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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
LEIBNIZ, O INDIVIDUAL E SUAS FISSURAS
Reflexões sobre o Discurso de metafísica e a filosofia pré-monádica
DANTE CARVALHO TARGA
Orientador
Marcos J. Müller-Granzotto
Florianópolis, 2009
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DANTE CARVALHO TARGA
LEIBNIZ, O INDIVIDUAL E SUAS FISSURAS
Reflexões sobre o Discurso de metafísica e a filosofia pré-monádica
Dissertação apresentada ao programa de Pós-
graduação em Filosofia da Universidade Federal
de Santa Catarina como requisito parcial para a
obtenção do grau de mestre em filosofia sob a
orientação do Prof. Dr. Marcos José Müller-
Granzotto.
Florianópolis, 2009
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Aos meus pais, Kiko Targa e Sandra Moreira de Carvalho, pelo constante incentivo e
apoio material à realização deste.
À minha esposa, Narāyana Parāyana, pelo companheirismo e tolerância às tensões,
instabilidades e incontáveis horas de dedicação exclusiva à pesquisa.
Em memória de meu irmão, Luiggi Carvalho Targa.
AGRADECIMENTOS
À minha esposa Narāyana, que presenciou de perto todas as etapas de
desenvolvimento desta pesquisa; pelo seu amor e tolerância à inevitável dose de mau humor
demandada por um trabalho deste porte (valeu Naná!).
Aos meus pais, Antônio Francisco T. Targa (Kiko) e Sandra Moreira de Carvalho, pelo
apoio constante em todas as etapas de minha vida e aos diversos empreendimentos paralelos.
A Dhanvantari Swami Maharaj, Srila Gurudeva, por suas instruções e incentivo ao
meu ingresso no curso de mestrado.
Ao professor Marcos Müller-Granzotto, orientador desta pesquisa, pela atenção, pela
crítica sempre perspicaz e construtiva, e pelo espaço para que minhas idéias pudessem
encontrar seu próprio rumo.
Ao professor Luiz Felipe Ribeiro e ao colega Adiel Mittmann, pelas valorosas horas de
tradução dos textos em grego, e também de filosofia na prática.
À professora Viviane de Castilho Moreira da UFPR, pela pronta atenção e auxílio com
o trabalho acerca das Correspondências entre Leibniz e Arnauld.
Ao professor Adelino Cardoso, da Universidade de Lisboa, pela disponibilidade em
discutir minhas idéias e partilhar seus estudos, tão importantes para a realização deste
trabalho.
Ao CNPQ, sem cujo apoio financeiro esta pesquisa não poderia ter sido levada à cabo.
Ao programa de Pós-graduação em Filosofia da UFSC e todos seus professores e
funcionários.
A todos os colegas e companheiros de caminhada acadêmica.
RESUMO
TARGA, D.C. Leibniz, o individual e suas fissuras. Florianópolis, 2009. 140 p. Dissertação
(Mestrado em filosofia) Departamento de Filosofia, Centro de filosofia e ciências humanas,
Universidade Federal de Santa Catarina.
Este trabalho aborda a filosofia pré-monádica de Gottfried Wilhelm Leibniz
(1646,1716), isto é, o período de seu pensamento anterior à escrita da Monadologia,
demarcado pelo Discurso de metafísica (1686) e pela subseqüente troca de correspondências
com Antonie Arnauld (1686-1688). Enfocando especificamente o desenvolvimento da teoria
leibniziana da substância, trata-se de apontar a perspectiva ontológica característica desta fase
do pensamento do autor (aqui denominada como perspectiva individual), bem como os termos
de sua superação em face da introdução da tese monadológica. Frente ao cenário filosófico do
final do séc. XVII Leibniz encontra outro viés para pensar o conceito de substância. O aspecto
da completude instaura a dimensão do indivíduo como fundamento indispensável à
determinação real de um ser enquanto tal, introduzindo em sua noção a extrema variedade e
particularidade das verdades contingentes. Em outras palavras, a plena determinação de uma
substância se faz pela indissociável referência aos seus caracteres singulares e ao próprio
mundo a partir do qual estes se originam. Num primeiro momento, entretanto, este passo se
encontra como que impregnado de cartesianismo; condicionado à implícita associação entre a
concepção metafísica da substância e a vigência de um eu, uma vez que o Discurso enfoca o
contexto propriamente humano associando a individualidade substancial aos atributos
relacionados à potencialidade reflexiva da alma racional. A perspectiva individual se refere,
portanto, a um modo específico de apreensão do real que orienta e direciona a concepção
leibniziana de indivíduo e, conseqüentemente, de substância. Ora, a implementação do
domínio monádico, por outro lado, corresponde proporcionalmente à gradual dissociação
entre a natureza metafísica da substância e a idéia de transparência das representações.
Contextualizar e compreender os primeiros passos desta empreitada constitui o propósito final
desta dissertação.
PALAVRAS-CHAVE
Leibniz Discurso de metafísica Substância Individual Correspondências com
Arnauld — Forma substancial
ABSTRACT
TARGA, D.C. Leibniz, o individual e suas fissuras. Florianópolis, 2009. 140 p. Dissertação
(Mestrado em filosofia) [Leibniz, the individual e his clefts]. Departamento de Filosofia,
Centro de filosofia e ciências humanas, Universidade Federal de Santa Catarina.
This work is concerned with the pre-monadic philosophy of Gottfried Wilhelm
Leibniz (1646–1716), that is, the period of his thinking prior to the writing of the
Monadology, delimited by his Discourse on Metaphysics (1686) and his subsequent letter
exchange with Antonie Arnauld (1686–1688). By focusing specifically on the development of
the Leibniz's theory of substance, the work seeks to pinpoint the ontological perspective
which is characteristic of this phase of his thinking (here named as individual perspective) as
well as the terms of its overcoming with the introduction of his monadological theory. In face
of the philosophical background of the late seventeenth century, Leibniz finds another
standpoint to think the concept of substance. The aspect of completeness establishes the
dimension of the individual as the indispensable foundation for the real determination of a
being as such, thus introducing in its notion the wide variety and particularity of the
contingent truths. In other words, the full determination of a substance takes place by the
indissociable reference to its singular features and to the world itself from which they
originate. Firstly, however, this step stays as if pervaded by cartesianism, dependent on the
implicit association between the metaphysical conception of substance and the existence of a
self, since the Discourse focuses on the properly human context by associating the substantial
individuality with the attributes related to the rational soul’s reflexive potential. The
individual perspective relates, therefore, to a specific way of apprehending the real which
orients and directs the leibnizian conception of the individual and, consequently, of the
substance. Hence, the implementation of the monadic domain, on the other hand,
proportionally corresponds to the gradual dissociation between the metaphysical nature of the
substance and the idea of transparency of representations. To contextualize and to
comprehend the first steps of this undertaking constitute the ultimate purpose of this work.
KEY-WORDS
Leibniz Discourse on Metaphysics Individual substance Correspondence with
Arnauld — Substancial form
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.........................................................................................................................1
CAPÍTULO I: O CONCEITO DE SUBSTÂNCIA E O DISCURSO DE METAFÍSICA
1 Substância em Leibniz...........................................................................................................8
1.1 Substância e a modernidade................................................................................................10
1.2 Substância em Leibniz........................................................................................................16
2 Substância individual...........................................................................................................21
2.1 Substância individual e noção completa.............................................................................22
2.2 Completude e individualidade............................................................................................29
3 As formas substanciais.........................................................................................................34
3.1 A forma Substancial e a filosofia mecanicista....................................................................36
3.2 Forma substancial, substancialidade e unidade...................................................................40
CAPÍTULO II: A PERSPECTIVA INDIVIDUAL
4 As distinções entre os seres e a alma dos irracionais.........................................................46
5 A perspectiva individual......................................................................................................53
5.1 O individual no Discurso de metafísica..............................................................................53
5.2 Substancialidade, individualidade e humanidade...............................................................56
CAPÍTULO III: UM OLHAR SOBRE AS CORRESPONDÊNCIAS COM ARNAULD
6 - 1ª Fase — Substância individual, contingência e ipseidade...........................................62
6.1 Contingência e individualidade..........................................................................................63
6.2 Ipseidade e individualidade.................................................................................................69
7 - 2ª fase — Forma substancial e as fissuras do individual................................................74
7.1 Substância corpórea e a alma dos irracionais......................................................................78
7.2 Verdadeira unidade e a essência do individual....................................................................86
8 O individual e o monádico...................................................................................................93
8.1Corpo e alma........................................................................................................................93
8.2 Substancialidade e agregação............................................................................................101
8.3 Individualidade, personalidade e a introdução do monádico............................................107
CONCLUSÃO.......................................................................................................................126
REFERÊNCIAS......................................................................................................................141
INTRODUÇÃO
Dado o percurso total do pensamento de G. W. Leibniz (1646-1716), o presente
trabalho remete ao período da escrita do Discurso de Metafísica (1686), que antecede o estado
final de sua filosofia popularmente conhecido como o “sistema das mônadas”. A despeito de
ter realizado grandes descobertas no campo das ciências matemáticas e da lógica, sendo
também conhecido e louvado como espírito universal da cultura e célebre diplomata, Leibniz
sempre fundamentou suas idéias em concepções de cunho metafísico. Mesmo quanto à
descoberta do cálculo diferencial integrado, uma das mais aclamadas contribuições à ciência
de seu tempo, o autor parte de uma colocação metafísica introduzindo a noção de quantidades
infinitamente pequenas.
1
É também em defesa da metafísica que Leibniz se insurge contra a
física cartesiana e a conseqüente tendência materialista assumida pelo mecanicismo moderno,
reivindicando assim a imprescindibilidade do recurso a um princípio imaterial para explicar a
origem do movimento nos corpos. Ora, é no centro desse debate com a nascente filosofia
moderna que a teoria leibniziana da substância, fruto de mais de vinte anos de reflexão, será
apresentada no Discurso de metafísica a partir do conceito de “substância individual”
estabelecendo um domínio teórico peculiar e ainda distinto da tese monadológica que
caracteriza o estado final da filosofia do autor. Especificamente a constituição deste domínio e
as etapas que precedem e preparam a passagem da filosofia leibniziana ao âmbito monádico é
o que, no presente trabalho, se pretende enfocar sob o título Leibniz, o individual e suas
fissuras.
Por muito tempo a interpretação dominante da filosofia Leibniziana foi a dos
pioneiros Couturat (1868-1914) e Russell (1872-1970), cuja principal tendência foi
compreender o pensamento de Leibniz como resultado do desenvolvimento de sua lógica.
Ainda que diferindo nos detalhes, ambos se empenharam numa interpretação da Monadologia
a partir da definição lógico-proposicional da substância individual apresentada por Leibniz em
1686, enfatizando sobretudo o princípio da razão suficiente como condição necessária para a
verdade. Sob tal influência, grande parte dos estudiosos que se seguiram procurou de algum
modo responder às questões delimitadas a partir deste enfoque, mantendo em segundo plano
outros aspectos fundamentais do pensamento leibniziano, dentre os quais se incluem as
1
Cf. Chauí (1979, p.94).
1
questões ontológicas suscitadas pelo amadurecimento de sua teoria da substância, que aqui se
pretende abordar. Segundo Rutherford e Cover (2005, p.3), entretanto, nos últimos trinta anos
houve uma espécie de renascimento nos estudos sobre Leibniz, onde os pesquisadores
passaram a adotar novas abordagens e a considerar outros pontos de sua filosofia. Desde então
a corrente imagem da filosofia de Leibniz como um sistema imutável, do qual as diversas
obras o representariam senão diferentes estados de elaboração, tem sido cada vez mais
rejeitada e muitos comentadores têm freqüentemente voltado sua atenção para os diferentes
estágios de desenvolvimento das idéias leibnizianas. Em Da substância individual à mônada,
por exemplo, Fichant propõe que se considere a alteração conceitual entre o Discurso de
metafísica e a Monadologia como o signo de um desenvolvimento determinante na teoria
leibniziana da substância:
Uma tal indiferença à cronologia e ao contexto conduz a apagar a
singularidade dos textos e a anular a tensão que anima o perpétuo devir do pensamento
de Leibniz. Discurso e Monadologia oferecem, nas duas extremidades de sua
trajetória, os termos de uma experiência decisiva. (2001, p.12)
Com efeito, mesmo uma brevíssima confrontação entre as duas obras em questão é
capaz de apontar diferenças fundamentais entre seus respectivos conceitos, conduzindo-nos a
rejeitar a hipótese de uma simples adaptação terminológica, conforme propunham os
comentários tradicionais. No texto de 1686 Leibniz define o conceito de substância
fundamentando-o logicamente a partir da relação proposicional sujeito-predicado. Enfatizam-
se ali as substâncias individuais como seres complexos cujo conceito ou noção completa deve
encerrar todos os seus predicados ou acontecimentos demarcando-as em sua singularidade.
Sua aplicação compreende mais diretamente os seres humanos tomados enquanto espíritos
racionais, ao passo que a reflexão sobre a natureza corpórea e o estatuto ontológico dos
demais seres fica a cargo da forma substancial, conceito que o autor retoma da filosofia
escolástica conferindo-lhe novo tratamento a fim de designar nas substâncias em geral um
princípio metafísico de ação anteriormente rejeitado pelo mecanicismo. Na Monadologia, por
outro lado, trata-se das substâncias simples definidas pela verdadeira unidade, simplicidade e
inextensão. Tais substâncias simples ou mônadas referem-se a todas as criaturas existentes
constituindo-as enquanto a unidade última da realidade, da qual tudo mais se compõe à
maneira de agregação. Seu principio intrínseco são as percepções, cuja variedade demarca os
diferentes níveis de perfeição entre os seres criados. Conclui-se, portanto, que nem os textos
2
supracitados podem ser tomados indiscriminadamente quanto ao contexto e a cronologia em
que se enquadram na filosofia de Leibniz, nem os conceitos de substância individual e
mônada apresentam uma identidade plena que dispense maiores considerações.
Mas se é um fato que a filosofia de Leibniz em seus últimos trinta anos não deve ser
considerada como um sistema fechado, alguns comentadores, por outro lado, ao considerar os
primeiros escritos do autor admitem ao menos duas fases distintas de seu pensamento,
anteriores à data da escrita do Discurso de metafísica. Mercer e Sleigh (1995, p. 76 e 95), por
exemplo, argumentam que ao romper com o mecanicismo moderno em 1669, Leibniz
passou a procurar por alguma espécie de princípio incorpóreo que pudesse ocupar o lugar de
Deus como causa do movimento; e que por volta de 1676, algumas importantes doutrinas
leibnizianas, tais como a da harmonia preestabelecida e a idéia de que cada substância
expressa todo o universo, já haviam sido por ele desenvolvidas. Assim, ainda que descartada a
idéia da composição definitiva de um sistema filosófico de Leibniz a partir de 1686, tais
informações permitem considerar o Discurso como uma das primeiras expressões maduras de
seu pensamento, onde muitas das teorias centrais da Monadologia podem ser claramente
identificadas, indiciando os alicerces da filosofia das mônadas. Surge, portanto, a seguinte
questão: Afinal, se o Discurso de metafísica representa a maturidade das idéias leibnizianas
apresentando grande parte de seus principais pressupostos filosóficos, por que a tese
monadológica não se faz presente? O que precisamente afasta a substância individual da
concepção de substância simples ou mônada?
Admitindo a vigência de um percurso do pensamento de Leibniz cujo ponto final
consiste na elaboração definitiva do conceito de mônada, e que o último trecho desta jornada,
situado a partir da redação do Discurso de metafísica, representa de fato um momento de
transição fundamental na metafísica leibniziana, o presente trabalho se propõe a investigar as
condições que propiciaram tais mudanças e o seu caráter específico enquanto algo mais que
uma mera reviravolta conceitual. Por certo que o tema geral da gênese do conceito de mônada
tem merecido a atenção de vários estudiosos nas últimas décadas,
2
cujos trabalhos revelam os
detalhes, a riqueza e a complexidade de um pensamento em obra, onde, em meio a uma
armação teórica bem definida desde 1686, importantes transformações se impõem até as
redações finais datadas de 1714. Tais estudos nos permitem remontar em linhas gerais o
2
Para não me estender, cito como exemplos somente o artigo de Donald Rutherford: Metaphysics: The late
period (1995) E os trabalho de Michel Fichant: L’invention métaphysique (2004), ambos usados como
referências principais nesta dissertação.
3
roteiro destas transformações: I-No Discurso de metafísica a determinação lógica da
substância individual em conexão com a tese da completude de sua noção visa
prioritariamente às almas ou espíritos racionais, ao que Leibniz retoma o polêmico conceito
de forma substancial para afirmar um princípio metafísico para os corpos. II-O tema das
formas substanciais e a unidade metafísica dos corpos constituirá o centro da segunda etapa
das Correspondências com Arnauld (1686-88), onde Leibniz, instado a fornecer maiores
explicações diante das perspicazes objeções de seu interlocutor, será levado a repensar a
natureza das substâncias corporais e, em última instância, os fundamentos do próprio conceito
de substância. III-O Sistema Novo da Natureza e da comunicação das substâncias (1695) se
caracteriza então por um inovador tratamento para o conceito de substância, o qual será
doravante determinado como um princípio inextenso de força cuja marca é a atividade e
verdadeira unidade. Embora compreendido como substância simples e enunciado em seus
traços gerais, tal conceito ainda não recebe neste texto a denominação de mônada. IV-Por fim,
a Monadologia (1714) determina a substância como mônada, encontrando na expressão a base
da simplicidade de sua constituição e da variedade de suas modificações intrínsecas.
Dada a relevância deste desenvolvimento para uma compreensão mais acurada da
filosofia de Leibniz e a profundidade dos estudos realizados neste campo, trata-se aqui de
permanecer em seu estágio inicial e indagar: o que precisamente se encontra em jogo na
passagem da substância individual à mônada? Para além de uma mera divisão entre dois
períodos do pensamento do autor e seus conceitos predominantes, importa compreender que
fatores orientam e motivam a transição necessária de um plano conceitual ao outro. Ora,
sabemos que a noção de mônada e suas funções intrínsecas representam não um novo
léxico que tornará popular o pensamento leibniziano mas a conquista de outro ponto de
observação da realidade e dos elementos que a compõem, o qual em muito se afasta da
perspectiva delimitada anteriormente pelo conceito de substância individual.
3
Entretanto,
justamente esta perspectiva anterior, o contexto teórico frente ao qual o domínio monádico se
sobrepõe, merece ser explicitada e indica um caminho para pensar o conteúdo e o significado
do desenvolvimento final da filosofia de Leibniz. Ela será aqui denominada como perspectiva
individual: o âmbito ontológico que orienta a teoria da substância exposta no Discurso de
metafísica e cuja característica central é a preponderância da estreita relação entre uma noção
3
Partes-todo”, nas palavras de Martins, a mônada é a unidade fundamental de um “novo universo apresentado
pelo sistema leibniziano” (s.d. p.12) .
4
específica de indivíduo e a determinação da substancialidade. Delimitá-la em seus traços
fundamentais, compreender a sua influência na concepção leibnizana da substância até 1686 e
também os fatores que encaminham a transição ao âmbito monádico constitui então os
objetivos da presente investigação.
Muito além de uma tarefa meramente classificatória do pensamento de Leibniz,
afirmar o individual enquanto perspectiva ontológica significa compreender como, no período
que se estende até o Discurso, o acesso filosófico ao real e seus elementos constituintes, bem
como as teorias que se propõem a explicar esta conjuntura, se dão a partir de uma referência
predominante, a saber, a concepção da substância como um ser absolutamente individual
pensada a partir do ser humano enquanto modelo teórico, isto é, enquanto ser complexo
determinado em sua singularidade pelo traço reflexivo de suas representações. Neste contexto
a teoria leibniziana da substância revela seu derradeiro traço de cartesianismo ao associar a
idéia de indivíduo à vigência de um eu, direcionando assim as reflexões sobre a
substancialidade. Mas se a tese das noções completas aplicada aos espíritos racionais atesta a
presença implícita do pensamento como determinante substancial, ainda no Discurso a
reabilitação das formas substanciais rejeita a noção cartesiana de res extensa impondo à
natureza corpórea a demanda de um fundamento metafísico. Neste ponto as questões sobre a
natureza da alma, a determinação do estatuto ontológico dos seres irracionais e a posição do
caráter racional na concepção da substancialidade surgem ao mesmo tempo como fissuras na
perspectiva individual e indícios de um modo mais elementar de pensar a substância que
substitui a potência reflexiva pelo tema das percepções. As respostas ambíguas esboçadas pelo
Discurso apontam então para as Correspondências com Arnauld como o terreno de
experimentação doutrinal sobre o qual Leibniz será conduzido a transformar seu sistema
conceptual” (FICHANT, 2001, p.25).
Uma mudança de perspectiva, compreendida fisicamente, não é a mudança dos
próprios elementos componentes do campo de visão, senão que pelo cambio do ponto de vista
estes se mostram sob um novo ângulo revelando faces anteriormente ocultadas.
Analogamente, a despeito do estado maduro da formulação doutrinal oferecida por Leibniz no
Discurso, onde inclusive seu conceito de substância se encontra assentado sobre princípios
bem desenvolvidos, o conjunto de reflexões originado pelo confronto entre vias distintas de
apreensão da substancialidade conduz a um deslocamento significativo que determinará o
esboço e introdução de um novo plano ontológico; o domínio monádico. Em outras palavras,
5
não obstante o caráter específico da noção de substância individual e sua conexão com as
propriedades reflexivas inerentes à natureza humana, através das disputas com Arnauld a
proposta de generalidade ontológica sugerida pelo tema das formas substanciais será
redimensionada agregando ao âmbito corpóreo um fundamento metafísico baseado na noção
de verdadeira unidade e em seu caráter logicamente necessário frente à concepção dos corpos
enquanto agregados. É neste sentido que se pretende indicar uma possível resposta à questão
anteriormente colocada, pois a ausência da idéia de mônada no Discurso de metafísica e
textos contíguos não se justifica pela mera insuficiência terminológica ou de um léxico mais
adequado, mas sobretudo pela influência determinante da perspectiva individual sobre as
elaborações teóricas ali presentes. Trata-se de uma postura peculiar quanto à conexão entre o
caráter reflexivo e a individualidade no interior do conceito de substância, a qual impõe a
necessidade de uma ambivalência ontológica representada na distinção entre substância
individual e demais substâncias. Demonstrado este predomínio e influência da perspectiva
individual na filosofia pré-monádica, a presente dissertação terá então cumprido seu
propósito.
A fim de alcançar os objetivos supramencionados a metodologia da pesquisa se
estabelece da seguinte forma: Trata-se primeiramente de analisar conceitos centrais do
Discurso de metafísica tendo por diretriz a elaboração da substância individual, seus
pressupostos e implicações no interior do pensamento leibniziano. A contextualização do
conceito leibniziano de substância frente ao cenário da nascente filosofia moderna, os
pormenores da relação entre substância e completude, e a restauração das formas substanciais
constituem os temas do primeiro capítulo. Em seguida deve-se explicitar o predomínio da
perspectiva individual nesta fase da filosofia de Leibniz, seus traços gerais e fundamentos. A
questão das distinções entre os seres no Discurso e a explicitação da tácita associação entre
substancialidade, individualidade e humanidade integram o conteúdo do segundo capítulo.
Por fim, a reflexão sobre as Correspondências com Arnauld vem apontar as fissuras do
individual a partir da progressão do diálogo entre Leibniz e o teólogo francês. O
aprofundamento das reflexões sobre a completude da substância e sua relação com a
potencialidade reflexiva dos seres humanos, a gradual revisão da concepção de substância
corpórea e o surgimento do tema da verdadeira unidade, e os termos da introdução de uma
nova perspectiva ontológica a partir da idéia de verdadeira substância são os assuntos tratados
no terceiro capítulo.
6
Circunscrevendo-se à ontologia leibniziana, a presente investigação busca o equilíbrio
entre o trabalho analítico esperado de uma dissertação e o exercício crítico próprio da reflexão
filosófica. Neste sentido, trata-se de compreender diretamente as idéias de Leibniz pela
proximidade à letra de seu texto, enfocada a partir da chave de leitura fornecida pelo tema da
perspectiva individual. A prática filosófica se refere então à própria estratégia da pesquisa e
argumentação, ao passo que o trabalho dissertativo permanece estritamente localizado no
interior da filosofia leibniziana. Tal é o motivo das numerosas citações do Discurso de
metafísica e das Correspondências com Arnauld; um preço justo a ser pago pela tentativa de
clareza e rigorosidade. Em face da vasta literatura especializada, mas também da grande
diversidade de tendências interpretativas justificada pela própria riqueza e abrangência do
pensamento do autor, optei aqui por um esforço autônomo e até certo ponto intuitivo, ainda
que engajado numa consolidada linha de interpretação, conforme se aludiu acima. O recurso a
comentários selecionados, portanto, permanece como um indispensável auxílio e
embasamento teórico para o tema em questão, mas o como objeto da investigação em
termos de exegese filosófica; tarefa relegada a estudos posteriores. As referências das obras
do autor são feitas a partir das edições do Discurso e das Correspondências traduzidas para o
português e espanhol respectivamente por Marilena Chauí e Vicente Quintero. Todas as
traduções das citações de textos em língua estrangeira são de minha autoria. Por uma questão
de estilo, as citações no corpo do texto serão feitas em itálico. Os demais caracteres técnicos
seguem os padrões da ABNT .
7
CAPÍTULO I
O CONCEITO DE SUBSTÂNCIA
E O DISCURSO DE METAFÍSICA
— 1 —
Substância em Leibniz
A julgar unicamente pelo sumário do Discurso de metafísica talvez não hesitássemos
em classificá-lo como um escrito de cunho exclusivamente teológico, sem atentar para o fato
de que ali se encontram alguns dos principais pressupostos que sustentam a metafísica madura
de Leibniz. Tal como as considerações metafísicas permaneceram invariavelmente presentes
em todos os aspectos da filosofia do autor, na mesma intensidade o rigor da reflexão filosófica
o conduziu de forma recorrente a pensar a natureza divina e os princípios da religião,
associando à metafísica uma teologia natural.
4
Mas se a maioria de seus grandes
desenvolvimentos metafísicos foi motivada por questões teológicas, bem como parte das
doutrinas centrais do Discurso de fato aparecem como uma tentativa de resolver certas
polêmicas teológicas vigentes em sua época, ao ingressar em grandes debates sobre as
questões da e da razão Leibniz cada vez mais o fez através de suas próprias concepções
filosóficas. Assim, em consonância com as discussões sobre a origem do mal, a natureza dos
milagres ou a imortalidade da alma, surge, indissociavelmente, uma autêntica teoria da
substância que, ainda que se oponha ao cartesianismo, não propõe um mero retorno aos
antigos pressupostos da tradição, senão que os apreende numa nova acepção encontrando
soluções alternativas tanto para as questões ontológicas postas pela nascente filosofia
moderna, quanto para os problemas teológicos que surgem a partir do confronto com a
perspectiva introduzida pela nova ciência.
4
Eu reconheço que a metafísica não é muito diferente da verdadeira lógica (...) pois, com efeito, a metafísica é
a teologia natural, e o mesmo Deus que é a origem de todos os bens, é também o princípio de todos os
conhecimentos.” (LEIBNIZ. Apud Fichant, 2004, p.23)
8
Em 1668 Leibniz dera início a um ambicioso projeto teológico intitulado
Demonstrações Católicas, visando à conciliação entre fé e razão e a reunião entre católicos e
protestantes. Segundo Mercer e Sleigh (1995, p.68) tal texto permite sustentar que dezoito
anos antes da escrita do Discurso o autor tinha em mente alguns de seus princípios
metafísicos fundamentais e uma primeira noção de substância. Tais princípios teriam
permanecido como a base de sua filosofia para os anos subseqüentes, ao passo que a noção
original de substância vai sendo gradualmente revista e alterada pela retificação de
inconsistências que o próprio Leibniz veio a detectar em seu pensamento.
Contornando o
complexo tema do desenvolvimento inicial das idéias de Leibniz e suas relações com a
filosofia do Discurso de metafísica, basta aqui reter as seguintes informações: 1- Ainda que à
modernidade freqüentemente se atribua o início de uma cisão entre filosofia e teologia, no que
concerne ao pensamento leibniziano tais elementos permanecem unificados e, em muitos
momentos, indiscerníveis como aspectos separados. Sobretudo no Discurso, é por meio da
teologia que o autor lança as fundações de sua metafísica e, em contrapartida, os resultados ou
aplicações de seus princípios metafísicos o levarão à “novas perspectivas” para as polêmicas
teológicas.
5
2- discordando da proposta de uma ontologia orientada pela nova física, esta
unicamente fundada nas propriedades materiais dos corpos, tal como propunham Hobbes,
Gassendi e Descartes,
6
inicialmente Leibniz acreditou poder conciliar a moderna filosofia
mecanicista com os princípios metafísicos do “verdadeiro Aristóteles”, depurado das
distorções interpretativas oriundas da tradição escolástica. Especificamente a noção
aristotélica de auto-suficiência substancial mostrou-se como um elemento importante em suas
primeiras formulações autônomas do conceito de substância. Assim, o afastamento dos
pressupostos materialistas do mecanicismo e a apropriação e desenvolvimento de algumas
idéias inspiradas no aristotelismo levaram-no a estabelecer sua própria metafísica, na qual o
conceito de substância ocupa um papel determinante. A filosofia exposta em 1686 representa
então um estado amadurecido de suas teorias, onde a elaboração das oposições à filosofia
moderna (teológicas e ontológicas) seem conexão com uma forma inovadora de apreender
e fundamentar o conceito de substância; resultado de quase vinte anos de reflexão e debate.
Retomemos, pois, de forma parcial e resumida, o contexto filosófico a partir do qual o
conceito leibniziano de substância se estabelece.
5
Em carta ao Príncipe Ernesto Langrave, Leibniz afirma que as idéias expostas em seu “pequeno discurso de
metafísica (...) são encaradas de uma maneira que parece proporcionar novas perspectivas adequadas para
aclarar grandes dificuldades”. (LEIBNIZ, 2004, p.7)
6
Cf. Mercer e Sleigh (1995,p.72).
9
1.1 Substância e a modernidade
Presente como elemento fundamental na prîth filosofίa aristotélica, a temática da
substância se mantém ao longo de todo o pensamento medieval e de certa forma reflete as
transições e rupturas instauradas pelo advento da modernidade. Dentre os diferentes sentidos
apontados por Aristóteles, a filosofia tomista retém a concepção da substância enquanto
unidade indissociável de matéria e forma, discutindo-a no contexto da extensa polêmica sobre
o princípio de individuação das entidades. Para Tomás de Aquino (1224-1274), a forma
inerente a uma substância (forma substancial) era limitada por sua matéria e o princípio de
individuação dos seres é a matéria signata, isto é, a matéria assinalada na entidade individual.
Uma posição contrária, como a defendida por Duns Scotus (1266-1308), afirmava um
princípio formal de individuação, a ecceidade, como aquilo que determina a natureza
específica de um ser. Todavia, em ambos os casos a forma substancial se encontrava ligada às
características imputáveis à matéria, isto é, às propriedades presentes nos corpos.
Compreendida como princípio ativo nas substâncias em geral, a forma substancial encerrava a
natureza específica de cada ser, de modo que seus caracteres particulares, sua configuração e
comportamento seriam compreendidos como uma manifestação de sua realidade substancial.
Por conseguinte, deveria haver um sem número de classes distintas de substâncias, cujas
características particulares forneceriam a base para uma ciência de caráter qualitativo, tal
como a que se constituiu na alta escolástica medieval e no pensamento renascentista. Ora, é
justamente a partir do domínio da física que este conceito tradicional de substância será posto
em dificuldades pela ciência moderna, encaminhando as transformações que se seguirão no
pensamento filosófico do séc. XVII.
Assim como a tese heliocêntrica põe fim às enormes complexidades demandadas para
garantir o sistema ptolomaico frente às progressivas e desafiadoras descobertas astronômicas,
o ideal de um conhecimento causal dos fenômenos naturais se sobree à interpretação
qualitativa da física, anteriormente presente na concepção tradicional das propriedades
essenciais dos corpos. Em outras palavras, ao tentar compreender o movimento em termos de
uma relação estabelecida entre corpos de mesma constituição num espaço homogêneo, a física
moderna rompe com a idéia aristotélica do deslocamento enquanto uma tendência intrínseca
dada a partir da natureza de cada corpo particular a buscar seu lugar originário. Os fenômenos
físicos deixam de ser vistos como uma interação de tais qualidades (qualidades substanciais)
10
para serem interpretados a partir de parâmetros relacionais extrínsecos aos corpos, isto é, as
leis naturais. No centro destas importantes alterações está a figura de Galileu Galilei
(1564-1642), cujo modelo alternativo de descrição da natureza, caracterizado pela rejeição das
qualidades essenciais dos corpos ou formas substanciais, estabelece as bases da filosofia
mecanicista. A física galileana, entretanto, ao conceber o universo a partir de suas chamadas
qualidades primárias, absolutamente independentes de qualquer caráter substancial atribuído
aos entes, encontra um abismo entre a objetividade das verdades matemáticas reveladas na
própria natureza e a subjetividade da existência humana, irredutível ao lculo e estabelecida
a partir de sentidos limitados e irrelevantes para a aquisição do conhecimento sobre as leis
universais.
Afastando-se da noção clássica de fÚsij, a interpretação da natureza como ordem
matemática transferiu a primazia na aquisição do conhecimento acerca das leis naturais do
plano sensível para o inteligível. Dada a realidade geométrica do universo, os sentidos
somente apresentam-na sob uma perspectiva limitada, sem, contudo, fornecer a ordem
racional capaz de apreendê-la e explicá-la. As qualidades primárias inerentes a esta ordem,
por outro lado, se referem ao absoluto e imutável, sendo tomadas como as únicas capazes de
proporcionar o conhecimento matemático, que em nada depende das percepções humanas e
deve ser buscado pela via das representações racionais. Tais qualidades se aplicam não
somente ao plano dos astros, mas também à própria realidade corpórea dos entes sublunares,
cuja figura, grandeza, posição e movimento o podem ser abstraídas, passíveis também de
serem expressas sob termos matemáticos. Todas as demais qualidades tornam-se então
secundárias, figurando como efeitos subordinados das propriedades mais fundamentais. O
calor e o frio, a cor, o aspecto, o odor conservariam algo de subjetivo, pois são efeitos
relativos produzidos nos órgãos sensórios pelas qualidades primárias. Contrariamente à
precedente concepção das entidades naturais em termos qualitativos, as características
sensíveis presentes nos corpos não mais dizem respeito a sua “essência”, mas a traços
particulares somente relevantes para o conhecimento local operativo. Ao recusar as formas
substanciais escolásticas e tentar estabelecer uma espécie de metafísica matemática como base
para sua física, Galileu desabilita a antiga noção de substância como qüididade, uma vez que
o traço essencial dos corpos em geral será bem determinado genericamente pelas qualidades
primárias.
Sendo obrigado a reconhecer leis que contrariavam a própria evidência dos sentidos e,
11
por conseguinte, perdendo seu papel determinante em relação ao conhecimento, o homem se
apartado de sua originária comunidade natural, permanecendo livre para controlar a
natureza, mas, em contrapartida, desafiado pela tarefa de conferir um novo sentido à sua
existência.
7
BURTT resume bem este ponto:
A forma dada por Galileu à doutrina das qualidades primárias e secundárias
(...) foi um passo fundamental no rumo da expulsão do homem do grande mundo da
natureza. (...) Ora, no processo de transferência dessa distinção entre o primário e o
secundário em termos adequados à nova interpretação matemática da natureza,
encontramos o primeiro estágio da visão do homem como algo claramente separado
do reino real e primário (1991, p.71).
Se a regularidade física da natureza pôde ser encontrada até mesmo nos pormenores
do funcionamento de seu corpo, a variedade e complexidade metafísica de que é composta a
existência humana, em contrapartida, se mostra incompatível com o tratamento matemático
próprio às qualidades primárias. Para Galileu a natureza humana pertencia ao plano das
qualidades secundárias, cuja importância é declaradamente inferior e “menos real” em relação
ao caráter objetivo e linear da estrutura universal. Embora totalmente de acordo com a
proposta galileana de uma física exclusivamente orientada pelas relações materiais de causa e
efeito, René Descartes (1596-1650) não compartilha do objetivismo sugerido por ela,
responsável por apartar radicalmente homem e natureza, relegando a particularidade da
existência humana ao plano do saber relativo e da opinião. O autor das Meditações critica a
aplicação metafísica da matemática, pretendendo extrair desta última não a própria
fundamentação dos fenômenos, mas um método que permita alcançar uma metafísica capaz
de encontrar a justa medida entre a natureza geométrica e uma idéia de subjetividade mais
atuante nesta realidade. Ainda que se conceba uma exterioridade entre a natureza e o homem,
pondera Descartes, o acesso a este padrão transcendente de verdade somente pode se dar no
âmbito das representações racionais, de modo que estas constituem o próprio critério a partir
do qual se pode encontrar a regularidade presente nas leis universais. Eis que o pensamento,
tomado como o lugar das representações claras e distintas, desloca o objeto do conhecimento
da exterioridade de leis matemáticas meramente observáveis para a imanência do sujeito, ao
7
O heliocentrismo e inúmeras teorias modernas por vir puseram sob suspeita a autoridade dos sentidos na
aquisição de conhecimento seguro acerca do universo, ao passo que os cálculos matemáticos forneciam uma
base mais confiável. Assim, o homem, somente dependendo de sua percepção, deixou de atuar como origem do
conhecimento sobre o mundo. Ao contrário, era preciso afastar os sentidos dando espaço para que a razão
pudesse alcançar um conhecimento das leis universais; um conhecimento independente do ser humano. Nas
palavras de Müller, “Pela primeira vez na história da ciência, nossas experiências foram reduzidas à nossa
subjetividade; e nossa subjetividade foi excluída do mundo fenomênico (2001, p.17).
12
qual a ciência de tais leis pode efetivamente se dar.
Tendo em vista o objetivo desta breve contextualização, não se trata aqui de
reconstituir os passos que doravante conduzirão a investigação cartesiana ao ego cogito, bem
como ao notório impacto desta formulação para o pensamento filosófico subseqüente; mas
somente de atentar para o seguinte fato: uma vez que para alcançar o conhecimento sobre as
verdades matemáticas ou qualidades primárias não se deve recorrer à percepção sensorial e
sim às representações objetivas dadas na imanência do pensamento, a subjetividade pensante
se converte então num tópico central na agenda da nascente filosofia moderna, e com ela a
temática da substância será retomada sob outro enfoque. A partir deste conceito não mais se
pretende ter em vista qualidades múltiplas e indeterminadas inerentes a cada tipo de ser. Ao
contrário, ele deve designar realidades essenciais bem definidas e absolutamente distintas
entre si, das quais a natureza humana se apresenta como o único ponto de confluência.
Descartes concebe, portanto, além de Deus, duas substâncias ou realidades primordiais
absolutamente independentes uma da outra: A res extensa, indicando o mundo dos corpos, do
qual a essência é a extensão e que se coaduna com as leis mecânicas da física; e a res
cogitans, designando a alma ou o vasto domínio interior do sujeito, cuja essência é o
pensamento, fonte das representações. Semelhante bipartição, embora permita à filosofia
cartesiana validar duplamente a inserção das qualidades primárias na natureza humana, isto é,
através de sua atuação nas funções corporais e pela sua imanência epistemológica nas
representações, deverá inaugurar na filosofia moderna uma nova polêmica envolvendo a
noção de substância.
Ao pensar a realidade a partir de uma cisão em vertentes adversas a substância
pensante e a substância corpórea Descartes se opôs diretamente às concepções animistas
propagadas pelo renascentismo, onde tudo era permeado de espírito e vida, ora mostrando ora
ocultando sua natureza específica. Tal como nos fenômenos puramente físicos, também o
funcionamento dos corpos vivos em geral deveria encontrar explicação suficiente através da
mecânica, sem recorrer a quaisquer razões metafísicas. O tema da alma ou espírito será
estritamente direcionado para o domínio da subjetividade pensante, cuja natureza
eminentemente metafísica e racional permanecerá como ponto médio entre o mundo físico e a
natureza divina. Mas se a res cogitans em nada deveria relacionar-se às propriedades da
extensão, como explicar a inegável interação recíproca entre corpo e alma presente no ser
humano? No tratado intitulado As paixões da alma (1637) Descartes recorre ao célebre
13
argumento da glândula pineal, situada em algum lugar no interior do cérebro humano, onde a
alma exerceria diretamente (fisicamente) suas funções
8
, justificando assim a interação entre as
ações do corpo e da alma, isto é, movimento e pensamento, respectivamente. Segundo Reale
(2005, v.4, p.3), esta pseudo-solução constituíra uma flagrante batida em retirada para um
asylum ignorantiae, e o tema da interação corpo-alma foi um dos maiores problemas deixados
por Descartes aos seus seguidores. De acordo com o esquema cartesiano, res cogitans e res
extensa, ainda que distintas, não consistiam em substâncias absolutamente separadas, uma vez
que justamente no ser humano encontravam seu ponto de conjunção por via da complexa
interação entre vontades, sensações e sentimentos. Seus sucessores, entretanto, radicalizando
as premissas cartesianas, passaram a supor o total dualismo entre pensamento e extensão
negando assim qualquer possibilidade de ação de um sobre o outro. Esta transição encontra
sua maior expressão no ocasionalismo, teoria com a qual Leibniz debateu intensamente,
sobretudo em discussão com um de seus principais representantes, o padre Nicolas
Malebranche (1638-1715).
A doutrina do ocasionalismo consistia em sustentar o dualismo radical entre substância
pensante e substância corpórea a ponto de negar totalmente a relação recíproca entre o
pensamento (ação da alma) e os movimentos do corpo. Uma vez que a alma não pode agir
sobre o corpo e vice-versa, somente Deus possibilitará esta interação: a alma somente tem
contato com Deus e a partir desta relação é que ela pode conhecer todas as coisas. No lugar da
obscura hipótese cartesiana da interação da alma nas atividades corpóreas por meio da
glândula pineal, os ocasionalistas recorreram a Deus como a única causa da relação recíproca
entre as duas classes de substância. Assim, as mudanças que o corpo aparentemente causa na
alma ao produzir as sensações, e que a alma parece causar no corpo através de uma ação
voluntária, bem com as mudanças que um corpo possa aparentar causar em outro por impacto;
todas estas se devem diretamente a Deus e não constituem senão “ocasiões” para a sua
intervenção na natureza finita. Portanto, segundo os ocasionalistas, nada atua sobre nós a não
ser Deus. Tudo o que podemos vir a conhecer, o conhecemos em Deus. E, por último, só Deus
é a origem de toda a atividade causal no mundo. Embora tenham apresentado uma solução
alternativa ao problema cartesiano da interação corpo-alma, no que toca ao movimento os
ocasionalistas foram obrigados a supor uma total coincidência das ações e vontades de Deus
8
Consideremos, então, que a alma tem sua sede principal na diminuta glândula localizada mo meio do cérebro,
de onde irradia para todo o corpo, por meio dos espíritos, dos nervos e também do sangue, que, participando
das impressões dos espíritos, podem carregá-los pelas artérias para todos os membros” (DESCARTES,1999,
p.126).
14
com as ações particulares de cada criatura, ao que Malebranche escreve em seus Pensamentos
Metafísicos: Deus quis que o meu braço se mova no instante em que eu próprio quero
(Apud Reale, v.4, p.10). As implicações teológicas do ocasionalismo remetem então às
discussões sobre a liberdade e a distinção das ações de Deus e das criaturas, questões com as
quais Leibniz se ocupará no Discurso de metafísica.
Segundo BROWN (1995, p.55), Malebranche foi uma produtiva influência na
formação do sistema filosófico de Leibniz. Tanto a idéia de que não pode haver ação direta de
uma substância sobre outra, quanto uma apropriação parcial da concepção segundo a qual
tudo pode ser visto em Deus, de fato permaneceram até a fase final do pensamento
leibniziano. Por outro lado, Leibniz não pôde concordar com a conclusão ocasionalista de que
somente Deus seria a causa do movimento nas substâncias criadas, tampouco o agradou a
conseqüência de que, para tal, Deus estaria intervindo continuamente em cada substância a
fim de conformar a coincidência entre as ações da alma e do corpo. Neste sentido, a dinâmica
leibniziana se apresenta como um desafio direto ao ocasionalismo, uma vez que Leibniz
sustentará uma concepção das substâncias corporais como centros autônomos de força e,
portanto, como a origem do próprio movimento. Sua oposição parte da questão física da
origem do movimento nas substâncias corpóreas, mas acaba por retomar a disputa pela
determinação da própria noção de substância e sua aplicação. Ao imputar ao pensamento o
fundamento e a evidência da existência do ego cogito Descartes havia aderido implicitamente
à uma definição geral da substância como existência independente. Contudo, se uma
substância é aquilo que não depende de nenhum outro ser existente, mas necessita de uma
contínua intervenção divina para existir, deve-se concluir que, em sentido estrito, só Deus
pode ser entendido como substância. Este ponto é comentado por Russell em seus estudos
sobre Leibniz:
Portanto, embora os cartesianos tenham praticamente admitido duas
substâncias, espírito e matéria, sempre, entretanto, que consideraram Deus seriamente,
foram obrigados a negar a substancialidade de tudo exceto Deus. Esta inconsistência
foi remediada por Spinoza, para quem a substância era uma causa sui, a causa de si,
ou o que é em si mesmo e é por si mesmo concebido. Para ele, portanto, a substância
era apenas Deus — um remédio que Leibniz considerou uma condenação da definição
original (1968, p.42).
