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Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais – IFCS
Programa de Pós-Graduação em História Comparada – PPGHC
Celso Branco
Noel Rosa e Chico Buarque comparados:
A construção da tradição na canção popular brasileira.
Dissertação de Mestrado
Orientador: Prof. Dr. Victor Andrade de Melo
Rio de Janeiro
2008
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Celso Branco
Noel Rosa e Chico Buarque comparados:
A construção da tradição na canção popular brasileira.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Comparada do Instituto
de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em História Comparada.
Orientador: Prof. Dr. Victor Andrade de Melo
Rio de Janeiro
2008
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Celso Branco
Noel Rosa e Chico Buarque comparados:
A construção da tradição na canção popular
brasileira.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História Comparada (PPGHC) do
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como
parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre
em História Comparada.
Aprovada em 28 de fevereiro de 2008, por:
________________________________________________ (Orientador)
(Prof. Dr. Victor Andrade de Melo / UFRJ)
___________________________________________________
(Prof. Dr. Marcos Napolitano / USP)
___________________________________________________
(Prof. Dr. Marcos Luiz Bretas da Fonseca / UFRJ)
___________________________________________________
(Profa. Dra. Sabrina Evangelista Medeiros / UFRJ)
___________________________________________________
(Prof. Dr. Francisco Carlos Teixeira da Silva – UFRJ)
Rio de Janeiro
2008
4
Dedicatória
Aos meus pais, Geraldo e Olímpia, com
todo o amor do meu coração.
E também ao meu saudoso maestro e
irmão Marcos Leite.
5
Agradecimentos
Agradeço a todos que de forma direta ou indireta ajudaram nesta empreitada:
Victor Andrade de Melo, Marcos Napolitano, Maria Clara Wasserman, Marcos Bretas,
Sabrina Medeiros, Edinha Diniz, Francisco Carlos Teixeira da Silva, Marco Aurélio
Hamellin, Marcos Leite, Victor Gabriel, Abel Rocha, Augusto Boal, Grupo Garganta
Profunda, Nestor de Hollanda Cavalcante, Festival de Música de Londrina.
6
RESUMO
BRANCO, Celso. Noel Rosa e Chico Buarque comparados: a construção da tradição na
canção popular brasileira. Rio de Janeiro, 2008. Dissertação (Mestrado em História
Comparada). Programa de Pós-Graduação em História Comparada, Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008
Esta pesquisa de mestrado tem por objetivo discutir características comuns das obras
de dois autores de inegável popularidade, Noel Rosa (1910-1937) e Chico Buarque de
Hollanda (1944), para analisá-las, através do método comparativo, como integrantes
“inequívocas” de uma mesma “linha de tradição”. Expõe-se aqui a trajetória dessas
características compartilhadas pelos compositores, e como se tornaram parte de uma mesma
“linguagem tradicional” da música urbana brasileira. A escolha dos autores se relaciona ao
destaque que obtiveram durante as duas mais importantes fases de “fixação” da canção
brasileira moderna: os anos 1930 e os anos 196070, como mainstream corrente musical
principal – da música popular brasileira.
7
ABSTRACT
BRANCO, Celso. Noel Rosa e Chico Buarque comparados: a construção da tradição na
canção popular brasileira. Rio de Janeiro, 2008. Dissertação (Mestrado em História
Comparada). Programa de Pós-Graduação em História Comparada, Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008
This research aims to discuss common features of the works of two authors of
undeniable popularity, Noel Rosa (1910-1937) and Chico Buarque de Hollanda (1944), to
analyze them through the comparative method, as members "unequivocal” of the same "line
of tradition." It’s about the trajectory of those characteristics shared by composers, and
became part of the same "traditional language" of the Brazilian urban music. The choice made
here, of authors is related to the prominence they obtained during the two most important
stages of stablishment of modern Brazilian song: the years 1930 and the years 1960/70, as
mainstream of Brazilian popular music.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO – Música Popular e Tradição. p. 9
1 – Música e História – o debate metodológico. p. 11
2 – A invenção das tradições. p. 22
3 – A música como fonte para a História. p. 27
4 – A História Comparada. p. 30
CAPÍTULO 1 – Noel Rosa e Chico Buarque: tradição e modernidade. p. 33
1.1 – Noel: construtor da tradição. p. 34
1.2 – De Noel até Chico: a tese da decadência. p. 52
1.3 – Chico: engajado na tradição. p. 56
1.4 – Noel e Chico: laços e heranças. p. 76
CAPÍTULO 2 – Noel Rosa e Chico Buarque: críticos brasilianistas. p. 84
2.1 - Defensores da brasilidade. p. 84
2.2 - A filosofia do samba nas regras da arte . p. 114
2.3 – Críticos das elites e defensores dos marginalizados. p. 120
2.4 - A escola da malandragem. p. 138
2.5 – O sentimentalismo à brasileira. p. 166
CONCLUSÕES p. 178
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS p. 183
9
INTRODUÇÃO - Música Popular e Tradição
“A História é um carro alegre
Cheio de um povo contente
Que atropela indiferente
Todo aquele que a negue”.
(Versos de “Canción por la unidad
Latinoamericana”, Pablo Milanés,
versão de Chico Buarque, 1978)
A música popular brasileira tem sido investigada em diversas instâncias acadêmicas,
na maior parte das vezes em estudos oriundos dos departamentos de Letras ou de Ciências da
Comunicação
1
. A partir da década de 1980, começa também a ser inserida em trabalhos que
investigam os sentidos da cultura de massa, produzidos junto aos departamentos de
Antropologia e de História
2
.
Este estudo histórico aborda a canção popular brasileira buscando discutir a sua
“tradição”, o seu modus operandi próprio e os valores culturais estabelecidos. Exploraremos a
tradição em seus discursos diversos e por vezes amesmo contraditórios, reconhecendo que
ela não corresponde a um projeto definido por um único agente ou instituição específica, mas
sim por inúmeras tentativas de construção de uma imagem auto-representativa da cultura
brasileira.
O objetivo desta pesquisa é analisar, através das obras de Noel de Medeiros Rosa e
Chico Buarque de Hollanda, algumas das características permanentes ou mais presentes que
traduzem o conceito de pertencimento à tradição musical brasileira (e aceito por especialistas
como tal), buscando discutir de que maneira elas se solidificaram durante o século XX, ao
ponto de serem representadas como “realmente tradicionais” na produção musical e no ideário
cultural brasileiro. Para isto, iremos evidenciar nas obras destes compositores as semelhanças
(pontos reiterativos), nos olhares sobre a sociedade brasileira, e a atuação de ambos na
construção de um ideário nacional que poderemos chamar de “comum”. Vamos realçar os
principais elementos construtivos da tradição que eles criaram ou reforçaram. Entre estes,
1
Ver, por exemplo: SANT´ANNA, Affonso Romano de: Música popular e moderna poesia brasileira.
Petrópolis: Vozes, 1986; e Muniz Sodré: Samba, o dono do corpo. Rio de Janeiro: Codecri, 1979.
10
investigaremos as tentativas dos autores de representar a “brasilidade” (identidade cultural
brasileira) e a que intenções estas representações poderiam servir, buscando identificar
continuidades, bem como especificidades de cada época e de cada compositor.
Enfrentaremos a questão das mensagens divulgadas pela música popular e de sua
cooptação ou interação com a massa insabida de ouvintes-consumidores
3
. O contexto
sócio-cultural (urbano), o cenário geral das produções musicais dos dois períodos estudados,
serão também comparados, ao mesmo tempo em que se discutirá uma definição do espaço
poético e musical eternizado por estes compositores dentro da idéia de tradição.
A escolha dos autores se relaciona com o destaque que obtiveram durante as duas mais
importantes fases de “fixação” da canção brasileira moderna: os anos 1930 (Época de Ouro) e
os anos 196070 (Era dos Festivais da Canção e da solidificação da sigla MPB). Suas obras,
como veremos, são constantemente referendadas como integrantes do maistream corrente
musical principal da música popular brasileira. Através da análise destas fases, podemos
arrolar a percepção de que Noel Rosa é um dos construtores da tradição (ou das bases
estéticas e simbólicas da tradição musical brasileira) e Chico Buarque um reforçador ou
comentador da mesma, reiterando o universo criado em parte por Noel e desenvolvendo os
seus significados.
Definir a participação de Noel Rosa e Chico Buarque na construção da tradição
cultural brasileira significa identificar também um determinado “procedimento consagrado”
na criação da música popular, compartilhado por estes e outros autores. Ou seja, este estudo
vem explicitar também, para além dos conceitos e personagens comuns e temas “canônicos”
explorados por eles, as práticas metodológicas usuais da cultura musical brasileira, tais como:
a articulação entre a palavra e a melodia, as soluções musicais, os recursos sonoros
consagrados, os gêneros privilegiados e, enfim, uma rie de elementos que traduziram o
universo comum e popular. Procuraremos explicitar o espaço específico da expressão moral,
política e sentimental do povo brasileiro, que foi se confirmando em torno de signos próprios
2
Ver, por exemplo: Roberto da Matta. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema
brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1979; e Alberto Moby (Alberto Ribeiro da Silva): Sinal fechado: A música
popular brasileira sob censura. Rio de Janeiro: Obra aberta, 1994.
3
Esta expressão do historiador Orlando de Barros fornece uma idéia clara da dificuldade de definição dos
interlocutores aqui apresentados. (BARROS, Orlando de. Custódio Mesquita: um compositor romântico no
tempo de Vargas (1930-45). Rio de Janeiro: Funarte/ EdUERJ, 2001. p. 17.)
11
ao longo do século XX, dando vazão a representação sobre uma “índole autenticamente
brasileira”, apesar de ser basicamente urbana e carioca.
1 - Música e História – o debate metodológico sobre a música popular.
Antes de entrarmos no cerne da dissertação aqui apresentada, a relação entre as obras
de Noel Rosa e Chico Buarque e destas com a “tradição popular brasileira”, precisamos
definir os objetos centrais desse estudo e nos ater em alguns pontos que fundamentarão nossas
discussões e ponderações. Questões iniciais: Que patrimônio cultural é este: o popular
brasileiro? Como os historiadores que se utilizam da música popular brasileira como fonte
abordam e definem a “música popular”, bem como a construção das tradições referentes a
ela?
Comecemos com as questões: Qual é a relevância da utilização do conceito de
“música popular” quando nos referirmos à manifestações musicais distintas, em períodos
diversos, e uma vez que reconhecemos trajetórias de significados também diferentes? Como
pode um conceito (música popular) abarcar gêneros musicais tão diversos como (no caso
brasileiro) lundu, frevo, polca, maxixe, modinha, chorinho, samba, marcha, etc.? Estes
problemas já fizeram historiadores renomados desistirem da utilização destas fontes.
Roger Chartier, por exemplo, refuta a noção de “cultura popular”, afirmando que não
como definir seus limites precisos, e chamando a atenção para as múltiplas formas de
divisões na sociedade, além da divisão letrado/popular:
A história sociocultural aceitou durante muito tempo (pelo menos em França) uma
definição redutora do social, confundido exclusivamente com a hierarquia das
fortunas e das condições, esquecendo que outras diferenças, fundadas nas pertenças
sexuais, territoriais ou religiosas eram plenamente sociais e susceptíveis de
explicar, tanto ou melhor do que a oposição entre dominantes e dominados, a
pluralidade das práticas culturais
4
.
