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Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais – IFCS
Departamento de História
Programa de Pós-Graduação em História Comparada – PPGHC
ANDRÉ MAIA SCHETINO
Pedalando na Modernidade:
A bicicleta e o ciclismo no Rio de Janeiro e em Paris na transição dos
séculos XIX-XX
RIO DE JANEIRO
2007
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ANDRÉ MAIA SCHETINO
Pedalando na Modernidade:
A bicicleta e o ciclismo no Rio de Janeiro e em Paris na transição dos
séculos XIX-XX
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em História Comparada, Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais, UFRJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em
História Comparada.
Orientador: Prof. Dr. Victor Andrade de Melo.
Rio de Janeiro
Novembro de 2007
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SCHETINO, André Maia
Pedalando na Modernidade: a bicicletas e o ciclismo no Rio de Janeiro e em Paris na transição
dos séculos XIX-XX / André Maia Schetino – 2007
119 folhas
Dissertação (Mestrado em História Comparada) –
Universidade Federal do Rio de Janeiro,
IFCS, Rio de Janeiro, 2007
Orientador: Prof. Dr. Victor Andrade de Melo.
1. Bicicleta 2. Ciclismo
3. Modernidade – Teses
I. MELO, Victor Andrade de (Orient.) II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,
IFCS, Programa de Pós-Graduação em História Comparada
III. Pedalando na Modernidade: a bicicleta e o ciclismo no Rio de Janeiro e em Paris na
transição dos séculos XIX-XX
FOLHA DE APROVAÇÃO
Pedalando na Modernidade: a bicicleta e o ciclismo no Rio de Janeiro e em Paris na transição dos
séculos XIX-XX
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em História Comparada, Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais, UFRJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em
História Comparada.
Aprovada em: __________________
__________________________________________________________
(Prof. Dr. Victor Andrade de Melo, IFCS/ PPGHC, UFRJ)
__________________________________________________________
(Prof. Dr. Francisco Carlos Teixeira da Silva, IFCS/ PPGHC, UFRJ)
___________________________________________________________
(Profa. Dra. Mary Lucy Murray Del Priore, Dep. de História, Universo)
À minha querida mãe, pelo apoio incondicional às minhas escolhas.
AGRADECIMENTOS
É chegado então o momento de agradecer a todos que de alguma maneira contribuíram
para a construção desse trabalho. Se a redação de uma dissertação é uma tarefa solitária, o
processo de sua construção contou com a participação de diversas pessoas em diversos lugares,
que nesse espaço recebem os merecidos cumprimentos.
Ao professor Victor Andrade de Melo um profundo e carinhoso agradecimento. Sua
orientação tranqüila, sempre objetiva, me fez perceber com clareza os caminhos percorridos até a
finalização dessa dissertação. Sua empolgação e paixão diante do trabalho certamente inspiraram
minha mudança de Belo Horizonte para o Rio de Janeiro, além de me fazer perceber como são
possíveis novas conformações no ambiente acadêmico. Agradeço por sua confiança em receber
esse novo amigo e pela oportunidade de trabalharmos juntos.
A feliz decisão da mudança para o Rio de Janeiro foi necessária para dedicar todo esforço
e empenho uma dissertação merece, e veio acompanhada da alegria de partilhar a vida acadêmica
e cotidiana com um grupo sui generis. Ao nome do professor Victor Melo se juntam os de Cléber
Dias, Maurício Drumond, Ricardo Pinto dos Santos e Álvaro do Cabo. Suas contribuições e
observações muitas delas minuciosas se encontram ao longo de todo o trabalho. Mais do que
isso, o espírito de amizade e companheirismo que se formou em torno desse grupo marca
indelevelmente nossa história. Depois de dois anos de muito trabalho e muita festa, de estudos
sobre diversos acontecimentos e presença confirmada em vários eventos, é com muita alegria que
dedico a vocês, queridos amigos, o agradecimento.
A esse grupo juntaram-se posteriormente Aline Amoedo, Vivian Fonseca, Isabela
Buarque, Juliana Garcia e Kimon Speciale, aos quais agradeço por terem, cada um ao seu modo,
enriquecido nossas discussões e trabalhos, além de alegrar e diversificar a convivência em nossa
turma.
Ao grupo de pesquisa Anima, mais um grata surpresa nesta cidade, agradeço pela
convivência e o aprendizado com pessoas muito competentes e especiais, acima de tudo,
inspiradas, apaixonadas e comprometidas com o pensar de um outro mundo.
Agradeço aos amigos Mateus Rosa e Gerson Couto, que partilharam comigo a moradia na
República do Pão de Queijo, pedacinho pequeno de Minas no coração do Rio de Janeiro, onde
encontramos a segurança e os substratos necessários para renovar nossas energias para os
desafios da vida acadêmica. Agradeço também à querida amiga Stella Rodriguez Cáceres, na
certeza de não conseguir imaginar o Rio de Janeiro sem me lembrar de sua presença e amizade.
Merecem também ser lembradas pessoas que, mesmo longe do Rio, foram importantes
para essa trajetória e para esse trabalho. Ao professor Hélder Ferreira Isayama, meus sinceros
agradecimentos. Sua amizade e confiança foram indispensáveis nessa caminhada. Agradeço
também à Marina Guedes Costa e Silva, amiga com quem tenho a satisfação de partilhar
discussões acadêmicas, inquietações e alegrias antes mesmo de imaginarmos fazer uma pós-
graduação.
E finalmente, não fazendo jus às tradições mineiras, mas reconhecendo a importância
de seu valor, meu agradecimento à minha família. Para evitar injustiças, concentro na menção de
minha mãe, meu irmão e minha irmã, toda gratidão a um extenso número de pessoas, sem as
quais esse trabalho não teria sido possível. Aprendemos a conviver na distância, e a lembrança de
vocês que sempre se constituiu em elemento de força para continuar minha empreitada em
momentos difíceis, agora se converte em satisfação e alegria.
Le vélocipède
Moitié roue et moitié cerveau,
Voici l’homme-vélocipède.
Il va, plus docile qu’un veau,
Moitié roue et moitié cerveau.
Il se rit, animal nouveau,
De Buffon et de Lacépède !
Moitié roue et moitié cerveau,
Voici l’homme-vélocipède.
Théodore de Banville, « Le vélocipède »
(Les Occidentales, A. Lemerre, 1875)
RESUMO
Essa dissertação teve como objetivo investigar, de forma comparada, a presença e o papel da
bicicleta e do ciclismo no Rio de Janeiro e em Paris na transição dos séculos XIX e XX,
buscando melhor compreender a execução do ideário de modernidade a partir de uma de suas
produções mais marcantes. A comparação entre as cidades do Rio de Janeiro capital do Império
e posteriormente da República e Paris – berço da bicicleta e do ciclismo –, nos permitiu
estabelecer as semelhanças e diferenças não só da história desse artefato, mas também dos
discursos e do imaginário sobre a modernidade nas duas cidades. Em Paris, o projeto de uma
cidade moderna estava em curso, e a bicicleta se populariza rapidamente, logo se tornando um
importante meio de transporte para a população. O ciclismo, por sua vez, se torna um dos
símbolos da identidade nacional para os França. Enquanto isso, no Rio de Janeiro percebemos
que, apesar de ações pioneiras, a modernidade se apresenta mais enquanto discurso e desejo do
que de forma efetiva na sociedade fluminense. O contexto econômico e social da cidade também
contribuiu para que a bicicleta fosse por muito tempo um artigo de luxo, reservado às elites da
cidade, e o ciclismo, por sua vez, encarado como um espetáculo ainda distante da maioria da
população da cidade. Apresentamos esse estudo em dois capítulos. O primeiro é dedicado à
modernidade, onde buscamos a caracterização desse efervescente período da sociedade, tendo
como eixo as cidades modernas as progressistas metrópoles que surgem junto a novas formas
de se pensar e relacionar com o mundo. Feito isso, no segundo capítulo abrimos espaço para um
importante aparato moderno, e para essa nova prática cultural surgida na metrópole, que
posteriormente ganha o mundo: a bicicleta e o ciclismo. Nesse sentido fazemos uma discussão
sobre o surgimento da bicicleta e das relações estabelecidas a partir desse momento: sua presença
no cotidiano das cidades de Paris e do Rio de Janeiro, sob o eixo dos esportes e do lazer.
Utilizamos como fontes para essa pesquisa os jornais da época, analisando as colunas esportivas,
anúncios, classificados, charges e crônicas, onde a bicicleta e o ciclismo estivessem
representados.
PALAVRAS-CHAVE: bicicleta; ciclismo; modernidade.
ABSTRACT
This work had as objective to investigate, in a comparative way, the presence and the role of
bicycle and cycling in the transition between 19
th
and 20
th
centuries’ Rio de Janeiro and Paris,
searching to comprehend the execution of modernity’s ideas trough one of its most important
inventions. The comparison between the cities of Rio de Janeiro – capital of the Empire end then
of the Republic and Paris the crib of bicycle and cycling –, had permitted us to establish the
similarities and differences not only about the history of this artifact, but also of the modernity’s
speeches and the imaginary on both cities. In Paris, the project of a modern city was on his way
yet, and the bicycle’s popularity increases fast, shortly becoming one of the most important ways
of transport for its population. Cycling, on its way, becomes one of the symbols of France’s
national identity. Meanwhile, in Rio de Janeiro, we perceived that, although some pioneers acts,
modernity shows itself more like a speech and desire than in a effective form on the society. The
economic and social context of the city have also contributed for the fact of bicycle become an
expensive article for a long time, reserved to cities’ elite, and cycling, fort its turn, seen as a show
still distant of the major part of population. We present this work in two chapters. The first one is
dedicated to modernity, where we show the characterization of this period of society, having as
the main object the modern cities Rio de Janeiro and Paris that rises with new ways of think
and related with the world. After this, in the second chapter we gave space to this important
modern invention, and to this new cultural practice born on the metropolis, that would spread to
the world: bicycle and cycling. On this way we discuss the appearing of bicycle and the relations
established on this moment: its presence on Paris and Rio de Janeiro day-by-day, trough sports
and leisure activities. We used as sources for this research newspapers of the 19
th
and 20
th
centuries’ transition, analyzing sports columns, advertisings, classifying adds, drawings and
chronicles where bicycle and cycling were represented.
KEY-WORDS: bicycle; cycling; modernity.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................................................. 12
Capítulo 1 – A Modernidade e seus novos aparatos: a cidade em cena............................................ 32
1.1. A reorganização do espaço .................................................................................................... 42
1.2. A reorganização dos costumes / modos de vida .................................................................... 51
1.2.1 Transportes...................................................................................................................... 55
1.2.2 Higienismo...................................................................................................................... 57
1.2.3 Esporte ............................................................................................................................ 61
Capítulo 2 – A Modernidade em duas rodas ..................................................................................... 66
O artefato ...................................................................................................................................... 70
Da velocipedia ao cyclismo.......................................................................................................... 80
Os velocemen................................................................................................................................ 97
Um passeio de bicicleta pela Belle Époque carioca ................................................................... 104
4. CONCLUSÕES........................................................................................................................... 110
5. REFERÊNCIAS .......................................................................................................................... 115
12
INTRODUÇÃO
Uma das características mais óbvias que separa a era moderna
de qualquer período anterior é seu extremo dinamismo. O
mundo moderno é um “mundo em disparada”
1
.
A opção por iniciar a apresentação desse estudo dedicado à bicicleta e ao ciclismo
fazendo menção ao caráter de velocidade e dinamismo da modernidade não poderia ser mais
oportuna. Além de marcar o contexto e indicar o período histórico no qual a bicicleta e o ciclismo
estão inseridos, traz também consigo os primeiros elementos para a discussão.
O primeiro deles é a inserção da bicicleta em nosso cotidiano. Talvez, a partir de um olhar
desatento sobre o mundo em disparada” contemporâneo, a bicicleta pareça perdida em meio aos
carros, motocicletas, e aviões, escondida em meio aos valores do supersônico, do urgente e do
instantâneo. Numa análise mais detalhada, contudo, podemos relativizar essa afirmação. A
diversidade de usos aplicados à bicicleta (passeios, corridas, transporte, deslocamentos rápidos,
viagens etc.) e a imensa quantidade de pessoas que dela se utilizam contribuem para sua presença
marcante no mundo. Tentaremos ao longo desse trabalho demonstrar que a bicicleta nasce
moderna e veloz, se constituindo em um dos símbolos do progresso e da modernidade na
transição dos séculos XIX e XX.
O segundo elemento levantado diz respeito ao dinamismo da modernidade e o desafio que
isto impõe ao historiador. No caso desse estudo, fizemos um esforço na escolha dos elementos
teóricos que abarcariam a construção de uma história da bicicleta e do ciclismo fortemente
conectada e contextualizada na modernidade. Se o dinamismo da modernidade infligiu o desafio
1
GIDDENS, Anthony. Modernidade e Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2002. p. 22.
13
a essa pesquisa, de certa forma também a tornou possível: talvez de maneira não tão veloz, o
dinamismo da modernidade também influenciou a História.
A historiografia foi durante muito tempo caracterizada pela valorização dos chamados
“grandes temas” da sociedade, como as guerras, as revoluções, a economia, a religião e os meios
de produção. Nesse sentido, outros temas, tais como esporte e o lazer, foram por algum tempo
considerados como “assuntos de menor importância” ou “secundários”, em detrimento dos
mencionados.
Foi no âmbito das tensões presentes na construção do campo historiográfico que essa
idéia foi aos poucos sendo modificada
2
. A partir do momento em que os historiadores tomam
consciência da importância de uma ampla investigação sobre diversas esferas da vida humana, o
esporte passa ganhar espaço como um dos assuntos de interesse da História. No quadro nacional,
por exemplo, houve um aumento dos estudos históricos que tiveram como temas as práticas
esportivas e de lazer
3
.
É bem verdade que, no que se refere às pesquisas históricas, as praticas esportivas e de
lazer ainda sofrem as tensões e dificuldades mais acirradas de um campo em construção, mas
salientamos que essa possibilidade de investigação vem tomando uma configuração considerável.
Alguns dados que comprovam isso são apontados por Victor Melo, que apresentada um
panorama nacional do crescimento dos estudos em História do Esporte. Segundo o autor, a
realização de eventos e congressos sobre a temática, além do diálogo com outras áreas das
ciências sociais são ações que contribuíram para a ascensão dos estudos das práticas esportivas.
2
Um bom exemplo dessas tensões é dado por Peter Burke, ao analisar a Escola dos Anales. O autor mostra como o
movimento francês trouxe para a historiografia temas e abordagens inovadoras para a época. Tais trabalhos
passaram, em escala mundial, a dividir espaço com os tradicionais estudos de História política e econômica.
BURKE, Peter. A Escola dos Annales. São Paulo: Editora UNESP, 1990.
3
MELO, Victor Andrade de. Do local ao global: por uma hisria comparada do esporte e das práticas de lazer. Rio
de Janeiro, 2006. mimeo.
14
(...) vale ainda destacar a posição da Associação Nacional de História (Anpuh), que
recentemente solicitou ao Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) a inclusão da especialidade
História do Esporte na nova tabela da área de conhecimentos da entidade
4
.
O que pretendemos com essa breve explanação sobre a pesquisa histórica das práticas
esportivas e de lazer é contextualizar esse estudo, que nasce assim como muitos outros num
campo em crescimento, onde percebemos uma série de trabalhos significativos que
contribuíram para sua constituição
5
.
Feito isso, apresentamos outra questão que contribuiu para a escolha da bicicleta e do
ciclismo como tema deste estudo: uma observação atual sobre esse objeto. Esse exercício não é
novo, sendo inclusive comum o historiador aguçar sua visão em direção ao passado a partir de
problemas, contextos ou fenômenos colocados pelo presente.
Amplamente difundido na atualidade, o ciclismo é definido sob duas formas segundo o
Dicionário Aurélio Buarque de Holanda da Língua Portuguesa: como “a arte de andar de
bicicleta” e como “o esporte das corridas de bicicletas”
6
. Como veremos no segundo capítulo, o
ciclismo surge de fato como arte, através da invenção da bicicleta trabalho de inventores e
posteriormente dos artesãos que a fabricavam e do conjunto de técnicas desenvolvidas pelo
homem para sua dirigibilidade.
Desde a invenção dos velocípedes pelos irmãos franceses Pierre e Ernest Michaux, em
1861
7
, até a evolução de sua forma atual, conhecida como a bicicleta, várias foram as maneiras
às quais o homem se relacionou e se relaciona com este objeto. Seja em passeios ou como meio
4
Ibid., p. 3.
5
Citamos como exemplo os trabalhos de PRONI, M. & LUCENA, R. (Org.) Esporte história e sociedade.
Campinas: Autores. Associados, 2002. MELO, Victor Andrade de. Cidade Sportiva. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2001. AGOSTINO, Gilberto. Vencer ou morrer: futebol, geopolítica e identidade nacional. Rio de Janeiro:
FAPERJ-Mauad, 2002.
6
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda.
Novo dicionário da língua portuguesa
. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1975. p. 323.
7
VIGARELLO, Georges. Passion Sport: Histoire d’une Culture. Paris: Textuel, 2000. p.104.
15
de transporte, seja como instrumento de trabalho ou em competições esportivas, o andar de
bicicleta essa marcante prática cultural tem seus sentidos e significados transformados pelos
sujeitos que a vivenciaram ao longo da história. A bicicleta é um invento que evoluiu, se
transformou com a humanidade, e podemos perceber na atualidade sua presença incisiva no
cotidiano das cidades.
Tal fato é trazido a luz no artigo de Benoît Lambert para The UNESCO Courier, onde faz
uma análise da importância da bicicleta para o mundo, bem como as vantagens e benefícios de
sua utilização. Cinquenta vezes mais leves do que os carros, elas são não-poluentes, ágeis,
silenciosas e saudáveis. O autor ainda aponta para a importância das políticas públicas para
utilização da bicicleta como meio de transporte. Os exemplos perpassam desde as ciclovias
dominicales de Bogotá, na Colômbia, onde 100 km de ruas são fechados ao tráfego motorizado
aos domingos, até a rede de “cidades sem carros” (car free cities), organizada pela União
Européia, em 1994. Essa rede de 60 cidades entre elas Atenas, Barcelona, Bremen, Granada,
Groinsburgo, Lisboa, Nantes, Reykjavik e Strasburgo visa o desenvolvimento de políticas para
encorajar a redução gradual do uso de carros particulares nas cidades. Ainda segundo Lambert, as
bicicletas, quando aliadas ao sistema público de transportes, se constituem em uma alternativa
inteligente para o desenvolvimento sustentável do trânsito das grandes cidades
8
.
Além do campo das políticas públicas, outros fatores exercem influência sobre a
utilização da bicicleta no contexto europeu. Em um trabalho dedicado ao ciclismo, percebemos
que a cultura do ciclismo um dos principais esportes em países como França, Inglaterra e
Holanda é um desses fatores, aliado às “ótimas condições das estradas e rígidas leis de trânsito
8
LAMBERT, Benoît. Pedal Power. In: The UNESCO Courier. Janeiro de 1998. p. 30-32.
16
que incluem o respeito aos ciclistas”
9
. Não podemos esquecer também da segurança, condição
essencial para a escolha da bicicleta para o transporte, lazer, viagens etc.
Essa cultura do ciclismo também se alia ao campo político e à organização popular.
Movimentos como o “Critical Mass”, na Europa, e a Bicicletada, no Brasil, têm como estímulo
formador a união de ciclistas militantes dispostos a tomar as ruas das cidades em manifestações
pela utilização da bicicleta como meio de transporte
10
.
Passando do panorama europeu à realidade brasileira, tomamos como exemplo a prática
do cicloturismo
11
, que nos aponta um quadro bem diferente:
As estradas em condições precárias de conservação e segurança são alguns dos fatores
desmotivantes para a prática do cicloturismo. Além disso, o digo de trânsito brasileiro
coloca os veículos automotores como “donos” das vias públicas, negando a realidade diária
de milhões de brasileiros que utilizam a bicicleta como meio de transporte, de trabalho e de
lazer. A partir do momento em que a bicicleta o tem um espaço ideal ou satisfatório de
direitos e deveres assegurados pela lei, temos também mais um fator que desmotiva a sua
utilização
12
(...)
É preciso atentar para o fato de que o digo de Trânsito Brasileiro (CTB) reconhece e
legitima a presença da bicicleta como elemento de trânsito em nosso país:
Art. 58. Nas vias urbanas e nas rurais de pista dupla, a circulação de bicicletas deverá ocorrer,
quando não houver ciclovia, ciclofaixa, ou acostamento, ou quando não for possível a
utilização destes, nos bordos da pista de rolamento, no mesmo sentido de circulação
regulamentado para a via, com preferência sobre os veículos automotores
13
.
Apesar de reconhecida pelo Estado e amparada pela lei, a realidade nos mostra a escassez
das políticas públicas para a utilização das bicicletas, ou mesmo a incipiência dessas políticas em
um país dominado pela cultura do automóvel. Mesmo assim é perceptível a presença da bicicleta
9
SCHETINO, André Maia. O cicloturismo como vivência crítica e criativa de lazer. Belo Horizonte: Centro de
Estudos em Lazer e Recreação (CELAR) – UFMG, 2006. (Monografia, Especialização em Lazer). p. 26.
10
BICICLETADA. Disponível em: http://www.bicicletada.org. Acesso em: 26 de junho de 2006.
11
Entendemos o cicloturismo como “qualquer viagem ou passeio turístico que utilize a bicicleta como meio de
transporte”. SCHETINO, 2006, op. cit., p. 37.
12
SCHETINO, 2006, op. cit., p. 27.
13
CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO, Lei N.º 9.503, de 23 de SETEMBRO de 1997.
17
no Brasil, seja em seus espaços apropriados ou em meio a tráfego intenso, seja como objeto de
lazer ou como meio de transporte de grande parte das camadas populares de nosso país, a
bicicleta invade a nossa cultura com números interessantes.
Segundo a Associação Brasileira dos Fabricantes de Motocicletas, Ciclomotores,
Motonetas e Bicicletas (ABRACICLO), o Brasil possui uma frota estimada de 60 milhões de
bicicletas, das quais 44% se encontram na região sudeste. A associação ainda faz uma
segmentação do mercado nacional, dividindo o total de bicicletas em 53% dedicadas ao
transporte (cargas), 29% de infantis, 17% destinadas ao lazer e 1% voltado ao esporte de
competição
14
.
Cabe aqui uma reflexão sobre a utilização das bicicletas: ao pensarmos na possibilidade
de muitas delas estarem sendo sub-utilizadas, ou seja, de serem adquiridas por seus compradores
e ficarem paradas em suas casas, fica claro a necessidade de aumentar os espaços e equipamentos
de lazer para sua utilização. Ou seja, muitas vezes adquire-se uma bicicleta mas não encontra-se
espaços seguros e adequados para utilizá-la. Pensando na outra hipótese, com uma frota tão
grande de bicicletas sendo utilizadas, nada mais próprio do que a oferta de espaços e
equipamentos para sua circulação com segurança e qualidade. Mesmo sem dados precisos sobre a
taxa de utilização dessas bicicletas, podemos perceber através da observação das ciclovias e
parques, e das ruas das pequenas e grandes cidades, que a bicicleta se faz presente, e de forma
incisiva.
A caracterização desse quadro nacional é necessária para sua transposição para a realidade
da cidade do Rio de Janeiro. Sem a pretensão de afirmar que a realidade da capital fluminense é
ideal ou satisfatória, percebe-se sem dúvidas que esta se situa em um estágio mais avançado do
14
ABRACICLO, Associação Brasileira dos Fabricantes de Motocicletas, Ciclomotores, Motonetas, Bicicletas e
Similares. Disponível em: <http://
www.abraciclo.com.br> - Acesso em: 11 de abril de 2006.
18
que o restante do quadro nacional. Contribuem para isso a cultura esportiva da cidade que
demonstraremos estar sempre ligada à cultura da modernidade –, fazendo da bicicleta presença
constante nas ruas, ciclovias, parques e espaços públicos.
Segundo sua Prefeitura Municipal, o Rio de Janeiro é a cidade com a maior malha
cicloviária do país, sendo 140 quilômetros de ciclovias concentradas em sua grande maioria na
zona sul, além de centenas de bicicletários espalhados pela cidade. A construção seguiu o modelo
holandês, mais especificamente da cidade de Amsterdã:
Plagiamos descaradamente seus bicicletários, adotamos regras e padrões similares,
considerando até o fato que os holandeses, diferentes dos rdicos, compartilham conosco
uma certa propensão à indisciplina
15
Mas qual a importância do panorama europeu e nacional das bicicletas na atualidade?
Voltamos então à percepção de que questões feitas a partir de análises do contexto atual podem
direcionar o olhar interessado do historiador ao passado. Com isso, os elementos apresentados
acerca da questão das bicicletas no mundo, e especialmente na cidade do Rio de Janeiro, nos
permitem algumas indagações e nesse caso, a pergunta inicial que direciona nosso olhar ao
passado.
A realidade atual da bicicleta na cidade do Rio de Janeiro, muito desenvolvida em relação
ao resto do país, instiga a investigação sobre a construção desse quadro. Apesar de importante
para o desenvolvimento do ciclismo no Rio de Janeiro, as ciclovias completaram no ano de 2007,
apenas quinze anos de efetiva construção. O mercado de bens e consumo relacionado ao ciclismo
é enorme, porém as primeiras fábricas de bicicleta foram construídas no Brasil no ano de 1948
16
.
15
PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. Ciclovias cariocas. Rio de Janeiro: Instituto Municipal de
Urbanismo Pereira Passos, 2005. p. 16.
16
Ibid., p. 19.
19
Sendo assim, qual foi o papel da bicicleta na materialidade urbana da cidade
17
, desde o seu
surgimento?
Seja em grandes capitais ou em pequenas vilas e cidades do interior, o ciclismo se faz
presente afirmando a importância da bicicleta e a sua sobrevivência junto ao processo de
modernização do mundo. Inúmeras são as possibilidades para a bicicleta, compreendendo não
as práticas de lazer bem como o desenvolvimento do esporte olímpico, organizado e
desenvolvido em diversos países. O ciclismo como modalidade esportiva se adaptou às mais
diferentes possibilidades e desenvolveu as mais variadas tecnologias para a bicicleta, dividindo o
esporte em vertentes como o ciclismo de estrada, de montanha e provas realizadas em
equipamentos construídos especificamente para esses fins, os velódromos.
Além da história da bicicleta, a minha relação com esse objeto também contribui para essa
escolha. Ele se faz presente em minha vida através de inúmeras vivências, em passeios e viagens.
Pedalando para o trabalho, para a universidade, viajando de bicicleta ou passeando, o ciclista
contempla a paisagem, sente em seu corpo as distâncias e enxerga a cidade de forma diferente.
Percebo a bicicleta como um invento revolucionário que contribuiu com o ideário de
modernidade e desenvolvimento da sociedade, que suscita uma série de questões para a
contemporaneidade, relativas a aspectos como a mobilidade, o meio ambiente e a ecologia, o
esporte e o lazer.
Esse relato traz consigo um ponto específico para a construção desse estudo. Muito se
discute sobre o papel do historiador no que concerne ao seu relacionamento com o tema ou objeto
de pesquisa. Afirmando a importância e necessidade do rigor histórico, também abordada por
17
Ao nos referirmos a materialidade urbana das cidades estamos tratando da organização do espaço da cidade bem
como os modos de vida de sua população. O assunto será também abordado no capítulo 1.
20
Paul Veyne
18
, e percebendo a importância desse rigor para a análise das fontes e do objeto de
estudo, o que pretendemos aqui é reiterar tal posição, mas chamando atenção para um aspecto
amplamente discutido nos debates sobre o papel do pesquisador. A idéia não é a de que o
pesquisador abandone suas crenças e sua história na análise de um tema, mas que o rigor
histórico aqui mais uma vez defendido contribua para que o contexto e a relação do
pesquisador com o tema sejam fatores de soma, de enriquecimento para a pesquisa. Mesmo
porque, a “neutralidade” do pesquisador é um tema controverso nas discussões sobre ciência e
pesquisa. Nas palavras de Pierre Bourdieu, “a ciência mais neutra exerce efeitos que não o são de
forma alguma (...)”