Em resumo, despojado de seu sentido clássico como essência particular de cada coisa,
o conceito de substância assume para a nascente filosofia moderna uma configuração mais
15
genérica. À tipologia inumerável que assegurava tantas substâncias quantas classes de
entidades, se impõe um modelo tripartido, referente à Deus, às almas e à natureza corpórea. O
dualismo resultante da cisão entre res cogitans e res extensa retoma assim a discussão sobre o
tema da conformação entre alma e corpo, contexto frente ao qual Leibniz apresentará sua
própria teoria da substância.
1.2 Substância em Leibniz
A definição do conceito de substância como “existência independente” aceita por
Descartes mostrou-se problemática por atrelar demasiadamente o conceito à intervenção
divina, resultando no ocasionalismo e suas dificuldades teológicas, por um lado, ou
suprimindo-o (o conceito de substância) em sua consistência ontológica singular. Ou bem se
devia contar com a atuação direta e contínua de Deus em relação à interação de cada res
cogitans e res extensa existente (para não falar da interação dos diferentes corpos entre si), ou
bem somente Deus é substância e toda extensão e pensamento existentes não seriam nada
mais do que seus próprios atributos, como queria Spinoza. Contudo, ainda que Deus seja a
condição absoluta de existência das substâncias, raciocinou Leibniz, daí não se deve inferir
necessariamente a sua intervenção constante na criação. Ao contrário, é absolutamente
conforme à perfeição divina que, uma vez criadas, as substâncias possam agir a partir de si
mesmas constituindo uma unidade autônoma e assegurando per se a própria existência.
Assim, é por meio da noção de uma substância corpórea auto-suficiente que Leibniz começa a
distinguir sua metafísica do pensamento que o precede. Não a alma, mas também o corpo
devem agir cada qual sob suas próprias leis. Tal ação independente de ambas as partes não
necessitaria da constante intervenção divina para conformar-se, mas somente de uma
regulação inicial, de uma harmonia que a sabedoria de Deus soube transmitir a cada
substância criada. Eis que a teoria da harmonia preestabelecida fornece um contraponto
teológico ao ocasionalismo conservando a proeminência e autonomia do conceito de
substância.
Para além do aspecto onto-teológico envolvido nesta retomada do questionamento em
torno da substância, Leibniz concentra sua atenção na determinação lógica do conceito, com a
qual a maior parte das teorias apresentadas no Discurso de metafísica mantém íntima
16
conexão. As definições geralmente associadas ao conceito de substância, tal como existir
independentemente de” ou “ser a causa de si” mostravam-se como derivações de uma relação
anterior e mais fundamental, a saber, a relação lógica estabelecida nas proposições
envolvendo um sujeito e um predicado. Definir a substância como aquilo que não precisa de
nada para existir é, em termos práticos, oferecer um de seus predicados como explicação. Mas
todo predicado somente pode existir na vigência de um sujeito. Este, por sua vez, é justamente
aquilo que não se predica de outrem e que, portanto, pode existir à parte de tudo o mais.
Ora, justamente uma substância ou entidade é, no mais das vezes, o sujeito da proposição; isto
que retém tais e tais atributos. Sua existência, portanto, o depende de outro ser existente
senão que pode ser deduzida diretamente do fato da continência de seus predicados. Sob o
aspecto da lógica proposicional, o conceito de substância se caracteriza então enquanto aquilo
que atua sempre como sujeito, servindo como o fundamento para a existência e propriedades
de outras coisas; e que nunca pode ser tomado como predicado de outro sujeito. Como
resultado de um vasto trabalho no campo da análise lógico-gramatical das predicações,
Leibniz encontra a substância como o sujeito último a partir do qual os predicados se
estabelecem numa relação fundamental de inclusão manifesta em toda proposição verdadeira.
9
Por certo que a fundamentação leibniziana da substância pela via da lógica
proposicional apresenta uma flagrante similaridade com a antiga determinação aristotélica do
conceito. Em vários pontos da Metafísica, Aristóteles afirmara que uma das características da
substância é ser aquilo que não se predica de outro sujeito, senão que todo o resto dela se
predica.
10
Para o próprio Leibniz tal proximidade não constituiria problema algum, pois
conforme escreve em uma de suas correspondências: percebo que normalmente as opiniões
mais antigas e mais aceitas são as melhores(2004, p.21).
De fato, afastando-se de Descartes
e Spinoza quanto à exigência racionalista de uma nova fundamentação para o conhecimento,
Leibniz se mostra menos revolucionário e mais reconciliador com a escolástica e a filosofia
grega do que seus predecessores.
11
Mas se o pensamento medieval se fixa ao sentido
aristotélico da substância como matéria e forma, e a nascente filosofia moderna o rejeita pelo
desenvolvimento de uma nova configuração para a idéia de matéria e pelo descrédito das
formas, Leibniz tende a reter outros elementos presentes na filosofia do estagirita no que
9
Segundo Sleigh, em 1979 Leibniz formulou uma rie de sistemas gicos para testar a validade formal de
proposições. A aplicação destes estudos, sobretudo a idéia da continência da verdade do predicado na própria
definição do sujeito, ao conceito de substância resultou na origem de sua metafísica da substância individual no
Discurso de metafísica. (1995, p.107)
10
Cf. Aristóteles (1982, 1017b 13 , 1029a 8).
11
Cf. Jolley, N. (1995, p.2).
17
concerne ao conceito de substância, tais como aquele enunciado acima, referente à sua
determinação como sujeito último, a idéia de uma autonomia substancial e o tema da
permanência através da mudança. Desconectados do contexto específico da prîth
filosofίa aristotélica, tais princípios permanecerão bem demarcados no pensamento de
Leibniz, orientando suas recorrentes formulações do conceito de substância. Sobretudo as
conseqüências e desdobramentos das aplicações destas idéias ao contexto metafísico-
teológico moderno constituem um aspecto peculiar da filosofia leibniziana.
A relação predicativa, afirma Leibniz (1979, p.124), deve ter um fundamento
verdadeiro na natureza das coisas. O conceito de substância o se limita, então, a uma
realidade de ordem terminológica, senão que deve denotar um sujeito concreto, cuja
existência se sustém independentemente de qualquer outro ser existente. Esta “existência
independente” está relacionada justamente à inerência dos predicados no sujeito: a substância
é auto-suficiente porque todas as suas propriedades podem ser descobertas em sua própria
natureza, sem a necessidade do recurso a qualquer outro ente. Inversamente, uma propriedade
ou predicado de uma substância pode ser afirmada enquanto tal no caso de haver uma
razão para deduzi-la da substância em questão. Estes predicados atribuídos aos sujeitos
indicam ações ou eventos que o podem existir senão na própria noção do agente e, mais
ainda, referem-se especificamente a um indivíduo singular; uma substância individual cujo
conceito ou noção completa deve conter a totalidade de tais atributos. Ora, o agente é sempre
um sujeito específico, ao qual a pertença de tais e tais atributos advém do próprio fato de sua
existência, caracterizada essencialmente pela atividade. Assim, aliado ao princípio da auto-
suficiência encontra-se o princípio da atividade substancial: a substância é essencialmente um
ser capaz de agir. Este traço fundamental do conceito, que segundo Fichant (2004, p.44)
perpassa de ponta a ponta a obra leibniziana, será vislumbrado em múltiplas direções, aliando-
se no Discurso de metafísica tanto às explorações lógicas, através da elaboração da substância
individual, como à afirmação de um princípio metafísico para os corpos, relacionada à
retomada das formas substanciais. na Monadologia, a atividade se traduzirá na natureza
expressiva das substâncias simples, representada pela percepção e apetição monádicas.
Embora a reivindicação da noção de substância enquanto sujeito auto-fundado e
autônomo houvesse sido aplicada pela filosofia cartesiana, ela restringiu-se à res cogitans,
enfatizando o pensamento e originando as polêmicas sobre o movimento dos corpos e, em
última instância, sobre a própria noção de substância. Leibniz, por sua vez, procede de uma
18
inspiração anti-materialista da origem do movimento para fundamentar a autonomia das
próprias substâncias corpóreas. Reservando aos textos seguintes o tema da retomada
leibniziana das formas substanciais, basta aqui ressaltar a sua gênese em conexão com os
princípios metafísicos em questão: conduzida ao campo dos corpos, a auto-suficiência será
entendida enquanto subsistência ou duração. Neste sentido, substância corpórea é
precisamente aquilo que subsiste per se. E, tomada a auto-suficiência como completa
inerência dos predicados no sujeito, “subsistir per se” significa ter um princípio de atividade
em sua própria natureza, de modo que os corpos não podem consistir somente nas
propriedades materiais, mas devem possuir um princípio metafísico de ação que lhes seja
intrínseco. A atividade dos corpos é, portanto, um pressuposto substancial, e não poderá ser
reduzida à transmissão do movimento, como pretendia a filosofia mecanicista.
Por fim, ligada às idéias de auto-suficiência e subsistência surge uma terceira
característica fundamental do conceito de substância em Leibniz, a saber, a de permanência
em meio à mudança. Neste sentido, substância é aquilo que em meio às alterações sustenta a
própria identidade permanecendo a mesma. Nas palavras de Russell: Esta noção de um
sujeito da transformação não é, por conseguinte, independente do sujeito e do predicado,
mas subseqüente a eles; é a noção do sujeito e predicado aplicada ao que existe no tempo.
(1968, p.43). Aplicar a noção de sujeito e predicado ao que existe no tempo, contudo, implica
adentrar no plano das verdades contingentes, onde os predicados assumem o caráter de
eventos e o sujeito será visto como um indivíduo determinado ou personagem. Em outras
palavras, com a doutrina das noções completas o conceito de substância será explorado em
seu aspecto individual enquanto totalidade das propriedades singulares de um sujeito
concreto. Este sujeito, cujos predicados são inumeráveis e correspondem a uma seqüência
temporal, encontra nesta série sua singularidade, de modo que seu conceito ou noção deve
corresponder à totalidade de tais predicados. A substância individual assim delineada
corresponde diretamente ao atual, comportando em sua estrutura teórica um espaço reservado
à peculiaridade de cada indivíduo existente, para além do caráter universal inerente ao
conceito. Ao integrar o domínio do contingente à estrutura ontológica do conceito de
substância Leibniz lhe confere um sentido distinto, encontrando uma inovadora perspectiva
em meio ao contexto da filosofia moderna. Este passo, entretanto, só poderá ser
adequadamente vislumbrado mediante uma delimitação mais acurada do conceito de
substância individual e de seu ambiente teórico no Discurso de metafísica.
19
Até aqui delineamos um sentido geral da noção de substância em Leibniz frente ao
contexto filosófico do final do séc. XVII. O caráter genérico desta primeira abordagem se
justifica pelo próprio movimento da filosofia leibniziana: Embora possam ser apreendidos
como traços constantes relacionados à delimitação do conceito de substância, os aspectos
acima enfatizados devem permanecer como indicações, uma vez que às diferentes fases do
pensamento do autor correspondem momentos distintos de elaboração doutrinal, registrados
em numerosos inéditos e correspondências. É assim que certos princípios metafísicos
assumidos muito cedo por Leibniz (tais como a auto-suficiência substancial ou a atividade)
serão pensados distintamente em termos de sua articulação com um conceito original de
substância, duplamente influenciado pelo mecanicismo e pela filosofia aristotélica
12
; ou
inseridos na formulação da substância individual levada a cabo a partir da exploração do
aparato lógico ao longo dos anos 80; ou ainda como aspectos propriamente monádicos,
vinculados à arquitetônica da substância simples na fase final deste percurso. Uma leitura que,
em nome da uma unidade sistemática frequentemente atribuída à filosofia de Leibniz, tenda a
minimizar este fato, tomando indiscriminadamente os conceitos em relação ao seu contexto,
dificilmente pode penetrar na especificidade do desenvolvimento da filosofia leibniziana.
Deste modo, a presente investigação deve se ater diretamente ao período da escrita do
Discurso de metafísica e das subseqüentes Correspondências com Arnauld, enfocando o
conceito de substância individual e a perspectiva ontológica que lhe é própria, bem como os
termos da sua superação.
— 2 —
12
Para um estudo completo sobre o estado inicial da filosofia de Leibniz, ver Mercer, C. e Sleigh. Metaphysics:
The early period to the Discourse on Metaphysics. Op. cit.
20
Substância Individual
Os sete primeiros artigos do Discurso de metafísica tratam especificamente da
natureza Divina e suas particularidades, empenhando-se em discutir certas polêmicas
teológicas introduzidas pelo pensamento moderno. A argumentação de Leibniz tem início com
uma definição simples: “Deus é um ser absolutamente perfeito; existem diferentes tipos de
perfeições e ele as possui todas reunidas e em seu mais alto grau.” Partindo dessa definição
corrente o autor alega que não se tem considerado, porém, devidamente as suas
conseqüências (LEIBNIZ, 1979, p. 119). Eis a deixa para a introdução de suas próprias
considerações teológicas e, por indissociabilidade, de aspectos fundamentais de sua
metafísica. Através das discussões sobre a perfeição da obra Divina (art.2-5) e sobre natureza
dos milagres (art.6-7), indiretamente vão aparecendo as primeiras enunciações dos princípios
da escolha do melhor e da harmonia.
13
Da mesma forma, inserido na temática teológica,
também o conceito de substância individual será apresentado no artigo 8°, uma vez que,
segundo Fichant, a elaboração propriamente metafísica dos problemas teológicos
implicados nas controvérsias religiosas passa pela distinção entre o que é de Deus e o que é
da criatura, esta considerada como o sujeito de suas ações (2004, p.44). A partir da
determinação lógica da substância individual o Discurso simultaneamente expõe aspectos da
teoria leibniziana da substância, apresenta as objeções do autor à física cartesiana e procede a
conseqüente restauração das chamadas formas substanciais. Tal como ocorrera com a
definição do ser Divino, é pela exploração e aprofundamento das conseqüências da sua noção
de substância individual que Leibniz irá expandir o horizonte no qual o conceito mesmo está
fundado, desvelando assim novos conceitos e perspectivas para pensar a própria
substancialidade, suas condições e fundamentos.
2.1 Substância individual e noção completa
13
Em relação ao princípio da escolha do melhor: “O conhecimento geral desta grande verdade, que Deus age
sempre de maneira mais perfeita e mais desejável possível, no meu entender é o fundamento do amor que
devemos a Deus sobre todas as coisas” (§4, p.121). Sobre a harmonia pré-estabelecida: “Mas é bom considerar
que Deus nada faz fora de ordem. Assim, aquilo que é tido por extraordinário, o é apenas relativamente a
alguma ordem particular estabelecida entre as criaturas, pois quanto à ordem universal tudo está conforme
(§6, p.122).
21
Vejamos pormenorizadamente os passos de Leibniz na definição da substância
individual no artigo 8° do Discurso de metafísica:
É muito difícil distinguir as ações de Deus das ações das criaturas, pois
quem creia que Deus faz tudo, enquanto outros imaginam que conserva apenas a força
que deu às criaturas. A seqüência mostrará como se podem dizer ambas as coisas.
14
Com esse comentário inicial o autor tem em vista as dificuldades teológicas originadas
pela rejeição da moderna filosofia mecanicista à noção de causa final, isto é, ao teleologismo
predominante na filosofia dos antigos. Segundo Jolley (1995, p.5), embora alguns tendam a
acelerar o fim do aristotelismo frente ao advento da modernidade, é um fato que em grande
parte do séc. XVII a ampla disputa entre a tradição escolástica, sua representante oficial, e a
nascente filosofia moderna manteve-se em pleno vigor. Ainda que pontuando críticas e
defesas de ambos os lados, ao longo dos artigos do Discurso Leibniz se empenhará numa
tentativa de conciliação entre tais vertentes aparentemente opostas. Certamente o afamado
“espírito conciliador” leibniziano não se apresenta aqui numa atitude desinteressada. Se o
autor pretende tanto validar as explicações mecanicistas dos fenômenos naturais como manter
um fundamento metafísico para a realidade e, por conseguinte, a vigência de um finalismo
isso será possível mediante a apresentação da sua própria teoria. Em outras palavras, é
somente com a metafísica da substância individual que a causalidade material poderá
harmonizar-se a uma noção antimaterial na qual a teleologia tem seu lugar de forma
intrínseca e independente. Assim, sem demora Leibniz introduz seu próprio conceito:
Ora, visto as ações e paixões pertencerem propriamente às substâncias
individuais, torna-se necessário explicar o que é uma tal substância.
Além do simples gancho para a apresentação da substância individual e da explícita
recusa ao ocasionalismo, este pequeno parágrafo revela um movimento importante da
filosofia leibniziana. Pela cisão radical entre res cogitans e res extensa empreendida pelo
dualismo exacerbado dos cartesianos, ações e paixões, ou, movimento e vontade passaram a
constituir, na prática, um par de contrários no interior da determinação ontológica do real.
Ainda que o homem constituísse o ponto de encontro entre dois mundos (REALE, 2005,
14
Por tratar-se de uma análise passo-a-passo do artigo 8° do Discurso de metafísica, fica valendo esta única
referência para todas as citações com recuo a seguir: (LEIBNIZ, 1979, p.124-125)
22
v.3,p. 302), o pressuposto materialista do mecanicismo não permitia a sua completa interação;
de onde se originam os problemas da filosofia moderna envolvendo a conformação entre alma
e corpo. Ora, o que Leibniz pretende é justamente encontrar um conceito que aponte o ser
humano como algo mais que a simples confluência entre a substância pensante, tomada em
sentido abstrato, e uma substância material ou extensa, originalmente separadas entre si. Ao
contrário, trata-se de designar um indivíduo integral e coeso, um ser completo onde a
interação de um corpo determinado e de um espírito singular constitui uma identidade
específica e inigualável. Assim, tanto as ações como as paixões nunca o ditas propriamente
de um ser abstrato e genérico, mas de uma substância em particular, a qual não constitui mero
conglomerado de funções físicas e metafísicas, mas sim uma individualidade que, bem
explorada, diz muito sobre si própria e sobre todo o universo. No Discurso de metafísica este
programa será desenvolvido por meio da exploração de uma aquisição teórica recente, a saber,
a determinação lógica do conceito de substância pela tese da continência dos predicados no
sujeito:
É correto, quando se atribui grande número de predicados a um mesmo sujeito
e este não é atribuído a nenhum outro, chamá-lo substância individual. Isto, porém,
não é suficiente, e tal explicação é apenas nominal. É preciso considerar, portanto, o
que é ser atribuído verdadeiramente a um certo sujeito.
Os exaustivos estudos de Leibniz envolvendo as listas definicionais de conceitos
primitivos e a análise lógico-gramatical das predicações
15
o reconduziram à definição
aristotélica da substância como sujeito último, que o mais pode ser predicado de outro
sujeito e do qual tudo o mais se predica. Todavia, limitada ao campo abstrato da estrutura
proposicional tal definição permanece insuficiente, mostrando-se incapaz de assegurar a
possibilidade efetiva de tal sujeito. Nas palavras de Fichant: Nada prova ainda que todo
termo-sujeito não possa ser, a seu turno, utilizado como termo-predicado de outro termo-
sujeito, e assim ao infinito (2004, p.47). A definição da substância como sujeito último deve,
portanto, transpor a perspectiva lingüística para buscar a realidade que torna possível a
proposição verdadeira; estabelecendo-se então como uma definição real. Esta realidade da
definição, entretanto, não se refere a um realismo da relação predicativa, no sentido de tomá-
la como a expressão de uma inerência atual de coisas extrínsecas entre si. Trata-se, ao
15
Os primeiros trabalhos de Leibniz envolvendo a definição de conceitos primitivos datam de 1666, em De arte
combinatoria. A partir de 1680 esta idéia será associada aos trabalhos de análise lógico-gramatical resultando
num extenso estudo categorial direcionado às noções ontológicas. Cf. Fichant (2004, p.39).
23
contrário, de uma rigorosa realidade lógica na qual o próprio fato da predicação verdadeira
atesta a integralidade do conceito, isto é, a plena continência dos predicados na noção do
sujeito.
16
É a partir deste plano que os laços de inerência identificados na relação
proposicional serão apreendidos como um aspecto efetivo das substâncias existentes,
permitindo a Leibniz fundamentar o conceito de substância individual em sua completude:
Ora, é bem constante que toda predicação tem algum fundamento verdadeiro
na natureza das coisas, e quando uma proposição não é idêntica, isto é, quando o
predicado não es expressamente compreendido no sujeito, é preciso que esteja
compreendido nele virtualmente. A isto chamam os filósofos in-esse, dizendo estar o
predicado no sujeito. É preciso, pois, o termo do sujeito conter sempre o do predicado,
de tal forma que quem entender perfeitamente a noção do sujeito julgue também que o
predicado lhe pertence.
Se os termos ou conceitos indicam uma realidade (o atual), trazendo a proposição do
plano abstrato para o domínio da efetividade; e se a substância deve ser tomada como o
sujeito último da predicação, o adágio escolástico da determinação da verdade enquanto
inserção do predicado no sujeito (praedicatum inest subjecto) assume um sentido radical,
alcançando o plano das verdades de fato e fornecendo o operador lógico do conceito de
substância individual.
17
Dado que em toda proposição verdadeira os predicados devem estar
compreendidos no sujeito, à definição real do sujeito último deve convir a presença de
absolutamente todos os seus predicados, sem que um deles sequer esteja ausente. Afinal, trata-
se de um ente determinado cuja essência” não se resume a uma estrutura lógica formal,
senão que abrange a riqueza de seus estados factuais. Tomada enquanto sujeito último, a
substância aparece como um indivíduo cuja singularidade se faz pelo seu caráter total. Nas
palavras de Cardoso, a substância é os seus atributos (1992, p.60). Seu conceito, por
conseguinte, não pode estar dissociado desta realidade, caracterizando-se assim como uma
16
Eis o que os comentadores consideram uma espécie de nominalismo assumido por Leibniz em seus escritos
anteriores ao Discurso. Em 1677 o autor escreve em Dialogus de Connexione: “Efetivamente, se bem que os
caracteres sejam arbitrários, o seu uso e conexão, porém, têm algo que não é arbitrário, a saber, uma certa
proporção entre os caracteres e as coisas e relações mútuas dos diversos caracteres que exprimem as mesmas
coisas. E esta proporção ou relação é o fundamento da verdade.” (LEIBNIZ, Apud Cardoso,1992, p.25) Fichant
irá propor este nominalismo como um elemento fundamental na apropriação leibniziana do in-esse:Com efeito,
a opção nominalista regia a versão propriamente leibniziana do adágio [praedicatum inest subjecto], no sentido
em que a atribuição verdadeira não remete à inerência real nas coisas mesmas de um acidente no sujeito, senão
que exprime uma enunciação, isto é, um comércio entre termos, noções ou idéias: [a saber] que em toda
proposição verdadeira a noção do predicado está contida na noção do sujeito.” (2004, p. 42)
17
Segundo Sleigh, em suas primeiras elaborações lógicas Leibniz restringia a tese do in-esse às proposições
universais. Justamente ao aplicá-la às proposições afirmativas em geral, isto é, às verdades de fato, surge a
conseqüência de que o conceito da substância individual é completo. (1995, p. 108)
24
noção individual que, devido à continência geral dos predicados, somente se aplica a este
sujeito e a ninguém mais. Eis o sentido da completude das substancias individuais, que
Leibniz expressa na seqüência:
Isto posto, podemos dizer que a natureza de uma substância individual ou de
um ser completo consiste em ter uma noção tão perfeita que seja suficiente para
compreender e fazer deduzir de si todos os predicados do sujeito a que se atribuiu esta
noção.
Em poucas palavras, substância individual é um ser completo que, enquanto sujeito,
contém em si um sem-número de predicados. Seu conceito ou noção caracteriza-se por
abarcar a totalidade de tais atributos, uma vez que estes, por necessidade lógica, devem estar
contidos no sujeito que os detêm. As noções completas são conceitos individuais e únicos que
se referem somente ao seu próprio sujeito, isto é, à sua respectiva substância individual. O
conceito de algo pode ser considerado uma noção completa se e somente se, da proposição
que o predica em relação a seu sujeito (“S é C”, para S como sujeito e C como tal conceito)
seja possível deduzir todas as proposições verdadeiras referentes àquele sujeito. Inversamente,
uma substância é considerada como individual se o seu conceito é completo. Ora, tal
exigência conecta o conceito de substância à dimensão da existência, direcionando-o
especificamente às entidades concretas. Para Fichant, a correlação entre substância
individual e noção completa não é simplesmente um fato lógico constatado pelo espírito (...)
[mas] a sua definição real, que determina no seu ser o que é o indivíduo enquanto tal (2001,
p.17).
Alcançar a definição real de uma substância, afinal, implica na extensão da noção do
sujeito ao plano das verdades de fato; aos atributos diretamente vinculados ao domínio da
efetividade, situados na série temporal. Os predicados contidos no sujeito, portanto, não se
limitam a aspectos formais de sua constituição lógica, senão que se referem em sua maior
parte à particularidade de seus eventos. Dito de outro modo, não é o princípio geral segundo o
qual a substância é um ser capaz de ação (actiones sunt suppositorum), por exemplo, que
figura como o tipo de predicado enfatizado pela doutrina das noções completas. Ao contrário,
são as próprias ações singulares referidas a um agente os predicados capazes de distingui-lo e
afirmá-lo como uma substância individual.
18
18
Segundo Cardoso, o elemento fundamental da transformação da noção da substância em Leibniz se encontra
na dissociação operada entre sujeito metafísico e simples sujeito lógico. Como em Aristóteles, a substância é
sujeito. Mas Leibniz não aceita como entidade substancial a substância segunda de Aristóteles. O sujeito de um
juízo (por exemplo, um universal da lógica) não é uma substância.” (1992, p. 48)
25
A determinação das substâncias individuais pela completude de sua noção tornou-se
uma das grandes inovações teóricas instauradas por Leibniz. Ela se sobrepõe ao problemático
critério da existência independente permitindo ao conceito de substância estender-se até a
esfera do singular, adentrando assim no inesgotável universo das verdades contingentes. A
inteligibilidade da substância individual não se encontra ao nível abstrato e comensurável dos
objetos matemáticos, nem se resolve em si mesma segundo a lógica intrínseca das verdades
necessárias. Ela envolve, como escreverá Leibniz a Arnauld (2004, p.41), uma conexão com a
existência das coisas e com o tempo. Assim, o sujeito a ser designado por uma noção
completa contém virtualmente todos os seus predicados, isto é, esses pertencem à sua noção
mas não se encontram simultaneamente atualizados no sujeito, senão que situados
ordenadamente segundo a série temporal dos eventos. O caráter metafísico de sua
singularidade consiste então na unidade destes atributos em seu conceito completo. Neste
sentido o sujeito metafísico delineado pela noção completa, cuja natureza contingente
somente encontra razão no encadeamento dos fatos, remete precisamente à idéia de indivíduo,
que será recorrentemente elaborada por Leibniz ao longo de sua carreira, constituindo um
elemento fundamental de sua filosofia. Todavia, se a individuação das substâncias será
garantida pela completude, a constituição própria do indivíduo no Discurso de metafísica
envolve outros elementos aos quais se deve atentar. Antes, porém, retornemos à seqüência
final do texto.
Tomando a tradicional oposição entre substância e acidente Leibniz prossegue
argumentando que, se o traço característico da substância individual é possuir um conceito
pelo qual ela pode ser conhecida completamente, isto é, na totalidade de seus atributos, o
acidente, por outro lado, é aquilo cujo próprio conceito não revela tudo o que consta na noção
do sujeito ao qual ele pertence. Ainda que este raciocínio não constitua senão um simples
complemento da própria definição, é o exemplo utilizado para ilustrá-lo que situa a substância
individual em seu uso mais corrente no Discurso: definir Alexandre Magno como “um rei”,
explica o autor, não é o suficiente para expressar de forma completa todos os seus atributos,
uma vez que a qualidade de ser rei é somente um acidente referente ao sujeito em questão. O
próprio conceito “Alexandre”, entretanto, deve encerrar tudo o que possa ser verdadeiramente
dito deste indivíduo, tais como os seus feitos heróicos ou a causa de sua morte. Os atributos
de uma substância individual são, portanto, aquilo que lhe sucede em cada momento do
tempo, podendo ser considerados como conseqüências da sua própria noção completa. E se a
26
noção completa de uma substância individual encerra tudo quanto pode lhe acontecer, de
modo que através dela se pode ver a totalidade do que é verdadeiramente possível enunciar a
seu respeito, então não somente o seu passado e presente se revelam a priori, mas,
necessariamente, também os seus eventos futuros. Eis a tese com a qual Leibniz encerra o
artigo 8, e que será mal compreendida pela maioria de seus contemporâneos, tais como
Arnauld:
19
Igualmente, quando se considera convenientemente a conexão das coisas,
pode-se afirmar que desde toda a eternidade na alma de Alexandre vestígios de
tudo quanto lhe sucedeu, marcas de tudo o que lhe sucederá e, ainda, vestígios de tudo
quanto se passa no universo, embora só a Deus caiba reconhecê-los todos.
A conclusão segundo a qual se pode ler na noção de cada substância individual todos
os seus acontecimentos é, para Leibniz, uma decorrência lógica direta da própria
determinação da substância individual acima descrita. o fato de que, “na alma de
Alexandre” haja vestígios de tudo o que se passa no universo, constitui a radicalização
extrema da mesma tese, uma vez que cada evento ligado a determinado indivíduo envolve
outros indivíduos (consta na noção completa de Alexandre, por exemplo, que venceu Dario e
Poro) e, deste modo, ampliada indefinidamente tal ligação, absolutamente tudo se encontra
conectado. Tais resultados obtidos por meio da formulação lógica do in-esse serão aplicados a
outros princípios fundamentais da metafísica leibniziana, como o da entreexpressão onde
cada substância expressará todas as demais em sua própria noção completa; o princípio dos
indiscerníveis onde, justamente pela singularidade dos eventos constituintes de sua noção,
cada substância difere de cada outra de forma específica; e o princípio da harmonia
preestabelecida cuja plena conexão ou acomodação das substâncias entre si se
precisamente na medida em que a sabedoria divina consiste no conhecimento a priori de
todas as noções completas. É deste modo que a determinação do conceito de substância como
individual por meio das noções completas perfaz o núcleo da síntese doutrinal exposta no
Discurso, aglutinando pressupostos gerais da teoria leibniziana da substância anteriormente
adquiridos e articulando-os entre si. Contornando as polêmicas sobre a genética conceitual da
filosofia de Leibniz, isto é, as discussões sobre a prioridade e ordem das referidas teorias na
formação do pensamento leibniziano, bem como a questão da liberdade versus pré-
19
Sobre as disputas com Antonie Arnauld em torno das teorias expostas no Discurso de metafísica, trataremos
mais adiante, no capítulo 3.
27
determinação aberta pela temática das noções completas, basta aqui indicar brevemente os
passos deste programa.
Uma vez que através da noção completa Leibniz faz convergir o gênero conceitual
“substância” com a especificidade última do indivíduo, a singularidade de cada substância
individual será assegurada justamente por meio da determinação de todos os seus predicados.
Mesmo que dois indivíduos se aparentem ao extremo, a ponto de não se poder distingui-los a
não ser pela diferença numérica isto é, pelo fato de que se trata de duas unidades, eles
devem diferir intrinsecamente quanto à totalidade de seus predicados, tanto numa acepção
física, segundo a qual dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço ao mesmo
tempo (e, portanto, a rigor não se pode afirmar verdadeiramente dos dois indivíduos o
predicado de estar no lugar x no tempo y), quanto pela pressuposição metafísica de que os
eventos de cada um são considerados apenas como conseqüência de sua simples idéia ou
noção completa (LEIBNIZ,1979, p.130), inerente à própria configuração do conceito de
substância individual. Considerados esta chamada identidade dos indiscerníveis e o princípio
leibniziano segundo o qual todos os eventos do mundo se reduzem, em última instância, a
modificações da própria substância, resulta que a singularidade de cada substância individual
representa uma perspectiva única do universo. E como em cada perspectiva o todo se encontra
de algum modo inscrito, uma substância singular expressa todas as demais e tal relação se
estende ao infinito.
Os fundamentos gerais do princípio da harmonia podem ser vistos em correlação com
os aspectos teológicos estabelecidos no início do Discurso de metafísica: enquanto um ser
perfeito, as ações de Deus sempre se dão da forma mais perfeita possível, de modo que
absolutamente nada se encontre fora de ordem na estrutura geral do universo. Daí se conclui
que todo estado de coisas tem uma razão suficiente para ser como efetivamente é e não de
outro modo, e que, portanto, visto a totalidade da criação, deve haver um equilíbrio ou
harmonia presente em todos os seres criados. Em relação à determinação da substância
individual, contudo, deve-se ressaltar uma espécie de ambivalência do princípio da harmonia.
Em um primeiro sentido, ele decorre da noção de substância como uma necessidade lógica, tal
como se segue: os acontecimentos não são senão modificações das próprias substâncias, de
modo que a razão suficiente destes reside na natureza substancial como uma determinação
gradual de seus respectivos conceitos ou noções completas. E, uma vez que um evento
28
atribuído a determinado indivíduo envolve muitos outros direta ou indiretamente,
20
faz-se
necessário algum arranjo ou acomodação que permita harmonizar a priori todas estas noções
ou, mais precisamente, todas estas substâncias cujas noções contêm as demais. Num segundo
sentido, entretanto, o princípio da harmonia preestabelecida é anterior e funda o próprio
conceito de substância, posto que a sincronia de todas as substâncias não precisa ser
estabelecida continuamente por Deus à maneira de um “milagre perpétuo”, como propunham
os ocasionalistas, mas é engendrada em sua própria noção no momento da criação. Assim,
através de sua noção completa a substância individual encontra-se necessariamente ligada ao
princípio da harmonia, que todas elas são acomodadas umas às outras no momento da
criação.
2.2 Completude e individualidade
Tendo em vista a localização central do conceito de substância individual no ambiente
teórico do Discurso de metafísica, trata-se de atentar para os pormenores relacionados ao seu
campo de aplicação no domínio do pensamento de Leibniz. Apresentada no artigo através
da doutrina das noções completas, a substância individual aparece como um eixo que
coordena as respostas leibnizianas aos impasses teológicos vigentes e as investigações do
autor no domínio metafísico da teoria da substância. Uma vez que ela intervém primeiramente
para solucionar as tensões entre liberdade e predestinação das ações humanas frente à
afirmação da livre escolha do melhor por Deus, sua elaboração visa mais diretamente ao
homem, compreendido como espírito ou alma inteligente, e seus acontecimentos. Segundo
Fichant (2001, p. 19) são os exemplos usados por Leibniz, tais como os de Alexandre, Julio
César e Judas, que melhor explicitam o uso ou aplicabilidade da substância individual e sua
noção completa no Discurso, a saber, com referência ao âmbito histórico, visando os agentes
humanos enquanto personagens. Assim, o conceito de substância individual designa um ser
completo no sentido em que ele é dito de um indivíduo, que é o sujeito ao qual se atribui
inúmeros predicados. Tais predicados nada mais são que os seus próprios eventos, todos
contidos em sua própria noção. E uma vez criadas, as substâncias individuais somente
dependem de Deus como mantenedor, visto que seus pensamentos e ações lhe advêm
20
Mais especificamente, envolve todos os outros, visto a plenitude da criação.
29
espontaneamente segundo a ordem implícita da noção da nossa substância individual
(LEIBNIZ, 1979, p. 144). Contudo, para além de designar a natureza metafísica do homem
concebido enquanto espírito racional e sujeito consciente das próprias ações, poderá a
presente formulação da substância individual ser estendida aos demais seres em geral?
Atentando para a particularidade do Discurso de metafísica, é preciso separar dois
procedimentos distintos conectados pela apresentação do conceito de substância individual no
artigo 8º, a saber: 1- A determinação e fundamentação genérica da substância individual por
sua completude, que constitui um passo formal ligado à lógica intrínseca do conceito
leibniziano de substância e que será explorado sob diferentes aspectos associado a outros
elementos fundamentais do pensamento do autor, tais como a entreexpressão e harmonia. 2- A
referência à singularidade de cada substância através do conteúdo de sua noções completas,
ilustrada pelos exemplos históricos fornecidos por Leibniz e aplicada diretamente à figura
humana para solucionar as questões teológicas envolvendo a tensão entre liberdade e
predeterminação nas ações das criaturas e na ordem geral da obra de Deus. Estes dois passos
se encontram reunidos na argumentação do artigo supracitado mas ocupam funções distintas
ao longo do texto
21
e proporcionam respostas variáveis à questão levantada acima.
Quanto ao primeiro procedimento, uma vez que se trata de um princípio lógico
deduzido a partir da concepção leibniziana de substância, sua aplicação certamente deve ser
irrestrita, visando à totalidade dos seres criados. A determinação da substância pelo argumento
lógico do in-esse permitiu pensar as suas características nos termos da relação proposicional
envolvendo sujeito e predicado. Ora, a consideração dos predicados de uma substância
individual enquanto eventos propriamente históricos de um indivíduo constitui somente um
caso particular, uma ilustração da concepção mais geral segundo a qual a singularidade das
substâncias se faz pelo caráter único da série de seus eventos particulares, conforme afirmará
o artigo pela enunciação do princípio dos indiscerníveis (LEIBNIZ, 1979, p.125). Nesta
direção, é plausível considerar que todo ser criado, tal como os animais ou até mesmo, no
extremo, um objeto, passam por diversos eventos ou acontecimentos em seu período de
existência ou duração, cujo histórico deveria então constituir uma espécie de noção completa
afirmando-o, num certo sentido, como um ser individual. Nesse caso, o fato de os predicados
21
Para citar somente alguns exemplos: No artigo 9, Leibniz usa a completude da noção para afirmar a expressão
das substâncias e fundamentar o princípio dos indiscerníveis; duas ações concernentes à concepção geral de
substância. No artigo 13 a noção completa da substância individual será usada para discutir a questão da
liberdade humana. Já no artigo 33, a idéia dos acontecimentos da substância individual como conseqüência de
sua noção será evocada para explicar a união entre corpo e alma.
30
particulares inerentes a cada ser não se encontrarem claramente determináveis e retidos por
uma lembrança ou consciência histórica, tornando o seu acesso materialmente remoto, seria
indiferente, visto que as noções completas figuram no entendimento divino dadas a priori,
independente do acesso que a elas possamos ter. Sob tal perspectiva ampla da completude
Leibniz apresentará as primeiras enunciações da teoria da expressão, que indica o
envolvimento do universo na substância singular, compreendendo-a como um mundo
completo e como um espelho de Deus” (1979, p.125).
Mas para além da completude de sua noção, retomando o sentido do segundo
procedimento supracitado, outro fator permanecerá inicialmente implícito na determinação da
substância como individual. Ainda que, a rigor, a tese das noções completas seja aplicável a
todo ser existente, isto é, a toda substância possível atualizada num espaço e tempo por Deus,
sua utilização prática no contexto do Discurso não deixa dúvidas quanto ao objeto visado
prioritariamente. A totalidade dos exemplos apresentados por Leibniz indica personagens
históricas e seus feitos célebres preenchendo a qualidade de predicados do sujeito. Mais do
que a mera escolha de fatos significativos atulo de ilustração, a opção do autor por manter-
se exclusivamente no campo das ações humanas remete imediatamente à idéia de indivíduo
ou pessoa e, por conseguinte, a um tipo específico de noção completa marcado por sua
incomparável riqueza e complexidade. Justamente a natureza dos predicados contidos nestas
noções será estabelecida por Leibniz de forma mais precisa, revelando uma particularidade:
Os eventos de cada um são considerados como conseqüência de sua simples
idéia ou noção completa; pois esta idéia encerra todos os predicados ou
acontecimentos e exprime todo o universo. Com efeito, nada pode acontecer-nos além
de pensamentos e percepções (1979, p.130).
A conseqüência lógica da continência dos predicados no sujeito, agora aplicada
diretamente ao contexto dos eventos humanos, permite entrever a inclusão de um elemento
marcante na constituição destas noções completas em particular. Ora, se os pensamentos
constituem parte essencial dos atributos da substância individual, não somente a completude
se encontra em questão, senão que alguma espécie de transparência ou consciência de si
integra o núcleo do conceito. Em outras palavras, ainda que a substância individual seja
determinada no Discurso pela sua vinculação à tese das noções completas, a constituição do
indivíduo evocado por tais noções encontra-se implicitamente condicionada pelo
reconhecimento de si e das próprias ações; pela emergência de um eu. Deste modo, tal
31
conceito agora se vincula especificamente aos seres humanos e não poderá aplicar-se aos
seres em geral.
22
De fato, o se encontra ao longo do texto uma referência aos seres o
humanos por meio do termo substância individual. Ao contrário, sempre que pretende referir-
se às criaturas em geral Leibniz usa a expressão genérica “toda substância”, chegando mesmo
a citar separadamente os espíritos (substância individuais) e as “outras substâncias”.
23
Esta
consciência de si ou “ipseidade”
24
, tomada enquanto origem da capacidade racional, será
afirmada justamente como o principal fator de distinção entre o homem e os demais seres ao
final do Discurso, no artigo 34º.
Assim, retornando à questão anteriormente formulada encontramos uma resposta
composta quanto ao domínio de aplicação do conceito de substância individual no Discurso
de metafísica: A sua inserção no artigo pela determinação lógica da completude de sua
noção representa um passo incondicionalmente válido para a teoria leibniziana da substância,
que será desdobrado até a ulterior formulação da mônada pela conexão com a expressão e
outros pressupostos metafísicos fundamentais. Por outro lado, a noção completa
correntemente evocada para solucionar as questões teológicas que permeiam o texto abrange a
complexidade do contexto propriamente humano, estabelecendo uma estreita vinculação entre
a individualidade e a potencialidade reflexiva entendida como ipseidade. Tais relações não
poderão estender-se aos seres em geral, ao que o Discurso irá distinguir as criaturas em
substâncias individuais e demais substâncias. Esta breve precisão encaminha o tema do
individual em Leibniz como a perspectiva ontológica predominante na filosofia pré-
monádica: uma vez que a teoria leibniziana da substância transpõe a figura abstrata do sujeito
lógico para focar-se na subjetividade metafísica que emerge como ser completo no plano das
verdades contingentes, a questão do indivíduo e sua inteligibilidade assume um papel
22
Fichant sustenta em seu artigo que “a elaboração do conceito de substância individual visa principalmente os
agentes humanos”. Afirma também que as almas inteligentes são “as únicas para as quais a teoria da noção
completa foi proposta”. (2001, p.19 e 21)
23
Presentemente só resta explicar a possibilidade de Deus exercer algumas vezes influência sobre os homens
ou sobre as outras substâncias” (LEIBNIZ,1979, p.131).
24
O termo haecceitas aparece em Duns Scotus relacionado às disputas escolásticas sobre o tema da
individuação. Ipseidade, neste contexto, referia-se à característica própria ou diferença do ser individual; à
individualização da essência em uma entidade particular. Sem adentrar aqui na especificidade do uso escolástico,
o termo ipseidade será doravante empregado no sentido elementar de “si-mesmidade”, isto é, como consciência
de si e da própria vigência enquanto ente individual. Seu uso visa enfatizar tal capacidade como um estado
prévio e mais originário ao que se possa chamar de potência intelectual ou razão no homem. Leibniz dirá no
artigo 34: “Mas a alma inteligente, conhecedora é, e podendo dizer este eu (moi) (...) permanece moralmente a
mesma e constitui a mesma personagem.Assim, é porque primeiramente se reconhece enquanto sujeito pela
recordação e pela consciência de si que, a posteriori, a substância individual é capaz de atos reflexivos,
pensamentos e operações racionais. A adoção do termo ipseidade visa, portanto, a alusão à esta capacidade
primaria da substância individual, que, ao nosso ver, não deve ainda converter-se numa compreensão da
racionalidade como determinante substancial na filosofia leibniziana.
32
preponderante nas investigações do autor. O caráter integral demandado pelo conceito de
substância, entretanto, requer um resposta à questão da corporeidade, anteriormente suposta
como um elemento alheio ao seu caráter metafísico. Faz-se necessário abordar outro conceito
ligado à teoria leibniziana da substância apresentada no Discurso, e que será fundamental para
os desenvolvimentos finais da filosofia de Leibniz. Trata-se da restauração das formas
substanciais.
33
— 3 —
As Formas Substanciais
Embora a temática da substância individual aplicada às polêmicas teológicas correntes
constitua, em traços gerais, o assunto principal do Discurso de metafísica, outros tópicos
importantes são habilmente trabalhados pelo autor nas entrelinhas desta argumentação central.