Também é conhecida a objeção de Adorno à utilização da canção e da cultura de massa
como expressões “autênticas” da sociedade. Os motivos que desqualificam a fonte: seu caráter
mercantil, sua falta de valores estéticos, sua redundância, seu caráter imobilista e alienante, já
4
CHARTIER, Roger. Textos, impressos e leituras. In: A história Culturas: entre práticas e representações. p.
136.
12
que normalizador dos discursos dominantes e da sedação dos sentidos.”
5
Walter
Benjamim, da mesma escola de Adorno, também desqualifica a autenticidade da cultura de
massa, evidenciando seu significado político. Porém, por outro lado, reconhece não ser a
massa totalmente amorfa ou passiva
6
.
Umberto Eco relativiza estas críticas ao contrapor os argumentos daqueles que
criticam a cultura de massa (como Adorno e Benjamim os “apocalípticos”) com os
argumentos daqueles que a defendem (os “integrados”)
7
. Para, por fim, reconhecer a canção
como um campo ideológico por excelência
8
.
Buscando respostas às questões colocadas, vamos neste capítulo apresentar as
principais formas de abordagens do conceito de “música popular” em autores que produziram
importantes estudos sobre esta manifestação cultural no Brasil e na América Latina: Arnaldo
Contier, José Miguel Wisnik, Santuza Cambraia Naves, Nestor Garcia Canclini, Hermano
Vianna e Marcos Napolitano.
Segundo Arnaldo Contier, notável historiador da identidade nacional brasileira
imiscuída na música popular, os primeiros impulsos para uma produção historiográfica que
qualificasse a música popular no Brasil, alimentaram-se de idéias modernistas presentes nas
obras de Mário de Andrade e Renato Almeida, ao longo dos anos 1920 e 30, e cresceram com
o debate sobre o problema da brasilidade, da identidade nacional e dos procedimentos pelos
quais deveria ser pesquisada e incorporada a "fala do povo" (e do folclore) aos projetos
ligados aos modernismos
9
. Uma parte significativa desses projetos, depois de devidamente
filtrados, chegaram até mesmo a fazer parte dos planos do primeiro governo Vargas.
10
Para
5
ADORNO, Theodor W. O fetichismo na música e a regressão da audição”. In: Os pensadores, v. XLVIII. o
Paulo: Abril Cultural, 1975. p. 173-182.
6
BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”. In: Os Pensadores, v. XLVIII.
São Paulo: Abril Cultural, 1975, p. 12.
7
ECO, Umberto: Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1979. Capítulo “A Canção de consumo”. p.
43.
8
ECO, Op. cit. p. 295-314.
9
CONTIER, Arnaldo. "Música no Brasil: história e interdisciplinaridade. Algumas interpretações (1926-1980)".
História em Debate. Atas do XVI Simpósio Nacional de História, ANPUH, Rio de Janeiro,
1991,ANPUH/CNPQ, pp.151-189. As idéias de Mário de Andrade sobre a identidade brasileira, referidas por
Contier, estão em: ANDRADE, M. Ensaio sobre música brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 1962. Quanto
à Renato Almeida, suas considerações sobre o tema estão em: ALMEIDA, Renato. “O samba carioca”. In.
MARIZA, Lira exposição de folclóre no Brasil. (Achegas para a exposição do Folclóre no Brasil.). Rio de
Janeiro, 1953. pág. 61.
10
Uma boa descrição de como certos ideais modernistas foram absorvidos pelo governo Vargas se encontra em:
CAVALCANTI, Lauro. Preocupações do Belo. Rio de Janeiro: Taurus, 1995.
13
Contier, é neste período de exagerados nacionalismos, em escala planetária, que irão se definir
os primeiros parâmetros da música popular - "certas formas e constâncias brasileiras", notadas
no lundu, na modinha e na utilização generalizada da sincope, por exemplo, e que estavam
devidamente captados a um paradigma ao qual não se encaixavam certas “invencionices”
modernistas de última hora ou seja, que procurava definir uma “tradição”.
Contier se referia a José Miguel Wisnik, que analisou as concepções de “música
popular” criadas por dois grandes representantes do “nacionalismo musical modernista”:
Villa-Lobos e Mário de Andrade. Para Wisnik, o nacionalismo de Villa-Lobos se desenvolveu
a partir da “música popular urbana” de seresteiros, chorões e sambistas
11
. Mário de Andrade,
por outro lado, foi o criador ou teórico do mais notório projeto de música nacional, que dava o
papel centralizador da cultura ao músico, e conciliava o país “na horizontalidade do território
e na verticalidade das classes”. José Miguel Wisnik defende que aos modernistas não
interessava a “cultura popular urbana”, e preferiam as “fontes da cultura popular rural”, ainda
que estilizadas, para a criação de uma arte “genuinamente” nacional. Para o nacionalismo
musical dos modernistas das cadas de 1920 e 1930, como demonstra o autor, o povo era
idealizado e identificado como ingênuo, rústico e até mesmo “puro”, contrastando
enormemente com a realidade das sociedades urbanas, que se reconheciam nas festas e
manifestações coletivas que iam do carnaval ás greves.
O projeto nacionalista destes intelectuais, portanto, não incluía a música popular
(ligada ao meio urbano), por ser diversificada e inconstante demais, ou seja, fugidia à idéia de
construção de uma “tradição”. A “verdadeira” fonte da originalidade da nação estaria na
“música popular rural”.
Aqui temos, portanto, a descrição de uma tentativa de construção da tradição nos anos
20/30. Pois partindo de ”cima” de artistas e intelectuais (até certo ponto engajados em
projetos modernizadores do Estado) negava a realidade de “baixo”, o contingente urbano
advindo da industrialização. Wisnik reconhece, no entanto, um trânsito de informações entre
“biombos culturais” diferentes. Esta expressão havia sido utilizada por Muniz Sodré para
definir os limites territoriais das manifestações musicais na casa das tias baianas: na sala da
frente aconteciam as polcas e lundus; na parte dos fundos, o samba de partido alto; e no
11
WISNIK, José Miguel. Getúlio da Paixão Cearense (Villa-Lobos e o Estado Novo). In: Squeff, Enio e Wisnik,
José Miguel. O nacional e o popular na cultura brasileira. p.136
14
terreiro dos fundos: a batucada identificada com o candomblé”
12
. Wisnik afirma que
informações transpassavam estes limites, e também o limite das casas e dos salões de
concertos e terreiros de candomblé
13
. Os códigos musicais circulavam entre os diferentes
grupos sociais que freqüentavam estes espaços. Mas serviam sobretudo à expressão dos
grupos dominados política e economicamente. A resistência à dominação, segundo Wisnik,
encontrava nas manifestações religiosas e na música popular (voltada para um mercado mais
imediato), seus espaços de expressão por excelência, enquanto os modernistas buscavam o
apoio do Estado para implementarem um projeto racional” que excluía a diversificação das
músicas “comerciais” das rádios e discos
14
.
Santuza Cambraia Naves também refletiu sobre a relação entre os intelectuais do
movimento modernista e os músicos populares, porém sob uma ótica distinta de José Miguel
Wisnik. Ela afirma que os modernistas, na tentativa de encontrarem uma originalidade
cultural para a nação, ainda que considerassem a música erudita como a verdadeira arte,
valorizaram o que era considerado inferior pelos ideólogos da civilização, ou seja, a cultura
popular
15
. A autora afirma que os modernistas incorporaram a sua maneira o popular, os
“sons populares”, apesar de inferiores ao erudito, desde que não tivessem sido transformados
pelo rádio ou pelo mercado de discos:
(...) se os músicos populares se mantêm espontâneos, não corrompidos pelo
processo de modernização e condizentes com um estágio cultural primitivo, o
canibalizados pelos compositores modernistas. Mas se perdem a ingenuidade
original, deixando-se contaminar pelos meios de comunicação de massa, tornam-se
alvo de crítica por parte dos mesmos
16
.
Para Santuza, não houve diálogo ou interlocução entre os artistas populares e os
eruditos, mas apenas uma prática de escuta antropofágicapor parte dos modernistas em
relação às músicas executadas nos “redutos boêmios” do Rio de Janeiro
17
. Para a autora, os
modernistas, absorveram a “música popular”, mas, os músicos populares mantiveram a sua
prática, sem ouvirem os modernistas. Ao empreender uma análise comparativa entre a estética
dos modernistas e a dos músicos populares, ela constata que enquanto os músicos modernistas
12
SODRÉ, Muniz. Apud. Wisnik, J. Getúlio da Paixão Cearense. In: Enio Squeff e José Miguel Wisnik. O
Nacional e o popular na cultura brasileira. p.154
13
WISNIK. Op. cit. p. 133.
14
Ibid. p. 152.
15
NAVES, Santuza Cambraia. O Violão Azul: modernismo e música popular. Rio de Janeiro, Ed. FGV, 1998. p.
45.
16
Ibid., p. 50
17
Ibid., p. 24.
15
buscavam a formação de uma cultura homogênea e totalizadora, com uma linguagem que
prezava pelo sublime, os músicos populares compunham “ao sabor das contingências”,
buscando tanto a tradição quanto aos elementos ligados à modernidade em suas composições.
Os exemplos citados pela autora: Noel Rosa e Lamartine Babo, ecléticos quanto aos gêneros
musicais e aos intérpretes que escolhiam
18
, e os sambistas da Cidade Nova (como Donga e
Sinhô) cujo “estilo de vida pequeno-burguês” produzia uma linguagem musical distinta da
linguagem dos sambistas do Estácio, esta ligada ao dia-a-dia das favelas
19
.
A autora conclui que todos estes compositores alimentavam as diferentes linguagens
que formavam a “música popular”, sem negar o repertório associado à produção musical rural
ou ainda a linguagens “mais antigas”. Por este motivo ela afirma que “é difícil adotar
critérios rígidos para analisar a música popular do período modernista, mas isto não a
impede de utilizar a noção de “música popular” como um único rótulo para linguagens
variadas. “Músicos populares” formariam uma categoria permanente na produção musical do
século XX, abarcando os sambistas da década de 1920 a 1940, bem como os integrantes da
Bossa Nova e também os tropicalistas
20
. A autora, portanto, não se preocupou em delimitar o
conceito “música popular”, já que “inclui manifestações de diferentes linguagens e relativas à
grupos sociais e contextos diversificados
21
.
Contrapondo estas obras, percebemos que enquanto José Miguel Wisnik enfatiza a
atuação dos músicos populares na afirmação da sua música, através do mercado fonográfico,
em confronto com os projetos modernistas que não comportavam a diversidade destas
composições, Santuza Cambraia Naves afirma que eram os modernistas que assimilavam as
“composições populares”, ao passo que os “músicos populares” apenas exibiam suas
manifestações musicais. Contudo, ambas as conclusões contribuem para pensar a música
popular como uma prática isolada ou específica de certos grupos populares, o que representa o
risco de se levar em conta uma “música popular original, pura e autêntica”, oposta a uma
“música de massas”, ou ainda de se incorporar à hierarquia criada pelos modernistas.
18
Ibid., p. 109-116 (Noel Rosa) e p. 116-121 (Lamartine Babo).
19
Ibid., p. 91
20
Ibid., p. 221-223.
21
Ibid., p. 223.