19
. Nesse sentido, minha história com a bicicleta bem como minha relação e
interesse por esse objeto se combinam, contribuindo de forma marcante para a escolha desse
tema.
A partir da idéia de abordar a história recente da sociedade através da história da bicicleta
apresento meu objetivo: proceder uma análise comparada da presença e importância da bicicleta e
do ciclismo nas cidades do Rio de Janeiro e Paris, na transição dos séculos XIX - XX.
A definição do tema trás consigo uma série de outras perguntas, indagações necessárias
para caminhar na discussão desse estudo: por que a escolha do Rio de Janeiro e Paris? Como a
invenção da bicicleta e o surgimento do ciclismo se relacionaram com o desenvolvimento dessas
cidades na modernidade, mais especificamente na transição dos séculos XIX e XX? Qual era o
contexto histórico dessas cidades nessa época, bem como as relações políticas, sociais e culturais
estabelecidas entre a prática do ciclismo e a população das cidades? Como essa prática se
incorporou no cotidiano das cidades? A vida na cidade foi influenciada e/ou modificada a partir
da prática do ciclismo? Como ocorreu esse processo?
18
VEYNE, Paul. O Inventário das diferenças. Lisoa: Gradiva, 1989. 42p.
19
BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Editora Marco Zero, 1983. p. 124
21
Tais perguntas são importantes não para a apresentação da problemática a ser
investigada como também para indicar alguns caminhos possíveis de serem percorridos para a
investigação. É interessante então, justificar as escolhas aqui apresentadas: da escolha das cidades
do Rio de Janeiro e Paris, passando pelo período escolhido, bem como as abordagens e categorias
estabelecidas para a análise comparada. Feito isso poderemos caminhar em um terreno
metodológico seguro, que nos serviu de base para investigar as questões anteriormente
apresentadas e para o alcance dos objetivos desse trabalho.
A escolha das cidades e o período da pesquisa apresentam uma rede de conexões com a
escolha do tema. As intensas relações estabelecidas entre o Rio de Janeiro e Paris são um aspecto
percebido por diversos estudos
20
. Na segunda metade do século XIX mudanças urbanas intensas
eram realizadas em Paris, integrando o espaço físico da cidade ao ideário da modernidade
capitalista: as grandes obras do Barão de Haussmann colocavam a capital francesa nos rumos da
modernidade, facilitando o desenvolvimento econômico e (des) organizando a crescente massa de
trabalhadores. Pouco tempo mais tarde, as obras de Haussmann em Paris seriam a inspiração do
prefeito plenipotenciário do Rio de Janeiro, o engenheiro Pereira Passos, para suas intervenções
no espaço físico da cidade, no início do século XX.
Do espaço físico das cidades aos costumes da população. Dos artigos de luxo importados
por lojas aos tratados comerciais. Da educação da elite carioca aos modos de vida de maneira
geral. A influência francófila era tamanha que o período que marca o início do século XX no Rio
de Janeiro ficou conhecido como Belle Époque.
20
Citamos como exemplo os trabalhos de NEEDELL, Jefrey D. Belle Époque Tropical: sociedade e cultura de elite
no Rio de Janeiro na virada do século. São Paulo: Companhia das Letras, 1993; ARAÚJO, Rosa Maria Barbosa de.
A Vocação do Prazer: a cidade e a família no Rio de Janeiro republicano. Rio de Janeiro: Rocco, 1993; e
SEVCENKO, Nicolau. O Prelúdio Republicano: astúcias da ordem e ilusões do progresso. IN: SEVCENKO,
Nicolau. A História da Vida Privado No Brasil: da Belle Époque à era do rádio. São Paulo: Companhia das Letras,
1998.
22
(...) o afrancesamento da elite carioca acelerou-se de forma dramática. Isso foi possível
graças à riqueza cada vez maior proporcionada pelo café, que tornou os contatos e o comércio
com a França mais constantes, com consequências lógicas em tudo que dizia respeito à elite e
às suas instituições
21
.
Com esse intercâmbio em diversos níveis – do econômico às práticas culturais – a
influência francesa chegava ao Rio de Janeiro através de suas elites, contribuindo então para a
formação de seus modos de vida. Tal processo coloca esses costumes também em diálogo com a
cidade, incluindo as camadas populares, num jogo de tensões entre apropriação e resistência
desses valores
22
.
Muitos foram os costumes e práticas culturais que chegaram ao Brasil advindos da
Europa. Nessa gama de práticas estão inclusos os esportes e dentre eles o ciclismo. Ao estudar
os primórdios do esporte no Rio de Janeiro, mas especificamente o turfe e o remo, Victor Melo
abre o caminho para outras possibilidades, e me impulsiona no desejo de investigar a chegada do
ciclismo e seu desenvolvimento na cidade.
Para além dessas contribuições, ainda pouco se sabe sobre os primórdios desses [turfe e
remo] e de outros esportes, com exceção para o futebol, que ultimamente tem recebido
atenção crescente. Se a história da cidade do Rio de Janeiro tem sido desvendada sobre os
mais diversos pontos de vista, poucas também ainda são as preocupações no que se refere à
identificação dos esportes como um objeto importante para a compreensão da cidade
23
.
Mas como o ciclismo chega ao Brasil? Alguns apontamentos podem ser úteis para dar a
partida nessa investigação. Em um texto dedicado especificamente ao ciclismo, Melo (2005) trás
alguns indícios dessa chegada a partir de algumas fontes:
Desde o final da década de 1860 começam a circular nos jornais brasileiros os primeiros
anúncios de vendas de “velocípedes”. Mas foi mesmo a partir dos anos 1890 que começaram
a ser importadas bicicletas de Paris em escala comercial
24
21
NEEDELL, 1993, op. cit., p. 132.
22
O processo de “apropriaçãodos costumes franceses e de outros países europeus, bem como suas relações com os
modos de vida da população da cidade do Rio de Janeiro serão discutidos no capítulo 1.
23
MELO, Victor Andrade de. Cidade Sportiva. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. p. 13.
24
MELO, Victor Andrade de. Bicicleta e ciclismo. Rio de Janeiro, 2005. mimeo. p. 2.
23
A influência do estilo de vida europeu no processo de modernização do Brasil também
ocorre e pode ser percebida através da chegada da bicicleta ao país. Sendo assim, não a
bicicleta chega enquanto produto, mas também o ciclismo, enquanto prática cultural, em seus
passeios e em suas competições esportivas. Para tanto, a cidade do Rio de Janeiro se modifica,
inclusive em sua estrutura física, para receber essa modalidade.
No Rio de Janeiro, as provas eram disputadas no Velódromo Nacional (situado na Rua
Lavradio), sob responsabilidade do Velo Club, criado em 1892, sob a liderança de Francisco
Satamini, importante personagem das elites cariocas, que depois estaria envolvido com o
Clube Atlético da Tijuca (dedicado ao ciclismo e às corridas a pé)
25
.
O Rio de Janeiro vai então construindo a sua história com a bicicleta e com o ciclismo. As
questões anteriormente levantadas na análise da problemática podem então ser reforçadas nesse
momento. Além da importância de se aprofundar no contexto dessa história, compará-la com
outra realidade de um mesmo período histórico pode servir como elemento enriquecedor desse
projeto. Ao se pensar na história comparada, justifico também a escolha de Paris como a outra
cidade para compor o quadro de comparações desse estudo.
Percebemos através de algumas referências a importância do ciclismo em Paris. A história
da França com a bicicleta vem sendo construída desde a sua invenção, sendo o ciclismo o esporte
número um nesse país. A capital Paris é o berço de duas das mais importantes provas do ciclismo
mundial: o Tour de France e o Paris-Brest-Paris.
Considerada por muitos ciclistas a principal prova do ciclismo mundial, a primeira edição
do Tour de France iniciou-se no dia 5 de julho de 1903, defronte do café Reveil Matin, em
Montgeron, na periferia parisiense, e ligava as cidades de Paris, Lyon, Marselha, Bordeaux e
25
Ibid., p. 2.
24
Nantes
26
. o Paris-Brest-Paris (PBP) data de 1891 e é a mais antiga prova de ciclismo ainda
realizada, consistindo em um percurso de ida e volta entre as duas cidades, totalizando 1200
quilômetros. Atualmente é uma competição proibida para ciclistas profissionais
27
.
A invenção da bicicleta, a realização das primeiras competições e a organização do
ciclismo esportivo mostram o pioneirismo da constituição dessa prática em Paris, e podem ajudar
na investigação de sua influência sob o Rio de Janeiro, não devido à importação das bicicletas
como da incorporação das práticas competitivas e de lazer pela população.
Estão então colocadas as justificativas para escolha dessas duas cidades: Paris e Rio de
Janeiro, juntas por representarem o projeto de modernidade da sociedade dos séculos XIX e XX,
com suas distinções e similaridades. O Rio de Janeiro, principal cidade brasileira da época,
receptora das informações e bens culturais da Europa. Paris, um dos símbolos da modernidade
européia, berço do ciclismo mundial.
Outro ponto a ser pensado é a grande quantidade de usos possibilitados pela bicicleta, o
que nos coloca um problema e uma escolha difícil. No intuito de realizar uma investigação de
qualidade e cientes da grande quantidade de elementos a serem analisados, resolvemos então
limitar a análise da história da bicicleta e do ciclismo a dois eixos centrais: o esporte e o lazer.
Isso não impediu que por vezes fossem mencionados aspectos da bicicleta enquanto meio de
transporte, viagens ou trabalho, mas sim colocaram o esporte e o lazer como temas centrais
direcionadores das discussões
28
.
A escolha do esporte e do lazer como os eixos de análise desse estudo ocorreu levando-se
em consideração alguns elementos: primeiro por se tratarem de fenômenos marcantes da
26
WEBER, Eugene. França Fin de Siècle. São Paulo: Companhia as Letras, 1988.
27
PBP: site officiel du Paris-Brest-Paris. Disponível em: http://www.paris-brest-paris.org. Acesso em: 26 de abril de
2006.
25
modernidade, período no qual se contextualiza esse trabalho. Além disso, o esporte e o lazer são
fenômenos que estabelecem intensas relações, que podem contribuir para as discussões desse
estudo.
O fenômeno esportivo atual pode ser considerado um dos mais fortes e marcantes
movimentos de nossa época. Com uma imensa variedade de práticas e modalidades, jogos,
campeonatos e torneios, o esporte aparece na família, na vizinhança, nas ruas, tomando as
cidades com expressivo poder de disseminação de suas práticas, valores e regras. A conformação
desse quadro nos instiga a visitar suas origens, buscando investigar e melhor compreender suas
manifestações.
Norbert Elias e Eric Dunning destacam o caráter moderno do esporte, apontando a
Inglaterra do período da Revolução Industrial como a nação que, através da regulamentação e
apropriação de inúmeras práticas culturais da antiguidade (jogos, danças, festejos e brincadeiras),
criaria e passaria ao mundo diversos sports (palavra de origem inglesa), tais como o boxe, o
futebol, o tênis, entre outros
29
. Utilizando a comparação, o autor nos mostra que tanto nos Jogos
Olímpicos da Grécia Antiga quanto nos jogos e brincadeiras da Europa pré industrial, o ethos
dos concorrentes, as regras das provas e os próprios desempenhos diferem nitidamente, em
muitos aspectos, dos que são característicos do desporto moderno”
30
.
Também adepto do entendimento moderno de esporte, Pierre Bourdieu traz um
importante elemento para sua compreensão, o conceito de campo:
(...) o sistema de instituições e de agentes vinculados ao esporte tende a funcionar como um
campo (...) de práticas específicas que é dotado de suas lutas próprias, suas regras próprias, e
onde se engendra e se investe toda uma cultura ou uma competência específica (...)
31
.
28
A partir dessa limitação fica também a sugestão de estudos que investiguem outras práticas culturais relacionadas á
bicicleta, como por exemplo sua utilização em massa como meio de transporte das classes operárias, e os primórdios
do cicloturismo, entre outros.
29
ELIAS, Norbert; DUNNING, Eric. A busca da excitação. Lisboa: Difel, 1992.
30
ELIAS; DUNNING, 1992, op. cit., p. 195.
31
BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Editora Marco Zero, 1983. p. 137.
26
A partir então desse corpo teórico percebemos os esportes como um campo originado de
práticas culturais que foram sistematizadas na modernidade, se organizando através das mais
diversas representações possíveis, formuladas e constantemente reformuladas ao longo de suas
relações com a cultura. Ou seja, dada a amplitude dessas representações que o esporte possibilita
na contemporaneidade, várias são as formas as quais podemos percebê-lo, usando inclusive de
adjetivações para melhor explicitarmos a que tipo de prática do campo esportivo estamos nos
referindo: o esporte espetáculo, o esporte olímpico, os esportes na natureza, as práticas esportivas
de lazer, a imprensa esportiva, entre inúmeras outras nomeações e agrupamentos possíveis. Cabe
então para esse estudo compreender o fenômeno esportivo em toda a sua complexidade, não
apenas na sua constituição enquanto campo relativamente autônomo mas também em suas
relações com outras esferas da sociedade.
O esporte não pode ser encarado como único meio e fim explicativo dos contextos e das
transformações em determinada sociedade, mas pode sim, juntamente com outros objetos,
contribuir para um olhar sobre a história que leve em conta a real complexidade de todos os
campos que se relacionam nesse processo de contextualização. Não podemos isolar determinado
objeto de seu contexto histórico.
O mesmo ocorre com o lazer, um fenômeno que correntemente apresenta suas
contribuições para as análises desse estudo. As transformações nos meios de produção fizeram
com que o lazer também se configurasse como um fenômeno moderno. Ao percorrer os
diferentes comportamentos e valores atribuídos ao ócio
32
ao longo da história, Frederic Munné
aponta que o significado moderno do fenômeno pode ser melhor estudado se encaminhado
32
Os espanhóis não possuem um equivalente a palavra lazer, encontrada em línguas como o inglês (leisure) e
também como o francês (loisir).
27
enquanto prática burguesa
33
. Não obstante a isso, o lazer é hoje vivenciado e desejado por
pessoas provenientes de todas as classes sociais, movimentando uma poderosa indústria a
abarcando os mais diversos interesses culturais. Da busca da excitação em suas práticas
34
à
tentativa de definição por parte da academia dos conteúdos culturais que constituem esses
fenômenos tomamos contato com toda sua diversidade e complexidade.
Um dos estudiosos que empreende esse esforço é Camargo, que tomando como base a
classificação proposta pelo sociólogo francês Joffre Dumazedier, divide os interesses culturais do
lazer em manuais, intelectuais, artísticos, turísticos, sociais e físicos e desportivos
35
. Mesmo com
a impossibilidade de operar com essas categorias de forma rígida ao tentar enquadrar nelas
alguma prática de lazer, elas chamam a atenção para a ampla gama de vivências passíveis de
serem analisadas sob a ótica desse complexo fenômeno. Aliás, a conformação de complexos
campos de conhecimento, que desafiam estudiosos de diversas áreas a pensarem juntos parece ser
uma característica de muitos eventos advindos da modernidade, como é o caso do lazer e do
esporte.
Para além de possibilidade de lazer, e dentro da idéia de desenvolvimento e organização
presentes no ideário da modernidade, as práticas esportivas se desenvolveram de diversas
maneiras, uma delas orientada para o alto rendimento dos atletas a busca pela técnica mais
eficiente – e as disputas. Desde o surgimento do esporte moderno, muitas práticas passaram então
a ser organizadas por regras e federações, além de serem orientadas sob os valores da
performance e das competições.
33
MUNNÉ, Frederic. Psicosociologia del tiempo libre: un enfoque crítico. México: Trillas, 1980.
34
Para maiores informações sobre os sentimentos buscados nas atividades de lazer bem como sua constituição no
campo acadêmico consultar ELIAS, 1992, op. cit. (especialmente cap. 1).
35
CAMARGO, Luiz Octávio de Lima. O que é lazer. São Paulo: Editora Brasiliense, 1992.
28
A idéia da organização do campo esportivo entra em consonância com o projeto de uma
sociedade moderna, progressista, voltada para a produção e o consumo. Diferentemente da
maioria dos esportes da época de origem britânica surge na França o ciclismo, também
imbricado no/pelo contexto da modernidade.
Após uma breve contextualização de nosso objeto de estudos nos dedicamos agora ao
direcionamento teórico importante para concepção desse trabalho: os estudos em História
Comparada.
Como bem aponta Peter Burke, o método comparativo não é uma exclusividade da
História, mas sim uma possibilidade amplamente utilizada pelas ciências (ou teorias, para o
autor) sociais
36
. O próprio Burke cita como exemplo Emille Durkheim, mas também podemos
perceber a forte influência da comparação na obra de Norbert Elias e Max Weber.
Marc Bloch foi um nome importante na disseminação do método comparativo. Para
Bloch,
(...) aplicar o método comparativo no quadro das ciências humanas consiste em buscar, para
explicá-las, as semelhanças e as diferenças que apresentam duas séries de natureza análoga,
tomadas de meios sociais distintos
37
.
Por certo, várias são as formas e possibilidades de utilização do método comparativo em
estudos históricos, podendo o pesquisador optar quanto a sua forma de abordagem. Com isso os
estudos sobre História Comparada se desenvolveram, ampliando suas possibilidades, seja na
comparação de objetos de semelhante natureza e espaço temporal – preferida e indicada por Marc
Bloch ou de natureza e espaços temporal variados como sugere Marcel Detienne no
desafiador Comparar o Incomparável
38
.
36
BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
37
Apud. CARDOSO, Ciro Flamarion; BRIGNOLI, Héctor Pérez. O método comparativo na história In: _________.
Os métodos da história. Rio de Janeiro: Graal, 1983. p. 409-419. p. 409.
38
DETIENNE, Marcel. Comparar o incomparável. São Paulo: Idéias e letras, 2004.
29
Partilhamos então do ponto de vista de que implica um compromisso primeiro em aceitar
o desafio proposto pela utilização do método da História Comparada. Feito isso estaremos frente
a uma nova tarefa, que leva em conta as dificuldades e especificidades de cada estudo, em
escolher e construir o tipo de abordagem comparativa mais indicada para a pesquisa, levando em
conta seus objetivos. No caso desse estudo, a partir da apresentação do tema e das construções
teóricas feitas, fica claro a escolha da abordagem sugerida por Cardoso e Brignoli, “a comparação
a sociedades aproximadamente contemporâneas e que partilham grande número de traços
estruturais análogos, assim permitindo um manejo mais fácil e seguro do método em questão
39
.
Feita nossa escolha e caracterizada nossa linha de atuação, fica exposto o conceito de
História Comparada que dá a tônica durante o processo investigativo, bem apresentado por
Thelm e Bustamante
A História Comparada, no nosso entender, subentende mais do que uma justaposição ou uma
divisão, seja em termos do tipo de História, seja em termos dos períodos históricos. A
História Comparada é o método de pesquisa que convida a uma mudança de atitude no molde
de fazer História; é uma nova perspectiva dos pesquisadores como sujeitos em relação ao
objeto de pesquisa
40
.
A idéia dessa nova perspectiva também é perceptível nos estudos de Peter Burke e Paul
Veyne, quando falam que a relação da história com as ciências sociais contribuiria na formação
da ponte pesquisador-sujeito com os objetos. Para o primeiro fica impossível compreender o
passado e o presente sem a combinação da História com as teorias sociais
41
, enquanto o segundo
estabelece na relação de História e Sociologia, uma história que “não se limita a narrar, nem
39
CARDOSO; BRIGNOLI, 1983, op. cit. p. 415.
40
THELM, Neide, BUSTAMANTE, Regina. História Comparada: olhares plurais. Estudos Iberoamericanos. Porto
Alegre, v. 29, n.2, p.7-22, 2003. p. 22.
41
BURKE, 2002, op. cit.
30
mesmo a compreender, mas que estrutura a sua matéria recorrendo a conceptualização das
ciências humanas
42
.
No trato da História Comparada com as práticas esportivas e de lazer, algumas
possibilidades podem ser suscitadas. Ao situar a recente produção historiográfica das práticas
esportivas e de lazer, Victor Melo aponta como característica desses estudos a abordagem local
ou regional geralmente direcionada a fatos e temas específicos. Percebendo a valor desses
estudos, o autor sugere uma articulação dos estudos locais com o contexto global visando o
enriquecimento das análises
A despeito da importância dessa produção, algumas questões merecem ser levantadas: não
estaríamos perdendo a visão do “todo” em função da fragmentação das abordagens? Como
ampliar nossa visão acerca da realidade nacional sem crer que essa é simplesmente o
resultado da soma dos entendimentos locais? Como fazer dialogar a produção brasileira com
o que tem sido produzido internacionalmente? Talvez o método da História Comparada possa
nos apontar alguns indicadores para responder, ainda que parcialmente, tais perguntas
43
.
Pretendemos com o presente estudo investir nessa proposta, na tentativa de contribuir para
os estudos locais, articulando a presença do ciclismo no Rio de Janeiro com um objeto de
comparação global a presença do ciclismo em Paris. Sendo assim propomos para esse trabalho
a inclusão de um elemento de análise que consideramos diferencial: a comparação entre as
cidades do Rio de Janeiro e Paris. Tal fato nos permitiu contribuir com as abordagens locais,
enriquecendo e ampliando as fontes ou dados existentes sobre a história do ciclismo do Rio de
Janeiro através da sua comparação com a capital francesa, que passou ao mundo a cultura da
bicicleta.
Porém, essa escolha de objetos de comparação logo levanta uma questão. A disparidade
entre o acesso a fontes do Rio de Janeiro e Paris foi certamente o maior desafio desse estudo.
42
VEYNE, 1989, op. cit.
43
MELO, 2006, op. cit., p. 4.
31
Para enfrentar esse problema, fizemos uma escolha metodológica para o trabalho: assumir essa
disparidade, porém, procurando enriquecer ao máximo o corpo de fontes sobre o ciclismo em
Paris. Dessa forma, utilizamos os dados sobre a capital francesa no processo de comparação, com
o objetivo de elucidar, aclarar o processo ocorrido no Rio de Janeiro. Acreditamos que essa tenha
sido uma solução para essa dificuldade, especialmente pelo contexto do ciclismo na França. Além
da historiografia francesa sobre a bicicleta e o ciclismo encontrar-se em um patamar bem
desenvolvido, o pioneirismo e o status desse esporte na França nos permitiu encontrar as duas
cidades em estágios de desenvolvimento distintos no esporte. Sendo assim, a comparação entre
Rio de Janeiro e Paris nesse período, é também a comparação entre uma cidade onde o ciclismo
acabara de ser apresentado e outra, onde o mesmo se encontra em estágio avançado de evolução,
seja em aspectos técnicos quanto institucionais. Da mesma forma, é uma comparação entre uma
cidade onde existem certa quantidade de obras e dados dedicados à história da bicicleta e do
ciclismo, e outra onde a necessidade de investigar as fontes primárias é primordial para o
trabalho.
Dividimos esse estudo em dois capítulos. O primeiro é dedicado à modernidade, onde
buscamos a caracterização desse efervescente período da sociedade. Lugar primordial das
descobertas e idéias desse período, as cidades modernas as progressistas metrópoles surgem
junto a novas formas de se pensar e relacionar com o mundo. Privilegiando os acontecimentos em
duas das mais importantes metrópoles da época, Paris e Rio de Janeiro, buscamos apresentar os
seguintes aspectos, que se influenciam mutuamente: a reorganização do espaço das cidades, e a
reorganização dos costumes da população e o surgimento dos novos aparatos modernos. Junto a
isso, um breve panorama do contexto político e econômico das cidades na época completa nosso
esforço de contextualização do período histórico da modernidade nas duas metrópoles.
32
No segundo capítulo abrimos espaço para esse importante aparato moderno, e para essa
nova pratica cultural surgida na metrópole francesa: a bicicleta e o ciclismo. Nesse sentido
fazemos uma ampla discussão sobre o surgimento da bicicleta e das relações estabelecidas a
partir desse momento: sua presença no cotidiano das cidades de Paris e do Rio de Janeiro, sob a
orientação dos eixos centrais já apresentados – o esporte e o lazer.
Utilizamos como fontes primárias dois jornais da época: O Paiz e o Jornal do Brasil,
ambos com espaços dedicados aos fatos em torno do ciclismo. A escolha se deveu à importância
que os mesmos ocuparam na sociedade, e suas relações com os esportes. O Paiz era o jornal que
estava em circulação desde os tempos de império. Possuía uma coluna esportiva, e foi durante um
bom tempo o jornal de maior tiragem da América Latina. Já o Jornal do Brasil surge em 1891, e é
reconhecido por sua orientação moderna, progressista. Nesses jornais analisamos não a
colunas esportivas, mas também anúncios de lojas de bicicletas, classificados, charges e crônicas
nas quais a bicicleta e o ciclismo estivessem representados.
Finalmente, apresentamos de forma sintética as conclusões e considerações acerca das
análises e discussões levantadas, buscando também apontar caminhos e possibilidades de novos
estudos que possam contribuir com a temática.
33
CAPÍTULO 1
A MODERNIDADE
44
E SEUS NOVOS APARATOS: A CIDADE EM CENA
A cidade é o espaço da história porque é ao mesmo tempo
concentração do poder social, que torna possível a empreitada
histórica, e consciência do passado
45
.
Ao pensarmos nas formas de organização da sociedade ao longo da história, percebemos
nessa frase do intelectual francês Guy Debord o papel central ocupado pelas cidades desde a sua
existência. Nas guerras, nas epidemias, nas festas, no próprio desenrolar da vida cotidiana, a
cidade é o espaço da história e da sociedade, dos homens e mulheres organizados em sua
coletividade. Talvez por isso, estudiosos de diversas áreas das ciências humanas e sociais
busquem nas cidades os nexos explicativos para a construção do conhecimento acerca da
humanidade.
(...) se buscarmos as chaves para a compreensão do desenvolvimento que conduz até o seu
presente, será provavelmente nas suas cidades, no papel que tiveram as suas sociedades
urbanas e as culturas que criaram, onde urge procurá-las, dado que o mundo rural foi o que se
manteve mais estável, e as cidades foram as que desencadearam as mudanças, partindo tanto
dos impactos externos que receberam quanto das ideologias que elaboraram com elementos
próprios e estranhos
46
.
Para o exercício de organização do pensamento acerca da modernidade e seus novos
aparatos, escolhemos então a cidade especificamente as metrópoles do Rio de Janeiro e Paris
como eixo norteador desse capítulo. As metrópoles foram, na modernidade, o local de
44
Vários são os estudiosos que se dedicam ao estudo da modernidade, tais como Anthony Giddens, Fredric Jameson
e Zigmund Bowman. Trabalharemos nesse estudo com o referencial teórico de Anthony Giddens, principalmente por
este trazer questões referentes aos primeiros momentos da organização social moderna, comparando-a com
sociedades pré-modernas. Para Giddens, modernidade “refere-se a estilo, costume de vida ou organização social que
emergiram na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua
influência” GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. São Paulo: Editora UNESP, 1991, p. 11.
45
DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 116.
46
ROMERO, José Luis. América Latina: as cidades e as idéias. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004, p. 41.
34
efervescentes transformações que, no contexto da Revolução Científica e Tecnológica
47
,
trouxeram ao mundo novas possibilidades e encaminhamentos para os modos de vida e as
relações humanas, entre eles a bicicleta e o ciclismo. Como ressalta Nicolau Sevcenko:
Nenhuma impressão marcou mais fortemente as gerações que viveram entre o final do século
XIX e o início do XX do que a mudança vertiginosa dos cenários e comportamentos,
sobretudo no âmbito das grandes cidades
48
.
A partir da idéia apresentada de “cenários e comportamentos”, delimitamos nosso campo
teórico, fazendo com que o estudo da modernidade na cidade seja apresentada sob dois eixos
fundamentais: a reorganização do espaço e a reorganização dos costumes / modos de vida. Esses
dois eixos de análise foram aqui separados apenas com o objetivo de organização da escrita e
pensamento. Entendemos, pois, que no desenvolvimento das cidades modernas esses eixos são
indissociáveis e se retroalimentam.
