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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS COMPARADOS DE
LITERATURAS EM LÍNGUA PORTUGUESA
MARIANA CORTEZ
Por linhas e palavras: o projeto gráfico do livro infantil
contemporâneo em Portugal e no Brasil
São Paulo
2008
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
1
FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS COMPARADOS DE
LITERATURAS EM LÍNGUA PORTUGUESA
Por linhas e palavras: o projeto gráfico do livro infantil
contemporâneo em Portugal e no Brasil
Mariana Cortez
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduão em Estudos Comparados de
Literaturas em ngua Portuguesa do
Departamento de Letras Clássicas e
Vernáculas da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da
Universidade de o Paulo, para
obtenção do título de Doutora em Letras.
Orientador: Profa. Dra. Maria dos Prazeres Mendes Santos.
São Paulo
2008
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AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO,
PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Serviço de Biblioteca e Documentação da FFLCH/USP
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo
Cortez, Mariana
Por linhas e palavras: o projeto gráfico do livro infantil
contemporâneo em Portugal e no Brasil / Mariana Cortez; orientadora
Maria dos Prazeres Mendes Santos. – São Paulo, 2008.
407 f.
Orientadora: Profa. Dra. Maria dos Prazeres Mendes Santos
Tese (Doutorado Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados
de Literaturas em Língua Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas
e Vernáculas) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo.
1. Literatura infantil livro-álbum 2. Semiótica discursiva 3. Portugal 4.
Brasil
3
MARIANA CORTEZ
Por linhas e palavras: o projeto gráfico do livro infantil
contemporâneo em Portugal e no Brasil
Tese apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, aprovada pela Banca Examinadora constituída
pelos seguintes professores:
_______________________________________
Profa. Dra. Maria dos Prazeres Mendes Santos
FFLCH – Universidade de São Paulo
Orientadora
_______________________________________
_______________________________________
_______________________________________
_______________________________________
São Paulo, _____de ________________ de 2008
4
Aos olhos que, no longe, me fitam.
5
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer a todos que, por sua colaboração e incentivo,
tornaram possível a realização desta pesquisa, em especial:
À CAPES, pela bolsa de estágio de doutoramento, oportunidade única de
estudar em solo português;
À Profa. Dra. Maria dos Prazeres Mendes pela constante e dedicada
orientação;
Ao Prof. Dr. Armindo Mesquita, pela orientação e acolhimento do outro
lado do oceano;
À Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro pela recepção e acolhida;
À Profa. Dra. Teresa Colomer, por receber-me como aluna-ouvinte no
Máster de Literatura para niños, na Universidade Autônoma de Barcelona;
À Profa. Dra. Ana Claudia de Oliveira por desenhar meu caminho;
À Profa. Dra. Diana Luz Pessoa de Barros por acompanhar meu trajeto;
Ao Colégio Santa Cruz – diretores, orientadores, professores do conselho
de 8ª. Série e alunos – pelo suporte tão necessário;
À minha mãe e aos meus irmãos (Paulo e Maristela) pelo amor sem
palavras;
Ao Gusto, meu tio, por ensinar-me a estratégia de garrafas lançadas ao
mar;
À Cláudia Trevisan, pela capa e conversas;
Ao amigo Ricardo por me ensinar o doce caminho português;
À Fantasia, à Pituca, aos pássaros e às plantas pela vida no novo lar.
6
Viajar! Perder países!
Ser outro constantemente,
Por a alma não ter raízes
De viver de ver somente!
Não pertencer nem a mim!
Ir em frente, ir a seguir
A ausência de ter um fim,
E a ânsia de o conseguir!
Viajar assim é viagem.
Mas faço-o sem ter de meu
Mais que o sonho da passagem.
O resto é só terra e céu.
(Fernando Pessoa)
O que me falta
é esse eu que
tu vês. E a ti o
que falta é esse
tu que eu vejo.
Por mais que
avancemos no
conhecimento
um do outro,
quanto mais
nos refletirmos,
mais seremos
outros.
(Paul Valéry)
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CORTEZ, Mariana. Por linhas e palavras: o projeto gráfico do livro infantil
contemporâneo em Portugal e no Brasil. São Paulo, 2008. 407 f. Tese (Doutorado
em Estudos Comparados de Literaturas em Língua Portuguesa) - Faculdade de
Filosofia, Letras e Cncias Humanas, Universidade de São Paulo.
RESUMO
O trabalho que se apresenta tem por objetivo investigar a composição gráfica dos
livros infantis. O corpus da pesquisa compreende as décadas de 1980 e 1990 e os
primeiros anos do século XXI, em Portugal e no Brasil, a partir da seleção dos
autores Manuela Bacelar (Portugal) e Roger Mello (Brasil). A escolha do corpus se
justifica, pois ambos são, inicialmente, ilustradores para, em seguida, tornarem-se
autores com dupla vocação, isto é, produtores de textos verbais e visuais. Além
dessa característica, ambos desenvolveram uma produção literária voltada ao
blico infantil em que impera a diversidade de estragias e relões entre
sistemas semióticos, por exemplo: autores de livros de imagens, autores-
ilustradores de livros ilustrados e autores de livroslbum. Essa última modalidade,
em que há a integração dos textos verbal e visual, está no centro das discussões. A
reflexão sobre o desenvolvimento desse nero de texto à luz da Semiótica
discursiva de linha francesa, a qual também fundamentará todas análises
realizadas, compõe o primeiro capítulo deste trabalho de tese. Em seguida, abrem-
se as portas para os livros infantis portugueses e o desenvolvimento do livrolbum
em Portugal, bem como serão realizadas análises minuciosas de três obras de
Manuela Bacelar, a saber: O dinossauro (1990), A sereiazinha (1995) e Sebastião
(2004). Cada uma das obras se abordada tendo em vista as diferentes relões
entre palavra e imagem e a composão final em um projeto gráfico que deveria
constituir um todo de sentido. Assim, as obras se diferenciam, pois O dinossauro é
um livro-álbum, em que Bacelar é autora de dupla vocão; A sereiazinha é um
livro-ilustrado, em que a autora portuguesa ilustra o cssico de Hans Christian
Andersen e Sebastião exemplifica aquele gênero, em que, por meio de imagens, a
artista plástica conta a história. No terceiro capítulo, o contexto brasileiro é colocado
em foco e surge o trabalho em equipe, ou seja, uma equipe de profissionais é
formada para criar o objeto-livro, e essa transforma-se em uma característica
fundamental para a história do gênero livro-álbum no Brasil. Roger Mello é um autor
bastante representativo dessa “corrente artística” e suas obras eleitas para análise
se destacam pela prodão em equipe e pela constituão de diferentes relões (ou
grau de relões) entre palavra e imagem na composão do projeto gráfico. As
seguintes obras serão analisadas com mais atenção: Jardins (2001) e Desertos
(2006), texto verbal de Roseana Murray; Fita verde no cabelo: nova velha hisria
(1992), em que Mello ilustra o conto de Guimarães Rosa e Vizinho, vizinha (2002),
obra composta por uma equipe formada pelos artistas Mariana Massarani, Gra
Lima e Roger Mello, e o último assina como autor do texto verbal. Finalmente, no
quarto capítulo, é possível fazer um paralelo entre o contexto do livro-álbum e suas
características nos cenários português e brasileiro, chegando a algumas invariantes,
como a tendência ao tro pictórico em Portugal e ao grafismo no Brasil. Com isso,
a partir de dois contextos particulares, vislumbra-se a imporncia do livro-álbum
como um gênero cada vez mais presente no panorama da Literatura Infantil.
Palavras-chave: Literatura Infantil; Livro-álbum; Semiótica discursiva; Portugal;
Brasil.
8
CORTEZ, Mariana. Por linhas e palavras: o projeto gráfico do livro infantil
contemporâneo em Portugal e no Brasil. São Paulo, 2008. 407 f. Tese (Doutorado
em Estudos Comparados de Literaturas em Língua Portuguesa) - Faculdade de
Filosofia, Letras e Cncias Humanas, Universidade de São Paulo.
ABSTRACT
The presented dissertation intends to investigate the graphic composition of
children's books. The corpus of the research comprises the decades from 1980 to
1990 and the first years of the 21st Century, in Portugal and in Brazil, based on the
selection of authors Manuela Bacelar (Portugal) and Roger Mello (Brazil). The choice
of the corpus is justified because both were illustrators at first and then have
become authors with double talent, that's to say, verbal and visual text producers.
Besides this characteristic, both have developed a literary production dedicated to
the juvenile public, based on the diversity of strategies and relations among
semiotics systems, such as: picture books' authors, picture books illustrator-
authors' and album formatted books' authors. This last mentioned modality of text,
in which there is integration between texts (verbal and visual) is in the center of the
discussions and the consideration about its development in light of the French
discursive Semiotics, that will also validate every analysis made and constitute the
first chapter of this thesis dissertation.Following, the door to Portuguese children's
books and to the development of album formatted books in such country are
opened; also, there will be a detailed analysis of three works by Manuela Bacelar: O
dinossauro (1990), A sereiazinha(1995) and Sebastião (2004). Each of the works
will be approached considering the different relations between word-image and final
composition in a graphic project that should constitute a whole. So, the works differ
one from the other, as O dinossauro is a album-book, in which Bacelar is a double
talented author; A sereiazinha is an illustrated-book, in which the Portuguese author
illustrates the Hans Christian Andersen's classic and Sebastião exemplifies the genre
in which, by means of images, the plastic artist tells the history. In the third
chapter, the Brazilian context is focused and the teamwork emerges, as in the
production of comic books, and becomes a key characteristic to the album-book
genre's history in Brazil. Roger Mello is an author quite representative of this 'artistic
tendency' and the works chosen to be analyzed stand out by their team production
and by their different relations' (or relation degrees') constitution between word and
image in the composition of the graphic project. The following works will be
analyzed with deeper attention: Jardins (2001) and Desertos (2006) verbal text of
Roseana Murray; Fita verde no cabelo: nova velha história (1992), in which Mello
ilustrates the tale of Guimarães Rosa and Vizinho, vizinha (2002), a work created by
a team composed by the artists: Mariana Massarani, Gra Lima and Roger Mello
and, still, the last signs it as its verbal text's author.Finally, in the fourth chapter it is
possible to make a comparison between the album-book context and its
characteristics in the Portuguese and in the Brazilian scenery, reaching some
constants, such as the tendency to the pictorial trace in Portugal and to the
graphism in Brazil.Therefore, from the two particular contexts, we can have a notion
of the album-book as a genre increasingly present in the Juvenile Literature scene.
Key-words: Juvenile Literature; Album-book; Discursive semiotics; Portugal;
Brazil.
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1.1 – Reinações de Narizinho, J. Guillin (1930) 30
Figura 1.2 – A árvore que dava olhos, Maria Kheil (1954) 30
Figura 1.3 De Morte! Angela Lago, 1992 30
Figura 1.4 A raça Perfeita. Angela Lago e Gisele Lotufo (2004) 30
Figura 1.5 Onde vivem os monstros? 46
Figura 1.6 O pequeno azul e o pequeno amarelo 47
Figura 1.7 Agora não, Bernardo 47
Figura 2.1 André Letria 60
Figura 2.2 João Caetano 60
Figura 2.3 Gemeo Luís 60
Figura 2.4 Marta Torrão 60
Figura 2.5 – Antony Browe 65
Figura 2.6 Contracapa e capa 74
Figura 2.7 Contaminação cromática 76
Figura 2.8 Contracapa 77
Figura 2.9 Klimt 77
Figura 2.10 Capa – fundo 77
Figura 2.11 O Dinossauro 77
Figura 2.12 Chagall 77
Figura 2.13 Inserção do P.S 80
Figura 2.14 Situação inicial 81
Figura 2.15 Informações técnicas 82
Figura 2.16 Personagens instauram o narratário 84
Figura 2.17 – Transporte-monstro 84
Figura 2.18 – Vizinhos trocam experiências pelas janelas 85
Figura 2.19 Economia 86
Figura 2.20 Profusão 87
Figura 2.21 – Alheio / Próprio 87
Figura 2.22 – Continuidade narrativa em duas páginas 90
Figura 2.23 – Continuidade narrativa – quadro a quadro 91
10
Figura 2.24 – Sua Alteza, a divinha! 92
Figura 2.25 – Abc doido 92
Figura 2.26 – Linha da terra 93
Figura 2.27 – Consola-te – exemplo de linha da terra 95
Figura 2.28 – Comparação imagem de Bacelar e desenho infantil 97
Figura 2.29 – Desenho infantil – contorno 98
Figura 2.30 – Desenho infantil-linha da terra 99
Figura 2.31 – Silka, imagem de Manuela Bacelar 99
Figura 2.32 – Narrador-criança 101
Figura 2.33 – Narrador-adulto 101
Figura 2.34 – O professor na escola 105
Figura 2.35 – O professor 106
Figura 2.36 – Estudos de Leonardo Da Vinci 107
Figura 2.37 – Ruptura da ficção 108
Figura 2.38 – Situação inicial / Situação final 109
Figura 2.39 – Detalhe do título: fusão palavra/imagem 110
Figura 2.40 – Metáfora Visual 112
Figura 2.41 – Seqüência narrativa (virada de página) 112
Figura 2.42 – Capa e contracapa apresentam uma cena 113
Figura 2.43 – Passagem do tempo 114
Figura 2.44 Sobrecapa 135
Figura 2.45 Escultura em homenagem ao autor (Andersen) 137
Figura 2.46 Desenho gráfico da página 143
Figura 2.47 Quadrinho: anáfora da imagem da página seguinte 144
Figura 2.48 Abstração (esquerda) Icônica (direita) 145
Figura 2.49 Paleta de cores de A sereizinha 148
Figura 2.50 Página dupla 149
Figura 2.51 Páginas simples 150
Figura 2.52 Modelo de livro tradicional 151
Figura 2.53 – Modelo de livro 151
Figura 2.54 Modelos de livros contemporâneos 152
11
Figura 2.55 Homologação do plano do conteúdo ao plano da
expressão 153
Figura 2.56 Percurso expressivo 153
Figura 2.57 Influência de Trnka em Bacelar 162
Figura 2.58 Influência de Chagall em Bacelar 164
Figura 2.59 Cenário surrealista – Chagall 165
Figura 2.60 Cenário Bacelar 165
Figura 2.61 Detalhe de uma galinha no céu 166
Figura 2.62 Detalhe de crianças (humanos) caindo 166
Figura 2.63 Sereia com óculos de mergulho e uma figura de
peixe 168
Figura 2.64 Expressão do movimento/ Figura do pássaro negro 169
Figura 2.65 Detalhe das figuras humanas caindo/ esqueleto de
peixe 170
Figura 2.66 Coruja de O dinossauro/ Coruja de A
sereiazinha/Carcaça de rabo de peixe e figura
humana 171
Figura 2.67 A criança-sereia espia a príncipe 172
Figura 2.68 Movimento ascendente 172
Figura 2.69 Figura recorrente 173
Figura 2.70 Ceci n’est pás une pipe 178
Figura 2.71 Comparações: placa e muro 181
Figura 2.72 Caixa com objetos não identificáveis 182
Figura 2.73 Cena de rua: o protagonista é agressor 183
Figura 2.74 Publicação francesa/espanhola 184
Figura 2.75 As duas capas 185
Figura 2.76 Uma das capas 187
Figura 2.77 Outra capa 187
Figura 2.78 Exemplo de Flip book 188
Figura 2.79 Exemplo de Flip book II 189
Figura 2.80 Histórias de um segredo (primeira página) 190
Figura 2.81 Histórias de um segredo (segunda página) 190
12
Figura 2.83 A maior flor do mundo 191
Figura 2.84 Detalhe do peixe 191
Figura 2.85 Detalhe da intenção do bebê 192
Figura 2.86 Detalhe da alteração dos objetos 193
Figura 2.87 Detalhe das expressões faciais 194
Figura 2.88 Detalhe da caneca com a inscrição S 194
Figura 2.89 Oposição preto/branco versus colorido 195
Figura 2.90 Oposição preto/branco versus colorido, em A flor do
lado de lá 195
Figura 2.91 Oposição linha da terra reta versus ondulada 196
Figura 2.92 Oposição página vazia versus página preenchida 196
Figura 2.93 Detalhe da expressão facial 197
Figura 2.94 Quadrado semiótico 198
Figura 2.95 Sebastião 199
Figura 2.96 A sereiazinha 199
Figura 2.971Detalhe da instauração do narratário 199
Figura 2.98 Mãe conduz o menino para a realidade 200
Figura 2.99 Menino pendurado 200
Figura 2.100Detalhe da expressão facial 201
Figura 2 Página de passagem 201
Figura 2.102El Gato que sonríe... (Eric Battut- França) 203
Figura 2.103Máquinas (Chloé Poizat- França) 203
Figura 2.104Detalhe da colagem 203
Figura 2.105Detalhamento (mãos, cabelo, olhos) 204
Figura 2.106Paleta de cores de Sebastião 205
Figura 2.107Sebastião – Manuela Bacelar 205
Figura 2.108Chagall 206
Figura 2.109Trnka 206
Figura 3 Detalhe da expressão corporal 206
Figura 2.112Detalhe dos retornos (narrativa A/narrativa B) 207
Figura 2.113As capas 207
Figura 3.1 O pequeno azul e o pequeno amarelo (1959) 217
13
Figura 3.2 Le Petit Chaperon Rouge (1965) 217
Figura 3.3 Flicts (1969) 218
Figura 3.4 Mondrian 218
Figura 3.5 Reinações de Narizinho – Votolino 220
Figura 3.6 A bela borboleta 220
Figura 3.7 Pedacinho de pessoa 220
Figura 3.8 O homem no sótão 220
Figura 3.9 - Jardins de Versailles, criado por André Le Nôtre e
construído para Louis XIV 231
Figura 3.10 - Kirstenbosch Botanical Gardens Table Mountain –
África do Sul 231
Figura 3.11 – Mirabell Garden, em Salzburg (Áustria) 231
Figura 3.12 – Parque Guell de Gaudí (Espanha) 231
Figura 3.13 - Apresentação da capa 234
Figura 3.14 – Página de abertura 234
Figura 3.15 – Página de rosto 235
Figura 3.16 – Exemplo de uma pasta de pesquisador 236
Figura 3.17 – Esquema da disposição das páginas 238
Figura 3.18 – Paleta de cores de Jardins 239
Figura 3.19 – Palavra se relaciona com a imagem 240
Figura 3.20 – Palavra como contraponto da imagem 241
Figura 3.21 – Imagem se relaciona com imagem 241
Figura 3.22 – Imagem narrativa 242
Figura 3.23 – Matisse 245
Figura 3.24 – Jardins 245
Figura 3.26 – Referências interdiscursivas 246
Figura 3.27 – Henri Rosseau 247
Figura 3.28 – Jardins 247
Figura 3.29 – Escher 247
Figura 3.30 – Jardins 247
Figura 3.31 – Lagarto – Gaudí 247
Figura 3.32 – Jardins 247
14
Figura 3.33 – Capa 249
Figura 3.34 – Caderno de viagem da artista Tarsila do Amaral 250
Figura 3.35 – Retângulo-moldura com título e autores da obra 251
Figura 3.36 – Etiqueta exemplo 252
Figura 3.37 – Detalhe do grafismo 252
Figura 3.38 – Página de falsa guarda 253
Figura 3.39 – Tapete Desertos 256
Figura 3.40 – Exemplo de tapete persa 256
Figura 3.41 – Detalhe da ficha e da lamparina 256
Figura 3.42 – Página de rosto de Desertos 259
Figura 3.43 – Detalhe tipografia mecânica e manuscrita 263
Figura 3.44 – Relação palavra–imagem improviso 264
Figura 3.45 - Detalhe de traços culturais 267
Figura 3.46 – Reprodução das provas litográficas de Picasso 268
Figura 3.47 – Seqüência da linha 270
Figura 3.48 – Oscar Niemeyer 271
Figura 3.49 – Linha e curvas 271
Figura 3.50 – Waltércio Caldas 272
Figura 3.51 – Linhas 272
Figura 3.52 – A Banguelinha 273
Figura 3.53 – A flor do lado de lá 273
Figura 3.54 – Moi j’attends 274
Figura 3.55 – Releitura de Chapeuzinho Vermelho 288
Figura 3.56 – Voz de Rosa 301
Figura 3.57 – Voz de Rosa pela imagem 302
Figura 3.58 - Voz do texto-base 303
Figura 3.59 – Arquitetura colonial de Minas Gerais
(luminária/guarda-corpos) 304
Figura 3.60 – Movimento ascendente e descendente das ruas de
Minas Gerais 304
Figura 3.61 – Anjos barrocos 305
Figura 3.62 – Homem-lobo 306
15
Figura 3.63 – Olhar de soslaio 307
Figura 3.64 – A flor do lado de lá 308
Figura 3.65 – Griso, o unicórnio 308
Figura 3.66 – Jardins 308
Figura 3.67 – Desertos 308
Figura 3.68 – Ver de ver meu pai, Celso Sisto 308
Figura 3.69 – La composición 309
Figura 3.70 – Irmãos Pretos 309
Figura 3.71 – Figura Hiper-realista 311
Figura 3.72 – Edward Hopper 312
Figura 3.73 – Hiper-realismo Hooper 312
Figura 3.74 – Cenas Surrealistas 313
Figura 3.75 – Situação inicial 314
Figura 3.76 – Situação final 314
Figura 3.77 – Estratégia recorrente nas capas 316
Figura 3.78 – Sombra lobo (presença da morte) 316
Figura 3.79 – Sombra menina 316
Figura 3.80 – Sombra menina=lobo 316
Figura 3.81 – Ambigüidade espacial 317
Figura 3.82 – Capa 319
Figura 3.83 – Detalhe das personagens 320
Figura 3.84 – Contracapa e capa 321
Figura 3.85 – Página de guarda 322
Figura 3.86 – Página de rosto 323
Figura 3.87 – Cenário sem fachada 327
Figura 3.89 – Divisão do cenário 328
Figura 3.90 – Capa 328
Figura 3.91 – Página de rosto 328
Figura 3.92 – Primeira Página 328
Figura 3.93 – Personagem no chuveiro 330
Figura 3.94 – Seqüência da personagem coadjuvante 333
Figura 3.95 – Portas-personagens 334
16
Figura 3.96 – O menino quadradinho – Ziraldo 335
Figura 3.97 – Antes e depois da visita 338
Figura 3.98 – Espaços invadidos 340
Figura 3.99 – A volta à rotina 341
Figura 3.100 - Nova expectativa 342
Figura 3.101 – Debreagem enunciva 344
Figura 3.102 – Instauração do ele, lá, algures 344
Figura 3.103 – Construção das personagens 346
Figura 3.104 – As crianças 347
Figura 3.105 – Los abuelos 349
Figura 3.106 – Capa de El hilo de la vida 349
Figura 3.107 – Miolo de El hilo de la vida 349
Figura 3.108 – Citações pontuais 350
Figura 4.1 – Cântico dos cânticos 355
Figura 4.2 – O nascimento da Vênus, de Botticelli 357
Figura 4.3 – Eva, de Ziraldo 357
Figura 4.4 – Chiquita Bacana e outras pequetitas – Joãozinho e o
de feijão – Obra de Picasso 358
Figura 4.5 – Apartamento da Vizinha povoado de histórias 359
Figura 4.6 – Máscaras observando 359
Figura 4.7 – Referências intertextuais 359
Figura 4.8 – Ricardo Azevedo 360
Figura 4.9 - André Letria 361
Figura 4.10 - Ar Penck 361
Figura 4.11 - A bela borboleta – grampos 365
Figura 4.12 - O personagem encalhado 365
Figura 4.13 - André Letria – História de um Segredo 366
Figura 5.1 – Relação metonímica 369
Figura 5.2 - Relação anafórica 370
Figura 5.3 – Relação determinante de gênero 370
Figura 5.4 – Relação enigmática 371
Figura 5.5 – Relação formal 371
17
Figura 5.6 – Edição portuguesa 373
Figura 5.7 – Lancelote & Lampião 374
Figura 5.8 – No longe dos Gerais 374
Figura 5.9 – Conto de escola 374
Figura 5.10 – Charadas macabras 375
Figura 5.11 – De morte! 375
Figura 5.12 – A maior flor do mundo 377
Figura 5.13 – Palavra para lavra 377
Figura 5.14 - O perfume do sonho, na tarde 377
Figura 5.15 - André Letria 378
Figura 5.16 – Danuta Wojciechowska 378
Figura 5.17 - Marta Torrão 378
Figura 5.18 – Sua alteza, a divinha 379
Figura 5.19 – A raça perfeita 379
Figura 5.20 – André Letria 379
Figura 5.21 – Angela Lago 380
Figura 5.22 – Marta Torrão 383
Figura 5.23 – Maria Kheil 383
Figura 5.24 – A exposição, em Portugal – imagem de Gemeo Luis 384
Figura 5.25 - A “boneca” – no Brasil imagem da obra de Graça
Lima 384
Figura 5.26 - João Caetano 385
Figura 5.27 – André Letria 385
Figura 5.28 - Angela Lago 385
Figura 5.29 - Gemeo Luis 386
Quadro 2.1 – Quadrado Semiótico 198
Quadro 3.1 – Quadrado Semiótico 336
Quadro 3.1 – Gradação acabada versus inacabada 315
Tabela 3.1 – Aproximações entre os projetos gráficos – Jardins e
Desertos 280
Tabela 3.2 – Distanciamentos entre os projetos gráficos – Jardins e
Desertos 281
18
Tabela 5.1 - A capa e o material 376
Tabela 5.2 - As técnicas plásticas empregadas 380
Tabela 5.3 - Técnicas plásticas empregadas 387
Tabela 5.4 – Abordagens temáticas 390
Tabela 5.5 - Comparativo das características da literatura infantil
contemporânea 390
Tabela 5.6 - Critérios para avaliação de um projeto gráfico 392
19
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO: APRESENTANDO O FAZER .................................... 21
Fios emaranhados e soltos: definições ......................................... 22
1 LITERATURA INFANTIL: UM DISCURSO ................................. 29
1.1 A imagem em pauta: a história ............................................ 31
1.2 A história no espaço educacional: reflexos e implicações ......... 34
1.3 A imagem, o livro e a sociedade: a constrão de uma
relação ............................................................................. 42
1.4 A imagem no mercado editorial para crianças: perspectivas .... 45
2 VIAGEM CERCADA POR CONTRADIÇÕES: O CONTEXTO
PORTUGUÊS .................................................................... 53
2.1 Os livrolbuns para crianças em Portugal: destravando
batalhas ............................................................................... 58
2.2 A obra de Manuela Bacelar: desbravando espaços ................ 67
3 CONTEXTO BRASILEIRO: ENTRECRUZAR DE CONFLITOS ........ 210
3.1 O livro-álbum no Brasil: um filho dos quadrinhos ................... 216
3.2 Roger Mello: explosão de experiências .................................. 222
3.3 Diálogos entre projetos gráficos: uma proposta poética .......... 224
3.4 Fita Verde no Cabelo nova velha estória: emaranhados de
vozes ............................................................................... 282
3.5 Desencontro para revelar encontros: Vizinho, Vizinha ............. 319
4 DESENROLANDO FIOS ........................................................ 352
4.1 A Intertextualidade como uma Estratégia Literária: Um Fio
Essencial ........................................................................... 352
20
CONCLUSÃO: A SITUAÇÃO DO PROJETO GRÁFICO DOS LIVROS
INFANTIS CONTEMPORÂNEOS EM PORTUGAL E NO BRASIL:
ATANDO AS LINHAS E DESENHOS .............................................. 368
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................. 395
21
INTRODUÇÃO
APRESENTANDO O FAZER
É muito fácil perder-se
Entre fios e tramas,
Basta um sopro
E já se desarruma o deserto,
Já se abrem suas portas
De luz e vento,
E a areia do tempo escorre
Para construir cidades.
(Roseana Murray)
Diante de diversos fios, ao mesmo tempo emaranhados e soltos,
configura-se a tentativa de fazer deles um tecido bem tramado, para assim
apresentar o livro destinado às crianças. O tema do tecer põe foco no texto
em seu processo. Com essa característica, assume-se o trabalho de pesquisa
que se apresenta. Um fazer reflexivo em processo. Sua urdidura consolidar-
se-á à medida do seu fazer.
O tecido-texto que se descortina para análise é aquele que implica
fios-expressões provenientes de sistemas semióticos distintos o verbal e
o visual , fios-contextos originários de territórios distantes Portugal e
Brasil e, ainda, um olhar-mãos-tecelão que poderia ter nascido em
diferentes campos de estudo Educação, História, Psicologia, Literatura,
Semiótica, entre outros.
Para continuar na isotopia da tecelagem, cabe eleger qual olhar
será lançado sobre o dito tecido e quais serão as agulhas-metodológicas
que tramarão os fios ora disformes em um tecido (com) forma.
Desatando a metáfora que abre este caminho investigativo, a
imagem e a palavra (fios-expressões) serão abordadas na literatura infantil
de Portugal e do Brasil (fios-contextos), mais que isso, o protagonista
dessa empreitada é o projeto gráfico como um todo significativo.
22
Antes, porém, de delinear a fundamentação teórica, revela-se a
consciência sobre a complexidade do objeto, pois, de antemão,
conhecem-se as prerrogativas determinadas pela eleição do corpus, a
saber: a dificuldade de encontrar identidade, a eterna luta leitura-leitor, o
estigma da imagem em oposição à educação escrita nas sociedades, entre
outras. Estas são questões que, inicialmente, seguram os passos para não
incorrer em conclusões apressadas.
Assim, obedecendo ao tempo em que as avós teciam cachecóis
para o inverno, cada uma das questões vià cena, para que, depois de
os fios estarem desembaraçados, possa-se, novamente, uni-los em uma
trama com formas e cores ordenadas ao gosto do analista-tecelão que ora
expõe seu método e deseja confortar aquele que acompanha este fazer,
ou seja, vislumbram-se as questões destacadas como inerentes ao
presente objeto, mas como secundárias nas análises propostas.
FIOS EMARANHADOS E SOLTOS: DEFINIÇÕES
Definir: 1. determinar a extensão
ou os limites de; limitar,
demarcar. 2. Enunciar os
atributos essenciais e específicos
de (uma coisa), de modo que a
torne inconfundível com outra. 3.
explicar o significado de; indicar o
verdadeiro sentido de. 4. Dar a
conhecer de maneira exata;
expor com precisão; explicar.
(Dicionário Aurélio)
Definir não é uma tarefa fácil. Por vezes, o que se consegue é a
aproximação, pela palavra, de um objeto. Tal aproximação pode garantir a
totalidade do objeto que se vai definir ou apenas matizar a expressão, ou
seja, tomá-la em parte. Como diria Clarice Lispector: “a aproximação do
que quer que seja se faz gradualmente e penosamente...”. Definir é
nomear, é abranger algo em um nome, é dar conta da totalidade do
23
objeto. Entretanto, apenas um nome contemplaria uma expressão
complexa? Eis a questão. A complexidade de um objeto determina muitas
relações intrincadas na composição, eis a dificuldade imposta pelo livro
para crianças.
Desta maneira se apresenta o objeto de leitura dado à criança.
Como um universo complexo que resiste à definição, que não cabe em um
espaço determinado, que se agita quando enquadrado em um nome. Para
exemplificar a problemática manifesta, convoca-se um conto do aclamado
Guimarães Rosa, Fita Verde no cabelo nova velha estória, e pergunta-
se: apenas por receber ilustrações em uma edição da Nova Fronteira
poderia ser considerado literatura infantil? Apenas a ilustração alteraria o
“status” de literatura? Além disso, pergunta-se: a quem caberia definir e
catalogar as obras literárias destinadas ao público infantil? Existe tal
distinção entre públicos?
1
Aqui, tamm problemas: a quem cabe a tarefa de analisar o
objeto de leitura dado à criança? Ao crítico literário, ao pedagogo, ao
psicólogo, ao lingüista? Sem dúvida, diante de um objeto complexo, todas
estas disciplinas poderiam tomá-lo para o seu estudo. Cada estudioso,
eno, teria um rino do objeto. Essa atitude, contudo, não minimiza o
problema inicial – como definir o objeto? Ou cada área teria sua maneira de
defini-lo? E usaria a obra literia conforme a designação da disciplina?
Um texto, segundo as teorias discursivas, poderia ser abordado a
partir de diferentes perspectivas em relação interdisciplinar. A disciplina
que o estuda não seria um critério para a definição. Talvez, dessa
maneira, como texto, este objeto possa ser definido. Talvez, como
discurso, possa ser analisado. Interessaria, então, a partir da semiótica
discursiva, perceber o que o texto diz e como diz, para, assim, relacioná-
lo à trama interdisciplinar que o compõe no nível discursivo, como
postulado por Greimas e seus colaboradores. Portanto, o trabalho que ora
1
A obra citada, a saber: Fita Verde no cabelo: nova velha estória, de Guimarães Rosa,
com ilustrações de Roger Mello, será analisada ao longo do trabalho com olhar mais
cuidado, com o objetivo de desvendar as incógnitas esboçadas.
24
se apresenta não pretende destacar os diferentes olhares sobre o objeto,
antes, esclarece a fundamentação teórica norteadora das análises.
Vale pontuar como o conceito de texto é compreendido por este
estudo; para isso, cita-se Diana Luz Pessoa de Barros, em Teoria
semiótica do texto:
[...] o texto existe quando concebido na dualidade que o
define objeto de significação e objeto de comunicação e,
dessa forma, o estudo do texto com vistas à construção de
seu ou de seus sentidos só pode ser entrevisto como o
exame dos mecanismos tanto internos quanto dos fatores
contextuais ou sócio-históricos de fabricação do sentido
(1999, p. 8).
Define-se, pois, neste trabalho, o livro que é dado à criança como
texto e, por essa perspectiva, ele será analisado internamente,
evidenciando suas relações intrínsecas de conteúdo e de expressão que
história é narrada e como ela é contada, seja pela expressão da palavra,
seja pela expressão da imagem, e o projeto gráfico que guarda (envolve,
organiza) a relação palavra-imagem se abordado como um texto que
estabelece relações com o público, visto que, nesse discurso, como bem
afirma Zohar Shavit, há o duplo destinatário:
Deste modo, ao contrário de outros textos que presumem
um único leitor implícito e uma única (embora flexível)
realização ideal do texto, o texto ambivalente tem dois
leitores implícitos: um pseudodestinatário e um destinatário
real. Não se espera que a criança, que é o leitor oficial do
texto, realize o texto na sua totalidade, sendo muito mais
uma desculpa para o texto do que o seu genuíno
destinatário (2003, p.105).
Além disso, o conteúdo, nesse texto (obra literária destinada à
criança
2
), é dado ora por um texto narrativo, ora por um texto descritivo
2
A questão do duplo destinatário será tratada por Shavit como a criança (leitor ideal) e
o adulto, que tem o poder de decisão; seja pai, professor ou bibliotecário. A obra
literária destinada ao público infantil teria de atender também às necessidades do
25
ou informativo; obedecendo aos níveis das estruturas mais abstratas até
as organizões mais concretas, como ensina a semiótica discursiva na
abordagem analítica dos textos em geral.
A expressão pode, no entanto, dar-se por diferentes sistemas o
verbal, o visual, o sonoro. Eis mais uma questão solta. Como analisar tal
expressão? Deve-se separar cada uma das expressões ou devem ser
analisadas conjuntamente? Ainda, seria válido interrogar para que servem
tais expressões ou como essas dizem o que querem dizer. Recorre-se
novamente à Semiótica, que postula a seguinte metodologia:
A Semiótica sabe da necessidade de uma teoria geral do
texto e reconhece suas dificuldades. Por isso mesmo, na
esteira de L. Hjelmslev, propõe, como primeiro passo para a
análise, que se faça abstração das diferentes manifestações
visuais, gestuais, verbais ou sincréticas e que se
examine apenas seu plano do conteúdo. As especificidades
da expressão, na sua relação com o conteúdo, serão
estudadas posteriormente (BARROS, 1999, p. 8).
Quando retomada a expressão, o projeto gráfico e suas implicações
virão à tona, uma vez que interrogar sobre seu grau de comprometimento
na significação é urgente, porque dali também brota o sentido da obra de
literatura para crianças.
Além dos procedimentos metodológicos, a questão da identidade
da literatura para crianças ainda perpassa pelo destinatário, como dito por
Shavit (2003), visto que o livro será tomado, também, como objeto de
comunicação, implicação da postulação teórica adotada.
Enquanto, para alguns, esse conflito sobre o destinatário de
literatura infantil está superado; para outros, será eterno. Aqui, define-
se o tecido como texto e como algo que se a ver aos sentidos de um
sujeito que possui em seu repertório poucas informações, poucas
imagens, poucas recorrências. Um sujeito com um olhar “quase”
adulto (pseudodestinatário). Essa implicação determina igualmente a complexidade da
expressão, e isso será privilegiado pelas análises apresentadas ao longo deste estudo.
26
inaugural, não totalmente, mas um “quase” olhar inaugural. Passar, pois,
da percepção das malhas do sensível para a cognição é o processo que se
oferece, e, como afirmam Lajolo e Zilberman, em A Formação da Leitura
no Brasil, o leitor se torna texto, corroborando a idéia de sujeito da
enunciação delineado pelas teorias do discurso:
[...] o leitor empírico, destinatário virtual de toda criação
literária, é também direta ou indiretamente introjetado na
obra que a ele se dirige. Assim, nomeado ou anônimo,
converte-se em texto, tomando a feição de um sujeito com o
qual se estabelece um diálogo, latente mas necessário
(1999, p.17).
O adulto, não se pode esquecer, é mediador da situação. Ele é
quem oferece o livro: como pai, professor ou bibliotecário. A literatura
infantil tem, pois, uma dupla função: atender à demanda e aos anseios da
criança e às exigências do adulto mediador. Esses dois destinatários são
textos em literatura infantil.
O texto será entendido, sobretudo, como um objeto que aciona e
transforma o sujeito-criança por suas qualidades perceptivas. Tratar-se-á a
literatura infantil, antes de um meio para educar (embora o faça), como um
objeto estético que é sentido pelo corpo e, de alguma maneira, modifica este
corpo perceptivo, fazendo que relações e redes outras se corporifiquem.
A semiótica do sensível
3
, proposta a partir de Da imperfeição, de A.
J. Greimas, e nutrida pela fenomenologia de Merleau-Ponty, é base teórica
para o desenvolvimento das pesquisas de Ana Claudia de Oliveira em seu
artigo A estesia como condição do estético”, um dos que compõem a
obra Do inteligível ao sensível, em que autora aborda o processo do
sujeito diante do objeto sensível:
3
A semiótica do sensível vem sendo desenvolvida principalmente pelos pesquisadores
do Centro de Pesquisas Sociossemióticas (CNRS/ USP/ PUC-SP), dirigido por Eric
Landowski e Ana Claudia de Oliveira.
27
O sentir es no texto, marcando, caso a caso, as mudanças
de estado e passagens de isotopias. Quanto mais sensações
são ativadas numa escritura, mais sensibilidade é requerida,
sustentando a revelação em forma de ‘uma seqüência de
modalidades aléticas e veridictórias.’
Incrustadas no nível da enunciação, as estratégias
figurativas das sensações em enunciador e enunciatário
em sintonia, estado que possibilita ao último partilhar o
conhecimento do primeiro e aprender com ele como adquirir
competências que lhe permitirão penetrar no segredo desse
milagre que é o de se reunir ao mundo e apagar de vez, no
tempo de duração da ocorrência, a separação entre sujeito e
mundo (1995, p. 234).
Além da semiótica do sensível, também a teoria da leitura, em
especial da literatura para crianças, deflagrou essa ocorrência sensível,
cita-se Teresa Duran, em Leer antes de Leer:
Antes de saber ‘leer’ se ha de saber sentir’. Lo mejor es que
nacemos sintiendo. Más que eso, sentimos antes de nacer,
según dicen los especialistas. Así pues, la mitad del trabajo
es hecho. Sentimos, percibimos los signos de nuestro
entorno. Y tenemos la facultad de organizarlos siguiendo un
orden significativo que puede ser valorado positivamente o
negativamente, es decir, emotivamente y, por consiguiente,
de manera afectiva. [...] Identificarse al leer es establecer
con lo que leemos una relación al mismo tiempo afectiva y
enriquecedora (2002, p. 42).
Assim, o sujeito criança poderá formar seu repertório como leitor
de obras de arte, sejam literárias ou plásticas. Os sentidos podem
também apresentá-lo ao mundo percebido, ao mundo visível,
constituindo-o, portanto, como indivíduo para atuar socialmente. Talvez
seja mesmo essa a função da literatura e por isso agrade tanto os adultos
como as crianças. Lygia Bojunga Nunes poetiza o fenômeno:
A gente bota essas experiências fortes de lado, mas elas
ficam acontecidas dentro da gente; e os fragmentos delas
formam um novo desenho no fundo do nosso
caleidoscópio. Um caleidoscópio que o Tempo vai virando.
28
que no nosso caleidoscópio as imagens viradas mesmo
parecendo que nunca mais vão voltar, acabam aparecendo e
de novo porque a gente não deixa de ser cada desenho
que criou (1990, p. 9).
Dessa maneira, pretende-se entender a concepção de projeto
gráfico e suas implicações na leitura dos livros infantis nos dois países
Portugal e Brasil –, a partir dos seguintes autores e obras: Manuela
Bacelar (O dinossauro, A Sereiazinha e Sebastião) e Roger Mello
(Jardins/Desertos, Fita Verde no cabelo: nova velha estória e Vizinho,
Vizinha). Em cada projeto, os autores apresentam diferentes modos de
presença, a saber: autor de palavra e imagem, de imagens de textos
clássicos e de livro de imagem. A escolha de tais artistas se deve ao fato
de serem bastante reconhecidos em seus países, seja pela crítica, pelo
público ou por experimentarem a autoria do texto verbal mesmo sendo,
por formação, artistas plásticos ou, ainda, por ousarem como produtores
da concepção gráfica da obra.
A metodologia de análise parte do conteúdo, passando pela
expressão e suas implicações discursivas que tangem à sensibilização do
leitor e se encaminham para uma relação entre a obra literária inserida no
campo das artes em geral e as outras artes, como as plásticas,
cinematográficas, teatrais, entre outras, com o intuito de verificar a
existência de interdiscurso e intertextualidade.
29
1 LITERATURA INFANTIL: UM DISCURSO
Vale segurar os passos ansiosos e pontuar que o mundo não é
composto apenas por palavras, como é sabido. O livro para crianças
também não. Nele, um alimentar constante, em que o mundo alimenta
o livro, e vice-versa; sendo esse último, portanto, um objeto de
comunicação, como dito anteriormente. Um discurso está sempre inserido
em um contexto refletindo-o e refratando-o, como postula Bakhtin, em
Marxismo e filosofia da linguagem:
Cada signo ideológico é não apenas um reflexo, uma sombra
da realidade, mas também um fragmento material dessa
realidade. Todo fenômeno que funciona como signo
ideológico tem uma encarnação material, seja como som,
como massa física, como cor, como movimento do corpo ou
como outra coisa qualquer. Nesse sentido, a realidade do
signo é totalmente objetiva e, portanto, passível de um
estudo metodologicamente unitário e objetivo (1981, p. 33).
Como signo ideológico, a literatura infantil se nutre dos
movimentos discursivos de sua época, incorporando-os. Pulsam, portanto,
as novas informações e, com elas, as novas linguagens neste mundo
globalizado e conectado por imagens satélites. As obras literárias deste
tempo constituem o corpus de análise desta pesquisa. Tanto Manuela
Bacelar (Portugal) quanto Roger Mello (Brasil) pertencem a gerações pós-
1970 e acompanharam as transformações de sua época, em algumas
obras com mais intensidade e em outras menos, mas, sem dúvida, são
reflexo desse contexto.
Talvez hoje seja obsoleto abordar a crise gerada pela televisão nos
anos 1950, mas está o despertar da questão da imagem no mundo
adulto e no infantil. Ou seja, com os avanços tecnológicos, as linguagens
se transformam e atuam sobre os sujeitos no mundo. A criança é, pois,
um sujeito no mundo e está sensível aos estímulos que pairam no ar. O
livro, para seduzir, atrair e convencer a criança, não poderia alijar-se da
30
discussão sobre a imagem e também de abarcá-la em seu corpo, visto
que, como discurso, assimila o contexto, sem esquecer, obviamente, das
demandas mercadológicas que visam a resgatar o leitor, que é,
evidentemente, consumidor. A seqüência cronológica de imagens de obras
literárias comprova as afirmações anteriores
4
.
Retomar o percurso histórico da imagem no livro para criança é o
horizonte que desponta neste momento de reflexão. Esse trajeto é apenas
um exercício para contextualizar as análises que seguirão como propósito
dessa investigação.
4
Estas imagens o apenas exemplificações, não have aprofundamento na
abordagem das obras citadas, apesar do seu grande valor no cenário da literatura
infantil.
Figura 1.4A raça Perfeita. Angela
Lago e Gisele Lotufo (2004)
Figura 1.3De Morte!
Angela Lago, 1992
Figura 1.1 – Reinações de
Figura 1.2 – A árvore que dava
olhos, Maria Kheil (1954)
31
1.1 A IMAGEM EM PAUTA: A HISTÓRIA
Para compreender a importância da imagem na sociedade, que
se olhar para a história da humanidade. O homem sempre utilizou a
imagem como linguagem para contar sua vida, suas crenças, seus
amores, enfim, para criar sua história, sua narrativa de vida. As artes
primitivas, ou mesmo os murais dos templos renascentistas são exemplos
deste fazer na História da Humanidade e, como conseqüência, na História
da Arte. David Mc Kee conta o seguinte sobre o tema:
Cuando los primeros cristianos comenzaron a construir sus
iglesias, hubo gran controversia acerca de las decoraciones
interiores, especialmente con relación a los grabados. En el
siglo VI, el Papa Gregorio Magno establecun mandato que
bien llevó a la Iglesia Cristiana Occidental hacia una dirección.
Dijo: ‘La pintura puede hacer por los analfabetos lo que la
escritura hace por aquéllos que leen’ (2005, p. 159).
Seja por ignorância do sistema escrito, seja por desenvoltura na
arte visual, uma vez que é uma habilidade inata
5
, o homem sempre se
expressou por narrativas dadas aos olhos com o objetivo de atingir um
maior número de pessoas. Assim, a religião e a educação tomaram a
imagem para alcançar o público que não dominava o sistema escrito,
porque essa linguagem sempre se comunicou com os não iniciados nas
letras. A imagem tem sobre a escrita duas vantagens iniciais: a
comunicação imediata e a facilidade de apreensão, que não exige, pelo
menos este era o pensamento, o esfoo do letramento.
Muito se passou em atos e conceitos, tendo a palavra, na
contracorrente da facilidade de decodificação, se sacralizado. O sistema
escrito elitiza na medida em que seleciona um blico e, portanto, exclui
os não-iniciados. Apesar disso, fez-se “grande e importante”, ou seja,
aquele que detinha sua decodificação pertencia ao mundo. Com esse
5
Ou se pensava que fosse. A imagem era entendida como um sistema referencial,
portanto as possibilidades metafóricas dessa linguagem eram descartadas.
32
caráter, a escrita dominou as linguagens e todos desejavam iniciar-se nas
artes das letras para fazer parte do grupo até como cidadão, uma vez que
o analfabetismo exclui da vida pública.
Neste contexto, a imagem foi renegada ou mesmo excluída das
prioridades educacionais e, por vezes, anti-heroína nessas discussões, pois
a instituição escolar tinha por objetivo propiciar a aquisição do sistema
escrito. Três argumentos sustentam a rejeição da imagem no cenário
delineado: 1) a imagem como distração, diversão; 2) como facilitador da
decodificação da escrita; 3) como delimitador do código escrito.
Esses três argumentos, muitas vezes, apareciam juntos, contudo,
que se pensar sobre cada um deles isoladamente, com o propósito de
entender a rejeição da imagem e enaltecer a palavra e, assim, entender o
papel da palavra e da ilustração no livro infantil, sendo este o objetivo
deste capítulo.
No primeiro argumento a imagem como distração –, essa, por
suas qualidades sensíveis (cores, formas, texturas, planos), desviaria a
atenção do leitor que, para decodificar as letras negras, deveria estar o
mais centrado possível em seu fazer recém-aprendido.
O outro argumento a imagem como facilitador credita a ela a
propriedade facilitadora. Enquanto a palavra exigiria esfoo e aplicação para
ser entendida e, sobretudo, demandava ensinamento e justificava a
importância da instituição escolar; a imagem, por outro lado, era de
compreensão inata, tendo em vista que sua função era retratar a realidade
(uma linguagem referencial). Nesse discurso-argumento, a imagem é
compreendida instantaneamente. Vê-se interligado a este argumento, o
pensamento de que ela o necessita de leitura.
A partir da década de 1970, no entanto, essa idéia de habilidade
inata é totalmente descartada, como bem declara Dondis em Sintaxe da
linguagem visual (1997). A visão da estudiosa se desenvolveu a partir dos
estudos da percepção Gestalt e das abordagens discursivas da imagem
– e da Semiologia. Essa visão, contudo, de a imagem necessitar de
33
estudo, demorou a fazer parte dos currículos escolares dos países em foco
nesta investigação – Portugal e Brasil.
Finalmente, no último argumento a imagem como delimitador –,
ela foi vista por muitos educadores como um elemento que cerceava a
imaginação do leitor, constituindo-se este como o terceiro argumento
contra a imagem na escola. A palavra, neste caso, seria polissêmica,
enquanto a imagem, unívoca. Por isso, a última o deveria figurar na
literatura infantil, visto que limitava a imaginação do leitor. Um exemplo
deste discurso é dado por Manguel (2001), em Lendo imagens, o autor
argentino remete ao século XIX e retoma as palavras de Flaubert:
Gustave Flaubert opunha-se de forma intransigente à idéia de
ilustrões acompanharem as palavras. Ao longo da sua visa,
recusou-se a admitir que qualquer ilustrão acompanhasse
uma obra sua porque achava que as imagens pictóricas
reduziam o universal ao singular. ‘Ninguém jamais me ilustrará
enquanto eu estiver vivo’, escreve ele, ‘porque a descrição
literária mais bela é devorada pelo mais reles desenho. Assim
que um personagem é definido pelo pis, perde seu caráter
geral, aquela concorncia com milhares de outros objetos
conhecidos que leva o leitor a dizer: ‘eu vi isso’, ou ‘isso
deve ser assim ou assado. Uma mulher desenhada a pis
parece uma mulher, e só isso. A idéia, portanto, es
encerrada, completa, e todas as palavras, então, se tornam
inúteis, ao passo que uma mulher apresentada por escrito
evoca milhares de mulheres diferentes. Por conseguinte, uma
vez que se trata de uma questão estica, eu rejeito todo o
tipo de ilustração (2001, p. 20).
Flaubert, como muitos autores e pesquisadores de seu tempo,
entendia a imagem como cerceadora da imaginação do leitor. Diante de
tais argumentos, a imagem ficou à margem do sistema educacional e a
palavra desfilou, ainda, soberana pelos meios de comunicação, em especial
no livro, o único legitimado pela instituição escolar até meados de 1970 nos
contextos considerados por este estudo.
Esse quadro esboçado foi aos poucos se transformando. As artes
plásticas deixaram de ser reprodução do real, no início do século XX. A
fotografia, o cinema e a televisão adquiriram importância nas relações
34
sociais e, por isso, a sociedade comou a ser rotulada como “sociedade
da imagem”. É, também, a partir desse contexto que o livro começa a ser
pensado pela imagem.
1.2 A HISTÓRIA NO ESPAÇO EDUCACIONAL: REFLEXOS E IMPLICAÇÕES
Inicialmente, no habitat educacional, o papel da imagem era de vilã,
para, em seguida, tornar-se protagonista respeitada, apesar de permanecer
sempre uma personagem polêmica
6
.
Desde o início, os livros para crianças utilizam imagens para
ilustrar as histórias; essas, contudo, não eram percebidas pela crítica.
Talvez não fossem também percebidas pelo próprio artista ou pelo próprio
destinatário, pois todos entendiam a imagem como adorno da palavra.
Segundo críticos e artistas do final do século XIX e até metade do século
XX, a imagem deveria ser utilizada para transformar uma tarefa
desgastante em algo mais prazeroso:
Un libro como éste, presentado de esta manera, podría (así
lo espero) servir para atraer a los niños talentosos, para que
el hecho de ir a la escuela no les parezca un tormento, sino
más bien, una experiencia agradable. Pues, es obvio que los
niños (aún desde su temprana infancia) se deleitan con las
ilustraciones, y gustosamente se complacen con estas luces.
Bien valdría la pena haber realizado tal obra si logramos
ahuyentar a los espantapájaros de los Jardines de la
Sabiduría (El Orbis Pictus, Comenius, 1657, In: MARANTZ,
K., 2005, p. 15).
6
É possível que a polêmica se graças à transição de discursos. Como querem as
teorias da análise do discurso: “‘Todo discurso define sua identidade em relação ao
outro. Isso quer dizer que o discurso apresenta uma heterogeneidade constitutiva.’
(Maingueneau, 1987, p. 81-93), ou seja, mesmo na ausência de qualquer marca de
heterogeneidade mostrada, toda unidade de sentido, de qualquer tipo que seja, pode
ser inscrita numa relação essencial com outra, a do ou dos discursos em relação às
quais o discurso de que ela depende define sua identidade. [...] Um enunciado de uma
formação discursiva pode então ser lido pelo ‘direito’ e pelo ‘avesso’: num lado ele
significa sua pertença a seu próprio discurso, no outro ele marca a diferença
constitutiva que o separa de um ourios outros discursos” (FIORIN, 1994, p. 33).
35
Apesar dos avanços tecnológicos e da inserção de novas dias,
ainda hoje, este discurso, sobre a imagem como “diversão” ou hora do
recreio”, circula nos estudos sobre a imagem destinada à criança. Vale
ressaltar que esta idéia não é a única, mas coexiste com outras nesta
corrente discursiva.
Isabel Calado, pesquisadora portuguesa contemporânea, é um
exemplo dessa formação discursiva, pois adota a seguinte perspectiva:
Uma coisa me parece certa: não podemos prescindir das
imagens [...] elas (re) introduzem-nos, de um modo muito
especial, na instância do prazer e permitem-nos escapar ao
esforço (de paciência e penosidade) que o trabalho de
alinhamento e decifração da escrita normalmente acarreta
([s.d.], p. 117).
A partir das citações de tempos bastante distintos (uma de 1657 e
outra do final do século XX), é possível vislumbrar um quadro em que a
imagem no livro para crianças tem o status de leveza que, segundo Ítalo
Calvino, é uma exigência das artes no século XXI, como demonstra em
seu tratado Seis propostas para o próximo milênio:
Depois de haver escrito ficção por quarenta anos, de haver
explorado vários caminhos e realizado experimentos
diversos, chegou o momento de buscar uma definição global
de meu trabalho. Gostaria de propor a seguinte: no mais das
vezes, minha intervenção se traduziu por uma subtração do
peso; esforcei-me por retirar o peso, ora às figuras
humanas, ora aos corpos celestes, ora às cidades; esforcei-
me sobretudo por retirar peso à estrutura narrativa e à
linguagem (1990, p. 15)
7
.
A função de diversão atribuída à imagem e apoiada pelos críticos
de ontem e hoje, como apontado, não inferioriza a imagem, mas,
sobretudo, ressalta uma qualidade importante de tal linguagem: acionar
7
Apesar de Calvino não tratar da literatura infantil a sua condição para arte literária do
século XXI é pertinente também ao gênero em questão.
36
no sujeito-leitor
8
a possibilidade de entrar” na obra pelas vias sensíveis e
experimentar o estético:
Se aproximo de mim o objeto ou se o faço girar em meus
dedos para vê-lo melhor, é porque para mim cada atitude de
meu corpo é um golpe potência de um certo espetáculo,
porque para mim cada espetáculo é aquilo que é em uma
certa situação cinestésica (Merleau-Ponty, 1999, p. 406).
Por isso, é cito reconhecer que com a explosão das chamadas
novas tecnologias – entre elas, incluem-se o cinema, a televisão, os
computadores, os jogos eletrônicos –, se por um lado a imagem foi vista
como elemento de desvio – o “lobo” que desencaminhou a pequena
menina do bom caminho na leitura, por outro, pode ser entendida como
um acréscimo na formação da sensibilidade dos aprendizes ou mesmo
uma opção pela leveza, que foge ao peso da vida e da cotidianidade. Eis
uma busca constante em literatura infantil: ela deve formar o leitor
literário como é proposta demonstrar.
A obra de arte se aciona (ou se realiza) como um acidente. Se os
novos meios forem retirados de seu uso habitual, existe a potencialidade
do “acidente estético”, como é o caso de uma instalação nas mostras de
arte contemporânea e também do livro infantil contemporâneo:
A inserção na cotidianidade, a espera, a ruptura de isotopia,
que é uma fratura, a oscilação do sujeito, o estatuto
particular do objeto, a relação sensorial entre ambos, a
unicidade da experiência, a esperança de uma total conjunção
por advir, esses são os poucos elementos constitutivos da
apreensão estética [...] (Greimas, 2002, p. 30).
8
É importante pontuar que a pesquisa que se apresenta entende o livro infantil como
obra de arte, assim como a literatura para adulto. A comparação entre o livro infantil e
outras manifestações artísticas será uma constante.
37
Colomer, em artigo intitulado “Apreciar el ‘espesor’ de las
palabras y de las imágenes”, reflete acerca do livro ilustrado como
objeto artístico-estético:
Las palabras que se utilizan en un texto literario o las formas
de una ilustración pueden ser las mismas que se hallan en
cualquier otra comunicación o lugar, pero la manera de
utilizarlas y recibirlas, no. Porque el escritor elige y combina
las palabras y el ilustrador los colores o la perspectiva, para
propiciar que el lector “se detenga en ellos”, para que la
lectura o la visión ingenuas y literales se sobrepasen y se
puedan descifrar otros significados. Un escritor y un ilustrador
pueden desarrollar una narración para transmitir una historia,
pero eso no parece muy interesante si no eligen y combinan
las piezas de manera que el conjunto se convierta en una
oferta artística, en un objeto lingüístico y plástico que
produzca una experiencia más intensa y más compleja.
Cuando la lectura de esa narracn dialoga con la anterior
experiencia de vida y de lectura, verbal y plática, de los
receptores es capaz de generar una experiencia artística, algo
tan gratuito como placentero, ante lo que todos los humanos
son capaces de reaccionar (2002, p. 83).
Colomer destaca a organização em discurso de palavras e imagens
como meio para alcançar a experiência estética e fazer que o receptor
reaja diante do evento. Ainda, Besty Hearne aponta a transformação dos
livros para crianças como condutores à formação do repertório sensível do
indivíduo para assim prepará-lo como leitor literário:
Del mismo modo que la apreciación del cartoon constituye
una preparación para las formas de arte más profundas, a
también las ilustraciones (e historias) de los libros-álbum
son la preparación de los niños para formas artísticas más
elevadas. Esto sin sugerir que los libros-álbum sean de
ninguna manera formas artísticas inferiores o s
primitivas, así como tampoco el folklore es una forma
artística de menor importancia que la novela o la pintura de
galería (2005, p. 211).
Apesar de tais afirmações ressaltarem as qualidades estéticas do
livro com imagens, visto que são idéias contemporâneas; durante um bom
38
tempo, como vilão, o sistema visual roubou o espaço dos livros no tempo
dos meninos e no próprio mercado editorial, visto que, por conseqüência
da sedução das imagens, os editores, por um tempo, pararam de produzir
literatura infantil. Isso porque, também, o mercado foi seduzido pelos
artifícios da linguagem visual. Entre as décadas de 1930 e 1960, ao
menos em Portugal e no Brasil, o mercado priorizou a produção de
histórias em quadrinhos para alimentar a ficção na vida dos meninos.
Houve, então, a entrada triunfal (ou desastrosa, na visão de
alguns) de tal expressão artística de massa os quadrinhos (ou banda
desenhada – como é chamada em Portugal) – nos mercados nacionais. Na
maior parte, a expressão veio maciçamente como traduções da língua
inglesa. Deixou-se de lado, portanto, a produção nacional para crianças e
a opção editorial foi pela produção cultural de massa.
Algo semelhante é vislumbrado por Walter Benjamin, quando ele
reflete a respeito da perda da “aura” artística. Solange Jobim e Souza em
seu estudo sobre a infância e a linguagem, a partir das perspectivas
teóricas de Walter Benjamin, Bakhtin e Vygotsky, afirma:
Com a multiplicação dos meios de reprodução cnica,
sobretudo com o aparecimento da fotografia e,
posteriormente, do cinema, a estrutura espaço-temporal da
obra de arte se modifica. A partir do momento em que a
obra fica excluída da atmosfera religiosa, que faz dela objeto
de culto a ser consumido por poucos, a arte perde a sua
“aura” e, na origem dessa dissolução, começa a se
desenvolver o germe de uma política de transformação do
real. Isso significa que o fim da aura na obra de arte não é,
de forma alguma, arbitrário, mas condicionado socialmente.
Por isso, Benjamin encontra no mundo massificado do
capitalismo as causas do surgimento de um novo tipo de
percepção voltado para o idêntico e para o contato direto
com as coisas. [...]
Enquanto a arte clássica estava voltada para a contemplação
individual, sendo, portanto, necessariamente elitista, a arte
pós-aurática é condicionada por um tipo de recepção
coletiva; esta irá mudar qualitativamente a relação entre
obra e público, modificando a atitude da massa em relação à
arte (1995, p. 47).
39
Tomando a vertente crítica da produção cultural de massa
trabalhada por Benjamin em meados do século XX, é interessante pontuar
a distinção entre a recepção individual livro –, e a coletiva cinema,
televisão. Instala-se, pois, a popularização da arte. Na contracorrente, é
válido analisar os discursos da década de 1960 no Brasil, como documentos
históricos, ideologicamente posicionados com fundamentos anti-história em
quadrinhos, antiprodução cultural de massa. José Benedicto Pinto,
estudioso brasileiro, pode ilustrar essa corrente discursiva:
O primeiro prejuízo causado pelas estórias em quadrinhos é
este: afasta os leitores dos bons livros. quem afirme que
através da estória em quadrinhos a criança aumenta o
vocabulário. Acreditamos que isto é fato, mas, não podemos
negar que, quem livros aumenta mais o seu vocabulário,
pois a necessidade de procurar o vocábulo no dicionário, ou
indagar o seu significado é maior em quem um livro do
que naquele que a estória em quadrinhos pois estes, tem
o quadrinho que facilita a compreensão da imagem mas, e
os outros prejuízos? [...]
Nos Estados Unidos, em 1953 um menino de 13 anos
cometeu um dos mais tremendos crimes de que se tem
notícias naquele país. Matou com propósitos sexuais uma
menina de seis anos, sob a influência de uma história em
quadrinhos [...] (1969, p. 64-65).
Além de descartar os benefícios da produção quadrinizada, Pinto
ainda associa essa expressão a atos de violência, exagerando seus efeitos.
Tudo isso a fim de rejeitar a produção de história em quadrinhos para as
crianças. Algo similar é vivido no século XXI com relação aos efeitos dos
jogos eletrônicos.
Em Portugal, a literatura infantil também é abalada e ainda perde
a batalha para as traduções da literatura quadrinizada e a exaltão da
cultura de massa, como pontua Natércia Rocha:
Um balanço dos anos 40 revela que a produção editorial de
qualidade assenta em meia dúzia de nomes. O facto mais
representativo será talvez o recuo da obra nacional perante
40
o surto de jornais e livros vindos de produtores
multinacionais que podiam apresentar a baixo preço [...]
As hisrias em quadradinhos, de origem americana,
espanhola e francesa, ocupam grandes espaços, firmando e
alargando a posição conquistada nos finais dos anos 30
(2001, p. 81-83).
Tal fenômeno ainda é agravado pela política autoritária da época
9
,
pela sua ação sobre o sistema educacional e também pela censura
editorial do período salazarista, que marcou uma estagnação na produção
editorial portuguesa para crianças
10
.
No Brasil, dá-se o mesmo com relação à avalanche dos gibis
estrangeiros. No entanto, preserva-se a intensa produção nacional de tal
expressão, por exemplo, O Tico-Tico (no início do século XX) e A turma do
Pererê (em meados do século XX)
11
e ainda A Turma da Mônica (em
meados do século XX até os dias atuais), de Maurício de Sousa. Também
alguns estudos sobre as histórias em quadrinhos, neste lado do oceano,
apresentam um contradiscurso sobre o tema, em que a defesa desse
gênero artístico, negando, portanto, os discursos anteriores. Azis Abrahão,
no artigo Pedagogia e quadrinhos”, publicado na obra Shazan!, apresenta
o discurso favorável à história em quadrinhos:
Neste sentido, a literatura em quadrinhos, como veículo de
aprendizagem para as crianças, o só é capaz de atingir
uma finalidade instrutiva (ensino direto ou central), pela
apresentação dos mais diversos assuntos ou noções. Mais do
que isto, e principalmente, consegue preencher uma
finalidade educativa (ensino concomitante), por um
desenvolvimento, que produz, de ordem psico-pedagógica,
isto é, dos processos mentais e do interesse pela leitura
(1977, p. 147).
9
No item sobre os livros infantis em Portugal, este tema será aprofundado no estudo
que ora se apresenta.
10
Autores como Natércia Rocha, Nelly Novaes Coelho, Lúcia Góes, entre outros
apresentam trabalhos sobre essa questão.
11
A publicação das revistas citadas será mais aprofundada no capítulo sobre o contexto
brasileiro da imagem.
41
Apesar de Azis figurar entre aqueles que na década de 1970
valorizam a leitura da imagem, essa questão ainda é amplamente
desprezada nos espaços educacionais. Os teóricos do passado
12
não
pensavam sobre uma pedagogia da leitura de imagem. Os professores se
limitavam ao registro verbal.
Como já introduzido, em 1973, no entanto, Donis publica Sintaxe
da linguagem visual, obra que marca uma transformação na maneira de
pensar a imagem no espaço educacional, mas, em Portugal e no Brasil,
apenas em 1991 se tem a primeira tradução para o português, ou seja,
nestes países, essas idéias demoraram em vir à tona de maneira
abrangente e institucional na escola
13
. Nessa obra, encaminha-se a
questão sobre o alfabetismo visual da seguinte maneira:
Existe, porém, uma enorme importância no uso da palavra
“alfabetismo” em conjunção com a palavra “visual”. A visão
é natural; criar e compreender mensagens visuais é natural
até certo ponto, mas a eficácia, em ambos os níveis, só pode
ser alcançada através do estudo (2003, p. 16).
A partir da compreensão da imagem como texto e com a
necessidade de decodificação e interpretação, estabelece-se o princípio de
que é válido educar para a imagem. Nas décadas de 1980 e 1990, os
textos educacionais, tanto no que diz respeito à educação infantil quanto
nos níveis mais avançados, introduziram o estudo e a leitura de imagem
em seus currículos
14
.
O trabalho investigativo que ora se apresenta adota esta
perspectiva, a saber: palavra e imagem constituem um todo discursivo,
que merece decodificação no que tange a complementaridade entre essas
12
Entende-se passado como os anos anteriores a 1970.
13
Pode ser que os críticos dos países analisados discutissem a questão nos meios
universirios, no entanto, daí para a sala de aula houve um intervalo de tempo.
14
Os parâmetros curriculares nacionais de Língua Portuguesa trazem determinações
sobre a leitura de imagens.
42
linguagens. Priorizar-se-á, ainda, o encontro de linguagens que
desembocará no projeto gráfico
15
proposto pela obra.
1.3 A IMAGEM, O LIVRO E A SOCIEDADE: A CONSTRUÇÃO DE UMA RELAÇÃO
Como agente social, a criança manipula, a todo o momento, a
linguagem visual; de embalagem de biscoitos à imagem televisiva. E,
ainda, devido ao contexto sócio-econômico, bem como à inserção dos
discursos feministas na sociedade, cada vez mais cedo, a criança passou a
ser introduzida no coletivo: ela sai do espaço familiar (privado) e ingressa,
cedo, no escolar (público). Os pais se vêem “obrigados” a deixar o filho
aos cuidados de uma creche ou escola, assim a criança compartilhará o
espaço público precocemente.
Em A identidade cultural na s-modernidade, Stuart Hall
observa o que chamou de descentramento s-moderno, ou seja, aquilo
que leva à constituição de uma identidade s-moderna. Entre eles, há
o discurso feminista:
Mas o feminismo teve também uma relão mais direta com o
descentramento conceitual do sujeito cartesiano e sociológico:
questionou a clássica distinção entre o “dentro” e o “fora”,
o “privado” e o “público”. O slogan do feminismo era: ‘o
pessoal é político’.
abriu, portanto, para a contestação política, arenas
inteiramente novas de vida social: a família, a
sexualidade, o trabalho doméstico, a divisão doméstica do
trabalho, o cuidado com a criança, etc.
enfatizou, como uma questão política e social, o tema
da forma como somos formados e produzidos como
sujeitos generificados. Isto é, ele politizou a
subjetividade, a identidade e o processo de identificação
(como homens/mulheres, es/pais, filhos/filhas)
(2004, p. 44-45).
15
A questão do projeto gráfico será tratada e definida ao longo deste estudo.
43
Ali, nos espaços educativos, os educadores, e mesmo as outras
crianças do grupo, vão interagir, como propõe Vygotsky, na postulada
sócio-aprendizagem. A imagem, sem dúvida, é a linguagem em voga
neste momento, assim como a música e a gestualidade.
Rapidamente, artistas e editores se deram conta desse nicho
mercadológico:
Particularmente nos anos 70, os designers passaram a fazer
uso da imagem como construtora de sentido da narrativa,
deixando de ser mera ilustração. Palavra e imagem, verbal e
visual, integraram-se de tal maneira que o sentido do texto
parece só se completar na leitura das expressões
concomitantemente. Homem de Melo exemplifica quando diz
que Ziraldo, em uma de suas capas “articula toda a
composição gráfica. Texto e imagem formam um conjunto
indivisível” (FERLAUTO, 2002, p. 74).
Antes de a mulher encontrar seu ambiente público, havia espaço-
tempo para a “contação” de hisrias ao da cama ou no jardim; nos
tempos globalizados, a dinâmica é outra, e é necessário deixar a nostalgia
das velhas formas e interrogar sobre as “novas” maneiras de contar,
pois algo é fato o ser humano necessita de histórias, de momentos de
ficção, seja para constituir a personalidade, seja para interagir no mundo.
Benjamin explica a extinção da arte de narrar:
Uma experiência quase cotidiana nos impõe a exigência
dessa distância e desse ângulo de observação. É a
experiência de que a arte de narrar está em vias de
extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem
narrar devidamente (BENJAMIN, 1993, p. 197).
A narrativa, como o próprio Benjamin ensinou, contempla aspectos
psicológicos e sociais. O autor-filósofo vai analisar a figura do narrador
popular em oposição ao narrador do romance, no início do século XX.
Muitos, nestes momentos de transição de discurso, anunciaram a
chamada crise de leitura ou morte de livro. Em Benjamin, a morte do
44
narrador, se refere ao narrador popular. Chartie, no entanto, combate
esse posicionamento e afirma:
Contra toda a nostalgia de uma idade de ouro, real ou
imaginária, é preciso medir, analisar e entender o conjunto
destas práticas de leitura e destes textos que não são
precisamente o que se chama literatura. É preciso deixar
para trás a nostalgia (literária ou potica) e entender o fato
de que agora se mais do que antes, sem esquecer que a
produção de textos impressos é mais importante hoje do
que no começo do século XX (2001, p. 126).
Resta perceber de que maneira a ficção toma conta do
imaginário infantil no culo XXI
16
.
O senso comum, apressadamente e com propriedade, dirá que
pelos jogos eletrônicos a criança do século XXI supre a necessidade de
ficção. Sem dúvida, a fonte de ficção mais atrativa
17
para os meninos de
hoje o jogos interativos, porém, tal recurso ainda está longe dos muros
escolares e mesmo da preferência dos pais. Assim, ainda cabe ao livro,
como fonte legitimada, o momento de ficção nos espaços educacionais.
Uma hipótese para o aumento visível e sensível da imagem na arte
para crianças se deve a uma substituição de uma relação íntima, privada,
de outros tempos e outros ritmos, por uma coletiva e pública,
proporcionada pela imagem. É possível, hoje, desenhar-se a seguinte
cena nos lares: o menino folheia o livro no chão enquanto a mãe trabalha
à mesa e responde, em voz alta, às perguntas do filho sobre as figuras.
A questão do blico e do privado, atualmente, transforma-se,
uma vez que seus limites, nesta sociedade, são cada vez mais tênues.
O livro proporciona uma relação privada, individual, por vezes, repleta
de sentido, contudo, cada vez mais os espaços de socialização se
constroem inusitadamente.
16
consciência que para explorar esta afirmação seria necessário outra tese. Parece,
no entanto, pertinente citá-la como forma de contextualizão.
17
Se não atrativa, pelo menos, bastante consumida.
45
Por exemplo, no ambiente escolar, são feitos rodas e cantos de
leitura, e, muitas vezes, o aluno é convidado a partilhar essa atividade. O
papel da mediação de leitura é cada vez mais comum nas práticas
pedagógicas, na medida em que este recurso atende a uma demanda
social pela interação, por transformar uma relação privada em uma
pública, pois entende-se que da socialização nasce a aprendizagem o
sócio-interacionismo.