Tendo encontrado a ocasião oportuna para fazer chegar suas idéias ao afamado teólogo
Antonie Arnauld,
25
Leibniz sintetiza nos artigos do Discurso os principais aspectos de sua
teoria metafísica, agregando às considerações sobre a , o bem e a liberdade algumas
posições peculiares em relação ao contexto filosófico do final do séc. XVII. Dentre elas, a
retomada do antigo conceito escolástico de forma substancial consistirá numa ousada
reivindicação pela prioridade da metafísica frente à envolvente influência da física
mecanicista nas modernas concepções filosóficas sobre a natureza e as substâncias corpóreas.
Se, por um lado, Leibniz é conhecido pelo seu ímpeto de harmonização das diferentes
tendências filosóficas de sua época, por outro lado, as suas apropriações dos diferentes
conceitos e pontos de vista oriundos destas vertentes sempre resultaram em algo novo e mais
profundo, distinguindo-se por fim de sua origem. Este traço característico do pensamento
leibniziano também vigora em relação ao tema das formas substanciais, uma vez que, embora
constitua um marco de sua oposição à física cartesiana e à primazia do mecanicismo na
filosofia, a recuperação deste conceito tão rechaçado por seus contemporâneos não implica
nem na recusa do autor à física moderna, tampouco numa proposta de retorno à mentalidade
escolástica, senão que aparece totalmente inserida em sua teoria da substância cumprindo um
papel vital na arquitetônica de seu sistema filosófico.
Dado que o uso da substância individual em conexão com a doutrina das noções
completas concentrou-se prioritariamente na identidade metafísica dos espíritos ou almas
racionais, Leibniz introduz o conceito de forma substancial para pensar separadamente a
natureza corpórea e seu caráter ontológico. De fato, a concepção geral da substância
individual como personalidade singular concreta (indivíduo) compreende necessariamente a
25
Sabemos que O Discurso de metafísica foi escrito por Leibniz em 1686 e enviado ao príncipe Ernesto
Landgrave de Hesse (1623-1693), chefe protestante convertido ao catolicismo. Em carta ao príncipe, Leibniz lhe
pede que envie uma cópia do sumário do “pequeno discurso de metafísica” a Arnauld, mostrando-se desejoso em
obter a opinião deste sobre seus escritos.
34
associação de uma alma (natureza metafísica) e seu corpo físico. A sua determinação pela
completude, entretanto, nada esclarece sobre a natureza deste corpo envolvido no conceito.
Em outras palavras, neste estágio do desenvolvimento da filosofia de Leibniz a singularidade,
identidade, e expressão pontuadas pela substância individual/noção completa ainda não
encontram plena conexão com a demanda por uma unidade metafísica para os corpos vivos
em geral, imposta ao autor a partir de seus trabalhos anteriores no campo das demonstrações
físicas. Conforme afirma Fichant:
Seguramente, Leibniz não acreditou que essa noção [substância individual]
permitisse dar conta do conjunto da realidade. Em particular, ela deixa fora do seu
campo de aplicação os corpos e não permite decidir a questão de saber se e em quê os
corpos são substâncias. Eis por que Leibniz faz intervir para isso uma outra noção,
procedendo à reabilitação das formas substanciais. Ora, essa última es disponível
desde 1679, como conseqüência da admissão da definição de força pela formula mv²,
a qual, para Leibniz, impunha que se reconhecesse no corpo físico um princípio de
movimento irredutível à extensão geométrica (2001, p.20).
Afirmar que a concepção da substância individual pelas noções completas não se
estende ao âmbito do questionamento filosófico sobre os corpos não significa negar que o
corpo seja representado a partir desta formulação. Pelo contrário, Leibniz propõe que o
conceito completo permite entrever todos os predicados da sua respectiva substância,
inclusive (e até mais diretamente) aqueles referentes ao seu próprio corpo.
26
Tais predicados,
contudo, integram a série das verdades contingentes; eles permitem deduzir a singularidade e
o caráter expressivo das substâncias, mas designam propriamente este ou aquele corpo
determinado. A reflexão sobre a própria natureza dos corpos, por sua vez, se instaura no plano
do necessário onde as verdades de raciocínio devem ser capazes de determinar
universalmente o seu status substancial e se encontra conectada à física, onde os corpos
são tomados, antes de tudo, como sujeitos do movimento. Leibniz pretende que se conceba
também um princípio metafísico, responsável pela origem do movimento e pela sua
unidade. Seu escopo ultrapassa então o contexto especificamente humano para situar-se no
domínio das criaturas em geral, as quais devem assumir uma nova disposição ontológica em
comparação à filosofia de Descartes. Tais alusões à natureza geral dos corpos demandam um
princípio mais abrangente em relação ao uso específico da noção de substância individual,
mas que, no entanto, possa permanecer-lhe compatível. Assim, não somente como uma crítica
à física cartesiana (art.17), no contexto do Discurso de metafísica o conceito de forma
26
Cf. Leibniz (1979, p. 148).
35
substancial ocupa o lugar de um princípio polivalente capaz de responder pelas características
substanciais de todas as criaturas, pois se aplica à substância individual como um elemento
constitutivo e aos seres vivos em geral como a sua própria determinação substancial.
Sob o termo “forma substancial” Leibniz pretende afirmar um princípio metafísico de
ação nos corpos que não os reduz à mera extensão e suas propriedades, mas os determina
também como substâncias auto-suficientes. Para além das propriedades da extensão e suas
respectivas leis, a origem do movimento nos corpos vivos, tais como o corpo humano, o
deve se encontrar restrita à mera atuação causal da matéria, senão que provém de um impulso
autônomo. Tal princípio é primordialmente metafísico, sendo inexplicável unicamente pela
via dos fenômenos físicos e sua relações causais. Leibniz se mostra muito cuidadoso em não
renegar a aplicação da física mecanicista na compreensão dos fenômenos naturais,
distanciando-se assim do “mau uso” das formas substanciais procedido pela escolástica.
27
Entretanto, o autor se opõe veementemente à qualquer supressão da metafísica no que toca à
determinação da natureza das substâncias. Uma vez que a restauração das formas substanciais
no Discurso de metafísica vai de encontro aos preceitos gerais da nascente filosofia moderna
opondo-se à forte influência do mecanicismo no pensamento, o próprio conceito e sua
retomada podem ser adequadamente apresentados adentrando-se, ainda que brevemente,
nos detalhes da crítica leibniziana ao materialismo resultante de filosofia mecanicista.
3.1 A forma substancial e a filosofia mecanicista
Ainda que tanto a filosofia da escola tenha se mantido no início da modernidade por
um esforço de adaptação ao novo estilo do pensamento vigente, como também muitos de seus
problemas tenham sido incorporados ao contexto moderno, particularmente o tema da
presença de substâncias incorpóreas no domínio físico da natureza manteve-se como um dos
grandes ícones da oposição entre estas duas vertentes. Conforme Brown (1995, p.52),
qualquer um que aceitasse a filosofia mecanicista (...) estava destinado a rejeitar o uso das
formas substanciais”. Se é fato que o próprio Aristóteles o tenha empregado
especificamente tal termo, a filosofia tomista o adota para referir-se à noção aristotélica de
27
Mas essa insuficiência e mau uso das formas não nos deve fazer rejeitar uma coisa cujo conhecimento é tão
necessário em metafísica.” (LEIBNIZ, 1979, p. 126)
36
forma, isto é, ao princípio intrínseco a um ente que o determina enquanto tal. Todas as
propriedades de uma coisa deveriam ser determinadas a partir deste princípio e, por
conseguinte, os fenômenos físicos também seriam explicados em termos dos princípios
inerentes a cada elemento em particular. A grande virada da física moderna consiste então em
não pretender explicar os fenômenos naturais a partir das qualidades substanciais dos
elementos atuantes, mas sim em termos das regularidades ou leis relacionais extrínsecas aos
corpos. Dado o sucesso e o rápido avanço deste projeto, a física tradicional é posta em
descrédito, e com ela o conceito de forma substancial. Segundo a crítica dos modernos, valer-
se de algo como as formas substanciais para explicar os fenômenos físicos implicava em
apelar a qualidades ocultas, fechando assim o caminho para a exploração e o reto
entendimento do modo de operação da natureza.
28
O logro da ciência moderna em seus métodos e resultados sem dúvida permaneceu
como uma inspiração para a nascente filosofia. Ao rejeitar quaisquer princípios metafísicos o
procedimento científico ganhou muito em organização e eficiência, ao que tal diretriz se
manteve como base da filosofia cartesiana. Não somente os fenômenos físicos deveriam ser
compreendidos unicamente em sua causalidade direta, como também a própria noção de
substância corpórea (res extensa) deveria encerrar-se nas noções de cunho matemático
advindas da própria extensão. Embora o elemento metafísico permanecesse salvaguardado
pela res cogitans, a materialização da natureza corpórea conduziu a algumas conseqüências
filosóficas com as quais Leibniz não pôde concordar: Em primeiro lugar, como já se explicou,
ao se conceber um dualismo radical entre o âmbito espiritual e material, estando este restrito
às leis físicas e aquele aos princípios da razão, surge a dificuldade em explicar como pode se
dar a interação entre estes reinos, isto é, de que modo uma alma pode conformar-se a um
corpo. Em segundo lugar, estando os corpos limitados ao domínio da pura extensão, a origem
do movimento em cada corpo particular somente pôde ser entendida enquanto transmissão de
certa quantidade de movimento de um corpo ao outro, de modo que este pressuposto
relacional conduz à hipótese cartesiana da conservação da mesma quantidade de movimento
no universo. Em terceiro lugar, supor a extensão como essência das substâncias corpóreas
implicava em considerar os seus conceitos básicos como suficientemente claros e distintos
para fundamentar inclusive o conceito de substância. Por último, como uma conseqüência
indireta sobre a qual Leibniz não se pronuncia claramente no Discurso, mas que levará em
28
Cf. Brown (1995, p. 52).
37
conta nas Correspondências com Arnauld, ao restringir o âmbito metafísico ao domínio da res
cogitans, outras formas de vida, tais como os animais, perdem seu caráter substancial,
figurando para o cartesianismo como simples corpos sem almas, cuja atividade deveria
também ser explicada somente através dos princípios físicos. Diante deste quadro, a
alternativa leibniziana consistirá em negar uma essência puramente física da natureza
encontrando na própria realidade corpórea um princípio metafísico intrínseco responsável
pela sua substancialidade. Trata-se da retomada das formas substanciais.
Imbuído do espírito racionalista moderno, o jovem Leibniz também fora um partidário
da filosofia mecanicista, mas bem cedo se opôs a ela pelas discordâncias acima enumeradas.
Segundo Mercer (1995, p.76), já em 1669 o autor estava certo de que a concepção materialista
da substância corpórea sustentada pelos cartesianos era um equívoco somente superável pela
atribuição de um fundamento metafísico para as substâncias corpóreas em geral. Leibniz
freqüentemente empregava o termo “filosofia moderna” para designar a física de Galileu e
Descartes em oposição às concepções tradicionais sustentadas pela física aristotélica. Mas
embora a sua justificativa para a restauração das formas substanciais se apóie na denúncia do
que seria um equívoco da física cartesiana, não é propriamente da aplicação físico-
mecanicista quanto aos fenômenos naturais que o autor diverge, mas sim das conseqüências
materialistas que os cartesianos e também Spinoza pretenderam dela sacar. Assim, ele
escreverá em uma de suas cartas a Arnauld: Deve-se explicar sempre a natureza matemática
e mecanicamente, com tanto que se saiba que os princípios mesmos ou leis da mecânica ou
da força não dependem da extensão matemática senão de algumas razões metafísicas
(LEIBNIZ, 2004, p.70).
O mencionado equívoco cartesiano apontado por Leibniz diz respeito à tese da
conservação da quantidade de movimento no universo. Uma vez que o mecanicismo se
propunha a explicar o movimento dos corpos sicos exclusivamente em termos de suas
chamadas qualidades primárias, a saber, as propriedades advindas da extensão, tais como
tamanho, figura e movimento, Descartes foi levado a supor que a mesma quantidade de
movimento encontrava-se distribuída na natureza, apenas sendo comunicada ou transmitida de
um corpo ao outro. No artigo 17º do Discurso, por meio de uma demonstração geométrica
Leibniz pretende provar que não é a quantidade do movimento (mv), mas sim a de força
(mv²)
29
que permanece como uma constante nos fenômenos mecânicos. Assim, se devido ao
29
Tal conceito é compreendido pela ciência contemporânea como energia cinética, isto é, “a capacidade de
produzir trabalho desenvolvida pelos corpos em movimento.” (BARSA, 1988, v.1. p.192)
38
atrito ou à resistência dos corpos no choque a quantidade do movimento o permanece a
mesma, senão que tende a dissipar-se, é a força a verdadeira responsável pela origem de seu
movimento. Neste ponto restam apenas duas alternativas: ou bem a própria noção de força
presente nos corpos deve ainda reduzir-se às propriedades da extensão, ou bem é necessário
admitir que somente tais propriedades não sejam suficientes para explicar este princípio que
“anima” os corpos tornando-os uma fonte autônoma de força e, portanto, de movimento. Em
tom de confissão o autor do Discurso de metafísica se decide pela segunda opção,
considerando que a força não pode ser deduzida relacionalmente da extensão física, mas deve
provir dos próprios corpos, tomados enquanto sujeitos do movimento:
Porém, talvez não me condenem levianamente quando souberem que meditei
demoradamente sobre a filosofia moderna; dediquei muito tempo às experiências da
física e demonstrações da geometria, e bastante tempo estive persuadido da vacuidade
destes entes [as formas substanciais], retomados afinal quase à força e bem contra
minha vontade (LEIBNIZ,1979, p.126).
Pois o movimento, se não lhe considera o que compreende precisamente e
formalmente, ou seja, uma mudança de lugar, não é coisa inteiramente real (...) É,
porém, algo mais real a força ou causa próxima destas mudanças e existe bastante
fundamento para atribuí-la a um corpo de preferência a outro. (...) Ora, esta força é
algo diferente do tamanho, da figura e do movimento, e por pode-se julgar não
consistir apenas na extensão e suas modificações tudo o que se concebe no corpo,
como se persuadem os nossos modernos. Assim, fomos obrigados a restaurar alguns
entes ou formas por eles banidas (LEIBNIZ,1979, p.134).
Os resultados obtidos por Leibniz anteriormente no campo da física lhe servirão agora
para justificar a sua reivindicação por um princípio metafísico na base da natureza e
estabelecer assim a sua noção de substância corpórea como um centro de força autônomo,
responsável pelo próprio movimento e capaz de permanecer como uma unidade a partir de si
mesmo. Se, por um lado, a descoberta leibniziana da imprescindibilidade de um princípio
imaterial na fundamentação última dos fenômenos físicos não o conduz de volta a uma física
substancialista nos moldes aristotélicos, por outro, tal conclusão inviabiliza uma concepção
materialista dos corpos no sentido ontológico. Sua rejeição a este pressuposto, como se segue,
consistirá então em mostrar como os conceitos provenientes da extensão os únicoslidos
para determinar a substancialidade da res extensa no pensamento cartesiano — não possuem a
clareza e distinção que deles se espera para fundamentar o conceito de substância:
Pode-se a mesmo demonstrar que a noção de tamanho, figura e movimento
39
não possui a distinção que se imagina e que contém algo de imaginário e relativo às
nossas percepções, como o são ainda (embora bastante mais) a cor, o calor e outras
qualidades semelhantes, cuja existência verdadeira na natureza das coisas fora de nós
se pode por em dúvida. Por isso tais espécies de qualidades não podem constituir
qualquer substância (LEIBNIZ,1979, p.127).
Ao relativizar a validade ontológica dos conceitos extensionais, Leibniz não ameaça a
física moderna e seus procedimentos (ele não pretende pôr em dúvida, à maneira cética, a sua
validade epistemológica), mas questiona a sua capacidade de atuar como base das ciências
físicas e simultaneamente como fundamento para a determinação do real, isto é, para o
estabelecimento filosófico das verdades necessárias. As propriedades da extensão consistem
em determinações extrínsecas da realidade que bastam para a explicação dos fenômenos,
contanto que o se lhe atribua a tarefa de uma fundamentação última e definitiva. A forma
substancial, a seu turno, indicando o princípio metafísico de atividade inerente aos corpos,
permite um alcance ontológico que se estende para além das explicações mecânicas, maso
deve impor-se às considerações físicas sobre a natureza. Para Reale (2005, v.4, p.142), no que
se refere à disputa entre a filosofia escolástica e o mecanicismo moderno, é por meio desta
distinção rigorosa entre o domínio científico e o filosófico que Leibniz encontra a chave para
a harmonização da sabedoria dos antigos e das inovações da nova filosofia. A noção de forma
substancial retomada no Discurso de metafísica distingue-se, portanto, da noção escolástica
não tanto quanto ao seu conteúdo, mas sim pelo campo de aplicação ao qual ela será destinada
no interior da filosofia leibniziana. Segundo Fichant (2001, p.20), o Discurso de metafísica
conecta esta restauração das formas substanciais ao estabelecimento do conceito de substância
individual. Seguindo esta pista, vejamos, pois, outro aspecto da atuação das formas
substanciais na filosofia do Discurso.
3.2 Forma substancial, substancialidade e unidade
Embora a pergunta pela natureza dos corpos tenha levado Leibniz às reminiscências de
suas descobertas no campo da física, este tema aparece na argumentação do Discurso sob a
forma de um parêntese.
30
Sua função é justificar o recurso a um princípio metafísico,
30
Os artigos 10, 11 e 12 tratam de justificar a retomada do conceito escolástico e estabelecer o seu campo da
aplicação adequado. Os artigos 17 e 18 estabelecem a validade do recurso às formas substanciais como um
princípio metafísico nos corpos.
40
reconhecendo a insuficiência da própria física em fundamentar o conceito de substância, ainda
que somente restrito à corporeidade. A restauração das formas substanciais, portanto, pode ser
vista como a busca pela determinação e aplicabilidade do conceito de substância aos corpos
das substâncias individuais e às criaturas em geral. Se a reflexão sobre a extensão mostrou
que no corpo algo mais do que as suas qualidades materiais, tais como tamanho, figura e
movimento, e se tais propriedades físicas o são capazes de determiná-lo satisfatoriamente
em sua substancialidade; este algo, designado pelo conceito de forma substancial, é
justamente aquilo que deve sustentar seu caráter ontológico e afirmá-lo, de fato, como
substância. Assim, o que nos permite determinar uma substância corpórea o são suas
qualidades físicas externas, mas um princípio de força indivisível e não corporal. Neste
sentido a forma substancial, tal como na acepção escolástica, é aquilo que, sendo intrínseco a
um ente, o determina enquanto tal.
A substância individual foi determinada enquanto tal pela correlação entre o aspecto
lógico da completude (que garante sua substancialidade pela unidade estabelecida através da
reunião dos predicados na noção do sujeito) e a singularidade salvaguardada pela sua alma
racional ou espírito, onde a memória e o reconhecimento de si demarcam-na em sua
individualidade específica. Quanto ao seu corpo, entretanto, se considerado unicamente como
um composto de elementos materiais (res extensa), nada garante a sua distinção em relação
aos outros corpos uma vez que a mesma qualidade de elementos os compõe e, mais
ainda, nada garante a sua própria unidade ou subsistência.
31
Assim, mais do que a simples
origem do movimento nos corpos, a presença da forma substancial denota a sua verdadeira
unidade: um corpo, tal como o humano, é um aglomerado de partes e funções. Embora o
“como” desta união e seu funcionamento possam ser consistentemente explicados por razões
mecânicas, somente o referido princípio metafísico pode fundamentar o próprio fato da
composição destas partes numa unidade permanente. E uma vez encontrada nos corpos uma
unidade metafísica que se coloca para além da simples unidade numérica, surge também certo
parâmetro de singularização não vinculado às ações específicas do pensamento racional; pois
cada corpo possui unidade intrínseca e auto-subsistente, o que lhe basta ao menos como um
traço de discernibilidade em meio à variedade dos corpos físicos. Eis que a restauração das
formas substanciais representa o início de um processo que conduzirá Leibniz gradualmente a
31
Leibniz afirma que “se não há outro princípio de identidade no corpo, além do acabado de dizer [a saber, o
princípio da extensão], nunca um corpo subsistirá mais do que um momento” (1979, p.127).
41
um profundo questionamento sobre os fundamentos da individualidade e unidade no cerne do
conceito de substância. Reservando para o terceiro capítulo a explicitação deste percurso, por
hora é suficiente ressaltar que a conquista de uma singularidade para os corpos através da
forma substancial mostra-se significativa no sentido de retirá-los da generalidade anônima
imposta pela sua consideração enquanto res extensa, permitindo refletir sobre o status
ontológico dos seres não humanos.
Dado que a introdução e justificativa da forma substancial no Discurso de metafísica
se o por meio do tema da origem do movimento e da crítica à ambição mecanicista em
fundar materialmente a noção de uma substância corpórea, tal contexto poderia sugerir a sua
aplicação aos corpos físicos em geral, tomados num sentido abstrato enquanto sujeitos do
movimento. Semelhante concepção remeteria a uma espécie de perspectiva animista, próxima
de algumas vertentes do pensamento renascentista
32
, onde absolutamente tudo se encontra
movido por um mesmo princípio natural, e em íntima comunicação. Ainda que tal modelo
possa de algum modo lembrar a posição final de Leibniz em relação às mônadas, ao menos se
pode afirmar que este não é o nível de questionamento proporcionado pela forma substancial
no contexto específico do Discurso. As formas substanciais constituem um princípio
metafísico de ação. Elas sãoalgo relacionado com as almas(LEIBNIZ,1979, p.127), isto é,
algo que se sobressai por sua dinâmica intrínseca quando comparado à matéria inerte. Os
corpos aos quais tal conceito se aplica, portanto, são os corpos naturais pertencentes aos seres
vivos, os quais Leibniz designa pela particularidade de constituírem um unum per se (1979,
p.149). Esta unidade intrínseca presente nos corpos vivos denota dois fatores fundamentais
previamente presentes na idéia leibniziana de substância, a saber, a autonomia ou auto-
suficiência e a permanência substancial.
A autonomia vigente nos seres vivos consiste em sua disposição natural para a
realização de suas funções internas e para o movimento. Neste ponto Leibniz encontra-se em
pleno acordo com a física aristotélica: tanto os seres móveis como os imóveis manifestam
diferentes classes de movimento a partir de si mesmos.
33
Precisamente esta inclinação
espontânea ao movimento os diferencia dos seres artificiais, desprovidos deste princípio
dinâmico e regidos, estes sim, exclusivamente pelas relações materiais de causa e efeito. Ora,
32
Conforme Reale (2005, v.3, p.106-125), Bernardino Telésio (1509-1588) e sobretudo Campanella (1568-1639)
constituem exemplos deste tipo de concepção. .
33
“E todos eles [os seres por natureza] manifestam-se diferentes em comparação com os que não se constituem
por natureza. Pois cada um deles tem em si mesmo princípio de movimento e repouso.” (ARISTÓTELES, 2002,
192b 13, grifo nosso).
42
tal princípio vital é o que se pretende designar pelo conceito de forma substancial no Discurso
de metafísica. Tanto a capacidade de abandonar o estado de repouso, como também cessar
bruscamente o deslocamento ou alterar-lhe a direção sem depender da influência de outro
corpo
34
encontra-se presente em corpos tais como os dos animais e seres humanos. Esta auto-
suficiência será vista por Leibniz o como uma simples configuração do funcionamento da
natureza, mas como um sintoma substancial presente nos corpos. Assim, em oposição aos
cartesianos, também a substância corpórea revelará um caráter autônomo (e não autômato), e
por isso mesmo pode ser considerada como substância, ao passo que somente as qualidades
extensionais não lhe garantem tal determinação.
O fato dos corpos vivos serem unum per se indica também um estado de permanência.
Este se refere à unidade de suas partes. Os membros, órgãos, ossos, etc. encontram-se
organizados num composto cuja unidade não encontra razão, segundo Leibniz,
exclusivamente em suas determinações físicas. Sem a vigência de um princípio metafísico tal
como a forma substancial, essas unidades compostas, pelas próprias leis da física estariam se
decompondo e recompondo a todo momento, aglutinando-se suas partes em novos compostos,
e assim sucessivamente. Semelhante situação implicaria numa ausência de unidade e
singularidade das substâncias corporais e, por conseguinte, na total indeterminação de
quaisquer estados de coisas, a qual Leibniz rejeita introduzindo o princípio da identidade dos
indiscerníveis. A unidade conferida pela forma substancial ao corpo representa, portanto, a sua
permanência enquanto composto frente às constantes alterações físicas e ao contato com os
demais corpos. Tal permanência constitui-se também como singularidade física, no sentido
em que delimita os limites deste corpo em relação aos outros.
Um último desdobramento notável na restauração leibniziana do conceito de forma
substancial refere-se à retomada do finalismo como aspecto indissociável das considerações
metafísicas em geral. Juntamente com a determinação substancial dos corpos, as causas finais
ou a noção de uma teleologia subjacente aos fenômenos constitui outra noção da filosofia
tradicional posta em xeque pela física moderna. Dado que a nova física permitiu compreender
os fenômenos naturais unicamente a partir de sua causalidade direta (causa eficiente),
dispensou-se o recurso a considerações metafísicas e teleológicas quanto ao âmbito natural.
Em conexão com as questões teológicas Leibniz condena a rejeição moderna das causas finais
34
Sabemos que as reflexões sobre a propriedade da inércia foram determinantes para a rejeição leibniziana do
mecanicismo. A este respeito ver o artigo de John Nason (2001) sobre a crítica leibniziana à extensão: Leibniz’s
attack on the cartesian doctrine of extension.
43
apontando a tendência a uma minimização dos desígnios divinos como determinações
supremas do bem e da perfeição. Mesmo em relação à própria física, ainda que as formas
substanciais não devam obstruir a investigação sobre o modo de operação dos fenômenos
naturais, a sua supressão conduz a uma limitação da razão na compreensão destes fenômenos
em seu sentido mais profundo. Partindo dos pressupostos de que as verdades necessárias se
dão pelo princípio da não contradição e as verdades contingentes se dão pelo princípio da
escolha do melhor, cabe à ciência e à filosofia tentar encontrar e conhecer ambos os princípios
a fim de explicar suficientemente os fenômenos. Assim, a alternância entre o conhecimento da
causalidade material e o conhecimento das razões subjacentes à criação constitui, para
Leibniz, a forma mais apropriada de investigação, conforme se descreve no Discurso:
No entanto, creio que a via das causas eficientes, sendo, com efeito, a mais
profunda e de certa maneira mais imediata e a priori, é em contrapartida bastante
difícil, quando se desce até o pormenor (...) A via das causas finais é, porém, mais
fácil, e não deixa de servir freqüentemente para a descoberta de verdades importantes
e úteis, que teriam de ser demoradamente procuradas por aquele outro caminho mais
físico, do qual a anatomia pode dar exemplos consideráveis (LEIBNIZ, 1979, p.139).
A restauração das formas substanciais, voltamos a enfatizar, não indica uma postura
reacionária de Leibniz ao movimento da filosofia moderna tomado em sua generalidade,
menos ainda uma proposta de retorno ao pensamento medieval. Sua oposição ao materialismo
instaurado pelo predomínio dos procedimentos mecanicistas na filosofia visa denunciar a
imprescindibilidade do recurso à metafísica tanto nas questões mais elevadas sobre as
verdades necessárias da criação divina, quanto em relação ao próprio fundamento da ciência
física e das questões envolvendo as verdades contingentes. Neste contexto, as críticas à
pseudo-substancialidade atribuída à extensão não atuam como uma simples discordância,
senão que constituem os próprios passos da formulação de um sistema alternativo, cuja
reflexão radical sobre os fundamentos do conceito de substância conduzirá o autor a um
projeto dissonante em relação à tendência estabelecida pelos primórdios da filosofia
moderna.
35
Comentando alhures sua teoria Leibniz afirma: “a noção de substância, que
assinalo, é tão fértil que dela resultam verdades primeiras, mesmo aquelas que dizem respeito
a Deus e aos espíritos e à natureza dos corpos (apud Russell, 1968, p.211). No Discurso de
metafísica as relações entre os espíritos e Deus puderam ser suficientemente trabalhadas
35
Nas palavras de Cardoso, “A recusa leibniziana do mecanicismo não decorre, pois, da sua falsidade, não
significa a sua negação pura e simples, mas o seu aprofundamento, a necessidade de passagem a um outro
plano, outro nível” (1992,p.79).
44
através da elaboração do conceito de substância individual e sua noção completa. As questões
envolvendo a natureza dos corpos e seu status ontológico, entretanto, ficam a cargo da
restauração das formas substanciais. Estas representam algo similar à noção geral de alma no
sentido em que conferem dinamicidade e unidade aos elementos materiais constituintes dos
corpos, mas podem ser estendidas a todo ser vivo, livres da vinculação ao pensamento ou
capacidade racional.
As reflexões desenvolvidas até aqui, eximindo-se de uma abordagem exaustiva sobre
os variados temas presentes no Discurso, pretenderam somente expor alguns conceitos e
teorias centrais desta fase do pensamento leibniziano com ênfase especial na noção de
substância e seus desdobramentos. Se o conceito de substância individual, ao tomar os
caracteres humanos enquanto referência ontológica principal, acentua um modo específico de
compreensão da substancialidade em conexão com o estabelecimento de uma identidade
pessoal revelada pelo reconhecimento de si (ipseidade); A forma substancial, por outro lado,
sugere a compreensão de um aspecto mais amplo do conceito de substância enquanto vigência
de um mesmo princípio metafísico para os corpos vivos em geral. Vejamos a seguir de que
forma estes elementos se acomodam no pensamento de Leibniz, revelando a influência da
perspectiva individual e ao mesmo tempo introduzindo as fissuras que conduzem às reflexões
que animam o desenvolvimento final da filosofia do autor.
45
CAPÍTULO II
A PERSPECTIVA INDIVIDUAL
— 4 —
As distinções entre os seres e a alma dos irracionais
Por distinções entre os seres se pretende aludir aos modos e critérios com os quais
Leibniz compreende e separa ao longo de sua filosofia as criaturas em geral; sobretudo a
diferenciação entre seres humanos e animais. À primeira vista, por divergir do pensamento
cartesiano afirmando a vigência de um princípio metafísico ligado aos corpos, Leibniz parece
se aproximar de uma concepção ontologicamente genérica para o conceito de substância.
Todavia, a natureza metafísica do indivíduo delineada pela doutrina das noções completas se
estabeleceu no domínio propriamente humano, condicionada ao caráter reflexivo manifesto
enquanto ipseidade. Assim, a determinação da substancialidade e da individualidade, bem
como a aplicação do termo alma são tópicos que exigirão a atenção do autor ao distinguir o
homem das demais criaturas. Para além de uma mera taxonomia, o tema das distinções entre
os seres permite entrever a própria perspectiva ontológica predominante na filosofia pré-
monádica, isto é, a perspectiva individual. No contexto do Discurso de metafísica tal tema
será abordado diretamente no artigo 34º, fazendo confluir então a teoria das substancias
individuais e a retomada das formas substanciais.
Conforme indicado no próprio título do artigo Da diferença entre espíritos e
demais substâncias, almas ou formas substanciais trata-se de realizar uma distinção
entre o ser humano, concebido enquanto substância individual, e as demais criaturas. Tal
operação visa as entidades vivas em geral, ou seja, os corpos unum per se, cuja dinâmica e
unidade provém de um princípio metafísico intrínseco e auto-suficiente, a saber, a forma
substancial. A permutabilidade então sugerida entre os termos substância, alma e forma
substancial é significativa no sentido de ilustrar dois resultados inovadores da teoria
leibniziana da substância, dado o contexto da nascente filosofia moderna: primeiro, a própria
46
aplicação da forma substancial, isto é, a consideração de um princípio metafísico autônomo
como fundamento da realidade corpórea, que remete à crítica de Leibniz ao materialismo
introduzido pela filosofia mecanicista. Segundo, como conseqüência, a proposta da extensão
do emprego do termo alma aos seres não-humanos, reincorporando ao conceito, para além das
características reflexivas próprias às chamadas almas inteligentes ou espíritos, a presença das
qualidades dinâmicas ligadas ao princípio de atividade inerente ao conceito de substância.
Leibniz se vale do conceito de forma substancial no Discurso para pensar tanto a
natureza corpórea da própria substância individual, como a substancialidade estendida à
totalidade das criaturas. A conexão entre discutir a característica substancial dos corpos e
indagar sobre o status ontológico dos seres não-humanos provém do fato de que, para o
pensamento cartesiano, ambos os temas encontravam-se resolvidos na materialidade da res
extensa. Em outras palavras, uma vez que para Descartes a substancialidade dos corpos em
geral não consistia senão nas propriedades pertencentes à extensão, todos os seres desprovidos
da res cogitans (a natureza metafísica pensante), tal como os animais e demais entidades
vivas, encontravam-se ao mesmo nível de simples corpos materiais, carecendo de uma alma,
esta tomada somente enquanto pensamento racional. Para Leibniz, entretanto, nem a extensão
pode garantir a substancialidade dos corpos, nem é tão segura a opinião de que os animais não
têm alma; desde que bem compreendida a referência do termo. Assim, se os corpos vivoso
se encerram em seus aspectos materiais, senão que se mantém como tal pela ação de um
princípio metafísico, tanto o corpo humano tem uma forma substancial como os demais seres
devem de algum modo participar desta natureza imaterial anteriormente restrita aos espíritos.
Uma vez que Leibniz recusa a tese cartesiana segundo a qual os corpos consistiriam
unicamente em res extensa, isto é, propriedades materiais tais como tamanho, figura e
movimento, cabe ao autor solucionar também a outra parte desta equação. Isto é, ao atribuir
ao corpo humano, bem como aos organismos vivos em geral, um princípio metafísico de ação
que é algo relacionado com as almas (1979, p.127), Leibniz precisa agora redefinir o uso
do termo alma, divergindo da sua concepção enquanto res cogitans ou puro pensamento.
Descartes havia isolado de seu conceito de alma quaisquer traços ligados à vitalidade, pois daí
resultaria o movimento e atividade dos corpos, cujas leis deveriam obedecer somente aos
princípios causais mecanicistas, restringindo-se ao plano físico material. Concebido então
como pura subjetividade pensante, o conceito cartesiano de alma não pôde ser aplicado a
nenhum outro ser além do humano, pois do contrário também os animais deveriam ser
47
capazes de falar ou exprimir pensamentos.
36
Leibniz, por sua vez, reconhecendo a origem do
movimento nos corpos como algo inegavelmente metafísico, se inclinado a conceber um
princípio ativo válido para os corpos vivos em geral. A forma substancial é, portanto, além do
princípio vital no corpo humano, ligado às funções fisiológicas e ao movimento, algo como
uma “alma dos irracionais”, responsável nos animais e outras entidades vivas por sua
dinâmica auto-suficiente, capaz de mantê-los em sua unidade material e conferindo-lhes,
portanto, certa singularidade.
37
Dada esta solução alternativa, contudo, Leibniz
cuidadosamente a exprime como hipótese, empenhando-se em distinguir tal alma dos
irracionais do espírito humano e suas potencialidades:
Supondo que os corpos constituindo unum per se, como o homem, são
substâncias, e têm formas substanciais, e que os animais têm almas, é-se obrigado a
sustentar a impossibilidade de perecerem inteiramente estas almas e estas formas
substanciais (...), pois substância alguma perece, embora possa transformar-se noutra
qualquer. Exprimem também todo o universo, se bem que mais imperfeitamente do
que os espíritos. Mas a principal diferença é que desconhecem o que o ou fazem, e,
por conseqüência, são incapazes de reflexão e não poderiam descobrir verdades
necessárias e universais (1979, p.149).
Se a forma substancial deve ser aceita como o princípio metafísico capaz de conferir
unidade e substancialidade aos corpos vivos em geral, então também os corpos parecem ser
substâncias e os seres não-humanos, anteriormente considerados pelos cartesianos como
simples corpos, devem compartilhar das características substanciais genéricas estabelecidas
por Leibniz, tais como imperecibilidade e expressão. Todavia, esta proximidade que agora se
insinua entre a natureza espiritual do homem e a forma substancial (concebida como uma
espécie de alma dos irracionais) será tratada com cautela por Leibniz. Tomada como objeto da
religião e vinculada aos sentimentos e à potencialidade reflexiva, a peculiaridade da natureza
humana deve receber algum destaque no contexto fortemente teologizado (FICHANT,
2001, p.19) do Discurso de metafísica. Assim, além das propriedades substanciais
elementares, algo na substância individual permanece como um traço particular distinguindo-
a em meio à totalidade das substâncias criadas. Os critérios desta distinção basear-se-ão numa
espécie de autoconsciência ou ipseidade,
38
sugerida como a base da capacidade racional
humana:
36
Cf. Reale (2005, v.3. p.301).
37
Cf. 3.2, p. 41.
38
Vide nota 24.
48
Mas a alma inteligente, conhecedora do que é, e podendo dizer este eu (moi),
que diz muito, não permanece e metafisicamente subsiste bem mais que as outras,
como ainda permanece moralmente a mesma e constitui a mesma personagem. Pois é
a recordação ou o conhecimento deste eu (moi) que a torna suscetível de castigo ou de
recompensa. Também a imortalidade exigida na moral e na religião não consiste
exclusivamente nesta subsistência perpétua, que convém a todas as substâncias, pois
nada teria de desejável sem a recordação do passado (LEIBNIZ, 1979, p.149).
Aprofundando a distinção corrente e superficial do ser humano frente às demais
entidades vivas como um animal racional, Leibniz propõe como origem da potência
intelectual humana o reconhecimento de si e das próprias ações. Esta ipseidade ou
reconhecimento de si enquanto sujeito constitui então a condição para os atos reflexivos que,
desenvolvendo-se, capacitam o homem a compreender os princípios da criação divina ou
verdades necessárias, afirmando sua excelência em relação às demais criaturas. Portanto, na
base das operações racionais que caracterizam a figura humana encontra-se, de forma mais
originária, a própria constituição do indivíduo: É sobretudo pela vigência de um eu, afirma
Leibniz, que as substâncias individuais serão compreendidas como espíritos cuja consciência
dos próprios eventos demarca sua individualidade e os constituem como uma personagem;
uma personalidade singular. Os animais e demais seres vivos, por outro lado, ainda que
privados de tais características auto-reflexivas, compartilham do status de substância e,
conseqüentemente, dos traços gerais apresentados no Discurso para este conceito.
Compreendida a forma substancial como o elemento imaterial que confere unidade e
atua como princípio ativo nos corpos, sua analogia com o uso comum do termo alma insinua-
se imediatamente, uma vez que se tende a reconhecer no homem e em todas as entidades
vivas, se não o mesmo princípio, ao menos uma grande similaridade entre o ímpeto vital
ligado ao crescimento e movimento.
39
Todavia, num primeiro momento Leibniz parece hesitar
diante desta similaridade metafísica ou comunidade entre os seres viventes sugerida pela
forma substancial. Sempre que, no Discurso de metafísica, o autor propõe a existência de uma
alma dos irracionais, isto é, uma alma das criaturas o-humanas, ele o faz de forma
hipotética e apressa-se em estabelecer as distinções entre homens e animais. Isto ocorre
primeiramente no artigo 12º, onde, tendo citado de passagem a alma dos irracionais o autor
imediatamente observa: muito embora esta [forma substancial] nada modifique nos
fenômenos, tanto como a alma dos irracionais, se a possuem.”, esboçando logo em seguida
39
Assim como no étimo grego yuc» (alma, sopro de vida), em quase todas as línguas a palavra correspondente
à alma significa sopro, exalação ou alento (BARSA,1988, v.2, p.284). Deste modo, usualmente a palavra “alma”
designa o sopro vital presente nos corpos, que os mantém em atividade, e que se vai após a sua dissolução.
49
uma distinção prévia: No entanto as almas e as formas substanciais dos outros corpos são
bem diferentes das almas inteligentes (LEIBNIZ, 1979, p.127, grifo nosso). Novamente, no
supracitado artigo 34º a afirmação da alma dos irracionais aparece sob uma forma condicional
Supondo (...) que os animais têm almas...”, seguida então pela referida distinção entre
espíritos e demais seres (LEIBNIZ, 1979, p.149). Também a seqüência das ocorrências do
termo alma ao longo de todo o texto indica uma atenção especial de Leibniz quanto à sua
utilização: no artigo Leibniz se refere à “alma de Alexandre”, valendo-se deste conceito
para designar as substâncias individuais. O artigo 12º introduz a alma dos irracionais
estendendo o emprego do termo a todas as entidades vivas. A maior parte das ocorrências
seguintes (artigos 26, 27, 28 e 29) designará então os seres humanos valendo-se da ressalva
“nossa alma”.
A justificativa mais imediata à aparente precaução de Leibniz em afirmar a alma dos
irracionais fica por conta de suas convicções religiosas. Dado o teor teológico do Discurso,
bem como o manifesto interesse de seu autor em conformar suas teorias à doutrina cristã
estabelecendo-a racionalmente, o motivo de sua cautela quanto a este tema se faz evidente:
Sustentar, sem mais, a existência de uma alma para os animais poderia sugerir uma anulação
da diferença metafísica entre estes e o homem, subvertendo a tradicional imagem cristã do ser
humano como distinto da natureza, dotado de inteligência e criado à imagem e semelhança de
Deus. Assim, amenizando prováveis tensões, o autor tende a distinguir metafisicamente os
seres existentes em espíritos ou almas racionais, os quais são os mais perfeitos e que melhor
exprimem a divindade (LEIBNIZ, 1979, p.150), e as outras almas ou almas do irracionais,
referente aos demais seres vivos em geral. No entanto, para além de uma mera adequação às
verdades da fé, tal atitude é resultado de uma importante decisão ontológica que irá
gradualmente se impor à Leibniz pela suposição de um princípio metafísico válido para os
seres em geral: Dada a possibilidade da existência de uma alma dos irracionais, ou bem deve
haver duas naturezas de almas ou substâncias uma de ordem superior referente aos
espíritos, capaz de justificar o pensamento como sua prerrogativa metafísica exclusiva, e outra
de ordem inferior, simplesmente relacionada às propriedades dinâmico-vitais e válida para as
criaturas em geral ou se trata de uma realidade substancial e a potência racional que
distingue os espíritos das demais criaturas deve ser buscada alhures, isto é, não deve pertencer
à constituição fundamental do conceito, visto a sua aplicação universal e a restrição daquela
50
potência a uma única espécie de seres.
40
Oficialmente o Discurso de metafísica sustenta a
primeira alternativa, uma vez que as distinções entre os seres apontam para uma bipartição
substancial sustentada pelo caráter individual dos espíritos como o fundamento de um nível
distinto de substancialidade. Contudo, referências esporádicas aos traços genéricos do
conceito de substância distribuídas ao longo do texto — tais como a enunciação da identidade
dos indiscerníveis (art.9), o tema da expressão (14) e das percepções (33) aliadas à
demanda por generalidade ontológica sugerida pela forma substancial anunciam a formação
de uma nova perspectiva para pensar a substancialidade e sua relações,
indicando o rumo do
desenvolvimento final da filosofia leibniziana.
41
Esta encruzilhada a que chega o pensamento de Leibniz pela precisa determinação e
referência da noção de alma é representativa das condições a partir das quais sua teoria da
substância irá assumir um posicionamento estruturalmente distinto da tendência delineada
pela nascente filosofia moderna. Conforme se afirmou anteriormente,
42
com as Meditações a
temática da substância se desloca do âmbito natural para o campo da interioridade racional
humana, de modo que as discussões sobre a subjetividade pensante, o ego cogito cartesiano,
figuram como um dos grandes temas presentes no final do séc. XVII. No que concerne ao
Discurso, de fato a formulação da substância individual enfatizada por meio de seus atributos
ou eventos parece atender a esta demanda contextual, dirigindo-se diretamente ao ser humano
e determinando-o em suas características substanciais pela referência à sua constituição como
indivíduo. Ora, a individualidade que distingue os espíritos frente às demais substâncias
remete à ipseidade, tomada enquanto vigência de um eu pela transparência das
representações. Deste modo, uma estreita relação estabelecida entre substancialidade e
personalidade, esta última entendida como um caractere propriamente humano, se faz
presente na concepção leibniziana de substância individual. Contudo, ao supor nos corpos
uma essência metafísica Leibniz vai romper com a substancialidade atribuída à matéria para
situá-la unicamente no plano metafísico, aproximando-se da concepção dos animais e demais
seres vivos igualmente como substâncias ou almas, cuja auto-suficiência independe então das
sofisticações da alma racional. A aparente hesitação ante a proposta de extensão do conceito
40
A primeira alternativa concorda, a princípio, com o pressuposto tomista das almas brutas e será sustentada
pelo Discurso aparecendo também no início das Correspondências com Arnauld. A segunda alternativa,
entretanto, passa a ganhar força no contexto do desenvolvimento do conceito de mônada a partir de 1695 com o
Sistema Novo da natureza e da comunição das substâncias. Justamente esta transição representa a passagem
definitiva do individual ao monâdico; uma mudança na perspectiva ontológica envolvendo a concepção do
conceito de substância.