Sendo assim, não é nosso interesse aqui investigar se a reorganização do espaço da cidade
desencadeia uma reorganização dos costumes da população ou vice-versa. Ao contrário,
percebemos que essa questão não se faz importante frente as possibilidades de captar a riqueza
dessas transformações diversas na construção do ideário da modernidade, seja nos modos de vida
da população, seja na materialidade urbana das metrópoles.
Além disso, um outro elemento que exerce influência sobre e relação espaço/costumes são
os novos materiais e aparatos que surgem em decorrência dos avanços científicos e tecnológicos
da época, permitindo então uma nova orientação espacial nas cidades, bem como transformações
no cotidiano e nas práticas culturais de seus moradores.
47
Também chamada em alguns estudos de Revolução Técnico-Científica ou de 2ª Revolução Industrial, corresponde
ao período iniciado no segundo quartel do culo XIX até o fim do mesmo, onde diversos avanços na ciência e na
tecnologia possibilitaram a descoberta de vacinas, novos materiais e inventos.
48
SEVCENKO, Nicolau. A Capital Irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio. IN: SEVCENKO, Nicolau. A
História da Vida Privada No Brasil: da Belle Époque à era do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.
451.
35
Todas essas transformações ocorridas no âmbito das cidades não devem ser
compreendidas per si, mas sim dentro do contexto histórico e político de cada uma. Por isso
buscamos apresentar, como tema transversal à modernidade carioca e parisiense, um pouco do
funcionamento de seus respectivos Estados e instituições políticas. Tal contexto servirá como
pano de fundo para a série de transformações apresentadas nas categorias ao longo desse capítulo.
Apesar de tratar do mesmo período histórico, Brasil e França apresentavam contextos político-
econômicos distintos, Estados distintos, que por isso podem contribuir para a compreensão dos
acontecimentos aqui relacionados.
Nesse sentido Châtelet e Pisier-Kouchner levantam alguns elementos importantes para
análise do ponto de vista político das transformações ocorridas nos Estados, sendo o primeiro
deles o próprio surgimento do Estado moderno.
Segundo os autores esse surgimento tem seu início com a Revolução Francesa, e seria
marcado pela valorização e legitimação das instituições que exerciam o seu poder agrupado em
torno da classe burguesa. Junto a isso, surge também o liberalismo político que, segundo os
autores, concebe o Estado como “a forma no interior da qual se exercem, em harmonia, as
liberdades individuais
49
”. Com isso o Estado passa, através de suas instituições, a administrar o
interesse geral da comunidade, sem que sejam atingidos os princípios da liberdade e da igualdade
defendidos por ele. A partir dessa colocação percebemos que esse movimento de administrar o
interesse geral da comunidade recai sobre todas as esferas da sociedade
50
, seja em qualquer das
suas vertentes
51
– o Estado-Gerente, o Estado-Nação ou o Estado-Cientista.
49
CHÂTELET, François; PISIER-KOUCHNER, Évelyne. As concepções políticas do século XX: história do
pensamento político. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 115.
50
Um exemplo dessa atuação sobre o campo esportivo seria o surgimento de ligas e federações nacionais de clubes e
esportes variados, colocando o esporte também sob a lógica do Estado.
51
Para informações detalhadas acerca dos modelos de Estado descritos, ver CHÂTELET; PISIER-KOUCHNER,
1983, op. cit.
36
Outro elemento importante para a o panorama político e econômico da época está
diretamente ligado à discussão de modernidade proposta para esse capítulo, pois trata das
transformações históricas que contribuíram também para a transformação dos Estados, a saber: o
desenvolvimento quantitativo da industrialização; a importância da ciência e da tecnologia nesse
processo; o aparecimento dos imperialismos, enquanto estágios do novo capitalismo; o aumento
do setor terciário; o processo de urbanização, e o conseqüente aumento da mobilidade social; o
avanço das lutas de classe no interior do Estados-Nação; e a constituição de movimentos de
resistência à hegemonia européia nos povos e nações colonizadas.
Esses processos desencadearam transformações históricas diversas, sejam políticas ou
sociais. Segundo Châtelet e Pisier-Kouchner, as transformações possibilitadas pela revolução
científica e tecnológica contribuíram, por exemplo, para a “emergência do Estado-Cientista, no
seio do Estado-Gerente com os efeitos do Estado-Nação
52
”.
Voltando ao campo político, os autores ainda nos mostram um exemplo do caso francês,
que posteriormente comparamos ao mesmo momento da realidade brasileira.
O caso francês é exemplar em suas ambigüidades. Pode-se certamente escrever que, de 1889
a 1905, em particular, o Estado republicano passa a ser percebido não tanto como
instrumento da classe dominante, mas antes como um local onde é possível atuar no sentido
de democracia, abrindo caminho para o socialismo
53
.
Esse trecho nos mostra, para o período de análise desse estudo, quão diferente é o
momento vivido na França e no Brasil. O Brasil, vindo de recentes movimentos como o
Abolicionismo e com sua jovem República formada por membros da antiga monarquia as voltas
com crises políticas, econômicas e sociais. Enquanto isso a França também em um momento
político singular, bem descrito pelos autores, mas que difere distintamente da realidade brasileira.
52
CHÂTELET; PISIER-KOUCHNER, 1983, op. cit., p. 132.
53
CHÂTELET; PISIER-KOUCHNER, 1983, op. cit., p. 138.
37
A transição dos séculos XIX e XX no Brasil é marcada por uma série de acontecimentos
que transformariam de forma ímpar seu contexto político e econômico. Abordaremos aqui de
forma breve três desses eventos que consideramos importantes para o desenvolvimento da
modernidade brasileira e carioca: a abolição da escravidão, a proclamação da República e os
primórdios da industrialização no início do século XX. Devemos de antemão atentar para a
observação de José Miguel Arias Neto, que nos lembra que “não há uma necessária associação
linear e inequívoca entre abolição República economia cafeeira industrialização e
urbanização, isto é, que as relações históricas entre esses fenômenos são complexas e
contraditórias
54
”.
Em 1888, após quase oito décadas de pressões internacionais
55
, principalmente da
Inglaterra, a abolição da escravatura no Brasil faria surgir (ou re-surgir) algumas formas não-
capitalistas de trabalho. João Luis Fragoso e Francisco Carlos Teixeira da Silva nos lembram que
esse processo não significou o ganho da cidadania dos ex-escravos na sociedade brasileira, mas
sim que esse grupo viria a “engrossar as camadas de despossuídos e marginalizados presentes em
tal sociedade
56
”. Junto a esse processo que transforma a base de nossa economia, os autores ainda
apresentam o cenário da época que culminaria com a proclamação da República no ano seguinte.
Assim, teríamos a decadência das oligarquias tradicionais (leia-se, em especial, a do Vale do
Paraíba), a imigração e o definhamento da escravidão (...), o processo de industrialização e a
urbanização. No interior desse ambiente, encontraríamos o crescimento dos partidos
54
ARIAS NETO, José Miguel.
Primeira República:
economia cafeeira, urbanização e industrialização.
IN:
FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (Orgs.). O Brasil Repubilcano: o tempo do liberalismo
excludente. Vol 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 195, grifos do autor. Alguns exemplos podem
ilustrar essas relações complexas e contradirias, como o fato da abolição da escravidão não ter representado o fim
das formas não-capitalistas de trabalho no campo. Na própria economia cafeeira, ao mesmo tempo em que ela
possibilita a industrialização através do investimento do excedente de sua produção, ela também o limita.
FRAGOSO, João Luis. Economia Brasileira no Século XIX: mais do que uma plantation escravista-exportadora.
IN: LINHARES, Maria Yedda (Org.). História Geral do Brasil. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1996.
55
Os primeiros tratados assinados entre a Grã Bretanha e Portugal limitando a legalidade do negócio negreiro datam
de 1810, 1815 e 1817. FRAGOSO, João Luis; TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. A Política no Império e
no Início da República Velha: dos barões aos coronéis. IN: LINHARES, Maria Yedda (Org.). História Geral do
Brasil. Ed. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1996, p. 203.
56
Ibid., p. 207.
38
republicanos, a campanha pelo federalismo frente à centralização monárquica, a penetração
das idéias positivistas no exército e o aguçamento da chamada Questão Militar
57
.
Ao tratar o processo de proclamação da República, a historiografia brasileira em geral
ressalta alguns aspectos. O primeiro deles é o movimento das elites brasileiras (naquele
momento, as oligarquias rurais), para que as mudanças que ocorriam no país não representassem
a perda do status quo de sua classe. O caso da República esse fato pode ser exemplificado pela
manutenção dessas oligarquias no poder, através da composição dos primeiros governos
republicanos. Ali se misturavam alguns dos antigos militantes da República, com os chamados
“republicanos de 16 de novembro”. Tanto nos estados (as antigas províncias), quanto no Distrito
Federal, a presença de antigos monarquistas no poder era marcante
58
.
Outro aspecto importante da proclamação da República é o papel da participação popular
no novo regime. Se é fato que a República foi proclamada “pacificamente”, e a população assistiu
ao golpe pensando se tratar de uma parada militar, a sua manutenção foi marcada por tensões
59
.
Nos primeiros anos do novo regime diversos segmentos da sociedade ao longo de todo o
território nacional protagonizaram uma série de revoltas
60
, impondo sérios desafios à
consolidação da República. Tal fato evidenciaria não somente as disputas pelo poder, como
57
Ibid., p. 208.
58
Segundo Nicolau Sevcenko, nos primeiros anos da República “(...) a estabilização do país foi comandada por uma
elite vinda dos quadros da monarquia, cuja atuação, porém, se efetivara por meio do discurso cientificista e da
competência técnica da geração dos republicanos positivistas (...)”. SEVCENKO, Nicolau. O Prelúdio
Republicano: astúcias da ordem e ilusões do progresso. IN: SEVCENKO, Nicolau. A História da Vida Privada No
Brasil: da Belle Époque à era do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p 33. Rodrigues Alves, Ruy
Barbosa e Antonio Prado são alguns exemplos desses quadros.
59
Como mostra o relato de Aristides Lobo correntemente citado pela historiografia, no qual o povo teria assistido
bestializado, atônito, surpreso à Proclamação da República, pensando se tratar de uma parada militar. FLORES, Elio
Chaves. A Consolidação da República: rebeliões de ordem e progresso. IN: FERREIRA, Jorge; DELGADO,
Lucilia de Almeida Neves (Orgs.). O Brasil Repubilcano: o tempo do liberalismo excludente. Vol 1. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003, p. 53.
60
Alguns exemplos podem ser citados, como a Revolta da Armada, a Revolução Federalista, e a Revolta de
Canudos.
39
também a exclusão da grande maioria da população de processos de participação na sociedade
brasileira
61
.
Não obstante o clima tenso causado pelas revoltas bem como permanências nas estruturas
de poder, os primeiros anos da República trouxeram outras mudanças no campo político e
econômico. A constituição de 1891 teve como base o liberalismo norte-americano e trouxe como
importante inovação o federalismo, ampliando o poder dos estados (as antigas províncias),
agradando assim as oligarquias rurais
62
.
Na economia, os empréstimos internacionais tornariam-se comuns a partir dos primeiros
anos de 1880, e a política emissionista se consolidaria nos primeiros anos da República, com o
processo chamado Encilhamento
63
. Malgrado toda a especulação propiciada durante esse período,
a reforma financeira criou condições, ao lado da grande exportação cafeeira, para um
aumento no investimento em indústrias, inclusive através da importação de capital constante
(máquinas e equipamentos) que se acrescentou à acumulação prévia, realizada no período
imperial
64
.
Com esse aumento no investimento em indústrias, chegamos então ao momento de
articulação dos elementos políticos e econômicos do Estado brasileiro com a modernidade
carioca. A situação de um país saído de um longo período orientado por sua economia de base
escravocrata (ainda em processo de re arranjamento), bem como as transformações políticas com
61
De fato, o advento da República não significou o aumento da participação popular nas decisões políticas. Um dos
exemplos está em um dos símbolos do exercício da cidadania: o direito ao voto. Em 1894, apenas 2,2% da população
total do país possuía o direito ao voto, enquanto durante o Império, em 1872 o percentual era de 13%. FRAGOSO;
TEIXEIRA DA SILVA, op. cit., p. 212.
62
RESENDE, Maria Efigênia Lage de. O Processo Político na Primeira República e o Liberalismo Oligárquico.
IN: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (Orgs.). O Brasil Repubilcano: o tempo do
liberalismo excludente. Vol 1.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. Ainda segundo a autora, essa
“coexistência de uma Constituição Liberal com práticas políticas oligárquicas (...) freqüentemente atribuída aos
primeiros 40 anos da República, denuncia um sistema baseado na dominação de uma minoria e na exclusão de uma
maioria do processo de participação política” (p. 91).
63
O nome Encilhamento é uma referência ao turfe, e corresponde ao período que antecede a largada dos cavalos na
corrida. Esse período, compreendido entre 1889 e 1891, seria marcado por uma especulação desenfreada por parte
das empresas, e o conseqüente aumento exorbitante da inflação, que passou de 1,1% ao ano para 84,9%. FRAGOSO,
1996, op. cit., p. 186.
40
o advento da República, fazem com que as mudanças evidenciadas nesse período coexistam com
permanências estruturais.
Se é certo que, ainda na virada do século XIX para o XX, a economia apresentava uma
precária divisão social do trabalho e uma circulação limitada de mercadorias (baixos índices
de mercantilização), por outro lado é nessa época que presenciamos o crescimento da
população urbana, os primeiros passos da industrialização, com a formação de seu capital
industrial e sua classe operária. O que importa é sublinhar o caráter lento e tenso de tais
transformações
65
.
É importante sublinhar que, se as transformações eram lentas e tensas (principalmente se
pensadas no plano nacional
66
), o locus onde estas aconteciam de forma intensa – por seus
impactos nos modos de vida da população e privilegiada era na cidade do Rio de Janeiro. Além
de dados que demonstram esses avanços industriais e populacionais na então capital brasileira
67
,
veremos posteriormente que essa modernidade também se construía nos discursos, costumes e
modos de vida de sua população.
A especificidade apresentada de cada cidade em seu contexto histórico e político, nos
remete diretamente à questão temporal, presente não só ao longo desse capítulo como também de
todo o estudo. Mesmo não existindo um tempo padronizado para tais acontecimentos, as
inovações tecnológicas bem como os costumes vindo do Atlântico Norte eram deslocados não
de seu contexto e por vezes como veremos de sua utilidade e significado como também
temporalmente. Sendo assim, encontramos uma diferença temporal na presença de indústrias,
construções, estilos arquitetônicos, materiais, práticas culturais, entre outros, na relação Paris-Rio
aqui apresentada. Essa distância se faz presente não por uma questão eminentemente prática,
64
ARIAS NETO, 2003, op. cit., p. 211.
65
FRAGOSO, 1996, op. cit., p. 148.
66
Em 1920 a agricultura ainda ocupava 66,7% da população economicamente ativa do país. FRAGOSO, 1996, op.
cit., p. 185.
67
Em 1907, o Rio de Janeiro (Distrito Federal) era o local com o maior número de indústrias no país: 662 (26%) das
3.258. Congregava também o maior número de funcionários: 34.850 de um total de 149.018. ARIAS NETO, 2003,
op. cit., p. 216.
41
das distâncias entre as duas metrópoles e os meios de transporte de cargas da época, como
também econômicas e políticas dos dois países.
Compreendido esse aspecto que desloca em alguns anos as comparações feitas entre o Rio
e Paris relacionadas às inovações tecnológicas, temos por outro lado um tempo reduzido no que
diz respeito às idéias do progresso e da modernidade. Afinal, o transporte de idéias e costumes
era sem dúvida mais rápido, mais barato e menos trabalhoso do que o de materiais em geral.
Bastavam amigos no exterior, telegramas ou viagens à Europa para que um membro da elite
carioca retornasse a par dos acontecimentos e idéias em voga no Velho Mundo. Um bom
exemplo está na criação do Partido Republicano, fundado num momento delicado do Império
Brasileiro, no momento dos confrontos bélicos do Prata e da Guerra do Paraguai
Foi no contexto desse processo de desestabilização institucional que se fundou o Partido
Republicano (1870), propondo a abolição da monarquia, e entrou em cena uma nova elite de
jovens intelectuais, artistas, políticos e militares, a chamada ‘geração de 70’, comprometida
com uma plataforma de modernização e atualização das estruturas ‘ossificadas’ do Império
baseando-se nas diretrizes científicas e técnicas emanadas da Europa e dos Estados Unidos
68
.
Notamos com isso que os ideais de modernidade no Rio de Janeiro se fazem presentes
desde cedo, mesmo que estes tenham sido levados adiante por figuras marcantes da própria
monarquia. A presença desse ideário de modernidade se une a processos econômicos e políticos
como a abolição da escravatura, a proclamação da República e o Encilhamento, fatos que
transformam de forma ímpar o país e sua capital, corroborando para um período intenso de trocas
materiais e culturais entre as modernidades da Belle Époque
69
carioca e do Fin de Siècle
70
parisiense.
68
SEVCENKO, 1998, op. cit., p. 14.
69
Segundo Jeffrey D. Needell, a Belle Époque carioca “inicia-se com a subida de Campos Sales ao poder em 1898”
(p. 39). NEEDELL, Jefrey D. Belle Époque Tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do
século. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
70
Segundo Eugene Weber, “os franceses das décadas de 1880 e 1890 referiam-se a si mesmo como fin de siècle, e,
uma vez que os ditames da moda francesa dominavam o mundo ocidental, o termo passou a marcar o término do
42
Ao longo dessa breve introdução procuramos apresentar alguns elementos que iniciam as
discussões sobre modernidade. As cidades como o espaço privilegiado para o estudo da
modernidade e suas transformações, não desconexas de seu contexto político e econômico; os
avanços da revolução científica e tecnológica propiciando o surgimento de novos materiais e
invenções. A partir das categorias apresentadas a seguir orientamos nossos esforços para o
aprofundamento dessas transformações, agora sob o foco da reorganização do espaço e dos
costumes / modos de vida do período de transição dos séculos XIX e XX nas metrópoles do Rio
de Janeiro e Paris. No contexto da modernidade, a metrópole se transforma.
1.1 A reorganização do espaço
71
Ao pensarmos na reorganização do espaço das cidades como categoria para
contextualização da modernidade, devemos estabelecer de forma geral que as cidades sempre se
organizaram sob alguns aspectos que visam a sua sobrevivência. Mesmo não pretendendo fazer
uma análise profunda da organização das cidades ao longo da história, percebemos que
independentemente dos inúmeros aspectos influenciadores da formação e desenvolvimento das
cidades como o relevo, a localização, o clima, sua população etc. –, obviamente a
funcionalidade sempre foi o fio condutor da sua organização. Talvez por isso, cada cidade guarda
consigo a sua particularidade e cumpre o seu papel enquanto espaço de organização social, como
nos mostra Jose Luiz Romero:
século XIX como não tinha marcado nenhum outro até então”. WEBER, Eugene. França Fin de Siècle. São Paulo:
Companhia as Letras, 1988. p. 9.
71
A palavra espaço possui significados e definições diversas. Para evitar divergências de interpretação e colaborando
com o objetivo desse tópico de retratar as mudanças na materialidade urbana das cidades, utilizaremos o conceito de
espaço da geografia cultural, apresentado por Roberto Lobato Correa. Assim, o espaço adquire o conceito de espaço
vivido, ou seja, o espaço sico em sua totalidade bem como as relações sociais estabelecidas nele. CORREA,
43
Ao cabo de algumas gerações, cada sociedade urbana havia ultrapassado os limites da função
instrumental que lhe haviam designado e esboçava o delineamento de sua função real, a que a
cidade era obrigada a exercer, a que a cidade podia cumprir e a que a sociedade urbana – una
e diferente através do tempo – queria exercer
72
.
Apesar da maioria das cidades do início do século XIX ainda preservarem os valores
rurais e uma organização voltada para a subsistência, isso não se aplica às metrópoles. As grandes
cidades da época passaram a se organizar levando em conta não os aspectos tradicionalmente
pensados na construção, mas também elementos como a produção e o consumo de bens em
grande escala, inclusive pelo mercado externo
73
. Além disso, essa diferenciação na organização
das cidades é reforçada pelas novas formas de trabalho estabelecidas pelo capitalismo, bem como
pelas inúmeras possibilidades vislumbradas com os avanços na ciência e na tecnologia. A
metrópole se torna então o espaço de implementação de novos materiais, novas formas de
construção, novos parâmetros estéticos e urbanísticos.
Aos modernos assentamentos urbanos freqüentemente incorporam os locais das cidades
tradicionais, e isso faz parecer que meramente expandiram-se a partir delas. Na verdade, o
urbanismo moderno é ordenado segundo princípios completamente diferentes dos que
estabeleceram a cidade pré-moderna em relação ao campo em períodos anteriores
74
.
O que ocorre na modernidade é a mudança da idéia da finalidade do espaço das grandes
cidades. Ou seja, se antes as cidades eram pensadas e se organizavam espacialmente segundo
aspectos tais como sua defesa e circulação interna da produção, agora outros elementos viriam
somar-se a estes em sua organização. Nesse sentido as reformas urbanísticas levadas a cabo em
Roberto Lobato. Espaço, um conceito-chave da Geografia. IN: GOMES, Paula Cesar da Costa; CORRÊA, Roberto
Lobato; CASTRO, Iná Elias de (orgs.). Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.
72
ROMERO, 2004, op. cit., p. 49.
73
Cabe aqui observar o caráter de convivência entre estilos de vida nas cidades que se modificavam. Apesar das
metrópoles apresentarem esse aspecto relativo aos modos de produção e consumo de bens e serviços, ressaltamos
que tais características conviveram por muito tempo com formas de organização “tradicionais” ou anteriores das
cidades. Ou seja, no início dessa nova conformação de metrópoles como Paris e Rio de Janeiro, ainda era possível
encontrar, próximos dos modernos centros produtores dessas cidades, populações organizadas com características
ainda ligadas ao modo de vida rural.
74
GIDDENS, 1991, op. cit., p. 16.
44
cidades modernas como Paris, Rio de Janeiro, Buenos Aires, Viena, Londres, entre outras,
chegam no sentido de marcar também uma nova organização social. Sob essa ótica as reformas
são realmente imprescindíveis, pois é preciso que a cidade se transforme para efetivar o projeto
de vida moderno.
Um exemplo emblemático da busca por uma nova organização espacial da cidade através
de grandes reformas em seu espaço físico é Paris, que se orienta sob esse “ímpeto reformista” que
paira sobre a Europa do século XIX. A capital francesa sofreria influências, sobretudo da
Inglaterra, onde Napoleão III por ocasião de seu exílio pôde acompanhar o resultado das reformas
britânicas. Ao retornar à França e se tornar imperador, Napoleão III chama o Barão de
Haussmann para a coordenar a execução das reformas em Paris, que ocorreram de 1853 a 1870,
em três etapas. As Grandes Obras, como são chamadas as reformas da capital francesa,
modificaram drasticamente a cidade.
Primeiro, as antigas ruas estreitas, congestionadas e mal articuladas de Paris foram adaptadas
ou substituídas por sistemas de circulação precisos e bem orquestrados. (...) Segundo, as
novas vias das Grandes Obras destruíram, ou desmembraram, muitos bairros tradicionais da
classe operária, superpovoados e insalubres. (...) Terceiro, Haussmann embelezou a cidade
(...) [e] ressaltou (...) a paisagem típica parisiense desde então: grandes perspectivas,
focalizadas em grandes monumentos ou edifícios, flanqueadas por fachadas que
compartilhavam padrões comuns de aparência, e caracterizadas pelo estilo da época, o Beaux-
Arts
75
.
Com uma reforma de tamanha grandeza, não podiam ser menores seus objetivos e seus
resultados. O sucesso obtido do ponto de vista técnico e operacional coexistiu com inúmeras
tensões sociais desencadeadas durante o processo das reformas. Paulo Cézar Garcez Marins
ressalta esse aspecto de conflito e tensão por trás das Grandes Obras.
As necessidades de aeração, circulação, lazer, de monumentalidade e controle sócio-político
determinadas pelos discursos cnicos e pelas ansiedades das elites emergentes do Segundo
Império francês foram satisfeitas a golpes violentos contra as antigas tradições de convívio
75
NEEDELL, 1993, op. cit., p 51.
45
social e de propriedade fundiária que mantinham os parisienses aquartelados em suas casas,
ruelas e bairros
76
(...).
A análise das ações desenvolvidas durante as Grandes Obras parisienses bem como de
alguns conflitos já mencionados deve aqui ser pormenorizada. Sem o objetivo de conseguir
abarcar o amplo espectro de desdobramentos sociais e políticos advindos das reformas ocorridas
em Paris, pretendemos mostrar, em linhas gerais, que ao final das reformas estava pronto o
modelo de cidade moderna que serviu como norte a muitas outras.
Ao alargar e transformar as ruas de Paris, Haussmann adapta a cidade ao crescente
número de habitantes, interligando os subúrbios entre si e estes ao centro da cidade
77
. Melhora
não o trânsito local que viria a aumentar com a chegada do automóvel como também a
circulação das mercadorias produzidas pela indústria. A esse processo de orquestramento do
trânsito uniu-se a conflituosa destruição e relocação dos bairros operários. Com plenos poderes
para realizar a reformas, Haussmann de fato resolveu os problemas de saneamento e doenças
dessas localidades, que pagaram o preço através de sua extinção.
Milhares de unidades habitacionais foram destruídas em Paris à custa de desapropriações, e
muitas remanescentes foram fustigadas pelas posturas cada vez mais ousadas. (...) A
especulação estabelecia uma lógica paralela de exclusão espacial, em que as imediações das
grandes artérias foram lentamente impossibilitando o habitat pouco custoso
78
.
Por trás do discurso sanitarista e higienista da época, esse custoso processo de
desapropriações e relocação dos bairros aponta para uma tendência de organização populacional
da cidade, que posteriormente poderia ser observada em diversas metrópoles. A idéia principal
era de “empurrar” os pobres, operários e trabalhadores para a periferia da cidade, deixando o
76
MARINS, Paulo César Garcez. Habitação e Vizinhança: limites da privacidade no surgimento das metrópoles
brasileiras. IN: SEVCENKO, Nicolau. A História da Vida Privada No Brasil: da Belle Époque à era do rádio. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 134.
77
NEEDELL, 1993, op.cit.
78
MARINS, 1998, op. cit., p. 135.
46
centro da reservado às instituições do governo, ao comércio e aos pertencentes das altas classes.
Isolados na periferia, os trabalhadores seriam melhor controlados: mais próximos das fábricas e
indústrias, isolados em subúrbios e distantes dos governantes e das moradias da elite parisiense
79
.
Toda essa reorientação espacial tem como desfecho ao projeto o embelezamento da
cidade, que de forma alguma deve ser visto como uma etapa de menor importância em
detrimento das outras. Ela está em perfeita consonância com todo o projeto das Grandes Obras,
contribuindo inclusive para o processo de especulação imobiliária sobre as belas áreas da nova
capital. Em cada praça, em cada grande monumento ou edifício está a marca indelével de um
novo projeto de cidade. A metrópole moderna quer se mostrar diferente da antiga cidade e para
tal estabelece novos padrões estéticos, arquitetônicos e urbanísticos.
As Reformas de Haussmann serviram de modelo para inúmeras outras reformas em
metrópoles pelo mundo, como por exemplo em Viena, Florença, Bruxelas, Buenos Aires e caso
aqui analisado de forma particular o Rio de Janeiro. É o que nos mostra especificamente para o
caso de cidades latino-americanas o historiador José Luis Romero, creditando a Haussmann o
modelo de transformação das chamadas cidades burguesas, fortemente observado em cidades
como Buenos Aires, Rio de Janeiro e São Paulo, mas também de influências percebidas em
menor escala em cidades não tanto modificadas como Montevidéu, Bogotá e Caracas
80
.
Ao recorrermos a estudos sobre as reformas realizadas na capital da República no período
de 1903 a 1906, notamos com facilidade a influência de Haussmann e das reformas parisienses. O
plano carioca envolveu uma série de esforços para transformar a então capital da República, que
queria esquecer seu recente passado de colônia para tornar-se uma metrópole moderna e atrativa
aos olhos do mundo. Porém, os longos anos de exploração colonial deixavam à cidade um
79
Dentro desse processo a bicicleta ocupa importante papel, tanto no deslocamento desses trabalhadores entre os
subúrbios como dos subúrbios para as fábricas.