Outro exemplo bastante significativo dessa socialização da
expressão privada são as chamadas lan houses. Ali, os meninos
transformam um jogo individual em coletivo. Tal estratégia cai no gosto
dos garotos joysticks. Não raro, essas salas se tornam um mercado livre
com disputas, emoções e muita troca de sensações projetadas,
convencionalmente, para serem individualizadas. O jogo e a interação
entre os jogadores substituem os narradores de outrora, que ali eles
criam as suas narrativas, os seus momentos de ficção.
Eis, então, alguns exemplos de como a produção artística é
também conduzida pelas urgências sociais. Em contrapartida, não se pode
deixar de lado o universo à parte que crianças e adolescentes constroem
nos universos virtuais (salas de bate-papo, blogs, fotoblogs...). Privado e
público/ individual e coletivo são conceitos ainda mais estremecidos no
início do século XXI.
Este é o cenário em que se delineia a problemática do livro infantil
hoje e se pergunta: qual o seu espaço neste panorama? O livro, neste
contexto, atualiza-se?
1.4 A IMAGEM NO MERCADO EDITORIAL PARA CRIANÇAS: PERSPECTIVAS
Quando a imagem entrou no mercado editorial para crianças, sendo
reconhecida pelas instituições educacionais e legitimada pelo público-leitor,
surgiram inúmeras formas de inserção. A mais popular e aceita de imediato,
e que, por isso, nasce praticamente junto com a prodão literária para
46
crianças, é a ilustração. Palavra e imagem, neste caso, praticamente
constituem um discurso bivocal, a saber, ambos os sistemas contam a
história, cada um com suas especificidades (literárias ou plásticas).
Aos poucos, no entanto, quando a criança passou a ter amplo acesso
à imagem e, com isso, adquirir habilidades de decodificão muito eficientes,
palavra e imagem começaram a estabelecer relões mais intricadas.
Pesquisadores e artistas como Uri Shulevitz, Ellin Greene, Teresa
Colomer, Jane Doonan, Bárbara Kierfer, David Lewis, Leoni Lionni, Ls
Camargo, Ziraldo, Isabel Calado, Lúcia Pimentel Góes, entre outros, a
partir dos anos 1970, iniciaram a discussão sobre as diferentes formas de
inserção da imagem na produção literária dedicada à criança. A
experimentação começou como demonstram as imagens:
Figura
1.
5
Onde vivem os monstros?
47
Figura 1.7Agora não, Bernardo
As tipologias surgiram da ousadia dos artistas no que diz respeito à
forma de ilustrar, bem como a inovação de artistas plásticos que se
dedicaram à produção gráfica de livros para crianças. Este último
argumento pode ser sustentado pela listagem e pela justificativa que
Betsy Hearne faz em seu artigo “Libros-álbum perennes sembrados por la
tradicción oral”:
El hecho de que todos los libros de la lista se siguen
reimprimiendo y permanecen como modelos representativos
por períodos que van desde trece hasta noventa y siete años
(dependiendo de las fechas de su publicación), muestra que
son perdurables en una época en que muchos libros quedan
fuera de imprenta poco después de ser publicados. Se dice
que hay pruebas reales para determinar la perdurabilidad de
un libro: una, que los niños dejen de corretear o de
golpearse unos a otros por suficiente tiempo como para
escuchar la lectura, e otra, el número de veces que un
adulto puede releer el libro en voz alta sin quedarse dormido
o volverse loco [] (2005, p. 209).
Além da exposição bem humorada de Hearne, a autora vai
apontar uma qualidade dos livrolbuns que interessam bastante a este
estudo: Veintiséis de los treinta y cinco libros son ilustrados por el
autor, lo que quizás habla de la importancia de la unidad del arte y la
narracn” (2005, p. 209).
Figura 1.6O pequeno
azul e o pequeno amarelo
48
Vale apresentar, inicialmente, duas tipologias dos livros oferecidos
à criança e, em seguida, problematizá-las a partir da abordagem teórica
que este trabalho pretende seguir, a saber, a semiótica discursiva.
A primeira é de Teresa Colomer. A investigadora catalã se detém à
observação didática dos educadores e oferece as seguintes categorias: a)
os livros de imagem (diz que normalmente são livros para indicar e
nomear); b) os livros interativos (sobre estes, faz um percurso histórico e,
em seguida, subdivide-os: aqueles que oferecem histórias a partir da
sobreposição de folhas; aqueles em que um disco de papel gira para
contar a história; aqueles em que a narrativa se desenrola como uma
sanfona; aqueles que criam movimento e volume pop-up; aqueles que
empregam diferentes materiais para estimular os sentidos tato, audição
etc.; aqueles em que a criança deve desenhar ou passar um pincel
mágico, por exemplo; assim, os livros interativos são: plastificados, pop-
ups, sanfona, com lingüeta, por sobreposição, com vazados, por tiras
etc.); c) os livros informativos (que se dividem em de conceitos e de
conhecimento); d) os livros de histórias sem palavras; e) os livros-jogos
para maiores e, finalmente, f) os livros de histórias multimídias.
Em seguida, buscou-se uma pesquisadora brasileira, Lúcia Pimentel
Góes, que oferece a seguinte tipologia: livro-objeto (pano, madeira, para
acompanhar o banho); livro só com imagem em que a narrativa se constrói
a partir da decodificação da narrativa visual (leitura de imagem) e, por fim,
o diálogo palavra x imagem, em que a autora especifica: aquele em que
um sistema amplia o outro; aquele em que um sistema contradiz o outro; e
aquele em que se utiliza um contraponto lúdico, ou seja, em que um se
torna charada para o outro.
As tipologias expressas auxiliam a entender o que o mercado editorial
oferece ao público infantil, contudo resta investigar o que estes projetos
editorias dizem e como dizem, tendo em vista o receptor da obra, ou seja, a
qualidade de comunicação do texto – projeto gfico.
Cabe a esta pesquisa a pergunta sobre a eficiência na comunicação
desses projetos gráfico-literários oferecidos à criança. pertinência no
49
uso de técnicas, como grafismo, aquarela, óleo? O diálogo palavra x
imagem não rompe a seqüência narrativa? Os discursos introduzidos no
projeto comunicam-se com o público-leitor?
Neste momento, é importante definir como projeto gráfico é
entendido por este estudo, para isso, cita-se María José Sottomayor:
Percibí que el proyecto gráfico era otro lenguaje del libro.
Iba desde el gramaje del papel, el tipo y tamaño de letra
usada, la forma como el espacio para el texto jugaba con la
ilustración.... era otro lenguaje que iba también dialogando
con la palabra escrita y la imagen, permitiendo otras
lecturas de las obras. Estaba también el proyecto gráfico de
las tapas de los libros y la forma como interactaban el título
visual con el verbal, hacndolos más apelativos para que los
chicos se interesen en hojearlos (2005, p. 87).
Assim, para valorar o objeto-livro dado às crianças, é importante
adotar uma perspectiva teórica, em que se possa analisar o diálogo
palavra-imagem inserido no projeto gráfico. Este, em última instância,
também é constituído como discurso. Não vale analisar este sistema
semiótico sem ter em conta seu diálogo com a teoria da crítica literária, a
da recepção, as das artes plásticas e as das artes gráficas. Todavia,
sobretudo, propõe-se uma metodologia de análise em que tais teorias
dialoguem.
Marantz, em seu ensaio “Com estas luces”, alerta:
Según mi punto de vista, los libros-álbum deberían percibirse y
valorarse como una forma de arte visual y no como arte
literario. Insistir en estudiarlos como literatura, nos lleva a
apreciar las ilustraciones, en primera instancia, desde su
relación con el texto, más como simples asistentes que como
símbolos con personalidad propia. Si permanecemos sujetos al
texto, dejamos de sacar el máximo provecho a las
propriedades visuales, que Comenius
18
identifi como
generadoras de nuestro deleite (2005, p. 15).
18
Autor citado anteriormente.
50
E, ainda, a partir dessa perspectiva, lança a sua tipologia:
Por lo tanto, es fundamental estar muy claros acerca de qué
es un libro-álbum. Para diferenciarlo de otros objetos
similares, podría ser útil imaginarmos una línea que en uno
de sus extremos tiene una novela típica, es decir, un libro
cuyas páginas están exclusivamente llenas de palabras
impresas. Al otro extremo de esta línea imaginaria, hay un
libro totalmente carente de texto, uno que trasmite su
mensaje (generalmente un cuento) utilizando sólo imágenes.
En el medio de la línea, hay volúmenes que tienen una sola
ilustración (en la portada), algunos que emplean viñetas a
principio o al final de cada capítulo, otros que tienen
imágenes ocasionales a página completa que realzan eventos
particulares o delinean personajes presentes en la narrativa y
unos pocos que insertan una variedad de ilustraciones y tener
todavía una obra literaria coherente y completamente
satisfactoria (2005, p. 17).
O que Marantz propõe em sua tipologia é uma gradação da relação
palavra-imagem, em que os extremos seriam o livro sem imagem, de um
lado, e o sem palavra, de outro.
Sobre isso, em dissertação de mestrado, Cortez (2001) ensaia uma
tipologia que se seguiria da separação total entre as linguagens até a
integração total entre elas, na última situação ocorreria no livro-álbum.
A imagem tem papel fundamental no projeto gráfico dos livros
infantis, por isso, não pode ser rejeitada ou inferiorizada seja pela crítica
ou pelos educadores. Muitas vezes, ela tem uma função determinante no
projeto gráfico. Vale, então, observar o questionamento de Ricardo
Azevedo sobre aquelas ilustrações que são tomadas fora do objeto-livro
não podendo, portanto, ser avaliadas:
Exposições de grande tradição como a “Bienal de Ilustração
de Bratislava” ou a “Exposição da Feira de Bolonha
costumam expor e premiar ilustrações sem tocar na questão
do texto. Observamos lindos desenhos, mas não
conhecemos os textos ilustrados. Como saber, então, se
essas ilustrações são boas ou não? Como saber como
dialogam, se é que dialogam, com o significado do
texto? Como saber se acrescentam, ou não, significado
51
ao texto? Como saber, em que pese serem
tecnicamente bem realizadas, se são óbvias ou não?
Como saber a forma com que se relacionam com a
mancha do texto dentro da página? Como saber como
tal e tal situação, fundamental na estrutura do texto,
foi resolvida?
19
Na minha visão, se essas exposições o super
interessantes no sentido de mostrar originais, apontar
novas cnicas etc, são, por outro lado, incapazes de
distinguir boas es ilustrações.
Um desenho simples, feito com poucos traços, sem maiores
pretensões cnicas pode ser, sempre a meu ver,
infinitamente melhor ilustração do que um desenho
rebuscado, construído a partir de uma técnica
requintadíssima, mas que em relação ao texto só consegue
ser redundante.
Nada contra, evidentemente, que ilustrações sejam expostas
como pinturas. Esquecer, porém, as diferenças essenciais
entre os dois gêneros me parece um tremendo equívoco.
Pinturas não têm textos como referência, não foram feitas
para serem impressas e nem para ocuparem, antes de
qualquer coisa, páginas dentro de um livro (Disponível em:
<www.ricardoazevedo.com.br>. Acesso em: 17 jun. 2008).
Define-se, pois, o olhar deste trabalho para o projeto gráfico que alia
palavra e imagem em suas diferentes gradações, para isso, será necessário
abordar os sistemas semióticos (palavra, imagem e projeto gráfico) como o
mesmo instrumental metodológico, a saber, a teoria semiótica de linha
francesa, tal qual apontado no capítulo introdutório desta tese.
A imagem é entendida, neste trabalho, como definida pelo Dicionário
de Semiótica elaborado por Greimas e seus colaboradores. Ali, o verbete
imagem apresenta a seguinte aceão:
Em semiótica visual, a imagem é considerada como uma
unidade de manifestação auto-suficiente, como um todo de
significação, capaz de ser submetido à análise. A partir
dessa constatação geral, duas atitudes distintas se
destacam. Enquanto a semiologia da imagem, que se refere
à teoria da comunicação, a considera geralmente como uma
mensagem constituída de signos icônicos, para a semiótica
planar a imagem é sobretudo um texto-ocorrência
(comparável, apesar da especificidade bidimensional de seu
19
Grifo nosso. Destaca-se tal passagem haja vista que esta é a problemática investigada
por este estudo.
52
significante, aos de outras semióticas) que a análise pode
explicar construindo-o como um objeto semiótico. Da
mesma forma, enquanto para a semiologia da imagem a
iconicidade dos signos faz parte da própria definição de
imagem, a semiótica planar considera a iconicidade como
um efeito de conotação veridictória, relativa a uma
determinada cultura, que julga certos signos mais reais”
que outros, e que conduz, em certas condições, o produtor
da imagem a se submeter às regras de construção de um
faz de conta’ cultural (1989, p. 276).
Assim, como revelado anteriormente, a imagem será tratada como
texto passível de análise tanto do plano da expressão quanto do conteúdo,
com relações internas e externas ao texto, mas, como uma “manifestação
auto-suficiente”, poderá ser questionada, pois, em alguns casos, o sentido
se constrói somente na relação com a palavra, e este é o objeto de
interesse desta tese. Em Semiótica, quando dois sistemas são acionados
para compor um único discurso, diz-se objeto sincrético:
Mais recentemente, o estudo de diversos tipos de
manifestações semióticas ditas sincréticas, isto é, que
associam, por exemplo, como na publicidade, o texto e a
imagem, permitiu apontar a existência de correspondências
formais mais complexas que agem não entre um plano e
outro de uma mesma linguagem, mas também entre planos
respectivos de duas linguagens simultaneamente em ação
no caso, entre a organização do significante visual do
anúncio publicitário e a organização dos significados
assumidos na dimensão linística (1992, p. 147).
O que é válido pensar no livro para crianças ultrapassa as definições,
já abordadas à exaustão, de texto e imagem; é importante investigar como
se relacionam e se integram as linguagens no livro; essas expressões
constituem um todo de sentido ou o? Esta integração é efetiva e eficiente
na comunicão com o público e como objeto artístico? E, finalmente, o
projeto gráfico contribui para essa interação ou fragmenta as linguagens? O
projeto gráfico contribui para a formação de um leitor literário?
Tomando essas questões, restam as análises e descobertas.
53
2 VIAGEM CERCADA POR CONTRADIÇÕES: O CONTEXTO
PORTUGUÊS
A viagem não começa quando se percorrem distâncias, mas
quando se atravessam as nossas fronteiras interiores. A viagem
acontece quando acordamos fora do corpo, longe do último lugar
onde podemos ter casa
(Mia Couto)
Viajar é descobrir o alheio. A viagem pode ser real ou metafórica.
Pode ser um deslocamento físico ou uma viagem pelas linhas negras no
papel branco.
Na literatura, a viagem parece ser a metáfora mais
freqüente e diferenciada. Aí ela adquire muitos significados e
muitas conotações. Talvez todas naam de uma viagem
primordial e emblemática, mas são muitas as que se
realizam e sonham ao longo das narrativas, das poéticas que
constituem a literatura universal (IANNI, 2003, p. 28).
Viajar para investigar, no entanto, exige um olhar diferente, mas,
muitas vezes, cercado por sensações emocionais obrigatoriamente
deixadas de lado. Exige um olhar distanciado, objetivado; contudo, o
corpo pulsa e, muitas vezes, trai a racionalidade e se deixa sentir. A pele,
os olhos, o nariz, os ouvidos se movem como radares para descobrir o
que há e como eles reagem diante do novo.
Um estrangeiro é como uma criança, declarou. Chegar a um
sítio desconhecido é começar do início, aprender as palavras,
ver como os outros se mexem, tropeçar. Assim a cidade
revela-se despida e impoluta, pronta para ser descoberta
(SUARÉZ, 2005, p. 135).
Há, no entanto, que se fazer pesquisador, guardar as veias
sensíveis e percorrer o território alheio de maneira atenta e apurada
54
tudo e todos significam. Seria ingenuidade não ressaltar que sempre será
um olhar com lentes estrangeiras.
É certo, ainda, que a viagem segue etapas. Talvez a primeira seja
a preparação. Tanto o corpo como, sobretudo, a cabeça buscam imaginar
o que será esse lugar. Um guia, leituras, vídeos, histórias de outrem
ajudam a compor uma imagem sobre o desconhecido.
O espaço a ser desvendado neste caso, porém, não é totalmente
desconhecido ou enigmático. Difícil seria, nos tempos globalizados, uma
viagem como foram outrora as descobertas do Novo Mundo”, descritas
com assombramento pelos viajantes do século XVI. Atualmente, as
imagens que tomam as telas de cinema, as telas menores da televisão e
as telas ainda menores dos computadores, todas elas, sem exceção,
veiculam as imagens do exterior e neutralizam a sensação de total
desconhecimento ou de êxtase da investigação in loco.
Para além das redes globalizadas, o espaço que interessa é
também contemplado nos livros escolares, pois a ligação entre o próprio e
o alheio é, praticamente, genética. Fala-se, portanto, de Portugal e do
Brasil metrópole e colônia em outros tempos. Sendo Brasil o que é
próprio e Portugal o que é quase” alheio. A modalização com o “quase”
reflete a História. Portugal é, para o Brasil, um país distante
geograficamente, que existe na memória, que pertence à História.
O brasileiro tem pouca proximidade com a imagem da terra
lusitana. Talvez, como defesa ou negação do discurso do colonizador. A
imagem, grosso modo, que se tem de Portugal é veiculada em rodinhas
de piadas e anedotas contadas em praças e botequins. Assim, nem o
ambiente, nem, muito menos, o conteúdo revelam a imagem efetiva do
Portugal contemporâneo. Outra fonte de aproximação com a identidade
portuguesa talvez seja a Literatura/Hisria que se estuda nos bancos
escolares. Ali, chega-se até o início do século XX. Talvez pela pena de Eça
de Queiroz e Camilo Castelo Branco se desenhe uma idéia da terra de
Camões no século XIX. Outro caminho, sem vida, é a aproximação da
imagem portuguesa à imagem da Europa. Em oposição às piadas e aos
55
contradiscursos, a imagem que se forma da pátria colonizadora é
justamente a imagem da potência conquistadora, que pertence a um
continente desenvolvido, protagonista dos principais acontecimentos do
mundo político e cultural.
Uma possibilidade real é o brasileiro caminhar pelas ruas lusitanas
perguntando-se onde estão as riquezas trazidas das colônias, não do
Brasil, mas das conquistadas pela dominação das terras africanas,
asiáticas e indianas. Poder-se-ia imaginar um país repleto de riquezas e
trocas étnicas. Apesar do cosmopolitismo de Lisboa, os intercâmbios
culturais estão restritos à capital; nos demais sítios, verifica-se uma
cultura voltada para sua própria origem, até mesmo a cultuada mescla
racial, teorizada por Gilberto Freyre
20
, se faz presente no território
alheio, no território dominado, seja no Brasil como postulado, seja em
Cabo Verde ou outro recanto colonizado.
A realidade portuguesa destoa, hoje, do mito de potência
colonizadora cantado nos versos e nas prosas dos homens das letras.
Vagar pelas margens do Tejo, do Douro, do Corgo revela um misto de
ambientes, e, por vezes, vislumbram-se imagens paradoxalmente
oníricas. A História está presente na arquitetura. traços de tradição na
culinária e nos hábitos. Presencia-se certo déjà-vu nas senhoras com
saias, meias grossas, chinelo, lenço na cabeça e conversas entre vizinhas
na janela. Estabelece-se, contudo, a contradição entre acesso sem fio à
internet em qualquer sítio (shoppings, cafés, rodoviárias etc.) e casas com
cata-vento e horta, em clara produção para a subsistência, edifícios
colossais e feiras de trocas que remetem ao cenário latino-americano.
Este retrato de contradição é definido por Boaventura Souza
Santos como uma posição intermediária ocupada por Portugal:
[...] Portugal é uma sociedade de desenvolvimento
intermediário, uma sociedade que, não pertencendo nem ao
Primeiro Mundo nem ao Terceiro, tem características de
20
FREYRE, G. (1980). Casa-grande e senzala. Rio de Janeiro e Brasília: Livraria José
Olympio. A primeira edição da obra é de 1933.
56
ambos. Esta posição intermediária ou semiperiférica é, por
assim dizer, estrutural, isto é, dura muito tempo [...] Ao
contrário do que pode parecer à primeira vista esta
duplicidade não ocorre apenas na economia; ocorre em
todos os domínios da vida social, política e cultural
(SANTOS, 2001, p. 83).
Talvez essa posição se justifique por estar e não estar em território
próprio. Durante muito tempo, Portugal investiu em sua expansão
territorial e se esqueceu de seu próprio território. Não raro, ainda hoje,
escuta-se do português que seu país é pequeno e essa seria a causa de
sua pouca projeção no cenário político, econômico e cultural. Ora,
administrar um pequeno território, de certa maneira, pode ser mais
simples, pois se tem tudo à mão e as demandas o reduzidas. Habita,
contudo, o sentimento português um desejo de expansão e é perceptível o
pesar da pequenez:
[...] a de esconder de nós mesmos a nossa autêntica
situação de ser hisrico em estado de intrínseca fragilidade.
Não fomos, nós somos uma pequena nação que desde a
hora do nascimento se recusou a sê-lo sem jamais se poder
convencer que transformara em grande nação (LOURENÇO,
2005, p. 25).
Dominar território alheio não assegura, é sabido, a propriedade. É
natural a todos os povos o sentimento de pertença. Com movimentos
mais imediatos ou mais cautelosos, os naturais da região vão sempre
reclamar a sua condição de donos da terra. Os dominadores, cedo ou
tarde, serão “convidados” a deixar a terra alheia e a recusa ao “convite”
gera guerras de independência.
Pois nem o colonialista nem o colonizado se comportam
como se o sujeito e o objecto pudessem vir a ser conciliados.
O primeiro saqueia e pilha; o último sonha com a vingança.
Quando os nativos se revoltam numa insurreição violenta,
não se trata de “uma confrontação racional de pontos de
vista. Não se trata de um discurso sobre o universal, mas da
57
afirmação impetuosa de uma originalidade colocada como
absoluto (SAID apud SANCHES, 2005, p. 41).
A História apresenta sempre como vitoriosos os nativos do
território; com isso, o movimento de abandono da terra conquistada
requer gastos e desgastes econômicos, sociais e espirituais, considerando-
se a estima. Isso pode explicar a atual condição portuguesa no cenário
mundial e seu perceptível atraso em relação aos países da União Européia.
O 25 de abril de 1974 rompe a ligação de Portugal com os
territórios invadidos. Por pressões externas, é dada a Portugal a tarefa de
voltar-se a si.
Chegou a hora de fugir para dentro de casa, de nos
barricarmos dentro dela, de construir com constância o ps
habitável de todos, sem esperar de um eterno lá-fora ou -
longe a solução que, como no alogo célebre, está
enterrada no nosso exíguo quintal. Não estamos sós no
mundo, nunca o estivemos. As nossas possibilidades
econômicas são modestas, como modesto é o nosso lugar no
concerto dos povos. Mas ninguém pode viver por nós a
dificuldade e o esfoo de uma promoção colectiva do
máximo daquilo que adentro dessa modéstia somos capazes
[...] (LOURENÇO, 2005, p. 52).
Destituído de colônias, o país teve de fazer um percurso solo, teve
de retornar a casa. De um Estado autoritário e ditatorial, passou-se à
democracia. Transformações radicais em restrito tempo histórico. Agrega-
se a essa situação a nova ordem mundial. A queda de muros e de regimes
implicou a formação do bloco da União Européia, e isso impôs aos lusitanos
mais uma contradição. Enquanto, de um lado, destaca-se do português a
qualidade de europeu, do outro, escancara-se a ferida da inferioridade. Se
o parâmetro é o mundo, Portugal é Europa. Se o padrão é europeu, a
realidade lusa está aquém das exigências, e há que se correr atrás.
Recorrendo a uma expressão brasileira, podemos dizer que a
sociedade portuguesa está a cair no real. Emergindo
dolorosamente de uma promessa fraudulenta de sucesso
58
fácil que nos prometeu um desenvolvimento igual ao dos
países desenvolvidos da Europa e nos deixou
vertiginosamente perto donde estávamos, a sociedade
portuguesa vai aprendendo a conviver com a situação de
estar muito mais integrada nos problemas da Europa do que
nas soluções da Europa. O desemprego, a exclusão social, o
racismo, a corrupção política, a insegurança batem-nos à
porta uma porta, afinal, escancarada, e sentam-se à mesa
das nossas preocupações sem qualquer cerimônia (SANTOS,
2001, p. 167).
Os índices serão generosos se forem tomados os investimentos da
comunidade européia para elevar o país às exigências do bloco
21
; os
índices serão cruéis se a estima do português for considerada. Assim,
pequeno e contraditório, o país se apresenta.
É com visada a este contexto sociopolítico, brevemente esboçado,
que a pesquisa sobre a literatura infantil se constrói. Nesse panorama,
produção literária para crianças, resta voltar os olhos para o ambiente que
se projeta.
Entre um período autoritário e a chamada crise da leitura
22
,
delineiam-se o cenário da literatura infantil portuguesa e a tentativa de
inserção do sistema visual nessa complexa expressão ofertada à criança.
Os livros infantis como discurso refletem essa situação.
2.1 OS LIVROLBUNS PARA CRIANÇAS EM PORTUGAL: DESTRAVANDO
BATALHAS
Em busca de compreender o fenômeno do livro-álbum em Portugal,
chama-se à reflexão um pesquisador deste país, Gomes (2004), que
21
Vale lembrar que do metrô da cidade do Porto à construção e planejamento de
bibliotecas, Portugal fez uso dos recursos da União Européia.
22
Pontua-se que no capítulo 1, pelas palavras de Chartie a crise de leitura” foi
contextualizada.
59
justifica a auncia do chamado picture story book ou álbum narrativo
23
no cenário português:
As dificuldades na publicação de álbuns prendiam-se, então,
com os elevados custos de produção, os quais tinham
repercussões no preço de venda ao blico. Uma vez no
mercado, o álbum defrontava-se com diversos problemas, o
menor dos quais o era a escassa utilização do livro na
educação pré-escolar e no 1º. Ciclo do Ensino Básico.
Outro obstáculo à proliferação deste tipo de obras residia na
quase inexistência, em Portugal, de autores com a
dupla vocação da escrita e da ilustração (situação que
de algum modo perdura). Acrescia que raramente haviam
surgido equipas, compostas por um argumentista/ escritor e
por um ilustrador/designer gráfico, capazes de conceber um
produto de nível globalmente satisfatório, em termos de
articulação texto/imagem (GOMES, 2004, p. 17-18)
24
.
São três, portanto, os motivos enumerados por Gomes (2004) para
a raridade da expressão do livro-álbum em Portugal, a saber: o
econômico, o pedagógico e o humano-profissional.
A questão imediata é sempre de ordem financeira, seja em
Portugal ou em qualquer outro lugar. Atribuído às editoras, o discurso se
impõe: elevados custos em função da qualidade e variedade do material
gráfico utilizado.
É, como se observa, uma constante a qualidade gráfica dos livros
dedicados à infância em Portugal. Abaixo, demonstra-se a afirmação com
ilustrações de uma edição comemorativa, em que os principais
ilustradores portugueses e também de outras nacionalidades, como
franceses e ingleses, são convidados a representar visualmente o conto
Ervilha para as verdadeiras princesas, de Hans Christian Andersen. Tem-
se, então, uma pequena amostragem da qualidade do livro português, no
que diz respeito à gramatura do papel, qualidade de impressão,
23
Gomes (2003), a partir de autores como Michaels e Walsh, define álbum narrativo ou
picture story books como aqueles em que palavra e imagem estruturam em conjunto
a significação. Pode ser um autor em parceria com o ilustrador ou um artista que
manipula as duas linguagens. A definição desse gênero é fundamental ao trabalho,
como apresentado no catulo 1.
24
Grifos nossos.
60
diversidade de técnicas empregadas (colagem, pastel, xilogravura...),
além de os livros sempre se apresentarem em capa dura, uma constante
no livro para crianças na Europa.
Figura 2.1André Letria Figura 2.2João Caetano
Figura 2.3Gêmeo Luís Figura 2.4Marta Torrão
Os livros dados às criaas têm capa dura, encadernação primorosa e
acentuado cuidado plástico com as imagens. Por vezes, o leitor se encontra
diante de um verdadeiro quadro com recursos como colagens, óleos,
aquarelas de tal qualidade que é transportado para uma galeria de arte.
Isso, evidentemente, custa, requer altos investimentos com a prodão, seja
para pagar o material, seja ao próprio artista e seus materiais.
A impressão gráfica com essa exigência deve ser fiel ao conceito do
design gráfico da editora. Vale acompanhar e refletir acerca da
61
ponderação do pesquisador alemão Jan Tschichold, em 1975, sobre o
artista gráfico de livros e questionar se tal definição se estende ao projeto
gráfico do livro para crianças, visto que o pesquisador alemão trata da
produção de livros em geral:
O trabalho de um designer de livro difere essencialmente do
de um artista gráfico. Este está buscando constantemente
novos meios de expressão, levado ao extremo pelo desejo
de ter um “estilo pessoal”. Um designer de livro deve ser um
servidor leal e fiel à palavra impressa. É sua tarefa criar um
modo de apresentação cuja forma não ofusque o conteúdo e
nem seja indulgente com ele. O trabalho do artista gráfico
deve corresponder às necessidades da época e, a não ser
em coleções, raras vezes tem vida longa ao contrário de
um livro, que, presume-se, deve durar. O objetivo do artista
gráfico é a auto-expressão, ao passo que o designer de livro
responsável, consciente de sua obrigação, despoja-se desta
ambição (2007, p. 31).
O autor de dupla vocação, ou mesmo o projeto gráfico do livro
infantil, difere da definição e exigência de Tschichold, pois se trata de
transformar o livro em um objeto em que os sistemas sejam organizados
de maneira a convocar o leitor-criança para a leitura, então, é possível
que o destinatário criança exija um objeto que acione tanto as vias
sensíveis, quanto inteligíveis; além disso, torna-se “lugar-comum” que a
criança obrigue a originalidade, pois, caso contrário, será um livro a mais
nas prateleiras deste ambiente consumista, criado por livrarias e
incentivado pelo mercado editorial.
Com isso, as nuances de cores, a gramagem do papel, o tamanho
da folha fora da padronização, que podem determinar a chamada
originalidade, geram custos elevados. Ao analisar a produção portuguesa
para crianças a partir da década de 1980, salta aos sentidos a opção pela
qualidade gráfico-artística.
Talvez esse fenômeno possa ser compreendido à luz de uma visada
social dada por Saraiva (1981), quando o pesquisador define a
“Personalidade cultural portuguesa”:
62
Para o camponês o dinheiro incorpora-se na terra e fica
imobilizado, produzindo uma renda que traz a segurança e o
bem-estar material ou ainda uma sobra para comprar mais
terra; e este espírito encontra-se também nos emigrantes
repatriados. Por outras palavras, o dinheiro tem uma
finalidade concreta, o que é uma concepção pré-capitalista.
Quanto ao citadino, que atingiu um certo vel entre nós, o
dinheiro serve para comprar conforto, divertimentos e uma
certa ostentão que inclui a liberalidade (1981, p. 100-101).
Para o homem português das cidades, como hitese, no caso em
exposição, a apresentação, a qualidade material do objeto livro é
fundamental no momento de adquiri-lo. Tendo, obviamente, o homem
português como consumidor, as editoras desse país primam por fazer do
livro um objeto de “luxo” a ser exibido nas prateleiras, visto que este revela
o poder de consumo. Torna-se, assim, o livro para crianças um produto
caro, por vezes até inacessível ao português de classes baixas e médias.
Em momento algum, tal opção é passível de crítica; pelo contrário,
a opção por destacar a qualidade plástica dos objetos faz enriquecer o
repertório do leitor, mas, como tudo, gera conseqüências que precisam
ser pensadas e ponderadas, tendo em vista os objetivos de incentivo à
leitura no país. Assim:
Em regra, e considerando o formato, as dimensões são
superiores às de um romance, de uma coletânea de contos
ou de um livro de poesia para adultos; a capa em geral é
dura; o papel, por sua vez, tem uma gramagem elevada e é
de boa qualidade [...] reduzido mero de páginas e pelo
facto de, profusamente ilustradas, serem estas quase
sempre impressas em policromia (GOMES, 2003, p. 3).
Todos esses elementos destacados pelo pesquisador implicam o
alto custo da produção gráfica, como demonstrado, destinada às
crianças em Portugal. Isso se torna, portanto, um obstáculo para que o
63
livro-álbum ganhe projeção no país, ficando, assim, circunscrito a um
público determinado pelo poder aquisitivo.
Outra hipótese aventada é o fenômeno da influência da produção
inglesa na Península Ibérica. Na Inglaterra, os álbuns apresentam as
mesmas características gráfico-plásticas encontradas em Portugal; como
apontado, a Europa, de maneira geral, adota essa perspectiva,
instituindo o livro como um objeto de oferta”, isto é, pais, tios, padrinhos
oferecem livros aos meninos em datas comemorativas. Hábito
extremamente salutar. Vale, contudo, tomar o padrão financeirodio de
um inglês e o mesmo padrão de homem português ou espanhol e verificar
se essa opção mercadológica é valida como incentivo à leitura ou se, em
contrapartida, limita o acesso à leitura.
A justificativa de ordem pedagógica também vem à tona na
reflexão de Gomes e deve ser pensada com cuidado, na medida em que é
possível ser o livro para crianças uma ponte para a leitura canonizada,
visto que é proposta da literatura infantil formar o leitor literário. É
plausível pensar na passagem da imagem para a palavra como um
processo de aquisição de leitura. Seria uma passagem da imagem própria
ao aprendiz não-alfabetizado para a palavra, quando o sujeito adquirisse a
competência leitora
25
.
O livro como objeto a ser manipulado estaria ali para que a criança
com ele se familiarizasse, sentisse o prazer da descoberta, (ou por ele)
aprendesse a relacionar-se com o mundo de outra forma, ampliando sua
vivência e seu repertório
26
.
A escola deve preocupar-se com o livro em cada uma de suas
etapas de escolarização, não apenas como algo que desenvolve o intelecto,
mas também como um objeto artístico que se dá à contemplação:
25
A obra brasileira O menino quadradinho, de Ziraldo, ilustra bem esta passagem das
histórias em quadrinhos ao livro.
26
Essa é uma perspectiva a ser pensada tanto em Portugal como no Brasil; no catulo
final desta tese, tal problemática será devidamente tratada.
64
El libro infantil ilustrado es un camino hacia la apreciación de
las artes visuales. Es un medio excelente para abonar la
sensibilidad del niño, para abrir sus sentidos a modos
diferentes de representar que trasciendan lo figurativo, lo
explícito y lo obvio. Es una vía idónea para familiarizarlo con
propuestas que sorteen el peligro del estereotipo, del clisé
(ANDRICAÌN, 2001, p. 4).
Para atingir esse objetivo, professores e bibliotecários devem ser
formados para a leitura dos livros infantis de maneira a dar conta das
qualidades estéticas do objeto
27
.
Tal necessidade não é, todavia, de total e única responsabilidade
da escola, toda a sociedade deve ser envolvida na tarefa da leitura. É um
confluir de ações que conduzem o leitor à leitura; isso não se fará por
decreto ou com vara de condão, pelo contrário, é um processo e deve
estar sempre em pauta.
O livro de imagem ou livro-álbum aproxima o leitor de um universo
que também lhe é permitido. Se o livro-objeto pertence apenas a espaços
proibidos, - como altas prateleiras da casa, organizadas e protegidas;
estantes de bibliotecas impedidas para as crianças e mãos
superprotetoras dos adultos -, a mensagem é de que aquilo não lhe
pertence, não lhe é próprio e, portanto, deve-se manter à distância.
Já se o livro lhe é acessível, em forma e em conteúdo, como objeto
manipulável e repleto de desencadeadores de sensações das mais
prazerosas, ou mesmo das aterrorizantes, ele será sempre sentido” como
algo a ser explorado e sempre ao seu lado na vida. O corpo anseia por
experiências sensíveis. Por isso, o parque de diversões é um “campeão de
audiência”, assim como os jogos eletrônicos, porque proporcionam ao
corpo distintas sensações.
O livro tem possibilidade de ser um parque de diversões dos
sentidos, resta ser bem trabalhado pelo mediador. Eis algumas obras-
27
Em Portugal, o Instituto Português do Livro oferece cursos de formação aos
professores e bibliotecários, como foi possível constatar durante o estágio de
investigação neste país.
65
imagens que saltam aos olhos e clamam por relações com as artes
plásticas – do surrealismo de Magritte a Pop Art de Warhol.
Figura 2.5Antony Browe
Voltando, no entanto, aos motivos enumerados por Gomes, o
último revela a preocupação com a formação de recursos pessoais. A
dupla vocação (escritor e ilustrador) existe se for estimulada, como
toda a produção. Em Portugal, não se percebe tal fenômeno evidente, por
isso, como aponta Gomes, constituiu-se como uma prática pouco habitual.
A ausência de incentivo, por parte de editores, livreiros ou leitores, pode
ser uma hipótese tanto para raridade de artistas com a dupla vocação
como para a inexistência de equipes de trabalho
28
.
A argumentação de Gomes tece reflexões encerradas no próprio
contexto português, acerca da relação palavra-imagem. Compreender a
raridade do fenômeno conjunto autor-ilustrador pode revelar outra forma
de apropriação, ou mesmo de ação da literatura infantil. Por meio dessas
constatações, assim começa-se a conhecer a literatura infantil portuguesa,
a saber, como hipótese: uma literatura para crianças em que não há
integração palavra-imagem no projeto gráfico.
28
Vale ressaltar que o cenário no Brasil é outro, e essa comparação será tratada no
capítulo final deste estudo.
66
Manuela Bacelar, contudo, desponta como autora exceção no
cenário português, pois se aventura pela dupla vocação, além de ser
ilustradora de outros autores. Por ser um exemplo de ruptura na produção
destinada à criança em Portugal, torna-se fundamental neste trabalho,
porque, justamente, nega (ou negaria) a hipótese formulada.
A ousadia da autora, como ela própria afirma, deriva de sua
formação fora do território português e, portanto, fora do cenário
esboçado anteriormente:
Tenho uma formação além-fronteiras, que desde muito
pequena tive livros para crianças. Meu pai era advogado,
mas simultaneamente crítico literário, minha mãe era uma
mulher muito ligada às artes, não como praticante, mas
como apreciadora das artes, e, portanto, eu fui rodeada por
livros. Desde miúda, habituei-me a ver que os livros para
crianças muito pequenas tinham só um autor, era o autor do
texto, o autor da ilustração, e ainda hoje é assim. De uma
maneira geral, os livros ingleses, os livros franceses, os
livros etc, etc... Em 80%, 70% o autor e o ilustrador são um
só. Para crianças de idade menor, de 4, 5 anos. Portanto, eu
sou autora de livros infantis, e normalmente um autor de
livros infantis faz as duas coisas (BACELAR, M. Entrevista
concedida a Mariana Cortez. Porto, 18 abr. 2006).
Gomes (2003) também destaca Bacelar no cenário de literatura
infantil portuguesa e reafirma a formação além-fronteiras da artista, como
justificativa para a sua excepcionalidade: “Familiarizada com o panorama
da edição internacional, capaz de reunir os dois requisitos em causa, é
natural que tenha sido a mais experiente das ilustradoras portuguesas
uma das primeiras a abalançar-se ao projeto de conceber este tipo de
obras” (GOMES, 2003, p. 18).
Na esteira desses argumentos, cumpre lançar os olhos à maneira
de fazer da artista. Como a formação além-fronteiras contribui para sua
singular produção? E, ainda, é válido perguntar se, no seu desbravar,
outros a seguiram ou se, de fato, tal fenômeno não é fértil e não pertence
ao espaço cultural português.
67
Abrem-se, pois, as portas da aventura disposta em livro-objeto,
destinado ao tatear, ao apalpar dos mais miúdos no contexto lusitano.
2.2 A OBRA DE MANUELA BACELAR: DESBRAVANDO ESPAÇOS
É prática comum na literatura infantil, em qualquer lugar do
mundo, a imagem acompanhar o texto. Portugal não foge à regra, como
foi apresentado anteriormente. A produção de álbuns com autores de
dupla vocação como ponderado, no entanto, é uma prática mais rara
nesse país. Manuela Bacelar é pioneira nesta expressão, se não a
primeira
29
, com certeza aquela que mantém regularidade em sua
produção no final do culo XX e início do século XXI. Isso justifica a
presença da autora na discussão que ora se propõe, além, é evidente, da
qualidade de sua produção e de ser uma artista plástica por formação
30
.
Em 1990, destacam-se de sua autoria O dinossauro e O meu avô
(ambos pertencem à coleção O Triciclo Voador), como bem aponta Gomes
(1991) num balanço da produção para criança no início dos anos 90:
Num panorama editorial no qual escasseiam os álbuns de
pequenas histórias para crianças dos quatro aos seis anos, é
sempre de saudar o lançamento de obras originais de
autores portugueses, como as de Manuela Bacelar editadas
em 1990 (p. 69).
O crítico denomina álbum os livros em que palavra e imagem
formam um todo de sentido. Não há sentido na leitura de apenas uma
linguagem, ou seja, uma linguagem depende da outra, como foi definido
no início deste trabalho de tese
31
.
29
Segundo Natércia Rocha, Maria Keil se destaca, em Portugal, como autora de textos e
imagens: “Maria Keil [...] atinge uma carreira notável que abrange outras modalidades
[...] com desenhos e textos seus, publicou três títulos” (2001, p. 163).
30
A definição do gênero em questão foi abordada no catulo 1.
31
Estes são os critérios apresentados na seleção do corpus desta pesquisa.
68
Em seguida, houve a publicação da coleção Tobias
32
(de 1989 a
1992), pela editora Porto, hoje esgotada. Finalmente, Bacelar publica, em
2004, Sebastião e, em 2005, Bernardino, ambas pela Edições
Afrontamento. Outras publicações da autora existem em edições
educacionais ou governamentais de menor tiragem e distribuição.
Paralelamente a esse trabalho como autora-ilustradora, mantém-se,
regular, sua produção apenas como ilustradora.
Em face da relevante produção no mercado editorial português,
valida-se o estudo da obra de Manuela Bacelar como um fenômeno
importante em seu país
33
, no que tange tanto à dupla vocação quanto à
autoria de imagens.
Sobre a obra de Manuela Bacelar, três questões abrem
perspectivas para a discussão sobre a relação palavra-imagem
encadeadas pelo projeto gráfico no livro infantil português, segue o
detalhamento da abordagem pretendida.
A autora assume, em sua produção, três distintos modos de
presença
34
. Mesmo descartando, como ensina a Semiótica, a figura do
autor de “carne e osso”, a maneira de fazer do enunciador se distingue
em cada modo de presença, independentemente de haver duas ou uma
pessoa executando o texto. O projeto gráfico será tomado, então, para a
demonstrar tal questão. Não é fácil essa tarefa, mas assegura-se o
32
Composta por Este é o Tobias (1989), Tobias e o leão (1990), Tobias, os sete anões e
etc, Tobias encontra Leonardo (1991); Tobias do lado de lá do arco-íris (1992),
Tobias, “o que eu passei para chegar até aqui(1992). Esta é a coleção que autora
mais prazer obteve, pois se sentiu livre para produzir (BACELAR, M. Entrevista
concedida a Mariana Cortez. Porto, 18 abr. 2006).
33
Manuela Bacelar é também reconhecida no cenário internacional da ilustração, e isso
pode ser comprovado por meio dos prêmios recebidos: “Maçã de Ouro Bratislava
1989”, “Prémio Octogones” França 1992, Prémio Paolo Vergerio da Universidade
de Pádua” – Itália – 1993, entre outros.
34
O termo modos de presença é empregado em referência à semiótica do sensível
apresentada pelo pesquisador Eric Ladowski, em Presenças do outro, quando assume
a seguinte perspectiva: “De fato, a semiótica não sendo para nós uma doutrina, mas
uma prática, tentamos praticá-la: falá-la (a palavra de ordem esno aprendizado de
segundas nguas) mais que falar dela. Pois bem, como todas as outras linguagens,
não só ela está por natureza em devir, mas, sobretudo, deve permitir falar de outras
coisa que não dela mesma: de textos:objetos, é claro, e de seus contextos,
evidentemente, mas também das práticas reais nas quais estamos diariamente
envolvidos. Por exemplo, dessa prática semiótica em situação, que é precisamente a
produção da presença do outro, como tendo sentido (2002, p. XIII – XIV).
69
desafio. Os diferentes sistemas, as diferentes linguagens e, sobretudo, a
articulação entre as expressões deixam ao analista frestas, para que um
olhar atento e rigoroso possa espiar, vasculhar e, acima de tudo, trazer à
luz plena as implicações interdisciplinares conseqüentes desse
emaranhado que faz da obra de Bacelar para crianças um objeto sensível
à contemplação artística. Impõe-se, então, uma busca acurada sobre o
projeto gráfico e se pergunta: ele (projeto gráfico) sofreria alterações
devido ao modo de presença de um autor-ilustrador? Ou o projeto gráfico
configura-se como enunciador?
35
Assim, o primeiro modo de presença a ser analisado diz respeito à
produção de Bacelar como autora de textos verbais, uma vez que nasceu
no espaço das artes plásticas, muito embora em entrevista revele sua
aproximação com as letras desde muito pequena
36
.
O segundo, de certa maneira, apresenta Bacelar como leitora de
textos alheios e com a tarefa de transformar essa leitura de uma obra
considerada clássica em imagens. Essa ptica foi amplamente desenvolvida
pela autora, como se pode comprovar pelo número de obras realizadas, e é
mesmo o modo de presea habitual em sua literatura infantil.
Finalmente, o terceiro modo será o exercício de Bacelar como
autora de livros de imagens, aqueles em que as imagens contam histórias,
como definido no capítulo anterior. Vale pontuar que essa o é uma
35
É lícito lembrar que esta é a problemática pretendida por este trabalho de tese.
36
“Eu acho que escrever era uma coisa inata em mim, porque lembro-me de que quando
criança eu não gostava muito de estudar, eu não gostava muito de teoria. Gostava
muito de ler, era uma grande leitora. Minha mãe marcava a mim e aos meus irmãos
horas certas para o estudo e, eu invés de estudar, eu escrevia. O simples diário eu
tentava ter um estilo. Claro, naquela altura, eu era influenciada por A, B ou C. Passei
minha adolescência, como a maioria dos adolescentes, a escrever poemas. Nas aulas de
Língua Portuguesa, eu era péssima em gramática, embora dominasse intuitivamente, é
claro, mas salvava-me sempre a minha classificação com a redação. No fim sempre
havia uma redação. Isso foi uma coisa inata, tal e qual a visão, tal como gostar de
música. Eu lembro-me de quando criança estar a desenhar, brincar de adivinhar o
compositor da música que eu estava a ouvir no rádio. Quando era menor ainda, de
descobrir qual era o instrumento. Acho que sempre gostei das artes todas, sem
distinção. Mais tarde fiz balé, mais tarde fiz teatro, mais tarde quis ser declamadora...
No meio de tanta confusão tive de optar e optei pelas artes plásticas. E também pinto
(BACELAR, M. Entrevista concedida a Mariana Cortez. Porto, 18 abr. 2006).
70
prática constante de Bacelar, apenas dois livros de sua autoria que
apagam a palavra e dão voz às imagens
37
.
Tratando de (re)conhecer o livro infantil português e suas
expressões constituindo o projeto gráfico, O dinossauro (1990) apresenta
Manuela Bacelar como autora de textos verbais-visuais. A Sereiazinha, de
Hans Christian Andersen (1995), revelará Bacelar como leitora e autora de
um texto visual para as palavras de outro autor, um clássico. Sebastião
(2005) dará conta de apresentar a narrativa sem palavras.
Assim, a partir da leitura da produção de Bacelar, aposta-se em
três diferentes relações propostas no projeto gráfico de obras destinadas
às crianças, eis a hipótese de trabalho. Então, trazer à luz a maneira como
esses objetos significam em um projeto gráfico é a sugestão do capítulo.
Deslindar o sentido dessa produção gráfico-plástica trará à cena o
objeto artístico com seu corpo-texto, que tem ação sobre o corpo-leitor,
que se move por essas intrincadas veredas da palavra, da imagem e da
composição. Lembrando que ambas as linguagens embalam o sujeito em
uma experiência estética repleta de contribuições para a composição do
indivíduo tanto na particularidade, o autoconhecimento, quanto na
coletividade, o conhecimento do outro – mundo:
O enigma consiste em que o meu corpo é ao mesmo tempo
vidente e visível. Ele, que mira todas as coisas, pode
também olhar-se, e reconhecer então naquilo que vê o
outro lado’ do seu poder vidente. Ele vê-se vendo, toca-se
tocando, é visível e sensível para si mesmo (MERLEAU-
PONTY, 2004, p. 20-21).
Diante de tais objetivos, descortina-se a produção portuguesa de
leitura destinada a crianças de um caso particular, a produção literária
de Manuela Bacelar para a extensão de outros autores de terras lusas;
37
Os livros de imagem de Bacelar são Consola-te e Sebastião.
71
na conclusão, será apresentada uma amostragem do cenário da imagem
infantil no projeto gráfico em Portugal.
2.2.1 Como Autora-Ilustradora: Experiência Inaugural no
Panorama Português em O Dinossauro
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
(Carlos Drummond)
Descobrir espaços, romper fronteiras, alterar sistemas é o exercício
do artista à frente de seu tempo e espaço. Os lugares restritos,
determinados, cerceados pelo estabelecido se convertem em prisão e há,
por necessária conseqüência, que se sair em fuga. A esses sujeitos da
inovação se conferem nomes-adjetivos: loucos, visionários,
revolucionários, idealistas, mas, ao olhar para as estradas da história e,
em especial, da história da arte, da literatura em particular, percebe-se
que, ao fazer a revolução – ao se dar a volta -, deixa-se a marca,
imprime-se sua personalidade e, acima de tudo, determinam-se os
próximos passos.
Manuela Bacelar é um desses casos. A autora estaria entre aquele
que Calvino (1993) definiu como clássico:
Os clássicos são livros que exercem uma influência particular
quando se impõem como inesquecíveis e também quando se
ocultam nas obras da memória mimetizando-se como
inconsciente coletivo ou individual. [...]
Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo
consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e
atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas
que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem e
nos costumes).
72
Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma
nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente as
repele para longe (1993, p. 9-13).
Em diálogo com esta abordagem, vale lembrar as palavras de Jorge
Luis Borges: “El hecho es que cada escritor crea a sus precursores. Su
labor modifica nuestra concepción del pasado, como ha de modificar el
futuro (1998, p. 309). Seria lícito pensar, então, sobre Bacelar como
desbravadora de espaços no cenário português e, por isso, as críticas
acompanham a obra da artista:
Aos mais desmemoriados vale pois a pena recordar o final
dos anos oitenta e o princípio da década de noventa: quando
da edição das colecções “Tobias” e “O Triciclo voador”,
vários escritores e críticos se apressaram a denegrir
injustamente a meia voz, como sempre o trabalho de
Manuela Bacelar como autora de textos, porque, em boa
verdade, lhe escapara o significado global do seu gesto
artístico, e de certa forma pedagógico, que passava por
envolvimento por inteiro na criação de álbuns para crianças
pequenas. E recorde-se, a prosito, que Manuela Bacelar
fora formada na antiga Checoslováquia e, nas décadas de 60
e 70 (período em que o álbum conheceu um boom decisivo
em alguns países europeus e nos Estados Unidos), tinha
contacto freqüente com a produção européia neste campo
(GOMES, 2004, p. 17).
A autora em questão, como Gomes afirma, não foi compreendida
em seu “envolvimento por inteiro na criação” em seu país. A crítica não
percebia o gesto inovador da artista. Não entendia Bacelar como uma
autora com formação além-fronteira: “Tenho uma formação além-
fronteiras, [...] desde muito pequena tive livros para crianças” (BACELAR,
M. Entrevista concedida a Mariana Cortez. Porto, 18 abr. 2006).
Essa autora traz, ao contexto português, a experiência do alheio.
Esse ato, ontem e hoje, exige coragem e implica resistência diante do
estabelecido.
Bacelar terá de abrir caminhos e romper preconceitos para ter sua
obra reconhecida. A essa altura, a artista tinha prestígio como
73
ilustradora. Passar da imagem para palavra parece não ser possível, nesse
momento, em Portugal. Entretanto, Bacelar se afirma como uma artista
com dupla vocação.
Às letras, sempre são reservados os espaços sacralizados.
Pergunta-se, como um “mortal”, não dotado pelos deuses da criação
literária”, poderia aventurar-se nessa arte? Esta voz ecoa dos muros
acadêmicos das Letras.
Na contracorrente, com formação nas artes plásticas, Bacelar
enfrenta os obstáculos para garantir espaço à sua obra, o que implicará, a
dupla vocação.
A capa: o convite à leitura
Para entender um texto como poético, que cumpra a expectativa
de trazer o leitor por meio das vias sensíveis, que se ater tanto ao
plano do conteúdo quanto ao da expressão e, ainda, demonstrar a
correlação entre eles, como define a Semiótica, por meio do conceito de
semi-simbolismo:
Para compreender, en su exacto sentido, el concepto de
lectura, éste se debe delimitar, fundamentalmente, como
una semiosis, es decir, como una actividad cuyo objetivo es
poner en correlación un contenido con una expresión dada
(VILCHES, 1995, p. 100).
Os caminhos entre o sensível e o inteligível devem estar cruzados,
para que o leitor-criança possa experimentar as sensações da arte e,
também, elaborar e ampliar sua compreensão/vivência do mundo,
objetivo primeiro da arte literária no espaço educacional.
Percorrer as tramas desses planos na obra de Manuela Bacelar é a
tarefa que se impõe, tendo a conquista do leitor como o objetivo que se
74
mostra no horizonte. Sobretudo, entender se há eficiência no conjunto dos
sistemas expressos no projeto gráfico é o desafio instaurado.
Figura 2.6Contracapa e capa
A narrativa apresentada em O dinossauro é uma descrição de
acontecimentos. As cenas passam, literalmente, diante dos olhos dos
leitores. Cada virar de página acrescenta um novo elemento à trajetória
narrada, revelando-se surpreendente e evocando a fantasia.
Em uma pequena aldeia de Portugal, identificada pela maneira
como aparecem as figuras
38
, um monte é coberto por uma suposta
vegetação verde, sobre a qual existem casas.
A situação inicial, porém, é interrompida quando as casas começam
a tremer, sacudir, pois o monte se revela um animal que desperta.
Diante do fato inusitado, os habitantes do “monte” procuram o
professor, aquele que tudo sabe”, para, assim, entenderem o que se
passa. O mestre sentencia que o “monte” é um animal pré-hisrico
despertado depois de muito tempo. O monstro se revela um dinossauro.
Duas questões se apresentam desta perspectiva, a saber: a capa
como anáfora (indício) do que está por vir e a diferenciação entre
enunciado e enunciação.
38
Mais adiante, a referência a Portugal será tratada, levando-se em consideração a
afirmação sobre as figuras estereotipadas que compõem a imagem.
75
Na capa, o verbal O dinossauro, redundado pelo desenho do
animal, apresenta, de imediato, ao leitor, o protagonista da narrativa o
monte verdejante transformado em animal pré-histórico.
Na enunciação, o contrato entre enunciador e enunciatário se
estabelece. “Eles” (leitores) detêm o segredo, na medida em que, no
enunciado, os actantes (habitantes da aldeia) serão surpreendidos pela
transformação do monte em dinossauro, informação que os leitores
receberam, antes mesmo de abrir o livro. Essa revelação é feita às
personagens no transcorrer da narrativa, ou seja, o enunciatário detém
uma informação que o actante (personagem da narrativa) ignora.
Evidencia-se, por meio dessa estratégia, o contrato enunciativo da obra. A
imagem por associação de formas e cores leva o leitor ao imediato
reconhecimento do protagonista representado pelo verbal e pelo visual na
capa, isto é, o dinossauro.
Antes de virar a página, a capa se apresenta pelas qualidades da
expressão: ela é composta por diferentes tons de verde (círculos) e cinza,
que formam o pano de fundo dessa capa. No recorte ou janela branca, um
retângulo apresenta a imagem da personagem título - o dinossauro -
mostrando a língua. Ele está bem no centro da capa, conferindo-lhe
protagonismo e isso é reiterado pelo verbal.
O monstro nada tem de assustador, como se pode perceber, antes,
parece uma dócil caricatura do monstro que atualmente aterroriza o
imaginário em narrativas cinematográficas, como o sucesso de bilheteria
Jurassic Park, de Steven Spielberg. O de Bacelar, contudo, o apresenta
traços realistas, imprimindo o contrato da ficção logo no convite da leitura.
Alguns poderiam pensar que um monstro assustador afastasse o
leitor-criança da leitura, e isso justificaria a opção enunciada, mas tal
estratégia não se confirma. Primeiramente, porque o corpo anseia
sensações positivas e negativas nas narrativas ficcionais, como bem
demonstram as análises psicanalíticas: se for tomada, novamente, a
imagem do parque de diversões, tanto o carrossel como o trem fantasma
fazem sucesso, reforçando a teoria desenvolvida por Bruno Bettelheim. E,
76
também pelo sucesso de bilheteria, como afirmado, do filme de Steven
Spielberg, que se tornou, mesmo, “mania” no imaginário infantil e, por
vezes, até no adulto.
Assim sendo, a opção por um monstro dócil se na medida em
que ele se mostra não como inimigo, mas, pelo contrário, como um
auxiliar narrativo: dará poder ao actante coletivo (“toda gente”) e ao
actante indivíduo-professor, para realizar o percurso narrativo que levará
ao conhecimento de espaços inexplorados (passeio pelo mundo todo).
Ainda, na capa, a personagem-título es deitada sobre a terra
marrom; por semelhanças e escapes de cores, em que se observa uma
contaminação cromática, ou seja, terra e animal se envolvem.
Figura 2.7 Contaminação cromática
Na composição da pele do monstro, influências artísticas que
remetem ao universo de Klimt, que se tornam padrão por repetição como
um pano de fundo para a capa. A pele perde a sua figurativização mais
icônica e passa à abstração, no fundo da capa e em toda contracapa.
77
Figura 2.8Contracapa Figura 2.9Klimt
Figura 2.10Capa – fundo
Não é difícil reconhecer no traço das obras de Manuela Bacelar
referências a outros artistas. Pessoas, animais e objetos voadores
lembram Marc Chagall, influência nomeada pela própria autora e
confirmada ao longo das análises de suas obras, como se demonstrado.
Em O dinossauro, pode ser observada a relação a seguir:
Figura 2.11O Dinossauro Figura 2.12Chagall
78
O que influenciou meu trabalho... é tudo, porque eu tenho a
princípio olhos para ver. Acho que olhar é saber ver, não é
olhar, é saber ver. Há uma diferença entre olhar e ver. Ver é
muito importante. A pintura influenciou o meu trabalho
evidentemente. Eu vi pintura desde pequenina. Eu lembro
que me contavam histórias de fadas oralmente e eu
imaginava as meninas do Botticelli. As fadas eram as
meninas do Botticelli. Mas é evidente que os meus pais
também influenciaram, porque eu vivi numa casa em que
não se ligava para que estivesse tudo ordenadinho, tudo
regradinho, mas ligava-se para não ser tiroso, não ser
cafona (BACELAR, M. Entrevista concedida a Mariana Cortez.
Porto, 18 abr. 2006).
Conclui-se, então, que o diálogo entre textos é uma constante nos
discursos, sendo-lhes mesmo inerente, como institui as teorias do
discurso, formuladas por Bakhtin, inicialmente, e desenvolvidas por
Kristeva
39
. E que as obras destinadas à infância não fogem à regra, visto
que se constituem, sobretudo, como discursos. Esse é uma das
estratégias que será agente na formação do leitor literário.
Saindo do discurso e seguindo pela expressão, o nome da autora e
o título estão na cor laranja. O título, no entanto, é destacado pelo
contraste com o azul sobreposto à imagem, como um retalho, um recorte,
daquele padrão que faz referência à pele do dinossauro. O nome da
editora aparece ao pé da capa, em branco.
Tanto o nome da autora como da editora se confundem com o
fundo, portanto, não há destaque nem para um nem para outro. Talvez se
perceba, mesmo, uma fusão entre os universos o da história e o do
processo. O destaque, se desejado, deve ser conseguido pela oposição de
cores (por exemplo, quente X frio, vibrantes X suaves, cores
complementares). No caso analisado, no entanto, não contrastes que
possam ser identificados.
A obra é de capa dura, como a maior parte da produção portuguesa
destinada ao público infantil o foge aqui à regra. A página de guarda é
azul, recuperando o fundo, em que esescrito o título da obra.
39
Conforme BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1981;
e KRISTEVA, J. Introdução à semanálise.São Paulo: Perspectiva, 2005.
79
Esses elementos reafirmam o cuidado gráfico presente na prodão
portuguesa, a saber: a qualidade do papel e a qualidade crotica. A página
de guarda apresenta a oposição cromática: laranja (quente) X azul (frio).
Passada a página de guarda, já na história, adianta-se que o
narrador, em primeira pessoa, o cumpre o papel normalmente atribuído
ao narrador em primeira pessoa, ou seja, viver como personagem os
dramas narrativos. Neste caso, ele observa a ação desencadeada pela
transformação do monte em um animal pré-histórico (o dinossauro). É
fato, no entanto, que o leitor acompanha sua emoção no transcorrer da
narrativa, mas acompanha o relato de um observador da ação.
O efeito-surpresa, como bem observa Gomes (1991), perde-se
para o leitor, como fora apontado:
Um único senão: para as crianças recém-chegadas à leitura,
a presença do título da história, na mesma gina em que se
inicia a narração, anula o efeito surpresa preparado pelas
oito primeiras páginas. De facto, associação imagem/título
leva à conclusão imediata de que o monte não é mais do que
o dorso do dinossauro (1991, p. 71).
Sobre essa ocorrência é necessária a reflexão acerca da palavra-
imagem. Por meio da palavra, são desfeitos o enigma e a surpresa.
Aquela característica delimitadora da imaginação, tão insistentemente
atribuída à imagem nos discursos pedagógicos de outrora, é assimilada,
neste caso, pela palavra. Isso leva a crer que as linguagens podem
anular-se no diálogo, mas que uma, não necessariamente, é delimitadora
da outra, isto é, não é a imagem que tem em si qualidade de restringir o
verbo. O que determina a redundância ou a originalidade é a concepção e
organização gráfica de uma obra, ou seja, o papel do organizador do
projeto gráfico é fundamental.
Assim, pondera-se que ser delimitador não é um traço inerente à
imagem, pois, como demonstrado, a palavra também pode cumprir esse
papel. A delimitação da imaginação pode dar-se quando o diálogo palavra-
imagem não for concebido como um todo significativo. Por outro lado,
80
acontecerá quando um diálogo ativo, em que uma linguagem nutre a
outra, tornando-se um sistema em um todo significativo: o projeto
gráfico foi eficiente.
Na obra em análise, a imagem se sobrepõe à palavra, podendo
esta ser quase descartada, não fossem alguns acontecimentos, como: o
detalhamento sobre as características do dinossauro,- mas isso não é
fundamental à narrativa- , e o caso da fotografia, ou melhor, da ausência
dela, fruto do esquecimento do professor.
Sobre esse último elemento destacado, um trabalho mais
cuidadoso com a palavra e isso a torna fundamental neste álbum. O P.S.
introduz um diferente gênero a carta ou bilhete abrindo caminho à
isotopia metalingüística, ou seja, o que o leitor acompanhou ao longo das
páginas é um registro em bloco de notas ou em diário de viagem. Essa
isotopia pode ser reiterada pela imagem ao longo da história que parece
feita às pressas ou como um rascunho. Isso se pretende demonstrar na
edificação da análise.
Se essa isotopia for tomada, a ctica de Gomes ao efeito
surpresa do dinossauro não se sustenta, visto que o projeto gfico
privilegia um contrato enunciador-enunciatário, a partir de um relato
que refoaria a subjetividade.
Figura 2.13Inserção do P.S
81
O miolo: da descrição à significação
A situação inicial é apresentada na primeira página tanto pela
imagem como pela palavra. A figura se localiza no lado esquerdo da
página e transborda para o início da direita, já ocupando a página dupla; a
imagem é sangrada, não moldura. Ali, o que se identifica como um
monte verde, com árvores e casas.
Figura 2.14 – Situação inicial
A palavra conta a história e também retoma o título, o nome da
autora, o nome da editora, bem como a ficha técnica da obra. Coincidem,
portanto, a página de rosto e o início da história. Não há, pois, divisão de
espaços entre a realidade/enunciação (título, autor, ficha técnica, editora)
e a ficção/enunciado (a hisria narrada), como é habitual nos livros, seja
para o público adulto ou para criança, reafirmando o contrato enunciativo.
Esta apresentação é identificada por Gomes (1991) como também
um problema. Segundo ele, parece haver um proposital desleixo no projeto
gráfico, em que realidade e ficção não se separam. Pode-se, contudo,
entender a presença de informações técnicas como elementos partícipes da
significação da obra, corroborando a isotopia que se quer defender.
82
Figura 2.15 – Informações cnicas
De volta ao narrador: este é instaurado pelo pronome possessivo
minha, em primeira pessoa, como pontuado. Da janela, o narrador
apresenta os fatos narrativos: Em frente à minha janela, /há um monte
com árvores/ e algumas casas”. Da palavra casas, infere-se que haja
gente. Com o virar da página, pessoas e animais são apresentados tanto
no texto como na imagem.
À medida que se apresenta o narrador, o narratário também é
instaurado. Será também pela janela, por meio dos olhos do narrador, que
o leitor seguirá a história. Caminha-se, então, com um olhar subjetivo e,
portanto, parcial dos acontecimentos, fato determinante quando o narrador
está em primeira pessoa, considerando-se as implicações lingüísticas.
Para além da palavra que traz a condição de espectador ao leitor, a
imagem também determina esse olhar pela janela, ou seja, fora de cena,
fora da história. Como texto uno, palavra-imagem estabelece o foco
narrativo coincidente – a função é do observador:
83
La noción de texto excluye una pura multiplicacn de
elementos separados o el resultado de una suma de
fénomenos independientes. Resalto, por el contrario, su
unidad. Dicha unidad de los elementos situados en el interior
de um texto es una propriedad semántica global de los
mismos y recibe el nombre de coherencia que permite saber
de qué cosa se está hablando o, en el caso de la imagen,
qué cosa se está percibiendo o leyendo.
La coherencia textual en la imagen es una propriedad
semántico-perceptiva del texto y permite la interpretación
(la actualización por parte del destinatario) de una expresión
con respecto a un contenido, de una secuencia de imágenes
en relación con su significado. La coherencia no es
solamente un principio de identificación semántica (qué se
ve), sino que tiene también una funcn de distribución
coordinada de la informacn visual en el nivel de la
expresión (VILCHES, 1995, p. 34).
O leitor é passivo diante dos acontecimentos narrativos, mas isso
não o exime de ser um agente ativo no preenchimento dos espaços
comuns às narrativas elaboradas com imaginação e fantasia, como é o
caso da que se analisa. Por isso, cabe ao leitor (re)construir o sentido.
Compete a ele significar a obra. Este estar fora da cena, com um olhar por
outros olhos, reitera a isotopia do relato, do registro parcial em primeira
pessoa, corrobora o gênero de discurso - diário.
As pessoas e os animais que habitam as casas dos montes olham
para fora, olham para aquele (ou aqueles) que os observam em uma
situação de cumplicidade, como se fosse firmado um contrato. Cada
actante cumpre o seu papel: os de “dentro” da história vivem, os de “fora”
observam e talvez se emocionem, ainda não se sabe. O que se pode
afirmar é que a cumplicidade é amistosa, visto as personagens olharem
com bons olhos, olhos sorridentes, para os que estão à parte, na situação,
agora, de narratários.
84
Figura 2.16 – Personagens instauram o narratário
Mesmo na página seguinte, quando o dinossauro desperta, as
figuras humanas e animais estão, ainda, apesar da ruptura com a
normalidade da pacata aldeia, olhando, sorridentes e tranqüilos, quase
estáticos, para o leitor. Não qualquer sinal de desespero e de
inconformismo diante da situação inesperada. A cena é descrita por
imagens que podem ser associadas a uma brincadeira, uma montanha
russa, em que até o susto é prazeroso.
Figura 2.17 – Transporte-monstro
Mais uma vez, isso revela o olhar daquele que observa pela janela,
envolto em toda a sua subjetividade, pois, para um adulto, a situação
seria, com certeza, desesperadora. Por isso, é possível afirmar que o
85
adulto o foi contemplado como leitor implícito, ou, no caso da
Semiótica, como enunciatário presente nas malhas do discurso,
constituindo o sujeito da enunciação.
Na página seguinte, a imagem recupera uma “cena portuguesa”:
pessoas estão à janela para observar o acontecimento e trocar experiências
com os vizinhos. As janelas possibilitam a conversa entre vizinhos e
tornam-se molduras desta cena. Cabe pontuar que a janela como moldura
de conversa entre vizinhos é uma constante no imaginário sobre Portugal
em terras estrangeiras. Essas janelas constituem a arquitetura portuguesa
das aldeias do Norte, ou mesmo, no centro antigo de grandes cidades como
Lisboa e Porto, assim tal associação é autorizada.
Figura 2.18 – Vizinhos trocam experiências pelas janelas
Vale ressaltar que a linha da terra que acompanhava a narrativa
até então
40
desaparece, o fundo é branco, vazado, de onde sobressaem
janelas (quadrados coloridos) e, por estas, personagens, que
conversam e observam.
Alguns elementos ultrapassam os limites do quadro. Não
perspectiva, sobreposição de figuras. Cada janela é um quadro,
recuperando até a idéia das histórias em quadrinhos.
40
A linha da terra será tratada mais adiante na análise desta obra.
86
Essa cena pode ser descrita da seguinte maneira: uma menina
observa, e suas tranças escapam dos limites da janela, assim como sua
gaiola e seu pássaro. Há, também, uma borboleta voando próxima à
gaiola, não se sabe precisar de onde vem nem para onde vai o inseto;
uma família pai, mãe e dois filhos compõe o quadro seguinte, em que
o nariz e uma das mãos do filho estão fora da janela; outra família, agora
com apenas um filho, surge de mais um quadrinho, e o que escapa são os
bigodes e o chapéu do pai, e, finalmente, uma mulher mais nova e um
senhor mais velho observam a aventura enquanto a longa barba branca
do senhor escorre pela moldura da janela.
Apesar de elementos escaparem ao enquadramento da janela, a
moldura persiste. O olhar, portanto, não está livre, mas sim determinado
pelo limite da janela-moldura que cerceia o olhar do observador. O fundo
da página é branco. O foco está nas ões simultâneas e interligadas que
saltam das janelas.
Destaca-se a cena, descrita em detalhes, para refletir sobre um
traço da imagem proposta nesta obra. Não uma disposição regular da
imagem na página, não há um padrão na apresentação das cenas.
Figura 2.19 – Economia
87
Figura 2.20 – Profusão
Essa organização casual (sem regra) revela a oposição entre
profusão e economia
41
. Profusão de cenário (fundo), no que é alheio à
cultura; economia de cenário (fundo), no que é próprio a essa. Com tal
correlação, enfatiza-se pela expressão a idéia da viagem como aquisição
de conhecimento e vivência. Por um lado, quando é desconhecido
(alheio), muitos detalhes; por outro, quando é conhecido, o espaço é
vazio, não detalhes, pois se conhece, então, caso existisse
detalhamento, este seria redundante do saber do leitor pretendido pela
obra
42
. É, ainda, possível outra análise, essa a partir da pedagogia - as
idéias são separadas para facilitar a leitura. Uma possibilidade, contudo,
não invalida a outra, portanto, elas coexistem.
Figura 2.21 – Alheio / Próprio
41
Oposição formulada em DONDIS, D. A. Sintaxe da Linguagem Visual. o Paulo:
Martins Fontes, 2003.
42
Observa-se que o leitor pretendido são as crianças portuguesas, em princípio.
88
Bacelar não segue um estilo linear, sistemático no sistema visual;
ao contrio, impera o acaso, a simultaneidade. O suposto improviso
marca seu estilo em O dinossauro.
O mesmo não acontece, contudo, no sistema verbal, sempre
apresentado linearmente, seqüenciado
43
. Exceção feita à interferência do
P.S., que rompe a linearidade narrativa para introduzir uma nova
possibilidade de leitura, um novo gênero. Apenas na última página, no
entanto, o verbal rompe a expectativa e, portanto, a previsibilidade, que o
visual havia rompido há tempos.
O formato: de um exemplo para a generalização
Vale pontuar que, em O dinossauro, as páginas não o lidas como
habitualmente o são em um livro, da esquerda para a direita
obrigatoriamente, mas, a cada virada de gina, tem-se um quadro com
imagem e palavra. Se a leitura desse quadro é iniciada pela direita ou pela
esquerda, de cima para baixo, é um critério do leitor, assim como nas
artes plásticas.
As teorias da percepção visual exploram a temática de maneira a
demonstrar tal afirmação:
Deve-se notar que o vetor direcional que torna as
composições assimétricas tem pouco a ver com os
movimentos dos olhos. Pelo traçado dos movimentos dos
olhos, sabe-se que os observadores exploram a cena visual
perambulando irregularmente e concentrando-se nos pontos
de maior interesse. O vetor esquerda-direita resulta desta
exploração, mas não provém da direção dos próprios
movimentos dos olhos. Nem há qualquer evidência
pronunciada de que a tenncia lateral se relaciona com o
uso de uma das mãos ou com o predomínio de um olho
(ARNHEIM,1980, p. 27).
43
Oposição também formulada por op. cit.
