dos sicos perante sua arte, com a televisão flagrando a
instabilidade com relação ao poder do maestro e ao desencantamento quanto a
seus papéis na orquestra. Como um personagem que narra uma história, tanto de
fora como de dentro, a televisão passa a ser um elemento eficaz para diagnosticar a
situação vigente. A linguagem making-of, a narração-off, a fragmentação das
histórias e a temática de confronto entre o antigo e o novo o características dos
filmes a partir de 1969. Portanto, Prova d’Orchestra declara a morte da arte pela arte
e deflagra o seu momento como produto da era do marketing, algo que assusta os
mais antigos, como o maestro e outros músicos mais velhos.
A pausa dos trabalhos expõe a falência de significados da atividade musical
hodierna. Os músicos, flagrados no lazer, assemelham-se a quaisquer
outros trabalhadores do setor de serviços. Não parecem apreciar o silêncio,
não consomem a própria música que produzem, enfim, não valorizam o seu
labor artesanal como superior à reprodução industrial da música de
massa.(...). (MARTINS, 1994:105).
Em Luci del Varietà (1950), apresenta-se o conflito da arte artesanal e
industrial, deixando a vida: até quando Checco e sua trupe Chão de Estrelas
poderão sobreviver como artistas mambembes marginalizados? E os músicos de
Prova d’Orquestra (1979), para onde estão caminhando? Essas dúvidas seguem
sem respostas no decorrer dos filmes. Tanto no primeiro como no segundo, está
explicitada a precariedade dos artistas, suas condições inadequadas de trabalho e
as descabidas exigências impostas pela indústria cultural. Flagra-se então um
descompasso entre a arte artesanal e a arte em escala industrial. A Itália entra na
era moderna, tendo de lidar com as novas imposições do mercado; e os artistas,

como os músicos da orquestra, parecem não valorizar suas próprias aptidões,
acreditando que se tornaram obsoletas e, inevitavelmente, caem em um labirinto
dentro de sua própria lógica artística. Nas cenas do intervalo da orquestra, os
músicos ouvem músicas eletrônicas, num barulho ensurdecedor; similarmente, em
La Voce della Luna, a discoteca da década de 1980 supera e transcende o gosto
pela música erudita.
Apesar de mostrar a força crescente da cultura industrial, Fellini aponta
elementos positivos em Luci del Varietà, acenando com a valorização da arte
artesanal, como nas cenas do “diálogo” cantante entre atores e público. A letra da
música enaltece o público do teatro, mostrando a popularidade e integração entre
atores e espectadores.
Porque te admiro
Com tua ternura
Nos fazem sonhar
Aqui está a felicidade
Teatro de variedades
Porque te quero
Fascinação de amor
Entrego teu coração
Aos espectadores
3
A propósito, vários filmes americanos vangloriavam o estilo musical,
consagrando-o como gênero e, com a grande depressão de 1929, os musicais
serviriam para revitalizar o cinema hollywoodiano. A década de 1930 no cinema foi
marcada pela inserção do som no filme, gerando a edição conjunta do som com a
imagem. O teatro de variedades apresentado em Luci del Varietà se difere dos
vistos em musicais norte-americanos, onde tudo parece fluir de forma perfeita.
Nesse sentido, o mundo dos espetáculos, pela ótica felliniana, ganha contornos mais
realísticos, irônicos e bizarros.
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
Em Ginger e Fred, Fellini satiriza os musicais via programa de TV. O diretor
propõe um olhar sagaz da indústria e do marketing cultural iniciado em Luci del
Varietà, com os espetáculos de variedades, em La Strada; passando por La Dolce
Vita, numa conscientização das personagens, e finalizado em Ginger e Fred, com os
espetáculos na TV.
Essas vertentes dialéticas indústria e mercado, arte e expressão - se
tornam eixos centrais para discutir a sociedade italiana. Em Ginger e Fred, os
artistas oriundos desse mundo mambembe, clowesco e artesanal entram em contato
com um programa de auditório. Fellini realiza uma revisão do espetáculo popular via
programa de TV. Pequenas esquetes de variedades são inseridas como células na
composição do programa, reformulando o espetáculo e reaproveitando-o de forma
inconsistente. As atrações e bizarrices dos circos, dos musicais e palcos de
variedades estão nos programas de TV. A televisão absorveu os espetáculos
populares, reestruturando sua lógica artesanal e substituindo-a pela mercadológica.
O último filme de Fellini, La Voce della Luna (1990), deixa esse fato evidente quando
a lua cai na terra e é capturada pelos operários da grua; a televisão aproveita esse
fato para escandalizar o acontecimento. Todos os políticos influentes, ministros,
prefeitos, arcebispos, donos de emissoras de TV se juntam para avaliar o fato, que é
acompanhado de perto pelas câmeras de televisão. A metáfora da prisão da lua,
fortemente coberta pela mídia televisiva, se opõe aos personagens lunáticos que,
vivendo em outra dimensão, não conseguem perceber que são objeto de exploração
da mídia televisiva. A reportagem jornalística televisiva trata o fato como meio de
adquirir relevância e audiência em escalas astronômicas.
Em Intervista, o confronto entre o cinema e a TV se torna o eixo central da
trama, sendo representativo o fato de Marcello Mastroianni estar em Cinecittà, como
Mandrake, participando de um comercial de sabão em pó. Em outra cena, Fellini
leva o mesmo Marcello à casa de Anita Eckberg, juntamente com os repórteres da
televisão japonesa e, juntos, revivem os tempos áureos do cinema ao assistirem a
cena de La Dolce Vita, com Marcello Mastroianni e Anita Eckberg, 26 anos mais
jovens, encenando a romântica cena na Fontana di Trevi.

Em I Clowns, o circo e os palhaços são discutidos num filme realizado para a
TV com estética televisiva; em Intervista, o cinema é tema de uma reportagem de
TV; em La Voce della Luna, a prisão da lua vira reportagem de TV; e em Ginger e
Fred, os espetáculos populares, o circo e o teatro de variedades cedem seus artistas
e números para o programa Com Vocês, patrocinado pelos produtos Lombardoni.
Nesses filmes pode-se preconizar o surgimento da televisão não como um
reestruturador da estética fílmica, mas também como um tema a ser largamente
discutido nos filmes.
Portanto, a obra de Fellini se constrói a partir de uma visão atenta aos
acontecimentos de uma Itália agrária que tenta se adequar às imposições do
capitalismo da era moderna. Criando um estilo próprio, se vale dos espetáculos para
capturar a dinâmica da realidade social italiana, tendo ainda a televisão, em seus
filmes finais, como uma personagem constante que revê todo processo de
concepção do espetáculo. Segundo Ettore Scola, Fellini seria “contra todas as
aparências, o mais político dos cineastas italianos” (Corriere della Sera, 1.11.93).

Fig. 5.
I Clown

1.2 A personagem clown no circo e em Fellini
No espaço circense, a interpretação parece fluir espontaneamente diante do
respeitável público. A alegria e a tranqüilidade com que os números são encenados
sugerem um ambiente lúdico e encantado, que também é marcado pela dura
disciplina de ensaios. Os exercícios de aprendizagem dos atores circenses são
iniciados precocemente, um trabalho extenuante ao qual se submetem para adquirir
atributos físicos e mentais que visam aprimorar suas peripécias cômicas, fantásticas
e inusitadas. Atores circenses são comunicadores exímios, estimulam a
cumplicidade de forma única e eficaz, tendo a seu favor o espaço circular que facilita
essa interação da magia comunicacional entre público e platéia.
A característica forasteira e cigana do circo se assemelha ao do deus
Dionísio, das festas, da alegria e da inconstância, que provocam nas pessoas a
alegria e/ou medo. A alegria vem das cores, do riso, do inusitado; o medo, da
incapacidade humana em lidar com o inconstante, com o imprevisto e até mesmo
com a morte.
Em I Clowns tanto o espaço circular quanto a cumplicidade entre público e
platéia, provenientes dessas prerrogativas, são elementos valorizados. No filme, nas
cenas do picadeiro, a câmera subjetiva se comporta de tal sorte que faz com que o
espectador vivencie momentos mágicos dos números do palhaços. Nas cenas finais,
ao som apenas das serpentinas, o palhaço, pendurado e solto, parece voar no
picadeiro. A câmera fortalece a ótica circular e percebe-se, a partir de seus
movimentos, a magnitude do circo.
O circo é resultado da conjunção de dois universos espetaculares até então
distintos: de um lado, a arte eqüestre inglesa, que era desenvolvida nos
quartéis; de outro, as proezas dos saltimbancos. A nova sociedade
mercantil emergente no século XVII, na Europa, provocou o esvaziamento
das práticas culturais das ruas e das praças. (Burke, 1989, p. 270 e
seguintes). Concomitantemente, a aristocrática ordem militar transferiu seu
domínio sobre o cavalo para o ambiente comercial, após Phillip Astley, um
sub-oficial da cavalaria inglesa, descobrir que um homem pode se manter
em no dorso de um cavalo, em uma arena de treze metros. Tão logo se

formou, tal modalidade espetacular expôs sua própria contradição. Ao
perceber a monotonia das apresentações exclusivamente eqüestres o
espetáculo circense adotou a diversidade da arte dos saltimbancos, uma
vez que as novas regras de comercialização da economia e da cultura
provocaram o esvaziamento das feiras e suas práticas culturais,
disponibilizando um número razoável de artistas saltadores, acrobatas,
prestidigitadores, engolidores de fogo, etc. No interior de um espaço
fechado, com a cobrança de ingressos, a habilidade sobre o cavalo
associou-se aos saltimbancos errantes, dando origem ao circo moderno e
seu espetáculo. (BOLOGNESI, 2002:01)
O palhaço, personagem imprescindível e o maior representante do circo, é
também a que mais encantava Fellini. Mas qual seria a razão de tal
deslumbramento? Para respondermos a tal questão, é importante buscar quais são
as origens do palhaço e, em sua prática antiga e atual, quais seriam as
representações e valores que o público e o espetáculo circense conferem a ele.
Algumas pistas podem ser elucidadas, como, por exemplo, o fato de que o palhaço
possui uma personalidade cômica, contraditória, rebelde, ingênua, irreverente e
verdadeira; elementos interessantes à construção das personagens fellinianas.
Outro fator relevante é a relação da dupla de palhaços brancos e augustos, que em
suas apresentações geram uma oposição intrigante e necessária. Segundo Fellini,
para analisarmos as relações humanas, a dupla de palhaços pode ser de grande
valia. Muitos estudiosos se debruçam no estudo do palhaço, desde a sua origem,
ainda questionada, até sua atuação nos dias de hoje.
O clown é a figura mais criativa do circo, uma espécie de faz tudo. O
estereótipo do clown revela um personagem com o rosto pintado, roupas
largas engraçadas e extravagantes, sapatos enormes e desengonçados.
Uma criatura com aparência inusitada e interessante. O contraste nas
vestimentas e a falta de proporção entre elas dão a ele um tom de humor
sua bengala nunca é tamanho normal ou é muito grande ou muito pequena
inadequação dos objetos de uso o faz um personagem único. Porém nem
todo o clown é assim; ele pode também ser elegante, quando é um Pierrot –
clown branco, ou ainda pode ser um vagabundo, quando é caracterizado de
clown-caráter. Contudo, quase sempre é uma criatura pura, até mesmo nas

brincadeiras mais perversas tem a ingenuidade infantil como característica
fundamental. (SANTOS, 2001:83).
A personagem aclamada por Fellini pode ter surgido muitos anos, porém
seus possíveis ancestrais não eram exatamente como a conhecemos hoje em dia.
Seus prováveis ascendentes foram vistos há, aproximadamente, quatro mil anos
atrás, segundo a literatura especializada. Existem relatos das suas primeiras
aparições nas cortes dos imperadores chineses. Sua importância era incontestável,
pois a presença do palhaço acalmava os ânimos e reativava o riso, provocando um
relaxamento terapêutico, atuando inclusive nas decisões políticas do imperador.
Entretanto, segundo Tessari (1981), as características do clown atual circense
devem ser definidas com segurança a partir de Astley, sendo o clown oriundo da
Commedia dell’arte e da farsa francesa e anglo-saxônica.
Esses prováveis ancestrais dos palhaços de picadeiro eram chamados, na
Idade Média, de bufões ou bobos da corte, oriundos dos mitos helênicos de deuses
e heróis, e podiam ser vistos na classe aristocrática, apresentando poesias,
dançando e fazendo piadas com temas relacionados à corte e ao rei. Era um
indivíduo com características acrobáticas e personalidade irônica, sagaz e atrevida.
Essa personagem também aparecia na farsa mimada, provavelmente proveniente
dos ritos das colheitas e do culto aos mortos realizados por antepassados. Nesse
gênero, não era permitido usar personagens nobres; então, as personagens
cômicas, os bufões, com roupas alegres e coloridas, eram as mais indicadas para
realizarem os números da farsa. A idéia era distrair e animar o público com mímicas,
danças, brincadeiras e pequenas esquetes cômicas com assuntos corriqueiros,
referentes ao cotidiano dos seres humanos, sendo considerados indignos de
encenações heróico-trágicos. Atuavam também em comédias religiosas,
representando o diabo, o vício, e estupidez e o mal, evidenciando sua rebeldia.
Esses comediantes apareciam no final dos espetáculos para desmoralizar o herói
das tragédias, dando a própria versão dos fatos; no entanto, muitas vezes suas
observações eram inteligentes e sensatas, até mesmo servindo de conselhos em
certas ocasiões.

Por haver, na Idade Média, teatros fechados dos quais os comediantes desse tipo
ficavam muitas vezes do lado de fora, lhes sobrava perambular e se apresentar
em ruas e feiras. Grupos de mímicos como malabaristas, músicos e acrobatas,
usavam a estratégia da brincadeira para ganhar espaço entre as pessoas na rua,
chamando a atenção do público para suas esquetes.
Desta maneira, um modo muito específico do fazer teatral alojou-se por completo
no espetáculo circense. Nascido em circunstâncias precisas, os palhaços
souberam sintetizar, para os novos tempos, em uma forma nova, toda uma
tradição cômica popular, cujos antepassados são reconhecidos nos cômicos
dell’arte, nos saltimbancos, nos bufões e seus ancestrais. Dos anteriores tipos
cômicos, os palhaços herdaram o representar de improviso. É claro que não se
trata de uma improvisação a partir do nada. elementos prévios que dão
contorno ao jogo cênico. O primeiro deles é o sucinto roteiro das entradas, que
demarca um certo número de situações cômicas, quer seja na fala propriamente
dita, ou na ação corporal. O outro, igualmente importante, diz respeito à própria
personagem-palhaço e suas características essenciais (enquanto tipo cômico
universal) e particulares (expressando subjetividades próprias a cada ator e
personagem). (Idem, p.07)
Na Commedia dell’Arte, séc. XVI na Itália, as companhias e personagens se
tornaram muito populares, vindas de diferentes regiões da Itália e possuindo
características marcantes, que as tornavam facilmente reconhecíveis. As
personagens eram fixas; o Arlequim, com sua roupa de retalhos; o Pantaleão,
veneziano, de vermelho; Briguela, de branco e verde; Polichinelo, de branco e gorro
pontiagudo; o Doutor, de negro; e o Capitão, com sotaque espanhol e roupas
militares. Essas personagens tinham características muito definidas e seus papéis
eram quase sempre os mesmos. Tornaram-se tão famosos que os atores eram mais
conhecidos pelos personagens que interpretavam do que por seus próprios nomes.
Da Itália, a Commedia dell'arte se estendeu por toda a Europa e, em cada
país, adquiriu novas características, como por exemplo, na Inglaterra, o personagem
Pulcinella se tornou Mister Punch, e o Pierrot foi transformado em “clown”. Com o
tempo, mais atrações foram sendo incluídas no circo, surgindo o palhaço “branco”
ou “clown”, palhaço vestido com lantejoulas e gorro pontiagudo, cara branca e pouca

maquiagem; o palhaço “augusto”, tonto, desajeitado e extravagante; o palhaço “toni”
e o palhaço “excêntrico”.
Augusto, o idiota, surgiu quando Tom Belling, um cavalheiro inglês, caiu no
meio da pista de um circo. Ao perceber que a queda tinha sido causada por
sua embriaguez, o público não se conteve e extravasou toda sua alegria
diante do ar bobalhão e de seu nariz vermelho. A partir desse momento,
Tom Belling construiu sua personagem enfatizando o ridículo, vestindo-se
de forma grotesca e explorando ainda mais a confusão que havia feito na
noite anterior. No entanto, agora, soube exagerar e aproveitar o que antes
havia sido um simples acaso. Consciente do que o público gostava,
explorou ao máximo todos os recursos para suscitar o riso. Nasceu, nesse
momento, o tipo Augusto. (PANTANO, 39:2007).
As entradas de palhaços, números aclamados pelo blico, se tornaram
clássicos no circo, representando trechos de peças importantes, como O Espelho
Quebrado, Hamlet, A Água, A Estátua e O Barbeiro de Sevilha, apenas para citar
alguns exemplos. Outra maneira de o palhaço participar dos espetáculos circenses
era através das reprises de palhaço, pequenas cenas inseridas na programação
para distrair o público enquanto se preparavam os materiais necessários para um
novo número de trapézio, de animais ou de malabares. No início do século XIX, a
pantomima cômica, pequena esquete teatral baseada em clássicos da dramaturgia
universal, também era representada por palhaços.
O palhaço era, até pouco tempo ats, o principal personagem de um circo,
sendo uma honra para ele ocupar esse papel tão importante. Geralmente os
palhaços eram habilidosos em alguma arte, muitos eram grandes acrobatas,
músicos, malabaristas, domadores, bailarinos, piadistas, cantores, equilibristas,
atores, mímicos, enfim, grandes artistas de circo.
O Clown se traduz por palhaço, mas as duas palavras têm origens
diferentes. Clown, no inglês, segundo Ruiz (1987), está ligado ao termo
camponês “clod”, ao rústico, à terra. palhaço vem do italiano “paglia”
(palha), usada para revestir colchões: a primitiva roupa do palhaço era feita
do mesmo tecido grosso e listrado do colchão. Outra origem é palhaço” na

língua celta, que originalmente designa um fazendeiro, um campônio, visto
pelas pessoas da cidade como um indivíduo desajeitado e engraçado
(Masetti,1998). Para Fellini (1986), o palhaço é mais de feira e praça, o
clown de circo e palco. Tessari coloca que, tanto na língua comum italiana
quanto na linguagem especializada do espetáculo, hoje não existe nenhuma
diferença entre a palavra palhaço e a palavra clown, pois as duas palavras
se confluem em essências cômicas na linguagem revelada e pronunciada
pelo corpo. (Maria Irma Hadler Condry e Ana Wuo -
http://clownelinguagem.blogspot.com/2008_02_01_archive.html)
As definições construídas por vários autores e estudiosos a respeito dessa
personagem tão antiga mostra o quanto ela é importante no contexto social e
cultural, ligada muitas vezes ao fracasso (LECOQ, 1999:146). A entrada do palhaço,
a partir do fracasso, revela a natureza humana, dando um senso de superioridade,
como um perdedor feliz. Dornelles (2003:3) diz que o clown é “a mistura da arte com
a vida, tanto na vida quanto no palco, no entanto esse é um movimento que
‘implode’ com a estabilidade proporcionada pela divisão clara entre vida e
representação”.
Para Fellini, o clown fazia parte de sua inspiração de fantasias da infância e, à
medida que foi crescendo, ele podia perceber como as pessoas se assemelhavam a
clowns, ora augustos, ora brancos. Comparava a sociedade a um grande e
magnífico circo. O fracasso repudiado por todas a pessoas fazia parte da vida do
clown, que sabia de suas fraquezas e aprendia a lidar com elas. Sua necessidade
imediata era a emoção, a vontade de viver e sorrir. Chorava de tristeza e ria de sua
própria dor. Ser clown era estar presente no momento da perda, da dor, do
embaraço.
As relações entre pessoas podem ser explicadas pela teoria felliniana do
clown. Fellini sabia que o clown expressava a parte irracional do ser, a sombra, e
que, para a sombra sumir, o homem precisaria estar todo iluminado, perdendo seus
traços grotescos e caricaturais. Tinha uma explicação a respeito dos dois tipos de
clown, o branco e o augusto, apesar de que sempre quando pensava em clown,
pensava no augusto.
E Fellini reflete: O branco representa a beleza, a lucidez, a razão, a graça, a
harmonia, a inteligência com idéias moralistas, únicas e certas. Nesse processo

reside o ponto negativo, se convertendo em professor, mãe: o lado repressor da
questão. Ao invés de ficar constrangido perante tanta perfeição, o clown augusto se
rebela, estabelecendo um par do orgulho contra o instinto. Dois lados opostos que
necessitam um do outro, se complementando.
No filme I Clowns, Fellini coloca nas cenas finais o clown augusto e o branco
se encontrando numa reconciliação dos opostos, a unidade do ser. Quando estava
rodando o filme, Fellini começou a observar como nas ruas podiam ser vistas
pessoas que se assemelhavam a clowns e como a natureza humana é mesmo
engraçada. Essas observações foram importantes para a criação de seu universo
fílmico. O circo, artesanal e cheio de emoção, serviria de argumento para vários
filmes posteriores. Essa leitura clowesca da humanidade busca, no íntimo das
ações, o ser que está sempre facilitando ou dificultando as ações do outro.
Oriundo do circo eqüestre, criado por Philip Asthey (1742, 1814), Clown,
palhaço de picadeiro, figura mímica e elástica, cuja maquilagem do rosto é
toda branca, procurava em cena fazer uma caricatura do cavaleiro, imitando
estupidamente suas proezas. (Auguet, p.39).
Com gestos delicados, essa figura cômica representava ao lado do
Augusto. Por sua vez, o Augusto atuava de forma simples, sem a
ostentação do Clown, ingênuo, irreverente, alegre e, na maioria das vezes,
atrapalhado. Essa personagem tem o poder de ridicularizar qualquer
situação e qualquer um sem ser penalizado.
Esse tipo todo atrapalhado, esteticamente deformado, grosseiro e ridículo, é
oposto ao Clown Branco. Com finos e elásticos, rosto branco com alguns
contornos em preto e vermelho, o Clown Branco uniforme, certo e puro. A
brancura de seu rosto denota sua superioridade, seu ar aristocrático.
Malicioso, enganador, o Clown Branco em cena ridiculariza o Augusto. Sua
tarefa consiste em manipular e explorar seu parceiro. Com sua inteligência,
cria artifícios envolvendo o Augusto nas diversas enroscadas. Aliás, essa é
sua tarefa: armar, inventar as mais diversas artimanhas em cima daquela
personagem. O Clown cria situações e o Augusto executa-as de forma toda
atrapalhada, como deve ser um bom palhaço. Isso tudo se com muita
pancadaria, tropeços e coisas do gênero. No entanto, em meio a toda essa
bagunça e desencontros o Augusto acaba se saindo bem. (PANTANO,
2007:43,44)

Essa leitura felliniana do ser social a partir das oposições inerentes à dupla de
clowns vai contra a visão antagônica de bem e mal, sendo mais relevantes outros
fatores, como o orgulho e a sensibilidade do ser. Essa forma de ver a sociedade,
segundo Fellini, mostra que o poder é um jogo de posicionamento perante uma
situação ou pessoa. É muito importante pensar no espetáculo e no Clown dentro da
ótica felliniana e, para tanto, é de grande valia a análise de trechos do livro Fare un
Film (Fazer um Filme), onde Fellini redesenha o circo e o Clown quando se refere ao
seu filme I Clowns:
Em italiano existe, entre tantas outras, uma definição de clown feita por meu
conterrâneo Alfredo Panzini, no Dicionário moderno:
"CLOWN - palavra inglesa (pronúncia cláun) que quer dizer rústico, tosco,
desajeitado, aquele que com uma falta de habilidade artificial faz rir o
público.” É o nosso palhaço. Mas mais uma vez a lastimável distinção da
palavra estrangeira que enobrece a coisa: “palhaço” é mais de feira e praça,
o clown em circos e palcos. Um bom acrobata é um clown, isto é, quase um
artista, e julgará imprópria e ofensiva a expressão palhaço. Mas clown
designa também o palhaço. O próprio Carducci, defensor do vernáculo, nas
prosas, não desdenhou a palavra (Ça ira, em Confessioni e bataglie).
Tempos de nacionalismo. O que posso dizer?
O palhaço encarna as naturezas da criatura fantástica, que exprime o lado
irracional do homem, a parte do instinto, aquela porção de rebeldia e de
contestação contra a ordem superior que em cada um de nós. É uma
caricatura do homem como animal e criança, como enganado e enganador.
É um espelho em que o homem se reflete de maneira grotesca, disforme,
bufa. É a sombra. Existirá sempre. (...) (FELLINI, 2004:157,158).
Existir como homem num mundo coberto de injustiças e injúrias, contradições
e enganos. Parece que todo o mundo está sob a tenda de um grande circo. O
palhaço, com suas artimanhas, está acima da maldade, acima do bem e do mal.
Anistiado, ele pode se rebelar, contar as verdades de forma irônica, cômica, sem
necessariamente ser mau. Com a ingenuidade de uma criança, ele pode ver e ouvir,
falar e chorar, sem que para tanto provoque a ira e a tristeza, fazendo as pessoas
rirem de suas mazelas e das mazelas humanas. Para Fellini, a humanidade se
assemelha a clowns que vivem pelas ruas da cidade ou no campo. O jogo do clown

branco e augusto revela as relações de poder entre essas figuras que representam
as relações humanas.
Quando digo o palhaço, penso no augusto. As duas figuras são, na
realidade, o clown branco e o augusto. O primeiro é a elegância, a graça, a
harmonia, a inteligência, a lucidez, propostas de forma moralista, como as
situações ideais, as únicas, as divindades indiscutíveis. Eis então que surge
o aspeto negativo da coisa, porque o clown branco, desta maneira, torna-se
a mãe, o pai, o professor, o artista, o belo, em suma, o que se deve ser.
Então o augusto, que sofreria o fascínio dessa perfeição se o fossem
ostentadas com tanto rigor, se revolta. Ele os paetês resplandecentes,
mas a vaidade com que são apresentadas as torna inalcançáveis.
O augusto, que é menino, faz cocô nas calcas, rebela-se na presença de
uma perfeição parecida, se embebeda, rola no chão e anima uma
constatação repleta.
Portanto esta é a luta entre o culto soberbo da razão (que atinge um
estetismo proposto com prepotência) e o instinto, a liberdade do instinto.
(...) (Idem, 158 ).
Os dois tipos de palhaço já descritos anteriormente, o clown branco e o
augusto, se comportam como opositores, sendo que um necessita do outro para
existir. Os dois opostos equilibram a relação, onde o objeto e a sombra coexistem e
atuam em propósitos comuns. Pode-se visualizar essa representação da dupla de
clowns em alguns filmes como em La Strada, com Gelsomina e Zampanò, em que o
clown augusto, na representação de Gelsomina, sofria com os desmandos de
Zampanò. No entanto, nas cenas finais do filme, Zampanò, considerado na relação
um clown branco, chora e sofre na praia por ter perdido sua parceira. Em Lo Sceicco
Bianco, Ivan Cavalli e Wanda indicam essa relação da dupla de clowns: a submissão
de Ivan é óbvia e cômica; no entanto, Wanda, ao final do filme, complacente, volta
para Ivan. Em Ginger e Fred, Pippo e Amélia, uma dupla intrigante, revivem a
relação de clowns augustos distintos, sendo Amélia ingênua e com senso de
compromisso e maturidade, e Pippo, bêbado, maltrapilho e com uma ironia peculiar,
humor negro lascivo e malicioso. Ele demonstra sua insegurança em uma cena onde
está entrando nos estúdios da TV e não passa na porta do detector de metais, pois
carrega consigo uma ferradura da sorte.
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O filme [I Clowns] acaba assim: as duas figuras o ao encontro uma da
outra e partem juntas. Por que uma situação parecida comove tanto?
Porque as duas figuras encarnam um mito que está dentro de cada um de
nós: a reconciliação dos opostos, a unidade do ser.
Aquela mágoa que existe na contínua guerra entre o clown branco e o
augusto não se deve às músicas nem a nada parecido, mas ao fato de
presenciarmos a algo que se liga à nossa própria incapacidade de conciliar
as duas figuras. Com efeito, quanto mais procures obrigar o augusto a tocar
violino, mais dará soprinhos com o trombone. Além disso, o clown branco
ainda pretenderá que o augusto seja elegante. Mas, quanto mais autoritário
for esse pedido, mais o outro será maltrapilho, tosco, empoeirado. (...)
(idem, p. 160)
O dilema da pressão do forte sobre o fraco pode desencadear a revolta, que
figura como a capacidade humana liberada a partir da falta de preparo em lidar com
situações de frustração perante o poder ditado e imutável. Quando um objetivo
parece inalcançável, a revolta aparece. Essa rebeldia pode ser demonstrada na
forma de ironia, como acontece em Ginger e Fred, onde, durante o blackout na
emissora de TV, Pippo sente-se revoltado e faz uma banana com os braços e, logo
na seqüência, a energia elétrica retorna, e ele, sem ter como se desvencilhar da
situação, começa a dançar. A personagem se julga impotente perante os
desmandos da TV e as imposições do mundo capitalista do qual se sente excluído.
Fred, irônico, desdenha da vida numa tentativa de tornar tudo mais suportável.
Outra tendência do clown branco: desfrutar o augusto, não apenas como
alvo e zombarias, mas para executar o trabalho pesado. A propósito, típica
é a entreé que reportamos adiante: Você não deve fazer nada, eu faço tudo.
O clown branco manda o augusto pegar as cadeiras e coloca uma vela em
seu traseiro. (...) (idem, p.161).
A caricatura de um ser se torna engraçada porque nela o lado que destoa do
conjunto é enfatizado, tanto na parte física quanto na psicológica. Nada pode ser
totalmente perfeito dentro das exigências estéticas greco-romanas. Muitas vezes um
jeito de andar, de se vestir, de falar, um nariz muito grande, os olhos, um jeito de
ser, tudo pode ser realçado e se tornar alvo de sátira. Assim o augusto representa a

constatação dessas, digamos, imperfeições. Como todos são passíveis de erros, o
fato de diagnosticá-los em pessoas intocáveis e altivas, como os clowns brancos,
abre um caminho para a sátira.
A referência de Fellini aos palhaços que habitavam sua cidade é uma forma
encontrada para estabelecer o jogo entre o medo e o fascínio, sentimentos
trabalhados no circo e, com isso, percebe-se como a relação interpessoal, política,
social e familiar pode se identificar com a dupla de palhaços. Assim, o filme I Clowns
foi um momento de pensar o espetáculo não somente como uma forma de diversão
e lazer, mas também como uma maneira de observar, perceber e atuar na
sociedade italiana.
(...) minha cidade se tornou uma grande lona. Embaixo dela estavam os
augustos, com o potestade e fascistas vestidos de clowns brancos.
O medo provocado pelos palhaços também podia ser encontrado em
algumas figuras dementes da cidade (sobretudo os augustos, mais do que
nos brancos); figuras que em casa eram tidas como assustadoras. “Se não
comer, vai acabar como o Giudizio”, dizia minha mãe.
Giudizio era o próprio augusto de circo. Um sobretudo militar cinco ou seis
números maior do que o corpo, sapatos de lona branca, mesmo no inverno,
uma manta para cavalos nos ombros; tinha uma dignidade própria, como o
mais esfarrapado dos palhaços. (...)
O Clown branco, ao contrario, com o fascínio lunar, a elegância noturna
espectral, lembrava a autoridade congelante de algumas freiras diretoras de
escolas ou então certos fascistas poderosos, vestidos de uma seda preta
brilhante, dragonas douradas, o chicote (exatamente como a palheta do
palhaço) (...) (idem, p.165).
A formação das personagens de Fellini perpassa pelo universo clowesco. Para
construir suas personagens, pensava em como elas seriam vestidas e maquiadas e
como esses fatores influenciariam no modo de se comunicarem nas atitudes
corporais, pelo olhar, pelo sorriso, pela fala e pelos gestos. Muitas delas possuíam
trejeitos de clowns, como Gelsomina e O Louco, em La Strada; Ivan Cavalli, em Luci
Del Varietà; Giudizio e Giovannone, em I Clowns; e outros ainda mais refinados,
como Marcello, em La Dolce Vita, ou Pippo, em Ginger e Fred; e Orlando, em La
Nave Va, apenas para citar alguns exemplos.