47
extenso caminho a percorrer para lograr sucesso em seu intento. Analisemos por hora o talvez
mais simples aspecto enfrentado: as transformações urbanísticas da cidade do Rio de Janeiro.
As autoridades conceberam um plano em três dimensões para enfrentar todos os problemas.
Executar simultaneamente a modernização do porto, o saneamento da cidade e a reforma
urbana. Um time de técnicos foi então nomeado pelo presidente Rodrigues Alves: o
engenheiro Lauro Müller para a reforma do porto, o médico sanitarista Oswaldo Cruz para o
saneamento e o engenheiro urbanista Pereira Passos, que havia acompanhado a reforma de
Paris sob o barão de Haussmann, para a reurbanização. Aos três foram dados poderes
ilimitados para executar suas tarefas, tornando-os imunes a quaisquer ações judiciais, o que
criou uma situação de tripla ditadura na cidade do Rio
81
.
Com essas medidas o Rio vai transformando sua paisagem e organizando sua estrutura
física para o crescimento econômico e populacional. A reforma do porto e a modernização de
suas instalações preparava e possibilitava a cidade para o aumento de suas transações comerciais.
O saneamento da cidade à moda parisiense à custa de desapropriações e revoltas sociais
também contribuíra para redução ou o fim de epidemias comuns que figuravam nos verões
cariocas
82
. Merecem destaque as reformas urbanísticas comandadas por Pereira Passos, que
completam o plano de obras da cidade, causado um grande impacto em sua antiga organização de
herança colonial.
Jefrey Needell descreve de forma detalhada as obras realizadas por Pereira Passos e sua
equipe, que passam pela construção de túneis e avenidas, de calçadas e pavimentação de ruas,
além do embelezamento de largos e praças ao longo da cidade. Concordando com outros autores
que escreveram sobre as reformas na Belle Époque carioca, cita em especial a construção da
Avenida Central (atual Avenida Rio Branco) como a obra de maior impacto em todo o projeto.
A Avenida Central (...) ficou pronta dezoito meses após ter sido iniciada em 29 de fevereiro
de 1904. (...) O empreendimento foi considerado miraculoso tanto por sua rapidez quanto
80
ROMERO, 2004, op. cit.
81
SEVCENKO, 1998, op. cit., p. 22.
82
Sidney Chalhoub fala das constantes epidemias de varíola e febre amarela que assolaram a cidade na transição do
século XIX para o XX, e que resultaram em um grande número de mortos. CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril:
cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
48
pela comoção pública que causou. Em um ano e meio, foram destruídas cerca de 590
edificações na Cidade Velha e pequenos trechos dos morros do Castelo eo Bento. Pronta,
a avenida estendia-se por 1996 metros, com largura de 33 metros dimensões
verdadeiramente revolucionárias para a América do Sul
83
.
A “comoção pública” tratada pelo autor expressa um sentido maior do que as 590
edificações destruídas. O que estava também em jogo nesse processo é a questão modernidade
versus tradição. O aspecto da destruição era importante para Pereira Passos e os administradores
da cidade, pois a idéia de destruir o passado “vergonhoso” de colônia se aliava ao poder da
construção do futuro, do progresso da modernidade e seus novos materiais e aparatos. A
conclusão da Avenida Central e das reformas no Rio de Janeiro modificou à semelhança de
Paris a organização espacial da cidade. As desapropriações dos antigos sobrados da Cidade
Velha não conseguiram afastar a população pobre que habitava do centro da cidade. Levando
os destroços e entulhos das demolições, a população que não podia pagar por habitações nos
subúrbios da zona norte ocupou os morros do centro da cidade, originando as primeiras favelas
84
.
Por outro lado, a cidade indicava, com a construção do complexo formado Pelo Palácio Monroe,
o Theatro Municipal, da Biblioteca Nacional e do Museu Nacional de Belas-Artes a nova rota de
crescimento das habitações da elite carioca: a zona sul da cidade.
O exercício de descrição das obras realizadas na capital francesa e brasileira realizado até
aqui nos mostra em linhas gerais as influências e relações entre as duas. Somado a aspectos do
contexto político e econômico dessas metrópoles esboçados no início do capítulo, temos agora
alguns elementos para uma análise mais detalhada, comparando os distintos projetos de
reorganização espacial das cidades. O projeto das Grandes Obras parisienses foi de fato modelo
para muitas outras cidades mundo afora, e tal influência também aparece de forma latente na
83
NEEDELL, 1993, op. cit., p. 60.
49
cidade do Rio de Janeiro. Estudioso desse processo, Jeffrey Needell faz uma comparação direta
dos dois projetos de obras, transpondo os modelos na busca por suas semelhanças.
(...) os princípios que haviam orientado as Grandes Obras parisienses foram adaptados ao
Rio. As demolições na Cidade Velha rivalizaram com a destruição dos bairros proletários por
Haussmann. A ênfase na iluminação e na ventilação, por meio de ruas alargadas e novas vias,
foi fundamental em ambas as reformas. A utilização de avenidas para conduzir o tráfego dos
limites da cidade até o centro caracterizavam os dois planos, assim como a abertura de outras
vias, que dirigiam o fluxo para fora do centro. Além disso, o princípio das places-
carrefours
85
foi empregado nas duas extremidades da avenida Mem de Sá. (...) Por fim, a
interseção da Avenida Central com a rota rua Visconde de Inhaúma rua Marechal Floriano
(hoje substituída pelo cruzamento com a avenida Presidente Vargas) é para o Rio o que o
Grande Cruzamento representa para Paris duas grandes vias que cortam a cidade e se
cruzam em ângulo reto no centro
86
.
Além do referido autor, encontramos outros estudos
87
, que da mesma forma, abordam as
reformas na cidade do Rio de Janeiro e Paris empreendendo esforços teóricos de generalização
entre as mesmas. Mas o grau de similaridade entre as reformas carioca e parisiense pode variar de
acordo com as generalizações empregadas. Entendemos que as similaridades existem e talvez a
principal delas esteja no plano da inspiração
88
. Contudo, optamos por destacar também aspectos
de singularidade entre os dois processos.
Sendo assim, mesmo sob o esforço hipotético de assumir que a idéia tenha sido a
realização das reformas tal e qual o modelo parisiense, elementos como a geografia da cidade, as
proporções das obras, o contexto político e econômico certamente contribuíram para resultados
bem diferentes. Se existiu a adaptação do projeto e a esperança de obtenção de resultados
semelhantes, a realidade nos mostra algumas diferenças marcantes ao final das obras no Rio.
A apropriação parcial do programa parisiense, adequado a uma cidade industrializada e com
forte demanda de serviços, veria seus resultados chocarem-se com uma sociedade, e com uma
84
Paulo Cézar Garcez Marins nos mostra referências sobre habitações construídas no Morro da Providência, no
centro da cidade, em 1904, já sob o nome de favelas. MARINS, 1998, op. cit.
85
As places-carrefours eram praças que funcionavam como trevos, e interligavam os bairros do subúrbio sem que o
trânsito passasse pelo centro da cidade. NEEDELL, 1993, op. cit.
86
NEEDELL, 1993, op. cit., p 57.
87
SEVCENKO, 1998, op. cit., e ROMERO, 2004, op. cit.
88
Como dito anteriormente, Pereira Passos esteve em Paris e acompanhou a fase final das Grandes Obras.
50
economia nacional, que não podia acolhê-la satisfatoriamente nem mesmo em sua escala
reduzida, tampouco fazê-la frutificar segundo as ambições dos dirigentes brasileiros
89
.
O primeiro ponto de singularidade levantado diz respeito ao tamanho das cidades, sua
população e por conseguinte a grandiosidade e o tempo de duração das obras. As Grandes Obras
de Paris duraram dezessete anos (1853-70) enquanto as reformas do Rio foram substancialmente
mais rápidas e menores (1903-6). A distância entre as duas trouxe por um lado segurança às
reformas cariocas, que tinham como base um projeto executado 33 anos antes, tempo de sobra
para ter sua eficiência comprovada.
Malgrado isso, os resultados ligados à mobilidade populacional divergem
substancialmente. Enquanto Paris consegue manter a população pobre e operária afastada nos
subúrbios, o Rio enfrentava o problema de conviver com a resistência da população
desapropriada nos morros do centro da cidade. A cidade ganhara, no início do século XIX, um
problema que perdura até hoje com o desafio social representado pela questão de moradia nas
favelas.
Outro ponto está nas ações urbanísticas comandadas por Pereira Passos. Segundo Robert
Pechman, também compensadas pelas dimensões diminutas da cidade e de seus problemas
(comparadas a Paris), o administrador do Rio nada mais fez do que transformar mesmo que de
forma incisiva um pequeno trecho da cidade, agindo sobre pontos que atraiam a visão da
sociedade (como o centro e as praças).
Mesmo o projeto de reforma urbana de Pereira Passos, para um trecho delimitado da cidade,
deve ser tomado com ressalvas no sentido de uma política urbana. Nesse sentido, só podemos
pensar em um planejamento urbano com a aparição no cenário dos urbanistas, munidos com
seus instrumentos teóricos e cônscios de que a cidade devia ser analisada como um todo
90
.
89
MARINS, 1998, op. cit., p. 145.
90
PECHMAN, Robert Moses. Cidades Estreitamente Vigiadas: o detetive e o urbanista. Rio de Janeiro: Casa da
Palavra, 2002, p. 394, grifo do autor.
51
Finalmente, temos também as diferenças na situação econômica e tecnológica entre os
dois países, o que empreendeu ao Rio gastos para a aquisição de materiais condizentes à sua
realidade. Paris vivenciara seu primeiro ciclo de industrialização em 1780, época em que o Rio de
Janeiro ainda embarcava navios com as riquezas destinadas ao Império português. Vivia na
transição dos séculos XIX e XX um momento áureo da ciência e tecnologia, enquanto o Rio
sofria com os altos preços da importação de novidades tecnológicas da Europa
91
.
Com esse panorama de semelhanças e singularidades entre os modelos de reformas
ocorridas nas capitais de Brasil e França, trazemos à luz os pontos que consideramos importantes
para a discussão sobre a reorganização do espaço das metrópoles. Em Paris, as reformas afirmam
o período da ciência e da tecnologia, da metrópole moderna preparada para viver longos anos de
crescimento econômico, voltados para a produção e o consumo de bens e serviços do mundo
capitalista. No Rio ocorre o mesmo, em escala condizente com o tamanho e o momento da
cidade, mas com um diferencial.
Se por ventura a adaptação do modelo de reforma parisiense não tinha alcançado o
sucesso absoluto do ponto de vista físico, esse chegara definitivamente enquanto espírito de uma
cidade moderna, ostentado principalmente por suas elites. O Rio de Janeiro estava finalmente
aberto às novidades do mundo moderno e aos novos costumes advindos do Velho Mundo. A
reorganização espacial dessas duas grandes metrópoles da transição dos séculos XIX e XX
desencadearia, no contexto da modernidade e suas inovações científicas e tecnológicas, mudanças
de grande intensidade nos modos de vida de seus habitantes.
1.2 A reorganização dos costumes / modos de vida
91
Veremos no capítulo 2, como essas dificuldades também se apresentaram com relação às bicicletas.
52
Se o agitado contexto da modernidade produziu modificações de grande porte no espaço
físico das metrópoles, não menos intensos foram os impactos e mudanças percebidas nos
costumes / modos de vida de seus habitantes naquele período. Anthony Giddens afirma que as
continuidades entre o tradicional e o moderno existiram, mas procura diferenciar a modernidade
de outras organizações pré-modernas, abordando a intensidade e a amplitude dessas
transformações.
Os modos de vida produzidos pela modernidade nos desvencilham de todos os tipos
tradicionais de ordem social, de uma maneira que não tem precedentes. [As mudanças da
modernidade] (...) Sobre o plano extensional, elas serviram para estabelecer formas de
interconexão social que cobrem o globo; em termos intensionais, elas vieram alterar algumas
das mais íntimas e pessoais características de nossa existência cotidiana
92
.
Os novos padrões estéticos, artes visuais como o cinema, meios de transporte variados e
cada vez mais rápidos, o surgimento de novas regras para o convívio social, e um conjunto de
novos costumes e práticas, como os esportes, dão o tom do frenetismo da modernidade nas
metrópoles. Segundo Nicolau Sevcenko, as transformações que se concentraram nos fins do
século XIX até meados do século XX, atingiram todos os níveis da experiência social.
(...) essas mudanças irão afetar desde a ordem e as hierarquias sociais até as noções de tempo
e espaço das pessoas, seus modos de perceber os objetos ao seu redor, de reagir aos estímulos
luminosos, a maneira de organizar suas afeições e de sentir a proximidade ou o alheiamento
de outros seres humanos
93
.
Muitas dessas transformações foram propiciadas pelo surgimento de novos materiais e
inventos. As inovações tecnológicas afetaram toda a população da época. É certo que, na maioria
dos casos, a elite era a pequena parcela da população diretamente beneficiada por tais avanços,
principalmente no que concerne às peças de vestuário e artigos de luxo importados. os setores
mais pobres da população também sofriam os impactos das novidades tecnológicas, pois mesmo
92
GIDDENS, 1991, op. cit., p. 14. Grifos do autor.
93
SEVCENKO, 1998, op. cit., p. 7.
53
sem usufruir delas de forma direta (apesar de geralmente trabalhar em sua produção), tinham suas
vidas alteradas por sua presença no cotidiano das cidades. Aos setores pobres restava também
esperar algum tempo, pois muitas foram as facilidades tecnológicas que experimentavam sua
popularização e barateamento com a produção em massa, passando a ocupar também o cotidiano
dessas famílias.
Mesmo sendo privilégio de poucos inicialmente, o fato é que as novidades tecnológicas
não paravam de aparecer, e a vida nas grandes cidades tinha seus dias agitados, como nos mostra
Eugene Weber com um exemplo do final do século XIX
As décadas de 1880 e 1890 testemunharam novidades de importância fundamental para o
futuro: novos modos de aquecimento, iluminação e transporte; melhor acesso à água e ao
lazer, ao exercício, à informação e aos lugares distantes. Telégrafos e telefones, máquinas de
escrever e elevadores, transporte público de massa e esse maravilhoso cavalo individual a
bicicleta,mpadas elétricas (...) tudo conquistas do fin de siècle
94
.
Com tantas novidades emergindo em um curto espaço de tempo, as cidades viviam então
o conflito entre o moderno e o tradicional, que não se resumia apenas a novos materiais e
invenções, mas também no surgimento de um novo estilo de vida que difere e por vezes extingue
diversas manifestações culturais tradicionais do passado. Ou seja, mesmo orientada sob o
emblema do progresso, da novidade e da inovação, a modernidade e seus avanços chegavam
acompanhados do medo e da desconfiança frente ao novo e ao moderno, além de protestos e
tensões por parte daqueles que viam ameaçados antigos rituais e tradições populares. Como
observa Nicolau Sevcenko, “os novos recursos técnicos, por suas características mesmo,
desorientam, intimidam, perturbam, confundem, distorcem, alucinam”
95
.
Esse era o problema com o progresso científico: desvalorizava a velha sabedoria e as certezas
antigas, ameaçava atitudes e seguranças estabelecidas, encorajava novas inseguranças (...). Os
novos dispositivos, a parafernália da modernidade, escravizavam seus usuários
96
.
94
WEBER, 1988, op. cit., p. 13.
95
SEVCENKO, 1998, op. cit., p. 515.
96
WEBER, 1988, op. cit., p. 99.
54
É importante abordar esse aspecto de tensão existente no contexto da modernidade, pois
um olhar atual sobre o grande conjunto de facilidades apresentadas na época e presentes na
contemporaneidade, pode nos dar a falsa idéia de um período homogêneo, orientado ao progresso
e à organização, e livre de conflitos. A modernidade se concentra nas metrópoles, e mesmo nelas,
convive com estilos de vida e costumes de épocas anteriores.
A apresentação desse importante contexto representado pelos novos aparatos e avanços da
ciência e da tecnologia que nos acompanhará ao longo desse trabalho nos deixa livre para
avançar nas discussões. Seguindo a mesma metodologia de apresentação e discussão utilizada no
tópico sobre a reorganização do espaço das cidades, iremos aqui levantar alguns aspectos
inerentes à reorganização dos modos de vida dos habitantes do Rio de Janeiro e Paris na transição
dos séculos XIX e XX. Mais uma vez os temas abordados não objetivam esgotar por completo o
grande número e a complexidade dessas mudanças, mas sim construir mais um panorama – agora
no campo dos costumes e das práticas culturais –, que irá concluir nossa construção teórica sobre
o período da modernidade, e deixará pronto o caminho para discussão de nosso tema central: a
bicicleta e o ciclismo na modernidade carioca e parisiense.
As transformações nos costumes / modos de vida na modernidade ocorreram de forma
intensa, e a partir de influências diversas, sendo certamente impossível a tentativa de esgotar esse
tema. Sendo assim, tentaremos buscar uma linha de coerência, discutindo essas transformações a
partir de três temas, buscando seus mútuos pontos de contato, bem como suas relações com a
reorganizada materialidade urbana das metrópoles. Escolhemos analisar a complexa trama de
modificações desencadeadas nos modos de vida das populações do Rio de Janeiro e Paris do fim
do século XIX sob a influência dos transportes, do higienismo e dos esportes.
55
Transportes
Das inúmeras invenções e inovações tecnológicas que surgiam merece destaque especial
os meios de transporte, cuja evolução teve papel fundamental em questões como a mobilidade
populacional, a independência feminina, e a reorganização do espaço urbano das cidades e as
relações sociais.
As novas e urbanizadas metrópoles estavam prontas, com as grandes praças e espaços
públicos de convivência à espera da ocupação de seus habitantes, com os teatros, cinemas e cafés
de portas abertas aos seus frequentadores, e também com suas lojas e mercados preparados e
ansiosos para a chegada dos consumidores. Os meios de transporte se encarregaram desta tarefa,
e a cidade então ganhara movimento nunca antes experimentado por tantas pessoas, em tamanha
quantidade, variedade e velocidade.
O grande responsável por esse aumento da quantidade de pessoas ganhando as ruas era
sem dúvida o bonde elétrico. O surgimento dos bondes elétricos viria extinguir o oneroso e
precário sistema de tração animal e potencializar seus serviços, através do aumento do número de
viagens, da velocidade e do número de passageiros atendidos
97
. Eugene Weber nos mostra o
exemplo de Paris, onde o bonde rapidamente se eleva à condição de principal meio de transporte
da cidade.
(...) a revolução do bonde permitiu que escolares, donas-de-casa e trabalhadores (estes
últimos ainda mais encorajados por passagens baratas especiais) não precisassem mais andar
como antes e que famílias de recursos modestos saíssem para passear aos domingos,
introduzindo a era do transporte urbano barato, orientado para as massas
98
.
97
Segundo Eugene Weber, a eletrificação dos trilhos iniciada nos Estados Unidos na década de 1880 se espalha pela
Europa em 1890, “cortando os custos e o preço das passagens em mais da metade e triplicando o número de usuários
no primeiro ano depois de sua introdução”. WEBER, 1988, op. cit., p. 91.
98
WEBER, 1988, op. cit., p. 91.
56
O bonde se caracteriza como um transporte eminentemente urbano pois os trens, presentes
anteriormente eram responsáveis pelo transporte de cargas e passageiros a cidades próximas. No
caso de Paris, mesmo com a chegada do met à cidade, os bondes mantinham seu elevado
número de usuários, estimados na casa dos 300 milhões ao ano
99
.
Sucesso que revolucionou o transporte público de massa nas metrópoles, o bonde no Rio
de Janeiro reinou sozinho. O automóvel foi por muito tempo um artigo de luxo, reservado às
famílias de classe alta que podiam bancar sua aquisição e manutenção, e mesmo assim eram
geralmente utilizados em passeios pela cidade, e não como forma regular de transporte. O veículo
que transformava a configuração espacial da cidade, possibilitando sua expansão contribuindo
para o surgimento de novas áreas habitadas e para o acesso da população ao trabalho e ao lazer –,
misturando elite e população pobre era mesmo o bonde.
As praias da Zona Sul da cidade, banhadas por águas do oceano, foram incorporadas à malha
urbana pelo bonde, que atravessando o Túnel Velho em 1892 integrou provisoriamente no
mesmo espaço famílias de extrato social diferente
100
.
Mesmo com a estratificação social chegando também aos bondes
101
, estes ainda eram uns
dos poucos espaços que integravam os setores ricos, médios e pobres da população, onde
poderíamos encontrar engenheiros, políticos e comerciantes ao lado de operários e malandros.
Em um momento onde a população carioca vivia na tensão entre os valores modernos da vida
urbana e a tradição da discrição e da reserva nas relações sociais, bonde era também um espaço
privilegiado para a conversa, para o encontro, e para o flerte. Nesse sentido cabe também
ressaltar a importância do bonde nas transformações do papel da mulher na sociedade, pois
99
WEBER, 1988, op. cit., p. 91.
100
ARAÚJO, Rosa Maria Barbosa de. A Vocação do Prazer: a cidade e a família no Rio de Janeiro republicano.
Rio de Janeiro: Rocco, 1993, p. 294.
101
Em 1889 era criado o bonde “caradura”, destinado aos pobres, que possa um espaço no centro para bagagens e
seus usuários pagavam um preço reduzido nas passagens. Na mesma época, os bondes de luxo, conhecidos como
“ceroulas”, circulavam nos bairros mais ricos e levavam ao Teatro Lírico. ARAÚJO, 1993, op. cit.
57
contribuiu junto ao processo de urbanização para o fim de uma antiga tradição, que reservava à
mulher o confinamento doméstico.
É o desenvolvimento do transporte, e em especial o aumento das linhas de bonde, o grande
aliado da maior autonomia da mulher de elite. O bonde serviu-lhe o para ir às compras
no centro da cidade, mas também ao teatro, anos mais tarde ao cinema e principalmente para
a programação social exclusivamente feminina: chás vespertinos, visitas a parentes e amigas.
Esse tipo de lazer era visto como “obrigação de sociedade”, uma vez cumpridos os deveres
domésticos
102
.
Juntamente com as facilidades de acesso ao lazer, ao trabalho e a mobilidade de uma
forma geral, a presença de meios de transporte como o bonde e o automóvel nas cidades causava
além de entusiasmo, muitos acidentes e problemas. Atropelamentos constantes, tanto de bondes
quanto de automóveis, além de acidentes e situações de trânsito ainda não imaginadas antes da
existência desses novos veículos trouxeram a necessidade do aperfeiçoamento e da criação de leis
para o trânsito. O mesmo ocorreu em Paris, onde o número de atropelamentos e mortes de
condutores de automóveis era grande para a época.
Os meios de transporte que surgiam e evoluíam na transição dos séculos XIX e XX
operaram sob todos os habitantes das metrópoles. De forma concreta através da utilização dos
milhões de usuários dos bondes, passando pelas bicicletas
103
, pelos automóveis, até o plano da
imaginação e do sonho com o avião. O homem agora ganhara asas, e não existiriam limites ou
distâncias impossíveis para ele, que começara a experimentar o início de uma revolução nas
formas de mobilidade.
Higienismo
102
ARAÚJO, 1993, op. cit., p. 87.
103
As quais daremos especial atenção no capítulo 2.
58
Um dos elementos que marca a modernidade é o jogo de poder presente nos embates entre
a Ciência (“moderna” e “progressista”) e a tradição (presente por vezes em antigas práticas
culturais e no discurso religioso
104
). Mas esse é um ponto que merece ser retomado
posteriormente, após a discussão da presença do higienismo nas cidades do Rio de Janeiro e
Paris. Além de ser um representante das tensões entre ciência e tradição na transição dos séculos
XIX e XX, o movimento higienista experimentou notável influência nos ideais modernos da
época, ditando normas e posturas a diversas esferas da vida humana, alterando de forma
significativa os costumes / modos de vida da população.
O discurso médico-higienista viria a ganhar força política e galgar espaços cada vez
maiores na administração pública das cidades. Com o aumento da influência da Higiene e dos
higienistas no campo político, não tardaria essa ciência experimentar seus anos de glória.
Segundo Robert Pechman, “desde a primeira metade do século XIX, no caso europeu, e do final
do século, no caso brasileiro, que os preceitos maiores do higienismo, a diferenciação e a
circulação se inscreveram na paisagem urbana”
105
.
A reorganização do espaço das cidades é um exemplo desse período. A Higiene é um dos
principais alicerces no qual se apóia o discurso e posteriormente a execução das reformas
urbanas das grandes cidades, como o Rio de Janeiro e Paris
106
. Foram antes de tudo os médicos
higienistas que apontaram os princípios presentes nas demolições de casas e ruas.
Além das obras que transformaram a malha urbana das capitais francesa e carioca
apresentadas anteriormente –, a influência do higienismo se manifestava sobre a vida cotidiana de
seus moradores. Durante o governo de Pereira Passos (1902-06), uma série de medidas sanitárias
104
Um exemplo nesse embate estaria no crescimento do discurso médico e da condenação por parte da Ciência aos
métodos tradicionais de tratamento de doenças, como o curandeirismo e feitiçaria.
105
PECHMAN, 2002, op. cit., p. 389.
59
foram adotadas, modificando hábitos muito praticados pela população carioca. Segundo
Jeffrey Needell, o então prefeito plenipotenciário do Rio de Janeiro
proibiu a venda ambulante de alimentos, o ato de cuspir no chão dos bondes, o comércio de
leite em que vacas eram levadas de porta em porta, a criação de porcos dentro dos limites
urbanos, a exposição da carne na porta dos açougues, a perambulação de cães vadios
107
(...).
Medidas semelhantes ocorreram anos antes em Paris. Os princípios higienistas que
haviam orientado as Grandes Obras, também recaíam sobre os costumes da população francesa.
O hábito de matar animais na porta das casas, cujo sangue escorria pelas ruas das cidades
francesas foi logo proibido
108
. O alcoolismo era também uma grande preocupação dos médicos
do fin de siècle parisiense
109
, que multiplicavam seus esforços em receitas que pudessem reduzir
os males que essa doença imprimia à sua população
110
.
Mas a influência do higienismo não se resumia às restrições na conduta ou no espaço da
moradia da população. Uma série de práticas eram também incentivadas. As “estações de cura”
que se multiplicavam nas cidades do interior da França
111
eram freqüentemente uma opção dos
parisienses para a cura dos males da época (e também um pretexto para a busca do lazer).
Semelhante destino tiveram os banhos de mar, nos dois países. Inicialmente eram
receitados por médicos, realizados nas primeiras horas do dia, e em local apropriado – as casas de
banho. Podemos perceber o discurso do hogienismo também aplicado aos banhos de mar no Rio
de Janeiro.
106
Segundo Robert Pechman, o urbanismo nasce com o higienismo, a partir da influência dos mesmos sobre o
espaço urbano das cidades. PECHMAN, 2002, op. cit.
107
NEEDELL, 1993, op. cit., p. 57.
108
PECHMAN, 2002, op. cit.
109
Segundo Eugene Weber, “no final do século, a França liderava o consumo mundial de álcool, tinha o maior
número de alcoólatras e o consequente cortejo de loucura, violência e males hereditários”. WEBER, 1988, op. cit., p.
41.
110
WEBER, 1988, op. cit.
111
No caso brasileiro seria análoga a busca dos membros da elite carioca pelos “ares do campo” especialmente as
cidades de Petrópolis e Teresópolis – para a cura de doenças.
60
A valorização dos banhos de mar no século XIX se dava, majoritariamente, graças à crença
em suas propriedades medicinais. (...) Primeiramente, a atração se por motivos de bem-
estar físico, busca de bons ares e vantagens terapêuticas do banho de mar
112
.
O discurso médico-higienista marcaria novas formas de ocupação das praias.
Posteriormente os banhos de mar viriam a ganhar outros significados, congregando não só
pessoas que os buscavam por suas propriedades de cura, mas também como possibilidades de
lazer. Os pic-nics, passeios e esportes náuticos estabeleciam novas formas de relacionamento de
cariocas e parisienses com as praias.