41
Eis o que se pretende apontar com o título “O individual e suas fissuras”.
42
Cf. 1.1, p 12.
51
alma aos seres vivos em geral representa, portanto, certa indecisão quanto à substancialidade
dos corpos, por um lado, mas também quanto à conformação da unidade, singularidade e
individualidade no interior do conceito de substância. Tal questão não será abordada nas
páginas do Discurso, mas aparece na segunda fase das Correspondências com Arnauld
abrindo a problemática que conduzirá o pensamento de Leibniz ao redimensionamento do
plano ontológico no qual se inscreve a idéia de substancialidade.
Assim, embora, passada a juventude “cartesiana” de Leibniz,
43
o Discurso de
metafísica seja freqüentemente considerado como um sumário das críticas maduras do autor a
certos pressupostos fundamentais da filosofia de Descartes, a preponderância da concepção de
substância individual enquanto sujeito notadamente enquanto sujeito humano indica a
persistência de uma proximidade à noção de cogito. Por certo que a partir da negação das
propriedades provenientes da extensão como determinantes substanciais o modelo original res
cogitans/res extensa será abertamente rejeitado pelo sistema leibniziano, tanto pela atribuição
de um fundamento metafísico para a realidade corporal, quanto pela proposta de uma
dissociação entre substancialidade e pensamento que será gradualmente incitada pela temática
das formas substanciais. Todavia, neste momento talvez ainda reste certo “resíduo de
cartesianismo”
44
atestado pelo formato dual das distinções entre os seres apresentadas pelo
Discurso. Ainda que Leibniz suponha uma alma dos irracionais responsável pela
substancialidade atestada pelos seres vivos em geral, esta permanece verificada tão somente
na plataforma corpórea. a alma inteligente, embora encontre também em seu corpo os
predicados componentes de sua noção completa, tem sua substancialidade assegurada no
plano metafísico das representações, justamente caracterizado pela ipseidade ou caráter
reflexivo inerente ao seu modo de ser. Esta implícita vinculação entre substancialidade e os
caracteres propriamente humanos representados pela potencialidade reflexiva constitui a
marca característica da perspectiva individual em Leibniz, conforme se pretende mostrar no
texto a seguir.
43
NASON (2001, p. 447-8) afirma em seu artigo que, por volta dos 15 anos o pensamento de Leibniz
permanecia em grande parte imerso no cenário da filosofia cartesiana, propondo assim um “período cartesiano”
do pensamento do autor.
44
Em seu prefácio à Monadologia Manuel Heleno se refere a esta “herança” cartesiana ao se referir ao universo
representado pela monadologia: “Um mundo de pregas, barroco, que Leibniz aperfeiçoou quando deixou de
estar imbuído de cartesianismo” (2001, p.14).
52
— 5 —
A perspectiva individual
Uma perspectiva representa um ponto de vista; a determinação do campo visual e das
formas e objetos que o compõem segundo um lugar específico de observação, segundo uma
referência espacialmente determinada. Neste sentido, considerar o individual como uma
perspectiva ontológica no pensamento de Leibniz significa compreender como, no período
que se estende a o Discurso de metafísica, o acesso filosófico ao real e seus elementos
constituintes, bem como as teorias que se propõe a explicar esta conjuntura, se dão a partir de
uma referência teórica predominante, a saber, a concepção do ser humano tomado enquanto
substância individual, isto é, enquanto ser completo determinado em sua singularidade pelo
traço reflexivo de suas representações. Bem entendida, a perspectiva individual é mais do que
somente a atuação determinante do conceito de substância individual nas teorias do Discurso.
Antes, é pelo seu caráter subjacente às teses leibnizianas enquanto um modo peculiar de
apreensão do real (um recorte ontológico), que tanto os elementos ligados à substância
individual quanto os elementos que mais se aproximam de uma posterior concepção da
substância simples aparecem nesta obra de maneira determinada, revelando traços e também
limitações características.
5.1 O individual no Discurso de metafísica
Em concordância com as tendências de seu tempo, a maior parte das questões
filosóficas abordadas no Discurso de metafísica envolve direta ou indiretamente a figura
humana enfatizada enquanto ser pensante e auto-fundado. Seja nas considerações
epistemológicas sobre a natureza das idéias e do conhecimento ou nas discussões em torno da
liberdade e determinação de suas ações, seja nas especulações sobre a particularidade dos
decretos divinos, a silhueta de uma subjetividade bem demarcada pela potência reflexiva é
delineada ao longo do texto sob variados aspectos. Quanto à própria teoria da substância não
poderia ser diferente, dada a intensa interlocução de Leibniz com a filosofia cartesiana e seus
adeptos, bem como seu interesse em propor alternativas aos problemas por ela legados. Ainda
53
que a formulação teórica da substância individual seja pensável em termos genéricos, sua
aplicação visa diretamente uma pessoa ou personagem, que consiste num espírito singular
com um corpo determinado, cujas ações (sejam corpóreas ou mentais) se desdobram de sua
própria noção e a mantém em comunicação com todas as coisas pela mutua limitação entre as
substâncias e, conseqüentemente, por meio da plena conexão entre os elementos da criação. A
ênfase na exploração da tese das noções completas agrega ao conceito em questão não a
representação abstrata do ser humano, mas o próprio mundo da vida ou dos fatos
contingentes. Assim, ao trazer para o interior do conceito de substância a infinita variedade
das verdades contingentes, integrando a efetividade existencial humana no plano da estrutura
cosmológica da criação divina, a filosofia do Discurso se refere prioritariamente aos eventos
humanos, agregando à noção de indivíduo uma complexidade de sentido somente concebível
em termos da potência reflexiva ou racionalidade presente nos espíritos.
Por certo que em consonância com a ênfase atribuída à substância individual e às
questões teológicas, grande parte dos princípios fundamentais que tornaram célebre o sistema
de Leibniz se encontra suficientemente amadurecida e plenamente enunciada em meio à
seqüência argumentativa do Discurso, proporcionando algumas admiráveis antecipações da
Monadologia. Entretanto, dada a “novidade” do filosofema substância individual/noção
completa
45
, mesmo a abordagem destes temas, tais como a natureza expressiva das
substâncias (§14) e as características de suas percepções (§33), será perpassada pela
influência de uma íntima relação entre a concepção da substancialidade e os caracteres
propriamente humanos ligados à potencialidade reflexivo-racional, mantendo-se ainda
afastada da ulterior concepção de mônada que vem a caracterizar os textos de 1714. Em
outras palavras, o individual se mostra como a referência teórica a partir da qual Leibniz
pensa o conceito de substância no Discurso e o aplica aos princípios metafísicos
anteriormente desenvolvidos ao longo de sua carreira.
46
Neste sentido, tanto a concepção da
própria substância individual como as reflexões voltadas aos aspectos gerais do conceito de
substância envolvendo a totalidade das criaturas serão vistas sob tal perspectiva. Cabe, então,
perguntar: De que modo a teoria leibniziana da substância permanece direcionada pela
perspectiva individual no Discurso de metafísica e em quê precisamente consistem as
45
A teoria das noções completas permanece, neste momento, como uma aquisição recente no rol das teses
leibnizianas. Segundo Fichant (2001, p.24), sua exploração será intensa ao longo dos anos 80 e na primeira fase
das correspondências com Arnauld.
46
Segundo Mercer e Sleigh (1995, p.72), dentre tais princípios se encontram o da auto-suficiência substancial, o
da atividade substancial e o da razão suficiente.
54
referidas relações entre substancialidade e individualidade compreendidas como o cerne desta
perspectiva?
Quanto às elaborações mais genéricas do conceito de substância distribuídas ao longo
do Discurso, a presença da perspectiva individual se mostra como o horizonte a partir do qual
os caracteres aparentemente “monâdicos” são pensados por Leibniz. No artigo 14º, por
exemplo, a imagem de miríades de substâncias criadas por Deus, cada uma representado o
resultado da visão do universo sob um ponto de vista singular, de fato será retomada tal e qual
na Monadologia (§56-58). Mas como conclusão da afirmação do caráter expressivo inerente
às substâncias em geral o autor escreve as seguintes palavras: E como a visão de Deus é
sempre verdadeira, as nossas percepções igualmente o são, mas nossos juízos, que são
apenas nossos, nos enganam.”(LEIBNIZ, 1979, p.130) Eis que o problema cartesiano da
objetividade das representações sobre o mundo é citado em passant, trazendo novamente o
conceito de substância para a esfera da subjetividade pensante.
47
Também no artigo 33º, a
alusão às percepções confusas como resultado da impressão recebida de todos os outros
corpos do universo antecipa inegavelmente a essência da tese da entreexpressividade
monádica. Porém, igualmente claro é o direcionamento destas reflexões à natureza humana e,
portanto, indiretamente à idéia de uma transparência acerca das percepções: Por isso são os
nossos sentimentos confusos o resultado duma variedade completamente infinita de
percepções” (LEIBNIZ, 1979, p.148). Assim, embora nestes dois casos a própria referência ao
conceito de substância permaneça genérica, o especificando qualquer alusão exclusiva à
substância individual, o que se encontra de fato em causa é o domínio do indivíduo e sua
noção completa, sugerido como o complexo campo dos sentimentos, memórias e
representações.
Nos exemplos brevemente supracitados não somente a evidência da direta aplicação
dos conceitos em pauta às substâncias individuais deve ser destacada (o que se mostra pelo
uso dos plurais, como as nossas percepções e nossos sentimentos), mas principalmente a
atenção de Leibniz e o encaminhamento de suas teorias a um contexto teórico que pressupõe a
inclusão dos caracteres reflexivos na concepção da substancialidade. É verdade que em meio
a este cenário o tema das percepções surge justamente como o ponto de ligação entre os
47
Ao-objetividade dos juízos decorrentes da percepção sensorial foi um dos impasses epistemológicos gerados
pela teoria cartesiana da representação. Descartes prova a existência do mundo extenso, mas não a objetividade
das representações do mundo. Leibniz, por sua vez, ao afirmar a substância como um mundo à parte, no qual
todos os fenômenos provêm de sua própria noção, situa nela mesma a validade de suas percepções particulares e
a possibilidade de juízos ou representações verdadeiras.
55
caracteres substanciais desenvolvidos com o apoio da substancia individual e uma idéia de
substância não vinculada ao traço reflexivo-racional, representada sutilmente pelo conceito de
forma substancial. Este passo, entretanto, ainda não es dado no Discurso e dependerá de
outras reflexões somente desenvolvidas a partir das objeções levantadas posteriormente por
Arnauld. Por hora, é suficiente ressaltar o seguinte: ainda que no Discurso de metafísica as
especulações sobre os caracteres substanciais sejam, por vezes, elevadas a um domínio amplo,
abarcando a totalidade das criaturas (tais momentos remetem justamente a uma similaridade
com as construções presentes na Monadologia e Princípios da natureza e da graça), a
referência ao contexto propriamente humano direciona de modo determinante a reflexão
leibniziana no texto de 1686. Se nestas passagens aquilo que Leibniz afirma das substâncias é
válido para os seres em geral assemelhando-se à perspectiva imposta pelo conceito de
mônada, o local teórico de onde ele se situa para propor tais reflexões ainda é, sem sombra de
dúvida, o domínio da perspectiva individual.
5.2 Substancialidade, individualidade e humanidade
Retornando à segunda parte da questão anteriormente formulada, trata-se de
compreender as relações que envolvem a substancialidade e uma noção específica de
indivíduo enquanto ipseidade ou consciência de si. Posto que num primeiro momento o
conceito de substância foi determinado pelo Discurso de metafísica através da consideração
lógica de sua completude, as condições deste procedimento, isto é, o enlace da
substancialidade à singularidade de um sujeito pela determinação absoluta de seus predicados
na noção completa sugere uma estreita relação entre o determinante substancial (aquilo que
faz de um ser uma substância) e a idéia de individualidade. Embora até este ponto o passo
formal da atribuição de uma noção completa como condição de substancialidade de um
sujeito mantenha-se numa acepção universal, a princípio aplicável a qualquer ente singular
fisicamente determinado,
48
o estabelecimento de uma substância individual tem em vista um
tipo específico de noção completa que, por sua vez, acrescenta outro elemento a este processo,
48
Conforme se afirmou anteriormente (2.2, p.30) num sentido rigoroso a determinação da substancialidade pela
completude do conceito não se restringe necessariamente aos seres humanos, uma vez que todo ser existente ao
qual se lhe pode atribuir predicados particulares, e que por sua vez não é predicado de um outro ser, deve ser
considerado uma espécie de sujeito, possuindo então uma noção completa e preenchendo assim os requisitos
substanciais estabelecidos por este procedimento.
56
como ficará claro no artigo 14º: Os eventos de cada um são considerados apenas como
conseqüência de sua simples idéia ou noção completa. (...) Com efeito, nada pode acontecer-
nos além de pensamentos e percepções (LEIBNIZ, 1979, p.130). Ora, a afirmação dos
pensamentos como predicados contidos na noção completa adiciona um fator diferencial ao
conceito de substância individual, determinando assim o sentido pontual da noção de
individualidade em questão: um indivíduo é não somente um sujeito ao qual se pode atribuir
predicados num sentido abstrato, mas uma personagem cujas ações e eventos estão presentes
para si e devem ser tomadas como seus atributos próprios em um contexto existencial
determinado. Neste ponto se encontra implicitamente pressuposto um predicado especial
ligado à transparência das percepções e pensamentos próprios do sujeito. A demarcação da
individualidade do indivíduo, da sua identidade singular, se faz pela referência específica a
uma consciência de si e dos próprios atos, representada na imagem das personagens históricas
evocadas por Leibniz como exemplos. Esta inclusão da ipseidade na constituição conceitual
da substância individual será enunciada com todas as letras ao final do texto, a partir das
distinções entre os seres realizadas no artigo 34º: Mas a alma inteligente, conhecedora do
que é, e podendo dizer este eu (moi), que diz muito, não permanece e metafisicamente
subsiste bem mais que as outras, como ainda permanece moralmente a mesma e constitui a
mesma personagem.” (LEIBNIZ, 1979, p.149)
Uma vez que o conceito de substância individual enfatizado pelo Discurso, embora
formalmente ligado ao aspecto da completude, se encontra edificado sobre a ipseidade ou a
capacidade notadamente humana de aperceber-se como indivíduo e sujeito das próprias ações,
o caráter reflexivo funda a noção de individualidade e restringe a aplicação do conceito em
questão a outros seres que não os humanos. Indivíduo, neste contexto, não somente diz
respeito à simples singularidade delineada pela pertença de predicados particulares a um
sujeito, senão que remete ao pressuposto da transparência desta pertença como a origem da
subjetividade. Não por acaso a ipseidade se mostra como o próprio distintivo de humanidade
em oposição às demais criaturas. Ainda que a existência da mais elementar entidade viva
possa ser traduzida em termos de uma noção completa delimitando-a em sua singularidade,
a principal diferença afirma Leibniz (1979, p.130), é que [tais seres] desconhecem o que
são ou fazem e, por conseqüência são incapazes de reflexão”. Ora, justamente esta sutil
conversão da singularidade do sujeito na individualidade reflexiva da alma inteligente
sustenta a associação entre substancialidade e humanidade que permanece no cerne da
57
perspectiva individual. Seu traço característico consistirá precisamente na conexão que se
estabelece entre a noção de indivíduo e os caracteres humanos concebidos no sentido de uma
personalidade ou identidade ligada à vigência de um eu. Assim, se Leibniz abandona o
pressuposto da existência independente para fundar a determinação real da substância nos
atributos concretos de cada indivíduo, ao tomar a figura humana como modelo substancial o
próprio critério de individuação limita-se a caracteres específicos e se associa à potencialidade
reflexiva própria dos espíritos.
*
Da presença da ipseidade como elemento fundamental inerente ao conceito de
substância individual se deduz a restrição deste ao domínio dos espíritos ou almas
inteligentes. Mas por contraste à referida associação entre substancialidade, individualidade e
humanidade, Leibniz parece encontrar na tese das formas substanciais um caminho diverso
para pensar as demais criaturas enquanto substâncias. Com efeito, se um componente central
da determinação da substancialidade no que diz respeito aos espíritos se fez ausente na
constituição dos seres em geral, ou bem estes seres, tais como os animais, o devem ser
considerados substâncias, ou é necessário conceber um meio alternativo de determinar sua
substancialidade; distinto e mais geral que aquele vinculado à individualidade, e, portanto,
alheio à ipseidade. Esta questão é aparentemente resolvida no Discurso pela restauração das
formas substanciais, que situa conjuntamente a substancialidade das criaturas em geral e a
afirmação da substancialidade dos corpos em função de sua auto-suficiência e espontaneidade
dinâmica. Se os irracionais não foram considerados propriamente como indivíduos pela
ausência da capacidade reflexiva, o princípio vital representado pela forma substancial como
origem autônoma de movimento é capaz de conferir a unidade necessária para que todos os
seres cujos corpos são unum per se sejam considerados substâncias. Assim, sob o ponto de
vista corpóreo todas as criaturas têm forma substancial e são substâncias, mas as substâncias
individuais possuem, além desta, uma alma racional ou espírito.
Embora apresentado como uma conjunção harmônica entre o conceito de substância
individual e a tese das formas substanciais, o tema das distinções entre os seres, seus termos e
conseqüências, bem como o caráter específico da noção de ipseidade enfatizada não serão
elaborados em profundidade pelo Discurso, deixando em aberto questões relevantes. Afinal,
se os espíritos serão duplamente determinados em sua substancialidade pela unidade corporal
58
e pela individualidade (ipseidade), ao passo que aos irracionais somente será atribuído um
princípio metafísico que se limita à dinâmica corporal, mas que ainda assim os constitui
igualmente como substâncias, não será a forma substancial um princípio ontológico mais
genérico, capaz de impor a determinação da substancialidade a partir de um nível mais
elementar? Da preponderância do aspecto da individualidade nas almas racionais se deve
necessariamente deduzir duas classes distintas de substâncias? Ou, pelo contrário, o domínio
ontológico uniforme sugerido pela forma substancial tende a desabilitar a ipseidade enquanto
determinante substancial para somente compreendê-la como um predicado especial?
Ora, tais questões remetem justamente às diferentes configurações do conceito de
substância em Leibniz, cuja variedade remonta ao próprio percurso do desenvolvimento de
sua filosofia, objeto da presente dissertação. Sabemos que o resultado final desta empreitada é
a concepção da mônada como o elemento último do qual tudo o mais se compõe,
caracterizando a opção do autor pela afirmação de uma única natureza substancial designada
pelo conceito de substância simples. Segundo Mercer (1995, p.75), entretanto, em sua
“primeira metafísica”, cerca de vinte anos antes da escrita do Discurso, Leibniz de fato
considerava que duas classes de almas e conseqüentemente duas classes de substâncias”.
Mais próximo da concepção aristotélica, o autor tendia então a compreender a alma como o
princípio ativo de movimento que pertencia às substâncias humanas individualmente e aos
demais seres somente numa espécie de comunidade com a “alma universal”, atribuída a Deus
como princípio universal de atividade.
49
A meio caminho destes dois extremos, o Discurso de
metafísica claramente sustenta a bipartição entre espíritos e demais substâncias, mas ao
mesmo tempo propõe a autonomia dos seres em geral, tomando a forma substancial como um
princípio capaz de conferir certa individuação através da unidade conferida ao corpo, de modo
que cada substância deve ter um princípio metafísico ou alma singular. Embora tal formulação
possa sugerir a aceitação da vigência de uma realidade substancial, a partir da qual
espíritos e almas dos irracionais seriam qualquer tipo de variação, a ênfase conferida às
características reflexivas da substância individual e o caráter hipotético com o qual a tese da
alma dos irracionais será apresentada nesta obra não dão plena voz à semelhante proposta, que
somente permanecerá nas entrelinhas de alguns artigos,
50
mantendo em aberto uma resposta
49
Mercer cita as palavras do próprio Leibniz em manuscritos: “A substância do corpo humano é a união com a
alma humana, e a substância dos corpos que carecem de razão é a união com a alma universal, ou Deus.
(LEIBNIZ, apud Mercer e Sleigh, 1995, p.75)
50
Para citar somente dois exemplos, o artigo 9º parece indicar tal generalidade ontológica ao afirmar que “toda
substância é como um mundo completo e como um espelho de Deus”. Também o artigo 32º afirma que “Toda a
substância tem perfeita espontaneidade” (LEIBNIZ, 1979, p. 125 e 147.) Assim, a suposição desta generalidade
59
definitiva à questão.
Esta descontinuidade que se estabelece entre a determinação da substância como
individual e a pretensão de uma extensão da substancialidade às criaturas em geral sugerida
pela forma substancial pontua uma tensão presente nas páginas do Discurso, demarcada entre
o campo de referência estabelecido pela individualidade (ligado aos aspectos reflexivos dos
espíritos) e um âmbito ontológico mais amplo, porém ainda obscuro, demandado para pensar
os princípios gerais inerentes ao conceito de substância que Leibniz enuncia esporadicamente
ao longo do texto. Semelhante oscilação pressagia um momento de indeterminação que se
instaura gradualmente no pensamento de autor por conta da determinação do estatuto
ontológico dos corpos e das reflexões sobre a forma substancial. Seu sintoma está
representado no caráter problemático da escrita do Discurso, cuja síntese doutrinal reúne
contribuições “genética e sistematicamente distintas”, conforme afirma Fichant:
Do rascunho atormentado ao estado da cópia na qual Leibniz encerra seu
trabalho de reescritura, o Discurso de metafísica exprime um pensamento que opera
sobre redes conceituais que não se conectam em uma sistematicidade fechada. (...)
Descontinuidades e aberturas tornam a unidade do texto problemática, introduzindo
nele fissuras que, a seu turno, demandam uma busca por soluções inéditas (2004, 78).
À primeira vista, a idéia de uma transição da realidade do indivíduo tomado enquanto
personalidade humana para um âmbito ontológico mais fundamental sugerido implicitamente
pelas formas substanciais parece indicar no Discurso a saída para o conceito de mônada,
que doravante somente teria sido lapidado em sua terminologia aos textos de 1714. Porém,
ainda que tal seja de fato a direção na qual avançam as idéias do autor, é imprescindível
ressaltar que a despeito da concepção de um princípio metafísico válido para os seres em
geral, ao menos em 1686 o pressuposto de uma universalidade ontológica semelhante ao
princípio monádico ainda não está sendo pensado através do conceito de forma substancial.
Isto porque a substancialidade das demais formas de vida, tais como os animais, será
verificada na própria plataforma corpórea e se mantém numa diferença ontológica
fundamental em relação à substancialidade capaz de determinar um indivíduo. Em resumo,
até o momento da escrita do Discurso de metafísica a recusa de Leibniz a uma
substancialidade fundada pela matéria extensa ainda o o eximiu do fardo de sustentar uma
bipartição substancial baseada numa noção de subjetividade pensante. Neste sentido, as
encontra-se presente no Discurso, mas permanecerá eclipsada pela ênfase conferida aos espíritos e suas
características, que se impões nas distinções entre os seres realizadas pelo artigo 34º.
60
referidas fissuras que se manifestam na unidade argumentativa do Discurso consistirão
justamente nas limitações impostas pelo predomínio da perspectiva individual na concepção
do conceito de substância. Elas tendem a se intensificar com a troca de correspondências entre
Leibniz e Arnauld e a introdução gradual da unidade e simplicidade como temas fundamentais
para a determinação deste conceito. Trata-se então de atentar para os detalhes desta transição.
61
CAPÍTULO III
UM OLHAR SOBRE AS
CORRESPONDÊNCIAS COM ARNAULD
— 6 —
1ª Fase — Substância individual, contingência e ipseidade
Desejoso em obter a opinião do teólogo jansenista Antonie Arnauld sobre suas idéias,
Leibniz recorre ao intermédio do Príncipe Ernesto Langrave requerendo seu favor em fazer
chegar àquele um sumário dos 37 artigos do Discurso de metafísica. O breve resumo do
conteúdo do Discurso, disposto numa única folha, de fato atingiu seu objetivo de atrair a
atenção do afamado intelectual francês. Porém, a reação de Arnauld às idéias leibnizianas não
se mostraram nada favoráveis, ao que este escreve ao príncipe: “Encontro nestes pensamentos
tantas coisas que me assustam, e que quase todos os homens (...) achariam tão chocantes,
que não vejo a utilidade de um escrito que, aparentemente, todos rechaçarão (LEIBNIZ,
2004, p.13). Diante de tão inusitada opinião, Leibniz se propõe a esclarecer suas teorias
encontrando nas contínuas e perspicazes objeções de Arnauld uma oportunidade de pô-las à
prova. A volumosa correspondência que assim tem início se estende até meados de 1688,
constituindo uma das principais elaborações do pensamento leibniziano, da qual o autor
manifestou por diversas vezes o desejo de publicar.
51
Seu texto integral pode ser dividido em
duas fases, marcadas respectivamente pela discussão sobre a determinação da substância
individual pela completude de sua noção e sobre a restauração das formas substanciais, ligada
ao tema da corporeidade e unidade. Ambas fornecem elementos importantes para a
compreensão da especificidade das transições que doravante virão gradualmente se impor à
teoria leibniziana da substância, tal como se pretende mostrar nos tópicos a seguir.
51
Cf. Fichant (2004, p.9).
62
6.1 Contingência e individualidade
O estranhamento de Arnauld diante da doutrina leibniziana das noções completas
conduz o debate inicial das Correspondências aos meandros da polêmica envolvendo a
liberdade das ações humanas frente à predeterminação dos acontecimentos por Deus e a
liberdade das próprias ações divinas, dado o pressuposto de que o conceito completo de uma
substância individual envolve de algum modo todas as outras substâncias e seus respectivos
eventos. Bem versado nas idéias cartesianas e profundo conhecedor dos temas teológicos,
Arnauld não pôde admitir a proposição segundo a qual “a noção individual de cada pessoa
encerra de uma vez por todas o que lhe sucederá sempre”, que a seu ver condenava a
liberdade dos decretos divinos forçando-os todos a amoldar-se aos eventos encerrados na
noção da primeira substância criada (Adão). Apresentando uma intuição distinta da potência
divina Leibniz faz intervir sua teoria da harmonia reguladora das substâncias relacionada ao
pormenor da criação: O universo é como um todo que Deus penetra de um olhar. Com
efeito, esta vontade [de estabelecer uma harmonia universal] compreende virtualmente os
demais atos de vontade referentes ao que entra no universo (2004, p.19). Neste sentido, o
caráter da perfeição da obra de Deus se mostra justamente na acomodação simultânea e a
priori de todas as noções individuais e seus eventos: Deus, ao resolver criar determinado
Adão, tem em conta todas as resoluções que toma sobre toda a série do universo.” (LEIBNIZ,
2004, p.40) A onisciência do Criador, por conseguinte, permite ver na noção de uma
substância individual o enlace com toda a criação.
Em sua primeira réplica aos esclarecimentos de Leibniz,
52
Arnauld concede que
tomara inicialmente a idéia de noção completa não como algo da ordem do entendimento
divino, senão como é em si mesma”. Tal distinção será ilustrada pelo exemplo com o qual o
teólogo justifica sua posição:
Pois me parece que não é costume considerar a noção específica de uma esfera
enquanto representada no entendimento divino, senão com relação ao que é em si
mesma. E acreditava que assim era também com respeito à noção individual de cada
pessoa ou coisa (p.30).
53
52
Carta datada de maio de 1686.
53
Uma vez que se trata da análise pormenorizada das Correspondências com Arnauld, fica valendo esta única
referência para as citações com recuo, cujo número da página seguirá entre parênteses (salvo citação de
comentadores, indicadas normalmente) : (LEIBNIZ, 2004).
63
Arnauld admite que, se considerada a partir do ponto de vista do entendimento divino,
é plausível a idéia de que haja algo como uma noção completa de Adão, cujo conhecimento
revelaria o enlace com a posteridade e portanto com as noções completas de outras
substâncias. Todavia, suas objeções quanto ao risco de um fatalismo serão mantidas,
transferindo-se a outros pontos da argumentação leibniziana, ao que o debate prossegue
assumindo novas direções. Mas precisamente esta concessão sobre a noção completa, bem
como a ilustração evocada por Arnauld permitirão a Leibniz ressaltar o caráter específico da
individualidade substancial a partir da realidade das verdades contingentes, demarcando a
distinção entre necessidade e possibilidade e sua relação com o conceito de substância
individual. Valendo-se do próprio exemplo da esfera sugerido por seu opositor, o autor
escreve em suas notas:
[Arnauld] admite de boa fé ter tomado minha opinião no sentido de que todos
os acontecimentos de um indivíduo deduzir-se-iam (...) de sua noção individual da
mesma maneira e com a mesma necessidade que se deduzem as propriedades da esfera
de sua noção ou definição específica. (...) Apenas direi por que acredito que se deve
filosofar de um modo muito diferente sobre a noção de uma substância individual e
sobre a noção específica da esfera (p.41).
Uma definição geométrica encerra somente verdades necessárias, cujo contrário
implica contradição e cujas razões se encerram nela mesma tornando-a demonstrável. Seus
atributos se seguem necessariamente de sua própria noção, tal que, se algo é uma esfera, este
deve ter todos os pontos de sua circunferência eqüidistantes de seu centro, por exemplo.
Segundo Leibniz, semelhante noção é abstrata e não alcança a especificidade requerida para a
designação de um indivíduo. Ela é incompleta, uma vez que nela se considera somente a
essência da esfera em geral ou em teoria, sem ter em conta as circunstâncias particulares”
(LEIBNIZ, 2004, p.41). Ora, o que permanece fora da noção genérica de esfera são
justamente as qualidades desta ou daquela esfera existente (seu tamanho, cor, material de
composição, data de fabricação, etc.), cuja variação não influi em sua definição e cujo
contrário é possível. Assim, precisamente tais “circunstâncias particulares” se referem às
verdades contingentes e constituem o elemento essencial para a apreensão do indivíduo
singular. A noção de uma substância individual, portanto, remete ao atual e deve conter
também as verdades de fato, cujo contrário é possível e cujas razões somente podem ser
encontradas na própria série do universo criado. Mais do que isso, somente as verdades
contingentes podem de fato preencher um conceito de modo a estabelecê-lo como completo,
64
fornecendo a definição real de um indivíduo.
Uma vez que a possibilidade se encontra na base das verdades contingentes
demarcando a peculiaridade de seu modo de ser em oposição às verdades necessárias, a
consecução dos estados de uma substância individual a partir de sua noção possui uma
inteligibilidade própria cuja razão não se revela à maneira das evidências analíticas. Em
outras palavras, diferente das propriedades da esfera, deduzidas necessariamente de seu
conceito, as circunstâncias particulares de um indivíduo (os atributos deduzidos de sua noção
completa) fundam-se, a cada passo, num infinito de estados possíveis. Embora similarmente
dedutíveis da noção completa, tais circunstâncias se conectam integralmente a todos os
eventos do universo, de maneira que a amplitude dos termos desta conexão o pertence ao
plano fechado da necessidade lógica própria de uma definição analítica, senão que comportam
em si a virtualidade do possível, isto é, a multiplicidade inerente ao domínio do atual, somente
determinável no horizonte do entendimento divino e de seus desígnios. Assim, se na noção
completa de Adão se encontra envolvido todo o enlace com a posteridade, tal ligação é
intrínseca mas o necessária, afirmará Leibniz, de modo que toda a sucessão dos
acontecimentos permanece salvaguardada do determinismo apontado anteriormente por
Arnauld:
Com efeito, as possibilidades dos indivíduos ou das verdades contingentes
encerram em sua noção a possibilidades de suas causas, a saber, decretos livres de
Deus, no qual diferem as possibilidades das espécies ou verdades eternas, que
dependem somente do entendimento de Deus, sem supor sua vontade. (...) Assim, os
acontecimentos humanos não poderiam deixar de acontecer como têm acontecido
efetivamente, suposta a escolha de Adão; mas não tanto por causa da noção individual
de Adão, ainda que esta os encerre, como por causa dos desígnios de Deus, que entram
também nesta noção individual de Adão, e que determinam a de todo o universo
(p.59).
O conceito de substância individual mostrou-se fundamentalmente distinto da noção
abstrata de espécie por ser capaz de abarcar em si o caráter específico do indivíduo por ele
designado, expresso através da variedade das verdades contingentes. A identidade do sujeito
será plenamente determinada pela totalidade de seus predicados, dentre os quais se incluem
sobretudo os que se referem à particularidade de sua existência. Pertence à individualidade do
indivíduo uma conexão com o mundo, esta renovada à cada momento pelas relações que se
estabelecem entre as substâncias segundo a ordem de suas respectivas noções. Para Cardoso, a
contingência é o próprio modo de ser das substâncias individuais e do mundo ao qual
65
pertencem: “É contingente todo ser que não tem em si a sua razão de ser, cuja inteligibilidade
exige a natureza como quadro explicativo global” (1992, p.43). Todavia, para retomar o tema
da caracterização da perspectiva individual, a ordem total das noções de cada substância
remete ao próprio princípio da harmonia, para o qual se impõe uma aplicação ampliada das
reflexões sobre a individualidade. Com efeito, embora o conceito de substância individual
permaneça no mais das vezes referido especificamente aos seres humanos, a enunciação de
seu caráter expressivo como um “espelho do universo” será recorrentemente elaborada numa
formulação genérica subentendida à totalidade das substâncias criadas.
54
Assim, sob o escopo
amplo da plenitude manifesta pelas verdades de fato, não deveria a individualidade estender-
se a todos os seres criados, bem como a tudo o que se encontra no mundo e participa,
portanto, da contingência inerente à existência?
Sabemos que no Discurso de metafísica tal relação entre individualidade e
contingência foi enfocada sobretudo a partir da aplicação do conceito de substância individual
aos seres humanos, enfatizando a compreensão das noções completas no contexto da história
e de suas personagens. Conforme se afirmou anteriormente,
55
ainda que o passo formal da
determinação do conceito de substância individual pela sua completude permitisse a Leibniz
referir-se às substâncias em geral, introduzindo seu princípio da entreexpressão, a aplicação
prática da doutrina das noções completas anexa implicitamente à idéia de indivíduo os
caracteres reflexivos inerentes à natureza humana, conectando assim as verdades de fato à
possibilidade de sua consciência, manifesta como ipseidade. Trata-se da perspectiva
individual, entendida como a influência responsável por manter a estrutura conceitual da
teoria leibniziana da substância prioritariamente vinculada à figura humana tomada enquanto
modelo substancial. Contudo, encontra-se nas Correspondências com Arnauld uma passagem
significativa onde a idéia de completude será hipoteticamente estendida a um objeto,
sugerindo uma compreensão do conceito de substância individual e de sua noção completa
não vinculada diretamente aos seres humanos. Ainda no contexto do exemplo da esfera
Leibniz reflete sob as condições particulares capazes de converter a noção de espécie numa
noção individual:
Ademais, a noção de esfera em geral é incompleta ou abstrata (...) [e] de
54
Na carta datada de 14 de julho de 1686 Leibniz afirma: “Pois como todas as substâncias criadas são uma
produção contínua do mesmo ser soberano segundo os mesmo desígnios, e expressam os mesmo universo ou os
mesmo fenômenos, elas concordam perfeitamente.” (2004, p. 68, grifo nosso).
55
Cf. 2.2, p.30.
66
maneira alguma encerra o que se requer para a existência de determinada esfera. Mas a
noção da esfera que Arquimedes fez colocar em sua tumba é perfeita e deve encerrar
tudo o que pertence ao objeto desta forma. (...) Além da forma da esfera, entram [na
noção] a matéria de que é feita, o lugar, o tempo e as demais circunstâncias que, por
um encadeamento contínuo, abarcariam finalmente toda a série do universo se fosse
possível seguir tudo o que encerram estas noções. Com efeito, a noção dessa porção de
matéria com que esfeita esta esfera encerra todas as mudanças que sofreu e sofrerá.
E, segundo minha opinião, cada substância individual contém sempre marcas de tudo
o que aconteceu e sinais de tudo o que acontecerá sempre (p.42).
Destoando da concepção usual de indivíduo até então associada somente a
personalidades históricas, Leibniz postula aqui a extensão da noção completa a um objeto
material. Se o conceito de esfera não é suficiente para constituir um indivíduo pela sua
limitação às verdades necessárias, o conceito daquela esfera específica construída em
homenagem a Arquimedes e fixada em seu sepulcro inclui o aspecto da contingência e se
conecta à série dos eventos universais. Nesta pretensa noção estariam pressupostos, por
exemplo, a matéria de que foi feita e sua origem (seu local de extração); seus construtores, o
motivo de sua construção, sua duração e deterioração, etc; cada um destes detalhes ligando-se
a quantos outros eventos ad infinitum. Tal exemplo sugere uma radicalização da idéia de
noção completa onde Leibniz leva ao limite o tema da plenitude da criação sob a ótica do
entendimento divino. Nesta direção, até mesmo um objeto poderá ser tomado singularmente à
maneira de uma substância individual, pois, se a constituição da noção individual se destaca
pela inclusão das verdades contingentes e de sua conexão remota com todo o universo, então
todo existente, isto é, toda essência atualizada num espaço e tempo, pode ser tomado
singularmente em virtude da mesma conexão. Por certo que a completa ciência desta inefável
conexão entre todas as coisas somente será pensada nos termos da ilimitada potência do
entendimento divino, razão pela qual Arnauld mantém suas objeções.
56
No entanto, segundo
Leibniz basta a verossimilhança da existência das noções completas (e não a sua
acessibilidade) para fundamentar simultaneamente a individuação das substâncias e a sua
teoria da entreexpressão.
57
56
Arnauld afirma: “O entendimento divino é a regra da verdade das coisas quoad se; mas não me parece que
enquanto estejamos nesta vida possa ser a regra quoad nos”. “Não devemos buscar em Deus, que habita um
lugar inacessível à nossa visão, as verdadeiras noções específicas ou individuais das coisas que conhecemos,
senão nas idéias destas coisas que encontramos em nós” (LEIBNIZ, 2004, p. 34 e 36).
57
Tanto a identidade das substâncias individuais como o princípio entreexpressivo segundo o qual cada
substância contém em sua noção todas as demais permanecem radicados na premissa lógica da continência dos
predicados no sujeito (in-esse), e não propriamente na acessibilidade do conteúdo das noções completas, o que,
segundo Leibniz, eliminaria a dificuldade imposta pelo recurso à perspectiva do entendimento divino:Ainda
que não se dissesse que Deus, considerando o Adão a quem toma a resolução de criar, vê nele todos os seus
acontecimentos, é suficiente demonstrar sempre que tem que haver uma noção completa deste Adão que os
67
Ainda que validada em hipótese pela potência ilimitada da sabedoria de Deus, a
vertiginosa extensão da aplicação das noções completas e, portanto, do próprio conceito de
substância individual a todo elemento da criação se mostra problemática no sentido de uma
indeterminação dos critérios de individuação das substâncias tomadas em si mesmas”, para
usar os termos de Arnauld. Em outras palavras, embora aos olhos de Deus todo e qualquer
ente criado, mesmo uma pedra ou uma gota d'água, possa revelar o universo inteiro a partir de
sua conexão natural, faz-se necessário determinar para nós mesmos alguma referência
localizada nos próprios entes que nos permita considerar o que é e o que não é uma
substância, e de que modo esta se distingue das demais. Ora, tal como no Discurso de
metafísica, o campo de referência imediato para a determinação de um indivíduo, bem como
para acessar o plano das verdades de fato, permanece ligado à noção de eu e ao contexto das
ações e eventos propriamente humanos. Ou seja, sem depender da visão de Deus, é em virtude
da perspectiva individual que a idéia da noção da esfera da Arquimedes ainda pode ser
sustentada. Ela é verossímil na medida em que se encontra inserida em nossa própria história,
diretamente associada à eventos conhecidos envolvendo os espíritos ou almas racionais. Eis a
referência que permite situá-la em sua singularidade, aproximando-a de uma concepção
individual. Todavia, ainda assim a consideração da singularidade e de uma noção completa
para cada elemento da criação sugerida pelo referido exemplo levantaria certas dificuldades
sobre a própria definição de substância individual, até então estreitamente ligada à ipseidade:
afastada a identidade firmada a partir da consciência de um eu e do senso de unidade e
duração que ela instaura, outro fator deveria determinar a singularização das substâncias em si
mesmas, sem depender do recurso ao plano absoluto da perspectiva divina. Com efeito,
Leibniz não reproduzirá tal argumento na versão final de sua resposta à Arnauld, limitando-se
a explicar a diferença entre a noção genérica de esfera e a noção completa de uma substância
individual. Em todo caso, esta reflexão permanece como um indicativo das tendências de
generalização ontológica gradualmente impostas pela própria natureza do conceito de
substância e, ao mesmo tempo, como uma mostra da resistência imposta a tais tendências pela
perspectiva individual.
contenha” (2004, p. 49).
68
6.2 Ipseidade e individualidade
Conforme se afirmou anteriormente,
58
além da completude de sua noção outro
elemento foi integrado ao conceito de substância individual no Discurso de metafísica, a
saber, a consciência de si ou ipseidade, reconhecida como a base da capacidade racional
inerente aos espíritos. O caráter de individualidade atribuído a esta classe de substâncias
reside, portanto, não somente na singularidade delineada pela totalidade de seus predicados
(cujo conhecimento convém somente ao entendimento divino), mas também na personalidade
ou identidade constituída a partir da vigência de um eu, esta condicionada pela potência
reflexiva que distingue os seres humanos das demais criaturas. Tal vinculação entre
substancialidade e personalidade assumida por Leibniz a 1686 mantém a formulação da
substância individual num domínio próximo ao tema da subjetividade pensante aberto pelas
Meditações, permitindo entrever a influência determinante do ego cogito cartesiano no
cenário filosófico do final do séc. XVII. De fato, em sua primeira crítica à formulação
leibniziana da noção de substância individual Arnauld traz as especulações sobre a noção
completa para a primeira pessoa, introduzindo espontaneamente no debate a idéia de ego:
Este quadrado de mármore é o mesmo, caso esteja em repouso ou se mova;
logo, nem o repouso nem o movimento está encerrado em sua noção individual. Por
isto, senhor, me parece que não devo considerar como encerrado na minha noção
individual senão o que é tal que não seria eu se ele não estivesse em mim; e tudo o
que, pelo contrário, é tal que poderia estar em mim ou não estar em mim sem que
deixasse de ser eu não pode ser considerado como encerrado em minha noção
individual (p.34).
Rejeitando os predicados contingentes como elementos fundamentais para a
constituição da noção do sujeito, e, portanto, para a própria individualidade, Arnauld sugere
uma fundamentação da noção individual segundo a estrutura teórica dos conceitos em geral,
isto é, unicamente a partir de componentes necessários. Assim, afirma o teólogo, a minha
noção somente deverá conter aquilo que diretamente representa este eu; sem o qual o
tratar-se-ia da mesma pessoa, de modos que os atributos contingentes constituem não mais
que qualidades acidentais irrelevantes para o tema da individualidade. Semelhante raciocínio,
entretanto, além de deslocar a questão da noção completa exclusivamente para o domínio das
representações, pressupõe a existência de um princípio apodítico capaz de fundamentar esta
58
Texto 2.2, p. 31.
69
consciência de si expressa pelo eu. Em outras palavras, tomada a noção completa como um
conceito entre outros, a questão da individualidade e da própria substancialidade permanece
circunscrita ao âmbito reflexivo-racional; e a subjetividade deve ser compreendida em sua
acepção genérica, associada diretamente a um elemento capaz de determiná-la enquanto tal.
Neste ponto Arnauld assume expressamente a postura cartesiana recorrendo ao pensamento
como o âmbito adequado e suficiente para buscar quaisquer conceitos ou noções, sobretudo
aqueles referentes à própria subjetividade:
Tudo o que disso desejo concluir é que não devemos buscar em Deus (...) as
verdadeiras noções específicas ou individuais das coisas que conhecemos, mas sim nas
idéias destas coisas que encontramos em nós. Ora, encontro em mim a noção de uma
natureza individual, visto que encontro a noção de eu. Portanto, tenho que
consultá-la para saber o que es encerrado nesta noção individual, assim como não é
necessário mais do que consultar a noção específica de uma esfera para saber o que
está encerrado nela (p.36).
Para o teólogo, uma vez que pela experiência subjetiva da própria individualidade
podemos encontrar em nós mesmos um idéia ou noção de eu, também o conceito de
substância individual estaria dado ao pensamento em sua estrutura essencial, sem requerer a
inclusão de caracteres contingentes. Porém, assim como algumas propriedades matemáticas
são suficientes para determinar a noção de esfera, que elemento necessário deveria ser
suficiente para assegurar a noção individual? Novamente a filosofia cartesiana oferece suporte
ao argumento:
Estou seguro de que enquanto penso sou eu. Pois não posso pensar sem ser,
nem ser sem ser eu. Mas posso pensar que farei uma viajem ou que não o farei,
resultando claramente que nem um nem o outro impedirá que eu seja eu. Me encontro,
pois, muito seguro de que nem um nem es encerrado na minha noção individual
(p.37).