Essa versão da vida, a partir dos clowns, pôde dar a Fellini as variações de
envolvimento e de personalidades perante as relações de poder: o submisso, que
cede, e o poderoso, que manda. Percebe-se que essas relações não são estanques,
visto que elas podem se modificar de acordo com o tipo de propósito e intenções.
Portanto, a concepção dos espetáculos populares desde o circo, fotonovela, ópera e
teatro de variedades desenhou um estilo que prevaleceu em todos seus filmes e
foram discutidos, posteriormente, no contexto televisivo, com o espetáculo,
adquirindo novos contornos diante do advento da TV.

Fig. 6.
I Clowns

2 A CONSTRUÇÃO DA LINGUAGEM TELEVISIVA NA OBRA DE FEDERICO
FELLINI
Nesse capítulo, o objetivo é demonstrar de que forma ocorreu a reformulação
da linguagem felliniana a partir da criação de seu primeiro filme para a TV. Os
argumentos levantados se sustentam especialmente pela constatação de elementos
comuns à linguagem televisiva que foram incorporados aos filmes de Fellini, como:
luzes diretas, câmeras mais ágeis, entrevistas, narrador com voz de Deus, histórias
fragmentadas, temas mais pertinentes ao mundo moderno, linguagem making-of,
pessoas que interpretam elas mesmas e filmes com temas televisivos, apenas para
citar alguns exemplos. À narrativa ficcional foram acrescentados elementos da
narrativa documental, proporcionando, assim, circunstâncias mais propícias às
discussões da linguagem televisiva e cinematográfica.
Sem abandonar o universo espetacular do teatro de variedades e do circo,
tratados no primeiro capítulo, percebe-se que, nos filmes realizados após 1969, ano
da estréia de Block-notes di un Regista, Fellini demonstrou uma crescente
preocupação com três fatores: as conseqüências sociais e culturais a partir do
advento da TV como meio de comunicação de massa; o empobrecimento do
espetáculo popular quando inserido no contexto televisivo e, finalmente, a
convergência de cinema e TV.
Para Fellini, pensar o cinema, via espetáculo popular, fê-lo construir uma
linguagem própria e única. Posteriormente, ainda ligado a essa primeira confluência,
o desafio foi pensar o cinema pela ótica televisiva. Para tanto, traçou caminhos
paralelos e alternativos que, associados a sua linguagem cinematográfica, abriram
espaço a uma nova leitura da produção audiovisual contemporânea. Fellini passou a
olhar a televisão mais atenciosamente, observando os programas de auditório, as
reportagens jornalísticas, os filmes publicitários, os patrocinadores e a política das
emissoras de TV. Ele se tornou um crítico sagaz e atento às interpelações desse
pequeno “écran”. Com efeito, esse tema televisivo o acompanhou até seu último

filme, La Voce della Luna, redesenhando, em seu estilo clowesco e espetacular,
novos contornos mais documentais e realísticos.
A confluência entre narrativa ficcional e narrativa documental pode ser
verificada em muitos filmes de Fellini. Neste capítulo, I Clowns (1970), e Ginger e
Fred (1985), serão evidenciados por possuírem características essenciais às
análises. Os dois filmes oferecem elementos da linguagem documentária, da
televisão e do telejornal, sugerindo um parâmetro menos estanque entre os gêneros
documentário e ficção. Esses filmes possuem, em seus eixos temáticos, a massiva
inserção da televisão na sociedade italiana das décadas de 70 e 80, uma das
grandes preocupações de Fellini.
Pela controvérsia atual entre o que seria um filme documentário e um filme
ficcional, o estudo leva em consideração o caminho percorrido pelo audiovisual
desde seus primórdios até o advento da televisão, supondo que os filmes de Fellini,
após 1969, dialogavam com essa convergência de dois campos que se interceptam:
documentário e ficção; cinema e TV.
Em I Clowns, a linguagem cinematográfica proporciona a beleza e a
grandiosidade do filme que, associada à estética telejornalística, com luzes diretas,
equipe de filmagem itinerante, direção improvisada, casual e atrapalhada, pressupõe
um making-of do próprio filme. A metalinguagem, com um filme dentro de outro
filme, é utilizada para enriquecer a narrativa, deixando o espectador atento a esse
jogo cênico.
É nesse cenário que Fellini entrevista palhaços e atores circenses que
interpretam eles mesmos e, ao mesmo tempo, dirige um filme ficcional para a TV. O
filme não toma formas de documentário quando utiliza as entrevistas com ex-
palhaços perdidos pela França, mas também se vale da ficção, no momento em que
vemos a equipe atrapalhada realizando um filme para a TV com cenas de pura
contemplação e fantasia.
Na primeira parte do filme, a voz-over relata as memórias de um menino,
referente ao circo e a seus personagens. Surgem várias lembranças de pessoas que
se assemelham a clowns de circo pelo seu comportamento ingênuo ou autoritário,
como a dupla de palhaços brancos e augustos. Essas personagens desvendam as

relações de poder, de autoritarismo, de medo e de fascínio decorrentes do regime
fascista. Assim, o filme fala do circo inserido na vida das personagens que são na
verdade o próprio povo italiano.
Em Ginger e Fred, Fellini discute a televisão num filme realizado para o
cinema e escolhe um programa de auditório como eixo dramático. Percebe-se o tom
clowesco, caricato e fantástico das personagens, inseridas de forma pitoresca diante
da televisão enquanto personagens ou telespectadores, sugerindo uma relação que
vai do fascínio à angústia e vice-versa. A propaganda televisiva e de rua,
insistentemente abordada, imprime um olhar mais atento à sociedade capitalista em
voga na contemporaneidade referente ao filme.
Fellini estruturou um paralelo entre os espetáculos populares e o programa de
auditório, fazendo referência também à ligação explícita entre o cinema e a
televisão. Um exemplo disso são as personagens protagonistas que, na verdade,
são covers de Ginger Rogers e Fred Astaire. A dupla hollywoodiana, ícone da
cinematografia americana e mundial, é parodiada via programa de TV. No bailado de
um número de tip-tap, Pippo e Amélia, respectivamente Marcello Mastroianni e
Giulietta Masina, vivem o clímax do filme. Percebe-se como o programa burla o
mundo dos espetáculos populares, transformando-o em mera aberração, fato
evidenciado nessa seqüência onde a atuação inconsistente da dupla é chacoteada,
expondo a velhice como algo incapacitante. Em uma ponta, o programa de TV
aparece no filme como uma possível reformulação do espetáculo popular dentro dos
padrões exigidos pela emissora e, em outra, o cinema figura como o meio eleito para
retratar e discutir a TV.
O cinema estabelece, entre outras coisas, pela magia da sala escura e
silenciosa, um ambiente que enriquece o suspense e colabora para o embarque do
espectador na história. O filme Ginger e Fred não foge a essa regra, pois é um filme
realizado para o cinema, entretanto a temática trazida pelo seu roteiro favorece a
crítica ao posicionamento cultural e social dos programas de auditório. As
propagandas exageradas mostradas nos outdoors, nos spots televisivos, na estação
de trem e nas emissoras de TV, dão a sensação de que o capitalismo anuncia um
novo tempo: a era midiática.

Em I Clowns, a discussão sobre o empobrecimento dos espetáculos
populares, como o circo e o teatro de variedades, apontam para a mesma questão: o
fortalecimento do capitalismo no mundo moderno. No filme é utilizada uma estética
televisiva em que a ficção e o documentário se misturam na representação dessa
temática, trabalhada a partir das histórias de vida dos palhaços. É importante notar
que o cinema e a televisão estão integrados e conversam entre si, em uma
linguagem formada pela reciprocidade de elementos presentes nesses dois gêneros,
favorecendo a formulação de uma nova estética.

Fig. 7.
Ginger e Fred
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2.1 Os encantos do documentário e da ficção
“Num documentário você fotografa pessoas reais e histórias reais,
mas não apenas para retratar a superfície visível do real. Na
montagem, na justaposição de detalhes, você cria uma interpretação
dessas histórias”
John Grierson
Atualmente a discussão sobre o que define um filme documentário e um filme
ficcional é uma constante. As distinções e congruências entre ambos são
abrangentes, gerando controvérsias inacabáveis entre realizadores e teóricos.
Segundo Evaldo Mocarzel:
cinema é sem dúvida manipulação e documentário; é logicamente uma
ficção, mas uma ficção que tem o ato de documentar como ponto de
chegada, ‘a realidade’, ‘o real’, o tema a ser focalizado, enfim, fazer um
documentário é de alguma maneira assumir um compromisso com algo
que nos escapa, com alguma coisa que nos transcende, que está além do
nosso umbigo autoral.” (MOCARZEL, 2003:72).
No cinema, documental ou ficcional, a representação subjetiva do filme é
evidenciada por alguns elementos inerentes à linguagem do audiovisual, na pré-
produção, produção e pós-produção: a pesquisa da temática; as captações de
imagens e sons; a direção, que em geral escolhe o lugar onde as cenas serão
realizadas, ensaiadas ou não; a autoria, a intervenção do realizador que imprime a
intenção do filme; e por último, a montagem, determinação da “ordem” das cenas,
que também contribui para a construção da intencionalidade. Esses elementos,
associados ou não, aproximam o documentário da estética ficcional.
A autoria no cinema é sempre algo questionável, pois um filme é a
confluência de muitas vozes, imagens e propósitos, que se imprime tanto no
documentário como na ficção. No documentário isso aparece nas extenuantes horas

de filmagem que perpassam por várias mãos e cabeças pensantes, tornando-o uma
realização a partir de diversos jeitos e modos de captar imagens e sons. Mesmo
quando apreendidos por apenas uma pessoa, como no caso de Entreatos (2001),
de João Salles, em que poucas cenas não tiveram sua captação, sente-se que,
dentro do filme editado, existem outras participações.
Em alguns casos, o tempo e o espaço também imprimem uma outra voz ao
documentário, como no caso de 33, de Kiko Goifman. Kiko é quem conduz todo o
processo de filmagem, entretanto uma forte intervenção do tempo e do espaço,
pois Goifman estipulou 33 dias para filmar seu documentário, que seria uma missão
para tentar localizar sua mãe biológica. Caso não a encontrasse dentro dos 33 dias,
o final do filme seria como foi: ele não a encontrou nos dias pré-determinados e o
prazo expirou. Entretanto, se ele a encontrasse no décimo dia, por exemplo, o que
provavelmente seria bem difícil, o que faria com os outros 23 dias? Essa pergunta foi
feita a ele na apresentação que fez de seu filme, no Cinusp, em março de 2004. Kiko
respondeu que reorganizaria a ordem dos fatos, do tempo e do espaço. Confessou
que, nesse caso, as filmagens da procura durariam menos tempo e os outros dias
seriam utilizados para filmar os fatos decorrentes do encontro com sua mãe. Teria
que reformular o tempo e o espaço do filme, encaixando outras cenas no começo,
dando mais suspense e substância a ele.
Portanto é óbvia a necessidade de condução do realizador num
documentário, mas também é evidente a necessidade de um compromisso com a
temática a ser desenvolvida. De qualquer forma, Kiko poderia burlar o fato de que,
na verdade, ele não a encontrou; nesse caso, porém, se fosse seguir seu
compromisso com o público, após o filme contaria de alguma forma que realmente
não a encontrou. Se não fosse assim, o filme se configuraria como um falso
documentário; esse é o ponto chave do documentário: ele deve, em algum
momento, falar daquilo que aconteceu, seja como for.
É perceptível o sucesso de filmes que representam a realidade, geralmente
antecipados pelos dizeres “baseado em fatos reais”. Podemos dizer que a
necessidade de veracidade, própria de uma cultura ocidental, ou de aproximar a
ficção ao mundo real, fez com que explodissem os realities shows por todo mundo.

A emissora People & Arts trabalha nesse sentido, colocando em sua grade
programas que mostram a realidade como ficção, alimentando essa vontade de ver
o real. Entretanto, se podiam perceber lampejos dessa tendência nos primeiros
programas de auditório que levavam um fato corriqueiro para a frente das câmeras,
dramatizando-o de tal forma que poderia ser visto como um show. Essa imbricação
do real com a ficção se cristalizou como um estilo de linguagem audiovisual, tanto no
cinema quanto na TV.
Os filmes que compõem a tradição do documentário são uma outra
maneira de definir o gênero. Para começar, podemos considerar o
documentário como um gênero como o faroeste ou a ficção cientifica. Para
pertencer ao gênero, um filme tem que exibir características comuns aos
filmes classificados como documentário ou faroestes, por exemplo.
normas e convenções que entram em ação, no caso dos documentários,
para ajudar a distingui-los: o uso de comentário com a voz de Deus, as
entrevistas, a gravação de som direto, os cortes para introduzir imagens que
ilustrem ou compliquem a situação mostrada numa cena e uso de atores
sociais, ou de pessoas em suas atividades e papéis do cotidiano como
personagens principais do filme. Todas estão entre as normas e
convenções comuns a muitos documentários.” (Nichols, 2005 p. 54).
Assim, o corpus do documentário inserido na ficção parece dar ao espectador
a sensação de um filme com mais credibilidade, autenticidade e dinamismo. Fellini,
atento a esse fato, desmistifica a linha tênue entre documentário e ficção
estabelecendo uma outra lógica fílmica, utilizando esse debate como
questionamento em muitos de seus filmes.
Na verdade, nem sempre essa distinção entre documentário e ficção foi tão
nítida. Historicamente falando, esse fator falso ou verdadeiro não foi sempre tão
relevante. Como as imagens são uma representação de uma idéia, de um conceito
ou de uma temática, a autenticidade dos fatos ficava para segundo ou terceiro plano.

Fig. 8.
Ginger e Fred

2.2 Os encantos das imagens no decorrer da história
A importância das primeiras experiências cinematográficas estava focada nas
imagens e nas sensações que elas despertavam no espectador. Elas eram exibidas
ao público para pura contemplação, projetadas como num espetáculo. A partir da
experiência de projeção em salas públicas dos irmãos Lumière, os cinemas tinham
como alvo principal um público popular. Modalidades de espetáculos de variedades
com apelação corporal ditavam os temas dos pequenos filmes. Historietas rápidas e
imagens grotescas eram exibidas entre espetáculos circenses e teatros de
variedades; o cinema era uma das atrações dos vaudevilles. O filme era composto
de uma cena apenas, cujos quadros primitivos eram constituídos de várias ações
concomitantes que, para um público menos acostumado a elas, parecia uma
confusão de atos ininteligíveis. Os filmes eram repetidos várias vezes e, as histórias
contadas, geralmente, eram conhecidas dos espectadores, facilitando assim o
entendimento da narrativa.
“Nas imediações de 1905, coexistiam dois tipos de filmes: aqueles
baseados nos enquadramentos frontal e aberto, cuja ação inteira se esgota
num único quadro ou numa colagem de quadros autônomos separados
pelos intertítulos, em que o cavalheiro da platéia faz uma “leitura” paratática
da imagem e a abundância de trucagens lhe faz tromper l’oeil e evadir o
espírito, cujo modelo é dado pela obra de Méliès, e aqueles que começam a
decompor a ação numa cadeia sintagmática, produzindo uma ilusão de
contigüidade por meio, principalmente, da introdução do conceito de
montagem, em que passam a dominar as tendências do naturalismo e do
voyeurismo, esticando a duração para mais de uma bobina, cujo modelo
acabado será dado mais tarde por Griffith [...]” (Machado, 2005 p.98).
Pela cnica rudimentar da época em captar e projetar imagens, os filmes
tinham pouca duração, geralmente em média um minuto, no ximo cinco minutos.
Seria improvável reunir numa sala várias pessoas para exibições tão curtas assim.

Com o passar do tempo, essas exibições rápidas foram sendo incrementadas
com narrativas mais elaboradas e as salas próprias foram aos poucos aparecendo.
Os nickelodeons, salas cativas de cinema, eram locais adaptados para exibição de
filmes, com entrada acessível ao público que freqüentava os vaudevilles. Nesta
época os filmes geralmente eram de comicidade popular, contos de fadas,
pornografia e prestidigitação:
“O sistema de representação que podemos identificar como específico
desse período deriva, nem tanto das formas artísticas eruditas (teatro,
ópera, literatura) dos séculos XVIII e XIX, mas principalmente das formas
populares de culturas provenientes da Idade Média ou de épocas
imediatamente posteriores” (Machado, 2005 p.80).
Portanto, no início o cinema servia ao popular e era, de certa forma, uma
continuidade do teatro de variedades. Talvez, nesta época, realizadores e
espectadores não questionassem o rigor verdadeiro das imagens, pois a importância
estava focada na diversão, no voyeurismo, no prazer que elas poderiam
proporcionar-lhes.
“As primeiras imagens cinematográficas, no sentido atual do termo, não
foram as do cinematógrafo dos irmãos Lumière, mas as do mutoscópio e do
quinetoscópio, ou seja, imagens concebidas para a visualização privada,
portanto, destinadas a serem “espiadas” através de visores individuais [...]
“[...] Ainda hoje, o prazer do filme não pode ser dissociado de uma inevitável
pulsão escópica: quando estamos no cinema, submetemos a imagem a
imagem do outro - a um olhar concentrado e bisbilhoteiro, como se
espiássemos pelo buraco da fechadura, ocultos pela sala de exibição [...]”
(Machado, 2005, p.124).
Nessa afirmação de Machado, fica claro o encantamento que as imagens
causavam aos espectadores que, individualmente, podiam vê-las através de um
orifício, reforçando seus desejos mais profundos.
O cinema sempre teve o poder de reproduzir imagens e, através delas,
provocar a imaginação. Evidentemente, essa questão é muito mais antiga do que a

primeira exibição de cinema em uma tela. Pode-se considerar que a primeira
aconteceu muitos séculos, com o mito da caverna, de Platão, quando a realidade
e a imaginação já povoavam a mente humana:
“A primeira exibição de cinema nos moldes em que a conhecemos hoje, ou
seja, numa sala pública de projeções, aconteceu mais de dois mil anos,
muito antes que Louis Lumière mostrasse as paisagens animadas de La
Ciotat no Grand Café de Paris. [ ...]” (idem, 2005, p. 28 ).
Com a “alegoria da caverna”, Platão colocou em voga as contradições entre o
imaginário e a ilusão das sombras, o delírio e o mundo real fora da caverna. Os
prisioneiros da caverna de Platão acreditavam nas imagens projetadas, sendo
incapazes de encarar a realidade - o mundo existente fora da caverna. Porém, a
inversão do dito é feita quando.
o discípulo Glauco pode compreender o essencial da distinção entre a
luz e trevas. Platão desdiz o dito, inverte os valores, perverte a sua própria
cena e, numa virada desconcertante, interpreta o subterrâneo onde jazem
os prisioneiros como sendo o nosso mundo, o mundo em que seres
humanos como nós se movem baseados em seus sentidos carnais [...]”
( Machado, 2005, p. 30) .
Eis o duplo do duplo, a imagem do real projetada nas paredes da caverna por
objetos que eram simulacros da realidade. Portanto, nesse sentido, o imaginário
está imerso no mundo real e físico - tridimensional - enquanto o real reflete
eminentemente o imaginário. Sendo assim, a alegoria, com a projeção das sombras,
remete ao imaginário um simulacro da realidade que fez seus prisioneiros
acreditarem nas projeções que eram, na verdade, representações do mundo
exterior. O cinema também se utiliza desse artifício quase hipnótico para exibir
cenas em uma sala escura, onde o sonho e o imaginário caminham ao lado de uma
representação da realidade.
No tempo da caverna de Platão não existia cinema, no termo técnico da
palavra, mas a reprodução de objetos e movimentos das sombras promoviam

sensações similares às sentidas no cinema. Mais tarde, Marey, fisiologista francês,
com a invenção do cronofotógrafo e do fuzil fotográfico; Albert Londe, que não
acreditava no naturalismo das imagens; e Muybridge, que registrou o movimento do
galope do cavalo, todos, mesmo sem intenção de fazer cinema, edificaram
contribuições importantes para o aperfeiçoamento cnico da sensação de
movimento da fotografia. Reynaud e Méliès tinham interesses mais condizentes com
o mundo cinematográfico. Como ilusionistas, possuíam propósitos mais autênticos
com o cinema comercial: projeções de imagens em movimento em uma sala escura
para surpreender a platéia. Plateau, em 1829, também pôde dar sua contribuição,
com seus estudos a respeito da fixação do movimento na retina e a construção do
fenaquisticópio, dispositivo de sintetização do movimento.
Segundo Morin, para o desenvolvimento do cinema foram necessários vários
propósitos distintos de engenheiros, cientistas e ilusionistas. No cinema, a tecnologia
pode cada vez mais contribuir para nos conduzir aos devaneios, tornando-os cada
vez mais “reais”. O real e o tecnológico unidos para sofisticar o imaginário:
“Inventores, engenhosos e sonhadores pertencem todos à mesma família,
navegam todos nas mesmas águas [...]“. A técnica e o sonho andam, de
nascença, a par. Em nenhum momento da sua gênese e de seu
desenvolvimento, se pode confirmar o cinematógrafo ao campo exclusivo do
sonho ou da ciência” (Morin, 1978, p.17).
Com o kinetoscópio, Edison podia exibir lutas de boxe e apresentações do
music-hall, outras vezes, coisas curiosas e bizarras, exóticas, fantásticas e divertidas
de um mundo muitas vezes desconhecido. Para os espectadores as imagens não
poderiam ser classificadas como ficcionais ou documentais; entretanto, Lumiére,
com uma idéia mais original, resolveu filmar a velocidade dos movimentos. A
filmagem do trem chegando à estação fez com que os espectadores recuassem,
alarmados, diante do trem que, silenciosamente, se arremessava contra eles.
Movimentos de pessoas comuns em tarefas cotidianas, transcorridas no mundo real,
também eram objetos de filmagem:

“A saída de uma fábrica, um comboio a entrar na estação, coisas já mil
vezes vistas, usadas e depreciadas, foi o que atraiu as primeiras multidões”
(Morin, 1978 p. 20).
Então o que levaria as pessoas a irem a um lugar específico para ver aquilo
que elas poderiam encontrar nas ruas? Essa vontade de ver novamente o que
poderia ser visto nas ruas remetia ao encanto das imagens. “Como definir esta
qualidade que reside, não na vida, mas na imagem da vida?“ (Morin, 1978 p.21).
Como vimos em Morin, o encantamento das imagens está associado à
capacidade de poder ver na tela a vida por uma outra ótica filtrada pela câmera, que
seleciona e imprime um olhar particular: um quadro evidente, enorme e às vezes
assustador, como nas imagens do trem de Lumière. Os espectadores viam filmes
curtos e narrativos de histórias conhecidas e agora também estavam diante de um
fato ocorrido, de um movimento filmado do ponto de vista do observador, uma
câmera subjetiva. Movimentos vistos todos os dias pelos seus olhos, mas que no
cinema ganhavam um olhar próprio, imposto pela câmera na “mão”. A imagem
documentada do cotidiano não parecia, em princípio, menos ficcional do que as
histórias narradas; entretanto, serviriam de modos de representação do “real”,
subjetivado pela câmera. É provável que essas primeiras imagens de Lumière
tenham sido o início da vontade de documentar o óbvio, mas que, mais tarde,
inserido em narrativas temáticas, atrairiam cada vez mais os espectadores que,
encantados, percebiam a capacidade da câmera de cinema.
Reproduzir o movimento de forma tão selecionada, subjetiva e envolvente;
rever, ver por um outro ângulo e perceber a velocidade com que o mundo acontece.
Essa poética da imagem levará os espectadores e os realizadores a quererem cada
vez mais filmar o movimento. Apesar de a câmera de cinema não conseguir filmá-lo
propriamente, mas tão maravilhosamente “enganar” os olhos na projeção, a idéia de
movimento é percebida e assimilada de forma impressionante.
Assim o documentário surge não somente da vontade de ver novamente, mas
de reviver um passado, de relatar um acontecimento, de poder ver com imagens
aquilo que sabíamos somente pelos livros ou por meio de outras pessoas. Essa
nova forma de “contar a história” pelas imagens traz para esse formato arqueólogos,
antropólogos, sociólogos, historiadores que, preocupados em colocar em filmes

relatos e imagens substanciais a respeito da vida dos outros, dos animais, dos
costumes, reinventam o passado e documentam o presente pelas imagens do
cinema. Assim nasce o documentário, com uma responsabilidade objetiva e, desde
o seu nascimento como gênero fílmico, por volta dos 1920, ele não consegue se
livrar do mito da objetividade.
Em Nanook do Norte (1922), Robert Flaherty constrói a figura de Nannok
como o não civilizado, a partir de sua visão estrangeira sobre “o outro”, aquele que
não se assemelha a si e a tudo que representaria a sua civilização. Aos olhos do
cineasta, aquele mundo diferente e de difícil compreensão precisaria de um
referencial cultural e social correspondente ao seu para que o filme pudesse ser
entendido. Paulo Menezes, citando Francastel, em L’image, La vision, Limagination
diz que a percepção e a construção de significados realizadas a partir de um filme
em projeção são muito mais fruto de regras intelectuais e arbitrárias do que a
reprodução ingênua de estruturas da natureza” (MENEZES, 2005:103). Esse
mecanismo de construção de uma realidade dos esquimós, idealizada por Flaherty,
se constitui em um filme considerado o primeiro documentário da história. em
Outubro, Eisenstein, em outro sentido, buscaria em fotos e imagens de arquivos
elementos importantes para inspirá-lo na recriação dos acontecimentos de 1917,
tornando o filme um registro respeitado e conceitual, utilizado como parâmetro de
um acontecimento histórico.
Caso se avalie a construção do documentário na contemporaneidade, o que
se é uma continuação dessa conjunção entre um suposto realismo documental e
a mão evidente do realizador. Como exemplo, pode-se citar Cabra Marcado para
Morrer (1964-1984), o primeiro longa de Eduardo Coutinho no qual ele tece uma
intrigante relação entre memória, tempo e lugar. Um filme sobre as Ligas
Camponesas que tinha o falecido João Pedro como personagem central. Em 1964,
começaram as filmagens com locações “verdadeiras” e com os próprios
camponeses como atores. Mas, com o golpe militar, a produção se invibializa,
havendo apreensão do material e a prisão dos camponeses atores; restando a
Coutinho apenas parte do material que estava sendo revelado no Rio de Janeiro. O
diretor vê-se obrigado a parar o filme. Dezesseis anos depois, ele retorna ao