16
Encontramos uma abordagem que transpassa a oposição entre intelectuais e populares
em Néstor Garcia Canclini. Este estudioso argentino afirma que nos setores populares sempre
coexistiram modernidade e tradição
22
. Para ele, o fenômeno da “hibridação” cultural é a
marca mais evidente das relações culturais na América Latina, problematizando assim a
percepção simplificada na oposição entre atores / receptores. Ele reconhece a crise teórica
atual na investigação do popular, mas reafirma que o conceito continua sendo útil e revelador:
Os fenômenos culturais folk ou tradicionais são hoje o produto multideterminado de
agentes populares e hegemônicos, rurais e urbanos, locais, nacionais e
transnacionais. Por extensão, é possível pensar que o popular é constituído por
processos híbridos e complexos, usando como signos de identificação elementos
procedentes de diversas classes e nações
23
.
Esta percepção de Canclini nos permite inferir que aquilo que passou a ser identificado
como “música popular” é resultado da atuação dos músicos populares, como também dos
demais atores sociais que se relacionaram com esta “música popular”, como foi o caso dos
modernistas. Sob esta ótica não é possível considerar, como propôs Santuza Cambraia Naves,
a assimilação de uma música popular espontânea, pura e autêntica, nem a dicotomia aparente
entre esta e a “música de massas”. Mas sim, um processo permanente de produção cultural
derivada de diferentes atores sociais. Canclini afirma que não necessariamente os setores
populares buscaram a preservação de tradições ou se relacionaram com projetos de
modernização das sociedades
24
. Ele ilustra com situações onde a condição de “músico popular”
permitia conquistas econômicas (como a participação no mercado fonográfico) e reconhecimento
pela classe musical e pelo público (muitas vezes músicos eruditos e membros da elite econômica).
Para stor Canclini, o popular não é monopólio dos setores populares, mas uma dramatização
dinâmica de experiências coletivas”. É, enfim uma invenção”, uma forma de relacionar os fatos
passados para legitimar o presente
25
.
É sob uma ótica semelhante que encontramos em Hermano Vianna, outra importante
reflexão sobre a relação entre os “músicos populares” e os “modernistas”. Ele acrescenta que
o processo de transformação do samba, até então ritmo combatido, em um elemento central da
identidade do país corresponde a um processo tão intrigante quanto misterioso. O “mistério do
samba” teria relação com o mistério da mestiçagem, que de forma análoga era considerada
22
CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas. Estratégias para entrar e sair da modernidade. ed. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000. p. 69.
23
Ibid., p. 220-221.
24
Ibid., p. 236.
25
Ibid., p. 219-220.
17
fator de depauperação cultural e passou a ser reconhecida como elemento de originalidade da
nação.
Ao descrever um notável encontro entre o historiador Sérgio Buarque de Holanda, o
antropólogo Gilberto Freire, os maestros Villa-Lobos e Luciano Gallet, os “músicos
populares” Pixinguinha, Patrício Teixeira e Donga, e também o promotor e jornalista Prudente
de Morais Neto, em 1926, em um café do bairro carioca do Catete
26
, o autor sugere que a
transformação do samba em símbolo da identidade nacional não foi repentina, mas resultante
de vários contatos, entre diferentes grupos sociais. Estes, “deliberadamente”, ou quase,
buscavam inventar a “cultura popular” e a “identidade” brasileiras, e também a construção de
uma tradição e da idéia de uma autenticidade. A valorização da mestiçagem está presente nas
obras de todos eles, notadamente na de Gilberto Freire, conferindo o elemento de unidade
nacional. Para este, havia, em 1926, "dois Brasis" antagônicos: "um Brasil oficial, postiço e
ridículo" que "tapa" o outro Brasil, este real, a ser valorizado junto com o preto
27
. E nos
informa ainda: " no Rio um movimento de valorização do negro". Porém, o motivo que
levou à esse movimento, seria para Freyre, bastante abstrato - como observa Vianna: uma
"tendência para a sinceridade", que "está fazendo o brasileiro ser sincero num ponto de
reconhecer-se penetrado da influência negra"
28
.
Ao mesmo tempo, décadas de 1920/30, vários símbolos da mestiçagem começam a ser
eleitos e exaltados dentro da chamada “cultura popular”: a feijoada, a batucada, a “delicada”
sensibilidade brasileira
29
. Para Gilberto Freyre, o processo de construção da nossa identidade
estava a atropelar os idis eugênicos de “purificão” da raça e o sonho de “branqueamento” de
alguns eméritos brasileiros. A sinceridade, que afirma Freyre, estava no fato do Brasil comar
a assumir o que ele era. E é evidente que, no movimento de valorização do negro e na conquista
dessa sinceridade, a sica popular seria um elemento fundamental. Gilberto Freyre evidencia a
26
VIANNA, Hermano. O mistério do samba. p.19
27
"Acerca da valorização do preto", in: Diário de Pernambuco -19/09/1926. Apud: VIANA, Hermano, O Misrio
do Samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/ UFRJ,1995. 5ª ed. 2004, p.27.
28
FREYRE, Gilberto. Tempo de Aprendiz. São Paulo/ Brasília: Ibrasa/INL, 1979, p.329. Apud: VIANA,
Hermano. Op. cit. p. 27 e 28.
29
Na edição de 1940 de Fontes da Cultura Brasileira, de Bezerra de Freitas, lemos no capítulo “Aspectos
espirituais do Brasil” (p. 73): A delicada sensibilidade brasileira, fonte de agudo lirismo, fundo de todo o
período romântico e da literatura sertanista infiltrou-se nos menores característicos da nossa existência, o
que levou ainda aquele escritor (Robert Garric) a afirmar que a nossa atmosfera política é de liberdade e
humanidade. Os aspectos mais interessantes desse excesso de sensibilidade vamos encontrar no
catolicismo, (...)”. p. 75. (FREITAS, Bezerra de. Fontes da Cultura Brasileira. Porto Alegre: Ed. da Livraria
do Globo, 1940.)
18
importância do elemento musical adotando um estilo de manifesto : "pela valorização das
cantigas negras, das danças negras, misturadas a restos de fados; e queo talvez a melhor coisa
do Brasil"
30
.
A partir destas afirmações de Gilberto Freyre, Hermano Vianna dedica-se a investigar essa
transformação bastante curiosa, quase inexplicável, ou seja, o misrio do samba, a transformação
do mesmo, antes perseguido pelas autoridades, em elemento central da definão da identidade
nacional. Tratou-se portanto de uma outra revolão (cultural), paralela à revolução política (de
1930), no qual o o elemento negro mas também a sua arte, e até mesmo a favela onde ele
mora, se verão paulatinamente valorizados dentro de um “novo” ideário de nacionalidade. Esta
“constatão havia sido relatada por antropólogos como Peter Fry , em artigo de 1982:
O samba, outro letimo mbolo da cultura brasileira era, no começo, produzido e
consumido nos 'morros' do Rio de Janeiro e reprimido com violência pela pocia e
foado à se esconder no candomblé, então considerado ligeiramente mais suportável.
Com o tempo, entretanto, a importância crescente do carnaval provocou a transformação
de represo em apoio manifesto
31
.
Ainda resta a pergunta: porque foram escolhidos elementos característicos do grupo
dominado para a representação da identidade nacional? Para Peter Fry, "a conversão de mbolos
étnicos em símbolos nacionais não apenas oculta uma situão de dominação racial, mas torna
muito mais difícil a tarefa de denunciá-la"
32
. Assim a aceitação destes elementos teriam a função
de “ocultar o preconceito atrás de uma apenas “aparente” aceitão. Roberto da Matta nos
apresenta outra resposta: “Não haveria mais a necessidade de segregar o mestiço, o mulato, o
índio e o negro, porque as hierarquias asseguravam a superioridade do branco como grupo
dominante
33
.
Ou seja, a sociedade “branca” o se via mais ameaçada pela “mestiça” e por isso haveria
mais tolerância. De qualquer forma, notamos nestes autores a preocupão em explicar a
intermediação e o sincretismo. Vianna nos uma resposta mais completa: "A transformação do
samba em sica nacional não foi um acontecimento repentino, indo da represo à louvação em
menos de uma cada, mas sim o coroamento de uma tradição secular de contatos entre rios
grupos sociais na tentativa de inventar a identidade e a cultura popular brasileiras
34
.
30
FREYRE,G. Apud: VIANNA, Hermano. Op. cit. p. 28.
31
FRY, Peter "Feijoada e soul food". In: Para Inglês Ver. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. pp. 47 – 58.
32
FRY, Peter. Op.cit., 1982 pp. 52-53. Apud Vianna, H. Op. cit. p.31.
33
DAMATTA, Roberto.. "Disgressão: abula das três raças, ou o problema do racismo à brasileira". In Relativizando:
uma introdução à antropologia social. Petrópolis, Vozes, 1981. p. 75.
34
VIANNA, H. Op. cit. p.34.
19
É importante ressaltar que Hermano Vianna reconhece que a identidade popular
brasileira não é propriedade ou invenção de um único grupo social:
O samba não é apenas a criação de grupos de negros pobres moradores dos morros
do Rio de Janeiro, mas que outros grupos, de outras classes e outras raças e outras
nações, participaram desse processo, pelo menos como ‘ativos’ espectadores e
incentivadores das performances musicais
35
.
Vianna se opõe á Santuza Naves quando afirma que os músicos considerados
populares tinham participação ativa no contato com os intelectuais modernistas e com os
músicos eruditos. Nestes encontros não teria havido um controle centralizado, ou uma
operação coordenada para fazer do samba, o ritmo nacional, mas sim uma espécie de
cooperação oportunista para projetos pessoais:
Os vários grupos usavam uns aos outros para atingir objetivos diversos: este podia
estar interessado na construção da nacionalidade brasileira; aquele em sua
sobrevivência profissional no mundo da música; aquele outro em fazer arte
moderna. Em vários momentos era possível estabelecer pactos entre os vários
interesses. Pactos nunca eternos. Pactos sempre renegociáveis
36
.
Para Vianna, a cultura popular da década de 1920 é resultado da atuação de indivíduos
definidos como “mediadores culturais” que realizaram o diálogo entre “mundos” distintos, o
“mundo” da elite intelectual e o “mundo” dos “músicos populares”. O encontro estudado por
Hermano Vianna teria sido apenas um entre vários encontros de mediadores culturais. Estes
sujeitos se caracterizariam por uma “individualidade singular” que o autor reconheceu em
determinados artistas, intelectuais e personalidades do Rio de Janeiro; pessoas que
desenvolveram a capacidade de trocar informações entre realidades contrastantes. O exemplo
máximo de “espaço de mediação cultural” estaria representado no próprio carnaval, realizado
por grupos sociais com experiências diversificadas
37
, ao passo que o samba tomou o rótulo de
“música genuinamente brasileira” em diferentes grupos sociais. A idéia de mediação de
Vianna, possui o inconveniente de pressupor a existência de culturas diferentes, com
fronteiras permeadas por indivíduos que ocupavam posições estratégicas. Permanece a
questão da definição das fronteiras que separam as culturas específicas de cada grupo social.
35
VIANNA. Op. cit. p.35
36
VIANNA. Op. cit. p.152
37
VIANNA. Op. cit. p.42
20
O historiador Marcos Napolitano foge deste impasse considerando outros fatores
estruturais como a inserção da indústria fonográfica
38
, mas reconhece uma identificação entre
a cultura e classe social. Em sintonia com Canclini, este historiador se opõe a uma definição
de música brasileira pura ou original:
A música brasileira é, em parte, o produto desta apropriação e desse encontro de
classes e grupos socioculturais heterogêneos. Não houve, na verdade, a apropriação
de um material ‘puro e autêntico’ como querem alguns críticos (Tinhorão, 1981), na
medida em que as classes populares, sobretudo os ‘negros pobres’ do Rio de Janeiro
e mestiços do Nordeste, já tinham a sua leitura do mundo branco e da cultura
hegemônica
39
.
