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MARIA CRISTINA XAVIER DE OLIVEIRA
A Arte dos “Quadrinhos” e o Literário
A contribuição do diálogo entre o Verbal e o Visual
para a reprodução e inovação dos modelos clássicos da cultura
Tese de Doutorado apresentada ao
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo. Área
dos Estudos Comparados de Literaturas de
Língua Portuguesa. Orientadora: Prof.ª Dr.ª
Nelly Novaes Coelho.
SÃO PAULO
2008
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MARIA CRISTINA XAVIER DE OLIVEIRA
A Arte dos “Quadrinhos” e o Literário
A contribuição do diálogo entre o Verbal e o Visual
para a reprodução e inovação dos modelos clássicos da cultura
Tese de Doutorado apresentada ao
Departamento de Letras Clássicas e
Vernáculas da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo. Área dos
Estudos Comparados de Literaturas de
Língua Portuguesa. Orientadora: Prof.ª
Dr.ª Nelly Novaes Coelho.
Dezembro de 2008.
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________
Drª MARIA ZILDA DA CUNHA
Universidade de São Paulo
_______________________________________________________
Drº JOSÉ NICOLAU GREGORIN FILHO
Universidade de São Paulo
_______________________________________________________
Drª IDMÉA SEMEGHINI SIQUEIRA
Universidade de São Paulo
_______________________________________________________
Drº JOSÉ MARIA RODRIGUES FILHO
Universidade Mogi das Cruzes
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A
Alfredo Rodrigues de Oliveira, in memorian
Pai, amigo e mestre por toda vida.
O “Sempre Presente”
AGRADECIMENTOS
A meu pai, minha mãe, minhas irmãs e sobrinhas que tanto enriquecem a minha
história.
À Universidade de São Paulo, por possibilitar o desenvolvimento dessa Tese.
À prof.ª Dr.ª Nelly Novaes Coelho, pelo valioso auxílio na orientação desse trabalho,
permitindo novas reflexões e inspirações e, acima de tudo, por acreditar e me
impulsionar para a continuidade de minha caminhada.
Aos Professores Dr.ª Maria Zilda da Cunha e Dr.º José Nicolau Gregorin Filho pela
participação nas minhas bancas de Qualificação e Defesa, e pela contribuição precisa
em momentos decisivos da confecção desse estudo.
Aos professores Dr.ª Idméa Semeghini e Dr.º José Maria Rodrigues por participarem da
minha banca de Defesa e aos demais docentes que me auxiliaram durante a jornada
acadêmica: Dr.ª Maria Lúcia Góes, Dr.ª Maria dos Prazeres, Dr.ª Cláudia Dornbusch,
Dr.ª Selma Meireles, Dr.º Ismail Xavier e Dr.ª Daisy Piccinini, dentre outros.
Aos teóricos, professores e autores que trabalham ou trabalharam com quadrinhos e
cujas contribuições foram de vital importância para a compreensão da arte seqüencial:
Moacy Cirne, Luiz Cagnin, Álvaro de Moya, Waldomiro Vergueiro, Flávio Calazans,
Will Eisner, Scott McCloud, etc.
À Lourdes pelo importante auxílio, à Ivete Irene pelo grande apoio, e a todos aqueles
que mesmo não citados me auxiliaram de alguma forma, seja fornecendo material,
informação ou incentivo; minha gratidão.
RESUMO
A interação entre diferentes linguagens e meios artísticos é uma das marcas presente no
processo de comunicação humana, sobretudo hoje em dia. Um dos aspectos que se
destaca nessa interação é a constante revisitação de obras que são re-elaboradas em
diferentes suportes comunicativos. É o que ocorre quando temos o diálogo entre os
quadrinhos e a literatura, artes que trabalham com a narratividade e que trazem em si
peculiaridades que as definem como importantes meios de veiculação e propagação de
idéias, valores e ideologias. Nesse estudo procuramos abordar a relação entre os dois
meios artísticos destacando se tal diálogo propicia uma reprodução ou questionamento
das tradições culturais, atualizando-as (ou não) a partir de sua transposição de uma arte
para outra. A partir de teorias que versam sobre quadrinhos, intertextualidade,
dialogismo, história da arte e da literatura e outras, traçamos um painel das diversas
relações que se estabelecem entre obras criadas nos quadrinhos a partir do material
literário, e que se revelam por meio de uma gradação em que temos desde obras que
remetem diretamente ao texto clássico literário até aquelas que procuram fazer dos
elementos oriundos da literatura um mote para o desenvolvimento de novas produções
em quadrinhos. Também num movimento contrário, procuramos mostrar como os
quadrinhos fornecem material para a criação de obras na literatura e como sua
linguagem múltipla pode atuar em conjunto com o texto literário para a construção de
obras mistas.
Palavras-chave: quadrinhos, literatura, linguagem, narrativas, dialogismo.
ABSTRACT
The interaction between different languages and artistic circles is one of the main issues
in the process of human communication, especially today. One thing that stands out is
that the constant interaction revisiting of works that are re-elaborated in various
communication media. This is what happens when there is a dialogue between comics
and literature, both arts which work with narrative and are filled with peculiarities that
define them as important means of transmitting and spreading ideas, values and
ideologies. In this study we tried to address the relationship between those two media
arts, highlighting the questions concerning whether this dialogue provides a repetition
or a questioning of cultural traditions, updating them (or not) from this translation of
one art to another. Based on theories that deal with comics, intertexture, dialogism,
history of art and literature and others, we draw a panel of the diverse relationships
established between works created in comics from literary material, which reveal
themselves by means of a gradation that goes from works that refer directly to the
classic literary text to those who attempt to make the elements of literature a means for
the development of new productions in comics. Also in an opposite movement, we try
to show how comics provide material for the creation of works in literature and its
varied language can co-act with the literary text for the construction of mixed works.
Keywords: Comics. Literature. Languages. Narratives. Dialogism.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...............................................................................................................9
1. O VERBAL E O VISUAL: CONTEXTO HISTÓRICO.....................................16
1.1. Pré-História......................................................................................................17
1.2. Surgimento da linguagem escrita...................................................................19
1.3. Letras e desenhos nas sociedades...................................................................22
1.4. Os quadrinhos e o encontro entre o verbal e o visual..................................26
2. A CONSTRUÇÃO NARRATIVA E SEUS CÓDIGOS......................................35
2.1 O código narrativo............................................................................................37
2.2 Literatura: arte de contar estórias..................................................................42
2.3 HQs e as múltiplas linguagens.........................................................................45
2.3.1 A leitura dos intervalos.........................................................................47
2.3.2 Personagens e falas...............................................................................51
2.3.3 Narração em movimento......................................................................55
3. QUADRINHOS E LITERATURA: RELAÇÕES DIALÓGICAS.....................61
3.1. Transposições culturais: absorção e transformação.....................................66
3.2. Da literatura para os quadrinhos...................................................................73
3.2.1. Mantendo o texto-base...........................................................................74
a) A Moreninha, um gancho para a literatura........................................76
b) Gaetaninho – crônica em quadrinhos...............................................88
3.2.2 Inserção de novas dimensões narrativas..............................................97
a) Os Lusíadas: uma aventura intergaláctica.........................................98
b) Branca de Neve num jogo de montar..............................................107
3.2.3 Diálogo para novas obras...................................................................117
a) Fábulas e fadas na mira do humor................................................ ..118
b) Shakespeare no mundo dos sonhos............................................. ....131
3.2.4 Interferências e aproximações...........................................................143
3.3 Outras formas de interação.........................................................................147
3.3.1 Das HQs para os livros.......................................................................147
a) A desconstrução e a renovação do herói..................................... ..148
b) Transpondo linguagens: uma leitura fiel.................................... ...155
3.3.2 Quadrinhos e literatura atuando em conjunto.......................... ......161
a) Quadrinhos – ilustrando o literário................................................163
b) HQ e literatura: complementaridade narrativa..............................169
3.3.3 Intercruzamentos narrativos.............................................................177
CONCLUSÃO ...........................................................................................................179
BIBLIOGRAFIA........................................................................................................185
ÍNDICE DE FIGURAS.............................................................................................201
INTRODUÇÃO
“... Alguns preferem a literatura; outros, os
quadrinhos. Nós preferimos os dois. Em alguns
momentos, a literatura nos diz mais, ou muito mais;
em outros, o bom quadrinho nos é mais significativo.
Aqueles que só preferem a literatura (e o cinema)
deixam de fora uma parte do saber cultural; aqueles
que só preferem os quadrinhos perdem a
possibilidade de se enriquecerem culturalmente.”
Moacy Cirne
A necessidade de expressar ou de tornar realidade comunicável aos outros, suas
experiências vividas, levou o Homem, desde a origem dos tempos, a inventar as mais
variadas formas comunicativas. Essa necessidade de comunicação se confirma, através
dos milênios, pelos registros deixados nas paredes das cavernas paleolíticas, e chegam
aos nossos tempos, com os complexos processos da cultura cibernética. O diálogo entre
as diversas formas de expressão artística tem sido, por sua vez, uma das importantes
modalidades de comunicação inventadas pelos homens para elaborar as mais variadas
narrativas, produzindo abstrações e sentidos dos mais diversos, demonstrando que, ao
longo dos tempos, as obras não só estão em constante interação entre si, mas também
com o mundo que as cerca, trazendo à tona influências intra e extra textuais.
Um aspecto importante da inter-relação entre as formas culturais é a constante
revisitação de obras que são re-elaboradas em diferentes suportes comunicativos. É o
caso das adaptações e outros diálogos, em que uma determinada criação artística é
9
representada em diferentes meios, estando sujeita aos mecanismos próprios de elaboração
daquele suporte. A revisitação de temas, personagens, etc., criados no passado, demonstra
que a essência dos valores presentes nas representações culturais de ontem continuam
vivos, pois dizem respeito à natureza humana. É bom lembrar que as obras
continuamente revisitadas ao longo dos tempos trazem em si algo de “eterno”, que as
torna atemporais: “[...] toda grande obra [...] que venceu o Tempo e continua ‘falando’ ao
interesse de cada nova geração, atende a outros ‘motivos’, [...] decorrentes de uma
verdade humana geral” (COELHO, 1981, p.23).
Dentre os meios expressivos que revisitam e realizam diferentes formas de
diálogo com obras produzidas em outros suportes, está a história em quadrinhos (HQ).
Arte narrativa por natureza, o quadrinho traz em si grande potencial comunicativo,
apresentando uma união própria entre as linguagens verbal e não-verbal. Com a literatura,
arte que também trabalha com a narratividade, o quadrinho tem estabelecido uma ampla
interação, em que as linguagens e enredos se interseccionam para o desenvolvimento de
várias obras. Como leitora dos dois meios foi possível verificar que ambos apresentam
recursos que, se bem aproveitados, podem enriquecer e possibilitar diferentes formas de
comunicação, permitindo novos “olhares” sobre a sociedade e a existência humana.
Apesar da ampla popularidade dos “quadrinhos” como entretenimento temos
poucas reflexões teóricas sobre seus processos de criação que nos permitam compreender
como se dá o diálogo quadrinhos-literatura na prática: quais as possibilidades de união e
intersecção entre os suportes? Qual a contribuição de tal interação para a produção
10
cultural do nosso tempo? Que relações existiriam entre esse tipo de arte visual-verbal e as
experiências da vida humana? A escolha do nosso tema resulta, pois, da necessidade de
se construir um embasamento teórico que nos auxilie a entender o processo de construção
narrativa, resultado do diálogo texto-ilustração, embasamento que será de grande
importância para o estudo acadêmico dessa popular e cada vez mais sofisticada e
complexa forma de arte e suas relações com as manifestações culturais próprias do
mundo em que vivemos atualmente.
O objetivo desse estudo é, portanto, procurar identificar qual a contribuição das
HQs, e mais especificamente, de seu diálogo com o literário, no fazer cultural da
contemporaneidade, sobretudo no que diz respeito à reprodução ou o questionamento de
formas e valores oriundos da tradição cultural. É importante verificar se esse diálogo
propicia de fato um questionamento dos modelos clássicos (literários e dos quadrinhos)
propondo assim novas formas de fazer e receber tais modelos.
Tendo como fio condutor a construção do enredo feita a partir da organização dos
elementos estruturais da narrativa (sobretudo nos quadrinhos que apresentam recursos
estéticos próprios, principalmente na relação entre as linguagens verbal e não-verbal),
procuraremos identificar nas obras em destaque aspectos que denotem a reprodução ou o
questionamento dos modelos e da tradição cultural (a relação com os cânones, a inserção
do lúdico, a função pedagógica, etc.) e sua possível contribuição para o mundo atual.
11
Para a área de Estudos Comparados de Literatura de Língua Portuguesa,
particularmente, esse trabalho se mostra de extrema importância devido à escassa
produção teórica voltada para estudos sobre a história em quadrinhos de língua
portuguesa, principalmente na sua relação com o material literário, e com outras formas
de interação e comunicação narrativas. A história em quadrinhos traz em sua cultura,
cânones que têm servido de matrizes para gerar outros. Por outro lado, ela dialoga com
cânones produzidos em outras manifestações artísticas. É uma arte que apresenta uma
confluência de linguagens e elementos culturais, revelando, por vezes, dominações
ideológicas que deixam suas marcas na produção cultural nacional. Daí a importância de
incluir seu estudo na esfera das considerações teóricas em Língua Portuguesa, que
necessita ampliar seu olhar para englobar as diversas formas de expressão e comunicação
do nosso tempo, na medida em que novas ferramentas e manifestações estéticas passam a
integrar a maneira como os indivíduos interagem com a cultura, e mais especificamente,
com o material literário.
O corpus da pesquisa se compõe, principalmente, de obras em quadrinhos
produzidas em língua portuguesa que estabelecem diálogo com o material literário.
Também destacaremos algumas obras da literatura que apresentam diferentes relações
com as HQs. Para que o estudo possa abarcar outras formas de interação, agregaremos à
pesquisa algumas obras produzidas em outros idiomas que, por sua forma de elaboração,
são essenciais para uma melhor compreensão do que ocorre quando se estabelece o
diálogo entre quadrinhos e o material literário, independente da Língua em que são
produzidas. A esse respeito, vale ressaltar que a incorporação de obras produzidas em
12
outras línguas se dá pelo fato de haver elementos produzidos em diferentes países que
alteraram decisivamente a forma de se fazer quadrinhos em Língua Portuguesa, seja na
elaboração estética, cultural e/ou ideológica.
Para estudar a relação entre o material literário e as HQs não nos ateremos a uma
teoria específica, na medida em que há poucas reflexões sobre a produção de Língua
Portuguesa de quadrinhos, principalmente na sua relação com o material literário.
Contudo, abordaremos importantes teóricos que estudaram desde a linguagem dos
quadrinhos, a intertextualidade e o dialogismo, até a história social da arte e da literatura
com importantes contribuições para a cultura mundial como Cândido, Coelho, Benjamin,
Cirne, Cagnin, Eisner, McCloud, Bakhtin, Barthes e outros cujas reflexões abordam
aspectos que fazem parte do roteiro de análise desse trabalho.
A organização desse estudo se dá de forma a trazer informações que possam
colaborar para uma melhor compreensão da relação que as HQs estabelecem com o
material literário. Assim, no Capítulo 1 iniciaremos com uma abordagem histórica sobre
a relação entre as linguagens verbal e não-verbal, desde a pré-história até os dias atuais,
com os quadrinhos. O objetivo é verificar como a união das linguagens permitiu, ao
longo dos tempos, a criação de uma forma de diálogo própria e como, nos quadrinhos, tal
forma de diálogo encontrou um contexto eficiente para a propagação de narrativas das
mais diversas.
13
A seguir, no Capitulo 2, verificaremos como se dá a construção das narrativas,
quais seus códigos próprios e como eles se estruturam nos quadrinhos. Para tanto,
destacaremos os elementos básicos da narração e procuraremos identificar os principais
recursos estéticos das HQs, como se organizam e que efeitos podem suscitar.
Conhecendo a forma como os quadrinhos realizam a união entre as linguagens verbal e
não-verbal na prática de sua execução, poderemos compreender melhor como se dá a
utilização desses recursos quando do diálogo com o material literário.
No Capítulo 3 estudaremos as formas de diálogo que podem ocorrer entre as HQs e
o material literário. Abordaremos obras produzidas em quadrinhos que adaptam ou
estabelecem outro tipo de relação com a literatura. Teremos desde adaptações pastiche,
re-criações até o desenvolvimento de novas obras. Observando tais diálogos poderemos
compreender melhor quais possibilidades interativas oferecem e como se relacionam com
as obras consideradas clássicas atualmente. Agregaremos também à pesquisa, em outro
subitem desse capítulo, obras produzidas na literatura que dialogam com o material dos
quadrinhos, para compreendermos como se dá o movimento contrário, e outras que
trazem em sua estrutura narrativa, tanto o texto literário quanto a construção própria dos
quadrinhos, numa maneira diferente de realizar o diálogo entre obras. Após percorrermos
os caminhos que se revelam quando da inter-relação entre os quadrinhos e o literário,
poderemos verificar quais possibilidades oferece para nosso mundo atual, no que diz
respeito à construção do saber cultural.
14
Buscamos, assim, além de contribuir para os estudos acadêmicos, trazendo
elementos que explicitem as diferentes possibilidades de diálogo, suas características,
formas de realização e contribuição comunicativa, levantar questões que nos permitam
reconhecer para que serve tal diálogo e quais as possibilidades interativas oferece para os
leitores (antigos e novos) de meios tão complexos e ricos como são os quadrinhos e a
literatura. Conhecermos melhor tal relação nos permitirá um novo olhar, um “olhar de
descoberta”
1
, por meio do qual poderemos reconhecer que, como toda arte autêntica, a
das HQs têm, como matéria prima, determinada experiência humana, resultante de
determinado momento histórico.
1
GÓES, Lúcia Pimentel. Olhar de Descoberta. São Paulo: Paulinas, 2003.
15
1 O VERBAL E O VISUAL - CONTEXTO HISTÓRICO
“Foi esse homem pré-histórico (ainda ignorante da
palavra e de seus poderes) que, ao querer expressar
essas formas de vida ou a vida dessas formas (para
transmiti-las aos outros), reproduziu em toscos traços
a imagem do que pretendia comunicar. [...] Fora
inventada a arte da ilustração que, através dos
tempos, tem dividido com a palavra, a tarefa de
expressar/comunicar vivências que extrapolam a
mera compreensão lógica, porque pertencem à área
do imaginário, do sonho, do sagrado ou do mistério
da condição humana.”
Nelly Novaes Coelho
Para se compreender a peculiar arte das HQs, - resultante da intersecção da
linguagem verbal com as variadas formas de comunicação visual (visualidade, hoje,
dominante nos meios de comunicação de massa) e sua relação com a literatura é
necessário que se refaça o caminho da história da linguagem, fator essencial na formação
e existência de toda e qualquer comunidade humana. O Homem com sua característica
necessidade de relacionamento social desde que nasce é instintivamente levado a usar a
fala para comunicar-se com os demais. Necessidade de comunicação que, a partir da
linguagem verbal, e através dos milênios, foi assimilando novas formas de comunicação
até chegar ao nosso tempo com as complexíssimas formas cibernéticas de comunicação.
16
1.1 Pré-História
Tudo teria começado, provavelmente, com a emissão de sons, com gestos e
rabiscos traçados em argila, pedras, etc. Iniciava-se assim a grande saga da comunicação
humana. As primeiras formas de manifestação comunicativa, gravadas pela espécie
humana, e de que se têm conhecimento, são os desenhos pré-históricos encontrados em
cavernas, como os da gruta de Lascaux, no sul da França (Fig. 1), e os de Altamira, no
norte da Espanha. São pinturas de touros, cavalos, mamutes e outras formas animais, cuja
provável significação vem sendo objeto de estudos arqueológicos, desde o século XIX.
Fig. 1- Caverna de LASCAUX, França. As pinturas rupestres, que têm 17.000 anos, foram encontradas em
1942. Na imagem, o desenho de um cavalo, 15.000-10.000 a.C.
Já nessa remota época, quando os primitivos traçavam suas primeiras formas de
comunicação registrada nas paredes das cavernas, é possível identificar determinadas
técnicas de representação que ainda hoje são utilizadas, sobretudo nas histórias em
quadrinhos, como ressalta Jean-Bruno Renard (1981, p.18):
17
Primeiramente o uso do traço negro, ou gravado, que indica o contorno da
personagem ou do animal; linha que não existe na natureza, e que constitui
apenas uma convenção de representação [...] a enorme importância numérica
das figuras desenhadas de perfil [...] parece corresponder a vontade de
representar seres em movimento e não de personagens ‘em pose’[...]; a arte
pré-histórica [...] é simbólico-figurativa [...] ao desejar imitar o real, o artista
minimiza ou exagera certos aspectos gráficos a fim de dar aos seus desenhos
mais sentido, mais significado.
Exemplos de pinturas rupestres registradas em rochas e grutas também são
encontrados no Brasil, como os do Estado do Piauí, no Parque Nacional da Serra da
Capivara (Fig. 2). Os sítios arqueológicos, que passam de 500, dos quais 360 são feitos
pelos homens pré-históricos, trazem pinturas que mostram uma crônica da sociedade que
vivia na região do Sudeste do Piauí, revelando sua vida cotidiana, cerimônias e mitos.
Fig. 2- No Parque Nacional da Serra da Capivara, os vestígios de sociedades primitivas revelam com
riqueza de detalhes o cotidiano da vida de seus habitantes.
O registro de aspectos sociais e culturais das sociedades, aliás, é a principal
característica das primeiras formas de comunicação dos seres humanos. O que se observa
é que as manifestações artísticas são coextensivas à vida social, e se revelam como um
ponto de equilíbrio coletivo e individual, sendo, portanto, socialmente necessárias para a
expressão, comunicação e integração. A arte, como explica Antônio Cândido (2000,
p.19), é social em dois sentidos: “[...] depende da ação de fatores do meio, que se
18
exprimem na obra em graus diversos de sublimação; e produz sobre os indivíduos um
efeito prático, modificando a sua conduta e concepção do mundo, ou reforçando neles o
sentimento dos valores sociais”. No caso do homem pré-histórico, a atividade artística
mantém uma ligação ainda mais estreita com a vida social e seus fatores básicos.
A criação estética do homem primitivo parece estar ligada diretamente à
necessidade de sobrevivência, e para ser compreendida precisa ser vista sob essa ótica. É
a experiência e a necessidade do grupo que desencadeiam tais manifestações estéticas. Os
traços e desenhos rupestres representam uma enorme descoberta para o conhecimento das
sociedades da época, suas formas de interação e comunicação. A partir daí podemos
traçar uma linha que nos mostra as diversas tentativas do homem para registrar a história
que vivia e a vida que se revelava à sua frente. Destacando a importância das obras pré-
históricas para a sociologia da arte, Arnold Hauser (1972, p.40), afirma que tais registros
“[...] permitem descortinar, com maior nitidez o que acontece na arte das épocas
posteriores, o sistema de relações entre as estruturas sociais e as formas artísticas”.
1.2 Surgimento da linguagem escrita
A partir desse início, no qual a imagem impera, o processo comunicativo tornou-
se cada vez mais complexo. A escrita
2
foi um importante passo no desenvolvimento da
comunicação. Se comparada com os milhares de anos que compreendem a existência
2
David Diringer define a escrita como uma atividade ligada intrínseca e inseparavelmente ao
desenvolvimento comparativamente recente do intelecto consciente do homem (DIRINGER, 1971)
19
humana, o surgimento da linguagem escrita teve uma origem recente, datando de cerca de
4.000 anos a.C.
O sistema de escrita mais antigo de que se tem conhecimento é o cuneiforme, com
caracteres em forma de cunhas e pregos, surgido na região da Mesopotâmia. É também
dessa região um dos primeiros documentos literários encontrados, o Fâra/Abû-Salâbîh,
um conjunto de 4 ou 5 pequenas tábuas e fragmentos em que há trechos de espécies de
cantos religiosos ou hinos de um lado e ‘conselhos de um pai ao seu filho’ de outro.
O hieroglífico egípcio foi outro importante sistema de escrita surgido ainda no
início do terceiro milênio a.C. Um dos mais antigos e conhecidos registros da escrita
egípcia é a Tábua de Narmer (Fig. 3), da região do Alto Egito.
Fig. 3- Tábua de Narmer (Museu do Cairo, Egito). Trata-se de uma representação mais ou menos
pictográfica, apresentando imagens juntamente com uma forma de escrita semifonética (DIRINGER,
1971).
20
Em Creta, a escrita evoluiu da gravação de sinetes (em esteatita e marfim)
esculpidos com desenhos simples, até a denominada pela Arqueologia como Linear A e
Linear B, mais cursiva e modificada. Na China, os documentos mais antigos conhecidos
datam de meados dos anos 2000 a.C. São inscrições de oráculos em ossos de animais e
carapaças de tartaruga, além de vasos de bronze, armas, olaria e jade.
Segundo Thomas Clark Pollock (1942, apud Cândido, 2000, p.34)
3
, a invenção da
escrita “tornou possível a um ser humano criar num dado tempo e lugar uma série de
sinais, a que pode reagir outro ser humano, noutro tempo e lugar”. Há quem considere o
surgimento da linguagem escrita o marco que fez surgir o indivíduo destribalizado
4
. O
rompimento com a natureza tribal, por sua vez, possibilitou a evolução da comunicação
humana, que partiu de sons primitivos e gestos, passou pelos primeiros traços marcados
nas paredes das cavernas, até chegar na escrita, no teatro, nas esculturas, nas histórias em
quadrinhos, no cinema, no rádio, na televisão e, agora, na realidade virtual (BACELAR,
2007).
A necessidade de comunicar, estabelecida em um determinado momento da
existência humana, expressa o marco diferenciador do homem em relação aos outros
animais: ele se comunicava e podia registrar essa ação de alguma forma, eternizá-la. Tal
ato marca “[...] o registro durável de uma forma de ler o mundo. Um mundo que se revela
através de uma experiência que deseja se comunicar aos outros” (COELHO, Ibidem, p.4).
3
POLLOCK, Thomas Clark. The nature of literature, Its relation to Science, Language and Human ce.
Princeton, 1942, págs. 16-17
4
Para McLuhan, nenhum outro modo de escrever é tão destribalizante como o alfabeto fonético, que
“desprende o homem do domínio possessivo de total interdependência e inter-relação que é o do mundo
auditivo”. (McLUHAN, 1972, p.46).
21
O processo de representar/simbolizar cada ser, planta ou fenômeno da natureza, trazia em
si, além da busca por conhecimento e reconhecimento, a de domínio, afinal se, como
afirmou Foucault (1999) o homem é linguagem, podemos concluir que, para constituir o
mundo a sua volta era preciso que o ser humano o nomeasse.
Assim, o ato de nomear o reconhecimento de mundo, inicialmente por sons e
gestos e depois por meio do registro, seja pela linguagem verbal ou pela não-verbal, criou
significados, realidades e estabeleceu novas relações de tempo-espaço, pois como ressalta
Maria Zilda da Cunha (2002, p.83), “toda mudança no modo de produzir linguagens afeta
inevitavelmente a forma como percebemos o mundo, a imagem que temos desse mundo”.
1.3 Letras e desenhos nas sociedades
Desde o surgimento dos primeiros traços nas paredes das cavernas até os dias de
hoje, com a cibercultura, as palavras e os desenhos são importantes ferramentas para a
comunicação. Vale destacar que a relação entre ambas linguagens tem variado ao longo
do tempo. Inicialmente tínhamos os desenhos das cavernas; com o surgimento da escrita
vemos o nascimento do texto ilustrado que, como destaca Renard (1981), se encontra na
origem dos quadrinhos.
A relação entre o texto verbal e o não-verbal acontece antes mesmo de haver
livros impressos. Segundo Angela Lago (2008)
, a interação entre as linguagens já ocorria
22
em determinados manuscritos, nos quais é possível encontrar ilustrações para narrar e
gerenciar o texto verbal, tornando-o assim mais acessível àqueles que não sabiam ler.
Com essa função, os códigos simultâneos também foram utilizados pela Igreja,
como é o caso da
Bíblia Pauperum (Bíblia dos Pobres), na qual a ilustração surge como
representação do texto verbal, servindo assim para doutrinar os iletrados, que naquela
época eram a maioria, uma vez que bem poucos tinham acesso à educação (Fig. 4).
Fig. 4- As cenas ilustram a tentação de Esaú, a tentação de Cristo e a tentação de Adão e Eva. O uso de
figuras na Bíblia Pauperum tornava mais compreensíveis certas passagens bíblicas, sobretudo para quem
não sabia ler.
23
O mesmo ocorre com os vitrais, que exibiam cenas religiosas e histórias do
Antigo e do Novo testamento. No século VI, o papa Gregório Magno afirmava que a
pintura poderia fazer pelos analfabetos o mesmo que a escrita pode fazer por aqueles que
sabem ler (LAGO, Ibidem).
A invenção da tipografia foi fator decisivo para a relação da linguagem verbal
com a não-verbal. Desenvolvida por Gutenberg por volta de 1450
5
, a nova tecnologia
possibilitou a reprodução de textos verbais e ilustrações, tornando-os acessíveis a muitos.
Como ressalta McLuhan (1972), quando Gutenberg desenvolveu a imprensa também
inventou o público e como diz Carramillo Neto (1987, p.12), “Não só inventou o público,
de modo geral, mas criou um público leitor de letras gráficas e impressas, ampliando as
possibilidades de conhecimento e de comunicação dos homens”.