89
O álbum, contudo, não é como um quadro, pois a seqüencialidade
existe e é dada pela própria natureza do objeto. É possível, então,
recorrer, mais uma vez, à dinâmica das histórias em quadrinhos. Vilches
(1995) reflete sobre a imagem em movimento do cómic em oposição à
linguagem fílmica:
Tanto el mic como la fotonovela pueden definirse como
una unidad narrativa que se expresa tanto visualmente
como por medio de un texto escrito bajo forma de diálogos,
onomatopeyas, descripciones, comentarios y ruidos, que
utilizan un mismo tipo de materia de la expresión: la prensa
escrita. El trazo característico y definitorio del cómic y la
fotonovela es la secuencialidad de las imágenes alineadas
sobre el plano horizontal. La direccn de lectura de estas
imágenes coincide con el sentido de la lectura de la línea
escrita en la cultura occidental: de izquierda a derecha y
arriba abajo (exactamente al contrario de la dirección de la
lectura que se utiliza en los cómics de algunos países
árabes, por ejemplo). Esta es la norma, aunque existen
diversas tendencias que rompen la linealidad para introducir
una complejidad mayor, sea por deformación del cuadro,
planificación en cruz, en hélice o en diagonal. Un factor
importante a señalar también dentro de la secuencialidad es
el de que, con una cierta frecuencia, el lector del cómic o
fotonovela se halla ante dos tipos de percepción narrativa:
en primer lugar, se hace una lectura puramente icónica del
cuadro o de la secuencia y, luego, se pasa al texto escrito
(nunca a la inversa). En este caso, se dan dos tipos de
códigos. Ambos niveles se hallan diferenciados
discursivamente gracias a que existe una separación nata
entre dos tipos de códigos (p. 70).
A obra que se oferece à análise, assim como inúmeros outros
exemplos de literatura infantil, mostra-se, também, distinta do cómic.
Impõe-se pensar sobre o objeto-livro, que, no caso da literatura com
imagens, estabelece um sistema misto na condução do olhar. Existe a
dinâmica impositiva do livro, o virar das páginas para acompanhar a
seqüência narrativa, movimentando a imagem.
A cada virada, no entanto, há um quadro, sem uma seência do
olhar preestabelecida, determinada. O leitor está livre para fazer seu
percurso.
90
No caso de O dinossauro, isso acontece, pois, na narrativa
analisada, o percurso se faz pela aquisição de competência o
conhecimento (a volta ao mundo). Neste percurso, a seqüência dos
acontecimentos, na história contada em cada quadro,
simultaneidade. A oposição continuidade versus pontualidade pode ser
identificada no direcionamento da leitura
44
.
Buscou-se, contudo, outra obra da autora para exemplificar melhor
a dinâmica. No exemplo a seguir, tem-se a obra Bernardino que segue os
princípios das histórias em quadrinhos, como será demonstrado a partir
da comparação com a primeira página da revista Tico-tico
45
, que traz, em
sua capa, uma história em quadrinhos:
Figura 2.22 Continuidade narrativa em duas páginas - É necessário virar a
página.
44
Esta é uma dinâmica de leitura bastante comum na literatura infantil.
45
Poderia ter sido utilizado qualquer exemplo de histórias em quadrinhos tradicional.
91
Figura 2.23 – Continuidade narrativa – quadro a quadro
Imagem seenciada em quadros e não na virada da página.
Em O dinossauro, a palavra também pode ser lida em momentos
distintos – antes, durante, depois da leitura da imagem.
Existem outros exemplos da literatura infantil que corroboram a
idéia de oposição da história em quadrinhos e da literatura infantil, também
no que diz respeito a palavra como imagem, como nos exemplos a seguir:
92
Figura 2.24 – Sua Alteza, a divinha!
Figura 2.25 – Abc doido
46
Os “tempos” de leitura e viradas de página para dar seqüência a
narrativa são determinados pela urgência ou tranqüilidade na condução
dessa e também dos enigmas propostos tanto pelo verbal, quanto pelo
visual, como no caso da obra ABC, de Ângela Lago, em que o leitor deve
desvendar uma charada a cada nova página.
Com isso, há que se pensar sobre o livro infantil em distinção
daquilo que é proposto por Vilches para os cómics. , o autor afirma que
primeiro há a leitura puramente icônica do quadro e da seqüência, para
depois se ler o texto verbal e nunca de maneira inversa. Essa metodologia
do olhar, no livro infantil, não é uma verdade. Em particular no caso de O
dinossauro, pode-se ler o texto e, em seguida, observar a imagem, ou o
contrário, sem comprometer o entendimento do enredo, como já pontuado.
Há casos, que serão tratados mais adiante, em que ou a palavra ou
a imagem não dependem um do outro, e isso implica a indiferença
46
Imagens das obras Sua Alteza, a divinha e ABC doido, de Angela Lago, autora brasileira.
93
completa à ordem de leitura. Ou, ainda, como no caso da obra Jardins, de
Roseana Murray, em que a casualidade se opõe a previsibilidade
seqüenciada exigida pelo livro-objeto, cada página é independente
47
,
ignorando até mesmo o suporte livro, como será objetivo demonstrar.
Assim, o necessário ao livro infantil é o diálogo efetivo, para que
um sistema não se sobreponha a outro, neutralizando-o. O diálogo entre
essas linguagens proporcionará um ir e vir entre palavra e imagem que
ora palavra é imagem, ora imagem é palavra.
Além de o virar das páginas pontuar o ritmo da narrativa, que é
uma forma de interação entre a criança e o livro, a linha da terra presente
na obra O dinossauro também contribui para o desenrolar narrativo,
dando-lhe, ou mesmo conduzindo para, uma seqüência narrativa.
Linha da terra: elemento expressivo
As figuras
48
que estão na página descrita da obra em análise são
pessoas e animais sobre uma linha.
Figura 2.26 – Linha da terra
47
A análise da obra Jardins, de Roseana Murray será tratada no capítulo 3.
48
Vale alertar que o termo figura está sendo empregado dentro do referencial teórico da
semiótica discursiva e não como sinônimo de imagem ou ilustração.
94
A estratégia da linha da terra é uma recorrente na produção
literária de Manuela Bacelar, em que ela exerce a dupla vocação, como
observa Maia (2004), em artigo, que evidencia as “zonas marcantes” da
produção de Bacelar:
Outra linha de abordagem às suas ilustrações e que gostaria
que ficasse, aqui, bem marcada é a linha da terra. Se
entendida como sinédoque do próprio planeta aí, a linha de
terra é uma linha curva, se entendida como um terreno,
onde eso às personagens, aí, a linha de terra é plana ou
apenas levemente acidentada. [...]
A linha da terra separa aos nossos olhos aquilo que a
ilustradora geralmente pretende que se junte nas nossas
mentes: conjuntamente com tudo aquilo que nós sabemos
pertencer à “zona celeste”, sejam astros, aves, nuvens ou
linhas de vento e de chuva, pairam, nos seus desenhos,
corpos e objectos que nos entram pelos olhos e nos deixam
a olhar para esses lugares de incerta exisncia, acima do
horizonte. A sinuosa linha da terra que nos atira o olhar para
os milhares de pontos de fuga dos fundos manchados,
pontilhados, sarapintados, riscados, repincelados e marcados
pela passagem do tempo, é uma linha condutora da aão,
um fio do labirinto das histórias e também um elemento de
ligação entre cada conjunto de páginas pares e ímpares que
constituem um livro.
A linha da terra é um convite à visão frontal e esta
panorâmica, que a ilustradora oferece aos nossos olhos,
quase obriga cada elemento da composição a ser
seqüencialmente dispostos em fila. Perante este facto, e
como Manuela Bacelar o utiliza os códigos e os recursos
dos seus colegas criadores de banda desenhada, necessitou
de ir inventando soluções compositivas de estruturação
espacial que acabam por ser uma espécie de marca d’ água
do seu trabalho (2004, p. 8-9).
O que foi destacado por Maia, ocorre na produção de Bacelar desde
Consola-te, primeiro álbum de imagem da autora, mas não é uma
constante quando a autora é ilustradora do texto verbal.
95
Figura 2.27Consola-te – exemplo de linha da terra
Em sua produção como autora de dupla vocação ou apenas autora
de imagens, no álbum de imagem, a linha da terra aparece como marca
registrada. Talvez a função desse recurso seja dar ao leitor a idéia da
seqüência, como revela Maia (2004), corroborando a hipótese da imagem
em movimento, aqui associado aos flip books
49
. Além de reforçar a
seqüência, a linha da terra, em particular na obra O dinossauro,
apresenta-se como uma característica do desenho infantil.
À criança, normalmente, é necessário um solo para fixar suas
personagens. Essa hipótese é autorizada a partir do aparecimento e
desaparecimento da linha, ou seja, um traço distintivo da expressão é a
presença e ausência da linha da terra, confirmando o tom da casualidade.
49
É importante definir os flip books: A passagem de uma imagem estática (livro) para
imagens em movimento (cinema) faz do flip book umadia única e transitória.
Este, por sua vez, é ativo e completamente autônomo, determinando sem influências
ou normas a velocidade com que o livro é visto. Pois é possível passar as páginas com
calma, rapidez, desprezo, muita ou pouca delicadeza. Além disso, o flip book, ao
contrário do cinema, permite ao observador/espectador determinar ele próprio a
cronologia de recepção da obra: do começo ao fim ou de trás para frente.
“Os livros animados”, diz Christoph Benjamin Schulz, curador da exposição em
Düsseldorf, “são brinquedos infantis na forma de lidar e objetos filosóficos no que se
refere à capacidade de expressão artística" (Disponível em: <www. Deustche-
welle.de/dw/article>. Acesso em: 17 jul. 2008 )
96
Antes de a linha da terra representar a própria Terra, um terreno, a
aldeia, ela contribui para uma outra interpretação. Ela, neste caso, não
figurativiza a realidade, não se aproxima do objeto em si. A sua presença
ou a sua ausência revela um traço primário, apresenta um efeito de
sentido de parecer pertencer ao universo do público pretendido pela obra,
ou seja, a criança.
Busca-se uma identificação entre o estilo do autor e o “estereótipo
do estilo do desenho infantil. Outros traços reiteram essa afirmação. São
eles: a formas humanas ou não, as cores primárias, a presença do traço
do lápis, o vazar das cores pelas linhas desenhadas.
Pode-se afirmar, então, que se tem nas mãos um álbum
metaficcional, em que o leitor se reconhece pela expressão de O
Dinossauro. Para sustentar a afirmação, vale definir o álbum
metaficcional; para isso, convoca-se a pesquisadora venezuelana Maria
Cecília Silva-Díaz, em seu artigo “La metaficción como um juego de niños
– una introducción a los albumes metaficcionales”:
Sin embargo, es conveniente deslindar ambos términos
(postmodernismo y metaficción): mientras el
postmodernismo es un concepto perteneciente a la historia
literaria, que detona un tipo de literatura asociado a un
momento cronológico la época contemporánea -; la
metaficción es una manifestacn ahistórica que se ha
registrado a lo largo de toda la historia literaria […] Pero es
un hecho que la presencia de la metaficción se ha
intensificado en la literatura postmoderna, por lo que las
variaciones metaficcionales se consideran características del
postmodernismo literario (2005, p. 9).
Em O dinossauro, as formas são despojadas de toda e qualquer
complexidade. Não há detalhamento,o há sofisticação no traço. O
traçado a lápis não é apagado, as cores ultrapassam o limite da linha, não
qualquer tentativa de ser realista. A enunciação é revelada no
enunciado (seja um detalhe ou completamente), caracterizando a
97
proposta da metaficção que é quebrar o faz de conta imposto às artes de
maneira geral
50
.
O tempo todo, o discurso das imagens insiste em dizer ao leitor
que aquele é um desenho próximo ao seu, tornando-se, nesta medida,
metalingüístico. Mais que isso, a metalinguagem é utilizada como forma
de identificação e cumplicidade.
Quando se afirma que a expressão em O dinossauro assemelha-se
ao desenho infantil, é importante recorrer aos teóricos do desenho infantil
para não escorregar por caminhos inexplorados por esta pesquisa. Assim,
Wallon (1979) define representação gráfica dessa forma:
A representação é uma fórmula estática, bem delimitada,
que parece bastar-se mais ou menos a si própria no
momento em que é pensada. [...] é a rmula terminal em
que se inseriram e delimitaram os aspectos do objeto
(Disponível em: <www.rede-educacao-artistica.org>. Acesso
em: 17 jul. 2008).
Figura 2.28 – Comparação imagem de Bacelar e desenho infantil
Em seguida, determina as fases do desenho; aquela identificada
como “transcrição gráfica” atende à comparação desejada:
50
Esta caracterização do livro-álbum metaficcional vai acompanhar as análises deste
estudo de maneira a revelar uma tendência da literatura infantil contemporânea.
98
[...] uma forma ainda rígida, mais ou menos dispersa e
estereotipada. [...] As variáveis inerentes às
dessemelhanças entre as imagens visuais externas de um
objeto [...] são excluídas. Trata-se de reconhecer o essencial
e o elementar das coisas anulando-lhe a individualidade
(Disponível em: <www.rede-educacao-artistica.org>. Acesso
em: 17 jul. 2008).
Figura 2.29 – Desenho infantil - contorno
Esse procedimento na obra de Bacelar é um efeito de sentido, por
isso, é estilizado, diferente daquele apresentado pela criança. Em certa
medida, é válido ressaltar que um interdiscurso: Bacelar faz à maneira
do desenho da criança, como um interdiscurso.
Finalmente, Duarte define os esquemas:
Casa, sol, nuvens, árvores, montanhas, passarinho, lagos,
mares e rios, são representações gráficas que se repetem
nos desenhos infantis. Estes esquemas aparecem grafados
de modo quase invariável, isto é, com uma configuração
praticamente idêntica, como recursos gráficos nos desenhos
de todas as crianças [...] (Disponível em: <www.rede-
educacao-artistica.org>. Acesso em: 17 jul. 2008).
99
Figura 2.30 – Desenho infantil-linha da terra
A partir desta breve descrição teórica, observa-se o conjunto da
obra de Bacelar. O único título da autora que leva ao extremo as
características, ou melhor, a aproximação do modelo do desenho infantil é
O dinossauro. Alguns outros apresentam tais traços de modo mais
contido, como O meu avô. exemplos em que não existe qualquer
semelhança com o desenho infantil, por exemplo, Silka, de Ilse Losa, com
imagens de Manuela Bacelar:
Figura 2.31 – Silka, imagem de Manuela Bacelar
No caso particular de O dinossauro, as figuras esquemáticas
representam uma imagem mental que se arrisca como uma imagem
100
social; nessa perspectiva, percebe-se o desenho como estereótipo. Tanto
as personagens portuguesas como as originárias de outros países o
representadas com o que há de padrão, de simbólico do país, seja na cor
da pele, nos traços fisionômicos ou em acessórios.
Além disso, os símbolos são apresentados pelas imagens: as
janelas, o bigode, o lenço na cabeça, o xale, o colete, o avental, a
estampa xadrez territorializam a narrativa. Assim como a Torre de Pisa, o
iglu, a oca indígena, a cabana africana, as pirâmides representam os
espaços visitados.
Além das figuras esquemáticas, a opção por revelar os traços do
lápis atribui ao desenho o aspecto inacabado, impreciso, em processo. A
atmosfera criada pela expressão é a do registro provisório. Esse tom
determinado pelo desenho conduz à leitura de aproximação do universo
da criança, como apontado, propondo um vínculo entre o que se lê e o
que se produz, revelando, ainda, a integração entre palavra e imagem na
composição do discurso, pois cria com o leitor (destinatário) um contrato
de veridicção/identificação. O narrador/enunciador das imagens age à
maneira da criança.
Vale lembrar o experimento de Ziraldo em O menino mais bonito
do mundo, em que o projeto gráfico é composto por dois ilustradores
(Mariana Apoena e Ziraldo, respectivamente): um para representar o
olhar infantil e outro para retratar o olhar amadurecido. Assim como é
possível identificar e construir a imagem mental do narrador do sistema
verbal, também o é no sistema visual. Os traços deixados na enunciação,
sejam eles a utilização da primeira pessoa, de gírias ou diminutivos,
podem ser identificados no visual pela perspectiva adotada dentro
(narrador-personagem), fora (narrador-observador), pela escolha de
cores, pela destreza do traço, pela complexidade da perspectiva etc.
101
Figura 2.33 – Narrador-adulto
Valendo-se de Maia (2004), que afirma a presença do “acidente”
na obra de Bacelar, comprova-se a leitura de que esse significa em sua
produção, visto que propõe uma aproximação entre o narrador e o
narratário no texto visual:
A representação gráfico-plástica [de Bacelar] segue, então,
padrões de recriação de uma linguagem própria em sintonia
com a sua liberdade. O seu trabalho não só deixa nu as
imperfeições (ou por outras palavras, os acidentes de
percurso) como principalmente as usa como matéria prima
indispensável (1991, p. 9).
A obra O dinossauro propõe-se, portanto, como um experimento,
visto que, até a ruptura modernista, sempre foi tarefa da arte e, mais
ainda, da literatura para crianças buscar a mimesis aristotélica para,
assim, estabelecer o contrato entre enunciador e enunciatário, ou seja, a
tentativa era fazer-crer o leitor na ficção desenvolvida. A tentativa do
discurso de Bacelar é, ao desfazer-se o “faz de conta”, estabelecer um
novo contrato entre aquele que diz e aquele que escuta (lê): a liberdade
de expressão e experimentação com o intuito de aproximar os mundos e
apresentar a realidade, como esclarece Silva-Díaz (2005): “Una
característica de las obras metaficcionales que se consideran adecuadas
Figura 2.32 – Narrador-criança
102
para los niños es que le ofrecen al lector un balance entre lo conocido y lo
nuevo; es decir, entre las convenciones y su vulneración” (p. 22).
Entretanto, o pesquisador não reconhece o procedimento tal como
a análise que se apresenta e o analisa da seguinte maneira:
Manuela Bacelar não receia tirar partido do estereótipo.
Muitas caras e animais, tal como muitas flores e plantas, são
representados através de uma utilização mecânica e
simplificada. Este esquematismo, a meu ver, resulta naquelas
ilustrações em que a força da espontaneidade se sobrepõe ao
automatismo, conseguindo deste modo, que a frescura de
traço transporte a veracidade expressiva (MAIA, 2004, p. 7).
O pesquisador reforça o aspecto da expressividade do desenho em
detrimento de um automatismo, mas caberia interrogar o efeito de
sentido de tal expressividade, ou seja, esse caráter primário, não no
sentido pejorativo. Esse aspecto, propositadamente elementar, fala de
perto à linguagem do público pretendido pela obra. A significação se
estabelece a partir da identificação entre enunciador e enunciatário,
identificação esta que diz respeito ao estilo discursivo colocado à mostra.
A obra apresenta um tom como se o enunciador das imagens
falasse a mesma língua do leitor. Há um acordo entre as partes do
processo comunicativo, como é esperado, contudo, o acordo desse caso,
se dá pela identificação.
Esse procedimento discursivo pode ser explicado por Fábio Lucas
(1985), pelos fios ideológicos que subjazem ao texto de literatura infantil:
O primeiro contacto com a literatura infantil i dar-se no
período escolar. O adulto, ao elaborar a mensagem dirigida à
criança, assume postura semelhante à do tradutor. O
produtor do texto procura trasladar-se à situação infantil,
valendo-se de sua experiência, e tenta mimetizá-la, a fim de
alcançar o interesse do destinatário da mensagem. No
sentido e na forma, o adulto busca equiparar-se à idade
infantil, enquanto veicula um tipo de conhecimento que é, ao
mesmo tempo, afectivo e racional (1985, p. 21).
103
Este “falar a mesma língua do público” é muito comum à literatura
juvenil. Álvaro Magalhães, autor português de literatura infantil e juvenil,
em entrevista, destaca esse traço:
Quando um leitor meu um livro de aventura, um romance
de espião, costuma dizer que ele não ali um narrador,
uma pessoa adulta, distante que está ali a contar uma
história; ele percebe que aquilo lá é deles, uma coisa com
eles; eles percebem que sou um dos deles, pelo ponto de
vista que estou ali para narrar. É como se fosse escrito por
um deles (BACELAR, M. Entrevista concedida a Mariana
Cortez. Porto, 18 abr. 2006).
A aproximação de estilos enunciador e enunciatário (narrador-
narratário) está presente, no caso de O dinossauro, na imagem, como
apontado. no texto verbal, não traços da linguagem da criança. As
imagens revelam um olhar ingênuo, que observa um fato inusitado,
fantástico, com naturalidade e de maneira positiva aquele percurso. A
fantasia
51
se estabelece no acontecimento: um monte se torna um
dinossauro e sai para descobrir o mundo.
A maneira de fazer do verbal, no entanto, não reitera essa
atmosfera, não há marcas lingüísticas mais livres que possam revelar o
propósito de aproximação com o leitor infantil. As palavras não carregam
marcas do enunciatário, como seria pertinente pensar.
Percebe-se sempre a linearidade, o padrão, a ngua correta. Não
traço de oralidade, não diálogo. A palavra esinstaurada no narrar
alheio, não expressa afetividade nas escolhas lexicais. As palavras são
frias, distantes. o excesso de adjetivos ou diminutivos. As palavras
pertencem, resta concluir, ao mundo da narração, ao lá, ao distante. O
verbal está, pois, afastado do público. A palavra está longe, muito longe
da perspectiva da criança. Não fosse pela ordem direta, pelo vocabulário
simples, pelas constrões sintáticas facilitadas e pela ingenuidade do
tema, esse discurso teria como destinatário o adulto, apesar do uso da
51
Os termos fantástico e fantasiao utilizados, neste momento, como sinônimos de ficção.
104
pessoa, que como pontuado por Fiorin (1996), em As ascias da
enunciação, gera o efeito de sentido de maior subjetividade. Posto isto, é
válido pensar que a palavra, pelo plano da expressão, também poderia
estabelecer um contrato de identificação com o leitor.
Caberia, neste momento, tomar a discussão formulada por Zohar
Shavit sobre o duplo destinatário (adulto e criança), que, segundo
proposto pela pesquisadora israelense, é revelado pelo discurso. Na obra
em questão, a predominância de um sobre o outro, no sistema verbal.
O discurso verbal do adulto vence.
Além disso, outra figura discursiva que endossa tal leitura é a do
professor como aquele que tudo sabe, visto que se tem a equação:
professor = saber. Insere-se uma voz institucional. Assim, o discurso da
literatura infantil como veículo para educação vem à tona.
O primeiro aspecto ideológico a destacar na literatura infantil
é a posição hegemônica do adulto em relação à criança na
materialização da obra a ser consumida. O invólucro
ideológico que norteia o adulto infiltra-se na obra por ele
produzida e confirma, para a criança, a atmosfera de
consenso que a ideologia requer (LUCAS, 1985, p. 20).
Vale registrar que a consulta sobre a natureza do monstro poderia
ser feita ao sábio da aldeia, ou a uma feiticeira, ou à ppria natureza, ou
até ao dinossauro, mas o discurso de valorização da escola e do saber
instituído se faz presente, introduzindo um discurso autorizado, que não é
próprio à criança, mas sim àquele que a educa.
Mesmo com a tentativa de aproximação do universo da criança que
se constata nas características dos desenhos, os fios ideológicos submergem
e, traiçoeiramente, escapam ao controle do discurso. É sensível um
enunciador traído pela ideologia subjacente. Isso que fere os seus princípios
estéticos de superfície, no caso, apresentado pelo sistema visual.
A imagem (desenho) do professor é algo que também deve ser
destacado, pois enfatiza a ideologia do discurso instituído. O professor
representado no verbal como sábio é, por meio da imagem, representado
105
atrás de sua mesa, com óculos e maçã. As figuras são arranjadas de
modo estereotipado, e o professor é visto como aquele que pensa, no
lugar para pensar – a escola.
Figura 2.34 – O professor na escola
Uma figura discursiva, contudo, um conector de isotopia, inverte
ou acrescenta sentido à leitura. Em duas cenas, a figura do professor faz
cena solo: durante a reflexão sobre a identidade do monstro e durante a
viagem, quando fotografa. A forma de rascunho é novamente e, talvez, de
maneira ainda mais enfática, tratada. A enunciação é mostrada e abre
caminho para uma leitura em sentido oposto.
No primeiro momento solo, tem-se a oposição figura vazia versus
cheia. A linha da terra, o caminho circular e o lápis são figuras vazias. O
corpo, a camisa, a calça, o colete e os sapatos são figuras cheias. Essa
oposição traz a idéia do desleixo, do estar por fazer, do feito às pressas e,
assim, reitera a leitura do bloco de notas, do diário de viagem, realizado
por um olhar-criança.
O espaço circular, que representa o caminho do professor, é
reforçado pela cor traçada sobre o traço do lápis. Este movimento gera o
efeito de continuidade, de duratividade no caminhar do mestre. O
professor refletiu por um bom tempo para chegar à conclusão sobre a
106
identidade pré-histórica do monstro. O tempo, o espaço e a formação
autorizam a personagem a refletir e a concluir. O professor é o único
capaz de solucionar o enigma. Chave que foi dada ao leitor antes mesmo
do início da história.
Figura 2.35 – O professor
Na segunda cena, a idéia do rascunho também é reiterada, mas por
outras vias: uma flecha a lápis que aponta para a cabeça de uma das
posições do professor, e as diferentes posições apresentam a marcação
temporal, mas sem as molduras, ou quadrinhos, como em outra cena.
Apesar da simultaneidade da imagem, a idéia da passagem de tempo
es presente, visto as alterações realizadas. Como num estudo de arte, por
exemplo, os de Leonardo da Vinci, que, se sabe, são um processo e,
portanto, obedecem a uma seqüencialidade não aparente, mas inferida:
107
Figura 2.36 – Estudos de Leonardo Da Vinci
Esse recurso de mostrar o fazer, de trazer a enunciação ao
enunciado, de tratar a imagem como rascunho provoca o distanciamento
da ficção. Se, por um lado, a figura estereotipada e a ligação com o estilo
de desenho infantil aproximam o leitor, por outro, a ruptura da ficção
distancia o receptor do dito, da ficcionalidade. Eis a imagem ambígua,
caracterizando um dos procedimentos poéticos na imagem do livro infantil.
Armas (2003) teoriza sobre essa questão:
Algunas de las s sorprendentes rupturas de los mites de
espacio establecido llegan a rozar lo metaficticio, pues
tienden a crear un efecto de distanciamiento: señalan la
ficcionalidad de sus recursos, rompen los límites entre la
realidad y la ficción, como ocurre de una manera evidente en
aquellos libros que se incluyen a mismos en la ficcn [...]
Aquí nos referiremos a la ruptura literal del marco en que se
encuadra la ilustración y que es procedimiento que quiere
revelar mediante el distanciamiento su carácter ficticio. A
este respecto, es interesante observar que ruptura del
marco es el nombre que recibe uno de los procedimientos
más comunes en la metaficcn contemporánea, y consiste
en romper las convenciones del relato (2003, p. 178).
108
Figura 2.37 – Ruptura da ficção
O experimentalismo de Bacelar se aproxima da ficção
contemporânea. Observa-se essa tendência em autores como Saramago,
JoCardoso Pires, Guimarães Rosa experimentam (ou experimentaram)
essa tendência em suas obras literárias. Magritte, Fellini experimentaram
em outras expressões poéticas, as artes plásticas e o cinema,
respectivamente eis a inserção e exploração do discurso metaficcional
na literatura infantil, traço característico da, ainda em formulação,
literatura pós-moderna:
[...] o sócio-código do pós-modernismo baseia-se numa
preferência pela não selecção ou por uma quase-não-
seleção, numa rejeição de hierarquias discriminadoras e
numa recusa da distinção entre verdade e ficção, entre
passado e presente, entre relevante e irrelevante
(FOKKEMA, [s.d], p. 66).
Finalmente, a narrativa termina como começou, ou seja, é cíclica
a imagem de encerramento é a mesma da introdução:
109
Figura 2.38 – Situação inicial / Situação final
Relações: tramando os fios
O dinossauro e O meu avô, de Manuela Bacelar, são as primeiras
aventuras da autora no exercício da dupla vocação. Assim, todo o trabalho
é, antes, uma busca de linguagem ppria, de identidade. Há,
evidentemente, deslizes, como uma proposta de aproximação com o
público infantil apenas no visual, isolando do projeto gráfico a contribuição
do verbal, como foi demonstrado., Há, no entanto, com maior freqüência,
acertos, como o recurso do P.S., a ruptura com a ficção, entre outros
avanços expressivos, a aproximação com o desenho infantil.
É natural que, com o passar do tempo, a técnica de Bacelar como
autora-ilustradora tenha se aprimorado. Isso é perceptível à leitura de
Bernardino (2005). Algumas questões são de relevo para o estudo que ora
se propõe e, por isso, a necessidade de se explicitarem os avanços
nesta obra de 2005, quinze anos após a publicação de O dinossauro.
Interessam à pesquisa as diferentes relações entre palavra-imagem
englobadas pelo projeto gráfico. Destacam-se, por isso, algumas
diferenças da primeira para última publicação acerca do entrecruzar de
sistemas expressivos.
mais liberdade na apropriação dos espaços. As linguagens não
são confinadas em um espaço predeterminado. Assim, palavra e imagem
110
se entrelaçam e se tornam, cada vez mais, um todo indissociável, como
demonstra o título da obra, cumprindo efetivo papel de livro-álbum:
Figura 2.39 – Detalhe do título: fusão palavra/imagem
Seguindo a mesma perspectiva, o texto passa a acompanhar a
imagem, sem um lugar predeterminado para um e para o outro. Na obra
analisada anteriormente, a palavra ocupava sempre o mesmo lugar na
página. A variação espacial da palavra na página desautomatiza o olhar,
obrigando o leitor a correr por toda a superfície da imagem para chegar,
ou não, à palavra, seja qual for o desejo dele. No design gráfico de
Bernardino, opõem-se previsibilidade e espontaneidade.
Ainda, em O dinossauro a palavra sempre aparecia em itálico,
reforçando o gênero do relato subjetivo em primeira pessoa, observador
distante da ação. Ao instaurar o narrador, cabe ao narratário o mesmo
papel distanciado, visto que este olhará pelos olhos daquele, reforçando a
subjetividade como efeito de sentido. Já em Bernardino, haverá a inserção
do diálogo. Há, portanto, a instância da interlocução. A voz é atribuída à
personagem, não filtro do narrador como no caso anterior. A
observação do leitor é, por conseqüência, mais objetiva. O olhar desse
não coincide com o daquele.
A palavra, em interlocução, adquire um estilo também
diferenciado, uma vez que não está em itálico. A letra, portanto, passa, na
última obra, a significar e, por conseguinte, ser partícipe na construção do
texto. Ainda que timidamente, a palavra é imagem. O título em minúscula
na capa da obra reforça esse racionio.
111
Outro dado importante é a identificação do leitor-criança com a
personagem principal (protagonista), também criança, que enfrenta
dificuldades semelhantes às encaradas por qualquer um nessa faixa
etária: o amor dos pais, a aceitação social, a busca da identidade.
Na obra O dinossauro, a identificação enunciador-enunciatário
somente era possível graças à expressão da imagem. Neste outro
exemplo, a imagem continua a revelar o fazer estereotipado próprio ao
desenho infantil (reforçado também pela linha da terra sempre presente
neste caso), contudo, o tema proposto também estabelece o contrato
discursivo entre leitor-texto. Pode-se mesmo afirmar que o contrato se
estabelece no plano da expressão e no do conteúdo, no sistema verbal e
no visual, autorizando a afirmação de que com o passar do tempo, a obra
de Bacelar amadureceu em direção ao livro-álbum.
O texto poético exige ainda o trabalho com a linguagem, a saber, o
desvio do sentido denotativo da palavra. Na primeira obra analisada, o
monte que se transforma em dinossauro rompe a realidade e explora a
ficção. Tal ruptura é possível visto a metáfora visual: monte verde – dorso
verde do dinossauro, ou seja, a metáfora permanece na imagem, pois os
traços comuns – forma e corautorizam a associação metafórica.
Em contrapartida, Bernardino avança e apresenta a metáfora tanto
na imagem quanto na palavra. Diz o texto: [...] e abrir uma porta que o
pai trazia, a tapar o coração”.
A insensibilidade do pai diante da personalidade diferente do leão-
filho faz que ele traga uma porta fechada no coração. Metáfora do
aprisionamento do sentimento, da afetividade entre pai e filho. A imagem
representa um coração preso numa gaiola, e a flauta de Bernardino será
instrumento de libertação e está posta entre as grades da gaiola, como se
pudesse abri-la. A imagem não descreve literalmente a palavra, mas
acrescenta uma metáfora com o mesmo sentido, construindo um diálogo
efetivo entre palavra e imagem, reforçando a idéia do livro-ábum.
112
Figura 2.40 – Metáfora Visual
A ruptura da linearidade expressiva presente em O dinossauro se
a ver por outro recurso em Bernardino. Aqui, a imagem recorre à
continuidade na gina dupla ou na virada da página. Como Armas
(2003) revela:
[...] las ilustraciones se extenden durante cuatro o cinco
páginas, y aprovechan las interrupciones del texto pictórico
para crear una atmosfera […], para mostrar acciones y
movimientos [...], para configurar espacios y sugerir
secuencias temporales [...] o para crear efectos
anticipadores [...] (2003, p. 175).
Na obra de 2005, o recurso sugere o movimento e a passagem
temporal:
Figura 2.41 – Seqüência narrativa (virada de página)
113
Tanto o tamanho do leão como as cores do fundo contribuem para
a mudança espaço-temporal da personagem. Este procedimento também
pode ser observado na capa, na contracapa e na lombada do livro:
Figura 2.42 – Capa e contracapa apresentam uma cena
Além das capas externas, as páginas de ante-rosto de início e final
agregam sentido à narrativa. Sobre esse procedimento, recorre-se
novamente a Armas (2003):
Las estrategias van incluso s allá de la página,
desbordando los límites establecidos convencionalmente
para la ilustración en el propio libro. Es cada vez más
habitual, por ejemplo, encontrar ejemplos de
sobreinformación en portada y contraportada del libro,
formando parte del contrato o pacto de lectura que el texto
firma con el lector: proporcionando información genérica o
temática, por ejemplo, pero prestándose también a la
interpretación por parte del lector. [...]
Portada y contraportada pasan entonces a tener un papel
narrativo que ha empezado antes de leer el texto, al coger el
libro y contemplarlo como objeto, o que termina después de
la lectura iluminando retrospectivamente el sentido de la
historia (2003, p. 176).
114
A contribuição teórica de Armas se ilumina com Bernardino, uma
vez que todos os espaços são utilizados, sejam eles internos ou externos à
obra, sejam usuais ou não.
Assim, Bernardino tem, nas páginas de ante-rosto de início, o
nascer do sol e, nas páginas de ante-rosto finais, o luar. Mais uma vez,
reiterando a passagem de tempo e a esperança de reconciliação com o
pai, visto que, no fim da história, resta a esperança, não há o final feliz
tão presente no conto para criança, principalmente, aqueles em que os
ensinamentos o obedecidos.
Figura 2.43 – Passagem do tempo
O final, como é particularmente singular às obras de Bacelar, não é
feliz nem triste, simplesmente não existe, desfaz-se no ar, como bastante
próprio às narrativas contemporâneas, que fogem ao maniqueísmo
tradicional dos contos para crianças.
O leitor pode, nas obras dessa autora, terminar apropriando-se
do contar e do papel passivo de leitor, tornar-se ativo como narrador,
assim como quer Bojunga Nunes: [...] eu sou leitora, logo, eu participo
intimamente desse jogo maravilhoso que é o livro; eu sou leitora, logo,
eu crio ([s.d.], p. 22). Eis a interação proposta como meta na
literatura s-moderna.
115
2.2.2 Como Leitora-Autora: Experncia com o Clássico A
Sereiazinha
Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo
Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.
(Sophia de Mello Breyner Andresen)
Tecendo objetivos e implicações: o objeto clássico
Um relevo sinuoso surge para análise. A análise busca entender em
que medida o projeto gráfico contribui para a leitura e formação do leitor
literário e justifica essa travessia arriscada. Há ciência da dificuldade a ser
percorrida, tendo em vista os problemas abordados anteriormente.
Também não está descartada uma volta ao ponto inicial sem ter tido
respostas ou ter chegado a conclusões. Vale, porém, pontuar as
dificuldades e destacar as implicações do diálogo entre os dois sistemas
semióticos. Nesse caminho, os atalhos, as paisagens vislumbradas, os
pequenos oásis já são jóias raras e pontos de luz na escuridão reinante.
Antes, a dupla autoria de palavra e imagem na obra de Manuela
Bacelar era a questão perseguida pela trilha da pesquisa; agora, uma
questão bastante controversa se oferece. Um texto instituído, consagrado,
conhecido lido e relido existe. É independente, livre, autônomo. A
palavra se basta. De que serve a imagem? É a pergunta que se impõe. É
possível um livro-álbum nessas condições, ou seja, sem que palavra e
imagem nasçam juntas?
Hans Christian Andersen assina a autoria. De geração a geração,
da voz à escrita, a história da sereia encontrou abrigo no imaginário
infantil. Sempre, ou quase sempre, as linhas negras foram acompanhadas
por imagens. A palavra ficou, a imagem não. Constata-se e, mais uma
vez, pergunta-se: as imagens também contavam esta história? Os
116
desenhos contribuíram para eternizar o conto? Por que morreram as
imagens? Havia conversa entre palavra e imagem quando esta história foi
apresentada em objeto-livro?
Deixando de lado a diacronia e acelerando o tempo, em um salto, o
calendário se impõe no final do século XX, mais precisamente em 1995, a
história da Pequena Sereia, ou A sereiazinha, ali está em um objeto-livro,
nas mãos das crianças, dos professores, dos pais. A palavra permanece e
é a mesma de outrora. A sereia é a mesma, o príncipe também. A
imagem, no entanto, “desfez-se no ar”, não existe mais, foi substituída.
Imediatamente, escapam mais e mais perguntas: por que a imagem o
se eternizou junto com a palavra? É função da imagem atualizar,
contextualizar a palavra e, por isso, ela não permanece? As artes gráficas
se transformaram, e isso implica mudança da imagem?
Uma angústia impera diante dos espaços a serem descobertos.
Apresenta-se o “novo mundo”, com seus mistérios e perigos. Com método
e sistemática, avança-se sobre o caminho repleto de obstáculos e enigmas
que turvam imenso o olhar. Contudo, aventurar-se pelo desconhecido é
inerente ao humano. Assim, segue-se.
Uma primeira lâmpada se acende. A imagem pode durar. A palavra
pode durar. O objeto-livro também pode com aquela palavra e aquela
imagem
52
. Contudo, o mundo está em movimento, cientistas tempos
comprovaram. As leituras e releituras de textos acompanham esse ritmo,
como constatam os analistas do discurso. Eis um axioma do mundo da
literatura ou das artes: os textos estão em constante diálogo e renovação.
[...] o grande vigor dos estudos folclorísticos na União
Soviética apenas se explica através do interesse pelas
produções artísticas populares não só como herança de
antigas eras, mas como algo que continuamente se renova e
se cria (CALVINO, 1999, p. 144).
52
Justificam as afirmativas as reedições de clássicos com o mesmo texto e a mesma
imagem de outros tempos.
117
A obra à cabeceira da cama e sobre a mesa de análise é A
Sereiazinha, de Hans Christian Andersen
53
, ilustrada por Manuela Bacelar.
Autor dinamarquês (1805-1875), ilustradora portuguesa, de 1995 data
da edição. A publicação da Edições Afrontamento tem Portugal como
terreno e nas crianças deste tempo potenciais leitores. Encontro inusitado
de leituras ou, quem sabe, releituras. Fato é que houve necessidade de
ouvir mais uma vez a história e esta ação vem acompanhada da imagem
recontextualizando a narrativa. O que motivaria uma leitura de retomada?
Valeria criar um álbum em que a história é antiga, conhecida e as imagens
inéditas? É possível, ainda, fazer deste conjunto de sistemas semióticos
um todo de sentido eficiente e coeso para a leitura?
O Status do Texto
Passado tanto tempo, como a história-lenda de uma sereia pela
escrita de Andersen interessa aos miúdos desta era informatizada com
seus joysticks e conversas além-mundos? Das prateleiras empoeiradas da
biblioteca, Calvino esclarece: Andersen é um clássico”. Pronto, o clássico
tudo vence. É o supermam dos discursos. Entretanto, o que é clássico
afinal? Que propriedades ele possui? Calvino elucida:
1) Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se
ouve dizer: ‘Estou relendo...’ e nunca ‘Estou lendo...’
2) Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma
riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem
uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los
pela primeira vez nas melhores condições para aprec-los.
3) Os clássicos são livros que exercem uma influência
particular quando se impõem como inesquecíveis e também
quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se
como inconsciente coletivo ou individual.
4) Toda releitura de um cssico é uma leitura de descoberta
como a primeira.
53
O texto da publicação é a versão integral e original de Hans Christian Andersen com
tradução de Ribeiro da Fonseca (cortesia derculo de Leitores).
118
5) Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma
releitura.
6) Um cssico é um livro que nunca terminou de dizer
aquilo que tinha para dizer.
7) Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós
trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a
nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas
culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na
linguagem ou nos costumes).
8) Um cssico é uma obra que provoca incessantemente
uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas
continuamente as repele para longe.
9) Os clássicos o livros que, quanto mais pensamos
conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se
revelam novos, inesperados, iditos (1993, p. 9-13).
Quais são os elementos da história A sereiazinha que a qualificam
como um clássico? É possível que em literatura, em particular a infantil,
mais que a obra possa ser considerada um clássico, os autores se tornam
clássicos e fazem História. Assim como Grimm e Perrault, que fizeram
recolhas de histórias populares, Andersen também o fez e é um clássico.
Seus contos se eternizaram. Do culo XIX à era da globalização e
comunicação de massa dos medias, o que faz a sereia descrita por
Andersen se renovar?
De entre todos los géneros a los que Andersen dedica su
actividad literaria, son los cuentos los que le proporcionan
el reconocimiento mundial. Andersen se inspira en los
relatos populares. Escribe 164 cuentos para los que toma
prestados personajes y argumentos del mundo de la
leyenda, de la Historia o de la vida. Los cuatro primeros
son publicados en 1835. Aunque estos cuentos están
destinados a los niños, tambn resultan atractivos a los
adultos por su imaginacn poética y, sobre todo, por el
sentido moral y filosófico que se esconde dets de cada
acdota (Disponível em:
<http://www.ricocheteunes.org/es/biblio/base9/andersen.
htm>. Acesso em: 17 jun. 2006).
Para entender melhor o que é essa anedota filosófica e moral,
Calvino (1999), quando se debruçou sobre os contos de fadas, constatou,
a partir de estudos como o do formalista russo Propp, que os contos
119
mantêm o mesmo esquema presente na estrutura narrativa de diversas
regiões, das mais próximas às mais longínquas:
O que na história humana é narração e imagem desde as
cosmogonias dos índios do Brasil a à mitologia greco-
romana, e ao Capuchinho Vermelho aparece hoje como
manifestão de um processo mental único, que de um século
para outro e de um continente para outro repete os mesmos
esquemas. Algumas escolas interpretativas identificaram nos
motivos dos contos de fadas as fases dos ritos de iniciação;
outras reconheceram neles os símbolos dos sonhos; ou
também foram reduzidos a fórmulas esquemáticas como
operações lógico-matemáticas. O debate entre as várias
escolas continua, e os contos de fadas, em toda a sua
elementar simplicidade, permanecem uma das mais
misteriosas expressões da cultura humana (1999, p. 79).
Tal fato revela a necessidade do humano de retomar a esncia
dos contos de fadas, e esse é o sentido da anedota filosófico-moral, que,
de certa maneira, atende à demanda entrevista como fundamental pelo
adulto, estabelecendo-se como critério de escolha de narrativas oferecidas
para os pequenos. Daí a necessidade da reedição ou releitura
54
.
Não é, obviamente, fácil uma obra partilhar o gosto de pais e filhos
simultaneamente. Shavit (2003) teorizou sobre o que designou ambivalência
do texto da literatura infantil. Também refletiu sobre a conseqüência dessa
ambivalência com relação à canonização da obra. A autora israelense afirma
que a literatura infantil tem como condição o prosito de atender aos
interesses dos adultos (pais e professores) e das criaas. As obras que
atendem a esse duplo encargo são aquelas canonizadas.
[...] o texto ambivalente tem dois leitores implícitos: um
pseudodestinatário e um destinatário real. Não se espera que
a criança, que é o leitor oficial do texto, realize o texto em
sua totalidade, sendo muitas vezes mais uma desculpa para o
texto do que o seu genuíno destinatário (2003, p. 105).
54
Os estudos psicanalíticos como de Bruno Bettelheim, em A psicanálise dos contos de
fadas, evidenciam a questão.
120
De acordo com esta visão, o crítico e autor Calvino reitera o duplo
encargo no caso dos contos de fadas:
Na nossa seleção tivemos em conta as exigências de um
público infantil como destinatário natural dos contos de
fadas, mas também o facto de habitualmente serem pessoas
adultas a ler ou a contar as histórias às crianças; para
facilitar a mediação dos adultos, as nossas secções
apresentam-se como uma amostra dos vários filões contidos
no livro (1999, p. 83).
Uma vez publicada a obra, resta interrogar que aspecto cabe à
criança e quais elementos convencem ao adulto na obra A sereiazinha
para assim formular a necessidade e atualidade desse enredo hoje. Como
hipótese, à criança caberia a imaginação, a ficcionalidade; ao adulto, o
fundo moral dos contos, pois a ele cabe a eleição de um conto, a partir do
critério “o que é bom para o meu filho? ou “o que meu aluno deve
aprender?”. Interessa, mais uma vez, ouvir o que a história diz, para,
então, perceber (sentir) como ela diz e assim, mais profundamente,
enredar-se nos planos do conteúdo e da expressão dessa publicação.
Destaca-se, de antemão, que a expressão popular atua sobre o homem de
uma maneira singular, não o popular regionalizado, mas universalizado,
por isso, clássico.
Releitura da tradição popular: lenda ou conto?
Este clássico de Andersen, assim como seus outros contos, é uma
releitura da tradição popular: “En lo que se refiere a Andersen, éste se
limita a tomar prestadas ideas de los cuentos populares que le
proporcionan un punto de partida para poner su imaginación en marcha”
(Disponível em: <http://www.ricochet-
jeunes.org/es/biblio/base9/andersen.htm>. Acesso em: 17 jun. 2006).
121
Trazer o popular à narrativa implica enveredar pelos confins do
imaginário coletivo. A sereia é uma figura lendária. Aquelas comunidades
que têm forte vínculo com o mar, como Portugal, Brasil e Moçambique,
para citar algumas, acompanham (ou são acompanhadas por) sereias em
diversas narrativas. De Camões, no século XVI, em continente europeu, a
Mia Couto, em continente africano, no século XXI. Por si, o tema habita
a fantasia do homem e como lenda, história narrada, renova-se de
enunciação a enunciação.
A sereia, com seu canto sedutor, hipnotiza os marinheiros, fortes
guerreiros e os atraem para as profundezas do mar. Explicam-se, com
isso, os naufrágios ou as mudanças inesperadas de rotas ou possíveis
fugas da terra natal. A lenda, muitas vezes, explica o que não tem, em
princípio, explicação: “Por vezes, aparecem classificadas como lendas
narrativas que se propõem explicar a origem ou razão de um fenômeno ou
de um facto geográfico” (REIS e LOPES, 2002, p. 224-225).
Em A sereiazinha, tem-se a lenda, mas, sobretudo, a releitura da
lenda transformada, possivelmente, em conto. Este é caracterizado por
Reis e Lopes (2002):
[...] o conto esteve originalmente ligado a situações
narrativas elementares: nelas, um narrador, na atmosfera
quase mágica instaurada pela expressão ‘era uma vez’,
suscitava num auditório fisicamente presente o interesse por
acções relatadas num único acto de narração e que o raro
tinham, para além dessa função lúdica, uma função
moralizante (2002, p. 79).
Da justificativa oral ao universo da ficção, a sereia se faz presente
nos relatos das gerações. Passa-se, então, à história com o intuito de
explicitar a sua estrutura e sua ação sobre o interlocutor um sujeito
distante dos valentes capitães do mar e próximo dos shoppings e dos
jogos eletrônicos, que em nada remetem às aventuras marítimas.
122
Das profundezas: a história
Andersen conta que, nas profundezas do mar, um viúvo, pai de seis
filhas, é rei. A avó exerce o papel da mãe. o lindas meninas-sereia que
encantam aquele encantado território. Ali, vivem as pequenas sereias na
expectativa de completar quinze anos e poder descobrir a supercie das
águas. A caçula é mais calada, ensimesmada e também a mais bonita.
Sonha com a possibilidade de explorar o desconhecido, a saber: o proibido
reino da supercie. Sonha em desvendar as distantes paisagens “além-
águas”. A menina-sereia se assemelha em muito aos próprios marinheiros
que anseiam pelo novo e aventuram-se pelos perigos do mar.
As irs, por serem mais velhas, uma a uma, vêem o sonho
realizado. Atenta, a Sereiazinha ouve os relatos sempre com a frustração
de o serem o maravilhosos como o seu desejo. Quando completa
quinze anos, a protagonista recebe autorização e sobe à tona.
Maravilhada, depara-se com um navio e avista um lindo rapaz. Ao
contrário do que se passa nas narrativas-lendas sobre sereias, é ela, a
hipnotizada pelo humano. Anteriormente, a história aponta um indício do
seu desejo de conhecer o ser mortal:
Era uma criança estranha, calada e pensativa
55
. Enquanto as
outras irmãs decoravam os seus canteiros com várias coisas
provenientes de navios afundados, o único ornamento que
ela escolheu foi uma bela escultura de rmore
representando um lindo rapazinho, feita de pedra branca
proveniente também de um naufrágio (p. 7).
Suspendendo o narrar e exercitando o fazer metalingüístico, um
traço há que se destacar. Nas histórias tradicionais de amor, de Branca de
Neve à aprisionada Rapunzel, a mulher tem por função (condição) esperar
o príncipe encantado. Esse é um motivo-tema nos contos populares, como
atesta Propp pelas palavras de Calvino (1999): “O motivo difundidíssimo
55
Grifo nosso.
123
da princesa prisioneira corresponde à clausura a que eram submetidas as
raparigas durante o período menstrual” (1999, p. 143).
Em A sereiazinha, por outro lado, a princesa dos mares é
caracterizada como inconformada e, por isso, age. Esse traço distintivo
de sua personalidade é reiterado ao longo da narrativa de Andersen,
como em: Era uma criança estranha, calada e pensativa... o único
ornamento que ela escolheu foi uma bela escultura de rmore
representando um lindo rapazinho [...]” (p. 7). Pergunta-se, eno: O
conto seria, portanto, ideologicamente feminista? Isso seria possível no
culo XIX ou seria um anacronismo? Andersen é caracterizado por
trabalhar com o universo feminino e, principalmente, por atribuir às
mulheres papéis que destoam da tradição:
En los cuentos de Andersen las mujeres ocupan un lugar
preponderante hasta el punto de que en algunos no
encontramos la presencia masculina. [...] Las mujeres
juegan a menudo el papel tradicionalmente masculino: ellas
tienen el poder, la fuerza (la Reina de las Nieves y la Virgen
de los hielos) y socorren a los hombres (Disponível em:
<http://www.ricochet-
jeunes.org/es/biblio/base9/andersen.htm>. Acesso em: 17
jun. 2006).
É posvel que, nesse traço distintivo, esteja a autorização para a
releitura contemporânea da narrativa. Entender a atualidade da história
por sua essência é uma possibilidade aberta na literatura.
De volta à história, o ficcional conduz o fio da história. Uma
tempestade se forma e o navio do príncipe naufraga. A Sereiazinha rompe
os padrões sociais e morais e, com mãos e cauda de peixe, salva o seu
príncipe encantado. Há, pois, neste momento, uma inversão de papéis
sociais, ou, deixando-se de lado os costumes da sociedade, a quebra
de um dos componentes do paradigma tradicional do conto de fadas,
reiterando a idéia apresentada anteriormente: La Pequeña Ondine
(1835): los hombres están casi ausentes en este cuento. Incluso el
príncipe, que debería ser un personaje importante, carece de existencia
124
autónoma (Disponível em: <http://www.ricochet-
jeunes.org/es/biblio/base9/andersen.htm>. Acesso em: 17 jun. 2006).
Senhora da situação e do destino, a princesa dos mares deixa o
seu amado desacordado à margem do continente e espera que alguém o
encontre. Assim como desejava a pequena sereia, outra linda moça o
encontra. A princesinha dos mares se tranqüiliza e volta para casa de seu
pai, mas nunca esquece aquele rapaz que teve nos braços.
Depois de algum tempo angustiada, a heroína narra a história para
as irmãs, e estas a ajudam a encontrar seu amado.
Com a alma inquieta que tem, a pequena sereia o se conforma
em apenas observá-lo de longe; quer estar ao seu lado. Mais uma vez,
vislumbra-se a mulher que parte para a ação, manipulada por seu querer
estar conjunta ao objeto de desejo figurativizado pelo príncipe e também
pelo desejo de ser humana, expresso anteriormente.
É importante evidenciar que não apenas o objeto de desejo
amoroso manipula a Sereiazinha, mas também o desejo da imortalidade
da alma pregada por uma corrente discursiva judaico-cristã:
- Oh, sim respondeu a velha senhora -, eles [humanos]
também morrem e as vidas deles ainda o mais curtas do
que as nossas. Nós podemos viver trezentos anos, mas
quanto chega a nossa altura transformamo-nos em espuma
do mar. Mas os seres humanos têm uma alma, que continua
a viver depois de o corpo se tornar em pó. Voa para o u,
até às estrelas brilhantes. Tal como nós subimos até à
superfície para olhar para o mundo humano, também eles
sobem até lugares desconhecidos que nós nunca
alcançaremos (p. 30).
Justifica-se, então, a busca por uma alma, que esta lhe traria a
imortalidade. Para realizar seu objetivo, ela age. Pede ajuda, procura a
competência que lhe falta.
Nos “contos de fadas”, a presença da bruxa é recorrente. Eis a
personagem das poções e feitiços. À bruxa cabe, normalmente, o papel de
obstáculo à realização da performance do sujeito. A sereiazinha subverte
125
também esse papel. A bruxa doará competência à princesa. Pode
perguntar aquele habituado aos contos: “Esta não é a função da fada,
com sua varinha de condão?”. A bruxa, neste caso, fa algumas
exigências, e isso justifica o doador de competência ser figurativizado por
ela. É instaurada a troca, e não puramente a doação, como proposto no
esquema proppiano. A condição o é das mais favoráveis à princesa.
um acordo entre as partes. A princesa negocia friamente a sua felicidade
com a bruxa “Dá-me sua voz e dou-te o príncipe” –, ou melhor, a bruxa
vai dar-lhe condições para ter o príncipe, mas exige pagamento.
O comércio se estabelece. Não é uma ão solidária própria às
comunidades regidas pelo trabalho coletivo: é uma comunidade
mercantilizada, refletindo as relões de trabalho do final do século XIX,
ou pré-capitalismo.
Duas questões clamam pelo olhar da análise. A primeira é aquela
em que a princesa assume sua vida, apesar dos riscos, como sujeito do
fazer. Ela quer e faz, independentemente dos obstáculos. A pequena
Sereia não terá mais a encantadora voz e sentirá dores terríveis nas
pernas. Nada lhe importa, no entanto. Troca seus dotes e atributos pelo
amor (ou possibilidade de amor) do príncipe. A segunda questão diz
respeito à humanização. O que a bruxa tira da sereia é justamente o seu
poder mágico. Ela terá de seduzir o príncipe como humana, com as
mesmas armas e artimanhas das outras humanas, possíveis candidatas ao
coração do amado. A personagem mágica dará vida ao humano.
A Sereiazinha, despojada de magia, reencontra seu príncipe. Ele se
encanta com ela, mas com um olhar fraterno; ela não parece ter atributos
sensuais. Não é reconhecida como mulher. Desprovida de elementos
mágicos, a Sereiazinha assume o papel de companhia do príncipe. Ele até
lhe dá roupas de homem e lhe faz confidências, como a um amigo. Ele não
tem olhos apaixonados para ela, mesmo porque se revela apaixonado por
outra moça, aliás, aquela que o salvou do naufrágio, a quem ele deve a
vida. O príncipe não reconhece sua verdadeira heroína, a Sereiazinha, pois
ela não parece sê-lo, portanto, sua identidade está mantida em segredo.
126
No dia do casamento do príncipe, num ato mágico, as irmãs-
sereias fazem um pacto com a bruxa a fim de salvar a irmã mais nova. A
bruxa fica com os lindos cabelos das princesas e elas recebem um punhal,
com o qual a Sereiazinha deve matar o príncipe. O amor ao humano,
contudo, é maior que por sua família e por si mesma. Sem realizar o seu
desejo, porque o príncipe se casa com outra, o seu amor por ele
sobrevive. Matá-lo não seria possível, pois o amor a impede.
Tem-se como percurso narrativo a manipulação das irmãs, mas a
princesinha não possui um querer realizar a performance da salvação, pois
a liberdade não é um objeto-valor para ela. A Sereiazinha, então, diante
do trágico destino, joga-se ao mar e se transforma em espuma branca.
Esta figurativiza a morte no universo das sereias. Assim, todo o percurso
da Sereiazinha é sancionado negativamente. É um percurso de frustração
e não-reconhecimento, que não chega a ser totalmente negativo, pois
é oferecido à Sereiazinha um caminho para imortalidade, mas esta
depende da ação (comportamento) da criança.
Das entrelinhas às linhas, a moral e o discurso judaico-cristão
maniqueísta são explicitados, reafirmado:
Não precisamos do amor de um humano para nos
tornarmos imortais. [...] Quando tivermos tentando fazer
todo o bem possível [...] conseguimos uma alma imortal e a
felicidade eterna. [...]
Sem nos verem, deslizamos para dentro de casas de seres
humanos onde há crianças, e sempre que encontrarmos
uma criança boa, uma que torna os pais felizes e
merece o seu amor, Deus encurta o nosso tempo de
experiência
56
. [...] mas, se encontramos uma criança
realmente má, então temos de chorar lágrimas de pena, e
cada lágrima acrescenta um dia à nossa espera (p. 60-61).
Algumas leituras desse conto o possíveis. A didático-moralizante,
em que é dito ao leitor que ele seja bom, pois disso depende a vida da
Sereiazinha, personagem bastante carismática. Uma leitura sociológica ou
56
Grifo nosso. Vale destacar que a questão da ideologia impcita será tratada na
conclusão deste estudo.
127
psicanalítica, em que necessidade de a mulher ficar à espera, pois,
quando assume para si a conquista, a ação, o amor não se realiza. Triste é
o caminhar daquela que determina o seu destino. Triste é a condição da
mulher nos contos de fadas.
Em oposição, a reconhecida heroína é a princesa do reino vizinho.
O sonho dos reis, pais do príncipe, é promover o casamento entre os
herdeiros dos dois reinos. Dessa forma, são reiterados os valores sociais
de uma época.
Como teorizado por Propp e Bakhtin, texto e contexto o
intrínsecos. O discurso reflete e refrata a sociedade, neste caso, com
valores capitalistas, ideário moral judaico-cristão e hierarquização das
classes sociais, visto que o príncipe se casa com a princesa de um reino
vizinho, como quer o seu pai.
Sereia, magia, amor, príncipe, frustração o figuras que alimentam
e compõem o imaginário humano. Vivenciando a narrativa, o homem
experimenta as emoções. O objeto estético atua sobre a sensibilidade e
também sobre as estruturas psíquicas do indivíduo. Por meio da narrativa,
o descobrir-se. Na linha estruturalista e fenomenológica:
E o próprio adulto descobre na sua vida o que a sua cultura,
o ensino, os livros, a tradição lhe ensinaram a ver. O contato
de nós mesmos conosco faz-se sempre através da cultura,
pelo menos através da linguagem que recebemos [...] e que
nos orienta no conhecimento de nós mesmos. Pelo que,
finalmente, o puro si, o espírito, sem instrumentos e sem
história, embora seja como que uma instância crítica que
opomos à pura e simples intrusão das idéias que nos são
sugeridas pelo meio, se realiza em liberdade efetiva
mediante o instrumento da linguagem e participando do
mundo (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 51).
Da ação do discurso sobre o homem e a sociedade, passa-se ao
plano da expressão. O “portão aberto” conduz à maneira de fazer com
relação ao que se conta na obra A sereiazinha e às provocações sensíveis
criadas pelas imagens agregadas à palavra poética dos contos de fadas.
128
Nas mãos, a análise leva os valores fundamentais da narrativa de
Andersen para homologá-los à expressão.
Palavra e imagem: implicações e entraves
Analisar a relação palavra-imagem articulada pelo projeto gráfico é
a proposta deste estudo. É pertinente perguntar, então, que função a
imagem exerce (ou deveria exercer) no diálogo com a palavra. Que
espaço tem aquela em um texto completamente autônomo? Seria o papel
do ilustrador preencher as entrelinhas deixadas pelo autor? Contudo, se
for afirmativa a resposta dada à pergunta anterior, sendo o livro
preenchido pelas ilustrações, o que sobraria para o leitor completar?
Para aproximarnos al libro-álbum, de lo primero que debemos
hablar es de su particular relación entre el texto y la imagen.
Cuando tenemos un libro-álbum en nuestras manos nos
vemos sorprendidos por la presencia notable de la ilustración.
Contrapunteo de imagen y palabra, donde la imagen narra lo
no dicho por la palabra, o la palabra dice lo dejado a un lado
por la imagen. Un libro-álbum no se entendería sin sus
ilustraciones, así como la ilustración sin el texto perdería
también su sentido. En un libro-álbum la imagen supera el
lugar de mero adorno o compañía del texto; la imagen es
narrativa, portadora de la historia en misma y en diálogo
con la palabra (BAJOUR e CARRANZA. Disponível em:
<http://www.imaginaria.com.ar/10/7/libroalbum.htm>.
Acesso em: 4 abr. 2006).
Bajour e Carranza definem o livro-álbum, que tem por condição a
fusão da palavra e da imagem no contar, idéia explicitada e trabalhada
no capítulo 1. A sereiazinha, de Andersen não se enquadra nessa
definão de livrolbum. O texto existia antes da ilustração e tinha
sentido completo. o depende, portanto, da imagem para significar;
essa relação não lhe é intrínseca. Entretanto, a pergunta continua sem
resposta: de que serve a imagem neste texto? Por que a opção por
129
ilust-lo? o muitas as perguntas, e talvez as respostas sejam mais
escassas, como advertido de início.
Pesquisas francesas e inglesas
57
se debruçaram sobre uma possível
tipologia de subgêneros dos livros de literatura infantil, a partir de
características recorrentes. Às vezes, tomando-se a relação palavra-
imagem como critério, outras, o tipo de texto, definem-se os subgêneros.
Assim, retomando a discussão realizada anteriormente, pois este é o
objetivo deste trabalho de tese, vale deitar olhos sobre a tipologia, uma
vez que a análise tem em mãos, propositalmente, uma obra com relações
distintas da estudada anteriormente:
a) livros com narrativas duais: são aqueles em que imagem e
palavra se constituem como duas narrativas que correm simultaneamente
e não se interseccionam.
b) livros ilustrados: são aqueles em que a imagem é cenário para a
palavra;
c) livros interativos: são aqueles em que a narrativa é assegurada
por uma estreita relação entre a imagem e a palavra; chamado, também,
de livro-álbum;
d) livros sem palavras: são aqueles em que uma sucessão de
imagens que formam a narrativa, sem necessidade da palavra.
Essas investigações incluem ainda os livros artísticos, em que o
texto verbal é poético, e os de estilo, que veiculam as histórias em
quadrinhos ou os cartoons. Nestes últimos subgêneros, o critério é o tipo
de texto. Essa mudança de critério poderá ser vista positivamente se a
abrangência de textos for considerada, mas, se rigor na formalização
dos subgêneros, tal fenômeno não pode ocorrer. Opta-se por deixar de
lado, neste estudo, os últimos tipos de livros e retomar o critério da
relação palavra-imagem; assim, é possível acrescentar, pelo menos e por
enquanto, três outros tipos de livros:
57
José Antonio Gomes, em artigo intitulado “O conto em forma (to) de álbum: primeiras
aproximações” (Revista Malasarte, Porto, novembro, 2003, n. 12, p. 3-6.), faz
referência aos seguintes autores para traçar os subgêneros: Charlotte Huck, Susan
Hepler, Claude Le Manchec, Renée Léon,Wendy Michael e Maureen Walsh.
130
e) livros escritos a partir de imagens
58
consagradas, por
exemplo, as narrativas sobre artistas de renome (Frida Kahlo, Portinari,
Klimt, entre outros);
f) livros em que o texto verbal é cenário da imagem
59
;
g) livros sem imagem: são aqueles em que a palavra prescinde
da imagem.
Esses sete tipos de livros podem ser encontrados na seção
destinada às crianças nas livrarias e bibliotecas, em qualquer parte do
mundo. Vale ressaltar que a faixa etária não foi considerada nesta
tipologia, pois, ao longo do estudo que se apresenta, muitas contradições
e imprevistos surgiram com relação a esse tipo de classificação por
idades
60
. Por isso, a imagem não está associada à fase pré-escolar, ou
seja, às idades iniciais não alfabetizadas.
Trazendo a obra de Andersen às mãos novamente, A sereiazinha
seria exemplo, então, dos livros ilustrados, ou seja, aqueles em que a
imagem é adorno do texto? A imagem não acrescentaria nada à palavra?
Esse cuidado com a fidelidade à obra é uma marca do livro ilustrado?
Ricardo Azevedo, autor e pesquisador de literatura infantil, não
concorda com esta possibilidade de auncia da cooperação entre
palavra e imagem:
É impossível negar que todo o texto ilustrado vai,
necessariamente, receber interferência de suas ilustrações.
A energia, a leitura (ilustrar é interpretar), o imaginário, a
linguagem, as cores, o clima, a técnica, as referências
icônicas, tudo o que o ilustrador fizer, vai alterar e interferir
na leitura (e no significado) do texto.
Mal comparando, é como um pianista acompanhado pelo
contrabaixo. Os dois instrumentos, as idéias dos dois
músicos, as referências e a cultura musical de cada um, tudo
vai entrar na construção do som. Dependendo da música, o
58
Alguns exemplos: no México, Frida, de Jonah Winter (texto) e Ana Juan (ilustração).
Trad. André Jenkino do Carmo. São Paulo, Cosac Naify; na Itália: Apresento-vos Klimt,
de Octavia Mônaco. Lisboa, Livros Horizonte; no Brasil, há com esta mesma proposta
sobre Tarsila do Amaral, Cândido Portinari, entre outros.
59
Exemplos são as obras de Angela Lago: O personagem encalhado, editora Lê, e
Chiquita Bacana e outras pequetitas, editora Formato, ambas de Belo Horizonte.
60
Esta reflexão voltará à tona em outros momentos do trabalho que ora se apresenta.
131
solo predominante será de um ou de outro instrumento.
Mesmo quando o solo é feito pelo piano tendo por trás o
contrabaixo este, de repente, cresce enquanto o piano fica
na base. De repente, parece que ouvimos dois
contrabaixos tocando. É o piano imitando o baixo. Outras
vezes, o baixo vai para o agudo e finge ser um violão.
Algo parecido pode acontecer, em graus diferentes, entre o
texto e as imagens de um livro.
Um autor ou editor que pretenda publicar um texto sem
interferências deve publicá-lo sem ilustrações. O texto, em
todo caso, continuará sujeito às influências do formato, do
papel, do tipo de letra (um livro sobre computação e outro
sobre floricultura exigem, em princípio, tipologias diferentes),
da capa, da qualidade de impressão etc. (Disponível em:
<www.ricardoazevedo.com.br>. Acesso em: 5 jan. 2007).
Para Azevedo, tudo interfere na significação de um texto. Como a
lingüística ensina, nada é arbitrário, e até a ausência significa. Merleau-
Ponty (2002) reitera o postulado:
Perante um quadro, não se trata, pois, de multiplicar as
referências ao tema, à circunstância hisrica, se é que ela
existe, que está na origem do quadro; trata-se, sim, tal como
na perceão das próprias coisas, de contemplar, de perceber
o quadro segundo as indicações mudas de todas as partes que
os traços de pintura depositados na tela me proporcionam, até
que todas, sem discurso e sem raciocínio, se compõem numa
organizão estrita onde se sente que nada há de arbitrário,
mesmo se não se consegue explicar (2002, p. 58).
Vislumbra-se, portanto, a impossibilidade de um sistema semiótico
não interferir no outro. Não se descarta, contudo, a existência de livros
em que duas narrativas paralelas: a da imagem e a da palavra, as
quais, mesmo sem pontos aparentemente comuns, constroem um único
texto, às vezes apresentado sob diferentes pontos de vista, às vezes com
pontos de contato entre figuras discursivas.
Ainda, levando-se em conta os desenvolvimentos teóricos sobre a
imagem na literatura infantil, a relação entre as mídias sempre é pensada
como um regime de cooperação, e, se há presença de dois sistemas,
então, existe a reciprocidade:
132
Durante mucho tiempo, los ilustradores que producen libros
ilustrados han estado sometidos al texto. Eso era fruto del
proceso de creación del libro ilustrado un texto para
ilustrar – y de la visión que se tenía de la infancia.
Hoy día es cada vez más raro encontrar ilustradores cuya
función, determinada en general por editores covencionales,
sea decorar las páginas de un texto para embellecer el libro;
la ilustración que resulta de esta visión tiene una función
puramente pasiva, no juega ningún papel en la lectura del
texto. Así, en la actualidad predominan los artistas que ponen
su talento al servicio de un texto para transformarlo en
imágenes; la ilustración nace, por tanto, como una recreación
del contenido textual; tiene ya una función activa, pues abre
al joven lector la posibilidad de una lectura doble, incluso
plural, que es fuente de reflexiones e interrogantes. Se puede
decir que el rasgo más característico de la ilustración actual
radica en el hecho de que posibilita una lectura autónoma del
texto: a través de la sucesión de ilustraciones, el joven lector
puede crear su propio relato (ESCARPIT, 1979, p. 23).
Escarpit (1979) se detém sobre outro aspecto, o pedagógico,
diante da recepção da obra. Deita olhos ao leitor, enquanto a outra mirada
incidia sobre o objeto, sobre o texto e sua significação, sem considerar a
recepção. A autora francesa focaliza a contribuição da imagem para o
enriquecimento da leitura da criança, reforçando o caráter polissêmico da
expressão. Tanto a perspectiva pedagógica quanto a Semiótica endossam
as transformações e a tendência atual da relação palavra e imagem na
literatura infantil. Contudo, mesmo a análise proposta não sendo
diacrônica, vale lembrar que os contos de fadas foram ilustrados, e essa
ilustração marcou o imaginário de gerações:
As ilustrões a cores, extraídas de quadros do pintor
flamengo quinhentista, Pieter Brueghel, o velho, serviram para
sublinhar através de uma livre associação de imagens o ritmo
que rege o mundo realista-grotesco da fantasia camponesa
rdica. O achado de ilustrar Grimm com Brueghel foi de Giulio
Bollati, que, juntamente com Elio Vittorini, se divertiu a
selecionar os pormenores e a determinar as sua associações
[...] (CALVINO, 1999, p. 81-82).
133
E mais:
É claro que na nossa memória desempenha um papel
importante a fantasia dos desenhadores que ilustraram como
lhes deu na gana os livros que lemos em crianças, e, antes
ainda, a dos escritores que coligiram os contos tradicionais e
lhes deram forma literária (CALVINO, 1999, p. 141)
Como Escarpit, Calvino também destaca o papel do editor de uma
obra, quando se pensa a imagem. Assim sendo, o texto A sereiazinha é
autônomo, então, a imagem deve buscar o seu espaço nessa relação. A
visão abrangente e a sensibilidade do editor são fundamentais para
promover o diálogo entre os sistemas semióticos. Cabe a ele a
organização dos sistemas. É tarefa do editor harmonizar os textos para
promover uma leitura articulada entre um e outro. Em casos como este, o
papel do editor é condição fundamental para a produção da obra, como
reflete Vaz no artigo “Ilustre ação: embalar textos com letras e margens”:
Contrariamente à fácil suposição de que boas ilustrações
bastam para atrair os olhos do leitor, a resposta a essa
questão encontra-se no trabalho do intermediador “artista
gráfico” que faz a programação visual de um livro. [...] um
artista gráfico [...] sabe como: configurar as palavras
impressas; diagramar as ginas; destacar os títulos;
eclipsar notas e numeração de páginas; compor bloco de
palavras, formando linhas, compor blocos de linhas,
formando páginas; definir margens, compondo seu desenho
gráfico; escolher o tipo de letra adequado; definir o corpo
tipográfico, isto é, o tamanho de letra ideal; programar um
bom contraste entre tinta de impressão e papel, de modo a
não cansar nem exigir esforço do leitor; adotar sinalização
clara para início e término de capítulos; achar a forma de se
favorecer a leitura continuada do texto (1998, p. 43).
A partir desse esclarecimento técnico, o próximo passo para
compreender a relação palavra-imagem no caso de A sereiazinha é, sem
dúvida, analisar a própria obra, ou seja, o projeto gráfico e, a partir disso,
confirmar (ou negar) as propostas teóricas alinhadas nesta refleo, a saber:
134
que palavra e imagem desempenham papéis de cooperão no projeto
gfico desta obra. De olhos abertos para as imagens e ouvidos atentos à
leitura, segue-se a história com especial cuidado sobre o ocio do editor.