Por outro lado, Napolitano concorda com o papel predominante dos setores populares
na produção cultural, apesar das apropriações diversas, e explora uma “trajetória da tradição”,
para explicitar a somatória de representações contida na idéia de “identidade nacional”.
Para dar nome as coisas, poderíamos dizer que uma linha formativa da nossa
tradição musical popular, sempre questionada de tempos em tempos, mas que
acabou por ser fundamental para a nossa auto-imagem musical e para afirmação da
música popular brasileira como fenômeno cultural amplo e complexo
40
.
Para este historiador paulista a MPB defini-se mais como uma instituição
sociocultural, depositária de uma tradição e de um conjunto de cânones estéticos e valores
ideológicos.Instituição que, como diz o autor, apesar da crise dos anos 1980 que a colocou
em segundo plano no mercado musical, é, em sua opinião, ainda forte o suficiente para se
impor como medida de valor e símbolo de uma época em que a música popular foi um dos
centros do projeto moderno brasileiro”
41
.
A cada transformação dos valores estéticos, culturais e ideológicos dos momentos
históricos encontramos correspondentes mudanças na forma de se avaliar a música popular. A
partir desta constatação, Marcos Napolitano elaborou uma periodização, que segue em parte
as cronologias bem conhecidas de pesquisadores apaixonados pela manutenção da tradição
em seus “moldes originais” como José Ramos Tinhorão
42
e Ary Vasconcelos
43
. Estes
classificaram a história da música popular brasileira de maneira didática em diferentes fases,
38
NAPOLITANO, Marcos. História e Música – história cultural da música popular. Belo Horizonte: Autêntica,
2002. p. 9.
39
Ibid, p.48.
40
NAPOLITANO, Marcos. A síncope das idéias: a questão da tradição na música popular brasileira. São Paulo:
Editora Fundação Perseu Abramo, 2007.
41
Ibid., p.6-7.
42
TINHORÃO, Jose Ramos. Pequena História da Música Popular. São Paulo: Ática, 1978.
43
VASCONCELOS, Ary. Panorama da Música Brasileira. São Paulo, Livraria Martins, 1964.
21
que repetem percepções de auge e decadência: fase de formação (1902 – 1929), época de ouro
(1930 – 1945) época moderna (1945 – 1958) e época contemporânea (1958 em diante).
Classificação reforçada também por Vasco Mariz
44
, Zuza Homem de Mello e Jairo Severiano
45
(estes últimos acrescentariam uma segunda época de ouro entre os anos 1966 1972). Em
todas estas periodizações, a proposta metodológica é comum: sugerir os anos 30 como a
época que corresponde a melhor fase da música popular brasileira. Napolitano escolhe datas
próximas a estas, também motivadas por transformações da música popular e da tradição que
carrega:
a) Os anos 20/30, quando o samba se torna um “gênero nacional”; Houve aqui a primeira
transformação de valores, decorrente da gradativa aceitação da música popular pelos
setores médios, provocando um deslocamento do lugar social” da música popular.
Ocorre aqui a nacionalização do samba, bem como as primeiras tentativas de
“higienização” através de projetos modernizadores.
b) Final dos anos 1940 e anos 1950, com a afirmação dos elementos nacionais, mas
muito suscetível também ás influências estrangeiras. Nesta fase tomam forma os
conceitos de “velha guarda” e “época de ouro” e todo o “o edifício da tradição”
46
.
c) Os anos 1959/1968, com do conceito de “musica popular brasileira”, com a
incorporação de novos elementos estéticos e técnicas interpretativas; uma segunda
fase de grande criatividade que inclui a Bossa Nova, a música do CPC da Une, a
música feita para o teatro revolucionário e a televisão com os programas de música
brasileira e os Festivais da Canção, que por sua vez incluíam a Tropicália. Em 1966,
com o fenômeno da Jovem Guarda, reinicia-se a discussão sobre a preservação da
tradição e a formulação da idéia de “linha evolutiva”.
d) Os anos 1972 a 1979, período pouco estudado, porém fundamental para a
reorganização dos termos do diálogo musical presente-passado
47
, se referindo a
incorporação de tradições que estavam fora do “nacional-popular” (como por
44
MARIZ, Vasco. Vida musical. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. O livro reúne artigos publicados
pelo musicólogo Vasco Mariz no suplemento Cultura do jornal O Estado de São Paulo, entre 1984 e1991.
45
MELLO, Zuza Homem e SEVERIANO, Jairo. A Canção do tempo. Rio de janeiro: Editora 34, 1998, onde se
pode ler: A música popular brasileira tem sua primeira grande fase no período 1929/1945. É a chamada
Época de Ouro, em que se profissionaliza, vive uma de suas etapas mais férteis e estabelece padrões que
vigorarão pelo resto do século. p. 85.
46
NAPOLITANO, Marcos. A síncope das idéias: a questão da tradição na música popular brasileira. Op. cit. p.
65.
47
NAPOLITANO, M. História e Música. p. 49.
22
exemplo, o pop) e a consolidação de um conceito mais amplo da sigla M.P.B. dentro
do complexo cultural.
Para Marcos Napolitano, a música popular” pode o ser reconhecida como
manifestação pura de uma classe, porém não deixa de estar relacionada às classes populares e
a uma gradativa aceitação pelos setores médios. A música popular”, constata o autor, se
firmou no gosto das novas camadas urbanas seja nos extratos médios da população, seja nas
classes trabalhadoras, que cresciam vertiginosamente com a nova expansão industrial na
virada do século XIX para o século XX
48
.
São estes parâmetros definidos por Marcos Napolitano, que iremos utilizar para
processar as informações aventadas nesta pesquisa, isto é, pressupondo a “construção” de um
ideário tomado como símbolo da identidade cultural brasileira e representado pela chamada
“música popular”; e admitindo que os agentes desta construção tiveram interesses e motivos
diversos em suas contribuições, o que não impediu no entanto que estas se somassem,
reiterando o mesmo universo até apresentar um conjunto de elementos tidos como
“tradicionais”.
A cultura popular não é a cultura de uma classe. Ela não está concentrada em objetos
de funcionalidades evidentes, mas no âmbito do discurso, e num posicionamento cultural de
indivíduos perante a sociedade. Como expressão de uma “luta pela hegemonia”, ela não pode
ser desprezada pelos historiadores. Contudo é necessário o cuidado de identificar quem está
chamando determinada manifestação de popular, e qual é a intenção por trás desta nomeação.
Deve-se questionar de onde falam os agentes sobre cujos discursos nos debruçamos.
2 – A invenção das Tradições
A segunda necessidade de definição se refere ao conceito tradição. A manutenção ou
não de tradições culturais tem sido motivo de reações extremadas tanto de conservadores
quanto de revolucionários ao longo da história da humanidade. Mas o que é que elas
48
Ibid., p.16.
23
realmente representam? E porque se faz tanto estardalhaço quando as tradições parecem
ameaçadas?
Segundo o historiador que mais se debruçou sobre esse tema, o renomado egípcio de
alma britânica, Eric Hobsbawm, as tradições culturais de cada povo cumprem papéis
importantíssimos na formação das identidades nacionais, definindo os aspectos mais
característicos e de preferência únicos de cada nação. Desta forma, reunido sob a égide de um
conjunto de tradições, um povo reforça seus laços de coesão e identidade, o que se torna
extremamente útil aos ideais nacionalistas de qualquer país. Não é a toa que grande parte das
tradições culturais se estabeleceram ao mesmo tempo em que os nacionalismos se tornavam
mais extremados, o que se verificou nos países ocidentais a partir de meados do século XIX.
Hobsbawn afirma que as tradições européias surgiram com freqüência excepcional no
período que vai de 1870 a 1890 e continuaram a surgir pelo menos até 1914, como reflexo das
profundas e rápidas transformações sociais do século XIX
49
. No Brasil, as principais
tradições culturais foram se solidificando no imaginário nacional a partir da cada de 1930,
quando, a exemplo do que ocorrera na Europa, grupos sociais e contextos inteiramente novos
exigiam novos instrumentos que assegurassem a identidade e a coesão social, e que
estruturassem as novas relações sociais.
Inventar uma tradição representa, portanto, definir “um conjunto de práticas reguladas
por regras aceitas, de natureza ritual ou simbólica, que visam inculcar certos valores e
normas de comportamento através da repetição uma continuidade com um passado
histórico apropriado
50
. Eric Hobsbawn apontou que as novas tradições apresentam
depósitos bem supridos de elementos rituais e simbólicos oriundos da religião, da pompa
principesca, da maçonaria e do folclore
51
. Elementos que são rapidamente mobilizados em
momentos realmente revolucionários, como por exemplo, na passagem do Ancient Regime
para uma sociedade que se utilizaria do sufrágio universal na escolha de seus líderes. As
novas tradições sedimentaram o imaginário próprio de cada uma das nações, apresentando um
denso conteúdo moral, ético, estético, cívico e patriótico. No processo de sedimentação das
práticas tradicionais, canções folclóricas, campeonatos esportivos e festas religiosas “são
49
HOBSBAWN, Eric e TERENCE, Ranger (orgs). A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
p. 271.
50
HOBSBAWN, Eric e TERENCE, Ranger . Op. Cit. p. 10.
24
modificadas e institucionalizadas para servir a novos propósitos nacionais
52
. Sendo assim,
as tradições inventadas são especialmente notáveis para a história moderna e contemporânea,
porque eso ligadas à inovação histórica que foi a construção da idéia de nação e seus
fenômenos associados: o nacionalismo, o Estado-Nacional, os símbolos nacionais, as
interpretações históricas, e daí por diante. Todos esses elementos baseiam-se em atitudes
deliberadas por agentes históricos eo totalmente inovadores. Estes agiriam com o intuito de
reforçar a coesão social através de uma “identidade cultural” forjada com a tradição, além de
legitimar as instituições ou relações de autoridade e, por fim ainda, inculcar os valores morais
e padrões de comportamento que passam a ser relacionados com uma nação ou povo
específico.
Da mesma maneira, a tradição cultural brasileira irá apresentar, seguindo os critérios
utilizados por Hobsbawm, uma trajetória definida por elementos essencialmente nacionais,
com o propósito de construir uma identidade brasileira, na repetição constante de seus
principais elementos ou na sua lenta modificação. Esses elementos são detectados nas obras
de diversos autores e artistas (historiadores, biógrafos, cronistas, ensaístas, jornalistas,
pintores, compositores etc.) em temas e motes que reaparecem desenvolvidos ou reforçados
53
. Nesse contexto de formação das tradições, os compositores e interpretes, com seus
talentos, vão utilizar deliberadamente a canção popular como um dos mais importantes
veículos de conformação e identificação da nossa nação, da brasilidade, e estarão assim
também bastante implicados com o sentimento nacionalista que cresceu no Brasil, sobretudo a
partir dos anos 1930
54
.
51
HOBSBAWN, Eric e TERENCE, Ranger . Op. Cit. pp. 9 e 10.
52
HOBSBAWN, Eric e TERENCE, Ranger . Op. Cit. p. 22.