No que diz respeito às ilustrações, já com a xilogravura sua reprodução se tornou
possível, isso antes que a imprensa fizesse o mesmo com o texto verbal:
“À xilogravura, na Idade Média, seguem-se a estampa em chapa de cobre e a
água forte, assim como a litografia, no início do século XIX [...] A litografia
[...] permitiu às artes gráficas pela primeira vez colocar no mercado suas
produções não somente em massa, como já acontecia antes, mas também sob a
forma de criações sempre novas”
(BENJAMIN, 1969, p.166).
Antes da invenção da imprensa, os textos eram reproduzidos manualmente, de
forma artesanal, o que reduzia a quantidade de exemplares e a qualidade dos mesmos,
pelo fato de poder ocorrer erros ao copiar do original. A reprodução em massa se tornou
5
Mário Carramillo Neto (1987) destaca que, apesar de ter sido Gutemberg o criador da Impressão
Tipografia em tipos móveis, os chineses, por volta do ano 868 da nossa era, já fundiam tipos móveis em
porcelana e bronze. Mas de acordo com sua escrita, gravavam em madeira ou metal que era mais
econômico para a época.
24
possível através da tipografia, que se configurou como “uma das principais alavancas do
desenvolvimento científico e técnico que marcou o início da Idade Moderna e acabou,
mais tarde, gerando ambiente e condições para que a Revolução Industrial pudesse
acontecer” (AZEVEDO, 2002, p.1).
Dos primeiros sons e aceno emitidos pelos homens das cavernas, à descoberta do
alfabeto, a linguagem verbal escrita se sobrepôs à linguagem não-verbal durante séculos.
A civilização ocidental fundou-se sobre a palavra de Deus (valor absoluto). O
Renascimento, por seu lado, marcou um afastamento entre as linguagens verbal,
veiculada sobretudo nos livros, e não-verbal (que se restringia aos quadros).
No mundo contemporâneo, por sua vez, temos um amplo uso da linguagem não-
verbal, mediada pelos meios de comunicação de massa e tecnológicos. Esse fato ocorreu
devido a uma nova mentalidade que se instaura a partir do século XIX (Revolução
Industrial): “Da linguagem verbal partimos para a não verbal, através da ruptura da razão
tradicional/cartesiana, provocada pela 'morte de Deus': a palavra fundadora é negada; o
mundo perde o seu centro sagrado (Deus). Cada ser, cada ‘eu’ passa a ser o centro que,
para se sentir legitimado, precisa ser reconhecido pelo centro do outro - o 'eu' é
legitimado pelo olhar do 'tu'” (informação verbal)
6
.
Partimos, então, do pensamento racionalista (Descartes), que separa, cataloga, põe
limites entre as várias áreas do saber, para o pensamento complexo (Edgar Morin) que
descobre o mundo como uma rede inextrincável de relações. Da Revolução Industrial,
6
Informação fornecida por Nelly Novaes Coelho, em 2005.
25
que alterou as relações concretas entre os homens (sistema econômico/político)
caminhamos para a revolução tecnológica, que está alterando as relações abstratas.
Como
ressalta Coelho (2007, p.1), temos o:
[...] confronto entre o mundo das certezas, herdado da tradição (fundado na
concepção cartesiano-newtoniana, racionalmente explicável por leis naturais,
simples e imutáveis), e o
mundo das incertezas, gerado pelo nosso tempo de
transformações (mundo complexo, desvendado pela Física einsteniana que põe
em xeque as leis simples e imutáveis em que se apoiava o conhecimento
herdado). [...] No lugar do
sujeito seguro, baseado em certezas absolutas
(fundado no pensamento tradicional: positivista, empirista, determinista), está
hoje um
sujeito interrogante que (tal qual o aprendiz de feiticeiro), diante
desse mundo belo/horrível, em acelerada transformação (e que ele mesmo
criou), tenta encontrar um
novo centro ou novo ponto de apoio, para uma nova
ordem
(mesmo que seja provisória), em meio ao oceano de dúvidas e
incertezas que o assaltam.
É importante lembrar que, seja na época dos traços borrados nas paredes das
cavernas, seja agora com a revolução digital, o homem é o agente principal desse
processo que visa reconhecer e dominar o mundo complexo que o rodeia. Os quadrinhos,
meio em que a união das linguagens verbal e não-verbal assume características próprias,
surgem dentro da busca humana por se relacionar e se comunicar com a sociedade, e suas
origens são antigas na história das civilizações.
1.4 Os quadrinhos e o encontro entre o verbal e o visual
Como foi destacado, as linguagens verbal e não-verbal têm sido usadas pelos
indivíduos para elaborar as mais variadas formas de comunicação, e a história em
quadrinhos representa, nesse contexto, um importante meio em que a união de ambas
propiciou elaboradas maneiras de registrar e expressar as experiências humanas. Com
26
origens nas pinturas rupestres, os quadrinhos, da forma moderna como os conhecemos,
em que a união entre as linguagens se revelam essencial para sua expressão, surgiram no
fim do século XIX e se consolidaram como um importante veículo de comunicação de
massa. Mas o início das narrativas construídas a partir de uma seqüência de imagens é
antigo. Conforme revela Scott McCloud (2002), alguns exemplos desse tipo de
construção narrativa podem ser encontrados em manuscritos pré-colombianos,
descobertos por Cortês em 1519 e que narram a aventura épica do grande herói militar e
político “garras de tigre”, ou em tapeçarias, como a francesa Bayeux Tapestry, que conta
em 70 metros a conquista normanda da Inglaterra em 1066
7
. A arte seqüencial, assim
como outras formas de expressão humana, surge ligada ao registro de aspectos sociais e
cotidianos das sociedades, como no caso dos hieróglifos egípcios, que trazem pintados
em paredes e muros, cenas do dia a dia do povo, episódios relacionados às práticas
religiosas e à vida na côrte, como as encontradas nas Mastabas (Fig. 5), túmulos dos
nobres das 5ª e 6ª Dinastias.
7
Segundo Arnold Hauser (1982), as tapeçarias de Bayeux apresentam num estilo notavelmente fluente,
muitos e variados episódios, além de grande realismo.
27
Fig. 5 - Na parede das Mastabas encontram-se registrados vários aspectos do cotidiano e crenças do povo,
como essa em que o filho e a filha oferecem buquê de Amon ao morto, que segura um filhote de gato, e à
sua esposa, cuja cadeira encontra-se em cima de outro gato.
Os quadrinhos foram um dos primeiros meios de comunicação de massa a se
globalizar, antes mesmo do cinema. As HQs, com as características que conhecemos
atualmente, foram prenunciadas na Europa com as novelas e histórias ilustradas de
Rodolphe Topffer (1799-1846), escritor, artista e professor universitário natural de
Genebra. Suas
Histoires en Estampes (Fig. 6), reunidas entre 1846-47 e que obtiveram
enorme sucesso, trazem uma narração figurada, com várias imagens separadas por um
traço vertical e colocadas sobre um breve texto (COUPERIE, 1970). Na fala do próprio
Topffer (MOYA et al, 1994, p.9), sua criação se caracterizava pela natureza mista:
Ele se compõem de uma série de desenhos autografados em traço. Cada um
destes desenhos é acompanhado de uma ou duas linhas de texto. Os desenhos,
sem este texto, teriam um significado obscuro, o texto, sem o desenho, nada
significaria. [...] Aqui, como um conceito fácil, os tratamentos de observação, o
28
cômico, o espírito, residem mais no esboço propriamente dito, do que na idéia
que o croqui desenvolve.
Fig. 6- Trecho da obra Histoires en Estampes de Topffer. Apesar de ainda não aparecer os balões, a união
das linguagens verbal e não-verbal é vital para a compreensão da obra como um todo, elaborada a partir da
seqüência dos quadros que se sucedem na página.
Alguns estudiosos apontam como precursor dos quadrinhos no formato moderno,
ao invés de Topffer, as aventuras bem humoradas dos moleques traquinas
Max und
Moritz
do alemão Wilhelm Bush (1832-1909). Outros destacam as estórias do francês
Georges Colomb sobre um casal provinciano e suas duas filhas, a
Fammille Fenouillard,
criada em 1889. Independente de sua real origem, contudo, são nos Estados Unidos que
as HQs florescem e encontram grande sucesso. No início, os quadrinhos foram
identificados pelas características que desenvolveram na imprensa jornalística norte-
americana, pois foi lá que a sua difusão se deu de forma mais agressiva (VERGUEIRO,
29
2006). Os primeiros quadrinhos americanos aparecem nos jornais, em páginas dominicais
ou tiras diárias, e seu principal objetivo era o humorístico.
Uma importante figura que marca a história dos quadrinhos é a da célebre
personagem Yellow Kid, criado por Richard Felton Outcault em 1895. Essa, aliás, é
considerada por muitos como a primeira história em quadrinhos continuada, e trazia
semanalmente as estórias de um garoto de camisolão amarelo, cabeça grande e enormes
orelhas.
As estórias do Yellow Kid se passavam no beco de Hogan, local onde a maioria
dos habitantes era composta por indivíduos de etnias não norte-americanas. A esse
respeito Waldomiro Vergueiro destaca (2001, p.1):
O colosso ianque desejava aculturar as levas de imigrantes que passara a
abrigar e as histórias em quadrinhos apareciam como o instrumento por
excelência para atingir esse objetivo. Eram baratas. Eram fáceis de
compreender. Eram atrativas ao leitor com pouco conhecimento do idioma
inglês. E, além de funcionarem muito bem em todos esses quesitos, atingiam
em cheio o seu público e contribuíam para uniformizar as diversas etnias em
torno de uma maneira única de encarar o mundo.
Em termos de disseminação, as HQs tiveram ampliado o seu consumo com a
ajuda dos
Syndicates. Criados a partir da primeira década do século 20 pelos jornais, para
contratar e vender o trabalho dos desenhistas, os
Syndicates se configuram como grandes
distribuidores de quadrinhos nos Estados Unidos e no mundo. A ampla distribuição,
entretanto, acabou por contribuir para o aparecimento dos “modelos” de histórias,
estabelecendo padrões que deveriam ser seguidos para que os quadrinhos pudessem ser
publicados em todos os jornais. Temas como a família americana e a sociedade de
consumo tornam-se uma constante nas HQs a partir de então.
30
No Brasil, um dos primeiros a produzir quadrinhos foi o ítalo-brasileiro Angelo
Agostini, que em 1867 já publicava algumas histórias ilustradas. Segundo revela
Waldomiro Vergueiro (2004, p.1), o Brasil deu decisiva contribuição para o
estabelecimento da linguagem quadrinizada: “Na segunda metade do século 19, o ítalo-
brasileiro Angelo Agostini desenvolveu uma intensa atividade de crítica social por meio
do humor gráfico nos jornais ‘Diabo Coxo’ e ‘O Cabrião’”.
Em 1869, Agostini lançou no jornal Vida Fluminense,
As Aventuras de Nhô Quim
ou
Impressões de uma viagem à Corte (Fig. 7), considerada por muitos como a primeira
produção em quadrinhos do mundo, por ter sido produzida com quase 30 anos de
antecedência em relação àquela que é considerada como a precursora, a americana
‘Yellow Kid’. É bom lembrar que, desde o início as obras nacionais de quadrinhos
sofreram com a competição da produção estrangeira, sobretudo a americana, que domina
grande parte do mercado até hoje.
31
Fig. 7- Na ilustração, Nhô-Quim estranha seu próprio reflexo no espelho.
Não se pode falar dos quadrinhos nacionais sem destacar o nome da revista
O
Tico-Tico, lançada por Angelo Agostini em 1905, e que é vista como uma das primeiras a
publicar quadrinhos no país.
8
Além do Suplemento Juvenil e de outras publicações como
A Gazetinha e o Globo Juvenil, foi a revista Gibi, também da editora Globo, que teve seu
nome emprestado para todas as publicações do gênero.
Com o lançamento do
Suplemento Juvenil de Adolfo Aizen na década de 30,
muitos heróis famosos chegaram às bancas brasileiras, como Flash Gordon, Tarzan e
Mandrake, dentre outros. Na década de 40, uma importante inovação promovida pela
editora Brasil America Limitada (EBAL), sob o comando de Aizen, foi o lançamento das
Edições Maravilhosas, com obras literárias quadrinizadas.
8
Como explica Gonçalo Junior (2004), a revista O Tico-Tico, que não trazia apenas quadrinhos, mas
também textos e passatempos, foi responsável pela introdução dos comics infantis e do humor na imprensa
brasileira.
32
Na década seguinte, personagens de rádio, televisão e cinema, como Grande
Otelo, Oscarito e Mazzaropi também surgem nas histórias em quadrinhos. Mas é na
década de 60 que os quadrinhos brasileiros apresentam uma obra com características
realmente nacionais (Fig. 8):
A produção dos quadrinhos brasileiros tem seu marco divisor no Pererê
(1960/64), de Ziraldo. Estabelecendo seus parâmetros narrativos no interior da
engrenagem da cultura de massa, Ziraldo conseguiu penetrar na realidade
nacional da época com bastante agudeza crítica. Filiava-se [...] à atividade
intelectual que engendrou (e/ou desenvolveu) a bossa nova, a poesia concreta,
o cinema novo, os ‘centros populares de cultura’, com todas as contradições do
processo histórico daquele momento preciso (CIRNE, 1975, p.91).
Fig. 8 - Capa do livro, A turma do Perere: as manias do Tininim (Ziraldo, 2007). A
turma do Pererê trazia personagens bem brasileiras, como o Saci, a onça Galileu, o índio Tininim e outros.
Apesar dos diversos problemas enfrentados pelo mercado de quadrinhos
brasileiro, como a concorrência estrangeira, que chegava barateada devido aos
syndicates, a falta de uma estrutura de produção, divulgação e distribuição, dentre outros
33
fatores
9
, um nome se destaca: Maurício de Souza. Com personagens que se consagraram,
Maurício conseguiu montar uma estrutura capaz de atender as necessidades do mercado.
A produção brasileira de quadrinhos, desde suas primeiras aparições no mercado
nacional, se diversificou com obras realizadas em diferentes gêneros, do infantil ao terror,
dos eróticos aos humorísticos, apresentando nomes de peso como Edgar Vasques, Henfil,
Luiz Gê e muitos outros.
Ao longo de sua história, os quadrinhos em todo o mundo alcançaram grande
sucesso e enfrentaram períodos de dificuldade, como destaca Vergueiro (2004, p.1):
As campanhas difamatórias e o aparecimento de um pujante meio de
comunicação de massa, a televisão, trouxeram aos quadrinhos momentos de
dificuldade, superados por autores e editores em cinco décadas de luta. As lojas
especializadas, que se multiplicaram no final dos anos 70, trouxeram alento
para a área, mas não colaboraram para a renovação de leitores. Enquanto isso,
as "graphic novels" buscaram um público adulto, tendência explorada por
fanzines e revistas alternativas. Os quadrinhos iniciam o século 21 em busca de
amadurecimento, de legitimação como linguagem artística e de ampliação de
seu público para camadas mais eruditas. Ao mesmo tempo, a comunicação
eletrônica levou os quadrinhos a recorrer a uma linguagem híbrida, em que
elementos tradicionais da linguagem gráfica seqüencial convivem com
contribuições
oriundas da informática, da animação e do cinema.
9
Sobre o mercado estrangeiro de quadrinhos, Coelho (1981) lembra que a produção internacional conta
com um mercado já trabalhado para consumi-los, uma vez que são maciçamente divulgados pela televisão,
cinema, etc.
34
2. A CONSTRUÇÃO NARRATIVA E SEUS CÓDIGOS
“Inumeráveis são as narrativas do mundo. Trata-se
primeiramente de uma variedade prodigiosa de
gêneros, distribuídos entre substâncias diversas,
como se qualquer matéria servisse para o homem
confiar suas narrativas: a narrativa pode ser
sustentada pela linguagem articulada, oral ou escrita
pela imagemm fixa ou móvel, pelo gesto e pela
mistura ordenada de todas estas substâncias”
Roland Barthes
Após percorrer o caminho histórico das linguagens verbal e não-verbal em sua
relação ao longo dos tempos, e o surgimento dos quadrinhos, veiculo no qual a fusão das
linguagens permitiu novas formas de narração, vejamos agora como se dá a construção de
narrativas e quais os códigos que fazem parte da mesma, uma vez que é por meio das
estórias desenvolvidas pelas diversas sociedades que podemos verificar como as
linguagens se comunicam e, conseqüentemente, como as artes dos quadrinhos e da
literatura, que fazem uso dessas linguagens, dialogam na sua estrutura narrativa.
Construir narrativas, prática tão antiga na história, é um importante aspecto da
cultura humana. Como pudemos observar no capítulo anterior, o ser humano tem buscado
meios para se expressar desde tempos remotos, de narrar suas estórias, registrar aquilo
que vê, ouve, pensa e discute na sua relação com o meio e a sociedade onde vive. As
linguagens verbal e não verbal, por seu lado, foram e têm sido, até hoje, ferramentas
vitais para a expressão humana, possibilitando o registro e propagação de inúmeras
35
narrativas que chegaram até nós, e ainda são produzidas em nosso meio nos mais
variados suportes.
O ato de ‘contar’ histórias faz parte e está enraizado no comportamento das
sociedades humanas desde os primórdios. Como revela Eisner (2005, p.11-13):
As histórias são usadas para ensinar o comportamento dentro das comunidades,
discutir morais e valores, ou para satisfazer curiosidades. Elas dramatizam
relações sociais e os problemas de convívio, propaga idéias ou extravasa
fantasias. [...] Uma história tem um início, um fim, e uma linha de eventos
colocados sobre uma estrutura que os mantêm juntos. Não importa se o meio é
um texto, um filme ou quadrinhos. O esqueleto é o mesmo. O estilo e a
maneira de se contar pode ser influenciado pelo meio, mas a história em si não
muda.
As narrativas surgem nas comunidades para diversos fins, servindo para discutir
desde questões sociais até aquelas ligadas à subjetividade de cada indivíduo. Elas nascem
vinculadas à existência social do indivíduo, à vida em grupo, e como tais, se tornam
veículos para a representação dos comportamentos humanos. Expressando aspectos do
indivíduo e da sociedade, as narrativas trazem à tona ideologias que, segundo José
Nicolau Gregorin Filho (1995, p.7), “sendo uma 'visão de mundo' de uma classe na
sociedade [...] comporta várias ideologias, cada uma lutando para se impor dentro de um
mesmo espaço cultural dos grupos sociais. Essas 'lutas' geram os discursos que vão ser
representados através de textos”. Cândido (2000) lembra que as ideologias e os valores
contribuirão, sobretudo para a constituição do conteúdo, já as modalidades, os meios de
comunicação, terão maior influencia na forma. Assim, os diferentes suportes de
comunicação influenciarão o estilo, o modo como se conta, enquanto que os conteúdos,
independente do meio no qual a narrativa é produzida, sofrerão as influencias das
36
ideologias, das diferentes maneiras como a sociedade e os grupos que fazem parte dela
vêem e interagem com o mundo.
As narrativas trazem em si uma estrutura interna que está ligada ao próprio
conceito de narração. Mesmo que a forma de apresentação não seja a convencionalmente
usada (princípio, meio e fim) e o modo de elaboração também se apresente de maneira
diversa, as diferentes narrativas se aproximam no grande objetivo de contar estórias.
Devido à necessidade de narrar, o ser humano buscou meios para tornar tal ato
mais eficiente. Inicialmente as comunidades não dispunham de muitas ferramentas para
se comunicar. Eram os gestos, sons e rabiscos nas paredes. A ampliação dos meios de
comunicação, principalmente no processo de massificação das sociedades, multiplicou e
modificou a capacidade de se expressar, possibilitando diferentes maneiras de se
construir narrativas.
2.1 O código narrativo
Para contar uma estória, independente do suporte comunicativo, faz-se necessário
reunir um conjunto de elementos que permitam sua expressão. Como explica Cagnin
(1975, p.155),
A narração é assim um produto de unidades articuladas segundo certos
princípios. É uma série organizada de acontecimentos. Ainda que selecione fatos
reais e da vida, ela não é uma mera cópia da vida. Estabelece unidades e,
organizando-as, forma um conjunto de normas, o código narrativo.
37
Tais elementos, por sua vez, se configuram como o tecido da narrativa, a trama, o
discurso, aquilo que, com base nos formalistas russos, podemos chamar de
syuzhet, e por
meio dos quais criaremos nossa interpretação daquilo que vemos/lemos/percebemos na
interação com a obra.
As ‘pistas’ fornecidas pelos realizadores das narrativas poderão tanto auxiliar
como, e talvez propositalmente, dificultar o processo de compreensão. A trama, que
representa a arquitetura da obra, nos fornece dados referentes: à narrativa (no que diz
respeito às relações causais, os paralelismos, etc.), ao tempo (duração, freqüência,
seqüências, etc.) e ao espaço (o que é relevante, secundário, central, etc.).
É por meio desses elementos que chegamos às diferentes interpretações da obra
(construção da ‘fábula’, da diegese), e que vai além da simples recepção dos dados
fornecidos pelo autor. A construção da ‘fábula’ é tanto pessoal, no que se refere à
experiência vivida pelo indivíduo, a forma de ver e interagir com a realidade, as escolhas
pessoais, crenças, etc., quanto social, já que está vinculada a uma cultura, pois, como
afirma Cândido (Ibidem, p.32), “[...] mesmo quando pensamos ser nós mesmos, somos
público, pertencemos a uma massa cujas reações obedecem a condicionamentos do
momento e do meio”.
Elaborar narrativas, por conseguinte, faz parte e é resultado da interação humana
com o mundo a sua volta, mas de fato, o que seria narrar? Geralmente, o termo narração
está associado a uma forma de discurso que tem como principal objetivo o relato de um
38
evento ou de uma sucessão de eventos, envolvendo ação, personagens, tempo e espaço, e
que, juntamente com o foco narrativo, compõem os elementos básicos da composição
narrativa, estando presentes em diferentes meios de expressão.
O foco narrativo diz respeito à posição assumida pelo narrador, a perspectiva
daquele que conta os fatos. É fator determinante na construção das narrativas e
corresponde ao ponto de vista privilegiado por meio do qual flui a narração. Há uma
grande variedade de focos narrativos, mas as duas posições básicas são: o foco daquele
que está do lado de fora dos episódios narrados (3ª pessoa) e o de quem se coloca do lado
de dentro dos fatos narrados (1ª pessoa). A partir daí, o foco narrativo pode assumir
outras particularidades e, de acordo com a ferramenta de comunicação, é apresentado de
forma variada: pela forma da linguagem utilizada, o posicionamento da câmera, o tipo de
ilustração, etc.
Assim, a forma como os fatos são apresentados cria efeitos diferentes. É o que
ocorre no trecho a seguir retirado do conto
Missa do Galo de Machado de Assis (1977,
p.17). Na descrição que Nogueira faz de D. Conceição ao observá-la durante uma
conversa, temos pormenores físicos da mulher, o que nos faz pensar em closes, revelando
pequenos detalhes:
Pouco a pouco, tinha-se inclinado; fincara os cotovelos no mármore da mesa e
metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas, as mangas,
caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços, muito claros, e menos
magros do que se poderiam supor [...] As veias eram tão azuis, que apesar da
pouca claridade, podia contá-las do meu lugar. [...] Falava emendando os
assuntos, sem saber por que, variando deles ou tornando aos primeiros, e rindo
para faze-la sorrir e ver-lhe os dentes que luziam de brancos, todos iguaizinhos.
Os olhos dela não eram bem negros, mas escuros; o nariz seco e longo, um
tantinho curvo, dava-lhe ao rosto um ar interrogativo.
39
No trecho acima, parece estarmos diante de uma “câmera” que focaliza as partes
descritas, revelando detalhes na medida em que o rapaz a olha. É o ponto de vista de
Nogueira que nos é apresentado (a narração se dá em 1
a
pessoa). Já no exemplo seguinte,
nos vemos diante de uma cena num enquadramento panorâmico
10
. Trata-se de um trecho
do conto
Os Três Staretzi de Leão Tolstoi (2001, p.145):
De repente, ao claro reflexo da lua nas águas vê qualquer coisa branquear e
reluzir. Será uma gaivota ou uma vela branca? Olha com maior atenção: não há
dúvida de que é uma barca com uma vela apenas e que segue o navio. Mas
como vem depressa! Há pouco estava longe, longe, tão longe, e ei-la já
pertinho: e depois é uma barca como nunca se viu, com uma vela que não se
parece com vela nenhuma... No entanto, a tal coisa persegue o navio, e o
Arcebispo não pode distinguir que coisa é. Será mesmo uma barca, um pássaro,
ou um peixe? Parece um homem, mas é grande demais para ser um homem, e
depois um homem não seria capaz de andar assim sobre o mar.
O Arcebispo levanta-se, dirige-se ao piloto e diz:
_Olhe só. Que é aquilo?
Mas já vira distintamente os staretzi, que, de barbas brilhando, correm sobre o
mar e se aproximam do navio.
O ponto de vista que nos é dado, mesmo sendo a narração efetuada por um
narrador onisciente, em 3
ª pessoa, diferente do exemplo anterior, refere-se ao do
Arcebispo, personagem que observa os fatos a partir do navio onde se encontra. Ele
avista algo no mar e nós, assim como ele, temos a visão parcial do que está sendo
mostrado: não sabemos, inicialmente, do que se trata e as dúvidas do Arcebispo também
são as nossas. A focalização nos dá a imagem de algo distanciado, um ponto ao longe. É
como se víssemos por uma câmera panorâmica, que mostra a cena à distância a partir do
observador, que se encontra no barco. À medida que a descrição continua, temos a
sensação de que o objeto se aproxima da câmera, ficando cada vez mais perto, até se
10
Sobre os planos de focalização, baseando-se na gramática cinematográfica, podemos destacar cerca de 8,
que vão, numa gradação, desde a panorâmica, mostrando a cena de longe, até o super close, que traz
detalhes bem de perto. A utilização dos planos ajuda a construir o espaço, criar conflitos, dar
dramaticidade, além de possibilitar muitos outros efeitos na construção da narrativa.
40
tornar visível: na verdade, tratava-se dos staretzi, velhos sacerdotes que caminhavam
sobre as águas em direção ao navio.
A ação é o conjunto de acontecimentos que se realizam num certo tempo e
espaço, ou seja, o conteúdo do que se conta na narrativa. Quanto à sua natureza, pode ser
a mais variada possível: histórica, mítica, dramática, cotidiana, humorística, heróica, etc.
A ação (que de maneira mais ou menos evidente representa a própria vida)
estrutura-se sempre em torno de uma idéia, um valor, um motivo que dá
organicidade e interesse ao universo por ela criado. É perseguindo os diferentes
'eixos' da efabulação que encontraremos a visão-de-mundo ali registrada [...].
(COELHO, Ibidem, p.59)
A personagem também integra os elementos da estrutura narrativa, sendo decisiva
na mesma, pois, além de ser interdependente à ação (não há ação sem personagens), é
uma amplificação das possibilidades humanas e concentra, portanto, o interesse do leitor.
Como ressalta Anatol Rosenfeld (1963, p.16), é “[...] a personagem que com mais nitidez
torna patente a ficção, e através dela a camada imaginária se adensa e se cristaliza”. Há
diversas categorias de personagens (tipo, caráter, individualidade) que serão utilizadas
conforme a intenção do autor.
O espaço se relaciona com as circunstâncias que darão realidade e
verossimilhança à narração. O meio social ou econômico, o clima, a moda, os objetos de
cena, a iluminação, etc., são elementos que integram o espaço. Por fim, o tempo é outro
fator vital na estruturação da narrativa. Segundo Coelho (Ibidem, p.65), “a ficção, em
qualquer de seus gêneros ou espécies, é uma arte que se desenvolve no tempo”, seja na
sua estrutura interna, o encadeamento dos fatos até chegar a um final, seja na fruição, o
41
tempo que levamos para apreender a narrativa. Vale lembrar que o tempo não existe por
si, mas sim em função de outros elementos, como a ação, a personagem e o espaço.
Tanto na literatura quanto nos quadrinhos, os elementos citados anteriormente se
farão presentes, só que apresentados e organizados de maneira própria. Na literatura, a
linguagem verbal materializa a narração, ao passo que nos quadrinhos, é a união das
linguagens verbal e não-verbal que permite a construção da estrutura narrativa.
2.2 Literatura: arte de contar estórias
A literatura tem sido uma fonte inesgotável de narrativas desde o começo dos
tempos e uma das principais formas de propagação dos registros feitos pela humanidade.
Vale destacar que nos referimos não só à literatura escrita, mas também à oral, fonte
inicial de histórias, mitos e lendas que nos chegam até hoje. De acordo com Coelho
(1981, p.4),
Ao estudarmos a história das culturas e o modo pelo qual elas foram
transmitidas de geração para geração, verificamos que, na transmissão de seus
valores de massa, a literatura foi seu principal veículo. Literatura oral ou
Literatura escrita foram as principais formas pelas quais recebemos a herança
da Tradição que nos cabe transformar, tal qual outros o fizeram antes de nós,
com os valores herdados e por sua vez renovados.
Antônio Cândido (2000), citando Madame Stãel, lembra que a literatura é um
produto social, pois exprime as condições da civilização em que ocorre, sendo, portanto,
coletiva, na medida em que “requer uma certa comunhão de meios expressivos (a
42
palavra, a imagem), e mobiliza afinidades profundas que congregam os homens de um
lugar e de um momento – para chegar a uma 'comunicação'”. (Idem, ibidem, p.127)
Independente do que se entenda por literatura
11
, a obra literária se constrói pelo
uso da linguagem verbal, mas não qualquer tipo de linguagem e sim a literária, com suas
especificidades. Como destaca Lotman, (1978, p.55-56),
A literatura fala uma linguagem particular que se sobrepõe à língua natural
como sistema secundário [...] Dizer que a literatura possui a sua linguagem que
não coincide com a sua língua natural, mas que a ela se sobrepõe – é dizer que
a literatura possui um sistema que lhe é próprio de signos e de regras para a sua
combinação, que servem para transmitir informações particulares, não
transmissíveis por outros meios. [...].