É na síntese dos exemplos apresentados que retomamos então à questão apresentada no
início desse tópico. Sidney Chalhoub aponta as tensões entre a ciência e o curandeirismo no Rio
de Janeiro, mostrando que o processo de aceitação” das medidas higienistas não ocorria de
forma pacífica e linear
113
. Nesse sentido não a Revolta da Vacina, como outras “revoltas
silenciosas”, eram estratégias que iam configurando a coexistência entre tradição e modernidade,
médicos e curandeiros.
Geralmente lembrado pelo sucesso no controle das epidemias que assolavam a população
mundial até o início do século XX, bem como no saneamento das cidades, o higienismo foi além.
Em meio a todas as tensões e ao longo dos anos, os preceitos da ciência higienista iam
modificando as cidades, suas ruas e casas; seus habitantes, seus corpos, seus modos de vestir,
seus costumes / modos de vida. O que se iniciara com o discurso de uma ciência “apolítica”
como ressaltam Robert Pechman
114
e Sidney Chalhoub
115
se engendraria no quadro da
administração pública, colocando as metrópoles de Paris e Rio nos rumos da modernidade.
112
ARAÚJO, 1993, op. cit., p. 321.
113
Apesar do cerco por parte das autoridades, os curandeiros continuavam a lograr de certo prestígio na cura de
males e doenças. CHALHOUB, 2004, op. cit.
114
PECHMAN, 2002, op. cit.
61
Esporte
Apontamentos sobre os esportes enquanto um fenômeno pertencente à modernidade, bem
como a constituição de um campo esportivo foram apresentados na introdução desse estudo.
Retomamos então essa discussão, articulando o fenômeno esportivo em seus primórdios com os
tópicos anteriormente apresentados na re-organização dos costumes / modos de vida da
modernidade. A partir de observações gerais sobre as características do fenômeno esportivo,
serão lançados exemplos das realidades carioca e parisiense, a fim de percebermos suas
similitudes e / ou singularidades.
Segundo Norbert Elias, o termo sport surge na Inglaterra, utilizado para denominar um
conjunto de atividades: práticas culturais tradicionais, jogos populares, cantigas e outras
vivências que foram sistematizadas, modificadas, adaptadas, ou mesmo criadas, e que agora eram
praticadas sob alguns paradigmas – a competição, o fair play
116
e o amadorismo
117
.
Mais do que as próprias atividades, a palavra sport representava um estilo de vida. O
sportsman era não somente um praticante daquelas atividades, mas também um homem cujo
pensamento corroborava com os ideais modernos
118
. O termo era novo e percebiam-se as
dificuldades normais para sua definição
119
, inerentes de um campo em formação e que começara
a se espraiar por outros países na Europa e no mundo. Nicolau Sevcenko demonstra a amplitude
do termo esporte na modernidade carioca.
115
CHALHOUB, 2004, op. cit.
116
Geralmente referido como o “espírito esportivo”, se constitui numa série de atitudes por parte dos praticantes
como o respeito às regras do jogo, ao juiz e seus adversários, bem como numa conduta respeitosa e cordial durante o
jogo.
117
ELIAS, Norbert; DUNNING, Eric. A busca da excitação. Lisboa: Difel, 1992.
118
O inventor brasileiro Alberto Santos Dumont, por exemplo, recebeu do Barão de Coubertin a medalha do mérito
esportivo.
119
Em Paris e no Rio era comum a confusão entre esporte e o turfe. Na capital francesa por exemplo, as primeiras
corridas para meninos eram realizadas com esses fantasiados de jóqueis.
62
Essa expressão “civilização esportiva” portanto não deve ser entendida como se referindo
exclusivamente à prática generalizada de diferentes modalidades de esporte, mas à
generalização de uma ética do ativismo (...) As filosofias da ão, os homens de ação, as
doutrinas militantes, os atos de arrebatamento e bravura se tornam os índices nos quais as
pessoas passam a se inspirar e pelos quais passam a se guiar
120
(p. 568).
As práticas esportivas eram inicialmente um privilégio das elites, tornando-se logo um
fator de distinção social entre essas e as camadas populares. Nesse processo, a definição do
conceito de amadorismo foi um fator crucial na luta para a manutenção dos esportes como uma
exclusividade dos membros abastados da população. Uma olhada no conceito de esportista
amador, criado em 1866, nos dá idéia desse processo. Segundo Jacques Rouyer, “é amador
aquele que não é nem operário nem artífice nem assalariado
121
.
O conceito de esportista amador excluía dessa forma a grande maioria da população,
membros das camadas populares que exerciam qualquer tipo de atividade remunerada. O que não
era difícil, dadas as condições de trabalho da época. A partir da contraposição do período no qual
os esportes chegaram na França e a carga horária cumprida por trabalhadores naquele momento,
era realmente pouco provável que um trabalhador praticasse alguma atividade esportiva.
Uma simples lista de datas é o bastante para mostrar até onde as atividades esportivas podiam
afetar o povo ou seus filhos. O dia de trabalho de 10 horas foi introduzido em 1900; uma lei
de 13 de julho de 1906 estabeleceu um dia de descanso por semana; outra, de 23 de abril de
1919, diminuiu o dia de trabalho de 10 para 8 horas; finalmente, a semana oficial de quarenta
horas para os dois sexos foi introduzida em 1936. É óbvio que antes de 1919 havia pouco
tempo livre para jogos
122
.
As relações entre os grupos sociais (elites e camadas populares) e as atividades esportivas
guardam uma série de peculiaridades. A participação das camadas populares nos esportes, por
120
SEVCENKO, Nicolau. A Capital Irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio. IN: SEVCENKO, Nicolau. A
História da Vida Privada No Brasil: da Belle Époque à era do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
121
Apud. BRUHNS, Heloísa Turini. O corpo parceiro e o corpo adversário. Campinas: Editora Papirus, 1993. p.
76.
122
WEBER, 1988, op. cit., p. 277.
63
exemplo, varia muito de acordo com o local e até mesmo com a atividade
123
. Mas percebemos
que com o tempo, tanto em Paris como no Rio de Janeiro, a prática esportiva deixa de ser
privilégio das elites e vai ganhando adeptos nas camadas populares. Victor Andrade de Melo trata
da participação das camadas populares nos esportes no Rio de Janeiro moderno:
(...) no que se refere a participação das camadas populares, vale ressaltar que populares
também interferiam ativamente no espetáculo esportivo, mesmo que por vias diferentes das
formas clássicas usualmente concebidas. Se não podiam dirigir os clubes e as competições, se
não podiam freqüentar as tribunas de honra, não eram também alienados quanto às
peculiaridades da prática
124
.
Não podemos pensar, portanto, na ausência das camadas populares do campo esportivo.
Se em seus primórdios a prática esportiva estava restrita às elites, os populares também
participavam enquanto espectadores, o que de forma alguma deve ser encarado como uma
participação “secundária”. Desde o seu surgimento, o esporte já guarda como uma de suas
principais características o fato de ser um espetáculo, que envolve não quem participa do jogo,
mas também o público que o acompanha.
Mas a situação aos poucos ia mudando, e as camadas populares ampliariam seu espaço
também no campo esportivo. Algumas medidas contribuíram para que além de espectadores, as
camadas populares começassem a ocupar seu espaço como praticantes e participantes dos times e
equipes de diversas modalidades. Na França os patronatos
125
, segundo Eugene Weber, “devem
ter proporcionado alguns dos primeiros e poucos pátios e atividades esportivas para os filhos
das classes mais pobres, excluídos dos clubes esportivos regulares”
126
.
123
Muitas atividades esportivas experimentaram sua rápida popularização, enquanto outras não caíram no gosto
popular e permaneceram como “exclusividade” das classes abastadas. Na França, por exemplo, a caça e a esgrima
permaneceram como atividades tradicionais da nobreza, enquanto o ciclismo como veremos detalhadamente no
próximo capítulo, começaria como um esporte das elites e logo ganharia o gosto popular.
124
MELO, Victor Andrade de. Cidade Sportiva. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001, p. 119.
125
Os patronages (patronatos) se tratavam de clubes, geralmente de ordem religiosa, que se instalaram na França e
ofereciam sua estrutura e espaço para a prática esportiva de crianças oriundas das camadas populares. WEBER,
1988, op. cit., p. 274.
126
WEBER, 1988, op. cit., p. 275.
64
As lutas trabalhistas e também, a seu tempo, as femininas – fizeram aumentar e
diversificar os praticantes dos esportes. Em algum tempo os clubes das elites passariam a dividir
espaço com os clubes e organizações esportivas populares. Nas tensões presentes entre patrões e
operários, o esporte foi por vezes pauta de reivindicações por parte dos sindicatos, e em outras,
políticas de tentativa de controle dos trabalhadores por parte dos donos das indústrias.
Organizados pelos sindicatos e também pelo Partido Socialista.
O esporte entrara de vez no contexto da modernidade, sofrendo influências dos diversos
campos de pensamento da época. Muitos Estados como o Francês, por exemplo investiram
nos esportes sob a égide do patriotismo. A Higiene via no esporte um meio para a obtenção de
corpos saudáveis. A Eugenia (ou Higiene Racial, como era conhecida na Alemanha) dava seus
primeiros passos no final do século XIX e início do XX, e acreditava nos esportes como uma
estratégia para o melhoramento da raça
127
.
Dentro de pouco tempo o esporte estaria presente em clubes, escolas, pátios, velódromos,
estádios, praças e ruas. Novas modalidades, um número cada vez maior de adeptos, jogos e
competições. O caminho percorrido pelo esporte em seus primórdios deixava a marca de um
fenômeno que espelhava os paradigmas da modernidade. Como nos mostra Victor Melo em seu
estudo sobre os primórdios do esporte no Rio de Janeiro, as cidades modernas eram progressistas,
liberais, e também, esportivas
128
.
127
BLACK, Edwin. A Guerra contra os Fracos: a eugenia e a campanha dos Estados Unidos para criar uma raça
dominante. São Paulo: A Girafa Editora, 2003. A Eugenia, a exemplo do papel representado pela Higiene na
transição dos séculos XIX e XX, foi mais um movimento que conquistou pessoas influentes no campo político,
ganhando espaço em países como os Estados Unidos e a Alemanha na administração pública. Ainda em seus
primórdios no início do século XX, conquistaria a partir de um discurso pseudo-científico grande espaço e poder
político, e viria experimentar o auge de suas teorias racistas pouco tempo mais tarde, no Reich de Adolf Hitler.
Segundo o autor, “(...) a eugenia infestou por completo importantes movimentos de ação social e outros voltados
para a saúde pública. As causas que foram poldas pela eugenia incluíam os movimentos de assistência infantil, a
reforma das prisões, a melhoria da educação, a saúde pública, a psicologia clínica, os tratamentos médicos, a paz
mundial e os direitos dos imigrantes, a assistência social e todo tipo de empreendimentos” (p. 219).
128
MELO, 2001, op. cit.
65
* * *
O intento de apresentar um panorama da modernidade na transição dos séculos XIX e XX
em especial a forma como ela pode ser percebida nas cidades de Paris e Rio de Janeiro nos
revela também a opção pela abordagem presente nesse estudo. Por certo é possível contar a
história da bicicleta e do ciclismo através da reunião e organização de seus fatos e datas
importantes, mas procuramos com esse capítulo tentar ir um pouco além. Apresentar, mesmo que
de forma breve, o complexo contexto da modernidade carioca e parisiense, nos permite relacionar
a invenção com seu contexto histórico. Tentar captar como se organizavam as cidades, seus
habitantes e seus modos de vida é de fato um movimento trabalhoso, mas que se faz de grande
valia para o próximo momento desse trabalho.
No próximo capítulo procedemos uma análise comparada da história da bicicleta e do
ciclismo nas cidades do Rio de Janeiro e Paris, onde buscamos o constante diálogo com a
construção teórica sobre a modernidade aqui apresentada. A transição dos séculos XIX e XX
representou um efervescente momento na organização da sociedade, e a modernidade se
manifestava em diversos campos. Seja enquanto discurso ou na materialidade urbana das cidades,
seja com os novos costumes / modos de vida e práticas sociais, a modernidade se apresentava de
diversas formas para o mundo: inclusive, como veremos a seguir, em duas rodas.
66
CAPÍTULO 2
A MODERNIDADE EM DUAS RODAS
A bicicleta chega então à cidade. O contexto das modernidades carioca e parisiense
apresentado no capítulo anterior reflete não apenas o momento de sua chegada, mas sim a
ambiência que envolve seu nascimento. Se nessa ambiência a bicicleta é mais uma entre tantas
novidades da Revolução Científica e Tecnológica, neste capítulo ela assume o papel de
protagonista. Mostraremos então as relações estabelecidas a partir da presença da bicicleta e do
ciclismo nas cidades do Rio de Janeiro e Paris.
Optamos neste capítulo por uma abordagem que privilegie as impressões, sentimentos e
reações frente à presença da bicicleta e do ciclismo nas duas cidades, ao invés de uma
organização cronológica dos fatos. Dessa forma deixamos explícitas as categorias de
comparação, como também mantemos o eixo do trabalho entre bicicleta-ciclismo-modernidade.
Iniciamos então apresentando nosso artefato: a bicicleta. Como diversos setores da
sociedade receberam essa novidade, bem como sua presença, que pouco a pouco inseria-se no
cotidiano das cidades, mudando também sua paisagem.
Posteriormente abordamos a organização do ciclismo: o esporte das corridas de bicicletas.
Apresentaremos aqui os primeiros espaços de competições e sua evolução até os velódromos e as
provas de estrada. Das primeiras competições caracterizadas pela festa e a exibição dessa nova
invenção até as provas mais famosas, com atletas patrocinados e prêmios em dinheiro. O valor
das apostas no esporte e tudo o que envolvia a sua prática: as disputas, acidentes, desafios e
problemas.
Dedicamos também uma seção desse capítulo às pessoas envolvidas nesse campo. De
nossa atenção especial aos ciclistas, passando também por mecânicos, dirigentes de clubes
67
esportivos, escritores e entusiastas da bicicleta. Veremos os indivíduos e as ações empreendidas
por eles em benefício da bicicleta e do ciclismo, passando também pela construção da imagem do
ciclista na sociedade.
A apresentação dos itens acima demonstra como a cidade vai descobrindo a bicicleta. Para
também fazer o movimento inverso, finalizamos o capítulo com um passeio ciclístico pelo Rio de
Janeiro na transição dos séculos XIX e XX, onde buscamos através das fontes perceber como a
bicicleta e os ciclistas vão descobrindo a cidade.
Antes de acompanharmos a trajetória da bicicleta proposta acima, serão necessários
breves apontamentos sobre a sua invenção, bem como esclarecimentos sobre os diversos termos
que a denominaram antes da consolidação do nome bicicleta.
O processo de “nascimento” de uma invenção é algo complexo, e geralmente não ocorre
de forma repentina. Assim foi com a bicicleta. Desde os primeiros desenhos, modelos, protótipos
e esquemas que lembram, mesmo que de longe essa máquina de duas rodas, muito tempo e
avanços tecnológicos – além da dedicação de pessoas no desenvolvimento dessa máquina
foram necessários até que a mesma sofresse as transformações que a fizessem ser reconhecida
como a bicicleta.
Estudos dedicados à história da bicicleta geralmente apresentam registros de dois modelos
como importantes antecessores. O primeiro, um desenho entre os inúmeros projetos de Leonardo
daVinci, muito semelhante à bicicleta, que não chegou a ser testado ou construído. E o outro, a
Draisana, máquina de madeira que consistia em duas rodas ligadas por um tronco. O nome era
uma menção ao seu inventor, o Barão de Drassler, que em 1817 na Alemanha ficou conhecido
pelos passeios com sua quina
129
. A Draisana tinha sua utilização restrita: sua movimentação
129
VIGARELLO, Georges. Techniques D’hier… et D’aujoud’hui: une histoire culturelle du sport. Paris: Revue &
Robert Laffont, 1988, 207 p.
68
era feita com os pés do condutor empurrando o solo, o que limitava a velocidade alcançada e
impossibilitava sua utilização em subidas mais íngremes.
E foram exatamente as deficiências apresentadas pela Draisana que, ao longo do tempo,
foram sendo trabalhadas até o surgimento da bicicleta moderna. O eixo de direção passaria a ser
móvel – o chamado guidão. Mas foram os irmãos Pierre e Ernest Michaux que, em 1861,
construíram uma máquina com uma importante modificação: a colocação de pedais sobre o eixo
da roda dianteira fez com que, pela primeira vez, a bicicleta fosse controlada e movimentada pela
força humana
130
. Ou seja, por mais que modelos anteriores se assemelhassem ao dos irmãos
Michaux, os mesmos não permitiam ao homem o controle da direção ou da velocidade.
Com os pedais, a bicicleta ganhou mais fluidez e velocidade em seu deslocamento. Podia
vencer subidas mais íngremes e longas, de acordo com a força de seu condutor. Agora era o
homem que controlava a máquina. Os velocípedes
131
, como eram chamados, se desenvolveram
rapidamente, e dentro de pouco tempo seria possível encontrar máquinas de duas, três e quatro
rodas, construídas das mais variadas formas.
Um dos primeiros modelos, e dos mais conhecidos, era o chamado grand-bi. Como o
pedal era fixado no eixo da roda dianteira, esta tinha o seu diâmetro bem maior que a traseira,
aumentando assim o deslocamento a cada giro do mesmo. O banco era posicionado praticamente
acima da roda motriz, o que fazia com que o ciclista se posicionasse assentado, com o troco
praticamente a 90 graus em relação ao banco.
130
VIGARELLO, 1988, op. cit., p. 17.
131
Na França até hoje se utilizam as duas denominações – vélo e bicyclette – para denominar as bicicletas. No Brasil,
encontramos nos jornais da época a denominação velocípede, que ao longo do tempo cai em desuso, ficando apenas
o termo bicicleta. O mesmo ocorre com o nome do esporte, que com o passar dos anos passa de velocipedia para
ciclismo.
69
O nome “bicyclette” foi dado a um dos modelos de velocípedes, construído pela empresa
inglesa Tangent and Coventry Tricycle Company em 1880
132
. A máquina trouxe uma inovação
em sua estrutura que substituiria por completo os modelos anteriores, e a faria reinar absoluta até
os dias atuais. A tração agora era feita por corrente na roda traseira, ao contrário dos modelos
anteriores, onde o pedal era fixo na roda dianteira.
Ao estudar as mudanças nas técnicas esportivas ao longo do tempo, Georges Vigarello
cita como caso exemplar a comparação entre a bicyclette e o grand-bi
133
. A invenção da
engrenagem por correntes modificou completamente a forma do ciclista se posicionar sobre a
bicicleta. O desenvolvimento da tecnologia de engrenagem por correntes foi fundamental para a
história da bicicleta e do ciclismo. Com ele as rodas traseira e dianteira se igualam em diâmetro,
diminuindo a altura, o tamanho e o peso das bicicletas.
Pouco a pouco outras inovações vão sendo incorporadas. Os primeiro modelos são em
madeira, depois passando para o ferro. As rodas passam da borracha maciça ao primeiro modelo
com pneumáticos Michelin, em 1891. O mecanismo de frenagem também não estava presente
nos primeiros modelos, sendo necessário que o ciclista colocasse os pés sobre as rodas para que
pudesse frear a sua máquina.
Guardados os devidos avanços na ciência e na tecnologia dos novos materiais, os
primeiros modelos com engrenagem por correntes já se assemelham bastante com os atuais
modelos de bicicletas encontradas no mercado. Destacamos entre eles o modelo chamado Rover,
de 1885, bicicleta que guarda poucas diferenças em sua estrutura quando comparada aos modelos
de passeio atuais.
132
VIGARELLO, 1988, op. cit., p. 17.
133
VIGARELLO, 1988, op. cit.
70
Esses são importantes modelos que passam a circular pelas cidades de Paris e do Rio de
Janeiro na transição dos séculos XIX e XX. Vejamos agora como essa nova invenção se
relacionou com as cidades e seus habitantes, passando pouco a pouco a fazer parte de seu
cotidiano.
O artefato
Em 1861, ano em que o primeiro velocípede é apresentado ao mundo em Paris, a França
vivia a efervescência de sua Modernidade, seja enquanto discurso ou no cotidiano de sua
capital. As grandes obras do Barão de Haussmann estavam em pleno curso, e os embates entre a
permanência de práticas e costumes tradicionais frente ao modo de vida progressista e moderno
eram constantes.
Nascida nessa ambiência, a bicicleta não ficaria de fora. Foi logo conhecida como “o
cavalo de ferro”, e à medida em que tomava as cidades foi angariando certo número de
entusiastas, obviamente, também entusiastas do progresso, e das transformações que estavam em
curso em Paris.
As relações entre a bicicleta e o cavalo não se restringiam ao apelido recebido pela nova
invenção. A sociedade vivenciava naquele momento os primórdios de uma relação que resultaria
posteriormente na substituição em larga escala do cavalo pela bicicleta como meio de transporte.
Era o que vislumbrava Pierre Giffard em 1889:
Aparição da bicicleta. – Um cavalo que o come. – Benefício social. – Facilidade do
deslocamento. Sem cavaleiros nem amazonas. Costumes novos. Nova cavalaria.
Lógica funesta. (…) Na dificuldade surgia ela, pequena, delicada, defendida em 1890 pelo
71
autor dessa obra como ele deveria ser, contra os maus propósitos de uma humanidade
rotineira, cujo lugar é sem demora marcado sobre os passos do cavalo
134
.
No âmbito das artes também o faziam os futuristas. Em suas obras a bicicleta era presença
constante, a expressão da velocidade, da modernidade, valores exaltados por essa corrente
artística.
O Higienismo que exercia forte influencia sobre as cidades e a sociedade da época – como
visto no capítulo anterior também se preocupou com o “bom uso” da bicicleta. Os passeios em
bicicletas eram a receita dos médicos franceses para combater o alcoolismo, mal que assolava a
capital francesa no fim do século XIX
135
.
Mas os estudos e as dúvidas sobre quais os efeitos do uso da bicicleta não paravam por ai.
A prática do ciclismo foi profundamente estudada pelos médicos da época. Foi divulgado no Rio
de Janeiro um minucioso estudo feito pelo Dr. Tissie, onde constavam os benefícios do uso do
velocípede, bem como a maneira correta de utiliza-lo:
O Dr. Tissie, recentemente, fez um sério estudo, sobre a acção que o velocípede produz nas
funcções vitaes, e d’este estudo se conclue que o velocípede é um exercício útil á respiração,
desde que seja moderado. A velocidade não deve ser superior a 20 kilometros por hora para
os homens robustos, devendo variar entre 12 e 15 para os de constituição menos vigorosa. Os
meninos devem abster-se d’esse exercício antes dos 13 annos. Durante o exercício torna-se
conveniente respirar pelo nariz, não obstante ser inevitável a respiração pela boca quando
muita velocidade, podendo sobrevir logo o cansaço. Acredita o dr. Tissie que com o
velocípede se activa a hematose augmenando-se a capacidade vital, não se devendo permittir
aos cardíacos que tenham passado o período da compensação. Antes d’esse período podem
exercitar a velocipedia com a condição de o sentir suffocação. O exercício moderado do
velocípede é um excellente calmante para o systema nervoso, principalmente nas pessoas que
dedicam-se a trabalhos intellectuaes exagerados. Aos atacados de hemiplegia deve-se
empregar o velocipede de três rodas
136
.
134
GIFFARD, Pierre. La Fin du cheval. Armand Colin, 1899, pp. 120-133. Tradução nossa. Disponível em:
http://www.encyclique.com/index.html. Acesso em: 12 de abril de 2007.
135
WEBER, Eugene. França Fin de Siècle. São Paulo: Companhia as Letras, 1988.
136
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 23 de dezembro de 1892, p. 2.
72
Percebemos que o sério estudo do Dr. Tissie foi uma contribuição para a nova atividade
que surgia, e seus apontamentos certamente estavam apoiados nos conhecimentos de que a
medicina dispunha naquele momento. Mas talvez seu estudo não tenha se ocupado de outra
importante parcela da população, que logicamente também demonstrou interesse pela nova
invenção que surgia.
A utilização das bicicletas pelas mulheres assim como seu acesso a diversas práticas
esportivas foi tema de muita controvérsia. O Dr. Ludovic O’Folowell, por exemplo, investigou
um dos argumentos que na época faziam com que a utilização da bicicleta pelas mulheres fosse
mal vista pela “boa sociedade”. Sobre os rumores de que, ao andar de bicicleta a mulher obtinha
prazer genital, concluiu o Dr. O’Folowell:
E se, por azar, um passeio de bicicleta revela à ciclista uma nova satisfação genital, não é
necessário concluir que a bicicleta cria depravadas. De resto, em investigação conduzida por
nós com o propósito deste trabalho, foram negativas todas as respostas à pergunta: Sentem
algum prazer de ordem íntima quando pedalam? Não é necessário portanto acusar a bicicleta,
mas sim a ciclista
137
.
Apoiados na razão científica, a sociedade se modernizava. Em Paris, o direito à utilização
das bicicletas foi abraçado pelo movimento feminista. Direito esse que resultou inclusive no
abandono de um hábito provavelmente incômodo às mulheres: o uso do espartilho. Por
constringir demais as vias respiratórias e limitar os movimentos, o uso do espartilho dificultava
seriamente – ou até impedia o ato de pedalar, reivindicado pelas mulheres da época. Talvez por
isso a presidente do Congresso Feminista de Paris em 1896, Maria Pognon tenha escolhido
brindar, na abertura do congresso “à bicicleta igualitária e niveladora”
138
.
137
O’FOLLOWELL, Ludovic.
Bicyclette et organes génitaux
. J.-B. Baillière et fils, 1900, p.72. Disponível em:
http://www.encyclique.com/index.html. Acesso em: 12 de abril de 2007.
138
WEBER, 1988, op. cit. p. 245.
73
Os exemplos da utilização feminina da bicicleta vindos de Paris não surtiam
necessariamente o mesmo efeito em uma sociedade tão diferente como a do Rio de Janeiro, mas
funcionavam de certa maneira como inspiração. A correspondente do Jornal do Brasil,
Marguerite Saint-Genés, informava, em 1900, os modelos de roupas utilizadas pelas parisienses
para a prática do ciclismo. Em cinco ilustrações de mulheres em suas bicicletas, a colunista
descrevia detalhadamente as vestimentas necessárias para as cariocas pedalarem pelas ruas da
cidade. Vejamos sua descrição:
Passo agora a descrever alguns costumes de biciclistas da ultima moda parisiense. O primeiro
figurino representa um gracioso costume, cuja saia é de largas pregas e bolero guarnecido
adiante de botões. Reverso e gola com guarnição de galões. Canotler com asas brancas.
Gravata e cinto de cetim preto. Camiseta de batiste malva.
(...) O figurino apresenta um costume de sarja roxa. Saia lisa e unida. Bolero curto, muito
decotado, enfeitado de duplo reverso, fechado por uma gravata de veludo preto. Camiseta de
veludo cor de rosa, inteiramente plissée. Canotler ornado de chouz de gaze rósea adiante e de
pluma branca ao lado
139
.
Os exemplos apresentados pela colunista reforçam os sentidos e significados concebidos
para a prática do ciclismo feminino: vestimentas elegantes, direcionadas às mulheres de elite,
expressando a idéia de que o andar de bicicleta deveria ser encarado como um passeio, momento
onde a mulher expressaria sua beleza, elegância e delicadeza. Tomavam parte nos passeios e
eventos sociais dos clubes de ciclismo
140
, sendo inclusive fabricados pelas empresas os
modelos de “bicicletas para senhoras”, com adaptações na estrutura o chamado quadro –, mais
baixa para comportar os seus vestidos.
Havia também, por certo, a apreensão do mundo masculino sobre as mulheres ciclistas. É
o que demonstrava Bambino, em suas Notas Semanais, publicadas no Jornal do Brasil de 21 de
139
. JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 02 de setembro de 1900, p. 3. Grifos do jornal.
140
Dos quais nos ocuparemos mais a frente nesse capítulo.
74
janeiro de 1900
141
. A charge intitulada Conseqüências Naturaes”, retrata mulheres (em
vestimentas menos elegantes do que as utilizadas pelas parisienses de Marguerite Saint-Genés)
pedalando pela cidade, enquanto dois cavalheiros bem vestidos olham com expressão jocosa para
uma ciclista em destaque na ilustração.