Palavra e imagem: continuidades e rupturas
Pode-se pensar, inicialmente, na imagem como o cenário do texto
na obra dada à análise. Para isso, é de se supor que o texto não
atenção à descrição. Essa suposição não é verdadeira na obra de
Andersen. No texto em questão, descrições primorosas do espaço, das
personagens, dos sentimentos, as quais convocam o imagirio do leitor
por meio de figuras sinestésicas. O sabor, a cor, o perfume, o som o
delineados pela palavra:
[...] as descrições, são facilmente destacáveis do conjunto
textual: tendencialmente esticas, proporcionam momentos
de suspensão temporal, pausas na progressão linear dos
eventos diegéticos (REIS e LOPES, 2002, p. 93).
A pena de Andersen cuida especialmente das descrições. O
exercício se configura, então, em perceber e determinar o que cabe à
imagem e o que cabe à palavra, sem, de antemão, determiná-lo, ou que
espécie de cooperação se cria entre os sistemas. Descarta-se a imagem
como cenário e sem “pré” conceitos, mergulha-se na produção.
É importante ter no horizonte a relão palavra-imagem e, ao final
da análise, refletir sobre a pertinência e validade de tal relação encadeada
pelo projeto gráfico. Isso poderá ser pensado a partir do leitor pretendido
pela obra e suas implicações pedagógicas, como bem abordado por
Escarpit, e, também, no que tange à teoria Semiótica
61
. Aquela coloca foco
61
O que se propõe o é separar a teoria pedagógica da teoria Semiótica, mesmo
porque a Semiótica pode compreender a pedagogia enquanto discurso. O que se
pretende é, tão-somente, focalizar ora o texto, ora o leitor, por isso a opção por
marcar a distinção entre uma e outra.
135
na polissemia da imagem e na necessidade da dupla leitura a verbal e a
visual; esta, em constante diálogo com o discurso anterior, desvenda as
tramas discursivas suas coerências e rupturas no enunciado e, ainda,
desfaz as tramas discursivas e expõe a enunciação, ou seja, a ação do
leitor sobre o livro, implicando, necessariamente, a interdiscursivização
texto/contexto: neste caso, a obra A sereiazinha e sua pertinência
pedagógica como objeto-livro dado às crianças no Portugal contemporâneo.
Resta observar, com bastante astúcia, o objeto-livro e as
implicações ou as provocações que ele proporciona ao leitor tanto no
enunciado quanto na enunciação.
Posto isso, na edição da Afrontamento de A sereiazinha, o livro
apresenta uma sobrecapa ilustrada com uma imagem retirada do miolo da
obra, ou seja, antecipa-se a imagem, deslocando o contexto em que está
inserida e atribuindo-lhe outra fruição.
O que se lê-observa na sobrecapa é: uma sereia sobre uma pedra
ao mar, com o tulo em laranja, em fonte maior que as demais palavras,
centralizado. Ao lado da figura da sereia, o nome do autor em branco,
em fonte menor, e abaixo a chamada: ilustrações, em laranja, e o nome de
Manuela Bacelar, em branco, com fonte menor que a do nome do autor.
Figura 2.44Sobrecapa
136
Vale pensar na hierarquização das tarefas dos artistas. Na seqüência:
o título, o autor, a ilustradora e, finalmente, ao da página, o nome da
editora: Edições Afrontamento. Ressaltam-se ou atenuam-se os elementos
que m imporncia segundo aquele que elaborou o projeto gráfico.
Sobre o projeto gráfico de uma obra, três caminhos podem ser
traçados, e a opção por um deles é tarefa da editora: o editor elabora o
projeto ou o ilustrador propõe ou, ainda, uma terceira pessoa é
responsabilizada por essa produção, o diretor de arte, ou designer gráfico.
Neste caso, em particular, coube às Edições Afrontamento tal trabalho.
Assinala-se que a sobrecapa tem função de mercado. Deve
manipular o leitor, para que este compre o livro. Além disso:
As sobrecapas consistem em uma folha de papel dobrada
em quatro páginas, com lombadas e orelhas. Recobrem o
livro de capa dura, com dupla função: de um lado suportam
a impressão de letras, imagem e cores sem outra limitação,
o que a do bom gosto e moderação; em segundo lugar,
evitam (ou pelo menos retardam) o desgaste do material
que reveste a capa dura (COLLARO, 2000, p. 20).
A presença da sobrecapa agrega o valor de reconhecimento, de
prestígio de uma obra, algo que deve ser estimado, guardado. O nome de
Andersen leva a uma imediata relação com a obra clássica, acrescentando
ainda mais valor ao objeto, visto que é um autor de excelência
reconhecida. A imagem escolhida, a sereia sobre a pedra, reporta à
imagem também clássica da escultura em homenagem ao conto presente
na cidade de Copenhague, onde se encontra o museu dedicado ao autor.
137
A sobrecapa provoca o reconhecimento do status clássico da obra,
presente nas figuras do nome do autor em destaque e na alusão à
imagem de homenagem. Além disso, a componente plástica, ou seja, a
imagem com suas cores diluídas e formas desfeitas, deixa de lado a
iconicidade
62
máxima para trazer à cena certa subjetividade. Essa
recorrência plástica agrega à obra a idéia do clássico modificado, uma vez
que torna o conhecido alterado, não subvertido, mas (re) trabalhado, ou
seja, uma possível releitura.
Para o leitor, aquela não é a obra conhecida, mas sim outra leitura
dela. As imagens dão uma nova atmosfera, um novo ritmo, um novo
sentido ao texto consagrado de Andersen:
É um outro assunto vasto e sedutor, acerca do qual me
limito a deixar uma pergunta: são também estas imagens
funcionais? [...] Sendo a fruição o seu principal destino, cabe
nessa idéia de um serviço? [...]
E, por outro lado, há na contemplação, essencialmente, uma
razão passiva? Ou a contemplação com as suas exigências
de estado (de espírito...), de tempo (de deleite), de
quietude’ das leituras e das interpretações, ou ainda
(admitamo-lo) de regressão do olhar para os indizíveis do
inconsciente e do tempo onírico... pode ser um
trampolim?... [...]
62
Iconicidade/iconização são termos definidos pela Semiótica Discursiva da seguinte
maneira: “é o investimento figurativo exaustivo da última fase do procedimento de
figurativização, com o objetivo de produzir ilusão referencial ou de realidade (Barros,
1999, p. 87).
Figura
2.45
Escultura em homenagem ao autor (Andersen)
138
A partir deste poder da imagem podemos (e talvez devamos)
reflectir a questão do Imaginário e da Imaginação. o temas
especialmente caros ao pensamento sobre a ilustração que
tocam, amiúde, a questão de saber se as imagens,
acrescentadas aos textos, interferem ou não com a capacidade
de imaginão que um texto literário, por definão, activa [...]
(CALADO, [s.d.], p. 115).
Sem dúvida, a imagem da sobrecapa atua sobre o leitor. É ela que
faz o convite à leitura. Quais são os argumentos utilizados? São: 1. a
recorrência ao clássico; 2. o clássico com nova “roupagem”; 3. apesar do
adjetivo “novo”, a narrativa original é preservada, visto que existe a
referência ao autor e à imagem clássica.
A verdadeira capa dura é toda de tecido verde-escuro. É curioso,
pois a sobrecapa vem colada à página de ante-rosto, ou seja, para tirá-la,
que rasgar. A capa e sobrecapa perdem, pois, a função: a sobrecapa,
de proteger e ser descartável, e a capa, de ser neutra e mais resistente ao
tempo para compor a biblioteca da casa. A sobrecapa serviria apenas para
seduzir o leitor e, portanto, seria descartada assim que fosse adquirida,
para, dessa forma, a capa, neutra, permanecer nas prateleiras das
bibliotecas privadas. A impossibilidade de descartar a sobrecapa destitui
as funções da capa e da sobrecapa. Perde-se, ainda, a sensação tátil que
o tecido provocaria. Trazer um novo material à capa revela a originalidade
editorial, mas não é dado o prazer ao leitor, a menos que ele rasgue o
livro e retire a sobrecapa.
A página de guarda é verde, dando continuidade à cor de fundo da
sobrecapa e à do tecido da capa. Se a sobrecapa for descartada, a página
de guarda também será rasgada, assim aquela ganha uma função fixa,
neutralizando a capa e sua função. A continuidade cromática sobrecapa,
capa, página de guarda envolve o leitor, remetendo-o ao universo das
águas. A cor não é homogênea, há variações, como o mar.
A opção editorial por sobrecapa, a menos que a análise não tenha
percebido o sentido, o é eficiente, uma vez que não cumpre sua função
nem propõe uma outra leitura, o que poderia ser uma utilização singular e
139
criativa. obras em que rasgar a página agrega sentido ao texto, a
saber: descobrir um segredo ou estabelecer interação com uma
personagem. A obra O Escrivão, da editora Cosac Naify, propõe essa ação,
para chegar à leitura é necessário rasgar as páginas
63
. Já, no caso de A
sereiazinha, parece um recurso mal aproveitado e descontextualizado.
Dando seqüência à análise, a primeira gina é toda branca e
traz o título em fonte minúscula, em preto. Uma apresentação bastante
bria, recuperando a iia do tradicional. Essa gina é chamada de
ante-rosto e tem a seguinte definição: [...] a primeira página ímpar
impressa chama-se ante-rosto (ou falsa folha de rosto ou falso
frontispício) e traz impresso apenas o tulo da obra, em corpo
pequeno (COLLARO, 2000, p. 18). Este recurso dá o tom da obra
original e institui a voz clássica, instaura-se a formalidade.
A página seguinte distribui o nome do autor centralizado em cinza,
o título maior, em vermelho e um pequeno quadro de 3x3 cm, com
imagem abstrata que remete às cores de fundo da sobrecapa. Ainda, há a
chamada: ilustrações e o nome da ilustradora e, ao da página, o nome
da editora. Todo esse texto aparece centralizado nesta página.
Chega-se, pois, à narrativa, na página 5; ali, apenas texto,
iniciado por uma iluminura
64
vermelha. A obediência a todas as normas
gráficas, incluindo a iluminura, reforça o estatuto clássico à obra das
Edições Afrontamento. A presença da iluminura remete ao conto, ao
gênero dos contos de fadas ou contos populares.
Como toda narrativa tradicional, esta também obedece à
estrutura narrativa mais ou menos fixa do conto popular: apresentação,
criação do conflito, clímax, resolução do conflito e desfecho. Deveria,
eno, o conto ser introduzido por umera uma vez. A iluminura, neste
caso, substitui esse recurso.
63
O projeto gráfico se inspira na personagem: a história se esconde em folhas duplas
que precisam ser "rasgadas" para que se possa ter acesso ao texto. A encadernação é
artesanal e a capa deve ser descosturada para se abrir o livro.
64
Segundo o dicionário de língua portuguesa, iluminura é: “miniatura pintada a cores
com que se ilustravam pergaminhos e manuscritos” (2006, p. 432).
140
Apesar de ser narrativo, o texto está fortemente pautado na
descrição, como já apontado. Este procedimento é necesrio à
narração para delinear os elementos narrativos, como: personagens,
tempo, espaço e, por vezes, até o narrador. O gênero conto, porém, se
caracteriza por não se ater ao detalhamento. Entretanto, Andersen nega
esta invariante, característica do conto, e, artesanalmente, produz
figuras, imagens o ricas que ofuscam o olhar, reiterando a idéia que a
análise pontuou anteriormente.
A primeira descrição desloca o leitor para o universo ficcional,
inicialmente, pela iluminura (palavra que é imagem e vice-versa) e,
depois, pelas belas descrições do ambiente mágico:
Longe, lá longe no mar alto, a água é tão azul como as pétalas
da mais bela cenurea e tão mpida como o vidro mais
transparente; mas é profunda, muito profunda, o profunda
que nenhuma âncora jamais chegou. Seria preciso colocar
inúmeras torres de igrejas umas sobre as outras para
chegarem do leito do mar até a superfície. Nessas profundezas
vivia o povo das águas (p. 5).
Alguns pontos merecem destaque, para que a relação palavra-
imagem seja pensada. O narrador, como na maioria dos contos de fadas,
está em pessoa. Isso implica um modo de narrar mais distanciado e,
portanto, mais objetivo. O tempo instaurado é o passado vivia e o espaço
é o do lá, lá longe. O “era uma vez” é, pois, substituído graficamente pela
iluminura e, lingüisticamente, por uma marca espacial que também
remete à ficcionalidade Longe, longe no mar alto... ou seja, no universo
da ficção atemporal e universal, a debreagem enunciava, como postula
a Semiótica Discursiva.
As suspensões narrativas vão criar aquilo que Greimas
65
chama de
fraturas, conceito derivado da fenomenologia, em que sujeito e objeto se
65
Greimas, em Da imperfeição, analisa a obra Continuidade dos Parques, de Julio
Cortazar, e propõe a seguinte reflexão acerca da leitura: “E se houver prazer nessa
leitura, ele se encontrado não na aproximação do objeto imaginário mas, ao
contrário, no distanciamento progressivo do que é ‘realidade’, e, mais ainda, na sua
141
fundem, levando ou elevando ao prazer estético. Tanto a palavra quanto a
imagem têm propriedades para provocar esses momentos de suspensão
temporal, em que o leitor é transportado pelos sentidos. Em A sereiazinha,
a palavra encanta e abre fendas para a sensibilidade do leitor.
Posto isso, volta-se à questão da descrição, uma vez que chama a
atenção. O texto descritivo na obra em questão é bastante detalhado e
cria figuras inesperadas, aproximando-se da linguagem ptica, campo
fértil à contemplação estética. Um dos exemplos es na descrição do
mar, em que é utilizada uma bela comparação: “a água é tão azul como
as pétalas da mais bela centáurea e tão límpida como o vidro mais
transparente”. A descrição oferece ao leitor dados para que ele possa
realmente imaginar. Esses são referenciais: “Seria preciso colocar
inúmeras torres de igrejas umas sobre as outras”. Assim, o leitor pode ter
a medida da distância e dados para que a imaginação possa voar.
Imagens são minuciosamente construídas pela palavra, como Colomer
explica a partir da lembrança que se tem de uma obra literária:
Ciertamente, es difícil para la mayoria de nosotros recordar el
argumento completo de una obra al cabo de un cierto tempo,
por más que nos hayamos sentido absolutamente arrastrados
por ella durante la lectura. En cambio la atmósfera creada o
el tono de la narración se mantienen de forma mucho más
estable en nuestra evocación. Y sin duda, al recordar o hablar
de las obras, partimos casi siempre de escenas y detalles que
nos impactaron especialmente (2000, p. 10).
Por meio da descrição, o narratário também é instaurado, ele é
chamado à narrativa: Não se deve pensar, nem por um único momento,
que não há nada em baixo senão areia branca(p. 5). Há, ao utilizar
essa estratégia, o desejo de trazer o leitor para a narrativa, como faz o
contador de histórias na instância da oralidade, berço da narrativa em
questão. Percebe-se, então, que alguns recursos da expressão oral
atenuação, reduzindo a um toque, à eventualidade de uma fumaça de cigarro. Longe
de gozar o contato promissor com o objeto estético, o sujeito procura ‘poetizar’ a vida
[...]” (2002, p. 58).
142
“sobram” quando estas são escritas. Tal “sobra” é característica do gênero
conto de fadas ou conto popular. O leitor é completamente envolvido pela
palavra, pelo contar, pela ficção.
Todos os recursos descritivos destacados são obstáculos para
presença da imagem, pois o que resta à imagem revelar? Como é possível
estabelecer diálogo com algo que disse tudo e elevou os sentidos do
leitor? Pergunta-se novamente.
Na página seguinte, a imagem se apodera do espaço. As perguntas
elaboradas anteriormente devem ser respondidas pela observação direta
da expressão plástica, e, por essa trilha, segue a análise neste momento.
Como padrão editorial, as páginas serão apresentadas sempre com
o texto em preto, justificado e com entrada de parágrafos. A iluminura
desaparece nas páginas seguintes. A imagem fica a cargo do quadrinho,
que foi apresentado anteriormente na página de abertura, de 3x3 cm
como um recorte, e é um recurso de antecipação da imagem, revela parte
do que está por vir, ou seja, tem a função de envolver o leitor no
ambiente, no clima da obra. O desenho gráfico da página (figuras,
mancha de texto e disposição) também remete ao padrão tradicional das
histórias antigas, dos livros antigos, corroborando a idéia de manutenção
do status do texto original.
143
Olhando cuidadosamente para o quadrinho, ele faz lembrar dois
recursos lingüísticos: a anáfora, que recupera uma figura de linguagem,
ou o indício, que recupera uma estratégia descritiva. Com o intuito de
compreender a presença deste quadrinho que acompanha todas as
páginas da obra, para além da reiteração da idéia de clássico, dois
percursos distintos serão realizados. Primeiramente, para definir anáfora,
recorre-se ao dicionário de ngua portuguesa: anáfora: figura de estilo
que consiste em repetir a mesma palavra no princípio de duas ou mais
frases” (2006, p. 51).
De fato, a recorrência insistente do quadrinho ilustrado, no alto da
página, parece utilizar um procedimento semelhante ao lingüístico
definido pelo dicionário. Mas ainda está suspensa a conclusão. Passa-se,
então, à segunda definição; no caso, o conceito de indício será esclarecido
pelo dicionário de narratologia formulado por Reis e Lopes: “indício remete
premonitoriamente para um certo desenvolvimento da intriga, ao nível
das funções cardinais” (2002, p. 202). O indício lingüístico também pode
ser transportado para a imagem, no caso apresentado em A sereiazinha,
Figura 2.46Desenho gráfico da página
144
na medida em que o quadrinho é um recorte da imagem que ocupará a
página dupla mais adiante.
No entanto, recorrer a essa estratégia seria utilizar um
instrumental analítico de um sistema expressivo para outro, do verbal
para o visual. Isso, por um lado, pode ser muito importante, pois permite
a comparação entre as linguagens, visto que se percebe as mesmas
categorias na descrição do efeito, e, por outro lado, pode ser arbitrário,
uma vez que o sistema semiótico não foi analisado a partir de suas
próprias qualidades. Novamente, suspende-se a conclusão para se inserir
outro problema.
Outra questão que se impõe é que os quadrinhos apresentados no
alto da página não são figurativos, ou seja, uma imagem abstrata. Sair
da imagem com maior grau de iconicidade para um menor é aventurar-se
nos sentidos incertos da mídia visual:
Figura 2.47Quadrinho: anáfora da imagem da página seguinte
145
Figura 2.48Abstração (esquerda) Icônica (direita)
Definiríamos a polissemia como uma interrogação sobre o
sentido (podendo ir da incerteza à inquietação, ou mesmo ao
trauma e ao pânico). Barthes (1964 a) chega a falar do ‘terror
dos signos incertos’... Vimos como, na imagem, esta
polissemia é sempre maior que no verbo; vimos também que,
sendo embora a cadeia de significados visuais uma cadeia
flutuante, técnicas destinadas a fixá-la, ancoradouros de
sentido (CALADO, 1994, p. 62).
Na arte abstrata, ou com menor grau de iconicidade, o que se
pretende é o estímulo aos órgãos sensoriais
66
. Com isso, conclui-se que
são duas as funções dos quadrinhos abstratos: criar uma atmosfera para
os sentidos e cumprir uma função de marcação do desenvolvimento
narrativo. Sobre esta última, a sua função seria muito semelhante àquela
da linha do tempo
67
, a saber: marcar a continuidade narrativa pela
repetição da estratégia discursiva. Cumpre-se, portanto, uma função
similar a que tem a anáfora na poesia que estabelece o ritmo poético. A
Semiótica também pensou sobre a anáfora com relação ao texto visual:
La anáfora puede ser homologada a la figura retórica de la
repetición en el caso del texto icónico, si la consideramos
como una reiteración de una forma visual mediante figuras
que funcionan como sinónimos o con variaciones expresivas.
La afora, en este caso tendría una intencionalidad
66
Ao longo deste estudo, a abstração será mais detalhada.
67
Este elemento plástico-narrativo foi trabalhado na análise de O dinossauro, de
Manuela Bacelar.
146
persuasoria directa en la medida que, valiendose de la noción
de focalización, sirve para llamar la atencn sobre un TEMA,
al mismo tiempo que lo amplifica (VILCHES, 1995, p. 297).
Assim, por meio da Semiótica, é possível entender o quadrinho
abstrato como uma anáfora, em que a repetição chama atenção para a
imagem, para o texto, para a história narrada, imprimindo-lhe ritmo e,
portanto, progressão.
O trabalho plástico abstrato e a construção da atmosfera de uma
obra são destacados por Bacelar em entrevista. Nestes termos, recupera-
se a idéia de atmosfera, pois este o é um conceito do arcabouço da
Semiótica; procurou-se, no entanto, trazê-lo para a teoria que
fundamenta este estudo. Vale revelar a reflexão de Bacelar acerca do
conceito discutido:
A parte complicada surge mais quando o texto é de uma
outra pessoa... não é chata, é complicada. Porque primeiro
eu tenho que encontrar a atmosfera do livro. Atmosfera é
uma coisa que se fala muito pouco em Portugal, seja
no teatro, seja no que for. A atmosfera como um todo.
Não é que as pessoas não tenham a atmosfera
presente, mas o que eu o ouço é pronunciar a
palavra. A atmosfera é muito importante – se um livro
é poético, se é um livro de humor, é de uma maneira;
se a escrita é mais pesada, eu ilustro de outra
maneira. Eu não ilustro muito o que es, o que es
lá. Eu gosto de ilustrar o que não está ou o que está
mais a minha maneira. o é aquela ilustração: a menina
pôs um vestido vermelho – a menina com vestido vermelho;
a menina pôs o sapatinho, deixa eu ver se a menina é
loira... É claro, às vezes o autor põe tanto pormenor no
texto, que uma pessoa não pode fugir a esta regra. Mas eu
gosto mais de sugerir, gosto de deixar um espaço para
imaginação, ou para uma terceira imaginação que é a do
leitor. Porque também lá está a minha imaginação e está
a imaginação do autor (BACELAR, M. Entrevista concedida a
Mariana Cortez. Porto, 18 abr. 2006).
68
68
Grifos da análise.
147
Rui de Oliveira dialoga e concorda com esta perspectiva quando
utiliza o termo “método de abordagem”. O ilustrador brasileiro, em
entrevista para o site de literatura infantil Doce de Letra, diz que não
gosta do conceito de estilo, mas que a cada obra que recebe para ilustrar
se detém sobre o “método de abordagem” a fim de chegar à maneira de
ilustrar aquela obra.
Das falas de Bacelar e de Rui de Oliveira, pode-se extrair a questão
de que a imagem se apropria da palavra do outro. Essa apropriação se
daria por meio da referida atmosfera e também do olhar que a
ilustradora tem como leitora do texto que deve ilustrar. Sem se esquecer
do espaço deixado à imaginação do leitor.
O quadrinho, presente em todas as páginas, é uma maneira de
envolver o leitor na atmosfera da obra, no clima proposto pela história de
encantamento. Sempre com tonalidades variantes entre o azul e o verde,
remete ao mar, ao céu, à natureza e, portanto, ao universo da protagonista
- a sereia, metade humana, metade peixe. Esta personagem vive o conflito
de sua natureza (origem) ser sua “prisão”. Ela é determinada pelo espaço
em que vive, suas qualidades e sua cauda de peixe revelam essa essência.
Para humanizar-se, contudo, ela deve abandonar a sua origem, o seu lar, a
sua família, os seus costumes naturais
69
.
A oposição liberdade versus opressão marca a história, assim como
natureza versus cultura, oposição absolutamente relacionada à não-
humano versus humano.
Tem-se, pois, o seguinte percurso do sujeito: natureza não-
natureza cultura. A sereia pertence ao natural; quando se transforma,
está no não-natural, mas não consegue atingir a cultura, que estaria
ligada a total humanidade.
A natureza corresponderia ao estado opressivo, pois ali ela não
concretiza o seu amor, enquanto a cultura, à liberdade, na medida em que
69
Está, pois, a protagonista, como Rapunzel, aprisionada. Terá de libertar-se, para
alcançar o amor.
148
é condição para o amor e, como revelado, para a imortalidade da alma.
Eis o percurso temático apresentado pela obra.
Além de remeterem ao mar e ao problema da personagem, as
cores dos quadrinhos atuam sobre o leitor por suas vias sensíveis,
reforçando o clima de encantamento e mistérios das profundezas do mar.
A paleta de cores pincela simbolicamente o mar, mas tem em si a
qualidade de pertencer predominantemente ao grupo das cores frias, com
exceção do vermelho (alaranjado – vermelho com amarelo):
Além disso, a anáfora marca e o indício conduz a narrativa. Ambas
as funções atribuem ritmo à essa pela visualidade, envolvendo ou
reforçando o envolvimento do leitor com a obra.
Quando se tem diante da análise um texto de natureza poética, as
categorias profundas destacadas devem encontrar correspondência nos
traços da expressão.
Os objetos que assediam os nossos sonhos são, de igual
modo, significativos. A nossa relação com as coisas não é
uma relação distante, cada uma delas fala ao nosso corpo e
à nossa vida, são revestidas de caracteres humanos (dóceis,
doces, hostis, resistentes) e, inversamente, vivem em nós
como outros tantos emblemas das condutas que apreciamos
ou detestamos. O homem es investido nas coisas e as
coisas estão nele investidas. [...] É o que pretendia dizer
zanne, ao falar de um certo ‘halo’ das coisas, que importa
restituir pela pintura (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 36).
Figura
2.49
Pale
ta de cores de
A sereizinha
149
O “halodestacado por Ponty no discurso de Cézanne assemelha-
se a definição de atmosfera apresentada pela autora portuguesa.
Da narrativa, volta-se à expressão, para que seja possível
homologá-los. Vale destacar que Bacelar utiliza, neste trabalho, técnicas
mistas, mas existe a predominância do óleo sobre tela sempre com cores
entre o azul e o verde e ainda o branco e o preto, criando cinzas e marrons.
também alguns pontos, todavia, mais raros, vermelhos. Todas as
imagens estão sobre fundo escuro, com exceção do casamento do príncipe.
As imagens ocupam a página dupla na maior parte dos casos
70
.
Figura 2.50Página dupla
Apenas duas cenas são representadas em gina simples; como
formulado por García em “Como leer el álbum ilustrado”, a definição entre
a página simples e a dupla depende do efeito de sentido desejado, neste
caso: o contar das irmãs sobre o mundo na superfície e o casamento do
príncipe com outra mulher revelam momentos em que a protagonista não
está presente na cena:
70
Mais adiante, a questão da página simples ou dupla vira à cena.
150
Figura 2.51 Páginas simples
Assim, o texto visual, em A sereiazinha, tem, na maneira de
apresentar-se, as seguintes categorias: contenção versus expansão. Com
relação à ocupação da gina pelo verbal e visual, pesquisas sobre o
designer do livro infantil
71
apontam que essa ocupação espacial na página
da ilustração em relação ao texto pode se dar de três maneiras principais:
a ilustração é aplicada numa área separada do texto modelo tradicional;
a ilustração é aplicada parcialmente em união ao texto modelo
intermedrio; o texto é aplicado de modo a intermediar ou se relacionar
com a forma da ilustração – modelo contemporâneo.
Os primeiros livros infantis obedeciam a uma configuração em que
a ilustração era aplicada numa área separada do texto. Durante algum
tempo, por questões técnicas, o livro impresso teve o espaço para as
ilustrações separado do texto. Esses livros não continham tantos eventos
ilustrados, e a área ocupada pelo texto era maior do que a das ilustrações.
A partir de processos industriais de impressão, como a litografia no século
XIX, essa rigidez pôde ser quebrada:
71
Dentre elas, as realizadas por Guto Lins e pelo departamento de Design da PUC-RJ.
151
Figura 2.52Modelo de livro tradicional
Na atualidade, ainda subsiste esse tipo de aplicação, no entanto,
essa separação pode se dar também por áreas isoladas da imagem, em
aplicação lateral ou inferior à ilustração, como:
Quando a ilustração é aplicada parcialmente em união com o texto,
configura-se determinado estado, o qual continua a ocupar uma área
delimitada num retângulo, mas dentro da mancha de texto, ou seja,
parcialmente unida. A conformação do retângulo ocupado pela ilustração
pode variar entre retângulos compridos, retângulos largos e retângulos
“quebrados” como um “L”.
A terceira forma de relação espacial ocorre quando o texto é
aplicado de modo a intermediar ou se relacionar com a forma da ilustração.
Figura 2.53 – Modelo de livro
152
A relação espacial entre texto e ilustração, estabelecida nesse tipo de
aplicação, constitui um elo visual entre o elemento verbal e o textual
texto e imagem apresentam-se visualmente unidos. Essa forma evidencia a
dimensão gráfica do texto. Alguns modelos são exemplificados abaixo:
Figura 2.54 Modelos de livros contemporâneos
Vale lembrar que esses modelos não dão conta de todas as
modalidades de diagramação do mercado, pois a cada nova publicação o
eles são alterados. Ângela Lago e Ziraldo podem ser citados como
exemplos de subversão, pois inserem imagem e palavra na dobra do livro
para aproveitar o seu movimento (O personagem encalhado e A bela
borboleta, respectivamente)
72
.
A editoração de A sereiazinha, no entanto, obedece ao modelo
tradicional de inserção da ilustração na página, gerando o efeito de
sentido, mais uma vez, da publicação tradicional.
Existe, porém, uma relação que merece ser abordada: nos
quadrinhos delimitados, haveria a contenção da imagem; na página dupla,
expansão dessa e, na meia gina, sua não-contenção. A natureza-
opressão, no plano do conteúdo, seria homologada à contenção; a o-
natureza-não-opressão à não-contenção. Finalmente, cultura-liberdade
homologada à expansão.
Para alguns, seria lícito pensar que, como no percurso não se
atinge a cultura-liberdade, então, a categoria expansão também não se
72
Estas obras serão apresentadas no catulo final deste estudo.
153
concretizaria ou não deveria se concretizar. Porém, o que se observa nas
páginas expandidas, é a busca da princesa-sereia por sua liberdade, senão
revela a liberdade total, ao menos a Sereiazinha está lutando por ela. O
esquema abaixo ilustra a questão:
CONTENÇÂO NÃO-CONTENÇÃO EXPANSÃO
Figura 2.55Homologação do plano do conteúdo ao plano da expressão
Além dessa relação expressão-conteúdo, surge mais uma, os
diferentes graus de iconicidade sugerem abstração homologada à
opressão-natureza (o quadrinho abstrato) e figuratividade homologada
à liberdade-cultura. Ponderando-se que não haverá a figurativização
total próxima ao inico, pois não se atinge a cultura, visto que o
percurso é frustrado. Os únicos quadros abstratos são aqueles contidos
nos quadrinhos e, por isso, a relação com a opressão, como
anteriormente analisado.
ABSTRAÇÃO (opreso-natureza) FIGURATIVIZAÇÃO (liberdade-cultura)
Figura 2.56Percurso expressivo
154
Voltando à questão dos quadrinhos abstratos, eles, de alguma
maneira, suprem atimidez” da imagem em relação à palavra, cumprindo,
no projeto gráfico, outra função. Percebe-se um enorme respeito” pela
palavra, e a imagem nunca interfere na constituição do texto, não altera o
espaço designado para a palavra, que é sempre fixo. Utiliza-se o adjetivo
“timidez” para a imagem, pois esta é inserida na obra com a enorme
preocupação de preservar a palavra e o estatuto clássico desse texto.
a idéia de que, se a imagem ocupar o lugar da palavra, alterará o texto
original. Sabe-se, todavia, que de qualquer maneira a imagem dará um
novo sentido à obra, como demonstrado, mas se nota o “respeito” ao
texto clássico, corroborando a idéia de sobriedade imprimida pela capa.
Esta opção editorial não passa despercebida ao leitor atento , ainda
mais, se tal estratégia implica desarmonia na relação palavra-imagem,
rompendo o fluxo de leitura. Para constatar a afirmação, passa-se à
análise do ato enunciativo, ou seja, a comunicação autor-leitor pelo e no
livro. Pensa-se, por conseqüência, no exercício do editor, ou seja, aquele
que arranja os elementos gráficos no objeto-livro.
O projeto editorial como agente da relação palavra-imagem
Como referido anteriormente, a função do editor na relação
palavra-imagem, quando o texto, seja um clássico ou não, faz parte do
repertório de uma comunidade, é fundamental e bastante delicada.
A obra espontânea perde por ser modificada segundo os
imperativos de um editor? Por vezes, sem dúvida, sobretudo
no caso em que os arranjos pedidos afectam uma obra
ininterrupta e que “conta uma história”: romance, conto ou
novela. Isso explica-se: um tal tipo de texto forma, com
efeito, um bloco que possui a sua unidade interna, o seu
equilíbrio, a sua harmonia própria. É então difícil que umas
modificações não resultem, ora numa mutilão se se deve
abreviar, ora numa ‘diluição’ se é preciso, pelo contrário,
desenvolver (HELD, 1978, p. 138).
155
Como revelado por Held, adaptar um texto com coerência interna à
imagem é uma tarefa arriscada que exige muito cuidado, pois uma
inadequação, como a ruptura da progressão narrativa, comprometeria
demasiadamente o projeto gráfico como o todo de sentido.
É função do editor, assim, criar harmonia entre a palavra e a
imagem atribuindo sentido ao objeto-livro que será desvendado pelo
leitor. Essa competência tem responsabilidade redobrada se o texto
apresentado existe, é conhecido, inúmeras vezes recontado, ou seja,
um clássico. No caso em análise, em que a história recebeu inúmeras
releituras ou mesmo faz parte daquele grupo de histórias que habitam a
tradição oral, é possível que uma mãe conte esta história para o seu filho
adormecer. O editor, neste caso, terá como dever, se esse for o desejo
73
da editora, preservar intacto o clássico, assegurando uma boa leitura e
também uma ilustração que não descaracterize a obra. Nesse momento,
descarta-se a idéia de a imagem traduzir o texto verbal, pois:
Sentidas e pensadas mais como honestidade’ ou mais como
re-interpretações’, o certo é que as ilustrações
redimensionam os textos: as imagens são, na narrativa,
gestalts que a pontuam e a digerem; criam momentos de
alternância e por vezes mesmo de desvio relativamente ao
eixo linear do discurso. Nunca se trata, apenas, de traduzir:
a imagem possui um conjunto de repertórios e de códigos e
uma retórica particulares; o próprio contexto que a recebe
pode ser entendido como próprio e diferenciado, na medida
em que texto e imagem criam leitores diferentes [...]
(CALADO, [s.d.], p. 116).
O editor não possui uma tarefa fácil. Alguns cuidados o necessários
para colocar em diálogo a palavra e a imagem, pois, do contrio, o seria
necessário recorrer a outro sistema semiótico. Feita a opção, que se ater
a ela e pensar sobre o diálogo entre os sistemas semióticos, ou melhor, na
maneira mais adequada de estabelecer esse diálogo.
73
Pode, também, ser opção da editora (ou do autor) parodiar o texto cssico, por exemplo.
156
Esta afirmação é possível, porque muitas vezes não é dada chance
ao leitor de contemplar a imagem neste projeto gráfico. O diálogo, ou
melhor, a ausência de diálogo entre palavra e imagem pode implicar uma
leitura truncada, interrompida, gerando não o envolvimento pretendido,
mas o oposto. A conseqüência pode ser o afastamento do leitor:
As imagens apercebidas num instante, mensagens visualmente
inteligíveis, são, por exemplo, a maioria dos cartazes; estes
são em princípio concebidos com esse fim: o conjunto da
sua mensagem pertinente deve ser “digerido” pelos olhos e
pelo cérebro no tempo global que a situação do espectador
que passa diante pode consagrar-lhe (4 a 10 segundos, em
geral); pelo contrio, os ‘textoslongos, os quadros de certos
pintores (Brueghel, Bosch, etc.) são destinados a serem
explorados (CALADO apud MOLES, 1981).
No caso de A sereiazinha, das Edições Afrontamento, o texto é
interrompido e compromete a fluidez da leitura. A editoração não
proporciona diálogo entre palavra e imagem, antes, se for observado, o
projeto gráfico implica ruptura na seqüência narrativa. Quando o texto é
abruptamente interrompido para a inserção da imagem, corta-se o fio da
narrativa, a linha de raciocínio, uma vez que as imagens ali inseridas
exigem um olhar para a fruição, pois são quadros a serem contemplados
com mais vagar, com deleite. A conversa entre palavra e imagem, nesta
obra, está truncada.
Essas rupturas acontecem de distintas maneiras, com maior ou
menor intensidade. Os exemplos seguem, gradativamente, da menor à
maior forma de ruptura:
a) No meio de uma idéia texto: Mas a sereiazinha o precisou
de fazer isso, porque os pólipos se afastaram assustados quando
viram a poção a brilhar-lhe na mão como uma estrela. De
maneira que atravessou [a Sereiazinha] sem demoras o pântano
e depois a floresta e os remoinhos”. Inserção da imagem: a
bruxa preparando a poção. Esta ação havia sido narrada no
texto verbal, não sendo mais necessário ilustrar esse momento,
157
o que estava no texto verbal era a transformação da
Sereiazinha. Há, pois, um atraso entre a narração verbal e a
imagem da narração. Propõe-se designar essa relação como
descompasso de sentido na relação palavra-imagem;
b) No meio da sentença texto: “Pedia à velha avó que lhe...”.
Inserção da imagem: as sereiazinhas brincando. Texto: “...
contasse tudo sobre navios e cidades, pessoas e animais”. Para o
leitor dar seqüência à idéia, deve ler o texto e depois voltar à
imagem para contemplá-la. A sentença (idéia) é interrompida
pela diagramação para inserir a imagem, truncando o
pensamento. A proposta é nomear essa ocorrência como
interrupção de sentido na relação palavra-imagem;
c) No meio da palavra texto: “Nem conseguiam apreciar nunca o
paraíso do fundo do mar, porque quando o navio se afundava
eles [humanos] morriam afoga-...” Inserção da imagem: uma
das sereias em uma pedra observando um navio. Texto: “...
dos. homens afogados é que chegavam por vezes ao reino
das profundezas do mar.” Dividir uma palavra para inserir a
imagem é quebrar totalmente a harmonia da leitura, por isso,
sugere-se: ruptura de sentido na relação palavra-imagem.
As relações palavra-imagem explicitadas relevam um problema na
editoração. Não houve diálogo harmônico entre autor, ilustrador e editor,
por conseqüência, falhou a relação cooperativa entre palavra, imagem e
projeto gráfico.
O que se verifica, portanto, em A sereiazinha é uma perda das
qualidades da releitura do clássico, pois o projeto gráfico, a partir da
inserção das imagens, comprometeu a progressão narrativa. A imagem,
neste caso, passa a atrapalhar a leitura, e não contribuir para a polissemia
dos sentidos da obra. O papel do editor (ou designer) é fundamental na
execução da proposta gráfica, visto que a inserção inadequada das
imagens pode desautorizar o diálogo.
158
É importante ressaltar que as imagens produzidas por Bacelar
foram premiadas, e isso revela a sua qualidade plástica. O que poderia
ser repensado é o projeto gráfico, uma vez que dois momentos
merecem cuidado maior: a função capa-sobrecapa e a inserção da
imagem ao longo da narrativa.
Tecendo valores: a imagem
As imagens propostas por Manuela Bacelar, em A sereiazinha, são
pinturas. A palavra “pinturas é recuperada para expressar e ressaltar as
qualidades plásticas ali empregadas. Com maestria, a artista proporciona ao
leitor uma visita à galeria de arte. A cada virada de página, o leitor-
apreciador deve parar para contemplar a riqueza de detalhes e a pujaa de
cores e estilo. Ao leitor, é dada a oportunidade de experimentar os sentidos.
Chamados à percepção, os formantes plásticos (a cor, a forma, a disposição
dos elementos na tela e o material) são tramados e arranjados para compor
a atmosfera do conto de fadas. Não a narrativa linística cria o cenário
da fantasia, mas também a percepção visual conduzi ao universo dos
contos, ampliando as possibilidades esticas e estésicas da obra.
A sereiazinha é um objeto estético e como tal promove uma
inversão de papéis no jogo enunciativo. Neste processo, o objeto se torna
sujeito e atua sobre os órgãos sensoriais do, antes sujeito, agora,
transformado em objeto. É no momento de fratura da regularidade
narrativa que a suspensão temporal, e sujeito e objeto se fundem em
nome do prazer estético. Este prazer estético proporcionado pela leitura é
o elemento de sedução. A entrada da criança no universo literário se
também por essa via, por vezes, pouco explorada nas instâncias
educacionais. Ana Claudia de Oliveira se ateve a esta questão no artigo
“Visualidade, entre significação sensível e inteligível”:
159
A semiótica trabalha com as axiologias, e toda a sua
descrição dos procedimentos de estruturação visa à
determinação dos sistemas de valores que circulam nos
objetos. A relevância da semiótica no ensino justifica-se
assim inteiramente, uma vez que ela capacita o sujeito para
a construção da significação, ao mesmo tempo em que, ao
fazê-lo, faz descortinar-lhe as possibilidades para assumir
posicionamentos críticos e de reflexão. Entre o que vê e
aquilo que é visto engendram-se os mecanismos contratuais
a ser ou não partilhados entre os parceiros da interação,
mas que, em todo caso, são recursos de argumentação que
apontam ao destinatário uma trajetória para que, assim se
direcionando, torne-se sujeito competente para realizar o
desbravamento textual (OLIVEIRA, 2005, p. 117).
Assim, caminha-se pelas habituais linhas negras e, em alguns
momentos, se é tomado pelos sentidos. Pelos recantos da galeria-livro, a
alise opta por destacar tros comuns às imagens da obra e tamm por
evidenciar o que há de variante, singular, especial neste trabalho de Bacelar.
Algumas idéias anteriormente apresentadas serão retomadas, com o
compromisso de ampliar tais análises e interpretações. É objetivo mostrar as
qualidades estéticas do fazer da artista portuguesa, com o propósito de
auxiliar o formador a entrar na obra e explorar os caminhos do sentido.
Das invariantes
Uma constante na proposta da artista plástica é a presença da data
e assinatura em todos os quadros, no caso, MB 93. Enfatiza-se o traço
da assinatura e datação na obra dos portugueses, pois isso lhes confere
um status, uma maneira de fazer-se vivel (“quere-ser-visto”) pela
comunidade, em que a obra circulará. O artista se afirma nesse processo
como o autor presente, visível da obra a ser lida
74
.
74
É possível que esse procedimento revele a constatação da desvalorização do artista
português e isso implique contratos editorias desfavoráveis à classe. Contudo, para a
análise aqui apresentada, interessa perceber a assinatura como um elemento de
constituição do sentido, um modo de presença do autor das imagens. Este tema
voltará à discussão ao longo do trabalho que ora se apresenta.
160
No Brasil, pelo menos nos autores contemporâneos, não existe
essa prática. Se o percurso diacrônico for convocado, é possível verificar a
assinatura como uma prática comum no início do século XX, que,
gradativamente, será apagada
75
. Pode parecer detalhe insignificante, mas
o procedimento revela a maneira como o artista se relaciona com o seu
fazer e ainda como a comunidade o vê. Para ele, ilustrar não é distante de
produzir uma série de telas para uma exposição. Durante muito tempo, e
talvez ainda, associou-se a ilustração à produção de telas. Isso acontece
tanto com Bacelar quanto com outros autores portugueses.
No caso da obra em questão, Bacelar deve dividir, se assim for
encarado, o espaço com Andersen. A sua afirmação como “co-autora”,
portanto, ou mesmo como uma segunda voz discursiva, não tem
equivalência dentro dos padrões canonizados. Se o contexto português,
por outro lado, vier à tona, Bacelar será um nome bastante respeitado.
Há, assim, a afirmação, por meio da assinatura para marcar a segunda
voz, para instituir o diálogo de fato, pois o nome de Andersen, ou a sua
obra clássica, poderia, de certa maneira, apagar o fazer de Bacelar. Essa é
uma hipótese, a outra seria o nome/assinatura de Bacelar ser utilizado
como um motivo (argumento) para a aquisição de um texto conhecido,
ou seja, as qualidades atribuídas de antemão à artista faria que o leitor se
aproximasse do livro. Em artigo da Revista Solta Palavra, Bacelar conta
que tem predileção por ilustrar clássicos e, ainda, que Trnka, ilustrador
tcheco, foi seu mestre e exerceu forte influência sobre seu trabalho: a ele
também agradava dar imagens aos clássicos. Sobre esta e outras
influências, a artista esclarece:
As minhas influências? Acho mais fácil para quem está de
fora vê-las. No entanto nunca lutei contra elas. Também
nunca copiei. Tenho contacto com a arte desde muito
pequena. Por outro lado sou como uma esponja: se gosto
muito da imagem ela fica “arquivada numa qualquer gaveta
das que tenho na cabeça” que se pode abrir de um momento
para outro. No entanto, ao selecionarmos essas imagens que
75
Na conclusão deste trabalho de tese, esta questão será aprofundada.
161
vamos pôr na tal “gaveta” estamos a fazer o “caldo” de onde
nasce o nosso “estilo”.
Na ilustração, ao contrário do que me acontece na pintura, é
um pouco como no teatro: interpreto uma idéia, um estilo
literário, uma atmosfera, o texto e o subtexto.
Por vezes e com o prazo de entrega a apertar, rasgo tudo o
que fiz e começo do zero. Outras vezes rodeio-me de livros
de arte e de extracção e passo um dia assim, sem pegar
num pincel.
Tiveram influência em mim o Trnka, Miloslav Jagr e a
pintura, principalmente a pintura renascentista e flamenga.
Por vezes nem se vê, mas a pintura que me dá coragem
para cada dia, para cada ilustração (BACELAR, [s.d], p. 4).
Deslindar as inflncias sobre o trabalho de Bacelar é um caminho
para (re) conhecer a sua proposta artística. Na ordem contria ao seu texto,
parte-se da influência de Trnka, seu professor, para depois (re) conhecer
outras hipóteses de influências. Assim, a sistemática da análise parte do
extratexto, artigo da autora sobre seu fazer e depois, aga o olhar sobre a
própria obra e dela extrai possíveis intertextos e interdiscursos.
O artista tcheco referido por Bacelar também ilustrou clássicos da
literatura infantil, como destacado. Ilustrar as obras de autores como La
Fontaine, Grimm e mesmo Andersen fez parte de sua trajetória artística, que
inclui também a imagem em movimento o cinema animado:
Sus ilustraciones para Bajaja, de Vladimír Holan, libro de
1955, esn consideradas uno de sus trabajos más perfectos
en el terreno de la recreación del folclor checo. Ese mismo
año da a conocer su interpretación de los cuentos de Hans
Christian Andersen (Disponível em:
<http://www.cuatrogatos.org/dossiertrnkapoetadelaimagen.
html>. Acesso em: 17 jun. 2006).
Assim como influenciou Bacelar, Trnka, como ilustrador, tem forte
presença nessa arte da imagem para livros, e seu trabalho é bastante
representativo e valorizado pela crítica:
162
Sus ilustraciones, en las que plasmó una concepción estética
y una figuración muy personales, han influido fuertemente
en muchos artistas posteriores. En 1968, la International
Board on Books for Young People (IBBY) le concedió a Trnka
la medalla Hans Christian Andersen de ilustración por el
conjunto de su obra. (Disponível em:
<http://www.cuatrogatos.org/dossiertrnkapoetadelaimagen.
html>. Acesso em: 17 jun. 2006).
Além do interesse comum pelos clássicos, o estilo da imagem de
Bacelar dialoga com o estilo de Trnka, compondo o que se designa como
interdiscurso. Uma invariante na obra da artista portuguesa é o diálogo
com as obras de outros artistas ou com o próprio mestre. Demonstra-se :
Figura 2.57Influência de Trnka em Bacelar
As cores e a técnica de luz-sombra podem ser destacadas como
uma recorrência de Trnka em Bacelar. Ambos reforçam idéias ou
sentimentos pelo contraste cromático. A fada, em Trnka, e a Sereiazinha,
em Bacelar, são destacadas pela luz em oposição à sombra que ocupa
toda a tela. A inserção da fantasia na figurativização das personagens
também pode ser observada em ambos, Reforçada, ainda, pela
aproximação “estereotipada” das feições das personagens, às vezes
animais, às vezes bonecos. Essa estratégia aproxima o público da obra.
Como sempre, também, em todas as produções, está claro que a ficção é
ingrediente da alma infantil, e a cultura alimenta essa característica,
atribuindo vida ou traços humanos aos animais ou bonecos. Chama a
atenção, na cena da sereia dançando, também a presença da marionete,
que pode ser uma alusão ao seu professor, mestre também na arte dos
163
bonecos, inserindo o intertexto, nesse caso a citação de outrem, como
postula Bakhtin
76
.
Da influência declarada às impregnadas ao texto, percebe-se como
uma constante o diálogo. A arte de Bacelar se encontra com as produções
dos grandes nomes das artes plásticas. Talvez a “conversa” mais
insistente se estabeleça com as obras surrealistas, em especial a de Marc
Chagall
77
, por isso, caracteriza-se o estilo de Chagall como uma invariante
em sua produção. A temporada da artista portuguesa na antiga
Tchecoslováquia, agregada então à URSS, contribuiu para a aproximação.
Não é de menor relevo fazer nota à vanguarda russa antes e
depois da Revolução de 1917. O cenário revolucionário trouxe ao palco
inúmeros artistas, sejam poetas, sicos ou pintores, e, ainda, é dessa
frutífera época a contribuição teórica dos formalistas russos, entre eles
Propp, amplamente aplicado às análises deste estudo, por ele mesmo ou
por seus seguidores, Barthes ou Greimas.
Chagall figurava entre esses artistas da vanguarda russa. Com o
endurecimento do regime comunista, muitos foram obrigados a deixar
seu país. A França, Paris em especial, soube receber os exilados” e
integrá-los ao universo artístico de então. As vanguardas européias
cubismo, expressionismo, fauvismo estavam presentes nas alamedas
parisienses. Chagall participou desse intenso fluxo criativo. O
surrealismo é o tom de seu discurso.
É a fase final deste artista, que superava os 90 anos de vida, a
fonte de inspiração da artista portuguesa. Ambos empregam técnicas
mistas em seu fazer, pelo menos durante um período de sua produção. A
diferença entre os materiais proporciona o destaque ou apagamento de
formas, primeira aproximação possível: “As técnicas que uso começaram
por ser os marcadores, depois e durante muito tempo usei técnica mista.
Neste momento uso cnicas puras como o óleo e o guache ou têmpera”
(BACELAR, [s.d], p. 3).
76
Este procedimento será bastante explorado pela análise das obras de Roger Mello.
77
Essa relação já foi percebida na obra O dinossauro.
164
Para exemplificar essas inflncias, apresentam-se, a seguir, três
imagens (as duas primeiras de Chagall e a terceira de Bacelar) em que
o traço, seja do pis ou do carvão, é deixado à mostra.
Figura 2.58Influência de Chagall em Bacelar
Também a recorrência ao universo onírico é uma temática
partilhada por esses artistas. Em uma das apresentações da última fase
de Chagall, o crítico explica:
Que no se trata de una situación real, sino de un sueño lo
atestigua la presencia de algunos animales fantásticos,
símbolo de su universo poético y presencia constante en sus
creaciones. Ya no nos sorprendemos de que las gallinas o la
vaca vuelen ligeras por el cielo [...] (CREPALDI, 2001, p. 71).
Nota-se na imagem última imagem, um morango e um bebê como
chapéu na cabeça do a, tais figuras rompem a coerência realista,
instaurando a ficção.
Retomando-se os formantes cromático, eidético, topológico e
matérico como critério para observação dos artistas, será possível
perceber ainda outras aproximações entre eles:
165
1) Elementos estranhos:
Destaca-se, de Chagall e Bacelar, a figura do peixe. No primeiro, o
peixe voa agarrado às pernas de uma mesa; no segundo, entre as
meninas-sereia, há uma cabeça de peixe, o corpo se dilui na água e se
tem o elemento estranho.
Figura 2.59Cenário surrealista - Chagall
Figura 2.60Cenário Bacelar
2) Figuras descontextualizadas:
Em Chagall, como bem destacou o crítico citado anteriormente, a
galinha voa sobre a cidade. Na ilustradora portuguesa, corpos humanos
caem no esconderijo da bruxa. Como ressaltado, na análise de O
dinossauro, a recorrência a Chagall parece ser uma constante em toda a
obra de Bacelar.
166
Figura 2.61Detalhe de uma galinha no céu
Figura 2.62Detalhe de crianças (humanos) caindo
Vale registrar que em A sereiazinha a técnica empregada é óleo,
mas, constantemente, a artista lança mão do desenho sobre a pintura,
traçando figuras vazias, como o caso apresentado, utilizando, portanto, a
técnica mista, como afirmado pela própria artista.
167
Das variantes
Opta-se por voltar e destacar algumas relações entre palavra-
imagem para revelar um fazer singular de Bacelar. Como apontado
anteriormente, a técnica utilizada é mista - o óleo sobre tela e
marcadores. Da tela, passa-se à impressão, este é procedimento comum
entre os artistas portugueses e lhes confere uma qualidade plástica
bastante sofisticada. As imagens-pinturas criam uma atmosfera
envolvente e oferecem ao leitor um mergulho profundo a o universo
encantado das sereias, com cores do azul ao preto, o pincel delineia a
onda, em que embarca o olhar do leitor. No ir e vir das páginas, o balanço
do livro transporta o viajante pelo mar das letras e desenhos.
Cena 1:
Palavra: revela a brincadeira comum das seis irmãs sereias com
restos de naufrágios.
Imagem: a) há oito sereias, e não seis como narrado. Este
procedimento se assemelha ao utilizado em O dinossauro quando o
professor fotografa em várias posições e sua imagem se multiplica,
gerando o efeito de movimento;
b) a sereia posicionada na extrema esquerda traz no rosto uns óculos
parecidos com os de mergulho, rompendo a atemporalidade proposta pelo
conto de fadas. O objeto moderno pertence aos tempos atuais;
c) entre as duas sereias, no centro à direita, existe a metade de
um peixe, recorrência surrealista da obra;
d) inserção de figuras traçadas, mas não preenchidas, como o caso
da carcaça de um navio naufragado à direita, em preto, procedimento
reincidente da antiga técnica mista.
168
Figura 2.63Sereia com óculos de mergulho e uma figura de peixe
Cena 2:
Palavra: a transformação da sereia em humana.
Imagem: a) não há utilização da perspectiva como recurso
plástico, essa ausência cria a ambigüidade: mar-terra, mas em função da
posição descendente alto-baixo. Gera a idéia de que a figura humana
submerge, e não emerge como deveria pela gica narrativa. Esse recurso
enriquece a interpretação da obra, na medida em que revela a
ambigüidade própria ao discurso poético;
b) a correlação criada é céu-mar (azul, preto e branco) e terra-
areia (marrom, amarelo e branco), insistindo na ambigüidade proveniente
da ausência de perspectiva, corrobora a idéia expressa no item anterior;
c) o elemento estranho é um pássaro negro do mesmo tamanho da
figura humana que sobrevoa a Sereiazinha. Um indicativo de mau agouro
em lendas populares;
d) a Sereiazinha tem pernas, mas continua desprovida da
sensualidade. Os seios e as genitais são apagados, fazendo o observador
não saber se a personagem está de frente ou de costas para a cena. Isso
demonstra como a autora entende o seu fazer. A ambigüidade novamente
vem à tona:
169
Eu não ilustro muito o que es. Eu gosto de ilustrar o que
o es ou o que es, mas a minha maneira. o é
aquela ilustração: a menina pôs um vestido vermelho a
menina com vestido vermelho; a menina s o sapatinho,
deixa eu ver se a menina é loira..claro, às vezes, o autor
e tanto pormenor no texto, que uma pessoa não pode fugir
a esta regra. Mas eu gosto mais de sugerir, gosto de deixar um
espaço para imaginação ou para uma terceira imaginação que
é a do leitor. Porque também es a minha imaginação e
es a imaginação do autor (BACELAR, M. Entrevista concedida
a Mariana Cortez. Porto, 18 abr. 2006).
Figura 2.64Expressão do movimento/ Figura do pássaro negro
Cena 3:
Palavra: a entrada da sereia no universo da bruxa.
Imagem: a) a figura central da sereia caindo recupera a idéia do
fundo do poço, idéia reiterada na obra. A busca da sereia pelo príncipe é,
por vezes, representada pelo movimento descendente, ou seja, conteúdo
e expressão estão homologados;
b) os lipos, antes de serem maus, são cômicos. Não idéia de
assustar. Palavra e imagem criam sensações diferentes. Óculos, língua
para fora, rostos humanos são traços que dão suavidade à palavra, que
descreve o ambiente de maneira assustadora. Esta característica de
“suavizar” os pontos de terror foi percebida na análise de O dinossauro
170
na expressão facial dos personagens diante do terror do dinossauro,
animal pré-histórico;
c) No canto direito, figuras enigmáticas: esqueletos de peixe e
humano, figuras vazia de humanos, como em Chagall, quando se tira
partido da técnica mista.
Figura 2.65Detalhe das figuras humanas caindo/ esqueleto de peixe
Cena 4:
Palavra: trato da bruxa com a sereia.
Imagem: a) a sereia aparece pela primeira vez com atributos
sensuais: cabelo, seios a mostra. Nota-se que, em outras leituras da
personagem, seus “dotes sensuais sempre foram ressaltados
78
;
b) a presença da luz nos rostos da sereia e da bruxa e a
desproporcionalidade da o da feiticeira demonstram a característica de
dar destaque aos elementos importantes à narrativa, independentemente
do compromisso com a realidade;
c) no canto esquerdo superior, há novamente a presença de figuras
enigmáticas: coruja, rabo de sereia e um perfil desconhecido, sempre
78
Ver a Pequena Sereia, de Walt Disney, ou mesmo a escultura em homenagem ao
conto, que figura entre as imagens deste estudo.
171
promovendo diálogo com outras histórias, outros tempos ou outras
narrativas, que podem ser criadas a partir de uma dica”. A coruja que
está aí já apareceu na obra O dinossauro.
Figura 2.66 Coruja de O dinossauro/ Coruja de A sereiazinha/Carcaça de rabo
de peixe e figura humana
Cena 5:
Palavra: a sereia o príncipe no navio pela primeira vez.
Imagem: a) a luz incide sobre o príncipe, que é a personagem
destacada; é a primeira aparição da personagem. Ressalta-se, mais uma
vez, que a luz imprime expressividade à imagem da autora;
b) entre as duas personagens sentadas no chão, uma terceira
que parece um bebê, com um capuz, também enigmática, contribuindo
para a atmosfera onírica;
c) a imagem da Sereiazinha é vista pela janela no navio, e suas
mãos e rosto são de criança, jamais de uma jovem de quinze anos;
d) há, à frente à direita, uma caneca traçada, bem como a garrafa
que o príncipe segura, o instrumento que a figura toca e o barril que tem
o candelabro sobreposto.
172
Figura 2.67A criança-sereia espia a príncipe
Cena 6:
Palavra: resgate do príncipe.
Imagem: a) a idéia da sereia-menina despojada da sensualidade
da jovem é negada na cena de resgate. Aí, tem-se o envolvimento
sensual: o encaixe dos corpos, a proximidade entre os lábios, o contraste
luz-sombra conduzem ao tema da sensualidade, o contato sensual
homologado ao sentido ascendente;
b) o desenho ascendente contraria as outras imagens, afirmando a
diferença desta imagem.
Figura 2.68Movimento ascendente
173
Cena 7:
Vale destacar a utilização de imagens recorrentes ao longo da obra.
As irs sereias o representadas por pássaros em duas ocasiões: a)
quando a narração sobre a aventura de descobrir a supercie, existe a
mefora, mas o leitor não a reconhece, pois o texto narra a presença de
gaivotas: “Tinha visto navios, mas tão longe que pareciam gaivotas” (p. 14).
b) quando as irmãs oferecem o punhal para que a Sereiazinha
mate o príncipe. A metáfora reincide, e é possível para o leitor associar os
termos comparados: irmãs-gaivotas. Nota-se que a pintura é a mesma.
Isso autoriza a leitura proposta.
Figura 2.69 Figura recorrente
Atando os nós
As pinturas da obra contam também, de maneira autônoma, a saga
frustrada de A sereiazinha. Repleta de polissemia, dada por ambigüidades,
metáforas, inserções de outras narrativas, além da rica e estimulante
presença de influências num fluxo contínuo de discursos, a imagem se
revela não apenas como adorno ou cenário da palavra, pois é inegável que
acrescenta elementos.
174
Apesar do acréscimo, mantém-se fiel ao texto, também não
subverte ou atualiza as linhas de Andersen; aliás, as imagens apresentam
marcas temporais do século XIX mescladas com figuras do século XX,
dialogando e atualizando o conto.
O que a imagem propõe o caminhos para novos diálogos,
gerando no observador questões, reflexões, como queriam Escarpit
(1979) e Calado (1994). Este procedimento é enriquecedor e estimulante
para o jovem leitor. Os constantes diálogos que a narrativa oferece
conferem-lhe atualidade, e isso renova cada leitura do conto. Tal
característica dialógica é recuperada pela imagem. entre palavra e
imagem uma relação de essência (natureza) comum. Assim, agrega-se
mais um tipo de texto, o dialógico: aquele em que a palavra e a imagem
conduzem a textos outros (em ausência), como em um jogo de caça do
tesouro, em que uma pista leva a outra.
Do ponto de vista pedagógico, este texto é fundamental, pois dá ao
educando a possibilidade de entender o texto em rede, procedimento tão
louvado pela “modernidade” na era informatizada, mas tão antigo e
inerente ao mundo das artes como bem revela a história das Mil e uma
noites, por exemplo.
175
2.2.3 Como Autora de Imagens Narrativas
O livro de imagem narrativa em Portugal: um exemplo em
Sebastião
Debaixo d'água tudo era mais bonito
Mais azul, mais colorido
Só faltava respirar
Mas tinha que respirar
[...]
Debaixo d'água por encanto sem sorriso e sem pranto
Sem lamento e sem saber o quanto
Esse momento poderia durar
Mas tinha que respirar
(Arnaldo Antunes)
Em Portugal, não há prática habitual na produção de livro de
imagem. Manuela Bacelar, mais uma vez, destaca-se por introduzir o
álbum de imagem em seu país, mas também não possui vasta produção
nesse nero. Seu trabalho exclusivo com a imagem se limita às obras
Sebastião e Consola-te.
Sebastião será a obra analisada neste estudo, uma vez que, apesar
de ser um texto que prescinde da palavra, é possível estabelecer relações
entre as linguagens verbal e visual, como será objetivo demonstrar.
Algumas definições, todavia, são necessárias nesta etapa, em
especial sobre o gênero álbum de imagem. É válido lembrar que o livro de
imagem surge no mercado editorial com o propósito de atender à demanda
de um grupo de não-alfabetizados, como bem pontua Colomer (1999):
Se trata de libros que desarrollan una historia completa
utilizando únicamente una sucesión de imágenes. Son
particularmente útiles para el deserrollo del lenguaje y del
esquema narrativo ya que se ofrecen como un estímulo
para que el niño narre la historia por o en combinación
con el adulto. Al relatar el cuento el niño aprende a
integrar las igenes en una estructura coherente y
176
aprende a apoyarse en la información del libro para
construir su interpretación (1999, p. 147).
Existem duas formas de nomear este objeto, são elas: livro de
imagem ou álbum de imagem. Adotar a palavra álbum pode impor uma
abordagem mais quadro a quadro, sem, portanto, privilegiar a continuidade
narrativa, enquanto o uso da palavra livro implica a mecânica imposta pelo
objeto, a saber: a linearidade e uma sistemática de leitura.
A abordagem realizada a partir da análise de Sebastião leva a
compreendê-lo como um livro de imagem ou ainda um objeto-livro
79
. A
adoção dessa perspectiva conduz à pergunta: é possível um objeto-livro ser
completamente desprovido de palavras? Tal questionamento é pertinente
graças ao termo livro: será que a palavra designa o texto verbal? Com o
intuito de descartar essa relação preestabelecida, cabe investigar quais
características da palavra permanecem nos livros de imagens ou, ainda, em
que medida esses remetem ao universo das palavras?
É possível observar que o livro de imagem leva a criança a
estabelecer o primeiro contato com o objeto-livro, pois muitas vezes a
palavra aparece como imagem ou mesmo o sistema de escrita é
reproduzido na expressão plástica, como é proposta demonstrar.
Caminha-se, pois, com vistas à articulação da imagem e da palavra,
sobretudo, quando essa última está ausente graficamente, como é o caso
do objeto analisado, mas que, a partir da relação com a palavra ausente,
edifica um todo de sentido articulado pelo projeto gráfico da obra.
Independentemente de se considerar a palavra necessária ou não
ao livro, o que pode ser percebido é que, mesmo em ausência, ela
processa significação neste objeto. Resta evidenciar de que maneira isso
se processa. As possibilidades são:
79
Livro-objeto será definido, neste estudo, conforme a seguinte citação: “A unidade
semântica é dada, em português, principalmente pelo uso de hífen, como o apóstrofo e a
aglutinação em inglês, por exemplo (artist’s book e bookwork). Do mesmo modo, o
objeto livro (o objeto de uso cotidiano ao qual denominamos livro) e o objeto-livro (como
uma proposta de especificação conceitual do objeto artístico) (Disponível em:
<http://www.artewebbrasil.com.br/marcelo/livro_objeto.htm>. Acesso em: 12 abr.
2008).
177
1) Em que medida a palavra, apesar de restrita, está presente
graficamente (como imagem) e significa no processo de decodificação da
narrativa, podendo limitar ou ampliar o sentido do texto visual, neste
caso, entendido como um objeto sincrético?
2) Em que medida a palavra permanece inerente ao discurso como
intertextualidade, contribuindo para a significação da narrativa?
3) Em que medida a “mecânica do livro, ou seja, o formato, o
suporte, determina a leitura de um livro de imagem, impondo a mesma
dinâmica ditada pelo texto verbal?
Tais questões iluminam o caminho de análise da obra Sebastião, e,
ainda a partir da análise, é possível perceber a representatividade do
álbum de imagem no cenário de literatura infantil em Portugal.
O livro de imagem: arte literária e arte plástica
A primeira questão a ser investigada no livro de imagem é a
presença do título e, como conseqüência, a capa, pois é onde esse
aparece. Verbal e Visual interagem para apresentar a obra ao público,
seja na estante da biblioteca, seja na vitrine de uma livraria, seja,
mesmo, nas mãos do mediador. Inevitavelmente, no livro de imagem, a
capa exige a leitura tanto verbal como visual, visto que, mesmo
priorizando a imagem, o título é verbal.
Ora, a capa exerce a função de convite à leitura e pode aproximar
ou afastar o pequeno leitor. Mesmo com a tarefa de introduzir os não-
alfabetizados na leitura, os livros de imagem apresentam um título, isso,
de antemão, prevê um mediador que deverá ler esse para a criança não
iniciada na leitura verbal ou, por outro lado, o descarte do título se não
houver a mediação.
Sem a medião do alfabetizado, a criança poderá eleger seu livro
pela imagem da capa ou depois de folhear as imagens do miolo, nestes dois
178
exemplos, o título seria insignificante como elemento de sentido, o que para
Semiótica, fundamentação teórica adotada nesta pesquisa, seria impensável.
Assim, o título existe e significa, daí olhar para a capa como um
texto sincrético no livro de imagem. Para discutir sobre a importância e
pertinência do título no livro de imagem, recorre-se às teorias das artes
plásticas, na medida em que neste universo é possível vislumbrar uma
obra, intencionalmente, sem título.
Posto isso, vale pontuar que a arte moderna questiona a própria
representação. Movimentos como impressionismo, o cubismo, o
surrealismo, para citar alguns, têm por proposta não imitar a realidade,
mas, por vezes, o tema mesmo é a representação, por exemplo, a famosa
obra de Magritte (1898 1967), Ceci n’est s une pipe (1928-1929), em
que o artista nega a representação:
Figura 2.70 Ceci n’est pás une pipe.
Oliveira (2004), em seu artigo “As semioses pictóricas”
80
, aborda
duas questões bastante significativas para este estudo. A primeira versa
sobre o fenômeno da abstração na pintura, a segunda focaliza a
problemática dotulo na obra de arte. As duas questões nascem no
universo das artes plásticas, mas, aqui, adaptam-se de maneira reveladora
aos livros de imagem. Sobre a representação, Oliveira observa:
80
Publicado na obra Semiótica Plástica, que tem sua organização.
179
A pintura não é um espelho do mundo natural, mas uma
codificação outra, que se organiza pelo e no ato de o pintor
concebê-la no espaço bidimensional, ou seja, no modo em
que ele se assume enunciador de um enunciado montado,
na relação entre esse e a enunciação, um contrato
comunicacional que expõe ao enunciatário as relações
estabelecidas entre o plano da expressão e o plano do
conteúdo (2004, p. 126).
Ambas problemáticas (ausência de título e abstração) estão
relacionadas, uma vez que, dentre os movimentos, um, em especial, pôs
à prova o título, a saber, o abstracionismo.
A pintura denominada abstrata é a que procura expor um
médium picrico, ou seja, seu objetivo é tornar visível não a
relação entre o objeto pictórico e as coisas do mundo, mas
as possibilidades de codificação de seu próprio código, a sua
realidade plástica. Refletindo sobre o seu próprio médium,
que é inclusive convertido em um tema da pintura, os
pintores se lançam numa busca o mais de recobrir a tela
através de ilusões óticas para, por exemplo, conseguir, na
sua inerente bidimensionalidade, a tridimensionalidade do
mundo natural, mas de descobri-la na sua planitude plano
sob plano, plano no plano (2004, p. 126).
Não raro, em exposições de arte abstrata, o apreciador é tomado
pela decepção quando os seus olhos e intelecto não encontram abrigo no
título de um quadro que pouco ou nada a “entender”. Alguns artistas
plásticos atribuem ao título uma natureza delimitadora, ou seja, frente à
arte abstrata o título daria um sentido indesejado para uma obra aberta.
Por vezes, os artistas optam mesmo por não atribuir títulos às suas obras,
e o apreciador, quando busca o “porto seguroda palavra, pode deparar-
se com “sem título”.
Resta ainda um aspecto a ser observado que é o das
pinturas não intituladas. A impossibilidade de criar um título,
ou seja, de nomear verbalmente a pintura, é um
reconhecimento da sua intradutibilidade em outro sistema.
Nesse sentido, o não nomear ou a ausência dum nome num
outro sistema é por si mesmo uma espécie de título que
180
guia o observador na tarefa de re-construir a significação da
obra (2004, p. 129).
Essa mesma preocupação e, por conseqüência, esses mesmos
conflitos são gerados pelo título no livro de imagem. Se, por um lado,
pode oferecer conforto ou relações concretas ao leitor, por meio da
intertextualidade ou da metonímia ou do protagonismo, por outro, pode
restringir a polissemia da imagem.
Para tratar da problemática dos títulos nos livros de imagem,
buscou-se um exemplo no que se refere à tradução. A hipótese aventada
é que a alteração do sentido original do título implicaria modificação no
conteúdo da obra, pois o título no livro de imagem atribui sentido às
imagens em seqüência narrativa.
O título como condição de sentido
O exemplo é a obra Cena de rua, de Angela Lago. No título, a
palavra cena” remete às linguagens do teatro, do cinema, da
teledramartugia, em que as personagens desenvolvem uma ação em um
tempo e em um cenário. Para reforçar o sentido da palavra, destacam-se,
ainda, três acepções do dicionário: 1) Nos palcos, o principal espaço de
representação; 2) Cada uma das situações ou lances no decorrer da
evolução da intriga de uma peça, novela, romance; 3) Acontecimento
dramático, ou cômico
81
.
A palavra cena, neste título, vem acompanhada pela locução
adjetiva “de rua”, que transporta o leitor para o cenário, onde a ão se
desenvolve. Há, também, a generalização imposta pela ausência do artigo
(a ou uma). Tem-se, portanto, uma ação qualquer em um cerio, a rua.
O título, no entanto, não está só. A imagem está ali. Aliás, sobreposta
a ele. O título é englobado pela imagem, am de, por si só, gerar imagens,
tornando-se também imagem, como postulado por Otávio Paz em Signos em
81
FERREIRA, A. Dicionário Aurélio básico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p. 140.
181
Rotão
82
. Na capa, ainda a sobreposição de quadrados: o negro, o
branco, os coloridos em tamanho menor. Reconhecem-se, nesta montagem,
três elementos do mundo: uma placa tipo claquete, um muro e a pichão.
Incluído na placa ou muro, está o título, que, pela grafia, sugere a pichação
ou inscrição manuscrita em uma placa. Este título autoriza a leitura tanto da
placa como do muro, deixando ao leitor diversos significados para recobrir a
figura: um filme? Um muro?
Figura 2.71 Comparações: placa e muro
Para compreender a capa e lhe atribuir sentido, é necessário
recorrer não ao título, mas ao miolo da obra, ou seja, o jogo está
posto, dado que o leitor é convidado a entrar na obra. A capa tem, pois, a
propriedade de propor a leitura ao leitor, de manipulá-lo para leitura.
Cláudio Ferlauto afirma que a capa é criada para “provocar, despertar e
induzir a imaginação e a curiosidade do consumidor. Vender idéias.
Seduzir olhos e mentes” (2002, p. 75).
Nesta narrativa, Lago conta com imagens que mostram a
“condição” circular de um menino de rua de uma grande cidade, que pode
ser São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte ou Lisboa, Madrid, Londres,
como demonstrado pela ausência do artigo (a ou uma). Ali, há uma
seqüência de ações que revela a narratividade do texto
83
.