53
É inegável a importância dos anos 1930 para a formação da identidade cultural brasileira. Em escala mundial
acontecia o mesmo em diferentes regiões, num período de perigosos radicalismos nacionalistas, fomentados,
sobretudo pela desilusão com o capitalismo liberal e com a democracia, após a crise econômica mundial de
1929. Só para exemplificar esta afirmação: é nos anos 1930 que veremos surgir no Brasil grandes obras
literárias que irão revolucionar o pensamento brasileiro sobre si mesmo. Basta lembrar de O País do
Carnaval, de Jorge Amado (1931), de Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freire (1933), de Evolução
Política do Brasil de Caio Prado nior (1933), de Serafim Ponte Grande de Oswald de Andrade (1934) ou
de Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda (1936), entre muitas publicações. Nestas obras, as
avaliações sobre a história e as potencialidades do Brasil eram bem mais positivas do que aquela velha visão
do Jeca-Tatu de Monteiro Lobato (personagem de crônicas publicadas no jornal O Estado de São Paulo e
reunidas em Velha Praga e Urupês, de 1914), de um Brasil doente e atrasado, que se envergonhava de si
mesmo – visão muito comum até o final dos anos 1920.
54
Muitos pesquisadores produziram importantes trabalhos investigativos sobre este tema no Brasil, dos quais
podemos citar para um quadro remissivo incluindo os que foram citados: Arnaldo Contier (Música e
Ideologia no Brasil, 1985; Brasil Novo: música, nação e modernidade, 1986; Edu Lobo e Carlos Lyra: o
nacional e o popular na canção de protesto,1998), Marcos Napolitano (A síncope das idéias: A questão da
tradição na música popular brasileira, 2007; “A invenção da Música Popular Brasileira: um campo de
25
na década de 1920 surgia o debate sobre quais eram as canções ou as práticas
musicais que expressavam a brasilidade conceito idealizado por agentes diversos como
vimos. Para estes, os gêneros musicais populares deveriam, de forma contrária à música
erudita, entendida como universal, ter suas raízes fincadas em tradições nacionais. Mas estas
eram definidas de forma arbitrária por cada especialista, e propostas eram elaboradas sem que
um consenso sobre o que era eminentemente brasileiro se distinguisse da usina sonora
nacional que ia da polca ao samba. Porém a diversidade que parecia um grande problema para
a unidade cultural” vai aos poucos contribuindo para a construção de um painel onde as
composições foram se encaixando através das temáticas, dos estilos, gêneros, intérpretes, etc.
As gravações em disco (registrando as composições brasileiras desde 1902) ajudaram
na busca das delimitações dos gêneros e dos universos que aqui se desenvolviam, e o samba e
o seu “mundo” tornaram-se os mais facilmente identificáveis. Com seu ritmo binário, frases
melódicas simples, em geral de oito compassos, refrões fáceis, letras “brejeiras” de
expressões, situações e personagens tipicamente cariocas, e acompanhamento do indefectível
violão e também do pandeiro, cavaquinho e muitas vezes do piano e do bandolim (estes
comuns nas gravações até os anos 1930), o samba logo seria alçado a ritmo brasileiro por
excelência. Suas ligações com o carnaval, “a festa maior” que vinha ganhando dimensões
também cada vez maiores, contribuíram em grande parte para a sua identificação rápida como
um símbolo nacional.
O Samba, por sua vez, proporcionou o surgimento de “intelectuais” populares que
notabilizaram a Capital Federal, distinguindo-a da maioria das cidades brasileiras ainda muito
marcadas pela aristocracia rural ou pela “aristocracia de negócios”, como a da indústria
nascente de São Paulo, responsável por certa “disciplinarização” da vida popular
55
. O Rio de
Janeiro despontava com a sua modernização urbana e com sua forte cultura marcada pela
reflexão para a história social”, 1998; ”Do sarau ao comício: inovação musical no Brasil” - 19591963, 1999;
“Tropicalismo: as relíquias do Brasil em debate”,1998; “A Música Popular Brasileira nos anos 60:
apontamentos para um balanço historiográfico”, 1998); José Miguel Winisk (Getúlio da Paixão Cearense:
Villa-Lobos e o Estado Novo, 1982); Hermano Vianna (O Mistério do Samba, 1995), Jorge Caldeira (Voz
macia: o samba como padrão de música popular brasileira: 19171939, 1989; Noel Rosa: de costas para o
mar, 1984) e Carlos Sandroni (Mário contra Macunaíma, 1988; O Feitiço Decente: transformações do
samba no Rio de Janeiro (1917-1933), 2001); entre outros. A discussão sobre a tradição na música popular
de outros países e o seu relacionamento com os respectivos nacionalismos pode ser encontrada em obras de
T. Adorno (“Moda sem tempo: sobre o jazz”, 1968; “Sobre a música popular”, 1994; “Idéias para a
sociologia da música”, 1968); o bastante citado Eric Hobsbawm (A Invenção das Tradições, 1997; The
Jazz Scene, 1993) e Nestor Garcia Canclini, (Culturas Híbridas, 1997) Na bibliografia relacionada ao final
deste trabalho se encontram as referências completas sobre essas obras.
26
desenvoltura e musicalidade de mulatos e negros, na maioria pobres, que sem terem de se
submeter ao domínio de coronéis ou patrões da moderna fábrica podiam se dar ao luxo de
“criar”. Lembra a pesquisadora Maria Alice Rezende de Carvalho que a criatividade, aliás,
não era só luxo, mas também necessidade para uma grande parte deste contingente que
ocupava moradias precárias nos morros do Centro da cidade e tinha ocupação temporária.
Suas vidas seriam ainda marcadas pela improvisação e por um compositório de referências
originárias dos portugueses pobres da região portuária, dos negros bantos, majoritários no
Rio (cristianizados) e dos negros sudaneses, adquiridos na Bahia para as lavouras de café
ainda no império
56
.
Por tudo isto, o Rio, na década de 1920, se firmava inequivocamente como o centro
da construção da tradição popular brasileira e cidade de grande ebulição do espaço público,
festivo e artístico: numerosas festas religiosas com quermesses, festas cívicas, terreiros com
batucadas, cordões carnavalescos, teatros de revista, circos, coretos, desfiles de escolas de
samba, aulas de piano e violão, e as muitas lojas de música, como O Cavaquinho de Ouro, da
rua da Alfândega, onde Noel Rosa, procurava aprender violão com João Pernambuco
57
. Neste
cenário privilegiado, estas atividades foram exercidas por segmentos de todas as classes, que
construíram juntas um ideário de brasilidade.
Para finalizarmos, cabe ainda salientar que estamos seguindo a ponderação de
Hermano Vianna, para quem, na pesquisa sobre as origens das nossas tradições culturais, não
cabem as descobertas das "verdadeiras raízes" antes escondidas, ou "tapadas" pela repressão
ideológica, mas sim o desvendamento do processo de invenção e valorização da autenticidade
sambista; a invenção da “nossa tradão" ou da "fabricação da autenticidade brasileira”, para usar
expressões sustentadas, respectivamente por Eric Hobsbawn e Richard Peterson
58
.
55
Confira: CARVALHO, Maria Alice Rezende de. Quatro vezes cidade. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994.
56
CARVALHO, Maria Alice Rezende de. “O Samba, a opinião e outras bossas... na construção republicana do
Brasil.”. In: Decantando a República, v.1 : inventário histórico e político da canção popular moderna
brasileira / Berenice Cavalcante, Heloísa Maria Murgel Starling, José Eisenberg, organizadores. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004. pp. 40/41.
57
MÁXIMO, João; DIDIER, Carlos. Noel Rosa, uma biografia. Brasília: Editora UnB, 1990. p. 65.
58
HOBSBAWN, Eric. Op. cit. e também em: Nações e nacionalismo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990. E
PETERSON, Richard. 1992. "La fabrication de L'authenticité: Ia country music". Actes de La Recherche, 93,
junho de 1992, p.3-19
27
3 – A Música como fonte para a História
Umberto Eco reconhece na canção um campo ideológico inquestionável
59
, ainda que
não seja captada muito além da “banalidade sentimental”, ou do conformismo apaziguador”.
José Miguel Wisnik enxerga múltiplas mensagens numa “teia de recados” que traduz a vida
urbana e industrial. Mas a verdade é que ainda é um desafio para o historiador apresentar a
canção popular como um importante objeto de interpretação da realidade. As causas desta
dificuldade o assim diagnosticadas por Maria Alice Rezende de Carvalho: são decorrentes
ou da complexidade de manuseio das ferramentas para exploração do objeto (que escapam
ao curioso”) ou do gosto do pesquisador que acaba por cegá-lo sobre os sentidos que
emergem da canção
60
. Sendo assim, é necessário que sejam expostas, se não algumas das
principais premissas de que lançamos mão, ao menos alguns princípios ou postulados básicos
que vieram a nortear a pesquisa e a balizar os resultados. Partimos, portanto, da concordância
com estes argumentos (tomados de empréstimo à autora citada), que corroboram a hipótese de
ser a música popular uma forma de narrativa sobre a “moderna tradição brasileira”:
1. A música popular é capaz de expor o país ao conhecimento de si e, ao fazê-lo ampliar
o círculo de “intérpretes do Brasil”.
2. É um eficiente mecanismo de formação de consenso e de ampliação da esfera pública
até o limite de um indivíduo.
3. É um veículo de trocas que corta transversalmente a Cidade e integra públicos
diversos.
4. Fornece temas e vocabulário com o qual o debate sobre a realidade brasileira se torna
possível.
5. Produz referências comuns, em um mundo marcado por particularismos
61
.
Com base nestas constatações podemos deduzir também que, para além das belas
melodias e poemas, as composições musicais deixaram registradas, de forma especial, os
59
ECO, Umberto: Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1979 (no ensaio “A canção de consumo”,
onde analisa a obra Le canzone della cattiva conscienza). p. 295 – 314.
60
CARVALHO, Maria Alice Rezende de Carvalho. “O Samba, a opinião e outras bossas... na construção
republicana do Brasil”. In:Decantando a República, v.1 : inventário histórico e político da canção popular
moderna brasileira / Berenice Cavalcante, Heloísa Maria Murgel Starling, José Eisenberg (orgs). Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.
61
CARVALHO, M. A. R. de, op. cit., p.39.
28
sentimentos ou impressões da nossa sociedade resultantes dos mais variados acontecimentos
históricos.
Compositores populares brasileiros de todas as diversas tendências contribuíram
para a formação de um imenso painel histórico-musical; um quadro composto por um quebra-
cabeça onde os acontecimentos históricos aparecem registrados dentro de uma “ótica
popular”, ou seja, que traz versões populares sobre os fatos; e onde cada peça se encaixa
numa seqüência temporal de percepções dos fatos, confirmando muitas vezes uma visão
ideológica de conjunto. A cada revisão do conteúdo histórico de cada uma das nossas canções,
nos saltam aos olhos registros sobre o universo moral e ético do contexto de suas produções:
julgamentos, normas, ilusões, desejos, medos, traumas, enfim, um conjunto harmônico de
mentalidades predominantes no contexto de cada produção. Como Marcos Napolitano define
sucintamente: “a música popular é uma espécie de repertório de memória coletiva
62
.
Portanto, partimos da definição que a canção, como afirma Orlando de Barros, é a
forma privilegiada do dizer popular, vedada que estava quase sempre às oportunidades
institucionais de expressão”
63
. É preciso ressaltar também, como nos lembra este historiador,
que a “música do povo” muitas vezes estava sendo criada também por gente originária da
“elite”, mas que não perdia de vista em suas composições aquele universo criado pelo samba
de origem mais humilde - para explicitar esta situação com um exemplo: Custódio Mesquita.