O sistema próprio de signos e regras da linguagem literária de que fala Lotman diz
respeito aos elementos que compõe a obra e que englobam desde o conceito de signo, que
na obra literária pode assumir diferentes nuances, seu limite, usos, até as regras internas
de composição. Assim, o texto literário é constituído de um corpo verbal que se
concretiza na obra pela linguagem literária, através de um processo de composição
específico (COELHO, Ibidem).
Na literatura, como ressalta Ataíde (1972), há uma série de fatores próprios da
linguagem que revelam a característica peculiar assumida por ela nesse meio: entoação,
ritmo, melodia, aliteração, verso, tessitura sonora, carga imagética, etc: “O criador de arte
11
Todorov (1973 apud SILVA, 1984) defende que o único denominador comum que liga toda a produção
literária é a linguagem. Já Silva (1984, p.34), por sua vez, destaca que há certas regularidades,
determinados fatores variantes que definem literatura: “A obra literária é sempre um artefacto, um objeto
produzido no espaço e no tempo – um objecto, como escreve Lukács, que se separa do sujeito criador, do
sujeito fenomenológico [...], possuindo uma realidade material, uma textura semiótica sem as quais não
seriam possíveis nem a leitura, nem o juízo estéticos”.
43
literária procura dar ênfase à própria linguagem, isto é, o meio empregado é importante
[...] A linguagem forma o substrato sobre o qual existirão os constituintes ficcionais”
(Idem, Ibidem, p.18).
O uso da linguagem no texto literário permite variadas construções de
significação e efeito, e está sujeita a modificações influenciadas pelo contexto de
produção, as mudanças sociais, etc. É o que ocorre com a literatura diante das mudanças
no processo comunicativo. A esse respeito, Cândido explica:
[...] as formas escritas de expressão entravam em relativa crise, ante a
concorrência de meios expressivos novos, ou novamente reequipados para nós
[...]. Antes que a consolidação da instrução permitisse consolidar a difusão da
literatura literária (por assim dizer), estes veículos possibilitaram, graças à
palavra oral, à imagem, ao som (que superam aquilo que no texto escrito são
limitações para quem não se enquadrou numa certa tradição), que um número
sempre maior de pessoas participassem de maneira mais fácil dessa quota de
sonho e de emoção que garantia o prestígio tradicional do livro. (Idem, Ibidem,
p.125-126)
Desta forma, o surgimento de novos meios de expressão, que fazem uso da
palavra oral, do som, da visualidade, como o cinema, a televisão, e outros influenciou a
maneira de elaboração da obra literária. A alteração nas formas de produção e reprodução
cultural, sobretudo a partir da invenção da fotografia e do cinema, que modificou a
maneira como se olha, percebe e sente o mundo cambiante a nossa volta, estão
registradas no texto literário, e está presente nas mudanças na forma de se estruturar os
elementos próprios da narrativa (PELLEGRINI, 2003). Sobre a influência da gramática
do cinema no texto literário, aliás, podemos citar as palavras do romancista francês
44
Claude Simon (1985 apud SILVA, 1990, p.179)
12
na sua experiência pessoal de
elaboração narrativa:
É indubitável que a fotografia e o cinema modificaram radicalmente em cada
um de nós o modo como o mundo é apreendido. Acontece, além disso, no que
me concerne, e sem dúvida em virtude de um espírito mais sensível ao
concreto do que ao abstracto, que não posso escrever os meus romances a não
ser precisando constantemente as diversas posições que ocupam no espaço o ou
os narradores (campo de visão, distância, mobilidade em relação à cena
descrita – ou, se preferir, numa outra linguagem: Ângulo das filmagens, grande
plano, plano médio, panorâmica, plano fixo, travelling, etc.).
2.3 HQs e as múltiplas linguagens
As HQs revelam em sua constituição, uma linguagem intersignica que se dá
através de co-relações, co-referências, analogias, e muitas outras possibilidades
interativas. A presença ou não de cores, o tipo de traço, o tamanho das figuras, a
disposição da linguagem verbal nos balões (ou a ausência deles), a alternância entre a luz
e as sombras, e muitos outros recursos são utilizados na composição dos quadrinhos, que
se configuram como um
mix de diferentes linguagens e recursos compositivos. E para
compreender tal cruzamento de linguagens, faz-se necessário uma “visão semiótica”, que,
segundo Lúcia Santaella (1998, p.55):
[...] diz respeito à percepção dos diferentes tipos de linguagem que os
diferentes meios veiculam, percepção esta que inclui todas as operações de
inter-influências que uma linguagem pode exercer sobre outras. [...] Trata-se,
portanto, da captação das ligações (semelhanças e diferenças) existentes entre
os diversos tipos de linguagem [...] Disso se pode concluir que o código
hegemônico deste século, não está nem na imagem, nem na palavra oral ou
escrita, mas nas suas interfaces, sobreposições e intercursos, ou seja, naquilo
que sempre foi do domínio da poesia.
12
MORRISSETTE, Bruce. Novel and film. Essays on two genres. Chicago-London, 1985, p.17.
45
Uma das principais características das HQs é a sua seqüencialidade, ou seja, o uso
de imagens sucessivas, colocadas lado a lado, para assim compor uma obra única, daí o
termo utilizado por Will Eisner (2005) para defini-las: arte seqüencial. Assim como os
desenhos animados, os quadrinhos também se constroem em seqüência, mas diferem
daqueles pelo seu aspecto espacial, uma vez que, nos desenhos animados a animação é
seqüencial em tempo – cada quadro é projetado no mesmo espaço, que é a tela –,
enquanto nos quadrinhos, os quadros ocupam espaços diferentes no papel.
Como explica Cagnin (1975), quando se juntam dois ou mais quadrinhos pode se
formar uma série, na qual os quadros permanecem independentes, ou uma seqüência, no
caso dos quadros representarem juntos uma unidade significativa. A relação que se
estabelece entre cada quadro que compõem as HQs, e que é feita a partir das semelhanças
e diferenças, é que dará o aspecto seqüencial e significativo da narrativa gráfico-visual:
Para que duas imagens possam se unir, é necessário que tenham algo em comum.
É a identidade. Para que sejam distinguidas, é necessário que sejam diferentes. É
a não-identidade [...] A identidade entre as imagens ou figuras que compõem os
quadrinhos é uma espécie de fio condutor da narrativa [...] A articulação entre
duas ou mais unidades-quadrinho tira a imagem do seu estatuto analógico, da
representação pura e simples do objeto e a transforma num elemento do discurso.
(CAGNIN, Ibidem, p.157-159)
A seqüencialidade ocorre quando comparamos duas imagens tomadas como um
único significante, permitindo assim identificar o que permanece, varia ou continua
constante de uma para outra.
Segundo McCloud (2002), as HQs se configuram como imagens pictóricas e
outras justapostas em seqüência deliberada. Temos, pois, além dos desenhos, outras
“imagens” presentes nos quadrinhos, como a linguagem verbal, que assume aqui um
46
caráter pictórico, uma vez que, além da característica imagética inerente a sua própria
natureza (uma palavra pode suscitar em nossa mente uma infinidade de imagens), se
coloca como recurso visual explorado de diversas maneiras, como, por exemplo, pelo do
uso de onomatopéias, caixa alta, cor, tamanho e fonte da letra. A justaposição se dá pelo
caráter seqüencial das HQs. Mas não se trata apenas de um ajuntamento de linguagens:
na verdade, as relações tecidas entre as várias linguagens nos quadrinhos acabam sendo
mais importantes do que as próprias linguagens em si (BARBIERI, 1993).
2.3.1 A leitura dos intervalos
O espaço e o tempo são elementos que se imbricam nos quadrinhos. As imagens
surgem fixas, dispostas sobre o espaço, revelando todos os elementos que compõem a
seqüência (as semelhanças e diferenças), facilitando a comparação e permitindo maior
mobilidade de 'leitura', possibilitando, a qualquer momento, voltar aos quadros passados
ou avançar para os futuros. Para Cagnin (1975, p.160), a relação entre duas unidades-
quadrinhos encaminha a leitura de um lugar para outro, naturalmente, em tempos
subseqüentes:
Há uma simbiose entre espaço e tempo de leitura e, por fim, o tempo da leitura
passa a se associar ao tempo da narração. A íntima relação entre temporalidade
e causalidade induz a outra transformação do tempo em causa e efeito. Os dois
processos, comparação e sucessão temporal e espacial, produzem a
significação, subordinam os elementos significantes num sintagma e
reproduzem a ação .
47
O espaço entre cada quadro (vinheta) que compõe as histórias torna-se elemento
vital para a seqüencialidade das HQs e revela-se como o local do impulso narrativo, que
tanto pode ser espacial quanto temporal
13
. No intervalo entre uma cena e outra é que a
história se completa, devido à ação realizada pelo próprio leitor, que transforma os
quadros separados num todo indissociável, por meio da conclusão. Como ressalta
McCloud (2002, p.33), nas HQs a conclusão cria entre o criador e o leitor uma
intimidade, um pacto secreto que só é superado pela palavra escrita: “Os quadros das
Histórias fragmentam o tempo e o espaço, oferecendo um ritmo recortado de momentos
dissociados. Mas a conclusão nos permite conectar esses momentos e concluir
mentalmente uma realidade contínua e unificada”.
A transição entre os quadros nas HQs é, portanto, fator decisivo para garantir a
construção da narrativa, tanto no que diz respeito à composição espacial quanto à
temporal. A transição pode ocorrer de várias maneiras, desde uma representação de cada
pequena mudança nas cenas ou dos movimentos que constroem determinada ação, até
longas alterações de tempo, espaço, aspecto, idéias e sentidos. Cada escolha na forma de
representar o transcorrer dos quadros resultará em efeitos diferentes (Fig. 9 e 10).
13
Como explica Moya (2002), o corte gráfico gera as elipses preenchidas pela imaginação do leitor, e a
transição entre as ilustrações, revela, se fluente, as marcas de um bom narrador.
48
Fig.9 – Na seqüência da HQ Dom Quixote, desenhada por Caco Galhardo, as ilustrações revelam 3
momentos subseqüentes de uma cena ocorrida num mesmo espaço: o tropeço do cavalo na pedra, mostrado
por um close da pata do animal, o lançamento de Dom Quixote no ar, reforçado pelas linhas de movimento,
que se estendem para o último quadro, quando vemos a personagem caída no chão.
Fig. 10 – A transição entre os quadros também pode revelar saltos temporais, como no caso das cenas da
HQ Batman Ano Um, em que os fatos abrangem um período de dias, o que vem indicado pela legenda
apontando a data correspondente a cada acontecimento.
Para a realização da mudança entre os quadros, a escolha dos elementos que farão
parte da constituição de cada unidade-quadrinho, faz-se necessário o uso da montagem.
49
Conforme ressalta Sergei Eisenstein (2002, p.8), “o conceito de montagem está presente
em toda a cultura humana. O pensamento humano é montagem e a cultura humana é o
resultado de um processo de montagem, em que o passado não desaparece e sim se
reincorpora, reinterpretado no presente”. Nas obras de arte como um todo, a montagem se
revela como meio eficaz no processo de comunicação.
Contudo, como revela Umberto Eco (2004, p.147), a montagem nos quadrinhos é
feita de modo original, pois,
[...] não tende a resolver uma série de enquadramentos imóveis num fluxo
contínuo, como no filme, mas realiza uma espécie de continuidade ideal
através de uma factual descontinuidade [...] quebra o continuum em poucos
elementos essenciais. O leitor a seguir solda esses elementos na imaginação e
os vê como continuum
14
.
Outro recurso utilizado na elaboração dos quadrinhos e que contribui para sua
eficiência comunicativa no que diz respeito à representação espaço-temporal é a forma e
a disposição dos quadros. Para McCLoud (2002), o quadro é o ícone mais importante dos
quadrinhos, e funciona como um indicador da divisão do tempo e do espaço. Ao mover
os olhos pela página, o leitor também tem a sensação de se mover no tempo. Devido a
sua importância, a forma dos quadros ou a maneira como são utilizados influenciará a
experiência da leitura. Assim, um quadro sem contorno pode dar mais leveza à leitura,
uma imagem que invade outros quadros pode intensificar a dramaticidade de uma cena e
outras tantas possibilidades compositivas (Fig. 11).
14
É o que McCloud (Ibidem) define como a ‘conclusão’, realizada pelo leitor entre cada intervalo dos
quadros que compõem as HQs.
50
Fig. 11- Na composição dos quadros desenhados para a HQ Sandman no. 8: o som de suas asas, a
sobreposição das imagens, a posição inclinada dos quadros e seu contorno irregular, somado ao uso de
onomatopéias, ampliam a dramaticidade da seqüência que mostra o atropelamento de uma das personagens
(e que resultará em sua morte).
2.3.2 Personagens e falas
A representação das personagens nos quadrinhos ocorre principalmente pela
caracterização visual. As ilustrações que compõem as narrativas quadrinizadas, aliás, são
extremamente variadas, trazendo desde personagens simples até complexas paisagens e
cenários detalhados. Os traços podem ir dos caricaturais aos realistas
15
.
15
Para McCloud (2002), por meio do realismo tradicional o desenhista pode representar o mundo externo,
enquanto que com o traço cartunizado, o mundo interno: “Quando o cartum é usado [...] a história parece
pulsar com vida [...] entretanto [...] se um artista quiser representar a beleza e a complexidade do mundo
físico algum tipo de realismo será importante” (Idem, ibidem, p.41).
51
Eisner (2005) ressalta que, nos quadrinhos, diferente do que ocorre num filme,
por exemplo, há pouco espaço e tempo para se desenvolver as personagens, daí o uso,
muitas vezes, de certos estereótipos ou caricaturas de determinadas características
humanas: o musculoso para representar o herói, os traços simétricos para a beleza, a
disformidade para a maldade, etc. (Fig. 12)
Fig. 12 – No exemplo que Eisner nos dá em seu livro Narrativas Gráficas, podemos perceber como o uso
de certos esteriótipos de fato influenciam na composição narrativa. No primeiro quadro, a figura do herói
corresponde ao padrão comumente utilizado: forte, traços simétricos, etc. Já quando é utilizada uma figura
com características mais caricaturais, o efeito obtido é o do humor.
O balão, onde é inserido a fala ou o pensamento das personagens, é um recurso
próprio das histórias em quadrinhos. Tal elemento possibilita maior dinamismo,
conforme explica Cagnin (1975, p.121): “o balão, criação original dos quadrinhos [...] é o
elemento que indica o diálogo entre as personagens e introduz o discurso direto na
seqüência narrativa”. O apêndice (ou rabicho) em forma de flecha que sai do balão e que
está voltado para a personagem, marca a relação do texto com a imagem referente,
52
indicando quem está falando. Outro aspecto importante do balão é que ele também
assume um papel imagético, pois seu formato pode indicar sentimentos, atitudes, e as
mais variadas emoções e intenções
16
.
Segundo RENARDT (1981, p.20-21), um dos embriões dos balões já pode ser
encontrado nos séculos XII e XIII com o surgimento dos filatérios,
[...] bandeirola que sai da boca do personagem que fala, e na qual se encontram
inscritas palavras. Esta bandeirola recebe o nome de phylactère, por alusão a
pequenos rolos com o mesmo nome, coberto de extratos da Thora,
transportados na fronte pelos grandes padres judeus. É este termo que ainda
hoje se aplica por vezes ao balão utilizado na banda desenhada.
A legenda (caixa de informações), aparece ao lado do balão como outro
importante elemento narrativo. Normalmente ocupa a parte de cima do quadro que
contém a figura, porque é convencionalmente onde se inicia a leitura. Na legenda
encontra-se geralmente a fala do narrador, seja ele em primeira ou em terceira pessoa.
É importante destacar que por meio do uso do balão e da legenda, recursos como a
voz
over e a voz off (informação verbal)
17
, tão utilizados nas obras fílmicas para
explicitar a forma de narração/diálogo, também se fazem presentes e ajudam na
construção narrativa nos quadrinhos. A utilização da voz
over, extradiegética; não
audível por quem está na cena, pois sua fonte não participa da mesma (como nos casos
das estórias contadas em
flash back) é representada pelo uso da legenda. Já a voz off,
locução em que a fonte, sujeito falante, não está visível na imagem focalizada, mas
participa da cena e é ouvido por quem atua na mesma, surge nos quadrinhos com a
16
Scott McCLoud (ibidem) chama o balão de “ícone sinestésico”, uma vez que ele pode representar muitas
sensações/emoções nos quadrinhos.
17
XAVIER, Ismail. Anotações de aula.
53
presença do balão sem a representação da personagem que fala. Nesse caso o apêndice do
balão se dirige a uma personagem que está fora da imagem mostrada.
Um exemplo da voz over nos quadrinhos é a satirização dos romances policiais
noir feita por Luis Fernando Veríssimo e Miguel Paiva em Ed Mort (Fig. 13). Na
seqüência, a personagem Ed, numa narração em 1
a
pessoa e em flashback, conta os fatos
que o levaram a iniciar investigações sobre um determinado caso: seu encontro com a
Sra. Silva, a mulher fatal, personagem típica dos romances
noir.
Fig. 13- As falas de Ed ocorrem em outro tempo (presente) que não aquele revelado nas ilustrações
(passado). A interação da caixa de legenda com a figura da Sra Silva no 2
o
quadro, mostra o quanto os
elementos dos quadrinhos podem ser visuais.
Ainda nos quadrinhos de Ed Mort, temos uma amostra de como a voz off pode ser
utilizada (Fig. 14). Na ilustração, Ed é ameaçado por um bandido, que não quer a
continuidade das investigações. Em toda a seqüência, vemos apenas o rosto em close de
Ed, sem a presença de outra personagem em cena. Sua fala é indicada por balões com
apêndices voltados para ele, enquanto a fala do bandido é sugerida por balões com
apêndices voltados para fora do quadro. É a composição da estória com os demais
54
quadros que compõem a página, que traz ao conhecimento do leitor a presença da outra
personagem interagindo com Ed.
Fig 14 – Os balões se mostram extremamente visuais e ajudam a indicar o que Ed está sentindo no
momento. A fala do bandido no segundo quadro apresenta-se num balão de formato recortado e irregular,
representando uma fala num tom mais alto, rígido e nervoso, efeito reforçado pelo uso da letra em caixa
alta. Já a fala de Ed no penúltimo quadro demonstra seu medo diante da situação, fato denunciado pelo
contorno do balão e do desenho que surgem tracejados, o que parece se intensificar no último quadro,
devido a presença de gotas e raios saindo do rosto de Ed, elementos tradicionalmente usados para
representar tais situações nas HQs.
2.3.3 Narração em movimento
Quando entramos em contato com a obra quadrinizada, temos a impressão, em
muitos casos, que há de fato movimento na seqüência de imagens. Além dos fatores
apontados anteriormente, outros elementos ajudam a criar tal impressão, possibilitando a
construção de efeitos dos mais variados, como o drama, o suspense, o humor e muitos
outros. A forma de enquadramento (planos fixos, panorâmicas,
close-up, etc.), diferentes
ângulos de focalização, movimentos de câmera (
travelling) e outros, recursos vastamente
utilizados pelo cinema, são essenciais para “mover” as personagens no papel, revelar o
ponto de vista, construir cenários, dar a ambientação, etc. (Fig 15 e 16)
55
Fig. 15 – Mutarelli, em o Dobro do Cinco, nos revela uma sucessão de cenas com tomadas ousadas e ritmo
cinematográfico, em que podemos ver os fatos do alto e até mesmo por baixo do carro em movimento.
Fig. 16 – Na seqüência dos quadros da HQ Orquídea Negra, temos um exemplo de como o movimento da
câmera (travelling) pode ser representado nos quadrinhos. Aqui, a focalização inicia-se pela cidade
56
mergulhada na escuridão da noite, sobrevoa uma estufa que se destaca pelo verde na escuridão e, no
terceiro quadro, se aproxima do telhado da estufa.
Segundo Gérard Betton (1987), ao discorrer sobre a estética do cinema, o ângulo
de uma tomada jamais é gratuito e implica numa escolha, numa postura intelectual e
afetiva. Ele explica que há uma infinidade de ângulos, mas geralmente se distinguem: o
ângulo normal, em que não há deformação da perspectiva, revelando um ponto de vista
horizontal, na altura dos olhos; o ângulo de cima para baixo,
plongée, em que as
personagens surgem esmagadas no chão, diminuídas, o que pode criar um efeito de
sufocamento, angústia, ou dar o clima de certa onisciência do olhar, etc; e o de baixo para
cima,
contre-plongée, no qual as personagens parecem maiores, superiores, poderosas,
podendo suscitar também o pavor, a tragédia, etc. Os ângulos também ajudam a dar a
impressão de altura, queda livre, etc. (Fig. 17).
Fig. 17 - Nas ilustrações retiradas do livro O menino quadradinho de Ziraldo, as tomadas aéreas reforçam a
idéia de altura: o menino se encontra no chão e vê as demais personagens que se encontram num ponto
superior.
57
O ponto de vista revelado pelas diferentes formas de composição de planos e
ângulos tanto pode ser o do espectador (câmera objetiva), como o de uma personagem
(câmera subjetiva). Na seqüência destacada a seguir, temos justamente um exemplo de
como a câmera subjetiva pode ser usada nos quadrinhos (Fig. 18). Trata-se de cenas da
HQ
Orquídea Selvagem de Neil Gaiman e Dave McKean. Nelas, temos a visão da
personagem quando criança, um menino de três anos de idade, fato contado em
flashback
pela personagem já adulta, e nós, como ele, temos a mesma perspectiva de visão. O
ângulo das tomadas é de baixo para cima (
contre-plongée), do local onde o menino se
encontra. Como a criança, vemos tudo a partir de um ponto que se localiza abaixo do
campo normal de visão, numa referência à sua baixa estatura. A “câmera” assume o seu
ponto de vista, daí não vermos o menino em cena. Sua visão, que inicialmente se
localizava sobre um inseto, muda para a conversa entre dois adultos. O fato de o Sr.
Linden, no 4
o
quadro, entregar uma flor para o menino, dirigindo seu gesto em direção à
“câmera”, reforça a idéia de que temos o mesmo ponto de vista da criança-espectadora.
58
Fig. 18 – Em dois momentos, temos o close de elementos que complementam o sentido da narrativa: o
charuto, que revela a comemoração dos adultos em relação ao nascimento de uma criança, e a flor, símbolo
daquela que se tornará no futuro a Orquídea Selvagem.
A utilização de linhas na composição das cenas é outro elemento que permite a
indicação e acentuação de movimentos, ampliação de sons e outros efeitos narrativos. Em
um dos quadros de
A turma do Pererê de Ziraldo, o excesso de linhas e as onomatopéias
ampliam o efeito de movimento da Onça Galileu, que foge da perseguição do caçador
(Fig. 19).
59
Fig. 19– As linhas e onomatopéias em cena, além de amplificar a sensação de movimento e som, auxiliam
na criação do efeito de humor na seqüência.
Elementos como cores ou sua ausência também são importantes para a
composição narrativa. A luz, obtida pelo uso de sombras, dos contrastes de claro-escuro,
por exemplo, pode auxiliar na delimitação do espaço e da ação, dar profundidade ou
volume, criar o clima de suspense, etc. (Fig. 20 e 21)
FIG. 20
e 21 - Nos exemplos da HQ Batman Ano Um, temos duas representações de uma mesma seqüência,
uma em preto e branco e outra colorida. A ausência de cores na primeira representação em contraste com as
cores opacas da segunda, nesse caso, parece conferir mais dramaticidade à cena.
60
3. QUADRINHOS E LITERATURA: RELAÇÕES DIALÓGICAS
O diálogo entre quadrinhos e literatura é antigo e mesmo em Língua Portuguesa
tal relação se dá já há bastante tempo. De acordo com Vergueiro (2005, p.1), as primeiras
transposições de obras literárias para a linguagem gráfica nos Estados Unidos ocorreram
em outubro de 1941:
[...] o empresário Albert Kanter, da Gilbert Publications, sentiu que os comic-
books
18
podiam ser utilizados para fins mais nobres que o simples
entretenimento, sem, ao mesmo tempo, deixar de propiciar a seus produtores o
lucro desejado de qualquer investimento financeiro. Assim, ele teve a idéia de
produzir uma revista de histórias em quadrinhos voltada para transmissão dos
clássicos da literatura, o que acabou se consubstanciando no título Classics
Comics, que em seu primeiro número trazia a quadrinização do romance Os
três mosqueteiros, de Alexandre Dumas. Era, então, um trabalho bastante
canhestro, sem grandes méritos, mas mesmo assim o sucesso da iniciativa abriu
espaço para a continuidade da revista, que posteriormente se aprimorou e se
transformou em um dos títulos mais cult da história dos quadrinhos, Classics
Illustrated.
No que diz respeito à produção nacional, a primeira obra brasileira a ser adaptada
para os quadrinhos foi
O Guarani, de José de Alencar, publicado no Diário da Noite, de
São Paulo, em 1947, por Jayme Cortez, recém-chegado de Portugal.
No ano seguinte a Editora Brasil América Limitada (EBAL) começou a publicar a
versão em português do
Classics Illustrated, chamado por aqui de Edição Maravilhosa.
Posteriormente, Adolfo Aizen, fundador da EBAL, passou a publicar obras em
18
Comic Books era um novo formato de publicação dos quadrinhos que surgiu nos EUA. Segundo Gonçalo
Junior (2004, p.66), esse tipo de publicação: “[...] chegava para aposentar em definitivo o tablóide,
predominante entre as publicações do gênero[...] bastava dobrar o tablóide ao meio e grampeá-lo para ter
uma revista com o dobro de páginas, mas com custo quase igual [...]”. Outra novidade é que a nova forma
de apresentação trazia aventuras completas em quadrinhos, diferente dos episódios seriados semanais dos
jornais.
61
quadrinhos de grandes autores brasileiros da literatura, como Machado de Assis e Jorge
Amado dentre outros (VERGUEIRO, Ibidem).
Outras publicações também traziam obras literárias adaptadas para os quadrinhos.
Uma delas era O Globo Juvenil, na qual trabalhava Nelson Rodrigues (Fig. 22). Ele, que
editava HQs estrangeiras e escrevia outras estórias para a publicação, também fez
adaptações de obras clássicas para os quadrinhos: “Com Alceu Penna, em 1938, fez a
versão do clássico
O Fantasma de Canterville de Oscar Wilde para os quadrinhos. [...] Os
dois voltariam a parceria em 1941, quando produziram a versão de
O Mágico de Oz,
também para o tablóide de Marinho” (GONÇALO JUNIOR, 2004, p.62).
62
Fig. 22- Na seqüência destacada, temos algumas cenas da adaptação do Fantasma de Canterville feita por
Nelson Rodrigues e Alceu Pena.
Nas décadas de 40 e 50 muitas obras foram adaptadas para os quadrinhos, como
A
pata da gazela
de José de Alencar com desenhos de Aylton Thomaz (1955), As três
Marias de Rachel de Queiroz, feita por Gutemberg Monteiro (1956-57), Navio Negreiro
de Castro Alves, adaptada por Eugenio Colonnese (1957) e muitas outras. Nas décadas de
60 e 70 poucas obras receberam adaptações para os quadrinhos. Durante a década de 70 e
início dos anos 80, alguns livros da literatura infantil, como o Sítio do Pica-Pau Amarelo,
de Monteiro Lobato, receberam versões quadrinizadas que fizeram sucesso (MOYA,
Ibidem).
63
O diálogo de obras literárias com os quadrinhos, que se estende até os dias atuais,
não se dá de forma homogênea nem numa mesma constância. No Brasil, tal prática tem
encontrado um novo impulso nos últimos anos. A inclusão de histórias em quadrinhos
nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), como uma alternativa de
complementação didática ao ensino, pode, como ressalta Waldomiro Vergueiro (2005),
dar novo incentivo à quadrinização de obras literárias no Brasil.
É importante destacar que os quadrinhos enfrentaram ao longo de sua história,
diversos preconceitos, uma vez que eram vistos como algo pernicioso. No final da década
de 40, uma forte campanha contra os quadrinhos foi iniciada com o lançamento do livro
Sedução dos Inocentes, do médico psiquiatra Dr. Frederic Wertham. Ele criticava e
destacava a influência das HQs sobre a delinqüência juvenil, o que ampliou o preconceito
e a desconfiança quanto à sua leitura. Em conseqüência, foi criado o
Comic Codes, que
determinava uma série de regras para a produção de quadrinhos, o que representou um
freio criativo.
É somente em meados da década de 50 que os autores retomam sua inspiração e,
sobretudo, começam a questionar a sociedade sobre aspectos filosóficos e sócio-
psicológicos, com histórias como as da
Turma do Charlie Brown de Charles Schultz. Na
década de 60, os quadrinhos se revitalizam com o movimento
underground. Vários
artistas se rebelam contra as normas impostas pelos
Syndicates e fundam seu próprio
movimento. Os super-heróis surgem com aspectos mais psicológicos, se aproximam dos
64
humanos, entram em depressão. Aparece com maior destaque as heroínas, certamente
como reflexo dos movimentos feministas.