82
Esta propriedade de a palavra gerar imagens (criar imagens) será tratada mais
adiante neste estudo.
83
O termo narratividade é utilizado conforme a teoria da semiótica discursiva entende.
182
As cenas urbanas são exibidas a cada virada de página. O menino
vende ou oferece objetos que não são figurativos, podem, por isso, ser
recobertos por doces, frutas, brinquedos.
Figura 2.72 – Caixa com objetos não identificáveis
Vale ressaltar que é possível haver a venda ou doação dos objetos,
não se sabe. A narrativa se desenrola com um ir e vir de agressões (sem
contato físico), das pessoas, dos homens-animais e dos animais que estão
dentro do carro, mas também do menino que está fora, na rua. Ele
também agride, pois furta um objeto de um carro. Na maior parte das
cenas, no entanto, apresenta a gestualidade que figurativiza a humildade,
a subserviência, contudo, quando o menino resolve pegar algo dentro de
um dos carros, a ação revela também agressividade por parte do
protagonista, trazendo à tona a ambigüidade das relações diante da
desigualdade social, tema posto pela narrativa.
Há, eno, um misto de medo,pena e ira, sentimentos próprios aos
moradores das grandes cidades, onde a exclusão social é recorrente.
Destacam-se as cenas em que o menino é carente de dinheiro (representado
pela bolsa) e carinho (representado pelo filho nos bros da e) em
oposição à cena de furto, em que o menino também expressa agressividade.
Ele é, portanto, agressor e vítima.
183
Figura 2.73 Cena de rua: o protagonista é agressor
O aspecto mais interessante na obra é a ambigüidade: seja dos
sentimentos, das funções do protagonista e dos antagonistas ou ainda da
circularidade sugerida pelo final, que retoma a cena inicial.
Voltando ao título, Cena de rua reafirma-se como ambíguo,
polissêmico, deixando ao leitor diferentes possibilidades de preenchimento
até para gerar o efeito de sentido daquele sentimento contraditório
(medo, pena, raiva), que essa cena de rua gera em quem participa dela
(“dentro da obra”, personagens, e “fora da obra”, leitores).
Para abordar a imporncia do tulo no álbum de imagem, utilizam-
se duas traduções da obra de Lago: em espanhol, editado pela Ekaré
(Venezuela) e, em francês, editado pela Editions Rue du Monde (Fraa).
Na tradução para o espanhol, a obra recebeu o título de De noche en
la calle. Há, pois, uma diferença importante entre os títulos, em português e
em espanhol. Explica-se: o fundo negro que contribuía para a polissemia da
obra: noite, cena de cinema, apresentação teatral, recorte de uma cena da
realidade, foi restringido pelo sentido da palavra noite, ou seja, o negro do
fundo da cena pode ser entendido como noite na obra em espanhol.
Já na tradução francesa, Le petit marchand des rue mantém a idéia
da abertura de sentido das cores, não explorada pela tradução em
espanhol, porém a ambigüidade da função do menino-protagonista não
permanece, uma vez que ele, nesta tradução, somente será visto como
vendedor e não como doador, negociante ou até como um possível
184
agressor, como foi aventado anteriormente. Nesta edição, uma cena do
miolo da obra compõe a capa, isso reforça o estado de submissão da
personagem na tradução francesa. Enquanto a capa original explora a
ambigüidade, em uma capa ambígua, a versão francesa utiliza o recurso
anafórico, como será categorizado na conclusão deste estudo.
Figura 2.74Publicação francesa/espanhola
Pode parecer simples traduzir um livro de imagem, pois apenas o
título deve ser vertido, mas a tarefa exige muita atenção, dado que,
durante muito tempo, atrelou-se a função delimitadora à imagem nos
livros para crianças, em que se percebe o caráter delimitador que um
título pode assumir. Conclui-se, então, que no diálogo palavra/imagem a
propriedade limitadora de um sistema sobre outro é um risco constante,
ao qual o editor deve estar atento.
Como o verbal é restrito ao título do livro de imagem, ele deve ser
pensado a partir de duas possibilidades: como contextualizador e
ambíguo, no caso de Cena de rua, ou gerador de intertextualidade, como
Sebastião, tal qual será demonstrado a seguir.
Por essa mesma razão, dar título ao livro de imagem não é fácil, a
menos que ele se enquadre na categoria de livro informativo (seja de
conceito, seja de conhecimento), pois, como demonstrado, o título compõe a
significação da obra e torna-se mesmo condição para a significação.
Do exemplo brasileiro, passa-se para a obra portuguesa: Sebastião
(2004), de Manuela Bacelar, editado pela Edições Afrontamento.
185
Uma história ou duas histórias: o enlace narrativo no livro de
imagem
Depois de comprovar a importância do tulo no livro de imagem,
toma-se a capa e contracapa com relação ao título, na obra Sebastião, de
Manuela Bacelar. Observando o livro de frente ou ao contrário, percebe-se
a presença de duas capas: a capa e a que deveria ser a contracapa. Nesta
edição, contudo, essa adquiriu status daquela, anulando, portanto, a sua
função. Abaixo, apresenta-se o livro aberto, expondo as duas capas e
interroga-se: há duas histórias neste livro de imagens? A personagem
representada é a mesma nas duas capas, ou seja, Sebastião?
Figura 2.75As duas capas
Para iniciar a análise, optou-se por uma das capas, ponderando que
essa é uma estratégia da análise e não uma determinação do objeto, isto é,
normalmente a capa do livro estabelece a entrada do leitor na obra. Neste
caso, por serem duas capas, o leitor deve optar por um dos lados para
iniciar a leitura, ou seja, o objeto-livro começa por questionar a própria
dinâmica que lhe é inerente.
Assim, em uma das capas, há um bebê em branco e preto que deixa
derramar o contdo de uma caneca. O conteúdo colorido da caneca remete
ao universo das águas pelas cores azul e verde e por uma figura que se
186
assemelha a um peixe. Aparece o título Sebastião em azul manchado de
cinza. Sebastião é a personagem, no caso o bebê, pois é quem age. Colomer
discute a queso de como a imagem pode conferir protagonismo:
“De quién trata una historia” es una información tan sica
para adentrarse en una narracn, que a menudo el tulo o
la portada ya se encargan de sumistrarla. La ilustración
tenderá a destacar a sus protagonistas y a recordar al lector
la importancia de cada personaje. No tendría mucho sentido,
por ejemplo, que el primer plano estuviera ocupado por un
personaje secundario sin mayor relevancia, a no ser que
quisiera crearse algún efecto especial. Pero las formas de
indicar la jerarquía entre los personajes pueden ser s
variadas que simplemente el hecho de situar al protagonista
en el centro (2002, p. 28).
O bebê seria o protagonista: Sebastião? Ou o peixe seria
Sebastião? Ou outra personagem que aparecerá ao longo da narrativa se
chama Sebastião? Vale, no entanto, investigar o título sem conhecer o
miolo? Apenas, sabe-se que trata de uma personagem do sexo masculino,
mas palavra e imagem não dialogam a ponto de, pela hierarquização,
distinguir-se o protagonista
84
, porque entre o peixe e o menino o
hierarquização por tamanho, luminosidade ou forma (ou até mesmo outro
recurso plástico).
Assim, há, de um lado, o fundo preenchido por cores azul, verde e
manchas em tons de cinza, a figura de um peixe e, sobre ele, uma
criança, o que se verifica como uma quase fuo entre as personagens.
Há o título: Sebastião. Eis a imagem:
84
Nos livros infantis, talvez nas obras de arte em geral, é difícil estabelecer regras para
o conteúdo e estratégias discursivas predeterminadas, pois autores, ilustradores,
designers gráficos estão sempre tentando romper a expectativa.
187
Figura 2.76 Uma das capas
Pelo outro lado, o fundo é branco, e o bebê é maior que o peixe,
como se verifica:
Figura 2.77Outra capa
As capas apresentam uma diferença: uma é caracterizada pelos
vazios de cor, e a outra, pelo preenchimento de cores. Para avaliar a
pertinência desta diferença, passa-se ao miolo da obra, destacando-se
alguns questionamentos que devem nortear a análise.
O título estaria na categoria da ambiidade ou sugeriria
relações intertextuais?
Se intertextual, é válido interrogar em que medida a mensagem
verbal (dada pelo intertexto) interfere na construção da narrativa visual,
188
ou seja, gera ambigüidade ou acrescenta dados à ela? Ainda, qual o
sentido da dupla entrada?
Explicitadas as questões que iluminam a trilha, inicia-se a análise
por um dos lados para tentar respondê-las. A opção é pela capa que
apresenta vazios, lembrando que a escolha não segue nenhum critério
algum predeterminado.
Um dos lados em análise
Seguindo uma das histórias A
85
, a técnica utilizada por Bacelar,
mais uma vez, é mista: aquarela para a cor e nanquim como marcador.
Assim como em O dinossauro, obra analisada anteriormente, em
que a linha da terra leva à condução da seqüência das imagens e, mais
uma vez, a idéia do flip books é retomada. Volta-se, pois, à técnica da
animação. A cnica empregada tende mais ao gráfico que ao pictórico
86
.
A cada virada de página, o bebê se movimenta em direção à caneca.
Abaixo, exemplifica-se a técnica do Flip book, pois esse procedimento será
um traço característico da obra de Manuela Bacelar:
Figura 2.78Exemplo de Flip book
85
Para se referir às diferentes histórias ou percursos, A se utilizado para designar a
primeira história analisada e B, para a segunda. É possível começar tanto por uma como
por outra, assim, a designação, primeira e segunda, é apenas uma opção da análise.
86
Esta oposição gráfico/pictórico será trabalhada ao longo da pesquisa.
189
Figura 2.79Exemplo de Flip book II
Inicia-se, então, a história. Um bebê, personagem principal, está do
lado esquerdo da página, e uma caneca, do lado direito. Esses elementos
estão ligados pela linha da terra que cria a idéia de solo e, ainda, o elo
entre eles. O ato de virar as páginas gera o movimento da personagem.
O desenho não é realista, e sim apenas um esboço, ou seja, não
obedece às cores naturais, nem às proporcionalidades do ser humano.
Como a imagem é vazia, vem à tona a idéia do esboço, do inacabado. O
traçado é vazado e es a mostra. Tem-se a enunciação enunciada. O
enunciador não tem a intenção de apagar ou disfarçar seu fazer, pelo
contrário, este é mostrado. Este é um traço presente na produção s-
moderna. Durante bom tempo, as técnicas plásticas tinham por objetivo a
fidelidade ao objeto representado; na modernidade, os artistas
abandonaram essa idéia e imprimiram maior subjetividade às criações;
na s-modernidade, a idéia da metalinguagem, ou melhor, a idéia da
metaficção toma a cena, como declaram Gonzáles e Zaparín: “[...] La
inclinación posmoderna a que los mismos dibujos interactúen con el
álbum: el argumento de la historia es en la manipulación del proprio
médio” (2005, p. 14).
Ainda, Maria Cecília Siva-Díaz reafirma a característica
metaficcional como determinante da literatura infantil pós-moderna:
190
En la literatura llamada postmoderna abundan los
experimentos literarios arriesgados y complejos que buscan
desenmascarar la ilusión de realidad que crea la literatura a
través de convenciones que quizá en otra corrientes, menos
audaces, permanecen ocultas. Estos experimentos revelan
que toda narración es una construcción hecha de palabras,
de acuerdo a convenciones muy codificadas. De este modo
las historias metaficcionales colocan a los lectores en una
posición distanciada, en la que no pueden “sumergirse
puesto que no se les permite perder de vista el carácter
artificial y convencional del texto y al problematizar la
lectura […] les hacen consciente de que esn activamente
implicados en la construccn de sentido (2005, p. 4).
Na literatura infantil portuguesa contemporânea, são raros
procedimentos audazes com relação à metaficção, como será
demonstrado na conclusão deste estudo, de qualquer modo, dois
exemplos são destacados: Histórias de um segredo, de João Paulo Cotrim
e André Letria, e A maior flor do mundo, de José Saramago e ilustrações
de João Caetano, nesta ordem:
Figura 2.80Histórias de um
segredo (primeira página)
Figura 2.81Histórias de um
segredo (segunda página)
191
Figura 2.83A maior flor do mundo
Nas obras de Manuela Bacelar, o desenho vazado é tomado como
uma possibilidade metaficcional, esse procedimento marca o estilo da
autora. Assim, o marcador, em nanquim, desenha o bebê que está
cercado por brinquedos com formas geométricas, como cubo, triângulo,
losango e uma bola, e tem, em suas mãos, um peixe, que não é
totalmente mostrado. As mãos da personagem escondem partes do peixe,
mas é possível identificar o rabo, a barbatana e as escamas.
Pergunta-se: o bebê quereria devolver o peixe ao seu habitat, o
mar ou o rio? Este seria o conflito da narrativa?
O peixe está disjunto de seu objeto-valor, a água. O bebê
adquiriria, com isso, a função de personagem-auxiliar ou doador de
competência. O peixe não pode voltar para o mar, pois não consegue
locomover-se fora d’água. O bebê tem competência para ajudá-lo, então,
a narrativa segue.
Figura 2.84Detalhe do peixe
192
O bebê carrega o peixe em direção à caneca. A ação é do bebê. Ele
quer fazer-se conjunto ao objeto-valor: caneca ou conteúdo dela.
A expressão do bebê é de contentamento e curiosidade, virar a
página é, assim, natural, pois a expectativa narrativa foi criada no leitor (o
protagonista quer “salvaro peixe ou saber qual é o conteúdo da caneca?).
Figura 2.85Detalhe da intenção do be
Há uma transformação na cena seguinte. A disposão dos
brinquedos é alterada, rompendo com a idéia do flip book, que, como
demonstrado, deve alterar os elementos visuais progressivamente para que
as figuras adquiram movimento com o folhear das páginas. Esse tipo de livro
exige a manutenção do cenário, e, para dar movimento à imagem
87
,
somente é posvel movimentar a personagem. Com isso, o cenário deve ser
fixo, a fim de que a personagem possa ganhar mobilidade.
87
Este tipo de texto já foi trabalhado na alise da obra O dinossauro, da mesma autora.
193
Figura 2.86Detalhe da alteração dos objetos
O livro de imagem não exige tanto rigor, visto que a intenção não é
a animação como no Flip book, e o leitor pode passar lentamente pelas
páginas, além disso, a alteração “misteriosa” dos elementos do cenário
oferece dados à imaginação do leitor.
O menino-protagonista, na seqüência, introduz o peixe na caneca.
O azul é derramado sobre a linha da terra. Tem-se, pois, a idéia da água.
Como conseqüência, a cor aparece, e é autorizada a entrada do bebê no
universo da ficção.
No que diz respeito à estrutura narrativa, até este momento foi
possível identificar: situação inicial e conflito narrativo. Assim, na situação
inicial, o bebê estava disjunto do universo mágico, a partir da introdução do
peixe na caneca, o sujeito-bebê faz-se conjunto com um campo ficcional
desenhado pela tinta azul. Assim, evidencia-se o peixe como doador de
competência ao bebê, é ele quem o auxilia a se fazer conjunto com o
universo ficcional, ao contrário daquilo que foi aventado como hipótese
inicial: então, o doador de competência é o peixe. O que ocorre, na
verdade, é a reciprocidade – o menino doa e recebe, o peixe doa e recebe,
ambos se fazem conjuntos ao objeto de valor: água mundo ficcional.
Tanto o bebê como o peixe têm demonstram contentamento, que é
revelado pelas expressões faciais.
194
Figura 2.87 Detalhe das expressões faciais
A conjunção com o universo do maravilhoso é eufórica, assim como a
devolução do peixe ao seu cenário/habitat. O contentamento seria por que
ambos encontraram o seu ambiente: peixe-água, bebê-mundo ficcional?
Além disso, é possível, também, ler na caneca um S, talvez um
indício do nome da personagem, um pertencimento: essa caneca pertence
ao Sebastião protagonista da narrativa: o peixe? Ou o menino?
Figura 2.88 Detalhe da caneca com a inscrição S
O líquido escorre, aumenta de volume e começa a tomar conta da
página, alarga-se. Eis a magia em colorido. A cor apresenta o universo
irreal, ficcional, e, assim, o bebê vai descobrir as águas e viajar sobre o
peixe. O ser marítimo é transporte do bebê para esse mundo da
195
fantasia
88
, reforçando a idéia do peixe como doador de competência ao
bebê. Nesta nova atmosfera, o menino e o cenário ganham cor.
Uma relação muito utilizada em literatura infantil é a seguinte:
preto e branco (ou ausência de cor) para a realidade e cores para a
fantasia. Roger Mello, em seu A flor do lado de lá, utiliza, também, esse
recurso. Um procedimento usual não desqualifica o valor estético da obra,
pelo contrário, pode ser uma característica do sistema, do gênero livro de
imagem, como a utilização dos balões nas histórias em quadrinhos.
Figura 2.89 Oposição preto/branco versus colorido
Figura 2.90Oposição preto/branco versus colorido, em A flor do lado de lá
Outra oposição é: a linha reta versus a ondulada, também associada
ao real e à fantasia, respectivamente. Entretanto, não é possível afirmar
que a oposição seja uma convenção do gênero, como a relação
preto/colorido analisada.
88
Pontua-se que o termo fantasia é utilizado como sinônimo de ficção.
196
Figura 2.91 Oposição linha da terra reta versus ondulada
A criança vai até o reino das águas e conversa com as sereias, os
peixes, os cavalos-marinhos. As misteriosas profundezas comem o
cenário. Sempre envolvido por muita cor, muitas formas e muitas
figuras distintas, estranhas, mas nunca assustadoras, elas são, pois,
sempre amistosas.
As páginas são completamente preenchidas, sangradas. Ali, não
há espaço para o branco. Instaura-se outra oposição: página vazia
versus página preenchida. Homologam-se, respectivamente, a realidade
(fundo vazio de cores) versus fantasia (página sangrada em
profusão de cores).
Figura 2.92Oposiçãogina vazia versus página preenchida
Na cena-página seguinte, o bebê está totalmente envolvido pelo
universo das sereias quando há uma interrupção. Introduz-se a palavra.
Sebastião é chamado à superfície.
197
A palavra aparece como característica da imagem, remetendo à
linguagem das histórias em quadrinhos. Um balão exclamativo traz o
título da obra ou, agora sim, nomeia o protagonista. Os olhos da
personagem evidenciam que está sendo chamado. Ele se chama,
portanto, Sebastião.
Figura 2.93 Detalhe da expressão facial
Se a palavra vem em balão, por reconhecer a linguagem, o leitor
sabe que o interlocutor daquela fala. Alguém chama o menino
Sebastião, pensa o leitor. Essa voz, provavelmente, vem da superfície.
Sebastião, agora, deve voltar à tona, à realidade. Deve deixar o sonho, o
espaço do maravilhoso.
Nota-se que nesta cena há a predominância de uma cor, o verde,
em oposição às cenas anteriores, em que eram utilizadas cores diversas.
A monocromia pode ser homologada a um estágio intermediário, nem
realidade (preto e branco) nem fantasia (colorido), mas a não-realidade.
Este percurso é proposto pelo quadrado semiótico, em que as categorias
da expressão são homologadas às categorias do conteúdo.
198
Realidade Fantasia
Não-realidade não fantasia
Quadro 2.1 – Quadrado semiótico
Além da relação semi-simbólica
89
, demonstrada pelo quadrado
semiótico, observa-se que a cena das sereias remete ao intratexto (relão
entre textos do mesmo autor), porque A Sereiazinha, outra obra analisada
por este estudo, é citada. Existe o diálogo do ponto de vista temático, o
mundo das sereias, e do ponto de vista expressivo, uma vez que a
disposição das figuras na página remete um a outro texto da mesma autora,
retomando inclusive o mesmo estilo, o que caracteriza o interdiscurso.
Oliveira trata do tema, no artigo mencionado, quando analisa a tela de
Pablo Picasso intitulada As meninas, em releitura da obra de Velásquez:
A esteria desse procedimento corrente nas artes, o
tratamento que a semiótica propõe para dar conta das
semioses textuais e discursivas não é nenhuma inovação ou
ruptura com os fazeres próprios dos pintores. Ele, como se
vê, parte do estudo da linguagem pictórica com base nos
procedimentos semióticos que a estruturam, se a operação é
entre textos, ela é abordada como intertextualidade e se ela
é entre discursos, como interdiscursividade (2004, p. 133).
Há, pois, o intertexto, no primeiro caso explicitado, e o
interdiscurso, no segundo. As sereias (personagens retomados) são citadas
e a maneira de fazer (cores, formas, traço, disposição) é retomada.
89
Semi-simbolismo, pela definição dada pela semiótica discursiva, é homologação entre
as categorias do conteúdo e da expressão
199
Figura 2.95Sebastião Figura 2.96A sereiazinha
Nesta cena, também, pode-se perceber o narratário instaurado,
visto que as sereias olham para frente, para o interlocutor. Este “olho no
olho” busca a cumplicidade, bem como corrobora o recurso
metalingüístico, observado anteriormente, pois rompe o espaço aqui
(narrativa) e (enunciação), na medida em que convoca o leitor como
partícipe da história, outro elemento metaficcional.
Figura 2.974Detalhe da instauração do narratário
A narrativa termina com humor quando a suposta mãe (figura
feminina) tira o bebê da água e o coloca no varal. A cena volta a perder
o colorido.
200
Figura 2.98Mãe conduz o menino para a realidade
Esta cena também é caracterizada como intermediária, remetendo
ao quadrado semiótico esquematizado, pois há traços da realidade: varal,
calcinha, meia, plantas, pássaro, mas o bebê está pendurado, o que não é
usual nem possível, além disso, a cor azul das gotas rompe o preto e o
branco homologado à realidade.
Figura 2.99Menino pendurado
Com isso, a narrativa termina na não-fantasia como se houvesse
uma intersecção dos dois universos fantasia e realidade. O bebê não
está triste, nem feliz, mas surpreso, perplexo, o que é revelado pela
expressão facial. “Preso” ao varal para “secar-se” da aventura.
201
Figura 2.100Detalhe da expressão facial
Há, pois, o seguinte programa narrativo: sujeito-bebê é
manipulado a querer-fazer (estar conjunto ao universo ficcional),
figurativizado pelas águas e lendas (sereias) que envolvem este
“misterioso” ambiente. Ali, o sujeito interage e se faz conjunto com a
fantasia. Até que, por intimidação, o sujeito-adulto (mãe) manipula o
bebê, e este sai do universo ficcional e volta à realidade, mas está
encharcado da água da caneca, e resta a dúvida: é realidade ou
imaginação? Eis a figura ambígua, elemento caro às obras literárias.
Virando a página, a narrativa é interrompida, graças à ausência
das personagens ou mesmo de qualquer referência a elementos
reconhecíveis do mundo natural. É uma página em que os elementos o
são figurativos, há apenas cor:
Figura 5 Página de passagem
202
Então, ao leitor é dada a oportunidade de recomeçar a hisria pelo
outro lado.
Pelo outro lado: outra história?
A narrativa B, contudo, é muito semelhante à anterior, exceção
feita à figurativização do cenário, dos elementos e da personagem. A
variação discursiva e expressiva aparece da seguinte maneira:
1) A técnica empregada é mista: aquarela, marcadores e colagem.
A colagem é a técnica acrescentada. Esse procedimento leva a crer em
algo fora do contexto, visto que explicita para o leitor a ação de ter sido
recortado de uma situação e colado em outra. O menino nesta narrativa
não está, portanto, em seu contexto original. Ele foi recortado de um
texto e colado em um novo, em uma nova história. Nessa técnica, a
enunciação é percebida no enunciado. O recurso metaficcional é explorado
pela enunciação mais uma vez. Isso se pela técnica empregada
implicando o formante matérico na significação da obra. Segundo
González e Zaparín, a colagem surgiu, na literatura infantil, quando se
buscava imprimir maior subjetividade às descrições do espaço:
En la historia del arte, después de los primeros collages se
produjo un paso más cuando, a base de una superposición
de imágenes que no fuera una mera yuxtaposición, se
intentaba desdoblar el espacio y aprovechar la profundidad
de campo mental (2005, p. 13).
203
Destacam-se, abaixo, exemplos de colagem em literatura infantil:
Figura 2.104Detalhe da colagem
Aponta-se que, no entanto, a técnica empregada por Bacelar
simula a colagem quando sombreia o contorno da personagem
Sebastião, distintamente dos exemplos apresentados, em que o recorte
é mais evidente.
2) A personagem possui traços mais realistas, pois são mais
detalhados, mas, com a simulação da técnica mista, reforça-se a ruptura
com a realidade do trado e a fidelidade com relação ao desenho das mãos,
dos pés, dos olhos. Além disso, pela vestimenta (short e camiseta) e pelo
andar, ao invés de engatinhar, percebe-se que a criança é mais velha.
Figura
2.102
El Gato que
sonríe... (Eric Battut- França)
Figura
2.103
Máquinas
(Chloé Poizat- França)
204
Figura 2.105 – Detalhamento (mãos, cabelo, olhos)
3) Há cores desde o início em tons de terra. Não existe, portanto, a
oposição entre preto-branco, realidade, e colorido, fantasia, como na
história do outro lado. Uma nova oposição é criada, homologando
expressão e conteúdo, ficção versus metaficção, sendo aquela o colorido e
essa os tons terra e a técnica da colagem. Simbolicamente, o formante
cromático gera a idéia do envelhecido, corroborando o sentido de “fora de
contexto”, anteriormente ressaltado pelo matérico.
4) Nota-se que não há o peixe, o elemento desencadeador como na
outra narrativa. O peixe era um elemento concreto, coerente naquela
história. Nesta, a subjetividade será mais explorada. Um exemplo é a
caneca ganhar proporções à medida que o menino a deseja ou a teme.
6) A principal ruptura, no entanto, está no plano da ficção.
Enquanto na narrativa A, a recorrência era ao plano da fantasia, em um
estilo de desenho mais “ingênuo”; nesta, há a recorrência ao surrealismo,
que, conforme o Dicionário de pintura moderna, pretende:
Tratava-se da ocorncia de temas fornecidos pelo
inconsciente, o acaso, a loucura, os sonhos, as alucinações,
o delírio ou o humor, ou outros tantos estados psíquicos
capazes de criar na imaginação do artista as zonas de
“deslocamento sistemático”, que precisava, depois,
identificar e povoar. [...] torna-se para logo evidente que a
principal contribuição da obra plástica [...] o imprevisto, pelo
próprio arbitrário do recorte do objeto, pela ambiência
surreal que se desprende dela, as obras dos pintores
205
surrealistas trouxeram mistério angustiante a fixidez
desconcertante (1981, p. 331-331).
Observam-se as mesmas caractesticas do surrealismo na obra
de Manuela Bacelar, em que os elementos voam, e os objetos
pertencentes a cerios diferentes o inseridos em novos contextos;
tamm o cromatismo assemelha-se. Segue a paleta de cores para
comprovar a afirmação:
Figura 2.107 – Sebastião – Manuela Bacelar
Figura 2.106Paleta de cores de Sebastião
206
Figura 2.108 – Chagall Figura 2.109 – Trnka
7) Não a figura da mãe, mas o chamado. O menino chega a
uma praia e ele mesmo sai da água, deixando para trás a caneca, como
se tivesse vivido esta situação outras vezes. Ele conhece o caminho
e, portanto, é autônomo em seu processo. Sai dágua cabisbaixo; pela
expressão corporal, visualiza-se a insatisfação:
Figura 6Detalhe da expressão corporal
8) A última cena é muito semelhante à narrativa anterior, no
entanto, o grau de autonomia permanece. Suas ações são individuais, não
há a necessidade do outro, ele mesmo se pendura no varal.
207
Figura 2.112Detalhe dos retornos (narrativa A/narrativa B)
2.2.3.1 O enlace das histórias: um livro de imagem
As capas
As capas são recortes das imagens da história A. Nelas, o há
referência à história B. Isso pode autorizar a leitura da junção de duas
histórias como uma única narrativa.
Figura 2.113As capas
208
A diferente caracterização dos protagonistas
Apesar do mesmo nome, Sebastião, os protagonistas apresentam
características distintas. O protagonista da história A é um bebê, da
história B é um menino. O cromatismo da história B pode criar a atmosfera
do envelhecimento, assim, propõe-se como uma leitura possível que a
entrada do garoto no universo da fantasia é recorrente, tanto que o menino
mais amadurecido já conhece seu itinerário e es habituado a ele. Há,
portanto, uma circularidade que, aos poucos (pela cor, pelas formas, pela
proporcionalidade), envelhece, amadurece, torna-se autônomo.
A intertextualidade verbal (a palavra em ausência)
No contexto português, é inevitável pensar sobre o nome Sebastião
e não assoc-lo ao mito-lenda da volta do Rei Sebastião que, depois de
se perder nas águas, voltaria a Portugal para salvar seu povo. O mito
nome ao fenômeno do sebastianismo que é definido como:
Termo proveniente da civilização portuguesa que,
originariamente (final do século XVI), designava a crença
muito difundida no retorno de um de seus reis, D. Sebastião
(155-1578), morto na batalha de Alcácer-Quibir (1578), em
luta contra os mouros. Posteriormente , o termo reapareceu
por ocasião de crises nacionais [...] D. Sebastião encarnava
o Encoberto que voltaria para livrar o reino lusitano do jugo
espanhol (SERRÃO, 1985, p. 509).
A obra em questão apresenta um Sebastião que entra e sai do mar
de forma circular e recorrente, chegando mesmo a envelhecer. O mar é
representado como um universo fantástico, o espaço da liberdade, mas
existe sempre alguém que chama e quebra o sonho.
A obra de Bacelar seria, então, uma releitura do mito do Rei
Sebastião. Ler a narrativa sem recorrer ao intertexto é uma possibilidade,
209
no entanto, a ausência da alusão gera uma narrativa com humor, pelo
inusitado do varal, mas sem sentido entre as histórias. A ligação o tem
relação do ponto de vista da seqüência narrativa. Elas não se cruzam,
afinal contam a mesma história. São histórias paralelas, mas, pela
circularidade que impõe traços temporais, graças ao envelhecimento, os
recursos plásticos autorizam a ligação em uma única história associada
pelas categorias da expressão.
Com a ajuda da intertextualidade, a obra Sebastião reitera a idéia
de objeto-livro, dado que a manipulação, para além da mecânica do livro,
torna-se fundamental para a significação deste texto. No cenário
português, sabe-se, pois é lenda, que Sebastião mantém um ir e vir (mar-
terra) dado ao chamado do povo português, que sempre que es em
perigo pode recorrer ao seu rei Sebastião.
A lenda não fica circunscrita à mediação do adulto em Portugal,
visto que é uma história corrente na tradição oral.
210
3 CONTEXTO BRASILEIRO: ENTRECRUZAR DE CONFLITOS
Quem parte treme, quem regressa
teme. Tem-se medo de se ter sido
vencido pelo Tempo, medo de que
a ausência tenha devorado as
lembranças.
(Mia Couto)
Ao trilhar veredas conhecidas, duas questões cobram o
pesquisador: o distanciamento necessário à análise crítica e o cuidado
com a tendência a julgar com maior condescendência (ou, talvez, com
maior rigor) o que é local. Assim, para um estudo que se pretende
comparativo, esse é o desafio imperioso ao qual se propõe. Lobato aposta
que a distância aguça a crítica:
Vejo ao longe a ave exotica: a Europa. Não mais o projeto
antigo da aldeia minhota, mas Paris. Acho que só de lá
posso ver bem e bem estudar este Brasil. Cá dentro somos
um pau da floresta, e os paus das florestas não podem fazer
ideia das florestas em conjunto. Falta-lhes o longe da
perspectiva aerea. Aquele soldado de Stendhal que andou
perdido uma porção de tempo, muito se admirou mais tarde
quando lhe disseram que aquilo” havia sido a famosa
batalha de Waterloo. Tenho de colocar-me longe para olhar
e ver se o Brasil é coisa que mereça consideração (LOBATO,
1946, p. 167).
Sem poder seguir os ensinamentos do pai do sítio, cabe à análise
deitar olhos sobre o que lhe pertence. Desde já, portanto, adota-se
inversamente a postura anterior àquela sobre o território alheio. Visto que
o solo agora é local, abrem-se as veias sensíveis para tocar, cheirar,
apalpar a realidade brasileira, que, por vezes, ofusca por suas
desigualdades e seus contrates, que geram sobretudo a violência ao ser
humano, à natureza, à vida, aos sonhos. Ser brasileiro é viver um
paradoxo: olhar e não querer ver a sua condição de miséria e olhar e
querer ver a beleza impingida a esse território.
211
Em entrevista ao Roda Viva - Flip em 2007, o autor moçambicano
Mia Couto citou Agualusa, autor angolano, quando afirmou que ser
pessimista diante da miséria é um luxo. Tomando o ensinamento daqueles
que partilham problemas similares, o pesquisador olha, como dizia outro
poeta, com “olhos livres”, apesar da certeza da perspectiva utópica e da
crueza da realidade, para aquela miséria sofrida, porque própria.
Viver no Brasil é estar em constante desafio. Andar por alamedas
com casas cinematográficas e cair em ribanceiras que depositam seu lixo
em córregos ao ar livre; trafegar por largar avenidas com carros
importados e observar famílias que vivem em sofás-sucatas e utilizam
fogueiras de papelão como aquecedor nas noites frias: este é o retrato de
um Brasil urbano, que se vangloria por abrigar todos os povos, mesmo
que isso se em porões em situação subumana, como no caso dos
latino-americanos e dos africanos em situação ilegal nas confecções do
Bom Retiro.
Ah, o Paulo, São Paulo! E as suas caras diferentes, caras
rosadas e pretas, caras satisfeitas e caras deprimidas, sujas e
malcheirosas, perfumadas e gordurosas. Todas as cidades são
muitas dentro de uma só, tal como acontece com as pessoas:
todaso uma merda e poesia (SUAREZ, 2005, p. 36).
Entretanto, mais adentro, no interior, abundância de águas que
correm por todos os lados (Solimões, Amazonas, Paraná, Cuiabá, Tietê,
Negro, São Francisco...), entrecruzam-se em bacias e geram vida e geram
morte ciclo natural, eis a beleza. Água que cura, água que mata. Das
secas às enchentes, a natureza governa o país tropical, em que as mães
d’água, os sacis, os minhocões habitam e ensinam o imaginário popular,
mas que pouca credibilidade adquiriram diante dos homens que
planejavam retificação de rios, asfaltos, metrôs, barreiras, hidrelétricas. O
país tem pressa e há de ser o país do futuro! As questões culturais são
deixadas de lado em detrimento do crescimento acelerado que o sistema
capitalista demanda. Condição inexovel desde o século XVI.
212
Por outro lado, vida na margem esquerda do rio. Vida precária
de roçado nos grandes latifúndios. Vida de colonos, assim chamados por
seus senhores, apesar da independência datar do início do século XIX.
Abundância de verde, em que o Boitatá era lenda da proteção das matas,
mas a ganância venceu o mito, e o progresso, com suas queimadas e
colhedeiras, substitui os homens e seus sonhos nas lavouras. Crescimento
acelerado para os produtores de soja, que devem abaixar a calha do rio
para escoar seu produto com rapidez. Parece que o discurso uniformizado
do crescimento sustentável invade até as pequenas comunidades
ribeirinhas que viviam de pesca e artesanato, mas que hoje, por ação
midiática, articulam com fluência as imposições de um país globalizado.
Olhar para o Brasil é viver a natureza em constante batalha com o
humano. As cores infinitas da Mata Atlântica, do Cerrado, da Amazônia, do
Pantanal abafadas pelo cinza do progresso e do crescimento acelerado.
muita gente e essa gente precisa sobreviver, precisa de emprego.
Indústrias, comércio e tecnologia o as soluções à o: o capital move o
ps, esta é a lei de mercado.
Não se pode esquecer mais outro lado, aquele que chamou atenção
dos portugueses quando do “achamento” da Terra de Santa Cruz, ou seria
Pindorama? o litoral. Ali, estão as maravilhas e a vastidão do mar e das
serras que comem o cartão postal nacional: a cidade maravilhosa, a
Veneza brasileira, a cidade com atabaques, berimbaus, ritos e crenças.
Atrativos turísticos de primeira linha no mercado comercial, claro que
aliados à exploração sexual das Lolitas sonhadoras de um país com
grandes dimensões.
País multicultural, multirracial, multi para não se entender, e
dificuldade imensa para olhar o que o cerca, afinal tanta diversidade o
cerca. O pai, a metpole, chora por sua pequenez, e a conia, o filho,
angustia-se por sua imensidão.
Apesar de tudo, ou por isso, a educação ainda esdesacelerada
nas escolas multiseriadas, em que o professor leigo trabalha em três
213
períodos e cursa a faculdade obrigatória, à distância, instituído pelo
Normal Superior. Talvez, uma conquista diante de cenário tão macabro.
A escola e os livros constituem-se como opressores diante da
diversidade, como revela o narrador machadiano em Conto de Escola, o
qual aprendeu nesse lugar somente duas coisas: a corrupção e a delação.
Cenário escolar do século XIX que perdura até o início do culo XXI.
Todavia, como é bordão nacional: a vida ensina! A vida no morro, a vida
na favela, a vida na rua, todas essas ensinam.
Além da dificuldade fronteiriça natural e aquela demarcada pelo
homem e sua democracia em castas, também a fronteira geográfica
atropela a nacionalidade. Os limites latino-americanos existem.
Determina-se o país selvagem de língua portuguesa como a potência do
cone sul. Apaziguador e gerador de conflitos: Colômbia, Venezuela e
Bolívia. Todos tremem diante desse colosso multirracial. E sua
internacional Amazônia torna-se, a cada dia, mais internacionalizada,
como todos querem: a união dos povos! Contudo, este país tão alegre e
receptivo, em momento algum, sente-se parte da América Latina e, por
vezes, até rivaliza, como nos momentos em que a bola rola nos
gramados, ou, de maneira mais científica, como revela Eduardo Lourenço:
Tudo se passa como se o Brasil, em confronto com a
herança européia, ou da miragem européia, usufruísse de
um estatuto completamente diferente à parte no conjunto da
América Latina. Muito cedo começou a existir o dispositivo
que devia dar à cultura brasileira a tonalidade única que a
iria distinguir no mundo, hoje sobretudo. entre todas as
antigas colônias espanholas, nascidas da conquista, ou se
uma ocupação menos sangrenta, um ar de família que não
existe entre elas e o Brasil (2005, p. 93).
Tantos problemas vividos, no entanto, aproximam os países
vizinhos: invao e colonização européia, desigualdade social, golpes
militares, busca da identidade, torturas, “invasões bárbaras”, influências
culturais dos irmãos miliorios, entre outros. A condição social avança
sobre a imposição lingüística e balança as fronteiras, e, por vezes, como
214
querem aqueles que pregam a união latino-americana, pela similaridade
da situação, a América Latina vive nos brasileiros:
Sin embargo, frente a la opresn, el saqueo y el abandono,
nuestra respuesta es la vida. Ni los diluvios ni las pestes, ni
las hambrunas ni los cataclismos, ni siquiera las guerras
eternas a través de los siglos y los siglos han conseguido
reducir la ventaja tenaz de la vida sobre la muerte. Una
ventaja que aumenta y se acelera: cada año hay 74 millones
más de nacimientos que de defunciones, una cantidad de
vivos nuevos como para aumentar siete veces cada año la
población de Nueva York. La mayoría de ellos nacen en los
países con menos recursos, y entre éstos, por supuesto, los
de América Latina. En cambio, los pses más prósperos han
logrado acumular suficiente poder de destrucción como para
aniquilar cien veces no sólo a todos los seres humanos que
han existido hasta hoy, sino la totalidad de los seres vivos
que han pasado por este planeta de infortunios (Discurso de
Gabriel Garcia Marquez quando recebeu o prêmio Nobel de
Literatura, 1982. Disponível em:
<http://www.ciudadseva.com/textos/otros/ggmnobel.htm>
Acesso em: 27 jul. 2008).
Abandona-se o contexto sociopotico-geográfico para mergulhar na
fião. Todavia, ela está sempre na realidade, como ensina Antonio Candido:
A literatura é essencialmente uma reorganização do mundo
em termos de arte; a tarefa do escritor de fião é construir
um sistema arbitrário de objetos, atos, ocorrências,
sentimentos, representados ficcionalmente conforme um
princípio de organização adequado à situação literária dada,
que mantém a estrutura da obra. [...]
Nos países da América Latina a literatura sempre foi algo
profundamente empenhado na construção e na aquisição
de uma consciência nacional, de modo que o ponto de vista
histórico-sociológico é indispensável para estudá-la. Entre
s, tudo se banhou de literatura, desde o formalismo
jurídico até o senso humanitário e a expressão familiar dos
sentimentos. Por isso é difícil delimitar esse universo
insinuante e multiforme (2003, p. 179 -180).
215
Segundo Alcântara Machado, em romance do início do século XX, a
nacionalidade brasileira nasceu do encontro entre três raças: “Durante
muito tempo a nacionalidade viveu da mescla de três raças que os poetas
xingaram de tristes: as três raças tristes” (Brás, Bexiga e Barra Funda.
São Paulo: Moderna, 2006). Mas, como se sabe, ela não parou por e a
mestiçagem caracteriza a nacionalidade, como as bricolagens artísticas.
Diante de tanta diversidade e capacidade de assimilação, talvez o
Brasil tenha perdido a habilidade de olhar para fora. Este reflexo da
diversidade e da imensidão sentidas está em discurso.
No que diz respeito à literatura, havia urgência em se definir a
brasileira, que não desejava ser um modelo europeu.
No Brasil, ao contrário dos países americanos que
conheceram grandes civilizações pré-colombianas, é
impossível pensar num processo civilizador à margem da
conquista européia, que criou o país. [...] A nacionalidade
brasileira e as suas diversas manifestações espirituais se
configuraram mediante processos de imposição e
transferência da cultura do conquistador, apesar da
contribuição (secundária em literatura) das culturas
dominadas, do índio e do africano, esta igualmente
importada (CANDIDO, 2003, p. 177).
A mestiçagem transculturada marca a nacionalidade brasileira e
suas manifestações artísticas. Em literatura infantil, um fenômeno marca
a nação tupi iletrada: Monteiro Lobato, e este polêmico artista faz seu
“auto-retrato”, que é mesmo o da arte brasileira depois do modernismo:
Ando com varias ideias. Uma: vestir nacional as velhas
fabulas de Esopo e La Fontaine, tudo em prosa e mexendo
nas moralidades. Coisa para crianças. Veio-me diante da
atenção curiosa com que meus pequenos ouvem as fabulas
que Purezinha lhes conta. Guardam-nas de memoria e vão
reconta-las aos amigos - sem, entretanto, prestarem
nenhuma atenção à moralidade, como é natural. A
moralidade nos fica no subconsciente para ir se revelando
mais tarde, à medida que progredimos em compreensão.
Ora, um fabulario nosso, com bichos daqui em vez dos
exoticos, se for feito com arte e talento dará coisas
216
preciosas. As fábulas em português que conheço, em geral
traduções de La Fontaine, são pequenas moitas de amora do
mato – espinhentas e impenetraveis. Que é que nossas
crianças podem ler? Não vejo nada. Fabulas assim seriam
um começo da literatura que nos falta. Como tenho um certo
jeito para impingir gato por lebre, isto é, habilidade por
talento, ando com ideia de iniciar a coisa. É de tal pobreza e
tão besta a nossa literatura infantil, que nada acho para
iniciação de meus filhos (1946, p. 104).
O modernismo trouxe à literatura o desejo de ser nacional, de fazer-
se ppria. Com o fenômeno Monteiro Lobato, a literatura infantil ganha
forças de expressão nacional. Este grande visionário da arte editorial, desde
sempre vislumbrou a inserção das imagens em suas prodões literárias
para crianças, porque ele mesmo era autor literário e artista plástico, mas
nunca se aventurou a ilustrar suas pprias obras, para essa tarefa, tinha em
os Belmonte e Votolino. De seus livros ilustrados e suas invencionices,
desenvolvem-se os livros para a meninada brasileira.
3.1 O LIVROLBUM NO BRASIL: UM FILHO DOS QUADRINHOS
No Brasil, o livro infantil ilustrado nasce das influências da revista
O tico-tico, de 1905, segundo Mokarzel, em artigo para o site de literatura
infantil Doce de letra:
Um dos exemplos da existência do novo público consumidor
infantil é o surgimento da revista O tico-tico, em 1905. Essa
revista será um sucesso desde o seu lançamento e
permanecerá no cenário editorial a os anos 60. Ela foi
responsável pela criação de personagens e hisrias que
contribuíram na construção de um imaginário infantil mais
afinado com a realidade brasileira (Disponível em: <www.
docedeletra.com.br>. Acesso em: 15 set. 2006).
O tico-tico dialoga com os personagens do sítio, e o imaginário
infantil avança. Já nos anos de 1960 aparece uma nova revista em
quadrinhos brasileira bastante inovadora, Pererê, criada por Ziraldo e
217
retirada precocemente do mercado no golpe militar de 1964, pois figurava
entre a imprensa subversiva.
Ziraldo, no entanto, permanece e passa a ser um grande nome da
ilustração no Brasil. Ele é um autor que migra das artes plásticas, sua
carreira de formação, para as letras, e publica o primeiro livro-álbum
brasileiro, Flicts (1969), que, além de articular palavra e imagem em total
integração, agrega algo novo no cenário da literatura infantil brasileira,
pois possui imagens que tendem à abstração. Por ser um artista
reconhecido e em freqüente intercâmbio com outros artistas, vale lembrar
que surgem, na mesma época, na Itália e na França, os álbuns O Pequeno
azul e o pequeno amarelo, de Leo Lionni (1959), e Le Petit Chaperon
Rouge, de Warja Honergger-Lavater (1965), este último sem palavras.
Em ambos, é possível reconhecer o diálogo com a obra de Ziraldo, bem
como associá-las ao movimento abstracionista de Mondrian, por exemplo:
Figura 3.1O pequeno azul e
o pequeno amarelo (1959)
Figura 3.2 Le Petit
Chaperon Rouge (1965)
218
Contudo, será em 1980 que a literatura infantil brasileira
experimentará um boom no mercado editorial no que diz respeito ao livro-
álbum, visto que o momento de grande força da literatura infantil
aconteceu na década de 1970, como marcam pesquisadores deste gênero
de literatura como Nelly Novaes Coelho, Marisa Lajolo, Regina
Zilbermman, entre outros. Sobre a ilustração, área de interesse deste
estudo, Morkazel afirma:
Mas, na verdade, a ilustração se difundiu no Brasil,
principalmente na cada de 80, quando um novo visual
pode ser percebido. Foi nesse período que a ilustração
tornou-se mais ousada e o livro recebeu um tratamento
gráfico que revelou maior preocupação com a estica. E o
trabalho do ilustrador começou a ser reconhecido (Entrevista
concedida ao site Doce de Letra. Disponível em:
<www.docedeletra.com.br>. Acesso em: 15 set. 2006).
Assim como Portugal tem Manuela Bacelar com formação além-
fronteira e desbravadora do livro-álbum em seu país, destacam-se, no
cenário brasileiro, além de Ziraldo: Rui de Oliveira, Gian Calvi, de
Oliveira, Helena Alexandrino, Ângela Lago, Eva Furnari, Ricardo Azevedo,
entre outros.
Uma nova geração surge no final dos anos de 1980 e início de
1990 dentro do estúdio de Ziraldo, ou seja, bastante marcada pelo
processo de criação em equipe, como é próprio de estúdios como o
Figura 3.3 Flicts (1969)
Figura 3.4 Mondrian
219
Zappin, de Ziraldo ou os estúdios de Maurício de Sousa. Ali, os artistas
aprendem a fazer à maneira do artista “principal”, no caso Ziraldo ou
Maurício de Sousa.
Roger Mello e Graça Lima surgem neste contexto, e a última artista
nomeada conta, em entrevista, sobre o início de sua carreira:
Eu aprendi muita coisa com ele (Ziraldo). Ele foi o pai dessa
geração gráfica. Quem não trabalhou diretamente no
escritório tem algum tipo de contato com Ziraldo e
certamente aprendeu muito com esse contato. [...]
Quem viu ele trabalhando, quem observou o que ele fez
tanto em termos gráficos quanto em termos de processo e
análise, soube aproveitar. Quase todos nós passamos por
ele, de uma maneira ou de outra. Ele tem um trabalho que
foi muito baseado nos grafis, nas revistas internacionais, na
vanguarda da imagem; ele trabalhou muito com a imprensa
alternativa e os trabalhos dessa época foram importantes
para a cultura visual desses ilustradores que estão agora
(Entrevista concedida ao site Doce de Letra. Disponível em:
<www.docedeletra.com.br>. Acesso em: 15 set. 2006).
Graça Lima não é ilustradora, mas também pesquisadora de
literatura infantil e possui dissertação de mestrado defendida na PUC/RJ
na área de designer gráfico, aliás, existe um centro de pesquisa que
vem formando inúmeros pesquisadores na área do designer do livro
infantil, como Guto Lins
90
.
Voltando ao trabalho de Roger Mello, autor selecionado no corpus
do trabalho que se apresenta, verifica-se a sua origem no estúdio de
Ziraldo e o trabalho em equipe como algo que marca o seu fazer e será
explorado pela análise de Vizinho, vizinha.
As artes gráficas são uma grande influência da ilustração do Brasil,
distintamente do que se verificou na ilustração de Portugal, como já
pontuado. Eis alguns exemplos que justificam a afirmação, nesta ordem
Votolino, Ziraldo, Ricardo Azevedo e Ângela Lago. Percebe-se,
90
Como revela a obra LINS, Guto. Livro infantil? – projeto gráfico, metodologia e
subjetividade. Rio de Janeiro: Rosari, 2003.
220
principalmente, nas últimas imagens apresentadas, um trado próximo das
artes gráficas/ da arte impressa:
Figura 3.7 – Pedacinho de pessoa
Além disso, pelas imagens destacadas, percebem-se os estilos
variados e as diversas técnicas empregadas. No último capítulo deste
trabalho de tese, pretende-se detalhar a comparão entre Portugal e Brasil
com relação às técnicas e aos modos de fazer suas obras literias para o
público-criança.
Para terminar este breve percurso histórico sobre o livro-álbum no
Brasil, vale ressaltar que, desde a obra Flicts de Ziraldo, se entende o
autor com dupla vocação. Talvez, por influência das histórias em
quadrinhos ou de Ziraldo ou dos dois ao mesmo tempo, nunca houve no
Brasil o estranhamento de um autor artista plástico se tornar autor
Figura
3.5
Reinões de
Narizinho – Votolino
Figura
3.6
A
bela borboleta
Figura
3.8
O
homem no sótão
221
literário, como foi relatado no cenário português, pelo pesquisador
Gomes
91
.
A autora Graça Lima, ainda em sua entrevista, destaca o valor
artístico de Roger Mello, e, com as suas palavras, passa-se à análise de
suas obras, que serão fundamento para as afirmações apenas esboçadas
neste momento:
Eu não entendia o que o Roger estava fazendo ali. A gente
trabalhava com o traço de Ziraldo, desenvolvendo os
produtos dele, e o Roger tinha um traço próprio
maravilhoso e muito bem desenvolvido.
A viagem termina quando
encerramos as nossas fronteiras
interiores. Regressamos a nós, não a
um lugar.
(Mia Couto)
91
Quando o contexto do livrolbum português é trabalho, o autor é convocado a
descrever a situação.
222
3.2 ROGER MELLO: EXPLOSÃO DE EXPERIÊNCIAS
Caminante, son tus huellas
el camino, y nada más;
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
(Antonio Machado)
3.2.1 O Artista e suas Metamorfoses: Alterando o Cenário
Roger Mello é um artista que pode receber o adjetivo de inovador.
Formado em desenho industrial e programação visual, aproximou-se,
primeiramente, da produção de histórias em quadrinhos, quando
trabalhou ao lado de Ziraldo, na Zappin. Também experimentou a criação
de desenho animado, fazendo cursos com o grupo Animation (equipe da
National Film Board, do Canadá), isso revela a constante busca criativa
pelo objeto artístico destinado ao público jovem.
Roger Mello é ilustrador, escritor, diretor de arte e designer num
profissional. Sua obra literária apresenta facetas desse caminho
entrecruzado, muitas vezes bifurcado e, portanto, experimental no que diz
respeito às suas propostas visuais e verbais.
O trabalho do artista sempre apresenta algo inusitado, novo,
original; seja no estilo, seja na prática da própria composição do projeto
gráfico. O artista produz arte em diversas linguagens, meios e com
diversas possibilidades de diálogo entre artes.
Começou um trabalho autoral em literatura infantil com A flor do
lado de, um álbum de imagem bastante interessante
92
. Ao longo de seu
percurso, foram impondo-se desafios de criação que tangem desde o
92
Esta obra foi e será abordada em dois momentos neste trabalho, a saber, no capítulo
“O livro de imagem em Portugal: um exemplo em Sebastiãoe no catulo Fita Verde
no Cabelo – nova velha esria: emaranhados de vozes”.
223
estilo até a experimentação autoral em equipe, como no caso da obra
Vizinho, vizinha, em que o artista convida outros dois ilustradores para
partilharem a produção gráfica da história.
Ainda, suas produções para crianças propõem diálogos variados
com a linguagem fauvista de Matisse, a arte africana, o Näif e o folclore
popular brasileiro
93
, promovendo uma relação discursiva que tem
expressão máxima na obra Griso, o unicórnio
94
.
O objetivo desse trabalho de tese é também, como apresentado,
investigar a produção gráfica contemporânea brasileira, para tanto, Roger
Mello torna-se fundamental ao corpus deste estudo, tendo em vista seu
caráter experimental e, pode-se dizer, ousado. A ousadia na
experimentação das linguagens, além das propostas de composição com
vários artistas e do enfrentamento inusitado do livro como objeto o
diferenciam e autorizam um olhar atento sobre sua produção artística
para crianças.
Três relações propostas por Mello interessam, em especial, à
investigação, a saber: a relação do texto visual com a poesia, constituindo
dois projetos gráficos interligados e com processos de criação
diferenciados Jardins, obra escrita por Roseana Murray e com desenhos
de Roger Mello
95
, e Desertos desenhos-poéticos, de Roger Mello, que
foram “ilustrados pelas palavras-poemas, Roseana Murray. Apesar de
esse processo de criação ter pontos de partida distintos, os projetos
gráficos dialogam, pois apresentam pontos de aproximação na concepção
gráfica das obras, como será demonstrado ao longo da análise.
A segunda obra de especial interesse ao estudo é em que o artista
se propõe como ilustrador de um dos escritores mais estudados e
importantes no Brasil: Guimarães Rosa, em Fita Verde no cabelo: nova
velha estória. Tal proposta artística o aproxima de Manuela Bacelar na
experiência com o clássico A sereiazinha, de Andersen.
93
Estas influências poderão ser reconhecidas ao longo das análises.
94
Griso é uma personagem em busca de sua identidade que, ao percorrer os espaços,
incorpora a tendência daquele lugar ou época.
95
Utiliza-se a palavra desenho, pois é assim que a obra apresenta.
224
Para finalizar essa explosão de experiências, a obra citada
Vizinho, vizinha será analisada. Nela, Roger Mello é responsável pelo texto,
pela ilustração de uma das personagens e pelo projeto gráfico; além disso,
os outros dois personagens o desenhados por Graça Lima e Mariana
Massarani, compondo, portanto, uma equipe de criação que exige diálogo
entre as concepções sem causar impacto ou prejudicar a organização
narrativa, pelo contrário, produzindo uma obra bastante original.
Diante dessa amostragem, pretende-se interrogar sobre os efeitos
de suas experimentações e ousadias, no que diz respeito à eficiência de
um projeto gráfico de literatura infantil, ou seja, as questões perseguidas
pelo estudo que se apresenta continuam sendo aquelas ligadas ao diálogo
palavra-imagem, à organização gráfica e ao projeto gráfico como
elemento significativo do texto literário destinado às crianças.
3.3 DLOGOS ENTRE PROJETOS GRÁFICOS: UMA PROPOSTA PTICA
Monteiro Lobato, no início do século XX, em cartas ao amigo
Rangel desabafa que o universo da criança é bastante distinto do adulto,
principalmente, no que se refere à literatura. O autor vai declarar que a
memória da criança sobre as histórias é infinitamente maior que a de um
adulto, pois esse experimentou muito a vida. Daí as obras literárias da
infância marcarem tanto a formação do indivíduo e serem lembradas pela
vida toda
96
.
Apesar de muitos autores (pesquisadores ou literários) insistirem
no fato de não haver distinção entre escrever para o público adulto e para
as crianças, Zohar Shavit demonstrou bem que os autores adotam esta
posição devido a uma auto-imagem fragilizada, isto é:
96
Referência à obra A barca de Gleyre – cartas trocadas entre os dois intelectuais.
225
O ponto comum a todos estes escritores é a sensação de
que escrever para crianças significa algo inferior, algo
diferente de literatura tal como ela é entendida pelos
intelectuais. Eles sentem que, como escritores para crianças,
eso condenados a um estatuto inferior como escritores e
que se encontram injustamente limitados na sua escrita
devido à atitude da sociedade para com a literatura para
crianças. Assim devido à fraca auto-imagem da literatura
para crianças, os escritores tentam libertar-se do sistema
infantil e desejam ser considerados simplesmente escritores
(ou potenciais escritores) para adultos e com a negação de
qualquer distinção entre escrever para adultos e escrever
para crianças (2003, p. 68-69).
Lobato, como artista e intelectual “antenado”, vislumbra sua
vocação para a escrita destinada ao público infantil e em sua época,
início do século XX, afirma-se como escritor para crianças:
Ah, Rangel, que mundos diferentes, o do adulto e o da
criança! Por não compreender isso e considerar a criança
um adulto em ponto pequeno, é que tantos escritores
fracassaram na literatura infantil e um Andersen fica eterno.
Estou nesse setor há vinte anos, e o intenso grau da minha
“reeditabilidademostra que o meu verdadeiro setor é esse.
A reeditabilidade dos meus livros para adultos é muito
menor. Não posso dar a receita. Entram em cena
imponderaveis inapreensiveis (1946, p. 346).
Além disso, o pai do sítio antevê a importância da recepção do livro
na infância e os efeitos que aquele objeto estético vai desempenhar e é
feliz em sua proposição quando afirma que a criança tem de morar no
livro e não apenas lê-lo e colocá-lo fora:
Ando com ideias de entrar por esse caminho: livros para
crianças. De escrever para marmanjos me enjoei. Bichos
sem graça. Mas para as crianças, um livro é todo um
mundo. Lembro-me de como vivi dentro de Robison Crusoe
do Laemmert. Ainda acabo fazendo livros onde nossas
crianças possam morar. o ler e jogar fora; sim morar,
como morei no Robinson e n’ Os filhos do Capitão Grant
(1946, p. 293).
226
A idéia de morar é a possibilidade de se tornar familiar, de
pertencer, vivenciar a experiência estética, como Regina Zilbermman
revela na proposta da Teoria da Recepção edificada por Jauss:
Caracterizando a experiência estética, Jauss explica por que é
lícito pen-la como propiciadora da emancipação do sujeito:
em primeiro lugar, liberta o ser humano dos constrangimentos
e da rotina cotidiana; estabelece uma distância entre ele e a
realidade convertida em espetáculo; pode preceder a
experiência, implicando então a incorporação de novas
normas, fundamentais para a atuação na e compreensão da
vida prática; e, enfim é concomitante antecipão utópica,
quando projeta vivências futuras, e reconhecimento
retrospectivo, ao preservar o passado e permitir a
redescoberta de acontecimentos enterrados (1989, p. 54).
Morar em um livro seria conviver com os personagens, emocionar-
se com as aventuras e descobertas, enfim, acompanhar uma narrativa
com altos, baixos, expressões de sentimentos e desenlaces felizes. Em
literatura, contudo, a prosa narrativa não é a única possibilidade do artista
literário. Eis que surge também no universo para criaas a poesia, mas
essa não pode perder as características inerentes à literatura infantil,
como formulado por Lobato.
A pergunta que desponta, no entanto, é: a criaa tem meios e
habilidades para decodificar esse signo tão complexo que é o poema?
José Paulo Paes, um dos maiores poetas para crianças no Brasil,
dedicou-se a esclarecer:
No meu modo de entender, a prosa e a poesia atuam de
maneiras diferentes na sensibilidade infantil. As narrativas
em prosa, com personagens, peripécias e desfechos,
estimulam os mecanismos de identificão imaginativa.
Durante a leitura de uma história desse tipo, a criança se
enfia na pele dos heróis e vive com eles, e por eles, as
aventuras narradas. Com isso, o mundo da simulação
literária se torna indistinguível, durante o tempo da leitura,
do mundo da realidade cotidiana. a poesia tende a
chamar a atenção da criança para as surpresas que podem
estar escondidas na língua que ela fala todos os dias sem se
227
dar conta delas. Por exemplo, a rima, ou seja, a semelhança
dos sons finais entre duas palavras sucessivas, obriga o
leitor a voltar atrás na leitura. Esta passa então a ser feita
não linha após linha, sempre para frente, como na prosa,
sim num ir e vir entre o que está adiante e o que ficou atrás.
Com isso, desautomatiza-se a leitura e se direciona a
atenção para o conjunto de significados do texto, não
apenas para a seqüência deles. O que é um convite e uma
ajuda à memorização (1996, p. 24-25).
A poesia, então, traria o exercício com a palavra. O significante
levando ao significado e à descoberta da própria iconicidade da palavra
97
.
Se o próprio significante leva à imagem poética, valeria ilustrar
poesia? E se isso fosse feito, qual seria o objetivo? Explicar o poema,
ornar o texto, distrair o leitor do hermetismo da poesia ou, até mesmo,
limitar as possibilidades imaginativas sugeridas pela poesia? Ou, ainda,
envolver o leitor de modo a ativar todos os órgãos de sentido? Roger
Mello apresenta sua concepção ao ilustrar poesia:
Ilustrar poesia se trata de trabalhar o vazio, e não de
preencher os vazios. É claro que alguns poemas são mais
narrativos, e toda prosa, tem um pouco de prosa poética. A
poesia e a imagem têm muitos elementos semelhantes entre
si: ritmo, forma, cor, movimento, sincio... Se por um lado, o
corpo do poema é por si uma forma, toda palavra, toda letra é
também uma imagem. As letras são imagens que viraram
signos que geram imagens para o leitor. Talvez por isso eu
viva confundindo letras e imagens, e sons também (O diálogo
de Roseana Murray
e Roger Mello com Jardins e Desertos. Tigre Albino. [S.l.], v. 1,
n. 3, 15 jul. 2007. Entrevista concedida a Annete Baldi.
Disponível em: <www.tigrealbino.com.br>. Acesso em: 17
maio 2008).
97
Vale lembrar, que, ao longo desse trabalho, utilizou-se a denominação imagem para
texto visual, aqui, imagem adquire a conotação de imagem poética, pois a palavra
leva à imagem, como quer Octávio Paz em Signos em Rotação (1976):
O poeta não descreve a cadeira: coloca-a diante de nós. Como no momento da
percepção, a cadeira nos é dada com todas as suas qualidades contrárias e, no ápice,
o significado. Assim, a imagem reproduz o momento da percepção e força o leitor a
suscitar dentro de si o objeto um dia percebido. O verso, a frase-ritmo, evoca,
ressuscita, desperta, recria” (p. 46).
228
na concepção apresentada por Mello um encontro com a
proposta de Octávio Paz
98
: palavra é imagem. E o artista ainda percebe a
sua real confusão entre letras e imagens, o que revela seu modo de fazer,
em que as linguagens não obedecem a limites absolutamente
demarcados, tanto do momento de concepção quanto na recepção.
Martin Salisbury acredita no cater poético próprio também ao texto
visual e, assim, propõe a ilustração da poesia como um diálogo subjetivo:
Abordar la ilustración de poemas es una empresa muy
distinta a responder visualmente a la prosa narrativa. Un
poema es un todo del que el lector puede extraer muchas
modalidades de gozo personal, y es importante que el
ilustrador no adopte un planteamiento demasiado literal.
Normalmente, la buena ilustración de poesía pide que el
artista sea más subjetivo de lo habitual. Forma un todo
visual paralelo, un contrapunto a las palabras, sobre todo
cuando la poesía es de tono lírico (2005, p. 104).
Diante deste novo desafio, isto é, investigar a relação palavra-
imagem (texto visual) na poesia, as obras Jardins e Desertos, de Roseana
Murray, serão analisadas com o intuito de se observar se poema e
desenho compõem um projeto gráfico coeso de modo a constituirem-se
como um todo de sentido. Além disso, a obra deve ainda privilegiar aquilo
que deveria ser inerente à obra literária: a sensibilização, o contato
estético/estésico. Como observa Landowski, o cotidiano, por vezes,
automatiza o olhar e a poesia seria um acidente neste cotidiano:
Na maior parte de nossas atividades cotidianas, das mais
triviais às mais cientificamente sofisticadas, privilegiamos a
eficácia prática, o poder-fazer ou saber fazer em detrimento
de outros modos de relações possíveis com o nosso
ambiente. Esquecemos que um outro olhar é possível, um
olhar que ao nos fazer ver o mundo por ele mesmo, nos
permitiria também ter conhecimento dele, mas de um modo
menos imediatamente interessado: como objeto de
contemplação e não como campo de ação, ou, na ação,
98
Ver nota de rodapé anterior.
229
como parceiro antes do que como meio ou instrumento
(LANDOWSKI, 2005, p. 94).
José Paulo Paes concorda com a abordagem semiótica quando
reflete acerca da condição de a poesia desautomatizar o cotidiano:
Objetivo fundamental da poesia: mostrar a perene novidade
da vida e do mundo; atiçar o poder de imaginação das
pessoas, libertando-as da mesmice da rotina; fazê-las sentir
mais profundamente o significado dos seres e das coisas;
estabelecer entre estas correspondências e parentescos
inusitados que apontem para uma misteriosa unidade
cósmica; ligar entre si o imaginado e o vivido, o sonho e a
realidade como partes igualmente importantes da nossa
experiência de vida (1996, p. 27).
Uma obra literário-poética seja para adultos ou crianças deve agir
sobre a sensibilidade daquele que a toma, que a manipula. A eficiência do
projeto gráfico estaria em compor um todo de sentido coeso entre as
mídias (verbal e visual) que proporcionasse ao enunciatário o acidente
anunciado por Valéry no artigo “Questões de Poesia”:
Coloquemo-nos no estado para o qual nos transporta uma
obra, daquelas que nos obrigam a desejá-las mais, quanto
mais as possmos, ou quanto mais elas nos possuem.
Encontramo-nos então divididos entre sentimentos
nascentes, cuja alternância e contrastes são bem notáveis.
Sentimos, por um lado, que a obra que age em nós convém-
nos tão proximamente que não podemos concebê-la de
outra forma. Mesmo em alguns casos de supremo
contentamento, sentimos que estamos nos transformando
de alguma maneira profunda para sermos aquele cuja
sensibilidade é capaz de tal plenitude de delícia e de
compreensão imediata. Mas sentimos com a mesma
intensidade, e como através de outro sentido, que o
fenômeno que causa e desenvolve em nós esse estado, que
nos inflige sua força, poderia o existir, e até que o
deveria existir, classificando-se no improvável.
Enquanto nosso prazer ou nossa alegria está forte, forte
como um fato, a existência e a formação do meio, da obra
geradora de nossa sensação parecem-nos acidentais. Essa
existência parece o efeito de um acaso extraordinário, de um
dom suntuoso do destino, e é onde (não esqueçamos de
230
observá-lo) uma analogia particular revela-se entre este
efeito de uma obra de arte e aqueles de certos aspectos da
natureza: acidente geológico ou combinações passageiras de
luz e vapor no céu da noite (1999, p. 168).
Unir natureza à poesia ou mesmo dar a ver a poesia da natureza
são os objetivos que envolvem essa travessia por alamedas floridas e
desérticas, em que palavra-imagem/imagem-palavra estão soltas ao
vento e são ordenadas conforme o desejo e sensações dos artistas.
Roseana Murray explica:
Sou uma poeta da imagem. Eu vejo as imagens antes de
tudo e tenho que correr atrás delas muito depressa para que
elas não escapem, e tenho que dar conta disso com
palavras. É um processo de concentrão superintenso.
Também há uma musicalidade natural na minha poesia,
talvez porque tenha passado a maior parte da minha vida
dentro da natureza, com os sons da natureza e porque amo
o silêncio, me alimento de silêncio e sou muito
contemplativa. Também amo as palavras e sua sonoridade e
principalmente seus sentidos, é isso que é maravilhoso na
poesia, uma palavra vai se desdobrando, gosto muito de
ambigüidades, sinuosidades. Não gosto de certezas nem de
nada fechado. Às vezes a palavra que a gente quer está
escondida e pode levar até muito tempo para ela aparecer
[...] então sim, tenho que revisar o poema, até reescrever,
mas a imagem que vi es lá, preservada (Entrevista
concedida à Revista Poiesis, 2007).
3.3.1 Olhar(Es) Inusitado(s): Jardins de Imagens Poéticas
A palavra jardim, segundo o dicionário Aurélio, quer dizer:
“Terreno, em geral com alamedas, onde se cultivam plantas ornamentais,
úteis, ou para estudo” (1988, p. 375). O título da obra em questão traz o
plural Jardins, ou seja, a obra poética apresentará mais de um jardim:
“Ao fazer o Jardins: .. eu estava livre e sozinha. Mergulhei num jardim
interno, em todos os jardins que carrego comigo e também nos
impressionistas” (O diálogo de Roseana Murray
e Roger Mello com Jardins e Desertos. Tigre Albino. [S.l.], v. 1, n. 3, 15 jul.
231
2007. Entrevista concedida a Annete Baldi. Disponível em:
<www.tigrealbino.com.br>. Acesso em: 17 maio 2008).
Além da informação a partir de fonte lingüística de referência e da
própria proposta da autora, se a História for recuperada, muitas imagens
de jardins importantes surgem ali, dentre eles: os Jardins Suspensos da
Babilônia, o Jardim de Versalhes, os jardins japoneses com seus bonsais.
Eternos jardins que o lembrados e esquecidos conforme tempos e
estilos. Não esquecendo que muitas vezes os jardins são retomados, pois
habitam os discursos interiores dos indivíduos. Eis alguns que ilustram a
beleza e a vivência entre as flores: formas, cores e composição, que
individualizam e dão sentido a um pedaço de terra.
FONTE: <www.Cybervida/doze-dos-mais-belos-jardins.com.br>. Acesso em: 17 jun.
2006
Figura 3.9 - Jardins de Versailles,
criado por André Le Nôtre e
construído para Louis XIV
Figura 3.10 - Kirstenbosch
Botanical Gardens Table
Mountain – África do Sul
Figura 3.11 – Mirabell Garden,
em Salzburgustria)
Figura 3.12 Parque Guell
de Gaudí (Espanha)
232
O jardim, portanto, adquiriu sentido na sociedade graças à beleza,
à afetividade e, às vezes, à funcionalidade, tendo em vista que imprimem
identidade às cidades ou às regiões. Eles se organizam como discursos
que revelam a presença do eu (individualidade ou coletividade). Pode ser
o jardim do Bonifácio ou o jardim de estilo inglês concebido, por exemplo,
para o Parque da Luz, na cidade de São Paulo. Assim, recortes, formas,
cores e aromas serão distintos e diferentemente distribuídos, no entanto,
os recortes, as formas, as cores e os aromas são essenciais à composição,
ao arranjo e, sem dúvida, apresentam a subjetividade daquele que os
organiza, como em um discurso lingüístico.
Os jardins colocados em papel permitem que o leitor avance pelos
caminhos em busca de variantes e invariantes que desenham esse
acidente em meio ao quase sempre preto e branco do cotidiano das letras
e da vida:
Como a percepção diária está por demais viciada, o
espelhamento realista confundir-se-ia com o dejá-vú e
perderia o efeito; por isso, cumpre investir no diferente, que
não precise coincidir necessariamente com o novo; pode ser
o que permaneceu escondido ou reprimido, conforme faz
Proust, cuja obra romanesca funda-se na recordação
(ZILBERMMAN, 1989, p. 56).
Na obra que se apresenta, o jardim (ou jardins, como quer o
enunciador) aparece instalado no discurso verbal e no discurso visual.
Além disso, um englobante que é o projeto gráfico. Esse é
apresentado na sobrecapa que envolve o objeto-livro.
Verde, alaranjado e branco com suas nuances apresentam o título,
a autora, o autor dos desenhos e a editora. Também, graficamente, as
cores e as formas criam imagens visuais de plantas (árvores)
geometrizadas, envolvendo e convidando o enunciatário a olhar pelas
frestas deixadas, recortes curvos que não representam nenhum objeto
identificável, em princípio.
233
A sobrecapa está recortada de maneira a deixar ver outro jardim,
aquele que está na capa. Esse de cores mais intensas e vibrantes:
vermelho, amarelo, azul, branco, preto e verde. Dentro, brilho, fora,
opacidade. A forma retangular do objeto livro se opõe às formas curvas
das frestas, que delineiam formas abstratas muito características da
natureza que, em geral, não obedecem à geometrização. Percebe-se uma
oposição entre as formas e cores da sobrecapa (duas cores e tonalidades
destas), uma geometrização, o que remete a uma arte mais “ingênua” ou,
como querem alguns estudiosos, mais primitiva” (associação com a arte
própria ao continente africano) e, na capa (policromia), intensidade e
desenhos mais delineados sugerindo maior complexidade.