Tais tensões eram comuns em uma sociedade na qual estava presente o embate entre o
tradicional e o moderno, inclusive no que tange ao papel social das mulheres. Os exemplos
apresentados ressaltam que, desde a sua presença nas cidades, a bicicleta ia conquistando um
número crescente de adeptos.
Crescente sim, mas ainda pequeno. E uma das formas de legitimar e incentivar o uso da
bicicleta era através de exemplos, da recomendação de pessoas importantes na sociedade. Nos
jornais do Rio de Janeiro, quando a bicicleta ainda era uma novidade restrita a poucos indivíduos
abastados, os jornais divulgavam em suas sessões esportivas pessoas importantes da Europa que
agora utilizavam a máquina de duas rodas:
Pariz vai ficar necessariamente suprehendido quando tiver noticia de que o general Loisillon,
ministro da guerra, um dos generaes de cavallaria e antigo presidente do comitê desse grupo,
fora visto no jardim do ministério galopando, ou antes, rodelando numa magnífica bicyclette.
É o caso do corpo de cavallaria perguntar se o Sr. Ministro da guerra pensa em substituir,
para satisfazer os seus desejos velocipedicos, o cavallo pela machina
142
.
Seja pela utilização feminina, com o aval da medicina ou de pessoas importantes na
sociedade, os exemplos que incentivavam o uso da bicicleta seguiam. Mas diante de tantas
benesses e incentivos, como conseguir uma bicicleta naquela época?
No início elas eram uma possibilidade para poucos. Os primeiros velocípedes parisienses
eram de fabricação praticamente artesanal, portanto muito caros. De 1861 a 1863 foram
141
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 21 de janeiro de 1900, p. 1.
142
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 26 de maio de 1893, p. 2. Grifos do jornal.
75
produzidos apenas 142 modelos
143
, e a primeira fábrica de bicicletas a francesa Clement foi
fundada somente 17 anos mais tarde, em 1878
144
. Chegavam a custar 500 francos, o que equivalia
na época a dois meses do soldo de um tenente ou três meses de salário de um professor
145
.
Porém, o desenvolvimento de novos materiais e produção em maior quantidade por
empresas fabricantes como por exemplo Clement e Peugeot resultaram no barateamento de
seu custo. Junto a isso, o investimento em linhas de crédito para trabalhadores e o incentivo das
fábricas para que seus operários adquirissem uma bicicleta para se deslocarem para o trabalho
resultaram em sua rápida popularização em Paris. Em um curto espaço de tempo, a bicicleta
modificara a paisagem da capital francesa, e la petit reine se tornaria um dos símbolos de
identidade nacional daquele país.
No Rio de Janeiro as coisas eram bem mais difíceis. A condição de colônia exportadora, e
depois de uma república afastada das metrópoles européias, fizeram da bicicleta, durante muitos
anos, um artefato caro na cidade.
É o que nos mostra o cronista João do Rio. Em um texto publicado no periódico Rua do
Ouvidor, João do Rio argumenta contra o sentimento geral da sociedade de que a situação
econômica da cidade estava ruim, utilizando-se também da presença das bicicletas:
Temos ordem no progresso e as ordens prosperam. Dissiparam-se os fantasmas que
assustavam a burguesia. (...) O Brasil vaga sereno e galhardamente em mar de rosas e em
completa calmaria... madura. (...) Somos pois em plena bonança e as instituições
momentaneamente abaladas prontamente reconsolidadas (...) Fala-se aqui em crise financeira,
mas isso não passa de boato, e para prova-lo temos o desenvolvimento do gosto pela
bicicleta, luxo caro
146
.
143
VIGARELLO, 2000, op. cit., p. 105.
144
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 15 de novembro de 1897, suplemento ao nº 319.
145
WEBER, 1988, op. cit. p. 239.
146
RUA DO OUVIDOR, 14 de maio de 1898, p. 2. apud. NEEDELL, 1993, op. cit.
76
Podemos argumentar que, se as dificuldades econômicas dificilmente eram sentidas pelas
elites, João do Rio tinha razão em seu otimismo. Tinha também razão quanto ao preço das
bicicletas, que eram uma exclusividade das “melhores famílias da sociedade fluminense”.
Para adquirir uma bicicleta nos tempos de Império era necessário ir até a Europa para
comprá-las, o que encarecia ainda mais seu preço. Essa realidade dura até o ano de 1894, quando
o comerciante francês Emile Lambert, proprietário de uma loja de produtos especializados na
Rua do Ouvidor torna-se o primeiro representante das Bicyclettes Clement. Três anos mais tarde
existiam no Rio lojas importando as principais marcas de bicicletas da Europa e América do
Norte, como Clement, Peugeot, Monarch, Nothman, Cleveland, entre outras.
Mesmo com as importações, o preço das bicicletas ainda permanece elevado. Em 1897, o
Jornal do Brasil publicou um suplemento com anúncios das principais lojas importadoras de
bicicletas na capital. Vejamos então o preço das bicicletas novas no quadro seguinte:
Fabricantes e preços de bicicletas a venda no Rio de Janeiro no ano de 1897
147
FABRICANTE /
NACIONALIDADE
IMPORTADOR PREÇO
Toledo 275$
Cleveland James Mitchell 650$
Nothman 480$ a 550$
Monarch M.M. King & Comp. Não consta preço
Westfield 500$
Columbia 650$
Hartford 400$ a 450$
Humber 1:000$
Clement Emile Lambert 450$ (modelo de passeio)
A maioria das lojas procurava facilitar o pagamento, oferecendo o serviço de vendas a
prestações, ou por consórcio. O mercado das bicicletas crescia na cidade, mas a aquisição desse
77
artefato ainda era símbolo de status, variando de acordo com a qualidade e o preço do modelo
adquirido. A questão econômica fez conservar por alguns anos o status de raridade e também de
novidade dessas máquinas. Tanto que a chegada de bicicletas ao porto do Rio de Janeiro era
digna de cobertura das seções esportivas nos jornais. Foi o caso por exemplo do ano de 1892,
onde chegaram ao porto do Rio dezoito novos velocípedes
148
, e em 1893, quando encontravam-se
na alfândega “grande quantidade de machinas novas”
149
.
O fator qualidade era primordial para uma aquisição dos primeiros modelos de bicicleta,
especialmente na cidade do Rio de Janeiro. O anúncio da casa de bicicletas de Emile Lambert,
situada na rua do Ouvidor e importadora da marca francesa Clement alertava: “a mais sólida,
mais elegante e barata, as únicas que resistem no Brasil”
150
. Para os que podiam pagar, a escolha
por modelos mais resistentes era a melhor opção, tendo em vista que grande parte das ruas do Rio
não se encontravam nas melhores condições.
(...) quão útil será quando a municipalidade compenetrada da importância e da necessidade
do uso de bicyclete resolver-se a conservar o calçamento das nossas ruas em estado no menos
de poder receber esse novo, elegante e rápido meio de conducção, sem inutilizar as machinas,
sem abalar pelos solavancos o organismo de quem dellas fizer uso
151
.
Não bastando as condições precárias das ruas da cidade, freqüentemente criticadas nas
reportagens sobre ciclismo dos jornais, a qualidade dos modelos de bicicletas também não
contribuíam. Vejamos um exemplo ocorrido na pista cimentada do Bellodromo Nacional, talvez a
melhor do Rio de Janeiro naquele momento:
147
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 15 de novembro de 1897, suplemento ao nº 319.
148
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 28 de dezembro de 1892, p. 2.
149
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 23 de janeiro de 1893, p. 2.
150
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 15 de novembro de 1897, suplemento ao nº 319.
151
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 02 de julho de 1893, p. 2.
78
O amável director-gerente, major Alfredo Martins, improvisou, em honra á imprensa, um
páreo de byciclets, correndo cinco dos profissionaes francezes do bellodromo. A corrida foi
de 3000 metros (20 voltas), ganhando-a o Sr. A. Menard, cujos competidores ficaram parte
impossibilitados de continuar, por se terem, logo ás primeiras voltas, desarranjado os seus
byciclets. O único que com elle correu até o fim chegou distanciado
152
.
No início as bicicletas “se desarranjavam” com certa freqüência, o que além de aumentar
a imprevisibilidade de um passeio de bicicleta ou de uma prova ciclística, trazia prejuízos para
seus proprietários, além de lucros e algum trabalho para os mecânicos.
Malgrado a qualidade de alguns modelos e as dificuldades iniciais para sua aquisição, O
Rio de Janeiro ia gradativamente aumentando sua frota de bicicletas. A medida em que novas
máquinas eram compradas, crescia também o mercado de bicicletas usadas, vendidas por preços
mais acessíveis, contribuindo para que pessoas de camadas sociais mais baixas pudessem ter
acesso a essa novidade. Pesquisando as seções de classificados dos jornais da época, percebemos
que os anúncios de vendas de velocípedes usados aparecem após a chegada das lojas
representantes de marcas estrangeiras. Em 1900, as bicicletas anunciadas eram de marcas e
nacionalidades variadas fruto do aumento das importações e da ampliação do mercado europeu
–, como as francesas Peugeot, Clement e Dunlop, e as inglesas Cleveland e Nothman, entre
outras
153
. O preço das mesmas variava, de acordo com a marca e o estado de conservação, entre
35$ e 300$, bem mais acessíveis do que um modelo novo.
Outra maneira arriscada, porém bem mais barata de adquirir uma bicicleta era contando
com a sorte. Bastava adquirir um bilhete das famosas “acções entre amigos”, rifas que eram
152
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 08 de dezembro de 1892, p. 2.
153
Encontramos outras marcas como Prinetti Stucchi e Stoewer. Alguns anúncios não citavam a marca das bicicletas,
e outros apenas citavam a nacionalidade.
79
extraídas pelos números das loterias da época. Essas rifas aconteciam com certa freqüência
154
,
sempre noticiadas nos jornais da época.
Talvez a forma mais barata e segura de experimentar um passeio de bicicleta fosse
alugando uma. O aluguel era uma opção considerável para os que não podiam pagar por um
artigo tão caro, e a oferta por esse serviço crescia. em 1888 podiam ser alugadas no Club
Guanabarense, situado na Praia de Botafogo
155
. Em 1892, o Bellodromo Nacional oferecia um
vasto serviço aos amantes dos velocípedes: alugava suas bicicletas por 1$ a hora, além de
oferecer lições de velocipedia com um professor, garantindo “3 lições para se andar de
bicicleta”
156
. Finalmente, um pouco mais tarde, no ano de 1901, o mecânico e comerciante de
bicicletas usadas Luiz Rouanet, alugava na praça da República, “boas e elegantes bicyclettes para
corridas no passeio, a preços reduzidos”
157
.
O exemplo de Rouanet na verdade explicita alguns desdobramentos conseqüentes do
aumento do número de bicicletas na cidade. Na medida em que esse número crescia, surgia
também a necessidade de uma série de serviços agregados, como por exemplo, pequenos
cuidados relativos ao reparo e manutenção das bicicletas. Em seus primeiros anúncios, Luiz
Rouanet parecia ser mais um anunciante pessoal que vendia e alugava bicicletas de segunda mão,
passando depois a “fazer todo e qualquer concerto em bicyclettes, com brevidade e a preços
reduzidos”
158
.
Os exemplos nos mostram como a bicicleta foi pouco a pouco tomando as cidades. Se em
Paris ela se tornara um objeto popular, no Rio sua aquisição estava restrita às classes mais
154
Encontramos no ano de 1900 uma rifa de bicicleta anunciada mensalmente. Excepcionalmente aconteciam 2
sorteios por mês.
155
O PAIZ, 30 de dezembro de 1888, p. 3.
156
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 12 de outubro de 1892, p. 4.
157
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 02 de abril de 1901, p. 4.
158
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 01 de março de 1901, p. 4.
80
abastadas (o que não restringiu suas relações com as camadas populares
159
). Como dito
anteriormente, a bicicleta modifica a paisagem da cidade, seu modo de funcionamento, sua
estrutura física
160
. O início das importações, o aumento do número de bicicletas de segunda mão
e o aluguel de bicicletas foram fatos que contribuíram para que cada vez um número maior de
pessoas passasse a conhecer esse novo invento.
A bicicleta e o ciclismo tomam a cidade. O nome desse artefato logo nos remete á prática
cultural advinda de sua utilização. Anteriormente destacamos a dupla definição do termo
ciclismo, como “a arte de andar de bicicleta” e “o esporte das corridas de bicicleta”. Nos
elementos até aqui levantados negligenciamos propositalmente o esporte, para agora dedicarmos
a ele especial cuidado. Veremos como a constituição do esporte das corridas de bicicletas
completa essa gama de relações estabelecidas entre esse objeto e as modernidades carioca e
parisiense.
Da velocipedia ao cyclismo
A separação ou a tentativa de separação entre a história da bicicleta e a história do
ciclismo
161
é um exercício que optamos exclusivamente para a organização desse capítulo.
Veremos que nos primórdios da presença das bicicletas na cidade tal separação nem mesmo era
imaginada. Talvez ela tenha se tornado perceptível, aos olhos do historiador, quando a
bicicleta passou a ser utilizada no mundo do trabalho, como transporte de operários para as
fábricas, pelos entregadores de pão, correios, entre outros. E mesmo assim, isso não impede que
159
Além dos exemplos de estabelecimentos que ofereciam os serviços de alugueis de bicicletas, consideramos,
especialmente após o surgimento das lojas importadoras, a possibilidade da utilização das bicicletas por empregados
de pequenos comerciantes em seus deslocamentos pela cidade.
160
Eugene Weber relata alguns exemplos, como a construção de garagens para bicicletas no hipódromo de Paris em
1893, e vagões especiais para bicicletas nos trens que partiam da capital francesa. WEBER, 1988, op. cit. p. 253.
81
os usos se misturem, e que além de instrumento de trabalho essas bicicletas tenham sido
utilizadas também em atividades esportivas.
Acontece que, como indicado no capítulo anterior, o conceito de sport na transição dos
séculos XIX e XX diferia sobremaneira das apreensões que atualmente fazemos desse termo. Se
o sportsman era o termo designado não apenas ao praticante de atividades esportivas, mas
também ao homem moderno e sintonizado com o progresso e os avanços da modernidade,
veremos que na transição do século XIX e XX, possuir uma bicicleta era ser um sportsman.
Pouco tempo depois de inventada, a bicicleta era utilizada em competições. Georges
Vigarello mostra que em 1869 são organizadas as primeiras competições em Paris, ainda com
os modelos Grand bi
162
.
As relações entre a bicicleta e o cavalo também foram estabelecidas no campo esportivo,
talvez sem tantas tensões quanto as apresentadas anteriormente. Se a bicicleta era vislumbrada
pelos mais progressistas como a substituta do cavalo, o mesmo não acontecia entre o turfe e o
ciclismo.
O turfe podia ser considerado como o “pai”, o precursor de todos os esportes. Sua
influencia sobre o ciclismo foi ainda maior, provavelmente pela semelhança entre o cavalo e o
“cavalo de ferro”. Tanto em Paris como no Rio de Janeiro, as primeiras competições foram
realizadas nas raias de corridas de cavalos. Além disso, as competições eram organizadas em
páreos, os ciclistas vestiam-se como jóqueis, e, especificamente no caso do Rio de Janeiro,
utilizavam como pseudônimos nomes de cavalos vencedores na época.
As influências são marcas do início desse esporte, algumas se incorporando à sua
organização e outras desaparecendo. Logo o ciclismo passa a se desenvolver em espaços
161
Estaremos utilizando o termo ciclismo, neste tópico, nos referindo a organização de provas e eventos
(competições, passeios) em bicicletas.
82
específicos para sua prática os velódromos e sob uma característica que é fundamental no
esporte moderno: a institucionalização.
No Rio de Janeiro o ciclismo trilha um caminho sui generis, relacionado ao contexto das
transformações pelas quais a cidade e o país passavam na transição dos séculos XIX e XX. A
atividade é apresentada como novidade em dois momentos distintos. Obviamente esse “longo
ineditismo” sob o qual o ciclismo se apresenta tanto em seus tempos de Império quanto nos
primeiros anos da República refletem o contexto de uma cidade e um país que passava por
inúmeras transformações. Tentaremos aqui apontar uma série elementos para explicar esses dois
momentos do ciclismo na cidade.
Ao analisarmos a sociedade do Rio de Janeiro na época, veremos que, apesar da época ser
marcada pelo discurso em torno da modernidade, grande parte das famílias ainda preservava um
estilo de vida mais tradicional, advindo dos costumes e dos tempos de colonização portuguesa.
Talvez o ciclismo realmente fosse muito novo e até muito moderno para a grande maioria da
população carioca. Tão novo ou tão moderno, que tinha de ser explicado às pessoas, que ainda
não estavam acostumadas com o novo divertimento. Era comum, nas primeiras reportagens
dedicadas ao esporte, que as mesmas apresentassem, quase de forma didática, o novo gênero de
corridas. O trecho abaixo, por exemplo, foi retirado de uma reportagem dedicada à inauguração
do Bellodromo Nacional
A velocipedia, como se sabe, data de muito annos e tem feito ultimamente na Europa grandes
successos. Como apparentemente parece, não é esse exercício útil sob todos os pontos de
vista, fatigante, e o cansaço proveniente do esforço empregado na locomoção é de grande
vantagem para a organização d’aquelles que a elle se dedicam. Como meio de vencer em
menos tempo largas distancias, foi o velocípede empregado na França no começo de 1872,
organizando-se um corpo de velocemen, para levar ao escriptorio central dos telegraphos, os
despachos da Bolsa. O percurso era de 6 kilometros, sendo o trajecto feito em 25 minutos.
162
VIGARELLO, Georges. Passion Sport: Histoire d’une Culture. Paris: Textuel, 2000, 192 p.
83
Essa instituição foi dissolvida com o estabelecimento, em 1875, de um escriptorio especial de
despachos telegraphicos na Bolsa, em comunicação ditecta co o escriptorio central. Durante o
processo do ex-marechal Bazaine, alguns jornaes, para de prompto obterem as noticias,
empregaram velocemen que faziam o trajecto de Pariz a Versailes 20 kilometros, em 45
minutos. Os inglezes têm uma certa superioridade sobre os francezes n’esse gênero de
exercício, e no concurso internacional de 1875, no jardim das Tulherias, foram os filhos da
Gran-Bretanha os que tiveram a honra de levantar o premio. Ultimamente os americanos tem
alcançado sobre os europeus grandes successos, batendo-os com vantagem em tempos
admiráveis. Isto dito de passagem, voltemos ao objecto de nossa noticia
163
.
O “didatismo” de algumas reportagens da época pode reforçar a idéia de que o ciclismo
levou algum tempo para se acomodar no cotidiano da população. Ainda não existem dados
precisos sobre a chegada das bicicletas no Rio de Janeiro, bem como sobre a primeira prova
ciclística realizada na cidade. Porém, através dos jornais da época podemos identificar o papel
dos clubes esportivos na promoção do esporte e realização dessas competições, bem como o
momento onde as mesmas passam a ocorrer com alguma regularidade.
No fim do século XIX, a cidade vivia a “febre” das corridas a pé, realizadas em clubes
esportivos como o Club Athletico Brazileiro, a Real Sociedade Club Gymnastico Portuguez e o
Sport Club Villa Izabel. Porém, alguns clubes – como o Gymnastico e o Villa Isabel –
começaram a organizar algumas provas (chamadas páreos, por influência do turfe) de ciclismo.
Em 1885, o Sport Club Villa Izabel anunciava “grandes corridas a pé e em velocípedes” em seu
prado
164
.
Porém, as provas ciclísticas aconteciam poucas vezes, de forma dispersa, geralmente
reservadas a momentos especiais, como festas. A Real Sociedade Club Gymnastico Portuguez,
por exemplo, anunciou para sua quermesse do ano de 1885 “corridas em velocípedes para
163
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 14 de dezembro de 1892, p. 2. Grifos meus.
164
O PAIZ, 17 de janeiro de 1885, p. 4.
84
crianças até 6 e 8 anos”
165
. Um elemento que poderia servir para explicar a pequena presença das
bicicletas nas competições pode estar no seu preço.
Os clubes então utilizavam algumas estratégias para tentar reunir bicicletas para a
realização das corridas. As inscrições estavam abertas a qualquer pessoa, não sendo necessário
que a mesma fosse associada do clube organizador da corrida. Com isso, bastava que o ciclista se
apresentasse com sua bicicleta para participar da competição. Mesmo assim, encontramos nos
jornais notas sobre páreos de bicicletas não realizados por falta de competidores.
Mas o ano de 1885 ainda mostraria avanços para o ciclismo no Rio de Janeiro. Os jornais
anunciavam para 12 de julho daquele ano a inauguração do Club Athletico Fluminense, situado
na rua Conde de Bonfim, e que contou com a presença do Imperador Dom Pedro II
166
. O clube, a
exemplo de outros, se dedicava às corridas a pé e em velocípedes. Mas, ao contrario das outras
associações esportivas da cidade, as provas ciclísticas eram realizadas regularmente (sempre que
ocorriam as corridas a pé).
As corridas ocorriam mensalmente e em festas especiais do clube. Os páreos ciclísticos
eram destinados a meninos até 14 anos, que percorriam entre 500 e 600 metros, e homens, que
percorriam entre 1200 e 1800 metros. A influencia do turfe sobre os esportes da época também se
fazia presente no ciclismo. Os jornais divulgavam posteriormente às corridas, juntamente com os
nomes dos vencedores, os valores das apostas (a poule) dos páreos.
A freqüência das provas continuou no ano seguinte. Os jornais cobriam as competições do
Club Athletico Fluminense, e podemos perceber alguns elementos exaltados no tratamento ao
165
O PAIZ, 19 de janeiro de 1885, p. 4.
166
O PAIZ, 13 de julho de 1885, p. 1.
85
ciclismo. O primeiro, na verdade, trata-se de uma observação, que reforça a hipótese já
apresentada sobre a pequena quantidade de bicicletas relacionada a seu preço.
O Club Athletico Fluminense era freqüentado pela alta sociedade da época, e talvez por
isso as corridas ciclísticas tenham acontecido naquele local com regularidade. Contudo, ao
compararmos o número de inscritos para as provas de corridas em velocípedes e a pé,
percebemos que as bicicletas ainda eram poucas, mesmo em um espaço dedicado à elite da época.
As corridas em velocípedes contaram nos dois primeiros anos do clube com 2 a 5 competidores
apenas, enquanto os participantes das corridas a pé eram evidentemente mais numerosos
(algumas corridas contaram com até 30 participantes). Com um número reduzido de
participantes, é comum encontrarmos os mesmos vencedores – e corredores – para as provas
realizadas no clube.
Os páreos ciclísticos destinavam uma premiação aos primeiros e segundos lugares, que
era constituída basicamente de “brindes” ou “prendas”. Ainda não existia naquela época a
tradição da premiação com troféus e medalhas, como perceberemos alguns anos à frente, nas
competições mais importantes do esporte. Sendo assim, as competições promovidas pelo clube
e por outros clubes da época – distribuíam prêmios como uma escrivaninha de prata e um
canivete de ouro, ganhos respectivamente pelos meninos Arino do Vabo e Mário de nas
competições de fevereiro de 1886
167
.
Não obstante a premiação, era importante que todos os sócios que participassem das
competições fossem premiados. Para isso, os clubes promoviam em festas, ou mesmo em
competições regulares, páreos nas modalidades “com vantagens” e “perde-ganha”. No primeiro, a
167
O PAIZ, 02 de março de 1886, p. 2. Encontramos outras espécies de brindes e prêmios, alguns mais outros menos
atraentes, tais como: um relógio de ouro, um estojo dourado para escritório, uma guarnição de 6 botões com
brilhantes, alfinetes com brilhantes, um álbum de madeira esculpida, um cachimbo turco, entre outros.
86
partir de critérios como diferença de idade, tamanho e força os competidores largavam com
vantagens de alguns metros sobre os outros. No segundo, como o próprio nome diz, ganhava o
prêmio aquele que perdia o páreo. Foi assim na festa realizada pelo Club Athletico Fluminense
em maio de 1886, quando no quarto páreo, “corrida de perde-ganha, em velocípedes, depois de
engraçados episódios perdeu, isto é, ganhou o Sr. Campos Júnior”
168
.
Percebemos que, naquele momento, o ciclismo ainda não apresentava de forma tão
incisiva, as características hoje exacerbadas pelo esporte de rendimento. Ao mesmo tempo em
que os jornais passavam a informar o tempo dos vencedores das provas (o que começou a ocorrer
em 1886), percebíamos que os clubes ainda apresentavam as competições ciclísticas sob a ótica
da festa, ou mesmo da exibição da novidade. Os páreos “com vantagens” e “perde-ganha” são o
exemplo de como o ciclismo (e outros esportes da época) ainda agregava alguns elementos que
hoje parecem distantes dos espetáculos esportivos.
Outro ponto ressaltado pelos jornais diz respeito às quedas. Os acidentes, quando
ocorriam, eram noticiados, com suas respectivas repercussões. Em uma corrida realizada em
agosto de 1885, “o Sr. Joaquim Borges, que neste gênero de corridas é de uma correcção
admirável, foi abalroado por um outro companheiro e cahiu”
169
, chegando em segundo lugar.
Mais tarde no mesmo ano, “no 3º páreo o menino Joaquim Bastos cahiu do velocípede, na 1ª
volta, machucando-se levemente no joelho. Foi logo medicado”
170
.
Mas nem as quedas, nem o pequeno número de participantes impediram a continuidade
das provas de ciclismo no Club Athletico Fluminense, que continuaram no ano seguinte, ainda
com a cobertura jornalística. A reportagem abaixo nos permite perceber a importância dos clubes
para o ciclismo, bem como o início de competições de longa distância:
168
O PAIZ, 18 de maio de 1886, p. 3.
87
As corridas a e em velocípede brevemente serão um dos entretenimentos mais populares
do Rio de Janeiro, graças principalmente aos dous clubes: Athletico Fluminense e Olympico
Guanabarense. Nas corridas de amanhã páreos interessantíssimos, não de corrida raza
como em velocípede, notadamente o (1500 metros), o (600 metros), o (6000 metros)
e sobretudo o 8º (30000 metros!), no qual o Sr. L. Azevedo, que é nosso primeiro especialista
neste gênero sportco, pretende fazer um verdadeiro sucesso!
171
De fato, tanto o Clube Athletico Fluminense (no Rio de Janeiro) quanto o Olympico
Guanabarense (em Niterói) eram os responsáveis pelo desenvolvimento das corridas em
velocípedes, e tal fato pouco a pouco contribuiria, senão para a popularização do esporte, ao
menos para um aumento do número de ciclistas. No mesmo ano da reportagem citada, por
exemplo, foi inaugurado o Sport Club, que realizou suas corridas nos jardins do Theatro
Polytheama
172
.
Quanto ao aumento da distância percorrida nas provas, percebemos como os ciclistas
cariocas ainda experimentavam os limites de seus corpos e suas máquinas. Os 30.000 metros
percorridos pelos ciclistas naquela época eram a maior distância percorrida em uma prova
ciclística no Rio até o momento. Podemos comparar, por exemplo, com a França, onde o ciclismo
de longa distância, naquela época fazia sucesso. Em 1891, por exemplo, a França realizava a
primeira edição da prova Paris-Brest-Paris, que possuía 1200 quilômetros de extensão
173
.
As provas no Club Athletico Fluminense duram até o ano de 1887, quando é decretada a
falência do clube. Seus membros ligados ao ciclismo formam então o Veloce-Club, primeiro
clube dedicado exclusivamente a esse esporte. As corridas inaugurais do clube aconteceram na
169
O PAIZ, 03 de agosto de 1885, p. 1.
170
O PAIZ, 09 de novembro de 1885, p. 2.
171
O PAIZ, 05 de junho de 1886, p. 2
172
O PAIZ, 11 de fevereiro de 1886, p. 2.
173
O Paris-Brest-Paris é a prova ciclística mais antiga ainda realizada.
88
raia do Rio Cricket Club, à rua Payssandú no bairro do Flamengo, e pela segunda e última vez
com a presença de “Suas Altezas Imperiaes”
174
.