Segundo Moya et al (2002, p.49), no país os quadrinhos também tiveram
problemas: “Aqui no Brasil a perseguição não chegou a esses extremos, mas começava
uma pressão por parte de professores que acusavam os gibis de deseducativos [sic], de
causarem ‘preguiça mental’ e falarem em ‘mau português’”. Após tal campanha, ficou
mais difícil o uso das HQs como recurso pedagógico e, ainda hoje, mesmo com seu
reconhecimento como importante meio de expressão, ainda há barreiras para sua
aceitação. Segundo Vergueiro (2006), os primeiros quadrinhos de caráter educacional
publicados na década de 40 nos Estados Unidos apresentavam antologias sobre
personagens e acontecimentos históricos e figuras literárias, além das adaptações de
clássicos da literatura.
No Brasil, o pioneiro na produção de quadrinhos com objetivo didático são as
séries de Julierme de Abreu e Castro. Como explica Flávio Calazans (2004, p.20),
“nesses livros de atividades programadas para ensino dirigido, publicados pela IBEP,
havia fragmentos ou páginas inteiras de HQs, desde a década de 1960. O primeiro livro,
de geografia, é de 1967”. A aceitação dos quadrinhos pelos educadores ocorreu a partir
da década de 70, quando se começou a pensar nas HQs como ferramenta para ajudar na
alfabetização ou como um modo de incentivar a leitura de livros. Outros materiais
também fizeram (e fazem) uso dos quadrinhos para sua comunicação, como manuais,
publicações de utilidade pública, folhetos, etc. Nos livros didáticos, por seu lado, houve
65
um aumento da presença dos quadrinhos, porém ainda se faz necessário um olhar mais
atento para tal expressão artística, que tem muito a contribuir para o processo de ensino-
aprendizagem como um todo.
Sendo o quadrinho uma produção estética que, assim como outras, traz em si
peculiaridades que a definem como tal, necessita ser aprendida e englobada no processo
educacional, pois, como afirma Maria Zilda Cunha (2002, p.25):
Uma perspectiva pedagógica que pretenda compreender a realidade que se
constrói na e pela mediação da(s) linguagem(s); a experiência cultural; que
almeje a possibilidade de recriação e re nomeação do real, a produção estética
tem que, naturalmente, entrar como um elemento constitutivo do acervo de
conhecimentos a ser construído pelos educandos.
3.1 Transposições culturais: absorção e transformação
A transposição de obras de um meio artístico para outro tem sido uma prática
comum em nossos dias. Mike Featherstone, em seu livro
O Desmanche da Cultura:
Globalização, Pós-modernidade e Identidade
(1995), aponta para o fato de que a
ampliação da cultura de massa, com a proliferação dos bens e das imagens, é considerada
por muitos como o final da separação entre as esferas culturais, e não só em relação às
obras, mas também aos grupos de indivíduos. Ao comentar a utilização de um poema de
Yeats em uma música de Joni Mitchell, Featherstone (Ibidem, p.19) destaca que esse é
um exemplo de “’transposição’ [grifo do autor], no qual as formas culturais previamente
circunscritas fluem mais e ultrapassam aquilo que, outrora, constituiu uma fronteira
estritamente policiada, a fim de produzir combinações e sincretismos inusitados”.
66
Um importante aspecto a ser ressaltado quando falamos de transposição entre
obras e meios artísticos é o que diz respeito a relação do diálogo com a obra-fonte. A
inter-relação entre obras implica numa interferência no texto-base, seja para adequá-lo ao
novo suporte, reduzir ou mesmo introduzir novos contextos/elementos no mesmo, dando
origem a diferentes obras. Como observa Julia Kristeva (1969 apud MOISÉS, 1990)
19
,
todo texto se configura como absorção e transformação de outros textos. Assim, pode-se
afirmar que “cada obra surge como uma nova voz (ou um novo conjunto de vozes) que
fará soar diferentemente as vozes anteriores, arrancando-lhes novas entonações”
(MOISÉS, Ibidem, p.63).
Para compreender como se dá a interação entre obras, é preciso levar em conta
tanto o conhecimento prévio do leitor/receptor quanto a forma de recepção no novo meio
com o qual a obra-base está dialogando, seja quadrinhos, literatura, cinema, etc.. Cada
meio de expressão traz em si elementos próprios que o caracterizam e a relação do
leitor/receptor se dará de forma diferenciada, levando-se em conta tais elementos. A esse
respeito, Lotman (1978, p.62) explica:
Para que um ato de comunicação artística em geral exista, é necessário que o
código do autor e o código do leitor formem conjunto de elementos estruturais
que se cruzem [...], por exemplo, que o leitor compreenda a língua natural em
que o texto está escrito.
É necessário que o receptor compreenda não só o código específico do autor, mas
o próprio código da arte com a qual está interagindo: se for um texto literário, além de
compreender a língua natural em que foi produzido, também conhecer o sistema literário,
19
KRISTEVA, Julia. "le mot, le dialogue, le roman". Semiotike: Recherche pour une Sémanalyse. Paris:
Seuil, 1969.
67
o código subjacente a tal sistema, os mecanismos envolvidos no processo de produção; se
for uma história em quadrinhos, compreender o processo de interação entre as linguagens
verbal e não-verbal que ocorre nas HQs, bem como outros recursos utilizados; se for um
filme, entender e reconhecer elementos como o uso da imagem em movimento, do som,
etc.
Aliás, como ressalta Moacy Cirne (1972, p.93), “transpor uma obra de uma dada
prática estética para outra prática estética implica assumir semiologicamente os signos de
uma nova linguagem”. No caso específico desse estudo, não importa se a obra
quadrinizada ou transformada em literatura é fiel à obra-base. O que se coloca é se como
discurso quadrinizado ou literário a obra corresponde às expectativas. Caso contrário, o
que acontece é uma violentação, não da obra-base, mas da própria estrutura narrativa da
nova obra criada a partir daquela, em outro meio expressivo, que surge a partir da
mobilização dos recursos disponíveis no outro meio.
Quando uma obra elaborada a partir de outra, em suporte diferente, não assume os
signos e códigos do novo meio em que está sendo produzida, numa tentativa de manter a
estrutura narrativa da obra-base, teremos uma nova obra que não corresponde às
possibilidades comunicativas do meio em que está sendo veiculada. Corresponder às
expectativas significa, portanto, que a obra produzida em diferentes meios, traga em si as
marcas desse meio, revelando os elementos narrativos produzidos a partir da
arregimentação dos recursos do novo suporte em que foi produzida. Na literatura, a
linguagem verbal concretiza na narrativa os elementos de composição (ação,
68
personagens, etc.). Nos quadrinhos, por sua vez, é a integração entre as linguagens verbal
e não-verbal que materializam tais elementos, fazendo uso para tanto, de diversos
recursos como os balões, legendas, forma das vinhetas, maneira de disposição no espaço
(papel), etc.
Pedro Barbosa (2002, p.26-27), ao comentar o intercâmbio que ocorre entre as
diversas artes, explica que,
[...] na transposição semiótica não é apenas o código que varia, mas a própria
natureza dos sinais utilizados (na adaptação de um romance ao cinema, por
exemplo, convertemos uma mensagem expressa originariamente em signos
lingüísticos numa outra constituída por imagens audiovisuais). [...] Sem dúvida
que quanto mais próximos estiverem os sistemas semióticos a converter mais
fácil se torna uma transposição e mais fiel ela pode ser ao modelo original. [...]
Isso explica que sejam tão freqüentes as transposições de obras narrativas entre
discursos estéticos que incluam a dimensão temporal na estrutura da sua
mensagem [...] já que a narratividade (a criação de uma ‘história’) assenta
sobre a seriação de acontecimentos no tempo.
No caso dos quadrinhos e da literatura, a transposição é mais próxima, visto que,
além dos suportes físicos que veiculam tais manifestações artísticas se aproximarem,
levando-se em conta que estamos nos referindo especificamente às obras tanto literárias
quanto quadrinizadas produzidas no suporte papel, ou seja, no livro, no álbum, na revista,
etc., ambas trabalham com a narrativa, fazendo uso de elementos que fazem parte do
código básico da narração (tempo, espaço, ação, etc.).
O resultado dessa intercomunicação, por sua vez, pode ser variado. Há desde
adaptações que reproduzem na integra a obra original até aquelas que propõem novas
formas de diálogo. De certo que a maneira de se relacionar com o texto-base obedece a
determinados objetivos. Desta forma, teremos obras que buscam auxiliar a leitura das
69
originais, fazendo a mediação entre essas e o leitor, outras que procuram propor novas
leituras da obra base e assim por diante.
Seguindo a definição que Gerard Genette (1982 apud MELLO, 2006)
20
dá de
hipertexto, uma das categorias do que ele define como transtextualidade, que engloba de
uma forma geral toda forma de diálogo de um texto com outros textos, teremos que tal
relação se refere a qualquer texto que “derive” de um outro, seja por transformação
simples seja por imitação. Os textos/obras originados dessa maneira podem se apresentar
sob a forma de paródia, que retoma um texto apresentando-o com diferentes intenções,
sátira, ridicularização de um determinado tema com efeito cômico ou não, pastiche,
imitação de uma determinada obra em que o autor assume o estilo de outro (a mesma
forma de “contar”), paráfrase, que seria o recontar um texto/obra com outras palavras,
sem, contudo, modificá-lo, plágio, apropriação de uma obra ou trechos da mesma sem
reconhecer a fonte/autoria, etc. Assim, estabelecendo combinações diversas, o diálogo
entre os meios pode originar desde adaptações pastiche, que procuram imitar as originais
em outros suportes, adaptações criativas, que adaptam a obra-base acrescentando-lhe
elementos que inovam sua leitura, re-criações paródicas, que reconstroem a obra numa
chave cômica e muito mais.
Outro aspecto importante que precisamos levar em conta quando estudamos a
relação entre obras são as tradições, os cânones estabelecidos em determinada cultura, o
que nesse estudo em especial se torna elemento chave para compreendermos os diálogos
20
GENETTE, Gérard. Palimpsestes. Paris: Seuil, 1982.
70
entre o literário e os quadrinhos. O termo cânone, derivado da palavra grega kanon (um
tipo de vara que servia como instrumento de medida) se refere a um conjunto de regras
ou modelos sobre determinado assunto. Nas artes, o termo se aplica a um conjunto de
obras tidas como oficiais e genuínas. O cânone moderno, como explica Perrone-Moisés
(1998 apud JACOMEL 2008)
21
pode ser explicado a partir da teoria de Kant, partindo-se
do princípio de consentimento: durante um determinado período, as obras e escritores que
obtiveram um maior assentimento tornam-se modelares. Também há, integralizado no
conceito de cânone, o pedagógico: “A preocupação com a função pedagógica do cânone
literário toma corpo no século XX, no sentido de querer fornecer leituras formadoras ao
currículo dos jovens e prepara-los para ‘reconhecer’ [grifo do autor] as obras de
qualidade estética”. (JACOMEL, 2008, p.5)
No que diz respeito à existência dos cânones, há quem os considere excludentes,
na medida em que deixam de fora todos os que não correspondam à ideologia dominante.
Por outro lado, há aqueles que defendem sua existência como forma de selecionar as
obras/autores que podem ensinar mais seletivamente os leitores devido à sua qualidade
estética (BLOOM, 2001). Independente da polêmica em relação à aceitação dos cânones,
para esse estudo consideraremos sua presença nas artes (tanto literária quando a dos
quadrinhos) como geradora de matrizes que serão, por via dos diálogos propostos,
questionados (ou não) de acordo com a forma como se dá a intercomunicação entre as
obras.
21
PERRONE-MOISÉS, L. Altas Literaturas: Escolha e Valor na Obra Crítica de Escritores Modernos.
São Paulo: Companhia da Letras, 1998.
71
Vejamos nos próximos itens, como se dá a transposição de obras literárias para os
quadrinhos e como os recursos estéticos das HQs podem propor novas leituras de obras
tradicionais, obtendo assim resultados dos mais variados. Sobre as relações apresentadas
a seguir, vale destacar que poderemos encontrar, numa mesma obra, características de
uma ou mais categorias das levantadas. O critério para a classificação das obras em
determinada categorização é a predominância de certos aspectos que as aproximam mais
de uma forma de interação do que outras.
72
3.2 Da literatura para os quadrinhos
“Nessa sociedade, sedenta de novos conceitos, métodos
e técnicas movidas pelo poder econômico, começa-se a
fazer adaptações de clássicos da literatura como
‘Cinderela’, ‘As mil e uma noites’ e várias outras
histórias que tiveram a sua origem em classes
intelectualizadas ou da sabedoria popular”.
José Nicolau Gregorin Filho
Diversas obras literárias foram e são adaptadas para os quadrinhos ou servem de
base para a elaboração de diferentes obras nas HQs. Como bem ressalta Pedro Barbosa
(2002, p.25), é a partir de adaptações que muitas pessoas passam a conhecer as obras
literárias:
É em banda desenhada ou em seriados televisivos que os jovens de hoje tomam
contato com o universo romanesco de 'Os Miseráveis' de Vítor Hugo e é no cinema
que os cidadãos apressados ficam a conhecer a monumental história da 'Guerra e
Paz' de Leão Tolstoi [...] E temos de reconhecer que em nenhum outro tempo,
como o nosso, este fenômeno da adaptação se tornou tão freqüente e tão
característico.
Mas de fato, o que acontece quando uma obra literária é adaptada ou estabelece
algum outro tipo de diálogo com as HQs? Temos o texto original, na maioria das vezes rico
em construções lingüísticas e imagéticas que, ao passar para o suporte quadrinhos, integra
uma nova composição narrativa, composta das linguagens verbal e não-verbal numa
relação única.
73
Quando observamos adaptações-diálogos de textos literários para os quadrinhos, é
possível identificar uma gradação, em que há desde obras que remetem diretamente ao
texto-base até aquelas que fazem da literatura um mote para a elaboração de novos enredos.
Assim, teremos: HQs mais próximas da literatura, remetendo, muitas vezes, ao texto
ilustrado, obras que propõe novas construções narrativas, seja pela apresentação de
diferentes propostas na utilização dos recursos dos quadrinhos, seja pela inserção de novos
aspectos no enredo original e, por fim, HQs que se utilizam de elementos da literatura para
construir outras obras.
3.2.1 Mantendo o texto-base
Algumas HQs ao adaptar obras da literatura procuram manter o texto-base com
poucas ou nenhuma alteração, trazendo assim as marcas da obra original em sua estrutura.
Tratam-se do que poderíamos chamar de adaptações pastiche, em que há uma “imitação”
da obra original só que feita por meio de outros elementos. Por não se distanciar do original
produzido na literatura, algumas dessas obras não assumem integralmente os recursos
narrativos do novo meio no qual estão sendo veiculadas: os quadrinhos. Geralmente, a
integração entre as linguagens se mostra condicionada ao enredo que lhe dá origem, daí a
sensação, em determinadas obras, de estarmos diante de um texto ilustrado, em que a
linguagem não-verbal surge apenas para acompanhar e ilustrar a verbal, não acrescentando
novos elementos à mesma, com um caráter, por vezes, mais acadêmico. Há, contudo, o uso
da montagem que vai revelar a escolha dos momentos a serem quadrinizados e significa,
74
por sua vez, uma interferência no texto-base, já que há uma seleção pessoal para se definir
tais escolhas.
Assim, buscando representar o texto-base num novo suporte, mas resguardando suas
características originais (desde o enredo até a linguagem), a obra quadrinizada se mostra
muito próxima à literária, sem que haja a inserção de elementos que possam modificar e/ou
interferir na obra original. Os elementos dos quadrinhos são utilizados de maneira mais
subordinada e complementar ao texto-base, e é a linguagem verbal quem conduz a
narração. A linguagem não-verbal atua em função da linguagem verbal, procurando ilustrar
da melhor maneira o que ela expressa.
Muitas adaptações de textos literários para os quadrinhos procuram manter não só o
enredo, mas a própria forma de construção narrativa da literatura, cuja principal
característica é o uso da linguagem. Daí o uso de longos trechos da obra original, com
extensas legendas trazendo a linguagem verbal.
Desde o início das adaptações literárias para as HQs até os dias de hoje, tem sido
essa a forma escolhida por muitos autores para adaptar obras da literatura, numa referência
direta ao aspecto didatizante do resultado, por tornar mais acessível para muitos a leitura
dos clássicos, uma vez que vêm mediados pela visualidade inerente aos quadrinhos –
aspecto ao qual a maioria das pessoas já se mostra acostumada/adaptada, pois a sociedade
moderna se fundamenta, principalmente na visualidade, ao passo que a literatura, se mostra
distante daqueles que, como explica Cândido (cf. cit. p.44), não se enquadraram em
75
determinada tradição, não estando familiarizados com o código narrativo próprio do texto
literário.
Destaquemos a seguir duas obras quadrinizadas, que adaptam clássicos da literatura
e que foram produzidas em épocas diferentes (A Moreninha, de 1953, e Gaetaninho, feita
em 2006), cuja característica em comum é a tentativa de adaptar obras literárias procurando
preservar ao máximo o enredo original.
a)- A Moreninha, um gancho para a literatura
A Moreninha, primeiro romance romântico brasileiro, foi escrito em 1844 por
Joaquim Manuel de Macedo, e tornou-se um dos nossos “clássicos”, destinado à “leitura
para as moças”. Sua adaptação para os quadrinhos foi feita por Gutemberg Monteiro em
1953, época em que havia uma grande campanha contra as histórias em quadrinhos. Para
dar uma resposta aos críticos, Adolf Aizen resolveu investir na adaptação de clássicos da
literatura para as HQs, objetivando mostrar que elas também serviam para propagar a
cultura entre os jovens. Nos anos 1950, não por acaso, coincidindo com a chegada da
Televisão entre nós, no mercado editorial começam a aparecer obras literárias adaptadas
para os quadrinhos. O principal alvo era o público escolar e as primeiras obras
quadrinizadas foram “clássicos” que constavam dos currículos oficiais. Muitas obras
produzidas nesse período traziam a advertência de que aquele era apenas um ‘aperitivo’, e
caso os leitores quisessem mais, deveriam ler a obra original. Essa, aliás, tem sido uma das
76
formas como a adaptação/diálogo entre a literatura e o quadrinho é visto até hoje por
muitos: como algo menor e complementar. A adaptação de A Moreninha traz em si uma
série de marcas que caracterizam sua função educativa, revelando-se um gancho para a
literatura.
Seguindo uma trama amorosa ingênua e com lances imprevistos, A Moreninha
segue a estrutura do romance-folhetim, tal como se tornara moda no nosso romance do
século XIX. Sobre o folhetim, Cândido (2000, p.30) comenta:
“Com a invenção do folhetim romanesco por Gustave Planche na França, no
decênio de 1820, houve uma alteração não só nos personagens, mas no estilo e
técnica narrativa. É o clássico ‘romance de folhetim’, com linguagem acessível,
temas vibrantes, suspensões para nutrir a expectativa, diálogo abundante com
réplicas breves.”
Assim, seguindo a estrutura de um folhetim, com capítulos que acabam sempre com
um suspense, o romance A Moreninha aborda, em seu enredo, uma história de amor vivida
por Carolina, a Moreninha do título, e Augusto, um estudante de medicina que descobre, a
certa altura, que sua amada atual era uma antiga paixão de infância, a quem ele havia feito
uma promessa de amor eterno. As personagens que vivem a trama desenvolvida no
romance se revelam ingênuas e sentimentais, e a paisagem que serve de cenário à trama é
mostrada de forma convencional e já superada em nosso tempo.
A quadrinização de A Moreninha nessa obra segue um esquema de pastiche, na
medida em que procura reproduzir ao máximo possível a obra literária. Nos quadrinhos
encontramos o mesmo tom folhetinesco apresentado no romance, com a representação das
personagens e do cenário, tanto pela linguagem verbal quanto pela não verbal, de forma
77
convencional. A montagem e a escolha dos momentos a serem quadrinizados são feitos de
forma a não se perder eventos importantes, permitindo assim a compreensão da trama como
um todo.
A busca pela transposição mais próxima do texto-base já pode ser percebida no
início da obra. A adaptação, feita em preto e branco, traz nas ilustrações a mesma
informação (na medida do possível) que é apresentada nas legendas, atuando de forma
ilustrativa à linguagem verbal. Assim, nos primeiro quadro da estória, temos a descrição da
Moreninha (Fig.23). Aqui, a linguagem não-verbal expressa o que vem descrito na legenda
que a acompanha e a linguagem verbal, por sua vez, acaba por fornecer mais informações
do que a ilustração, que se restringe às características físicas e espaciais da descrição, não
dando conta de representar os traços psicológicos referenciados textualmente: irrequieta,
alegre, irreverente, etc.
78
23 - A linguagem verbal acrescenta mais elementos à figura da Moreninha do que a linguagem não-verbal.
Nas vinhetas ao lado, somos apresentados a outras personagens, identificadas pela legenda.
A tentativa em reproduzir a obra original não se restringe apenas as linguagens
verbal e não-verbal. Também há uma busca por se manter o tom e o estilo folhetinesco da
obra-base. Daí o uso de muitos diálogos, com réplicas curtas, representados nos quadrinhos
pelo uso abundante dos balões. De certo que também há trechos em que o uso de legendas é
igualmente bastante explorado, na medida em que se procura reproduzir a fala do narrador
onisciente (Figs.24 e 25).
79
Fig. 24 - Na seqüência em que o narrador onisciente narra fatos do enredo, temos o uso das legendas.
Fig. 25 - Quando os diálogos predominam, o balão é o elemento preponderante (para encaixar todas as falas
da cena, é usado o recurso de vazar o balão para o quadro anterior, evitando assim, cobrir as figuras).
Ao observarmos a quadrinização de A Moreninha feita por Gutemberg, percebemos
que há de fato uma preocupação em se preservar a obra-base, numa tentativa de, como
afirmado anteriormente, revelar como os quadrinhos podem ser veículos facilitadores para
a leitura dos “clássicos”, servindo como meio para despertar a leitura dos mesmos.
80
Contudo, mesmo fazendo uso de recursos estruturais das HQs (balões, vinhetas, etc.), tal
forma de adaptação parece não dar conta da construção de uma narrativa fluente de
quadrinhos. Vale ressaltar que, não é a obra de Macedo que está em foco, mas a obra em
quadrinhos que para ser completa, precisa assumir totalmente seus signos. Um aspecto que
denota a não completude da adaptação em quadrinho é justamente a pouca integração entre
as linguagens verbal e não-verbal, que ressoam uma a outra de forma redundante, dando
assim, pouco espaço para que a ilustração acrescente novos nexos à narrativa.
Nas duas cenas abaixo em que temos, em momentos distintos, um duelo de palavras
entre as personagens, as ilustrações servem para mostrar e reforçar os fatos narrados nos
balões e legendas: o dedo apontado por. Clementina e o beijo que a Moreninha manda para
sua rival (Fig.26). Poderíamos pensar o contrário: a linguagem verbal atuando de forma
referencial-ilustrativa em relação à linguagem não-verbal, mas devido à preponderância do
texto em toda a obra, a forma privilegiada em que a linguagem verbal é mostrada, bem
como a simplificação dos traços dos desenhos, muitas vezes quase um borrão, além de sua
pouca atuação na construção narrativa – acrescentando poucos elementos para ajudar a
contar a estória – percebemos que é de fato a linguagem não-verbal que atua de forma
auxiliar/ilustrativa em relação à linguagem verbal.
81
Fig. 26 - Apesar da redundância entre as linguagens, a montagem revela a escolha do momento a ser
destacado no trecho, pela ilustração (dentre as várias informações fornecidas pela linguagem verbal): na
primeira cena, o gesto de D. Clementina e na segunda, o beijo da Moreninha.
Nesse ponto, vale destacar alguns elementos que integram o “fazer” dos quadrinhos
e que são explorados na obra para garantir mais fluência à narrativa, acrescentando à HQ,
por meio de sua estética própria, recursos compositivos que não fazem parte da obra
literária. Um deles diz respeito aos planos de focalização. As figuras e cenários, apesar de
geralmente serem apresentados em ângulo normal, como um olhar de frente, na horizontal,
com as personagens quase sempre num plano médio, até a cintura, ou de corpo inteiro,
como a visão de um observador onisciente, também são desenhadas, em determinados
momentos, com alguns enfoques diferenciados, permitindo maior agilidade na narração. É
o que ocorre na figura abaixo, em que temos a panorâmica de um determinado cenário.
(Fig. 27). Na obra literária, nos é dada a informação de que as moças conversam em
determinado recinto, mas o local não é descrito da maneira como vemos no quadrinho:
numa tomada aérea, que se distancia como no movimento de uma câmera (travelling).
82
Fig. 27 - Na ilustração, podemos ver a figura de uma casa em panorâmica, numa visão de cima para baixo. Lá
é o lugar onde se encontram as moças conversando. O uso dos balões se revela essencial para a estrutura
narrativa, pois permite a realização do diálogo sem que precisemos das personagens em cena (voz off).
Outro recurso que contribui para a composição narrativa na adaptação de A
Moreninha, e que também é amplamente utilizado nos quadrinhos para revelar o tempo da
narração, são as formas de contorno das vinhetas. Quando Augusto conta em flashback seu
primeiro encontro com Carolina, os quadros surgem com uma moldura ondulada, no
momento em que revela de forma humorística suas peripécias amorosas, também ocorridas
no passado, os fatos vêm apresentados numa espécie de quadro-balão com contorno
enegrecido, e ao revelar os fatos do presente, surge o quadro contornado por uma linha reta
(Fig.28a, b, c).
83
a) b)
c)
Fig. 28 – A forma de apresentação da fala da personagem que narra os fatos também ajuda a situar o tempo da
narração: no primeiro quadro, numa legenda (como em uma voz over), no segundo, pelo uso do quadro-balão
com a presença da personagem narradora (Augusto), no tempo presente, também em cena, juntamente com
seu duplo, retratado no passado, e no terceiro, veiculada pelo uso dos balões de fala.
Em determinado momento quando D. Ana conta a Augusto a lenda da “História das
lágrimas de amor”, os quadros praticamente perdem seu contorno e as figuras surgem quase
que apagadas, em linhas tracejadas. Novamente é a linguagem verbal que esclarece e torna
compreensível o trecho narrado (Fig. 29).
84
Fig. 29 – As ilustrações tracejadas ajudam a caracterizar outro tempo narrativo (o tempo mítico, da estória
narrada por D. Ana), diferenciando dos já utilizados anteriormente.
O uso de recursos próprios das HQs também auxilia na construção narrativa em
outros momentos, como quando se faz referência a uma música. Na ilustração, nos
deparamos com a figura de Augusto (quem conta o episódio) juntamente com alguns versos
acompanhados de desenhos de notas musicais, recurso que facilita o reconhecimento do
leitor de que se trata de uma música cantada (Fig. 30). Nesse ponto, vale destacar um outro
exemplo de notação musical nas HQs, que mostra como os recursos e linguagens podem se
alterar de acordo com a época e/ou contexto. Na obra de Junko Mizuno, diferente do que
ocorre na quadrinização de A Moreninha, a música é apresentada de maneira mais visual.
85
Fig. 30 - A legenda que acompanha o quadro nos dá a informação de que a música foi cantada e o desenho
das notas musicais reforçam tal informação.
Junko, em Cinderalla, um mangá japonês publicado em 2000 que adapta de forma
nada convencional a estória de Cinderela, traz uma representação musical através do uso de
um recurso extremamente atual: o videoclipe, no qual uma das personagens “canta”
enquanto imagens rápidas surgem acompanhando os versos. Na obra de Junko, a
personagem célebre dos contos de fada é agora um zumbi, bem como o seu príncipe
encantado que, além disso, é um cantor famoso. Ao final da estória, ele apresenta seu hit de
sucesso: “Eu sei muito bem”. A leitura, seguindo a estruturação dos mangás, ou seja, da
direita para à esquerda, é auxiliada pela numeração dos quadros do videoclipe. O tema é a
própria morte do príncipe, agora um zumbi, fato ocorrido devido a uma doença incurável, e
aos versos tragicômicos são intercalados momentos instrumentais, identificados pela
linguagem verbal. A relação entre as linguagens se dá, em grande parte, de forma
complementar, já que cada uma contribui para construir a narrativa musical (fig. 31).
86
Fig. 31 – Os desenhos corridos ajudam na significação do enredo musical, cujo tema é a doença do príncipe
(que o leva à morte) e o comportamento das pessoas diante de tal fato (elas riem, apesar do drama vivido por
ele).
Mesmo neste formato, adaptação pastiche, em que se procura reproduzir de maneira
fiel o enredo e a maneira de se contar a estória, na obra em quadrinhos o texto-base sofre
determinada interferência. Um exemplo é a materialização das personagens e cenários que
apesar de descritos abundantemente no texto de Macedo, são apresentados a partir do ponto
de vista de um determinado “olhar”. Também há a inserção da presença da “câmera”
trazendo uma perspectiva de visão, em determinados momentos, não elencados no romance
de Macedo. Tais elementos apontam para o fato de que não há transposição sem
interferência, mesmo que mínima, uma vez que cada meio traz em si recursos estéticos
próprios, oferecendo novas formas de construir a narrativa.