A sobrecapa, ainda, apresenta uma figura plástica, tátil: um lo,
que são duas fitas vermelhas, acetinadas e amarradas, desencadeando
uma possível isotopia. Este não é um jardim em si, mas um álbum que
apresenta Jardins: “Esbocei um caderno, com uma capa que envolvia o
miolo, como uma pasta de desenhista que faz aquarelas de plantas” (O
dlogo de Roseana Murray
e Roger Mello com Jardins e Desertos. Tigre Albino. [S.l.], v. 1, n. 3, 15 jul.
2007. Entrevista concedida a Annete Baldi. Disponível em:
<www.tigrealbino.com.br>. Acesso em: 17 maio 2008).
A partir do convite, o enunciario é manipulado a desamarrar as
fitas e vasculhar este álbum, que também, pelo tato, sugere as texturas
dos Jardins: maciez x aspereza. Esta capa apresenta a relação, que é
determinante do nero, como se demonstrado no capítulo final deste
estudo.
O objeto livro constitui-se como algo a ser tocado, visto, cheirado,
sentido, como um jardim. O objeto cultural livro , acidentalmente,
expõe os elementos naturais para a fruição do leitor, como analisa
Landowski (2005):
234
Na experiência estésica [...] as coisas se revelam na sua
“essência”, “sem buscar outra justificação que a sua própria
perfeição -, pode ocorrer que a realidade fa sentido de um
modo quase fusional, como se o contato com o “perfume” dos
objetos bastasse para tornar o sujeito plenamente presente
ao mundo – e o mundo imediatamente significante (p. 94).
Figura 3.13 - Apresentação da capa
A página de rosto traz uma figura: uma pequenina rã, que
possivelmente remete ao se habitat, mais uma vez, o jardim, impregnado
de belezas: animais e insetos, formando o ciclo natural da vida.
Figura 3.14 – Página de abertura
235
Na página seguinte, a leitura da obra como álbum é reforçada, pois
se identificam desenhos de folhas/plantas coladas com fitas adesivas,
remetendo ao universo da pesquisa. um exemplar de cada espécie:
folhas mais próximas do real, mais geometrizadas, estilizadas, mais
abstratas. Nesta página, a inserção de texto. Em uma das folhas à
esquerda, Manoel de Barros faz uma espécie de prefácio da obra,
enfatizando as qualidades da poeta:
Querida poeta Roseana, Gostei do seu Jardins. De suas
guirlandas de palavras. Gostei de ler seu verbo e prender os
perfumes, as cores, as formas e o sol sobre as flores. Há por
certo uma poeta sensível às coisas da natureza neste
Jardins. Isso eu vi e senti. Meus parabéns, cara poeta, um
abraço afetuoso do Manuel de Barros (Campo Grande,
agosto de 2001).
Na página direita, o título é retomado, bem como os nomes de
Roseana Murray (autora), Roger Mello (autor dos desenhos) e Manati
(editora). O fundo da página é de cor ocre, remetendo, mais uma vez, ao
caderno de pesquisador, colecionador, que faz do papel tipo Kraft o
depósito de seus exemplares. A cor neutra do fundo destaca as cores e
formas diferenciadas de sua coleção, como é próprio em um álbum de
pesquisa, em que as “vedetes” são as espécies diversificadas e raras.
Figura 3.15 – Página de rosto
236
Segue um modelo de álbum (pasta) de pesquisa, em que a coleta
de espécies, observações, análises são fundamentais para as etapas
seguintes da investigação ou da produção artística, não se sabe.
Figura 3.16 – Exemplo de uma pasta de pesquisador
O percurso vislumbrado pelo leitor é de que ele acompanhará a
coleta de espécies de um pesquisador/colecionar/artista, dado que esse
enunciatário está folheando um álbum. O leitor habituado à seqüência
narrativa verá frustrada sua expectativa. A narrativa imaginada pelo leitor
não se realiza, pois ele tem diante de seus olhos poemas que não
apresentam a esperada seqüência narrativa. Não há hisria, não há
personagens em conflito, não tempo determinado (ou mesmo
indeterminado).
Resta, pom, o cenário. Este sim é o elemento protagonista, ou seja,
o leitor “recebe”, “passeia” pelos Jardins de onde, possivelmente, foram
retirados os exemplares colocados na primeira página. O leitor seguirá por
jardins em busca de espécies, como um pesquisador/artista e, assim,
percorrerá “jardins-mundo” em sua diversidade de formas, cores, aromas,
organizões, deixando entrever os seus sentidos pelas palavras poéticas.
Palavra e imagem organizados pelo projeto gráfico convidam o
leitor a um estudo de meio, em que a palavra criará a imagem poética, e
o texto visual contribuipara a própria sensação de estar nos jardins.
237
Palavra poética e imagem poética pretendem um todo de sentido que
rapte o leitor para este universo. O enunciatário se instalado no vagar
sensível da natureza e percorrerá uma seqüência narrativa: S1 (não
conhece o jardim/percurso) manipulação estética/estésica
performance sanção positiva conhecer os jardins e percursos do
artista, pesquisador ou colecionador. Este é o programa narrativo
proposto pelo projeto gráfico.
Ordenador(es): cor, flor, fruta, fantasia – traços de subjetividade
As páginas da obra são divididas ora em página simples, ora em
dupla, mas não numeradas, pois o sugerem ordem de leitura, José
Paulo Paes destaca esta característica da arte poética:
Esta passa então a ser feita não linha após linha, sempre para
frente, como na prosa, sim num ir e vir entre o que es
adiante e o que ficou atrás. Com isso, desautomatiza-se a
leitura e se direciona a atenção para o conjunto de significados
do texto, não apenas para a seqüência deles (1996, p. 25).
As páginas simples e as duplas adquirem funções diferentes no
projeto gráfico e, como formula Francisco Gutiérrez García, no artigo
“Como leer el álbum ilustrado”: “[…] ambos formatos de gina colaboran
activamente con el lector en la construcción del “texto”, ya que le ofrecen
una guía para ordenar, diferenciar e interrelacionar las proposiciones o
ideas que contiene” (2002, p. 21).
Vale, então, pontuar que no álbum Jardins existem 28 páginas. A
maioria (dez) é simples que conjuga palavra e imagem:
238
Dez ginas simples com palavra e
imagem
Quatro páginas simples apenas com
imagem
Quatro páginas duplas apenas com
imagem
239
Três páginas duplas com palavra
e imagem
Figura 3.17 – Esquema da disposição das páginas
A partir deste levantamento, pode-se entender que não
obrigatoriedade de ler a obra em seqüência linear, como é mesmo
característica das obras poéticas. Não existe hierarquia entre palavra e
imagem, ou seja, os sistemas semióticos se apresentam da mesma
maneira para a fruição. Não existem páginas apenas com palavras. Ora
elas são tomadas completamente por formas, cores e palavras, ora
deixam as formas concretas ou abstratas de lado para enfatizar a cor.
Cada página simples ou dupla apresenta cores distintas. Essas são sempre
vibrantes-intensas. A luz promove o constante brilho e vivacidade das
imagens. Seguindo a seguinte paleta:
Figura
3.18
Paleta de cores de
Jardins
240
Também, momentos em que a palavra dialoga com a imagem
acrescentando um novo elemento ou retomando um elemento tratado
pelo poema. Como no caso do seguinte poema: Flores pintam/norte e
sul/ em todos os timbres/ e tons de azul.”, em que a página é toda azul, à
direita e à esquerda linhas verticais caem, como cortina, também azuis:
Figura 3.19 – Palavra se relaciona com a imagem
espaço em que palavra e imagem traçam discursos paralelos,
ou seja, não ponto comum. No poema: Entre no jardim secreto,/ é lá
que vive o eterno luar,/ as assombradas caravelas,/ as flores imperfeitas
do amor.”, a imagem que emoldura o poema forma guirlandas, rendas de
flores e mulheres com saias longas e, ainda, aves que se assemelham às
araras, as figuras remetem à cultura oriental, mas sugestão. O
jardim secreto de que trata o poema está aberto à esquerda na imagem.
Neste caso, a palavra e a imagem criam um contraponto:
241
Figura 3.20 – Palavra como contraponto da imagem
Existem casos em que a imagem dialoga com a imagem da outra
página (ao lado), mas não com uma parte específica do conteúdo do
poema, como por exemplo: página da esquerda “Para que o dia/seja
todo de estrelas/e magia,/estranhas flores/ao da estrada.”; página
direta “Flores alimentam sonhos/ dão de comer aos olhos,/ arrumam e
desarrumam/ formas e cores.” A mídia visual insere insetos que
literalmente alimentam-se das plantas e das flores. o formigas e
lagartas que, sem dúvida, habitam os jardins e compõem formas e cores
deste caleidoscópio natural que é um jardim. Faz-se referência ao
brinquedo infantil:
Figura 3.21 – Imagem se relaciona com imagem
242
Ainda, há momentos em que o espetáculo é apenas da imagem na
página dupla, que pode até apresentar um grau de narratividade maior
que o próprio texto verbal, pois esses são quase exclusivamente
expositivos. Eis um labirinto com a figura humana, a gaiola e pássaros
alguns presos nas gaiolas, outros livres. Ao aproximar a imagem, ela se
confunde, ao distanciá-la, percebe-se que o labirinto formado é a copa de
uma árvore.
Figura 3.22 – Imagem narrativa
A partir da descrição, percebe-se a diversidade: os poemas
figurativizam as fases do dia manhã, tarde, noite as flores, as cores,
as formas e as sensações geradas por cada um dos elementos naturais.
As imagens figurativizam formas, cores, flores, animais, insetos.
Palavra e imagem alinham-se para apresentar seus jardins, mas
não redundam esse retratar. As subjetividades de traços, cores, adjetivos
constituem universos discursivos particulares que dialogam em sua
diversidade para compor o projeto gráfico da obra Jardins, e esse último
sim interliga os elementos expositivos a fim de propor um percurso
narrativo, como apresentado, sugerindo um caminho-aprendizado ao
leitor, quem, afinal, irá decidir sobre o caminho.
243
O diálogo palavra-imagem vai além, pois está envolvido por um
projeto gráfico que o embala, assim, cabe atentar para esta proposta. A
contracapa anuncia:
Fazer poesia é arrumar palavras pra transmitir sentimentos
indizíveis... um sentimento que humaniza os homens.
A mais linda poesia desperta esse sentimento como se fosse
música ou imagem. Suas palavras são tão precisas e
necessárias que desaparecem, como as notas da música ou
os traços da imagem, no momento em que surge o indizível.
Criar um jardim é arrumar elementos da natureza para
produzir uma emoção plena, indecifrável.
No mais lindo jardim o indizível germina como se a natureza
fosse poesia. As formas, as cores e a vida são tão
precisas e necessárias que desaparecem, no momento em
que os homens o penetram e vivenciam uma emoção
indecifrável, aproximando-se dos outros seres da natureza.
Neste livro repousam a mais linda poesia e os mais
lindos jardins, à espera de que o leitor os penetre com a
mais singela delicadeza.
99
Um projeto gráfico coeso: o destinatário em pauta
O projeto gráfico, portanto, ao integrar palavra-imagem apresenta
ao leitor o indizível próprio à natureza poética da imagem e da palavra.
Há, no entanto, que se questionar sobre o destinatário. A criança
teria meios (habilidades) para decodificar tão intrincado e complexo
projeto gráfico, graças às suas insinuações e suas nuances e diversidades
de imagens poéticas visuais? Daniela Padilha, em artigo “Percepções do
ser: o endereçamento da poesia de Cecília Meireles e Roseana Murray”,
afirma que apenas o suporte definiria o endereçamento, no caso de
Jardins, a ilustração atribuiria ao objeto as qualidades para a obra ser
destinada à criança. Na teoria da recepção, e mesmo em Semiótica, sentir
e compreender são faces de uma mesma moeda:
99
Grifo nosso.
244
Jauss o acredita que o significado de uma criação artística
possa ser alcançado, sem ter sido vivenciado esteticamente:
não conhecimento sem prazer, nem a recíproca, levando-
o a formular um par de conceitos que acompanham suas
reflexões posteriores: os de fruição compreensiva e
compreensão fruidora, processos que ocorrem
simultaneamente e indicam como se pode gostar do que
se entende e compreender o que se aprecia (ZILBERMMAN,
1989, p. 53).
O trabalho com o sistema verbal, o recriar as palavras ou sentido
das palavras, a proposição de rimas/ritmos, estranhamentos leva à
criança, justamente, ao “acidente” na cotidianidade. O experimentar um
uso inabitual da palavra. O exercício de inúmeras possibilidades.
O mesmo acontece com o sistema visual que propõe formas e
diálogos que inserem o destinatário no universo das artes, na medida em
que oferecer à criança acesso à arte deve ser condição da literatura
infantil, visto que o repertório está em formação:
En cualquier caso, resulta incuestionable que mientras más
imágenes creadas por auténticos artistas ingreses a ese
archivador, más disímiles y amplios serán nuestros
referentes, s posibilidades tendremos de juzgar con
acierto qué es hermoso o no, qué es de buen gusto o no.
Generalmente, esas igenes no son estáticas, no
permanecen quietas en el archivador, todo lo contrario:
dialogan y riñen entre sí, se asocian y disocian, se niegan o
aceptan, se asienten o contradicen, se transforman
mutuamente, y transforman, con esa interrelación, nuestras
concepciones y juicios estéticos.[…]
De ala importancia de enriquecer, desde la infancia s
temprana, el reservorio de referentes visuales de los niños
con obras de reconocida calidad, de diferentes artistas,
épocas, escuelas, estilos, tendencias, intenciones
(ANDRICAÌN, 2001, p. 2-3).
Assim como a palavra conduz a diversos jardins, a imagem
também propõe diálogos entre artes diversas, como as cores vibrantes e
intensas do fauvismo de Matisse podem ser contempladas na capa e na
página central do miolo.
245
no fazer discursivo da visualidade uma referência e, portanto, o
interdiscurso. Elemento característico da literatura infantil pós-moderna,
como trabalhado na análise da obra Sebastião, de Manuela Bacelar, e
em outras obras que ainda serão analisadas ao longo desse estudo. A
ligação entre as expressões se na intensidade do vermelho, amarelo,
azul e verde, nas formas bem delineadas e sinuosas no fundo da pintura
de Matisse e na própria figura em Jardins; estes são alguns elementos
plásticos que autorizam a aproximação.
Figura 3.23 – Matisse Figura 3.24 – Jardins
Outra referência trazida pelas imagens é um diálogo intenso com
os traços da arte africana contemporânea: formas, cores, organizações
dos elementos no espaço e, ainda, a forma despojada das figuras
humanas e da natureza. m à tona também, nesse estilo de arte, os
retratos e cantares das lendas populares:
246
Jardins Referência intersdiscursiva
Klimt
Arte Africana
Figura 3.26 – Referências interdiscursivas
Os temas e figuras comungam para apresentar o popular. As
cantigas e olhares ingênuos, deslindados dos requintes das artes clássicas
como perspectivas e mescla de cores, e Henri Rosseau, com seu estilo
Näif, fazem-se presente no Jardins, de Roger Mello. Os traços recorrentes
são a ausência de perspectiva sobreposição de imagens –, uso de cores
puras e recorrência figurativa à natureza:
247
Figura 3.27 – Henri Rosseau Figura 3.28 – Jardins
Ainda, as referências à repetição de imagens e a iluo criada a
exemplo do caleidoscópio guiam para o artista gráfico Escher, recorrência
importante na literatura infantil brasileira, como bem revelam as obras de
Angela Lago:
Figura 3.29 – Escher Figura 3.30 – Jardins
Figura 3.31 – Lagarto - Gaudí Figura 3.32 – Jardins
248
A última relação construída se refere ao Parque Guell de Gaudí em
Barcelona, a idéia do trabalho em mosaicos é bastante retomada por Mello
em seu jardim.
Com isso, é possível afirmar que, apesar de ser um projeto gráfico
muito eficiente, caberia ao educador ou mediador
100
a apresentação de
uma pasta de pesquisador, um trabalho com a vocalização dos poemas e
um olhar cuidadoso sobre as imagens e suas referências. Por exemplo, o
fauvismo, de Matisse nas cores vibrantes –; a tematização do ingênuo e
de natureza próprio do chamado Näif e, ainda, um passeio pela arte
africana que dialoga com o folclore e a arte popular brasileiros.
3.3.2 Objeto-Livro: Corporificação dos Desertos
Ao observar a capa da obra Desertos, de Roseana Murray e Roger
Mello, a sensação é imposta pelas nuances cromáticas do marrom. Os
matizes, ora mais claros (alaranjado), ora mais escuros, levam o leitor à
sensação de um papel de gramatura alta, que produz efeito de sentido ao
tato, sugerindo certa rugosidade. As diferentes tonalidades criam a
sensação de textura no papel, com relevos e reentrâncias:
A textura é o elemento visual que com freqüência serve de
substituto para as qualidades de outro sentido, o tato. Na
verdade, porém, podemos apreciar e reconhecer a textura
tanto através do tato quanto da visão, ou ainda mediante
uma combinação de ambos. É possível que uma textura
o apresente qualidades teis, mas apenas óticas,
como no caso das linhas de uma página impressa, dos
padrões de um determinado tecido ou dos traços
superpostos de um esboço
101
(DONDIS, 2003, p. 70).
100
No catulo de conclusão deste estudo, serão propostos critérios de avaliação de um
projeto gfico, por meio do quadro apresentado é possível o mediador identificar os
aspectos que merecem destaque durante o trabalho em sala de aula, por exemplo.
101
Grifo nosso.
249
Figura 3.33 – Capa
A definição apresentada por Dondis corrobora a apreciação da
análise, visto que é possível, a partir dessa descrição, verificar que a capa
propõe uma comparação com os desenhos na areia – aquelas curvas
traçadas pelo vento em ambientes desérticos. Impõe-se, então, a
metáfora visual: ondas de areia no deserto em associação à capa de um
caderno de modelo antigo. Tal aproximação se explica graças ao
cromatismo, como apontado, que lembra a areia do deserto trabalhada
pelos ventos; o formante eidético, ou seja, a forma do objeto-livro,
remete aos antigos cadernos de anotações, além também de o
cromatismo contribuir para se estabelecer essa última relação.
O tato sugerido pelas cores revela a sensação proposta pela visão e
faz crer nos grãos de areia, que são também nervuras do papel. Além de
deslindar o deserto, o leitor aciona suas lembranças e eis o caderno de
anotações, e a figura ambígua se instala no discurso, constituindo-se
como conector de isotopias.
Assim, pelo sensível, isto é, pelas qualidades plástico-sensoriais
tem-se a textura do deserto; pelo inteligível, pelas qualidades
mnemônicas, por associação de formas e cores: o caderno de anotações.
Essa última estratégia de reconhecimento é reforçada pelo laço duas
fitas marrons acetinadas que fecham os segredos do Desertos
102
:O
deserto abriga segredos e tesouros, abriga as primeiras civilizações do
mundo, as primeiras cidades [...]” (MURRAY, 2006). Abaixo, apresenta-se
102
Assim como faziam as fitas em Jardins, obra dos mesmos autores.
250
um modelo de caderno de viagem, para que a comparação proposta pela
análise se sustente.
Figura 3.34 – Caderno de viagem da artista Tarsila do Amaral
103
Até a metade do século passado viajar era difícil, o mundo
era imenso e com vastos espaços ainda desconhecidos.
Viajantes partiam de suas aldeias ou cidades para conhecer
novas terras, hábitos ou em busca do conhecimento e
inspiração. Partiam a pé, em barcos, a cavalo, em trens a
vapor. Os aviões como transporte de massa chegariam
depois da Segunda Grande Guerra.
Os cadernos de viagem, os diários, as anotações, faziam
sonhar os que ficavam. Marco Pólo, Stevenson, Maupassant,
Guimarães Rosa, toda uma linhagem de escritores
viajantes, e seus cadernos de viagem nos levam juntos, nas
entrelinhas, nas margens, entre um adjetivo e uma
exclamação de assombro. Há sempre um espaço para o
leitor. E, pelos olhos dos viajantes, empreendemos também
nossa longa viagem rumo a lugares ermos ou desconhecidos,
rumo a nós mesmos. De cada viagem voltamos
transformados (MURRAY, 2006, Prólogo).
A capa desta obra e a apresentação da autora levam o leitor a
acreditar que tem diante dos olhos um caderno de viagem, e, mais, pelas
qualidades sensíveis, o cenário é apresentado ao leitor o deserto. O
cromatismo corporifica as qualidades visuais do deserto a cor e
103
No destaque, o perfil de Oswald de Andrade; palavra e imagem constituem o
exemplo. Este caderno pode ser tomado como um exemplo do gênero, que
corrobora a leitura proposta.
251
tonalidades ocre e a textura em grãos e nervuras. O livro-objeto revela o
gênero; a sensorialidade propõe o cenário visitado, que é desvendado
também pelo verbal: Desertos, título da obra que ora se analisa.
Oliveira, em artigo intitulado “Visualidade entre significação,
sensível e inteligível”, vislumbra a possibilidade de as qualidades sensíveis
constituírem o gênero de discurso:
[...] as particularidades assumidas nessa estruturação do
visual são guiadas pelos propósitos do texto, os quais têm
também implicações na duração de sua captação, pois os
modos distintos de organizar um texto de relato, de
reportagem, de entretenimento, de reflexão, de arte,
marcam também em suas formas e gêneros discursivos, os
distintos modos de apreensão, percepção e significação de
cada um deles (OLIVEIRA, 2005, p. 112-113).
O verbal é visual na obra em questão, visto que a tipografia
utilizada e a moldura englobante das palavras reforçam as expressões
que autorizam a identificação do gênero e, mesmo, determinam a
maneira de olhar-ler, como postula Oliveira, naquele caso com relação à
organização diagramática dos jornais. A figuratividade do discurso
associada à expressão do formante cromático (preto, branco e
vermelho), eidético (retangular) e topológico (abaixo, canto direito da
página) remetem às etiquetas escolares, reforçando a lembrança dos
cadernos de anotações. O retângulo-moldura impresso no caderno
introduz o título e os autores.
Figura 3.35 – Retângulo-moldura com título e autores da obra
252
Figura 3.36 – Etiqueta exemplo
Na etiqueta da capa, há uma espécie de logotipo com a
representação gráfica de algo que pode ser uma representação de castelo,
montanhas ou janela. O grafismo pode ser considerado uma anáfora do
que está por vir a arquitetura das cidades do oriente, ou algo que o
leitor ainda descobrirá. O traço (estilo) do grafismo tamm será
retomado ao longo da narrativa visual, como marca do estilo empregado
nos desenhos
104
- a linha é personagem central nesta expressão.
Figura 3.37 – Detalhe do grafismo
Seguindo o percurso natural, desfaz-se o laço, e a capa se abre
para um papel de alta gramatura e aspecto mais rugoso, este sim guarda
as características apenas sugeridas pela capa aquelas que convocam as
sensações táteis.
104
Mais adiante, a questão do estilo será detalhada.
253
Figura 3.38 – Página de falsa guarda
A sensação tátil, neste caso, o é dada apenas pela visão; as
mãos, de fato, tocam algo mais rugoso (áspero), que a página anterior.
Tem-se, portanto, a oposão entre ser versus parecer. Antes, parecia,
agora, é. Se for tomada a qualidade matérica da areia no deserto, essas
alterações de textura serão constantes e também podem ser sentidas ao
longo da leitura de Desertos.
A página de “falsa guarda” é dupla com desenhos curvos e
pinceladas que remetem ao padrão de tecidos orientais. O leitor toca
(sente) o ambiente que será percorrido. A dupla página também retoma
as tonalidades da página de guarda das antigas encadernações.
É importante ressaltar que, nesse caso, não o páginas de
guarda, mas a falsa página de guarda, pois aquelas só existem em
encadernações de capa dura, e essas, apenas em capa mole, mas o
emprego desse recurso gráfico cria o simulacro da capa dura, mais uma
vez, a oposição ser versus parecer vem à tona.
Guto Lins indica a função da página guarda e, ainda, cita Roger
Mello, autor em discussão nesta análise:
Em livros com capa mole e com acabamento canoa (com
grampo) pode-se utilizar uma “falsa guarda”. A falsa guarda
também corresponde às primeira e última ginas e são
geralmente impressas somente com imagens, aplicação de
texturas ou motivos (patterns) repetidos.
No caso de livros infantis, o seu uso é por questões estéticas
ou até poéticas. Segundo o autor e ilustrador Roger Mello “O
livro é tão importante que tem um guarda na entrada e
outro na saída” (LINS, 2003, p. 57).
254
A “falsa guarda” é um recurso recorrente nas obras de literatura
infantil brasileira, pois essas dificilmente aparecem em capa dura, quase
sempre são encadernadas em capa mole e com falsa guarda”
105
. Talvez
esteja aí uma primeira diferença entre a produção gráfica de livros infantis
do Brasil e de Portugal, uma vez que naquele país, como apresentado, as
obras aparecem envolvidas por capa dura. Pontua-se ainda que, no caso
de Desertos, o acabamento não é feito com grampos,entretanto a capa é
mole, e isso autoriza a referência.
Na gina de rosto, o título é retomado com uma moldura que
experimenta as cores dos lápis empregados no miolo da obra: verde, azul,
preto, vermelho, amarelo cores primárias que acompanharão o percurso
deste viajante que registra a viagem por meio de desenhos, esbos. As
cores dos lápis reforçam a paleta de cores disponível ao enunciador, isso
indica a escassez de possibilidades cromáticas, como será tratado mais
adiante pela análise. A escassez de cores é revelada, em entrevista, pelo
próprio autor:
Fazia meses que eu não conseguia esboçar um desenho
sequer, uma história sequer, então resolvi me dedicar ao
vazio. Consegui 4 lápis de cor e um livro blanco” na
Espanha, antes de embarcar para o Marrocos. Dessa
maneira surgiu um diário gráfico, o primeiro que eu fiz,
durante essa viagem em 2002, com elementos muito
simples (Entrevista concedida à Revista Poiesis, 2007).
O “improviso”, elemento característico da viagem e, mais
especificamente, do registro durante a viagem, vem à enunciação e,
portanto, torna-se enunciado, enfatizando o gênero de discurso: diário de
viagem. Este gênero é caracterizado por texto descrito-narrativo de caráter
informativo, em que devem existir marcas lingüísticas como indicão de
105
Vale pontuar que a “falsa guarda” é um recurso muito utilizado por Roger Mello, há
autores como Ziraldo que não utilizam o recurso.
255
local e data e o uso de primeira pessoa do singular ou do plural com eu”
incluído, atribuindo à descrição a subjetividade, que lhe é fundamental
106
.
A obra em questão não tem no título a palavra viagem, nem
mesmo a palavra diário é incluída. O título Desertos não localiza o leitor,
pelo contrário, uma vez que está no plural
107
. Essa estratégia imprime um
cenário vago, impreciso. Este diário não dará a ver um deserto em
particular, porque não é o do Atacama, nem o Dakar, mas sim, todos os
desertos ou, pelo menos, alguns. Dessa forma, não é uma obra que se
intitule como diário de viagem, apesar de apresentar características que
encerram neste gênero.
Ainda é válido reforçar que o percurso registrado será manifestado
por dois sistemas semióticos distintos: o verbal e o visual. O enunciador
dará a possibilidade de conhecer o deserto por diferentes mídias, que
podem ou não ser interdependentes. O objetivo da análise é justamente
demonstrar como o projeto gráfico associa os sistemas semióticos e cria
um todo de sentido. Para isso, a descrição grão a grão se faz necessária
para atribuir sentido ao ambiente que desponta no horizonte da análise e,
então, propiciar uma segunda etapa a aproximação entre a obra
Desertos e Jardins, dado que elas são construídas pelos mesmos autores e
por eles mesmos relacionadas.
Seguindo os meandros analíticos, a cena seguinte aponta para o
universo oriental, introduzindo o leitor nessa cultura. A referência está nos
famosos tapetes, com padrões geométricos. O sistema verbal, mais
adiante, apresentará o tapete como sentinela do deserto, ou seja, segundo
o dicionário Aurélio: Qualquer coisa elevada em lugar deserto. Ato de
guardar, vigiar ou espiar; guarda(1988, p. 594). Reforça-se, com essa
referência, a entrada no ambiente a ser descrito. Vale recordar dos tapetes
“persas” que proliferam na cultura ocidental com status de preciosidade.
106
BAKHTIN, 2006, p. 207.
107
Nota-se que o plural foi um recurso lingüístico empregado no tulo de Jardins, com a
finalidade de ampliar possibilidades.
256
Figura 3.39 – Tapete Desertos
A ficha catalográfica vem na página seguinte acompanhada por um
muro-moldura, com padrões geométricos e cores: verde, amarelo e azul
e, ainda, uma lamparina para acender o caminho a ser percorrido pelo
enunciatário ou para acender, no produtor dos textos, os relevos e
reentrâncias do deserto. O sistema visual incorpora as referências
catalográficas de maneira a inseri-las, também, no ambiente visitado. Não
há, portanto, distinção nesta apresentação entre enunciado e enunciação.
Nas análises realizadas, a obra O dinossauro, de Manuela Bacelar
empregou o mesmo recurso.
Figura 3.41 – Detalhe da ficha e da lamparina
Figura 3.40 – Exemplo
de tapete persa
257
Estes elementos (tapete, muro e lamparina) criam o ambiente,
onde o viajante-leitor passará e por onde o viajante-autor passou. Um
diário de viagem tem por pressuposto que o leitor deve acompanhar uma
viagem realizada: seu percurso, suas revelações e suas constatações,
mas não são imagens fotográficas que se mostram, pois a cnica eleita
imprime maior subjetividade ao registro passado e essa subjetividade
interessa ao leitor potencial.
Pressupõe-se, com isso, que o leitor acompanhe um registro
subjetivo, isto é, a expressão de um sujeito que percorre espaços
desconhecidos e registra tais momentos com suas alegrias e seus
percalços. Além de ser a expressão de um indivíduo, a palavra diário
sugere o o registro dia-a-dia, mas também impõe uma reflexão
sobre quem seria o enunciatário: o próprio produtor do texto ou um
desconhecido? O diário, por ser fechado, o pertence somente àquele
que o produziu e, portanto, é um texto-segredo?
108
O diário é um registro íntimo para ser realizado e lido pelo mesmo
sujeito, isto é, um gênero reflexivo em definição. Esse caráter do segredo/
do secreto vem sendo alterado ao longo do tempo, uma vez que o diário
de viagem tornou-se um gênero muito publicado e apreciado. É um meio
dado ao leitor, para que ele conheça lugares inatingíveis ou inimagináveis
e alguns se tornaram best-sellers visto o interesse despertado. Todavia,
não apenas o lugar visitado interessa, mas também a perspectiva daquele
viajante é fundamental, como revelam: Darwin, em Galápagos, ou Lévis-
Strauss, no Brasil, Che Guevara, na América Latina, entre outros.
No caso da obra Desertos, o gênero de discurso envolvido pelo
projeto gráfico (tamanho, forma, cores, tipo de papel, imagens de
abertura) confere ao leitor (enunciatário) o contexto em que será inserido
pelo registro da viagem. O corpo do leitor-viajante sentirá o caminho
visível e grão a grão construirá o seu deserto. Oliveira formaliza esta
percepção sensível da seguinte maneira:
108
Vale lembrar que esta obra não se intitula como diário, dado importante para análise.
258
Desse sentir o sensível, uma experiência vivida, o olho que
não pode apreender tudo de uma vez de certa maneira
nas suas movimentações repete ações, precisando-se até
conseguir atingir contornos mais estáveis e duradouros.
Assim, das atmosferas sensíveis, os formatos de coisas,
objetos, figuras, pelas suas qualidades, vão se fixando e
ganhando cristalização, que os tornam perceptíveis. Nessa
outra etapa, é sobre uma sintagmática que o sujeito da visão
atua e, com o seu corpo todo, depreende a corporiedade do
outro corpo visível, percebendo-o na relação que entretece.
Da apreensão à percepção, passa-se a discriminação de
impressões das qualidades às diferenciações distintivas entre
elas (OLIVEIRA, 2005, p. 110).
Com tais ensinamentos na bagagem, a análise avança.
Processo revelado: enunciação enunciada
Desertos apresenta-se como diário na materialidade do objeto-
livro, apesar da omissão das palavras diário ou mesmo viagem, isso faz
que o leitor viva um segredo.
O enigma se torna ainda maior quando se pergunta: se um diário,
como proposto pela materialidade, é um percurso de um sujeito, como
pode, então, este “diárioapresentar dois produtores de texto, a saber:
“Roseana Murray para desenhos de Roger Mello”? Como apresentado na
página de rosto:
259
Figura 3.42 – Página de rosto de Desertos
Nesta página, no verbal, o título Desertos e o nome do autor
Roseana Murray e se pergunta: foi ela quem viajou?; para desenhos de
Roger Mello” refere-se àquele que não viajou, mas ilustrou o relato visual?
Ou os autores viajaram juntos? Rompe-se, portanto, o padrão imposto
pelo nero e o processo criativo vem ao enunciado pelas palavras de
Murray no prefácio:
Sou uma leitora viajante. Para mim duas palavras bastam.
Basta um aceno, um apito de trem, um lenço branco no cais
do navio. Por isso, quando Roger Mello me trouxe seu caderno
de Viagem, onde foi desenhando a viagem que fez pelo
deserto [...] Senti um desejo imenso de ilustrar aqueles
desenhos com meus poemas (MURRAY, 2006, Prólogo).
Este prefácio-aviso revela o fazer dos autores e autoriza o analista
a questionar a eficácia de um projeto que tem o verbal como ilustração do
sistema visual, pois é esse o exercício proposto pelos autores,
contrariando o usual em literatura infantil, em que o verbal é ilustrado
pelo visual. Talvez esteja a justificativa para obra não se intitular como
diário de viagem.
A tarefa dos artistas exige um fazer muito integrado, no que diz
respeito à concepção e aos efeitos de sentido desejados, visto que
inúmeros pesquisadores alertam para uma composição gráfica em que os
artistas não dialogam e, em pior situação, quando os textos propostos não
260
se relacionam, às vezes, até comprometendo o sentido da obra ou de um
dos sistemas semióticos. Devem conversar, portanto, autor e ilustrador ou
designer que será o articulador do projeto gráfico:
Um problema, contudo capital quando encaramos o
nascimento dum livro para crianças, foi até aqui apenas
aflorado: é o papel do ilustrador. Pode acontecer, temo-lo
dito, que um livro nasça primeiro da iniciativa do ilustrador.
É o que acontece por vezes com os álbuns sem texto por um
lado, por outro como obras que se dirigem geralmente aos
mais pequenos em que o texto, contraponto da figura, se
encontra reduzido à sua mais simples expressão.
Existe uma outra possibilidade deixada de lado aaqui: um
livro pode ser, uma primeira etapa, o resultado de uma
estreita cooperação entre um autor e um ilustrador que
elaboram e precisam juntos um projecto: tema geral,
eventualmente intriga e personagens, depois realizam em
conjunto uma pré-matriz que ambos propõem ao editor,
sendo este primeiro projecto em seguida afinado, discutido,
revisto. está, creio, uma forma de trabalho apaixonante e
sempre muito enriquecedora para cada um dos participantes
(HELD, 1978, p. 143).
Held prevê alguns modos de relação entre palavra-imagem ou
entre autor e ilustrador e, já na década de 1970, vislumbra a possibilidade
de o visual “nascer” antes do verbal, contudo, as expressões indicadas
pela pesquisadora francesa se atêm ao livro de imagem ou ao álbum, em
que a palavra está restrita a explicar o visual para o público-leitor iniciante
não alfabetizado. A proposta que a análise tem em mãos é distinta
daquelas formuladas por Held, uma vez que mesmo o processo tido como
ideal: total integração na gênese da obra entre autor (verbal) e ilustrador
(visual) não é atendido. Roseana Murray revela que, quando propôs
ilustrar com poemas o diário de imagem de Mello, ele estava concluído;
a declaração da autora é feita no próprio prefácio da obra, como esta
pesquisa, o projeto-livro é abordado como todo de sentido, assim, o
prefácio não pode ser descartado da análise. Pergunta-se, então: como
fazer desta obra um todo significativo neste contexto, com essa proposta
inusitada? Esta tarefa cabe de imediato à editoração, pensa-se.
261
É possível, como hipótese, que o contrato firmado por esta obra
seja similar aquele em que o ilustrador se propõe a desenhar sobre um
texto clássico, como Manuela Bacelar para A sereiazinha, de Hans
Christian Andersen. Ali, a tarefa era criar imagens para uma narrativa
partilhada socialmente, porque um clássico. Em Desertos, Murray deve
criar textos para uma narrativa visual não partilhada socialmente, ou seja,
existe o desafio de comunicar ao leitor o percurso do viajante, por isso, a
proposta artística em foco não se assemelha à anteriormente tratada.
Algumas questões devem, por isso, acompanhar a análise de um
objeto suis generis: 1) O texto visual se constitui como uma narrativa
visual, a exemplo do álbum de imagem, ou seja, o visual é independente,
não “precisaria” do verbal? 2) O verbal deveria compor uma narrativa
para interligar as imagens avulsas”, isto é, proporia uma
interdependência entre as duas mídias de maneira a constituir-se como
um livro-álbum?
Resta desconstruir o projeto gráfico e interrogá-lo sobre as
questões que desafiam e, em seguida, edificar a significação da obra que
se mostra no horizonte da pesquisa. Vale, contudo, esclarecer de
antemão, como demonstrado, que o texto visual introduz o leitor pelo
convite expresso na capa e nas páginas iniciais.
Ver para crer: imaginar para existir
Roseana Murray não omite o fato de fazer os poemas sobre o deserto
sem nunca ter estado . A autora revela seu processo de busca intertextual:
imediatamente me transportei para estes vastos espaços, eu me vi criança
andando junto com os povos do deserto, quando ouvia as histórias da Bíblia
ou lia As mil e uma noites(MURRAY, 2006, Prefácio).
O diálogo constitutivo da obra vem à expressão, pois se identificam
vozes provenientes de diferentes interlocutores. É possível que esta seja a
chave interpretativa para identificar a dependência ou independência
262
entre os sistemas semióticos. Cada interlocutor evidencia sua voz, no
entanto, uma englobante que faz do discurso bivocal um unívoco, isso
se forem tomadas as marcas discursivas, como formulado por Bakhtin.
Apagam-se, portanto, os autores de “carne e osso”, para que saltem as
vozes do discurso.
Segundo o teórico russo, o discurso é social e o texto é individual,
assim continua o raciocínio que mesmo o individual corresponde (ou
responde) às coeões sociais falando ou calando sobre aquilo que ditam
as manifestações sociais de seus espaços e de sua época
109
. O estudioso
formula, ainda, que todo discurso apresenta uma heterogeneidade
constitutiva e, como conseência, o bivocalismo dialogismo. Essa
heterogeneidade constitutiva pode ser mostrada e marcada, mas pode ser
mostrada e não marcada, isso dependerá de marcas expressas em discurso.
No livro infantil, se for considerado o projeto gráfico como sujeito
da enunciação, idéia defendida por este trabalho, então, a
heterogeneidade constitutiva será mostrada e não marcada na maior
parte dos casos e mostrada e marcada, na minoria.
No caso em análise, Desertos, que por estratégias verbo-visuais,
que não as aspas e o verbo de dizer (como apresentado para os textos
verbais, pois Bakhtin se ateve a esses), mas pela tipografia gráfico-visual,
marcará a diferença de vozes discursivas, inserindo-se naquela
heterogeneidade mostrada e marcada.
A bivocalidade virá à cena pela diferença tipográfica conferida, de
um lado, pela letra manuscrita e, de outro, pela tipografia mecânica.
109
BAKHTIN, 1978, p. 144.
263
Figura 3.43 – Detalhe tipografia mecânica e manuscrita
Ao manuscrito, cabe a seguinte aspectualização de
tempo/pessoa/espaço: agora/aqui/nós inclusivo, ou seja, não é o nós da
ciência que busca o efeito de sentido impessoal, mas aquele que tem um
nós, que destaca o “eu”, pessoalizando o discurso:
“Marrocos 22 de setembro, Aportamos em Tânger/ depois de
atravessar/ os estreito de Gibraltar/ Seguimos viagem em ônibus.”
Esta tipografia também apresenta uma descrição-narração, que
não pode ser entendida como uma descrição detalhada, mas sim como
simples apontamentos descritivos, anotações de viagem improvisadas.
Além disso, o manuscrito faz a marcação numérica seqüencial dos textos
verbais (esses registrados pela tipografia mecânica) – UM a VINTE E
QUATRO – e a indicação espacial (os lugares visitados, por exemplo:
Marrakesh, Serrat, Marrocos...). Faz também algumas anotações como
descrições que traduzem o desenho (“mulher e filho”), que
complementam o desenho (“somente o lenço é colorido”) e que alteram
os desenhos (em losangos pretos, há uma fecha com a indicação: “azul”).
Lembra-se que, nas páginas anteriores, havia desenhos em cor azul,
supõe-se, então, que o havia, naquele momento, a disponibilidade do
azul, caracterizando aquilo que anteriormente foi denominado “improviso
próprio ao registro de viagem, qualidade do gênero em questão.
264
Figura 3.44 – Relação palavra–imagem improviso
Já a tipografia mecânica apresenta uma seqüência de poemas
descritivos que compõem um todo narrativo, pois o poema UM revela o
seguinte conteúdo: “De muito longe me vejo/ ajoelhada no fundo da
caverna,/possuidora de palavras mágicas,/sultana de um reino invisível/
as mãos cheias de tesouro.” Tem-se, portanto, um “vejo(1ª. Pessoa do
singular), “ajoelhada” (feminino). No poema VINTE e QUATRO, o conteúdo
apresenta: “Três palmeiras na fronteira/ entre passado e futuro./
desaparecem, pouco a pouco,/ o deserto,/ suas caravanas, cactos,
beduínos/ os anjos e suas mensagens/ cifradas adormecem,/ se
recolhem todos/ ao sono da areia./ (outra página) O deserto agora são
desenhos/ num caderno,/ são rabiscos de poemas,/ a fotografia revelada,/
um último adeus num cibercafé,/ a lembrança de um grande silêncio.” O
tempo verbal é presente (agora), mas enquanto no poema UM o tempo
está por “acontecer”, no poema VINTE E QUATRO, a despedida, o
encerramento, o que ficou para trás naquele momento, “fecham-se as
vozes do deserto” e fim da viagem. Conclui-se que o poema UM apresenta
a tarefa de uma personagem feminina que detêm o poder das palavras e
têm em suas mãos tesouros-desenhos. Ela está dentro da caverna
(escuridão-silêncio), está longe, mas tem competência” para dar voz aos
tesouros desenhos. A sultana, de um reino invisível (sem imagens), deve
atribuir palavras mágicas que transformarão a escuridão em luz e o
silêncio em voz.
265
No poema VINTE E QUATRO, a imagem pouco a pouco se apaga e
se torna registro, rabiscos de poemas”, e se faz o silêncio novamente.
Será, a partir desse silêncio, que a sultana receberá o tesouro, e,
portanto, é o fim da viagem e o começo da palavra, do registro verbal que
tem como propriedade eternizar os momentos com marcas subjetivas.
Lembra-se da passagem: “In principio erat verbum”. A enunciação, por
esta demonstração, está enunciada.
O discurso bivocal es instaurado tanto na palavra como na
imagem. Existem duas vozes e essas não o determinadas pelos limites
entre expressões (verbal e visual), mas pelas próprias marcas gráficas à
semelhança da heterogeneidade mostrada e marcada pelo uso das aspas
e do verbo de dizer.
Enquanto o manuscrito se mantém mais fiel ao que é visto, e, a
partir das intervenções, comentários aproximam-se da objetividade
desejada à descrição; a tipografia mecânica utiliza a heterogeneidade
marcada e não mostrada quando estabelece relações mais subjetivas, pois
imprecisões, comparações, metáforas e o recurso intertextual é
constante, revelando uma faceta muito mais subjetiva e outras vozes
saltam à enunciação, como acontecerá também às imagens.
Essa opção enunciativa parece contrariar a expectativa simbólica
do senso comum, pois o manuscrito é simbolicamente instituído como
pessoal, enquanto a tipografia mecânica imprimiria um caráter mais
impessoal. Essa expectativa simbólica é rompida pelo sujeito da
enunciação como uma opção discursiva, instaurando aquilo que a
Semiótica de linha francesa denominou semi-simbolismo
110
, recurso
próprio dos textos poéticos. O dialogismo existe na expressão e no
conteúdo, criando uma obra semi-simbólica:
Aceitando-se reservar o nome de semiótica semi-simbólicas
para esse tipo de organização de significação – que se define
pela conformidade entre dois planos de linguagem
reconhecida como se dando não entre elementos isolados,
110
Conceito definido anteriormente, mas reapresentado nesta análise.
266
como acontece nas semióticas simbólicas, mas entre suas
categorias perceber-se-á que tais organizações se
encontram não apenas na linguagem gestual (na qual
encontramos, por exemplo, a disjunção/conjunção
homologada ao movimento das mãos no eixo da
lateralidade, efetuando-se em sentidos opostos, ou a
atração/repulsa expressas pelos movimentos do tronco e dos
braços no eixo prospectivo), mas também nas nguas
naturais e, mais particularmente, na elaboração secundária
desta que é a linguagem poética (com as categorias
prosódicas como a entonação frasal, a rima e o ritmo)
(GREIMAS, 2004, p. 93).
Vozes da imagem: a linha em silêncio
O percurso trilhado pelo Desertos tem início na Espanha, passando
pelo Estreito de Gibraltar para, finalmente, aportar no Oriente. Marrocos,
Serrat, Tamalet e Marrakesh são alguns dos lugares indicados pelos
manuscritos. A tipografia em manuscrito e os desenhos esboçados
formam uma voz discursiva, que será descrita pelas linhas que seguem.
No horizonte da travessia, pela janela do ônibus, a linha
acompanha o trilhar. No entorno, o vazio, o silêncio, mas, como é
lugar-comum afirmar, “uma imagem vale mais que mil palavras”. O
discurso visual se impõe e, com ele, sua característica, que também
constitui a heterogeneidade, mostrando suas “mil vozes”. Então, vale
pontuar que tanto o verbal quanto o visual se propõem como dialógicos,
condição inerentes aos discursos, como postula Bakhtin.
O discurso visual que se revela é marcado pelo essencial. Linhas,
contornos, figuras geométricas criam o cenário, e, em alguns momentos,
a figura humana é protagonista, mas essa também é retratada apenas
pelas propriedades que a identificam, ainda, se tornam protagonistas
quando um traço cultural é destacado. Evidenciam-se, então,
características do romance de viagem, como descrito por Bakhtin: “Daí a
percepção característica de tais romances dos grupos sociais
estranhos, nações, países, modo de vida etc. no espírito do “exotismo”,
267
isto é, a percepção das diferenças nuas, dos contrastes, das estranhezas
(2006, p. 207).
Figura 3.45 - Detalhe de traços culturais
No mais, o discurso visual organiza a narrativa por uma seqüência de
imagens essenciais que, quadro a quadro, descortinam o cenário Desertos.
A exemplo daquilo que se conhece como esboço (ou, em alguns
casos, da arte final), deve restar, nos desenhos, a essência.
O dlogo inerente ao discurso se , a partir da voz da arte
moderna, tangendo seus precursores, como Pablo Picasso. O registro da
esncia como fundamento do desenho do viajante conduz a um texto muito
bem humorado, que tem Picasso como protagonista. A narrativa a seguir
ilustra a busca pelo essencial, proposta artística doculo XX, quiçá XXI:
E Célestin conclui a sua história: "Na última prova só restavam
algumas linhas. Eu olhava o artista (Picasso) trabalhar. Ele
suprimia, suprimia. Pensei no primeiro touro, e disse comigo: é
curioso; ele terminou por onde normalmente devia começar,
Mas Picasso procurava o seu touro. E para chegar ao touro de
um único traço passou por todos aqueles outros touros. E
quando se vê esse traço único não se pode imaginar o trabalho
que o artista teve."
"Há pinturas que parecem não ter nada mas m tudo" ,
disse Corot. 0 processo seguido por Picasso para chegar a
esse touro é um exemplo magnífico. Cada etapa tem sua
carga de realidade, e cada realidade busca uma nova
verdade. E a versão definitiva leva em si a imagem que nos
268
vem à mente quando dizemos a palavra touro (Disponível
em: <www.lmc.ep.usp.br/people/jcyro/index5724.htm>.
Acesso em: 15 jun. 2008).
A narrativa verbal sobre o processo de criação de Picasso pode ser
acompanhado pelas provas litográficas, que demonstram exemplarmente a
busca pela essência, restando apenas a linha – o essencial:
Figura 3.46 – Reprodução das provas litográficas de Picasso
269
Os desenhos do deserto apresentados pela obra em análise também
guardam apenas a essência, cumprindo os ensinamentos do artista
espanhol. A seqüência visual propõe um estilo associado àquele dos registros
manuscritos, corroborando a idéia do gênero durante a viagem não
tempo para preencher, a imagem deve representar o essencial, pois, quando
retomada, será preenchida pelo observador: “E a versão definitiva leva em si
a imagem que nos vem à mente quando dizemos a palavra touro”
(Disponível em: <www.lmc.ep.usp.br/people/jcyro/index5724.htm>.
Acesso em: 15 jun. 2008).
Nas artes visuais, a função da linha é a edificação do essencial,
como Dondis aponta, sustentando a argumentação proposta:
Nas artes visuais, a linha tem, por sua própria natureza,
uma enorme energia. Nunca é estica; é elemento visual
inquieto e inquiridor do esboço. Onde quer que seja
utilizada, é o instrumento fundamental da pré-visualização,
o meio de apresentar, em forma palpável, aquilo que ainda
não existe, a não ser na imaginação. Dessa maneira,
contribui enormemente para o processo visual. Sua natureza
linear e fluida reforça a liberdade de experimentação.
Contudo, apesar de sua flexibilidade, a linha não é vaga: é
decisiva, tem propósito e direção, vai para algum lugar, faz
algo definitivo (DONDIS, 2003, p. 56).
A imagem, as linhas tradas, contudo, não o estáticas, como
alertou Dondis. Pelo contrário, a linha no horizonte se transforma em
movimento, a exemplo do que ocorre com a linha da terra nas animações,
em que ela, a cada virada de gina, modifica-se: ora personagem, ora
edifício, ora montanha
111
. Além disso, as linhas em Desertos estão traçadas
em cores primárias, conduzindo o caminho e delineando, como apontado,
o cenário. Como em um percurso, em uma viagem, o leitor segue o
caminho, a estrada dada pelo desenho que transmuta pela janela do ônibus:
111
Por este perfil, é possível relembrar da capa da obra, em que o grafismo é
caracterizado como anáfora do conteúdo expresso no miolo.
270
Figura 3.47 – Seqüência da linha
Aproveitei o balanço do ônibus pra atenuar o desenho das
linhas. O vazio da região semidesértica seria um estímulo? A
paisagem na janela do ônibus mudava constantemente:
montanhas, ovelhas, postos, refinarias, letreiros, palmeiras,
sacos plásticos, aquedutos, mulheres esperando ônibus,
mulheres com sacolas, campos de futebol e a repetição de
todas essas coisas (O diálogo de Roseana Murray
e Roger Mello com Jardins e Desertos. Tigre Albino. [S.l.], v. 1,
n. 3, 15 jul. 2007. Entrevista concedida a Annete Baldi.
Disponível em: <www.tigrealbino.com.br>. Acesso em: 17
maio 2008).
Este tro deixa espaço para a imaginação, o esboço exige a
finalização que, neste caso, cabe ao leitor. A imaginão, o reperrio
o convocados. A imagem (discurso visual) abre possibilidades de
preenchimento com lembranças, recorrências, sonhos, enfim, diálogos.
A linha pode ser as curvas da natureza, que, esculpidas pelo arquiteto,
tornam-se monumentos; pelo escultor, obras-prima; pelo desenhista,
sugestões.
271
Em Desertos, o enunciador cria cenários arquitetônicos, que
remetem às criações de Oscar Niemeyer, estabelecendo relações com o
seu repertório um artista brasileiro contemporâneo que registrou nos
grandes centros o seu estilo, que acompanha as próprias curvas do relevo
sinuoso de seu país:
Figura 3.48 Oscar Niemeyer
Figura 3.49 – Linha e curvas
Ainda, em Desertos, bordam-se esculturas que lembram o
emaranhado de linhas essenciais de Waltércio Caldas, outro artista
brasileiro contemporâneo que por um tempo tomou a linha à semelhança
de novelos para edificar suas esculturas. A forma, à semelhança da
arquitetura, confere característica para aproximar as obras:
272
Figura 3.50 – Waltércio Caldas
Figura 3.51 – Linhas
Além das referências a nomes-obras em particular, o trabalho de
Roger Mello dialoga com seu tempo e seu espaço, sem dúvida deixando a
marca de seu estilo (individualidade), mas, sobretudo, refletindo as suas
referências contextuais.
Apesar de o estilo gráfico das imagens partir de uma escolha
pessoal e ser produzido por um ilustrador, não pode ser classificado como
uma assinatura absolutamente particular deste último. Por mais que o
traço estilístico de um artista possua personalidade, faz parte de uma
visão de mundo coletiva, conforme postulado por Bakhtin:
A literatura é parte inseparável da cultura, não pode ser
entendida fora do contexto pleno de toda a cultura de uma
época. É inaceitável separá-la do restante da cultura e, como
se faz constantemente, ligá-la imediatamente a fatores
socioeconômicos, por assim dizer, passando por cima da
cultura (2006, p. 360).
273
Ainda, em literatura infantil, o estilo proposto deve dialogar com a
concepção da obra, como explica Rui de Oliveira, em entrevista ao site de
literatura infantil Doce de Letra:
[...] Qualquer trabalho que faço passa antes por uma fase
de referências e pesquisas. Quando começo a ler um texto e
esboçar as ilustrações, já penso logo qual o estilo apropriado
àquelas palavras, e onde está este estilo. Melhor dizendo:
onde está o modo de fazer. Não gosto de usar a palavra
estilo (Disponível em: <www.docedeletra.com.br>. Acesso
em: 15 set. 2006).
Vale demonstrar a afirmação, a partir de três obras
contemporâneas que reafirmam a influência do contexto cultural em que
está inserido e suas tendências. O estilo do autor carrega características
que revelam as marcas e estilo de seu tempo: A Banguelinha (2002), de
Angela Lago, A flor do lado de (1999), de Roger Mello, e Moi j’attends
(2005)
112
, de Davide Cali e Serge Bloch, respectivamente:
Figura 3.52 – A Banguelinha Figura 3.53 – A flor do lado de
112
Esta obra foi publicada no Brasil em 2006, a versão apresentada está em espanhol.
274
Figura 3.54 – Moi j’attends
Pela linha (elemento gráfico comum), cada um dos artistas conduz
sua narrativa visual, imprimindo um diálogo que é próprio ao tempo e à
expressão da literatura infantil, no entanto, cada autor capta a tendência
da época a sua maneira. Lago recheia as linhas com cores, construindo
formas a partir da linha essencial, suas formas são figurativas e podem
ser associadas ao estilo do rascunho. Mello, a partir da linha da terra,
constrói as distâncias entre as personagens (anta - protagonista e objeto
de desejo flor), essa ligação estabelece o diálogo da obra que seum
traço recorrente no próprio estilo do autor. Cali e Bloch costuram com
lã o elo entre personagens e vida.
Todos estes encontros discursivos revelam a voz presente no
silêncio pretendido pelos desenhos do Desertos. Apesar da ausência
aparente, as vozes das artes se mostram apenas, na linha, posta no
horizonte do leitor, e tais vozes autorizam a semelhança e total fusão
entre os diferentes sistemas semióticos, como será demonstrado a seguir,
pois o verbal também liberta vozes nas profundezas das palavras-
histórias, estabelecendo constantes diálogos.
275
Silêncios da palavra: as vozes do discurso
O discurso verbal também é constituído por vozes mostradas e não
marcadas, a exemplo do discurso visual, imprimindo uma característica
discursiva que se manifesta por meio de dois sistemas semióticos. Murray
revela, de antemão, que conhecera o deserto pelas vozes das histórias,
eno, já impõe ao leitor as relações intertextuais. As seguintes relações são
identificadas: o mito da caverna (Platão), a estua de sal (Bíblia), Lilith
(histórias árabes) e as hisrias de Sherazade e Ali Ba (narrativas
populares).
A partir da numeração proposta pela tipografia manuscrita (UM até
VINTE E QUATRO), acompanha-se uma narrativa composta por poemas
que formam um todo de sentido, em tipografia mecânica, como
ponderado. Por meio dos poemas, formula-se a narrativa que será
detalhada a seguir:
Poema 1: uma personagem feminina, com poderes mágicos das
palavras, está em uma caverna e tem em mãos tesouros aqui esa
referência ao Mito da Caverna, de Platão, em que se questiona a
aparência e a essência; o mundo inteligível e o mundo sensível, além de
remeter a existência de vozes o eco, no espaço da caverna. Trazer as
palavras à luz é a tarefa do actante;
Poema 2: faz-se um alerta sobre os perigos do caminho; caso algo
se altere, pode haver a perda do rumo determinado e de poderes
atribuídos. Pressupõe-se, então, que o actante deve cumprir seu percurso,
determinado pelos desenhos-tesouros, visto que possui competência e foi
manipulada para tal, mas deve atentar para os perigos de outras possíveis
manipulações;
Poema 3: existe um questionamento sobre a identidade do
deserto o actante deve realizar sua performance no intuito de passar de
um estado inicial de desordem com relação ao sentido (identidade) do
deserto para um estado final, em que o sentido esteja organizado e que,
276
portanto, o leitor possa reconhecer a identidade desse deserto ou do
próprio deserto em essência;
Poema 4: a descrição inicial do cenário: o tapete é o sentinela e
avisa o viajante de sua entrada no universo desconhecido a idéia do
guarda (guardião) do deserto que anuncia a proximidade com o objeto a
ser descrito, o tapete tem a função de destinador do sujeito da ação;
Poema 5: há a oposição entre o oculto e o revelado este jogo é
proposto ao viajante e também ao leitor – o enigma é o que pertence (em
essência) ao deserto. No entanto, será revelado o que pertence à cidade,
pois não é possível esquecer que ela guarda subjacente a gêneses do
deserto. Afirma-se que o deserto, por suas histórias, constitui as cidades,
então, estas não estão opostas ao deserto, mas em relação dialética;
Poema 6: revela-se a relação entre cidade e deserto no entanto,
a força deste está nas Histórias que compõem a cidade, ou seja, há
oposição e relação de interdependência entre as figuras;
Poema 7: o estrangeiro, o forasteiro, a palavra longínqua é
expressa, reafirma-se a existência do viajante, aquele que tem como
objetivo reconhecer a identidade do lugar desconhecido
113
e que será o elo
entre o deserto e a cidade;
Poema 8: o caminhante é retratado com sonhos nas costas – todo
ser também tem suas histórias (passado, vivência), isso determinará o
reconhecimento deste novo espaço que se apresenta, o lugar, será,
portanto, (re) conhecido;
Poema 9: descrição da passagem do tempo anoitecer. A
passagem do tempo marca a aprendizagem;
Poema 10: o futuro impõe que não se olhe para o passado, esta
imagem recupera a cena bíblica da mulher de que fora transformada
em estátua de sal por desobedecer e olhar o (ou ficar preso ao) passado;
113
Destaca-se que a palavra longínqua aparece sem a letra a final, o que pode gerar
algum sentido que escapa à análise ou pode ser fruto de uma falha técnica na
composição do livro.
277
Poema 11: no meio do caminho, existe uma pousada entre
passado e futuro, talvez, uma referência ao próprio presente como um
abrigo entre esses – lugar de acolhimento, lugar conhecido;
Poema 12: Marrakesh – a cidade se impõe, mas o deserto sussurra,
o passado também, como apontado anteriormente, constitui a cidade;
Poema 13: Lilith a condição da mulher no território, a figura
demoníaca, o pecado ou obstáculo que poderia “segurar os pés do
viajante, para que ele não seguisse o caminho determinado – manipulação
- destinador, como alertado no início;
Poema 14: Sherazade e Ali Babá representam o poder da palavra,
contrariando o lugar comum da força da imagem, a palavra tiraria o
desenho do silêncio e, portanto, daria sentido ao deserto, a partir de suas
recorrências intertextuais;
Poemas 15, 16, 17, 18 e 19: imagens mais preenchidas que
demonstram a cultura local, como: especiarias, minarete (grafismo
presente da capa), casa das doze concubinas, mulher com véu, mesquita
(os desenhos e os manuscritos preenchem as palavras e vice-versa, pode-
se afirmar que a complementaridade entre os sistemas semióticos nestes
versos é bastante efetiva);
Poema 20: o verso se refere à sica, ao poema como
expressão;
Poema 21: chave para descobrir a essência do deserto – o enigma
novamente é colocado ao leitor e ao viajante, pois, com suas memórias do
ocidente, deve (re) conhecer o oriente;
Poema 22: o verso seguinte aponta o homem como elo (chave)
entre o Oriente e o Ocidente, aquele viajante citado anteriormente;
Poema 23: a palavra especiarias trará à tona a lembrança do
deserto, com o seu aroma, suas cores e seus sabores;
Poema 24: o último verso apresenta a linha divisória entre Oriente
– passado – e Ocidente – futuro (cibercafé).
Pela descrição narrativa, é possível estabelecer a seguinte relação:
278
Situação inicial: Conhecido (futuro) cidade - hisrias
recontadas - releitura versus Situação final: (re) conhecido (passado)
deserto – “histórias antigas”, que constituem as novas histórias.
Desertos: redes de silêncios e vozes
Há, portanto, em Desertos, um entrecruzar de histórias, em que
conhecer e (re) conhecer se confundem, remetendo, sem vida, à rede
narrativa arquitetada por textos como As Mil e uma noites, em que a
narrativa principal gera outras histórias.
Nos lugares em que se pretendia o silêncio, saltaram vozes
intertextuais. Os discursos tramados por este projeto gráfico apagam as
figuras de “carne e osso”, apesar de o prefácio trazer a voz da autora,
para impor vozes do passado e do futuro, que são “encarnadas” pela
diversidade tipográfica, ora manuscrita, ora mecânica. Assim, não existe
demarcação entre o que pertence ao verbal e o que pertence ao visual,
logo, constrói-se um todo de sentido edificado por dois sistemas
semióticos que se tornam apenas um - o livro-álbum:
el género del libro-álbum tiene entonces una naturaleza
intrínsecamente dual que nos lleva a relacionar la diversidad
de elementos que conforman su lectura. Leemos las
imágenes a través de las palabras y las palabras a través de
las imágenes. En términos de Bakhtin, cada una de ellas
es “dialogizada”. Por otra parte, el libro-álbum se dirige a
una audiencia para la cual el mundo en general (y la
literatura en particular) se encuentran en un estado de
cambio perpetuo. En esta estampa, no hay una noción
concreta de lo que es la lectura (LEWIS, 1990, p. 98).
Para discorrer sobre este objeto, não foi necessário reconstruir seu
processo de criação, mas, pelos próprios arranjos discursivos e
composições plásticas dispostas em enunciado, o dialogismo saltou aos
olhos e ouvidos para que o leitor acompanhasse a viagem pelo deserto, ou
279
melhor, Desertos, uma vez que não apresenta apenas um, mas vários que
habitam (ou habitaram) as artes narrativas ao longo dos tempos.
3.3.3 O Diálogo entre os Dois Projetos Gráficos
O objetivo deste trabalho de tese é verificar em que medida o
projeto gráfico dos livros infantis se constitui como todo de sentido e,
ainda, se a articulação entre os sistemas semióticos contribui para uma
leitura rica, que implica ampliação de repertório e inserção no universo
das artes, sejam plásticas ou literárias, formando um leitor literário.
Assim, cabe à análise, neste momento, a tarefa desafiadora de descortinar
dois projetos gráficos relacionados, pois apresentam um encontro
bastante recorrente no cenário da literatura infantil brasileira, a saber: o
fértil diálogo entre os artistas Roseana Murray e Roger Mello.
A proposta era um risco, pois a pesquisa fundamenta-se nas
teorias semiótica e discursiva que deixam de lado o processo de criação e
focalizam o produto (texto e discurso) em si. Por isso, de certa maneira,
as palavras de Roseana Murray apaziguam os anseios da análise:
O efeito dos livros, se olharmos os dois juntos, é
impressionante. O Jardins é uma explosão, o Desertos é
uma arquitetura feita de vazios e silêncios. Na verdade o
livro Jardins é do Roger, meus poemas apenas pontuam a
maravilha que é o seu trabalho. E o Desertos, apesar do
Roger ter viajado sozinho, é como se fosse meu também,
viajei junto com ele, mas depois (O diálogo de Roseana
Murray e Roger Mello com Jardins e Desertos. Tigre Albino.
[S.l.], v. 1, n. 3, 15 jul. 2007. Entrevista concedida a Annete
Baldi. Dispovel em: <www.tigrealbino.com.br>. Acesso em:
17 maio 2008).
A autora, em entrevista a Revista Poesis, descaracteriza totalmente
a autoria, quando revela que em Jardins seus poemas pontuam os
desenhos de Mello e que em Desertos, apesar de apenas Mello ter viajado,
a poeta se manifesta como autora, a partir de relações intertextuais.
280
A análise com relação a essas obras, que têm processos de criação,
de certa maneira, opostos, autoriza a elaboração de que o sujeito da
enunciação, como ensinam os conceitos semióticos, não revela os sujeitos
autores, mas se constroem por meio da própria enunciação, deixando
claro que o projeto gráfico, se bem articulado, como nas obras em análise,
funciona como um único mecanismo de significação, ou seja, um discurso.
Posto isso, evidenciam-se os pontos de aproximação e os pontos
de distanciamento entre os dois projetos gráficos em análise:
Tabela 3.1 – Aproximações entre os projetos gráficos – Jardins e Desertos
Aproximações
CAPA Identificação do gênero
AUTORES Equipe verbo-visual
PREFÁCIO Introdução da obra
TIPO DE TEXTO
VERBAL
Poemas
PLURAL NO TÍTULO Subjetividade
RECORRÊNCIAS
INTERTEXTUAIS
Diversas vozes
DESCRIÇÃO DE
AMBIENTES
Jardins e Desertos
281
Tabela 3.2 – Distanciamentos entre os projetos gráficos – Jardins e
Desertos
Os esquemas revelam mais pontos de distanciamento que de
aproximação, mas a investigação valida a experiência da equipe de
produção na composição da obra de literatura infantil.
Distanciamentos
Jardins Desertos
PÁGINAS Preenchidas Vazias
EXPRESSÃO Profusão Escassez
CORES Diversidade Restrição
AMBIENTE Conhecido (Re)Conhecido
TIPOGRAFIA Manutenção Alternância
SOBRECAPA Presença Ausência
POEMAS Descritivos Narrativos
IMAGENS Pontuais Seqüenciadas
PREFÁCIO Manoel de Barros
(alheio)
Roseana Murray
(próprio)
282
3.4 FITA VERDE NO CABELO NOVA VELHA ESTÓRIA: EMARANHADOS DE
VOZES
De muito longe me vejo/ ajoelhada
no fundo da caverna,/possuidora de
palavras mágicas,/sultana de um
reino invisível/ as mãos cheias de
tesouro.
(Roseana Murray)
Fita Verde no cabelo - nova velha estória, de Guimarães Rosa,
editada pela Nova Fronteira, apresenta em seu título a problemática a ser
abordada por esta análise. Interessa investigar a presença do discurso do
outro na obra de Guimarães Rosa, tanto a voz da “velha estória” como a
“voz” das imagens, pelas ilustrações de Roger Mello. Assim, a
intertextualidade e a relação palavra-imagem são as questões que
norteiam o estudo.
Quando Guimarães Rosa, autor do conto, introduz o subtítulo “nova
velha esria”, antecipa a inclusão de uma voz, a da “velha estória” que
será recontada. Tem-se, pois, uma releitura, uma relação intertextual no
texto verbal.
A “velha estória” reelaborada por Rosa é o tradicional conto
Chapeuzinho Vermelho. O objetivo que se impõe é o de verificar as
relações de permanências e transformações entre o texto-base
(Chapeuzinho Vermelho) e conto de Rosa (Fita Verde no cabelo) para,
assim, perceber os pontos de interação entre os textos verbais. Cabe
identificar pontos de interação tanto no plano do conteúdo, tangendo a
estrutura de ações do actante Chapeuzinho Vermelho e as manifestações
de temas e figuras no vel discursivo, quanto o plano da expressão para
revelar a linguagem poética.
Contudo, além disso, o trabalho de tese que se apresenta tem por
objetivo “ir mais para das relações verbais, pois seu foco, sobretudo,
recai sobre relação entre palavra e imagem, articuladas pelo projeto gfico.
283
Então, o conto de Rosa, editado pela Nova Fronteira é o objeto-
livro dado à análise, visto que Roger Mello, autor selecionado no corpus
desta pesquisa, aceitou ilustrar esse intrincado recontar. A pertinência
deste adjetivo se pela exploração da linguagem poética, característica
do autor mineiro e também do artista brasiliense.
Posto isso, adota-se como metodologia desfazer os emaranhados
verbais para, em seguida, tramar os fios dos sistemas semióticos (verbal
e visual) e, finalmente, entender os procedimentos da composição gráfica,
sem perder de vista o público pretendido pela obra, a saber: a partir da
análise que se propõe, é lícito perguntar se o público-criança é realmente
aquele pretendido pela edição.
Mais uma vez, diante de um texto clássico da literatura infantil,
recontado inúmeras vezes, caberá verificar-se a pertinência da releitura
“atualizada” (ao menos transformada) e, ainda, a função da imagem neste
projeto gráfico. Vale, então, perguntar: se todo o trabalho poético de
Rosa, que o é um autor de literatura infantil, mas que recorre ao conto
maravilhoso como base de sua criação, não afasta sua versão do público
pretendido pelo texto original – Chapeuzinho Vermelho? A função da
imagem seria justamente aproximar o leitor, endossando aquela visão de
que a imagem esclarece o texto verbal? E, também, cabe, mais uma vez,
indagar: se o texto existia antes da imagem, essa, portanto, o seria
desnecessária? Questionar-se-á, portanto, o gênero da obra: livro-álbum,
álbum ilustrado, conto ilustrado?
é possível trabalhar as relações destacadas graças à edição da
editora Nova Fronteira, porque a problemática de retomada do discurso
alheio se tanto no texto verbal quanto no visual, possibilitando
reflexões sobre a interação entre os dois sistemas semióticos, como se
pretende demonstrar.
284
3.4.1 A Nova Fronteira Imposta ao Clássico
A edição da Nova Fronteira foi ilustrada em homenagem a
Guimarães Rosa, quando dos 25 anos de sua morte e, como Glória Pondé,
coordenadora da edição, relata na contracapa, a obra pretende o público
em geral: “O conto, rico por si mesmo, escrito com um ritmo e uma forma
de apresentação de cenas e imagens que muito o aproximam da poesia,
encanta o público de qualquer idade” (PONDÉ, 1992, contracapa).
Pontua-se que o texto de Guimarães Rosa não sofreu qualquer
alteração para se adaptar a uma faixa etária específica a infância, por
exemplo. A edição apenas colocou o texto verbal em diálogo com o visual
para compor uma nova edição do conto de um autor brasileiro que é
clássico e, assim, homenageá-lo. Ainda, se a apresentação de Ponde
destaca o público-alvo, como generalizado: “encanta o público de
qualquer idade”, isso se impõe como um alerta ao leitor, pois, se fosse
uma obra destinada ao público adulto, não haveria a necessidade da
ressalva. É senso comum entender a obra ilustrada como um livro
destinado à criança, além disso, a retomada do conto maravilhoso reforça
a sugestão do público-alvo.
A retomada do conto maravilhoso Chapeuzinho Vermelho fica clara
para o leitor em seu título, então, não haveria necessidade de
adaptação na linguagem. O leitor-criança, por meio da identificação entre
as histórias, compreenderia o recontar de Guimarães Rosa.
O conto Chapeuzinho Vermelho mora no universo infantil, logo, a
identificação é imediata. Tal afirmação é possível tendo em vista que esse
conto, a partir da Revolução Francesa, foi utilizado para ensinar às
crianças, portanto, muito difundido a partir de então em todos os cantos
do mundo, até no Brasil. Nelly Novaes Coelho reflete acerca do percurso
do conto maravilhoso a partir de seu “nascimento” na França:
285
Uma coisa, porém, é indiscutível: tal redescoberta do
popular, em plena crise dos valores clássicos/aristocráticos,
na França de Luís XIV, es[...] ligada à Querela dos Antigos
e Modernos (que dividiu a Academia Francesa e marcou,
historicamente, o crepúsculo do Classicismo). [...]
Parece que, com a redescoberta dessa literatura popular,
autenticamente francesa e, portanto, moderna, Perrault
pretendia provar a identidade de valores entre a criação
dos novos povos e a produção dos antigos (gregos e
romanos), tidos como modelos superiores de cultura oficial
(1987, p. 66-70).
Se a história de Chapeuzinho Vermelho é um clássico, o seu recontar
é inevitável na esteira do que revelara Ítalo Calvino sobre os clássicos
114
.
Posto isso, resta identificar o que do texto-base se mantém, o que se
transforma e, ainda, os porquês dessas permanências e transformações.
Quais são os efeitos de sentido gerados pelas modificações?
Na edição em análise, a relação palavra-imagem o pode
permanecer em segundo plano, e isso, obviamente, tamm agrega sentido.
Além das indagações expressas, formulam-se outras duas questões
que intrigam na mídia visual, a saber: 1) as imagens como voz do outro e
2) as referências a outras vozes no próprio discurso visual.