É importante evidenciar que, ao mesmo tempo em que a música popular procurou
traduzir as sensações decorrentes dos fatos, ela mesma passou a produzir novos fatos e
sensações, realimentando as suas estruturas de reprodução. A música popular passou a ter
enorme influência na formação da opinião pública especificamente “brasileira”, por exemplo,
com a ampliação das transmissões radiofônicas, já no início dos anos 1930. Ora ressaltando a
intenção da paráfrase, como encontraríamos numa ode ou exaltação qualquer, ora ressoando
na crítica (muitas vezes aliada ao humor da paródia), ou ainda com matizes de intenções
diversas, a música, capaz de confirmar ou provocar uma emoção coletiva, pode facilmente
revelar o relacionamento íntimo com seu contexto histórico. Referindo-se comumente a um
fato, fenômeno ou personagem importante ou à percepção de uma época sobre si mesma,
62
NAPOLITANO, Marcos. A síncope da idéias: a questão da tradição na música popular brasileira. São Paulo:
Editora Fundação Perseu Abramo, 2007. (Coleção História do Povo Brasileiro). p. 5.
29
encontramos na produção musical o que para os historiadores significa o registro de uma
opinião pública, datada e em geral auto-justificada. Ora, essa opinião “coletiva” parece ser
uma das grandes contribuições da música popular brasileira à História, pois é o registro da
percepção dos fatos pela ótica das camadas populares, distinta, portanto das interpretações dos
intelectuais, e que contém sua “sabedoria” numa linguagem própria. Uma “sabedoria de vida”
ou de vivências, uma espécie de “antologia da experiência brasileira”, por trás das estruturas
da linguagem verbal e da linguagem musical. Na nossa música, como nas demais músicas e
outras artes identificadas com um projeto de nação, encontramos uma expressão franca e rica
de autenticidade, ou no caso, de brasilidade, um consciente e um inconsciente coletivo, que
informam e nutrem o estudo da História.
O historiador Marcos Napolitano, que produziu um excelente compêndio em nossa
língua sobre a utilização da música popular pela História (História & Música História
cultural da música popular, 2002), nos dá mais detalhes sobre a importância dessa fonte:
A música, sobretudo a chamada ‘música popular’, ocupa no Brasil um lugar
privilegiado na história sociocultural, lugar de mediações, fusões, encontros de
diversas etnias, classes e regiões que formam o nosso grande mosaico nacional.
Além disso, a música tem sido, ao menos em boa parte do século XX, a tradutora
dos nossos dilemas nacionais e veículo de nossas utopias sociais. Para completar,
ela conseguiu, ao menos nos últimos quarenta anos, atingir um grau de
reconhecimento cultural que encontra poucos paralelos no mundo ocidental
64
.
Assim, através dos artistas populares e suas canções podemos entrar em contato com o
“clima social” produzido pelos fatos, ou seja, com todo o moralismo popular transitório, num
conjunto de valores nascidos aqui, após terem sido mesclados pelos diversos povos que
formaram a sociedade brasileira. As músicas populares são, portanto, fontes muito especiais
para a História, pois através delas entramos em contato com o universo popular e seu conjunto
de valores, crenças, ideais e preconceitos. A favor da utilização dessas fontes, ainda contamos
com a profusão criativa e com o consumo generalizado da música do Brasil pelo seu
território, que graças à difusão exponencial do rádio e mais tarde da TV, iria definir e
confirmar o conteúdo moral, ético, estético e simbólico que se tornou o núcleo da nossa
identidade cultural de brasileiros.
63
BARROS, Orlando de. Custódio Mesquita: um compositor romântico no tempo de Vargas (1930-45). Rio de
Janeiro:Funarte: EdUERJ, 2001. p. 21.
64
NAPOLITANO, Marcos. História e Música – história cultural da música popular. Belo Horizonte: Autêntica,
2002. p.7.
30
4 – A História Comparada
Para entrar efetivamente na “atmosfera” dos fatos proporcionada pela música popular
e nela descobrir novos elementos para a história da nossa sociedade utilizaremos o método
comparativo na amplitude da definição de Ciro Flamarion Cardoso (1976): “Explicar as
semelhanças e diferenças que apresentam duas séries de natureza análoga, tomadas de meios
sociais distintos”
65
, e por este meio compreender as principais causas e os mecanismos de
construção do fenômeno da tradição na música popular brasileira. Nosso objetivo aqui é então
o mesmo apontado pelo renomado historiador brasileiro, qual seja o de colaborar para a
pesquisa das influências ou da filiação entre sociedades e para o estudo das semelhanças e
diferenças existentes na evolução das mesmas.
Ainda sobre este método, Heinz-Gerhard Haupt, no livro Passados Recompostos -
campos e canteiros da História (1995), nos informa que apesar de termos apenas dois setores
da História com tradições comparatistas declaradas: a demografia histórica e a história
econômica, o método comparativo recentemente vem sendo aplicado à inúmeros temas
historiográficos: grandes indústrias, alfabetização, iconografia, homeopatia, professores
universitários, ensino agrícola, engenheiros de minas, mineiros, livros, vida urbana”
66
. A
essa lista acrescentam-se ainda os novos elementos trazidos pelo método para a analise de
novos e velhos temas, explicitados por Alzira Alves de Abreu (1995), como a história das
‘atitudes coletivas’: diante da morte (P. Aries, M. Vovelle), diante do medo (J. Delumeau),
diante da vida (j. Gélis), a história dos gestos (J. C. Schmit), das cores (m. Pastoureau), dos
nomes (L. Perouas, J.Dupâquier) ou dos estados afetivos (A. Corbin)”
67
. Todos estes são
temas que constituem grandes linhas de debates da história no presente e que cada vez mais se
utilizam do método comparativo, pois em todos os exemplos encontramos a descrição de uma
linha evolutiva, e, portanto de uma visão mais ampliada do fenômeno. Acrescentamos aqui a
música popular, propondo para este caso, o que Haupt chama de uma “interpretação das
65
CARDOSO, C. F.; REZ BRIGNOLI, H. O Método Comparativo na História. In: Os métodos da História.
Trad. J. Maia. 3.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1983, p. 409.
66
HAUPT, H.G. “O lento surgimento de uma História Comparada”. In: BOUTIER, J., JULIA, D. (org).
Passados Recompostos - campos e canteiros da História. Rio de Janeiro: Editora UFRJ / Editora FGV,
1998. p. 206 e 208.
67
ABREU, A. A. “Historiografia: uma revisão”. In: Estudos Históricos, vol.8, n.16. Rio de Janeiro: Cpdoc/FGV,
1995. p.307-8
31
evoluções”
68
, uma busca das estruturas mais gerais, e que foram muitas vezes definidas como
integrantes de uma “tradição” cultural determinada.
Ao compararmos as obras de dois conhecidos compositores, cada qual representante
de um período diferente, mas igualmente áureo” na produção musical brasileira, podemos
perceber certos elementos que correspondem às continuidades históricas, que por sua vez
podem se tornar explicativas da nossa sociedade, possibilitando uma interpretação de sua
evolução. Apesar de manifestarmos a necessidade do rigor científico e apreciarmos os dados
empíricos, devemos salientar que não se propõe aqui, por outro lado, a construção de “leis
gerais”, nem a explicação de origens ou essências dos fenômenos enfocados - seguindo os
sábios conselhos das pesquisadoras e professoras do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
(IFCS) da UFRJ, Neyde Theml e Regina Bustamante
69
, mas sim, de percebermos algumas
das “formas” permanentes ou constantes que vieram a definir a brasilidade e a integrar a
noção de tradição cultural popular
70
.
Apesar de vários autores defenderem e aplicarem o método comparativo, os exemplos
práticos nos revelam que até agora, porém, não uma metodologia definida para todos os
casos, pois para isso ainda é necessário, segundo alguns deles, mais tempo de prática da
pesquisa empírica e um conhecimento mais ampliado sobre línguas e linguagens, que
permitam melhores comparações. Ainda assim, aplicamos aqui um processo comparativo que
se mostrou eficiente e adequado aos objetivos almejados.
Cabe ressaltar por fim que, em termos historiográficos nos estudos sobre a música
popular, vamos encontrar em muitos casos os chamados "detratores" da atividade, que a
classificam, em períodos históricos determinados, como “ópio”, ou elemento alienante através
do qual a classe dominante pôde manipular as massas, na sublimação da miséria cotidiana no
sucesso passageiro de uma música ou de um intérprete (assim como de um time de futebol -
outro elemento de grande capacidade representativa da brasilidade), em catárticas festas
coletivas. Os admiradores, por outro lado, vêem a música, com um papel muito mais
68
HAUPT, H.G. Op.cit. p. 211.
69
THEML, N. e BUSTAMANTE, R. M da C, Editorial: História Comparada: olhares plurais. PHOÏNIX 10, Rio
de Janeiro: IFCS/UFRJ, 2004. ps. 9-30
70
Segundo as pesquisadoras Neyde Theml, e Regina M. da C. Bustamante, no artigo citado acima, a abordagem
comparativa no modelo mais indicado aos pesquisadores, criado pelos historiadores Paul Vernant e Marcel
Detienne, não visa a construção de leis gerais, nem origens ou essências dos fenômenos, mas sim as
32
significativo como fonte de identidade de um grupo, além de escada para a mobilidade social
e agente poderoso para uma integração nacional, como na construção da brasilidade. Ora, os
dois papéis coexistem: embora esta arte, tão brasileira, tenha sido usada pelas elites para
impor a sua ideologia, não podemos esquecer que a música, assim como o esporte, também
representou espaços de manifestações de resistência e crítica a essa direção, como atestam os
estudos de Norbert Elias e Eric Dunning
71
, que conferem às modalidades de lazer (como a
música popular e o futebol) momentos de fluxo e refluxo que representam a capacidade
organizativa da nossa sociedade e da crítica constante que ela faz sobre si mesma.
formas moventes e múltiplas representadas pela sociedade o estranhamento, pluralização, censo comum,
habitus”. p. 23.
71
ELIAS, Norbert e DUNNING, Eric. Deporte y Ocio en el Proceso de la Civilizacion. México: Fondo de
Cultura Económica, 1992.
33
CAPÍTULO 1 – Noel Rosa e Chico Buarque: tradição e modernidade.
Em 1970, o grupo Mutantes aprofundava o tom crítico, revolucionário e até mesmo
herético em relação ao que era considerado um dos seus maiores e inquestionáveis
patrimônios culturais brasileiros: a própria música popular. A sua releitura de “Chão de
estrelas”
72
, por exemplo, composta nos anos 1930 e tornada um clássico da música popular,
era tão propositalmente debochada, que toda a tradição musical via-se arrastada ao ridículo.
Com o arranjo musical de Rogério Duprat, que optava pela contramão da exaltação da
tradição musical, com alterações rítmicas bruscas e utilização de efeitos sonoros diversos, e a
interpretação do vocalista Arnaldo Baptista, cheia de apelos melodramáticos, que a todo o
momento caia na desafinação, a canção se transformava no bode expiatório dos que queriam
apontar ou denunciar a “fadiga da tradição” através do sarcasmo
73
. Na gravação, quando o
cantor emite os ontológicos versos, Mas a Lua furando o nosso zinco/ Salpicava de estrelas
nosso chão / Tu pisavas nos astros distraída / Sem saber que a ventura desta vida / É a
cabrocha, o luar e o violão”, ouvimos concomitante ao primeiro verso sons de tiros, depois,
cacos de vidro sendo pisados, e após os últimos versos, frases soltas que realizam uma
verdadeira desconstrução da obra: É a cabrocha escorregando no sabão / É os gato miando
no porão”. A heresia se completa neste momento final da música, quando de forma contrária
ao culto às raízes”, macula-se alguns dos símbolos mais marcantes da tradição musical
brasileira: a cabrocha, a seresta, o violão. Ainda que a intenção desta regravação dos Mutantes
não fosse propriamente de destruir um patrimônio cultural construído em décadas de
excelentes composições, e sim de impedir um “engessamento” da MPB dentro de padrões de
teor nacionalista, como afirma Adalberto Paranhos
74
, as reações diversas se somaram às
discussões então muito em voga e que levavam, via de regra, a julgamentos de uma
inequívoca decadência da música popular brasileira.