cenário, não para filmar a história de João Pedro, mas para filmar a história da
história do filme e de cada um de seus personagens. De volta ao lugar dos fatos
acontecidos ele recria as situações, iniciando seu documentário com cenas de
ficção. Sabendo que o cinema é a arte da ilusão, os vários realizadores construíram
sua forma de fazer cinema com seus próprios conceitos de montagem e
sonorização.
Dentro dessa temática da ficção-documentária ou docu-ficção, alguns dos
nomes dados a filmes construídos com cenas de ficção e de realidade, valem serem
lembrados. Entre eles o de Dziga Vertov que, em 1923, na resolução do Conselho
dos Três, fala que o essencial é a cine-sensação do mundo (Xavier org., 2003,
p.253). A defesa feita por Vertov do cine-olho é a da câmera que se move no tempo
e no espaço, que colhe e fixa impressões totalmente diversas do olho humano. A
câmera teria a capacidade de ver coisas comuns do dia-a-dia, no entanto força o
espectador a ver mais aquilo que ela quer, um outro ponto de vista, mais inusitado,
tratando assim de uma imagem construída. Portanto, o que é visto pelo espectador
seria uma construção do mundo real, que se converte em ficção.
As diferenças entre documentário e ficção não garantem uma separação
absoluta entre eles, visto que possuem semelhanças. Como Bill Nichols coloca,
“alguns documentários utilizam muitas vezes práticas ou convenções que
freqüentemente associamos à ficção, como por exemplo, roteirização,
encenação, reconstituição, ensaio e interpretações. Alguns filmes de ficção
utilizam muitas práticas ou convenções que freqüentemente associamos à
não-ficção ou ao documentário, como, por exemplo, filmagens de externas,
não atores, câmeras portáteis, improvisações e imagens de arquivo,
(imagens filmadas por outra pessoa)“. (Nichols, 2005, p. 17)”.
Segundo Vertov, a montagem também tem o poder de condução e construção
do filme. O produto final de um documentário é sempre fruto de uma montagem:
montar significa organizar os pedaços filmados (as imagens) num filme,
‘escrever’ o filme por meio de imagens filmadas, e não escolher pedaços de

filme para fazer ‘cenas’ (desvio teatral) ou pedaços filmados para construir
legendas (desvio literário).” (Xavier org. 2003, p.263).
Portanto, a montagem é realizada desde o momento das filmagens, na
escolha dos ângulos, na gravação do som e, posteriormente, na organização
dessas imagens. Esse processo ocorre tanto no documentário como também nos
filmes de ficção. Inerente ao cinema, a montagem é algo indispensável (exceto em
algumas poucas exceções):
“Para Vertov, todo cinema verdadeiro estava sob a divisa do cine-olho e
kinopravda; todo outro cinema continuou sendo um prolongamento de
romances e peças. Vertov não precisou cunhar um termo como
‘documentário’, que para ele, seus filmes materializavam a essência do
cinema, não os traços de um gênero. Ironicamente, o termo kinopravda
voltaria a ser usado na homenagem feita a Vertov por Jean Rouch e Edgar
Morin, quando batizaram sua nova forma de documentário de cinema vérité
(kinopravda em francês), como um tipo (ou modo) do documentário, em vez
de uma categoria abrangente. O termo que começou com Vertov, como a
definição de modo verdadeiro ficou associado não só à área mais delimitada
de um gênero, o documentário, mas também com o ainda mais delimitado
subgênero do documentário participativo!” (Nichols, 2005 p.184).
Considerando esses aspectos, o cinema ficcional ou não ficcional sempre
desenvolve no espectador e no seu realizador a possibilidade de adentrar numa
espécie de magia, de contemplação, de hipnose pela possibilidade de retratar
imagens sempre representativas de uma realidade. O que é passível de discussão a
respeito da “verdade” no documentário o é também na ficção. Voltando à caverna de
Platão, teremos assim a possibilidade de visualizar uma imagem projetada em uma
superfície bidimensional, a representação de um mundo físico que está em
conformidade com nossos anseios, medos, vontades e desejos e que, naquele
momento da projeção, estamos aptos a veiculá-los porque acreditamos naquelas
imagens.
O aspecto imaginário do cinema remete também a imagens mentais, quase
sempre ligadas ao inconsciente, lugares escondidos dentro das pessoas e revelados

em circunstâncias específicas, como nos sonhos, na hipnose e por que não dizer na
tela de cinema, como projeções de uma realidade física do mundo “real”? Morin
discorre sobre esses aspectos característicos do processo projeção-identificação-
tranferência:
“A projeção é um processo universal e multiforme. As nossas necessidades,
aspirações, desejos, obsessões, receios, projetam-se, não no vácuo em
sonhos e imaginação, mas também sobre todas as coisas e todos os
seres.[...]“. Em relatos históricos ou pessoais estamos imersos na projeção,
nas deformações que elas podem trazer-nos: “É a complexa projeção-
identificação-transferência que comanda todos os chamados fenômenos
psicológicos subjetivos, ou seja, os que traem ou deformam a realidade
objetiva das coisas, ou então se situam, deliberadamente, fora desta
realidade (estados de alma, devaneios).” (Morin, 1978, p.82).
proximidade entre o cinema, o sonho e a psicanálise? Para Freud essa
problemática não foi levada em consideração. Esse estudo não se ateve a essa
questão psicanalítica e freudiana, porém é interessante notar essa estreita relação
entre o cinema e a psicanálise, tornando-se plausível a discussão, constituindo um
campo instigante a ser estudado. O sonho revela mundos internos desconhecidos, e
o cinema parece acenar com esse universo psicológico, no qual a realidade e a
objetividade ganham contornos mais introspectivos, que são projetados em todas as
coisas e seres, como vimos em Morin. Nesse sentido o cinema seria uma ótima
oportunidade para desencadear as necessidades inconscientes, devaneios e
obsessões do ser. O cinema, enquanto sala escura munida de uma máquina de
projeção e de uma tela, independente do filme exibido, pode acionar pensamentos
escondidos e inconscientes.
“No entanto, quando Freud explica o sonho como um cenário composto de
imagens, no qual se narra a história do desejo e dos interditos em relação
aos quais aquele se mascara, não é de cinema que ele está falando? E
quando invoca mecanismos psíquicos como a projeção e a identificação, a
semelhança com o vocabulário cinematográfico será apenas metáfora? [...]”
(Machado, 2005 p. 41).

O cinema, sendo essencialmente um selecionador, proporciona essa
sensação de isolamento do mundo. Os limites da tela iluminada, em contraste com a
escuridão de seu entorno, direcionam o foco do espectador, que acompanha a
montagem idealizada pelo realizador do filme. A platéia, longe do mundo “real”, se
encontra disponível e entregue aos desmandos do filme. No cinema não falamos,
fazemos voto de silêncio. O cinema nos proporciona o isolamento, a atenção
completa dos sentidos num único propósito: acreditar no que vemos, ouvimos e
sentimos.

Fig. 9
.
Intervista

2.3 Federico Fellini e a construção do cinema imaginativo e documental
Não existe arte nova sem objetivo novo.
O objetivo novo é a pedagogia.
Bertold Brecht
Os filmes de Fellini são embalados por sonhos, imaginações e aspirações.
Inspirado em pessoas comuns, ele criou personagens que foram retirados das ruas,
dos teatros de variedades, dos circos, dos quadrinhos e de toda a Itália que sofria
com os vestígios do regime fascista e do pós-guerra. Estabeleceu um estilo autoral e
lúdico, levando para a direção dos filmes sua experiência artística e um jeito
particular de contar histórias fragmentadas e vivenciadas por personagens
recorrentes. Utiliza a realidade revestida de fantasia num teor fantástico e lúdico,
porém munido de crítica e ironia.
Apesar de ter revivido Rimini em muitos de seus filmes intitulados por alguns
de autobiográficos, as recordações de menino, imbuídas de representações e
devaneios, se apresentaram de forma muito mais imaginativa do que real. Foi assim
que construiu sua obra a partir da lembrança, não somente de seu imaginário, mas
também de um arquétipo coletivo de uma Itália desestruturada pela guerra, pelo
fascismo e pela aculturação norte-americana.
Representava a infância e a adolescência de garotos provincianos da Itália,
como fez em Amarcord, com os personagens Titta e seus amigos. Em Lo Sceicco
Bianco critica e ironiza valores como a religião, o patriotismo e as relações familiares
da década de 50. No filme, a fotonovela, vendedora de sonhos, é satirizada. Em La
Strada (1954), o foco está em Gelsomina, uma mulher ingênua, que após ser
vendida a Zampanò, um brutamontes artista mambembe, serve de metáfora à
tristeza de um povo oprimido.
Seus filmes discursam e criticam fatos e situações que estavam além de si,
envolvendo a igreja, o fascismo, a família, a sociedade, os meios de comunicação e

todos os acontecimentos nos quais acreditava serem motivos de questionamento.
Para ele não importava o real ou o imaginário, pois acreditava que tudo que tinha em
mente tinham origem factual: a representação de um tempo, de um povo, de um
lugar, de uma época. Os personagens de Rimini, reais ou fictícios, foram revividos
em Amarcord, I Clowns e em vários outros filmes.
Em Satyricon (1969), fragmentos da obra de Gailis Petronius serviram de
inspiração para mostrar a Roma do primeiro século depois de Cristo, recriando-a
num universo fantástico. As máscaras, as orgias do prostíbulo no templo de Ceres, a
fragilidade do hermafrodita, o banquete de Trimalchio, o teatro de Vernacchio e as
bacanais foram revividos de forma lúdica e encantadora, construindo os cenários em
estúdio com grandes armações, escadas, jogos de luzes e amplos espaços.
Fellini descartou a possibilidade de filmar sobre ruínas, pois a recriação do
ambiente lhe daria a possibilidade de teatralizar o cenário, tornando-o mais
subjetivo, como o fez em E La Nave Va, com o oceano de plástico, evidentemente
artificial, ou em La Dolce Vita, com a réplica da Fontana de Trevi. A utilização do
cenário teatral deu ao filme Satyricon, por exemplo, um tom de conto de fadas,
corroborando a ligação de Fellini com o mundo do espetáculo.
2.4 Fellini e sua ficção documentária
Como visto anteriormente, percebe-se uma cisão estrutural fílmica na obra
felliniana desde a sua participação em Block-Notes di um Regista (1969).
Historicamente falando, aproximadamente na década de 60, a Itália devastada pela
guerra atravessava um período de reconstrução econômica e cultural. Com o
capitalismo levado a níveis mais intensos pelos norte-americanos, a cultura italiana,
praticamente agrária, foi fortemente influenciada e afetada pela americana,
totalmente tecnológica. A televisão surge em meio a esses conflitos e, de certo
modo, influenciada por eles. Por volta de 1960, a televisão já era um meio de
comunicação de massa na Itália, e a possibilidade de Fellini realizar filmes para a TV

era uma estratégia bem-vinda, uma forma de se comunicar com o grande público.
Parece ter acontecido meio por acaso a aproximação de Fellini com a TV.
A televisão era um desafio para Fellini, um cineasta que sempre bebeu na
fonte dos espetáculos populares; a oportunidade de popularizar seu cinema era tudo
que queria. Essa possibilidade de realizar filmes para a TV, apesar de lhe parecer
assustadora, também o encantava. O caminho percorrido para seu ingresso na TV
como diretor foi descrito por Tullio Kezich, em Fellini: uma Biografia (KEZICH,
1992:52), um se seus biógrafos mais importantes.
Fellini teria assinado um contrato com o produtor americano, Peter Goldfarb,
se comprometendo a dar uma entrevista para o Sperimental Hours, um programa de
entrevista que consistia em por à disposição de personalidades importantes do
espetáculo e da cultura 55 minutos para realizarem uma entrevista mais livre e
criativa. O Sperimental Hours era apenas um projeto que acabou não se
concretizando. No entanto, Fellini precisou cumprir o contrato. Realizou então, às
pressas, em meio aos preparativos para rodar Satyricon, o filme Block-Notes di um
Regista (1969).
Depois de Block-Notes di um registra Fellini roda I Clowns (1970) e Prova
d’orquestra (1978), completando três filmes feitos para a TV. Intervista (1978),
Ginger e Fred (1985) e La Voce de La Luna (1989), realizados para o cinema,
possuem como temática principal discussões a respeito da televisão. Percebe-se
que a possibilidade de produzir para esse meio tão popular fez Fellini repensar sua
estética cinematográfica, agregando a ela características do documentário e da
reportagem televisiva. Assim tornou sua obra cinematográfica mais jornalística e
direta, sem perder o tom fantástico e inusitado, características marcantes de todos
seus filmes.
Em Ginger e Fred (1985), Fellini ironiza os programas de auditório,
relacionando-os à invasão cultural norte-americana e ao capitalismo galopante,
evidenciados nas propagandas de rua e nos anúncios da TV. A invasão de outdoors
na cidade e a estação de trem se contrapõem ao lixo das ruas, aos pedintes e ao
caos urbano. Os aparelhos de TV, presentes em todas as cenas, tanto nos lugares
públicos quanto privados, intervêm na vida das personagens com suas formas de

persuasão. Pelos aparelhos televisivos podem-se ver vários tipos de comerciais,
filmes publicitários, concursos de comida, jogos de futebol e programas de auditório.
No filme, o programa “Com Vocês” é o eixo central da trama. Ele é uma
mistura de reality show, freak show e talk show, um mix de atrações díspares que
são incrementadas pela participação de pessoas comuns ou artistas de circo e do
teatro popular que, no palco, se submetem aos desmandos da TV para desfrutarem
alguns minutos de fama. A rapidez da seqüência das atrações é assustadora; mal o
espectador se recuperou de um choro e, ainda com os olhos cheios de lágrimas, se
diverte com uma situação bizarra ou grotesca que é colocada logo na seqüência. Os
produtos do cavalheiro LOMBARDONE patrocinam esse programa híbrido. A todo
momento entram merchandisings de um de seus subprodutos, algo incessante, tão
rápido, que mal dá tempo de pensar.
O problema tratado no filme não está centrado nos aparelhos de TV, e sim no
que neles é propagado. Para quem serve a televisão? Para que são realizados os
programas? Qual a intencionalidade da TV? É nessas questões que se encontra o
ponto de discussão.
A televisão proporciona aos espectadores varias formas de assistir a seus
programas: muitas vezes apenas se olha para o visor, mas não se o que ela
apresenta; outras, se vêem pequenos trechos entrecortados, sendo necessário
juntar esses fragmentos para dar um sentido; noutras, só se ouve o som de um outro
cômodo da casa, e ainda noutras, se a imagem, como nos lugares públicos,
onde o som fica submerso no ambiente. Assim sendo, a TV se configura como uma
caixa mágica que pode trazer o mundo através de uma janela.
Jean-Claude Carrière aborda as modificações técnicas e estruturais da
imagem a partir do advento da TV, tendo o cinema como referencial: a perda do
feixe luminoso acima de nossas cabeças, em contraponto às imagens frontais da
televisão; a dimensão reduzida da TV perante a tela de cinema; e o fato de os
aparelhos estarem em casa ou em algum lugar público, convivendo com os ruídos,
sons, luzes acesas e tudo que estiver em seu entorno. Segundo Carrièrre, essa
rapidez induz a um certo amortecimento do espectador perante as imagens.
Imagens que não se cansam de passar, passar, passar uma atrás das outras. As

imagens se referem ao mundo em que vivemos, mas, quando se encontram na tela
luminosa, parecem se ressignificar. O autor diz: “Basicamente a televisão não
pertence a este mundo”. ( Carrière, 1995 p.70).
A impressão pode ser outra, mas certamente a televisão pertence a esse
mundo. Como todas as mídias, ela é um elemento social, político e cultural de uma
sociedade. Em 1970, Hans Magnus Enzensberger escreveu, em Elementos para
uma Teoria dos Meios de Comunicação, que a mídia não é um instrumento neutro e,
sim, uma “indústria de consciência”, portanto a televisão também é aquilo que nós
fazemos dela:
“Com o desenvolvimento das mídias eletrônicas, a indústria da consciência
tornou-se o marca-passo do desenvolvimento socioeconômico das
sociedades industriais tardias. Ela invade todos os outros setores de
produção e assume cada vez mais funções de comando e de controle,
determinando o padrão da tecnologia dominante” (ENZENSBERGER,
2003, p.11).
Em Ginger e Fred, Fellini aproxima a televisão dos conflitos socioculturais e
econômicos da Itália contemporânea ao filme. Obviamente, discutir televisão
perpassa pelo conceito múltiplo no qual ela está inserida. O repertório é
infinitamente variável, contendo novelas, minisséries, telejornais, filmes, programas
de auditório, propagandas e desenhos animados, transmitidos em várias emissoras,
públicas, privadas, universitárias, canais abertos e a cabo, nacionais e
internacionais. O recorte estabelecido, o programa “Com Vocês”, inserido no filme,
foi baseado nos estilos norte-
americanos de programas de auditório.
em I Clowns, a estética jornalística remete à própria forma da televisão.
Em vários planos do filme, podemos ver a câmera como elemento importante da
filmagem; o personagem que está em cena aparece com uma câmera na mão,
supostamente filmando de outro ângulo a cena que vemos. A câmera é um
personagem do filme, o que o diferencia, por exemplo, de La Strada, onde a vida
mambembe das personagens Gelsomina e Zampanò construía o eixo central da
trama, tomando-o como ficção.
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Constituído por duas partes, I Clowns faz a inter-relação entre o sonho e a
realidade. Resgata a personagem palhaço, apresentando-a por oposição
mobilidade/saúde, juventude/alegria, sucesso/prazer - e, por outro lado
imobilidade/tristeza, fracasso/doença, velhice/morte. Apesar de trabalhar com o
pretérito, percebemos que Fellini tem a intenção de fazer um filme vivo. Vários
palhaços fazem o papel deles mesmos no passado, quando atuavam no circo. É
interessante notar que, ao convocar palhaços para essa tarefa, Fellini não revive
o ido e vivido, mas o reconstrói. Ele poderia usar as fotos e imagens de arquivo
para demonstrar os números circenses, sem perda do sentido histórico de resgatar
aquilo que foi e não é mais. Entretanto, quando opta por reviver as cenas, realmente
as reorganiza com os personagens reais, não representando tão somente o que foi,
mas o que ainda é, como em uma história do presente.
O filme inicia com uma tela vermelha, sica circense e um canto rouco de
um palhaço aparece o título e entram os créditos. Na seqüência inicial, a
apresentação descritiva da chegada do circo se faz pelos olhos do menino, que se
levanta durante a noite ouvindo uma voz de ordem forte, ritmada; o barulho de peças
metálicas forçadas por cordas o deixa curioso. Olha pela janela de seu quarto, mas,
na penumbra, não pode destingir bem o que vê: parece ser uma lona se levantando
como num milagre. Através das grades de um presídio, os detentos também olham
surpresos. Essa cena parece retirada de um sonho e remete à poética do circo, o
circo da magia e do encantamento dos meninos. Essa alegoria propõe
questionamentos. Na primeira parte do filme, o narrador voz off conta algumas
histórias recordadas pelo menino, e o flashback funciona como eixo central de
descrição das memórias e situações vividas na Itália no período do fascismo e da
Segunda Guerra Mundial.
As personagens inspiradas em pessoas do cotidiano representam ícones de
sentimentos, como medo, desejo e fascínio. Muitas delas voltaram em Amarcord,
influência felliniana dos quadrinhos e da Commedia dell‘arte, com personagens
recorrentes incluídos em histórias fragmentadas, provenientes do teatro de
variedades e do circo.
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Podemos citar algumas personagens inseridas em I Clowns, que Fellini
associava a clowns augustos; um deles é Giovannone, que aparece na primeira
história contada pela voz-over. Ele é um homem que provoca as mulheres, um
mendigo, extremamente inofensivo com seu membro de lebre morta. Um típico
clown augusto provocador. Outra associação acontece entre os palhaços anãos,
que lembram uma freira, também anã, que vivia falando sozinha, ora no hospício,
ora no convento. Ela voltará em Amarcord. Outra personagem relembrada é uma
mulher que sabia todo o discurso de Mussolini e o anunciava em voz alta. O
fascismo também foi representado pela figura do chefe da estação e por Giudizio,
outro clown augusto, que vivia na cidade, um homem maltrapilho atormentado pelos
terrores da guerra. Seus atos de loucura simulam combates joga bombas
imaginárias, se esconde de inexistentes inimigos e atira com espingarda sem
munição. As crianças não têm medo de Giudizio. Pelo contrário, saem na rua
compartilhando da brincadeira.
Giudizio era justamente um augusto de circo. Um capote militar cinco ou
seis vezes maior que seu corpo, sapatos de borracha branca até no
inverno, uma manta de cavalo nos ombros. Mas possuía sua dignidade,
como o mais esfarrapado dos palhaços”. (Fellini, 2000, p.124).
Fellini recria o autoritarismo pela dupla de palhaços – clowns augustos e
clowns brancos. Os clowns augustos, maltrapilhos, debochados, porém inofensivos
e, por outro lado, os clowns brancos, autoritários, impiedosos e, no entanto, alvo de
gozações dos clowns augustos.
Na primeira parte do filme, a hipótese onírica amplia o laboratório de
sentimentos. O menino que a chegada do circo, sente-se fascinado, entretanto,
quando assiste ao espetáculo à noite, chora com medo dos palhaços. O fascínio e o
medo estão incluídos na abordagem que Fellini deu ao circo: um mundo de desafios,
encantamentos e perigos. Na segunda parte do filme a procura dos palhaços na
França é estruturada a partir do making-of da equipe de filmagem. As narrações são
intercaladas ora por Fellini, o diretor que narra o filme, ora por Maya, a secretária
que narra o documentário para a televisão.
Enfim, a poética do filme leva os espectadores a um belo passeio por
esquetes circenses de algumas trupes e da dupla de palhaços que foram
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cuidadosamente revividos e encenados no filme. Todas as cenas que incluem
palhaços e a trupe circense foram encenadas por verdadeiros palhaços e artistas
circenses, trazendo realismo às cenas.
Fellini aparece quase todo o tempo no filme, deixando claro que ele é o
diretor e, ao mesmo tempo em que dirige o filme, dirige o documentário que estaria
sendo realizado para a televisão italiana. A ficção está caracterizada e explícita,
porém no circo mostrado por Fellini, os palhaços e os atores são os próprios artistas
citados.
As duas seqüências que iniciam o filme acontecem numa narrativa linear e
contêm continuidade, porém a seqüência seguinte rompe com a narrativa, a qual se
inicia com um engolidor de fogo que posa para as câmeras do filme. As
demonstrações dos números circenses seguem aparentemente sem nenhuma
relação com as cenas dos dois primeiros planos. Esse início assemelha-se aos
documentários que, isentos da formalidade da ficção, podem ir e vir com narrativas
fragmentadas, mais livres e soltos, sem necessidade de uma história com começo,
meio e fim. No filme, a importância é dada ao contato com o mundo lúdico do circo.
Entram em cena os palhaços, todos ao mesmo tempo. Sons se misturam às cores e
aos movimentos rápidos. O menino que avistou o circo da janela do quarto está na
platéia, sente medo e começa a chorar. Depois, em seu quarto, se lembrará de
situações que lhe provocaram medo e fascínio.
O circo fornece pretexto para Fellini, em voz off, narrar situações em que o
medo e o fascínio se inter-relacionam, ocorrendo uma ruptura da narração linear. A
narração-off conta histórias de pessoas comuns que se convertem em personagens
que lembram os augustos de circo, funcionando como elemento de distanciamento
do clima poético. Pessoas do cotidiano são, para Fellini, as personagens “clowns” da
Itália. A voz off narra fatos de pessoas reais, porém ela é preenchida com imagens
de atores revivendo as histórias. Como contar o circo sem trazer a poética circense
à tela? O menino que agora está no quarto, pensativo, não voltará ao filme. Ele é a
metáfora dos medos e anseios sugeridos pelo filme. A quebra da narrativa sugere
um outro caminho.
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Fellini apresenta sua equipe de filmagem, fortalecendo a idéia de um filme de
reportagem; as luzes fortes e diretas da câmera denunciam a falta de naturalidade e
imediatismo próprios da câmera televisiva. Federico incorpora entrevistas de
palhaços franceses, espanhóis e italianos que se encontram na França, fazendo um
paralelo entre fantasia do circo e a realidade. A necessidade de uma linguagem mais
despojada e mais pertinente à televisão traz para o filme elementos do
documentário, com entrevistas, equipe de filmagem, som direto, movimentação
atrapalhada, utilização do making-of da câmara subjetiva, das luzes fortes da TV e
da câmera na mão. Cinema ficcional imbuído e emerso no mundo real
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Fig. 10
. Block
-
notes di un Regista
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3 DA CRISE EXISTENCIALISTA DO PÓS-GUERRA AO MUNDO TELEVISIVO
EM I CLOWNS E GINGER E FRED, NA LINGUAGEM CLOWESCA DE FELLINI
“Em 1943, 1944, a Itália tinha sido liberada e tudo estava nas mãos dos
americanos: jornais, dios, revistas e sobre as telas só se viam os seus filmes,
para a grande alegria do público que jamais havia esquecido os deuses do único
cinema verdadeiro, aquele que lhes presenteava com divertimento, sonhos,
evasão, aventura. Quem é que nhamos? Besozzi, Viarisio, Macario, Greta
Gonda. Como se poderia competir com a volta de Gary Copper, Clark Gable, os
irmãos Marx e Carlitos, e todas as belíssimas estrelas, e seus assistentes de
direção?”
(Fellini, 1980: p.10).
Em meados de 1940 e 1950, as produções cinematográficas hollywoodianas
continuavam emocionando os italianos, com seu cinema de sonhos, aventuras e
entretenimento. Por um lado, suas estrelas encantadoras, lindíssimas e talentosas,
eram adoradas e veneradas também nos quatro cantos do mundo; por outro lado, o
cinema italiano se apresentava, ainda, muito atrelado às perdas e danos decorrentes
das duas grandes guerras mundiais. A presença marcante do regime totalitário,
fascista e, posteriormente, da aculturação norte-americana, delineou um estilo
próprio pautado nas dores, lutas e angústias do povo italiano; um cinema especifico
para contar a história de um lugar.
Nessa época, por um outro viés, Fellini se propôs a fazer filmes nos quais as
relações interpessoais traumáticas e insólitas, oriundas desse período histórico,
fossem destrinchadas e expostas na figura de seus personagens, como fez com as
duplas Gelsomina e Zampanò, em La Strada, e Ivan Cavalli e Wanda, em Lo
Sceicco Bianco.
Quando Fellini elege uma dupla de clowns, em La Strada, para representar as
angústias do homem moderno, ele opta por fazer um cinema humanístico pautado
numa temática mais universal. Talvez esse seja o motivo pelo qual o filme tenha
levado o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1956.
A melancolia desse período conturbado e incerto contagiou grande parte do
mundo e serviu de inspiração para inumeráveis produções artísticas, tanto na Itália

como em outros países da Europa. Não só o cinema, mas as artes, em geral como o
teatro, a dança, a música e as artes plásticas se voltaram às questões relacionadas
ao homem e suas aflições.
O teatro de Samuel Beckett é emblemático nesse sentido. Ao se referir à crise
existencialista, constrói as histórias e as personagens, tendo como base o teatro do
absurdo. Em Esperando Gogot (1952), por exemplo, Beckett realiza um debate
intrigante da condição humana, explicitando, via atuação das duas duplas
clowescas, as incertezas e mazelas da humanidade: Na primeira parte da peça, Didi
e Estragon, dois clowns augustos, sofrem de medos e inseguranças e, mesmo
assim vivem da esperança de encontrar um tal Godot, solução para todos os seus
problemas. Na segunda parte da peça, Lucky e Pozzò, vivem uma inescrupulosa
relação de senhor e escravo; a opressão do escravo se perpetua na maldade do
senhor e vice e versa. As atitudes cruéis de Lucky, um clown branco, sobre Pozzò,
seu escravo, traz à tona as relações de poder e submissão levadas ao extremo.
Em Fellini, as interpelações da vida mambembe de Gelsomina e Zampanò,
presentes em La Strada, representam metaforicamente os conflitos existencialistas e
sociais vividos no pós-guerra, não somente pelo povo italiano, mas também por
grande parte da Europa. Pode-se traçar um paralelo entre o teatro do absurdo, de
Beckett, e o filme La Strada, de Fellini.
Contemporâneos, Fellini e Beckett, respectivamente em La Strada e
Esperando Godot, mostram a mesma desolação com quatro personagens
clowescos, tristes, angustiados e inseguros. É notória a similaridade entre essas
duas obras, que, com poéticas distintas, retratam o período de incertezas, medos e
angústias pelo viés da dupla de clowns. Veja-se que em La Strada, Fellini expõe não
somente a dor causada pela ruptura social e cultural da Itália contemporânea ao
filme, como também faz um crítica das relações interpessoais no mundo moderno. A
história de Gelsomina e Zampanò mostra as relações de poder, de autoritarismo e
de submissão diante de situações limites. Como conseqüência da guerra, surge a
fome, a desesperança e a miséria das famílias do sul da Itália que, muitas vezes, se
viam obrigadas a vender suas filhas maiores em troca de algum dinheiro para
continuarem sobrevivendo. Esse é o story-line do filme.
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Essas duas personagens, perdidas numa estrada qualquer, remetem a
Esperando Godot, em que Vladimir (Didi) e Estragon (Gogô) se vêem à espera de
um certo Godot, metáfora da possível solução para seus problemas existenciais.
Dois clowns, como Gelsomina e Zampanò, ou como Didi e Gogo, caminham por
estradas desérticas buscando algo que certamente não encontrarão. Dramatiza-se o
desencanto do ser estrangeiro em seu próprio território, em seu próprio lugar, à
procura desesperada por algo que venha a amenizar seus sofrimentos e suas
incertezas. Becket e Fellini, respectivamente, em Esperando Godot e La Strada,
realizam um relato da condição humana do pós-guerra, tendo como personagens
centrais figuras marcantes e caricatas.
É interessante notar que a comicidade presente na caracterização e nas
atitudes das personagens promovem um estranhamento, um olhar crítico da dor e
do sofrimento. Ponto importante a se ressaltar, visto que Fellini utilizaria esses tipos
caricatos e cômicos como elementos de distanciamento por toda sua filmografia. O
processo se quando o espectador, afastando-se das dores e das angústias, via
caracterização clowesca das personagens, passa a enxergar o que está por detrás
daquilo. Rindo, alivia-se a tensão, possibilitando, assim, ver por um outro ângulo.
Livre da catarse aristotélica, o público pode se distanciar dos problemas, num
estranhamento brechtiano induzido pela ironia e pela comicidade. Provoca-se o riso
do mundo e de si próprio, não somente para amenizar a dor, como também para
trazer à tona a razão pela qual se sofre.
Certamente, o cinema de Fellini se construiu nessa perspectiva política,
apontando para temáticas complexas, por onde pôde abranger problemas
existenciais da humanidade, indicando assim toda sua impessoalidade fílmica.
Evidencia-se a linguagem felliniana que se lança nas agruras da humanidade, via
espetáculo.