87
De uma maneira geral, o que se depreende da quadrinização de A Moreninha é que
temos uma adaptação em HQ tão “clássica” quanto a obra original. Há pouca inserção do
aspecto lúdico e ao mesmo tempo de elementos que possibilitem o uso amplo da
imaginação. O seu caráter pedagógico é representado por meio do didatismo da
configuração narrativa e corresponde a uma determinada forma de compreender a maneira
como o didático deve ser estruturado. Estamos diante de uma obra realizada em 1953,
época em que a ideologia em torno da educação favorecia tal forma de pensamento. Mas
será que hoje, a maneira de se encarar os recursos pedagógicos se alteraram? Vejamos
como outra adaptação, realizada em 2006 trabalha com o aspecto didatizante do diálogo
entre obras, com os elementos oriundos da tradição e com os recursos estéticos dos
quadrinhos.
b) Gaetaninho – crônica em quadrinhos
A escolha do conto Gaetaninho, de Antonio de Alcântara Machado, adaptado por Jo
Fevereiro em 2006 para a coleção Literatura Brasileira em Quadrinhos das edições Escala
Educacional, faz parte da renovada e atual tendência para a redescoberta dos autores do
passado. Nessa quadrinização, podemos verificar algumas características elencadas
anteriormente e que aproximam a composição em quadrinhos da obra original literária.
Aqui também está evidente o caráter pedagógico da adaptação, aliás, os próprios editores
advertem para o fato de que “essa linguagem não substitui a forma original da obra, cuja
leitura permanece essencial à boa formação do leitor” (MACHADO, 2006, p.2).
88
Sobre os contos modernistas de Alcântara Machado, que figuram no livro Brás,
Bexiga e Barra Funda (1927), do qual o conto Gaetaninho faz parte, é importante destacar
seu alto teor jornalístico e intenção crítica, aspectos reforçados pelo próprio autor que inicia
o livro com a seguinte advertência: “Este livro não nasceu livro: nasceu jornal. Estes contos
não nasceram contos: nasceram notícias. E este prefácio, portanto também não nasceu
prefácio: nasceu artigo de fundo” (MACHADO, 1927, p.15). Dentre as principais
características dos contos da coletânea, segundo Ataíde (1972), podemos destacar: leveza
narrativa, humor, preocupação mais sócio-humana do que psicológica, estórias singelas e
humanas, lirismo, presença de personagens sofridas e que fazem parte do cotidiano, uso de
frases curtas, palavra veloz, certa oralidade narrativa.
A problemática central dos contos é a presença do emigrante italiano, na vida
urbana paulista dos anos 1920. A narração se dá por meio da observação de um narrador
onisciente e a forma de tratamento da matéria literária é a de um documentário: “[...]
documentário urbano social, com preocupações realistas de reprodução fidedigna, ou pelo
menos verossímil da realidade, de maneira a emprestar às narrativas indiscutível caráter de
autenticidade” (MACHADO, 1970, p.63).
No conto Gaetaninho, a trama se desenvolve em torno de um garoto italiano e
pobre, com seu grande desejo de andar de carro, numa São Paulo do início do século XX,
quando a presença de um automóvel em meio aos bondes e carroças era um acontecimento
notável. O desejo da personagem título de andar de carro serve de mote para o autor traçar
89
um painel da vida urbana em São Paulo nos anos 20. O sonho de Gaetaninho é ingênuo,
mas, mais do que o ato em si, representa o espírito empreendedor do imigrante italiano e
seus sonhos de sucesso social, de status. Gaetaninho só consegue realizar sua vontade
quando morre e, enfim, é carregado num carro durante o enterro.
A partir do texto de Machado, os elementos utilizados no quadrinho para
corporificar a narrativa procuram acentuar a característica visual e ágil do conto, com
recortes e sobreposições de quadros e figuras. Aqui também estamos diante de uma
adaptação pastiche, na medida em que além de haver uma tentativa por manter a obra com
poucas interferências também se busca transportar para os quadrinhos o estilo narrativo
com caráter jornalístico-documental do conto de Machado.
Já na primeira página podemos ver a busca por uma montagem visual mais ágil,
quando as vinhetas quadriculam a figura, separando-a em partes apesar de se tratar de um
único cenário em um mesmo momento (Fig. 32). A divisão, ao invés de dividir as imagens
numa seqüência de tempo, serve para separar as informações fornecidas pela linguagem
verbal que vem nas legendas e nos balões, acentuando a impressão de simultaneidade,
vários episódios/falas acontecendo ao mesmo tempo: enquanto o carro passa, Gaetaninho
caminha pelo meio da rua, as pessoas o observam da calçada e o carroceiro anda ao seu
lado.
Apesar do elaborado recurso visual, a relação entre as linguagens verbal e não-
verbal é de redundância, na medida em que o texto apresentado nas legendas é reproduzido
90
pelas ilustrações que o acompanham. Na quadrinização de Gaetaninho, aliás, a redundância
entre as linguagens é mais preponderante do que no quadrinho de A Moreninha,
principalmente pelo fato de haver poucos diálogos, daí o escasso uso dos balões,
predominando assim as legendas com a voz do narrador onisciente, da mesma forma que no
conto de Machado, contando os episódios que envolvem Gaetaninho (episódios que são
ratificados pela linguagem não-verbal, em consonância com o texto verbal). A
dinamicidade da obra é representada não por meio dos balões, elemento que costuma
desempenhar esse papel, mas sim pela exploração das vinhetas, talvez numa referência ao
caráter documental do conto, já que o documentário traz o “olhar” do outro sobre
determinada situação, aspecto que é destacado pela forma como a obra é conduzida.
91
Fig. 32 – A linguagem não-verbal apesar de atuar em grande parte da cena de forma redundante à linguagem
verbal, acrescenta elementos não mencionados pelo texto, como a senhora caminhando, o cachorro, etc., mas
se tratam, sobretudo, de recursos cênicos, que enriquecem o cenário, acrescentando pouco à narrativa em si. O
balão, por sua vez, apesar de só aparecer em três momentos na ilustração, acrescenta mais significação à
ilustração e confere um maior dinamismo entre as personagens.
92
Um outro exemplo da diagramação quadriculada usada no início da obra também
pode ser vista no momento em que Gaetaninho ouve a mãe o chamando (Fig. 33). A
vinheta é utilizada de maneira hábil, fracionando o desenho numa focalização em pedaços
da cena.
Fig. 33 – As ilustrações revelam os elementos na ordem em que são vistos pelo menino: primeiro a mãe e
depois o chinelo. Em cada quadro, as linguagens ressoam uma a outra (o que é visto pela ilustração também é
descrito na legenda).
Tais elementos, além da forma de representação visual das cenas, conferem maior
leveza e certo caráter lúdico à obra. Apesar de a adaptação apresentar uma construção
narrativa que acaba por enquadrar e direcionar a interpretação final, os traços, que pendem
para o caricatural ajudam a acrescentar certo humor nas seqüências, humor irônico que,
93
aliás, está presente no texto de Machado. As cores em tom pastel e a configuração do
cenário, ricamente detalhado, remetem para uma época antiga, talvez a São Paulo dos anos
20. Essa forma de apresentar a ilustração na obra revela uma maior exploração de aspectos
plásticos da linguagem não-verbal presente nos quadrinhos, ampliando o caráter imagético
da mesma e tornando sua “leitura visual” mais acessível.
A apresentação de diferentes planos e pontos de vista dão maior força expressiva as
seqüências. Temos a visão do alto, como se estivéssemos de cima observando os fatos, o
close up, mostrando detalhes da cena, e outros. É o que ocorre quando Gaetaninho se
imagina na boléia de um carro acompanhando um enterro (Fig. 34). A visão de baixo para
cima o engrandece, reforçando a sensação que ele tem ao se imaginar daquela forma. Em
outra cena, quando os meninos jogam bola, vemos a imagem de cima para baixo (Fig. 35),
dando a sensação de que a “câmera” que os focaliza se encontra no alto, até a presença de
um pássaro na beirada do telhado reforça tal sensação.
94
Fig. 34 – Gaetaninho sonha com uma viagem de carro, imaginando detalhes da roupa e dos acessórios que usa
naquele momento. Sua figura imponente (reforçado pelo ângulo de visão da “câmera”) e o olhar sonhador
refletem como ele se sente: importante.
95
Fig. 35– A forma como as figuras dos meninos são desenhadas (esmagadas contra o chão), ampliam a
sensação de altura.
A seqüencialidade das ilustrações, bem como a escolha dos momentos a serem
quadrinizados ajudam a relatar episódios importantes da narrativa, dando-lhes mais
dramaticidade, como quando Gaetaninho morre (Fig. 36). O uso da linha branca em volta
dos pés de Gaetaninho bem como o quadro com fundo preto (remetendo ao luto) são
recursos que ampliam o aspecto trágico do momento. Esse é outro exemplo da exploração
eficiente dos recursos dos quadrinhos para compor a obra.
Fig. 36 - A linguagem verbal assume a função explicativa no contexto.
96
A quadrinização de Gaetaninho traz em si elementos que remetem a forma
didatizante encontrada em A Moreninha, em que o quadrinho é apresentado como uma obra
auxiliar à original, facilitando sua leitura. Porém a forma de realização desse intento difere
um pouco da vista anteriormente. Aqui também temos uma tentativa de reprodução “fiel”
do texto-base e de alguns de seus recursos estilísticos: o caráter documental, a agilidade
jornalística, etc., com uma adaptação que acaba por direcionar a interpretação final.
Contudo há uma diferenciação inserida pela construção da identidade visual da obra. É por
esta via que o humor se insere, bem como o lúdico e a leveza narrativa. De certo que tais
aspectos também estão presentes no texto de Machado, só que representados pela
linguagem verbal. Na HQ, apesar do uso constante de legendas e da relação redundante
entre as linguagens, é pelo visual que tais elementos se materializam.
3.2.2 Inserção de novas dimensões narrativas
Como já destacado ao longo desse trabalho, as formas de adaptação/diálogo entre
obras e suportes são variadas. Tudo depende do objetivo e da maneira como os recursos
estéticos são utilizados. Além do pastiche, visto no item anterior, outras formas de
adaptação podem ser realizadas, como no caso de obras que procuram inserir outras
dimensões narrativas, seja pela contribuição da linguagem não-verbal, contando a estória de
diferentes maneiras, não mencionadas pela linguagem verbal, seja pela utilização de novos
argumentos acrescentados por essa, que ampliam e/ou modificam o texto-base, sem que,
contudo, percamos a intriga do enredo original. Não se trata de um distanciamento total da
97
obra-base, criando a partir dela diferentes obras, mas a introdução de elementos que
permitam novas construções narrativas dentro do enredo original, para modificar
determinados aspectos do texto original ou para ajudar a contar de outra maneira a mesma
obra. Estaríamos, portanto, diante de uma adaptação criativa, em que há a integração de
novos recursos para acrescentar outras possibilidades narrativas à obra-base. A obra
original produzida na literatura ainda é o principal recurso da narração, mas outros
elementos começam a interferir, a “contaminar” o texto-base.
Assim como ocorre em diferentes formas de interação entre obras, aqui também
teremos uma gradação, em que algumas obras se colocam mais próximas do texto-fonte
enquanto outras procuram se distanciar mais. A seguir, temos dois exemplos diferentes que
trazem possibilidades variadas de interferência na obra-base: no primeiro, há a inserção,
principalmente por meio da linguagem não-verbal, de uma nova dimensão narrativa; já no
segundo caso, a linguagem não-verbal assume a narração dos fatos.
a) Os Lusíadas: uma aventura intergaláctica
Na releitura que Lailson de Carvalho faz da obra Os Lusíadas de Luís Vaz de
Camões, realizada em 2006 para a Companhia Editora temos outra dimensão visual unida
ao poema do célebre poeta. Em Lusíadas 2500, os versos da obra original, mantidos sem
alteração, e sem redução/edição, daí a obra ser publicada em três volumes, são
acompanhados por uma nova dimensão narrativa inserida pela linguagem não-verbal, que
98
situa as aventuras narradas no poema numa época futurista, o ano 2500 do título, revelando
um salto temporal e espacial. No novo contexto, as caravelas de Camões não navegam mais
em mares bravios, mas no espaço sideral. As ilhas desconhecidas flutuam no universo,
junto a planetas e asteróides misteriosos. O autor, apesar de desenhar um novo cenário para
os eventos narrados nos Lusíadas, procura ajustá-los aos versos de Camões. Assim, quando
se faz uma referência às ilhas desconhecidas no texto, temos em contrapartida o desenho de
uma ilha, só que flutuando nos céus.
Na verdade, a adaptação do poema épico de Camões para uma época futurista e
intergaláctica, não muda apenas o cenário das ações, altera também o gênero da obra, que,
com tal ambientação, se torna uma ficção científica. Outro elemento, além dos
cenográficos, que reforça tal mudança é a inserção de diálogos (outra inovação da obra em
quadrinhos) entre Vasco da Gama e um robô, o registrador KMOS1572, numa referência ao
próprio Camões e à data de criação dos Lusíadas, que traz o DNA do poeta e é o
responsável por registrar e contar para o rei os feitos de Vasco e sua tripulação. Nesses
momentos temos uma configuração própria de quadrinhos, com balões, vinhetas, etc., ao
passo que ao longo da obra, quando temos os versos de Camões, os desenhos acompanham
o texto verbal de uma forma ilustrativa. Os trechos de diálogo, que revelam o discurso
direto inserido no poema épico português, servem como elemento de ligação entre os
episódios narrados em Os Lusíadas, além de ajudar a explicar o que neles vêm narrado e
ampliar a nova dimensão narrativa inserida: a futurista. São nesses trechos que vemos o
robô interagindo, numa linguagem moderna e espacial, com Vasco e outras personagens.
99
A presença dos diálogos juntamente com os versos de Camões aponta para dois
aspectos distintos: um em que temos o quadrinho propriamente dito, com os elementos que
o identificam como tal, vinhetas, balões, etc., e outro com a obra ilustrada, com legendas
trazendo o texto de Camões acompanhado de ilustrações referenciais ao que está sendo
dito, sem uma integração entre as linguagens verbal e não-verbal como ocorre nos
quadrinhos. Na verdade, tal configuração aponta para a existência de uma obra, a dos
quadrinhos, dentro de outra, a narrativa de Camões. É importante destacar que, o pouco uso
dos recursos próprios das HQs reforçam a sensação de uma menor interação entre as
linguagens verbal e não-verbal no decorrer da obra.
A ambientação futurista e espacial está presente tanto na linguagem não-verbal, pelo
desenho de elementos que remetem à ficção científica como barcas flutuando no espaço,
planetas, etc., quanto na verbal, no momento em que o diálogo é inserido na narrativa (fig.
37).
100
Fig. 37 – As ilustrações fazem uso de ângulos variados (normal, plongeé, etc.) para demonstrar o movimento
das naves pelo espaço.
No 1
o
volume de Lusíadas 2500, constam os quatro primeiros cantos do poema
épico de Camões, narrando desde a proposição, a viagem propriamente dita, o concílio dos
deuses para deliberar sobre a sorte dos portugueses, a chegada a Moçambique, o ataque dos
mouros e a recepção em Melinde, quando então, Vasco rememora a história de Portugal.
Sobre o tema da narrativa de Camões, vale destacar o que diz Luis Piva (1980, p.20):
Em Os Lusíadas, a espinha dorsal em torno da qual gravitam acontecimentos
passados, presentes e futuros é a navegação de Vasco da Gama. Na viagem de
Gama à Índia se inserem os feitos de reis e príncipes portugueses da Idade Média
e várias ações de diferentes varões levadas a efeito através dos tempos.
101
Nos quadrinhos também temos a mesma temática de Camões, só que agora unida ao
subtexto futurista. Na introdução somos informados de que é o registrador KMOS1572
quem tem a missão de contar a estória que se inicia no ano I da Era das Navegações
Galácticas. Segundo ele, o registro das aventuras é feito “Para que o futuro não desconheça
o passado e para que os nomes destes heróis fiquem inscritos para sempre nos mais
profundos mares e nas mais distantes estrelas, deixei registradas nestas páginas suas
histórias, seus combates e suas vitórias” (p.I).
Já nas primeiras páginas da HQ, ficamos sabendo que os tripulantes se encontram
numa nave de onde enviam para o rei, com o auxilio do robô registrador, mensagens sobre
as suas aventuras pelos mares espaciais. As mensagens são, no caso, os próprios versos de
Camões, proferidos pelo robô narrador. A referência a humanóides habitando as ilhas, bem
como o desenho de seres interplanetários reforçam o contexto de ficção científica (Fig. 38).
102
Fig 38 O habitante identifica-se para Vasco da Gama e descreve sua ilha. Na legenda temos os versos de
Camões, que dão voz ao estranho ser. Na verdade, o poeta se refere aos habitantes de Moçambique.
Apesar do contexto futurista, vale destacar a co-existência de dois momentos na
HQ: o passado e o futuro, numa dupla ambientação que permeará toda a obra, misturando
elementos como caravelas, naves, castelos antigos, roupas de época, efeitos de luz e
tecnologia, etc. (Fig. 39). Assim, ao mesmo tempo em que temos um cenário espacial,
também vemos objetos que fazem parte do antigo, como a caravela, ao invés de um
moderno foguete.
103
Fig 39 - Enquanto em terra vemos os habitantes de Melinde numa referência à época dos descobrimentos, nos
céus, o desenho de caravelas flutuando criam um efeito diferente à narrativa (futurista).
Assim como em A Moreninha, temos o uso de elementos gráficos para dividir o
tempo (passado, presente), auxiliando na composição narrativa em determinados trechos,
como quando Vasco da Gama conta para o rei de Melinde os fatos passados da história de
Portugal. O trecho de diálogo que antecede a narrativa de Vasco da Gama explica como o
rei de Melinde poderá ver os acontecimentos históricos narrados em tempo real (fig. 40).
104
Fig. 40 - A linguagem, como em outros momentos de discurso direto, é cheia de referências tecnológicas e
futuristas.
Quando se inicia a narrativa do passado, as ilustrações tornam-se então, mais
escuras e o fundo borrado, numa composição cenográfica que lembra imagens distorcidas
(Fig. 41).
105
Fig. 41 – As figuras em primeiro plano são representadas de forma nítida, enquanto o cenário se apresenta
borrado.
A identidade visual de Lusíadas 2500 remete para o caráter clássico da obra de
Camões, ressoando nos traços bem cuidados, a grandiosidade dos cenários e
acontecimentos descritos. Não se trata apenas do espaço sideral, mas de um espaço
exuberante e misterioso, assim como os mares navegados pelas naus portuguesas na obra
original. A introdução de novos elementos na narrativa, como o subtexto futurista e os
106
diálogos, provoca uma maior mudança no texto-base que, apesar de ser mantido no
original, demonstra inserir-se em um novo contexto.
A pouca exploração dos recursos dos quadrinhos, da interação entre as linguagens,
contudo, cria uma obra que aponta mais para um livro ilustrado do que uma história em
quadrinhos. Mesmo assim, Lusíadas 2500 traz inovações que permitem uma maior
aproximação do leitor moderno, acostumado com a visualidade, a ficção científica, e assim
por diante. Outro aspecto importante a ser observado é que, por meio da mudança de
gênero, dos cenários exuberantes, do diálogo inserido na épica Camoniana, temos uma
maior inserção do aspecto lúdico e do espaço para a interação com a obra original, na
medida em que, para a compreensão da obra no novo contexto proposto, precisamos fazer a
ponte entre os versos de Camões e o espaço futurista.
b) Branca de Neve num jogo de montar
Na recente adaptação (2007) do clássico dos irmãos Grimm, Branca de Neve, feita
por Rafael Coutinho para o álbum Irmãos Grimm em Quadrinhos, temos um bom exemplo
de como a linguagem não-verbal e os recursos dos quadrinhos podem ajudar a contar a
estória, trazendo novos elementos à mesma. Não se trata aqui de inserir uma dimensão
narrativa diferente, como em Lusíadas 2500, com seus cenários futuristas e personagens
interplanetários, mas sim de dirigir um novo olhar à obra original, recontando-a de forma
107
própria, tirando mais proveito da linguagem não-verbal e da visualidade inerente aos
quadrinhos.
A adaptação de Coutinho é feita basicamente por meio da linguagem não-verbal,
que reinterpreta e simplifica a obra original de Grimm. Temos todos os elementos da obra
base: Branca de Neve, os anões, as tentativas frustradas da madrasta malvada, o final feliz,
só que apresentados de forma própria, como numa montagem de figuras. A HQ, que é feita
em preto e branco (assim como todo o álbum), traz desenhos num traço caricatural e
simplificado. As vinhetas se espalham na página de maneira uniforme, em doze quadros de
igual tamanho.
O tipo de escolha das cenas desenhadas assemelha-se a uma forma de quebra-
cabeça, em que precisamos unir os elementos por meio de nexos próprios até obtermos uma
compreensão total do enredo que, por sua vez, remete ao texto-base. Daí ser uma tarefa
menos difícil, já que são apresentados aspectos diretamente ligados à obra original e que
são amplamente conhecidos: espelho mágico, madrasta malvada, coração, anões, etc. A
constante divulgação e atualização de narrativas como a de Branca de Neve, Chapeuzinho
Vermelho e outras, aliás, deve-se ao fato de que, como afirma Coelho (1987, p.9), o
maravilhoso, o imaginário e o fantástico não são mais vistos apenas como pura fantasia,
mas sim como”portas que se abrem para determinadas verdades humanas [...] O que nelas
parece apenas ‘infantil’, divertido ou absurdo, na verdade carrega uma significativa herança
de sentidos ocultos e essenciais para a nossa vida”.
108
No quadrinho de Coutinho, a linguagem verbal surge de forma
complementar/explicativa à linguagem não verbal, o que pode ser percebido pela
preponderância da linguagem não-verbal. Assim, as legendas e os balões são usados apenas
em momentos pontuais e de uma forma bastante econômica. O conto de Grimm é narrado
na HQ como um mosaico de ilustrações, num exercício de recortes e colagens, que remete
mais a um álbum de figurinhas do que propriamente aos quadrinhos. O pouco uso de
recursos como balões, legendas, exploração das vinhetas, etc., dá a sensação de uma obra
mais estática do que dinâmica.
Na 1ª página temos o nascimento de Branca de Neve. Os desenhos que compõem o
quadro trazem elementos reconhecíveis por quem já teve contato com o texto-base: um
castelo, uma mulher costurando, um dedo furado, uma gota de sangue, um bebê, que após
esse trajeto imagético, deduzimos ser Branca de Neve. A linguagem verbal, como em toda
a obra, é mínima (Fig 42).
Fig. 42 Na última seqüência da página, as ilustrações resumem o nascimento de Branca de Neve: o sangue
que cai na neve (sonorizado pela onomatopéia “blup”), a mulher com a mão na barriga e o bebê. O
cumprimento do bebê introduz um elemento de estranhamento (de insólito), por vir expresso de uma maneira
direta demais para o contexto e por estar direcionado ao leitor.
109
A estória se desenrola com economia de linguagens (verbal e não-verbal), e se
apresenta na forma de um esquema. É dessa forma que é mostrada a morte da mãe de
Branca e a coroação da madrasta como a nova rainha. (Fig. 43). O diálogo entre a madrasta
e o espelho é outro exemplo da economia de linguagens: a madrasta pergunta apenas
“quem?” e o espelho responde “tu”, ilustrando de forma sucinta o célebre diálogo:
“Espelho, espelho meu...”.
Nesse trecho, há o uso de um recurso que reforça o caráter esquemático e
simplificado da narrativa: a repetição de figuras. O rosto da madrasta surge em dois
momentos de maneira praticamente igual. É apenas a alteração de pequenos detalhes na
segunda imagem, como a coroa na cabeça, os cabelos alinhados e a gola da roupa, que
revelam a mudança temporal, o que vem expresso de maneira irônica pela linguagem
verbal: antes ela era ninguém, mas depois da morte da mãe de Branca ela assume o status
de Madrasta-rainha. Tal forma de composição permite acompanhar o que muda e o que
permanece em cada cena representada, criando assim a seqüencialidade dos quadrinhos.
Contudo, a seqüencialidade, apesar de presente na obra, é quase que totalmente diluída pela
simplificação dos traços e da configuração visual, surgindo apenas em pequenos detalhes.
Daí a impressão de estarmos diante de uma obra mais estática do que dinâmica, não
revelando agilidade ou movimento na maioria das vezes. É como se a câmera focalizasse
aspectos e detalhes de uma mesma cena, com pouca enfatização para os saltos temporais.
110
Fig. 43 – Pela disposição das figuras, parecemos estar, em determinados trechos, diante de um jogo de
encaixe, em que cada peça ocupa um lugar-chave para a compreensão da obra.
O crescimento de Branca até se tornar uma moça que rivalizava em beleza com a
madrasta é contado com um rápido jogo de ilustrações (Fig. 44). A figura de um
cachorrinho poodle no meio da seqüência é um elemento novo acrescentado à estória e
ajuda a reforçar, no contexto, a hostilidade da Madrasta, a dona do cachorro, em relação à
Branca de Neve.
111
Fig. 44 - A linguagem não-verbal, assim como a verbal, é utilizada de forma econômica, mostrando apenas o
que é necessário para que compreendamos a estória.
O diagrama é utilizado para representar determinados elementos, dar um caráter
mais explicativo e até mesmo cômico (Fig. 45). Assim, temos desde um mapa mostrando
onde fica o quarto da princesa, até as formas de atuação dos objetos maléficos usados pela
rainha para matar Branca: o “corpete do mal” e o “pente envenenado”.
112
Fig. 45 - O diagrama, além do caráter explicativo, tem um efeito humorístico na narrativa, o que é ampliado
pelas informações verbais contidas nele.
Outro elemento que ajuda a dar a idéia de uma obra estática, com pouco
movimento, é a forma de focalização das imagens: há um predomínio de close up,
mostrando rostos e detalhes das figuras. É como se estivéssemos diante de um mural
fotográfico, em que partes das cenas são mostradas, uma após a outra, construindo um todo
coerente e coeso. No exemplo a seguir, temos a seqüência de quadros que nos mostra a
ordem da madrasta para o caçador: matar Branca e trazer seu coração e seus pulmões. Mais
uma vez temos o recurso do uso repetido de figuras com pequenas mudanças nas cenas: o
rosto do caçador, mostrado em close em dois momentos da seqüência, não se altera,
havendo uma repetição da mesma figura. Na verdade, o que importa é a colagem,
construindo nexos a partir da união dos desenhos (Fig. 46).
113
Fig. 46 – As figuras do pulmão e do coração ajudam a explicar o enredo, na medida em que fazem parte da
narrativa original.
Quando Branca se casa com o príncipe, também é uma seqüência simplificada de
desenhos que ilustra o fato esquematicamente (Fig. 47). Aqui não temos uma ênfase na
passagem do tempo, nem há uma referencia explicita de que se trata do casamento de
Branca. São os aspectos isolados da cena como os bonequinhos no bolo, os parabéns dos
animais, além do conhecimento que temos da obra-base, que nos auxilia a compreender a
cena. O caráter inusitado da cena fica por conta dos parabéns dados pelos animais e por um
coração, o que pode ter várias interpretações: coração enquanto órgão, do porco ou da
própria Branca, numa expressão humorística, ou enquanto manifestação da paixão entre ela
114
e o príncipe. A figura do cachorro comendo a maçã envenenada, no meio da seqüência,
funciona como um corte na cena, um desvio da “câmera”, e mostra que o animal de
estimação da madrasta também foi castigado.
Fig. 47 - Os animais falantes funcionam como uma refencia, um diálogo, com outras versões do conto de
Grimm, sobretudo as feitas pela Disney, em que Branca compactua e é ajudada pelos animais da floresta. Na
adaptação de Coutinho, a fala dos bichos parece acentuar o efeito esquemático e inusitado, em que todos os
elementos integrantes da estória têm sua participação no grande final.
A Madrasta também é castigada com os “sapatos de chumbo incandescente”. A
expressão satírica remete ao próprio conto dos Grimm, em que os sapatos são esquentados
no fogo e a madrasta é obrigada a calçá-los. O diálogo final entre Branca de Neve e a
115
Madrasta é apresentado de forma reduzida (Fig. 48). Apesar de ser um momento trágico
para a rainha, quando ela é obrigada a calçar os sapatos queimando, a forma simplificada
como a seqüência é representada esvazia o episódio de sua dramaticidade. O fim da estória
é representado de maneira bem simples, em consonância com o ritmo de toda a obra.
Fig. 48 – O quadrinho, feito todo em preto e branco, praticamente não explora elementos de composição
como as sombras e contraste entre claro-escuro, recursos que costumam ser usados para dar idéia de volume,
movimento e até mesmo dramaticidade, elementos esses que, de uma forma geral, não estão presentes na
obra.
O esquema é a principal ferramenta de composição da obra, cuja ordem e maneira
como as ilustrações são reveladas permitem a compreensão do enredo que, por sua vez,
remete ao texto original dos Grimm. A forma de representação, como num álbum de
figuras, um mural de colagens favorece o aspecto lúdico. Na HQ vemos um esvaziamento
da dramaticidade da obra original e o que se propõem é um jogo de montar, um quebra-
cabeças, uma “adivinha”, apesar de se relacionar com informações conhecidas.
116
3.2.3 Diálogo para novas obras
Determinadas obras desenvolvidas nos quadrinhos procuram estabelecer uma outra
forma de interação com a literatura, aproveitando o material produzido nela para criar
novas elaborações narrativas. Não se trata, portanto, de adaptações, mas sim da utilização
do material literário para criar diferentes narrativas. Essa forma de inter-relacionamento é
uma das características mais presentes na produção artística do nosso tempo.
Se atentarmos para outros suportes como o cinema, encontramos diversos exemplos
de obras que realizam um diálogo entre si. Animações como Sherek, em que o famoso ogro
atua com personagens de fábulas e contos de fada, como os três porquinhos, Pinóquio,
Branca de Neve, etc., ou Deu a louca na Chapeuzinho, com uma nova proposta para o
enredo do célebre conto de Grimm, demonstram as várias possibilidades de interação entre
obras e meios de comunicação.