Enquanto o texto verbal dialoga com outra história, como se sabe, o
visual dialoga com outras técnicas das artes plásticas, como se
demonstrado: o surrealismo, o hiper-realismo, o barroco, entre outros.
Estaria, pois, nesta característica do discurso visual, o dlogo com a palavra,
uma vez que essa incorpora ao seu discurso as estratégias utilizadas pelo
discurso verbal. É importante verificar quais estratégias o discurso visual
laa mão para constituir um todo de sentido com a palavra.
Quando um artista ilustra determinado texto, estabelece com este
um diálogo que pode ser totalmente redundante com relação ao verbal,
agregador, ou mesmo, um dissipador de sentido, caso não se estabeleça
relação de novos sentidos, hipótese que este trabalho descarta. Por isso,
interessa à investigação entender a função da imagem nesta edição e os
114
Esta questão foi tratada quando a obra A sereiazinha, de Andersen, foi analisada.
286
emaranhados de vozes formados por este encontro entre dois poetas,
Guimarães Rosa e Roger Mello.
3.4.2 Vozes da “Nova Velha Estória”: Permanências e
Transformações
A narrativa de base é o antigo conto de tradição oral Chapeuzinho
Vermelho, registrado posteriormente por Perrault e pelos Irmão Grimm.
Cada um desses autores é influenciado por sua época. A história tem suas
alterações e, portanto, diferentes versões. Benjamin Abdala Junior aponta
que “o que ocorre, neste sentido, (é) uma apropriação ‘natural’ das
articulações literárias sem que o próprio futuro escritor se aperceba de
sua situação de ser social e de ‘porta voz’ de um patrimônio cultural
coletivo” (2003, p. 112).
Discini explica que Chapeuzinho Vermelho, em particular, é um conto
maravilhoso com traços míticos, e isso lhe garante os atributos clássicos:
[...] pode-se concluir que Chapeuzinho Vermelho é um conto
que apresenta traços míticos. Não poderia ser mito, porque
mantém a especificidade do conto maravilhoso, que é,
segundo Mieletínski (1979, p.54), “a invenção poética
consciente”, a “transformação da imaginação ‘etnográfica-
concreta’ numa imaginação poética generalizada (em certa
medida até mesmo convencional” (2004, p. 141-142).
Guimarães Rosa também deixa entrever em sua obra, como não
poderia deixar de ser, o seu tempo e o seu espaço, e, por isso, impõe-se
uma releitura do conto, e o um contar a história-base simplesmente. É
uma retomada livre
115
da história base. Caracteriza-se, pois, como um vôo
que tende à originalidade narrativa. Discini (2004) afirma a linguagem
poética de Rosa:
115
O adjetivo livre é usado, pois Guimarães Rosa não tem por objetivo, como fica claro
em seu conto, transmitir o conteúdo do conto popular Chapeuzinho Vermelho, mas
sim dar novo sentido, novo mote à narrativa original.
287
Fita-verde, de todas as amostras do nosso corpus, é aquela
em que a função estética atinge sua máxima e plena
realização, beirando à poesia. As figuras são as do texo-
base; os temas são os do texto-base; o sistema sintático
enuncivo é o do texto-base; as seqüências narrativas são as
do texto-base; as relações sintático-semânticas básicas são
as do texto-base. Acontece que tudo se resolve numa
ambigüidade discursiva, que é conseqüência de
ambigüidades que se vão tecendo desde as profundezas [...]
do nível fundamental [...]
Fita-verde esconde, sob uma linguagem trabalhada,
Chapeuzinho Vermelho, a qual lhe a matéria-prima,
fazendo com que significante veicule um novo significado, de
tal maneira que se torne impossível desvincular o conto de
Rosa do modo como ele é contado. [...]
Rosa o mostra o texto-base, com o qual conflui e que
está na base da construção do significado de seu conto
(2004, p. 239).
O texto-base Chapeuzinho Vermelho surge como uma estrutura-
base que será transformada pelo novo discurso, a qual habita o imaginário
(repertório) popular e, por isso, pode ser preenchida, recheada por outro
conteúdo, por outras temáticas, sem que a sua estrutura-base seja
alterada e sem modificar o que o enunciatário já guarda em seu repertório
sobre ela.
Neste momento, é possível remeter a outras duas leituras do
conto, uma francesa, um livro de imagem, com figuras discursivas mais
abstratas (HONEGGER-LAVATER, W. Le Petit Chaperon Rouge, 1965)
116
, e
outra brasileira (HOLANDA, F. B. Chapeuzinho Amarelo. Ilustração de
Ziraldo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1984), um livro ilustrado
117
:
116
Verifica-se, nesta versão, que, apesar de as figuras tenderem à abstração, o leitor-
criança facilmente depreende o enredo narrativo, pois o título ancora a abstração,
como foi demonstrado na análise da obra Sebastião, de Manuela Bacelar.
117
Esta obra também foi analisada como uma variação do conto maravilhoso no estudo
realizado por Norma Discini em Intertextualidade e o conto maravilhoso (2004).
288
Figura 3.55 – Releitura de Chapeuzinho Vermelho
A hipótese criada, então, é a de que Rosa recupera a estrutura
narrativa com suas seqüências e contratos a fim de preenchê-la com o
universo que lhe é característico. Um discurso no entrelugar do local
(sertão) e do universal (mundo). O autor parte, pois, de algo estrangeiro
(conto maravilhoso) para imprimir a marca nacional. Tendo tal hipótese
como ponto de partida, evidenciam-se alguns pontos de aproximação e
outros de distanciamento entre as obras colocadas em relação.
3.4.3 O Texto-Base
A protagonista de Chapeuzinho Vermelho é uma menina “sem
juízo”, desobediente, assim caracterizada pelo narrador do conto
maravilhoso. Apesar disso (ou por isso), recebe uma missão, a saber: ela
é incumbida pela mãe a levar doces e frutas à avó, que esdoente. A
menina, como antecipado pela caracterização, quebra o contrato
estabelecido quando rejeita o caminho mais seguro indicado pela mãe e
segue a sua escolha: o percurso mais curto, reforçando o traço de
desobediência. Lá, neste caminho proibido”, para surpresa da menina,
está o Lobo (antagonista), que a engana e, antes dela, corre para a casa
da avó da menina. Ali, come sua primeira vítima a própria avó. Algum
tempo depois, a menina encontra o Lobo disfarçado de vovó. Há, então,
um conflito entre ser versus. parecer, visto que a menina não reconhece
289
sua avó. Neste ínterim, o caçador salva ambas as vítimas: avó e menina.
Chapeuzinho Vermelho não chega a ser devorada, a avó é retirada inteira
da barriga do lobo, e o final é feliz e traz uma moral da hisria.
A temática dos contos maravilhosos registrados nos tempos de
ascensão da classe burguesa tem por objetivo educar. Com este
propósito, Chapeuzinho Vermelho ensina à infância as “conseqüências” da
desobediência. Seria essa a proposta educativa presente neste conto
maravilhoso, como pontua Discini:
Conclui-se, disso, que Chapeuzinho Vermelho, a menina tão
delicada e frágil o que é atestado pelo duplo diminutivo,
também ancestral, o que subentende de todos os tempos.
Com esse arcaísmo, o discurso fortalece o caráter de conto
exemplar. Quando a menina é designada por “le petit
chaperon rouge”, não é descrita, não é conhecida por traços
fisionômicos individualizantes. O petit chaperon, o duplo
diminutivo, é a sua identidade, e é arcaico, e é “próprio para
as mulheres velhas”, trazendo consigo a significação de
tempo muito antigo.
está uma menina “exemplar”, que pode ser qualquer
menina, ou, até, qualquer adulto. Um ator, enfim, construído
com traços de generalidade, de imprecisão, para que, nele, o
enunciatário mais facilmente se reconheça, assim como, por
meio dele, mais facilmente aprenda a lição (2004, p. 149).
Depois de descrever, brevemente, o texto-base, passa-se ao
universo “perigoso”, porque repleto de lacunas e sobressaltos de
Guimarães Rosa e sua leitura do conto de tradição oral.
3.4.4 O Sertão Universal como Base para a Leitura
Guimarães Rosa tem o sertão como cenário recorrente em sua
produção literária. Um sertão que é o mundo, segundo as palavras de
Riobaldo, narrador de Grande Sertão: veredas: Enfim, cada um o quer
aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão
está em toda parte” (1986, p. 1).
290
Vale perguntar se a história de Chapeuzinho Vermelho poderia ser
“espacializada” no sertão, visto que, originalmente a menina se perde em
uma floresta densa e fechada própria a outro bioma que não o sertanejo.
Parte-se, contudo, da hipótese de que o texto-base seria apenas uma
estrutura narrativa nas mãos de Rosa, isto é, a estrutura narrativa com
seus contratos e a performance é mantida, a “cobertura” própria ao
plano da expressão seria a grande mudança no conto do autor mineiro.
Na obra Fita Verde no cabelo, o cenário não pistas do sertão
roseano. O sertão universal de Guimarães Rosa está à margem neste
conto, pelo menos no que se refere à caracterização do espaço físico, em
que os acontecimentos narrativos se dão. Essa afirmação é possível
graças a termos como “O pote continha um doce em calda, e o cesto
estava vazio, que para buscar framboesa”. “Divertia-se com ver as
avelãs do chão não voarem [...]”
118
. Avelãs e framboesas deslocam o
cenário sertanejo e aproximam outro espaço, um ambiente de clima
temperado, próprio para tais frutos. O cenário dado pelos frutos distancia
do sertão, mas como este é universal, cria-se a ambigüidade discursiva.
Avelãs e framboesas são conectores de isotopia que conduzem o leitor ao
texto-base. No sertão, deveriam destacar-se cactos, buritis, pequis;
plantas e frutas próprias do sertão mineiro.
Isso, contudo, não descaracteriza a linguagem que consagrou
Rosa, pois seu narrar sertanejo
119
permanece: “Havia uma aldeia em
algum lugar, nem maior nem menor, com velhos e velhas que velhavam,
homens e mulheres que esperavam, e meninos e meninas que nasciam e
cresciam”. O uso de neologismos inspirados nos falares do povo continua
e marca a prodão criativa do autor em questão. Tal escolha lexical e
sintática conduz o leitor, novamente, para o sertão mágico e universal de
Guimarães Rosa.
118
Grifo nosso.
119
Quando se trata do narrar roseano, verificam-se duas questões, uma que se refere ao
linguajar que retoma a fala do homem sertanejo e outra à própria estrutura de diálogo
com outras histórias, de uma estrutura com vazios, de inserções de canções e
referências à tradição popular, oral.
291
A marca do sertão na obra de Rosa é uma constante. Por isso, pode-
se afirmar que essa recorrência lingüística marca o seu estilo, não por meio
das figuras do conteúdo, mas pelas marcas da expressão que levarão ao
discurso poético recheados por aliterações, polissíndetos, metáforas,
comparações, ambigüidades recriadas do sertão de Minas Gerais.
Quanto às duas questões tratadas, a primeira aproxima a obra
original da obra de Rosa, quando o ambiente que abriga a narrativa
apresenta características de países temperados, ou seja, espaço onde
surgiu a obra original; a segunda, no entanto, distancia a obra original de
sua releitura, pois o narrador narra ao modo sertanejo. Sua linguagem tem
características do contar roseano. Marca o estilo do produtor do texto.
A obra Fita Verde no cabelo apresenta, no conteúdo figurativo do
discurso, uma aproximação com o texto-base, enquanto, no plano da
expressão do discurso, o modo de narrar, o estilo do contar propõe um
distanciamento do texto-base. Rosa imprime seu estilo ao narrar, e sua
marca poética faz o sertão emergir do conto maravilhoso.
Como ensina Bakhtin: “A maneira individual pela qual o homem
constrói seu discurso é determinada consideravelmente pela sua
capacidade inata de sentir a palavra do outro e os meios de reagir diante
dela” (1981, p. 197).
A caracterização do cenário, que aponta para um lugar fora do
sertão, mas que é conduzido por um narrar sertanejo, ascende, assim, a
possibilidade intertextual do conto Fita Verde no cabelo. Reafirma-se esse
conto como uma releitura estilizada de Chapeuzinho Vermelho:
Dissemos anteriormente que a estilização resulta de um
acordo entre a enunciação enunciada e o enunciado
enunciado, na medida em que o texto-base, implícito na
enunciação, é assimilado pelo enunciado da variante
intertextual [...]
O texto-base, segundo o que foi dito, fica, também,
ideologicamente confirmado, ainda que uma leve sombra
recaia sobre ele.[...]
Rosa chamou-a nova velha história; nós, estilização
(DISCINI, 2004, p. 216).
292
Havia, ou mesmo há, uma tenncia grande em “cuidar” da
integridade das grandes obras de arte com algo sagrado, intocável. O
movimento modernista do início do século passado no Brasil por
inspiração européia, “dessacralizou” a obra de arte, pois com ela
estabeleceu diálogos, ora parafraseando, ora parodiando ou estilizando,
como será defendido por Discini
120
. Diferentemente do “respeitoao texto
clássico que Bacelar manteve ao ilustrar a obra de Andersen, Rosa toma o
conto maravilhoso como seu, apropria-se dele e o transforma, exercendo
o reflexo modernista em seu discurso.
Verifica-se, então, que Rosa elege um cenário que não
territorializa, mas sim universaliza. A universalização é dada por meio da
inserção de uma voz que o é a sertaneja no seu conteúdo, mas sim em
sua forma: “Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor,
com velhos e velhas que velhavam, homens e mulheres que esperavam, e
meninos e meninas que nasciam e cresciam”.
O conteúdo apresentado é a história de uma menina que
desobedece às ordens da mãe. Ação idêntica ao texto-base, enquanto os
neologismos e as construções sintáticas apontam para uma busca dos
padrões lingüísticos regionais, nacionais e, portanto, frisa-se que a obra
de Rosa está no entrelugar do local e do universal. Essa é uma expressão
utilizada pelo crítico Silvano Santiago, em Uma literatura dos trópicos
(1978), quando focaliza a literatura latino-americana. Para justificar a
referência, cita-se:
O escritor latino-americano brinca com os signos de um
outro escritor, de uma obra. As palavras do outro têm a
particularidade de se apresentarem como objetos que
fascinam seus olhos, seus dedos, e a escritura do texto
segundo é em parte a história de uma experiência sexual
com o signo estrangeiro (1978, p. 21).
120
A autora, em Intertextualidade e o conto maravilho, discute a questão.
293
3.4.5 O Conto de Ensinamento: O Recontar Roseano
Outro aspecto relevante, depois de abordar a questão da
espacialização e o modo de narrar, diz respeito ao que se aprende neste
conto Fita Verde no cabelo, pois também isso foge da proposta do conto
maravilhoso. Enquanto neste, a desobediência leva à aprendizagem do
respeito às normas; naquele, de Rosa, a desobediência “Todos com
juízo, suficientemente, menos uma meninazinha, a que por enquanto.”
leva ao encontro, à descoberta da morte.
Para fundamentar e sustentar essa afirmação, focaliza-se a
personagem antagonista, que no texto-base é o Lobo. Essa personagem
símbolo do medo, do mal, para alguns, é o retrato do masculino, da
sensualidade para outros
121
. Instala-se como mal (mau), no texto-base,
na medida em que, pela desobediência, chega-se a ele. Essa é a moral do
texto-base. Contudo, e a moral na obra Fita Verde no cabelo?
Na voz do narrador roseano, a figura do lobo assume outro sentido,
pois esse perde seu lugar, não será, ele, o antagonista. Este é
figurativizado pela própria consciência da menina. Pode-se dizer que o
“lobo(da outra narrativa) está dentro dela, ou seja, em sua consciência.
O lobo o existe na leitura de Fita Verde no cabelo, pois é a própria
oposição humana: vida versus morte. Daí, que, indo, no atravessar o
bosque, viu os lenhadores, que por lenhavam; mas o lobo nenhum,
desconhecido nem peludo. Pois os lenhadores tinham exterminado o
lobo.” Está, portanto, descartada da leitura de Guimarães Rosa a figura do
Lobo, como um antagonista, ou seja, o opositor que impede o herói de
realizar sua ação.
121
Como em A psicanálise dos contos de fadas, de Bruno Bettelhein.
294
Discini faz a seguinte análise a este respeito:
Observemos um pouco mais o actante do enunciado, Fita-
Verde, que, com Chapeuzinho Vermelho, constituem um
único sujeito com o mesmo percurso narrativo, como foi
dito. Aliás, é bom que se acrescente que, na sintaxe
narrativa, o texto-base é citado com fidelidade. Poder-se-ia
argumentar que, no lugar da manipulação contraditória do
lobo, que é deduzível do texto-base, aqui a
automanipulação contraditória da própria menina, estando
, uma diferença entre a variante e o texto-base. [...]
Acontece que, por meio do jogo dos pressupostos, o lobo
intertextual es citado; faz-se presente pela “ausência”,
diluindo-se, dessa maneira singular, a possível diferença
narrativa (2004, p. 221).
Partindo da análise semiótica desenvolvida por Discini, vale
lembrar que as descobertas interiores, as tomadas de consciência fazem o
percurso dessa menina, que, por vezes, distrai-se, muda de caminho, mas
chega à casa da avó, onde esta está convalescendo, morrendo. E, por fim,
falece na presença de sua neta: “Mas a avó estava lá, sendo que
demasiado ausente, a não ser pelo frio, triste e tão repentino corpo.”
Os momentos de paradas para reflexão, de distração com os
elementos da natureza parecem compor a personalidade da menina. O
que o leitor acompanha metaforizado é o processo de amadurecimento da
personagem “sem juízo, por enquanto para se transformar: “Fita-
Verde mais se assustou, como se fosse ter juízo pela primeira vez.”
Os trechos destacados a seguir apresentam passagens que
evidenciam a leitura do amadurecimento da protagonista:
A decisão:
A aldeia e a casa esperando-a acolá, depois daquele moinho,
que a gente pensa que , e das horas, que a gente não vê
que não são.
E ela mesma resolveu escolher tomar este caminho de cá,
louco e longo e não o outro, encurtoso. Saiu, atrás de suas
asas ligeiras, sua sombra vindo-lhe correndo, em pós.
295
Nessa passagem, apreendem-se as figuras espaciais do acolá (da
ilusão “pensa que vê” e da ignorância que a gente o vê que não
são”) e do (“louco e longo”, perigoso que exige amadurecimento). Há a
transformação do texto-base quando a protagonista opta pelo caminho
mais longo; naquele, a opção é pelo caminho mais curto, mais rápido. A
alteração da figura temporal (longo versus curto) representa a
necessidade de um tempo maior para concluir o percurso, a fim de que,
assim, o actante adquira competência para o seu fazer, que, neste caso, é
tematizado pelo amadurecimento. Ressalta-se que, como no texto-base, a
escolha é da protagonista, havendo, então, um ponto de aproximação:
ambas desobedecem às ordens das mães e optam pelo caminho: “E ela
mesma resolveu escolher tomar este caminho de cá, louco e longo, e não
o outro, encurtoso”.
As distrações:
Divertia-se com ver as avelãs do chão o voarem, com
inalcançar essas borboletas nunca em buquê nem em botão,
e com ignorar se cada uma em seu lugar as plebeinhas
flores, princesinhas e incomuns, quando a gente tanto por
elas passa. Vinha sobejadamente.
O narrador constrói a sentença a partir do recurso poético da
aliteração, na repetição sonora do fonema /v/. A menina se perde na
brincadeira, no lúdico, na infância. A protagonista permanece criança. Este
é um obstáculo, evidente, para atingir a maturidade.
A demora: “Demorou, para dar com a a em casa...”
Assim, termina o percurso de aquisição de competência do sujeito,
que será legitimado somente pela perda da fita verde do cabelo. Aquela
fita que a identifica, nomeia, que é verde, ou seja, não está madura.
A falta de prontidão é representada simbolicamente pelo verde:
“Aquela, um dia, saiu de lá, com uma fita verde inventada no cabelo”; a
personagem Fita-Verde perde seu adereço (a fita verde) ao longo da
travessia, ou seja, deixou de estar/ser “verde” para amadurecer e, assim,
296
concluir seu percurso narrativo: “[...] de ver que perdera em caminho sua
grande fita verde no cabelo atada”.
Retomando a questão, o antagonista não está figurativizado fora
do protagonista, mas nele mesmo, como apontado anteriormente. É um
processo que se dá na própria consciência da personagem. Um
crescimento/amadurecimento individual. O que Discini analisa é que, em
“ausência”, o lobo está presente e, na análise que ora se apresenta, é a
própria consciência da menina.
Há, pois, dois textos distintos: um conto maravilhoso (narrativa-
base), que tem por proposta educar, e uma narrativa que não tem como
preocupação a educação. Com isso, no primeiro, é importante separar
bem e mal; no segundo, na narrativa moderna, eles coexistem e
compõem a personalidade do indivíduo. A identidade do sujeito se revela
por suas escolhas. As diferentes tomadas de posição da protagonista entre
as duas versões revelam uma postura diante da maneira de persuadir o
leitor. Segundo Bruno Bettelhein, em A psicanálise dos contos de fadas,
essa distinção ocorre da seguinte maneira:
É característico dos contos de fadas colocar um dilema
existencial de forma breve e categórica. Isto permite à
criança aprender o problema em sua forma mais essencial,
onde uma mais complexa confundiria o assunto para ela. O
conto de fadas simplifica todas as situações. Suas figuras
são esboçadas claramente; e detalhes, a menos que muito
importantes, são eliminados. Todos os personagens são mais
picos do que únicos.
Ao contrário do que acontece em muitas estórias infantis
modernas, nos contos de fadas o mal é o onipresente
quanto a virtude. Em praticamente todos os contos de fadas
o bem e o mal recebem corpo na forma de algumas figuras e
de suas ações, que bem e mal são onipresentes na vida e
as propensões para ambos estão presentes em todo homem.
É essa dualidade que coloca o problema moral e requisita a
luta para resolvê-lo (2000, p. 15).
297
Nota-se que, no conto de fadas, a necessidade da distinção em
duas figuras (menina e lobo), na narrativa moderna, de Rosa, o conflito
é interno, ou seja, o necessidade de separá-lo, bem e mal existem,
em luta, no próprio homem.
Os aspectos apresentados, cenário, ausência do lobo e escolha do
caminho mais longo, distanciam as narrativas (base e releitura), contudo,
o percurso trilhado pelas protagonistas continua em relação de
manutenção, no que diz respeito às etapas percorridas. Essas podem ser
suprimidas à seguinte seqüência narrativa: contrato (mãe filha); quebra
de contrato novo percurso estabelecido (novo contrato firmado);
surpresa /conseqüências (sanção negativa).
Ambas as protagonistas têm uma missãolevar doces, frutas para
a avó que esdoente atribuída pela mãe, que reforça a necessidade da
obediência devem seguir o caminho mais seguro: uma o mais longo,
tradicional; outra, o mais curto, moderna. Como foi destacado, as
meninas são caracterizadas por não terem juízo. Esse adjetivo autoriza a
coerência dos acontecimentos na narrativa, pois a personalidade das
personagens antecipa a possibilidade de desobediência. Posto que, as
duas desobedecem às ordens das mães.
As duas protagonistas, no lugar do juízo que lhes falta, levam algo
na cabeça, um enfeite, uma proteção. Esses elementos têm destaque,
visto que as meninas são nomeadas por esse adereço: Chapeuzinho
Vermelho e Fita-Verde
122
.
O texto Fita Verde no cabelo nasce de Chapeuzinho Vermelho. A
relação de complementação do ponto de vista das cores das figuras está,
sem vida, posta em questão. Na cartela de cores” o vermelho opõe-se
e complementa o verde, reforçando a ligação entre os textos e, ao mesmo
tempo, distanciando-os.
Dessa reflexão, afirma-se a perspectiva temática de Fita Verde no
cabelo como a descoberta ou o contato com a morte. Sobre essa
122
Outra interpretação para a opção da cor em Fita Verde é a seguinte:
“Anagramaticamente os verbos fitar e ver estão presentes em Fita Verde e mais uma
vez nosso olhar é requisitado para ver/ler uma nova travessia [...]” (SOUZA, 2003).
298
abordagem, a obra oferece duas possibilidades de interpretação. Na primeira
e mais comprovável, a morte seria de um ente próximo, a avó; mas, não
como descartar, como segunda possibilidade, a morte da própria inocência
da menina
123
: “Mas agora Fita-Verde espantava, além de entristecer-se de
ver que perdera em caminho sua grande “Fita Verde no cabelo atada [...]”.
Na narrativa de Rosa, o percurso como mefora do amadurecimento da
menina, que descobre a morte, condição daquele que vive.
Com relão aos objetos, em Chapeuzinho Vermelho, o chapéu
envolve a menina, agasalha, quiçá protege; em Fita Verde no cabelo, a
fita é apenas um adorno que se desprende no percurso da garota. Há, como
se nota, uma diferença relevante entre os objetos um acompanha,
envolve; o outro enfeita e se perde. O primeiro tem uma função essencial, o
segundo é provisório, acessório, um estado que pode ser alterado. Aí, é
possível afirmar que o objeto é uma mefora do grau de proteção sobre as
meninas. Chapeuzinho Vermelho é mais protegida, agasalhada, enquanto
Fita-Verde esligada apenas por uma fita à autoridade do adulto.
A desobediência às ordens das mães, para que seguissem o
caminho mais seguro, é um tema de aproximação. As duas meninas
quebram um contrato estabelecido. Chapeuzinho Vermelho e Fita-Verde
escolhem o caminho mais perigoso, porém é o que possibilita as
descobertas. Todavia, sobretudo, o que há é uma afirmação como sujeito
autônomo: agora quem escolhe os caminhos sou eu! Eis o
amadurecimento e autonomia e, por isso, elas devem sofrer as
conseqüências de seus atos.
Quando chegam, enfim, à casa da avó, o susto com o que
encontram aproxima as histórias novamente, pois os diálogos são
bastante parecidos:
123
Esta leitura poderá ser justificada a partir da análise do diálogo com a imagem. Do
amadurecimento, chega-se à morte: as os (velha/nova) encontram-se, na
retomada, talvez renascentista de Michelângelo. Na cena seguinte, a menina está
entre anjos, referência ao barroco; em seguida, a personagem aparece só, retomada
da arte contemporânea e, na última cena, a aldeia se desfaz pelos ares, sugestão
surrealista. Na leitura das figuras, tem-se o sofrimento, a solidão, a passagem para
outra fase – o amadurecimento.
299
Em Chapeuzinho Vermelho:
Então ela foi aa cama da avó e abriu as cortinas. A vovó
estava deitada com sua touca cobrindo parte do seu rosto
e, parecia muito estranha...
-Oh, vovó, que orelhas grandes a senhora tem! Disse então
chapeuzinho.
Em Fita Verde no cabelo:
Mas agora Fita Verde se espantava, além de entristecer-se
de ver que perdera em caminho sua grande “Fita Verde no
cabelo” atada; e estava suada, com enorme fome de
almoço. Ela perguntou: /
- Vovozinha, que braços o magros, os seus, e que mãos
tão trementes! /
- É porque não vou poder nunca mais te abraçar, minha
neta... – a avó murmurou /
-Vovozinha, mas que lábios, tão arroxeados! /
- É porque não vou nunca mais poder te beijar, minha
neta.... - a avó suspirou. /
Vovozinha, e que olhos tão fundos e parados, nesse rosto
encovado, pálido? /
- É porque o te estou vendo, nunca mais, minha
netinha... – a avó ainda gemeu.
Apesar de diálogos similares, as descobertas são diferentes. Na
primeira, a protagonista terá de viver as conseqüências de seus atos; na
segunda, a menina terá de viver com a condição humana: a morte. O
conto de Rosa oferece uma nova maneira de ver os conflitos humanos que
acontecem não exteriormente, mas também, em grande medida, no
interior humano.
300
3.4.6 Vozes da Imagem: O (Re)Contar de Mello
Roger Mello é convidado a ilustrar o conto Fita Verde no cabelo:
nova velha estória, de Guimarães Rosa, em edição comemorativa da
editora Nova Fronteira, como anteriormente observado.
Nesta edição, o ilustrador vai propor um diálogo com a palavra,
que remete tanto ao seu conteúdo quanto à sua expressão. As interações
tangenciam tanto a história contada por Rosa como a leitura pessoal do
conto maravilhoso e o texto-base do contar do autor mineiro.
A proposta de trabalho de Roger Mello é estética, poética, por isso
agrega novos sentidos ao texto verbal, isso é importante demonstrar.
Vale, pois, identificar como essas imagens compõem com as palavras um
todo de sentido, gerando um projeto gráfico coeso.
Por revelar a preocupação de ordem estética, Mello instaura vozes
neste discurso: a intertextualidade e a interdiscursividade são a tônica de
seu projeto artístico.
Assim, esclarece-se que a análise entende a organização das vozes
da seguinte maneira: a primeira voz inserida na narrativa é a da releitura de
Guimarães Rosa, ou seja, existem traços nas imagens que revelam a relação
com o texto verbal de Rosa; a segunda voz diz respeito ao texto-base,
figuras que remetem à história-base Chapeuzinho Vermelho; a terceira
compõe um misto de vozes que se pode entender como as diversas leituras
realizadas ao longo do tempo em torno da narrativa-base, por exemplo, a
alise psicanalítica proposta por Bruno Bettelhein, em que o estudioso
propõe um paralelo do percurso da protagonista com a iniciação sexual das
meninas adolescentes; e, finalmente, a quarta voz é aquela em que
narrativa visual se apresenta como um discurso e, por isso, existe a
proposta de interdiscurso na ppria maneira de produzir as imagens.
Todo esse complexo jogo de vozes vem à tona por meio das figuras
e dos temas revelados no nível discursivo do sistema visual e também no
plano da expressão. Explicita, pois, a organização e distinção de vozes
para sustentar a proposta analítica:
301
Voz da imagem – palavra da narrativa de releitura (Rosa):
Palavra: a morte “Mas a avó estava lá, sendo que demasiado
ausente, a não ser pelo frio, triste e tão repentino corpo.”
Imagem: a menina com o cabelo sobre o rosto, ajoelhada. Esta
cena reflete o vazio, não há fundo na imagem. A figura da avó tamm
está ausente. A menina é o foco da cena, que está entrecortada pelos fios
que alinhavam a narrativa
124
. A protagonista realiza seu percurso de
amadurecimento sozinha, não antagonista. É um percurso
individualizado, como já foi discutido.
Figura 3.56 – Voz de Rosa
Palavra: o modo de narrar sertanejo - “Então, ela, mesma, era
quem se diziam:
- Vou a vovó, com cesto e pote, e a ‘Fita Verde no cabelo’, o tanto
que a mamãe mandou.”
124
Mais adiante, a análise deter-se-á aos fios que entrecortam as cenas.
302
Imagem: No canto da página, abaixo do texto, há uma menina
com traços verdes acima da cabeça como se fossem rasuras, uma vez que
não está realistamente atada, muito menos é uma fita propriamente dita.
O cenário que envolve a menina é uma mata, um pouco mais
atrás, em perspectiva, existe um animal que se assemelha à
jaguatirica
125
, animal próprio ao bioma brasileiro e da América Meridional.
A menina usa um vestido despojado de adereços ou bordados e está
descalça, figura característica do viver sertanejo. Esses elementos apóiam
a afirmação sobre o reflexo do narrar roseano inserido na voz da imagem.
Figura 3.57 – Voz de Rosa pela imagem
Voz da imagem – palavra do texto-base (Chapeuzinho Vermelho):
Palavra (o diálogo similar):
a) “- Vovozinha, que braços tão magros, os seus, e que mãos tão
trementes!
- É porque não vou poder nunca mais te abraçar, minha neta... a avó
murmurou.
125
Segundo o dicionário Aurélio: “jaguatirica: Mamífero carnívoro, fissípede, que atinge
cerca de 85 cm de comprimento e 40 cm de altura. Cor ruivo-amarelada, com manchas
redondas orladas de preto; na nuca apresenta cinco ou seis estrias pretas. Ocorre em
todo o Brasil e América Meridional; vive em matas e banhados” (1988, p. 374).
303
Figura 3.58 - Voz do texto-base
126
A imagem mostra os dois braços: da menina (mais baixo), da avó
(mais acima) em nítida comparação com a mão do lobo (lobo=morte). O
verde é a sombra do lobo ou da própria menina, visto que esta é nomeada
como verde. Eis a ambigüidade posta anteriormente em palavra e, agora,
em imagem. Nesta cena figura versus fundo nos termos de Wölffing,
nele é possível visualizar o chão típico do sertão (árido, seco), mas
também rachaduras do envelhecido, ou até formas abstratas e, por isso, a
abertura de possibilidades interpretativas, reiterando a ambigüidade como
um recurso utilizado pelo sistema verbal e pelo visual. Além da
ambigüidade, é possível retomar a cena de Deus em comunhão com o
filho, visto o destaque aéreo das mãos e braços.
b) -“Vovozinha, mas que lábios, tão arroxeados!
- É porque não vou nunca mais poder te beijar, minha neta....
- a avó suspirou.”
126
Nesta imagem, da obra Ver de Ver meu pai, de Celso Sisto, com ilustração de Roger
Mello, por meio da comparação, é possível visualizar o chão do sertão.
304
Figura 3.59 – Arquitetura colonial de Minas Gerais (luminária/guarda-corpos)
Figura 3.60 – Movimento ascendente e descendente das ruas de Minas Gerais
Cena que remete à corrente artística do hiper-realismo
127
, em que as
figuras de luminárias (realistas) e guarda-corpos (realista) são identifiveis
como característicos da arquitetura colonial mineira, cenário do autor
Guimarães Rosa. Esses elementos invadem as imagens alterando a isotopia
com relação ao texto-base e inaugurando uma nova com relação aos dados
sobre o próprio autor do conto. Além disso, a disposição das figuras no plano
altera a perspectiva realista, gerando, mais uma vez, ambigüidades.
Também o perfil da a, mais uma vez, aparece em junção ao do
lobo, portanto, metáfora e metomia, neste momento, unem-se para
compor a cena. Aquela por similaridade e essa por contiidade, como
se sabe.
127
O hiper-realismo virá à cena mais adiante.
305
c) “ – Vovozinha, e que olhos tão fundos e parados, nesse rosto encovado,
pálido?
- É porque não te estou vendo, nunca mais, minha netinha... a avó
ainda gemeu.”
Figura 3.61 – Anjos barrocos
Apesar de a voz da avó estar expressa no sistema verbal, ela não
aparece representada na imagem. A referência aos anjos (próximos aos
anjos barrocos, mais uma influência da arquitetura mineira, agora de
cunho religioso) insere a avó em outro plano, a morte, o u. Os anjos
têm dimensões aumentadas em proporção ao tamanho da protagonista e,
portanto, rompe-se a proporcionalidade realista, na medida em que eles
ocupam toda a cena e saem de uma constrão, sendo, por isso, possível
associá-los aos anjos barrocos que pertencem às igrejas mineiras, como
apresentado. Um universo pelo outro, impõe-se a metáfora visual,
afirmando este sistema com os mesmos recursos utilizados pelo sistema
semiótico verbal.
306
Voz da imagem – palavras das diversas leituras
Palavra: leitura psicanalítica- o lobo é visto como homem e
remete à iniciação sexual da menina - “Daí, que, indo, no atravessar o
bosque, viu só os lenhadores, que lenhavam; mas o lobo nenhum,
desconhecido nem peludo. Pois os lenhadores tinham exterminado o lobo.
Figura 3.62 – Homem-lobo
Imagem: na página da esquerda, seres são metade homens,
metade lobos. Os rax estão nus e os músculos são bem delineados,
explicitando características sensuais, a menina, por sua vez, não os
encara, mas os observa de soslaio, o que implica, pela expressão facial,
um interesse dissimulado ou proibido. Os corpos, agora, não remetem ao
barroco que tem como característica a desproporcionalidade em oposição
à escultura clássica, em que a simetria é uma exigência, como revela
Davi, de Michelangelo, por exemplo.
307
Figura 3.63 – Olhar de soslaio
A voz da imagem – referências discursivas
No verbal e na relação verbal-visual, há a retomada de vozes
textuais, criando um estilo de contar. Tal estilo pode ser verificado
também entre discursos visuais, se se pensar que, além dos diálogos
entre verbal e visual, um entre discursos, maneiras de fazer, como
trabalhado em análises anteriores deste estudo.
O discurso de Mello, ao longo de sua produção de literatura infantil,
define-se pela “metamorfose” de estilos, corroborando Rui de Oliveira em
afirmação anterior
128
.
Neste momento da análise, é necessário retomar a discussão sobre
o estilo das ilustrações de Mello; para isso, exemplifica-se a metamorfose
de estilos do autor, em quatro trabalhos, A flor do lado de , Griso, o
unicórnio, Desertos e Jardins, nesta ordem - cronológica:
128
Em entrevista, Rui de Oliveira declara que o estilo, ou melhor, “modo de fazer” da
ilustração é determinado pelo que sugere a narrativa (OLIVEIRA, Rui de. Artigo online.
Como vejo a arte de ilustrar e as intenções do meu trabalho. Disponível em:
<http://www.docedeletra.com.br/ruideoliveira/>. Acesso em: 15 de dez. 2006).
308
Figura 3.64 – A flor do lado de lá Figura 3.65 – Griso, o unicórnio
Figura 3.66 – Jardins Figura 3.67 – Desertos
O artista, nas imagens para a obra Fita Verde no cabelo, não
retoma um estilo utilizado anteriormente, mas antecipa um que será
empregado em Ver de ver meu pai, de Celso Sisto, da mesma editora
(Nova Fronteira), como é possível observar:
Figura 3.68 – Ver de ver meu pai, Celso Sisto
309
As referências (figuras) e a técnica empregada (expressão)
convocam o realismo, mas um realismo próximo do contar roseano, que
extrapola as exigências puramente realistas para deflagrar a situação,
como no realismo mágico ou nas artes plásticas com o hiper-realismo.
Se forem pensadas as ilustrações realistas, dois exemplos m à
meria:
Figura 3.69 – La composición Figura 3.70 – Irmãos Pretos
, portanto, uma diferença entre as imagens apresentadas em
La composición e Irmãos Pretos e as ilustrações de Mello, como em A
flor do lado de lá, que tamm é distinta de Jardins ou Desertos, como
foi demonstrado neste trabalho de tese. Em A flor do lado de lá,
recorre-se a elementos lúdicos feições do animal e traços
arredondados na flor; em Desertos/Jardins as imagens criam os
ambientes descritos (a saber o pprio deserto e o jardim) e, por isso,
tornam-se quadros. Em Fita Verde no cabelo e nos exemplos dados em
La composicn ou em Irmãos Pretos, há a distinção de outro gênero do
discurso, que Salisbury denominou livro ilustrado:
310
En el libro-álbum, casi toda la comunicación corre a cargo de
las imágenes, y existe una dependencia entre las palabras e
imágenes. El funcionamiento de los libros de cuentos es
completamente distinto. En su caso, lo primero son las
palabras, que pueden haber sido escritas sin pensar en
ninguna ilustración. El hecho de que la ficción para adultos
carezca de ilustraciones suele justificarse con el argumento
de que las imágenes se interponen entre el escritor y el
lector, y distorsionan el proceso personal de evocar
imágenes mentales. La buena ilustración, tanto si es para
adultos como si es para niños, debería ser un acicate visual,
una contrapartida visual del texto. Su función es aumentar la
comprensión del lector y su disfrute (2005, p. 94-95).
Esta distinção entre o livro-álbum e o livro ilustrado é lida, pois
apresenta dois pontos discutidos por esta análise: 1) a necessidade da
imagem em um texto que prescinde deste sistema semiótico; 2) o público
adulto como leitor pretendido pelo livro ilustrado, nos termos apresentados
por Salisbury. Além disso, a relação descrita entre palavra-imagem se aplica,
exatamente, à obra de Mello, a saber – a ampliação e a ambiidade:
En puridad, ningún texto de imaginación debería “necesitar”
que lo ilustren. La función de las imágenes no es repetir ni
aclarar las palabras. Sin embargo, las imágenes pueden
enriquecer la experiencia del lector y estimular la
sensibilidad del niño. [...]
Hace poco, uno de mis alumnos tuvo la inspiración de
realizar una serie de dibujos llenos de fuerza basados en la
visión, aparentemente cotidiana, de un solo guante tirado
en una cuneta. Este tipo de ambigüedad y sugestn
constituye una parte importante de la ilustración de
cuentos (2005, p. 95 -97).
Esses dois elementos (ampliação e ambigüidade) são fundamentais
à obra poética e exigem, obviamente, uma leitura mais complexa, em que
metáforas e metonímias são mais profundas à trama discursiva. Talvez
isso possa revelar que a obra em análise, de fato, exija um público adulto.
Por ora, abandona-se a questão, mas ela permanece inquieta.
311
As imagens narrativas apresentadas por Mello dialogam com alguns
movimentos artísticos, como o hiper-realismo ou o surrealismo. Sustenta-
se essa afirmação a partir das seguintes cenas:
a) Na primeira cena-exemplo, há um jogo de luz e sombra
representado nas figuras de uma porta, em um aparador e em um vaso
vazio. A dobra do livro é aproveitada para fazer a dobradiça da porta, o
que revela uma preocupação com detalhes realistas
129
. Nesse quadro
desenhado pelo artista brasiliense, percebe-se a sugestão do movimento
hiper-realista
130
. Esse movimento tem as seguintes características:
- Aproximación nueva y radical al mundo real;
- Carácter distanciado y frio;
- Afirmación de la realidad mediante sus plasmación tal
como la vería una câmara fotográfica (Disponível em:
<www.arteuniversal.com>. Acesso em: 10 jul. 2008).
Figura 3.71 – Figura Hiper-realista
129
Vale estabelecer um paralelo entre a utilização da dobra da página e dos grampos em
A Bela Borboleta, de Ziraldo, Personagem encalhado e Cena de rua, de Angela Lago, e
a obra de Mello, nesta última, não há a linguagem voltada ao próprio código, mas a
utilização do objeto para gerar o efeito de “ilusão realista”.
130
Este movimento apareceu pela primeira vez na exposição “The photographic Images”
em Nova York, em 1966. Ganhou foa na década de 70, com o “Documeta 5 de
Kassel”, em 1972.
312
Figura 3.72 – Edward Hopper
Na primeira imagem de Hopper, há a monocromia de preto e
branco, como em Mello; na segunda, os destaques estão nas sombras
delineadas na parede, como a que aparece abaixo do aparador,
reforçando a idéia de referência ao hiper-realismo, movimento, no qual a
obra de Hopper se insere.
Nas imagens a seguir, a similaridade está na presença surrealista
(apesar de a obra exemplo pertencer ao hiper-realismo) das borboletas
(avelãs ou galhos de árvores) e também das linhas verticais, em Fita
Verde, e das linhas horizontais na imagem ao lado para destacar a
realidade (ou efeito de sentido de) da construção em madeira.
Figura 3.73 – Hiper-realismo Hooper
313
b) Com relação ao outro movimento, a última cena do livro revela
o surrealismo
131
. Nela, a menina es no alto de uma montanha e a
aldeia, figura que abre a narrativa visual, desfaz-se pelos ares. É
interessante notar que não há palavra nessa cena. O conto de Guimarães
Rosa chegou ao fim na página anterior. A narrativa visual, porém,
continua. Esse recurso evidencia que a ilustração não é mero adorno, mas
conduz a uma proposta estética de agregar sentido à narrativa verbal,
criando metáforas e ambigüidades próprias à linguagem poética, como
apontado anteriormente. Neste caso, até ampliando o texto verbal que
acabou e segue a coerência narrativa proposta por Rosa.
Figura 3.74 – Cenas Surrealistas
3.4.7 Encontro de Vozes
Deixou-se de lado, até então, outro recurso utilizado pela narrativa
visual. Em todas as páginas, aparecem fios, linhas que ora estão soltas,
ora envolvem o texto verbal, parecendo os balões das histórias em
quadrinhos. Esses fios conduzem à leitura de uma metáfora: o contar.
Muitas vezes, o contar é associado ao tecer na literatura infantil, o são
131
Este conceito já foi definido anteriormente.
314
raras as associações entre escritor e tecelão
132
. Eis também uma
referência à tradição oral, em que uma história lembra a outra,
constituindo uma rede de histórias interligadas e, porque o, um
emaranhado de vozes como quer sustentar esta análise.
O texto visual es disposto da seguinte forma na gina: na parte
superior, está o texto verbal circundado por fios (linhas) que lembram os
fios das histórias ou o “fio narrativo”, expressões que legitimam a
associação descrita acima. Esses fios o permanecer em todas as ginas,
a exceção da última, em que a protagonista está livrede tudo, até de sua
fita verde. Ela, finalmente, amadureceu e completou o seu percurso.
Figura 3.75 – Situação inicial Figura 3.76 – Situação final
Outro recurso constante no modo de narrar do visual é que muitas
das imagens do livro deixam entrever o seu fazer. Tem-se a enunciação
eninciada. O material é o pastel preto sobre o papel branco, e, em alguns
momentos, a interferência do verde. A oposição se entre figuras em
processo versus finalizadas que deixam aparente o traçado do pastel
sobre o papel; há uma gradação entre a mais finalizada e a menos
finalizada, como o quadro abaixo apresenta
133
:
132
Obras como As mil e uma noites e Feito à o, de Lygia Bojunga Nunes, dentre
outras, utilizam a mesma metáfora.
133
Este quadro não revela uma ordenação temporal, porque ela não existe na obra.
315
Acabada
Em processo
Inacabada
Quadro 3.1Gradação acabada versus inacabada
As imagens presentes nesta obra vão, por um lado, criar o efeito
de proximidade com a realidade, apagando as marcas da enunciação, e,
por outro, distanciar-se do efeito de sentido de realidade, deixando-se ver
a enunciação, rompendo o encanto da ficção. Dessa forma, a
metaficção nos desenhos de Mello.
Vale pontuar, ainda, que a capa retoma o estilo empregado por Mello
em outras obras, tais como A flor do lado de lá ou Ver de ver meu pai.
A imagem da menina de olhos baixos é retirada do miolo da obra.
Além disso, a concepção gráfica da capa envolve frente e contracapa e
deve ser observada como um todo que compreende o objeto-livro e
antecipa a narratividade
134
. A capa é caracterizada como anafórica, como
será desenvolvido mais adiante.
134
Pontua-se que este tipo de capa difere daquela apresentada na obra Sebastião. Aquela
impõe duas narrativas interligadas, como foi demonstrado, nesta, apenas uma
narrativa está envolvida pela capa.
316
Figura 3.77 – Estratégia recorrente nas capas
Ainda, a sombra verde cria metáforas que ora são a sombra da
menina, ora a do lobo, ora a da avó, ora a fusão entre as personagens
lobo=menina; lobo=avó/presença da morte:
Figura 3.79 - Sombra menina
Figura 3.80 – Sombra menina=lobo
Figura 3.78 - Sombra lobo
(presença da morte)
317
Além da metáfora desenhada pelo verde, uma ambigüidade
espacial proposta pelas imagens, não se sabe se esem um ambiente
interno ou externo, como pode ser demonstrado pelas cenas a seguir:
Figura 3.81 – Ambigüidade espacial
Assim, demonstrou-se que, a exemplo dos fios, as vozes
discursivas envolvem a trama discursiva, tecendo um novo texto impresso
pelo projeto gráfico que une palavra e imagem:
O texto é o que se vê, um campo, um deserto. A análise
semiótica contribui para que se veja, sob o solo do discurso,
um subsolo movediço de relações dinâmicas que,
construindo as diferenças do próprio solo, dão-lhe
significado. O deserto significa em oposição a um campo
gramado (DISCINI, 2004, p. 82).
Interno ou externo: floresta ou
casa?
A avó já é lobo=morte
Interno ou externo: igreja ou
céu?
318
3.4.8 Re(contando) o Emaranhado de Vozes: Um Livro para
Crianças
Resta, finalmente, responder a quem se destina a obra em análise.
Para isso, recorre-se à voz de Norma Discini e de outros pesquisadores
por ela citados a fim de justificar que a arte não determina a faixa etária,
e que a poesia é fundamento da ludicidade:
Rosa é o mais rico de todos os textos deste corpus,
portanto, o mais lúdico, pelo próprio percurso temático da
imprevisibilidade, que se realiza num jogo de figuras
inéditas, pela musicalidade, pelas aliterações, pela
ambigüidade, pelo sentido do inacabado, pelo indizível, pelo
poético, enfim. Justamente ele, que não parece ser conto
infantil, é o que deixa livre um observador-interno-menina
para que este possa emergir do tom narrado; logo, Rosa é o
que mais se aproxima, apesar de não parecer, desse
universo infantil. [...] Castagnino acrescenta: “A literatura é
um jogo espiritual; nela, as coisas têm outro aspecto que na
vida habitual’ e, quando está carregada de lirismo, até pode
mover-se em meios alógicos. [...] O poeta joga da mesma
forma que a criança. Por isso se disse, com grande verdade,
que para captar as essências poéticas é preciso ser capaz de
revestir o espírito como essa magia infantil, é preciso virar
criança e recuperar a disposição para penetrar no mundo do
maravilhoso. (2004, p. 240)
Eis a prosa poética de Rosa inserindo a criança num ambiente que
é todo dela. Mello utiliza os mesmos mecanismos da linguagem poética
em suas linhas realistas, hiper-realistas, surrealistas. Este é um rico
projeto gráfico para dar à criança aquilo que ela deseja: a brincadeira
para o desenvolvimento. Assim, encerra-se a análise como a definição de
poesia para crianças de José Paulo Paes:
[Poesia] Podia ser a linguagem da surpresa diante dos
mistérios do mundo, o mundo fora e o mundo dentro da
gente; a linguagem em que eram formuladas as grandes
perguntas fundamentais acerca do sentido da vida e da
morte (1996, p. 11).
319
3.5 DESENCONTRO PARA REVELAR ENCONTROS: VIZINHO, VIZINHA
Soledad,
Aqui están mis credenciales,
Vengo llamando a tu puerta
Desde hace un tiempo,
Creo que pasaremos juntos temporales,
Propongo que tú y yo nos vayamos conociendo.
(Jorge Drexler)
3.5.1 As Apresentações
Cidade grande: prédios, antena paralica, asfalto e pessoas... Duas
personagens são destacadas do fundo e seguem em dirões opostas.
A cidade compõe o fundo da cena. A cor predominante é o
amarelo. Um, dentre muitos edifícios, tem dois andares com sacada e está
em destaque pela cor rosa. Amarelo e Rosa são as cores em oposição na
obra em análise.
Os outros prédios desta cidade o delineados em cor preta e o
fundo vaza pelos contornos e os faz amarelos. A rua, que também é uma
linha da terra, é preta. Em cores, a obra se apresenta ao leitor.
Figura 3.82 – Capa
Contornos
Linha da terra
320
As duas personagens destacadas dão a impressão de terem sido
coladas, ou seja, pertenciam a outros contextos, mas foram retiradas e
inseridas neste fundo que acabou de ser descrito
135
, visto que ela
apresentam técnicas plásticas distintas da utilizada no fundo da cena.
Elas (Vizinho, Vizinha) são coloridas, e se percebem traços de estilos
distintos com relação às formas corporais e as expressões faciais, cada
uma tem o seu estilo”, a sua individualidade. Essa estratégia é reiterada
pela técnica empregada, a saber: no homem, desenho com marcador e
preenchimento em aquarela, na mulher, óleo, como pode ser comprovado
pelo detalhe da cena:
Figura 3.83 – Detalhe das personagens
Estas personagens, além das cores, são impregnadas pela técnica
utilizada: mista. González e Zaparín apontam para a tendência em utilizar
técnicas mistas nos álbum contemponeos, no artigo intitulado
“Entusiastas de la fusión – Aproximaciones al lenguaje de los álbumes”:
Parece que lo que ahora pide el sofisticado mercado
occidental es la combinacn de elementos, y nada más. Lo
importante es que por encima de eso nos encontramos con
cualificados recursos gráficos y narrativos, propios de una
135
Relação similar à descrita na análise da obra Sebastião, de Manuela Bacelar.
321
manera de hacer y un género cada vez más consolidados
(2005, p. 10).
Há, então, uma indagação: por que as personagens não revelam
um estilo próprio, personalizando o artista que as produziu e
uniformizando o projeto gráfico, como nas outras obras analisadas por
este trabalho de tese? A questão se finca como “pedra no meio do
caminho”, como dizia o poeta. Entretanto, segue-se.
Pelo sistema verbal, a capa apresenta, nesta ordem: os autores,
Graça Lima, Mariana Massarani e Roger Mello; o nome da editora,
Companhia das Letrinhas; e o título, Vizinho, Vizinha (dois substantivos
separados por vírgula
136
). Além disso, vale pontuar que a imagem da
capa continua na contracapa, a estratégia como um estilo, “modo de
fazer” do artista Roger Mello
137
.
Figura 3.84 – Contracapa e capa
A página guarda apresenta fundo preto e figura (desenho) branca.
O desenho é de uma cidade, o traço empregado é estilizado, pode-se dizer
até caricatural. Isso pode ser comprovado por quadras absolutamente
definidas, um patinho na Lagoa, o naviozinho no mar, entre outros. Uma
136
Este sinal gráfico será analisado ao longo do estudo, pois caberia outro conectivo
(palavra) em seu lugar: e, por exemplo. Caberá à investigação revelar o efeito de
sentido gerado pela opção.
137
Tal afirmação é possível, visto obras citadas por este estudo, por exemplo: A flor do
lado de lá, Fita verde no cabelo – nova velha estória.
322
busca de identificação com o blico-leitor ou um traço do artista? Outras
questões que surgem para análise.
Ainda, é possível identificar alguns símbolos e monumentos que
revelam de que cidade se trata: o mar à esquerda, mais ao centro Lagoa
(Rodrigo de Freitas), morros, chafariz, monumentos, Maracanã, Jardim
Botânico, a Candelária, os Arcos da Lapa. Logo, diante dos olhos está a
cidade maravilhosa: o Rio de Janeiro.
Figura 3.85 – Página de guarda
Alguns esclarecimentos para análise surgem na capa: a história
será protagonizada por um Vizinho e por uma Vizinha de um prédio na
cidade do Rio de Janeiro. Como em outros projetos gráficos
138
, a capa
deve ser amplamente utilizada na seleção ou não de uma determinada
obra pelo agente de mediação; o que se quer afirmar é que o projeto
138
Como demonstrado na análise das obras neste estudo.
323
gráfico inclui a capa, se ela não estiver em sintonia com o miolo, pode ser
um critério para a desvalorização da obra.
Também, sobre a produção, a página de rosto reitera os dados
apresentados. Em cor de rosa, a página de rosto traz uma figura menor
(como se fosse um logotipo) do prédio destacado na capa, e o sistema
verbal, mais uma vez, revela o título: Vizinho, Vizinha - texto de Roger
Mello; ilustrações de Graça Lima, Mariana Massarani; participação especial
(com letras menores) Roger Mello. Ainda, abaixo do logotipo está o nome
da editora: Companhia das Letrinhas.
Caracteriza-se a página de rosto como bastante tradicional, exceção
feita à opção de cor, pois, no padrão, a opção é por preto e branco.
Figura 3.86 – Página de rosto
Antes de passar ao enredo, vale ressaltar que a normalidade no
encontro autor do sistema verbal, autor do sistema visual, nos livro-
álbuns, foi rompida, pois a obra em questão apresenta um autor verbal,
dois autores das imagens e ainda uma participação especial na imagem,
aliás, do próprio autor do texto verbal. Assim, percebe-se que Vizinho,
Vizinha será uma produção em equipe
139
. Denomina-se equipe, pois, nas
análises anteriores, havia um diálogo entre o sistema verbal e o visual,
139
Estes autores (Mariana Massarani, Graça Lima e Roger Mello) o proprietários de uma
empresa de trabalhos gráficos chamada Capa Dura em Cingapura, portanto, estão
habituados ao trabalho conjunto.
324
como foi demonstrado, ora com um único autor, ora com dois autores,
cada um responsável por um dos sistemas semióticos presentes no
objeto-livro.
Agora, nasce uma nova relação: mantêm-se os diálogos entre os
sistemas semióticos, no entanto, na obra que se apresenta, é lícito
verificar se o autor e o estilo se mostram na enunciação ou se não importa
para análise saber que são três autores do sistema visual, pois este fato
não agregaria sentido ao enunciado? Como afirma Bakhtin, em A estética
da criação verbal:
De fato, o artista trabalha a língua mas não como língua:
como língua ele a supera, pois ela não pode ser interpretada
como língua em sua determinidade lingüística (morfológica,
sintática, léxica, etc), mas apenas na medida em que ela
venha a tornar-se meio de expressão artística (a palavra deve
deixar de ser sentida como palavra). O poeta não cria no
mundo da língua, ele apenas usa a língua. No que diz respeito
ao material, ao desígnio do artista, condicionada à tarefa
artística fundamental, pode ser expressa como superão do
material. No entanto, essa superação é de natureza positiva e
não visa absolutamente à ilusão. Supera-se no material uma
possível determinação extra-estética dele: o mármore deve
deixar de persistir como mármore, ou seja, como um
determinado fenômeno físico; ele deve exprimir
plasticamente as formas de um corpo, mas sem criar a ilusão
de corpo; tudo o que é físico no material se supera
precisamente como físico. Devemos sentir as palavras em
uma obra de arte precisamente como palavras, ou seja, em
sua determinidade lingüística [...] (2003, p. 178).
Diante desta situação, pergunta-se se o material leva à
identificação de um estilo ou, ainda, se isso deve ser deixado de lado, por
se considerar fundamental a história narrada e não a forma como este
conteúdo se apresenta. A Semiótica, no entanto, postula que o texto
poético é aquele em que o plano da expressão está homologado ao plano
do conteúdo. Posto isso, é consenso que a obra literária oferecida para as
crianças deve primar por sua especificidade poética, assim, a poeticidade
seria um critério de avaliação da obra de literatura infantil. Resta
investigar se a obra Vizinho, vizinha se caracteriza pela poeticidade.
325
Também o visual, isso inclui a materialidade, o compõe o
enunciado no livro-álbum, uma vez que este é definido como um livro, em
que as mídias verbal e visual se organizam para contar uma história,
formando um todo significativo? Convoca à análise, então, a questão do
estilo aliado à técnica e interroga-se: haverá apenas um estilo, e Lima,
Massarani e Mello, tal qual nos estúdios de Ziraldo
140
, trabalharão a partir
de um mesmo traço ou cada um vai deixar a mostra o seu estilo, visto
que este traço distintivo dará o tom da narrativa, como acontece em
obras como O menino mais bonito do mundo, de Ziraldo e Mariana
Apoena, em que há dois ilustradores, ou Griso, o unicórnio, em que Roger
Mello “personifica” diferentes estilos
141
? Se a segunda hipótese for
verdadeira, como fazer a obra ser um todo de sentido? Haverá, portanto,
ruptura do sentido do discurso e isso comprometerá o projeto gráfico,
visto que a inteligibilidade estará comprometida? Valerá, então, discutir
sobre algo que não é comum em literatura, a saber: uma obra escrita
(desenhada) a três mãos, reiterando uma característica da literatura
infantil brasileira que é a de estar atrelada à história em quadrinhos, ou
mesmo, como afirmado anteriormente neste trabalho, ter nascido deste
gênero de discurso no cenário brasileiro
142
e, ainda, qual é o efeito de
sentido gerado a partir da proposta do processo de criação, ou seja, este
pode ser percebido no enunciado?
Estas questões são colocadas no horizonte da análise, e segue-se a
narrativa a fim de observar as surpresas que ela guarda e, assim,
responder às indagações formuladas. E, se for o caso, rejeitar ou valorizar
uma maneira de produzir livros para criaas.
140
Roger Mello e Graça Lima trabalharam juntos no estúdio de Ziraldo. Esta informação
foi tratada por meio de entrevista em análise anterior.
141
Outras obras poderiam ser citadas como exemplo.
142
Alerta-se, ainda, para a freqüência com que tal estratégia de produção aparece nas
histórias em quadrinhos ou nas animações.
326
3.5.2 A Construção da Personagem: Técnicas e Materiais
A primeira gina da narrativa é toda amarela, e a narração é feita
em off, como no teatro, o narrador não aparece, pois esem terceira
pessoa, como narrador observador distanciado, mas é ele quem introduz a
história, tal qual os personagens-narradores nas peças de Shakespeare,
por exemplo. Instaura-se a debreagem enunciva: ele - algures, como
elucida Fiorin, em As astúcias da enunciação:
A debreagem enunciva é aquela em que se instauram no
enunciado os actantes do enunciado (ele), o espaço do
enunciado (algures) e o tempo do enunciado (então). Cabe
lembrar que algures é um ponto instalado no enunciado; da
mesma forma, o então é um marco temporal inscrito no
enunciado, que representa um tempo zero, a que se aplica a
categoria topológica concomitância vs. não-concomitância.
[...]
A debreagem enunciativa e a enunciva criam, em princípio,
dois grandes efeitos de sentido: o de subjetividade e o de
objetividade. Com efeito, a instalação dos simulacros do ego
hic nunc enunciativos, com suas apreciões dos fatos,
constrói um efeito de subjetividade. a eliminação das
marcas de enunciação do texto, ou seja, da enunciação
enunciada, fazendo que o discurso se construa apenas com
enunciado enunciado, produz efeitos de sentido de
objetividade. Como o ideal de ciência que se constitui a
partir do positivismo é a objetividade, o discurso científico
tem como uma de suas regras constitutivas a eliminação de
marcas enunciativas, isto é, aquilo a que se aspira no
discurso científico é construir um discurso só com
enunciados (1996, p. 45).
Toda a obra Vizinho, Vizinha é narrada como discurso científico:
“Quem passa pela rua do Desassossego, número 38, nem percebe,
mas.....”
A narrão deixa no ar a continuidade narrativa, “obrigando o
leitor (narratário instaurado) a virar a página. Cria-se a expectativa
narrativa que tamm é dada pelo nome da rua, uma vez que,
327
segundo o dicionário Aurélio, desassossego quer dizer: falta de
sossego; inquietação, perturbão. (1989, p. 205).
Assim, falta algo para aquela rua. Isso impõe um percurso de
busca. Ela (personificada) deve sair em busca de suprir sua falta, ou os
desassossegados, moradores de tal rua, devem partir em busca do
sossego? Para o enunciatário ver respondidas suas dúvidas, ele deve,
mais uma vez, virar a página e seguir a narrativa.
A página seguinte é toda colorida e compartimentada, isto é, cada
elemento tem o seu lugar. Assim, o leitor tem a impressão de um corte
longitudinal na maquete que fora apresentada na página de guarda. Como
acontece em cenário para filmes, novelas e, às vezes, peças teatrais, a
fachada do prédio rosa foi tirada e o leitor pode acompanhar a vida do
morador da esquerda e da moradora à direita:
Figura 3.87 – Cenário sem fachada
Pelo “buraco da fechadura, será dada ao leitor (enunciatário) a
realidade, aproximando o discurso de um estilo “realista”, em que
necessidade de dar a luz aos problemas que afligem a sociedade, isso, cabe
pontuar, no que diz respeito à aspectualização de pessoa, tempo e espaço
do discurso. No conteúdo do sistema verbal, esta afirmação é pertinente, no
328
entanto, pela expressão do sistema visual, outra proposta vià tona, essa
mais subjetiva. Eis o objeto revelado por todas as suas facetas.
A = Vizinho B = Hall C= Vizinha
Figura 3.89 – Divisão do cenário
O morador da esquerda tem a sua legenda preenchida pelo rosa, a
moradora da direita tem a sua preenchida pelo amarelo. As cores
acompanham a narrativa desde a capa e seguem até o fim da história.
Como mostra a seqüência abaixo:
Figura 3.90 – Capa Figura 3.91 – Página
de rosto
Figura 3.92 – Primeira
Página
329
Pontua-se que o projeto gráfico em análise foge ao simbolismo das
cores, em que o rosa representaria o feminino e, provavelmente, o azul, o
masculino. Neste caso, a oposição masculino versus feminino não é
fundamental e está bastante atenuada, leva-se em conta as relações
humanas, independentemente do gênero.
As cores cumprem outro papel, o o, pois, símbolos
convencionais. Elas funcionam como guias da leitura, na medida em que é
possível seguir o caminho traçado por elas no projeto gráfico da obra,
demonstrando continuidade e coencia na composição gfica e também
instituindo uma marcão (passagem) temporal, refoando a comparação
com a função da legenda nas histórias em quadrinhos e autorizando a
aproximão entre o livro-álbum em alise e o gênero de discurso citado.
O texto verbal diz à esquerda: “O vizinho do 101 toma ca enquanto
observa gravuras de bichos”. Do outro lado, “A vizinha do 102 voltou da
maratona”. As personagens o têm nome
143
. A ausência do nome é uma
estratégia discursiva que gera o efeito de sentido de generalização: o é
Maria ou Jo,o todos os habitantes das cidades grandes.
No centro da página, um hall. Destaca-se este espaço, pois,
apesar de ele não abrigar ninguém, tem o mesmo tamanho do espaço
deixado para a personagem da esquerda que está sentada em sua
poltrona, bebendo café e observando gravuras e para a personagem do
outro lado que esescondida na cena:
143
Impossível não se lembrar da crônica de Rubem Braga, situada na mesma cidade
grande o Rio de Janeiro –, Recado ao senhor 903. In: 200 Crônicas escolhidas. Rio
de Janeiro: Record, 2003.
330
Figura 3.93 – Personagem no chuveiro
A técnica empregada para separar o espaço dos vizinhos é o pastel.
Cada espaço será a continuidade das técnicas, dos materiais utilizados
para a caracterização das personagens.
Assim, além do espaço reservado para cada um dos elementos
apartamentos, hall e legendas –, as técnicas empregadas em cada um dos
espaços também os diferencia: apartamento da esquerda, contorno
preenchido por aquarela; apartamento da direita, óleo com colagem; hall,
pastel; e narrador/legenda, cor de impressão, apagam-se as marcas do
material e só há o preenchimento da cor. Como observado na capa, o
miolo reitera o que já havia sido sugerido por essa.
Tem-se, portanto, uma obra que manipula a técnica mista e ainda,
dentro da mistura, organiza as técnicas, para que elas atribuam
personalidade aos ambientes e, por conseqüência, às personagens,
marcando as subjetividades
144
:
144
A questão da subjetividade versus objetividade, como efeitos de sentidos gerados pelo
discurso, será tratada mais adiante.
331
Dicho en pocas palabras, se entró en crisis (da obra de arte)
por el agotamiento del modelo verosímil, tras su extensa
vigencia y por la demanda de mayor subjetividad, que
prefería el universo interior e individual a la muy conocida
representacn del mundo exterior. Esta revolución se
tradujo en nuevas formas de representación que,
resumiendo mucho, podríamos distinguir según el binomio
de razón y sentimiento. La gran aportación de los sistemas
de representación racionales, siempre a la busca de una
mayor subjetividad, fue el cubismo (2005, p. 8).
A técnica da colagem utilizada na caracterização da personagem da
direita corrobora a idéia da referência cubista como um estilo impregnante
na construção da protagonista.
3.5.3 Enredo de Desencontro
Também, pelo contdo do texto verbal, o leitor poderá descobrir
que as personagens reveladas têm gostos diferentes: o vizinho
coleciona discos da velha guarda. A vizinha guarda coisas velhas que
depois não encontra. Ele viajou o mundo inteiro. Ela tem uma
estante de livros do tamanho do mundo. Ele molha as plantas no
parapeito, vestido com um escafandro, e quando lê quadrinhos, sempre
perde a noção das horas. Ela ainda vai aprender a tocar clarineta e seu
relógio o funciona muito tempo. A descrição das ações das
personagens revela: personagens com gostos próprios, personalidades,
mas com detalhes que poderiam ser partilhados.
Em seguida, vem a descrição da rotina dos protagonistas: “quatro
e quarenta: ele sai com o canário para um passeio. Vinte para as cinco:
ela finalmente leva o relógio ao conserto”.
É, então, o momento em que estas duas personagens se
encontram (ou se desencontram). Todos os dias, é isso que acontece:
“só se encontram a esta hora. No corredor: Boa tarde, boa tarde, como
tem passado? Como es o tempo? E é ”. Indaga-se: qual o projeto
de vida destas pessoas? Elas trabalham? Qual a idade delas? Têm
332
falia? Amigos? Eis o retrato da imposição das grandes cidades. Otávio
Ianni reflete acerca da condão nas cidades:
Cidade rima com modernidade e pós-modernidade; e
muito mais quando se trata da grande cidade, metrópole,
megalópole ou cidade global. Esse o excepcional
laborario de todas as possibilidades, práticas e ideais,
reais e imagirias (2000, p. 133).
A narrativa se apresenta como a laboratório da vida cotidiana, que
não particulariza a problemática, uma vez que as personagens não são
nomeadas, mas generaliza e, por isso, pode revelar, desmascarar a vida
nas grandes cidades, como quer Ianni.
Na cidade de Vizinho, Vizinha, ninguém conhece ninguém. Eles
parecem ter tempo para se conhecerem, então, por que não se
conhecem? A falta de relação entre as pessoas é o tema proposto pela
obra, e isso caracteriza a cidade retratada.
Enquanto as duas personagens eram descritas por seus gostos,
rotinas, outra surgiu no espaço vazio, no hall.
A obra, ao fazer o corte longitudinal na fachada, traz à tona outra
técnica das histórias em quadrinhos, a saber: a simultaneidade da leitura
145
, que, oposta à linearidade, é uma questão própria ao projeto gráfico
em análise, que deve ser descrita e discutida mais adiante.
O hall é preenchido por uma personagem muda”, ou seja, o
narrador do texto verbal não a descreve. Ele existe apenas no texto visual, a
menos que seja a mefora de algo revelado no verbal, mas a associação
ainda não foi estabelecida. A personagem desce a escada caracol e leva um
balde na o. Ela é o faxineiro, pois, na cena seguinte, além do balde, tem
uma vassoura, uma garrafinha com produto de limpeza e um pano que
passa do chão.
145
Apesar de utilizar períodos curtos no texto verbal, o é possível depreender
mensagens simultâneas ou instanneas pelo sistema verbal, por isso, neste caso, o
sistema visual amplia a hisria contada pelo verbal.
333
Seguindo a ação (percurso do coadjuvante), o faxineiro deita no
chão para “tirar uma soneca”. Toda ação executada por ele não é descrita
pelo texto verbal, como apontado. Depois da “soneca”, o responsável
pela limpeza segue para o andar debaixo. Eis a seqüência visual:
Figura 3.94 – Seqüência da personagem coadjuvante
Todavia, mais uma vez, voltam-se os olhos aos protagonistas. No
encontro rotineiro, apesar de nada falarem, além de cumprimentos
fáticos, o visual, novamente, amplia o verbal, visto que, pelas
expressões faciais, as personagens deixam transparecer interesse uma
pela outra, mas não revelam tal sentimento. Mesmo o corpo falando,
as palavras calam. Esta é a condição das cidades grandes, e a “falta de
tempo, uma desculpa para a distância, pois até agora as personagens
não se apresentaram “ocupassimas e, portanto, “sem tempo para
conhecer o vizinho “de porta.
É na grande cidade que aparece a multidão, a massa ou a
turba, assim como o líder, dirigente, demagogo, condottiere.
se formam o cidadão e a cidadania, o solitário e a solidão,
o radical e o fanático, o suicida e o profeta, o artista e o
cientista, assim como o aventureiro, o blasé, o flâneur
(2000, p. 125).
334
As pessoas se camuflam na multidão. É personalidade na
generalização (multidão). Face ao desenho citadino, fica fácil se esconder,
o se viver as relações intersubjetivas. Assim, nesse pido encontro vazio
de palavras, o hall ganha proporções maiores, pois os apartamentos somem
da cena, somente as portas aparecem, e elas, de maneira sugestiva,
corporificam, pela cnica, pela materialidade empregadas, o estilo de seus
donos, como todo o apartamento. A porta é a metomia de seus donos,
que, por contigüidade, carregam a personalidade dos protagonistas.
Figura 3.95 – Portas-personagens
Na página seguinte, o apartamento do vizinho aparece: “vinte
para as seis: ele está de volta, construindo uma cidade de papel. Seis e
pouquinho: ela trouxe um”Manual do químico moderno”, o conserto do
relógio, paciência, ficou para amanhã”
146
. Os espaços na cena se
ajustam na medida em que os sentimentos são relevantes, ou seja,
uma hierarquização na distribuição deste espaço. Ele não é estático, como
146
Grifo nosso.
335
nas maquetes ou cenários, mas móvel como os espaços dos quadros nas
histórias em quadrinhos.
Figura 3.96 – O menino quadradinho - Ziraldo
A vizinha sobe a escada lendo seu livro, e o narrador, aqui,
ganha a palavra do discurso indireto livre, uma vez que a expressão:
paciência revela um sentimento que não se sabe se é do narrador ou
da personagem, ou talvez pertença aos dois. Instaura-se a ambigüidade
verbal própria ao discurso indireto livre, como esclarece Fiorin (1999):
O discurso indireto livre mescla a fala do narrador com a do
personagem. Do ponto de vista gramatical, o discurso é do
narrador; do ponto de vista do significado, o discurso é do
personagem. Isso é possível pela queda dos elos
subordinativos e dos verbos de dizer presentes no discurso
indireto. Por isso, o discurso indireto livre cria um efeito de
sentido que fica a meio caminho entre a subjetividade e a
objetividade. Nele, são duas vozes que se expressam, a do
narrador e a do personagem (1999, p. 185).