Durante os anos de 1888 até 1891 as competições ciclísticas não aparecem nos jornais. O
agitado período político marcado pela Proclamação da República e seus primeiros anos de
esforços para manutenção do novo regime reforçam probabilidade de que as provas pouco
aconteciam. Mas a partir de 1892 o ciclismo volta à cena na cidade. Agora o Rio de Janeiro era
capital da República, e as bicicletas e o ciclismo viveriam um novo período de prosperidade.
E a idéia de novidade era o que realmente ganhava espaço na República. Era preciso
distanciar ou mesmo evitar qualquer ligação com elementos que lembrassem o antigo regime, e
nesse sentido o exemplo do ciclismo ilustra essa afirmação.
Decorridos oito anos das primeiras provas no Club Athletico Fluminense e de um esporte
caro que sempre contou com o apoio e presença das elites ligadas à monarquia (inclusive da
Família Imperial), o ciclismo agora era um dos divertimentos exaltados como novidade no Rio de
Janeiro republicano. Assim como vimos a “transformação” de monarquistas em republicanos
com a proclamação da República
175
, vimos também o ciclismo, que sempre contou com o apoio e
a presença de personalidades do antigo regime surgindo novamente sem qualquer menção aos
seus anos anteriores na cidade.
Mas algumas mudanças realmente aconteceram, e estavam acontecendo, decorrentes do
próprio desenvolvimento da modalidade. Foi nesse momento que vemos surgir na cidade os
primeiros espaços dedicados exclusivamente para as competições de bicicletas. Os velódromos
176
foram importantes e concorridos espaços de diversão da sociedade carioca. O primeiro foi o
174
O PAIZ, 15 de novembro de 1887, p. 2.
175
Nos referimos à composão dos quadros de governo nos primeiros anos da República, onde se misturavam
alguns dos antigos militantes da República, com os chamados “republicanos de 16 de novembro”. Tanto nos estados
(as antigas províncias), quanto no Distrito Federal, a presença de antigos monarquistas no poder era marcante.
89
Bellodromo Nacional, situado na Rua do Lavradio, próximo à Praça da República, e por muito
tempo carregou o status de principal espaço das corridas ciclísticas na capital. Destacamos aqui a
reportagem sobre a sua inauguração, em 1892.
Gentilmente convidados pela directoria do Bellodromo Nacional fomos hontem visitar, o
estabelecimento em que funcciona a nova sociedade sportiva, á rua do Lavradio n. 158; e da
visita que fizemos trouxemos a mais agradável impressão e toda a sympathia pelo gênero de
sport que hoje se inaugura com uma bella corrida de byciclets e que certamente merecerá
também a sympathia dos sportsmen d’esta capital. O publico saberá corresponder aos esforços
empregados pelos directores do Bellodromo Nacional para levar a effeito tal
emprehendimento, creando mais um divertimento ao mesmo tempo útil e agradável: útil,
porque é inegável que a patinação e a velocipedia constituem excellentes exercícios physicos,
contribuem para o desenvolvimento muscular e robustecimento do corpo, necessários aos
moços brazileiros, em geral fracos e rachiticos, como muito bem disse o nosso collega do
Jornal do Commercio, respondendo a uma saudação feita á imprensa por um dos diretores do
bellodromo; e agradável, porque, attendendo ao gosto pronunciado do nosso povo pelas coisas
sportivas, o gênero adoptado pela nova sociedade é incontestavelmente dos mais divertidos. O
bellodromo está construido bastante confortavelmente; alli fica-se ao ar livre, perfeitamente a
gosto nos 64 camarotes, nas archibancadas e mesmo em baixo, nas entradas geraes. Dos 64
camarotes, 32 estão collocados nos fundos e outros 32 á frente, nos dois extremos do
estabelecimento; tendo cada um logar para 4 pessoas, com mesas collocadas em um espaço
lateral, para serviço do botequim, do qual nos ocuparemos adeante. Nas archibancadas, que se
acham á direita, cabem muito folgadamente 1000 pessoas, podendo sentar-se até 2000 se
forem utilizados todos os degraus. No centro d’ellas está collocado uma espécie de coreto
reservado, em frente justamente a um outro construído do lado esquerdo e destinado a banda
de musica, que deve tocar durante as corridas. Debaixo das archibancadas está a directoria
construindo uma serie de quartos para aproveitar o espaço, afim de alugal-os depois aos
corredores amadores, que d’elles se utilizarão para guardar suas machinas, vestimentas, etc., e
mesmo vestirem-se e despirem-se á vontade. A grande área das corridas esconstruída com
todas as regras exigidas pelo gênero de sport a que é destinada e perfeitamente cimentada,
medindo 23 metros de largura sobre 82 de comprimento. A raia tem 10 metros de largura e
acha-se limitada internamente por um traço vermelho de 146 metros de circumferencia; a
circumferencia externa tem cerca de 185 metros, ficando uma media de 150 metros pouco
mais ou menos para cada volta das corridas. O estabelecimento é todo illuminado a luz
electrica, com 124 lampadas encandescentes e quatro grandes lâmpadas de arco, três das
quaes estão no centro da área e uma na porta do edifício. A machina productora tem uma
força de 20 cavallos. Á direita de quem entra, no pateo, está construído o botequim
confortável e bom dos Srs. M. F. Ferreira & C., onde os freqüentadores do Bellodromo podem
encontrar de tudo e do melhor, conforme tivemos occasião de verificar hontem; e á esquerda,
os 14 guichets para vendas de poules. (Aviso: - Cada poule custa 2$ e não há fracções.)
177
176
Os jornais da época utilizavam o nome “bellodromo”, passando ao longo dos anos a utilizar a grafia
“velódromo”.
177
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 08 de dezembro de 1892, p. 2. Grifos do jornal.
90
A reportagem levanta pontos importantes para o debate sobre as apreensões em torno do
ciclismo na cidade. Defende a “utilidade” dessa modalidade, ressaltando também o aspecto das
filosofias da ação, e da valorização dos esportes como atividades necessárias e indicadas para o
“desenvolvimento muscular e robustecimento dos raquíticos brasileiros”. Esse discurso explicita
a corrente do pensamento médico-higienista, que dominou as instâncias do poder no período de
transição entre os séculos XIX e XX. Como abordado anteriormente, esse discurso também se
ocupou do ciclismo, dedicando a ele diversos estudos e transformando-o em receita para alguns
dos males da sociedade da época.
Nesse mesmo contexto vemos também ser reforçada a idéia de um novo tempo
representado pela República, onde a modernidade, o progresso e a novidade agora faziam parte
da cidade. O ciclismo inaugurava-se, mais uma vez, agora em um espaço construído
exclusivamente para sua prática. E um espaço luxuoso, com o que de mais moderno se
apresentava na época, como a luz elétrica, camarotes e estrutura destinada aos membros das elites
da sociedade carioca. Tudo para contribuir com o aspecto “agradável” do esporte, relacionado
obviamente com as apostas presentes na grande maioria das atividades esportivas da época e
aos encontros proporcionados por aquele espetáculo.
Com o incentivo das apostas, os velódromos fizeram sucesso na cidade. Pouco menos de
um ano depois, inaugurou-se outro espaço na cidade. O Bellodromo Guanabara, ressalta a
inspiração francesa em sua construção.
Inaugurou-se hontem este importante estabelecimento destinado a corridas de byciclettes, sito
á praia de Botafogo. A pista mede 204 metros, tendo de largura nas curvas, 15 metros e nas
rectas 9; e, segundo nos informam, é egual ao Park de Boudeaux. As archibancadas o
pequenas, comquanto bastante elevadas. A concurrencia foi extraordinária notando-se nas
91
archibancadas o que há de mais selecto na nossa sociedade, disputando as gentis sportwomen
a primazia, na graça e elegância das toilettes
178
.
No final do ano de 1897 é construído o Frontão Velocipédico Fluminense, na sede do
antigo Theatro Polytheama, o Rio passa a ter três velódromos funcionando ao mesmo tempo, dois
deles na mesma rua
179
.
O Velocipédico também possuía toda a estrutura necessária para o desenvolvimento do
ciclismo, mas guardava um diferencial. A pista de 200 metros era construída em madeira, sendo
móvel do lado esquerdo, que era deslocado para a realização dos jogos de pelota
180
.
Os velódromos do Rio vivem um período próspero, porém curto e conturbado. Por conta
das apostas, tornaram-se locais propícios para os tribofes, as armações em torno dos resultados
das provas.
A direção dos velódromos procurava controlar ao máximo os ciclistas, criando os códigos
de corridas, com punições severas aos corredores que incorressem em algum tipo de infração. A
questão era delicada, especialmente na relação do esporte com a imprensa. Os responsáveis pela
cobertura das provas, sempre tratados com especial atenção pelos diretores dos velódromos,
noticiavam atletas suspensos, mas nunca a infração ou motivo da punição. Além disso, sempre
que podiam, enfatizavam os esforços dos estabelecimentos para garantir o bom andamento das
corridas. Sobre as corridas no Bellodromo Guanabara, por exemplo, percebemos a preocupação
com as trapaças.
Passa-se alli uma noite divertida e ainda pode sahir com algum lucro, se houver tino para
fazer-se uma boa aposta. Em qualquer hypotese, ou se ganhe ou se perca, tem-se a certeza de
que não se concorreu para um tribofe, porque as corridas são alli admiravelmente fiscalizadas
pela directoria, que envida todos os esforços para moralizar o entretenimento
181
.
178
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 10 de agosto de 1893, p. 2. Grifos do jornal.
179
O Velocipédico Fluminense e o Nacional, situados na rua do Lavradio.
180
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 10 de novembro de 1897, p. 2.
92
Mas às vezes, as confusões assumiam maiores proporções, não sendo possível deixar de
noticiar os incidentes. Era o que estava acontecendo nas corridas do Bellodromo Nacional, em
1893.
Seria de bom aviso que a auctoridade que preside os espectaculos espalhasse
convenientemente pelo lado opposto às archibancadas algumas praças de policia, afim de
evitar que alguns dos espectadores enthusiasmados atirem projectis nos corredores, ou
procurem com bengalas e guarda-chuvas atrapalhal-os na carreira. Ainda não há muitos dias
procuraram com uma bengala atrapalhar a carreira do profissional Mesnard e ante-hontem
jogaram uma pedra quando Lagartijo corria, ferindo-o no rosto
182
.
Os problemas começaram a preocupar as pessoas diretamente ligadas ao ciclismo. O
esporte estava corrompido, colocado em segundo plano em detrimento das apostas. Os jornais,
antes preocupados em noticiar os acontecimentos, ultrapassagens e acidentes das corridas agora
limitavam-se a divulgar os vencedores dos páreos e o valor do rateio das apostas.
O ano de 1897 parece ter sido crucial para a essa questão. Os tribofes eram cada vez mais
freqüentes, as ações empreendidas pelos diretores dos velódromos surtiam efeito a curto prazo,
retornando depois de algum tempo o mesmo problema. A situação do Bellodromo Nacional, em
1897, parecia a mesma de quatro anos antes.
Continuam animadíssimas as corridas de bicycleta e de patins neste importante
estabelecimento de diversão noturna. Os maleiros e os amadores que com elles fazem conluio
têm se visto em papos de aranha nestas ultimas noites. A actual administração, no sentido de
moralisar quanto possível os actos de sua gestão, eliminou já alguns amadores, e continuará a
eliminar todos aquelles que não se portarem convenientemente, assim como, vedou e
continuará a vedar a entrada aos srs. freqüentadores que ali vão especular com os amadores,
enganando assim a boa fé do público sensato e sério, e plantar a desordem e a desmoralização
em tão útil estabelecimento Por tão criteriosas deliberações é o caso de dar louvores á nova
administração
183
.
181
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 19 de agosto de 1893, p. 2.
182
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 26 de janeiro de 1893, p. 2.
183
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 21 de fevereiro de 1897, p. 3. Grifos do jornal.
93
Posteriormente a diretoria do Bellodromo Nacional substituiu todo seu quadro de
corredores, mas ações semelhantes haviam sido feitas, e o problema parecia ser mais grave. O
fim das apostas foi um acontecimento decisivo para o futuro do ciclismo na cidade, mas não
aconteceu de forma consensual.
Nesse movimento tiveram papel decisivo os clubes de ciclismo, que começavam a surgir
no Rio de Janeiro. À medida em que aumentava gradativamente o número de bicicletas na cidade
crescia também a organização dos ciclistas. Os clubes de ciclismo organizavam diversas ações de
incentivo à utilização da bicicleta e a prática esportiva na cidade. Além de participar de
competições, os clubes desenvolviam ações como passeios ciclísticos e festas para seus
associados. Destacamos aqui os dois primeiros da República, respectivamente, o Velo-Club e o
Byciclette Club, ambos de 1897
184
.
Os clubes tinham características distintas, mas demonstram como todos se reuniam em
torno da prática e desenvolvimento do ciclismo. O Bicyclette Club realizava suas corridas na
Quinta da Boa Visa, e era uma sociedade mais tradicional, exclusiva.
Esta sociedade composta somente de moços de distinctas famílias dos bairros de S.
Christovão e Engenho-Velho, e que se reúnem unicamente com o fim de proporcionar a si
mesmo um utilíssimo divertimento, excluindo terminantemente toda e qualquer idéia de jogo
ou de apostas, celebrou no domingo passado, na antiga quinta da Boa Vista, a segunda
corrida com numerosa e escolhida concurrencia de distinctas famílias daqueles bairros
185
.
A “escolhida” concorrência era característica no clube, que era presidido pelo Sr. Joaquim
Gusmão Filho, e realizava suas corridas na Quinta da Boa Vista. Seus sócios eram um dos poucos
ciclistas realmente amadores da cidade, não participando de competições realizadas por outras
184
O Velo-Club e o Bicyclette Club foram os primeiros clubes de ciclismo surgidos na cidade no período da
República. Com o gradativo aumento no mero de bicicletas aumentaram também os clubes e grupos ciclísticos,
como por exemplo o Grupo dos XIII, do Club dos Destemidos da Fábrica das Chitas (de 1900), o Touring Club (de
1901) e o Club Athletico Major Dias Jacaré (1901).
94
associações, e que envolvessem qualquer tipo de apostas ou premiações em dinheiro. A exceção
de poucos corredores, todos dispensavam o uso de pseudônimos, ação comum entre os ciclistas
da República
186
.
O clube mantinha características das primeiras associações do Rio
187
, movimentando sua
comunidade em torno do ciclismo, envolvendo pessoas importantes ligadas a outros campos,
como o das artes:
Consta-nos que o talentoso pianista Ernesto Nazareth compoz uma dansante polka-tango,
com a denominação do club, offerecida á directoria e que será executada pela banda do 1
regimento, que sempre toca em suas festas.
o Velo-Club, considerado “a veterana” entre as sociedades ciclísticas da cidade tinha
objetivos mais audaciosos, focados em torno das bicicletas e das competições. Além de participar
das provas nos velódromos da cidade assumiu uma posição de liderança em prol do
desenvolvimento do ciclismo no Rio de Janeiro.
Velo-Club
A sociedade cujo titulo encima estas linhas, constituída única e exclusivamente para fazer a
propaganda e o desenvolvimento, entre nós, do cyclismo, reune-se hoje em assembléia geral
extraordinária. O fim desta reunião é, entre outros, acabar de uma vez para sempre com o
jogo de apostas nas corridas de bicyclettes, ou, pelo menos, fundar páreos com membros da
sociedade, onde será elle abolido
188
.
Os primeiros clubes de ciclismo por conta do alto preço das bicicletas ainda eram
associações formadas por membros das classes mais abastadas da cidade. O discurso em torno do
185
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 26 de maio de 1897, p. 3.
186
Os ciclistas e seus pseudônimos serão abordados no item seguinte. Vejamos alguns dos nomes de corredores do
Bicyclette-Club em 1897: Silvio Rodrigues, Fausto Proença, Octávio Limoeiro, Carlos Gusmão, Motta Teixeira,
Arthur Gusmão, Manuel Rodrigues, Paulo Motta, João Casemiro, Antônio Rodrigues.
187
Referimo-nos às características de associações exclusivas, onde a condição social, e o encontro em torno de festas
e eventos é um fator tão importante quanto o fim para o qual a sociedade se reúne. Tais características são apontadas
por Jefrey D. Needell, em: NEEDELL, Jefrey D. Belle Époque Tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de
Janeiro na virada do século. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
188
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 01 de agosto de 1897, p. 2.
95
fim das apostas nos esportes estava colocado na sociedade carioca
189
, e nada mais comum que
pessoas que não precisavam de obter lucros provenientes da prática esportiva abraçassem essa
causa.
Do outro lado, estavam os donos dos velódromos, alguns corredores (inclusive do Velo-
Club) mais interessados nos prêmios e rateios das apostas, e logicamente, a grande maioria dos
freqüentadores dos velódromos, que a eles afluíam diariamente atraídos pelos jogos de azar.
A empresa Velo Sport, que organizava as competições no Frontão Velocipédico
Fluminense, tentou sua última cartada em 1898.
A administração deste estabelecimento, attendendo ás aspirações geraes, que com justiça
encontraram echo em todos os órgãos da imprensa e que não são senão a confirmação dos
desejos da própria directoria, resolveu por em pratica, a partir do anno novo, um programma
completo de reformas, das quaes as mais importantes são as seguintes: 1º. A formação de um
quadro de profissionaes bem remunerados, que encontrarão no exercício do cyclismo uma
garantia de occupação séria e proveitosa e que serão deste modo interessados em dar exemplo
da lisura e da honestidade na disputa dos páreos, tendo a mais disto o incentivo dos prêmios.
2º. A suppressão da entrada franca, precedente mao e que traz como conseqüência
promiscuidades e irregularidades que afugentam os freqüentadores e apreciadores do sport
velocipedico, os quaes pertencem á classe mais culta da sociedade
190
.
O discurso principal das duas partes – clubes de ciclismo e velódromos – era o da
moralidade do esporte. Mas nos parece que, tanto por parte dos corredores quanto dos
freqüentadores, a moralidade passava longe dos velódromos. A “classe mais culta da sociedade”
não hesitava em atiras pedras, bengalas e guarda-chuvas em direção às rodas das bicicletas dos
ciclistas quando o assunto era o dinheiro. Mesmo quando os velódromos cobravam entradas os
tribofes aconteciam; e os atletas, por sua vez, deixavam de mostrar “empenho e lisura” na hora
das corridas.
O discurso entre o profissionalismo e o amadorismo no Rio de Janeiro se confundia. Em
Paris encontramos o ciclismo em um estágio “avançado” de profissionalização, ou seja, com
189
O remo foi o primeiro esporte a acabar com as apostas em suas competições, em 1895.
96
elementos bem semelhantes aos que observamos no esporte contemporâneo. Corredores bem
remunerados, provas com altos valores em premiações, equipes e ciclistas patrocinados por
empresas, o que lhes permitia uma vida dedicada exclusivamente ao ciclismo enquanto seu
trabalho.
No Rio algumas iniciativas começavam a acontecer, mas longe de representar a
possibilidade de algum ciclista viver dessa atividade. Por mais que se tentasse fazer a distinção
entre amadores e profissionais, em alguns casos os mesmos se confundiam. Alguns corredores
amadores, por exemplo, participavam de corridas, ou organizavam desafios nos quais a
premiação era feita em dinheiro. Os profissionais eram poucos, e geralmente faziam parte do
quadro de corredores do Bellodromo Nacional
191
.
A permanência dos problemas em torno as apostas no esporte e o discurso em torno da
necessidade de sua moralização fizeram com que, ao longo do ano de 1898 e 1899 declinasse o
jogo da poule. Com isso, os velódromos no Rio estavam com seus dias contados. Aos cariocas,
não parecia muito interessante a idéia de acompanhar ciclistas dando voltas ao redor de uma
pista, sem que houvesse o jogo de azar envolvido.
Se vão os velódromos e ficam os clubes de ciclismo. Foram eles um dos responsáveis para
que as bicicletas ganhassem as ruas da capital da República. O ciclismo não chegou a ser um
esporte popular no Brasil, mas foi um espetáculo que trouxe para o Rio de Janeiro uma das
invenções mais modernas que surgia na Europa. Em pouco tempo a bicicleta deixara de ser
novidade. Tomaria as ruas do Rio de Janeiro como havia tomado as de Paris, se tornando um
dos meios de transportes mais populares da História.
190
O PAIZ, 01 de janeiro de 1898, p. 2.
97
Os velocemen
Passamos agora a investigar os indivíduos que participaram de alguma forma da história
da bicicleta e do ciclismo nas cidades do Rio de Janeiro e Paris. Passando pelos grandes
campeões de importantes provas, dirigentes de associações esportivas, escritores e empresários,
tentaremos aqui apresentar os primeiros entusiastas desse esporte, que eram antes de tudo,
ciclistas. Indivíduos pioneiros na utilização da bicicleta, e que trabalharam para o
desenvolvimento desse novo artefato e de sua prática esportiva.
Começamos então em Paris, com os irmãos Pierre e Ernest Michaux, aos quais grande
parte da historiografia especialmente a francesa credita a invenção da bicicleta. Os irmãos
trabalharam bastante construindo os primeiros modelos de velocípedes, até que os mesmos
passassem as mãos de outros construtores e finalmente as fábricas de bicicletas.
Trabalho próximo ao artesanal era também o que fazia Luiz Rouanet, mencionado
mecânico que alugava bicicletas no Rio de Janeiro. Mais do que um pequeno comerciante,
entendedor da mecânica e da manutenção dessas máquinas, Rouanet estava inserido no cotidiano
da bicicleta na cidade. Fez parte da Sociedade Commemorativa das Datas Nacionaes, que
organizava competições de ciclismo para comemorar datas importantes, como por exemplo, a
festa do descobrimento da Américas, em 1898
192
.
Em 1897 encontramos os primeiros anúncios de sua oficina, que funcionava à Rua do
Rosário, no centro da cidade. Anunciava nos jornais juntamente às lojas das principais marcas de
bicicletas que eram importadas para o Rio, se dizendo “o único na capital habilitado a fazer os
191
Desde a sua inauguração o Bellodromo Nacional manteve quadros de ciclistas profissionais. O Bellodromo
Guanabara, a despeito das apostas e eventuais prêmios, enfatizava que suas corridas eram apenas para amadores.
192
O PAIZ, 15 de setembro de 1898, p. 2.
98
concertos das machinas de todos os fabricantes que anunciam nesta página
193
. Talvez não o
único habilitado, mas um dos poucos mecânicos de bicicletas na cidade. Não encontramos
nenhum outro anúncio de oficina ou serviços relacionados à manutenção de bicicletas na cidade.
O serviço era realmente escasso, tanto que antes dos anúncios de Rouanet, em 1892, o
Bellodromo Nacional precisou contratar um mecânico vindo da Europa, para cuidar do reparo e
da manutenção de suas bicicletas
194
.
A questionável qualidade de alguns modelos de bicicletas e as condições precárias de
grande parte das ruas do Rio de Janeiro anteriormente mencionadas, ressaltam a importância do
trabalho de pessoas como Rouanet, que contribuíram na formação do campo do ciclismo na
cidade, juntamente com outros personagens.
O ciclismo, assim como diversos outros esportes, cria a partir do espetáculo a figura do
ídolo: o grande campeão, o atleta, responsável por façanhas e grandes feitos na modalidade.
No Rio de Janeiro talvez tenha sido Mário de Sá o primeiro nome a se destacar no esporte.
Sócio do Club Athletico Fluminense, o garoto começava a chamar a atenção de todos. Palpite
certo de vitória nos páreos para meninos, começou a disputar as corridas com os homens,
conseguindo algumas vitórias e boas colocações. Seu desempenho era exaltado pelos jornais da
época e lhe rendeu frutos: foi premiado, no ano de 1887 por alguns admiradores e membros do
Club Athletico Fluminense, que se juntaram para lhe presentear com um velocípede novo
195
.
A exaltação aos atletas obedecia à situação econômica da sociedade, e principalmente, ao
status que o esporte ocupa na mesma. Muito mais identificada com o ciclismo, a capital francesa
dispensava aos seus campeões o tratamento de heróis nacionais. O garoto de recados Charles
193
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 15 de novembro de 1897, suplemento ao nº 319.
194
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 28 de dezembro de 1892, p. 2.
195
O PAIZ, 26 de janeiro de 1887, p. 2.
99
Terront, campeão da primeira prova Paris Brest, em 1891, tinha lugar reservado na tribuna de
honra da ópera de Paris
196
.
Aliás, na capital francesa o ciclismo se populariza rapidamente, além de ser uma boa
opção para mobilidade social. Nos primeiros anos, quando a bicicleta ainda era um artefato caro,
os primeiros campeões franceses são filhos de comerciantes, empresários pertencentes a classes
mais abastadas. Pouco tempo depois, com o declínio do preço das máquinas, vemos como
ganhadores das mais importantes provas do país, aprendizes de padeiro, açougueiros e
limpadores de chaminés, como Maurice Garin, o vencedor do primeiro Tour de France, em
1903
197
.
Em Paris as bicicletas haviam ganho as ruas, a cidade, o campo, e a preferência dos
franceses pelas provas de estrada frente aos velódromos era declarada. O espírito de aventura e o
desafio aos limites do corpo pelos ciclistas era constantemente exaltado pelos jornais. Nessa
época se percebe a utilização de termos como touring, entourage, e cicloturisme, fazendo
menção a esses aventureiros que faziam viagens pela Europa em bicicletas. O escritor e ciclista
Édouard de Perrodil, por exemplo, registrava em livros suas viagens de bicicleta, como as que
realizou de Paris a Madrid, Paris a Viena e Paris a Milão. Além de Perrodil, temos outros
escritores como Afred Jarry e Pierre Giffard
198
, que faziam da bicicleta o personagem principal
de suas histórias, contribuindo para a construção do imaginário francês sobre esse artefato.
O alto preço das bicicletas e conseqüentemente a proximidade da história desse artefato
com as elites podem indicar maiores possibilidades de reconhecimento das pessoas por trás desse
processo. Porém, apesar da história de pessoas ligadas às elites e ao poder possuir maiores
196
WEBER, 1988, op. cit., p. 240.
197
Pela vitória na prova, Garin recebeu a quantia de 6125 francos. Algumas provas na França chegavam a
premiações de 8000 francos. WEBER, op. cit., p. 241.
100
possibilidades de registros, o caso do ciclismo no Rio de Janeiro apresenta uma dificuldade talvez
inusitada.
Ao contrário dos tempos de Império, onde era importante divulgar os nomes dos membros
das “melhores famílias fluminenses” que tomavam parte nas competições ciclísticas, durante a
República o ato de identificar um ciclista pode às vezes tornar-se um desafio interessante para o
historiador.
Isso porque tornou-se hábito comum entre os ciclistas a adoção de pseudônimos para
participação nas competições. Excetuando-se alguns menos criativos, que utilizavam o
sobrenome como pseudônimo, encontramos atletas com as mais variadas denominações. Valores
exaltados no esporte ligados à força e velocidade, como Destemido, Cruel, Fleche; nomes de
marcas de bicicletas e acessórios, que por vezes patrocinavam os atletas, como Monarch e
Dunlop; vemos ainda nomes de cavalos campeões, reforçando as relações estabelecidas entre o
ciclismo e o turfe, como Huguenotte e Boulanger, respectivamente, nomes de cavalos campeões
que corriam no ano de 1890.
Outra dificuldade era que os corredores constantemente trocavam seus apelidos, como por
exemplo, os corredores Arnaldo e D’artagnan, que em 1893 passaram a se chamar A. Silva e
Mazzarin, respectivamente
199
. Mas a utilização dos pseudônimos dava charme ao esporte, e os
membros das elites cariocas viam seus alter egos exaltados na imprensa. Tomemos como
exemplo uma das corridas no Bellodromo Nacional:
Hoje deve realizar-se uma esplendida festa, sendo a great attraction do dia o match entre os
distinctos velocemen Jack e Gaston. Jack é o pseudonymo de um moço, filho de uma das
198
Além de escritor de diversas obras sobre ciclismo e também ciclista, Pierre Giffard era proprietário do Petit
Journal, que promoveu a primeira edição da famosa prova ciclística Paris-Brest, em 1891. PBP: site officiel du Paris-
Brest-Paris. Disponível em: http://www.paris-brest-paris.org. Acesso em: 26 de abril de 2006.