Estas primeiras objeções de Arnauld ilustram a presença marcante do cogito cartesiano
como pano de fundo da discussão sobre o tema da substância individual. Se o pensamento
permite garantir a existência do eu, argumenta o teólogo, ele deve bastar como condição
suficiente para fundamentar a individualidade das substâncias em geral expressa a partir de
um conceito ou noção. Com efeito, ainda que a noção individual proposta por Leibniz esteja
direcionada ao sujeito atual e sua natureza contingente, situada para além de um domínio
meramente conceitual, a correlação entre individualidade e ipseidade assumida como a
70
identidade metafísica dos espíritos parece conectar-se diretamente à temática da subjetividade
pensante aberta por Descartes. A perspectiva individual, isto é, a perspectiva ontológica a
partir da qual o conceito leibniziano de substância individual foi pensado até o Discurso de
metafísica, de fato sustentou implicitamente a ligação entre o caráter reflexivo inerente aos
espíritos e sua singularidade. Todavia, a partir das Correspondências com Arnauld esta
ipseidade ou a vigência de um eu demarcada por Leibniz como o traço característico das
substâncias individuais começa a se distanciar da associação direta entre substancialidade,
individualidade e racionalidade promovida pelo ego cogito. Conforme replica o autor, uma
vez que o conceito completo de uma substância individual demanda a sua plena determinação
estendendo-se aos mínimos detalhes de sua singularidade, o pensamento não pode atuar como
condição suficiente para a delimitação real da individualidade:
Enfim, convenho que para encontrar a noção de uma substância individual é
bom consultar a que tenho de mim mesmo (...) [mas] não é o bastante que eu me sinta
uma substância que pensa; haveria de conceber distintamente o que me distingue de
todos os demais espíritos; mas só tenho disso uma experiência confusa. Isto faz com
que, ainda que seja fácil julgar que o número de pés de diâmetro não está encerrado na
noção geral de esfera, não seja tão fácil julgar se a viagem que pretendo fazer está
encerrada em minha noção; de outro modo nos seria tão fácil ser profetas como
geômetras (p.51, grifo nosso).
A despeito do papel determinante assumido pelo caráter reflexivo inerente aos
espíritos com relação à sua individualidade, a inevitável aproximação com o tema cartesiano
da subjetividade pensante conduz Leibniz a uma reflexão sobre o papel da ipseidade e sua
relação com o conceito de substância. Ainda que a consciência do eu permaneça como a
marca distintiva dos espíritos ou almas racionais assegurando a vigência de uma
personalidade, a singularidade da substância foi garantida por uma via mais fundamental, a
saber, o próprio caráter completo atribuído ao sujeito. Assim, o princípio de individuação das
substâncias aponta para a substância toda, cuja noção deve encerrar o detalhe de sua
singularidade num teor de complexidade próprio ao plano das verdades contingentes. A
determinação real da substância individual pela noção completa proposta por Leibniz excede
o domínio do pensamento no sentido em que a variedade contida na noção do indivíduo não
pode ser apreendida distintamente; ela corresponde à natureza fluida e espontânea dos fatos e
não ao domínio teórico e imutável das verdades necessárias. Dito de outro modo, o conceito
completo de uma substância pertence a um gênero distinto das noções dadas ao entendimento,
71
ele não pode ser apreendido claramente em sua totalidade (à exceção do entendimento divino)
e, portanto, não deve ser deduzido do âmbito das representações. A individualidade, por sua
vez, encontra sua origem na substância como um todo, e não necessariamente a partir de um
princípio imanente à potência reflexiva manifesta pelos espíritos. É somente a existência real
de um sujeito na complexidade de detalhes inerente à efetividade que proporciona a sua
determinação individual. A experiência desta existência manifesta no plano das representações
racionais aparece como um dado a posteriori resumido confusamente na noção de eu.
A alusão de Arnauld ao tema da subjetividade pensante permitirá a Leibniz refletir
sobre os fundamentos da individualidade e demarcar sua oposição ao pensamento cartesiano.
Embora o caráter reflexivo constitua a personalidade dos espíritos, este eu que emerge como
sintoma da singularidade das substâncias não pode ser subsumido ao pensamento. Antes, ele é
resultado da reunião da totalidade dos predicados inerentes ao sujeito em questão, a qual a
ação racional somente pode apreender de maneira confusa. Eis que a estrutura lógica do in-
esse aparece como uma via mais direta e fundamental na determinação da individualidade das
substâncias individuais. Neste ponto Leibniz se afasta de dois pressupostos assumidos por
Descartes, a saber, o da clareza e distinção das representações, e o da imanência da questão da
substancialidade. Diferente das verdades necessárias, a noção completa, isto é, a determinação
real de uma substância individual, não é evidente ao entendimento. Fazemos dela uma idéia
confusa, afetada pela multiplicidade e riqueza de sua singularidade. Portanto, ainda que no
caso dos espíritos a ipseidade ou a consciência de um eu se manifeste como a evidência da
existência do sujeito, a individualidade deste sujeito não é determinada pelo pensamento, mas,
antes, pela própria totalidade de seus atributos. Em verdade, afirmará Leibniz, é o fato lógico
da continência dos predicados no sujeito o que permite que se forme tal noção de eu, de modo
que a substancialidade e individualidade do sujeito não deve restringir-se ao pensamento,
senão que permanece diretamente dada no plano da atualidade.
59
Conforme se afirmou anteriormente,
60
se a perspectiva individual em Leibniz
representa a preponderância da ipseidade ou emergência de um eu na base teórica do conceito
de substância, nas Correspondências com Arnauld este quadro começa a se transformar. Neste
sentido, os dois fatos narrados acima, a saber, a postulação da completude dos seres em geral
(6.1) e um questionamento da ipseidade enquanto fator determinante da substancialidade,
59
Em verdade, posto que Deus pode formar, e forma efetivamente, esta noção completa (...) ela é, pois, possível,
e é a verdadeira noção completa do que chamo “eu”, em virtude da qual todos os predicados me pertencem
como sujeito deles.” (LEIBNIZ, 2004,p. 62)
60
Texto 5, p. 60.
72
marcam os primeiros passos desta transição. Por diferentes caminhos Leibniz virá a esboçar a
individualidade e, portanto, a própria substancialidade a partir de um plano mais elementar e
abrangente, dissociado do domínio reflexivo-racional ligado aos seres humanos. Uma destas
vias é precisamente a generalidade e o poder de alcance instituído pela estrutura lógica do in-
esse. Esta primeira parte se encerra com a aparente concessão de Arnauld ao persistente
argumento do continência dos predicados na noção do sujeito, ao que Leibniz passa então a
discutir o status substancial dos corpos por conta de novas objeções. Segundo Fichant:
Seja por convicção, seja por cansaço, Arnauld termina por abandonar a
discussão diante do argumento peremptório do praedicatum inest subjecto, para
recolocá-la sobre outros dois terrenos: a união da alma e do corpo, por um lado, e a
legitimidade da reabilitação da noção de forma substancial, por outro lado.
É ao responder aos pedidos de esclarecimento de Arnauld sobre o segundo
ponto que Leibniz deslocará a problemática da substância (2001, p.26).
73
— 7 —
2ª fase — Forma substancial e as fissuras do individual
A partir da carta datada de 28 de setembro de 1686 a troca de correspondência entre
Leibniz e Arnauld assume um novo rumo fazendo adentrar ao domínio dos corpos o debate
acerca da substancialidade e individualidade. Afirmando sua admiração pelo persistente
argumento da continência dos predicados no sujeito (in-esse), mas sem demonstrar adesão
plena, o teólogo abandona as objeções à formulação do conceito de substância individual para
solicitar os esclarecimentos de Leibniz acerca dos temas da conformação entre corpo e alma e
sobre o status substancial dos corpos, ambos enunciados resumidamente ao final da carta
precedente. Segundo Fichant:
Uma vez concluída a discussão sobre ‘a noção da natureza individual a
questão das formas substanciais dos corpos e do sentido no qual elas ainda podem ser
admitidas vai abrir uma nova linha de desenvolvimento: esta linha conduz à
constituição de um campo doutrinal original que exigirá, ao fim, a introdução da
terminologia e da problemática da mônada (2004, p.82).
Conforme se afirmou anteriormente,
61
no Discurso de metafísica Leibniz encontrara
na restauração das formas substanciais um caminho para pensar a substancialidade estendida
às criaturas em geral e desvinculada da conexão com o aspecto reflexivo inerente aos
espíritos. Tal tema, entretanto, permaneceu nas entrelinhas da argumentação sobre as
substâncias individuais, deixando em aberto um posicionamento definitivo acerca da
determinação ontológica dos corpos, bem como da natureza una ou dual do conceito de
substância. Neste sentido, a supracitada abertura de uma nova linha de desenvolvimento das
idéias de Leibniz representa precisamente o início da transição da perspectiva individual para
um âmbito mais elementar e universal, capaz de proporcionar uma reflexão sobre a
substancialidade que se estenda para além das questões envolvendo as representações
racionais e a ipseidade. Uma vez que o projeto leibniziano de restauração das formas
substanciais parte da afirmação de um princípio metafísico para os corpos, é justamente sobre
a natureza da constituição corpórea que recairão as indagações de Arnauld, deslocando o
debate das questões sobre predicação e identidade para o tema da verdadeira unidade e da
natureza metafísica da força presente nos corpos vivos.
61
Texto 5.2, p. 58.
74
A aquisição de uma nova perspectiva para pensar o conceito de substância, cujo
resultado final é a elaboração da teoria das mônadas, não deve ser compreendida como uma
mudança repentina ou ruptura nas idéias leibnizianas. Ao contrário, ela surge do próprio
aprofundamento da perspectiva individual, a partir da conexão entre o argumento do in-esse
e outras teorias, tais como a da expressão, o princípio da razão suficiente e a tese da
concomitância. Precisamente esta ligação, procedida rapidamente ao final da carta de julho
de 1686, constitui o contexto que antecede e prepara a segunda fase das Correspondências,
ao qual vale a pena retornar a fim de demarcar com precisão os termos da aquisição de uma
nova perspectiva ontológica no pensamento de Leibniz.
Explorando a fundo as conseqüências do fato lógico da continência dos predicados
na noção do sujeito Leibniz enuncia seu princípio da razão suficiente. Em poucas palavras,
se na noção completa de uma substância individual estão contidos virtualmente todos os
seus predicados e, em última instância, toda a conexão entre as coisas no universo,
inversamente, cada evento ou atributo de um indivíduo deve poder ser deduzido de sua
noção a partir de uma razão suficiente para tal e, em última instância, todo evento encontra
um fundamento necessário em fatos precedentes presentes nas noções de cada uma das
substâncias envolvidas; de modo que deve haver uma razão suficiente para todos os
fenômenos do universo. Segundo o autor:
Não exijo aqui outro enlace que o que se encontra a parte rei entre os termos
de uma proposição verdadeira, e neste sentido digo que a noção da substância
individual encerra todos os seus acontecimentos e todas as suas denominações,
inclusive as que se chamam vulgarmente extrínsecas (...) ‘posto que é necessário que
haja sempre algum fundamento da conexão dos termos de uma proposição, o qual
deve encontrar-se em suas noções’. Este é meu grande princípio, com o qual creio que
devem estar de acordo todos os filósofos, e cujo um dos corolários é o axioma vulgar
de que nada acontece sem razão (p.67).
Outra conseqüência obtida a partir da formulação do in-esse será apresentada
imediatamente a seguir, universalizando o pressuposto de que a noção de uma substância
individual encerra uma conexão com todo o universo. Trata-se do princípio da expressão:
Toda substância individual expressa o universo inteiro a sua maneira e sob certa relação
(...) Assim, cada substância individual ou ser completo é como um mundo a parte,
independente de tudo, com exceção de Deus (LEIBNIZ, 2004, p.67). Num primeiro
momento, o aspecto de generalização da tese assumida por Leibniz parece destinar-se às
criaturas como um todo, mas a seqüência vem confirmar a presença marcante da perspectiva
75
individual:
Nada tão importante como isto para demonstrar, não a indestrutibilidade de
nossa alma, como também que ela conserva sempre em sua natureza as marcas de
todos os seus estados precedentes, com uma recordação virtual que pode sempre ser
excitada, posto que tem consciência ou conhece em si mesma o que cada um chama
[de] eu (p. 68).
A remissão direta à identidade metafísica dos espíritos constituída a partir da
experiência de um eu não deixa dúvidas quanto ao direcionamento do conceito de substância
individual e das demais teorias leibnizianas ao contexto propriamente humano em seus
caracteres peculiares. Tanto pela relevância das polêmicas religiosas,
62
quanto pela marcante
influência do ego cogito no debate filosófico, o fato é que o aspecto reflexivo entendido como
ipseidade permanece indissociavelmente integrado à noção de substância. Eis o traço
característico da perspectiva individual, que neste ponto se mostra através da conexão direta
da teoria da expressão à vigência de um eu. Mas se até então o quadro composto pela natureza
expressiva da substância, enfatizada em termos das representações racionais, parece atender
propriamente ao tema do espírito humano, Leibniz pretenderá estender a teoria da expressão
ao domínio dos corpos, rejeitando a concepção cartesiana da substância corpórea como res
extensa. O primeiro passo desta empreitada consiste em compreender a comunicação das
substâncias através da plena regulação de suas noções (harmonia):
Mas esta independência [da substância como um mundo à parte em relação às
demais] não impede a comunicação entre as substâncias, pois como todas as
substâncias criadas são como uma produção contínua do mesmo ser soberano segundo
os mesmos desígnios, e expressam o mesmo universo e os mesmos fenômenos, elas
concordam perfeitamente (...) É assim como se deve entender, em minha opinião, a
comunicação entre as substâncias criadas, e não mediante uma influência ou
dependência real física (p.68).
Uma vez que cada substância, seguindo a ordem de sua própria noção, permanece em
contato direto ou indireto com todas as outras, a harmonia da criação divina garante a priori a
regulação destas noções. Note-se que agora Leibniz passa a referir-se às substâncias de um
62
Conforme se afirmou anteriormente (texto 4, p.50), indissociável das próprias motivações filosóficas, o
interesse de Leibniz nas polêmicas teológicas e nas questões da fé certamente assumem um papel determinante
em seu sistema. No presente contexto, a afirmação da consciência de um eu, além da marca da individualidade
da substância, aparece como condição necessária da religiosidade e da conduta moral, tal como o prova a
seqüência da citação anterior: “ [a ipseidade como uma 'recordação virtual'] a faz [a alma] suscetível de ter
qualidades morais e de merecer o castigo e a recompensa, ainda depois desta vida. Com efeito, a imortalidade
sem esta recordação não serviria aqui de nada” (LEIBNIZ, 2004,p. 68).
76
modo geral, e o exclusivamente aos espíritos ou substâncias individuais. O passo seguinte
será precisamente a aplicação desta tese do acordo recíproco entre as substâncias à união entre
corpo e alma, resultando na hipótese da concomitância:
Deus criou desde o princípio a alma de tal sorte, que normalmente não tem
necessidade de verificar estas mudanças; e o que sucede à alma nasce de seu próprio
fundo, sem que deva conformar-se depois ao corpo, nem tampouco o corpo à alma.
Seguindo cada um suas leis e agindo aquela livremente e este sem escolha, coincidem
nos mesmo fenômenos (p.69).
Em pouco mais de quatro parágrafos Leibniz habilmente conecta o filosofema
substância individual/noção completa a outras de suas teorias, ingressando na disputa da
filosofia moderna sobre a união entre corpo e alma, e atraindo a atenção de Arnauld. Sem
adentrar em todos os detalhes desta discussão, importa somente destacar alguns aspectos que
tornam tal passagem relevante para a questão da perspectiva individual e suas fissuras: 1- Tal
como no Discurso de metafísica, a referência do conceito de substância permanece oscilante
entre uma aplicação exclusiva aos espíritos ou almas racionais e a extensão irrestrita às
criaturas em geral.
63
Se o princípio lógico da completude abertura a uma possível
universalização (exemplo da esfera de Arquimedes), a vinculação da individualidade à
ipseidade, assegurada pela noção completa, não direciona o conceito de substância ao
contexto humano como o restringe aos demais seres pela ausência de tal consciência de si.
2- O tema da expressão, por outro lado, começa a delinear um quadro mais amplo para pensar
a substancialidade. Uma vez que a substância pode ser concebida como um mundo a parte,
representando uma perspectiva do universo, tal concepção poderá ser estendida a todos os
seres, desde que se possa falar em representações não-racionais. Trata-se das percepções, que
aparecerão somente no final das Correspondências e serão amplamente enfatizadas na
Monadologia. 3- Ao conectar a natureza expressiva da substância à harmonia da criação
divina e apresentar a hipótese da concomitância como uma alternativa à questão da união
corpo-alma Leibniz permanece implicitamente associado à concepção dos corpos enquanto
substâncias. No entanto, sem aderir à tese cartesiana da substância corpórea como res extensa
o autor introduz a restauração das formas substanciais.
Considerada como o marco inicial dos desenvolvimentos que conduzem Leibniz à tese
monadológica, a segunda fase das Correspondências com Arnauld será caracterizada
63
Cf. 5.2, p. 60.
77
externamente pelo debate sobre as formas substanciais e pela revisão da questão da
substancialidade dos corpos. Num sentido mais profundo, longe de resumir-se a uma simples
reformulação conceitual este intercurso reflete a instauração gradual de uma nova referência
ontológica para a filosofia leibniziana. Isto se mediante as fissuras que se introduzem na
perspectiva individual, sobretudo a partir da renovada configuração da substancialidade
resultante da demanda por verdadeira unidade. Particularmente a rejeição da substancialidade
corpórea através da extensão e a assunção de uma unidade substancial estritamente metafísica
virá, ao fim, relativizar a usual associação entre substância e ipseidade até então predominante
no pensamento do autor. Semelhante passo, entretanto, demandará importantes resoluções não
somente quanto à natureza corpórea propriamente humana, mas também em relação às demais
criaturas e seu estatuto substancial. Diante das dificuldades levantadas por seu interlocutor e
de certas premissas assumidas como resposta, Leibniz será então levado a vislumbrar um
domínio definitivamente mais amplo para o conceito de substância, tal como se pretende
mostrar a seguir.
7.1 Substância corpórea e a alma dos irracionais
No Discurso de metafísica a restauração das formas substanciais foi procedida através
da crítica à noção cartesiana de substância corpórea, justificada pela imprescindibilidade de
um fundamento metafísico para os corpos. Dado que somente as propriedades extensionais,
tais como tamanho, figura e movimento são insuficientes para constituir qualquer substância,
deve haver nos corpos unum per se algum princípio responsável por sua unidade e atividade,
enfim, por sua própria substancialidade. Eis que Leibniz rejeita a noção de substância
corpórea enquanto res extensa e introduz a forma substancial como o princípio metafísico de
ação que confere aos corpos a sua substancialidade. Tal substancialidade, portanto, deixa de
identificar-se exclusivamente ao plano físico para encontrar seu fundamento também no plano
metafísico; e é neste sentido que a forma substancial tem alguma relação com as almas, ou,
conforme afirma Fichant,talvez mesmo seja uma alma, sob a condição que se admita almas
que não são inteligentes (2001, p.22). Todavia, os detalhes desta nova concepção da
substância corpórea cuja natureza deve englobar o aspecto metafísico permaneceram pouco
desenvolvidos e serão cobrados por Arnauld nas Correspondências. Afinal, se a alma e o
78
corpo são duas substâncias distintas, mas se este último também deve possuir uma natureza
metafísica para além de sua própria extensão, qual a real diferença entre estas substâncias?
Poderão, de fato, ser pensadas como separadas? É a forma substancial extensa ou inextensa;
divisível ou indivisível? Sob que condições tal princípio pode conferir unidade à matéria
extensa? Estas e outras questões
64
exigirão de Leibniz um posicionamento mais definido em
relação ao conceito de substância corpórea e à própria retomada das formas substanciais.
Em um projeto de resposta às referidas questões levantadas por Arnauld Leibniz
admite ainda ter dificuldades com a forma substancial, esboçando ao mesmo tempo uma
posição peculiar acerca da substancialidade dos corpos:
A outra dificuldade tocante às formas substanciais e às almas dos corpos é
incomparavelmente maior e confesso não encontrar-me satisfeito com minha solução.
Em primeiro lugar, seria preciso assegurar-se de que os corpos são substâncias, e não
fenômenos verdadeiros, como o arco-íris. Mas firmado isto, creio que se pode
inferir que a substância corpórea não consiste na extensão ou na divisibilidade.
...........................................................................................................................................
Não sei se o corpo, quando a alma ou forma substancial é posta a parte, pode
ser chamado [de] substância. Poderá ser uma máquina, um agregado de rias
substâncias, de sorte que se me perguntam o que devo dizer da forma cadaveris, ou de
um quadrado de mármore responderei que talvez estejam unidos per aggregationem,
como um monte de pedras, e que não são substâncias (p.92-94).
Mais do que somente a rejeição da res extensa cartesiana procedida pelo Discurso,
Leibniz questiona aqui a própria validade do conceito de substância corpórea tomado
enquanto antípoda da noção de alma racional ou espírito. Uma vez que as propriedades
materiais dos corpos não asseguram a sua substancialidade, dado o seu aspecto relativo e
incompleto,
65
é a forma substancial, a rigor, a causa da unidade aparente por eles manifesta.
Em outras palavras, considerada a divisibilidade infinita do contínuo, a mera unidade material
dos corpos, isto é, a composição de suas partes, não representa a verdadeira unidade
substancial, de sorte que os corpos seriam sem dúvida uma coisa imaginária e aparente
se existisse unicamente a matéria e suas modificações (LEIBNIZ, 2004. p.86). Tal princípio
metafísico, ao contrário, será necessariamente indivisível e indestrutível, conservando-se
independentemente das dissoluções sofridas pela matéria. Por certo que ao inscrever a
64
Questões retiradas da carta de Arnauld a Leibniz datada de 28 de setembro de 1686.
65
Além da relatividade das propriedades da matéria extensa, argumento explorado no Discurso de metafísica,
Leibniz enfatiza neste trecho outro argumento contra a noção de uma substância corpórea puramente material,
este vinculado à completude do conceito de substância: “A extensão é um atributo que não poderia constituir um
ser completo e da qual não se poderia deduzir nenhuma ação nem mudança: expressa somente um estado
presente, mas de maneira alguma o futuro e o passado, como deve fazê-lo a noção de uma substância” (2004,
p.93).
79
hipótese da concomitância como uma alternativa às soluções fornecidas por Descartes e seus
seguidores para o problema da união entre alma e corpo
66
Leibniz permanece inevitavelmente
próximo à estrutura teórica dual estabelecida entre os conceitos cartesianos de res cogitans e
res extensa, referindo-se recorrentemente à noção de substância corpórea.
67
Entretanto, a
teoria leibniziana da substância começa a se afastar definitivamente deste cenário na medida
em que tanto a alma quanto o corpo serão pensados a partir de novos parâmetros. Ora, se a
substancialidade do corpo, tomado separadamente, é questionável, a natureza metafísica da
alma, por outro lado, talvez não deva permanecer incondicionalmente associada ao aspecto
reflexivo presente nos espíritos racionais; dada a possibilidade de uma alma dos irracionais.
Precisamente estas mudanças e suas conseqüências introduzem as fissuras a partir das quais
uma nova perspectiva ontológica virá se impor à perspectiva individual.
Conforme se afirmou anteriormente,
68
tanto o tema da substancialidade dos corpos
como o do status ontológico dos seres não-humanos encontravam-se plenamente resolvidos
na materialidade da noção cartesiana de res extensa. Firmada a substancialidade dos corpos
somente através de sua forma, figura e movimento, todos os seres desprovidos da potência
reflexiva ou pensamento (traço característico da substância metafísica) estariam ao vel
ontológico dos simples corpos materiais, carecendo de uma alma ou princípio metafísico.
Assim, ao rejeitar este modelo de uma substancialidade material para os corpos afirmando a
necessidade de um princípio metafísico capaz de manter a sua unidade e atuar como a causa
intrínseca e espontânea de seus movimentos, Leibniz se inclinado a repensar também os
termos da substancialidade dos seres não-humanos, tais como os animais e as demais
entidades vivas. E se a forma substancial deve ser pensada como “alma dos irracionais”, será
preciso especificar quais as relações entre estas e os espíritos; até então fixados como foco
central da doutrina da substância individual e das polêmicas teológicas.
No mesmo rascunho supracitado uma posição sobre a alma dos irracionais será
esboçada a partir da reflexão acerca do caráter indivisível das formas substanciais: alma ou
66
Trata-se da tese cartesiana da ação física da alma sobre o corpo, por um lado (argumento da glândula pineal) e,
por outro, da teoria das causas ocasionais, representada sobretudo pela figura de Malebranche. Ver texto 1.1,
p.15.
67
Leibniz questiona a substancialidade do corpo, mas prossegue referindo-se à substância corpórea. Nas palavras
de Fichant (2004, p.84), “trata-se mais de probabilidade do que de certeza metafísica”. O caráter “atormentado
do rascunho revela um momento de indecisão em relação ao status substancial dos corpos. Por outro lado, a
abertura ao diálogo com os cartesianos também justifica esta atitude. Segundo Martins (s.d., p.11), em carta à
Rémond Leibniz admite acomodar suas publicações à linguagem escolástica ou cartesiana, conforme o destino e
público a que se endereçavam os textos.
68
Texto 4, p. 47.
80
forma substancial, a denominação é indiferente, anotará Leibniz (2004, p. 93), uma vez que se
trata de indicar que a substancialidade nos corpos não se encontra na extensão e, portanto, é
metafísica, indivisível e, necessariamente, indestrutível. Mas, se os corpos devem a sua
unidade e substancialidade a um princípio metafísico cuja característica necessária é ser
indivisível e indestrutível, tal esquema se aproxima abertamente da noção de alma ou espírito
racional tomada como a própria identidade metafísica humana e, portanto, como a identidade
espiritual requerida pela doutrina cristã. Neste ponto a necessidade de uma distinção torna-se
premente:
Creio que se deve dizer que se os corpos, por exemplo, se os animais têm
almas, que essas são indivisíveis. Esta é também a opinião de Santo Tomás. São, pois,
indestrutíveis estas almas? Eu o admito (...) Mas a alma do homem é uma coisa mais
divina, e não indestrutível, senão que se conhece sempre a si mesma e permanece
conscia sui.
...........................................................................................................................................
Sem embargo, me parece indubitável que, se substâncias corpóreas, o
homem não é a única, e provavelmente os animais tem alma, ainda que careçam de
consciência (p.93).
A partir destas reflexões Leibniz parece assumir uma posição bem definida sobre o
caráter ontológico dos seres não humanos. Tal como o homem, o status substancial dos
animais seria metafísico, diferenciando-os da posição dos simples corpos físicos e conferindo-
lhes uma alma. A distinção entre os espíritos racionais e as demais almas residirá então na
consciência de si (ipseidade) manifesta pelos primeiros, responsável por sua constituição
individual ou identidade metafísica. Contudo, a carta definitivamente enviada a Arnauld
(8/12/1686) apresenta uma versão mais reservada desta opinião. Assim como no Discurso de
metafísica, certa hesitação ou cuidado sobre a afirmação da alma dos irracionais prevalece nas
palavras do autor.
69
Expondo seus argumentos de forma mais concisa Leibniz aceita o abrigo
da teoria tomista das almas brutas, esmerando-se por demarcar a superioridade dos espíritos
em relação às demais almas supostas
70
:
E me inclino muito a crer que todas as gerações dos animais desprovidos de
razão, que não merecem uma nova criação, não são senão transformações de outro
animal vivo, mas as vezes imperceptível (...) Assim, as almas brutas haveriam sido
69
Texto 4, p. 48.
70
Neste trecho a edição das Correspondências utilizada no presente trabalho apresenta um erro que julgamos
importante retificar: à pagina 82, se lê “En cuanto a la segunda dificultad, concedo que la forma substancial del
corpo és divisible...”, quando, segundo o original na edição de Gehrardt (1961, v.II, p.75), Leibniz declara:
Concedo que a forma substancial do corpo é indivisível .
81
todas criadas desde o começo do mundo, segundo esta fecundidade das sementes que
se menciona no Gênesis; mas a alma racional é criada no momento da formação de
seu corpo, sendo inteiramente diferente das outras almas que conhecemos, porque é
capaz de reflexão e imita em miniatura a natureza divina (p. 83).
Provavelmente como uma antecipação de possíveis impasses religiosos, aqui a adesão
de Leibniz ao esquema tomista das almas brutas assume a mesma ambivalência metafísica
sustentada oficialmente pelo Discurso: embora os demais seres devam a sua substancialidade
a um princípio metafísico análogo ao espírito, trata-se de naturezas distintas; separadas quanto
ao seu modo de ser e quanto à sua própria posição na hierarquia da criação divina. Sobretudo
um aspecto importante deve ser salvaguardado na substancialidade das almas racionais, o qual
torna problemática a redução dos seres vivos em geral a uma mesma realidade ontológica, a
saber, a vigência de uma personalidade, cuja permanência e a consciência das próprias ações
se manifestam na constituição de um eu, e cuja atuação é crucial para o tema da salvação.
Assim, embora Leibniz afirme o fundamento metafísico da substancialidade dos corpos vivos
indicando a forma substancial como a alma dos irracionais, até este ponto a coexistência
destas e dos espíritos será solucionada por uma bipartição ontológica. A ipseidade aparece não
somente como elemento distintivo entre as substâncias, mas como característica fundamental
de uma categoria substancial específica. É a consciência da própria permanência frente às
mudanças, manifesta na constituição de uma personalidade, que atesta a substancialidade dos
espíritos e os caracteriza como inteiramente diferentes das outras almas (LEIBNIZ, 2004,
p. 83). Os demais seres, a seu turno, têm a substancialidade garantida apenas pela unidade
metafísica de suas partes.
Sob o aspecto conceitual, a estrutura teórica afirmada pelo recurso leibniziano às
formas substanciais mantém, até aqui, a formatação dual presente no cartesianismo. Embora o
dualismo res cogitans/res extensa tenha sido suprimido pelo caráter eminentemente
metafísico da substância corpórea, a distinção ontológica entre espíritos e almas dos
irracionais sustenta uma oposição similar: ambos são substâncias, ambos têm fundamento
metafísico, mas trata-se, de algum modo, de naturezas distintas. Neste sentido, certamente a
insatisfação expressa por Leibniz em relação a este esquema vai além da incerteza quanto ao
caráter substancial dos corpos.
71
Ao menos três questões problemáticas podem ser apontadas
como o meio a partir do qual se introduzem fissuras na perspectiva individual: em primeiro
71
Na carta definitivamente enviada a Arnauld Leibniz é mais discreto quanto à sua incerteza sobre as formas
substanciais: “Desejaria poder explicar-me de uma maneira tão clara e decisiva com respeito à outra questão
sobre as formas substanciais” (2004, p.82).
82
lugar, considerando a forma substancial como um tipo de alma e tomando a figura humana
como a união de um espírito racional e um corpo, terá esta substância duas almas? Isto é, a
alma racional e a forma substancial do corpo? Segundo Fichant (2004, p.82), quanto a este
ponto Leibniz adere à fórmula aristotélica segundo a qual a alma não deixa de ser a forma de
seu corpo. Mas se o espírito assume o papel da forma substancial no corpo humano, a questão
da geração da vida e de sua origem representa uma dificuldade, uma vez que a alma humana
tem de ser criada de forma singular. Tal questão não será apresentada a Arnauld, mas aparece
nas reflexões de Leibniz no referido rascunho:
E quanto a sua origem [da alma racional], pode se dizer que Deus somente a
produz quando este corpo animado que está na semente é determinado a tomar a forma
humana. Se esta alma bruta, que animava este corpo antes da transformação, se
aniquila quando a alma racional ocupa seu lugar, ou se Deus converte uma na outra,
dando à primeira uma nova perfeição por meio de uma influência extraordinária, esta é
uma particularidade sobre a qual não tenho muitas luzes (p.94).
Outro aspecto controverso neste ponto das Correspondências envolve a introdução do
tema da unidade como determinante substancial, a partir do qual o contexto teórico das
mônadas começa a tomar forma
72
A unidade aparente proporcionada pela agregação das partes
extensas não alcança ainda a verdadeira unidade demandada pelo conceito de substância.
Quer se trate de dois diamantes engastados no mesmo anel, ou de um piso de mármore (estes
são os exemplos utilizados por Leibniz), o grau de coesão de seus elementos não contribui
para a sua constituição enquanto uma substância. Assim, um monte de pedras ou um rebanho
de carneiros não são uma substância senão pela ficção de nosso espírito”. Para além da
sua unidade modal, a unidade substancial está situada num patamar distinto, encontrada
apenas nos seres animados e caracterizada por seu fundamento metafísico. Nas palavras de
Leibniz:
A unidade substancial exige um ser perfeito,
73
indivisível e, naturalmente
indestrutível (...) o qual não poderia encontrar-se nem na figura nem no movimento,
(...) senão em uma alma ou forma substancial, à semelhança do que se chama eu.
...........................................................................................................................................
Agora bem, o referido eu, ou o que corresponde ao eu em cada substância
individual, não pode ser feito nem desfeito pela aproximação ou separação das partes,
72
Segundo Fichant (2004, p.85), “A carta efetivamente enviada em 8 de dezembro de 1686 (...) faz intervir
explicitamente novos critérios e esboça uma nova terminologia”. Estas transformações preparam e antecedem a
perspectiva monádica, que gradualmente virá a se instaurar no pensamento de Leibniz até o fim de sua carreira.
73
O termo usado originalmente é accompli, cuja tradução mais direta seria completo, no sentido de “acabado”.
Mantenho aqui a alternativa dada pela tradução espanhola de V. Quintero, isto é, um ser perfeito indivisível.
83
que é uma coisa completamente exterior ao que constitui a substância. Não poderia
dizer precisamente se outras substâncias corpóreas verdadeiras fora as que estão
animadas; mas, pelo menos, as almas servem para dar-nos algum conhecimento das
outras por analogia (p. 84).
A partir destas reflexões o tema da unidade metafísica será definitivamente inserido na
teoria leibniziana da substância, conduzindo-a a importantes mudanças. Neste trecho a
recorrente associação da substancialidade à vigência de um eu apresenta uma disparidade
quanto ao seu objeto de aplicação. Uma vez que a demanda pela verdadeira unidade surge em
conexão com o conceito de forma substancial, este pensado também como alma dos
irracionais, de que modo a presença de um eu, baseada na potencialidade reflexiva dos
espíritos, poderia ser afirmada como característica da unidade substancial? Por certo que
Leibniz retorna à subjetividade de forma analógica, buscando exemplificar através de nossa
experiência a unidade metafísica demandada pela substância. Ainda assim, tomada a ipseidade
como prerrogativa exclusiva das almas racionais, a ilustração permanece vaga: precisamente o
quê, nas formas substanciais, apresenta qualquer proximidade com a individualidade própria
aos espíritos? Como ela permite assegurar a unidade dos corpos sem o recurso à ipseidade?
Neste ponto a carta enviada a Arnauld encobre as dúvidas expostas no rascunho anterior, e o
que Fichant afirma sobre a questão da substancialidade dos corpos pode ser estendido às
questões acima enunciadas: A incerteza permanece, somente sendo assegurada a clausula
condicional: se os corpos são outra coisa além de verdadeiros fenômenos, isto se deve à
forma substancial(2004, p. 86). Em outras palavras, se a introdução das formas substanciais
aparece como uma necessidade lógica, os fundamentos de sua universalidade ainda carecem
de uma base segura. Ou bem devem haver dois princípios metafísicos distintos para
fundamentar classes distintas de substâncias, isto é, a ipseidade para os espíritos e um outro
fator para as almas dos irracionais; ou talvez o determinante substancial baseado na
verdadeira unidade possa ser encontrado em um nível mais elementar que o das
representações racionais, disponível aos seres em geral.
Por fim, evocada a perspectiva individual pela alusão ao eu como exemplar da unidade
substancial e, ao mesmo tempo, afirmada a forma substancial enquanto operador da
substancialidade dos corpos animados, uma terceira dificuldade surge justamente do
confronto entre o estabelecimento de uma realidade substancial dupla e a emergência do tema
da verdadeira unidade. Conforme explica detalhadamente Fichant, ao recorrer pela última vez
ao contexto teórico da substância individual Leibniz implementa uma sutil alteração acerca da
84
determinação da substancialidade:
O 'ser completo' do artigo VIII do Discurso é agora designado como um 'ser
perfeito indivisível' que é o que requer a 'unidade substancial'. A indivisibilidade da
forma substancial se torna o vetor desta unidade substancial, a qual foi até então
exprimida pela unidade lógica da noção (2004, p.87).
Enquanto o conceito de substância fora apreendido a partir da completude expressa na
noção completa, o eu aparecia como principal sintoma da unidade substancial e as almas ou
formas somente justificavam a autonomia e a dinâmica dos corpos no aspecto da configuração
física. Entretanto, uma vez que precisamente a verdadeira unidade verificada na totalidade dos
corpos vivos se insinua como o traço fundamental da substancialidade, a forma substancial
tende a assumir o caráter de um princípio metafísico indivisívellido para os seres em geral.
Ora, mas será possível sustentar uma unidade metafísica inerente à totalidade dos seres se os
critérios de distinção entre eles repousa sobre o pressuposto de uma ambivalência ontológica?
Dito de outro modo, se a indivisibilidade proporcionada pela forma substancial vai aparecer
como um operador universal de substancialidade para os corpos do homem, dos animais e das
demais entidades vivas, a afirmação de uma realidade ontológica dual, isto é, da coexistência
dos espíritos e das almas dos irracionais como substâncias de classes ontologicamente
distintas não pode ser sustentada. Nesta direção, o pensamento ou, antes, a potência reflexiva
que distingue os seres humanos das demais criaturas não deveria ser tomada como um
determinante substancial, mas somente como uma espécie de atributo especial.
De uma maneira geral, o ponto comum entre as três dificuldades acima apresentadas
consiste na incompatibilidade das demandas que surgem gradualmente da lapidação do
próprio conceito de substância em relação à perspectiva individual sustentada até então. Tanto
em relação aos espíritos e à substancialidade do corpo humano (1), como no que se refere à
questão do eu e à afirmação da alma dos irracionais (2), ou ainda quanto à tensão entre uma
determinação una ou dual para a substância (3), um desacordo se estabelece entre alguns
aspectos elaborados a partir da perspectiva individual e a demanda por unidade introduzida
através das formas substanciais. Em verdade, trata-se de três desdobramentos do mesmo
problema: a unidade e indivisibilidade introduzidas através da discussão sobre o tema da
forma substancial vão gradualmente conduzindo Leibniz a um âmbito ontológico mais
elementar que aquele vigente na elaboração da substância individual e da noção completa. Se
ali o contexto humano permanecia como pano de fundo e a própria substancialidade foi
85
compreendida em correlação com a ipseidade, agora é o domínio do vital que irá se apresentar
como o solo mais originário da substancialidade e as percepções vão surgir como um
elemento expressivo não vinculado à potencialidade reflexiva exclusiva dos espíritos.
Contudo, neste ponto das Correspondências tais disparidades e a subseqüente transição
imposta por elas o estão plenamente dadas a Leibniz. A intervenção de uma nova
perspectiva ontológica no pensamento do autor depende ainda de uma árdua reflexão
desencadeada pelas objeções de Arnauld, apresentadas detalhadamente a seguir.
7.2 Verdadeira unidade e a essência do individual
Em resposta a Leibniz, datada de quatro de março de 1687, Arnauld expõe sem rodeios
suas objeções à tese do acordo mútuo entre corpo e alma, e à questão da verdadeira unidade
concedida pela forma substancial, ambos os temas desenvolvidos de forma independente até o
final das Correspondências.
74
Retificando sua impressão inicial sobre o estatuto substancial
dos corpos o teólogo reconstitui brevemente a tese Leibniziana defendida anteriormente:
[os corpos] não podem ser verdadeiras substâncias se não têm uma verdadeira
unidade, nem ter uma verdadeira unidade se não têm uma forma substancial; portanto,
a essência do corpo não pode ser a extensão, senão que todo corpo, além da extensão
deve ter uma forma substancial (p.102).
Note-se que, a despeito da aplicação específica desta tese aos corpos unum per se, tal
como propôs Leibniz no artigo 34 do texto do Discurso de metafísica, bem como na carta
precedente,
75
Arnauld a compreende em relação aos corpos físicos em geral, sem quaisquer
restrições. Nesta acepção, a afirmação leibniziana do caráter indivisível das formas
substanciais gera muitas dúvidas, requerendo uma distinção entre os seres mais criteriosa;
algo como uma taxonomia substancial. Afinal, nos elementos naturais e nas plantas, nas
inumeráveis espécies animais e no homem, todos considerados a partir de sua extensão
corpórea, haveria de se encontrar a mesma unidade substancial? Qual o seu traço
característico? Qualquer corpo extenso, pela sua constituição coesa, deve conter uma forma
74
Nas palavras de Fichant: “Todas as cartas trocadas em seguida (...) comportam, da parte de cada interlocutor,
dois desenvolvimentos distintos referindo-se alternadamente a estes dois temas.” (2004, p.81).
75
Na carta de 8 de dezembro de 1686 Leibniz afirma: “Dou formas substanciais a todas as substâncias
corpóreas unidas não só maquinalmente” (2004, p.85).
86
indivisível? Em primeiro lugar, especula o teólogo, dada a divisibilidade e versatilidade dos
elementos naturais, torna-se inviável supor uma verdadeira unidade: Todo corpo que pode
ser dividido, cada parte conservando a mesma natureza que o todo, como os metais, as
pedras, a madeira, o ar, a água os demais corpos líquidos, não tem forma substancial.
(LEIBNIZ, 2004, p.102) Também, o reino vegetal, supõe Arnauld, será incluído sob a mesma
categoria, dada a capacidade das plantas de se desenvolverem a partir de suas partes, como
num enxerto. Restariam portanto somente os animais como “verdadeiras substâncias”, cuja
unidade das partes deve ser encontrada num princípio metafísico, a saber, a forma substancial.
Ainda assim, Arnauld vai explorar a hesitação expressa por Leibniz quanto à alma dos
irracionais reduzindo ao homem a unidade metafísica característica das substâncias e pondo
em descrédito a proposta de extensão de um princípio metafísico indivisível aos seres em
geral:
E ainda não estais tão seguro disso que não diga que se os animais não tem
alma ou forma substancial, se segue que, com exceção do homem, não haveria nada de
substancial no mundo visível, porque pretendeis que a unidade substancial exige um
ser completo, indivisível e, naturalmente, indestrutível, o qual só poderia encontrar-se
em uma alma ou forma substancial, a exemplo do que se chama eu (p.102).
De maneira um tanto quanto ardilosa Arnauld inverte a retórica utilizada por Leibniz
ao apresentar a imprescindibilidade da forma substancial por meio de uma espécie de redução
ao absurdo: somente quando se encontra máquinas animadas”, afirmara o autor, cuja alma
ou forma substancial constitua a unidade substancial independentemente da união externa
que cria o contato (LEIBNIZ, 2004, p.85), se pode atestar a substancialidade ou a presença
efetiva de um ser. Caso contrário, isto é, se não se encontrasse algo semelhante nos demais
corpos vivos, então somente o homem seria, a rigor, algo de substancial em um mundo
fenomênico. Tal como o prova o rascunho,
76
a intenção de Leibniz nesta passagem é
realmente a de sustentar a presença da forma substancial nos corpos unum per se em geral,
considerando falsa a segunda alternativa. Todavia, a referida precaução acerca da alma dos
irracionais se reflete nesta estrutura manifestamente condicional que deixa em aberto um
posicionamento definitivo, permitindo a Arnauld pôr em questão a viabilidade da proposta de
restauração das formas substanciais.
76
No rascunho de Leibniz, em meio às dúvidas sobre o estatuto substancial dos corpos, encontra-se a seguinte
proposição suprimida da versão final enviada a Arnaud: “Entretanto, parece-me indubitável que, se há
substâncias corpóreas, o homem não é a única, e provavelmente os animais têm alma, embora careçam de
consciência” (LEIBNIZ, 2004, p. 94).
87
Valendo-se das aberturas teóricas deixadas por Leibniz, Arnauld será incisivo
justamente quanto às inconsistências mencionadas no tópico precedente, a saber, certa
incompatibilidade entre a demanda por uma fundamentação universal da substância e o
vínculo previamente estabelecido entre substancialidade e ipseidade; entre ser e pensamento.