3.1 O circo na era da TV
Numa época em que a Itália ainda se recuperava do fascismo e da guerra, a
aculturação norte-americana determinou alguns caminhos a serem seguidos. O
audiovisual foi fortemente influenciado por novos padrões de estética e linguagem.
Os espetáculos populares, como o teatro de variedades e os circos, passaram por
um período de baixa, e a televisão, oportunamente, inseriu esses artistas em seus
programas.
Com o surgimento da TV, a arte popular é redimensionada para os programas
de variedades televisivos. Esse fato foi abordado em Ginger e Fred, em que o circo,
os palhaços e o espetáculo são inseridos na lógica televisiva. A televisão passa a
ser, cada vez mais, um meio muito difundido de comunicação. Em I Clowns, a busca
das origens do circo na França traz as tradições da lona e dos palhaços, porém elas
se mostram ultrapassadas diante da modernidade. Em I Clowns, Fellini fala do circo
e dos palhaços para discutir o fim das tradições circenses e dos espetáculos
populares e ainda, metaforicamente, relaciona os medos e os fascínios do povo
italiano às heranças do fascismo.
Guidizio, em I Clowns, representa a inadequação revelada nos estados de
loucura; é atormentado por lembranças aterrorizantes. Seus atos de insanidade ora
simulam combates de bombas, ora de momentos de glória. Essa personagem,
também clowesca, representa os conflitos da guerra e, por outro viés, traz à tona
discussões importantes a respeito do medo e do fascínio provocado por algo
desconhecido, mas que parece ser encantador.
No filme nem mesmo as crianças têm medo de Giudizio, elas saem pelas
ruas compartilhando suas ações como puros atos de brincadeira. Em uma cena, o
podre esfarrapado Giudizio chega à praça principal em frente ao Café Commercio, e
torna-se alvo de bombardeios de gelo arremessados pelas pessoas que ali estão.
De repente ele pára e lhe surge uma aparente consciência, corre ao encontro de um
monte improvisado de gelo, fixa a bandeira monárquica da Itália, faz continência e,
imitando uma corneta com as mãos, cantarola o toque de recolher. Todos param e,
em silêncio, assistem à cena.

Essa personagem é clown augusto que em meio ao ridículo e ao grotesco,
possui ainda sua dignidade, como o mais esfarrapado dos palhaços. O cotidiano
representado nessas figuras caricatas que carregam as angústias e aflições de um
povo, de uma nação, delimitam um estilo. Em I Clowns, os palhaços são
respeitosamente colocados em uma instância de legitimidade da consciência
humana. O espetáculo circense, o circo e o palhaço denunciam o lado tosco e ao
mesmo tempo consciente da sociedade. Nesse sentido, o cinema de Fellini também
trata de questões decorrentes do período de conflito, porém se estrutura muito mais
pelo espetáculo e pela personagem do que pela história em si.

Fig. 11. Ginger e Fred

3. 2 Ginger e Fred e o espetáculo televisivo
Em Ginger e Fred, a televisão mostra esse mundo clown em um espetáculo
eletrônico que se assemelha aos teatros mambembes e circenses pelas suas
atrações, bizarrices e peculiaridades. As cenas do filme são preenchidas por
imagens e sons televisivos, denunciando o espetáculo que sai da tela da TV e
esparramam-se pelos espaços fílmicos com autonomia e propriedade. Na era
eletrônica da modernidade, a TV incorpora várias linguagens e devora outras.
O especial de Natal do programa “Com Vocês” reúne eventos e figuras
importantes da história, artistas, bizarrices de circo e coisas insólitas. A dupla de
dançarinos, Pippo e Amélia é convidada pela produção do programa para apresentar
o mesmo número de sapateado realizado havia mais de 20 anos. Relembrando a
magia, fascínio e encantamento que o cinema hollywoodiano exercia nos italianos,
Fellini promove uma interessante relação entre o espetáculo teatral no passado e no
presente, evidenciando o empobrecimento da arte popular via televisão.
O programa “Com Vocês” contém pequenas esquetes de talk-show,
entrevistas com pessoas conhecidas da população: autoridades, artistas e até
mesmo mafiosos; de reality-show, a realidade do cotidiano, como casos de família
ou relacionamentos amorosos; de freak-show, a supremacia do grotesco, do
horrendo e do inusitado, como a banda de sopro mais velha da Itália na qual
somando a idade dos componentes, chega a 620 anos; ou, ainda, a dona-de-casa
que ficou um mês sem ver televisão e quase não sobreviveu. No programa,
várias
atrações distintas e independentes criam um hibridismo preenchido por figuras
estranhas que se arriscam em manobras ridículas para realizar o sonho de participar
de um programa de TV.
É salutar avaliar o fascínio e o poder que a televisão tem perante as pessoas,
podendo incutir nelas novos costumes, valores e hábitos. O filme propõe um olhar
mais atento à sociedade de consumo e ao capitalismo desenfreado decorrente
desse período de transformações.

Os espetáculos de variedades, mambembes e circenses estão presentes em
Ginger e Fred, onde palhaços e artistas populares são inseridos em um mundo
eletrônico através do programa “Com Vocês”. A efetivação dessa concepção popular
deveria ser nobre, no entanto o programa trata esses artistas com desdém e
oportunismo. A primeira cena do filme, quando Amélia chega à estação de trem em
Roma, no meio de uma multidão, confusa e ao mesmo tempo maravilhada
demonstra certa estranheza; uma mulher acostumada à vida pacata provinciana
está agora no meio do caos urbano. O que faria Amélia sair de sua cidade e aceitar
participar de um especial de Natal em um programa de TV, ainda mais com Pippo,
seu companheiro de dança separados havia mais de vinte anos? Por que
desenterrar Ginger? A explicação é apenas uma: o fascínio que a TV exerce sobre
ela.
As dicotomias urbanas capitalistas, baseadas principalmente na desigualdade
social, são percebidas por Amélia quando, dentro da van da TV, ela vê, de um lado,
muitos desocupados, vendedores e ambulantes, subempregados e pedintes; de
outro, sedutores outdoors com produtos dos mais variados, revelando uma grande
persuasão ao consumismo. O grande apelo visual e sonoro dos produtos não condiz
com as imagens das ruas periféricas de Roma, uma cidade vazia e triste. Os
outdoors colocados estrategicamente nesses lugares servem para preencher o vazio
arquitetônico e tampar a feiúra e desolação da periferia mostrada no filme.
O furgão da emissora da televisão vai buscar as personagens do programa em
vários pontos da cidade. Essas personagens são pessoas que, de alguma forma,
podem demonstrar algo surpreendente ou incomum aos telespectadores. Quando
Ginger percebe que no mesmo programa que dançará o tip-tap terá também um
velho almirante e um travesti, ela não compreende que tipo de programa pode ser
esse. A diversidade o torna superficial e fake, angustiante e irônico, tosco e
grotesco. Como em um programa se podia misturar coisas tão distintas e
aparentemente sem relação?
Essa forma de espetáculo televisual investe na rapidez, no excesso e na
superficialidade. Cria-se uma outra estética que banaliza e mistura os sentimentos e
emoções. Por conta da estranha grade do programa, percebe-se que as atrações

são inseridas de forma aleatória, provocando no telespectador uma espécie de
histeria coletiva: descarga de risos intercalada a choros; momentos de admiração
intercalados a momentos de piedade, pena, compaixão e até mesmo terror.
Quais os tipos de pessoas que são escolhidos para se tornarem personagens
desses espetáculos televisivos? Impressionar, chocar, emocionar... Pessoas são
também personagens. A representação busca na figura do ser comum a figura de
uma personagem. É assim que se faz nos reality-shows: descobrir quais as
personas (máscaras) que habitam aquele seres e quais delas podem interessar as
outras pessoas e outras personas. Essas “qualidades” das personagens não
precisam ser algo complexo, visto que assim exigiriam maior demanda de raciocínio
e de contextualização do telespectador, o que não seria interessante a esses tipos
de programa.
É cil saber por que os programas de auditório se tornaram uma febre
mundial. É um bom negócio para as emissoras, gasta-se pouco, lucra-se muito.
Trabalha-se sempre com a mesma luz, as mesmas câmeras, o mesmo estúdio pré-
montado e, em geral, o mesmo apresentador que é o contratado da casa emissora.
O blico desses programas de auditório, na maioria das vezes, não é remunerado
e estão lá pelo fascínio de participar, de alguma forma, da maravilhosa televisão.
No talk-show, a emissora costuma celebrar ela própria, vendendo sua imagem
através dos artistas da casa. Os mais consagrados do canal aparecem no programa
e são entrevistados, oferecendo aos telespectadores a falsa impressão de
conhecerem pessoalmente suas estrelas preferidas. Fórmula simples de se fazer
dinheiro: pouco custo e muita audiência, o que atrai bons patrocinadores. Bingo!
Isso é o programa de auditório. O freak-show vem para arrematar com aberrações,
excentricidades, problemas genéticos e até mesmo com a velhice, que poderá ser
tratada como algo excepcional.
A entrevista tendenciosa também é uma forma de preencher a programação.
Assim, e logo no início do filme, a repórter da TV faz várias perguntas a Amélia,
trazendo ao filme elementos da vida da personagem. Essa abordagem é uma das
formas exploradas pelo repórter para chegar mais perto da persona que mais
interessa ao programa em questão. No filme, a repórter da van da emissora de

televisão está mais preocupada com aquilo que trará algum tipo de excentricidade
ao programa, algo com que as pessoas possam se assustar ou se emocionar, talvez
uma história de amor com um final feliz ou algo paranormal. Amélia, no entanto,
ingenuamente, tenta falar de sua importância como ex-bailarina do teatro de
variedades, fato que em nada chama a atenção dos produtores e diretores do
programa.
O filme discute, de um lado, o abalo sócio-cultural e estético que a televisão
imprimiu na Itália a partir de 1950, não como um fato isolado, mas como uma
continuação de um processo; e, de outro lado, como os espetáculos teatrais:
variedades, mambembe, circense, seriam incluídos nessa outra estética.
Reviver a dupla, o casal Amélia Bonetti, e Pippo Botticellla é, de certa forma,
trazer a discussão para um âmbito passado-presente: o tempo, as realizações, as
mudanças na representação das artes teatrais e a rapidez com que as coisas se
modificam na era das mídias eletrônicas. Mais que nostalgia, o filme propõe um
pensar no passado / presente e no novo papel do espetáculo dentro do contexto do
audiovisual contemporâneo.
Como seria reformulado o espaço e o tempo de cada mídia, das pessoas, dos
espetáculos, do público, dos telespectadores? Como os espetáculos achariam, em
meio às mídias eletrônicas, uma forma de sobreviver e como estariam sendo
transformados? A exemplo da dupla que veio do teatro de variedades, outros
personagens do filme também migraram para a TV. No programa está Totò, grande
comediante napolitano do cinema italiano que, representando ele mesmo,
acompanha a dupla nessa jornada de apresentação.
A dissociação entre os propósitos presentes e passados são enfatizados no
filme. Amélia e Pippo tentam se encaixar na estética da televisão e sofrem ao
perceber os objetivos do programa. Logo no início da dança, ocorre um blackout, e
eles, no escuro, têm um momento de lucidez e resolvem sair discretamente do
palco, ao perceberem o quão ridículo poderia ser aquela situação. Entretanto, logo
as luzes se acendem e não mais tempo para desistir; assim, apressadamente e
despreparados, começam a dançar. Fred se atrapalha e cai durante a apresentação.
Essa queda representa, metaforicamente, a decadência física de Pippo e a

inadequação dos espetáculos populares no tempo e espaço televisivos. O
apresentador do programa pede palmas de incentivo à platéia e, neste momento, o
que fora um aclamado número de tip-tap no passado agora é motivo de chacota,
vergonha e piedade da platéia. Essa super-exposição pela qual a dupla passou,
desvela a falta de cuidado do programa com as questões humanas, pois, na
verdade, o que importa é o show e suas atrações. A situação é constrangedora; logo
após a dança, ainda meio zonzos, se surpreendem com a rápida entrada do
Almirante condecorado na guerra, doente, idoso e esclerosado. Ele, o almirante, é o
próximo número a se apresentar. Na saída do palco, Totò os recepciona,
consolando-os.
3.3 A estética da TV cria novos tempos e espaços
A inserção da televisão na sociedade moderna é um dos temas tratados pelo
filme Ginger e Fred, evidenciando a abordagem de Fellini nesse enfoque. O espaço
destinado aos aparelhos de TV foi algo articulado em muitas cenas, promovendo um
novo pensar a respeito da espacialidade comunicacional na era da TV. Os espaços
abertos e públicos, como praças e ruas, estão, no filme, tomados pela propaganda,
sugerindo o seu esgotamento na contemporaneidade.
Com a inserção dos aparelhos de TV nas cenas, surge outra lógica
comunicacional: a propaganda televisiva adentra o espaço cinético, o mundo da TV.
Percebe-se então essa nova forma de se efetivar a comunicação, com a inserção de
novas concepções midiáticas em que o vínculo comunicacional entre emissor e
receptor não mais se efetiva como anteriormente: relação face a face.
Os espaços urbanos se mostram caóticos, configurados no filme como o lugar
da desordem. As cenas que expõem as propagandas de rua, exibidas em
numerosos e sedutores outdoors espalhados pela cidade, se opõem às cenas dos
pedintes, desempregados que caminham sem destino pelas ruas. O homem vestido
de papai-noel circula a van da TV solicitando atenção e emprego para os
desassistidos.

Outra evidência do caos urbano são os vários blackouts ocorridos nas cenas,
denunciando a sobrecarga de energia elétrica, conseqüência da falta de estrutura da
cidade para lidar com tamanha demanda de energia promovida pelas mídias
eletrônicas. Os bastidores da emissora, o saguão do hotel, o banheiro desativado
evidenciam o mundo bizarro do programa e corroboram a confusão dos espaços
midiáticos.
Os aparelhos de TV estão em todos esses espaços urbanos, públicos ou
privados, e assumem a responsabilidade de mediar a comunicação entre a emissora
e o telespectador. Eles são personagens onipresentes, ponto de união entre todas
as outras personagens e situações do filme. Em várias seqüências, os aparelhos
coexistem com as pessoas e as propagandas: no caos da estação de trem, no entra-
e-sai do saguão do hotel, na intimidade do quarto, no restaurante do hotel, na van da
emissora. Eles atuam com sedutores propósitos, estimulando o prazer de comer, de
ver bizarrices, de torcer pelo futebol, levando os telespectadores a sentirem as
mesmas sensações, usarem os mesmos produtos, viverem os mesmos medos,
desejos e fascínios. A construção desse lugar televisivo, próprio, empírico, subjetivo,
artificial e virtual só se torna possível pela medição dos aparelhos de TV.
Dessa forma, o espaço e o tempo foram redimensionados na era moderna,
com as propagandas ocupando uma grande fatia da comunicação, tanto visual como
oral. Os aparelhos de televisão passam a conviver com esses espaços urbanos,
impregnados de propagandas, sugerindo novas relações comunicacionais. Enquanto
as artes teatrais e circenses primam pela presença física e pela relação doxa-a-
doxa, os meios eletrônicos de comunicação criam um espaço e um tempo cinéticos,
nos quais, reconfigurados, coexistem de forma diferente. O emissor e o receptor
muitas vezes não compartilham do mesmo tempo ou/e do mesmo espaço físico,
mas a mediação os aproxima, passando a ser um importante vínculo
comunicacional.
O espaço físico é o lugar onde se pode efetivar o vínculo comunicativo, o
reconhecimento recíproco entre o eu e o outro. Isso acontece quando se estabelece
a assiduidade nesse lugar, isto é, um costume, um hábito de estar presente nele.
Quando a comunicação se faz em espaços blicos, no doxa-a-doxa, o ambiente

que proporciona essa comunicação se transforma em lugar, no lugar de encontro
entre o eu e o outro. No ritmo dos fluxos das galerias, praças ou jardins públicos, a
lugaridade concretiza-se na interação com o outro e na relação face a face.
(Thompson, 1998:77).
Na televisão, essa relação comunicativa se estabelece no lugar empírico
criado pela própria televisão. Esse lugar televisivo se no espaço perceptivo do
telespectador, logo, individual. Ele representa a confluência de dois outros espaços
que, especificamente em Ginger e Fred, podemos classificá-los como artísticos e
persuasivos.
Os espaços artísticos estão subdivididos em duas partes: a primeira,
caracterizada pelo encontro face a face dos artistas dentro do furgão, nos bastidores
da emissora de TV, no saguão e restaurante do hotel; a segunda, caracterizada pelo
telespectador em contato individual e direto com o espaço cinético da TV. Os
espaços persuasivos estão subdivididos em: físicos, caracterizados pelas ruas da
periferia de Roma e da estação de trem, preenchidos com outdoors e propagandas
orais dos Cavalheiros LOMBARDONI; e cinéticos, provenientes da TV, com suas
propagandas televisivas e merchandising de variados produtos. Esses espaços
imbricados promovem a comunicabilidade contemporânea.
No programa “Com Vocês”, o tempo passado é representado pelos artistas de
variedades e circenses; o presente, pela mídia eletrônica; esses tempos se articulam
para formar um sentido novo, próprio da comunicação moderna. Os aparelhos de TV
fazem a mediação e tecem uma rede unindo esses dois tempos, criando assim o
lugar da TV, empírico e virtual, porém verossímil. O espaço cinético da televisão se
torna um lugar, visto que nesse mundo de representatividade os telespectadores são
convidados a habitar.
No palco do programa, durante as filmagens ao vivo, as pessoas são
personagens, personas providas de máscaras que, polidas da maneira mais
conveniente ao programa, se tornam aptas a participar desse novo lugar. Quando
elas se encontram face a face, determinam uma relação comunicativa, como
acontece no furgão, no hotel e nos bastidores da TV onde elas se reconhecem e se
relacionam. Quando inseridas no palco do programa, munidas do processo

representativo por ele ditado, as pessoas são lançadas a um lugar desconhecido,
não efetivando o vínculo comunicativo, por estarem imersas num espaço estrangeiro
conduzido pela lógica televisiva.
Os participantes do programa Com Vocês não conseguem prever como será o
espaço perceptivo no qual serão inseridos. Assim, cria-se o espaço cinético da TV,
onde os cortes e a mediação promovem um transfigurar do lugar físico do encontro.
Os aparelhos espalhados por todas as cenas mediam a comunicação e estabelecem
uma outra relação comunicativa, não mais a do doxa-a-doxa, face a face; com a
interferência das propagandas e da edição, as partes comunicacionais recebem e
transmitem um outro espetáculo.
Portanto, o espaço cinético da TV em Ginger e Fred se caracteriza pela
intersecção dos locais físicos, persuasivos e artísticos que, filmados e editados
segundo as normas da TV, são devolvidos aos telespectadores. Essa reclassificação
de espaços propõe um mediador televisivo que não os redefina, assim como os
tempos, reclassificando-os e modificando essencialmente os vínculos comunicativos.
Para Ferrara (2002: p.134), a mediação é o elemento indispensável ao ato
comunicativo. O estudo, nesse espaço, visa a uma forma particular de extensão
que, de maneira corajosa, representa o mundo das idéias. A espacialidade,
portanto, torna-se um elemento desse mundo. A necessidade de uma antologia para
os processos de análise dos espaços em comunicação e de sua representação
espacialidade -se em sua fragilidade conceitual. Portanto, segundo Ferrara,
três blocos de categorias do espaço: a espacialidade, dividida em proporção,
construção e reprodução; a visualidade, dividida em visualidade propriamente dita e
em visibilidade; e a comunicabilidade, dividida em relação comunicativa e vínculo
comunicativo.
A relação comunicativa que caracterizou a cidade cosmopolita, definida no
face a face, valor a valor, é substituída por um vínculo comunicativo que tem como
resposta a interação do efeito zapping, e não mais um vínculo pessoal de olhares
vivenciados nas ruas e nos bulevares. O vínculo se restringe ao mediador que
transmite imagens de lugares e pessoas. A doxa cosmopolita é substituída pelo
imaginário técnico-televisivo, feito de planos, quadros, recortes e montagens.

Mediado pelos aparelhos de TV, esse lugar não-físico, onde acontece a relação
comunicativa, redefine um outro território e uma nova atuação das relações.
Pensando na comunicabilidade que acontece entre a obra e o espectador,
pode-se dizer que a mediação se configura sensivelmente no espaço perceptivo do
telespectador. Deleuze afirma:
“Na comunicação, ambos [obra e espectador] são arrastados para uma zona
na qual perdem algo de si. Isso porque algo de mim passa a compor o outro,
e eu passo a ser composto por algo do outro. Uma desterritorialização e
reterritorização em seguida. O eu e o outro como dois territórios que são
arrastados para redefinições territoriais a partir do encontro, do contato.”
(DELEUZE apud DUARTE, 2003).
O vínculo comunicativo traz uma desterritorialização e uma
reterritorialização, conceitos trabalhados por Deleuze no processo de comunicação
doxa-a-doxa, corpo a corpo, mas que também podem ser aplicados ao processo da
comunicação televisiva. Indispensáveis, os aparelhos de televisão mediam a
comunicação, pois possuem a capacidade de adentrarem em qualquer local,
fornecendo os mesmos propósitos a pessoas diferentes em ambientes distintos.
Esse novo território é a confluência dos espaços artísticos e persuasivos. Percebe-
se a pluralidade dos ambientes comunicativos que se aglutinam e se interseccionam
para o surgimento do espaço e o tempo da TV.
Esse dado teórico pode ser ilustrado no filme Ginger e Fred. Em uma cena,
Amélia entra no quarto do hotel e a televisão está ligada em uma partida de futebol.
Ela zappeia os canais à procura de algo interessante, sem sucesso, desliga o
aparelho e escolhe se afastar momentaneamente da TV, não efetivando o vínculo
comunicacional. No filme, a construção e a reprodução da espacialidade na TV
dependem em parte do telespectador. Quando o aparelho está inserido em espaços
privados, apenas se estabelece a comunicação a partir de uma participação do
telespectador, com o efeito zapping ou a escolha de ligar ou desligar o aparelho.

“Na visualidade, a imagem é a manifestação que permite reconhecer o
lugar, na visibilidade, a imagem do lugar é a mediação que pode produzir o
reconhecimento do espaço” (Ferrara, 2002:117).
Os espaços artísticos e persuasivos representados pelos artistas e outdoors
tornam-se espacialidade no momento em que são efetivados pela freqüentação dos
telespectadores que, ao passar pelo processo de comunicabilidade em sua relação
comunicativa, podem estabelecer o vínculo comunicativo. Este se configura,
portanto, na espacialidade da TV.
“A participação do receptor aviltada, desejada, repelida, solicitada,
estimulada, exigida é tônica que perpassa os manifestos da arte moderna
em todos os seus momentos e caracteriza a necessidade de justificar a sua
especificidade”. (FERRARA, 1981:21)
Portanto, o espaço artístico físico dos palcos de variedades (números
circenses, números de sica, dança e canto) possui um público presente, cujo
olhar e expressões oferecem aos artistas uma participação pública mais calorosa,
imediata e dinâmica. A estética dos programas de auditório é outra. As câmeras
posicionadas, em vários lugares, a frieza do apresentador, o tempo reduzido para a
apresentação de cada número, fazem com que o espaço artístico seja modificado,
passando para o telespectador a sensação de algo pré-elaborado, eliminando,
conseqüentemente, a naturalidade da recepção corpo a corpo.
No Hotel Maneger, pessoas comuns se transformam em personagens
excêntricos, grotescos e fantásticos, rodeados por vários aparelhos de TV. Elas
vivem em um território estrangeiro, não configurando, propriamente, um ambiente
comunicativo. Numa seqüência na saleta do hotel, Amélia e Pippo ensaiam com o
pianista. O casal está totalmente concentrado na dança, porém, de repente, Pippo
pede para Amélia sair da frente do aparelho de TV a fim de para melhor visualizar
uma mulher que se expõe como um produto. Nesse momento, o aparelho atrapalha
o ensaio, atuando na cena como um personagem que media e ao mesmo tempo
interage.

Fig. 12
.
Ginger e Fred

3.4 A reestruturação do espaço e tempo no programa “Com Vocês”.
O tempo da televisão o corresponde ao tempo do teatro, do musical ou de
uma ópera. As inserções comerciais o cronometradas e devem ser inseridas no
momento certo. Nas emissoras particulares, as propagandas alimentam a
programação, compondo a estrutura financeira necessária para que o programa
possa continuar. Esse fato gera uma articulação contraditória do tempo: o tempo da
televisão, o do apresentador, o dos artistas e o dos telespectadores.
Conseqüentemente, os espaços também se articulam em diferentes formas.
Os shows de bizarrices, de artistas, entrevistas e circo que o programa oferece
trazem anomalias genéticas, coisas extraordinárias, situações grotescas e, a tudo
isso, se acrescenta o merchandising do patrocinador, que vislumbra uma boa
audiência. Podemos entender o programa “Com Vocês” como um conglomerado de
espetáculos pré-existentes, reconfigurados segundo a espacialidade e a
temporalidade da TV.
O filme procura um momento de encontro entre os espetáculos de variedades e
circenses, com a televisão e o cinema. Todos estão , de alguma forma, num
acordo simbólico, comandados pela televisão. Com a dupla italiana Amélia Bonetti e
Pippo Botticella, o teatro de variedades é inserido com uma nova problemática:
como os espetáculos teatrais e musicais podem sobreviver ao impacto da televisão?
A dupla faz refletir a respeito da estética dos programas de auditório. A imitação dos
bailarinos Ginger Rogers e Fred Astaire soa como uma chacota, pois a poética da
dupla se perde quando inserida no programa. O sacrifício por ele imposto aos
artistas não compensa a rápida e fria apresentação no palco.
As atrações do programa são banalizadas pelo curto tempo e pelo espaço
concedidos a eles. A mistura indiscriminada das atrações também colabora para
essa superficialidade: os vinte e quatro bailarinos anões, que dançam e tocam
música flamenca; bizarrices de circo, como a vaca com dezesseis tetas; logo na
seqüência, surgem palhaços e macacos; anomalias genéticas; atrações místicas,
como um casal de parapsicólogos que ouve vozes através de gravadores; o travesti
de vinte e oito anos que passa algumas horas por dia com os presos para consolá-

los; as calcinhas comestíveis; o fradinho que voa; o padre que faz milagres; o
deputado em greve de fome; a banda de sopro com os artistas mais velhos da Itália;
e uma dona-de-casa que ficou um mês sem ver televisão e quase morreu de tédio.
Essas atrações díspares compõem o programa “Com Vocês”.
Intercaladas a tudo isso, temos muitas entrevistas e um
apresentador/personagem, com os mesmos requisitos de todos os programas de
auditório, que fragmentam, reduzem e planificam a arte popular. Apesar de a
televisão o ser apenas o programa de auditório, Fellini vislumbra a permanência
desse formato por muitos e muitos anos.
As estéticas dos programas de auditório foram e ainda são cópias dos norte-
americanos, implantados de forma incongruente e estranha a outras culturas. Para a
cultura italiana, contemporânea ao filme, “Com Vocês” não é uma inovação no que
diz respeito à televisão, mas uma forma de enlatado que aglutina vários números
díspares entre si, tornando o programa de auditório um espetáculo à parte.
Essa miscelânea televisual procura toda sorte de atrações que possa, de
alguma forma, trazer público a um custo baixo. As atrações em geral são realizadas
por artistas ou curiosos mal remunerados que apresentam seus números para ter o
glamour de aparecer na televisão e ganhar alguns trocados. Um apresentador
artificial, programado para cair no gosto do público e do patrocinador, comanda o
show. “Com Vocês” tem ainda os produtos do Cavalheiro LOMBARDONI um forte e
incessante patrocinador. O eixo central da trama se situa nesses elementos que
compõem o programa e, principalmente, nos seus bastidores, que dão conta de
mostrar toda a confusão que se passa antes do programa ir ao ar e onde a maior
parte do filme se desenrola. O caos dos bastidores, aliás é um elemento antagônico
perante a perfeição apresentada diante das câmeras.
A periferia de Roma, onde se encontra o local do hotel e o da emissora, é
mostrada no filme sem nenhum glamour, sempre desértica, com sacos de lixo,
fumaça de poluentes e outdoors de publicidade. Apesar do apelo incessante da
publicidade, a maioria da população não consome as mercadorias apresentadas
outdoors, tornando-se um prazer tão-somente olhá-los. É nesse cenário desértico,
poluído, contaminado pelo excesso de propaganda em que estão os moradores da

periferia de Roma, os quais sofrem também com as costumeiras faltas de energia
elétrica devido ao seu excessivo uso pela emissora de TV. Essa Roma de Ginger e
Fred é ofuscada pelo brilho das luzes e espelhos do palco do programa. Os estúdios
da TV são como um oásis em meio a um deserto, onde escasseiam empregos,
dinheiro e organização.
Dois pólos de tensão se formam: de um lado, desemprego, fome e desolação;
de outro, comida gratuita oferecida pelos produtos LOMBARDONI, na estação de
trem, e como diversão no programa “Com Vocês”. Diversão e comida, pão e circo
para o povo. A política do pão e circo, criada no império romano, surgiu para
amenizar a falta de emprego, de comida e de atividades para a grande massa de
desocupados, devido a aumento considerável de pessoas provenientes de territórios
conquistados. As pessoas migravam da zona rural para a cidade e, sem ocupação,
andavam sem destino por toda a cidade de Roma. Com essa política, o
fornecimento de trigo matava a fome daqueles que não possuíam a oportunidade de
banquetear-se, e os espetáculos mantinham os ânimos acalmados, pois as pessoas
ficavam ocupadas divertindo-se.
Vários espetáculos eram realizados nas arenas dos circos romanos, como
lutas de gladiadores, corridas de animais, de bigas e acrobacias. Esses espetáculos
oferecidos pelos imperadores davam ao povo a possibilidade de diversão gratuita e
emocionante e, ademais, os circos eram admirados pelos jovens de boa família,
senadores e intelectuais, apenas condenado pelos sábios e cristãos. As corridas de
bigas e as lutas dos gladiadores eram as paixões do povo romano. Essas atividades
possuíam o mérito de fortalecer a coragem dos espectadores. Os corajosos
gladiadores, escravos ou voluntários suicidas introduziam na prática romana um
forte prazer sádico: prazer em ver mortos, satisfazer-se com a desgraça alheia e
opinar pela vida ou morte de cada um desses guerreiros. A participação do público
na decisão de degolar ou poupar um gladiador arrefecia o desejo de participação a
respeito de aspectos políticos. Ao menos no circo, eles eram ouvidos e respeitados,
chave essencial da manobra política dos imperadores. A decisão poderia ou não ser
acatada pelo mecenas que proporcionava a luta.