O que ocorre com o texto-base é que, diferente dos casos anteriores, não se
apresenta mais na sua forma original; o que temos são diferentes construções narrativas, em
que determinados elementos da obra original ainda podem ser identificados (personagens,
cenários, etc.), mas surgem agora em uma nova chave, com diferentes desenvolvimentos e
desfechos.
Podemos encontrar desde obras que parodiam as originais, até aquelas que citam,
direta ou indiretamente, fazem alusão ou interagem de outras maneiras com elementos do
117
texto literário. Em Língua Portuguesa, muitas obras produzidas por meio do diálogo com a
literatura se revelam como parodizações, reforçando, portanto, o humor na forma de
organização e apresentação de seus elementos. É o que ocorre nos primeiros exemplos
destacados a seguir, em que os autores dialogam com grandes clássicos da literatura, como
Patinho Feio, Branca de Neve e outros.
a) Fábulas e fadas na mira do humor
O humor tem sido uma importante ferramenta para o estabelecimento de diálogos
entre quadrinhos e literatura. Dentre as teorias tradicionais sobre o humor, podemos
destacar aquelas que dizem respeito à quebra de expectativas (incongruência), em que o
riso é desencadeado por algo inesperado, a ruptura de alguma norma ou preceito:
“[...] não é, simplesmente, a presença de elementos incongruentes a causa do
efeito cômico, pois há uma coerência interna na organização desses elementos.
[...] a graça surge quando elementos incongruentes presentes no texto opõem-se
aos modelos cognitivos interiorizados pelo ouvinte/leitor”. (SOUZA, 1997, p.7)
Vale destacar que, os modelos interiorizados pelos receptores fazem parte de um
acervo coletivo, e o cômico, por sua vez, também será resultado de um conhecimento
compartilhado pela sociedade (Bergson 1987 apud SOUZA, 1997)
1
.
A paródia, por seu lado, uma das expressões do cômico e forma de diálogo entre os
textos que serão destacados a seguir, expressa-se por meio da desconstrução da obra
original, subvertendo-a em busca da diferença. Assim, a paródia, em sua relação com o
1
BERGSON, Henri. O Riso: Ensaio sobre a significação do cômico. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1987.
118
texto-base, “subverte seu enunciado e desqualifica sua enunciação, propondo uma outra
enunciação substituta, contrária, diferente. No entanto, essa diferença articula-se sobre uma
semelhança” (DISCINI, 2002, p.26).
Também é importante ressaltar que a paródia trabalha com o conhecimento prévio
do receptor da obra que está sendo parodiada. No caso específico desse estudo, destacamos
obras que remetem a fábulas e contos de fadas, textos, portanto, de conhecimento de grande
parte do público, e que continuam presentes no mundo atual, sendo re-escritas e re-
elaboradas de diferentes maneiras e em meios diversos.
A obra Patinho Feio de Spacca, realizada na década de 90 para a revista “Níquel
Náusea”, traz em si as marcas do humor, reveladas por seus traços caricaturais e pelo
enredo nada convencional, que se constrói por meio de parodização do texto original de
Christian Andersen. Já de início, vemos a figura do pato em close. Alguns elementos
acentuam o tom satírico da narrativa, como os enormes dentes do pato (fato inusitado) e as
onomatopéias da última vinheta, indiciando que o espelho se quebrou devido à feiúra do
pato (Fig. 49).
119
Fig. 49 – As onomatopéias do último quadro sonorizam a quebra do espelho. A onomatopéia é um recurso
bastante utilizado em representações gráficas. Geralmente as convencionalmente usadas nos quadrinhos
descendem de verbos da língua inglesa, como crack ou crac (do verbo to crash: quebrar, rachar), sniff (do
verbo to sniff: cheirar), split (do verbo to split: dividir ao meio), etc.
O uso da referência em latim Patus horribilis para designar o pato feio, juntamente
com o título da obra, amplia o efeito humorístico, pois remete às nomenclaturas exibidas
pela ciência, o que parece apontar para o fato de existir realmente tal categoria científica. A
estória mostra a vida do pato em meio aos outros patos retratados antropomorficamente.
Seus corpos são esbeltos e transitam em casais enquanto o pato feio circula só e é
constantemente satirizado pelos demais (Fig. 50).
120
Fig. 50 – A forma como o Patinho procura ignorar a chacota dos demais é bastante irônica: ele acredita ser
inveja dos seus traços marcantes, quando na verdade eles riem é da feiúra do pato mesmo.
Em determinado momento, o patinho feio estabelece um diálogo explícito com a
obra de Andersen quando, ao se referir ao fato de que ao crescer se tornará um belo cisne,
ressalta ter lido a fábula do autor. Tal informação é ironizada e contestada por outro pato,
que retruca dizendo: “pato é pato. Cisne é cisne!”. A própria estória, por sua vez, parece
confirmar a frase do pato quando, ao crescer o patinho feio, ao contrário do texto-base, se
torna um “patão feio”. A ilustração mostra o pato desengonçado e triste chorando devido à
sua feiúra. Ele, então, decide ir para o sul. Aqui temos uma referência ao pato não como o
da fábula, que se transforma em um belo cisne, mas como uma ave de verdade, que migra
para o sul (Fig. 51).
121
Fig 51 – A referencia irônica se dá quando vemos o pato consultando o que parece ser catálogos de viagem.
Apesar de sua atitude remeter ao comportamento das aves (que migram para o sul), sua ação (se informando
por meio de catálogos) e motivação (ir para o sul para esquecer a feiúra) são bem humanas.
Nos quadros seguintes é apresentado o destino final do patinho feio. Por meio de
uma narrativa expressa mais pela linguagem não-verbal do que pela verbal, observamos o
pato ser abatido por um caçador (Fig. 52). Os diferentes enquadramentos ajudam a dar mais
dinamismo e dramaticidade à seqüência: as tomadas de baixo para cima, o close no pato,
etc.
122
Fig. 52 – A expressão do caçador, com um sorriso de satisfação diante da caça abatida, na última vinheta,
antecipa o riso “guloso” daqueles que vêem no pato uma “linda” refeição.
No último quadro, temos o desfecho tragicômico: na legenda podemos ler as
palavras do narrador onisciente que pede para não lamentarmos a sorte do pato, pois
somente naquele momento foi admirado pelo mundo “por seus atributos físicos”; a
linguagem não-verbal complementa a mensagem com o desenho de um enorme pato assado
numa bandeja, sendo admirado pelas pessoas em cena, que se dirigem ao pato e à sua
cozinheira com vários elogios. Ao fundo do cenário, a imagem da carcaça da ave preparada
(cabeça, penas, etc.) e de uma faca reforçam o aspecto trágico e ao mesmo tempo irônico da
estória (fig. 53).
123
Fig. 53 – Em um só quadro são mostrados vários elementos que compõem o desfecho da narrativa: em
primeiro plano e com destaque, a figura da cozinheira e do pato assado; à esquerda, no meio de um cenário
acinzentado, o contorno de rostos que riem e admiram (gulosamente) o pato; à direita, num espaço iluminado
(para podermos ver bem os elementos ao fundo) vemos os restos mortais do pato.
Como explica Gregorin Filho (1995), na obra O patinho feio, de Andersen, temos
um confronto de valores e de transformações, em que a rejeição pelo grupo se dá pelo fato
do pato “parecer” feio, o que causa sua conseqüente exclusão. Ele muda de lugar, mas
ainda assim continua a ser rejeitado: “Esse deslocamento não causa grandes alterações na
situação do sujeito, pois, tomando contato com novos e diferentes grupos, o seu ‘parecer’
faz com que o seu ‘ser’ não seja aceito” (idem, ibidem, p.30). Na versão de Spacca, o
patinho também não é aceito por sua aparência, mas diferente do original, sua ida para
outro local causa de fato uma grande alteração, na medida em que o pato é morto e, só
124
assim, aceito e reconhecido como belo, porém em outra condição, não mais como ser
integrante de um grupo, mas como alimento, pronto para ser devorado.
Estabelecendo um diálogo com a fábula de Andersen, Spacca cria outra narrativa,
que questiona e inova a anterior. Seu humor, revelado pelo traço e pelo enredo, perpassa
toda a obra. O lúdico também integra a composição da estória e permite a criação de nexos
diferentes e inusitados entre o quadrinho e a obra-base.
Nas tiras de Gonsales, o humor também dá a tônica para o diálogo que ao autor
estabelece com diversas obras clássicas. As personagens que transitam pelo universo da
famosa personagem Níquel Náusea se relacionam com outras oriundas de estórias como
Branca de Neve, Cinderela, etc. As tiras, formato utilizado por Gonsales para elaborar as
estórias de Níquel Náusea e sua turma, possuem um espaço reduzido para mostrar a ação e
seu desfecho. Elas “[...] apresentam o desenvolvimento de uma ação por meio de alguns
momentos mais expressivos fixados em diversos quadrinhos. [...] O elemento de desvio do
signo é, geralmente, um quadrinho. O desenlace ou disjunção se dá no último” (CAGNIN,
1975, p.193).
Observando-se a estrutura narrativa das tiras, podemos destacar alguns exemplos
retirados da obra Gonsales que nos mostra o diálogo estabelecido pelo autor com textos
clássicos da literatura. Numa de suas tiras, vemos uma referencia também à obra Patinho
Feio de Andersen (Fig. 54). Dessa vez, o patinho é rejeitado quando pequeno, mas ao se
tornar um cisne, usa seu enorme pescoço para espionar as conversas dos patinhos, que antes
125
o deixavam de fora. O foco não é tanto a feiúra do pato, como no conto tradicional, mas as
conversas das quais ele não podia participar. Com a mudança o patinho se torna apto não
para ser aceito pelo grupo devido a sua aparência, mas para espioná-lo, ouvir o que falam,
quer eles queiram ou não.
Em outra seqüência, a Bela Adormecida cai de sono, só que não por efeito de um
feitiço, mas sim por ser picada pela mosca Tse-Tse, causadora da doença do sono (Fig. 55).
A tira se encerra com um elemento do enredo original: o sono de Bela Adormecida, porém
a causa agora é outra, a picada do inseto, que fica subentendido na linguagem verbal, sendo
indiciada pela linguagem não-verbal: a mosca no primeiro quadro e depois voando próxima
ao corpo de Bela Adormecida. Assim como na tira anterior, temos uma quebra de
expectativa em relação à obra original, pois os fatos não acontecem como o previsto, de
acordo com o conhecimento prévio que temos das obras tradicionais.
Fig. 54 – Os traços caricaturais são utilizados para retratar as personagens e os cenários.
126
Fig. 55 – No primeiro quadro, somos apresentados à mosca tsé-tsé e a legenda traz a explicação de que ela
transmite a doença do sono, informações que ajudarão a dar nexo ao desfecho do segundo quadro.
Dialogando com a estória de Os três porquinhos temos, em outra tira, a figura do
lobo mau. Diferente do que ocorre na obra-base em que o lobo pega os porquinhos para
comê-los, o lobo dessa versão revela um comportamento bem pacifico e nada selvagem. Na
composição dos quadros, contudo, somos levados a pensar, devido aos indícios fornecidos
pelas linguagens verbal e não-verbal, que o lobo é de fato mau. O humor se estabelece a
partir da quebra de expectativa, quando descobrimos que não se trata de um porco, mas de
um cofre de onde o lobo tira algumas moedas para comprar lingüiça e lombo, ou seja, ao
invés de caçar ele vai comprar (Fig. 56).
127
Fig. 56 - A figura do lobo com uma gota caindo de sua boca no primeiro quadro reforça a impressão de que
ele está faminto (e que vai comer o porquinho). No quadro final, seu comportamento contradiz os elementos
indiciais apresentados no quadro anterior.
Em outro momento, numa referência à estória da Chapeuzinho Vermelho, nos
deparamos com uma versão mais sexual do conto. A fala da vovó, sua figura de formas
sinuosas e o contraponto da ilustração de outra vovó envelhecida olhando por uma janela,
ampliam o contraste tematizado na tira: de um lado a vovó como uma figura idosa e de
outro, a vovó jovem e cobiçada pelos “lobos” (Fig. 57). Nesse caso, o humor se dá não
necessariamente pela quebra de expectativas, como nas tiras anteriores, mas pelo aspecto o
subliminar expresso pelas linguagens verbal e não-verbal e que revelam o caráter sexual da
estória.
128
Fig. 57 – O vestido curto e decotado da vovó reforçam a idéia de juventude que vem expresso pela linguagem
verbal
Ainda no universo da Chapeuzinho Vermelho e também dos três porquinhos, temos
outra situação que dialoga com as estórias tradicionais. O humor se revela ao percebermos
o esforço fracassado de chapeuzinho em não magoar os porquinhos. A fala da vovó
contrariando a menina e a resposta que chapeuzinho dá no último quadro reforçam o efeito
cômico da situação (Fig. 58).
129
Fig. 58 - O efeito humorístico ocorre não só pelo fato em si, os porquinhos comendo salsichas feitas j de
porco e a tentativa de Chapeuzinho de disfarçar a situação, mas também pela fala da menina no último
quadro, que remete ao famoso bordão proferido por ela quando encontra o lobo: “que boca grande você tem”.
Nas tiras de Gonsales temos, por meio do uso de elementos tradicionais do humor,
como a quebra de expectativas, apresentação das personagens em outra chave, etc., o
diálogo com estórias tradicionais, trazendo o lúdico e novas propostas de construção para
as mesmas. Temos aqui um diálogo bem humorado com as estórias, em que novas
proposições e desfechos são introduzidos nas versões, rompendo com as formas pré-
estabelecidas de apresentação dessas narrativas. A possibilidade do uso pedagógico
também pode ser identificada em tais produções na medida em que dialoga com os
clássicos propondo novas formas de assimilação e construção dos mesmos, abrindo espaço
para diferentes interpretações e interações do leitor.
Quando pensamos na produção de língua portuguesa, o humor tem sido uma das
principais ferramentas para o diálogo entre quadrinhos e o material literário no que diz
respeito à criação de novas e diferentes obras. Nos dois exemplos anteriores tal fato fica
130
patente, entretanto, não é apenas pelo humor que tal forma de diálogo pode ocorrer. Para
exemplificar outra possibilidade interativa, apresentaremos uma obra produzida
originalmente em Língua Inglesa, mas que traduz de maneira fluente, uma interação que vai
além do enredo original, estabelecendo diálogo com o próprio autor da obra-base
(Shakespeare).
b) Shakespeare no mundo dos sonhos
Em Sandman Terra dos Sonhos - Sonho de Uma Noite de Verão, Neil Gaiman
(roteirista) e Charles Vess (arte), estabelecem uma relação entre obras que põe em cena não
apenas os textos elaborados, mas o próprio autor da obra clássica com o qual o quadrinho
dialoga, ou seja Shakespeare, numa intersecção de textos, personagens e mitologias.
Confrontar personagens (e o próprio autor, no caso) literários com figuras de quadrinhos
revela um outro tipo de diálogo que diz respeito aos próprios cânones. No diálogo em
destaque temos de um lado Shakespeare e seus Sonhos de Uma Noite de Verão, obra e
autor considerados clássicos da literatura mundial, de outro Sandman, personagem que se
consagrou nos quadrinhos, tornando-se ícone do meio. No diálogo entre ambos, colocam-se
no mesmo “palco” figuras de peso que se consolidaram em seus respectivos meios e a
relação entre eles se realiza com maior fluência, na medida em que traz elementos
reconhecidos pelos leitores de ambas as obras.
131
No Brasil, um dos primeiros a fazer esse tipo de inter-relação foi Monteiro Lobato,
que colocava seus célebres personagens para interagir com grandes nomes da literatura,
história, etc. Nos quadrinhos, temos a Turma da Mônica de Maurício de Souza, que
também estabelece constante diálogo com várias esferas da cultura. Contudo, em ambos os
casos o humor ainda é a tônica principal. De qualquer forma, o que se depreende de tal fato
é que, tanto no caso de Sandman, como o Sitio do Pica-pau Amarelo ou A turma da
Mônica, o que temos são personagens consagradas, que já conquistaram um espaço em sua
devida área. São ícones e considerados como clássicas por muitos. Daí que a interação
entre elas se dá de maneira mais marcante, sobretudo para aqueles que já conhecem e se
relacionam com as mesmas. Vale lembrar que no Brasil as HQs, alem de sofrerem com a
forte concorrência estrangeira, que já tem consolidada e amplamente divulgada sua
tradição, não contam com um verdadeiro apoio para sua produção, daí a dificuldade de
consolidar a existência de personagens e outros elementos na tradição dos quadrinhos.
Sandman, considerada a maior obra de Gaiman para as HQs, estabelece um
constante diálogo com clássicos da literatura e do cinema, trechos de músicas, e muito
mais. Na realidade, Sandman não é uma criação de Neil Gaiman. A personagem surgiu nas
HQs na década de 30 (a Era de Ouro dos quadrinhos) e era um detetive chamado Wesley
Dodds, que usava uma arma de gás para colocar os bandidos para dormir. Outras versões de
Sandman se seguiram, mantendo apenas o nome em comum. Quando Gaiman relançou o
título, apenas aproveitou o nome e recriou totalmente a personagem, contando a história de
Sandman ou Lorde Morfeu (Sonho), regente do Reino do Sonhar e um dos sete Perpétuos,
132
que na verdade caracterizam antropomorficamente aspectos integrantes da condição
humana: Morte, Delírio, Destruição, Desejo, Desespero, Destino.
O literato e dramaturgo William Shakespeare aparece em 3 edições de Sandman:
Casa de Bonecas - Homens de Boa Fortuna , # 14 ; Terra dos Sonhos - Sonho de uma
Noite de Verão" , # 19 e "O Despertar - A Tempestade" , # 75. Em Homens de Boa
Fortuna, Shakespeare, até então um jovem dramaturgo medíocre, faz um estranho acordo
com Sandman (o senhor da Terra dos Sonhos): sonhos em troca de peças teatrais. É a partir
desse acordo que Shakespeare se torna um grande escritor, ou seja pela intervenção de
Sandman em seus sonhos. Lorde Morfeu, por sua vez, como devia um favor ao senhor de
Faerie, do reino das fadas, faz Shakespeare escrever Sonhos de uma Noite de Verão. O
trato também envolvia a encomenda de outra estória (A Tempestade), que é apresentada na
edição 75 (Fig. 59).
133
Fig. 59 – Sandman (identificado pelo balão de fala com contorno irregular e na cor preta) ao ouvir o desejo do
dramaturgo, se aproxima para fazer o acordo. O homem que surge em primeiro plano no primeiro e último
quadros é na verdade Goethe, com quem Shakespeare conversava antes do Lorde Morfeus chegar.
As duas peças escolhidas por Gaiman para estabelecer o diálogo com Shakespeare,
Sonho de uma noite de verão e A tempestade, apresentam, em comum, o fato de serem ricas
em “espetáculo visual” (BLOOM, 1998, p.199), aspecto essencial para os quadrinhos.
134
A peça de Shakespeare, por abordar o tema do sonho, permite um laço ainda
mais estreito com a obra em quadrinhos Sandman, cuja personagem principal é
justamente o Senhor dos Sonhos. Em Terra dos sonhos - Sonho de uma noite de verão,
Lorde Morfeu e as personagens do reino das fadas (Titânia, Oberon, Puck e outros) se
encontram com Shakespeare e sua companhia teatral para assistir a peça que o
dramaturgo criara de encomenda para o senhor do reino dos sonhos, e que fora inspirada
na platéia que o viera assistir, a qual Shakespeare tivera a oportunidade de conhecer por
intermédio de Sandman, durante seus sonhos, fato que, contudo, fica subentendido no
enredo.
Logo nas primeiras páginas da HQ, temos o reencontro de Shakespeare com
Lorde Morfeu. Na retratação de Sandman, vemos os aspectos que geralmente o
identificam nos quadrinhos: os olhos negros e estrelados como a noite, a cor pálida e
principalmente o balão de fala, que sempre é representado com fundo preto
23
(Fig. 60).
23
A figura de Sandman, apesar de geralmente apresentar tais características, já foi retratado de maneiras
diferentes, assumindo até mesmo a aparência de animais, como um gato na estória Sonho de Mil Gatos ou
uma raposa, no livro Caçadores de Sonhos.
135
Fig. 60 - No primeiro quadro da seqüência, Sandman surge numa tomada de baixo para cima, o que
engrandece sua figura, conferindo-lhe poder diante da imagem de Shakespeare que aparece na parte de baixo
do quadro. Os closes nos rostos das personagens nas duas últimas vinhetas, num jogo de ponto e contra-ponto
em que a ‘câmera’ pula de um interlocutor para o outro, recurso muito utilizado no cinema, da dinamicidade
ao diálogo de ambos.
Enquanto na obra de Shakespeare o tema gira em torno dos encontros e
desencontros amorosos entre dois casais e da discórdia entre a rainha das fadas Titânia e o
rei dos duendes Oberon, causada pela tutela de um menino, na obra em quadrinhos o foco
recai sobre a interação entre Shakespeare e sua companhia teatral, de um lado, e Sandman e
136
os habitantes do reino das fadas de outro. Numa das seqüências, vemos o espanto de
Shakespeare diante da platéia para a qual deve representar (Fig. 61), o que mostra o
inusitado da situação: o dramaturgo não esperava ver de perto aqueles a quem conhecera
apenas nos sonhos.
Fig. 61 - As ilustrações do rosto de Shakespeare, sobrepostas às figuras dos habitantes do reino das fadas
revela situações simultâneas: a platéia que aguarda o espetáculo e as reações do dramaturgo diante deles:
espanto, no primeiro quadro, e medo, num segundo momento.
Assim como na estória original, também há a presença de uma criança, por quem
Titânia demonstra interesse. A criança em questão é o próprio filho de Shakespeare,
chamado Hamnet, a quem Titânia cerca tentando levá-lo para seu reino, fato que, aliás
parece ocorrer, o que fica implicitamente indicado na estória, pois ao final somos
informados de que o menino morre três anos após aquela apresentação, com a idade de
onze anos. O que reforça tal idéia são os comentários de Hamnet sobre sua relação difícil
com o pai: ele se queixa da ausência de Shakespeare e de sua fixação pelo teatro, relegando
137
a relação familiar a segundo plano. Uma de suas falas é reveladora: “minha irmã gêmea
brincou que, se eu morresse, ele escreveria uma peça sobre mim ‘Hamnet’” (seria uma
referência à famosa peça de Shakespeare Hamlet?).
Durante a peça, as personagens do reino das fadas questionam e até mesmo negam
fatos que são representados pelos atores, como no trecho em que Puck, mesmo empolgado
com o momento em que se vê representado na peça, afirma não ter acontecido nada daquilo
(Fig. 62). Em outro trecho, é o rei Oberon que, ao conversar com Sandman e Titânia,
reafirma a falsidade do que foi representado (Fig. 63). O questionamento da obra clássica
inglesa pelos quadrinhos vem expressa pelas próprias personagens, colocando em cheque
os fatos narrados no texto-base, e ao mesmo tempo lhe conferindo veracidade, na medida
em que, quem questiona são as próprias personagens do reino das fadas, que habitam o
mundo da ficção criado por Shakespeare.
Fig. 62 - No primeiro quadro temos a figura do ator personificado como Puck, e no último o próprio Puck
aplaudindo a cena.
138
Fig. 63 – Os tons sombrios e escuros acompanham a caracterização da personagem Sandman.
Na obra em quadrinhos, a personagem Puck se mostra essencial para o desenrolar
dos fatos. Aliás, é ele que ajuda a ampliar o tom sombrio da HQ. Sua representação, assim
como os outros seres do reino das fadas, é disforme, e as cores escuras acompanham suas
ações. Sobre Puck, na obra original de Shakespeare, Harold Bloom (1998, p.198) destaca:
Puck [...] é figura ambivalente, um traquinas, um tanto maldoso, embora a peça (e
Oberon) o mantenha inofensivo, chegando mesmo a fazer com que o mal por ele
praticado resulte no bem. O outro nome de Puck, na peça e no folclore popular, é
Bom Robin, mais um moleque do que um espírito do mal [...]. Em língua inglesa,
a palavra puck, ou pook, originalmente, significava um demônio, ou um homem
perverso; Robin Goodfellow (Bom Robin) era o nome popular do diabo.
Contudo, em todo o decorrer da peça [...] Puck permanece sob um controle firme
e benigno.
139
No quadrinho, contudo, diferente da peça em que ele expressa seu lado benevolente,
ainda que sob o controle de Oberon, Puck mostra seu aspecto mais diabólico. Ele enfeitiça
o ator que o representa na peça, assumindo ele mesmo o seu lugar e dando um caráter mais
sombrio à sua representação. Quando a peça acaba, ele escolhe não voltar para o mundo das
fadas, afinal, há “mortais para confundir e importunar” (p.22). Quando pronuncia as falas
finais do texto de Shakespeare, Puck dá outro contorno às mesmas. No texto original,
temos:
Se vos causamos enfado por sermos sombras, azado plano sugiro: é pensar que
estivestes a sonhar; foi tudo mera visão no correr desta sessão. Senhoras e
cavalheiros, não vos mostreis zombeteiros; se me quiserdes perdoar, melhor coisa
hei de vos dar. Puck eu sou, honesto e bravo; se eu puder fugir do agravo da
língua má da serpente, vereis que Puck não mente. Liberto, assim, dos apodos, eu
digo boa-noite a todos. Se a mão me derdes, agora, vai Robim, alegre, embora.
(SHAKESPEARE, 2002, p.50)
Já nos quadrinhos, tal trecho assume um aspecto misterioso, efeito obtido por meio
da complementaridade entre as linguagens verbal e não-verbal, compondo um cenário
escuro e aterrorizante (fig. 64).
140
Fig. 64 - Nos quadros acima, na medida em que Puck fala a imagem vai se tornando mais escura e a câmera
parece se aproximar ainda mais dele até escondê-lo nas sombras, elemento da qual ele faz parte. A fala
entrecortada no penúltimo quadro dá a sensação de uma pronúncia pausada, que acompanha a própria diluição
de Puck na escuridão que o envolve.
O lúdico, o questionamento da obra clássica, o aproveitamento de elementos
tradicionais em outras chaves (como o terror) constrói uma nova narrativa sobre a original.
Não temos apenas a obra de Shakespeare, mas também, e talvez principalmente, a de
Sandman, afinal é ele quem inspira o dramaturgo, quem move as forças sobrenaturais,
quem cria a ponte entre os mundos. Ao final, é o Puck do universo dos sonhos e não o da
141
peça de Shakespeare quem prevalece, sobrevive e contamina o mundo dos mortais com
suas sombras e terror. É por meio de elementos enraizados e consagrados no mundo dos
quadrinhos e da literatura que tal diálogo se dá, estabelecendo uma relação que, como
vimos, vai além das personagens, envolvendo até mesmo seus criadores.
142
3.2.4. Interferências e aproximações
O diálogo entre o quadrinho e o material literário, como pudemos observar, produz
obras diversas com muitas possibilidades interativas. De uma forma geral, poderíamos
resumir as formas de transposição de obras literárias para as HQs conforme a seguinte
tabela:
Tipos de diálogo Formas de transposição Relação dos recursos
estéticos das HQs com o
texto-base
Adaptações pastiche
(A Moreninha, Gaetaninho)
Fiel à obra-fonte,
procurando reproduzi-la de
maneira mais próxima
possível
Estética dos quadrinhos a
serviço do texto-base
Adaptações criativas
(Lusíadas 2500, Branca de
Neve)
Inserção de diferentes
elementos na narrativa
Possibilidade de utilização
diferenciada dos recursos
das HQs, sem perder o fio
condutor (o enredo
literário)
Novas dimensões narrativas
(Patinho Feio, tiras de
Gonsales, Sandman-Sonhos
de Uma Noite de Verão)
Criação de novas obras a
partir de elementos do texto
original. O texto-base ou
seus elementos surgem em
novas chaves (humor,
terror, etc.)
Recursos das HQs não
submetidos ao enredo
original
O tipo de interação se dá a partir de uma gradação em que as obras produzidas em
quadrinhos apresentam cada vez mais interferência no texto-base. Vale ressaltar que, numa
mesma categoria também temos uma gradação em que há história em quadrinhos mais
próxima do texto literário do que outras. Com pouca interferência na obra-fonte, temos
quadrinizações como A Moreninha (1953), que traz uma adaptação pouco dinâmica e mais
didatizada e Gaetaninho (2006), que apesar de explorar de maneira mais criativa os
143
recursos da visualidade dos quadrinhos, busca uma representação próxima do conto de
Machado. Ambas procuram adaptar o mais fielmente possível a obra literária, não só pelo
texto verbal, mas também pelo aspecto visual, daí a utilização dos recursos dos quadrinhos
de forma a reproduzir o estilo da obra: o uso abundante de balões para representar os
diálogos tão comuns nos folhetins em A Moreninha e a dinâmica visual de Gaetaninho para
revelar o olhar ligeiro da crônica jornalística de Macedo.
O que prevalece, contudo, tanto em A Moreninha quanto em Gaetaninho é a busca
pela reprodução da obra literária com a mínima interferência possível. Ambas as obras,
apesar de distantes no tempo, revelam uma visão pedagógica semelhante em relação à
quadrinização de obras literárias, na qual prevalece a idéia de que as HQs servem como
mediadoras de leitura e seus recursos como reprodutores dos efeitos próprios do texto
literário, cuja linguagem verbal é a principal ferramenta. Assim não há a inserção de
elementos novos e a estética visual obedece aos ditames da obra original.