77
Afinal, se a matéria divisível carece de substancialidade, e se a unidade substancial dos corpos
vivos permanece incerta, encontrando fundamento definitivo tão somente na vigência de um
eu, então só os espíritos deveriam ser considerados substâncias. Neste ponto o teólogo evoca a
força da autoridade eclesiástica: Santo Agostinho não sente dificuldade em reconhecer que
os corpos não têm verdadeira unidade, porque a unidade deve ser indivisível e nenhum corpo
o é; [e] que, portanto, verdadeira unidade nos espíritos, como também verdadeiro eu”
(LEIBNIZ, 2004, p.103). Assim, aceitar a potência reflexiva como o determinante substancial
dos espíritos implica em rejeitar a substancialidade dos demais seres, caso esta consista
somente na verdadeira unidade, ou assumir a noção cartesiana de substância corpórea, cuja
essência é, de fato, divisível e composta simplesmente pela extensão. Mais inclinado à
segunda opção Arnauld defende então a plausibilidade da concepção de res extensa:
Mas não vejo nenhum inconveniente para acreditar que em toda natureza
corpórea só há máquinas e agregados de substâncias, porque de nenhuma destas partes
pode se dizer, falando com precisão, que é uma substância. Isto mostra, o que é
muito conveniente assinalar, como fez Santo Agostinho, que a substância pensante ou
espiritual é nisto muito mais excelente que a substância extensa ou corpórea, e que
a substância espiritual tem uma verdadeira unidade e um verdadeiro eu, coisas de que
carece a substância corpórea (p.104).
Mais do que apenas uma reação isolada à inovadora proposta leibniziana de extensão
do princípio metafísico indivisível aos seres vivos em geral, estas objeções de Arnauld
permitem entrever algo mais profundo. Trata-se do confronto que se anuncia entre uma
perspectiva convencional da substancialidade aliada à individualidade característica dos
espíritos, a qual se apresenta explicitamente nas supracitadas palavras do teólogo, e o
surgimento de uma perspectiva ontológica diversa, marcada pela reformulação da idéia de
unidade substancial. Argumentando em favor da substância corpórea enquanto res extensa
Arnauld expressa inadvertidamente as bases da própria perspectiva individual, que até então
orientara também a teoria leibniziana da substância: a “verdadeira unidade” aparece como um
equivalente do “verdadeiro eu”, afirmando a consciência de si ou ipseidade como
77
Cf. 7.1, p.85
88
determinante substancial e restringindo, por conseguinte, a substancialidade metafísica aos
espíritos. Trata-se da plena associação entre indivisibilidade metafísica e a individualidade
que se constitui como identidade pessoal baseada na potência reflexiva dos seres humanos.
Todavia, ao rejeitar a idéia de uma substancialidade fundada na matéria extensa e refletir
sobre e verdadeira unidade capaz de manter um corpo ou agregado como uma substância
aparente, Leibniz se cada vez mais inclinado a supor uma realidade metafísica mais ampla
e elementar, capaz de contemplar os seres em geral. Eis que uma tensão se estabelece entre a
noção de verdadeira unidade e a ipseidade tomada enquanto determinante substancial.
Aos olhos de Arnauld, as incertezas manifestas por Leibniz quanto à questão da
substancialidade dos corpos denunciaram as dificuldades inerentes à própria restauração das
formas substanciais, condenando a referida proposta de apreensão dos seres em geral como
naturezas metafísicas indivisíveis. À taxonomia substancial proposta pelo teólogo subjaz uma
asserção típica do modelo dualista cartesiano, a saber, a identificação dos seres o-racionais
a simples corpos. Assim, excluído o aspecto reflexivo concebido como traço fundamental da
natureza metafísica dos espíritos, restaria somente a máquina corpórea, cuja constituição
dispensaria a necessidade de um fundamento metafísico, desde que assumidas duas naturezas
distintas de substância (res cogitans e res extensa). Para o próprio Leibniz, entretanto, o
caráter obscuro do status substancial dos corpos representa, antes, a porta de entrada para uma
nova configuração da substancialidade. Ora, a reconhecida insuficiência da matéria extensa
em fundamentar qualquer substância é justamente o ponto de partida para afirmar a
imprescindibilidade de um fundamento metafísico para aqueles tipos de corpos cuja unidade é
intrínseca e difere da simples agregação por acidente, isto é, os corpos unum per se. Neste
ponto, a suposição de uma alma dos irracionais permitirá ao autor pensar a natureza
metafísica dos seres não-humanos em certa consonância com o caráter aparentemente
fenomênico dos corpos, dissociando-os uns dos outros.
Tomados como simples corpos os irracionais não poderiam ser considerados, a rigor,
substâncias, mas somente como um agregado de substâncias, dada a divisibilidade destes
corpos materiais. Por outro lado, pensados como naturezas metafísicas distintas de seus
corpos, os animais e demais seres devem revelar uma unidade análoga a dos espíritos. Mas se
a mesma unidade corpórea atestada pelos espíritos se encontra nos seres vivos em geral, esta
somente explicável pela atuação da alma ou forma substancial, a ipseidade ou consciência de
si a então tida como traço fundamental desta verdadeira unidade o se faz presente nestes
89
últimos. Assim, a unidade intrínseca dos seres irracionais deve necessariamente se estabelecer
para além do corpo, porém sem depender de uma consciência de si, isto é, sem o atributo da
individualidade, esta entendida como a constituição de uma personalidade. Precisamente este
passo, o da atribuição de um fundamento metafísico substancial diferente da ipseidade, ainda
não está dado claramente a Leibniz. Ele depende da transição do esquema dual presente na
perspectiva individual para a generalidade ontológica proposta pelo universo monádico.
Conforme se mencionou,
78
além da influência marcante do dualismo cartesiano no
cenário filosófico do final do séc. XVII, também o aspecto religioso representa um elemento
decisivo na constituição da perspectiva individual. Da lembrança das boas e más ações
salvaguardada enquanto consciência pessoal e tomada como a própria identidade metafísica
dos espíritos depende a possibilidade de comunhão do homem com Deus e, por conseguinte,
de sua salvação.
79
Assim, a vinculação entre a substancialidade dos espíritos e a sua
potencialidade reflexiva se explica também pela afirmação de uma identidade metafísica; de
uma personalidade requerida pela cristã. Neste contexto, ao pretender afirmar a alma dos
irracionais em sua natureza indivisível e indestrutível Leibniz se vê às voltas com questões
delicadas envolvendo a religião, o que explica sua excessiva cautela quanto a este tema.
Algumas destas dificuldades serão mencionadas brevemente por Arnauld:
Ademais, não se que esta opinião [da alma dos irracionais como
indivisível] possa sustentar-se facilmente, supondo essas almas indestrutíveis e
individuais. (...) Se se põe fogo em uma casa onde se cria cem mil bichos da seda, que
será desta cem mil almas indestrutíveis? Subsistiriam separadas de toda matéria como
nossas almas? O que houve com as almas deste milhões de rãs que Moisés matou
quando quis eliminar esta praga, e das inúmeras codornas que mataram os israelitas no
deserto, e de todos os animais que pereceram no dilúvio? (p.105)
80
Tais questões permitem entrever a ligação implícita, porém determinante, entre a
substancialidade dos espíritos e a sua identidade metafísica baseada na constituição de uma
personalidade. Findado o corpo a alma humana deve permanecer separada e intacta em seu
eu, indo ao encontro de Deus e aguardando pelo momento em que o criador, em sua
78
Texto 4, p. 50.
79
No artigo 35 do Discurso de metafísica Leibniz enfatiza a personalidade como um elemento imprescindível na
relação religiosa dos espíritos com Deus, afirmando a sua excelência em relação às demais almas ou substâncias.
Sua palavras iniciais são: “Porém, para fazer julgar por razões naturais que Deus conservará sempre, não só a
nossa substância, mas também a nossa pessoa, quer dizer, a lembrança e o conhecimento do que somos (...) é
preciso aliar-se a moral à metafísica” (1979, p.149).
80
Ao início desta página outro erro no texto da edição utilizada merece ser destacado. Se lê:Pero no sé, señor,
lo que os lleva a creer que no hay en los brutos esas almas o forma substanciales...” Quando, na verdade
Arnauld afirma: “Não sei o que o leva a crer que há nos animais essas almas ou formas substanciais”.
90
onipotência, restituirá novamente a vida ao seu corpo, unindo-os definitivamente pela virtude
da ressurreição de Cristo. A individualidade dos espíritos consiste, segundo o dogma, na sua
própria essência metafísica, afirmando-os em sua substancialidade. Ora, deveriam as almas
dos irracionais sofrer o mesmo processo? A resposta afirmativa é problemática tanto em
relação à questão da individualidade, uma vez que carecem de qualquer personalidade
claramente determinada pela presença de um eu, quanto em relação à primazia dos espíritos
na comunhão com o Divino sustentada pela autoridade eclesiástica, dado que tal suposição
tende aparentemente a nivelar o caráter ontológico das criaturas em geral. A negativa,
entretanto, inviabiliza a afirmação de tais almas como indivisíveis, impondo a aceitação da
substância corpórea como algo puramente material.
Motivado a refutar a forma substancial apontando-a como um elemento dispensável na
reflexão sobre a natureza corpórea Arnauld procura relativizar a noção de unidade. Se a
verdadeira unidade convém unicamente aos espíritos sendo determinada pela ipseidade, tudo
o mais, inclusive o corpo humano, deve resumir-se a agregados de partes. Todavia, isto não
impediria que se atribuísse aos corpos em geral uma unidade menos rigorosa que lhes seja
característica. Esta proposta, entretanto, impõe a determinação de diferentes graus de
substancialidade, conforme afirma o teólogo:
Com efeito, ainda que não haja corpo tomado separadamente que não esteja
composto de várias substâncias, sem embargo, razão para atribuir mais unidade
àqueles cujas partes conspiram a um mesmo propósito, como uma casa ou um relógio,
do que àqueles que cujas partes estão juntas, como um monte de pedras ou uma
bolsa de moedas (...) Quase todos os corpos da natureza que chamamos um, como um
pedaço de ouro, uma estrela, um planeta, são do primeiro gênero; mas esta qualidade
se plenamente nos corpos organizados, quer dizer, nos animais e nas plantas,
sem que para isso seja necessário dotá-los de almas (e inclusive parece-me que voz
não as supõe nas plantas) (p.107).
Em termos práticos, ao restringir a verdadeira unidade ao eu e propor que se considere
diferentes graus de unidade aparente relacionada aos corpos Arnauld rejeita o esquema
leibniziano de unificação da substancialidade pela unidade metafísica. Afinal, caso se possa
considerar uma unidade imprópria”, será necessário justamente admitir uma espécie de
substância não relacionada ao aspecto metafísico, isto é, a res extensa cartesiana. Vale
ressaltar que neste trecho, embora permaneça associando a questão da unidade corpórea aos
corpos físicos em geral e não somente aos corpos vivos (tal como o pedaço de ouro ou o
planeta citados nos exemplos), Arnauld concede haver nos seres animados, tais como os
91
animais e as plantas, uma unidade mais autêntica em relação aos demais corpos. Todavia,
precisamente a restrição da substancialidade metafísica à natureza humana o leva a manter o
status ontológico de tais seres no domínio da materialidade. Eis os limites da assim chamada
perspectiva individual às tendências de generalidade ontológica introduzidas pela restauração
das formas substanciais. Leibniz, a seu turno, receberá esta forte oposição como o impulso
necessário para uma engenhosa inversão, adentrando gradualmente ao domínio do simples; ao
universo monádico.
92
— 8 —
O individual e o monádico
Seguindo o curso das correspondências anteriores, a resposta de Leibniz datada de 30
de abril de 1687 trabalha separadamente o tema da conformação entre corpo e alma e a
questão da substancialidade dos corpos. Diante das dúvidas de Arnauld acerca da hipótese da
concomitância e da franca oposição do teólogo à forma substancial corpórea e ao caráter
fundamental da relação entre verdadeira unidade e substancialidade, Leibniz será instado a
esclarecer alguns aspectos de sua teoria, definindo de modo mais preciso seu posicionamento
em relação às dificuldades levantadas por seu opositor. Neste esforço, os referidos temas até
então abordados de forma independente passam a entrecruzar-se delineando os moldes de uma
nova perspectiva ontológica para a teoria leibniziana da substância. Assim, dada a hipótese do
acordo mútuo entre as substâncias (concomitância), a discussão inicial sobre a união entre
alma e corpo se converte no tema da expressão, ao passo que as questões levantadas sobre a
substancialidade dos corpos se encaminham para o problema da verdadeira unidade,
culminando nas relações entre agregados e suas partes. Sem oferecer o contexto teórico das
mônadas por completo, mas delineando uma nova perspectiva para a compreensão do tema
da substancialidade, tais reflexões revelam os termos da superação da perspectiva individual,
como se pretende mostrar a seguir.
8.1 Corpo e alma
Ao inscrever sua tese do acordo mútuo entre as substâncias como uma resposta
alternativa à polêmica moderna da união entre alma e corpo Leibniz permaneceu
inevitavelmente próximo ao esquema teórico dual manifesto pelo par res cogitans/ res
extensa,
81
o que justifica a estranheza de Arnauld frente às propostas de reformulação do
conceito de substância corpórea e à afirmação da alma dos irracionais. Contudo, as objeções
apresentadas pelo teólogo, baseadas neste modelo, o levam (Leibniz) a vislumbrar a
verdadeira dimensão da oposição sustentada por sua teoria da substância: Dado o impasse da
interação entre a alma e o corpo, a hipótese da concomitância não se encontra simplesmente
81
Cf. 7.1, p. 80.
93
entre a saída cartesiana (glândula pineal) e a teoria das causas ocasionais, que ambas
pressupunham a mesma configuração ontológica, a saber, a relação de duas substâncias de
ordens completamente distintas, uma física outra metafísica. Ao contrário, guiado pelas
implicações lógicas de seu próprio conceito de substância Leibniz passa a compreender toda
natureza substancial como imprescindivelmente metafísica, de modo que as relações entre
alma e corpo serão entendidas como um caso particular das relações expressivas inerentes a
cada substância. Trata-se, pois, não somente de uma resposta à questão de como uma alma
pode conformar-se a um corpo, mas de uma transformação radical nos moldes da própria
pergunta. Afinal, se a alma expressa, em certo sentido, todo o universo, ela o faz a partir de
uma relação particular e mais direta com seu próprio corpo. Mas este, por sua vez, deve ser
compreendido como um agregado de substâncias cuja unidade e funcionamento são
autônomos, assegurados igualmente pela perfeita regulação entre tais substâncias, conferida
por Deus no momento da criação. Assim, a mesma harmonia rege as expressões da
substâncias em seus mais variados níveis, de modo que, segundo o autor, o se trata de unir
somente na figura humana duas naturezas substanciais absolutamente distintas e separadas
(alma e corpo), senão que é mister compreender o aspecto metafísico intrínseco à toda a
criação, atentando para os detalhes da expressão inerente à natureza da própria substância,
manifesta sobretudo nos corpos vivos através da unidade e auto-suficiência que lhes é própria.
Desafiado a explicar com esta inovadora hipótese inegáveis “efeitos” do corpo sobre a alma,
tal como uma dor causada por um ferimento, Leibniz afirmara numa carta precedente:
Eu respondo que não é por nenhuma impressão ou ação dos corpos sobre a
alma, senão porque a natureza de toda substância encerra uma expressão geral de todo
o universo e porque a natureza da alma encerra com maior particularidade uma
expressão mais distinta do que acontece atualmente em relação com seu corpo. Por
isto é natural que assinale e conheça os acidentes de seu corpo como se fossem os seus
(p.81).
Empenhado em fornecer as explicações cobradas acerca da harmonia preestabelecida,
Leibniz adentra com profundidade no tema da expressão. Sem necessitar da ação direta de um
sobre o outro, basta que as expressões da alma e do corpo coincidam, de modo que um
represente o estado do outro spontanea relatione, como afirmará o autor (LEIBNIZ, 2004,
P.110). Mas a plena fundamentação de semelhante mecanismo teórico carece de importantes
reflexões sobre a natureza do aspecto vital envolvido na constituição corpórea e,
conseqüentemente, sobre a própria natureza das substâncias aí implicadas. A carta de 30 de
94
abril de 1687 inicia justamente por este assunto ao retomar uma questão levantada
anteriormente por Arnauld. Surpreso com a idéia de que a alma possa expressar mais
distintamente seu próprio corpo como um meio para expressar todo o universo, o teólogo
pergunta: Se isto é assim, porque não temos conhecimento direto sobre tudo o que se passa
com o corpo, tal como os processos inerentes à digestão, a produção de bílis ou outros
fluídos? Em primeiro lugar, responde Leibniz, diferentes graus de relações entre as partes
mesmas do corpo, resultando em diferentes níveis de sua expressão, de modo que, tal como
ocorre com tudo o mais, a alma “não poderia expressar de igual modo todas as coisas” (2004,
p.109) e as expressões mais distintas da alma correspondem às expressões mais distintas do
corpo (2004, p.110). Tais relações expressivas das substâncias constituirão um tema
constante nas reflexões do autor, articulando em seus últimos textos a natureza fundamental
da substância simples à realidade sensorial dos espíritos ou almas racionais. Todavia, basta
por hora destacar outro resultado relevante suscitado pela questão. Afinal, se as expressões do
corpo e da alma coincidem, em quê propriamente consistem tais expressões corpóreas?
Atentando aos pormenores do funcionamento do corpo Leibniz introduz de passagem um
elemento doravante importantíssimo para a estruturação final de sua teoria da substância, a
saber, as percepções:
Deve-se considerar também que acontecem muitas coisas em nosso corpo para
que possam ser apercebidas todas separadamente, mas que se sente apenas um certo
resultado ao qual se está acostumado, e não se poderia discernir o que entra nele por
causa da multiplicidade de percepções, como quando se escuta de longe o barulho do
mar, não se discerne o [barulho] que faz cada onda, embora cada uma produza seu
efeito em nossos ouvidos (p.110, grifo nosso).
Ainda que evocadas neste trecho de maneira isolada, apenas como parte da
argumentação e sem uma referência mais direta à constituição teórica do conceito de
substância, as percepções aparecem pela primeira vez ligadas ao corpo, como resultado
intuitivo da demanda por um elemento expressivo dissociado da relação com a ipseidade. Em
outras palavras, se até então, desde o Discurso de metafísica, as percepções foram citadas
somente em conjunto com os pensamentos, isto é, enquanto expressão referida à alma, mais
propriamente à alma racional,
82
agora elas serão pensadas num contexto mais amplo, ligado à
82
O artigo 28 do Discurso traz o seguinte título: “Deus é o único objeto imediato das nossas percepções
existente fora de nós, e só ele é a nossa luz” (LEIBNIZ,1979, p.143). A similaridade assumida entre percepção e
idéia neste e em outros trechos desta obra é flagrante.
95
fisiologia corpórea e não necessariamente vinculado à qualquer estado especial de
consciência. As percepções começarão a ser vistas como uma unidade expressiva própria da
vitalidade inerente aos corpos unum per se, sendo portanto de natureza mais elementar que os
pensamentos e atribuíveis aos seres vivos em geral; da mais ínfima criatura microscópica ao
homem. Semelhante concepção, entretanto, exigirá um posicionamento definitivo acerca do
status substancial dos corpos; núcleo das incertezas de Leibniz e alvo das críticas de
Arnauld.
83
A proposta de uma sincronia entre as expressões da alma e as do corpo implica em que
ambos coincidam em seus fenômenos sem, contudo, qualquer espécie de comunicação direta.
Ora, sendo esta plena regulação fruto da obra divina, semelhante estrutura teórica fora
interpretada irrefletidamente por Arnauld como não mais que uma variante da tese
ocasionalista, ao que Leibniz se propõe a esclarecer a diferença:
Havia dito que Deus criou o universo de maneira que a alma e o corpo,
trabalhando cada um segundo as suas leis, coincidem nos fenômenos. Julgais, senhor,
que isto concorda com a hipótese das causas ocasionais. (...) mas entrevejo sua razão:
vós suponhais que eu não direi que um corpo possa mover-se por si mesmo; assim,
não sendo a alma a causa real do movimento do braço, e muito menos o corpo, será
então Deus. Entretanto, penso de outra maneira: sustento que o que de real no
estado que se chama movimento, procede da substância corporal, assim como o
pensamento e a vontade procedem do espírito (p.111).
Deixando em segundo plano as polêmicas específicas sobre a hipótese da
concomitância, importa aqui atentar para uma mudança significativa: Sem negar a natureza
fenomênica dos corpos tomados em si mesmos, Leibniz apresenta a partir desta carta uma
visão distinta acerca de seu status substancial. Sob o termo “substância corporal” o autor
passa a se referir ao corpo como agregado de substâncias, mas também, em certa medida,
como substância, uma vez que estes se apresentam como um todo cuja unidade não pertence à
mera agregação por acidente.
84
Fundado num princípio metafísico (a forma substancial), o
corpo é concebido como sujeito do movimento; uma “máquina da natureza” cuja
83
Cf. Texto 7.2 p.89.
84
Em Leibniz e as máquinas da natureza Michel Fichant sustenta a tese de que esta noção de substância corporal
indica, na última filosofia de Leibniz, uma “realidade intermediária” entre a substancialidade rigorosa das
mônadas e o caráter puramente fenomênico dos corpos:Entre a substância simples e o agregado sem unidade
real há lugar para um nível ao mesmo tempo de substancialidade e de corporeidade, que vários textos
caracterizam com precisão.” (2005, p.41) Em vista do objetivo desta dissertação, me eximirei aqui de discutir os
méritos desta tese e suas possíveis oposições. Basta indicar que, de fato, neste trecho das Correspondências com
Arnauld, Leibniz passa a considerar o corpo de um modo levemente distinto da suposição de seu caráter
completamente fenomênico, esboçada nas cartas anteriores.
96
característica é a auto-suficiência intrínseca própria à configuração substancial,
85
e que,
portanto, não depende nem do pressuposto da interação física com a alma, nem da intervenção
direta de Deus. Todavia, como explicar esta posição dúbia? Em que sentido o corpo pode ser e
não ser substância? Arnauld havia sugerido algo nesta direção ao propor que se permita
admitir uma “unidade imprópria que convém aos corpos (LEIBNIZ, 2004, p.107)
relacionada ao seu propósito ou causa final. Mas sem abrir mão da verdadeira unidade
inerente ao conceito de substância, Leibniz reencontra na própria harmonia preestabelecida
outra resposta para a questão. Os corpos vivos, se tomados isoladamente, o podem ser
considerados verdadeiras substâncias no sentido rigoroso do termo. A unidade de suas partes,
entretanto, se estabelece para além da simples agregação material apontando para uma
realidade metafísica como sua característica intrínseca. Ora, isto é possível justamente na
medida em que se trata de compostos de verdadeiras substâncias, estas agregadas em plena
harmonia ou regulação, a ponto de constituir um todo ordenado. Assim, o corpo deve a sua
substancialidade às verdadeiras substâncias das quais é composto, mas pode ser
compreendido enquanto substância corporal devido à auto-suficiência adquirida pela plena
regulação de suas partes. Ele será tomado como a origem metafísica do próprio movimento
sendo inserido no esquema leibniziano da auto-suficiência substancial, anteriormente
afirmado mais especificamente em relação à alma:
Tudo acontece em cada substância como conseqüência do primeiro estado que
Deus lhe deu ao criá-la, e, deixando de lado seu concurso extraordinário, sua
intervenção ordinária consiste na conservação da substância mesma, conforme seu
estado precedente e com as mudanças que nela se produzem (p.111).
Se o que acontece à alma nasce de seu próprio fundo (LEIBNIZ, 2004, p.69), a
mesma dinâmica se verifica no domínio dos corpos. Assim, Leibniz irá encontrar no corpo
vivo um traço fundamental de seu conceito de substância presente desde as suas reflexões
iniciais:
86
A substância corporal”, afirma o autor, possui força para continuar suas
mudanças segundo as leis que Deus pôs em sua natureza e que conserva nela (2004, p.113),
pois, o mecanismo dos corpos está preparado para funcionar por si mesmo como deve
(2004, p.115). Eis que a auto-suficiência característica das substâncias, anteriormente
85
Sobre os detalhes da elaboração do conceito de “máquina da natureza” ver o supracitado texto de Fichant
(2005).
86
Conforme se afirmou em 1.2 (p.18), princípios como a auto-suficiência, a atividade e a permanência
acompanham o conceito leibniziano de substância desde suas primeiras reflexões metafísicas.
97
afirmada apenas dos espíritos em relação a seus pensamentos, será reencontrada na
composição peculiar inerente aos corpos e na vitalidade que sustenta suas funções corporais;
verificada pelas expressões do corpo em concomitância às expressões da alma. Tal qual uma
máquina, os corpos vivos consistem num conjunto de partes interagindo segundo as leis do
movimento. A sua peculiaridade, entretanto, entre outros aspectos,
87
reside na capacidade de
um movimento perpétuo, auto-sustentado pelas funções vitais de nutrição, movimento e
reprodução. Ora, precisamente a força que impulsiona e mantém estas funções remete à
natureza substancial e não pode ser reduzida às leis mecânicas da natureza. A partir deste
ponto, uma estreita ligação entre substancialidade e vitalidade se instaura definitivamente no
cerne da teoria leibniziana da substância. Nas palavras de Cardoso, O vital sobrepõe-se ao
mecânico e integra-o (...) O vivo é automatismo natural, isto é, um autômato autônomo, tão
indestrutível por meios naturais como a própria Natureza” (1992, p.79).
Embora o tema da auto-suficiência corporal houvesse sido objeto de numerosas
reflexões anteriores orientadas por seus estudos mecanicistas, Leibniz o retoma nas
Correspondências sob outro enfoque. Segundo Fichant: Trata-se agora de uma
caracterização ontológica e estrutural desses tipos de máquinas [os corpos], destinada a dar
conta do que pode dar a um corpo uma realidade de substância” (2005, p.33). Com efeito, a
reflexão sobre os corpos adentra ao domínio da ontologia precisamente à medida em que, pela
hipótese da concomitância o corpo passa a ser incorporado à teoria da substância não como
uma substância material, mas como um agregado ordenado de substâncias igualmente
metafísicas, cuja totalidade reflete os atributos de suas partes, tais como a unidade e auto-
suficiência. Esta mudança, a seu turno, impõe uma determinação mais precisa da natureza
destas substâncias e, portanto, uma palavra final de Leibniz acerca da generalidade da
aplicação do conceito de forma substancial, questionada anteriormente por Arnauld:
Não me atrevo a assegurar que as plantas não tenham alma, nem vida, nem
forma substancial; pois ainda que uma parte da árvore plantada ou enxertada possa
produzir uma árvore da mesma espécie, pode ocorrer que seja uma parte seminal, que
contenha um novo vegetal, como talvez hajam animais vivos, embora muito
pequenos, no sêmen dos animais, que poderiam transformar-se num animal
semelhante. Não ouso pois assegurar que unicamente os animais são seres vivos e
dotados de uma forma substancial. E talvez haja uma infinidade de graus nas formas
substanciais corpóreas (p. 112).
87
Um traço fundamental da particularidade dos corpos vivos enquanto máquinas da natureza, que aqui não
convém aprofundar, consiste na composição das suas partes em outras máquinas igualmente animadas e
autônomas. Um corpo orgânico é máquina em todas as suas partes, e nisto consiste a diferença entre a criação
divina e os artifícios humanos, conforme comentará Leibniz na Monadologia, § 64.
98
Replicando a taxonomia substancial proposta por Arnauld na carta precedente, Leibniz
agora afirma categoricamente a presença das formas substanciais em todo corpo vivo e a
presença da própria vida disseminada por toda a criação, aproximando-se assim da amplitude
ontológica demandada pelo conceito de substância. Não somente os animais, mas também as
plantas devem ter formas substanciais, hajam vistas as mesmas características vitais doravante
associadas à constituição de uma substância. Porém, esta extensão da forma substancial aos
seres vivos em geral deve ser compreendida num contexto muito distinto dos moldes duais
propostos pelo teólogo: Não se trata simplesmente de atribuir uma alma a cada corpo vivo,
responsável de maneira obscura por sua unidade e autonomia, reproduzindo assim a polêmica
sobre a interação destes dois elementos.
88
Diversamente, os corpos são eles mesmos
compostos de infinitas formas substanciais, cuja agregação em perfeita harmonia confere a
unidade aparente e cuja divisibilidade desta somente atesta, pela capacidade de reprodução ou
transformação (como num enxerto de árvore ou na decomposição de um cadáver), o caráter
infinito e dinâmico destas verdadeiras substâncias ou unidades metafísicas. Em outras
palavras, não a forma substancial como o próprio conceito de substância são
definitivamente retirados de seu sentido escolástico para integrar um novo núcleo de
significação. Pela introdução da unidade como critério da substancialidade este se converte na
própria vida que compõe e mantém a realidade corpórea.
Tendo em vista as primeiras elaborações da forma substancial no Discurso de
metafísica enquanto “alma dos irracionais e o aspecto central da perspectiva individual
apontado no capítulo anterior, a saber, uma relação de identidade entre o caráter ontológico
inerente ao conceito de substância e a potencialidade reflexiva própria dos espíritos, o
presente quadro introduzido pela tese da concomitância anuncia a aquisição de uma nova
perspectiva ontológica no pensamento de Leibniz. De fato, segundo Fichant, Pode-se dizer
que desde a carta de 30 de abril de 1687, a tese monadológica fundamental está adquirida,
sem que intervenha ainda a denominação de mônada. (2005, p.34) Ora, grande parte dos
elementos que perfazem esta transição podem ser encontrados nas palavras de Leibniz citadas
anteriormente:
89
1- Em primeiro lugar, a permutabilidade sugerida entre os termos alma, vida
e forma substancial pressupõe, por um lado, a associação direta da substancialidade atribuída
à forma substancial ao princípio vital presente nos corpos e, por outro lado, a associação
88
Nas palavras de Fichant: “Doravante, não se trata mais de correlacionar um corpo à sua forma substancial
única, mas de remeter à multiplicidade que envolve cada corpo-agregado às verdadeiras unidades que ele
supõe.” (2004, p. 91, grifo nosso).
89
Última citação com recuo, p. 98.
99
definitiva da noção de alma às formas substanciais,
90
deixando em segundo plano a
necessidade de um recurso ao eu como determinante ontológico. 2- Ao responder ao desafio
de Arnauld sobre a indivisibilidade das formas substanciais, onde no enxerto de uma planta a
pretensa alma aparentemente se dividiria em duas, Leibniz encontra um instrumento de
elaboração da permanência das formas substanciais na natureza sem uma vinculação com o
corpo e, ao mesmo tempo, sem recorrer à teoria da metempsicose. Trata-se da idéia de uma
preformação do corpos orgânicos, segundo a qual toda formação corpórea advém de um
elemento seminal, bem como todo perecimento somente representaria uma redução a níveis
muito sutis. 3- A partir desta tese, conclui-se que a vida está por toda parte e as substâncias se
encontram na mais ínfima porção de matéria extensa.
91
A substancialidade, portanto, não pode
restringir-se à natureza humana baseada na potência reflexiva das almas racionais. Ao
contrário, ela se expande indefinidamente como a base metafísica da constituição de todos os
seres, tendo a própria vida como sua marca característica. Esta ampliação e unificação da
noção de substância é um dos resultados fundamentais das profundas reflexões induzidas
inicialmente pela reabilitação leibniziana das formas substanciais.
92
Ao compreender a aparente comunicação entre alma e corpo como resultado da mais
perfeita regulação entre as expressões das substâncias, Leibniz se encontra diante de uma
decisão ontológica de vulto. Afinal, se o estado presente de uma substância deve ter uma
razão suficiente para existir, esta remetendo a seus estados precedentes; e se em virtude da
harmonia preestabelecida há um acordo mútuo entre a totalidade das substâncias, pelo qual as
suas respectivas expressões se entrecorrespondem, à hipótese da concomitância (resultado da
conjugação destes elementos aplicada à relação alma/corpo) deve convir alguma espécie de
simetria entre a alma e as chamadas substâncias corporais. Em outras palavras, para uma
comunicação ideal (em todos os sentidos), as supostas relações entreexpressivas devem ser
estabelecidas entre pólos análogos; entre elementos da mesma natureza, de modo que a
mesma determinação ontológica prevaleça entre os componentes desta relação. Mas, tendo
um fundamento manifestamente metafísico, seriam os corpos compostos de almas; esta
concebidas enquanto individualidade pessoal à semelhança dos espíritos? O absurdo da
90
Até então mantida somente ex hipotesis, conforme se mostrou anteriormente.
91
Leibniz se apóia em descobertas recentes da ciência de seu tempo no campo da microbiologia. Nas palavras de
Fichant: “É também neste contexto que Leibniz começa a invocar as observações recentes e as descobertas
devidas ao emprego do microscópio (Swammerdan e sobretudo Leewenhoek): elas encorajam ao mesmo tempo
a admitir a presença de inúmeros animais ou seres orgânicos disseminados por toda parte e em toda porção de
matéria, e a considerar o nascimento de um animal como o desenvolvimento por extensão no espaço de um
corpo orgânico já preformado” (2005, p.35).
92
Cf. Fichant (2005, p. 33).
100
questão conduz à inversão significativa que prepara a introdução definitiva do cenário
monadológico: Não seriam as almas, ao contrário, algo infinitamente mais elementar que a
constituição de um eu, capaz de compor a realidade corpórea e, portanto, a realidade de tudo o
que há? Mais do que somente um modo alternativo de conceber o corpo e a sua relação com a
alma, a hipótese leibniziana da concomitância introduz a necessidade de uma homogeneidade
substancial, desfocando a configuração dual que orientara a elaboração do conceito de
substância individual e a perspectiva que lhe é própria. Todavia, esta transição não está livre
de obstáculos, tal como se pretende mostrar a seguir. Além dos esforços no sentido de uma
fundamentação teórica das verdadeiras substâncias (8.2) restará a Leibniz harmonizar a
dissociação entre substancialidade e ipseidade introduzida pela perspectiva monádica, e uma
elaboração plausível da natureza metafísica peculiar dos espíritos (8.3). Trata-se, pois, de
encontrar novos parâmetros de inteligibilidade para a natureza humana e a realidade sensível
como um todo que o venham a cindir a univocidade ontológica demandada pelas
verdadeiras substâncias.
8.2 Substancialidade e agregação
Dando seqüência à argumentação da carta de 30/04/1686, Leibniz adentra ao tema da
relação entre agregados e verdadeiras substâncias respondendo às objeções de Arnauld acerca
da verdadeira unidade demandada como a base substancial da constituição corpórea. Trata-se
de assentar outro princípio fundamental adquirido a partir da reflexão sobre as formas
substanciais: O conceito de substância exige verdadeira unidade; não pode haver substâncias
onde o se possa encontrar, para além da divisibilidade infinita da matéria, uma unidade
metafísica. Diante da radicalidade desta conclusão Arnauld argumentara que semelhante
substancialidade rigorosa somente poderia ser encontrada na alma racional, isto é, na natureza
humana, onde a unidade foi tradicionalmente atribuída à constituição de um eu enquanto
consciência de si e da própria permanência frente aos fenômenos (ipseidade). Nesta direção,
segundo o teólogo, a atribuição de formas substanciais aos corpos ou almas aos animais
consistiria num passo completamente dispensável. Contudo, ao encontrar na própria
vitalidade dos corpos a presença inalienável da metafísica, estendendo a substancialidade às
criaturas em geral e compreendendo na menor porção de matéria um sem-número de almas ou
101
formas animadas, Leibniz assume a perspectiva monádica esboçando as primeiras
formulações da noção de substância simples. Inversamente ao que pretendia o teólogo ao
afirmar o caráter composto dos corpos, a saber, mostrar como a natureza material poderia ser
concebida sem o recurso à unidades metafísicas, Leibniz encontra no próprio fato da
agregação destes uma necessidade lógica capaz de justificar a existência de tais substâncias.
Em verdade, não há um só corpo onde não se possa encontrar verdadeiras substâncias, pois, se
estes são compreendidos como agregados ou compostos de partes, a sua própria composição
pressupõe a existência de elementos mais simples. Assim, o fato de haverem agregados
divisíveis implica, em última instância, a existência de verdadeiras unidades substanciais
indivisíveis que os componham, cuja natureza seja efetivamente metafísica. Nas palavras do
autor:
Com efeito, todo ser por agregação supõe seres dotados de uma verdadeira
unidade, porque toma sua realidade da [realidade] daqueles de que se compõe; de
modo que não terá nenhuma, se cada ser de que se compõe é também um ser por
agregação. Ou é preciso ainda buscar de novo outro fundamento de sua realidade, o
qual, caso se continue buscando por esta via, não se encontrará jamais. Concedo,
senhor, que em toda a natureza corporal não mais do que máquinas (que
frequentemente são animadas); mas não concordo que haja agregados de
substâncias, e se agregados de substâncias, têm que haver também verdadeiras
substâncias para que se formem os agregados (p.118).
Ao referir-se aos corpos como agregados de substâncias, cuja unidade encerrar-se-ia
na composição material, Arnauld apenas pretendeu retratá-los como compostos de partes
(órgãos, músculos, ossos, etc.),
93
ressaltando a sua divisibilidade e a divisibilidade destas
partes. Segundo este raciocínio, mesmo contando com partes divisíveis os corpos ainda assim
deveriam ser considerados como substâncias, visto que pode ser da essência do corpo não
ter verdadeira unidade (LEIBNIZ, 2004, p.104). Tal seria a justificativa para reservar a
verdadeira unidade aos espíritos, tomando a substância corpórea sem nenhum recurso a
quaisquer princípios metafísicos. Leibniz, entretanto, buscando a rigorosidade exigida pelo
conceito de substância, vai tomar o caráter composto dos corpos num sentido radicalmente
mais profundo, a partir do qual parte e todo assumem uma significação diversa. Se no caso
das substâncias corporais cada parte é, ainda, uma máquina semelhante ao todo, animada e
dotada de partes menores com a mesma característica, precisamente o aspecto dinâmico desta
93
Mas não vejo nenhum inconveniente em crer que em toda natureza corpórea só há máquinas e agregados de
substâncias, porque de nenhuma destas partes se pode dizer, falando com precisão, que é uma só substância.
Carta de Arnauld a Leibniz datada de 4/03/1687 (LEIBNIZ, 2004, p.104).
102
composição infinita não pode ser reduzido às qualidades da matéria extensa e pressupõe uma
unidade metafísica. Assim, havendo corpos que são como agregados, é impreterivelmente
necessário que haja, ao fim, verdadeiras unidades das quais tais agregados possam se compor
e aurir seu caráter dinâmico. Nesta profundidade de reflexão os conceitos advindos do
domínio da matéria extensa não serão capazes de fornecer o alcance necessário para indagar
sobre a constituição ontológica dos seres vivos:
Eu já disse em outra carta que o composto dos diamantes do Grão Duque e do
Grão Mongol pode ser chamado um par de diamantes, mas este não é mais do que um
ente de razão; e mesmo quando se aproxime um diamante do outro, será um ente de
imaginação ou percepção, quer dizer, um fenômeno; pois o contato, o movimento
comum, o concurso a um mesmo propósito não mudam nada na unidade substancial
(p.118).
Embora possamos reconhecer diferentes níveis de unidade nas coisas, supondo que
várias partes formam um objeto, trata-se de percepções relativas, cuja realidade não é
negada por Leibniz, mas que também não podem sustentar a verdadeira substancialidade e
seus atributos. Tais impressões, segundo o autor, servem para abreviar nossos
pensamentos e para representar os fenômenos (LEIBNIZ, 2004, p.118). Um pelotão de
exército a correr, por exemplo, apresenta um movimento uniforme que nos permite identificá-
lo como um corpo coeso. Mas tão logo a corrida termine e a formação se disperse, a unidade
anteriormente percebida se esvai. Ora, ainda que por um momento fosse acertado reconhecer
ali alguma unidade expressa na proposição “eis um pelotão”— o caráter temporário deste
“corpo” não pode concorrer com o grau de unidade requerido pelo conceito de substância. A
este respeito Leibniz lança mão de um notório trocadilho fornecido pelas particularidades da
língua francesa: Ce qui n'est pas véritablement un étre, n'est pas nom plus véritablement un
être.”
94
(2004, p.119). Todavia, dentro do mesmo exemplo, o fato primordial a ser ressaltado
independe do nível de realidade adotado: se um pelotão, soldados que o formam.
Analogamente, se agregados de substâncias, tem que haver verdadeiras substâncias que os
componham, mesmo que estas não se apresentem ao nível de nossa percepção sensorial. Tal
axioma será enunciado pelo autor sob diferentes formulações, dentre as quais: Não
pluralidade sem verdadeira unidade e o plural supõe o singular (LEIBNIZ, 2004, p.119).
A aceitação deste princípio na base da teoria leibniziana da substância conduzirá o autor a
94
A proposição idêntica, que, nas palavras do próprio Leibniz, “só se diversifica pelo acento”, pode ser melhor
compreendida em português pelo seguinte recurso gráfico, conforme sugerido pela prof. Viviane de Castilho: “o
que não é verdadeiramente um ser, também não é verdadeiramente um ser”.
103
refletir de forma mais pontual sobre o caráter fenomênico da realidade tangível, até então
tomado por alto como algo infundado, responsável por manter a natureza como algo
imaginário e aparente” (LEIBNIZ, 2004, p.104), nas palavras de Arnauld.
Admitido o pressuposto de que não podem haver na natureza somente agregados de
substâncias, a necessidade de um fundamento metafísico para a própria física torna-se
premente. Restariam então, segundo Leibniz, quatro opções:
É preciso chegar ou aos pontos matemáticos, com os quais alguns autores
compõe a extensão, ou aos átomos de Epicuro e Cordemoy (coisa que rejeitais, assim
como eu) ou ainda confessar que não se encontra nenhuma realidade nos corpos, ou,
por fim, admitir algumas substâncias que tenham verdadeira unidade (p.118).
Deixando de lado as duas primeiras alternativas,
95
convém aqui ressaltar a oposição
manifesta na segunda metade da sentença. Até o presente momento a suposição do estatuto
fenomênico dos corpos parece ter figurado na fala de ambos os interlocutores como uma
posição diametralmente oposta à substancialidade e diretamente vinculada ao domínio da
irrealidade; tão somente como uma conseqüência equivocada da rejeição da substancialidade
corpórea fundada exclusivamente na extensão material. Contudo, a idéia segundo a qual a
substancialidade dos corpos unum per se advém das verdadeiras substâncias que os compõem
permitirá a Leibniz ver com outros olhos as relações entre o âmbito fenomênico e o domínio
ontológico elementar introduzido pelo conceito de substância. Com efeito, no extremo do
rigor metafísico exigido para alcançar a substancialidade última proposta pelo conceito de
substância, nada do que nos vêm ao encontro a partir da percepção sensível pode ser tomado
diretamente enquanto substância, mas somente enquanto agregado. Seu caráter fenomênico,
entretanto, não é sinônimo de falsidade, uma vez que a realidade do composto está fundada
sobre a unidade real das substâncias que entram em sua composição.
96
Deste modo, a
assunção de uma unidade absoluta não inviabiliza a constituição do real em sua plenitude e
variedade de formas, ainda que estas representem derivadamente a substancialidade,
conforme afirma o autor: Não digo que não nada de substancial, ou que aparência
nas coisas que não têm uma verdadeira unidade, pois concedo que elas têm tanta realidade
95
Ambas rejeitadas essencialmente pelo mesmo motivo, a saber, a falta dos atributos necessários à
substancialidade, tais como a força autônoma e a diversidade intrínseca à unidade. Alguns parágrafos a frente
Leibniz afirma: “Uma alma, ou melhor, uma substância animada é infinitamente mais perfeita que um átomo,
que não tem nenhuma variedade nem subdivisão, enquanto que toda coisa animada contém um um mundo de
diversidades numa verdadeira unidade” (2004, p.122).
96
Como expressa muito bem Oliva, “É verdade que Leibniz por vezes refere-se ao fenômeno como ao ilusório,
mas a ilusão não esgota a fenomenalidade” (2005, p.89).
104
ou substancialidade quanto verdadeira unidade no que entra em sua composição
(LEIBNIZ, 2004, p.119).
Se para Arnauld a atitude radical de limitar a substancialidade à verdadeira unidade
viria solapar a realidade de tudo o mais,
97
Leibniz inverte este quadro fazendo depender da
verdadeira unidade toda e qualquer realidade que se possa encontrar, e de fato se encontra,
nos seres complexos: Caso os corpos tivessem por fundamento unicamente a extensão, então
toda a natureza certamente careceria de fundamento ontológico, uma vez que cada composto
seria um fenômeno desprovido de toda realidade, tal qual um sonho ordenado (LEIBNIZ,
2004, p.120). Mas precisamente porque todo ser requer a existência de uma verdadeira
unidade, o caráter de agregação de seu corpo consiste num fenômeno bem fundado cuja
substancialidade decorre da participação ordenada de verdadeiras substâncias em sua
composição. Entretanto, o próprio Arnauld não sugerira anteriormente que se admitisse
diferentes graus de substancialidade, estes associados a uma “unidade imprópria”? O que
distingue esta alternativa da posição sustentada por Leibniz em relação ao caráter fenomênico
dos corpos? Trata-se da separação entre a verdadeira unidade, da qual especificamente os
corpos vivos exibem alguma correlação à medida das particularidades de sua composição, e
as chamadas unidades de razão, resultados das impressões do espírito e cuja substancialidade
é, de fato, desprovida de um fundamento último.