No filme Ginger e Fred, Fellini reedita o esquema romano: pão (comida
oferecida pelos patrocinadores dos produtos LOMBARDONI, nas ruas, nas
estações de trem, nas propagandas de televisão, reverenciando o antigo prazer em
comer de forma absurda) e circo (o programa “Com Vocês”, diversão bizarra e
barata que distraía, interferindo na vida dos milhões de telespectadores). Numa
seqüência do filme, Ginger zappeia os canais de televisão e rapidamente, num
programa de auditório, um estranho concurso que consistia em preparar e comer
uma macarronada dentro de pias de banheiro. Quem conseguisse prepará-la e
comer primeiro, ganhava uma boa soma de dinheiro. Comida, dinheiro, prazeres
grotescos. Para que pensar? É a televisão como manobra de marketing.
O programa “Com Vocês” se estrutura na confluência da espacialidade da TV
com os tempos passados e presentes. A participação do telespectador se restringe à
freqüentação desse lugar cinético, onde se estabelece o vínculo comunicativo. O
uso do programa pela emissora conduz os telespectadores a um lugar comum, onde
eles podem se divertir e satisfazer desejos variáveis, como os de consumo. Essa
audiência é usada a favor de uma política capitalista de controle. Pode-se fazer uma
forte comparação para exemplificar: como nas antigas arenas romanas, o programa
traz aos telespectadores a alegria, a saciedade e a ilusão de poder, numa sociedade
em que a televisão está nas mãos de poucos que ditam leis e ordens através do
espetáculo.

Fig. 1
3.
Ginger e Fred

4 AS CONVERGÊNCIAS DOS MEIOS: A ARTE E A COMUNICAÇÃO NO
IMPERALISMO DA TV
“Trabalhar para a televisão? Quer dizer entrar naquele oceano de imagens
indistintas, num vulcão que se anula, substituindo, ainda que
quantitativamente, ao alagamento catastrófico de imagens que a televisão
sobrepõe a cada minuto do dia e da noite, ao obscurecimento progressivo
das linhas de separação entre o real e o representado, em uma espécie de
desrealização a que foi conduzido o nosso modo de ver, como dois
espelhos colocados frente a frente em uma infinita monotonia. Não é
questão de estilo ou de estética; não sei qual deveria ser a linguagem a ser
adotada para um filme de televisão.” (FELLINI, 1980:109)
A forte influência da mídia televisiva nas produções cinematográficas
estavam latentes por volta de 1960, quando a televisão era considerada uma
mídia de massa. Os cineastas estavam diante do considerado maior fenômeno de
comunicação do século, e esse fato refletiu sensivelmente nos conteúdos e técnicas
dos filmes indicando novas formações da estética fílmica desse período.
O aparecimento de novas formas de expressão e comunicação transformaram
os ambientes midiáticos e artísticos existentes, e os meios que surgiram o
possuíam ainda, uma linguagem própria, ou seja, iam beber em seus antecessores.
Um meio aprende, se mescla e se transforma com o surgimento de outro, num
processo contínuo, ininterrupto e recíproco.
A idéia de aproximar os meios artísticos às mídias eletrônicas, como o rádio, a
televisão, o vídeo e, posteriormente, a Internet, se tornou também uma tendência
cada vez mais viável, inovadora e difundida entre os artistas e comunicadores. As
convergências entre cinema e televisão, arte e mídia, reiteraram o surgimento de
outras formas de criação e de recepção midiática. Abriram-se caminhos para novas
categorias de gênero no audiovisual contemporâneo, acendendo-se a discussão a
respeito do gênero ou formato que ele apresentou no decorrer das últimas décadas.
Percebe-se que, “com o desenvolvimento das mídias eletrônicas, a indústria
da consciência tornou-se o marca-passo do desenvolvimento socioeconômico das
sociedades industriais tardias (...)” (ENZENSBERGER, 2003: 11). Dentro desse

conceito, as emissoras de televisão que, em geral, detêm um poder político-
econômico diante da sociedade da qual fazem parte, servem como instrumento de
manipulação de políticos e/ou magnatas das mídias, fato esse que ameaça a
democracia da informação e afeta diretamente o nível da programação. Nesse
sentido, as emissoras são empresas de comunicação de massa e, para tal,
necessitam fechar os orçamentos com lucros, de preferência, altíssimos. Essa
constatação interfere de forma contundente na imposição dos patrocinadores diante
das emissoras que anunciam seus produtos, com fortes exigências, como,
principalmente, altos índices de IBOPE, em detrimento de um maior retorno de
capital.
“No lugar de definições normativas, arrolamos uma lista incompleta de
desenvolvimentos recentes que apareceram nos últimos vinte anos. Entre
eles, satélites de comunicação, televisão em cores, a cabo e com
videocassete, registro magnético de imagens, câmeras de vídeo, videofone,
som estereofônico, tecnologia a laser, fotocopiadoras, impressoras
eletrônicas de alta velocidade, máquinas de registro e de treinamento,
microfilmes com acesso eletrônico, impressão remota, computadores com
processamento paralelo, bancos de dados. Todas essas novas mídias se
relacionam entre si e com os meios mais antigos, como a imprensa, o rádio,
o cinema, a televisão, o telefone, o telex, o radar etc. Cada vez mais, eles
se unem em um sistema universal (ENZENSBERGER, 2003:11,12).
Nesse sentido, com a convergência dos meios, realizadores e produtores,
atentos e motivados pelas novas técnicas e linguagens, passaram a criar, utilizando
diferentes possibilidades. Dessa forma, consolida-se maior abertura ao surgimento
de formatos menos estanques, possibilitando interessantes confluências entre os
meios artísticos e comunicacionais.
É interessante notar que a televisão e o cinema são meios similares de
comunicação, pois ambos se caracterizam pela audiovisualidade. Entretanto,
guardam consigo particularidades que os definem como tal. Segue-se uma sucinta
análise a respeito das semelhanças e diferenças entre as duas mídias, levando em
conta o poder do Estado, o tipo de programação adaptado a certas restrições, o
sistema de luz e o trabalho dos câmeras, sempre considerando as semelhanças e
diferenças entre cinema e TV.

Para pesquisar a respeito da televisão deve-se considerar qual o tipo de
enfoque e também qual o recorte que pretende-se estudar, pois a TV é um meio
muito amplo, que inclui inúmeras combinações e diversas estruturas no que tange
às emissoras, aos programas e às políticas que as regulam.
Em detrimento das emissoras de televisão, existe uma gama imensa de
variantes, como, por exemplo, em alguns lugares ela é concessão do Estado, com
canais públicos e privados. O telespectador não paga para obter a transmissão de
canais locais. Com a compra e a conexão do aparelho de TV a uma antena geral, as
ondas liberadas fazem a conexão dos chamados canais abertos. Caso se opte por
canais de outros lugares, as TVs por assinatura paga transmitem a cabo, ou via
satélite, informações de várias partes do mundo; esses canais são chamados de
canais fechados. Portanto, pesquisar emissoras locais em canais abertos é diferente
de pesquisar TVs pagas em canais fechados.
Quando o enfoque do estudo se refere à programação, é necessário saber
qual o tipo de programa em questão: telenovelas, programas de auditório, desenhos
infantis ou de adultos, telejornais, filmes realizados para o cinema ou para as TVs,
filmes publicitários, seriados, enfim, qual o formato televisivo que será pesquisado.
Outro fator relevante são os sistemas de governo congruentes com essas
emissoras e programas, elemento que merece atenção, pois, juntamente com a
grade da programação, estão incutidos valores sociais, imbricações históricas,
interesses políticos e capitalistas. Todos esses fatores devem ser levados em
consideração para não se incorrer em uma análise inconsistente, ou, ainda, leviana
do referente objeto.
Quando o foco está nas questões técnicas, cada meio tem suas
especificidades, podendo-se citar, como exemplo das técnicas, o uso da iluminação
e das câmeras. A luz utilizada na TV, principalmente nos telejornais e nas
reportagens de rua, é “chapada”, direta, ou seja, planifica as figuras, anulando a
impressão de profundidade de campo, tirando o volume que representa a terceira
dimensão no plano. Isso acontece porque a luz está sendo lançada direta e
frontalmente sobre o objeto, sem rebatedores ou raises. Como muitas vezes nas
reportagens de rua não tempo hábil para se trabalhar a luz, isto é, medi-la de
acordo com as circunstâncias, ela é praticamente igual em todas as tomadas. Isso
acontece tanto nas filmagens de externas quanto nas internas, de estúdio. Nos

programas de auditório, por exemplo, a luz é medida e trabalhada sempre da
mesma forma, economizando tempo e capital.
Portanto, essa luz dura, originária das reportagens televisivas, é uma
característica que se diferencia das luzes trabalhadas do cinema, isto é,
fotometradas e pensadas para cada cena, gerando maior controle das aberturas e
fechamentos de diafragmas e obturadores, incrementados pelo uso de lentes de
vários milímetros, de acordo com cada circunstância, o que torna a fotografia mais
elaborada.
As cores estão relacionadas às medidas de ondas de calor, responsáveis
pelos tons e matizes das cenas. São necessários cálculos de ondas de calor para se
definir as cores. Principalmente em programas de auditório cujas luzes são as
mesmas em todas as edições, pois esse fato facilita o trabalho dinamizando a
produção.
Outro diferencial importante são as câmeras e a forma como são manipuladas
em seus suportes. Mesmo quando se tem uma boa câmera de vídeo, betas-cam ou
digitais de última geração, a diferença entre a imagem cinematográfica e a televisiva
ainda é bastante considerável. Com as câmeras de cinema é possível fazer grandes
panorâmicas, pois a qualidade da imagem produzida é superior. As meras e
lentes das câmeras de TV proporcionam melhores imagens quando se utilizam
planos mais fechados, como closes, super-closes e planos médios.
Mas a grande diferença mesmo é a taxa de frames. As câmeras de filme
normalmente gravam em 24 frames por segundo, enquanto câmeras de
televisão funcionam em 30 frames por segundo (29.97, para ser mais
exato). A imagem do vídeo também é entrelaçada. Isto quer dizer que cada
frame é dividido em dois grupos de linhas horizontais que se encaixam. O
vídeo é produzido para se encaixar no formato da televisão. Os raios da TV
formam cada linha enquanto se movem na tela (por exemplo, cada uma das
linhas com números ímpares). Da próxima vez que o raio se mover para
baixo, pintará as linhas com números pares, alternando para frente e para
trás entre as linhas de numeração par e ímpar em cada passagem. Todos
estes fatores dão ao vídeo convencional uma aparência completamente
diferente da do filme. A imagem também se move de maneira diferente.
Para tentar se aproximar das características visuais do filme, os cineastas
utilizam câmeras digitais que se parecem com câmeras de cinema. George

Lucas, por exemplo, filmou o "Ataque dos Clones", com uma câmera Sony
HDW-F900 HDCAM e lentes de última tecnologia da Panavision. Essas
câmeras podem filmar em 30 frames entrelaçados, mas também podem ser
configuradas para filmarem em 24 frames por segundo, como as câmeras
de cinema. Nesta configuração, a câmera pode filmar em vídeo progressivo,
imagens formadas por frames completos em vez de campos entrelaçados.
A câmera também tem extensão de luz e profundidade de campo
semelhantes às das câmeras de filme.
Estas câmeras digitais profissionais funcionam com os mesmos princípios
dos modelos mais baratos. Elas utilizam dispositivos de carga acoplada
(CCDs) para converter a luz da cena em um sinal eletrônico e um conversor
analógico-digital que transforma este sinal em uma série de 1s e 0s.
Além das taxas de frame, a principal diferença entre uma câmera
profissional e um modelo mais simples é a qualidade da imagem. As
filmadoras profissionais utilizam CCDs de alta-resolução para captar mais
informação da cena. A HDW-F900, por exemplo, grava em 1920 x 1080
pixels. Elas também utilizam mais CCDs que os modelos mais baratos.
Dentro da câmera, um separador de feixes converte a luz da cena em luzes
vermelhas, verdes e azuis. A câmera grava cada cor de luz em um CCD
independente para capturar todo o espectro de cores. Ao recombinar estas
cores, a imagem é exibida. As câmeras mais baratas utilizam um único CCD
para capturar todas as cores, o que compromete a qualidade da imagem.
As câmeras Sony HDW-F900 gravam em um formato de alta definição
chamado HDCAM, desenvolvido para se aproximar da resolução de
imagem dos filmes e se adaptar aos diversos formatos de vídeo ao redor do
mundo”
4
. (http://canne-fundaj.blogspot.com/2008/11/cinema-digital-revoluo-
democrtica.html) fonte: Tom Harris.
As captações em câmeras digitais também podem virar películas
cinematográficas quando submetidas ao transfer, que custa em média R$1.000,000
por minuto; esse processo transforma imagens digitais em película. E se o problema
for transferir imagens de película para digitais, pode-se fazer a telecinagem.
Portanto, a captação independe do produto final, podendo-se captar em película, em

"HowStuffWorks - Como funciona o cinema digital". Publicado em 16 de maio de 2002 (atualizado em 24 de
junho de 2008) http://lazer.hsw.uol.com.br/cinema-digital2.htm (18 de novembro de 2008). Postado por CANNE
às
11/19/2008 12:29:00 PM

digital e o produto final sair tanto em película como em digital. Nesse sentido, o
cinema e a TV podem oferecer produtos híbridos, proporcionados pela conjunção de
elementos do vídeo e da película para serem exibidos em cinemas e/ou em TVs.
No universo sonoro as distinções acontecem de acordo com os equipamentos
utilizados para captação e edição de imagens e sons, ou seja, equipamentos de
montagem e sincronismo. Em geral, os sons das reportagens ao vivo são mais
poluídos por serem diretos e captados no momento da filmagem, o que possibilita
invasões de outros sons ambientes, como: buzinas de automóveis, avião, vento,
carros, pessoas falando e uma infinidades de outros sons que compartilham do
mesmo ambiente, principalmente nas externas onde a propagação sonora é maior.
A equalização do som de captação direta não terá a mesma qualidade de um
gravado em bandas separadas, com um imenso controle de agudos, médios e
graves. O boomer é um microfone especializado em gravar som direto e possui
alguns recursos que ajudam a equalizar esse tipo de som; mesmo assim, sua
montagem é limitada, pois não possui a capacidade de gravar em várias bandas.
Portanto, a sonoridade das reportagens ou de alguns documentários é
essencialmente diferente dos sons gravados e editados em bandas sonoras
trabalhadas em estúdios.
O lugar e a mediação por onde é realizada a recepção do espectador na TV
ou no cinema, também são fatores relevantes que merecem destaque especial. A
TV pode ser assistida em aparelhos pequenos, computadores de mão ou em
grandes telas LCDs espalhadas por toda parte. A televisão pode estar em qualquer
lugar: nos cômodos da casa, nos restaurantes, nos carros, nas salas-de-estar de
médicos, nos shoppings, nas estações de trem, nos ônibus, ou seja, em qualquer
ambiente onde exista um aparelho de recepção, uma antena e uma onda disponível
ou, ainda, um cabo de transmissão.
o cinema é essencialmente imagem projetada em um grande écran, num
ambiente escuro com um lugar pré-determinado e com tempo disponível para se
assistir, em geral, a um filme. Apesar de as imagens de cinema, desde sua origem,
terem sido projetadas em ambientes externos, não tão escuros assim, ou até
mesmo em pequenas caixas, o simulacro cinematográfico ainda inclui na bagagem
uma sala escura e um tempo disponível de concentração única.

Outro fator importante de diferenciação são os comerciais, que podem estar
inseridos na forma de merchandising ou de filmes publicitários nas grades das
programações. Eles fragmentam os eventos: filmes, programas, musicais,
programas de auditório e telejornais. No cinema também temos as propagandas que
são inseridas em geral no começo dos filmes, gerando um menor desconforto.
O conteúdo dos programas é um fator importante, pois, levando em
consideração esses elementos citados anteriormente, os programas realizados para
a televisão costumam ser menos densos, com uma estética mais fragmentada para
atender o público que zapeia ou que é interrompido por acontecimentos simultâneos,
como conversas, telefone que toca, criança que chora, etc.
Desde sua invenção na maioria dos programas, a TV é mais oral do que
visual. O som na TV está mais dissociado da imagem do que no cinema. Muitas
cenas vistas são de pessoas sentadas, praticamente paradas e falando, ou de
personagens em um diálogo: talk-head ou cabeça falante. A televisão pode ocupar
um ambiente apenas com o som emitido por ela, invadindo outros cômodos. Da
mesma forma que o rádio, a televisão se configura como uma máquina falante de
companhia.
A televisão fortaleceu a oralidade, acenando parcialmente para uma certa
interatividade. O rádio também pode ser usado, até os dias de hoje, na comunicação
direta entre emissor e receptor, como acontecia com as primeiras transmissões de
rádio-amador no começo de sua história. É certo que o diálogo que se pode ter na
televisão não pede a participação do espectador, mas o telespectador pode
participar como ouvinte no programa; na platéia ou no palco ou, até mesmo, na
confortável poltrona de sua casa, assistindo a um diálogo entre suas estrelas
preferidas e o apresentador do programa. O formato das novelas, das reportagens
televisivas e dos seriados para a TV, apostam no diálogo. Assim, pode-se dizer que
a televisão prioriza a oralidade em detrimento da imagem.
Através de entrevistas com pessoas famosas ou comuns, o telejornalismo e a
tele-reportagem trouxeram de volta as conversas entre as pessoas; obviamente,
são diálogos mais artificiais do que os realizados doxa-a-doxa ou face a face.
Mediado pela TV, o diálogo obteve contornos mais objetivos, principalmente depois
do surgimento do videotape e, conseqüentemente, da edição.

Nos programas de auditório, o diálogo se configura como um elemento de
aproximação entre os artistas e o público. Numa entrevista, por exemplo, o
entrevistador estimula o entrevistado a falar, mesmo que o texto seja pré-
combinado. A entrevista proporciona, ainda que de forma um tanto frouxa, uma
aproximação entre os artistas e o público.
4.1 Os cineastas na TV
Se, por um lado, a televisão pode melhorar sua programação com as
produções de profissionais do cinema, por outro, os cineastas também podem
absorver novas idéias oriundas do seu contato deles com o universo televisivo, com
programas de menor duração, mais dinâmicos e mais abertos ao diálogo com um
maior público.
Os cineastas que realizaram filmes para a TV nas décadas de 50, 60 e até
mesmo 70, estavam acostumados a um público menor e com uma linguagem mais
contemplativa, atendendo aos tradicionais requisitos do cinema. Fellini cria Block-
notes di un Regista (1969), com indícios de um processo que se faria contínuo, de
reestruturação da sua poética fílmica. A linguagem cinematográfica felliniana
passaria por uma reorganização em sua forma, agregando aos filmes elementos do
documentário e da televisão. Percebe-se, a partir de então, um caráter mais
dinâmico e ensaístico somado ao seu universo fantástico e clowesco.
Block-notes di un Regista discute a própria linguagem fílmica. Percebe-se o
processo mental e prático que o cineasta viveu para chegar às suas personagens e,
conseqüentemente, a seu filme. É como se fosse um making-of do processo criativo
esclarecendo as angústias, medos e inseguranças sentidos pelo diretor diante da
própria obra; um filme realizado para se ver a concepção do filme. Nas filmagens da
procura da forma fílmica, Fellini tateia a linguagem documental e ficcional, sendo
essa configuração o ponto nodal de seu filme.
“Em New documentary: a critical introduction, Stella Bruzzi define a narrativa
usada em documentários contemporâneos como narrativas auto-reflexivas,
que possibilitam um questionamento de suas próprias formas de
representação. Na sua análise de diversos documentários, Bruzzi enfatiza o

uso de elementos, tais como a ironia narrativa em The atomic café (1982),
de Kevin Rafferty, Jayne Loarder e Pierce Rafferty; a deliberada ausência
de um fechamento em Shoah (1985) de Claude Lanzman e o
questionamento sobre as formas de compilação em London (1992) de
Patrick Keiller. Buzzi argumenta que a busca “objetiva” do real no
documentário tem sido uma impossibilidade, pois o documentário ‘afirma-se
na relação dialética entre aquilo que almeja e o que potencializa, revelando
tensões entre a sua busca pelo autêntico modo de representação do factual
e sua impossibilidade’. O documentário pós-moderno caracteriza-se por
apresentar formas narrativas questionadoras do suposto realismo
tradicionalmente associado ao documentário, possibilitando uma revisão de
formas narrativas tradicionais, em que a suposta impessoalidade da
narração, a chamada ‘voz de Deus’ do documentário ou a representação de
uma realidade especifica dão lugar a documentários que tendem a
questionar as suas próprias formas de representar. As formas auto-
reflexivas dos documentários atuais possibilitam uma revisão das
tradicionais formas de representar indivíduos ou elementos culturais
associados a diferentes etnias ou nacionalidades”. (CORSEUIL,
2005:128,129).
Para Fellini realizar um filme para a TV pressuporia pensar na estética e na
linguagem televisiva sem interromper, entretanto, suas criações cinematográficas.
Esse fato fica explícito em Block-notes que, com ironia, mostra as dificuldades de
um diretor em busca de suas personagens para o cinema. São inseridos trechos de
testes de atores e de cenários para Satyricon, filme realizado para o cinema e
lançado no mesmo ano que Block-notes. Muitas cenas foram inseridas para mostrar
a frustração de um filme seu não realizado, A Viagem de Mastorna. O filme não
esconde a dificuldade do diretor em realizar uma obra para a TV, pelo contrário, faz
desse fato eixo central da trama.
O conceito de filme-ensaio, defendido por Arlindo Machado, é uma das
alternativas possíveis para denominar e classificar alguns filmes que contêm em sua
gênese algo que os faz não ser somente ficcionais ou documentários. A interação
entre TV e cinema corroborou para criativas e inesperadas produções, com o
aparecimento de novas tendências artísticas nas décadas de 50 e 60. Produzir para
a TV nessas décadas se configurava como uma imprevisível experiência. Muitos
cineastas não sabiam ao certo como essa ação poderia repercutir em seus

universos fílmicos, no entanto, apesar disso, era fascinante experimentar as
significativas mudanças nas estéticas e linguagens.
A aproximação desses dois meios foi sempre muito fecundo, tanto para os
cineastas quanto para as emissoras de TV. Intrinsecamente, tais meios poderiam
corroborar reciprocamente em pelo menos dois fatores: o financeiro, com produções
de cineastas renomados patrocinados pelas emissoras de TV; e estético, com a
inserção da estrutura televisiva mais dinâmica e popular na obra fílmica.
A narração over, off e a entrevista foram muito utilizadas por Fellini em filmes
a partir dos finais da década de 60. Esses elementos são características do formato
documentário, oportunamente inseridos na linguagem fílmica, o que proporciona
proximidade com o espectador. A narração jornalística foi enfatizada em Block-
notes, com a voz de Fellini que se intercalava entre a do narrador do filme televisivo
e a dos artistas, que respondiam às entrevistas. Em I Clowns se tem o cruzamento
de várias narrações: de Maya, a secretária; de Fellini, o diretor do filme e dos
artistas; e dos palhaços, nas entrevistas. Em Prova d’Orchestra, a narração-over do
copista descreve o lugar e o tempo no início do filme, continuando com várias
entrevistas realizadas pela televisão. Em E La Nave Va, o narrador-personagem,
Orlando, não é onisciente nem onipresente, entretanto narra a história. Em Roma o
narrador-over irônico, voz de Fellini, conta muitas histórias sobre a Roma antiga e as
décadas de 40 e 70, costurando o roteiro fílmico.
Nos telejornais são utilizadas câmeras subjetivas para que o âncora ou o
repórter possam falar como se estivessem olhando para os olhos do telespectador.
Esse tipo de mera indica cumplicidade, diminuindo a distância entre público e
repórteres. O objetivo delas é fortalecer o mecanismo de diálogo entre os
telespectadores e o apresentador do programa.
Os programas de auditório utilizam a entrevista para estabelecerem uma
conexão mais próxima entre o entrevistador-apresentador e o entrevistado diante
das câmeras subjetivas que são os olhos do telespectador. Os cineastas que faziam
filmes ditos de ficção, a partir da década de 60, se apropriavam da entrevista e da
câmera subjetiva, inserindo-as em seus filmes.
O uso da câmera subjetiva, das luzes diretas, da narração off ou over nos
filmes criaram um ambiente de proximidade e cumplicidade próprios da televisão.
Portanto, a entrevista, fez ressurgir o diálogo que constrói o pensamento, primeiro

na televisão e posteriormente por meio dos cineastas que, depois de produzirem
para TV, acolheram alguns elementos televisivos em seus filmes.
Sócrates, que utilizava o método do diálogo para fustigar a oposição entre o
dito e o não dito, usava a divergência para buscar a verdade. Uma verdade que não
estava em nenhum dos interlocutores, mas dissolvida no discurso. Lançou o de
duas técnicas para instigar o opositor: a síncrese, quando dois ou mais pontos de
vista divergentes sobre o mesmo assunto eram colocados em discussão; e a
anácrise, método para provocar o interlocutor a se expor, dizendo coisas que não
previa falar.
Alguns contemporâneos de Fellini também criaram filmes televisivos. Diante
de um meio audiovisual popular e imediato como a TV, foi necessário repensar o
cinema e o formato de seus filmes. Fellini não foi o mais fecundo realizador para a
TV. Roberto Rossellini, Alfred Hitchcock, Jean-Luc Godard e Ingmar Bergman
tiveram um maior número de filmes realizados para a TV, com maior êxito de público
e crítica.
Godard, por exemplo, criou com sua mulher Anne-Marie Miéville, o atelier
SONIMAGE em Grenoble (sudeste da França). A idéia era constituir uma
experimentação formal na qual a televisão figuraria como principal tema de análise.
Seus filmes, artesanais e intrigantes, foram muitas vezes fundados em entrevistas
oriundas do método socrático. Sua voz inconfundível e os longos planos
determinaram um estilo único, com filmes profundos e surpreendentes. Um exemplo
disso são os episódios de Six fois deux (1976), nos quais Godard e Miéville alternam
diferentes métodos para questionar a TV, ora propondo simplesmente uma
linguagem diferente, ora atacando-a nominalmente dentro de cada episódio.
Roberto Rosellini foi um exemplo interessante de cineasta que logo se
adequou à televisão. Realizou seu primeiro filme para a TV em 1961, intitulado
Torino nei cent'anni, trabalhando inclusive para uma TV educativa. Uma seqüência
de filmes históricos o tornou conhecido como realizador de filmes mais densos e
com uma narrativa mais linear.

“Nos anos 60 e 70, Roberto Rosselini dirigiu uma série de filmes ditos
“históricos”, especialmente pensados para a veiculação na televisão, dos
quais os mais conhecidos são La prise du pouvoir par Louis XIV (1966),
Socrate (1970), Agostino de Ippona (1972) e Blaise Pascal (1975)”.
(Machado, 2005:205).
Para Michelangelo Antonioni, a televisão foi uma boa oportunidade para
realizar grandes filmes, como, por exemplo, o seu longa Il Mistero di Oberwald (O
Mistério de Oberwald, 1981), uma adaptação do livro "A Águia de Duas Cabeças",
de Jean Cocteau, produzido pela RAI. Antonioni utilizou recursos do vídeo para
colorir o filme, conseguindo efeitos inovadores para a época.
Quanto a Fellini, se sua obra televisiva não foi tão numerosa e significativa
para o público e para a crítica, deve-se a ele o rito de não só ter também
transformado sua estética fílmica, assim como o de ter insistido em um ângulo
diferente desse segmento: ver na TV uma espécie de incômodo, de algo mal
resolvido, que carregou até seu último filme, La Voce della Luna (1990). De qualquer
forma, a migração desses cineastas para a televisão trouxe importantes
contribuições para a ponte que se estabelecia entre as duas mídias.