Seguindo a gradação no que diz respeito à relação da obra quadrinizada com o
material literário, há as HQs que introduzem novos elementos ou formas de contar ao
enredo original, provocando uma maior interferência no texto-base. Aqui já ocorre um
maior afastamento do texto literário que, contudo, ainda continua a ser o guia para a
construção narrativa. Não se trata de modificar a estrutura do texto-base, que pode ser
reconhecido pelo leitor, mas sim propor diferentes formas de olhar e interagir com o
mesmo. É o caso de Lusíadas 2500, em que os versos de Camões, numa mudança de
gênero, se tornam roteiro para uma ficção científica. Por meio da visualidade e de alguns
144
recursos estéticos dos quadrinhos um novo contexto é criado e acrescentado à obra original.
Ainda não há uma total fluência do uso dos recursos das HQs, pelo fato de termos duas
dimensões narrativas: a do livro ilustrado e a dos quadrinhos propriamente dito, mas ainda
assim, os recursos cênicos inseridos na épica portuguesa propõem um novo olhar sobre a
mesma. Também é o que se dá com a adaptação de Branca de Neve, que sugere uma
interação que se aproxima mais de um jogo de montar do que de uma narrativa dinâmica. A
inserção de tais elementos/formas de contar propõe outras formas de se relacionar com a
obra original, um diferente “olhar” sobre a mesma.
Outro tipo de diálogo é o que sugere a criação de obras que se aproveitam do
material literário (enredo, personagens, cenários, etc.) para construir narrativas que
questionam e inovam as tradicionais, apresentando-as em novos contextos, revelando um
distanciamento com a obra-base maior do que todas as outras formas já apresentadas. Nos
exemplos destacados nesse estudo, temos desde a paródia de fábulas, a desconstrução de
contos tradicionais até a proposição de diferentes maneiras de realização de enredos
clássicos. Em O Patinho Feito (ou Patus Horribilis), a paródia é o elemento chave para
questionar o conto tradicional e explorar uma maneira diferente de condução do enredo.
Também é por via do humor que nas tiras de Níquel Náusea as personagens de fábulas e de
contos de fadas vêem desconstruídos elementos originais de sua estória. Em Sandman
Sonhos de Uma Noite de Verão, por seu lado, a proposição de um novo enredo unido aos
elementos da obra-base, e até mesmo de seu autor, criam uma estória diferente, com
ingredientes de terror, que inova a tradicional. Na atualidade, essa forma de diálogo com
elementos tradicionais da literatura é bastante comum, e temos personagens de contos de
145
fadas ajudando a vender perfumes e condomínios, enredos tradicionais como pano de fundo
de mirabolantes tramas em novelas ou filmes, músicas que citam importantes figuras
literárias e muito mais.
146
3.3- Outras formas de interação
Visando oferecer uma visão mais ampla sobre a relação quadrinhos-literatura e as
possibilidades que ela oferece para a veiculação das experiências humanas, destacaremos
também duas outras formas de diálogo possível entre ambos os meios. A primeira diz
respeito à adaptação/interação de obras dos quadrinhos para a literatura, num movimento
contrário ao visto até agora. O segundo propõe a criação de obras em que as duas artes se
unem para o desenvolvimento da narrativa. Apesar desse não ser o foco de nossa pesquisa,
traz importantes elementos que nos permitem conhecer melhor os processos de criação
dialógica que se estabelecem quando obras produzidas em artes distintas se interseccionam.
3.3.1. Das HQs para os livros
Também a literatura estabelece diálogos com os quadrinhos tomando de empréstimo
enredos, personagens e outros elementos. Geralmente o que temos é o aproveitamento de
personagens criados nos quadrinhos para a construção narrativa literária. Em diversos
suportes comunicativos é possível verificar o diálogo com os quadrinhos e o universo
desenvolvido nele, como as constantes adaptações de HQs para os cinemas, desenhos
animados, vídeo games, etc. As aventuras de Batman, por exemplo, ganharam as telas do
cinema com várias versões. O mesmo ocorre com outras personagens famosas, como o
Super-Homem, o Quarteto Fantástico, os X-men, etc. Nos Fan Fics, textos que circulam
147
pela internet e que são escritos por fãs, os clássicos heróis dos quadrinhos ganham novas e
eletrizantes aventuras.
No que diz respeito à literatura, o diálogo com os quadrinhos e/ou o aproveitamento
de elementos criados nas HQs para desenvolver textos literários, contudo, não é muito
praticado, sobretudo em Língua Portuguesa. No exterior, temos mais exemplos, como os
livros de estórias baseadas nas aventuras de Batman, Sandman, e outros.
Assim como na relação literatura-quadrinhos, as possibilidades interativas entre os
meios de expressão podem variar numa gradação, indo desde uma adaptação fiel à obra
original, até aquelas que aproveitam elementos dos quadrinhos para a criação de novas
narrativas. Em língua portuguesa, o diálogo mais comum é aquele que propõe a criação de
novas obras a partir do material literário, e é feita principalmente por meio do humor, com
a satirização de personagens e elementos dos quadrinhos. Dessa vez, as tradições criadas
nos quadrinhos é que são questionadas e/ou inovadas a partir do material literário. como no
exemplo destacado a seguir.
a) A desconstrução e a renovação do herói
No conto de Moacir Scliar intitulado Shazam, a famosa personagem dos quadrinhos,
Capitão Marvel, é apresentada como um super-herói aposentado, pois o crime no mundo
tinha sido extinto, e que resolve viver em Porto Alegre. Com muito humor o autor conta a
148
estória fazendo uso, para tanto, de toda a mitologia construída nos quadrinhos sobre os
super heróis (força, super poderes, etc.).
A personagem Capitão Marvel, ou Shazam como também é conhecida, surgiu nos
quadrinhos em 1940, sendo criado pelo escritor Bill Parker e pelo artista C. C. Beck. A
estória começa quando o jovem Billy Batson é escolhido pelo mago Shazam para ser um
herói e defender a bondade. Toda vez que Billy pronuncia o nome do mago, um raio
mágico o atinge e ele se transforma em um super-herói adulto. Outras pessoas, como
amigos ou familiares de Billy também podem se tornar Marvels, compartilhando os poderes
com ele (Fig. 65).
Fig. 65 - O Capitão Marvel, ou Shazam, aparecia em um vistoso uniforme ornamentado por um raio, sua
marca registrada.
149
Na verdade, o Capitão Marvel surgiu logo após o Super Homem, criado dois anos
antes, numa época em que vários heróis despontavam na onda do sucesso obtido pelo
homem de aço. O herói, que aparecia em uma roupa vermelha e um relâmpago desenhado
no peito, recebia seus poderes de seis importantes personagens mitológicas, cujas iniciais
formam a palavra mágica Shazam: Salomão, de quem recebe a sabedoria, Hércules, que lhe
fornece a força, Atlas, que lhe dá o vigor físico, Zeus, de quem herda o poder, Aquiles, a
coragem e Mercúrio, a velocidade (fig. 66). As aventuras do Capitão Marvel, devido ao seu
grande sucesso, geraram além de várias revistas, séries de cinema, desenhos animados, etc.
Fig. 66 - Na figura (Cena de Whiz Comics 1 –1940) podemos ver o primeiro encontro de Billy com o mago
Shazam.
No conto de Scliar, já no início, vemos a referência satírica feita em relação aos
heróis dos quadrinhos, que sofrem devido a seus super poderes (pág.297):
150
O Homem Invisível sofria de um forte sentimento de despersonalização. “Preciso
apalpar-me constantemente para estar seguro de que me encontro presente no
mundo, aqui e agora”, escreveu em seu diário. O Homem de Borracha comprava
uma roupa num dia e no outro constatava que já não servia. Tinha encolhido ou
alargado – não a roupa, ele. O Príncipe Submarino sofria com a poluição do mar.
(...) O Tocha Humana era perseguido por sádicos com extintores (...) O Sombra,
que sabia do mal que se esconde nos corações humanos, era incomodado por
hipocondríacos com mania de doenças cardíacas. O Zorro recebia propostas
indecorosas de um fetichista fixado em objetos começando pela letra Z.
A estória do Capitão Marvel é construída justamente nessa tônica: as agruras e
dificuldades do herói diante do mundo real. Mundo que, aliás, como descreve o conto, não
sofre mais com crimes, daí a aposentadoria do Capitão Marvel e sua escolha de passar o
retiro “eterno” na cidade de Porto Alegre.
A sátira é, como vimos, uma ridicularização de determinado tema/personagem e é
isso que o autor faz ao desconstruir o mundo dos heróis, tornando seus poderes obsoletos
ou inúteis diante da realidade, retratando a própria realidade de forma irônica (como por
exemplo, um lugar em que não há crimes, fato que está longe de acontecer). O Capitão
Marvel em sua busca por se ambientar à nova vida – uma aposentadoria forçada, por não
ser mais útil diante do novo mundo, com seus heróis de TV e cinema, sem super poderes,
mas transbordando violência –, representa a decadência e a falência não apenas do herói,
mas de toda uma tradição, e aí se inclui os super-heróis com poderes mirabolantes, um dos
principais cânones criados pelos quadrinhos, que se mostra incapaz de confrontar o mundo
atual.
Numa referencia a um dos hábitos da sociedade moderna, transformar em produto
de consumo qualquer assunto que possa ser vendável, o Capitão Marvel lança um livro de
151
memórias que obtém sucesso passageiro, suscitando até mesmo um comentário elogioso da
crítica especializada: “Um novo olhar sobre o mundo” (pág.298). Após tal fato o herói cai
no ostracismo e se vê diante de uma rotina banal: lendo quadrinhos e plantando flores, e
amargando uma depressão.
A sátira aos super poderes dos heróis (e do Capitão Marvel) é feita por meio da
confrontação desses poderes com questões práticas da vida. Em um determinado sábado,
Capitão Marvel vai ao bar e lá conhece uma mulher, após tomar 11 cálices de bebida. Aqui
temos uma referência ao aspecto pouco sexual dos super heróis, tão envolvidos em sua
tarefa de salvar o mundo. O Capitão Marvel, contudo, passa a considerar a possibilidade de
uma aproximação:
O Capitão Marvel considerou-a em silêncio. Nunca dera muita atenção a
mulheres; o combate ao crime sempre fora uma tarefa demasiado absorvente.
Mas agora, aposentado, o Capitão Marvel podia pensar um pouco em si mesmo.
O espelho descascado mostrava que ele ainda era uma esplendida figura de
macho, o que ele reconheceu com alguma satisfação. (pág.299)
A descrição da mulher, por sua vez, ressoa a decadência da própria vida do herói
aposentado:
“Quanto à mulher, não era bonita. Quarentona, baixa e gorda, estalava a língua
depois de cada gole. Mas era a única mulher do bar, naquela noite de sábado.
Além disso, não só retribuiu ao olhar do Capitão, como levantou-se e veio sentar
perto dele.” (pág.299)
É importante observar como a linguagem verbal é extremamente imagética e ajuda a
expressar aquilo que nos quadrinhos é puramente visual. Por meio de uma linguagem
irônica, o autor monta um cenário que, contudo, não é revelado em todos os seus detalhes.
152
É justamente pela nossa interação com o texto, o preenchimento daquilo que está
subentendido no mesmo, que construímos os nexos.
Na seqüência, o Capitão Marvel segue para o quarto com a mulher. Aqui, os
aspectos que fazem a glória do herói se revelam como obstáculos para a noite de sexo: a
couraça de aço que protege seu corpo se mostra fria e dura demais, o que acaba por ferir
sua amante (pág.300):
Um urro de dor fez estremecer o quarto.
- Tu me mataste! Me mataste! Ai que dor!
Assustado o Capitão Marvel acendeu a luz. A cama estava cheia de sangue.
- Me enterraste um ferro, bandido! Perverso!
Mais uma vez, os elementos são indiciados pela linguagem verbal, mas não
totalmente explicitados. Por meio da interação com o conto e mais o conhecimento
prévio que temos sobre o herói e seus poderes, compreendemos a cena. Sobre os super
poderes do Capitão Marvel nos quadrinhos, aliás, é importante ressaltar que ele, por
receber o poder de figuras mitológicas, apresentava capacidade de voar, sabedoria,
super força, invulnerabilidade do corpo, resistência a venenos, possibilidade de mudar a
aparência, coragem, velocidade e longevidade, além de receber a energia do relâmpago
que transmutava sua aparência de Billy Batson para Capitão Marvel. No conto de Scliar,
por sua vez, temos a pele de aço, que reveste o corpo do herói e que, apesar de
invulnerável, já se encontrava “enferrujada nas axilas”, em outra referência irônica
(pág.299).
Após tal tragédia, Capitão Marvel, sem saber o que fazer, voa sem destino pela
cidade, soluçando e se lembrando saudoso de quando apenas trabalhava em uma rádio. O
153
final trágico intensifica a desconstrução do super-herói feita a partir da satirização dos
elementos que compõem seu universo: a aposentadoria insossa e decadente após uma vida
de combate ao crime, a concorrência dos novos e violentos heróis (que não tem a grandeza
do passado), o esquecimento dos fãs, a incapacidade de se relacionar com uma mulher.
Enquanto sobrevoa a cidade Capitão Marvel lembra-se que havia uma palavra capaz de o
transformar novamente em Billy, mas ele já a esquecera. A palavra é Shazam, o nome do
mago que lhe concedera o poder e que ele, naquele momento da vida, não conseguia mais
se lembrar (Fig. 67 e 68).
Fig. 67 e 68 – Nas ilustrações retiradas da HQ Shazam, podemos ver como o herói se transformava sob a ação
da palavra shazam. Na primeira seqüência, o menino se transforma em herói, e na segunda, o contrário ocorre
e Billy, após voltar a ser menino, precisa correr para a escola se não chegará atrasado. Nos dois momentos, a
figura de Billy menino e transformado em Shazam na mesma cena, revelam o passo a passo da transformação,
efeito ampliado pelo uso da onomatopéia nas cenas.
O diálogo entre o conto de Scliar e a personagem dos quadrinhos Shazam revela
como elementos oriundos das HQs podem fornecer material para a construção de narrativas
literárias. Shazam, por seu lado, faz parte do universo consagrado das HQs, de seus
cânones, daí a possibilidade interativa ser mais eficiente na medida em que são
154
reconhecidos por muitos. Também aqui podemos identificar elementos que propiciam o
lúdico e até mesmo um uso mais interativo nas práticas pedagógicas, na medida em que
fornece material que questiona, inova e traz novas propostas de elaboração. Mas não é
apenas por meio desse tipo de diálogo que a literatura se relaciona com os quadrinhos.
Também temos obras que realizam tal diálogo por meio de adaptações pastiche,
bem próximas da original. É muito pouco comum tal forma de diálogo, mas temos um
exemplo, oriundo da produção literária de Língua Inglesa, que pode nos ajudar a
compreender como tal fato ocorre quando da adaptação de histórias em quadrinhos para a
literatura.
b) Transpondo linguagens: uma leitura fiel
Em Os Livros da Magia – o convite de Carla Jablonski, publicada em 2003
originalmente em Língua Inglesa, temos uma adaptação para a literatura da obra
quadrinizada homônima, produzida em 4 volumes, e que tem roteiro de Neil Gaiman e
ilustrações de vários artistas. Nos quadrinhos, a mini-série criada em 1991 trazia as
aventuras de um garoto aparentemente comum, mas que, após ser procurado por um
quarteto de homens misteriosos, descobre ter o potencial para se transformar no mago mais
poderoso do mundo. O menino, de nome Timothy Hunter, órfão de mãe e vivendo apenas
com o pai, usa óculos e tem um iô-iô que se transforma em uma coruja de estimação.
Guardadas as semelhanças com a série Harry Potter, a personagem, na verdade, teve suas
155
origens na década de 80, sendo criada pela escritora inglesa Diana Wynne Jones. Temos,
portanto, uma transição dos livros para os quadrinhos e posteriormente de volta à literatura.
Na série Os mundos de Crestomanci, Diana revela um lugar onde a magia é algo
natural, mas que deve ser controlada por um mago poderoso, para que não seja usada
incorretamente contra aqueles que não têm poderes mágicos. O personagem Tim Hunter
surge no volume A Semana dos Bruxos. Ele é um dos alunos do Internato de Larwood e um
dos suspeitos de ser bruxo.
Carla Jabonski em seu livro traz exatamente a estória de Tim que Gaiman e seus
parceiros desenvolveram para os quadrinhos. Ali, o menino é procurado por quatro
indivíduos que revelam ser ele um bruxo e o convidam para conhecer o que é a magia,
numa viagem pelo passado, presente e futuro. A narrativa literária de Carla transfere para o
livro as aventuras de Tim, utilizando-se para tanto, de elementos próprios da literatura, ou
seja, a linguagem verbal. A adaptação, nesse caso, se mostra extremamente fiel à obra
produzida em quadrinhos, com a transformação dos elementos da HQ em matéria literária.
Daí o uso abundante de descrições para caracterizar espaço, ambiente, personagens, etc.
Para exemplificar, destacamos a seguir o trecho em que o ioiô de Tim é
transformado em coruja. A descrição do livro segue praticamente o roteiro estabelecido
pela seqüência de imagens desenhadas por John Bolton (Fig. 69), o ilustrador de Labirinto
Invisível, 1
o
volume da série (pág. 40):
156
Com um movimento rápido, Dr. Oculto tirou o ioiô da mão dele.
_Ei!
Dr. Oculto segurou o ioiô com as mãos em concha. Os olhos de Tim se
arregalaram quando uma coruja apareceu com um raio de luz.
Fig. 69 - Na cena dos quadrinhos, uma seqüência rápida de imagens ilustra a transformação da coruja.
Em outro momento, quando Tim se encaminha com o Dr. Oculto para o reino das
fadas, assim é descrita a passagem das personagens pelo portão que separa os dois mundos
(pág. 157):
Dr. Oculto abriu o portãozinho de madeira. Juntos, ele e Tim o atravessaram.
Quando saíram do outro lado, Tim ficou olhando para Dr. Oculto. Ele tinha se
transformado em ela!
- Dr. Oculto? – Tim ficou olhando, estupefato, para a mulher a seu lado. Era alta,
cabelo liso, castanho e curto. Seu rosto anguloso era bonito, mas comum. Não
usava maquiagem e suas roupas eram simples: casaco, blusa, saia. Seria mais
157
apropriada para um escritório do que para um reino mágico. – Esta é a sua
verdadeira aparência?
Nos quadrinhos, com desenhos de Charles Vess, ilustrador do 3
o
volume, A Terra
do Crepúsculo do Verão, tal episódio é narrado numa curta seqüência de cenas (Fig. 70):
Fig. 70 - Em um mesmo quadro temos a mudança que ocorre quando Dr. Oculto atravessa o portão. A
expressão “OH” que sai do balão de fala apontado para Tim, revela o espanto do menino, interpretado no
livro como “estupefação”. A descrição detalhada da mulher é ilustrada por Vess em 1 imagem.
O paralelismo entre as obras é constante. Um elemento acrescentado por Carla é a
inserção dos sentimentos e pensamentos de Tim e de outras personagens. É a interpretação
por via da linguagem verbal daquilo que as ilustrações mostram. Nos quadrinhos, o que
temos sobre o mundo interior de Tim são, na maioria das vezes, a forma de representação
158
de suas expressões faciais, o jeito como se desloca pelo cenário e seus comentários durante
a estória, já que não há a presença de legendas com a voz de um narrador onisciente. Vale
ressaltar que o texto verbal de Carla dá mais informações que o de Scliar, dando menos
espaço para a interação e a interpretação.
No trecho final, podemos perceber o uso da linguagem verbal como ferramenta
literária para expressar os sentimentos de Tim quando, ao voltar de sua viagem pelo mundo
da magia, ele encontra dentro de si o poder (pág. 254):
Sentiu-se inundado pela raiva. Poderia ter se afogado nela. Como tinham
coragem de fazer aquilo com ele? Colocar toda aquela pressão em cima dele!
Arrasta-lo por tudo que é canto, do início ao fim dos tempos. Mostrar-lhe mundos
com tão pouca explicação. Como eles achavam que ele poderia escolher depois
de tudo por que passou?
[...]
- Eu não preciso de vocês. Nem de vocês nem de ninguém. Eu só preciso...
acreditar!
A mão de Tim formigou, como se ele tivesse levado um choque. O ioiô assumiu
uma nova forma.
Era uma coruja de novo!
No livro, tal sentimento é intensificado pelos comentários do narrador onisciente,
que nesse momento assume o ponto de vista de Tim. É o menino que se sente abandonado
pelos seus quatro tutores. A transformação do ioiô em coruja é descrita em poucas palavras,
enquanto nos quadrinhos é utilizada uma seqüência maior de ilustrações, numa transição
que lembra uma câmara lenta, revelando o passo a passo da mudança do objeto em coruja
(Fig. 71).
159
Fig. 71 - Nos quadrinhos, a raiva de Tim se revela por suas expressões faciais e comentários veiculados pelos
balões de fala.
A adaptação pastiche dá a tônica da obra de Carla. Os elementos textuais procuram
traduzir aquilo que é não-verbal nos quadrinhos. De certo que a transposição quase fiel ao
original, assim como visto no caso dos quadrinhos, provoca uma menor inserção do lúdico,
na medida em que fecha as vias de interpretação. Ainda assim, a obra oferece outra
possibilidade de reflexão e utilização pedagógica, até mesmo por estabelecer um diálogo
pouco praticado entre os suportes. Aliás, o que podemos perceber, é que, no diálogo
160
inverso entre as HQs e a literatura, a força do texto verbal é também tão imagético quanto o
não-verbal, sendo essa uma maneira de se compreender como a linguagem literária pode
dar conta de adaptar e expressar o universo construído nos quadrinhos, cuja principal
característica é a visualidade.
3.3.2 Quadrinhos e literatura atuando em conjunto
Outra forma de interação é aquela em que surgem atuando em conjunto, quadrinhos
e literatura, com elementos dos dois suportes Tal forma de relação também não ocorre com
muita freqüência, mas há alguns exemplos que revelam como a intersecção das duas
formas artísticas pode ser bastante produtiva. Aliás, essa prática é usada por outros meios
de comunicação de diversas maneiras.
Nelly Novaes Coelho (2007, p.1), ao resenhar o CD-libreto As Fugas do Sol, do
paraibano-paulistano José Nêumanne, assim fala sobre a criação dos gêneros híbridos:
A atual voga dos CDs-libretos de poesia é, sem dúvida, um dos eloqüentes
índices de que [...] vem aprofundando a ruptura de fronteiras, tradicionalmente
existentes entre os fenômenos naturais e culturais; entre os tempos passado-
presente-futuro; entre os gêneros literários, etc., etc. Já não há como ignorar que
estamos entrando na era do multiculturalismo. [...] As múltiplas linguagens, antes
irredutíveis umas às outras, passam a dialogar entre si. [...] Embora seja difícil
detectarmos as causas exatas dessa nova diretriz criadora, arriscamos apontar
algumas que parecem evidentes: – a incessante necessidade de renovação do
processo criador; – a atual busca de totalidade (para neutralizar a fragmentação
do mundo atual); - a crescente preocupação com a possível/impossível
comunicação da poesia com o leitor “trabalho” pelos mass-midia e – a
necessidade de resgate-reinvenção do passado ou das origens históricas ou
míticas (como força-resistência à inevitável “globalização” que avança sobre os
“quatro cantos do mundo” e ameaça diluir a identidade cultural de cada povo).
161
O multiculturalismo leva a criação de obras em que se misturam elementos de
várias matrizes. Temos filmes atuando com trechos de desenhos animados ou quadrinhos,
peças de teatro em que a narrativa gráfica surge no cenário, poesia acompanhada de vídeos
e/ou músicas, etc. Até mesmo as onomatopéias inseridas na tela entre um soco e outro na
extinta série do Batman exibida na televisão durante os anos 60/70 pode exemplificar a
integração de linguagens e suportes comunicativos, em que um recurso bastante explorado
nos quadrinhos é utilizado para ilustrar cenas que ocorrem num suporte audiovisual, e que
por sua vez, adapta aventuras de uma personagem surgida no próprio quadrinho. Vale
ressaltar que estamos nos referindo a obras que, no caso específico desse estudo, trazem um
hibridismo em relação à estrutura de sua montagem, utilizando suportes distintos numa
atuação harmônica para a composição da obra final. Não estamos nos referindo
necessariamente à construção de sentidos, uma vez que, nesse caso, precisaríamos
considerar até mesmo a elaboração de um texto que traz as marcas do hibridismo em sua
confecção. Assim, na relação quadrinhos-literatura que será destacada a seguir, o que
procuraremos observar são aquelas obras que, em sua elaboração apresentam trechos
expressos pela linguagem literária e outros pela narrativa quadrinizada.
Mais uma vez, entretanto, percebemos que há poucos exemplos dessa forma de
interação, tanto em Língua Portuguesa quanto em âmbito mundial. As duas formas de
expressão artística, que tanto oferecem em termos de comunicação e expressão, se
encontram, numa atuação conjunta, apenas em algumas obras.
162
Também aqui teremos uma gradação, só que dessa vez no que diz respeito à
participação das duas formas de expressão na construção narrativa: em alguns casos, há
uma relação mais auxiliar de um dos suportes em relação ao outro, enquanto em outras
situações, tanto literatura quanto quadrinhos contribuem de forma conjunta para a
construção da obra. De certo que é possível encontrar em uma mesma obra, diferentes
formas de interação (mais auxiliar em alguns momentos e complementar em outros),
mas o que será levado em consideração para esse estudo, é a preponderância de
determinadas características, permitindo reconhecer de que forma a relação entre os
meios artísticos se manifesta de uma maneira geral na obra final.
a) Quadrinhos – ilustrando o literário
No livro Confronto Mortal de Rosana Rios, literatura e quadrinhos integram a
estrutura da obra, sendo que é a linguagem literária o fio condutor da estória, e os
quadrinhos surgem pontualmente, apenas em alguns momentos para auxiliar na
construção narrativa, ora acrescentando elementos ora ilustrando trechos narrados pela
literatura. A quadrinização ao longo da obra é feita por Getúlio Delphim, que apresenta
em traços mais realistas, os cenários e personagens descritos no texto literário.
A personagem principal é Edson (ou Déo), um jovem adolescente desenhista de
quadrinhos. Ele é o narrador em 1
a
pessoa dos fatos que aconteceram e que envolvem um
antigo personagem de quadrinhos, o Loh, ou Biker, um ciclista de um mundo devastado,
163
habilidoso com o chicote e o punhal, e que de certa forma adquire vida própria e passa a
controlar e a matar seus desenhistas ao longo do tempo. Percebendo tal fato e contando
com a ajuda de sua namorada Janaína e outro desenhista experiente chamado Jan, Edson
coloca a personagem que criara tempos atrás, o índio Acauã, que tem o poder de se
transformar em ave quando toca a terra, para combater o Loh nas páginas dos quadrinhos.
Porém, enquanto as personagens se enfrentam, aqueles que os desenham tem sua energia
sugada.
A função ilustrativa/complementar dos quadrinhos na obra pode ser percebida em
vários trechos, como quando Acauã é apresentado. Inicialmente Edson descreve a
personagem que criará e na seqüência os desenhos quadrinizados ilustram a evolução da
personagem, da prancheta de desenho à sua transformação em ave (Fig. 72):
[...] Já fazia tempo que eu inventava hqs e desenhava tiras; mas Acauã era um
personagem mais forte (...) Os primeiros desenhos eram tímidos, eu não era lá
essas coisas em anatomia humana. Mas desde o princípio ele teve a aparência
indígena e o poder de se transformar em ave quando se concentrava e tocava a
terra (pág. 12).
164
Fig. 72 - Os quadros e desenhos sobrepostos dão agilidade e movimento ao trecho. O esquema da figura de
Acauã e sua transmutação em ave são revelados pela figura das mãos que aos poucos viram garras, como num
movimento em câmera lenta.
Em outro trecho, quando nos é contado a morte de um dos desenhistas do Biker,
também temos os quadrinhos ajudando a narrativa literária a compor a cena:
Na verdade mais adivinhei que li o artigo. Contava como um dos mais
conhecidos artistas dos quadrinhos italianos agira de forma estranha nos últimos
meses, depois que começara a desenhar um personagem americano, o Biker. (...)
só me impressionei com seu suicídio: jogara-se do alto de um edifício (pág. 71).
165
Na narrativa em quadrinhos que se refere ao mesmo trecho, vemos a
complementação das informações fornecidas pelo texto literário: o assassinato praticado
pelo Biker (Fig. 73).
Fig. 73 - O quadrinho explicita elementos que estão subentendidos no texto literário: a ação assassina do
Biker.
No combate final entre Acauã e Loh, os quadrinhos assumem a narrativa, numa
referência metalingüística ao próprio suporte, uma vez que a luta é realizada por
personagens de quadrinhos e ocorre justamente no espaço de uma HQ. A narrativa literária
inicia a descrição do confronto, quando os dois desenhistas, Déo e Jan, começam a
desenhar respectivamente as personagens Acauã e Loh (págs. 74 e 75):
166
Ele [Jan] tomou sua lapiseira de grafite azul e começou a traçar uma cena. Naí
imediatamente rabiscou um cenário urbano e me passou o papel. Soube o que Jan
quisera dizer com a impaciência de Loh. Acauã saiu de meu lápis apressado,
ansioso, como se estivesse apenas esperando que a ponta encostasse na folha.
Desenhamos muitos e muitos quadrinhos. Nos dele, Loh rodava pela cidade
deserta, furiosamente, à procura de alguém. Nos meus, Acauã se esgueirava entre
escombros fumegantes tentando não fazer barulho. [...] Não criávamos nada:
éramos apenas intérpretes dos HQs. Haamos nos colado a Acauã e a Loh. [...]