199
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 05 de setembro de 1893, p. 2.
101
primeiras famílias fluminenses. Isto equivale a dizer que hoje, no Bellodromo, não haverá um
só logar vasio
200
.
As batalhas e lutas tão exaltadas pela imprensa nas provas ciclísticas se estendiam ao
campo institucional. Os clubes de ciclismo tiveram importantes sportmen da época na condução
dos rumos do ciclismo na cidade.
Franklin Dutra foi o presidente do primeiro clube exclusivo de ciclismo no Rio de Janeiro.
À frente do mencionado Veloce-Club, de 1887, travou algumas batalhas com setores mais
tradicionais da sociedade carioca, muitos ainda reticentes quanto à presença da bicicleta e seus
propalados benefícios. Sobre uma reclamação de que ciclistas estariam causando acidentes e
transtornos às pessoas que procuravam o Parque da Aclamação para seus passeios, Dutra
respondeu:
Os velocipedistas que freqüentam o parque da Acclamação são todos moços da melhor
sociedade, que ali se reúnem por algumas horas de agradável passatempo. Como V. não
ignora, o gosto pelo velocípede está extraordinariamente diffundido na Europa, sendo que em
todos os jardins públicos são admittidos velocipedistas. Na Inglaterra e na França, até as
municipalidades conferem prêmios aos vencedores de corridas. No parque da Acclamação
reúne-se todas as tardes grande numero de pessoas que ali vão expressamente para apreciar os
velocipedistas, e um ou outro cavalheiro exquisito ou original pode antipathisar com
divertimento tão útil. Estou convencido de que tão injusta queixa partiu destes últimos, pois
que ainda não houve desastre algum a lamentar e nem é fácil que tal aconteça, porque os
sócios do Veloce-Club são prudentes nos seus exercícios e incapazes de offender a quem
quer que seja. Se, porém, a imprensa a quem me dirijo, julgar que é prejudicial ao publico o
uso do velocípede, eu me comprometto a convocar uma assembléia geral dos sócios do
Veloce-Club para tratarmos da sua dissolução
201
.
Dutra esteve na presidência do Veloce-Club durante todo o curto período de sua
existência. Quando o ciclismo volta a ocupar as páginas dos jornais, agora na capital da
200
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 14 de dezembro de 1892, p. 2.
201
O PAIZ, 31 de dezembro de 1887.
102
República, os nomes do Veloce, e de seus dirigentes e ciclistas não mais circulam nas notícias
dedicadas ao ciclismo. Novos clubes e pessoas surgiam à frente do esporte.
Uma dessas pessoas era o Major Emilio Huguet. Primeiro presidente do Velo-Club,
viabilizou suas ações buscando transformar seu clube na maior entidade representante do
ciclismo nacional. Organizava pic-nics, festas, passeios ciclísticos e excursões em bicicletas para
seus associados.
Destacamos também como importantes para o desenvolvimento do esporte os
administradores dos velódromos da capital. As confusões e dificuldades financeiras para manter
esses espaços de competições na capital resultaram em uma grande rotatividade dos responsáveis
pela administração dos velódromos. Em seus momentos áureos funcionavam diariamente, sendo
esses períodos curtos, intercalados por fechamentos temporários, porém constantes, para
reformas, mudanças na administração e no quadro de corredores.
No Bellodromo Nacional, o trabalho do Major Alfredo Vicente Martins foi pioneiro.
Inaugurou o espaço na cidade, fazendo altos investimentos para disponibilizar toda a infra-
estrutura necessária para o esporte. Em uma época onde as bicicletas ainda eram trazidas da
Europa, contratou também um grupo de ciclistas franceses, para mostrar o novo esporte à
população do Rio e incentivar os aspirantes ao ciclismo na capital. Além disso, organizou o
serviço de aluguel e lições de bicicletas, formulou junto a sua diretoria o código para os
corredores e mandou buscar um mecânico da Europa para cuidar das novas máquinas.
Destacamos também a figura de Victor Laborde, destacado ciclista e proprietário da
empresa Velo Sport, que organizava as competições no Frontão Velocipédico Fluminense. Talvez
por vivenciar um momento delicado para o ciclismo a discussão e torno do fim das apostas –,
Laborde transitava entre os dois lados da peleja. Esteve enquanto pôde a frente da empresa,
103
defendendo o ciclismo e as apostas no Frontão Velocipédico. Logo após sua saída, fundou o
Touring Club, que defendia terminantemente o fim das apostas no esporte.
O esporte cria, celebra e exalta seus ídolos. São eles uma das formas da expressão do
sucesso e da popularidade de uma modalidade esportiva. Paris estava cheia deles, como Maurice
Garin e Charles Terront, os mais famosos, mas haviam muitos outros.
No Rio os ciclistas estavam em número bem menor, mas os jornais tratavam de exaltar os
valentes e destemidos velocemen, que se prestavam a desafios e lutas fantásticas em cima de suas
bicicletas.
Guardando as devidas proporções com relação ao status do esporte no Rio de Janeiro e o
número de praticantes que crescia bastante se comparado aos tempos de Império, foi na
República que o ciclismo carioca conheceu seu primeiro grande herói.
O esporte vivia seu auge com o funcionamento dos velódromos e as apostas, além das
corridas e desafios nos parques públicos e em alguns hipódromos da cidade
202
. O ciclismo atraia
um número cada vez maior de espectadores, e vemos a modalidade alcançar o status de um dos
principais divertimentos esportivos da cidade. Tanto que o Jornal do Brasil realiza, em 1897 uma
consulta popular para saber quem eram respectivamente, o melhor jóquei e o melhor ciclista da
cidade.
A divulgação do resultado da consulta mostra como o ciclismo estava em voga, e seu
status chegou a se aproximar do gozado pelo turfe, incontestavelmente o esporte mais popular da
202
O Hipódromo Guanabara realizava eventuais páreos em bicicletas, como o páreo de 5 quilômetros em 1897
vencido pelo ciclistas Nelson. JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 30 de setembro de 1897, p. 2. Em 1898, o
Hippodromo Nacional realizou um atraente páreo para ciclistas, cuja premiação foi de 2:000$000. O PAIZ, 01 de
janeiro de 1898, p. 2.
104
época. Na primeira página do jornal, o desenho do ciclista vencedor: Arthur do Rego Pontes, que
corria sob o pseudônimo de Nelson
203
.
Nelson, o vencedor, foi o eleito no grande plebiscito convocado a dias pelo Jornal do Brasil.
O seu verdadeiro nome é, como noticiamos, Arthur do Rego Pontes, de 18 annos de edade, e
corredor official da casa Monarch, aqui do Rio. As numerosas victorias que tem alcançado o
fizeram cognominar o Rochura, nome pelo qual o tratam os diversos corredores. Arthur
Pontes é rapaz intelligente, rosto muito sympathico, como mostra a gravura acima. A
musculatura possante de Nelson foi devida ao exercício deste gênero de divertimentos, tão
agradável a que se dedicou desde muito
204
Apesar de jovem, Nelson era um considerado um veterano, exímio corredor das provas de
longa distância. Em 1897, ano em que venceu a enquete, era membro do Velo-Club e fez parte do
quadro de amadores do Bellodromo Nacional, correndo também no Frontão Velocipédico
Fluminense. Apesar de amador, era corredor da casa de bicicletas da marca Monarch, indo
inclusive a São Paulo para participar de desafios interestaduais.
Os exemplos aqui apresentados ressaltam alguns dos valores individuais para a história da
bicicleta e do ciclismo. Antes das bicicletas se tornarem objetos acessíveis a grande parcela da
população elas estiveram nas mãos de um grupo restrito de pessoas, que a exibiam como símbolo
de status e de distinção de classe.
Vimos aqui como essas pessoas utilizavam suas bicicletas. Daremos agora atenção
especial à cidade do Rio de Janeiro, mostrando como além do esporte e das corridas, essas
pessoas e suas máquinas descobriam também uma nova cidade.
Um passeio de bicicleta pela Belle Époque carioca
203
O jornal ainda apresenta o desenho do terceiro colocado, Joaquim da Silva que corria sob o pseudônimo de Kean.
Em outra edição, também em primeira gina, o desenho do segundo colocado, o já mencionado ciclista francês e
diretor da empresa Velo Sport, Victor Laborde.
204
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 24 de novembro de 1897, p. 1.
105
As bicicletas podem ser consideradas como um dos símbolos de identidade nacional para
os franceses. Sua presença nas ruas, as provas nos velódromos e nas estradas, a construção de
espaços e o funcionamento de serviços como trens e estabelecimentos comerciais pensando sua
presença são aspectos que exaltam a incorporação da bicicleta à paisagem da cidade.
Através das fontes buscaremos mostrar como se deu essa relação no Rio de Janeiro. Como
as primeiras bicicletas que chegam na cidade vão ganhando as ruas, e se relacionando com a
população. Naquele momento o ciclista era um ser estranho na cidade, e sua imagem era ligada à
outra apreensão também muito recente, que era a do homem moderno, do sportsman.
Um exemplo claro dessa apreensão está na charge intitulada “Instincto Imitativo”, de P.
Isasi, publicada no Jornal do Brasil no ano de 1900. A charge em dois quadros, retrata uma
multidão que observa um ciclista, ao lado de sua bicicleta, que por sua vez está a observar com
seu pince-nez um elefante. O ciclista está uniformizado como tal, diferindo de todos os outros
que o observam. O elefante então pega a bicicleta do ciclista com sua tromba, imitando o atleta,
utilizando-a como pince-nez. Vejamos o texto da charge:
Texto do quadro 1: “O elephante vendo o velocipedista que o observava atravéz dos aros de
um elegante pince-nez,” Texto do quadro 2: “... mostra que lhe é tambem facil imital-o, e
com a poderosa tromba applica nos olhos os aros das rodas d velocípede, com espanto geral
dos que o observavam
205
A charge mostra um único ciclista sendo observado por um grande número de pessoas, e
exalta o caráter de excentricidade representado por sua bicicleta, seu pince-nez e suas roupas, tão
diferentes dos demais presentes. Talvez essa fosse uma visão sobre os primeiros ciclistas que
exploraram a cidade.
106
Os ciclistas ainda eram poucos, e à exceção dos velódromos e dos parques públicos, onde
podiam ser encontrados em maior mero e com alguma facilidade, a presença de uma bicicleta
em alguns pontos da cidade ainda era um acontecimento raro.
Ocorre que a bicicleta ainda não havia legitimado sua presença nas ruas da cidade. Uma
cidade nova, que crescia e manifestava o seu desejo em ser uma capital moderna, que ainda seria
explorada pelas bicicletas. E assim eram vistos e se viam os primeiros ciclistas que
resolveram conhecer o Rio de Janeiro em suas bicicletas, como grandes aventureiros e
exploradores.
Dous distinctos amadores da bicycletta, major Emilio Huguet e Victorino José de Cerqueira,
fizeram no domingo último um longo passeio a Jacarepaguá, visitando a fazenda do
conhecido sportman barão da Taquara, indo depois á freguesia da Pena. Mais de trinta
kilometros por caminhos invios foram percorridos em bicycletta pelos corajosos amadores,
membros do Velo-Club, sendo o primeiro presidente e o segundo vice-presidente desta
sociedade. E assim vão se apurando o gosto pelo cyclismo, útil e agradável diversão
206
.
A medida em que esses ciclistas faziam suas excursões, exploravam o Rio de Janeiro, iam
conhecendo novos pontos da cidade e se fazendo conhecer. Reivindicavam também as ruas como
espaço para as bicicletas. Esses precursores incentivaram outros ciclistas a ocuparem as ruas com
suas bicicletas. A medida em que aumentava o número dessas máquinas na cidade, surgiam ações
e atividades organizadas entre os ciclistas. As mais conhecidas, os passeios ciclísticos e pic nics
organizados pelos clubes de ciclismo. Sozinhos ou em pequeno número, os ciclistas levavam suas
bicicletas aos limites da cidade, regiões ainda pouco habitadas ou que começavam a experimentar
o processo de expansão da cidade, com a chegada do serviço dos bondes.
Pic nic
205
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 04 de fevereiro de 1900, p. 2.
206
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 02 de junho de 1897, p. 2.
107
O Velo Club realiza hoje um pic nic em Copacabana sendo a partida dos sócios e convidados
as 8 horas da manhã, da sede social, à praça da República. Reina grande enthusiasmo pela
realização desta festa, que será sem dúvida mais um padrão de glórias para a sympathica
sociedade cyclista. Hoje mesmo inaugura-se a linha de bonds do Leme, próximo ao local do
pic nic
207
.
Os mais destemidos, inspirados pelos cicloturistas europeus começavam a planejar as suas
primeiras expedições, extrapolando os limites da cidade e se dirigindo a Petrópolis e Teresópolis,
cidades da região serrana.
Mais importante do que descobrir os extremos da cidade, as possibilidades de seus corpos
e de suas bicicletas, esse movimento representou uma ruptura com os limites até então
experimentados pelos ciclistas do Rio de Janeiro. O alto preço, o pequeno número de ciclistas e
bicicletas, a desconfiança de grande parte da sociedade e o entendimento de que o espaço dessas
máquinas se restringia apenas aos velódromos e parque públicos iam gradativamente sendo
deixados para trás.
E um grandioso evento, com objetivos muito mais amplos do que agregar ciclistas em
torno de passeios, pic nics ou explorações pela cidade marcaria essa mudança. Finalmente, o Rio
de Janeiro vivenciaria o seu maior evento ciclístico da época no dia 04 de julho de 1897. O Velo-
Club, imbuído do objetivo de moralização e incentivo da prática do ciclismo, foi o responsável
pela concepção e organização do evento:
Na ultima reunião dos sócios incumbidos da organização da grande passeiata velocipedica, a
realizar-se em 4 de julho próximo, foram approvados todos os trabalhos a que se entregaram
com ardor os valentes bicycletistas. Esperamos anciosos o próximo domingo em que teremos
de apreciar o importante espetáculo, o desfilar em ordem e talvez quinhentos bicyclettes pelas
ruas de nossa cidade. Merece todos os louvores o Velo-Club que tomou a iniciativa desta
festa, a primeira que aqui se realiza
208
.
207
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 15 de abril de 1900, p. 6.
208
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 27 de junho de 1897, p. 2.
108
Esperar quinhentas bicicletas naquele momento na cidade era algo realmente grandioso
209
.
Foram convidadas para o evento muitas das principais associações esportivas e culturais da elite
carioca, como por exemplo, o Club de Natação e Regatas, os velódromos Guanabara e Nacional,
o Bicyclette Club, os clubes Democráticos, Fenianos e Tenentes do Diabo, além dos prados
Jockey Club, Derby Club e Hippodromo Nacional
210
. Da mesma forma o itinerário, que percorria
as principais ruas da capital
211
, saindo do centro da cidade e se dirigindo ao bairro de Botafogo,
zona sul, para onde se mudavam membros da alta sociedade, orientando o novo ciclo de
crescimento do Rio de Janeiro, que culminaria nas reformas de Pereira Passos em 1903.
Tínhamos como certa a victoria do Velo-Club logo que se lançou aos ventos da publicidade o
projecto de uma passeiata velocipedica nas ruas desta capital, organisada por essa occasião.
Sendo como é a velocipedia um gênero de Sport chic e atraente, útil e agradável,
aguardávamos anciosos o dia 4 de julho para colhermos a prova affirmativa do que
imaginávamos. E assim aconteceu. Ás 2 horas da tarde, partia da Rua da Relação o elegante
préstito velocipedico, na seguinte ordem: á frente uma banda de clarins e sócios do Velo-
Club á cavallo; a comissão organisadora da passeiata, montando bicyclettes ornamentados
com fitas e flores, todos uniformisados o que produzio bellissimo effeito; a directoria e sócios
do Velo-Club, representantes dos Clubs de Regatas de Botafogo e Veteranos do Remo em
Tandens e bicycletas; muitos convidados amadores do cyclismo, notando-se entre estes um
cavalheiro em Tanden com exma. Senhora; diversos carros com representantes do
Bellodromo Guanabara, puchado por uma parelha de poneys; Velódromo Nacional;
Estudantina Arcas, Club de Natação, em um landau trazendo sobre o toldo arriado uma
soberba e originalíssima allegoria do sport náutico, muitos convidados e sócios do Velo-
Club. O itinerário annunciado foi percorrido á risca. De passagem na rua do Coronel Moreira
César, o prestito fez alto, ensarilhando os bicyclettes em filas. Apresentava a posição dos
bicycletistas junto as machinas ensarilhadas, o aspecto de soldados em descanso no campo de
batalha. Ahi foi comprimentada a imprensa por uma commissão. Ao passar o préstito em
frente a esta redacção foi saudado com enthusiasmo o Jornal do Brasil. Em todo o seu
percurso a passeiata causava ao publico admiração e enthusiasmo. Na enseada de Botafogo o
Club de Regatas de Botafogo cotejava em uma das suas mais elegantes embarcações, e
arvoraram os remos, em pida manobra, saudando os valentes bicycletistas que retribuíram
essa prova sympathica. Ás 6 horas da tarde o préstito estava de regresso na sede do Velo-
209
No mesmo ano de 1897, a França tinha uma frota estimada em 300 mil bicicletas. WEBER, 1988, op. cit., p. 244.
210
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 02 de julho de 1897, p. 2.
211
O itinerário do passeio foi o seguinte: sede social do Velo-Club à rua do Lavradio, Riachuelo, Inválidos, praça da
República, lado do corpo de bombeiros, Casa da Moeda, quartel-general e Intendência Municipal, ruas da
Constituição, Sete de Setembro, Primeiro de Março, Moreira César, Gonçalves Dias, Treze de Maio, Ajuda, Joaquim
Nabuco, Lapa, Glória, Cattete, Marquez de Abrantes, praia de Botafogo, ruas Senador Vergueiro, Cattete, Gloria,
Lapa, Joaquim Nabuco, Senador Dantas, Treze de Maio, Carioca, Visconde do Rio Branco e sede social.
JORNAL DO
BRASIL, Rio de Janeiro,
3
0 de ju
n
ho de 1897, p.
3
.
109
Club. Ahi foi servida uma lauta mesa, onde se trocaram muitos brindes, iniciando-os o major
Emilio Huguet, presidente do Velo-Club que saudou o Jornal do Brasil. Muitas outras
saudações teve ainda nossa folha, sendo todas agradecidas e retribuídas pelo nosso
representante, que foi recebido e tratado com especial distincção. Depois a Estudantina Arcos
arrancou de seus harmoniosos instrumentos lindas phrases musicaes, terminando com a
execução de um trecho do Guarany, a opera nacional sempre appaludida. A esta distincta
corporação de amadores o Velo-Club offereceu uma taça de champagne. Foi nesta occasião
que os intelligentes cultores da musica receberam muitas manifestações de sympathia.
Notamos os brindes do secretario do club sr. Frederico de Andrada á imprensa e em especial
á nossa redacção; o do major Emilio Huguet á velocipedia brasileira; o do jovem Fernando
Mendes Junior saudando no 4 de julho a unificação das duas américas com o thema “A união
faz a força”. O salão nobre do Velo-Club estava ornamentado com gosto, notando-se vários
escudos com data commemorativas, homenagens a diversas associações sportivas, á imprensa
e um escudo especial ao Jornal do Brasil. Terminando assim a sua esplendida festa, o Velo-
Club deu o primeiro passo para o desenvolvimento e moralidade o cyclismo no Brasil.
Damos aqui os nosso bravos de animação aos rapazes do Velo-Club
212
.
O evento representa o status que o ciclismo possuía na transição dos séculos XIX e XX no
Rio de Janeiro. Uma atividade com fortes vínculos com a elite da cidade, assim como o foi em
seus primórdios em Paris. Para além disso, mostrou também a importância que o esporte ocupava
no cotidiano dessa sociedade, e que aos poucos iam ampliando o seu número de adeptos.
O fim das apostas no esporte resultou no desinteresse da população pelos velódromos, que
seriam então desativados. Mas, no momento em que o esporte declinava, as bicicletas assumiam
seu espaço nas ruas da capital da República, e dentro em breve se tornaria um dos meios de
transportes mais populares do Rio de Janeiro.
212
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 06 de julho de 1897, p. 2.
110
CONCLUSÕES
Ao longo desse trabalho, buscamos apresentar elementos sobre a história da bicicleta nas
cidades do Rio de Janeiro e Paris, partindo de sua invenção até sua presença no cotidiano das
duas cidades. É chegado então o momento de apresentar algumas conclusões e observações feitas
ao longo dessa pesquisa.
Investigar a história da bicicleta e do ciclismo nas cidades do Rio de Janeiro e Paris foi
também buscar relações com estudos sobre as cidades e a modernidade da transição dos séculos
XIX e XX. Para além de narrar fatos e acontecimentos, buscamos relacioná-los com o contexto
das cidades e da modernidade que as mesmas vivenciavam.
Apesar das dificuldades no acesso as fontes primárias sobre a bicicleta e o ciclismo na
França, o desafio dessa escolha foi fundamental para os elementos levantados por esse trabalho.
A utilização de informações sobre a história da bicicleta e do ciclismo em Paris foi ponto
estratégico para o estabelecimento das comparações. Acreditamos que, apesar das dificuldades, a
comparação com Paris trouxe inúmeras contribuições para o alcance dos objetivos dessa
pesquisa. Local privilegiado para o estudo da Modernidade nos séculos XVIII e XIX, presenciou
a invenção da bicicleta, e viu o ciclismo se tornar seu esporte número um. O constraste dessa
realidade com a de uma República que ainda nascia, com o desejo de modernizar seus espaços e
costumes, onde a elite dirigente possuía aspirações francófilas nos faz acreditar que fizemos uma
opção acertada.
O exercício da comparação que nos levou a buscar as semelhanças e diferenças entre a
presença e o papel da bicicleta nas duas cidades também nos aponta para um dos principais
elementos para essa conclusão. Se a Modernidade se apresenta como um discurso geralmente
111
coeso em torno das transformações dos modos de vida, valores e costumes da sociedade –, em
uma análise mais detalha podemos perceber a presença de “modernidades diferenciadas”.
Tal fato pode parecer óbvio do ponto de vista histórico, pois se o contexto de cada cidade
é único, por conseguinte, as relações entre esse contexto e as bicicletas também o seriam. Mas é a
partir de investigações desse tipo que tais obviedades são trazida à tona, uma vez que passam a
coexistir com outros trabalhos que buscam explicitar o oposto: o discurso da apreensão direta do
projeto de modernidade européia (especialmente a francesa) do século XVIII e XIX pela
sociedade brasileira no século XIX e XX.
Os elementos aqui apresentados nos mostram que, se o discurso sobre a modernidade
estava presente tanto em Paris como no Rio, talvez a materialização de sua essência pudesse
ser observada na capital francesa. Ou seja, enquanto Paris se constituía como um efervescente
pólo onde se via materializar os discursos acerca da modernidade no estilo de vida e nos
costumes da população, no Rio de Janeiro a modernidade é também evidente, mas presente de
forma majoritária enquanto discurso e desejo. Apesar de presente no discurso da imprensa e das
elites, as ações em torno da modernização da sociedade fluminense ainda eram pioneiras, e não
possuíam demasiada amplitude. A breve comparação das obras do Barão de Haussmann com as
Grandes obras de Pereira Passos, bem como as dificuldades iniciais da população do Rio de
Janeiro em compreender a bicicleta e o ciclismo exemplificam essa idéia.
Além disso, todo o discurso e as primeiras ações que procuravam fazer do Rio uma
sociedade moderna e progressista possuíam um pequeno raio de ação. A poucos metros da Rua
do Ouvidor e do pequeno espaço onde se concentravam as primeiras bicicletas e novidades da
modernidade do Rio de Janeiro, era possível encontrar famílias de valores tradicionais dos
tempos do Império, além de fazendas, plantações, e criações, e uma população com estilo de vida
tipicamente rural.
112
As diferenças entre a presença da bicicleta no Rio de Janeiro e em Paris aqui abordadas
não se restringem ao status de mercado periférico da primeira e de mercado produtor da segunda.
O preço e a economia definitivamente se constituem em fatores importantes para a popularização
das bicicletas, mas não os únicos. Talvez o fator preço seja o responsável pela diferença de
algumas décadas para a popularização das bicicletas. No período analisado por esse trabalho, as
bicicletas no Rio de Janeiro se mantiveram como um objeto das classes mais abastadas, enquanto
na França eram amplamente utilizadas pelas massas de operários e membros das camadas
populares.
Mas, deve-se também levar em conta o valor e as representações sobre a bicicleta no
imaginário e no cotidiano de cada sociedade. Sendo assim, talvez tão importante quanto guardar
as devidas proporções dos contextos econômicos e sociais de Rio de Janeiro e Paris, seja levantar
o aspecto da identificação de seus habitantes com o ciclismo, que passará inclusive no caso
francês – por questões relativas à identidade nacional.
Além disso, fica claro que a invenção da bicicleta proporcionou uma clara revolução nos
meios de transporte. Se esse fato ainda não podia ser percebido na cidade do Rio de Janeiro,
devido ao ainda pequeno número de bicicletas circulando na cidade, em Paris era uma
realidade. Mesmo porque, como já mencionado, o potencial da bicicleta enquanto meio de
transporte de massa só e percebido quando esse artefato passa a ser produzido em série, e o
barateamento em seu custo faz com que ele possa então ser adquirido por membros das camadas
economicamente mais pobres da população.
Nesse sentido a bicicleta teve papel central na mobilidade de trabalhadores, juntamente
com os bondes, que passariam então a habitar os crescentes subúrbios das cidades de Paris, e
posteriormente, do Rio de Janeiro. Cabe ressaltar também que no período pesquisado, outros
meios de transporte como o automóvel e o avião não passavam de novas e espetaculares
113
invenções, mas ainda destinada a uma reduzidíssima parcela da população, tal qual foi a bicicleta
nos primeiros anos da década de 1860.
Acreditamos que esse trabalho apresenta como principal contribuição a investigação sobre
os primórdios da bicicleta e do ciclismo na cidade do Rio de Janeiro, tema esse que ainda não
apresentava nenhum trabalho realizado com fontes primárias. A história da bicicleta e do
ciclismo no Brasil começa a ser escrita, na esperança de novas contribuições sobre o tema.
Essa investigação deixa também algumas lacunas, indicações e orientações para os
interessados em aprofundar e enriquecer os estudos sobre a história da bicicleta e do ciclismo no
Brasil.
A principal delas seria a continuidade dos estudos, avançando mais nos primeiros anos do
século XX, buscando compreender como ocorreu o processo de popularização das bicicletas no
Brasil. Terminamos nossa pesquisa nos jornais no ano de 1901, sendo que desse período até a
instalação da primeira fábrica de bicicletas no país ainda se passariam 47 anos. Fica então o
desfio de uma pesquisa que procure dar continuidade a esse processo, investigando o caminho
percorrido pelas bicicletas, das mãos dos membros de famílias abastadas do Rio de Janeiro até os
entregadores de pão, trabalhadores das primeiras indústrias e do comércio em geral.
Além disso, a descoberta e o acesso a novas fontes podem enriquecer as informações
produzidas com essa pesquisa. Pesquisando a movimentação do porto do Rio de Janeiro
publicada nos jornais não está presente de forma discriminada a chegada das bicicletas. Da
mesma forma, não conseguimos encontrar ou mesmo saber se estão preservadas as licenças
de importação desses produtos. O acesso a essas informações ajudaria a precisar o número de
bicicletas, marcas e modelos presentes na cidade.
Por fim, enfatizamos mais uma vez a importância da história da bicicleta e do ciclismo
como contribuição para os estudos sobre a Modernidade. O “cavalo de ferro” instaurou novos
114
padrões de mobilidade no mundo, novas formas de se locomover e conhecer lugares novos e
conhecidos. Estudar a história desse artefato significou perpassar por diversas esferas da
sociedade, como o trabalho, os esportes e o lazer, percebendo como uma invenção humana pôde
inserir-se profundamente em seu cotidiano, afetando uma época e seu conjunto de valores.
115
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