72
“Chão de estrelas”, de Silvio Caldas e Orestes Barbosa, Silvio Caldas. 78 rpm Odeon, 1937. Relançada em
duas coletâneas com diversos intérpretes: CD Velha Guarda. EMI, 1998; caixa de CDs História da Odeon:
as primeiras músicas do século XX. CD n.2 (1927 – 1942). EMI, 2003.
73
“Chão de estrelas”, de Silvio Caldas e Orestes Barbosa. Mutantes. LP A divina comédia ou ando meio
desligado. Polydor, 1970 (relançamento: CD homônimo. Polydor, s/d). Uma análise detalhada desta
interpretação e sua definição como “sarcástica” está em PARANHOS. Adalberto. A música popular e a
dança dos sentidos: distintas faces do mesmo”. In: ArtCultura: Revista de História, Cultura e Arte.
Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia (Programa de Pós-graduação em História), n. 9, 2004. pp.
26-27.
74
PARANHOS. Adalberto. Op. cit. p. 27.
34
Outro exemplo próximo de “desconstrução” havia sido gravado no LP Tropicália
ou Panis et Circensis de 1968
75
, que também contou com a participação dos Mutantes,
quando Caetano Veloso, na música “Coração Materno” de Vicente Celestino, fez uma
interpretação propositalmente inexpressiva ou “dessacralizadora” como classificou Marcos
Napolitano
76
. Estes são apenas alguns exemplos dos questionamentos, provocações ou
críticas em meio à diversidade de rumos com que a canção brasileira se deparava naquele
momento, indo desde o sertanejo até a tropicália, passando pelos formatos consagrados pelos
Festivais da Canção, pela canção romântica da Jovem Guarda e pelo rock nacional, que vinha
se definindo através de grupos como os próprios Mutantes.
Neste momento, é de se ressaltar, para os propósitos deste estudo, que quando
jornalistas e críticos musicais deste período buscaram quase que desesperadamente por
“continuadores” da legítima” tradição entre os jovens compositores, para defendê-la das
“deturpações” modernizadoras, o nome de Chico Buarque de Hollanda foi sempre o mais
citado e para confirmar a sua filiação á tradição, a comparação de sua obra (então ainda
apenas no início da sua profusão criativa) com a produção musical de Noel de Medeiros Rosa
tornou-se um dos mais eloqüentes argumentos de afirmação do patrimônio musical, que
estava assim de alguma forma “a salvo do vandalismo”. Enredavam-se aí os elos da tradição.
1.1 – Noel: construtor da tradição.
Não como falar em tradição na música popular brasileira sem tocar na figura de
Noel: “Qualquer pessoa que se ao trabalho de analisar a evolução da música popular
brasileira verá que ela um salto quando surge Noel Rosa. Ve que, a partir de Noel,
nasce uma nova música popular, nasce um novo samba”
77
. Em conformidade com este
julgamento de Sérgio Cabral, podemos afirmar o reconhecimento de Noel Rosa como um dos
principais pilares da tradição do moderno samba carioca que se impõe como hegemônico na
década de 1930. Essa percepção é de fato unânime entre os pesquisadores da música popular.
Hermano Vianna afirmou que Noel Rosa não apenas caiu no gosto popular, ele também
75
LP Tropicália ou Panis et Circensis. Philips, 1968. Considerado o álbum mais importante da história da MPB,
tem sido alvo de muitas análises de historiadores e musicólogos. Entre eles, destaca-se: NAPOLITANO,
Marcos. A síncope da idéias: a questão da tradição na música popular brasileira. o Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2007. (Coleção História do Povo Brasileiro). pp. 134 – 137.
76
NAPOLITANO, Marcos. Op. cit. p. 135
35
ajudou a definir este gosto
78
, e Marcos Napolitano foi além: Noel não caiu no gosto das
massas. Inventou-o
79
. Mas o que ele trazia realmente de novo?
Nas letras isso nos parece evidente. E este aspecto será aqui bastante explorado.
Fiquemos por ora com este exemplo: Em uma análise sobre 43 canções brasileiras, que têm
como tema o próprio país, José Murilo de Carvalho notou que Noel foi praticamente o
primeiro a explorar de maneira crítica o assunto:
De modo geral, os compositores das três primeiras décadas do culo não
tematizaram o Brasil em suas canções. A única exceção talvez seja Eduardo das
Neves (...), com “A conquista do ar”, de 1902, homenagem exaltada a Santos-
Dumont (...). A falta de Brasil é quase completa entre os compositores de origem
social mais popular, quase todos ausentes da lista (...) (das 43 canções). Não
ninguém do grupo da Tia Ciata, nem da Mangueira, nem da turma do Estácio. Nada
de Donga, Sinhô, Cartola, Carlos Cachaça, Pixinguinha
80
.
Mas, e quanto ao aspecto musical? No que Noel era um inovador? Para responder a
esta pergunta é preciso antes dizer que Noel o foi o único a propor mudanças. No início da
década de 1930 o samba sofreu as alterações do padrão rítmico operados pela “turma do
Estácio” (Bairro do Estácio de Sá, Rio de Janeiro - Ismael Silva, Nilton Bastos, Bide,
Brancura e outros), onde, com uma presença bem maior da percussão, se mudava o ritmo
binário “amaxixado” da geração de Pixinguinha, para um ritmo binário simples com o tempo
forte bem marcado pelo surdo, enquanto o tamborim e a cuíca (instrumentos até então o
utilizados nas gravações de samba) acentuavam alguns dos tempos fracos (síncopes) criando
um maior contraponto rítmico. A melodia também se tornou mais sincopada permitindo uma
gama maior de possibilidades fraseológicas
81
. Estas mudanças facilitavam muito o passo
cadenciado dos foliões que, no mesmo ritmo” conferiam mais unidade e vigor aos desfiles
das escolas de samba. Noel somara estas mudanças á sua genialidade criativa que o
notabilizaram muito rapidamente.
77
CABRAL, Sérgio. “O eterno jovem”. In: Songbook Noel Rosa. Produzido por Almir Chediak. Petrópolis: Ed.
Vozes, 1991. vol. 1, p. 8.
78
VIANNA, Hermano. O Mistério do Samba. Op. cit. p. 122.
79
NAPOLITANO, Marcos. A síncope da Idéias: A questão da tradição na música popular brasileira. Op. cit. p.
25.
80
CARVALHO, José Murilo de. “O Brasil de Noel a Gabriel”. In: Decantando a República, v.2: Inventário
histórico e político da canção moderna brasileira / Berenice Cavalcante, Heloísa Maria Murgel Starling,
José Eisenberg (orgs). Volume 2: Retrato em Branco e preto da nação brasileira. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira; São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.
81
Trata-se do chamado paradigma do Estácio, termo criado e bastante explanado por Carlos Sandroni em Feitiço
decente: transformações do samba no Rio de Janeiro, 1917-1933. Rio de Janeiro: Jorge Zahar / Ed. UFRJ,
2001. p. 32.
36
Vamos nos deter um pouco sobre a historia da formação destes paradigmas. A música
popular obteve a sua primeira “aceitação oficial”, em 1914, e não sem muita controvérsia. Foi
notável a repercussão, na ocasião, do escândalo provocado pelo “Corta Jaca”, de Chiquinha
Gonzaga, quando a esposa do presidente da República, Nair de Teffé, num baile em pleno
Palácio do Catete, tocou no violão (instrumento ainda maldito) o referido maxixe, gênero
execrado por grande parte da elite intelectual de então, entre os quais Rui Barbosa. O
escândalo era ver e ouvir a primeira dama cantando: “Ai, ai! Que bom cortar a jaca/ Ai! Sim!
Meu bem ataca/ Sem descansar”. Rui Barbosa, que muitas vezes se manifestou refratário à
música popular, produziria em referência ao escândalo uma rie de discursos que
denunciavam a invasão do Catete pelo “gosto” popular.
Porém, com pouco mais de dez anos depois do episódio, boa parte da elite carioca
não tinha pudores em prestigiar o maxixe e o samba dos negros e mulatos, como Pixinguinha,
Donga e os demais integrantes do grupo Oito Batutas, na sala de espera do cinema Palais, ou
como o Sinhô, o “rei do samba”, em outros ambientes igualmente chics da Capital. Foi uma
transformação drástica que se operou em pouco menos de uma década, com o consumo de
música popular se generalizando pelas diversas camadas sociais do Rio de Janeiro. Estes
compositores, símbolos da primeira geração de sambistas, fizeram sucesso trazendo muito do
que se fazia nas casas das tias baianas, no bairro Cidade Nova, junto ao Centro do Rio de
Janeiro. Os sucessos como Gosto que me enrosco e Jura”, ambos de Sinhô, foram aos
poucos abrindo terreno para a penetração dos ritmos populares em todas as classes, e
solidificando um primeiro modelo para o samba, ainda bastante aparentado ao maxixe. Muitos
pesquisadores confirmam no período que vai de 1917 a 1930, a formação de um primeiro
paradigma para o “samba popular”. Paradigma, porém que não durou muito. No início dos
anos 1930, esta “tradição”, tão evidente na década anterior não foi mais seguida nem por Noel
Rosa, nem pela grande maioria dos novos sambistas. Isto se explica pelo sucesso de um
recente estilo de samba que nasceu nos bairros populares, principalmente no Bairro do
Estácio, próximo ao meretrício do Mangue, foi se espalhando pelos morros próximos, como
Mangueira e Salgueiro, e atingiu os bairros mais distantes da Zona Norte, como Penha, Méier,
Madureira etc., com enorme rapidez. A grande referência deste novo estilo será Ismael Silva,
que considerava a mudança rítmica mais adequada à cadência nos desfiles dos blocos e
escolas de samba, como dissemos. Contudo, estas mudanças não foram tranquilamente
aceitas pelos conservadores e apreciadores do primeiro estilo, compositores e jornalistas, que
as tomaram como sinais da “decadência” iminente. E no ano de 1930 encontraremos
37
críticas ferozes ao novo estilo (do Estácio): Luciano Gallet (compositor, regente, folclorista e
diretor da revista musical Weco), descontente com os rumos da música popular brasileira,
promoveu neste ano uma campanha de “salvamento” da mesma, que culminou com a
fundação da Associação Brasileira de Música
82
. Mas a campanha estava destinada ao
fracasso, e, ao contrário do que queriam os editores da Weco, este mesmo ano (1930) será
tomado mais tarde como o marco inicial de uma “época de ouro” da nossa música popular.
Podemos perceber por este exemplo, o quanto a idéia da formação de uma tradição musical
brasileira irá se transformar e paradoxalmente ter relações constantes com a idéia de
decadência, ao mesmo tempo em que se formaliza um patrimônio musical único, embora com
características sempre maleáveis e muitas vezes transitórias entre nós.