Fig. 14.
Block
-
notes di un Regista

4.2 BLOCK-NOTES DI UN REGISTA: uma celebração à criação numa crítica ao
cinema de Autor
Block-notes di un Regista inicia com uma panorâmica que se movimenta
devagar pelo antigo set de A Viagem de Mastorna, filme não realizado de Fellini. Os
conflitos de um cineasta que adia a confecção de sua obra são enfatizados na
primeira narração over do diretor. Block-notes se configura como um momento de
reflexão e questionamento a respeito do cinema de Autor, do artista diante de sua
obra. Esse tema já havia sido discutido em Otto e Mezzo (1963), com o personagem
Guido em sua crise pessoal e autoral, colocando em xeque-mate o tão aclamado
cinema de Autor, enaltecido pela Nouvelle Vague. Guido seria Fellini? O ícone
Fellini seria desmontado?
Estes são os primeiros impasses do filme: a voga de cinema de Autor e a
idéia de que sua obra não é tão autobiográfica quanto parece. Essas questões foram
levantadas por Luis Renato Martins, que propôs, no lugar, vertentes mais
interessantes para as análises fílmicas. A ironia e a paródia são utilizadas como
armas de crítica e de “distanciamento” desses pressupostos. Essa seria a hipótese
mais lúcida para um pensamento politizado e impessoal de Fellini.
Com a narração-over do cenário abandonado de Mastorna, tem-se, ao mesmo
tempo, um olhar agudo sobre a indústria cinematográfica, com seus produtores
inescrupulosos, e a incredibilidade da competência do diretor do filme. Não é por
acaso que os hippies estão acampados nas ruínas do set de Mastorna. A presença
deles se evidencia como contraposição ao pulso forte da indústria cinematográfica,
valorizando o ambiente de liberdade. Na poesia de um personagem hippie, recitada
a Fellini, percebe-se o encanto com o onírico, com o fantástico e com o universo
criativo. A liberdade dos hippies se contrapõe ao cárcere dos fantasmas de
Mastorna.
“ Mastorna-blyuz
Eu vivo numa cidade chamada Mastorna
Que o sonho dos tolos descansa aqui
Uma cidade inútil onde ninguém quer morar e ninguém gosta de trabalhar
ouodiaria morrer, todas as casas são seladas com portas de madeira, que

ninguém tem a intenção de abrir.
E tem um avião que não irá decolar
Mastorna
Cidade triste e linda.
É a beleza que gosto antes de outras, porque ela sempre espera por sua
estupidez.
Eu quero morrer aqui em Mastorna, e aqui ser enterrado naquela igreja de
papel cartão.
Onde os padres não entram
5
A inutilidade de um cenário vazio, de um lugar sem serventia, isolado e
abandonado no mundo. Ruínas sem importância. O enigma do desconhecido, a
indefinição de qual caminho seguir no emaranhado de exigências e de mudanças.
Como prosseguir indiferente perante a televisão como meio de comunicação de
massa e de produtores norte-americanos? Essas incertezas eram autênticas. A
narração-over seria um indício de que a linguagem televisiva, documental e making-
of se fazia presente no filme.
Essas estranhas e solitárias formas foram construídas para um filme que
eu planejei e não fiz, chamado Viagem de Mastorna.
O cenário permanece assim sem utilidade e vazio, em um estúdio perto de
Roma.
Nesse estranho lugar haveria um acidente de avião que faria o herói do
filme morrer... um violoncelista.
E a partir desse lugar estranho começaria sua jornada por um cenário
absurdo de pesadelo.
pouco tempo atrás eu voltei para ver esse cenário novamente, estava
mais bonito que agora, coberto de grama, a decoração parecia mais
integrada às peças do cenário.
Algumas pessoas encontraram abrigo nessas doidas ruínas
6
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5
Trecho retirado do filme Block-notes di un Regista.
6
Idem
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Não foi por acaso que Fellini batizou o filme de Block-notes di un Regista.
Uma mistura de Block-notes, caderno de anotações, escrito em inglês, e di un
Regista, diretor de cinema, escrito em italiano. O incômodo dos personagens em
falar inglês é evidenciado no discurso fílmico, funcionando como crítica à
aculturação norte-americana que, desde o pós-guerra, aprisiona a Itália.
Os hippies acampados no set celebraram um casamento sem padres e
igrejas: seria uma metáfora da liberdade de ação, sem religião e sem poderes
externos? Provavelmente um pensamento oriundo do desmoronamento da tríade
Deus, Pátria e Família, “(...) valores que sobrevivem à queda do regime e se
mantêm como pilares do regime anticomunista, guindado pela Guerra Fria”
(MARTINS, 1994:19). As pessoas poderiam ser como eles os hippies - vagando
por ai livres de valores e crenças? É possível fazer filmes sem se envolver com
produtores americanos e com a televisão? As incertezas agora estavam à frente de
Fellini: o filme não realizado (Viagem de Mastorna), um filme para televisão em
andamento e aparentemente ainda sem rumo (Block-notes di un Regista) e, por fim,
a busca das personagens para Satyricon. Esse encadeamento de fatos
descaracterizaria o ícone Fellini?
Em meio às dúvidas e aflições, surgem exagerados assobios de ventos e
uma cena de Mastorna é inserida em Block-notes. Nela, vemos o interior de um
avião que faz parte do cenário e, de dentro dele, ouvimos uma voz de aeromoça
avisando sobre a aterrissagem forçada. Assim termina a cena, com a poeira e o
vento levantando os conflitos de Mastorna.
“Ventos fortes, mudanças bruscas de temperatura. Instabilidade climática
revelando sentimentos humanos. Fellini incorporou a seus filmes pequenas
cenas onde os fenômenos naturais projetam e enfatizam as emoções dos
personagens ruídos de pássaros e assobios exagerados de ventos
inseridos com cuidado, nos remetem às emendas onomatopéias,
reminiscências dos desenhos e das histórias em quadrinhos habilidades
consagradas de Fellini reveladas no decorrer de sua filmografia” (SANTOS,
2001:15).

Fellini aparece apresentando sua assistente Maria Boratto, que mostra o
“cemitério” de Mastorna, onde restos de figurinos, cenários, desenhos e pinturas
explicitam a frustração e o remorso do diretor. O aparecimento de Maria Borato
desencadeia uma característica documental, com imagens autênticas de sua
assistente, as câmeras e a equipe de filmagem. Imagens de uma ficção, afinal tudo
é montado e idealizado a la Fellini realidade e sonho. Supõe-se que estamos
diante de um documentário ou de um docuficção. Seria esse um filme-ensaio ou
ensaio audiovisual para a TV, mostrando o trabalho de um diretor de cinema?
As cenas do metrô satirizam a rapidez com que a televisão procura soluções.
A equipe mostrada por Fellini não filma efetivamente, estando em cena somente
para satirizar o filme para a TV. Arlindo Machado, em seu artigo Filme-ensaio,
escreve, a respeito desse jeito de fazer cinema, uma interessante reflexão de
Mattoni, que parece categorizar o estilo fílmico de Block-notes:
“Não se trata então de dizer, se quisermos seguir o raciocínio de Adorno,
que o ensaio se situa na fronteira entre literatura e ciência, porque, se
pensarmos assim, estaremos ainda endossando a existência de uma
dualidade entre as experiências sensível e cognitiva. O ensaio é a própria
negação dessa dicotomia, porque nele as paixões invocam o saber, as
emoções arquitetam o pensamento e o estilo burila o conceito. “Pois o
ensaio é a forma por excelência do pensamento no que este tem de
indeterminado, de processo em marcha em direção a um objetivo que
muitos ensaístas chamam de verdade” (Mattoni, 2001:11).” (MACHADO,
2001:64)
O que seria então o filme Block-notes? Cinema como forma de pensamento
composto por imagens e sons, revelando afeto e emoções (Aumout,1996)? Ou como
em Eisenstein, um filme-montagem e conceitual?
Em Block-notes depara-se com um filme que começa sem eixo dramático ou
narrativo claro, nem story-line definido. Suas personagens o “colocadas” no filme,
como os hippies, que são atores. Em alguns momentos esses atores são
intercalados nas figuras do diretor, que é o próprio Fellini, e de sua assistente Maria
Boratto, que interpreta ela mesma. Trata-se de uma ficção que utiliza elementos da

linguagem televisiva e documental. As cenas das estátuas dos imperadores
romanos, logo na seqüência do matadouro, reverencia Eisenstein na montagem
conceitual. O filme apresenta um paralelo entre Roma antiga e a Roma atual. O
matadouro foi um lugar significativo encontrado por Fellini; metaforicamente,
representa a Roma antiga: sangue, morte, homens romanos covardes e corajosos.
O Coliseu é mostrado por fora, evidenciando sua magnitude. Dentro dele,
uma personagem entra em cena: uma vendedora de poeira do Coliseu. Ela diz
vender a poeira para americanos curarem reumatismo. Essa mulher é um retrato da
sátira aos americanos que, por falta de tradições, se voltam para o mundo antigo
com uma ingenuidade inverossímil. Uma simples mulher do povo pode tirar proveito
dessa situação para ganhar dinheiro vendendo poeira de um Coliseu já degradado.
Por que Fellini fez um filme para a TV questionando as indecisões de um
cineasta a respeito do seus filmes? Ao colocar essas questões em cena, Fellini
permite ao público de televisão, mais extenso que o de cinema, vivenciar os conflitos
de um cineasta, de suas produções e inquietudes. Duas narrações se intercalam no
filme: a de Fellini e a do narrador americano, constituindo-se uma metalinguagem na
perspectiva de dois olhares, o de dentro e o de fora.
Block-notes figura como um grande making-of de si mesmo, da procura dos
personagens para Satyricon e da frustração de Mastorna. A televisão é eleita para o
telespectador ver o cinema de forma visceral, passando por um processo de
discussão e questionamento.
A presença da convergência entre cinema e TV é perceptível em várias
momentos, como quando Fellini inclui uma entrevista com Giulietta Masina,
representando ela mesma, dando um depoimento a respeito da parte cortada do
filme Le Notti di Cabiria. As cenas cortadas desse filme entram em Block-notes,
preenchendo a entrevista e discutindo a miséria e a prostituição da periferia de
Roma. Tateando uma estética fílmica, Fellini flerta com o documentário e com a
ficção.
Na cena onde aparece o teste para o filme A Viagem de Mastorna, em que
Fellini dirige Marcello Mastroianni, o violoncelista morto, fica evidente o
descontentamento que Fellini tem com a sua direção. Logo, em um cena posterior,

Mastroianni comenta com o diretor suas atuações em Otto e Mezzo e La Dolce Vita,
ressaltando que Fellini havia encontrado dificuldades em dirigi-lo vivendo outras
personagens.
Block-notes di un Regista revive o passado nos momentos em que Fellini
procura suas personagens para atuar em Satyricon, assim como nas imagens dos
afrescos que se desmancham aos olhos de todos; o presente é representado nas
cenas da construção do metrô. Associados a esses dois tempos aparecem,
respectivamente, o cinema, através da frustração de Mastorna, e a televisão, que
aparece na linguagem fragmentada, com câmeras subjetivas e luzes chapadas.
A metáfora de Giuseppe morto, voltando a um mundo inexistente, mundo que
ele deixou e não será mais o mesmo; as novas formas de se fazer cinema; o mundo
antigo e o novo mundo em consonância; as dúvidas de um diretor de cinema a
respeito de suas personagens e de seus filmes; o questionamento da linguagem
cinematográfica e televisiva, tudo isso é Block-notes, um filme-ensaio que põe em
cheque o cinema, a arte e o audiovisual contemporâneos.
“Não podemos mais falar em imagens simples, a imagem-vídeo cria uma
nova linguagem, uma nova forma utópica, capaz de permitir, a partir da
integração com outras formas de expressão (cinema, fotografia, pintura),
sua organização em um sistema próprio”
Raymond Bellour. (apud: Bruna Leonardi, Peter Greenaway e o cinema pós-
moderno, www.greenawaymoderno.blogspot.com).
O filme termina no escritório de Fellini, onde entrevistas com seus possíveis
personagens de Satyricon são realizadas. O diretor enfatiza que essa atitude parece
cínica e cruel, exibindo imagens dos diversos entrevistados; no entanto, ao mesmo
tempo, diz amar essas personagens, pois, para ele, são a própria Itália. “As
qualidades humanas são ricas, engraçadas e muitas vezes nobres”
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A entrevista é um atributo do documentário, que parte do indivíduo para
entender o todo; fortalece-se a pessoa particular para se chegar a uma
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Trecho retirado do filme Block-Notes

representação de classe social ou tipo ideal de personalidade. As entrevistas criam
maior proximidade entre as personagens e os telespectadores. As personagens de
Fellini são reais, mas fica claro a associação com a fantasia que cada um carrega
intrinsecamente. Todos elas trazem em si uma centelha do povo italiano, que é o
foco do universo fílmico felliniano. Essas entrevistas agregadas ao filme mostram a
necessidade do diretor de estabelecer vínculos com a “realidade” que o cerca, mas
sem se aprisionar a eles. Os desejos e anseios de suas personagens se confundem
com os seus, edificando-se uma espécie de arquétipo da Itália. Essa busca pelas
personagens mostram como a ficção e a realidade conversam e atuam numa
mesma linha de raciocínio.
A construção de uma linguagem que dialogue com fatos reais e fictícios foi
fortalecida pela convergência dos meios, que colaborou de forma decisiva para
agregar novos elementos do audiovisual, das artes plásticas, visuais, musicais e
sonoras ao ambiente multimídia.
Nos anos 60 e 70, a televisão e, posteriormente, o vídeo, fizeram os
realizadores vislumbrar novas ideologias a partir dessas novas formas de interação,
facilitando o aparecimento de diferentes categorias, como o docuficção, filme
conceitual ou filme-ensaio. Desde Eisenstein e Dziga Vertov, a montagem se
configura como um elemento muito importante para a construção de um
pensamento, de um conceito. Em tempos posteriores, o avanço tecnológico veio
facilitando as montagens pelos computadores e pelas câmeras digitais, que
permitiram o surgimento de um imenso universo de possibilidades.
É interessante notar que, apesar desse novo cenário, a televisão parece ainda
muito acanhada no campo da invenção conceitual. O que se o muitos
programas de auditório, programas de entrevistas, telejornais praticamente idênticos
em toda parte do mundo. A possibilidade de cineastas realizarem filmes
especificamente para televisão se torna uma saída criativa, com produções
independentes, promovendo o “desengessamento” da programação televisiva.
Nesse sentido inovador, é que Fellini questiona o antigo e o novo. Em uma
cena, que possui uma conotação metafórica, as antigas estátuas de imperadores
romanos surgem de um fundo escuro, acompanhadas de uma música forte e

ritmada. Através da explícita referência a Eisenstein com seu cinema conceitual,
constrói-se o pensamento de um tempo. Fellini utiliza-se de figuras de linguagem,
como a metáfora e a metonímia, para realizar um pensamento mais complexo.
Nessa cena dos bustos, a montagem é definitiva para a constituição do sentido de
destruição da Roma antiga, do Coliseu com seus imperadores, senadores e
gladiadores, desmontando-se a idéia de encontrá-los no passado. Por esse motivo,
Fellini resolve filmar Satyricon em estúdio e não nas ruínas; a reconstituição do
ambiente lhe traria maior emoção e liberdade de criação. No momento em que
desiste de encontrar suas personagens nas ruínas de Roma e nas suas lembranças
dos filmes de infância, vai buscá-las em lugares comuns, como em um matadouro.
Contra a ditadura do realismo dentro do cinema e da televisão, Fellini vai
atrás de uma linguagem audiovisual sem amarras conceituais predeterminadas.
Apesar de não ser tão inovador no quesito montagem, o filme traz em si elementos
importantes e questionamentos de um novo tempo no audiovisual. Block-notes di un
Regista passa a sensação de uma viagem ao universo conflituoso e frustrante de um
diretor de cinema e mostra a apreensão do caminho percorrido ao encontro das
personagens e do próprio autor consigo mesmo.
Nesse sentido, o filme propõe um questionamento a respeito do cinema e da
televisão, critica a necessidade dos romanos de viverem do passado. O matadouro
é, a princípio, o Coliseu dos tempos modernos, e é que Fellini encontra suas
personagens. A metáfora que realiza entre o matadouro e os antigos imperadores e
senadores romanos é enfatizada pelos bustos aparecendo e sumindo aos sons
desesperados dos porcos; é a morte impiedosa à qual as pessoas eram submetidas.
Para encontrar o sanguinolento mundo antigo, Fellini vai ao matadouro,
associando-o à atmosfera mítica e até religiosa, como na evocação de sacrifícios
antigos. Ele descobre os romanos reais nesse local, ou seja, alguns de seus
personagens imperadores, senadores e gladiadores vão tomando forma no making-
of de Satyricon e nas cenas-testes do filme. A câmera passeia pelo
matadouro/Coliseu e as imagens frias, cinzas e cruéis exalam morbidez, como se o
cheiro de morte pudesse ser sentido no filme. As câmeras angulosas e outras vezes

subjetivas carregam o espectador para o achado do filme: o lugar da morte, como
em Mastorna, com as ruínas do cenário do filme.
Block-notes di un Regista converge cinema e televisão, documentário e ficção,
o mundo antigo e o moderno, abrindo aos telespectadores da televisão a
possibilidade de pensar os questionamentos.

Fig. 15.
Block-Notes di un Regista

4.3 A construção do lugar: elementos visuais e sonoros oriundos da
linguagem televisiva e documental em Prova d’Orchestra
“A câmera se antecipou à luz, na primeira cena de Prova d’Orchesta. A
objetiva mostra um ambiente de penumbra, onde duas manchas
luminosas débeis varam as sombras. Acende-se a luz logo após, ajudando-
nos a discernir o ambiente. Surge uma sala antiga, grande e vazia. O uso
brusco da lente zoom, sobre o mesmo eixo, muda repentinamente os limites
do quadro.(...)” (MARTINS, 1994:87)
Prova d’Orchestra (1979), o terceiro filme de Fellini para a TV, discute a
cultura como marketing na era da televisão. Essa problemática será reforçada em
filmes como Ginger e Fred (1985), Intervista (1987) e finalmente em La Voce della
Luna (1990).
Enaltecendo a erudição da arte das cortes européias, o filme se inicia com a
apresentação do lugar como meio de resgate da memória. Os objetos, o cheiro, o
cenário e as lembranças do copista são referenciais de um tempo passado refletido
na sala onde haverá o ensaio de uma orquestra. A descrição do lugar, feita pelo
copista, transforma-o em lugaridade, pois sugere intimidade por parte dele naquele
território conhecido. A aproximação dos acontecimentos passados em tempo
datado, contidos num espaço determinado, representados pela sala de concertos,
remontam-se ao tempo presente, estabelecendo assim uma conotação histórica
significativa, reverenciando o único cenário do filme.
Essas conexões históricas, a partir da explicação do lugar desde as origens, a
demarcação de um tempo e de um espaço, dão ao espectador a possibilidade de
construir, logo na primeira cena, a intimidade necessária para ir-se efetivando, no
decorrer do filme, um vínculo comunicativo entre espectadores, os tempos passado,
presente e o lugar. Primeiro uma tumba, depois um auditório com excelente
acústica; e no presente, o que surge? A evidência dessa problemática gera um
conflito fílmico. O que se tem no presente? O que mudou? Por que mudou?
Perguntas sugeridas logo nas primeiras cenas.

Prova d’Orchestra propõe ao espectador, de forma relacional, um exercício de
revisão de conceitos sociais, idealísticos, culturais e históricos entre a arte artesanal
e a era do marketing. Os comentários e as interjeições dos músicos recém-
chegados da rua tecem um panorama do mundo de fora, percebendo-se o conflito
surgido com a instauração da metrópole. Com a chegada maciça dos sicos, o
cenário fílmico se amplia, tornando-se barulhento e indisciplinado. Cessa-se a
calma e o silêncio, perdendo-se um pouco do encanto da orquestra. A
desconstrução da erudição da arte é enfatizada no processo disjuntivo
contemporâneo.
Confrontando, de um lado, a valia da arte como um fenômeno cultural,
artesanal, elitizado e erudito e, de outro, uma parte de um processo de
mercantilização na era da cultura de massa, Fellini propõe um embate entre o antigo
e o novo. A questão da modernidade permeia o filme e inclui, nesse campo, a
televisão como meio de propagar a arte como um fenômeno popular e acessível.
Colocando em questionamento a crença da arte como algo nobre e intocável,
fundada nas tradições históricas e sociais, tem-se no maestro a figura do poder, o
controlador das vontades e o ordenador dos ânimos. Os músicos, fadados a
obedecer aos mandos e desmandos do maestro, constroem uma metáfora da
sociedade italiana via o ensaio de uma orquestra. Estabelece-se um explícito
confronto entre forças opostas que agem no interior de uma crise de identidade
cultural e de poder. O que existia no passado era o bastante? Como a televisão está
inserida nessa identidade cultural artística?
A voz-off do copista, que se assemelha a um clown, alterna um tom sério e
confiável com risos satíricos e irônicos. Narra, esclarecendo os espectadores sobre
a importância histórica daquele lugar, estabelecendo as diferenças entre os músicos,
o público e os freqüentadores, no tempo passado e no tempo presente:
“(...) era um antigo oratório sabe, aqui estão as tumbas de 3 papas e 7
bispos, não mais que mortos aqui dentro (risos). Em 1781 este oratório
se converteu em um autêntico auditório para concertos vocais e
instrumentais. As cortes de toda a Europa compareciam e sabem por

quê? Pela acústica. O som é límpido, ideal para escutar música, sem
reverberação .... aqui passaram os melhores diretores de orquestra do
passado, e que músicos! E que público! Vinham ministros, embaixadores,
sacerdotes, traziam suas partituras para escutar a música, e que senhoras
tão bonitas! elegantes, .... que perfume havia ... era outro mundo. Hoje o
público o é assim, bom vocês devem estar nervosos com tantas
informações...”
8
O antigo e o novo, o passado e o presente se articulam no espaço,
confrontados no cenário mórbido onde hoje se ensaia uma orquestra. A importância
da representação do lugar como referente da memória apóia-se na linguagem
documentária. Voltar ao lugar dos fatos acorridos faz encontrar os fantasmas e as
emoções trazidas na memória visual, olfativa, tátil e auditiva.
A construção do lugar é um elemento importante nos filmes de Fellini. Em
Prova d’Orchestra ele é formado por duas vertentes: oralmente, pela voz do copista,
e visualmente, pela elaboração do cenário onde se evidencia, tanto na oralidade da
voz-over quanto nas luzes diretas sobre os músicos, uma linguagem documental e
televisiva.
Bill Nichols destina um capítulo do seu livro Introdução ao Documentário, à
discussão dos elementos que dão caráter a esse gênero. Ele diz que a voz do
documentário não se restringe ao que é dito oralmente pela voz off ou over, ambas
representando a autoridade e trazendo o ponto de vista do cineasta, ou, muito
menos, pelos atores sociais que falam no filme de acordo com seus próprios pontos
de vista. Essa última observação é bastante questionável, visto que, na verdade,
sempre haverá condução do realizador, tanto nas perguntas feitas aos atores sociais
quanto nos cortes, nas edições, etc.
“(...) a voz do documentário fala através de todos os meios disponíveis para
o criador. Esses meios podem ser resumidos como seleção e arranjo de
som e imagem, isto é, a elaboração de uma lógica organizadora para o
filme. Isso acarreta, no mínimo, estas decisões: 1) quando cortar, ou

8
Trecho retirado do filme

montar, o que sobrepor, como enquadrar ou como compor um plano
(primeiro plano geral, ângulo baixo ou alto, luz artificial ou natural, colorido
ou branco e preto, quando fazer uma panorâmica, aproximar-se ou
distanciar-se do elemento filmado, usar travelling ou permanecer
estacionário, e assim por diante); 2) gravar som direto, no momento da
filmagem, ou acrescentar som adicional, com traduções em voz-over,
diálogos dublados, música, efeitos sonoros ou comentários; 3) aderir a uma
cronologia rígida ou rearrumar os acontecimentos com o objetivo e
sustentar uma opinião; 4) usar fotografias e imagens de arquivo, ou feitas
por outras pessoas, ou apenas usar imagens filmadas pelo cineasta no
local; 5) em que modo de representação se basear para organizar o filme
(expositivo, poético, observativo, reflexivo ou performático)”. (NICHOLS,
2005:76)
Portanto, não se pode dizer que esses elementos destacados em Prova
d’orquestra, que são comumente vistos em um documentário, façam dele um filme
documentário, no entanto pode-se apontar um indício de elementos novos que foram
agregados aos filmes de Fellini desde Block-Notes, e que aqui, em Prova
d’orquestra, são novamente enfatizados.
A narração-over do copista pressupõe uma participação do espectador,
estabelecendo uma forma de conversa unilateral, ou seja, o outro, que está por
detrás das câmeras, não faz parte da história, porém é levado em consideração.
Essa forma de comunicação televisiva se configura como uma comunicação
cinética; é uma das características da linguagem televisiva e documental utilizada
por Fellini em muitos filmes do período pós- Block-Notes.
A câmera subjetiva é o próprio olhar do apresentador que está de frente ao
telespectador: um exercício do olhar, atento e firme para a objetiva da câmera; uma
relação comunicativa cinética e virtual entre o apresentador e o telespectador que
não se conhecem, mas podem trocar olhares; um emissor em conexão com milhões
de receptores que não possuem o direito de resposta, mas que, com a câmera
subjetiva, adquirem a nítida impressão de que são o alvo da conversa.
A descrição do lugar, apoiada no passado, somada às risadas com tom
irônico do copista dão início ao surgimento da harpa, quase como em um passe de
mágica. A harpa é um dos instrumentos mais antigos da orquestra, representando o

antigo e o tradicional. O cenário é montado aos poucos, com o surgimento de
objetos em cena que vão compondo o cenário fílmico.
Depois da construção consistente do lugar pelos objetos, inicia-se a
apresentação das personagens, realizada pelo repórter da TV. A cada músico que
entra em cena e busca seu lugar na orquestra, a composição do lugar vai se
fortalecendo. Os componentes da orquestra trazem frustrações do mundo exterior,
como o trânsito e problemas de doença, evidenciando a indiferença com que os
músicos encaram seu trabalho, sem glamour ou empolgação. A desconstrução da
poética vai se estabelecendo na medida em que se segue o story-line, com a
apresentação das personagens.
Numa cena, um sico fraco e velho chega ao ensaio e é recepcionado por
outros dois músicos que falam palavras de incentivo para que ele continue, apesar
da idade. Essas cenas são intercaladas com outras de dois homens olhando uma
revista de mulheres semi-nuas. Assim sucedem-se tomadas da chegada dos
músicos, cada qual ocupando seu lugar e continuando suas vidas comuns e
corriqueiras, esperando o ensaio da orquestra.
Alguns músicos comem, outros fazem palavras cruzadas, outros ainda ouvem
futebol e discutem sobre o posicionamento das cadeiras. O espaço cênico é
construído e começam a fazer sentido as palavras do copista que enaltecia o pódio,
os músicos e o público de antes. O passado foi um tempo em que a música erudita
era valorizada, segundo o copista; no presente, o público desse ensaio é uma
emissora que TV que faz uma reportagem do sindicato.
Fellini opta, em Prova d’Orchestra, por não mostrar as câmeras de TV. Toma-
se conhecimento delas nas cenas iniciais do copista descrevendo o lugar,
percebendo-se que ele fala para uma suposta câmera que está a sua direita. A
televisão é uma personagem oculta, percebida nos momentos em que a luz chapada
da TV precede as entrevistas.
O primeiro violino explica o lugar e o copista o alerta de que falou sobre
isso. A pianista chega e o professor pede a ela que aja com naturalidade, pois as
câmeras de TV estão ali. Esse “fingimento” proposto pelo homem do primeiro violino
é um indício de como as pessoas mudam diante de uma câmera de TV, sendo difícil

manter a naturalidade. No entanto, na medida em que avançam as cenas, percebe-
se que os músicos não mais se preocupam com as câmeras e continuam a suas
ações como se elas não existissem.
Essa forma de contar uma história com o narrador-personagem se tornou
parte da linguagem de Fellini. Orlando, em E La nave Va, e Maya, em I Clowns são
narradores-personagens, artifício que aciona a memória, permitindo aos
espectadores ouvirem a voz do filme.
Porém, ao contrário de alguns documentários, que possuem apenas uma voz,
os filmes de Fellini são contados em muitas vozes. Em E La Nave Va, Orlando
(1983) é somente um dos informantes da história, visto que sua narração é insegura
e demonstra sua fragilidade de conhecimento a respeito da cantora Edmea Tetua.
Um narrador um tanto tolo e perdido em meio aos tripulantes, Orlando narra para um
programa de TV, como o copista o faz em Prova d’Orchestra. O narrador-
personagem é parte da história, parecendo ser onisciente e onipresente com sua
voz, entretanto outras vozes emanam do filme, percebendo-se que tanto Orlando
quanto o copista não são a autoridade, como a voz de Deus.
Orlando, por exemplo, faz uma narração jornalística, atrapalhada e insegura,
como Maya em I Clowns. A crítica de Fellini à narração e reportagem jornalística se
evidencia também em Roma e Intervista. No caso de Orlando, nem tudo que
acontece no navio é percebido por ele, como o desvendar da intimidade da cantora
de ópera Edmea Tetua. Os espectadores têm contato com cenas nas quais Orlando
não está presente, como por exemplo, o momento em que temos conhecimento da
cantora pela ótica de seu amigo que possui vários pertences, filmes e fotos a que
Orlando não terá acesso no universo fílmico.
O copista é o articulador do tempo passado-presente. Ele posiciona os
espectadores no tempo presente e relativiza-o quanto ao passado. Quando
descreve o glamour do lugar e o quanto ele foi freqüentado por pessoas importantes,
entende-se como a freqüentação do tempo presente estaria aquém dos tempos
remotos. O filme se inicia com uma imagem escura, que vai clareando aos poucos,
acompanhada de uma narração segura e satírica de um tempo passado, que seu
discurso defende, mais encantador e glamoroso. O copista é a figura do passado em

cena, valorizando os tempos em que aquele lugar era respeitado. Então, via
narrador-personagem, pode-se entrar em contato com um outro tempo, mesmo não
sendo ele o narrador do documentário.
Essa forma de narração, própria dos programas de TV, é enfatizada quando
as partituras colocadas pelo copista vão caindo, denunciando a crise do lugar, dos
músicos e da própria arte. No final de seu discurso, o copista diz a frase: “Não
poderia viver sem a música”. Um travelling tranqüilo caminha pelas partituras em
meio a um silêncio perturbador.