É acertado, admite Leibniz, reconhecer certa unidade nas coisas, e até mesmo que esta
unidade, que não é senão acidental, possa variar em grau, sendo algo mais ou menos “uno”
segundo suas características materiais. Uma sociedade organizada tem mais unidade que
uma multidão confusa, e um corpo organizado, ou então uma máquina, tem mais unidade que
uma sociedade (2004, p.124). Porém, os fatores que nos levam a individuar diferentes
classes de entes e a reconhecer variados níveis desta unidade aparente não correspondem à
verdadeira unidade postulada pelo conceito de substância. Eles advém da experiência sensível
e da síntese racional envolvida no caso dos espíritos, o que ensejo a um esboço da
epistemologia leibniziana desenvolvida alhures:
Nosso espírito observa ou concebe algumas substâncias verdadeiras que têm
certos modos; estes modos implicam relações com outras substâncias, de onde o
espírito encontra ocasião para uni-los no pensamento e adotar um nome que abarque
todas estas coisas juntas, o qual serve para acomodar os raciocínios. Mas o se deve
deixar enganar fazendo deles outras tantas substâncias ou seres verdadeiramente reais
(p.125).
97
Uma vez que tal unidade somente poderia ser encontrada no eu inerente aos espíritos, cf. a correspondência de
4/03/1687, abordada anteriormente em 7.2.
105
Segundo Leibniz, tendemos a conceber algo como uma coisa em função das diferentes
relações entre as partes que a constituem. Tais relações são apreendidas pelo espírito e
expressas sob nomes ou conceitos cuja função é a referência direta ao fenômeno em questão.
Não se trata, pois, de pôr em questão a validade destes conceitos, nem a autenticidade das
relações que os originam, mas o somente de restringir seu campo de atuação ao domínio
prático sem permitir uma transferência indevida ao campo da metafísica. Quando se tem por
finalidade indagar sobre o fundamento último da realidade apreendida, tais conceitos não
devem aspirar à posição de determinantes substanciais. Jamais se encontrará”, afirma o
autor, uma classe de ordem que converta em substância verdadeira muitos seres por
agregação (LEIBNIZ, 2004, p.125). Nenhum agregado pode ser tomado em sentido estrito
como substância, seja pela conexão física, por quaisquer outras qualidades associadas à
extensão ou ainda por relações ideais, tais como a designação comum a um mesmo fim, etc.
Por conseguinte, as unidades de razão assimiladas pelo espírito não correspondem à
verdadeira unidade característica da substancialidade. Em poucas palavras o autor expressa o
valor e a posição fundamental deste princípio na base de sua ontologia:
Ficções do espírito por toda parte, e enquanto não se discernir o que é
verdadeiramente um ser completo ou uma substância, não haverá nenhum ponto físico
no qual seja possível deter-se, e aqui está o único meio para estabelecer princípios
sólidos e reais (p.126).
A meio termo dos extremos entre a pura fenomenalidade (como um sonho) e a
substancialidade rigorosa atestada unicamente pelas formas substanciais metafísicas
98
espaço para um sem número de agregações cujo grau de realidade varia justamente de acordo
com as relações estabelecidas entre as verdadeiras unidades que fundam sua composição,
conforme afirmou Leibniz anteriormente. As unidades de razão — tal qual os exemplos de um
círculo de homens de mãos dadas ou de uma sociedade, citados pelo autorpossuem uma
instável unidade aparente conforme as variadas relações lógicas apreendidas pelo espírito
humano (fugaz no primeiro caso, duradoura porém indeterminada no segundo). As coisas ou
objetos inanimados exibem sua unidade fenomenal pelo caráter coeso de suas partes e
abarcam algo de mais ou menos substancial conforme a especificidade de sua matéria prima,
98
Neste ponto, o conceito de forma substancial já reformulado pela nova configuração da substancialidade
aproxima-se muito da mônada sendo apenas mantido, segundo Fichant, somente pela falta de um vocabulário
mais apropriado (2004, p.92).
106
uma vez que toda a natureza é plena de vida e as verdadeiras substâncias encontram-se
disseminadas por toda a parte. Os elementos naturais, a seu turno, abrigam miríades de seres
microscópicos em plena atividade; minúsculas substâncias corporais cujas transformações
permitem-nas reaparecer no teatro da vida(LEIBNIZ, 2004, p.123). os corpos vivos em
geral podem ser tomados mais diretamente enquanto substâncias pela dinâmica e auto-
suficiência interna de seu funcionamento, esta obtida à custa da plena regulação entre as
inumeráveis substâncias que fundam sua composição. Quanto às espécies animais, tanto mais
demarcada a sua substancialidade quanto melhor se possa reconhecer uma individualidade em
suas ações. No homem, por fim, tal individualidade se converte propriamente em uma
personalidade fundada sobre sua potência reflexivo-racional. Todavia, esta generalidade
ontológica sugerida pela suposição de uma base comum à constituição de tudo o que
requer esclarecimentos acerca da questão da individualidade e identidade entre os diferentes
seres. Como discernir afinal a identidade metafísica dos espíritos requerida pela religião em
meio à infinidade de verdadeiras substâncias em sua constituição corporal? Serão as
percepções corpóreas, por outro lado, similares aos pensamentos? Estas e outras questões
permitem entrever a tensão entre o individual e o monádico que ainda persiste no final da
Correspondências com Arnauld, conforme se pretende mostrar a seguir.
8.3 Individualidade, personalidade e a introdução do monádico
A distinção entre os seres por agregação, que têm sua unidade em nosso espírito”
(LEIBNIZ, 2004, p.119) e as verdadeiras substâncias demarca os traços gerais de uma nova
perspectiva ontológica. Doravante, os esforços de Leibniz tendem a se concentrar na reflexão
acerca da realidade última apontada pelo conceito de substância, culminando na idéia de
substância simples e suas relações com os compostos ou agregados. Mas ainda que tais
relações exploradas neste ponto das Correspondências equivalham sem sombra de dúvida à
base teórica da formulação da mônada, a plena identificação deste estado das idéias de
Leibniz com o sistema apresentado anos mais tarde na Monadologia não se faz possível. Mais
do que a simples ausência do termo mônada nos escritos do autor, o traço característico desta
transição final consiste nos esforços de adaptação da nova perspectiva ontológica (o domínio
monádico) à teoria da substância sistematizada anteriormente a partir da elaboração do
107
conceito de substância individual. Sobretudo a inovadora concepção do corpo como agregado
de inúmeras substâncias vivas de caráter metafísico suscitará questões extremamente
relevantes. Poderiam estas verdadeiras substâncias serem consideradas como almas e ainda
assim afirmadas de todos os seres vivos indistintamente? Como se a sua individualização,
uma vez que as noções completas foram anteriormente restritas aos espíritos? Neste ponto
tanto a ontologia como a religião exigirão maiores explicações acerca da natureza metafísica
da substância, sua identidade e individualidade.
Ainda na correspondência de 30/04/1687, abandonando o caráter condicional presente
nas proposições anteriores, Leibniz admite sem mais hesitações a extensão da
substancialidade às criaturas em geral. Mais do que isso, pela adoção de uma nova perspectiva
ontológica o conceito de forma substancial deixa de atuar como um princípio ativo em meio
ao corpo, este concebido como mero conglomerado de partes materiais, para converter-se nas
verdadeiras unidades que possibilitam a composição orgânica desde níveis mais elementares.
Em outras palavras, havendo a necessidade de tais unidades últimas para a existência de
qualquer composto, a própria substancialidade se encontrará disseminada por toda parte como
a presença da vida na menor porção de matéria, de modo que, tal como o homem, ao menos
os animais e as plantas em sua absoluta variedade serão considerados igualmente substâncias
em vista do caráter metafisicamente dinâmico de sua constituição. Querer limitar quase
ao homem a verdadeira unidade ou substância”, afirma o autor, é ser tão estreito em
metafísica como o eram em física os que encerravam o mundo em uma bola (LEIBNIZ,
2004, p.121). Mas tendo afirmado anteriormente a forma substancial como algo similar à
alma pelo seu caráter indivisível e indestrutível, será preciso agora maiores esclarecimentos
em torno de sua natureza metafísica, uma vez que Arnauld associara inadvertidamente tal
concepção ao caráter espiritual atribuído à alma racional, encontrando aí inúmeras
dificuldades.
99
Comparando as verdadeiras substâncias aos átomos supostos por Pierre Gassendi,
Leibniz argumenta que à infinidade de almas a compor a realidade natural não se deve
necessariamente atribuir o prazer ou a dor, constituindo esta aterradora multiplicidade de
entidades vivas numa perfeição da criação plenamente conforme à imensurável grandeza e
beleza das obras de Deus.
100
Esta breve referência à imputação de prazer ou dor a tais almas
99
Conforme citadas em 7.2 , p.90.
100
Em oposição à noção de átomo, por outro lado, a natureza das verdadeiras substâncias apresenta uma
perfeição incomparável. Enquanto o primeiro não contém nenhuma variedade permanecendo praticamente vazio
em sua indivisibilidade, “toda coisa animada contém um mundo de diversidades em uma verdadeira unidade
108
revela a mesma precaução que outrora o fizera hesitar diante da afirmação da alma dos
irracionais: sustentar uma natureza metafísica para os seres vivos em geral implica em
aproximá-los demasiadamente dos caracteres espirituais próprios ao homem em sua eterna
relação com Deus segundo os preceitos de cristã. Neste contexto, a vida e a morte, gozo e
sofrimento, salvação e danação constituem temas contíguos à religião que exigem uma
espécie particular de individualidade frequentemente atribuída ao homem, a saber, uma
personalidade. E dada a composição múltipla de uma substância corporal por verdadeiras
substâncias, o dilema assume proporções infinitamente maiores caso cada uma destas seja
pensada em proximidade com semelhante concepção pessoal da individualidade. Tal como o
fizera anteriormente ao citar a teoria tomista das almas brutas,
101
provavelmente prevendo
alguns dos impasses religiosos passíveis de serem enfrentados, Leibniz lança mão de um
argumento relativo à criação diferenciada dos espíritos e das demais substâncias, cujo objetivo
mais direto parece ser aplacar o julgamento apressado de Arnauld:
Ora, se este animais têm almas [os seres microscópicos presente numa simples
porção de matéria, tal como uma gota d'água], deve-se afirmar destas o que se pode
afirmar provavelmente dos animais mesmos, a saber, que estavam vivos desde a
criação do mundo e o estarão até o fim. E que, sendo a geração segundo toda
aparência, uma mudança que consiste no crescimento, a morte será somente uma
mudança de diminuição que faz entrar este animal nas profundezas de um mundo de
pequenas criaturas onde há percepções mais limitadas, até que a ordem talvez o chame
a reaparecer ao teatro da vida. (...) Mas os espíritos não estão submetidos a estas
revoluções, ou será necessário que tais revoluções sirvam à economia divina com
relação aos espíritos. Deus os cria no momento oportuno e os separa do corpo (ao
menos do corpo grosseiro) por meio da morte, porque devem sempre conservar suas
qualidades morais e sua reminiscências para serem cidadãos perpétuos desta república
universal perfeitíssima cujo monarca é Deus (p.123).
A tese segundo a qual uma substância não vem a ser senão por criação e não pode
terminar senão por aniquilação foi apresentada ainda no Discurso de metafísica indicando a
sua permanência natural sustentada por diferentes transformações, aumentos e diminuições
dos corpos a ela relacionados (art. 34). Neste trecho das Correspondências o mesmo
pressuposto aparece explicitamente como uma discordância religiosa de Leibniz a respeito da
teoria clássica da metempsicose ou transmigração das almas.
102
Evitando supor almas
(LEIBNIZ, 2004, p.122).
101
Carta a Arnauld de 8/12/1686; citada em 7.1, p.8.
102
Tendo em vista o desenvolvimento da perspectiva monádica, a rejeição da metempsicose e a aceitação desta
teoria da permanência das almas brutas na natureza (se me permite aqui uma opinião) parece consistir muito
mais numa demanda da fé cristã professada por Leibniz do que uma conseqüência direta do princípios
fundamentais de sua filosofia. Esta posição é um dos poucos fatores que não possibilita um aproximação mais
109
separadas de seus corpos, trata-se de compreender a morte como a diminuição de um corpo a
dimensões imperceptíveis, capaz de encerrar a alma em um nível mais limitado de expressão,
onde somente por uma ordem impenetrável à nossa compreensão limitada, de acordo com o
enlace natural das coisas, tal substância virá a retomar sua existência ao plano de nossa
realidade sensível. De forma similar, o nascimento consiste no desenvolvimento de um
pequeno corpúsculo vivo ao nível de um corpo mais definido, trazendo de volta à alma
percepções mais destacadas e permitindo-a expressar o universo segundo padrões
gradualmente mais elaborados, tal como o prova a reprodução espermática. Aos espíritos,
entretanto, foi assegurada uma individualidade especial separada deste esquema geral de
subsistência corpórea das verdadeiras substâncias na natureza. Semelhante distinção traz ao
centro do debate a questão da singularização e individualidade usualmente associada ao
conceito de alma; um tema a ser revisto pela nova configuração da substancialidade proposta
por Leibniz.
Admitindo que um corpo vivo mantém seu grau de unidade substancial somente à
custa de inumeráveis corpos vivos incluídos nele” (LEIBNIZ, 2004, p.123), uma
perplexidade surge da pergunta pela singularidade e individualidade destas substâncias
corporais e dos seres em geral. Segundo o esquema tradicional da união entre alma e corpo,
era a alma o fator responsável por estabelecer a individualidade de um ser, cujo corpo
consistia numa natureza distinta e menos perfeita privada de uma existência independente; daí
a concepção de inúmeras qualidades de formas substanciais correspondentes às almas brutas
entre os escolásticos e, por outro lado, a recusa mecanicista das almas irracionais e a
consideração dos animais e demais entidades vivas enquanto simples corpos destituídos de
um princípio metafísico. Mas tendo o corpo, segundo a teoria leibniziana, uma natureza
fenomênica fundada substancialmente a partir da agregação de um sem número de substâncias
direta do sistemas das mônadas com alguns elementos essenciais do pensamento oriental, mais especificamente a
Filosofia Védica, onde em textos datados de mais de 5000 anos se descreve a alma espiritual (atma) como
indestrutível, imensurável (...)não nascida, eterna, sempre existente, imortal e primordial” (PRABHUPADA,
1986, p.60-61). Com efeito, considerado o estado final da filosofia leibniziana nos textos de 1714, a característica
inextensa da mônada e a proposta de distinção entre os seres a partir de uma gradação baseada da clareza das
percepções (enteléquias, almas e espíritos) parecem destoar cada vez mais desta formulação de uma permanência
corpórea das substâncias na natureza. Mesmo a partir de elaboração do conceito de mônada dominante (ainda em
estado seminal nas Correspondências) certas dificuldades envolvendo a singularidade e identidade das
substâncias permanecem, quando suposta a idéia segunda a qual uma substância não pode nunca subsistir sem
um corpo. Ficam estas reflexões somente como uma nota para estudos posteriores.
110
metafísicas tal como almas, será preciso encontrar respostas para a individuação do seres em
níveis ontológicos distintos. Em primeiro lugar, Leibniz o faz sem demora, trata-se de
sustentar a diferença entre a natureza espiritual do homem em relação às verdadeiras
substâncias que fundam a sua constituição corpórea. Recorrendo ao dogma cristão o problema
será aparentemente solucionado pela criação separada e individual da alma humana por Deus,
tal como se descreve na citação acima. Contudo, em relação às demais entidades vivas tais
como os animais, o autor se depara com questões de maior complexidade. Como considerar
individualmente um animal segundo o esquema conceitual corpo/alma se os corpos vivos são
constituídos igualmente de almas tais como aquela à qual se deveria atribuir a própria
existência do animal em questão? Se tais substâncias são imperecíveis estando todas
igualmente presentes na natureza a partir da criação e somente transformando-se com a morte,
quais os critérios para distingui-las sem recair numa variedade qualitativa de formas
substanciais? De que modo se pode tomar um corpo como sujeito do movimento, dada a
pluralidade metafísica indistinta que o constitui?
Se a vertiginosa imagem evocada por Leibniz de uma infinidade de seres vivos
encerrados numa gota d'água parece sugerir uma realidade praticamente atômica, muito
distante dos limites sensórios com o qual nos é dado apreender os detalhes da criação, aos
seres vivos em geral deve caber uma constituição ontológica similar, uma vez que a
generalidade estabelecida pela idéia de verdadeira unidade não permite cogitar diferentes
naturezas de substâncias, salvo o precedente agora aberto aos espíritos.
103
Assim, quanto à
questão da aplicação do esquema alma/corpo aos animais duas opções se apresentam
imediatamente: Ou bem deve-se renunciar à uma individualidade dos irracionais tomando-os
simplesmente enquanto agregados de verdadeiras substâncias (o que equivaleria em termos
práticos à negação de sua alma), ou então deve haver ainda alguma possibilidade de distinção
secundária entre as verdadeiras substâncias que compõem o corpo e a substância específica
que perfaz a individualidade do animal em questão, isto é, sua alma. Ao final da carta de
30/04 Leibniz se refere rapidamente a esta questão antecipando os primeiros fundamentos da
noção de mônada dominante: Contudo, ainda que possa ocorrer que uma alma tenha um
corpo composto de partes animadas por almas diversas, a alma do todo não se compõe, por
103
Trata-se de um tema complexo cuja abordagem escapa aos limites da presente dissertação: Afinal, se a
elaboração das verdadeiras substâncias instaura a demanda por um monismo ontológico, a afirmação de uma
criação separada (personalizada) para as substâncias individuais não permanece como um paradoxo a este
sistema? Não seria esta saída muito mais um resultado de uma restrição religiosa do que uma conseqüência da
teoria leibniziana da substância? Tais questões não podem ser encaradas de frente sem uma profunda reflexão
sobre a perspectiva monádica e os textos de 1714, ficando esta tarefa delineada para estudos posteriores.
111
isto, das almas ou formas das partes (LEIBNIZ, 2004, p.124). Esta vaga constatação da
necessidade de um princípio individual capaz de determinar um ser em meio à multiplicidade
de sua composição corpórea permanecerá apenas indicada neste ponto do texto, refletindo
certa indecisão do autor quanto ao tema. Arnauld, mais uma vez, não será tolerante quanto às
reticências na argumentação leibniziana.
Em resposta datada de 28 de agosto de 1687 Antonie Arnauld se mostra pouco solícito
à mudança de perspectiva incentivada pela argumentação leibniziana. Insistindo na
formatação tradicional para o conceito de substância o teólogo ressalta a absoluta
incompatibilidade da idéia de forma substancial, tal com sustentada por Leibniz neste último
período das Correspondências:
Ora, eu apenas conheço duas classes de substâncias: os corpos e os espíritos, e
os que pretendem que outras devem demonstrá-lo (...) Suponhamos, pois, que estas
formas substanciais sejam corpos ou espíritos. Se são corpos devem ser extensas e,
portanto, divisíveis (...) Se são espíritos, então sua essência consistirá em pensar, pois
isto é o que concebo com a palavra espírito (p.131).
Mais do que somente uma discordância relativa a qualquer tópico envolvendo o
conceito de substância, a oposição entre Leibniz e Arnauld assume agora um caráter mais
amplo referindo-se à aceitação de diferentes perspectivas para a apreensão do real. Sem
compreender a reviravolta operada na noção leibniziana de forma substancial, onde a
verdadeira unidade se torna o único fundamento metafísico capaz de compor toda a realidade
sensível, disseminando a substancialidade a níveis incalculáveis, Arnauld permanece aferrado
à distinção bivalente entre corpo e alma, expressando mais uma vez as bases da perspectiva
individual cuja influência delineara também as antecedentes formulações leibnizianas do
conceito de substância. É o pensamento, afirma o teólogo, a característica essencial das
substâncias metafísicas. E se às supostas formas substanciais se pretende atribuir semelhante
status, todas elas deveriam manifestar as características racionais próprias dos espíritos. Como
este não é o caso, tais formas substanciais não apresentam um fundamento verossímil para
integrar a teoria da substância, podendo ser descartadas. Ainda que a grande distância
consolidada por esta última carta de Arnauld pareça transformar o debate entre os dois
pensadores num “diálogo de surdos”,
104
algumas de suas objeções ilustram com precisão
104
Na resposta de 9/10/1687, abordada a seguir, Leibniz replica com firmeza a persistência das objeções de
Arnauld: “Ora, eu infiro que não há vários seres ali onde não haja um que seja verdadeiramente um ser, e que
toda multiplicidade supõe a unidade. Ao qual replicais de várias maneiras, mas sem tocar no argumento em si
mesmo, contra o qual não há objeção, e servindo-vos somente de objeções ad hominem, encontrando
112
certos limites impostos à concepção monádica pela perspectiva individual.
Surpreso com a engenhosidade da tese leibniziana da permanência corporal das formas
substanciais na natureza através de radicais transformações que ordinariamente se considera
como nascimentos e mortes, Arnauld levanta uma questão pertinente. Se um animal tal qual
um bicho da seda põe seus ovos, nos quais se supõe existirem outras tantas almas de criaturas
semelhantes, e estes são posteriormente queimados em uma fogueira, permanecerão estas
“almas de bichos da seda” misturadas às cinzas e restritas à minúsculas partículas ainda
corpóreas, embora imperceptíveis? Sendo este o caso, uma dificuldade relativa à natureza
singular destas formas substanciais, conforme enuncia o teólogo:
Mas, por um lado, não sei quem se convencerá de que cada bicho da seda,
depois de queimado, continua sendo o mesmo animal que conservou a mesma alma
unida a uma partícula de cinza que era antes uma pequena parte de seu corpo. E, por
outro lado, se assim o for, porque não nascem bichos da seda destas partículas de
cinzas assim como nascem dos ovos? (p.132, grifo nosso).
Insistindo abertamente em tomar a forma substancial a partir do esquema tradicional
corpo/alma e considerá-la como um único princípio metafísico intrínseco a um corpo
essencialmente físico, Arnauld não se encontra em condições de compreender a agregação
corpórea como um fato fundado para além da extensão. Ainda assim, a questão envolvendo as
transformações particulares de uma forma substancial e a identidade do animal envolvido
neste intercurso indicam um campo não explorado pelas reflexões leibnizianas a o presente
momento. Com efeito, se a individualidade dos espíritos inclui uma determinação pessoal
baseada em sua ipseidade e deve ser salvaguardada metafisicamente através de um ato
particular da providência divina, a singularidade e individualidade passíveis de serem
atribuídas a um animal permanecem num domínio confuso mediado pela composição múltipla
de seu corpo, pela ausência de uma consciência de si demarcada claramente através de
aspectos racionais e pela necessidade de permanência física na natureza através do referido
esquema das formas substanciais. Influenciado pela associação implícita entre a
substancialidade da alma e a presença de uma personalidade (característica da perspectiva
individual) Arnauld foi levado a identificar tais formas com a espécie particular do agregado
no qual estão inseridas considerando-as como um gênero, ou seja, diretamente como almas de
bicho da seda, sem adentrar ao âmbito mais elementar doravante pretendido para o conceito.
inconvenientes e procurando mostrar que o que eu digo não basta para resolver as dificuldades.” (2004,p.145)
113
No entanto, a partir da nova configuração da substancialidade sustentada por Leibniz o
questionamento do teólogo se faz relevante em outro sentido: havendo a necessidade de
identificar em meio ao agregado uma alma que permita definir a individualidade do ser em
questão, esta alma ou forma não deve identificar-se à espécie da qual o corpo representa um
exemplar, senão que sua verdadeira natureza transcende tais designações. O problema torna-
se mais definido à medida em que se avança de espécies rudimentares (como a do bicho da
seda) a criaturas com uma individualidade mais destacada, tal como complementa Arnauld:
Eu pergunto, por exemplo, o que houve com a alma do cordeiro que Abraão
sacrificou em lugar de Isaac queimando-o em seguida. (...) responderás que
permaneceu em uma partícula do corpo do cordeiro que foi reduzido a cinzas e que,
desta maneira, somente se produziu uma transformação do mesmo animal que teve
sempre a mesma [alma]. Isto poderia ser afirmado com verossimilhança, dentro de
vossa hipótese das formas substanciais, de uma lagarta que se converte em borboleta
(...) mas esta parte do cordeiro reduzida a cinzas à qual tenha se abrigado a alma, não
sendo organizada, não pode ser tomada por um animal, e assim, a alma do cordeiro
unida a ela não compõe nenhum animal e ainda menos um cordeiro, como deveria
fazer a alma de um cordeiro (p.133, grifo nosso).
Um animal reduzido a cinzas segue sendo o mesmo animal? Quanto ao seu corpo
certamente não se pode afirmar que subsista como o mesmo à tamanha deterioração (uma
partícula invisível misturada às cinzas evidentemente não pode ser chamada “cordeiro”).
Quanto à sua alma, ou bem se deve aceitar que não se trata de uma “alma de cordeiro” mas,
antes, de uma alma ou forma substancial que veio a ser temporariamente cordeiro, mas cuja
essência remete a algo mais elementar; ou então será compulsório negar completamente a
individualidade dos seres animais em nome da pura agregação de verdadeiras substâncias, isto
é, afirmar que “este cordeiro” ou “aquele bicho da seda” não constituem senão tipos
fenomenais e que a única realidade se refere à formas substanciais brutas, estas tomadas sem
quaisquer designações adicionais. Algumas respostas a esta questão serão esboçadas na carta
de Leibniz a Arnauld datada de nove de outubro de 1687, outras excedem o domínio das
Correspondências e quiçá dos próprios textos de 1714. De qualquer forma, para encerrar a
presente tentativa de apresentar a perspectiva individual e suas fissuras na filosofia de Leibniz
basta ressaltar o papel determinante de sua reflexões envolvendo uma nova relação entre
substancialidade e individualidade.
***
114
Visivelmente contrariado pela resistência de Arnauld à sua inovadora perspectiva
acerca da teoria da substância
105
, Leibniz se propõe na correspondência datada de nove de
outubro de 1687 a reelaborar suas argumentações em torno da concomitância das expressões
da alma e do corpo e da indestrutibilidade das formas substanciais. Em meio a este esforço, a
questão da singularidade das verdadeiras substâncias e da individuação e identidade dos seres
complexos e agregados vai convergir com o aprimoramento da tese da expressão, destacando-
se como o derradeiro operador da dissociação entre substancialidade e ipseidade que
caracteriza a introdução da perspectiva monádica no pensamento do autor. Se, como afirma
Fichant (2004, p.90), a partir da nova configuração da substancialidade assumida por Leibniz,
a unidade do ser um passo definitivo sobre a completude da noção”, talvez um resquício
da concepção de substância individual tenha permanecido implícito sob a raiz do princípio da
expressão e sob a forma da ambivalência ontológica mantida pela distinção usual entre
espíritos e demais substâncias, de modo que a presente reflexão sobre a natureza individual
dos seres não humanos e seu caráter expressivo representa uma tentativa de superação.
Tanto no Discurso de metafísica como em suas primeiras ocorrências na fase inicial
das Correspondências com Arnauld,
106
a hipótese da concomitância apareceu em conexão
com o princípio lógico da continência dos predicados no sujeito (in-esse).
107
Assim, é através
da teoria da noção completa que Leibniz se refere inicialmente ao tema da expressão e
fundamenta a proposta do acordo mútuo entre as substâncias. Mais precisamente, é através da
consideração do conceito completo de uma substância que se permite deduzir a série singular
de seus predicados determinando-a enquanto individual. Entretanto, no âmbito desta
perspectiva individual os predicados integrantes das noções completas foram tomados
preferencialmente em termos de pensamentos e percepções próprias aos espíritos, de modo
que quando se trata de explicar as relações expressivas que envolvem os corpos, bem como as
criaturas o humanas em geral, tal associação implícita das propriedades substanciais à
105
Pois não me parece difícil responder às duvidas que lhe restam, que na minha opinião decorrem apenas de
que uma pessoa prevenida e distraída com outras coisas, por mais hábil que seja, tem bastante dificuldade em
penetrar em um pensamento novo sobre uma matéria abstraída dos sentidos, em que nem figuras, nem modelos,
nem imaginações, podem nos ajudar. (LEIBNIZ, 2004, p.135)
106
No Discurso: Artigo 33 (LEIBNIZ, 1979, p. 148). Nas Correspondências: Carta de 14/06/1686 (LEIBNIZ,
2004, p. 69).
107
Em resumo, tudo o que possa ser afirmado com verdade de uma substância deve sê-lo em virtude da própria
natureza desta substância, independente de qualquer outro fator. E, dada a sua potência expressiva, o estado
presente de cada substância é o resultado de um estado precedente, cuja série pode ser deduzida de seu próprio
conceito ou noção completa.
115
ipseidade revela suas limitações restringindo a abrangência universal do in-esse. Afinal, se
cabe às substâncias expressar o universo, terão todas elas pensamentos e percepções acerca de
todas as coisas? Como poderão adequar-se as almas dos irracionais a este esquema?
Sendo o caráter expressivo um traço essencial da substância e dada a quantidade
infinita de verdadeiras unidades a compor os agregados, é necessário que cada uma destas
exprima a seu modo as relações que a interligam às demais. Ora, suposta a conexão de todas
as coisas entre si, cada substância constituirá um ponto de vista distinto do universo ao
expressar tudo a partir daquilo que se lhe encontra mais próximo, isto é, o corpo ou composto
com o qual ela mantém mais íntima relação. Embora este esquema de entreexpressão
houvesse sido enunciado no Discurso de metafísica, ele passa agora a operar sobre outras
bases levando em conta um modo diverso de apreender a substancialidade e as próprias
relações expressivas. Se anteriormente os eventos das substâncias, tomados enquanto
percepções e pensamentos, foram representados pelo recurso ao seu conceito completo
evocando assim a perspectiva individual e o seu modo específico de conceber a
substancialidade a partir dos caracteres propriamente humanos, agora a própria noção
renovada de unidade substancial vai abrigar a expressão como elemento essencial de sua
dinâmica intrínseca, estabelecendo-a em uma domínio mais elementar, dissociado de uma
ligação necessária com a ipseidade ou potência reflexiva. Esta generalização da potência
expressiva como característica intrínseca das verdadeiras substâncias abrirá a correspondência
de 9/10:
Uma coisa expressa outra (em minha linguagem) quando uma relação
constante e ordenada entre o que se pode dizer das duas. Neste sentido, uma projeção
em perspectiva expressa seu plano. A expressão é comum a todas as formas e constitui
um gênero do qual são espécies a percepção natural, a sensação animal e o
conhecimento intelectual (p.136).
Anteriormente vinculada de forma mais direta ao pensamento e às percepções
conscientes dos espíritos, a expressão permaneceu assinalada na totalidade das substâncias
apenas como um princípio teórico pouco explorado. Se o pensamento fora considerado como
o modelo de expressão da alma racional, indicando seu fundamento metafísico e demarcando
sua individualidade, o conceito de forma substancial, ainda que mantido como fundamento
das substâncias corporais, carecia de maior definição em termos de sua singularidade.
Todavia, a expressão será agora submetida a uma flagrante naturalização, sendo reconhecida
116
na base da economia particular de cada forma substancial como a referida percepção natural.
Tomadas inicialmente apenas como a unidade expressiva própria da vitalidade dos corpos, as
percepções gradualmente se convertem em uma prerrogativa metafísica mais simples e de
alcance genérico, tornando-se uma espécie de predicado universal das verdadeiras
substâncias. E se desde a sua criação cada substância exprime incessantemente as relações
com o seu próprio corpo e os demais agregados, isto ela o faz através de uma multiplicidade
de percepções, as quais se ordenam numa série correspondente a cada momento do tempo.
Assim, sem a necessidade do recurso extrínseco ao seu conceito completo (cuja concepção
demanda uma idéia complexa de individualidade), tal série perceptiva é suficiente para
determinar qualquer substância enquanto um ser singular e discerni-la de todas as demais.
108
Além disso, precisamente a variação destas percepções em veis de clareza e distinção
permitirão o esboço de um novo padrão de diferenciação entre os seres capaz de conciliar uma
taxonomia à demanda de generalidade ontológica imposta pelo conceito de substância. As
percepções trarão a Leibniz, em todos os sentidos, a oportunidade de sustentar uma
multiplicidade intrínseca à unidade.
Embora a assunção da forma substancial tenha aberto, desde o início, o caminho para
uma perspectiva ontológica mais ampla capaz apreender todos os seres a partir de um
princípio comum, Leibniz permaneceu sustentando uma ambivalência metafísica baseada na
necessidade de resguardar a individualidade dos espíritos como um elemento determinante
para a sua substancialidade. Assim, por diversos aspectos, do Discurso até a primeira fase das
Correspondências a alma racional precisou ser distinguida das demais almas ou formas por
um fator propriamente ontológico. Este modelo de distinção entre os seres associava a
substancialidade própria dos espíritos à vigência de um eu, sendo obrigado a tomar as demais
substâncias, ainda que metafísicas, como uma classe essencialmente diversa. Ora, o
estabelecimento deste padrão ambivalente vai de encontro à gradual determinação da
substância como verdadeira unidade e elemento último da realidade, consistindo esta tensão
nas referidas fissuras da perspectiva individual enfatizadas no presente trabalho. É frente a
este contexto que as percepções aparecem como uma preciosa alternativa para determinar sob
um mesmo princípio de substancialidade a individualidade tanto dos espíritos como das
demais criaturas, substituindo a polarização entre ipseidade e uma mera unidade corpórea pela
idéia de uma gradação expressiva. Por conseguinte, a expressão substancial se torna o solo
108
Trata-se do princípio da identidade dos indiscerníveis.
117
comum a partir do qual variados níveis de capacidade perceptiva determinarão as distinções
entre os seres, permitindo assegurar a especificidade da existência humana sem romper com a
idéia de uma univocidade ontológica do real:
Na percepção natural e na sensação basta que o que é divisível, material e se
encontra disperso em rios seres se expresse ou represente em um ser indivisível,
ou na substância dotada de uma verdadeira unidade. Não se pode duvidar da
possibilidade da representação de várias coisas em uma só, porque nossa alma nos
proporciona um exemplo disso. Mas esta representação vai acompanhada de
consciência na alma racional, e então se lhe chama pensamento (p.136).
A citação acima antecipa sem muitos detalhes os traços gerais da nova distinção entre
os seres de acordo com o grau de clareza e destaque das suas respectivas percepções. Isenta de
qualquer vinculação direta à consciência, a chamada percepção natural diz respeito à
potencialidade presente em toda substância para expressar o universo através da relação mais
direta com seu próprio corpo. Neste sentido as percepções constituem representações da
realidade composta na unidade e simplicidade da substância. E uma vez que cada substância
expressa a seu modo todo o universo, a infinita variedade das percepções e sua constante
profusão se manifestam de forma totalmente indistinta estabelecendo o padrão sensível das
entidades vivas mais elementares, tais como os vegetais, seres microscópicos, etc. a
referida sensação animal surge em função da maior complexidade de alguns corpos, quando
algumas percepções assumem um caráter mais destacado em relação ao estado confuso das
demais. A ipseidade ou consciência perceptiva, por fim, se refere ao estado máximo de
destaque das percepções, que permite à alma racional abstraí-las de seu fluxo e tomá-las
separadamente constituindo uma memória e uma identidade. Este padrão vertical de distinção
entre os seres se encontra apenas esboçado neste trecho das Correspondências e será
explorado a fundo somente na Monadologia e sobretudo nos Princípios da natureza e da
graça. Ainda assim, um aspecto em particular será desde enfatizado por Leibniz em
oposição aos sectários de Descartes. Trata-se da oportunidade de sustentar definitivamente a
alma dos irracionais, rompendo com a associação indevida das espécies animais a simples
corpos destituídos de qualquer princípio individual. Nas palavras do autor:
Creio que em tudo isso um cartesiano compartilhará minha opinião, exceto
que suponho que ao nosso redor outras almas além da nossa, às quais atribuo uma
expressão ou percepção inferior ao pensamento, ao passo que os cartesianos recusam a
sensação aos animais e não admitem forma substancial fora do homem (p.138).
118
A afirmação da coexistência de outras almas para além dos espíritos deixa de ser
problemática à medida em que as percepções se convertem num princípio de singularidade
válido para toda e qualquer substância. Se no esquema teórico da substância individual era
precisamente a seqüência temporal constituída por cada predicado atualizado de uma
substância (a noção completa) o que permitia considerá-la como um ser absolutamente único,
tais predicados foram concebidos a partir dos eventos propriamente humanos, onde os
pensamentos e percepções conscientes permaneciam em evidência. Mas o que escapa a esta
compreensão, bem como à filosofia cartesiana, são as inúmeras sensações e percepções das
quais o nos apercebemos separadamente, e que, permanecendo como um horizonte
indistinto (mas no entanto sempre presente) constituem o solo a partir do qual toda idéia,
pensamento ou sensação mais destacada pode aparecer. Ora, este solo comum é, por si só,
um traço característico da verdadeira unidade e se manifesta no domínio elementar da força
viva disseminada por toda a criação. Assim, como cada substância expressa a seu modo o
universo inteiro, inúmeros graus perceptivos inferiores ao pensamento merecem igual
validade enquanto determinantes de sua substancialidade, de modo a incluir a totalidade dos
seres vivos como almas. A determinação da singularidade destas substâncias seguirá a mesma
regra geral relativa à série de seus predicados antes fixada pela noção completa. A grande
diferença, entretanto, consiste no fato de que não será necessário recorrer à inefável idéia de
um conceito completo somente presente na mente de Deus. Diversamente, a série das
percepções de cada substância pertence ao seu próprio modo de ser e está diretamente
relacionada ao âmbito vital; amoldada à sua realidade corpórea pela tese da concomitância.
Referindo-se às idéias de Leibniz nos anos 90, quando da publicação do Sistema novo da
natureza e da comunicação das substâncias, Rutherford esclarece os termos desta transição:
Todos os caracteres essenciais da substância permanecem no lugar. O que
emerge, entretanto, é a admissão explícita de que se a natureza da substância em geral
é ser uma enteléquia ou princípio de ação, então o mais apropriado instrumento para
representar a natureza individual de uma substância não é uma noção completa, mas
antes a lei das séries de suas operações (1995, p.128).
Oito anos antes da escrita Sistema novo, podemos reconhecer neste último trecho das
Correspondências com Arnauld os primeiros passos do referido processo de superação do
filosofema substância individual/noção completa. Ao retomar a questão acerca da
119
concordância entre as expressões do corpo e da alma Leibniz faz uma breve referência à idéia
de completude. Todavia, embora o autor recorra novamente ao princípio fundamental da
substância individual, neste ponto a rápida referência à noção completa aparece sem nenhuma
conexão com a potência reflexiva dos espíritos.
109
Ao contrário, ela remete ao caráter
abrangente que sustentará um primeiro esboço da idéia de lei das séries. Como parte da
disputada questão da ligação entre um ferimento no corpo e a dor sentida pela alma, Leibniz
lança mão de um esquema no qual os estados da alma são natural e essencialmente
expressões dos estados correspondentes do mundo, e, em particular, dos corpos que, neste
momento são seus (2004, p.139). Mas se a alma expressa o mundo primeiramente através de
seu corpo, isto ela o faz a partir de si mesma e não de uma influência física ou ideal. Em
outras palavras, cada estado presente tem origem em um estado precedente da própria
substância, cuja origem primeira remonta à própria criação divina e à regulação inicial das
expressões de todas as criaturas. Deste modo, a ligação entre corpo e alma é a
correspondência biunívoca entre duas séries; uma referente ao corpo (agregado) e outra à
alma (verdadeira substância).
A julgar pela função instrumental deste esboço da lei das séries, num primeiro
momento nada parece distingui-la do mecanismo da noção completa utilizado anteriormente
no Discurso de metafísica. A mesma regra causal orienta os eventos, que se desdobram como
conseqüências de seu estado precedente; o caráter único de cada série é o que perfaz a
singularidade de cada substância; nela todas as outras substâncias permanecem expressas
direta ou indiretamente. Contudo, as séries doravante enfatizadas por Leibniz se referem à
seqüência das insondáveis percepções naturais, as quais se dirigem a um estado bruto do ser
oriundo de sua natureza expressiva, ao passo que a seqüência integrante de uma noção
completa foi tomada como a série de predicados de uma substância individual, estes
entendidos como percepções conscientes, atos de vontade, pensamentos ou idéias. Em um e
outro caso são os predicados contingentes os responsáveis por determinar esta substância, mas
a abrangência da idéia de contingência será indefinidamente amplificada pela percepção
natural. Não se trata, pois, somente de eventos históricos, pensamentos ou percepções
relacionados ao plano da humanidade, senão que o cenário a partir do qual a individualidade
109
Pela noção da substância ou do ser completo em geral, que mostra que seu estado presente é sempre uma
conseqüência natural de seu estado precedente, se segue que a natureza de cada substância singular e, por
conseguinte, de toda alma consiste em expressar o universo, e que foi criada desde o princípio de tal forma que
em virtude das próprias leis de sua natureza tem que concordar com o que ocorre com os corpos e,
particularmente, com o que se passa no seu.” (LEIBNIZ, 2004, p. 138)
120
se dá será radicalmente estendido ao domínio da vida,
110
independentemente de uma estado de
consciência capaz de apreendê-lo. Esta flagrante dissociação entre individualidade e a
personalidade própria dos espíritos ou, mais além, entre substancialidade e ipseidade, aparece
com mais destaque na última reflexão leibniziana acerca do tema das formas substanciais,
como se pretende apontar a seguir, à guisa de um desfecho para a presente investigação.
Ao voltar-se novamente para as formas substanciais reestruturando sua argumentação
contra as últimas objeções de Arnauld, Leibniz assume uma posição mais definida quanto à
conciliação da individualidade das almas dos irracionais e a pluralidade de sua constituição
corpórea.
111
Uma vez que um animal deve ser considerado como um ser complexo composto
de uma alma e um corpo organizado, é necessário distinguir em meio à agregação corpórea
(que é igualmente composta de formas substanciais) a presença de uma alma singular. O
esboço da idéia de mônada dominante será apresentado de maneira explícita:
Supondo que uma alma ou enteléquia nos animais e outras substâncias
corpóreas, é necessário raciocinar sobre este ponto como raciocinamos em relação ao
homem, o qual é um ser dotado de uma verdadeira unidade que sua alma lhe dá, ainda
que a massa de seu corpo esteja dividida em órgãos, vasos, humores, espíritos, e que
as partes estejam cheias, sem dúvida, de uma infinidade de outras substâncias
corpóreas dotadas de suas próprias enteléquias (p.148).
Pela assunção da percepção natural enquanto fundamento básico da expressividade
substancial e pelo conseqüente esboço de um novo padrão de distinção entre os seres, a
presente elaboração do esquema da mônada dominante será viabilizada como um operador
teórico universal de individuação das substâncias. Assim como o espírito ou alma racional
atesta a individualidade de um ser humano sem permitir que ele se confunda às inúmeras
substâncias que integram a sua constituição corpórea, da mesma forma, em cada entidade viva
é possível encontrar uma alma singular associada a um corpo orgânico ou agregado, ainda que
esta composição não se mostre nitidamente através de uma personalidade bem definida. Neste
sentido, o grau de destaque das percepções em cada substância permitirá a Leibniz tanto
postular diferentes espécies de substâncias dentro do mesmo estatuto ontológico (enteléquias,
almas e espíritos) como demarcar a individualidade de um ser complexo através do
110
Pela elaboração da idéia dos corpos como agregados de verdadeiras substâncias, Leibniz recusa a afirmação
de Arnauld segundo a qual os corpos animados seriam somente uma pequena parte da totalidade da criação.
Aparece então o termo enteléquia associado à substância: “E sendo a matéria infinitamente divisível, não se
pode assinalar nela nenhuma parte, por menor que seja, que não contenha corpos animados, ou, pelo menos,
dotados de uma enteléquia primitiva, ou (se me permite o uso tão geral do nome de vida) de um princípio vital,
quer dizer, de substâncias corpóreas das quais se pode dizer em geral que são vivas. (LEIBNIZ, 2004, p.145)
111
Trata-se das questões levantadas acima, na primeira parte deste texto (8.3, p.108).
121
predomínio de uma forma substancial sobre as demais. Dito de outro modo, embora o solo
comum das percepções garanta a singularidade de cada verdadeira substância pela idéia de lei
das séries, é a idéia de uma gradação expressiva a responsável por demarcar um novo
princípio de individualidade válido para as substâncias em geral. A forma substancial que
pode ser identificada como a alma de um animal, embora qualitativamente similar às demais
formas que compõem seu próprio corpo, goza de uma maior capacidade expressiva e de um
certo recorte das percepções mais marcantes, sobressaindo-se assim como um ser individual.