336
A cena volta à sua antiga disposição, cada um no seu espaço e em
seu mundo. “Ele inventou uma máquina de fazer chover, e a vizinha não
sabe. Ela alimenta um rinoceronte debaixo da pia, e o vizinho nem
desconfia”. Configura-se o seguinte quadro semiótico da relação
intersubjetiva mantida pelos protagonistas:
Figura. Quadrado Semiótico
Quadro 3.1 – Quadrado Semiótico
Além disso, o conteúdo das ações desempenhadas pelas
personagens revela um universo imaginário, próprio à criança ou,
também, podem demonstrar figurativamente que os atores nada têm a
fazer ou, ainda, que máquinas de chuva e rinocerontes são metáforas dos
obstáculos impostos ao encontro. Todas as possibilidades são pertinentes,
reiterando a leitura plurissignificativa, condição da obra literária.
O segredo instaurado, ainda, estabelece-se, pois as personagens
estão encerradas no próprio universo. Elas não se conhecem, o
compartilham os desejos, os sonhos, os obstáculos, os problemas, como
Ianni define a cidade moderna ou pós-moderna:
É desde a grande cidade que se difundem a modernidade e a
pós-modernidade, como estilos de vida e visões de mundo.
São as luzes da cidade que iluminam praticamente todas as
outras partes do mundo. Quando se fala em modernidade e
pós-modernidade, tendo-se em conta o local, o nacional, o
regional e o mundial, não se pode esquecer que uma e outra
modulações ressoam desde a grande cidade. É aí que se
radicam as relações, os processos e as estruturas que
organizam, movimentam e transformam o mundo (IANNI,
2000, p. 135).
Verdade Mentira
Segredo Falsidade
337
O narrador de Vizinho, Vizinha entrelaça as histórias, mas não há o
encontro pessoal, vivo. Essas pessoas estão separadas por seus segredos.
Mais uma vez, o discurso evidencia que cada um tem a sua vida, mesmo
lado a lado, um não conhece o outro e talvez, por isso, tornem-se
desassossegados, como quer o nome da rua onde moram.
Expõe-se, a partir disso, o seguinte programa narrativo: S inicial
actante não tem companhia, está, portanto, disjunto do objeto valor; ele
tem o querer fazer-se conjunto, mas não sabe como; o obstáculo é a
própria condição da modernidade: cidade grande, falta de confiança, vida
privada, individualização. Os actantes são ambos os protagonistas.
O programa narrativo sofre interferência quando surgem sujeitos
que serão destinadores (doadores de competência), assim a rotina é
quebrada, quando um traço comum une as personagens. Um elemento da
vida dos dois vizinhos é descrito e, por esse elemento comum, apesar das
inúmeras diferenças, parece que a união é possível graças à criança
147
:
“Ele tem uma sobrinha quase da idade do neto dela. Ela tem um neto dois
dedos menor que a sobrinha dele”.
As crianças os unem: “Outro dia, a sobrinha do vizinho fez uma
visita. Justo no dia em que o neto veio passar o dia com a vizinha”.
Por esse tro comum, as idades dos vizinhos são também
reveladas. Eles tiveram uma vida em família ou atarefada. Agora,
encontram-se, no momento em que os filhos seguiram suas vidas; no
trabalho, cumpriram seus compromissos. Isso não é dito, é inferido.
Eles estão sozinhos e sem preocupações com a sobrevivência. Podem,
portanto, conviver, mas a cidade grande lhes ime barreiras. Reitera-
se a leitura sobre a condição da modernidade.
O dia da visita desses destinadores não é igual aos outros, por isso,
os apartamentos estão completamente transformados para receber os
ilustres visitantes, cada um do seu lado. Do lado esquerdo: desenhos na
parede, bandeirinhas, balões e tapete vermelho; do lado direto: bolo,
147
O auxiliar (destinador), sujeito que doaria a competência, é figurativizado pela criança,
adiante, essa cobertura discursiva será analisada mais detidamente.
338
sorvete, balas, cabana, skate... Cada um recebe à sua maneira. Até o
corredor parece respirar novos ares, há mais cores quentes em seus
traços, predominantemente amarelo e vermelho, a expressão da
subjetividade no emprego dessas técnicas como gerador do sentido
aponta para a construção de personagens, cada personagem é
caracterizado pelo conteúdo, mas também pela expressão
148
. A felicidade
pode ser notada na decoração da casa, nas expressões faciais (no caso do
homem, ele faz a barba, a mulher se fantasia). As cores se alteram e a
quantidade de objetos no cenário também.
Antes Depois
148
Este dado é importante na avaliação de uma obra dada às crianças e também um
elemento enriquecedor no trabalho com a obra em sala de aula, como será
demonstrado no catulo final deste estudo.
339
Figura 3.97 – Antes e depois da visita
Mesmo com a visita, a rotina das personagens o se altera por
completo: Quatro e quarenta: o vizinho saiu com o canário. A sobrinha
espreita. Vinte para as cinco: a vizinha levou o regio ao conserto. O
neto observa.
A novidade es na presença dos visitantes, antes, os
apartamentos ficavam vazios durantes o passeio dos vizinhos, agora,
gente e gente curiosa, inquieta, desassossegada para estabelecer novas
relações. Essas personagens, sobretudo, são destituídas de convenções,
de imposições sociais e, por isso, ousam, são livres para brincar e fabular:
Acontece que cada um inventa a sua cidade, como refúgio e
evasão. Não cabe mais viver apenas na realidade, ou buscar
principalmente a emancipação. Diante dos contrapontos
trabalho e alienação, diversidade e desigualdade,
comunidade e sociedade, modernidade e pós-modernidade,
utopia e nostalgia, nada melhor do que a fabulação (IANNI,
2000, p. 137).
Eis a confusão na fabulação da gente pequena. As legendas
ocupam o espaço do cenário, os objetos da vizinha entram no
apartamento do vizinho. Os objetos desse entram no apartamento
daquela. A brincadeira está rolando. Este é o ponto alto da narrativa.
340
Nada possui lugar fixo, compartimentado; tudo se cria, vive, a imagem
parece “quase” sangrada na página, não fosse os espaços das legendas:
Figura 3.98 – Espaços invadidos
Assim como os objetos o m dono, o texto também foi
completamente embaralhado. Nada mais tem lugar. Palavra e imagem se
unem para mostrar a juão dos mundos: “As portas abertas e o convite
irresistível: cacom quadrinhos regador todos os livros do mundo manual
do químico moderno monte de coisas velhas bichos clarineta discos da velha
guarda roupas de maratona máquina de fazer chover rinoceronte fotos do
mundo inteiro gravuras gravuras gravuras escafrando cidade de papel....”
O que faltou, sintaticamente, às sentenças? Pergunta-se. A vírgula,
justamente, o sinal gráfico apresentado no título com a função de separar
as palavras. A vírgula é um sinal que pertence ao sistema verbal, no
entanto, como sinal gráfico, também pode ser tomado pela visualidade
(palavra é imagem). É um muro que separa os mundos, assim como a
disposição do cenário: Vizinho, Vizinha.
Contudo, onde estavam as personagens desassossegadas, as
personagens título desta narrativa? Elas o participaram da festa. Enquanto
as crianças não tiveram medo do contato e extrapolaram a brincadeira
revelando os segredos que nem mesmo se deram conta de que o eram, os
341
adultos estavam ausentes, ou seja, a intenção de doar compencia a fim de
que os sujeitos realizassem a performance não aconteceu. O silêncio invade
o ambiente e dança. O programa narrativo é frustrado, a sanção é negativa,
e os protagonistas permanecem inalterados.
Ao longo da narrativa verbal, a vírgula não aparece, os períodos
são sempre simples. Quando o programa narrativo não se cumpre, pela
primeira vez, o sinal gráfico parece no texto: “Depois que a sobrinha e o
neto foram embora, o silêncio ensaiou meia dúzia de passos de dança”.
Figura 3.99 – A volta à rotina
Os apartamentos ficam espremidos em seus cantos quase
escorregando da gina dupla
149
, diminui o mero de cores utilizadas,
as expreses faciais e corporais revelam o desanimo e a frustração, as
legendas voltam ao lugar, e o faxineiro, ao seu corredor, agora, até sua
sombra cabe no hall, que se alarga e é preenchido apenas pelas cores
predominantes amarelo e preto. As quentes que nutriam as paredes no
momento da expectativa da visita desaparecem e cedem lugar ao
preto/sombreado. Por todos esses elementos, é enfatizado o estado de
ânimo das personagens, o vizinho triste de um lado, a vizinha triste de
outro.
149
Vale destacar que toda história acontece em página dupla. De um lado, o Vizinho; de
outro, a Vizinha, narrativas “quase paralelas”: sintaxe espacial.
342
Na cena seguinte: Enquanto toma café, o vizinho imagina as
coisas que existem do outro lado”.
“Qualquer dia desses ele convida a vizinha para entrar” (nova
expectativa).
No tapete dela, está escrito Bem-vindo” um sinal de que ele
será bem recebido reforçado pela legenda: “se ele convidar, ela aceita”.
(Porém, fica para outra história). As cores e a postura novamente se
alteram e criam o efeito de tensão movimento corporal de ação, mas
outra força os detém.
Figura 3.100 - Nova expectativa
A imposição da vida moderna ganhou este round. A narrativa não
tem final feliz, apesar da tentativa das crianças e de uma esperança no
fim do túnel. Vale pontuar que o auxílio, que poderia ter sido dado pelos
destinadores, não é reconhecido como tal e, por isso, não doação de
competência. Os protagonistas não m capacidade para reconhecer nos
entes queridos a figura do auxiliar narrativo. Então, resta a expectativa de
um dia poder concretizar o sonho da junção e a aquisição do objeto valor.
Assim, depois de dissecar a narrativa, cabe à análise propor a
discussão sobre algumas estratégias utilizadas por este objeto-livro que
são fundamentais à investigação que se propõe, pois a instância discursiva
impõe a reflexão sobre os seguintes aspectos: a instauração de
debreagem enunciva nos dois sistemas semióticos; a figurativização dos
343
destinadores como crianças; a tematização da ausência de relações na
sociedade contemporânea, pois vale refletir acerca da relevância do
assunto para o público-leitor criança e suas possíveis relações
intertextuais; e, finalmente, o interdiscurso entre a maneira de narrar dos
quadrinhos com legendas, balões, quadros que obedecem à subjetividade
e a maneira de narrar da obra em questão. Além disso, a imposição da
leitura linear versus simultânea definindo o gênero livro-álbum.
3.5.4 O Encontro no Discurso
Foi afirmado, no item anterior, que o discurso do narrador se
estabelecia em: ele, lá, e, de fato, as legendas (sistema verbal) apresentam
exatamente esta aspectualização, como é possível comprovar pelos
exemplos a seguir: Quem passa pela rua do Desassossego, número 38,
nem percebe, mas.....; o vizinho coleciona discos da velha guarda;ela ainda
vai aprender a tocar clarineta; ele inventou uma máquina de fazer chover;
qualquer dia desses ele convida a vizinha para entrar”. A aspectualização de
pessoa – na terceira pessoa do singular – e de espaço – na rua do
desassossego instaura o narrador objetivo, que não se envolve com o
enunciado, gerando efeito de sentido semelhante, como apontado, ao
discurso científico. As imagens também apresentam o discurso objetivado,
em que o ele, o (instâncias de pessoa e espaço) validam o discurso, isso
pode ser assistido a partir das cenas-exemplo que surgem:
344
Figura 3.101 – Debreagem enunciva
Figura 3.102 – Instauração do ele, lá, algures
Nas cenas, os atores o dirigem olhos para o enunciatário, cada um,
reiterando o tema da individualidade, vive em seu mundo, cada um tem seu
estilo, seus objetos, seus segredos. Cabe ao narrador da narrativa visual
apresentar, da forma mais objetiva possível, a cena da realidade.
Contudo, a manipulação de estilos diferentes, seja pelo traço, pela
técnica ou pela materialidade empregada, confere subjetividade aos
personagens. Ressalta-se que não subjetividade ao narrar os fatos, ao
expor a situação, mas na construção da personagem, o que é revelado
pela materialidade – técnica, traço, disposição dos objetos, cores:
O artista nunca começa desde o início precisamente como
artista, isto é, desde o início não pode operar apenas com
elementos estéticos. Duas leis guiam a obra de arte: a lei da
personagem e a lei do autor, uma lei do conteúdo e uma lei
345
da forma. Onde o artista opera desde o início com grandezas
esticas tem-se uma obra feita, vazia, que não supera nada
e, no fundo, não cria nada de axiologicamente ponderável. A
personagem o pode ser criada do início ao fim a partir de
elementos puramente estéticos, não se pode “fazer” a
personagem, esta o seria viva, não iríamos sentir” a sua
significação estética. O autor não pode inventar uma
personagem desprovida de qualquer independência em
relação ao ato criador do autor, ato esse que a afirma e
enforma (BAKHTIN, 2003, p. 183).
Bakhtin questiona a criação da personagem como algo fundamental
à arte literária, pois, por meio dessa representação, o autor veiculará
ideologia, e seu material é o próprio estilo, pois o modo de fazer, também,
revela a ideologia:
[...] os únicos caminhos possíveis para a renovação da
palavra ideológica – a palavra com seu tema intacto, a
palavra penetrada por uma apreciação social segura e
categórica, a palavra que realmente significa e é responsável
por aquilo que diz (BAKHTIN, 1981, p. 196).
O trabalho em equipe, proposto por esta obra, revela um mundo
construído e totalmente individualizado, tão individualizado que a
enunciação procurou separá-lo completamente. Por meio da expressão, os
estilos utilizados para a composição das personagens personalizam as
imagens: na própria caracterização da personagem, mas tamm por seu
ambiente (apartamento), objetos, maneira de se comportar, gostos, e isso
se prolonga até a porta do apartamento, que metonimicamente
personifica o morador. Normalmente, nos edifícios, as portas são
individualizadas apenas com objetos, aqui material e cores presentificam a
individualidade do morador. As características expressivas das
personagens são:
346
FORMATO DO ROSTO: Arredondado
OLHOS: Curvilíneos
ESTRUTURA FÍSICA: Largo
COLORAÇÃO: Bege
FORMATO DO ROSTO: Anguloso
OLHOS: Retilíneos
ESTRUTURA FÍSICA: Estreita
COLORAÇÃO: Rosada
Figura 3.103 – Construção das personagens
Mais uma vez, é válida a comparação deste projeto gráfico com a
representação dramática (teatro, televisão, cinema), em que diferentes
atores constroem personagens que vão interagir na narrativa, o cenógrafo
organiza os objetos em cena, o figurinista elabora a vestimenta das
personagens, assim, em equipe, elaboram o espetáculo.
A obra Vizinho, Vizinha traz à cena literalmente uma situação
cotidiana e o faz de maneira a gerar o efeito de sentido de que não houve
interferência daquele que narrou, buscou-se o distanciamento, para que o
leitor-enunciatário pudesse formar a sua opinião sobre a condição da
modernidade e também pudesse sentir o isolamento. O teórico russo,
mais uma vez, corrobora a idéia apresentada:
347
[...] interpretar significa compenetrar-se do objeto, olhar
para ele com os próprios olhos dele, renunciar à
essencialidade da nossa própria distância em relação a ele;
todas as forças que condensam de fora a vida se afiguram
secundárias e fortuitas, desenvolve-se uma profunda
descrença em qualquer disncia (2003, p. 187-188).
Além da integração entre os sistemas visual e verbal na
instauração de um narrador do discurso distanciado, outro aspecto a ser
destacado diz respeito à figurativização da criança como possibilidade de
aproximação dos dois universos – Vizinho, Vizinha. As crianças estão
“enformadas” conforme o estilo do adulto a que se refere:
Figura 3.104 – As crianças
Entretanto, isso o desautoriza a aproximação. Independentemente
de convenções, as crianças se misturam, mesclam-se. Elas bagunçam a vida
destes adultos, mas eles o se dão conta. O mundo da criança também
es separado do mundo adulto, apesar da tentativa. A partir dessa
observação, configura-se a oposição adulto (segredo) versus criança
(verdade), relacionando as oposições narrativas e discursivas.
Talvez seja necessária uma ressalva, visto que os protagonistas, no
final da narrativa, revelam o desejo de aproximação, quer dizer que, de
alguma maneira, as crianças alteraram a situação inicial. Cabe perguntar
quem se mais forte: a imposição da modernidade nas grandes cidades
ou a criança com sua ação libertária e libertadora. Atinge-se, finalmente, a
348
oposição mais abstrata liberdade versus opressão, sendo aquela eufórica e
essa disfórica.
Outro ponto a ser destacado é que os textos geram o efeito de
sentido de objetividade, sem, contudo, refletir um traço totalmente
realista, ou melhor, pela tematização, a realidade é revelada. Na
expressão, ela é abandonada, então, o encontro do universo da criança
com a obra dar-se-á pelo plano da expressão. Será pela via senvel
que a criança entrará na narrativa. O conteúdo é “pesado, em
princípio, mas necesrio, visto que a criança não pode ser alijada (nem
alienada) da realidade em que está inserida.
As imagens guardam a sua subjetividade, não importando o traço
realista em proporções, cores ou disposição das figuras na cena. As
técnicas empregadas reforçam esta afirmação:
En general, se puede afirmar que los álbumes realistas
ayudan al reconocimiento del mundo interior y del de los
demás y, en cierto modo, favorecen la imitación, los
álbumes con representaciones planas buscan la profundidad
acentuando la interiorización de las ideas y, por tanto, se
dirigen a la inteligencia del lector. […]
Los álbumes planos se centran más en el “qué sucedió y
renuncian a querer engañarnos con sensaciones de
profundidad para intentar que lleguemos a una comprensión
mayor de las cosas, a que captemos la densidad de lo real
(GONZALEZ e ZAPARÍN, 2005, p. 12).
Pela subjetividade, o discurso conduz o enunciatário à realidade
objetiva, própria ao discurso científico. Tendo em vista a leitura proposta,
afirma-se a pertinência da temática abordada pela obra Vizinho, Vizinha.
Para reforçar a atualidade do tema, lembra-se de outras duas obras
literárias voltadas ao público-criança, a saber: Avós (original em
português galego), de Chemas Heras (texto) e Rosa Osuna (ilustrações), e
outra citada por este trabalho de tese El hilo de la vida (que foi
traduzido no Brasil):
349
Figura 3.105 – Los abuelos
Figura 3.106 Capa de El hilo de la vida Figura 3.107 Miolo de El hilo de la vida
Essas são obras literárias em que a temática das relações humanas
entre pessoas que já têm uma história vem à cena. Tais produções
reforçam a idéia da convivência, da vida, da morte, das lembranças. O
idoso é figurativizado em suas relações, e essa abordagem é muito
importante em uma sociedade que, a todo momento, busca a juventude,
ou seja, são livro-álbuns que valorizam o amor ou, como no caso da obra
analisada, a falta de liberdade para se aventurar nesta etapa da vida, a
opressão social diante das relações humanas. São obras que, com humor,
aliam poesia e ensinamento, condição determinante na valorização de um
livro para crianças.
O humor tamm fica a cargo da expressão que se aproxima das
histórias em quadrinhos, a relão interdiscursiva, neste caso, -se
pela relação com este outro gênero do discurso, que, pela
simultaneidade na apreensão da imagem, pode usar e abusar de outras
histórias ou sugestão de hisrias.
350
Na obra Chiquita Bacana e outras pequetitas, Ângela Lago propõe
uma narrativa principal e inúmeras micronarrativas no visual. Em Vizinho,
Vizinha, a principal, que foi explorada ao longo da análise que se
apresenta, uma coadjuvante, encenada pelo faxineiro, e micronarrativas
expostas pelas gravuras nas paredes. Estas micronarrativas exigem
relações intertextuais e existem somente graças à técnica da colagem:
En la historia del arte, después de los primeros collages se
produjo un paso más cuando, a base de una superposición
de imágenes que no fuera una mera yuxtaposición, se
intentaba desdoblar el espacio y aprovechar la profundidad
de campo mental (GONZALEZ e ZAPARÍN, 2005, p. 13).
Enquanto o objeto-livro impõe a leitura linear, a saber, da
esquerda para a direita, de cima para baixo; os quadrinhos e os livro-
álbuns são condicionados pela leitura do virar das páginas, mas, assim
que a gina dupla se abre, ele as como se estivesse diante de um
quadro, de um objeto planar que cria e recria condições de
tridimensionalidade na obra dada, de modo a alcançar, pela estratégia da
justaposição de estilos, a poeticidade. Abaixo, destacam-se algumas
referências a outros artistas; no apartamento da vizinha, inúmeras
menções a obras de arte
150
:
Figura 3.108 – Citações pontuais
150
Esta é uma forma de citação que será explorada no próximo capítulo.
351
Assim sendo, vislumbra-se na obra analisada um projeto gráfico
criativo, que apresenta um processo de criação com reflexos no enunciado
e, portanto, impregnado de sentido, afirmando o caráter de poeticidade
deste livro-álbum:
Nuestra época, signada por el predominio de la imagen
visual, impone al niño contemporáneo una cultura en la que
lo icónico resulta decisivo. El inventario de imágenes
almacenadas por cada uno de nosotros en ese archivador
insondable sería único en cada caso específico. Constituiría
el resultado de experiencias y oportunidades diferentes,
sería la suma de nuestra existencia, estaría marcado por el
contexto sociocultural en que nos desenvolvimos, por la
incidencia de los medios de difusión masiva (la televisión, los
periódicos, las revistas, la publicidad), por las horas que
estuvimos frente a las pantallas de los cines y la naturaleza
de los fotogramas que vimos proyectados en ellas, por los
museos y galerías que recorrimos y, naturalmente, por los
libros que leímos o simplemente hojeamos, por las imágenes
gráficas que nos salieron al encuentro desde sus páginas
(ANDRICAÌN, 2001, p. 1).
352
4 DESENROLANDO FIOS
As fronteiras de um livro nunca são bem definidas: por
trás do título, das primeiras linhas e do último ponto final, por
trás de sua configuração interna e de sua forma autônoma, ele
fica preso num sistema de referências a outros livros, outros
textos, outras frases: é um nó dentro de uma rede.
(Michel Foucault)
Percebe-se a necessidade de desenrolar um pouco mais os fios do
tecido que se apresentam. Para isso, colocam-se em foco duas questões
que perseguiram as análises com maior insistência.
A primeira delas diz respeito às citações, sejam de textos verbais,
visuais ou de discursos. Sobre esse conceito, pretende-se formalizar como
elas são feitas na literatura infantil contemponea e ainda marcar que este
é um recurso amplamente utilizado e deve ser tratado pela mediação.
A segunda questão se refere à estratégia de se voltar para o
próprio código, trazendo a enunciação para o enunciado ou, em outros
termos, vindo a metaficção à cena.
A partir dessa estratégia, tem-se o intuito de ampliar o que foi
apresentado ao longo das análises e propor mecanismos de identificação,
a fim de que a mediação possa trabalhar nessa abordagem, por meio da
literatura infantil contemporânea.
4.1 A INTERTEXTUALIDADE COMO UMA ESTRATÉGIA LITERIA: UM FIO
ESSENCIAL
Aflige o ser humano, nos tempos contemporâneos, o mundo
interligado, as redes conectadas, os padrões globalizados. Tudo acontece
ao mesmo tempo agora, como cantam e contam os artistas neste tempo e
lugar. O século XXI tem como característica os avanços tecnológicos e,
com isso, a quebra de fronteiras e a aproximação de distâncias, graças às
conexões on-line. Os textos, de maneira geral, refletem este avanço.
353
O diálogo tem espaço garantido nas manifestações textuais, sejam
elas verbais ou visuais, ontem e hoje. O contato entre obras se estabelece
e é inerente à linguagem, segundo alguns teóricos, como Bakhtin, antes
mesmo desta corrida tecnológica. Entretanto, este fenômeno lingüístico é
ainda mais evidente hoje, e teorias que corroboram tal idéia vêm
promovendo um debate sobre a s-modernidade do conceito, como
observa Hutcheon (1991):
O leitor é obrigado a reconhecer não apenas a inevitável
textualidade de nosso conhecimento sobre o passado, mas
também o valor e a limitação da forma inevitavelmente
discursiva desse conhecimento (p. 167).
Esse diálogo passa a ser importante, então, para aqueles que
estudam os textos/discursos, e a literatura infantil é campo rtil à
reflexão, visto que ela é utilizada também como forma de preparação do
leitor literário.
A abordagem faz-se intratexto e extratexto, esta última relação
entendida como o contexto de inserção do discurso, esse recurso torna-se
fundamental para o trabalho com a amplião do repertório do leitor (p. 42).
Pensar sobre o leitor-criança, neste momento, é importante. Como
ele estabelece as relações entre obras, como adquire repertório, como
identifica a personagem? As histórias clássicas – conto de fadas, contos de
animais, fábulas, lendas – são adquiridas ao longo do tempo pelo contador
de histórias, pelas referências em livros, na escola, no contato com o
colega e, hoje, por meio das novas tecnologias. No cinema, por exemplo,
a personagem Gato-de-Botas pode ser admirada no filme Shrek. Esse
procedimento ajuda a compor o repertório na infância e também na vida
adulta. As referências são, portanto, inevitáveis e essenciais.
Norma Discini, em Intertextualidade e o conto maravilhoso, como
detalhado na análise de Fita Verde no cabelo: nova velha estória,propõe
uma tipologia para assimilação do texto-base, a saber: apropriação,
paródia, assimilação e estilização (2003), ou ainda, como sugerem os
354
títulos dos capítulos da obra da autora: a desistória, a contra-história, a
paráfrase e a estilização (idem). Por essa perspectiva, a pesquisadora
analisa obras que são chamadas genericamente de releituras. As obras
recebem este nome, porque independentemente da forma de apropriação,
seja pela negação ou pelo puro recontar, tomam o texto-base como um
todo narrativo. Subvertem ou apropriam-se do começo, do meio e do final
da trama narrativa. Toda estrutura e esquema narrativos são trazidos à
tona para cumprir um novo propósito, às vezes, com uma nova roupagem
discursiva ou com alterações no percurso narrativo. Estas modificações,
por vezes, alteram o vel fundamental da obra, transformando a essência
do texto, seja modernizando, pensariam alguns, ou contextualizando, uma
vez que as histórias viajam quase sempre por terras distantes
151
.
A partir dessa tipologia, é plausível identificar obras que fazem
referências intertextuais, aludem a outros textos não com o intuito de
recontá-los, como aquelas analisadas por Discini, mas como forma de
ampliar o sentido da narrativa ou do discurso, sem, no entanto, estarem
atreladas a um texto-base. Melhor, na tipologia, que se desenvolve, o
termo texto-base perde lugar, visto que não interessa, necessariamente, o
texto do qual surge a nova obra, mas a alusão a ele nela identificada.
Isto posto, ainda, interessa demonstrar como tais contatos são
possíveis na literatura infantil, ou seja, quais são os tipos de citação
propostas pelo gênero em questão.
Assim, na tipologia que se propõe, a primeira maneira de contato
entre textos é aquela sobre a qual se debruçou Discini, ou seja, a
releitura. Não é possível passar por este tipo sem destacá-lo, pois são
inúmeras obras que se apropriam de um texto-base para (re)contá-lo de
maneira a subverter, negar, estilizar uma história em um outro texto.
Recebe o nome, neste estudo em desenvolvimento, de releitura, pelas
características explicitadas. O exemplo que se apresenta para demonstrar
a idéia é Cântico dos nticos, de Angela Lago, pois no título a
151
Norma Discini analisa as seguintes obras: Chapeuzinho Vermelho, de Perrault;
Chapeuzinho Vermelho e o Lobo Torturador, de Alberto Berquó; Chapeuzinho Amarelo,
de Chico Buarque; e Fita Verde no cabelo: nova velha estória, de Guimarães Rosa.
355
retomada do texto blico. Lago reconta por imagens a história do rei
Salomão e da camponesa que estão apaixonados.
Figura 4.1 – Cântico dos cânticos
Outra forma de contato se dá quando o autor do texto em questão
apenas cita, pontualmente, uma outra obra. Não é objetivo recontar o
texto-base, mas fazer uma aluo a outra obra, convocando o leitor a
estabelecer relações. Neste caso, o abandono total da idéia de texto-
base. O que se percebe nesta forma de contato é o acréscimo de sentido
na medida em que leva o leitor a acionar seu repertório. Assim, identifica-
se que a função dessa estratégia é ampliar o repertório do leitor. A
literatura infantil cumpre seu papel como formadora do leitor literário,
como ressaltado por Colomer (2003):
As interrogações artísticas pós-modernas se dirigem a explorar
o que acontece quando se confrontam mundos distintos,
quando se violam as fronteiras entre realidades e categorias
diferentes. O resultado desta busca foi o aumento da
autoconsciência na arte em geral e na literatura em particular,
uma explorão dos limites e possibilidades da arte, a partir da
tradição que as conforma (2003, p. 107-108).
356
A primeira obra-exemplo oferecida à analise é O menino mais
bonito do mundo, de Ziraldo, em que, inicialmente, o recontar do mito
bíblico é destacado como proposta. O capítulo retomado é aquele
referente ao nascimento do Homem - Adão e Eva. Este caso, no entanto,
ilustra o a releitura, como demonstrado, da mesma forma que a
última cena da obra também contempla outra forma de citação, neste
caso, mais pontual e como estratégia para ampliar o repertório do leitor,
bem como para introduzi-lo no mundo das artes plásticas. Isso porque
“Eva”, a mulher dos desejos do personagem de Ziraldo, aparece sobre a
forma de O nascimento da Vênus, de Botticelli, ou seja, há uma citação do
artista italiano. Nesta cena, o repertório do leitor é acionado e a relação se
estabelece pontualmente, agregando sentido no vel discursivo quando
surge uma figura de outro discurso. Neste exemplo, considera-se a
intertextualidade como a recontextualização de uma figura do discurso. A
Vênus da obra O nascimento da Vênus é personagem em um novo
contexto. Ela é transportada para uma nova narrativa e até, como é
possível identificar pelo traço e material empregados, não é a mesma,
mas uma, se é que é pertinente, uma paráfrase.
Outro exemplo desta forma de citação, analisado por este
trabalho, é com relação ao cenário narrativo, em Fita Verde no cabelo, em
que a arquitetura colonial é colocada como figura discursiva em um novo
contexto, a saber, o cenário mineiro de Guimarães Rosa.
357
Figura 4.3 – Eva, de Ziraldo
A segunda forma é mais evidente no texto visual. Afirma-se isso,
pois seria necessário outro estudo para verificar esta ocorrência também
em um texto estritamente verbal, mas, talvez seja possível arriscar que a
simultaneidade do sistema visual é que proporcione este tipo de citação
a da narrativa coadjuvante. Explica-se que, nesta expressão, pode-se
perceber uma narrativa principal e também outras coadjuvantes
152
.
Esta coexistência narrativa pode trabalhar com o recontar um
texto-base, mas esta não é a narrativa principal, ou seja, não era intenção
a releitura, e sim uma forma de citação não pontual, visto que ela tem um
desenvolvimento pximo ao texto-base. Como em Chiquita Bacana e
outras pequetitas, que apresenta algumas narrativas coadjuvantes, por
exemplo, Chapeuzinho Vermelho, Joãozinho e o -de-feijão, A bela
adormecida, entre outras.
152
Como apresentado na análise da obra Vizinho, Vizinha.
Figura 4.2
O nascimento da
Vênus, de Botticelli
358
Figura 4.4 – Chiquita Bacana e outras pequetitas – Joãozinho e o pé de
feio – Obra de Picasso
Além da possibilidade de retomar um texto-base e fazer dele uma
narrativa coadjuvante, a citação pode remeter a outra história ou outro
quadro e além disso, desenvolver um percurso paralelo. A obra exemplo é
Vizinho, Vizinha. Nela, o cenário da Vizinha é povoado por referências que
não têm lugar fixo, ora estão de um lado, ora de outro; não é possível,
neste caso, identificar um percurso desenvolvido pela “personagem
citada”, mas, assim como em Chiquita Bacana e outras pequetitas, os
objetos (quadros, desenhos) personificam-se e observam como a história
das personagens principais vai seguir: são, portanto, expectadores e, por
isso, podem ser associados a uma “personagem observadora” da cena,
mas que não é narrador. Denomina-se esta forma de citar: citação
coadjuvante, como demonstrado pelos exemplos:
359
Figura 4.5 – Apartamento da Vizinha povoado de histórias
Figura 4.6 – Máscaras observando
Outra forma de citar é aquela em que a referência é deixada ao
acaso na cena, como novamente em Vizinho, Vizinha ou seja, pela
técnica da colagem, mas não só, o artista organiza o espaço de maneira a
fazer referências. Esta maneira de citar recebe o nome de citação pontual.
Observa-se:
Figura 4.7 – Referências intertextuais
360
Finalmente, no quinto caso, o contato não entre obras
propriamente, mas entre maneiras de fazer. Uma determinada obra não
recupera o texto-base, senão o discurso, o estilo de fazer de um dado
artista. Seria a retomada de estilo. Uma maneira de fazer ao estilo de
Picasso ou Van Gogh. Ricardo Azevedo propõe esta forma de contato na
obra Menino que sentia mil coisas, que trata do desenvolvimento de um
menino e cujas ilustrações recuperam maneiras de fazer de diferentes
autores. Picasso é o artista retomado pela ilustração apresentada como
exemplo. Verificam-se os recortes, a cor azul e as sobreposições
características do artista espanhol. Além disso, a contracapa da obra
apresenta a intenção de retomar o estilo dos referidos artistas citação
mostrada e marcada:
Figura 4.8 – Ricardo Azevedo
A obra Griso, o unicórnio, citada anteriormente, que utiliza o
mesmo recurso do exemplo apresentado, não pode ser esquecida.
Também outras analisadas por este estudo se valem da estratégia
descrita: Jardins, Desertos, Fita Verde no cabelo, no contexto brasileiro, e
361
Bacelar, nas obras O dinossauro, A sereiazinha e Sebastião, em referência
a Chagall e Trnka, no cenário português.
E, ainda, em Timor Lorosae: A ilha do sol nascente, em que André
Letria (artista português), em citação mostrada, mas o marcada, faz a
relação com Ar Penck, demonstra-se:
Figura 4.9 - André Letria Figura 4.10 - Ar Penck
Revela-se, pois, que este recurso discursivo é uma forma de a
criança acionar o seu repertório, recuperando de maneira estética uma
qualidade que deve ser abordada nas relações didático-pedagógicas. A
literatura infantil se firma mais uma vez, e de maneira comprovada, entre
aqueles objetos artísticos que têm a intertextualidade como um recurso
estético, afirmando-se o valor literário.
Assim, sistematiza-se a tipologia proposta para a relação entre
textos/discursos:
1) Releitura (recontar ao longo de todo o livro uma história
conhecida – paráfrase, paródia, estilização, apropriação).
2) Citação recontextualizada (quando um elemento narrativo é
tirado de seu contexto para viver uma nova história).
362
3) Citação coadjuvante (recontar uma história conhecida como
narrativa coadjuvante).
4) Citação pontual (cita-se uma “figura discursiva conhecida”,
elemento narrativo, como técnica de colagem).
5) Interdiscurso (conta uma nova história a partir da maneira de
fazer do outro).
A intertextualidade ou interdiscursividade são também mecanismos
que levam à metaficcionalidade, como discutido por Colomer (2003). A
autora catalã denomina intertextualidade produtiva, e esse procedimento
une um fio ao outro.
O livro-álbum metaficcional – outro fio fundamental
A literatura infantil nasce do desejo de levar o leitor ao universo
desconhecido da aventura seja por mar, por terra, pelos ares. Seria uma
expressão longe da perspectiva da reflexão sobre o próprio código, esse
tema tão complexo e reflexivo deveria (ou estaria) à margem de tal
expressão, se for considerado o público. Afirma-se, então, que esse não
seria um tema caro à literatura infantil em princípio. Antes, interessariam
mecanismos de linguagem, em que a imaginação fosse acionada, e os
efeitos catárticos, no sentido aristotélico, fossem atingidos. Pretender-se-
ia, nesta expressão, o enunciado enunciado e não e enunciação
enunciada. Interessaria, sobretudo, apagar as marcas da enunciação para
fazer emergir o mundo da ficção. Contudo, nos tempos modernos, ou até
pós-modernos, impõe-se outro tipo de reflexão e relação com o mundo.
Esta maneira de enfrentar o mundo já foi antecipada pelos precursores.
Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, representando a
literatura universal em meados do século XIX, e Monteiro Lobato, a
brasileira do início do século XX, alteraram o estatuto da literatura infantil,
como é amplamente identificado pelos críticos:
363
Desta perspectiva podem interpretar-se muitas obras
clássicas de literatura infantil, como Alice no país das
maravilhas, repletos de exigências de leituras impossíveis de
serem realizadas pelo destinatário infantil, mas que ao
contrário, deram condições para a evolução da literatura
para crianças ao abrir caminho para novos modelos
narrativos. Assim, por exemplo, a partir de Carroll, o novo
modelo foi imitado através de formas muitos mais
compreensíveis para crianças, embora menos valorizadas
pela crítica, e passou a constituir um modelo usual para
leitores crianças (COLOMER, 2003, p. 165).
As obras de tais autores precursores alteraram este efeito de
ficcionalidade” para voltarem-se ao próprio código. Carroll e Lobato
criaram personagens similares - Alice e Emília questionavam, cada uma ao
seu modo, o ficcional, o contar ilusório e, “brechtianamente”, tomaram, de
alguma maneira, as rédeas da história. Temperamentais, impunham suas
necessidades. O próprio Lobato reflete sobre a independência de Emília:
Muito interessante o que se passou com meus livros para
crianças. Os personagens foram nascendo ao sabor do acaso e
sem intenções. Emilia começou uma feia boneca de pano,
dessas que nas quitandas do interior custam 200 reis. Mas
rapidamente evoluiu, e evoluiu cabritamente cabritinho novo
aos pinotes. Teoria biológica das mutações. E foi adquirindo
uma tal independência que, não sei em que livro, quando lhe
perguntaram:”Mas que você é, afinal de contas, Emília?ela
responde de queixinho empinado: “Sou a independência ou
morte!E é. Tão independente que nem eu, seu pai, consigo
dominá-la. Quando escrevo um desses livros, ela me entra nos
dois dedos que batem as teclas e diz o que quer, não o que eu
quero que ela seja. Fez de mim um “aparelho”, como se diz
em linguagem esrita (Lobato, 1946, p. 341).
Com isso, pensa-se que a metaficção pode ser encontrada na
literatura infantil contemporânea, pois questionar o código, figurativizar os
problemas de linguagem é um mote freqüente nas obras de literatura
infantil, negando o senso comum apresentado no início da reflexão.
Assim, é possível afirmar que essa expressão apresenta os mesmos
recursos, lida com os mesmos mecanismos discursivos oferecidos pela
364
literatura voltada ao blico adulto e, por isso, constitui-se como um
agente formador do leitor literário.
A partir da definição de Fokkema, conclui-se sobre a pós-
modernidade da literatura infantil contemporânea:
No pós-modernismo, a ênfase posta no código é ainda mais
clara do que nos textos modernistas. Em certos casos, a
questão de saber como deve ser contada uma história é mais
importante que a própria história (FOKKEMA, [s.d], p. 72).
Tomando um caso exemplar, A bela borboleta, de Ziraldo, revela a
metaficção, bem como a intertextualidade
153
produtiva como recurso
metaficcional, pois na medida em que se cita e o leitor é conduzido a
acionar seu repertório o código já está enunciado.
Em A bela borboleta, de Ziraldo e Zélio, esse recurso de linguagem
se concretiza. A citação é recontextualizada, pois, como apresentado, a
personagem foi transferida: Gato-de-Botas, Bela Adormecida, Alice e
outras personagens são retirados de seus contextos originais e
transportadas para um novo (a narrativa d’ A bela borboleta).
Neste livro, as personagens das narrativas do passado “sacodem a
poeira” e vêm lutar por uma causa comum: a leitura. De certa maneira,
os personagens do baú vêm à tona como forma de reafirmar a
necessidade de não deixar morrer as histórias do passado ou do presente.
Além da intertextualidade, o projeto gráfico impõe a reflexão
acerca do próprio objeto-livro, visto que a borboleta está aprisionada no
meio do livro, ela está presa pelos grampos e as personagens das
histórias tradicionais têm a missão de salvá-la, para isso acontecer, o
leitor deve movimentar as páginas do objeto-livro, ou seja, ler.
153
Termo utilizado por COLOMER (2003).
365
Figura 4.11 - A bela borboleta - grampos
As referências aos recursos gráficos são, na obra, o momento de
volta ao código. Pára a ficção e entra a realidade. Estamos em um livro,
constata-se! Este recurso pode também ser observado nas obras
analisadas ao longo do estudo, por exemplo: Jardins, Desertos
(intertextualidade produtiva), Fita Verde no cabelo (figuras acabadas – em
processo e ambigüidade - metaficção) e nas portuguesas, em especial,
Sebastião, em que, pela técnica da colagem, volta-se ao próprio código.
Ainda, os exemplos que seguem:
366
Figura 4.12 - O personagem encalhado
Figura 4.13 - André Letria – História de um Segredo
Como ocorre com grande parte da arte pós-modernista, o
olho é estimulado a completar a forma por si mesmo; tal
contra-expectativa nos instiga para sermos espectadores
ativos, e não passivos (HUTCHEON, 1991, p. 54).
O leitor, nas obras citadas, não é passivo. Ele deve responder a
quatro tarefas fundamentais: a primeira, envolver-se na trama narrativa;
a segunda, reconhecer as citações; a terceira, refletir sobre o próprio
código; e a quarta, preencher os espaços vazios. O leitor que cumpre seu
papel é um sujeito ativo na leitura e, assim, o pretendido pela narrativa
do pós-modernismo. Como aponta Silva-Díaz:
Es frecuente también que estos experimentos literarios
transgredan las barreras entre lo que está dentro de la
historia (el argumento) y lo que está fuera (la situación
comunicativa, el soporte), produciendo el desconcierto del
367
lector. Pues, por lo general, estamos acostumbrados a leer
narraciones convencionales, el personaje, el narratario o la
página permanecen en su debido lugar. […]
Es así como en algunas obras pueden advertirse las
características que se han señalado como propias de las
obras postmoderna: rechazo al realismo, revelación de los
mecanismos que construyen la ficción , conciencia
lingüística, juego, intertextualidad productiva y una voluntad
de producir la perplejidad en el lector o de hacerle participar
en la construcción de la obra. Estas carcteristicas
postmodernas se acumulan en las obras metaficcionales
hasta el punto en que los términos postmodernismo y
metaficción se utilizan como equivalentes (2005, p. 9).
Por meio da sensibilização do sujeito-leitor, sem “cair” em um
“moralismo”, em um “didatismo”, a obra contemporânea alerta o leitor e o
faz consciente a respeito das estratégias de interação.
A linha mais comum dos estudos de literatura infantil e
juvenil é a de tentar aproximar-se das formas de operar na
prática. Aprender a localizar a ideologia implícita nas obras
de ficção é importante para, por exemplo, os setores
educativos, que têm que ensinar às crianças e aos
adolescentes a ler sem ficar a mercê daquilo que lêem
(COLOMER, 2003, p. 119).
Evidenciar a metaficcionalidade das obras é um procedimento
presente na literatura infantil contemporânea que, por isso, deve ser
explorado pelos mediadores.
368
CONCLUSÃO
A SITUAÇÃO DO PROJETO GRÁFICO DOS LIVROS INFANTIS
CONTEMPORÂNEOS EM PORTUGAL E NO BRASIL: ATANDO AS
LINHAS E DESENHOS
Depois de apresentar os autores Manuela Bacelar e Roger Mello, de
realizar análises de suas obras com o objetivo de expor os seus projetos
gráficos, bem como de discutir sobre a insistência intertextual e
metaficcional na literatura infantil contemporânea, para finalizar a
apresentação da investigação realizada, é necessário colocar foco na
discussão comparativa e assim evidenciar a situação do projeto gráfico do
livro infantil em Portugal e no Brasil.
Para isso, que considerar critérios que dizem respeito ao
conteúdo e à expressão. Assim sendo, propõe-se um trajeto que
destacará os seguintes itens: a capa e o material, as técnicas plásticas
empregadas, o papel organizador do projeto gráfico, as abordagens
temáticas e as estratégias para a formação do leitor literário.
Segue, portanto, a apresentação dos critérios de aproximação
entre os projetos gráficos.
A capa e o material
A primeira observação envolve aquele elemento que é mais
aparente no projeto gráfico, a capa. Mais precisamente a qualidade do
material que envolve o objeto-livro, assim como o efeito de sentido
gerado pela estratégia adotada. A preocupação é com a “embalagem” da
obra. Essa é considerada um convite à leitura, visto que a capa é o
primeiro agente de mediação entre leitor e leitura.
369
A partir da análise das capas, é fundamental pensar sobre os
mecanismos de comunicação, que aproximam o leitor da leitura,
cumprindo, com isso, o papel designado.
Para a semiótica discursiva, as estratégias de manipulação do
Destinador obedecem aos seguintes procedimentos, conforme esclarece
Barros (1999, p.33):
a) por sedução – imagem positiva do destinatário (quer-fazer);
b) por intimidação – valores negativos (dever-fazer);
c) por provocação – imagem negativa do destinatário (dever-fazer);
d) por tentação – valores positivos (quer-fazer).
Tendo em vista as diversas capas dos livros infantis, pode-se
afirmar que, predominantemente, salvo algum caso em que se lança mão
da ironia
154
, apenas duas estratégias de manipulação são utilizadas, a
saber: por sedução e por tentação. A partir dessa perspectiva teórica,
analisa-se, particularmente, o caso das capas dos livros infantis que
atuam de maneira geral, a partir das seguintes relações (capa – miolo):
1. relação metonímica (por tentação): aquela em que a personagem ou
o enredo são pontuados, mas não totalmente revelados. Neste caso,
a imagem é destacada do miolo, a capa tem uma imagem especial,
que especifica algum elemento narrativo (personagem, tempo,
espaço, narrador, enredo);
Figura 5.1 – Relação metonímica
154
A obra adulta Bartleby, o escrivão - Uma história de Wall Street utiliza um
procedimento de provocação quando diz na embalagem: “Acho melhor você não
comprar” (MELLVILLE, 2005).
370
2. relação anafórica (por tentação): aquela em que uma imagem do
miolo aparece na capa, antecipando um fato ou situação
narrativa. Difere da anterior, pois a imagem da capa é a mesma
que aparece no miolo;
Figura 5.2 - Relação anafórica
3. relação determinante de gênero (por sedução): aquela em que a
capa apresenta o gênero ao qual a obra remete. Essa modalidade
valoriza a habilidade do leitor em acionar o seu repertório;
Figura 5.3 – Relação determinante de gênero
371
4. relação enigmática (por sedução/por provocação): aquela em que a
capa propõe um enigma que será desvendado ao longo da leitura.
Essa pode ser considerada provocativa, no entanto, a desvalorização
do destinatário é modalizada;
Figura 5.4 – Relação enigmática
5. relação formal (por sedução/por tentação): aquela na qual a capa
apresenta apenas o título da obra e, por vezes, o autor ou autores,
sem haver imagem, conforme capa dura de A sereiazinha.
Figura 5.5 Relação formal
372
Estas funções são utilizadas pelos dois países em questão e também
por capas de livros em geral
155
. O ponto de divergência entre elas está no
material empregado e como esse material gera sentido.
A capa é um componente expressivo no projeto gráfico, pois é ela
quem convida, quem seduz o leitor para a leitura e, portanto, essa
estratégia pode levar à identidade daquele projeto gráfico.
Por exemplo, enquanto em Portugal a capa é dura, no Brasil, é
mole. Ainda, neste contexto brasileiro, faz-se restrição ao número de
cores utilizadas, e o papel, por vezes, é de gramagem mais baixa. Não se
pode, contudo, afirmar que o livro infantil brasileiro seja, por oposição ao
português, mais acessível ao leitor de baixa renda, que a opção pela
capa mole reduziria o custo e por isso seria mais acessível; pelo contrário,
neste contexto, implicações sociais - de escolarização e de políticas
públicas - determinantes da distância entre criança e livro. Entretanto,
não é pertinente dizer que o livro infantil brasileiro tenha qualidade
inferior do ponto de vista plástico. O que há são caminhos e opções
distintos, e isso resulta de contextos com histórias e valores diferentes e,
quem sabe, com influências artísticas e culturais distintas.
Essa discussão é importante, visto que é raro, se não inexistente, o
intercâmbio das publicões dos livros infantis entre esses dois países que
têm a língua portuguesa em comum. Como pondera Natércia Rocha:
A circulação de livros entre Portugal e o Brasil nunca foi fácil
nem satisfatória, mas sempre tem permanecido como um
sonho que, uma vez por outra, se aproxima de uma
realidade desejada. O fantasma dos acordos ortográficos e
das variantes vocabulares é uma constante nas tentativas
efectuadas
156
(2001, p. 167).
155
Conforme apresentado por: TREVISAN, C. A construção da identidade das editoras
pelas 1
as
. capas: Record e Cosac Naify. São Paulo, 2008. Dissertação (Mestrado em
Comunicação e Semiótica). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
156
A obra de Narcia Rocha, Breve História da Literatura para crianças em Portugal - nova
edição actualizada até ao ano 2000 - é anterior ao acordo ortográfico realizado em 2008.
373
Mesmo quando existe o diálogo entre as publicações desses países,
é válido observar que a obra, no outro país, obedecerá aos padrões
impostos por aquele contexto mercadológico, social e cultural. Por isso, é
freqüente que o material da capa seja alterado, por exemplo: quando a
obra A maior flor do mundo, de José Saramago, ilustrada por João
Caetano, foi publicada no Brasil pela Cia das Letrinhas, ganhou capa mole,
sendo que, originalmente, era apresentada em capa dura. Nesta obra, em
particular, a opção pela capa mole não alterou o modo de ler e, portanto,
a significação dela. Contudo, em outra situação, quando ao editar, na obra
Cena de Rua, de Ângela Lago, a editora venezuelana Ekaré optou pela
capa dura, isso implicou na perda do mecanismo da dobra do livro que,
pelo movimento das páginas, criava dois efeitos: o movimento da
personagem principal e o efeito de profundidade no cenário.
Ressalta-se, ainda, a questão da mudança de ilustração; na
publicação brasileira da obra de José Saramago e em outras, manteve-se
o ilustrador da obra original, mas existem casos em que um ilustrador
“local” dialoga com o texto verbal estrangeiro, como no caso de
Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque, que foi publicada em Portugal
com a interessante ilustração de André Letria
157
, conforme se apresenta,
por exemplo, na capa abaixo:
Figura 5.6 Edição portuguesa
157
o é proposta deste estudo investigar esta situação, mas um campo
investigativo bastante interessante.
374
Enfatiza-se, também, que a obra envolvida pela capa dura produz o
efeito de formalização, efeito de uma obra valorizada, os chamados “livros
para presente” (ou “livro de oferta”), como é comum em solo europeu.
No Brasil, esta prática o é comum; no entanto, a editora
Cosacnaif vem apostando nesta estratégia mercadológica. Em suas obras
para crianças, tem imprimido um novo conceito quanto à publicação dos
livros infantis brasileiros. As obras Lampião & Lancelote, de Fernando
Vilela, No longe dos Gerais, de Nelson Cruz e Conto de escola, de Machado
de Assis, com ilustrações de Nelson Cruz, são exemplos disso.
Além da capa, a qualidade do papel empregado também é
importante. Nota-se que os três livros portugueses analisados
apresentam-se em papel couché ou de alta gramagem. Não há variação
na escolha do papel devido à qualidade de impressão alcançada e essa
opção corrobora com a capa dura e a perspectiva de uma apresentação
mais “tradicional”, em que a diversificação do tipo de papel não é
considerada. Por esse padrão editorial, age-se como se houvesse uma
certa “imposição”, uma norma a ser seguida para a publicação das obras
infantis, garantindo a qualidade da impressão.
No cenário brasileiro, a situação é diferente, visto que a opção por
papel vergê, papel de gramagem baixa, papel de diferentes texturas, é
Figura 5.8 No
longe dos Gerais
Figura 5.7 – Lancelote &
Lampião
Figura 5.9 – Conto
de escola
375
elemento partícipe do projeto gráfico, constituindo-se como aspecto
significante e auxiliar na produção do sentido. As obras Jardins e
Desertos
158
, de Roger Mello e De Morte! e Charadas Macabras, de Ângela
Lago são exemplos desta contribuição do papel como elemento expressivo
do projeto gráfico:
Figura 5.10 – Charadas macabras
Figura 5.11 – De morte!
158
Como apresentado em análise anterior.
376
É importante ressaltar, mais uma vez, que o artista responsável
pelo projeto gráfico, que pode ou não ser o produtor das imagens, articula
a materialidade dos componentes do livro de maneira que todos, em
conjunto, comunguem para contar a história e isso produz um efeito de
sentido coerente, ou não, com a proposta do projeto gráfico.
Assim, esquematiza-se:
Tabela 5.1 - A CAPA E O MATERIAL
Portugal Brasil
1) Estratégias
de Manipulação
Por sedução/Por
tentação:
Metonímica, anafórica,
determinante do gênero,
enigmática e formal
Por sedução/Por
tentação:
Metonímica, anafórica,
determinante do gênero,
enigmática e formal
2) Capa e Papel Dura/papel couché fosco
Mole/papel diversificado
de acordo com a proposta
do projeto.
As técnicas plásticas empregadas
Nas análises das obras dos artistas Manuela Bacelar e Roger Mello,
evidenciaram-se, em cada livro, as técnicas empregadas, como: óleo,
aquarela, marcador em pastel ou nanquim, lápis de cor, preenchimento de
cor pelo computador, colagem, entre outros. Cada uma das técnicas
constituía, de certa maneira, como foi demonstrado, se não o estilo do
artista, pelo menos a identidade daquele projeto gráfico. Observando as
produções para crianças nos dois cenários eleitos, o que há é a diversidade
de técnicas empregadas. Contudo, é possível reconhecer tendências.
377
Em Portugal, a técnica da colagem é recorrente, ocupando grande
parte das estantes das livrarias; a outra parte é ocupada por imagens que
empregam técnicas pictóricas. Abaixo, demonstra-se a afirmação:
Figura 5.13 – Palavra para lavra
Figura 5.14 - O perfume do sonho, na tarde
Figura 5.12 – A maior
flor do mundo
378
Figura 5.15 - André Letria Figura 5.16 – Danuta Wojciechowska
Figura 5.17 - Marta Torrão
No Brasil, o fascínio no emprego da tecnologia, e os artistas,
cada vez mais, apropriam-se do computador como ferramenta e, muitas
vezes, associada à prática de tinta e papel. Seguem as imagens que
confirmam a afirmação. Pode-se afirmar que, no Brasil, a tendência é
gráfica, enquanto em Portugal, pictórica:
379
Figura 5.18 – Sua alteza, a divinha Figura 5.19 – A raça perfeita
Outro aspecto de divergência entre os projetos é em relação ao
estilo (como expressão da individualidade). Como apontado por Rui
Oliveira durante as análises, o “modo de fazer” é determinado pela
proposta da obra, no entanto, tomando como exemplo dois artistas que
não foram analisados, a saber: André Letria e Ângela Lago, para assim
dar maior credibilidade ao argumento, que estende a amostragem, o
que se nota é um estilo (individual) mais pré-marcado em Portugal,
enquanto no Brasil, o estilo é “camaleão”, ou seja, transforma-se a partir
da concepção do livro-objeto:
Figura 5.20 – André Letria
380
Figura 5.21 – Angela Lago
Assim, esquematiza-se:
Tabela 5.2 - As cnicas plásticas empregadas
Portugal Brasil
1) Técnica
Pictórica Gráfica
2) Estilo
Individualidade mais
marcada
Individualidade menos marcada
(adequação ao projeto)
O papel organizador do projeto gráfico
Além desses critérios, outro aspecto a ser considerado por este
estudo comparativo é a relação entre os produtores dos textos, a saber: o
autor do texto verbal, o autor do texto visual e o autor do projeto gráfico,
381
como anteriormente pontuado, são considerados como enunciadores do
discurso. Sendo assim, observa-se uma realidade distinta nos dois países:
em Portugal, a tendência é produzir projetos cujas mídias contem histórias
paralelas, enquanto no Brasil, a tendência se apropria do conceito de
livro-álbum.
É evidente que, em função da diversidade das obras produzidas
para crianças, é possível identificar exemplos de: livros-ilustrados, livros-
álbum e livros de imagem em ambos cenários, contudo, há predominância
no Brasil do livro-álbum e, em Portugal, do livro-ilustrado.
No Brasil, para demonstrar a afirmação, citam-se as seguintes
obras, dentre outras, que utilizam palavra e imagem para produzir a
narrativa: Chiquita Bacana e outras pequetitas, Sua Alteza a divinha, de
Ângela Lago; Flicts, O menino mais bonito do mundo, O menino
quadradinho, O menino maluquinho e A bela borboleta, de Ziraldo; s, A
bruxinha e os 80 docinhos e O problema do Clóvis, de Eva Furnari; A casa
do meu avô e O homem no sótão, de Ricardo Azevedo, Griso, o unicórnio
e Vizinho, Vizinha, de Roger Mello
159
.
Em Portugal, em pesquisa de campo, foi possível localizar os
seguintes livros-álbum: A flor de um mês, de José Jorge Letria e imagens
de André Letria; A história de um segredo, de Paulo Cotrim e imagens de
André Letria; O dinossauro, de Manuela Bacelar; Come a sopa, Marta!, de
Marta Torrão; A maior flor do mundo, de JoSaramago e imagens de
João Caetano; entre outros. livros-ilustrados são inúmeros: A
Sereiazinha, de Hans Christian Andersen e imagens de Manuela Bacelar;
Os ovos misteriosos, de Luisa Ducla Soares e imagens de Manuela
Bacelar, Silka, de Ilse Losa e imagens de Manuela Bacelar; Timor Lorosae:
a ilha do sol nascente, de João Pedro Messéder e imagens de André Letria,
entre outros.
Com isso, não se quer dizer que o livro-álbum tenha qualidade
superior à do livro ilustrado, a intenção é apenas pontuar que o livro-
159
Vale pontuar que existem muitos outros dos mesmos autores e também de outros
autores e ilustradores.
382
álbum possibilita a exploração do projeto gráfico como um todo de
sentido, em que as mídias se intercomunicam, no livro-ilustrado,
podem-se valorizar os recursos da palavra e os recursos da imagem, mas
as mídias têm caminhos paralelos.
A partir disso, segue-se o percurso comparativo para explicitar a
motivação dessa situação em cada um dos espaços problematizados pela
discussão apresentada.
No Brasil, a história em quadrinhos foi, no início da década de 50,
rechaçada pela educação, mas não pelos artistas, pelo contrário, muitos
artistas plásticos se aventuraram por elas e, por esse atalho, tornaram-se
autores infantis. Cada autor, obviamente, tem seu percurso, mas pode-se
dizer que a produção dos quadrinhos, cartoons, charges fizeram escola no
Brasil e que a literatura infantil brasileira é, claramente, influenciada por
essa linguagem, como apresentado nas análises, caracterizando a
aproximação com o livro-álbum e também com o estilo gráfico, tratados
no item anterior.
Em Portugal, o se percebe a influência tão evidente dos
quadrinhos
160
. Normalmente, o produtor de imagens para o livro infantil
tem um trabalho paralelo como artista plástico, e não gráfico. As imagens
abaixo sustentam a afirmação:
160
Esse é uma dado que aponta para a ausência de artistas com a dupla vocação e para a
inexistência de equipes de trabalho. A equipe formada para a produção das histórias
em quadrinhos contribui para essa vivência como demonstrado no catulo 3.
383
Figura 5.22 – Marta Torrão Figura 5.23 – Maria Kheil
Em território português, o artista produz uma tela que vai ser
impressa; no Brasil, a técnica passa pela confecção de uma “boneca”,
como explica Guto Lins:
Com a boneca do livro é possível testar a influência real de
cada página comparativamente. O objetivo da boneca é
simular o produto cada vez mais próximo da realidade. Nesta
fase planeja-se o projeto gráfico e as ilustrações quase que
simultaneamente, definindo “movimento de câmera” e
“closes” e o ritmo de todo o livro. O projeto gráfico além de
determinar as manchas gráficas, define as respirações e os
espaços em branco necessários (2004, p. 62).
Ao projetar as imagens no espaço do livro, o artista é levado a
pensar sobre este suporte, bastante distinto de uma tela, o quadro. Como
se observa nas imagens a seguir:
384
Da explicação apresentada por Guto Lins, é possível extrair outro
critério divergente entre as expressões visuais da literatura infantil, a
saber: o “movimento de câmera” e os “closes”. No Brasil, este recurso é
utilizado de maneira bastante diversa, imprimindo movimento às imagens
Chiquita Bacana e outras pequetitas e Cena de rua, de Ângela Lago, o
exemplos de que o recurso é radicalmente explorado. Em Portugal, como
Figura 5.2
4
A exposição
, em Portugal
imagem de
Gemeo Luis
Figura 5.25 - A “boneca” – no Brasil – imagem da
obra de Graça Lima
385
apresentado nas imagens abaixo, a opção é pela estaticidade das
imagens. Destaca-se, no entanto, neste cenário, a obra de Gêmeo Luis,
que trabalha com esculturas de papel nas quais o movimento é constante.
Esse exemplo é uma exceção.
Figura 5.26 - João Caetano Figura 5.27 – André Letria
Figura 5.28 - Angela Lago
386
Figura 5.29 - Gemeo Luis
Tendo em vista os diversos recursos empregados, observa-se que as
diferentes expressões artísticas – cinema, quadrinhos, artes plásticas –
encontram campo rtil para esse diálogo no livro para crianças. A imagem
faz do livro infantil um objeto para todos os sentidos. É evidente que a
palavra, com sua força poética, fratura o tempo e sinestesicamente atua
sobre o corpo do sujeito, afinal, o que a literatura infantil pretende é
justamente formar o leitor literio e, portanto, é fundamental destacar a
força da palavra em si e dos recursos expressivos próprios aos discursos
literios em geral, como abordado por Colomer (2003), em A formação do
leitor literário, quando a estudiosa pontua que a função da literatura infantil
é apresentar a arte literária às crianças, com suas variações e
complexidades. Silva-Díaz (2005) também segue esse princípio ao abordar o
álbum metaficcional como uma tendência da literatura infantil atual
161
.
A criança, contudo, como foi ponderado ao longo das análises, tem
os sentidos à flor da pele e seu tempo obedece a um ritmo diferente o
161
Ambas propostas citadas farão parte das discussões sobre as novas tendências da
literatura infantil.
387
ritmo para os pequenos é acelerado, imediato, dada à urgência em
conhecer o mundo. Muitas vezes, esse tempo é difícil de ser partilhado
pelo adulto. O mundo está repleto de estímulos, e à criança cabe o esforço
de percebê-los. O livro, ainda, é concorrente direto dos estímulos do
mundo e mais um estímulo dado à criança. Por isso mesmo, não pode (ou
não poderia) ser um objeto neutro, desinteressante. Deve, sim, oferecer
uma vitamina doce e saudável” para os sentidos, e, por essas
características, o entrecruzar de sistemas semióticos tem no livro infantil
um ambiente extremamente favorável ao seu desabrochar.
Contrariamente ao que se pensava no passado, em que a palavra própria
ao livro infantil era a dos manuais escolares, hoje, a função da literatura
para crianças é introduzir o leitor no rico universo poético-literário. Então,
deve-se afastar, o máximo possível, o livro dos manuais escolares e
aproximá-lo da arte em todas as suas formas e expressões.
Assim, esquematiza-se:
Tabela 5.3 - Técnicas plásticas empregadas
Portugal Brasil
1) Gênero
Livro
-
ilustrado
Livro
-
álbum
2) Influências Arte pictórica
Histórias em
quadrinhos
3) Procedimentos Tela - impressão Boneca
4) Efeito Estaticidade Dinamicidade
Entretanto, nem só de expressão e experimentos vive o livro dados
às crianças. Passa-se, pois, ao conteúdo.
388
As abordagens temáticas
Estabelecer padrões no que diz respeito ao conteúdo literário é
bastante difícil, pois a vida em sentido amplo está repleta de histórias” e
estímulos que merecem ser contados:
O estilo artístico não trabalha com palavras, mas com
elementos do mundo, com valores do mundo e da vida; esse
estilo pode ser definido como um conjunto de procedimentos
de informação e acabamento do homem e do seu mundo, e
determina a relação também com o material, a palavra, cuja
natureza, evidentemente, deve-se conhecer para
compreender tal relação. O artista trata diretamente com o
objeto enquanto momento do acontecimento do mundo e
isso determina posteriormente (aqui, é claro, não se trata de
ordem cronológica, mas de hierarquia de valores) a sua
relação com o significado concreto da palavra enquanto
elemento puramente verbal do contexto, determina o uso do
elemento fonético (imagem acústica), do emocional (a
própria emoção tem relação axiológica com o objeto, está
orientada para o objeto e não para a palavra, embora o
objeto também possa ser não dado sem levar em conta a
palavra, do pictural, etc. (BAKHTIN, 2003, p. 181).
Apesar de a vida ser rica em histórias, é possível destacar as
temáticas recorrentes nos livros infantis contemporâneos de Portugal e do
Brasil e ainda refletir sobre aquilo que Colomer aponta como ideologia das
produções infantis atuais
162
.
Partindo do ponto de vista apresentado, é plausível concluir que em
Portugal a temática da própria História Nacional é uma constante; são
exemplos disso: A flor de um mês, de José Jorge Letria e André Letria;
Timor Lorosae - a ilha do sol nascente, de João Pedro Messéder e André
Letria; A história de um segredo, de Paulo Cotrim e André Letria;
Sebastião, de Manuela Bacelar e até O dinossauro (de Bacelar), que foi
analisada por este estudo, pode ser lida como uma metáfora do território
162
Conforme referido no catulo 4.
389
português, como uma Jangada de Pedra; que neste caso, Portugal sai
para “visitar” outros países e depois volta à sua condição original.
No Brasil, enorme diversidade de abordagens. Existem obras
com temáticas regionais: Caçadores de aventuras, Daniel Munduruku e
Inez Martins (il.), Catando piolhos, contando histórias, Daniel Munduruku
e Matè (il.), Histórias que o povo conta, Ricardo Azevedo, Contos de bicho
do mato, de Ricardo Azevedo. Também, a condição do homem
contemporâneo se tornar tema, como em Vizinho, Vizinha. Posto isso, é
difícil apontar uma temática recorrente. No entanto, desde Ziraldo
163
, o
livro se volta para o próprio livro, em procedimento metaficcional, e essa
acaba sendo uma abordagem recorrente em território nacional. Os
exemplos dessa abordagem são: A bela borboleta, de Ziraldo; O problema
do Clóvis, de Eva Furnari, O personagem encalhado, de Ângela Lago,
entre outros.
Surge, então, o livro-álbum metaficcional como terreno fértil à
experimentação, para alcançar o objetivo exposto:
Não por casualidade as fronteiras profissionais entre os
ilustradores, pintores, publicitários, desenhistas de humor ou
de quadrinhos, etc., tornaram-se permeáveis nos últimos
tempos e os álbuns converteram-se em um campo propício à
experimentação artística (COLOMER, 2003, 130).
Se investiga-se a produção gráfica, deve-se abordar alguns
aspectos que necessitam avaliação no momento de escolha do livro, tendo
em vista que o que se pretende é a formação de um leitor literário, como
afirma Silva-Díaz (2005):
Aún cuando proponen una lectura distanciada las obras
metaficcionales involucran activamente a sus lectores en la
producción de sentido. Los lectores de metaficción se
adentran en un mundo ficcional que se reconoce como tal, y
que, activa sus conocimientos acerca de las convenciones
163
Muitas vezes, Monteiro Lobato utiliza recursos que o fazem, sem dúvida, um autor da
pós-contemporaneidade, com em Memória de Emília, para citar um exemplo.
390
literarias instándoles a resolver las contradicciones y a
interactuar críticamente con la formulación que el texto
realiza sobre la naturaleza y el funcionamiento de lo literario.
De esta manera se amplía su experiencia de la literatura
(2005, p.21).
Assim, esquematiza-se:
Tabela 5.4 – Abordagens temáticas
Portugal Brasil
Hisria Nacional Metaficcionalidade
Tabela 5.5 - Comparativo das características da literatura infantil
contemporânea
Portugal Brasil
Capa
Por sedução/Por tentação:
Metonímica, anafórica,
determinante do gênero,
enigmática e formal
Por sedução/Por tentação:
Metonímica, anafórica,
determinante do gênero,
enigmática e formal
Papel Dura/ papel couché fosco
Mole/ papel diversificado
de acordo com a proposta
do projeto
Técnica Pictórica Gráfica
Estilo
Individualidade mais
marcada
Individualidade menos
marcada (adequação ao
projeto)
nero Livro-ilustrado Livro-álbum
Influência Arte pictórica Historias em quadrinhos
Criação Tela - impressão Boneca
Temática Hisria Nacional Metaficcionalidade
391
Estratégias para formação do leitor literário
Unindo conteúdo e expreso, o objetivo da literatura infantil é,
como pontuado no item anterior, introduzir o leitor no universo das artes
literárias que, como todo o código, lança mão de algumas estratégias.
Então, é tarefa da literatura infantil formar o leitor de maneira que ele
desenvolva habilidades para transitar livremente pelo território das letras.
Posto isso, é plauvel enumerar as qualidades literárias que um
álbum metaficcional apresenta, para assim verificar se ele leva à formação
do leitor literio, tal como quer. Colomer (2003), em estudo sobre a
formação do leitor literário, observa que os álbuns obedecem a um sentido
que mescla o conhecido com o desconhecido, pois para que o leitor
decodifique a mensagem do texto ele deve ter pontos de familiarização para
instaurar mecanismos de desfamiliarização; cita ainda Whalen-Levitt (1984,
apud Colomer, 2003) e sua classificação das maneiras mais freqüentes com
as quais os álbuns jogam com as convenções:
a) Violão do sentido comum da visão do mundo, com
imagens impossíveis na realidade, do tipo das escadas enlaçadas de
Moebius.
b) Manipulação do ponto de vista ao propor perspectivas
alternadas.
c) Camuflagem das imagens em outros objetos,
ressaltando suas relações de semelhança e diferença.
d) Alusões a outras obras de arte, como, por exemplo,
quadros famosos (2003, p.107).
Além dos aspectos literários, não pode se perder de vista que o
livro-álbum impõe uma reflexão que vai além das estratégias do conteúdo
(que se dá tanto pelo texto verbal quanto pelo texto visual), passa
também pela expressão; essa implicação atribui uma complexidade ainda
maior ao livro infantil:
392
Longe da idéia de uma amável literatura para crianças
pequenas, o álbum produziu as maiores tensões educativas
e estéticas da produção infantil e, em lugar de oferecer-se
como o tipo de livro mais simples, resultou em um dos
gêneros mais complexos da literatura para crianças e
jovens, que utiliza simultaneamente duas formas de arte,
a plástica e a linguagem, e porque implica dois receptores,
as crianças e os adultos. A necessidade de inter-relacionar
os conhecimentos críticos do âmbito literário e da imagem
parece, pois, absolutamente incontestável no campo da
literatura infantil (COLOMER, 2003, p. 105).
Seguindo o percurso imposto no início do estudo que ora se
apresenta, pontua-se esquematicamente os critérios de avaliação que
seriam pertinentes de serem considerados no momento de escolha de um
livro infantil:
Tabela 5.6 - Critérios para avaliação de um projeto gráfico
Qualidades da
expressão
1) Capa e sua estratégia de
manipulação
2) Contracapa e coerência
3) Título: legibilidade e coerência
4) Tipo de letra: legibilidade e
coerência
5) Imagem de abertura:
sugestividade e coerência
6) Formato: ergonomia e coerência
7) Tipo de papel: coerência
8) Disposição das palavras e das
imagens na página: acréscimo de
sentido
9) Ritmo imposto pelo objeto:
coerência
10) Técnica empregada: coencia ou
estilo
11)
Como diz o
que diz?
393
Qualidades do
conteúdo
1) Atende ao objetivo proposto
2) Recorre às habilidades diversas
3) Aciona e amplia o repertório do
leitor
4) Estabelece relação
coerente/criativa – capa e miolo
5) Utiliza recursos intertextuais
6) Recorre a outras expressões
artísticas
7) Atende à ideologia desejada
O que diz?
A partir desses apontamentos, cabe ao mediador interrogar sobre
as suas intenções e contrapor aquilo que a obra apresenta, pensando
sobre os seguintes aspectos:
Propostas para a mediação:
a) Investigar e detalhar os discursos e objetivos sociais;
b) Relacionar as habilidades interpretativas entre a obra e as
diferentes mídias;
c) Alimentar a leitura com outros textos;
d) Promover diálogos entre leitores e entre diferentes expressões;
e) Promover leituras silenciosas;
f) Aceitar os livros “da moda” e ser sensível ao campo de interesse,
buscando ampliá-lo;
g) Dotar os leitores de habilidades para sentirem-se donos da
leitura;
h) Apresentar livros coerentes com a proposta desejada.
394
A partir dessa proposta, é possível tecer relações entre os distintos
sistemas semióticos, identificar as vozes discursivas e ponderar sobre o ato
da leitura voltada ao próprio código. Com este tecido em os, cabe ao
mediador confeccionar os leitores literários que estão por aí ou que virão.
Clavo mi remo en el agua
Llevo tu remo en el mío
Creo que he visto una luz al otro lado del río
Oigo una voz que me llama casi un suspiro
Rema, rema, rema-a Rema, rema, rema-a
(Jorge Drexler)
395
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