Fig. 16
.
Prova d’ Orchestra

4.4 As entrevistas colocam em evidência as personagens
“[...] na época da reprodutibilidade técnica, o que é
atingido na obra de arte é sua aura”.
Walter Benjamin
As luzes diretas da TV antecedem a voz-off do entrevistador. Cada músico
mostra e comenta a respeito de seu instrumento, valorizando-o e comparando-o a
sua própria vida. A entrevista coloca a personagem em contato com o telespectador
e com isso se tem acesso às longas falas dos músicos e seus universos pessoais,
angústias, desejos e alegrias. Os músicos mais velhos demonstram maior
identificação entre eles, com a música e com os instrumentos.
Esses instantes individuais diferem de outras cenas, onde se enfatiza o grupo,
principalmente quando o sindicato interfere no ensaio. Se, por um lado, se tem um
ambiente propício para a ação do sindicato, que discute questões financeiras e
direitos dos trabalhadores, por outro, as entrevistas determinam um momento de
encontro com a própria arte.
No intervalo do ensaio, as câmeras da TV acompanham os músicos até o bar
que dispõe de músicas eletrônicas, bebidas e cigarros. Agora, no grupo e fora do
ensaio, os músicos olham para eles próprios com desdém e parecem desanimados
perante a orquestra e o maestro. Fica evidente o amor pelo trabalho e o poder em
crise; a arte em derrocada econômica e cultural. A televisão, por sua vez,
oportunamente deflagra esse momento de instabilidade artística.
Pode-se dizer que a televisão, mal recebida pelos músicos mais velhos e
indiferente aos jovens, capta esse ensaio sem propósito algum. As perguntas
realizadas pelo entrevistador soam falso e parecem influenciar as atitudes dos
músicos.
A câmera posta modifica o ambiente do ensaio; a presença do sindicalista e
do produtor lhe um tom de objetividade, que bate de frente com a sensibilidade
dos músicos. A dicotomia da arte artesanal e da arte industrial se evidencia nas
cenas em que os músicos cantam, fumam, dançam como qualquer trabalhador que
quer ser pago com limites de hora, descanso, etc. – direitos do trabalhador.

Quando criança, têm-se pensamentos sublimes em relação à realidade;
esses pensamentos vividos em um adulto, no entanto, oferecem-lhe o risco de
parecer um ingênuo. Essa infantilidade é enfatizada em alguns momentos das
entrevistas com os músicos, como na cena com o tocador de tumba, quando ele diz
ser muito sensível à arte, que ela o emociona muito; continua relatando que muitas
vezes queria morrer pois o mundo está cruel. Comparando-se ao instrumento de
forma pejorativa, o músico diz ser ele seu melhor amigo. Toca um trecho de Verdi,
percebendo-se o artista escondido diante da realidade vigente. As memórias do
músico o enchem de nostalgia e felicidade.
A arte, singela e infantilizada, diante do capitalismo feroz e brutal. A crise de
autoridade atinge em cheio o maestro, que precisa fazer os músicos acreditarem na
importância de seu papel como regente. Enquanto a pausa acontece, alguns
músicos ficam na sala de ensaio, um ambiente calmo e tranqüilo. O tocador de
oboé se emociona quando se refere ao seu instrumento com um discurso
preenchido de metáforas que comparam sua experiência instrumental com relatos
de uma vida.
O copista, representação do tempo passado, entra novamente em cena e se
dirige à câmera subjetiva; encara os telespectadores e, sem melindres, desdenha do
tempo presente. Conta que os maestros de seu tempo dirigiam a orquestra com
muito rigor e exigiam perfeição de seus músicos. Todos os respeitavam e lhes
agradeciam por tocarem aa madrugada e levarem golpes com a batuta quando
faziam algo errado. Essa crise de autoridade denuncia a anarquia que começa neste
instante, com a pichação de dois dos músicos na parede. Assim inicia-se a crise de
poder e autoridade.
Numa outra subjetiva, o maestro diz que a música acabou, portanto seu
mundo também se foi. Essas declarações para a câmera indicam a ausência de
sentido da arte, dos artistas e de sua própria obra. O regente diz que, às vezes, ao
dirigir a orquestra, se sente ridículo, como um morto, um fantasma, e confessa nem
olhar para os músicos. Emocionado, conta da primeira vez que regeu uma
orquestra, algo mágico e encantador. E diante das histórias de respeito ao maestro
no passado, o estrondo chega a ele.

A crise enfim atinge os músicos e maestros em geral, diagnosticada pela
primeira vez em La Strada, com o teatro de variedades, e em outros filmes como I
Clowns, com a escassez do circo e dos palhaços, e agora em Prova d’orchestra,
com a crise da arte erudita. Os estrondos mostram que nem as tumbas dos papas e
bispos, e muito menos a erudição, podem sobreviver aos desmandos da nova era
cultural na Itália.
O estado de anarquia se instaura. A crise cultural derruba o maestro e desfaz
a autoridade. Sem meios de impedir o trágico acontecimento final, os mais jovens se
desviam dos seus propósitos de reivindicadores e, sem saber mais o que seguir, se
dispersam, como o rapaz que puxa a pianista para debaixo do piano, ficando ambos
em beijos e abraços durante o manifesto. Outros músicos, como os clowns, se
esbofeteiam uns aos outros para quebrar a seriedade do instante. A harpista,
totalmente desconectada com a realidade que a cerca, cede uma entrevista à TV e
conta como foi o seu primeiro encontro com a harpa. A geração dos jovens se
contrapõem à dos velhos. O tempo passado e presente se alinham e, frente a frente,
entram em conflito. Os pedaços da sala caem ao som dos protestos dos jovens; o
impasse se forma. Aos gritos de orquestra, terror, morte ao diretor, os músicos
velhos olham admirados. O que pode acontecer nessa crise do tempo, dos valores,
da cultura? O metrônomo é elegido para substituir o maestro, em um pedido de
autonomia aos músicos.
Músicos, maestro e copista se vêem diante do caos. Na anarquia geral, a
televisão assiste a tudo; a grande e magnífica bola entra para demolir a desordem, e
nos escombros, o maestro encontra novamente o poder. A morte da harpista é o
choque que traz de volta a antiga ordem.
Essa forma de terminar o filme foi interpretada na época como uma resposta
reacionária do diretor, visto que, após toda a revolta, cansados e humilhados, os
músicos se voltam para o maestro, na figura da autoridade maior. Este, por sua vez,
torna a ofender os músicos, como fazia no começo, porém, agora, nos escombros,
se tem a impressão de que eles, não encontrando o viés da revolução, retornam à
conhecida forma de ordem.

É produtivo observar que, em La Nave Va, ao contrário de Prova d’Orquestra,
o navio naufraga em meio aos trechos líricos dos cantores de ópera; nada parece
destruir a arte. Será verdade essa afirmação? Os cantores de ópera tentam se
superar e desencadeiam uma clara competição entre eles; ser o melhor parece
importar mais do que a expressão da própria arte. Numa cena, na casa das
máquinas, ao som ensurdecedor das engrenagens do navio, num calor terrível e
com o sofrimento cruel dos operadores das caldeiras, os cantores fazem solos
altíssimos de vozes, provocando um derio competitivo. A ironia é um fator
preponderante dessa cena, pois tudo soa um tanto ridículo e grotesco.
Ao que tudo indica, esses cantores já teriam compreendido o sentido do
marketing na arte. Ao contrário, os músicos de Prova d’Orquestra, desanimados,
não sabiam mais qual caminho trilhar, talvez ainda vislumbrando os méritos obtidos
no passado. A mudança da ótica artesanal para a capitalista, mais difícil para os
músicos velhos do que para os jovens, é sacrificada. Os jovens, ao final, acabam
aceitando a condição imposta pelo maestro numa total falta de princípios.
A esfera escura e maciça chega e destrói a anarquia instaurada, denunciando
o que fora previsto nas pancadas sentidas antes do intervalo da orquestra. A
produção de massa pode competir com a orquestra? E o maestro é capaz de lidar
com suas frustrações?
A cena da união dos músicos em cima dos escombros tocando e obedecendo
calmamente ao maestro parece resolver toda a crise, porém não é assim que o filme
termina. Os gritos de ordem do maestro em alemão, fazem todos retornar àquilo
que conheciam. Sem saber para onde ir, os músicos, conformados, continuam
fazendo o que sabiam. As perguntas ficaram sem respostas, a televisão assiste a
tudo passivamente como um espectador, contemplativo e inerte. A crise da arte
artesanal na era do marketing e das mídias eletrônicas propõe uma outra forma de
pensar a comunicação e a arte. Ao que tudo indica, é preciso se preparar para lidar
com esse inevitável fato

Fig. 17.
Prova d’Orchestra

5 ENTRE O CHOQUE E A ACEITAÇÃO: INTERVISTA E LA VOCE DELLA
LUNA, A TV NO CINEMA.
É preciso estar sempre embriagado. está: eis a única questão. Para
não sentirem o fardo horrível do Tempo que verga e inclina para a
terra, é preciso que se embriaguem sem descanso.
Com quê? Com vinho, poesia ou virtude, a escolher. Mas embriaguem-
se.
E se, porventura, nos degraus de um palácio, sobre a relva verde de
um fosso, na solidão morna do quarto, a embriaguez diminuir ou
desaparecer quando você acordar, pergunte ao vento, à vaga, à
estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que flui, a tudo que geme, a tudo
que gira, a tudo que canta, a tudo que fala, pergunte que horas são; e o
vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio responderão: hora de
embriagar-se! Para não serem os escravos martirizados do Tempo,
embriaguem-se; embriaguem-se sem descanso". Com vinho, poesia ou
virtude, a escolher.
Charles Baudelaire
Intervista e La Voce della Luna sugerem um confronto estabelecido a partir da
confluência de duas instâncias opostas que convivem no mesmo espaço e no
mesmo tempo fílmico. De um lado, a tradição e a fantasia; de outro, a tecnologia e a
lógica capitalista; ou seja, os filmes promovem uma estrutura dialética entre o mundo
fantástico, repleto de delírios e sonhos, e o mundo moderno, evidenciado,
principalmente, no caos urbano das grandes cidades.
Essa problemática, tratada em filmes anteriores, passa a ser o mote central
desses filmes que, sobretudo aqui, ganhou contornos mais definidos, servindo
inclusive para mediar a discussão entre pelo menos três formas de elaboração e
realização do audiovisual contemporâneo: televisão, cinema e filme publicitário.
Intervista será analisado numa perspectiva comparativa entre a forma
televisiva e a cinematográfica. Posteriormente, o filme La Voce della Luna levará a

discussão ao âmbito da contraposição entre as personagens idílicas e nostálgicas,
baseadas nas poéticas do homem arraigado em suas tradições, e o homem
moderno, predisposto a encarar novas estruturas e o hibridismo cultural das grandes
cidades.
Intervista foi lançado em 1987 com o intuito de comemorar os cinqüenta anos
de Cinecittà. Imensa e bela, localizada na periferia de Roma, foi responsável pela
produção média de 300 filmes entre 1937 e 1943. Criada no regime fascista,
sobreviveu às distintas épocas e estilos da cinematografia italiana.
A primeira cena de Intervista sugere a grandiosidade física desse estúdio de
cinema. Nessa cena, um portão imenso é aberto e, através dele pode-se ver a forte
luz do farol de um carro se antecipando e clareando a entrada de um grande edifício,
os estúdios de Cinecittà.
O filme expõe o cinema em suas vísceras, evidenciando o processo de
produção cinematográfico e exaltando as máquinas e os profissionais do grande
écran: cameramens, assistentes de câmeras, fotógrafos, maquinistas, atores,
assistentes de direção, maquiadores, cabeleireiros e o próprio diretor, Fellini. O
cinema é mostrado sem melindres, sem mistérios: genuíno e autêntico, entendido
em sua legitimidade maior.
Intervista esmiúça os desgastantes e demorados processos de produção,
mostrando os operários da indústria da ilusão com leveza e humor. Tudo é imenso
no cinema, desde as gruas, os cenários, até o amplo formato da tela. Esse seria o
momento oportuno para Fellini enaltecer o cinema em sua essencialidade.
Para formar um referencial comparativo entre uma produção cinematográfica e
televisiva, Fellini aparece em cena dirigindo um filme que versa sobre sua chegada,
na época da guerra, aos estúdios de Cinecittà. No mesmo instante, os repórteres da
TV japonesa captam, com câmaras portáteis, o making-of dessa produção. Trata-se
de um enfoque metalingüístico por meio de dois filmes produzidos simultaneamente,
um para a TV e outro para o cinema.
A estética making-of, como parte integrante da forma fílmica de Fellini,
encontra nesse filme seu ápice e serve também para expor os processos de
realização do cinema e da TV. Aliás, o confronto entre essas duas linguagens passa

a ser o mote central de Intervista.
Dois tempos distintos são articulados para representar o presente e o
passado. Numa ponta, pode-se ver os estúdios e suas produções na época fascista,
e em outra, a reportagem da TV japonesa na contemporaneidade do filme. Esses
dois momentos históricos, o ano de 1940 e 1987, se apresentam para ressaltar
suas diferenças de estética e linguagem.
A cara e sofisticada estrutura cinematográfica, amparada por muitos
funcionários especializados, se contrapõe à simples e objetiva produção de uma
reportagem televisiva. Em todas as cenas em que a reportagem da TV aparece, vê-
se apenas quatro integrantes: um câmera, uma repórter, um cnico de som e um
fotógrafo. Nas coberturas televisivas, a técnica é simplificada para privilegiar o fato
central, ou seja, a equipe de filmagem está para enfatizar os acontecimentos em
detrimento de se obter lindas imagens. No documentário da TV japonesa o objetivo
principal é captar Fellini filmando nos estúdios de Cinecittà. Nesse sentido pode-se
afirmar que o discurso jornalístico e cinematográfico se diferem em suas distintas
estruturas, principalmente no que diz respeito à elaboração do texto e recepção do
público. Em Intervista fica evidente essas diferenças apontadas insistentemente no
decorrer do filme.
Pode-se citar, apenas como exemplo, dois momentos em que essa relação de
contraposição se efetua: numa cena, vê-se a equipe de Fellini utilizando megafones
para efetivar a comunicação entre eles, pois alguns estão em uma enorme grua,
utilizada para filmar de um ângulo alto, e outros, no solo. a equipe japonesa
comunicam-se doxa-a-doxa, se mantendo perto uns dos outros. Noutra cena, os
enormes holofotes da produção cinematográfica se contrapõem à pequena luz, forte
e direta das câmeras de TV.
Em Ginger e Fred, os bastidores de um programa de auditório foi mostrado,
fazendo com que os espectadores vivenciassem os trabalhadores da TV em seus
ofícios, como: instrutores e assistentes de palco, câmeras, editores, fotógrafos,
atores e produtores que foram trazidos do cinema para trabalhar na televisão,
incorporando uma linguagem mais rápida, dinâmica, com filmagens ao vivo como as
do programa “Com Vocês”. Ginger e Fred revela esse formato de programas de

auditório produzidos pelas emissoras italianas, baseados nos estilos norte-
americanos.
De 1937 a 1985 (ano de inauguração dos estúdios / ano de lançamento de
Intervista), a televisão foi implantada na Itália como meio de comunicação de massa,
interferindo na estética do audiovisual, incluindo na cinematográfica. Em 1985,
Cinecittà produzia peças publicitárias, seriados e filmes para a TV. Em 1940,
tempo reproduzido no filme, as produções cinematográficas eram as únicas
realizadas nos estúdios. A TV ganhou espaço com a inserção dos filmes
publicitários que contavam com a participação de atores famosos do cinema, pagos
com altíssimos cachês.
Para ironizar esse fato, Marcello Mastroianni aparece no filme vestido de
Mandrake pois está nos estúdios realizando um comercial de sabão em pó. O fato é
inusitado, um ator tão importante para a cinematografia sujeita-se a fazer um
comercial de sabão em somente para ganhar algum dinheiro. Vinte e seis anos
antes, ele estava em La Dolce Vita como Marcello, o repórter sensacionalista galã.
Agora, como Mandrake, em um comercial de TV, ele possui apenas uma vareta
mágica para deixar os lençóis muito, muito brancos. Pura ironia de Fellini, que usa a
imagem de Mastroianni para questionar o aparecimento de artistas famosos do
cinema em propagandas da TV.
Existem pelo menos duas questões a se pensar nessas cenas: a primeira, a
velhice é implacável, principalmente para os astros do cinema que, sem a beleza e a
juventude de outrora, se vêem fadados ao esquecimento; e a segunda, a televisão
absorve os artistas do circo, do teatro e do cinema para seus programas e filmes
publicitários, e esse é o grande triunfo do marketing, como pode-se constatar
também em Ginger e Fred. Muitas vezes o inverso também se estabelece: artistas
famosos da TV servem para chamar público para as encenações no teatro.
O filme não conduz as discussões como em um cabo de guerra, no qual se
mede a força entre a TV e o cinema. A intenção se restringe a mostrar as
divergências e as convergências em suas diferenças e semelhanças. Como
diferenças é possível ver a complexa produção cinematográfica, principalmente nas
cenas dos testes de luz, de atores e dos operários da indústria da ilusão. É possível

também observar a submissão dos atores, que se vêem à mer dos diretores e
produtores inescrupulosos. E salutar avaliar, na contraposição dessa gica
gigantesca, a equipe de TV realizando, sem maiores problemas, suas filmagens.
O cinema aparece como algo enorme, magnífico, trabalhoso, mas também
maravilhoso, preocupado com as minúcias para representar a realidade por meio da
imaginação. Como se pode ver nas primeiras cenas, quando a noite cai, os
preparativos para filmar no dia seguinte se iniciam: são gruas, lentes, câmeras,
luzes, testes e mais testes realizados antes das filmagens propriamente ditas.
Enquanto dirige seu filme, Fellini é entrevistado pela TV japonesa, figurando
uma demonstração do que é possível fazer no cinema e o que é essencial à TV.
Três filmes se articulam: o da TV japonesa, um making-of da filmagem de Fellini, e o
produto final, isto é a junção dos dois primeiros.
Questionar as mudanças ocorridas nas produções cinematográficas desde o
advento da TV como meio de comunicação de massa, em 1960, até finais de 1980,
é o enfoque do filme.
5.1 A experiência de fazer cinema na era da televisão
Em quase todas as cenas pode-se observar não como as entrevistas dos
repórteres japoneses são insistentes, persuasivas, intrometidas, mas também
cômicas e dinâmicas, dando leveza ao filme. A abordagem rápida e enfática tem o
intuito de arrancar surpreendentes respostas do entrevistado que, sem tempo de
pensar, diz a primeira coisa que lhe vem à mente. O repórter televisivo deve
representar o telespectador para efetuar uma comunicação de cumplicidade,
buscando a abordagem daquilo que o público quer ver e ouvir. Os espectadores
almejam conhecer pessoalmente o ídolo e ter a nítida impressão de que podem
participar de sua vida, sem sair da poltrona de suas casas e sem custo adicional. A
televisão acena com essas possibilidades de forma única.
Os telespectadores, em geral, se sentem satisfeitos ao assistir a cobertura de
uma emissora de TV que desvende a intimidade do ídolo. Por esse motivo, em

Intervista, os repórteres ficam sempre juntos a Fellini para descobrir segredos de
sua intimidade.
A propaganda é um outro ponto de discussão presente tanto em Intervista
como em La Voce della Luna. Em Intervista as filmagens dos comercias realizados
em Cinecittà explicita essa necessidade de propagar produtos para trazer mais
verba às emissoras, produtoras, atores e estúdio. Grandes produções são realizadas
para fazer um filme publicitário, como a filmagem do comercial das quinas de
escrever Imperial, em que jovens vestidos de fraque dançam em cima de uma
enorme máquina de escrever, e o slogan diz: Use imperial e Zás - trás! É trabalho
mais pido. É como se o pedaço de um filme, com todo glamour possível, fosse
trabalhado no intuito de usar maravilhosas imagens para persuadir as pessoas a
adquirirem o produto anunciado.
Baudrillard em Significação da Publicidade, diz que é preciso ouvir pela voz
publicidade, uma doce litania do objeto, seu verdadeiro imperativo:
‘Veja como a sociedade não faz mais do que se adaptar a você e a seus
desejos. Portanto, é razoável que você se integre a essa sociedade’. A
persuasão, como diz Packard, faz-se clandestina, mas não visa tanto a
‘compulsão’ de compra e ao condicionamento pelos objetos quanto à
adesão ao consenso social que esse discurso sugere: o objeto é um
serviço, é uma relação pessoal entre você e a sociedade.[...]”
(BAUDRILLARD, 2000:293, 294).
Nesse sentido pode-se citar a cena em que algumas jovens surgem das
alamedas do estúdio, com roupas de desfile militar cor-de-rosa, acompanhadas por
uma banda. Um travelling as acompanha e logo sabemos que é um comercial de
batom que está sendo gravado. Uma mulher linda e sensual se posiciona em cima
de um canhão. Um tiro sai desse enorme canhão e, ao som forte do disparo, um
batom, grandioso e vermelho, é visualizado; apelo fálico que estimula as mulheres,
até mesmo por um processo inconsciente, a adquirir aquele produto.
Servindo de emprego para os artistas, produtores ou diretores do cinema ou
do teatro, os filmes publicitários transformam os estúdios de Cinecittà. Essas rápidas
e caras produções são realizadas, na maioria das vezes, para serem veiculadas nos

intervalos de filmes e de programas de TV, com o intuito de arrancar grandes
quantidade de dinheiro oferecidos pelos patrocinadores à emissora. A propaganda
também é grandiosa e bem cuidada. Entrelaçam-se a ilusão por detrás das telas, a
persuasão dos filmes publicitários e a realidade dos programas de TV nos estúdio de
Cinecittà.
Diante das câmeras da TV japonesa, Fellini se descontrai, penteia os cabelos
e os espectadores são levados ao mundo mágico da cinematografia. O diretor
reconstrói o universo fantástico de sua chegada a Cinecittà e, ao mesmo tempo,
conta esses fatos aos japoneses. Vai atrás de elementos para reconstruir o passado,
como a fachada da Casa del Passeggero, que busca redefinir a memória de outros
tempos.
O filme burla a dor e a nostalgia que poderia incutir por ser um tanto idílico, e
no lugar, coloca a fantasia e o inusitado. No entanto, a desolação proveniente da
concorrência da TV com o cinema é um elemento que persiste no filme, sendo que
esse confronto abre a discussão e constrói uma gica entre essas duas linguagens.
Percebe-se a possibilidade do convívio de ambas no mesmo espaço, apesar dos
seus distintos propósitos; suas semelhanças tornam esse entrelaçamento factível.
O filme que Fellini pretende fazer para mostrar como chegou a Cinecittà
começa no bonde, com uma cena de sua primeira viagem a Roma. Detalhes são
mostrados, fortalecendo a espirituosidade de Intervista. Numa cena, o ator que faria
a personagem do fascista gordo não aparece e, rapidamente, Fellini improvisa,
colocando em cena um de seus assistentes, que é magro e não é ator. Essas cenas
relembram a equipe atrapalhada e clowesca de I Clowns.
Quando a equipe de filmagem sai pelas ruas para filmar as cenas da chegada
de Fellini a Cinecittà, os atores são colocados dentro de um bonde que está em cima
de um caminhão; nesse momento ouve-se uma música de circo. A fantasia do
cinema está aberta, sem mistérios, o “real” e o imaginário juntos. Na continuação,
em uma cena da época de 1940, esse bonde pára e o encontro do fascista com as
vendedoras de uva retoma o momento em que os fascistas eram capazes de
encantar o povo, vestidos na farda impecável, representando a figura do poder; as
vendedoras de uva correm maravilhadas, cantando ao encontro do militar. Enquanto

Fellini conta sua história à TV japonesa, ela é vivida pela personagem que o faz
jovem nessas cenas; duas épocas distintas confrontam duas linguagens similares,
porém diversas.
A pergunta da repórter japonesa a respeito de como Fellini faz para encontrar
suas personagens desencadeia a cena do trem, onde seu assistente e o fotógrafo
procuram, entre os passageiros, personagens interessantes. Pode-se ver nessas
cenas como o diretor busca no cotidiano pessoas aparentemente comuns, que
possuem características únicas e intrigantes.
O filme tem uma narrativa muito fragmentada, pois as perguntas da repórter
da TV geram imagens retiradas de vários lugares distintos: do filme que Fellini está
rodando, dos fatos que estão acontecendo no momento presente das filmagens ou
dos preparativos de Amerika, em que Maurizio realiza testes para encontrar a
personagem Brunelda. Essa busca incessante pelas personagens e a forma como
os filmes se entrecortam mostram a complexidade de um diretor que mesmo antes
de terminar um filme já necessita rodar outro.
No decorrer do filme, Maurizio realiza entrevistas com pessoas interessadas
em participar de um filme do diretor. Noutra cenas, Fellini busca, através de fotos de
roupas antigas, compor o figurino do elenco de Amerika, filme que pretende rodar
logo na seqüência. Enquanto isso, um dos japoneses lhe faz massagens.
um momento mágico em que Marcello Mastroianni surge como por encanto
na janela do escritório de Fellini que está no segundo andar do prédio, vestido de
Mandrake e rodeado de bexigas e assobios de vento, dizendo: Os pepinos de
sempre? Problemas financeiros”. Como citado anteriormente, Marcello está fazendo
parte de uma peça de publicidade e sobe por uma grua para ver Fellini.
A magia e a beleza do cinema é também enfatizada nas cenas em que Fellini
sai do set de filmagens com Marcello e Sergio Rubini, o ator que está interpretando-
o quando jovem, sempre acompanhados pelas câmeras da TV japonesa. Realidade
e ficção se misturam; na vida “real”, Marcello Mastroianni fuma três maços de cigarro
por dia e, com a idade avançando, torna-se menos interessante para os cineastas.
Em Ginger e Fred, com a personagem Pippo, é notória a decadência como uma

característica da velhice. O diretor, os atores e a equipe da TV vão à casa de Anita
Eckbert e são bem recebidos por ela.
Na sala, Marcello, Anita, Fellini, Sergio e a equipe japonesa assistem a
mágica de Mandrake. Surge pela vareta do mágico um grande lençol branco e
límpido, como o dos comerciais do sabão em pó, e nele podendo-se ver uma cena
de La Dolce Vita. Todos voltam ao passado em que Anita e Marcello eram Sylvia e
Marcello, dançando na Fontana di Trevi. As cenas dos dois dançando se alternam
às dos dois em Intervista, vinte e seis anos mais tarde. O olhar dos atores diante do
tempo passado é comovente, descobrindo a decadência do corpo, o avanço da
velhice e a finitude da vida como algo real. A beleza física e o endeusamento do ser
são desmascarados perante aquelas cenas de ficção e realidade.
Para relembrar a poética do cinema, essas personagens, que no presente
estão sendo filmadas pelas câmeras da TV, revivem o tempo passado com
saudosismo e conformismo, brincam com suas perdas, remontando à época de
glória e glamour. No presente, Marcello como Mandrake e Anita com seus
cachorros, vivem na era da modernidade tentando se adaptar à realidade vigente.
O filme rapidamente retoma Cinecittà, logo nas cenas seqüentes, no estúdio
quatorze, onde iniciam-se os testes para o filme Amerika; as câmeras da TV
continuam assistindo a tudo com persistência, o palco móvel, as meras grandes
empurradas pelos assistentes; um mundo de ilusão cinematográfica que insiste em
existir. Maurizio explica aos japoneses que ali será o teste para as personagens de
Amerika, de Kafka. O ambiente do estúdio está compondo cenas do próprio filme. A
voz insistente de Fellini se destaca na grande confusão, em torno dos ensaios. Fora
deles, os atores dançam denunciando a alegria de fazerem parte de uma filme.
As cenas dos testes dos atores mostram a grande frustração dos artistas não
escolhidos se contrapondo à alegria dos contratados. Trabalhar no cinema é um
momento importante na vida de um ator ou de pessoas comuns que querem ter seus
quinze minutos de fama.
Nas cenas finais, vê-se o início da chuva durante as filmagens, o que obriga
a equipe a interromper as tomadas externas. Os refletores enormes começam a

quebrar e os cenários devem ser retirados. Anoitece e a alegria da equipe de
filmagens e atores continua, guardados embaixo de plásticos transparentes.
Uma bola de fogo é jogada e todos sabem que o inimigo está chegando. A
cena mostra várias antenas de TV que estão nas mãos de índios como armas. A luta
entre os índios e as pessoas determina o conflito entre a TV e o cinema. Como em
Prova d’Orchestra, com a grande bola maciça, o confronto é estabelecido aqui pelas
bolas de fogo. Nesse momento o embate não convence e, ao contrário de Prova
d’Orchestra, tudo parece uma grande brincadeira. Será que aqui Fellini não mais
acreditava na crise? A desordem estabelecida não podia mais dar conta do tamanho
da confusão. O cinema, a publicidade e a televisão não teriam mais como viverem
separadas. Fadadas à união, o conflito se transforma em contemplação.
Como em um circo, os trabalhadores do cinema atiram com espingardas nos
índios que trazem nas os antenas de TV. Embalados por uma música circense, a
mesma canção das cenas finais de I Clowns, os índios rodam em torno dos toldos
transparentes. A voz de uma personagem, ex-palhaço de circo, diz: Podem parar”.
Eles param e comentam a respeito das filmagens; felizes terminam de filmar o filme
de Fellini. Qual seria esse filme, Intervista? O filme dos japoneses? Ou o filme da
chegada de Fellini aos estúdios de Cinecittà?
As cenas continuam, nem todos esses filmes acabaram pois as filmagens
persistem. Nesse momento, todos se despedem, as luzes se apagam e, no estúdio
vazio vem a pergunta da voz-off:
O filme deve terminar assim? Na verdade terminou. Ouço as palavras de
um antigo produtor. Mas como vai terminar assim, sem um fio de
esperança? Sem um raio de sol, pelo menos me dê um raio de sol. Ele
implora ao final de cada filme. Um raio de sol, vamos tentar..... primeiro
take.
Intervista encontra sua forma mais realista para lidar com o incômodo
proporcionado pela TV e pela publicidade na era da modernidade. Parece que aqui,
nada mais poderá ser feito para resgatar o tempo passado. Inevitavelmente a TV e a
publicidade fazem parte da nova era do audiovisual contemporâneo. Sobra ainda a

Fellini o circo, a ironia e a comicidade para lidar com a pressão capitalista dos
tempos modernos.