Tínhamos transposto completamente os portais. Agora nos movíamos e
respirávamos na dimensão dos HQs.
A partir daí, a estória continua nos quadrinhos. A forma de transição dos quadros, o
uso de onomatopéias e de linhas de movimento e a utilização de planos variados dão a
impressão de dinamismo e agilidade, o que se coaduna com o episódio narrado: uma luta
mortal (Fig. 74).
167
Fig. 74 – No quadrinho, o Biker, ao revelar que apenas um deles irá sobreviver, também se refere aos
desenhistas que tem suas energias tomadas pelas personagens que criam naquele momento (e assim como
elas, sofrem mortalmente com o combate nas pranchetas de desenho).
Após o trecho da luta entre as personagens dos quadrinhos (com a derrota do Biker)
a linguagem das HQs surge apenas em mais alguns momentos na obra e de forma
ilustrativa ao texto literário. Essa forma de composição, por sua vez, ainda remete à obra
ilustrada, em que os trechos quadrinizados mais ilustram o texto literário do que contam ao
longo da estória. De certo que, no momento chave, quando da luta entre as personagens, a
narrativa em quadrinhos, coerentemente, assume a condução dos fatos. Contudo, apesar de
pouco usado ao longo da narrativa e de assumir função co-referencial ao literário, os
quadrinhos ajudam na composição da obra, ainda que, na maioria das vezes, de forma
168
auxiliar. Em um uso mais complementar, temos o exemplo seguinte, em que há uma
atuação conjunta da literatura e dos quadrinhos numa mesma obra.
b) HQ e literatura: complementaridade narrativa
A obra Pega pra Kaput de Josué Guimarães, Moacyr Scliar, Luis F. Veríssimo e
Edgar Vasques, feita no início da década de 70, traz, além da linguagem verbal, que já vem
com a marca da pluralidade uma vez que é realizada por várias mãos, a narração
quadrinizada de partes da estória, nesse caso, quando o trecho é produzido pelo autor de
quadrinhos Edgar Vasques. Os textos escritos por autores diferentes se integram de maneira
unificada e a narrativa quadrinizada se insere naturalmente na obra.
O humor, traço marcante da obra, já vem explicitado no próprio título que remete à
expressão popular “pega pra capar”, cuja significação literalmente, seria “pegar para
castrar”, mas que popularmente está associada à idéia de confusão, tumulto, briga, etc. No
título, a palavra capar é substituída pelo termo alemão Kaput que, segundo definição do
escritor Curzio Malaparte (1985, p.3) em seu livro Kaputt (grafado com dois t), significa
“quebrado, que se fez em pedaços, que foi à breca”. O livro de Josué Guimarães e
companhia engloba em seu enredo grande parte dessas significações, na medida em que
traz em sua trama operação de castração, confusão, perseguições, brigas e muito mais.
169
No enredo, nos deparamos com uma estória inusitada: Hitler é operado por um
prisioneiro judeu que é médico, e tem o seu testículo que, a propósito, era o único, pois
Hitler tinha nascido apenas com um, retirado e guardado em um vidro de conserva. Na
verdade Hitler queria fazer uma circuncisão, para poder se disfarçar de rabino. Com o
desfecho da guerra o vidro, com seu “precioso” conteúdo, é extraviado e vem parar em
praias brasileiras em plena época da ditadura. Ele acaba sendo encontrado por uma inocente
dona de casa que, ao abrir o vidro, vê sua vida se modificar através de uma maldição que a
persegue: ao abrir qualquer coisa, uma catástrofe acontece. A confusão começa quando
alguns remanescentes do regime de Hitler vêm ao Brasil para recuperar o vidro a qualquer
custo.
A narrativa literária dos demais autores convive igualitariamente com a narrativa
quadrinizada de Edgar Vasques, produzida em preto e branco, com traços estilizados. Aliás,
vale destacar que não há uma delimitação, no que diz respeito à narrativa literária, de quem
escreve qual parte. Os quadrinhos não surgem simplesmente para ilustrar o texto, mas para
inserir novos trechos ao enredo, numa relação complementar.
Assim, na página 21, após sabermos que Hitler será operado por um médico judeu,
temos, na seqüência seguinte, a narrativa quadrinizada que continua a estória e narra a
operação. Em cena, observamos o médico operar Hitler, ação resumida no último quadro da
página, através da posição sugestiva da personagem e das onomatopéias que intensificam a
ação (Olé, Cort). As linhas de movimento que acompanham o braço do médico mostram
que ele acabara de cortar o testículo de Hitler. Uma figura interessante que surge na
170
narrativa em quadrinhos é uma pequena abelha que observa e comenta as cenas, como um
alter-ego do narrador (Fig. 75).
Fig. 75 – Na seqüência, o médico pensa se tratar de uma circuncisão em um bebê. Nas ilustrações, as
linguagens verbal e não-verbal se revelam, na maioria das vezes, complementares, em que cada uma traz
informações para compor a narração.
O resultado da operação é mostrado logo a seguir: Hitler fica sem os testículos (Fig.
76). A figura do ditador é introduzida na cena metonimicamente pelo desenho de seus pés.
171
Fig. 76 – As gotas na testa de Morell denunciam o fiasco da operação.
Na página 54, há outro exemplo da inserção da linguagem quadrinizada na estrutura
narrativa. No texto literário que antecede os quadrinhos, temos o diálogo entre o Dr. Hans
Mayer, clínico alemão que fugira dos nazistas durante a guerra, e Moysés, médico e
investigador de ciências ocultas. Eles comentam justamente sobre o vidro e seu misterioso
conteúdo (pág. 53):
Mas Hans Mayer não queria falar sobre política. Apontou para o vidro que
Moysés lhe trouxera, e que estava sobre a mesa, entre os potes de geléia. Ainda
fechado.
_ Eu já lhe contei alguma vez sobre uma certa peculiaridade anatômica de Adolf
Hitler?
_Não, Hans. Qual?
_Os testículos. Ele...
172
A narrativa literária é então interrompida, e os quadrinhos continuam a contar a
estória daquele ponto. A transição é feita de forma fluente, sem que se perca o ritmo da
narração. Após a inserção de um único quadro ilustrando o rosto de Mayer em close, somos
introduzidos numa seqüência de ações que culminam com o roubo do frasco (Fig. 77).
Um anão, integrante do grupo que tenta resgatar o testículo de Hitler, é então
capturado pela governanta do Dr. Hans Mayer. As ilustrações mostram a reação do anão ao
ser capturado e seu espanto ao reconhecer o vidro e seu conteúdo. A utilização de símbolos
para representar palavrões, recurso bastante comum nos quadrinhos, é feita de forma
humorística, pois o autor faz uso de figuras nada comuns para essa forma de representação:
lagartixa, suástica nazista, etc. Tal fato se dá porque, como é afirmado, não se trata de
qualquer palavrão, mas os proferidos por um “anão alemão”.
173
Fig. 77 – O espanto do anão no terceiro quadro é representado por um enorme sinal de exclamação.
Ao final do livro, num diálogo metalingüístico com a própria obra e seus autores,
Vasques encerra a estória. É importante ressaltar que o diálogo interno entre os autores e a
obra em si já se iniciara em trechos anteriores, pela narrativa verbal, quando a personagem
Gudinho, professor aposentado de contabilidade e vizinho de Dona Rachel, a senhora que
encontrara o vidro anos atrás e o abrira por engano, encontra-se com os autores-
personagens do livro em um vôo. Na página 120, o trecho que antecede a narrativa
174
quadrinizada cita os três escritores-personagens, responsáveis pelos trechos da narrativa
literária da obra, no momento em que uma das personagens do livro pega um avião:
Platão entrou no avião, sentou-se, inquieto. Já na sala de espera tivera a
atenção atraída para os três homens – os dois de barba, e o outro. Perguntou à
aeromoça à respeito. São escritores, ela dissera, mas Platão continuava
desconfiado, e mais desconfiado ficou ao ver que os três sentavam atrás dele.
[...]
O avião acabava de decolar. Platão levantou-se, foi até a porta dos fundos e –
antes que a aeromoça conseguisse detê-lo – abriu-a e saltou.
A partir daí, o quadrinho continua a última parte da estória. Na seqüência que se
encaminha para o final, vemos caricaturalizados, Scliar, Veríssimo e Josué. Em um
avião eles discutem o destino final das personagens do livro. No último quadro, a
imagem do vidro com seu precioso conteúdo, perdido no meio do cerrado e “olhando
zombeteiro” para o avião onde se encontram os autores, sugere ironicamente que a obra,
e a maldição que acompanha o vidro, se voltam contra seus próprios criadores (Fig. 78).
175
Fig. 78 – É a linguagem verbal que, na seqüência final, fornece as informações necessárias para que
compreendamos o desfecho irônico da estória.
Os traços estilizados de Vasques se coadunam com o texto bem-humorado dos
outros autores, fluindo normalmente, o que revela a força comunicativa dos dois meios e as
diversas possibilidades inter-relacionais que se pode estabelecer entre ambos. A interação
do leitor com a obra e o aspecto lúdico presente na mesma se dá naturalmente, na medida
em que a transição de uma forma de narrativa para outra ocorre de maneira fluente.
176
3.3.3 Intercruzamentos narrativos
As formas de relação que podem ser estabelecidas entre os quadrinhos e a literatura
não se resumem a transposições de obras literárias para as HQs. A adaptação de obras em
quadrinhos ou elementos oriundos do mesmo para a literatura, apesar de pouco comum,
também gera inúmeras formas de interação, como pudemos verificar. Assim como ocorre
na adaptação do material literário para os quadrinhos, as obras produzidas no movimento
contrário apresentam uma gradação em que podemos ter desde uma aproximação até um
distanciamento do texto-base. Na paródia que Scliar faz do famoso Capitão Marvel temos
um exemplo de como o diálogo mais distanciado entre a obra literária e os quadrinhos pode
ocorrer.
Os recursos oferecidos pelos quadrinhos, e que hoje é amplamente compartilhado
com outros suportes, como a televisão e o cinema, revelam como a arte das HQs, como
toda expressão artística, produz elementos que passam a fazer parte de determinado cânone,
tornando-se consagrado para certo público. Capitão Marvel ou Shazam faz parte do
universo dos heróis com poderes incomuns, e a sátira de Scliar trava um diálogo com toda
uma tradição, numa forma de questionar, inovar e até mesmo homenagear tais elementos.
Por meio do humor, o autor estabelece uma “ponte” que vai além da personagem, chegando
aos próprios cânones dos quadrinhos.
Tal fato também revela o modo como a sociedade e a cultura de uma maneira geral
produzem e se relacionam com determinados elementos da tradição. Nos quadrinhos,
grande parte dos cânones que transitam em seu universo está ligado à história do seu
177
surgimento e expansão. Foi nos EUA que as HQs se consolidaram e encontraram uma forte
indústria de produção e distribuição, daí vir desse país, grande parte dos elementos de
tradição das HQs que conhecemos atualmente, sendo um dos principais deles, os super
heróis.
No obra Livros de Magia, ao contrário do que ocorre no conto de Scliar, a
transposição literária procura traduzir de forma fiel o universo apresentado na HQ. Nesse
caso, é a linguagem verbal que corporifica a visualidade presente na obra-base. Tanto a
satirização de Scliar quanto a adaptação de Carla Jabonski apresentam elementos que
exploram diferentes formas comunicativas, uso variado dos recursos textuais para
representar elementos oriundos da visualidade dos quadrinhos e, principalmente, as
possibilidades comunicativas dos quadrinhos que, enquanto arte expressiva, fornece
material que pode ser usado também para o desenvolvimento de obras literárias.
Já a participação dos quadrinhos e do texto literário para a criação de uma obra
conjunta apresenta outra proposta de construção. A gradação agora se apresenta quando
verificamos a participação dos dois meios expressivos na composição da narrativa final.
Em alguns casos, um dos meios assume uma posição submissa em relação ao outro, como
ocorre no livro Confronto Mortal, em que a linguagem quadrinizada, em grande parte da
obra, surge de maneira auxiliar ao texto literário. Em Pega pra Kapput, por sua vez, no
qual tanto os quadrinhos quanto o material literário atuam de maneira unificada para
construir a estória final, a relação que se estabelece entre os dos dois meios é de
complementaridade, em que cada um ajuda a contar a estória.
178
CONCLUSÃO
A história em quadrinhos em sua relação com o material literário tem produzido
obras que apresentam uma grande diversidade de formas de composição, como pudemos
observar. O quadrinho, por seu lado, apresenta na união entre as linguagens verbal e não-
verbal, maneiras próprias de construir narrativas, fato, aliás, que o aproxima do próprio
“fazer” literário, cuja narratividade é uma de suas principais marcas. Nesse sentido, vale
destacar que ao se refazer o caminho histórico do encontro entre as linguagens visual e
verbal, percebemos que tanto uma quanto outra tem sido veículo eficiente para as
sociedades contarem suas histórias ou feitos e registrarem suas experiências de vida desde
os tempos das cavernas.
Nos quadrinhos, é a união entre as linguagens do olhar e da palavra que propicia a
organização do código narrativo, cujos elementos fazem parte da estrutura de qualquer
narração, independente do suporte que a veicule. A materialização dos elementos narrativos
como personagem, espaço, tempo, etc., é expressa por meio da visualidade imagética nas
HQs, aspecto importante de sua constituição e que será vital para o diálogo com o material
literário que, por sua vez, revela recursos próprios de composição, organizados pela
linguagem verbal.
A intersecção entre esses meios se dá através de diferentes maneiras de elaboração,
como foi destacado ao longo desse estudo. A contribuição de tais diálogos para a cultura
atual, por sua vez, reside nas várias possibilidades que eles podem oferecer, dependendo da
179
arte com que forem realizados. Nesse sentido, destaca-se a possível “releitura” de aspectos
da tradição, trazendo-os para novas chaves, contextos e interpretações, oferecendo
elementos para enriquecer o processo comunicativo, com múltiplas leituras e usos, e não
nos referimos apenas às pedagógicas, mas também à fruição. O que se observa nos
diferentes diálogos que se estabelecem entre os meios é que, quanto mais interativa se der a
relação entre os quadrinhos e o material literário, ou quanto mais “aberta” se mostrar essa
relação à variadas formas interpretativas, maiores são as possibilidades de interação com a
obra final. Portanto, uma adaptação mais didatizada, que faz uso burocrático dos recursos
dos quadrinhos e da visualidade inerente ao mesmo, corre o risco de se tornar pouco
eficiente na interação com o leitor.
As obras destacadas ao longo desse trabalho apresentam várias propostas de diálogo
o que, conseqüentemente, resulta em diferentes formas de interação com elementos
oriundos da tradição cultural. É o que foi visto nas análises que trazem desde obras em que
o diálogo serve como facilitador de leitura até aquelas em que são criados textos
inovadores, seja nas HQs ou na literatura quando dialoga com os quadrinhos, seja na
interação dos dois suportes.
Na adaptação de A Moreninha para os quadrinhos o que se percebe é uma busca por
aproximar o leitor dos clássicos. Na obra, a linguagem das HQs se subordina à obra
original, guia principal da criação. Em Gaetaninho também é possível identificar o mesmo
objetivo, apesar de haver um maior uso da visualidade presente nos quadrinhos, o que dá
mais dinamicidade à obra e a torna mais ágil e próxima do leitor que se identifica com tal
180
visualidade. Já propondo a inserção de elementos novos à obra-base, Lusíadas 2500 oferece
uma nova forma de interação com o poema épico de Camões, agora transformado numa
ficção científica. Na mesma linha, porém realizado de outra maneira, a quadrinização de
Branca de Neve, estabelece uma relação diferente com o conto tradicional, que passa a ser
representado como um jogo de peças, um painel fotográfico. Tanto Lusíadas 2500 quanto
Branca de Neve se configuram como adaptações criativas que não se limitam a reproduzir o
texto-base, mas integrar a ele outras formas de concepção. Algumas das produções
realizadas nessa linha também revelam o objetivo de aproximar a obra clássica do leitor
moderno. A eficiência de tal intento, entretanto, vai depender do modo como é feita a
inserção de novos aspectos ao enredo original e qual a fluência do uso dos recursos do novo
suporte.
No âmbito dessa tendência, tivemos contato com narrativas em quadrinhos que,
dialogando com o material literário, alteram o texto-base com elementos oriundos de novas
chaves (humor, terror, suspense, etc.), permitindo assim uma maior interatividade com os
clássicos, o que produz inovações e questionamentos dos mais diversos. Na paródia de O
Patinho Feio ou nas aventuras protagonizadas pelas personagens da turma de Níquel
Náusea, o humor dá a tônica para a desconstrução de obras clássicas dos Contos Infantis. É
por meio do humor que cânones tradicionais da literatura são questionados e renovados.
Em outra chave (terror), o diálogo entre a personagem dos quadrinhos, Sandman e a obra
de Shakespeare, Sonhos de Uma Noite de Verão, colocam frente a frente elementos
integrantes da tradição dos dois meios.
181
Num movimento contrário, o do elemento literário (verbalização, diálogos, etc.) que
se apropria de recursos, personagens e outros aspectos das HQs, temos em geral a
desmistificação de figuras consagradas, como é o caso do conto de Scliar, Shazam, em que
o Capitão Marvel e seus superpoderes são satirizados pela narrativa verbal, por meio de um
diálogo em que um elemento chave dos quadrinhos (o super herói) é desconstruído pelo
humor, pelo riso, um dos processos mais eficazes para “dessacralizar o sagrado”. Os Livros
da Magia revelam, por sua vez, uma adaptação pouco comum de obra em quadrinhos para
a literatura, na medida em que aponta para uma forma de pastiche, que procura reproduzir a
obra original na íntegra, transportando por meio da linguagem verbal, toda a visualidade
dos quadrinhos.
No sentido de mostrar que as possibilidades interativas entre os dois suportes não se
esgotam em adaptações e diálogos entre os textos, foram apresentadas obras que resultam
do entrelaçamento das duas linguagens: a dos quadrinhos e a da literatura. Em Confronto
Mortal, o texto verbal literário se desenvolve com a ajuda da linguagem quadrinizada para
contar a estória. Já em Pega pra Kapput, os quadrinhos surgem de maneira complementar
ao texto literário e narra, juntamente com este, trechos da narrativa. Tais formas de
interação revelam quão ricos podem ser os diálogos entre obras e suportes, permitindo
novas possibilidades de integração do lúdico e propondo outras maneiras de leitura.
Apesar de tantas possibilidades comunicativas que o diálogo entre os quadrinhos e o
material literário oferece, como elencado até aqui, temos ainda pouca produção, divulgação
e consumo das obras que realizam tal intento. De certo que foi ampliado ao longo dos anos
182
(falando-se especificamente na produção nacional) o reconhecimento da HQ como recurso
pedagógico, porém na escola, instituição oficial que homologa o uso dos quadrinhos como
ferramenta de ensino-aprendizagem, a concepção pedagógica que prevalece é aquela que vê
nas HQs um recurso auxiliar para o aprendizado, não reconhecendo nele, sobretudo no
diálogo com o literário, uma forma autônoma de leitura, daí seu uso estar restrito, nesse
caso, à mediação entre o leitor e as obras tradicionais da literatura. O que se percebe,
portanto, é que a sociedade ainda carece de um conhecimento mais profundo sobre o
quadrinho e as possibilidades comunicativas que ele oferece.
O quadrinho, meio de comunicação de massa e importante produto da indústria
cultural, apresenta forte apelo visual e uma linguagem própria, além de ser uma arte que
apresenta múltiplas formas de composição. Na produção de língua portuguesa, sobretudo
no Brasil, a produção de obras em quadrinhos que realizam o diálogo com o literário aponta
para uma aplicação mais pedagógica, entretanto, sua função não se restringe ao uso didático
como instrumento de facilitação e mediação entre o leitor e as obras clássicas. Ele também
possibilita a fruição. Na verdade o quadrinho apresenta novas possibilidades de criação de
textos e novas formas de leitura. É uma arte que, ao contrário do que vulgarmente se pensa,
precisa ser apreendida e compreendida. A HQ é um meio que pode servir a muitos fins,
como o de despertar um olhar criativo, o raciocínio rápido, a concatenação de idéias, o
domínio de técnicas variadas de composição e da exploração do visual. Pode ser um meio
de formação de leitores, não passivos como meros receptores, mas ativos, colaboradores
decisivos no processo de decifração da leitura ou de construção de novos textos.
183
Nosso trabalho, portanto, pretende ser uma contribuição eficaz para a extensa
caminhada no processo de conhecimento das múltiplas possibilidades oferecidas pelos
quadrinhos em sua relação com o material literário. Esperamos que nosso estudo se junte a
muitos outros que venham trazer mais elementos para, inclusive, questionar e inovar o que
até então conhecemos, possibilitando assim, o reconhecimento e a expansão das HQs como
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184
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Fig. 2 - Pág. 18. Imagem do Parque Nacional da Serra da Capivara, Piauí. FUNDHAM-
Fundação Museu do Homem Americano. Reproduzida do site
www.fumdham.org.br/fotos/pintura01.jpg
Fig. 3- Pág. 20. Imagem da Tábua de Narmer (Museu do Cairo, Egito). Reproduzida do
site: www.art-and-archaeology.com/timelines/egypt/linkimages/narmer2.jpg
Fig. 4- Pág. 23. Imagem da BibliaPauperum – blockbook, Schreiber III – Reproduzida do
site: www.content.cdlib.org/.../ft7v19p1w6_00079.gif
Fig 5- Pág. 28. Filho e filha oferecem buquet de Amon ao morto. DAVIES, Norman de
Garis. Two Ramesside Tombs at Thebes, New York: The Metropolitan Museum of Art,
1927. (Tytus Memorial Series, V. Reproduzida do site:
www.fanreal.com/tese/gal.html
Fig. 6- Pág. 29. Trecho da obra Histoires en Estampes de Topffer. Reproduzida do site:
www.fanofunny.com/topffer.gif
Fig. 7- Pág. 32. Ilustração de As Aventuras de Nhô-Quim & Zé Caipora: os primeiros
quadrinhos brasileiros 1869-1883. Pesquisa, organização e introdução de Athos Eicler
Cardoso. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002. Reproduzida do site:
www.universohq.com/quadrinhos/especial_agostini.cfm
Fig. 8- Pág. 33.
Capa do livro, A turma do Perere: as manias do Tininim de Ziraldo. São
Paulo: Editora Globo, 2007. Reprodução
Fig.9 – Pág. 49. Seqüência da HQ Dom Quixote, desenhada por Caco Galhardo. Tradução
Sérgio Molina. São Paulo: Peirópolis, 2005. pág.13 – Reprodução.
201
Fig. 10 – Pág. 49. Seqüência da HQ Grandes Clássicos DC 3: Batman Ano Um, de Frank
Miller e David Mazzucchelli. São Paulo: Panini, 2005, pág. 82 – Reprodução.
Fig. 11- Pág. 51. Seqüência da HQ Sandman no. 8, Prelúdios e noturnos: o som de suas
asa., de Neil Gaiman et al. São Paulo: Brainstore, 2000, pág.20 – Reprodução.
Fig. 12 – Pág. 52. Ilustrações do livro Narrativas Gráficas de Will Eisner. Tradução
Leandro Luigi Del Manto. São Paulo: Devir, 2005, pág. 23 – Reprodução.
Fig. 13- Pág. 54. Seqüência da HQ Ed Mort de Luis Fernando Veríssimo e Miguel Paiva.
Porto Alegre: L&PM, 1991, pág. 04 – Reprodução.
Fig. 14- Pág. 55. Seqüência da HQ Ed Mort de Luis Fernando Veríssimo e Miguel Paiva.
Porto Alegre: L&PM, 1991, pág.11 – Reprodução.
Fig. 15 – Pág. 56. Seqüência da HQ O Dobro do Cinco, de Mutarelli. São Paulo: Devir,
1999, pág.97 – Reprodução.
Fig. 16 – Pág. 57. Seqüência retirada da HQ Orquídea Negra, de Neil Gaiman e Dave
McKean. São Paulo: Opera Graphica, 2002, pág.13 – Reprodução.
Fig. 17 – Pág. 58. Seqüência do livro O menino quadradinho de Ziraldo. São Paulo:
Melhoramentos, 1989, pág.12 – Reprodução.
Fig 18 – Pág. 59. Seqüência da HQ Orquídea Negra, de Neil Gaiman e Dave McKean. São
Paulo: Opera Graphica, 2002, pág.27 – Reprodução.
Fig 19 – Pág. 60. Seqüência do livro Todo Pererê de Ziraldo. São Paulo: Moderna, 2002,
pág.19 – Reprodução.
Figs 20 e 21 – Pág. 60. Seqüência da HQ Grandes Clássicos DC 3: Batman Ano Um, de
Frank Miller e David Mazzucchelli. São Paulo: Panini, 2005, págs.121 e 122 –
Reprodução.
Fig. 22 – Pág. 63. Adaptação do Fantasma de Canterville feita por Nelson Rodrigues e
Alceu Pena, in A Guerra dos Gibis: a formação do mercado editorial brasileiro e a
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censura dos quadrinhos, 1933-64. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, pág.64 –
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Fig. 23 – Pág. 79. Seqüência da HQ A Moreninha, desenhada por Monteiro Gutemberg. Rio
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Rio de Janeiro: EBAL, 1952, págs.12 e 13 – Reprodução.
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de Janeiro: EBAL, 1952, pág.18 – Reprodução.
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brasileira em quadrinhos, desenhada por Jô Fevereiro. São Paulo: Escala Educacional,
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Fig. 33 –Pág. 93. Seqüência da HQ Contos de Antonio de A. Machado – série Literatura
brasileira em quadrinhos, desenhada por Jô Fevereiro. São Paulo: Escala Educacional,
2006, pág.4 – Reprodução.
203
Fig. 34 – Pág. 95. Seqüência da HQ Contos de Antonio de A. Machado – série Literatura
brasileira em quadrinhos, desenhada por Jô Fevereiro. São Paulo: Escala Educacional,
2006, pág.7– Reprodução.
Fig. 35 e 36 – Pág. 96. Seqüência da HQ Contos de Antonio de A. Machado – série
Literatura brasileira em quadrinhos, desenhada por Jô Fevereiro. São Paulo: Escala
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Fig. 38 – Pág. 103. Seqüência do livro Lusíadas 2500, desenhada por Lailson de Holanda
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Fig 39 – Pág. 104. Seqüência do livro Lusíadas 2500, desenhada por Lailson de Holanda
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Fig 40 – Pág. 105. Seqüência do livro Lusíadas 2500, desenhada por Lailson de Holanda
Cavalcanti. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2006, pág.96 – Reprodução.
Fig. 41 – Pág. 106. Seqüência do livro Lusíadas 2500, desenhada por Lailson de Holanda
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Irmãos Grimm em quadrinhos. Rio de Janeiro: Desiderata, 2007, pág.90 – Reprodução.
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Irmãos Grimm em quadrinhos. Rio de Janeiro: Desiderata, 2007, págs. 91, 94 e 96 –
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Fig. 46 – Pág. 114. Seqüência da HQ Branca de Neve, desenhada por Rafael Coutinho. In
Irmãos Grimm em quadrinhos. Rio de Janeiro: Desiderata, 2007, pág.91 – Reprodução.
Fig. 47 – Pág. 115. Seqüência da HQ Branca de Neve, desenhada por Rafael Coutinho. In
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Fig. 48 – Pág. 116. Seqüência da HQ Branca de Neve, desenhada por Rafael Coutinho. In
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Fig. 50 – Pág. 121. Seqüência da HQ Patinho Feio de Spacca. São Paulo: Revista Níquel
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Náusea, ano I, n º 2, pág. 27 – Reprodução.
Fig 52 – Pág. 123. Seqüência da HQ Patinho Feio de Spacca. São Paulo: Revista Níquel
Náusea, ano I, n º 2, pág. 28 – Reprodução.
Fig 53 – Pág. 124. Seqüência da HQ Patinho Feio de Spacca. São Paulo: Revista Níquel
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Fig. 55 – p.127. Tira de Níquel Náusea de Fernando Gonsales. Folha de São Paulo, 2002-
2004. Gentilmente cedida por Fernando Gonsales.
Fig. 56 – Pág. 128. Tira de Níquel Náusea de Fernando Gonsales. Folha de São Paulo,
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Fig. 61 – Pág. 137. Seqüência da HQ . Sandman no. 19, Terra dos sonhos - Sonho de Uma
Noite de Verão, de Neil Gaiman e Charles Vess. São Paulo: Editora Globo, 1991, pág.7 –
Reprodução.
Fig. 62 – Pág. 138. Seqüência da HQ . Sandman no. 19, Terra dos sonhos - Sonho de Uma
Noite de Verão, de Neil Gaiman e Charles Vess. São Paulo: Editora Globo, 1991, pág.13 –
Reprodução.
Fig. 63 – Pág. 139. Seqüência da HQ . Sandman no. 19, Terra dos sonhos - Sonho de Uma
Noite de Verão, de Neil Gaiman e Charles Vess. São Paulo: Editora Globo, 1991, pág.21 –
Reprodução.
Fig. 64 – Pág. 141. Seqüência da HQ Sandman no. 19, Terra dos sonhos - Sonho de Uma
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Fig. 77 – Pág. 174. Seqüência do livro Pega pra kaput de Edgar Vasques et al. Porto
Alegre: L&PM, 1978, pág.54 – Reprodução.
Fig. 78 – Pág. 176. Seqüência do livro Pega pra kapput de Edgar Vasques et al. Porto
Alegre: L&PM, 1978, pág.121 – Reprodução.
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