Mas se a clareza das percepções é o que torna possível atestar a individuação de uma
forma substancial em relação às demais formas que entram em sua constituição corpórea, não
seria este o mesmo modelo de distinção anteriormente utilizado na perspectiva individual para
definir o caráter peculiar dos espíritos em relação às demais substâncias? É possível
reconhecer a individualidade de um espírito a partir da vigência de um eu e simultaneamente
postular uma individualidade para as almas dos irracionais? Estritamente sob o ponto de vista
da tese leibniziana da expressão, tal questão que outrora se apresentava como um problema
pela ausência de uma referência individual distinta da ipseidade agora será solucionada pelo
reconhecimento da percepção como um fundamento mais originário e de validade universal,
capaz de conferir individualidade às substâncias em seus variados níveis de potencialidade
expressiva. Leibniz aborda diretamente este tema ao responder à objeção de Arnauld segundo
a qual as formas substanciais, para serem consideradas substâncias metafísicas, deveriam ser
capazes de pensar:
Assegurar que toda substância que não é divisível ([o] que quer dizer, em
minha opinião, toda substância em geral) é um espírito e deve pensar me parece
incomparavelmente mais ousado e mais destituído de fundamento que a conservação
das formas. Só conhecemos cinco sentidos e certo número de metais, deve se concluir
disso que não outros no mundo? É muito mais provável que a natureza, que ama a
variedade, haja produzido outras formas do que as que pensam. (...) Como não temos a
idéia distinta do pensamento e não podemos demonstrar que a noção de uma
substância indivisível é a mesma coisa que a de uma substância que pensa, carecemos
de razão para assegurá-lo (p.149).
Arnauld compreendera a incapacidade de atribuir o pensamento aos animais e demais
criaturas como uma flagrante evidência de que tais substâncias não poderiam ser concebidas
como entidades metafísicas, mas tão somente como substâncias corpóreas fundamentadas nos
princípios materiais da extensão. Leibniz, por outro lado, vai raciocinar diversamente acerca
deste fato. Dado que é imprescindível que haja substâncias indivisíveis como o próprio
122
fundamento da realidade sensível, de modo que toda a natureza esteja plena de vida e todos os
seres vivos atestem a presença de uma alma, mas se, entretanto, o pensamento não pode ser
atribuído a outras substâncias além dos espíritos, a ipseidade ou potencialidade reflexiva
própria dos seres humanos não pode ser tomada como um elemento essencial à determinação
do conceito de substância. Mais do que isso, também a individualidade das demais formas
substanciais não pode ser avaliada unicamente em termos da experiência de um eu sendo
rejeitadas por seu caráter não racional. A opinião comum segundo a qual os animais
experimentam sensações deve ser levada em conta, afirma o autor (LEIBNIZ, 2004, p.149),
bem como a validade das percepções em geral, a despeito de seu estado originalmente
confuso ou dos diferentes estados de destaque que caracterizam a sensação animal ou ainda o
conhecimento intelectual dos espíritos. Trata-se da conclusão da dissociação entre
substancialidade e ipseidade que demarca a instauração da perspectiva monádica na teoria
leibniziana da substância:
Parece-me que se pode conceber que os fenômenos divisíveis ou de vários
seres podem ser expressos ou representados em um ser indivisível, e isto basta para
conceber uma percepção sem que seja necessário atribuir pensamento ou reflexão a
esta representação (p.150).
A introdução de um novo parâmetro de individualidade capaz de contemplar os
animais e demais seres vivos repousa no reconhecimento das percepções como um
fundamento ontológico alheio à idéia de transparência à consciência. Dada a natureza
expressiva da substância, a percepção se mostra como um impulso primitivo associado ao
próprio princípio vital, situado num plano incalculavelmente mais originário que as sensações
das quais tomamos consciência, para o falar de concepção de idéias ou noções. Nesta
direção, a própria série perceptiva atribuída a uma criatura, independente do grau de destaque
destas percepções, denota o seu caráter singular entre as demais. E a sua compreensão
enquanto indivíduo deixa de estar condicionada à posse de predicados específicos ligados à
potencialidade reflexiva para referir-se tão somente a uma posição de predomínio expressivo
em meio à agregação corpórea. Ainda que a marcante presença de um eu permaneça nos
espíritos como a evidência de uma existência individual, isto não exclui a validade dos níveis
perceptivos mais modestos, uma vez que até mesmo o pensamento não se encontra em
permanente estado de distinção podendo ser envolto por percepções confusas. Neste ponto a
introdução da perspectiva monádica rompe definitivamente com a idéia cartesiana da
123
subjetividade pensante enquanto ícone da realidade metafísica. De modo muito mais simples e
indeterminavelmente amplo, a substância indivisível está intimamente relacionada ao plano da
vida, estendendo-se gradativamente da mais ínfima realidade atômica ao próprio contexto
humano, caracterizado então pela complexidade da realidade contingente e pela potência
reflexiva.
Por certo que o crescente predomínio do monádico não excluirá a presença da
perspectiva individual na teoria leibniziana da substância. Se a consideração das verdadeiras
substâncias remete a um domínio ontológico elementar alheio à nossa realidade perceptiva,
faz-se necessária uma perspectiva da teoria da substância que possa aplicar-se à realidade
propriamente humana avançando da metafísica natural intrínseca a todos os seres para o
campo específico do pensamento e da religião, entendido como o domínio da espiritualidade.
De qualquer modo, a partir deste ponto das Correspondências a característica essencial
sustentada até então pela perspectiva individual, isto é, a vinculação da individualidade e da
própria substancialidade à ipseidade ou potencialidade reflexiva exclusiva dos espíritos, foi
superada pelo reconhecimento do domínio das verdadeiras substâncias e pela validade das
percepções como um efetivo determinante substancial. Deixando para outro momento uma
reflexão mais profunda sobre a co-pertinência entre o individual e o monádico, apenas aponto
em que sentido esta perspectiva individual ainda permanecerá como uma influência ao
desenvolvimento final das idéias de Leibniz.
Em relação à dificuldade de individuação das almas dos irracionais suscitada pelo
esquema da permanência das formas substanciais na natureza, Leibniz reconhece que as
próprias substâncias devem ser algo essencialmente distinto da espécie corpórea com a qual se
designa um animal, tal qual o exemplo bíblico do cordeiro levantado recorrentemente por
Arnauld: “Se o animal feito pela contração do corpo do cordeiro que Abraão imolou no lugar
de Isaac deve ser chamado um cordeiro, é uma questão de nome, mais ou menos como seria a
questão se uma borboleta pode ser chamada um bicho-da-seda (LEIBNIZ, 2004, p.154).
Assim, consideradas as inúmeras transformações naturais a que se submetem os corpos das
formas substanciais desde a criação, sua verdadeira identidade não pode se encontrar
condicionada a um corpo específico, senão que deve permanecer situada apenas no âmbito
metafísico: “É suficiente que as substâncias brutas sigam sendo simplesmente o mesmo
indivíduo em rigoroso sentido metafísico, embora estejam sujeitas a todas as transformações
imagináveis, posto que não têm consciência ou reflexão” (LEIBNIZ, 2004, p.154). Entretanto,
124
no caso dos espíritos o dogma religioso fornece um modelo alternativo de individuação no
qual inclusive o próprio corpo será ressurreto para vida eterna em comunhão com Deus, à
semelhança do Cristo. Neste sentido, a individualidade peculiar dos espíritos é constituída
pela composição de alma e corpo atestando a vigência de uma personalidade, de modo que a
totalidade das substâncias será novamente separada em espirituais (seres humanos), as quais
Deus rege segundo leis diferentes daquelas com que governa o resto das substâncias
(LEIBNIZ, 2004, p.154), ao passo que as demais substâncias que podem ser chamadas de
materiais, na medida em que seriam comandadas pelo criador somente a partir das leis
materiais da força e da comunicação do movimento (LEIBNIZ, 2004, p.154). Tal bipartição
substancial, ainda que formalmente similar àquela apresentada no Discurso de metafísica,
agora fundamenta-se tão somente na questão religiosa, uma vez a perspectiva monádica
fornece subsídios para que se conceba uma generalidade ontológica aplicável a todas as
criaturas enquanto verdadeiras substâncias. Ora, saber se esta opção de Leibniz permanece
coerente com sua teoria da substância e de que modo ela será empregada em suas obras finais
é tarefa para estudos posteriores.
125
CONCLUSÃO
Sob o título O individual e suas fissuras a presente dissertação procurou enfocar as
origens da transição que caracteriza a etapa final da filosofia de G. W. Leibniz, isto é, a
passagem do campo teórico regido pelo conceito de substância individual à perspectiva
monádica ou domínio das substâncias simples. Sem adentrar ao célebre sistema das mônadas
consolidado pelos escritos leibnizianos de 1714 a investigação concentrou-se no Discurso de
metafísica e nas subseqüentes Correspondências com Arnauld, onde vinte e oito anos antes a
teoria leibniziana da substância se encontra em obra, num momento de intensa auto-reflexão e
posicionamento crítico frente ao cenário filosófico do final do séc. XVII. Muito além de uma
mera transformação terminológica, a passagem do individual ao monádico representa a
aquisição de um novo ponto de vista para avaliar o conceito de substância e sua relação com o
universo; a oportunidade de dar um passo “a dentro” na determinação ontológica do real
reconhecendo na própria vida
112
um fundamento comum ao que há. Semelhante realização,
entretanto, deve confrontar-se com a nascente filosofia moderna e seu modo característico de
apreender o homem, a natureza, o corpo e a alma, bem como as questões teológicas
envolvendo liberdade e determinação na obra divina. Frente a tais obstáculos Leibniz avança
por meio de uma rigorosa reflexão metafísica e recorrentes elaborações doutrinais, as quais
procurei aqui analisar. Trata-se agora de remontar brevemente os passos deste estudo fazendo
em seguida algumas considerações finais à guisa de conclusão.
O primeiro capítulo apresentou a filosofia de Leibniz a partir do Discurso de
metafísica com ênfase particular no conceito de substância, mais especificamente na
elaboração da doutrina da substância individual. Na aurora da modernidade a noção clássica
da substância enquanto essência particular de cada coisa foi ofuscada por uma configuração
mais genérica estabelecida sob a distinção res cogitans/res extensa a partir da filosofia de
Descartes e seus seguidores. Precisamente as questões ontológicas e teológicas levantadas por
este modelo constituem o contexto frente ao qual aparece a teoria leibniziana da substância.
Sobrepondo-se às definições cartesiana e spinozista da substância enquanto existência
independente”, o conceito adquire em Leibniz uma nova dimensão a partir da retomada de
alguns pressupostos aristotélicos assimilados num sentido distinto de sua recepção anterior
112
No sentido biológico do termo.
126
pela filosofia escolástica. Particularmente três destes princípios merecem destaque: 1- A idéia
da substância como sujeito último orienta a fundamentação lógica do conceito a partir das
reflexões sobre a relação proposicional e as condições de verdade da predicação. 2- O
princípio da autonomia substancial funda a dinâmica e será incorporado à própria física
preparando o debate sobre a natureza das substâncias corpóreas e a retomada das formas
substanciais. 3- E a idéia de permanência através da mudança aponta para a noção de
identidade ressaltando o caráter individual como um requisito necessário para a determinação
da substância. Reunindo tais princípios e assimilando-os de modo sui generis o Discurso de
metafísica traz uma inovadora concepção do conceito de substância a partir de sua ligação
com o plano das verdades contingentes. Trata-se da determinação da substância individual por
sua noção completa.
Ao ressaltar o caráter preponderante da substância como sujeito nas relações
proposicionais Leibniz percebe que a sua existência autônoma pode ser salvaguardada pelo
simples fato dela reter em si mesma seus atributos. Isto é, todo predicado somente encontra
significação na vigência de um sujeito. Este, por sua vez, é justamente aquilo que não se
predica de outrem, senão que pode existir à parte de tudo mais. Uma substância, portanto, é o
sujeito último nas predicações verdadeiras; um ser pleno de atributos cujo fundamento está
assegurado pela própria relação lógica de continência dos predicados no sujeito (in-esse).
Explorando a fundo esta relação o autor conclui que, tal como um conceito deve designar
todas as propriedades de seu objeto, o conceito ou noção de uma substância deve conter
absolutamente todos os seus predicados particulares determinando-a de forma plena. Assim,
uma substância individual é precisamente aquela que possui uma noção completa capaz de
abarcar todos os seus atributos, estes considerados como seus próprios eventos passados,
presentes e futuros. Mas como toda predicação tem algum fundamento verdadeiro na
natureza das coisas (LEIBNIZ, 1979, p.124), a definição de uma substância individual não
pode restringir-se ao plano teórico, de modo que a sua noção completa deve transpor o
domínio abstrato da estrutura proposicional para buscar a realidade que se estabelece como o
horizonte de toda predicação verdadeira. As noções completas trazem então a relação
proposicional para o domínio da efetividade e os atributos de uma substância individual se
referem aos seus eventos particulares. Trata-se de um ente determinado cuja “essência” não se
resume a uma estrutura lógica formal, senão que abrange a riqueza de seus estados factuais.
Tomada enquanto sujeito último a substância aparece como um indivíduo cuja singularidade
127
se faz pelo absoluta totalidade de seus predicados; pelo seu caráter total.
Diversamente do gênero abstrato de uma definição geométrica, a determinação de um
indivíduo envolve uma ligação com o plano da existência. O conceito completo de uma
substância designa especificamente este indivíduo e ninguém mais, uma vez que os
predicados que o integram constituem em sua maior parte ações ou eventos singulares
devidamente situados num tempo e espaço determinados. Eis que o conceito de substância se
estenderá a um nível de singularidade sem precedentes adentrando no universo das verdades
contingentes: A substância individual é um ser concreto; um sujeito que contém virtualmente
todos os seus predicados e cuja singularidade está encerrada justamente na unidade metafísica
constituída pela totalidade dos atributos presentes em sua noção completa. Tal caráter
múltiplo e fugaz da individualidade substancial remete à própria natureza do domínio das
verdades de fato, as quais possuem, segundo Cardoso, uma pertinência própria [e] são
totalmente indedutíveis das verdades necessárias (1992, p.42). Esta inteligibilidade peculiar
das substâncias individuais atesta uma indissociável conexão com o próprio mundo e com as
demais substâncias, cuja presença se manifesta não enquanto exterioridade, mas como
conteúdo expressivo de sua própria noção. O indivíduo, portanto, é um ser completo e a
completude, por sua vez, se mostra como um traço decisivo do conceito de substância
individual. No Discurso de metafísica o filosofema substância individual/noção completa
atuará sob diversos aspectos associando-se a outros princípios metafísicos da filosofia
leibniziana, tais como a identidade dos indiscerníveis, expressão e harmonia.
Direcionado especificamente aos seres humanos o conceito de substância individual
denota um ser complexo composto de corpo e alma. Com efeito, a individualidade das
personagens históricas evocadas por Leibniz em seus exemplos depende tanto dos caracteres
metafísicos próprios da alma como dos atributos relacionados a seus respectivos corpos
113
,
estando implicitamente associada à idéia de uma personalidade, esta concebida enquanto
atributo exclusivo dos espíritos. Contudo, a articulação lógica com a noção completa em nada
se referiu à situação dos corpos físicos e sua substancialidade, de modo que o conceito de
forma substancial será restaurado de seu uso escolástico para integrar definitivamente a teoria
leibniziana da substância. Uma vez que, para Leibniz, somente as propriedades da matéria
extensa não são capazes de constituir nenhuma substância, deve haver um fundamento
metafísico para a própria física, este concebido como a força autônoma que nos corpos vivos
113
A fisionomia de Alexandre, por exemplo, também é um atributo presente em sua noção e responsável por
demarcar sua individualidade.
128
atua como a origem do movimento. Sem invalidar o mecanicismo como método de explicação
dos fenômenos naturais, a forma substancial desempenha o papel do princípio metafísico
inerente aos corpos capaz de proporcionar-lhes a unidade e permanência que os permite
caracterizá-los enquanto substâncias. Apresentada numa aparente consonância com a
definição da substância individual por seu conceito completo, esta retomada das formas
substanciais se aplicará não somente aos espíritos mas aos corpos unum per se como um todo.
Semelhante generalidade sugere então os primeiros passos para a compreensão de um
conceito mais amplo de substancialidade cujos indícios encontram-se dispersos ao longo do
Discurso.
O segundo capítulo procurou mostrar como a natureza metafísica do indivíduo
delineado pela teoria da noção completa se estabeleceu no domínio propriamente humano
agregando implicitamente à configuração teórica do conceito de substância individual outro
elemento, a saber, a ipseidade ou consciência de si. Os termos desta vinculação tácita entre
substancialidade e a potencialidade reflexiva inerente aos espíritos ganham destaque sobre o
pano de fundo do tema das distinções entre os seres, isto é, o modo e os critérios com os quais
Leibniz compreende e separa ao longo de sua filosofia as criaturas em geral, tais como o
homem e os animais. Embora a forma substancial tenha sido afirmada como um fundamento
metafísico para os corpos unum per se, as chamadas almas dos irracionais não concorrem à
determinação de substância individual, dada a ausência aparente da vigência de um eu ou de
uma consciência reflexiva capaz de constituir uma personalidade. O Discurso de metafísica
associa a idéia de indivíduo a uma personagem cujas ações e eventos estão presentes para si e
devem ser tomados como seus atributos singulares em um contexto existencial determinado.
Desta forma, o caráter reflexivo funda a individualidade e restringe a aplicação do conceito de
substância individual aos seres em geral. Trata-se de uma bipartição substancial assumida por
Leibniz ao considerar os espíritos e demais substâncias como naturezas metafísicas distintas a
partir da individualidade delineada pela aplicação prática das noções completas.
Mais do que apenas um predomínio do conceito de substância individual sobre as teses
do Discurso, o enlace da substancialidade à singularidade de um sujeito se estabeleceu como
um aspecto fundamental da teoria leibniziana da substância. Entretanto, o contexto prático de
aplicação das noções completas inclui a conversão implícita da singularidade do sujeito na
individualidade reflexiva ou personalidade inerente aos espíritos. Tal significa, conforme se
afirmou, que o acesso filosófico ao real e seus elementos constituintes, bem como as teorias
129
que se propõe a explicar esta conjuntura, se dão a partir de uma referência teórica
predominante, a saber, a concepção do ser humano enquanto ser completo e singular
determinado pelo traço reflexivo de suas representações. Esta perspectiva individual é
marcada então pela inclusão dos caracteres reflexivos na estrutura teórica do conceito de
substância e exercerá flagrante influência nas demais elaborações metafísicas da filosofia
leibniziana. Porém, a despeito do predomínio da perspectiva individual nas ginas do
Discurso um elemento dissonante permanece esboçado na proposta de restauração das formas
substanciais. Ao conceber um princípio metafísico capaz de conferir substancialidade aos
corpos, cuja aplicação se condiciona à unidade dinâmica e independe da potencialidade
reflexiva, Leibniz vislumbra um caminho diverso para pensar a substancialidade. A tensão que
se estabelece entre a influência da perspectiva individual e a abertura de um novo campo de
experimentação doutrinal a partir da generalidade ontológica sugerida pelas formas
substanciais consiste nas referidas fissuras apontadas no capítulo a seguir.
O terceiro capítulo envereda pelas nuances do debate entre Leibniz e Antonie Arnauld
em suas correspondências. Acompanhando a evolução da argumentação leibniziana carta após
carta, os três últimos textos da dissertação buscaram enfocar precisamente as fissuras da
perspectiva individual frente ao processo de lapidação do conceito de substância, bem como
os termos de sua superação pela introdução do plano monádico. As perspicazes objeções do
afamado teólogo à elaboração da substância individual e, em seguida, à restauração das
formas substanciais impõem a Leibniz um extenso trabalho de revisão e esclarecimento dos
pressupostos centrais de sua teoria da substância. Em meio a este esforço a referida tensão
entre a especificidade das substâncias individuais e a generalidade sugerida pela restauração
das formas substanciais e pelas reflexões sobre o estatuto substancial dos corpos ganha
destaque. Aquilo que a primeira fase das Correspondências deixa entrever somente como uma
sutil relativização da ipseidade face ao caráter mais universal da própria completude da
substância, a etapa final assumirá como tema central, a saber, um novo modo de apreender a
substancialidade a partir de um âmbito mais elementar que aquele anteriormente delineado
pela potencialidade reflexiva dos espíritos.
Ao esmerar-se em aclarar a correlação lógica entre a substância individual e sua
respectiva noção completa Leibniz ressalta o caráter peculiar da individualidade substancial a
partir da realidade das verdades contingentes. Dado que um conceito abstrato fornece apenas
propriedades genéricas e fundamentais à definição de algo, somente as verdades contingentes
130
são suficientes para preencher um conceito de modo a estabelecê-lo como completo e fornecer
a definição real de um indivíduo. O domínio factual, entretanto, não encontra razão em si
mesmo à maneira das verdades necessárias. Ao contrário, segundo Leibniz a razão suficiente
de um fato ou evento relacionado a uma substância pressupõe toda a ordem do universo
remetendo ao princípio da harmonia. Precisamente a aparente restrição das noções
completas aos espíritos sustentada pelo Discurso começa a dar mostras das limitações da
perspectiva individual. Com efeito, a generalidade das verdades contingentes não pode ser
circunscrita à especificidade do contexto existencial humano, tal como infere o autor a partir
do exemplo da esfera de Arquimedes, esboçado como uma tentativa de extensão do aspecto da
completude a todos os elementos da criação.
114
Neste ponto as tentativas de Arnauld em
rejeitar a inclusão da contingência e fundamentar a individualidade das substâncias somente a
partir da vigência de um eu trazem à tona a própria essência da perspectiva individual e a
persistente influência do cógito cartesiano. Mas a argumentação leibniziana gradualmente se
afasta deste contexto à medida que o pensamento será tomado como uma instância muito
posterior à constituição originária do indivíduo a partir da totalidade de seus predicados. Eis
que a relevância do elemento reflexivo como determinante da individualidade das substâncias
será permutada pelo caráter mais fundamental da própria completude, que é a condição de
possibilidade para a construção de uma noção de eu erigida a partir de uma impressão confusa
da totalidade dos predicados presentes na noção completa.
Mais do que somente uma discordância quanto à fundação ontológica da física, a
disputa sobre a retomada das formas substanciais assume nas Correspondências um papel
decisivo quanto à própria configuração do conceito de substância. Reconhecido o caráter
essencialmente fenomênico da matéria, a substancialidade atribuída ao corpo não deve
estabelecer-se enquanto antípoda da noção metafísica de substância pensante. Esta rejeição da
noção cartesiana de res extensa pela afirmação das formas substanciais estenderá ao domínio
corpóreo os princípios anteriormente pensados a partir da elaboração do conceito de
substância individual, tais como a expressão e a harmonia. Todavia, incluído o corpo na
questão da substancialidade, a inadequação entre a amplitude ontológica sugerida pelas
formas e a estreita associação dos caracteres substanciais aos espíritos torna-se mais
acentuada. As dificuldades envolvendo as relações de singularização e distinção entre os
espíritos e as almas dos irracionais; a introdução da questão da unidade substancial
114
Texto 6.1, p. 67.
131
desvinculada da noção de ipseidade; e a indefinição quanto a uma realidade ontológica dupla
ou unificada constituem diferentes aspectos das fissuras da perspectiva individual.
115
Dito de
outro modo, a unidade e indivisibilidade introduzidas através da discussão sobre o tema da
forma substancial vão gradualmente conduzindo Leibniz a um âmbito ontológico mais
elementar que aquele vigente na elaboração da substância individual e da noção completa. Se
ali o contexto humano permanecia como pano de fundo e a própria substancialidade foi
compreendida em correlação com a ipseidade, agora é o domínio do vital que irá se apresentar
como o solo mais originário da substancialidade e as percepções vão surgir como um
elemento expressivo não vinculado à potencialidade reflexiva exclusiva dos espíritos.
Com a substancialidade metafísica estendida aos corpos através da forma substancial,
a polêmica questão da conformação entre alma e corpo será transfigura pela tese leibniziana
da concomitância. Contrariamente à usual oposição entre extensão e pensamento, trata-se de
reconhecer o caráter eminentemente metafísico das substâncias em geral, de modo que a
flagrante cumplicidade entre as impressões da alma e as sensações do corpo será entendida
como um caso particular das relações de expressividade inerente a todas as substâncias,
ajustadas desde o início pela harmonia da criação divina. Mais longe ainda, o próprio corpo
não será tomado como uma substância de ordem material, senão como um agregado de
verdadeiras unidades metafísicas às quais deve seus respectivos traços de substancialidade
manifestos pela força dinâmica e auto-suficiente característica do ímpeto vital que lhe é
próprio.
116
Neste contexto a unidade se estabelece como critério de substancialidade
conferindo também às formas substanciais um novo núcleo de significação: não se trata de
conceber o corpo como uma estrutura essencialmente material animada por uma alma ou
forma substancial. Antes, as formas substanciais correspondem à própria vida que compõe e
mantém a realidade corpórea. Assim, um corpo representa um microcosmo de verdadeiras
substâncias e a substancialidade se expande indefinidamente por toda a natureza como a base
metafísica da constituição de todos os seres, tendo a própria vitalidade como sua marca
característica.
A partir desta nova configuração da substancialidade as bases estruturais da tese
monadológica se encontram firmadas na carta endereçada a Arnauld em 30/04/1687. De fato,
sem ainda mencionar o termo mônada Leibniz se empenha consideravelmente em
fundamentar a idéia da substância como verdadeira unidade baseado no argumento de que não
115
Tais questões foram descritas em detalhe em7.1, p. 82-85.
116
Trata-se da recém formada noção de substância corporal, cf. 8.1, p. 96.
132
pode haver substâncias onde não se possa encontrar, para além da divisibilidade infinita da
matéria, uma unidade metafísica. Em outras palavras, se agregados verdadeiras
substâncias. Este pressuposto relativiza a unidade aparente obtida pela mera união material
das partes e introduz um nível de realidade última alheio aos moldes de nossa percepção
sensorial. Mas como a realidade do composto está fundada sobre a unidade efetiva das
substâncias que fundam sua composição, espaço para o esboço de uma escala ontológica
do real, conforme se afirmou anteriormente em 8.2:
As unidades de razão possuem uma instável unidade aparente conforme as
variadas relações lógicas apreendidas pelo espírito humano. As coisas ou objetos
inanimados exibem sua unidade fenomenal pelo caráter coeso de suas partes e
abarcam algo de mais ou menos substancial conforme a especificidade de sua matéria
prima, uma vez que toda a natureza é plena de vida e as verdadeiras substâncias
encontram-se disseminadas por toda a parte.
117
Os elementos naturais, a seu turno,
abrigam miríades de seres microscópicos em plena atividade; minúsculas substâncias
corporais cujas transformações permitem-nas reaparecer no teatro da vida
(LEIBNIZ, 2004, p.123). os corpos vivos em geral podem ser tomados mais
diretamente enquanto substâncias pela dinâmica e auto-suficiência interna de seu
funcionamento, esta obtida à custa da plena regulação entre as inumeráveis
substâncias que fundam sua composição. Quanto às espécies animais, tanto mais
demarcada a sua substancialidade quanto melhor se possa reconhecer uma
individualidade em suas ações. No homem, por fim, tal individualidade se converte
propriamente em uma personalidade fundada sobre sua potência reflexivo-racional.
118
Precisamente a idéia de gradação sugerida acima indica os passos da definitiva
sobreposição do plano monádico à perspectiva individual, onde a anterior bipartição
substancial representada pela distinção entre espíritos e demais substâncias tende a ceder
espaço a uma unidade ontológica cuja variedade se estabelece verticalmente a partir da
complexidade das relações expressivas de cada substância. Contudo, o final das
Correspondências é marcado pelos esforços e dificuldades de adaptação da nova perspectiva
ontológica (o domínio monádico) à teoria da substância concebida anteriormente a partir da
elaboração do conceito de substância individual. Trata-se de romper com as parâmetros de
identidade e individualidade assegurados unicamente pelo recurso aos caracteres humanos
para reencontrá-los num âmbito mais fundamental aplicável a todas as entidades vivas. Neste
ponto Leibniz se reporta ao dogma cristão para garantir a individualidade espiritual dos seres
humanos (personalidade)
119
mas se depara com o desafio de sustentar também uma
117
Uma questão relevante diz respeito a qual seria a reação de Leibniz frente aos elementos inorgânicos com os
quais fabricamos hoje quase todas as nossas coisas.
118
Texto 8.2, p. 106.
119
Trata-se da adequação de sua teoria ao preceito bíblico segundo o qual Deus gera os espíritos separadamente
133
individualidade para os demais seres complexos, tais como os animais, bem como para as
verdadeiras substâncias em geral. Ora, é a partir do aprofundamento da teoria da expressão
que as percepções serão afirmadas como o traço fundamental das substâncias e associadas
diretamente ao ímpeto vital, sem quaisquer condicionamentos à idéia de uma consciência
reflexiva ou transparência. As percepções de cada substância se encadeiam numa série, a qual
constitui o próprio fator de sua absoluta singularidade. Ao mesmo tempo, a sua gradação em
variados níveis de clareza e distinção sugerem o esboço de um novo padrão de distinção entre
os seres capaz de conciliar uma taxionomia à demanda de generalidade ontológica imposta
pelo conceito de substância.
O novo modelo de distinção entre os seres demarcado pela correspondência de
9/10/1687 se refere à percepção natural, à sensação animal e à consciência reflexiva como
diferentes patamares oriundos da mesma natureza expressiva intrínseca a todas as substâncias.
O esboço da idéia de lei das séries virá substituir o recurso à noção completa remetendo a
singularidade da substância a um estado bruto do ser demarcado pelo caráter confuso das
percepções naturais e independente de predicados complexos tais como percepções
conscientes, pensamentos, ou eventos históricos. a individualidade dos seres animais e
demais substâncias será afirmada através do esboço do esquema da mônada dominante, onde
Leibniz reconhece que em cada entidade viva uma alma singular de fato predomina ao caráter
múltiplo da agregação de seu corpo. Sem equiparar as almas dos irracionais ao espírito
humano em termos de capacidades cognitivas, o que possibilita esta resolução é precisamente
a elaboração de diferentes graus de destaque das percepções em cada substância, segundo os
quais uma alma ou forma substancial específica goza de maior capacidade expressiva e de um
certo recorte das percepções mais marcantes, estendendo sua influência às demais formas
agregadas que a cercam como sua constituição corpórea e sobressaindo-se assim como um ser
individual.
Através de um desenvolvimento gradual motivado pela inicial proposta de extensão da
substancialidade metafísica aos corpos (restauração das formas substanciais) e pelas
conseqüentes limitações impostas pela perspectiva individual, o estabelecimento do âmbito
monádico como um plano mais fundamental para a teoria leibniziana da substância se
consolida em definitivo com o advento do novo parâmetro de individualidade aplicável aos
seres em geral. As percepções correspondem ao impulso primitivo da natureza expressiva de
no momento de seu nascimento e os mantém intactos após a morte do corpo até o momento da ressurreição.
134
toda substância, situado num plano incalculavelmente mais originário que as representações
conscientes tidas como a base do pensamento. Neste sentido, o passo decisivo delineado ao
final das Correspondências com Arnauld se refere à explícita dissociação entre
substancialidade e ipseidade, entre a idéia de indivíduo e a constituição de um eu, enfim, entre
ser e pensar. Anterior ao estado de consciência de si que nos permite testemunhar a
continuidade de nossas percepções através do tempo e vislumbrar em sua unidade a marca de
uma configuração pessoal, a própria vida se encontra como condição primeira de toda e
qualquer atividade; consciente ou não. De modo muito mais simples e indeterminavelmente
amplo, o pulso vital se mostra como indício do constante e ininterrupto afluxo de percepções
que caracteriza a natureza expressiva da substância, de modo que a noção de substância
indivisível se encontra intimamente relacionada ao plano da vida, estendendo-se
gradativamente da mais ínfima realidade atômica ao próprio contexto humano.
*
Retomados os passos da presente investigação, cujo objetivo foi o de delimitar e
compreender a perspectiva ontológica que orienta a filosofia pré-monádica de G. W. Leibniz,
bem como os termos de sua superação, resta indagar o que se pode concluir acerca do tema do
Individual e suas fissuras. Em primeiro lugar, num sentido mais geral e introdutório, este
estudo se afilia à atual tendência interpretativa de valorizar os diferentes estados de
desenvolvimento da filosofia leibniziana como um elemento indispensável à sua plena
compreensão. Sobretudo na direção apontada pelos trabalhos de Michel Fichant, onde
Discurso e Monadologia oferecem, nas duas extremidades de sua trajetória, os termos de
uma experiência decisiva (2001, p.12), a abordagem pormenorizada da elaboração do
conceito de substância individual e do subseqüente debate promovido pelas
Correspondências com Arnauld pretendeu explicitar o conteúdo desta transformação
irredutível (FICHANT, 2001, p.13) ocorrida entre a substância individual e a mônada.
Diversamente de uma simples reestruturação terminológica realizada a partir de qualquer
espécie de transmutação do próprio conceito de substância individual, permaneceu em
evidência uma transição da perspectiva individual ao âmbito monádico orientada pelo
processo de reabilitação das formas substanciais. Em outras palavras, é a partir das reflexões
135
impostas pela tentativa de fundamentar um princípio metafísico para os corpos e, mais
adiante, pela emergência da questão da unidade substancial que o pensamento de Leibniz se
abre para uma configuração da substancialidade plenamente coerente com a universalidade
dos princípios metafísicos desenvolvidos ao longo de sua carreira.
120
A chave de leitura aqui proposta pela consideração da perspectiva individual como um
modo específico de apreensão do real direcionado pela correlação entre substancialidade e a
constituição do indivíduo a partir de sua completude não pretende cindir a filosofia de Leibniz
em tendências antagônicas. Por superação da perspectiva individual pela gradual introdução
do âmbito monádico não se trata de aludir a domínios teóricos auto-excludentes, mas sim a
realidades complementares no interior do pensamento do autor: o individual permanece mais
próximo ao domínio propriamente humano; compreende a substância, a natureza e o universo
a partir da realidade sensorial dos espíritos. O monádico, por sua vez (caracterizado aqui
provisoriamente), é a perspectiva ontológica rigorosa imposta pela própria lógica interna do
conceito de substância; a constituição do real em sua verdade última, cujo acesso somente
pode se dar pela abstração filosófica e elevação às verdades necessárias. Ambos fornecem o
mesmo objeto, a totalidade da criação, sob ângulos distintos ou luzes variadas.
121
Ambos
permanecem como componentes necessários da arquitetônica leibniziana num constante jogo
de interposição.
122
Neste sentido, tanto o Discurso de metafísica exibe consideráveis
“momentos monadológicos” como a Monadologia não se exime de sustentar uma
individualidade para as substâncias. Todavia, o que esta dissertação pôde encontrar, talvez
como a sua contribuição mais relevante, foi a presença de uma associação indevida no cerne
da referida perspectiva individual, cujas etapas de retificação correspondem precisamente à
abertura da teoria leibniziana ao plano monádico.
Se a elaboração do conceito de substância individual tornou-se notória por sua
conexão com a tese das noções completas e pela inclusão das verdades contingentes no âmago
da substancialidade, o segundo capítulo mostrou como, além dos aspectos ligados à
completude, outro fator foi identificado como determinante substancial no Discurso e na
primeira faze das Correspondências. Refiro-me à ligação entre substancialidade,
120
Nas palavras de Fichant: “A univocidade e a universalidade da substância serão reconquistadas não pela
correção ou pela remodelagem dessa teoria [da substância individual], mas antes pelo aprofundamento das
implicações da restauração da forma substancial” (2001, p.25).
121
O contraste sugerido pelos raios infra-vermelho e ultravioleta sempre me pareceram uma ilustração pertinente.
Ambos diferindo da visão “comum” associada à sensação humana proporcionam diferentes experiência da
mesma realidade.
122
Uma relação de complementaridade que me parece encontrar flagrante analogia com a idéia da relação figura-
fundo enfatizada pela fenomenologia de M. Merelau-Ponty.
136
individualidade e ipseidade a partir da qual uma substância é designada essencialmente como
um indivíduo e um indivíduo, a seu turno, se caracteriza necessariamente pela retenção de
uma consciência de si; pela vigência de um eu. Ora, as raízes desta associação remetem à
vigorosa influência do ego cogito cartesiano na nascente filosofia moderna, mas também à
questão religiosa da demanda por uma personalidade como base do vínculo espiritual do
homem com Deus segundo os dogmas da fé cristã.
Quanto ao primeiro fator, a filosofia de Leibniz se afastará paulatinamente do
remanescente traço de cartesianismo ao sustentar a naturalização da noção de substância e o
reconhecimento das percepções como um fundamento ontológico independente da idéia de
representação clara e distinta. Em poucas palavras, o caráter necessariamente metafísico das
substâncias não se deduz do pensamento, mas antes da própria vida. A força pulsante nos
corpos vivos e o admirável aspecto dinâmico de sua composição
123
não podem ser atribuídos à
composição material, senão que constituem os caracteres fundamentais da unidade e
indivisibilidade substancial. Eis que a idéia de organismo aponta para um nível mais
fundamental da substancialidade e atesta a presença de um ser indivisível cujo caráter
essencialmente expressivo se manifesta por meio de sucessivas e ininterruptas percepções.
Resultado da multiplicidade do todo expressa reiteradamente sob a perspectiva singular de
cada substância, a natureza originariamente confusa das percepções não desabilita o caráter
ontológico das diferentes espécies de entidades vivas. Ao contrário, é somente a partir deste
fundo indiviso gerado pela obscuridade e confusão da percepção sensível que quaisquer
representações conscientes ou a elaboração de idéias claras e distintas podem tomar forma.
Portanto, é neste sentido que após longa hesitação Leibniz vai se opor sem reservas aos
cartesianos pela reivindicação de uma alma dos seres irracionais: se a mesma substancialidade
e individualidade anteriormente assegurada aos espíritos pela vigência de um eu pôde ser
conferida aos seres em geral pela sua própria dinâmica expressiva e pelos variados graus de
distinção perceptiva, não é a ipseidade mas sim a própria percepção o aspecto determinante de
uma substância, de modo que o pensamento não deve ser tomado como condição estrita de
substancialidade, mas tão somente de humanidade. O fundo comum das percepções se estende
às substâncias em geral e o estado confuso de seu fluxo contínuo é o solo a partir do qual a
sensação animal e o pensamento racional retiram a sua possibilidade.
Quanto à questão religiosa envolvendo o aspecto espiritual da natureza humana, a
123
Onde cada parte é ainda um todo igualmente composto de partes animadas, e assim sucessivamente.
137
princípio a individualidade concedida a toda substância de acordo com o grau de distinção de
seus estados perceptivos não oferece maiores problemas à ênfase de uma personalidade
peculiar do homem em relação aos demais seres. Afinal, o caráter de constante clareza de suas
percepções se mostra como a base da formação de uma consciência de si permitindo-o
reconhecer-se enquanto indivíduo e, mais ainda, delineando uma personalidade constituída
pelos sentimentos, memória, apercepção e pensamento racional. Sob este aspecto, a posição
de Leibniz no Discurso segundo a qual, a diferença entre as substâncias inteligentes e as
que não o são é tão grande como a que entre o espelho e aquele que (1979, p.150)
permanece válida quanto às possibilidades postas pela realidade expressiva dos espíritos em
comparação aos estados perceptivos das espécies animais e demais seres vivos, sobretudo no
que se refere ao pensamento racional. Contudo, ela destoa da generalidade ontológica
proposta pela introdução da perspectiva monádica, uma vez que a capacidade intelectual que
distingue o ser humano advém do mesmo plano indiviso das percepções inerente à natureza
substancial como um todo. É neste ponto que o recurso leibniziano ao dogma cristão da
criação separada dos espíritos articulado ao final das Correspondências me parece um tanto
incoerente com a transição fundamental da teoria da substância presenciada até então, como
tentarei apontar de forma resumida a seguir.
Retomando sob o aspecto ontológico o trajeto do pensamento leibniziano, o Discurso
de metafísica termina por sustentar uma ambivalência substancial: todos os seres cujos corpos
constituem um unum per se são substâncias, mas somente os espíritos podem ser tomados
como indivíduos. A despeito da restauração das formas substanciais e de esporádicas
referências a uma perspectiva ampla para o conceito de substância (próxima à futura
concepção de mônada), Leibniz concebe duas naturezas de substâncias distintas, separadas
pelo atributo da consciência de si ou ipseidade. Entretanto, na primeira fase das
Correspondência com Arnauld a individualidade (pensada como completude) se mostra como
a base da própria substancialidade. Em outras palavras, ser substância implica em constituir-se
como um sujeito autônomo e completo; a substância é os seus predicados em sua totalidade.
Se estabelece assim certo desacordo entre a generalidade demandada pelo conceito de
substância e o traço específico dos predicados humanos postulados até então, cuja
complexidade não é compatível com a natureza dos demais seres cujos corpos constituem um
unum per se, isto é, os seres vivos em geral. Com o avanço da discussão Leibniz chega a
vislumbrar a possibilidade de extensão da completude à todo e qualquer ser criado (exemplo
138
da esfera de Arquimedes), mas tal hipótese aparece como algo distante em sua inefável
multiplicidade justamente pela estreita ligação entre os predicados integrantes das noções
completas e a concepção de atributo humano baseado na consciência reflexiva.
124
na
segunda fase das Correspondências, pelas reflexões sobre o corpo e a revisão do conceito de
forma substancial, a ontologia será pensada em conexão com a vitalidade. Uma vez que a
natureza corpórea aparece como um pequeno universo de inúmeros agregados de verdadeiras
substâncias, a substancialidade se estende indefinidamente pela natureza em níveis distintos e
também a individualidade se aplica a todos os seres na medida em que seus predicados se
verificam como as simples percepções, sem quaisquer condicionamentos ao caráter reflexivo.
Dado o esboço de um novo padrão de distinção entre os seres no final das
Correspondências, onde a substancialidade do homem, dos animais e demais entidades vivas
se encontra estabelecida sobre a necessidade da existência de verdadeiras substâncias, o
modelo fornecido pela idéia de uma gradação expressiva, por si só, permite salvaguardar a
peculiaridade da existência humana e ao mesmo tempo situá-lo ontologicamente no plano das
substâncias em geral, sem a exigência de uma natureza separada capaz de demarcar sua
condição especial. Assim, segundo tal esquema a concepção de ser humano se alinharia com a
amplitude condizente com o conceito de substância através da idéia de grau monádico, apenas
delineada nas últimas cartas de Leibniz. Porém, a meu ver, ao afirmar os espíritos como seres
à parte, os quais Deus rege segundo leis diferentes daquelas com que governa o resto das
substâncias” e que são as únicas substâncias propriamente espirituais, ao passo que “[sob este
aspecto] as substâncias brutas podem ser chamadas de materiais (LEIBNIZ, 2004, p.154), a
ambivalência ontológica antes afastada pela dissociação entre pensamento e substancialidade
retorna à cena pela via do argumento religioso. A imortalidade da alma exigida na moral e na
religião se coloca para além da simples permanência das formas substanciais na natureza,
apoiando-se na retenção de uma personalidade. Semelhante personalidade se encontra
associada não somente ao caráter expressivo atribuído às substâncias em geral, senão que
pressupõe a particularidade do contexto existencial humano enquanto construção histórica e
social fundada sobre o aspecto racional. Eis, novamente, a influência da perspectiva
individual em contraposição ao flagrante avanço da teoria leibniziana da substância na direção
124
Aqui a influência da perspectiva individual se mostra com clareza: Ainda que mesmo um objeto possa ser
pensado em termos de seus atributos individuais, uma vez que as verdades contingentes o conectam ao mundo,
Leibniz não transcreve de suas anotações o exemplo da esfera de Arquimedes, preferindo restringir ao âmbito
humano as reflexões sobre a completude. Em outras palavras, a individualidade está, de fato, sendo pensada em
conexão com o caráter reflexivo dos espíritos.
139
do âmbito monádico, conforme se pretendeu apontar ao longo desta dissertação. Uma posição
final quanto à relação que se estabelecerá entre o individual e o monádico, todavia, é um tema
que deve permanecer em aberto neste momento.
Outra questão problemática a ser ressaltada quanto ao final das Correspondências se
refere ao caráter eminentemente corporal atribuído às formas substanciais, ao passo que a
mônada será recorrentemente destacada como inextensa. Ainda que concebidas como
indivisíveis e verdadeiras unidades, as formas substanciais permanecem sempre relacionadas
a um corpo orgânico, o qual sofre repetidas transformações, aumentos e diminuições impostos
pela permanência na natureza. Ora, maiores detalhes acerca das unidades últimas desta cadeia
de agregados corporais não são fornecidos pelas Correspondências, de modo que embora a
tese monadológica esteja assentada, a própria elaboração da mônada carece ainda das
reflexões levadas a cabo por Leibniz nos anos 90. Tais questões permanecem somente como
uma orientação para futuras pesquisas, uma vez que demandam um estudo mais completo e
aprofundado da perspectiva monádica, cujo conteúdo escapa ao objeto da presente dissertação
e somente pôde aparecer como um contraponto à delimitação do individual e suas fissuras.
140
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