Fig. 18.
Intervista

5.2 O confronto e a contemplação em La Voce della Luna
O romance de Ermanno Cavazzoni, O Poema dos Lunáticos, publicado em
1987, inspirou a realização do último filme de Fellini: La Voce della Luna. A
atmosfera lúdica e até mesmo nonsense do filme se forma na perspectiva onírica e
fantástica das personagens. Ivo Salvini é o protagonista, sendo, inclusive,
responsável por dar ao filme um tom misterioso, louco e desconexo. Embora La
Voce della Luna esteja embebido de elementos estranhos e aparentemente
inverossímeis, ele figura como um momento de lucidez perante o mundo moderno,
explicitado no modo com que o diretor relaciona as aparentes convicções do homem
atual às tradições e aos sentimentos mais profundos, confusos e inconscientes do
ser.
O filme aborda temáticas que foram elucidadas por Fellini, como: a
influência da cultura norte-americana, a modernidade e a presença massiva da TV
na sociedade italiana. A surpresa fica por conta da ousadia do diretor que, nesse
filme, enfatiza as tradições, os medos, os desejos, e os fascínios - temas tratados
em I Clowns - de maneira mais contundente, numa ótica mais fantástica, pessimista,
irônica e polêmica. Tudo isso sem abandonar o universo lúdico que é intensificado
pela presença de personagens enlouquecidas que pairam pelas ruas e penumbras
das cenas.
Em Intervista, por exemplo, essas temáticas tomaram um tom mais cômico,
numa atmosfera de alegria; em La Voce della Luna, a problemática está mais
associada à perda da poética e da aura da arte (BENJAMIN in LIMA:2000). A
loucura surge como uma forma possível para as personagens lidarem com o
descompasso entre os sonhos, a fantasia e a modernidade.
O filme se inicia com um tom misterioso. Na abertura, os créditos aparecem
com um fundo sonoro que mistura vozes do além, sinos de igreja, pancadas fortes,
pessoas falando e cantos de pássaros. Na seqüência, pode-se ouvir uma voz
dizendo: “Salvini, Salvini, Salvini ....” Terminam os créditos, a imagem de um poço
surge em meio à neblina e está Salvini, como em um quadro surreal que emerge
diante da tela. A atmosfera de sonho e fantasia mostra as divagações do

protagonista.
As cenas inicias do filme acontecem sempre numa perspectiva onírica e noturna.
Posteriormente, quando o dia amanhece aos sons dos sinos da igreja, a cidade é
vista na movimentação contínua de ônibus, vendedores ambulantes e escavadeiras
que trabalham nas reformas de alguns pontos da cidade. No centro, o caos urbano é
instaurado com vários acontecimentos simultâneos: turistas japoneses fotografam os
monumentos históricos e um suposto ex-enfermeiro do manicômio vende roupas
num toldo de uma van. As estátuas das Madonas são colocadas em um caminhão
para o padre levá-las a outros pontos da cidade.
[...] Algumas Virgens permanecem cobertas quase o ano todo, algumas
esculturas de catedrais góticas são invisíveis quando contempladas de
baixo. À medida que as obras de arte se emancipam de seu uso ritual,
tornam-se mais numerosas as ocasiões de serem expostas. Um busto pode
ser enviado daqui para lá; por isso, ele pode ser mais exposto do que uma
estátua de deus, que tem seu lugar marcado no interior de um templo. O
quadro pode ser exposto muito mais do que o mosaico ou o afresco que lhe
precedem. E, ainda que a missa talvez pudesse ser tão exposta quanto a
sinfonia, esta, entretanto, surgiu numa época em que se podia prever que
seria mais capaz de ser exposta do que a missa. (BENJAMIN in LIMA,
2000:231).
A religiosidade inserida no contexto urbano é o ponto de conflito tratado nessas
cenas das Madonas. Em primeiro plano, os turistas japoneses fotografam
compulsivamente a arquitetura da cidade; no plano de fundo, várias estátuas das
Virgens o colocadas em um caminhão. Nesse momento, o padre e um advogado,
que por ali passa, estabelecem uma discussão a respeito da fé.
De forma irônica, o advogado duvida das aparições das Santas e, ao observar
as estátuas das Virgens, juntas e iguais, no interior do caminhão, diz: Esse não é
um claro exemplo de que essas Virgens podem ser consideradas uma raça. Minha
tese não agradaria a Don Antonio (se referindo ao padre)”. Don Antonio responde:
“Um advogado tão sério como o senhor encontra divertimento falando essas
blasfêmias!” O advogado responde: Não é uma teoria blasfêmica ou sacrílega; eu
não disse “um povo” e sim, “uma raça”. Continua a questionar o padre: Elas

preferem os pastores e pastoras, aparecerem para os analfabetos e nunca para
pessoas intelectuais como eu, por exemplo, que lhes poderia fazer perguntas
sérias.”
O conflito se instaura entre a lógica do advogado e a religiosidade do padre,
completando-se com as cenas subseqüentes de uma mulher idosa que acompanha
uma dessas estátuas, que é carregada por um homem, e diz:Santa Virgem, ajude
meu sobrinho a encontrar um emprego!” O confronto das crenças e das classes
sociais é evidenciado nessas cenas e a ironia do advogado coloca em xeque a
figura mais intocável da religião católica: a Virgem Maria. As miscigenações de
costumes, crenças e valores anunciam a modernidade que se precipita. A estátua da
Madona não é mais uma escultura, uma obra de arte, é apenas uma reprodução que
denuncia a época da reprodutibilidade da arte, na qual a aura artística se degrada
mediante suas cópias. (BENJAMIN in LIMA, 2000).
Nas cenas da cidade, pode-se ver um aglomerado de pessoas que ficam
pelas ruas aparentemente sem propósito. Nesses momentos, se estabelece o
conflito entre as personagens lunáticas e as que vivem no mundo “real”, tanto nas
cenas noturnas quando nas diurnas. Nesse quadro, os desejos, os medos e as
tradições ora se contrapõem, ora se integram a elementos da modernidade,
instituindo uma lógica conflitante.
Em várias cenas do filme pode-se presenciar essa dualidade, como por
exemplo quando Gonnella, no intuito de mostrar a Salvini algo surpreendente,
caminha agachado pelo campo escuro coberto pelo mato. Salvini acompanha
Gonnella até avistarem um casarão abandonado, no qual pode-se ver luzes que
piscam. Eles se deparam com poças d’água e se veem num reflexo deformado de
uma enorme porta. Como numa aparição, uma discoteca surge com muitas luzes e
pessoas dançando freneticamente ao som ensurdecedor da música The Way you
Make me Feel, de Michael Jackson, hit da década de 80.
Uma pista enorme de dança, lotada com jovens entorpecidos pela música
pulsante, explicita a cultura norte-americana inserida na Itália. A personagem
Gonnella caminha perturbada pelo local, enquanto Salvini, sorridente, abraça os
jovens com carinho e ingenuidade. Nesse instante, Gonnella resolve adentrar na

gaiola dos DJs, pegando o microfone com rancor e chamando os jovens de
bárbaros, assassinos da música e detentores dos tambores do inferno; grita,
pedindo silêncio. Depois de expulso da gaiola pelos seguranças, ele caminha pela
pista sozinho, murmurando e questionando-se: será que esses jovens nunca
ouviram um som de violino? e continua dizendo; “Bailar é um vôo”, e com lágrimas
nos olhos completa: “Bailar é como viver a harmonia das estrelas numa declaração
de amor, um hino à vida”. Nessas cenas é evidenciada a dor da personagem que se
vê diante de um mundo do qual não consegue se inserir.
Na cena seguinte, surge a amada de Gonnella e, em meio ao tumulto de
jovens, vai se abrindo um grande círculo num silêncio profundo. Um enorme espaço
aparece na pista de dança. Ele sorri e pede a mão de sua companheira para bailar;
começam a dançar embalados por Danúbio Azul. A valsa de Strauss e a dança da
dupla não se efetivam como elementos geradores de choque ou de estranhamento
pelos os jovens; pelo contrário, configura-se como um momento de contemplação.
Essa cena demonstra que, apesar dos jovens não se rebelarem contra a música
erudita, também não parecem aptos a abrirem seus universos culturais a outros
estilos musicais.
Uma câmera circula pelos rostos dos rapazes e das moças que mascam
chicles com indiferença. Esse passeio mostra as vestimentas e os acessórios
utilizados por eles na década de 80, contemporânea ao filme. Sem nenhum aparente
conflito, eles batem palmas para o casal de bailarinos; o antigo e o novo convivem
na mesmo lugar. Ao final, a música dançante de Michael Jackson volta, encerrando
a cena. Fica e prevalece nos jovens a cultura norte - americanizada, própria da
modernidade na Itália.
Em contraposição a essas cenas, tem-se outras que retomam as tradições e a
poesia, como no flashback do casamento de Nestore; a noiva entrega
lembrancinhas a cada um dos convidados, agradecendo-lhes pessoalmente a
presença. As músicas da festa do casamento, somadas à comilança, fortalecem o
conceito de italianidade. O aspecto poético e idílico de La Voce della Luna é avivado
também pela personagem lunática de Ivo Salvini, que pensa ouvir a voz da lua pelos
poços perdidos, nos campos repletos de neblina. Ele também alimenta um amor

platônico pela bela Aldina, a representação da lua, prateada, fêmea, sedutora e
poética.
O protagonista o mundo de maneira diferente das outras pessoas, de um
jeito poético e particular. Enquanto sonha com o amor, Salvini conta com a voz da
lua para guiá-lo em suas aventuras.
A personagem vive num mundo restrito, cheio
de dúvidas, desejos e constrangimentos internos. Apartado da realidade e imerso
num mundo paralelo, ele é inspirado pelo mundo real.
Nas cenas da Festa dos Nhoques, tem-se o encontro das várias personagens
que se reúnem na cidade. Nessas cenas, pode-se constatar dois mundos: o “real” e
o lúdico. As personagens são envolvidas num cenário híbrido, composto por
elementos da modernidade, imbricados a costumes tradicionais como: chaminés que
soltam fumaça, outdoors escritos em inglês e pessoas que caminham com enormes
panelas na cabeça para fazerem comida. Nas mesmas cenas, convivem também
jovens vestidos com roupas extravagantes e modernas, as personagens lunáticas,
Salvini, Nestore, a mulher vestida de punk, Gonnella, e sua amada.
Esse universo de sonhos, de desejos internos e míticos, pode ser
evidenciado na cena em que Salvini acompanha alguns jovens para espiar, pela
fresta da janela, Ersilha, a tia de um deles, que se despe para a rapaziada. Ao invés
de Salvini sentir-se empolgado como os outros, começa a contar a história de Juno,
a esposa de Júpiter, que também tinha os peitos grandes como os daquela mulher,
e relata: “Um dia, quando Juno dormia debaixo de uma árvore, Hércules começou a
mamar, mamar e mamar nos peitos de Juno, até que ela acordou e seu leite
derramou por todo o céu, formando-se assim a Via Láctea”. Pode-se constatar como
a ingenuidade de Salvini se contrapõe à malícia dos outros jovens e,
conseqüentemente, como o mundo fantástico e mítico se difere do mundo “real”,
apesar de ser inspirado nele.
Em outras cenas também se evidencia a pureza das personagens lunáticas em
conflito com o mundo moderno, como as do professor de oboé, uma personagem
enlouquecida que mora em um cemitério. O sico se viu obrigado a enterrar seu
instrumento no quintal para se livrar de um mal que o acometia todas as vezes que
ele tocava um conjunto de notas: os móveis se movimentavam e as entidades

comilonas eram atraídas para a sua cozinha. Apesar de o professor ter obtido o
primeiro prêmio do Conservatório no qual lecionava, não pôde mais acreditar na sua
arte. Porém, mesmo enterrado, o oboé continuava a tocar e, por esse motivo, o
professor se viu obrigado a dormir em um cemitério, para se livrar da sua vocação e
de seu amor à música. O medo de lidar com a realidade vigente fez com que o
músico apelasse para a loucura. No cemitério, um repórter da TV insiste com o
músico para que ele relate os fatos, explicitando seus sinais de insanidade e
transformando os incidentes lamentáveis em interessante matéria jornalística.
Essa metáfora da desilusão do músico se articula com as cenas da discoteca,
construindo um sentido comparativo no qual a música erudita se esfacela perante a
concepção moderna da arte mercadológica; fato evidenciado em Prova
d’Orchestra. Em La Voce Della Luna, a loucura aparece como meio de driblar a dor
do músico.
A televisão acompanha todas as cenas, desde a festa até o final do filme. Nos
preparativos para o concurso de comilões, os repórteres da TV entrevistam políticos
a respeito da festa e da importância da tradição que sobreviveu mais de127 anos. O
repórter pergunta como eles, os políticos, encaram os protestos dos trabalhadores
dos moinhos de farinha e completa perguntando se eles podiam esperar alguma
inovação na festa daquele ano. As perguntas não são respondidas e os repórteres
continuam fazendo a cobertura da festa. A televisão tenta dar conta da profusão de
elementos e, perdida em meio a tudo, não se dispõe a responder nem às próprias
perguntas elaboradas por ela. A festa tradicional é usada pelos políticos como forma
de enaltecê-los, perdendo seu propósito principal de conservar os costumes e
crenças locais.
Nessa confluência de eventos evidencia-se o mundo de Ivo Salvini e de todas
as outras personagens que vivem em um universo paralelo. Durante o percurso de
sua caminhada, Ivo encontra-as espalhadas no dia ou na noite da cidade, sempre
inseridas na sociedade e ao mesmo tempo alienadas: o professor de oboé, o senhor
Gonnella, Nestore, o ex-enfermeiro do manicômio, a mulher vestida de roupas
pretas e cabelos curtos, Terzio e o homem do buraco (irmão de Terzio).

Salvini, então, percebe uma semelhança entre o mundo dessas personagens
que vivem à margem da sociedade e o homem moderno que, muitas vezes, luta por
sobreviver num mundo que o agride. Todas elas revelam a crise de identidade
sofrida por esse novo homem quando o mesmo não se adéqua ao mundo social, de
forma a explicitar a incongruência do sonho, do lúdico e da poesia com o cotidiano.
O pensamento de algumas dessas personagens se refere à lua, pois acreditam ser
ela a culpada de haver poesia, música, amor e, conseqüentemente, a loucura. A
personagem Terzio acredita que, se aprisionar a lua, esses sentimentos humanos
deixarão de existir, pois, no mundo atual, não lugar para os sentimentos
provocados por ela.
Em uma das cenas, Salvini enfim atende o chamado do poço. Muitas
pessoas o rodeiam enquanto ele está imerso em suas divagações. Aparece Terzio,
que saúda Salvini com alegria e amizade e convence-o a sair dali. As pessoas que
moram nas imediações estão para compartilhar com Salvini esse momento de
declaração de suas aflições. Suas palavras são um grito de dor perante seus
temores; no discurso emocionado, diz que seguiu o pedido do poço e, entrando nele,
sentiu que poderia libertar-se da agonia de ignorar o seu chamado. No entanto, o
sentimento de dor, desolação e obscuridade prevaleceu na visão de um mundo
injusto e cheio de ofensas. Como exemplo, Salvini cita a dor de Aldina, linda, bela,
além de uma pessoa ingênua que foi pega pelo mal. Acredita que Aldina está
envolvida demais com o mundo “real” e conseqüentemente deixa para trás os
sentimentos mais puros.
O mal do qual Salvini se refere está relacionado à sua amada ter sido capturada
pelo mundo “real”, aquele com o qual sente-se distante e incomodado. A bela Aldina,
não pode mais compartilhar com Salvini seus sentimentos, pois ela agora faz parte
de um outro mundo. Surge aqui um conflito de propósitos entre o mundo de Aldina e
o de Salvini.
uma cena que Salvini está na casa de sua Irmã, à noite, no quarto; senta-se
na cama e, ao lado um boneco do Pinóquio, em pé, faz referência a sua ingenuidade
de menino. Nesse momento ele começa a ouvir ruídos e, abrindo a porta, um
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quarto grande e abandonado. Nestore está sentado na janela e conta para Salvini o
grande acontecimento: o aprisionamento da lua.
A essa altura, na cidade, programou-se um grande evento com o intuito de
arregimentar as autoridades e reverenciar a nova emissora de TV. Nestas cenas,
descritas a seguir, o conflito se instaura quando o mundo ingênuo e dos sonhos
entra em contato com o universo “real” da cidade.
Muitas pessoas correm em direção ao centro para presenciarem esse momento
inesquecível. As câmeras de TV cobrem os acontecimentos da praça principal da
vila, e o repórter anuncia, diante das câmeras, o imprevisto acontecimento com
firmeza e autoridade. Ao lado da igreja, totalmente iluminada, foram armadas duas
grandes telas que transmitem para todos da cidade, ao vivo, as imagens da reunião
das autoridades a respeito do aprisionamento da lua. Algumas das autoridades mais
importantes do país estão presentes: o governo, representado por um ministro; a
igreja, na figura do Monsenhor Degli Esposti, e a mídia, representada pelos donos
da grande emissora de TV.
O jornalista anuncia o grande furo de reportagem: Terzio e seu irmão (os irmãos
Micheluggi) aprisionaram a lua. Fica explícita a intenção de tal ação, ao prenderem a
lua, os irmãos poderão se libertarem de seus sentimentos mais puros; motivo de
sofrimento para ambos e também para as personagens lunáticas. Pegos, eles
confessam o fato absurdo, justificam dizendo que a lua sempre os vigiava. Terzio
explica a facilidade que teve para agarrá-la, dizendo: Como toda mulher, ela
queria ser conquistada, foi necessário apenas mandar-lhe beijos e ela se derreteu e
caiu na grua”.
Os jornalistas tiram fotos em meio ao tumulto. Um homem questiona o
Monsenhor na tentativa de entender o motivo pelo qual a lua veio à terra, o religioso
responde que a lua nada teria para fazer nesse mundo. Sua resposta segura, fria e
tranqüila é um ponto de estranhamento dessas cenas. Sem se preocuparem com o
fatídico acontecimento, tanto os religiosos, os políticos, como o dono da emissora,
só querem mesmo aparecerem na TV, assim, desta forma, o evento se torna fake.
Pensando-se na relação existente entre os filmes de Fellini de finais da
década de 80 (em ordem de produção, Ginger e Fred, Intervista e La Voce Della
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Luna), percebe-se que, apesar de terem sido realizados para o cinema, dialogam
com questões relacionadas à inserção da TV como meio de comunicação de massa.
A publicidade também é um ponto a se considerar pois ela é a forma utilizada pela
orientação mercadológica capitalista para adquirir ganho. Fellini acena com esse
tema, mostrando as relações de poder inerentes a esse contexto comunicacional.
Os magnatas da televisão em geral têm o monopólio da mídia televisiva, resolvendo
entre si, o que deve ou não passar na programação e de que maneira devem
conduzir as abordagens dos fatos.
A história da televisão mostra que, desde sua utilização nos regimes nazistas
e fascistas, ela sempre foi usada como máquina de condução das idéias. Foi
manipulada por esses regimes, desde a década de 1930, como forma de
propaganda política e persuasão, servindo inclusive para desarticular o povo. O
espetáculo eletrônico, em rede internacional e espalhado por todo o cio, como foi
dito ao final de Ginger e Fred, é o indício do processo de globalização.
Se em Ginger e Fred os espetáculos populares foram agregados aos
programas, evidenciando a necessidade de a televisão reformulá-los para “caber” no
formato dessa mídia, em Intervista se a facilidade de se produzir TV com
câmeras mais simples, luzes mais fáceis de conduzir e propósitos mais superficiais.
O espetáculo das cadas de 1940, mostrados nas cenas de flashback do
filme Roma, por exemplo, destoam dos espetáculos televisivos presenciados em
Ginger e Fred. Em La Dolce Vita, as reportagens sensacionalistas, realizadas por
Marcello, retratam também a estética da reportagem jornalística; nestes, muitas
vezes, o ambiente bizarro é forjado na utilização de pessoas, que muitas vezes não
têm consciência de sua exposição, para construir um espetáculo de aberrações,
evidenciando as mazelas do povo. Esses componentes “reais” do cotidiano são
aproveitados por alguns programas e reportagens jornalísticas, expondo inclusive, a
inocência das pessoas comuns (não artistas ) perante a hegemonia da TV.
Portanto, a concepção de espetáculo das décadas de 40, 50 e 60 não possui
a mesma abordagem que se configurou a partir do advento da TV como meio de
comunicação de massa. Os loucos de La Voce della Luna vivem num mundo
paralelo, sem os mesmos propósitos consumistas do restante da população. Os
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artistas do teatro de variedades ou mambembe tinham consciência de seu estado de
arte, da utilização de seus corpos, como ocorria no circo, com as anomalias
genéticas, a mulher barbada e os anões. Eles possuíam, naquele momento, a
intenção de se valerem do corpo como forma espetacular; havia um querer
espontâneo em suas exposições. A situação altera-se significativamente nas cenas
do programa “Com Vocês”, em Ginger e Fred, quando a dupla, dançando o tip-tap, é
ridicularizados no momento que Fred se desmonta no chão. Essa imagem é
aproveitada pela TV como forma de IBOPE, desconsiderando totalmente o livre
arbítrio dos artistas e alienando-os de sua vontade de exibição.
A dificuldade em se estabelecer um patamar de discussão para os impasses
da sociedade em relação a mídia televisiva é mostrada nas cenas em que a lua foi
aprisionada. Esse é o ápice em que se constata que todas as personagens vivem
em mundos separados e com propósitos distintos. Portanto, efetiva-se a inexistência
do diálogo entre os diferentes universos.
A imagem projetada da lua em uma grande tela, colocada no centro da
cidade, mostra ela amarrada como uma prisioneira. O fato estimula uma reportagem
sensacionalista da TV. O que fazer para a arte, o poético, o lúdico se unirem às
indústrias, à era eletrônica e, por fim, à era digital? Nenhum personagem ou situação
do filme tenta responder essa questão. A crise se precipita quando um homem,
indignado com o acontecimento da lua, resolve atirar na tela, furando-a. Depois
desse tiro, o caos se estabelece, todos fogem e nada é articulado ou discutido.
A televisão aparece como cúmplice do caos, como se pôde evidenciar
também em Prova d’Orchestra. A loucura, o mundo dos sonhos e do inconsciente
coletivo, dos desejos, do amor e da poesia estão representados nas personagens
lunáticas. Sobretudo, Salvini que não está só, e isso é um dado significativo, pois
seus companheiros compreendem-se uns aos outros, estruturando uma lógica
interna entre as personagens.
Parece haver um grau de loucura em que ainda provoca-se o sofrimento e um
outro, no qual a alienação supera a dor. Nas cenas finais, Salvini presencia a dança
das personagens punk e Angelino. Os dois bailam felizes e tranqüilos na noite
enluarada, ingênuos, felizes e alienados. Depois de ouvir a voz da lua, Salvini
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caminha novamente em direção ao poço e diz: Se todos nós pudéssemos fazer um
pouco de silêncio poderíamos compreender qualquer coisa.”
Em La Voce della Luna, Fellini questiona como a fantasia, a poesia, o sonho,
a música, o silêncio, a tradição e a cultura poderão conviver com o barulho do
trânsito, a música eletrônica, os jovens nos fast-food, as propagandas em outdoors e
na televisão. Esses elementos denunciam a poesia e a imaginação em confronto
com o caos e a rapidez da modernidade. A dor de Salvini e de seus companheiros
reflete a frustração do homem sensível perante as mudanças impostas pelo mundo
moderno.
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Fig. 19.
La Voce della Luna
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Fig. 20.
La Voce della Luna
Fig. 20.
La Voce della Luna
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CONSIDERAÇÕES FINAIS:
A presente pesquisa propôs um processo reflexivo sobre a evidência de uma
reestruturação da estética fílmica felliniana a partir do filme Block-notes di un Regista
(1969), realizado para a televisão. Como dito anteriormente na introdução, o objetivo
primordial era analisar e problematizar a influência desse primeiro filme de Fellini
para a TV, em sua linguagem cinematográfica, efetivada primordialmente a partir da
inserção de elementos de estética documental e televisiva.
É também de extrema importância lembrar que essa reorganização criativa no
conjunto da obra felliniana não descarta as características mambembes, circenses e
populares que, até o marco inicial considerado, serviram de mote central para seus
filmes. Esse processo analisado transcorreu simultaneamente e, na maioria das
vezes, simbioticamente às questões do espetáculo popular como forma de
expressão e consolidação de uma estética própria.
A primeira parte da tese demonstrou justamente como se deu o nascimento
dessa forma específica à Fellini de fazer cinema. Distanciando-se dos cineastas
neo-realistas, o diretor estabeleceu seu próprio estilo, caracterizado pela utilização
da arte popular (fotonovela, teatro mambembe e de variedades, circo) como meio de
narrar as dores do pós-guerra e expressar uma crise existencialista que pairava
sobre o ambiente italiano. Nesse período, compreendido pelos filmes Luci Del
Varietà, La Strada e Lo Sceicco Bianco, edificou-se uma preocupação com questões
humanísticas, que seria recorrente em toda sua obra posterior.
Enraízou-se a preocupação de Fellini com as modificações sofridas pela
identidade italiana, mais especificamente, e pelo ser humano, mais abstratamente,
decorrente das contingências temporais. A partir dessa perspectiva, a tese propôs
indagar de que forma, no período estudado, Fellini encontrou respostas para uma
conjuntura de avanço dos elementos tecnológicos comunicacionais, intimamente
ligados à estrutura tempo presente tempo passado. Fellini, ao invés de negar esse
notável engrandecimento da mídia televisiva, incorporou à sua estética e,
posteriormente, à sua temática (roteiro), características marcantes dessa nova mídia
que se consolidava no solo italiano.
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A segunda parte da tese focou essa reestruturação da linguagem felliniana,
ressaltando a utilização de elementos de estética televisiva e documental. Tendo
esse fato como eixo central, o capítulo teceu considerações transversais que ajudam
a compor o cenário e o contexto da produção felliniana desse período.
Diferentemente de outros diretores que produziram para televisão naquele momento
(Ingmar Bergman, Jean-Luc Godard, Roberto Rossellini, entre outros), Fellini não
quis tornar uma tarefa constante produzir para a TV. Suas incursões nesse campo,
apesar da importância da oportunidade de comunicar-se com o grande público,
tiveram menos uma intenção definida de ocupar um espaço na programação do que
transformar a televisão numa personagem desses filmes. Dessa forma, ele se situa
em uma linha limítrofe, onde critica e ironiza a TV através dela própria. Nesse
sentido, a discussão proposta acerca da história do documentário e da ficção e, mais
globalmente do cinema em si, se encaixa nesse contexto, justamente por trazer a
dissolução das divisões estanques de gênero.
Discutiu-se nessa parte como os encantos do cinema muitas vezes se
sobrepõem à divisão em gêneros, sendo a representação a grande condensadora
dessas pretensas divisões. Em Fellini é notório o alimento da fantasia como
combustível para a criação de um cinema híbrido, tanto em sua produção quanto em
sua temática. Nesse sentido, o diretor consolidou uma convergência dos meios
nesse período estudado, promovendo uma dissolução das barreiras entre cinema e
televisão, documentário e ficção, real e representação, presente e passado. Todas
essa questões surgiram em sua produção felliniana pós–Block-notes, que se utiliza
livremente de técnicas televisivas e documentais, associadas a uma abordagem
reflexiva e existencialista da relação entre passado-presente na realidade social
italiana.
Dessa forma, ao mesmo em tempo que Fellini incorporou em sua produção a
transformação modernizante, conversando com a voga televisiva emergida em Itália,
manteve sua preocupação primordial em tematizar as questões humanas,
associadas a uma reflexão sobre a identidade italiana. Sem criar juízos de valor, os
filmes feitos para o cinema, com temática televisiva explicitam o conflito inerente a
essa hibridização crescente.
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A terceira parte da tese investigou como Fellini tratou a televisão em seus
filmes realizados para o cinema no período estudado (Ginger e Fred, Intervista, La
Voce della Luna), identificando a inevitabilidade do processo de modernização
comunicacional, essencialmente importada dos Estados Unidos. O diretor propôs
uma visão do confronto unificador entre o cinema, o espetáculo popular, a poesia e a
televisão, explicitando os entrechoques entre esses elementos distintos em sua
origem que, arrastados pela força da mídia televisiva, passam a compor uma
confluência de propósitos.
O filme Intervista coloca-se como um caso especial nessa última fase de
Fellini, configurando-se como uma homenagem ao cinema, construída a partir de
uma linguagem ficcional, documental e televisiva. Lançando mão de uma forma
totalmente livre e experimental, o filme é paradigmático por trazer à tona questões
postas em filmes anteriores, mostrando sem nenhum empecilho os bastidores do
cinema e da TV. Marcado pelo seu imaginário mais aguçado e espirituoso, Intervista
colocou em primeiro plano a inevitável convergência dos meios e como os
envolvidos na produção cinematográfica e televisa conviviam com esse fato.
Dessa forma, Fellini, sempre trilhando um caminho peculiar, absorveu as
transformações impostas pela modernização cnica e estética do audiovisual para
seguir fazendo cinema. Sem deixar de lado o espetáculo popular, ele incorporou a
estética televisiva e documental em seus filmes, assumindo assim a televisão como
mais uma forma de espetáculo popular.
Concluindo, Fellini agregou a televisão à sua sempre clowesca e fantástica
obra, que se efetivou na confluência entre espetáculo popular e cinema, ficção e
documentário, passado e presente, configurando-se, enfim, como um grande circo
eletrônico nas telas do cinema.
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