De qualquer forma, aqueles mesmos sinais de decadência” iriam marcar
definitivamente a batida do samba moderno, formando uma nova escola de sambistas e
compositores, neste início da década de 1930. E é a este novo paradigma que estará relacionada
a produção de Noel Rosa.
“Na Pavuna”, de Homero Dornelas e Almirante, foi o primeiro samba gravado com
acompanhamento de surdos e tamborins, a percussão do Estácio, no final de 1929. Devido ao
grande sucesso obtido com esta gravação, o grupo do qual Noel fazia parte, O Bando dos
Tangarás, passou a abandonar a música de sotaque nordestino ou sertanejo, que fazia até
então, e partir para o samba urbano. O samba “Na Pavuna” trazia o acompanhamento inédito,
porém sua estrutura estava ainda relacionada aos sambas dos anos 1920. Se compararmos “Na
Pavuna” com o samba de Noel “Eu vou pra Vila”, de dois anos depois, notaremos que a
percussão está toda lá, mas no samba de Noel, os elementos a mais que marcariam em
definitivo o novo formato: a instrumentação, o andamento e acento rítmico do Estácio. Esta
composição, aliás, tornou-se emblemática para a relação entre Noel e as favelas; relação que
podemos definir como a de um mediador cultural, como descreve Santuza Naves:
Noel Rosa, ao que consta, teria sido um dos primeiros músicos desse segmento
branco e de classe média a subir os morros, como os da Mangueira e do Estácio, e
conviver com os sambistas desses redutos. “Para me livrar do mal”, samba que
Noel fez em parceria com Ismael Silva em 1932, é representativo desse tipo de
82
Um estudo aprofundado sobre a campanha da revista Weco se encontra em: ANDRADE, Nívea Maria da
Silva, Significados da música popular: A revista Weco, revista de vida e cultura musical (1928-1931).
Dissertação de Mestrado (PUC-Rio). Rio de Janeiro, Agosto de 2003; mimeo.
38
encontro. O compositor do Estácio teria apresentado a Noel a primeira parte do
samba, que Noel concluiria “em tom menor e num andamento mais cadenciado
83
.
É preciso lembrar, no entanto que Noel não fora o pioneiro a gravar o novo estilo:
Francisco Alves, segundo Sérgio Cabral, havia, em 1928, gravado dois sambas do Estácio
que anunciavam a “nova era”
84
.
Para Noel, não havia dúvidas de que o verdadeiro samba era o samba do Estácio. João
Máximo e Carlos Didier nos descrevem com uma frase curta de Noel (de 1933) este
pensamento: Isto é samba ou aquela coisa que a Carmem Miranda canta?”
85
, se referindo
aos sambas de Sinhô e outros compositores da década de 1920, bastante gravados por
Carmem Miranda. O fato é que enquanto seus contemporâneos continuavam a repetir
fórmulas consagradas pelas gravadoras, Noel se voltava para o ritmo do Estácio. Para Maria
Alice Rezende de Carvalho havia razões para esta inclinação: o fato de ser um estilo
executado por músicos de formação mais precária, porém mais criativos e livres das regras da
música de salão, e as letras serem narrativas diretas e simples sobre o cotidiano pobre das
favelas e cortiços. Para a historiadora Noel dava início a um movimento de dimensões até
então inéditas no âmbito da música popular
86
, por mobilizar esferas da vida social antes
intocáveis pela música popular. A mais sentida mudança foi, no entanto, do repertório de
gêneros musicais. O antigo predomínio das emboladas, desafios, toadas, e maxixes foi
simplesmente substituído pelos ritmos cariocas. A tradição fundada também por Noel é aquela
que marca a apropriação do samba pelo morro e seus habitantes gente sem raiz e sem
formação musical – por isso Maria Alice afirma que a tradição carioca imprimia uma
sinalização radicalmente democrática
87
e inédita, rompendo com o que havia de
aristocrático no samba e ao mesmo tempo afirmando a cultura da mestiçagem: “Na década de
1930, então, o samba urbano seria alçado ao sucesso, como a mais “tradicionalexpressão
da nossa música nacional. Tradição inventada (...)
88
.
83
NAVES, S. C. O violão azul. Op. cit. p. 103.
84
CABRAL, Sérgio. A MPB na era do rádio. São Paulo: Moderna, 1996. p.22
85
Noel Rosa apud MAXIMO, J. & DIDIER, C. Noel Rosa. Uma biografia. Op. cit. p. 233. A frase, confirmada
por Aracy de Almeida aos autores, está no livro de Jacy Pacheco, Noel Rosa e sua época (Rio de Janeiro:
G.A. Penna, 1955, página 95), e foi confirmada por Aracy de Almeida aos autores.
86
CARVALHO, M. A. R. de. “O samba, a opinião e outras bossas... na construção republicana do Brasil. Op.
cit. p. 46.
87
Idem. p. 47.
88
Ibidem, p. 47.
39
Em concordância com esta pesquisadora sobre a filiação estética de Noel Rosa, José
Adriano Fenerick acrescenta:
Noel vestiu rigorosamente o samba do Estácio e desconsiderou o resto. Em seus
sambas ocorrem várias saudações a quase todos os recantos do samba no Rio de
Janeiro, quase todos ligados às recentes escolas de samba nos moldes do Estácio:
Mangueira, Salgueiro, Osvaldo Cruz, Madureira etc. No entanto Noel nunca se
referiu à Cidade Nova, local de onde saíram os sambistas da geração de Donga e
Pixinguinha, como sendo um reduto de bambas. (...) Noel, ao cantar a sua Vila
Isabel (...) deixa a entender que não é apenas no morro que o samba é feito, pois
nos bairros suburbanos ele também tem o seu valor. No entanto, o que Noel faz é
uma constante associação, por meio de suas músicas, do samba com o morro
89
.
Fica marcada então a divisão sobre a origem mítica do samba, nos anos de Noel,
entre aqueles que defendiam a morro como local do seu nascimento, como Orestes Barbosa
(que via o samba “puro”) e aqueles que passam a afirmar o papel criativo da cidade: o
bairro do Estácio de Sá (que não é um morro, apesar da proximidade do morro de São Carlos)
e a Vila Isabel de Noel, que também não tinha morros, apesar da proximidade com a
Mangueira. É interessante notar como Noel foge do embate e resolve a questão anulando a
importância da origem no samba, em “Feitio de Oração”, gravado em 1933 por Francisco
Alves e Castro Barbosa:
O samba na realidade
Não vem do morro nem lá da cidade
E quem suportar uma paixão
Sentirá que o samba então
Nasce no coração
90
.
Para ele, era óbvia a inutilidade desta briga. Até porque o preconceito em relação aos
sambistas ainda era muito grande, e o que menos interessava aos sambistas eram disputas
internas. José Adriano Fenerick nos lembra ainda que o samba e os sambistas eram muito mal
vistos pelas “famílias de bem”, que temiam a proximidade de seus filhos a estes elementos
perigosos, e pelos intelectuais que continuavam publicando artigos acusadores da decadência
cultural e até moral causada pelo samba
91
. Grande parte dessa rejeição se devia sem dúvida
ao preconceito em relação à cor predominante dos sambistas, portanto a aceitação do samba
como elemento cultural do povo brasileiro dependia da aceitação e incorporação da
mestiçagem, ainda muito rechaçada. O samba poderia até ser aceito em parte por estes
89
FENERICK, José Adriano. Nem do morro nem da cidade: a transformação do samba e a indústria cultural
(1920-1945). São Paulo: Annablume; Fapesp, 2005. (tese de doutorado). p. 228-229.
90
“Feitio de Oração”, de Noel Rosa e Vadico (compositores). Francisco Alves e Castro Barbosa. In: Noel Rosa.
Pela primeira vez. Op.cit.
91
FENERICK, J. A. Nem do morro nem da cidade. Op. cit. p. 70.
40
círculos, mas antes necessitava ser “higienizado” pelos padrões civilizatórios dos brancos, e é
justamente cumprindo esta necessidade que vemos o surgimento dos compositores brancos do
estilo negro do Estácio, tais como Noel, Custódio Mesquita, Ari Barroso, Lamartine Babo,
entre outros.
Noel Rosa é um dos primeiros a realizar as mudanças necessárias para tornar o novo
modelo de samba aceitável, e mais do que isso, capaz de tornar-se o ritmo nacional por
excelência, representando o Brasil ou a “contribuição brasileira à civilização”. Este modelo
subentendia a identificação com a cidade do Rio de Janeiro e a presença da batucada (com
surdos e tamborins), o que significou o descarte quase completo da produção dos sambistas da
geração anterior. Este verdadeiro projeto de que participou muito ativamente Noel, teve
também a rápida adesão de outros compositores que, de forma intencional ou não, acabaram
por civilizar” a música popular sem perder as características originais (ou autênticas),
inclusive do antes reticente Orestes Barbosa, com composições que afirmavam o caráter
mestiço (e por isso nacional) do samba, como por exemplo na música “Verde e amarelo”, de
1932, que dizia:
O samba não é preto
O samba não é branco
O samba é brasileiro
É verde e amarelo
92
.
Mas tornar o samba aceitável pela sociedade está bem distante de torná-lo um símbolo
nacional. É então aqui que entra a atuação do Estado. Vejamos como se deu esta intervenção.
É fácil perceber que a mudança do paradigma do samba estava acompanhada também de
amplas mudanças no cenário musical. Em particular na rádio, cujo avanço representou um
aumento significativo do mercado de trabalho para os músicos, e do número de ouvintes. Este
incremento deve-se sem dúvida à ação do governo de Getúlio que, interessado em utilizar o
rádio como o grande veículo da integração nacional, e na música popular carioca como um
dos principais fatores de aglutinação, tomou ações constantes de incentivos à ampliação da
difusão do rádio e da música popular.
Bem antes da implantação do Estado Novo, as grandes festas comunitárias vinham
ganhando cada vez mais o interesse do primeiro governo Vargas, e também mais organização
92
“Verde e amarelo”, de Orestes Barbosa e J. Thomaz. In: CD Orestes Barbosa. O poeta nas vozes de Francisco
Alves e Sílvio Caldas. Curitiba: Revivendo, s/d.
41
e pompa. Getúlio sempre reconheceu a propensão ou gosto da nossa população por estas
festas e, portanto, o poder de identificação social que carregavam. As festas aos poucos foram
se revestindo de uma “autoridade” e passavam a ser entendidas pelas “autoridades” como uma
boa possibilidade de contato “corporal” entre o Estado e o Povo, numa nova dinâmica de
ordem e disciplina. No decorrer da década, medidas mais efetivas foram criadas visando o
controle sobre desordens ou tumultos, sobretudo no carnaval
93
.
Ao se avaliar a relação que o governo Vargas manteve com a construção da tradição na
canção popular brasileira encontramos algumas datas bastante significativas: Em 1932 é
realizada pela primeira vez a organização dos desfiles de carnaval na forma de competição
oficial e, no mesmo ano, o governo autoriza a veiculação de anúncios nas rádios, dando
surgimento aos patrocínios e jingles. No ano seguinte, o carnaval é oficializado pelo prefeito
do Distrito Federal, Pedro Ernesto. E em 1934, é criada a tradição do Rei Momo, com sua
eleição dirigida por agremiações sob tutela governamental, com o objetivo de fortalecer a
presença do Estado na festa - tanto que chegavam a lhe entregar, no sábado que antecedia o
carnaval, as chaves da cidade
94
. A partir de 1935, as escolas são “orientadas” a colaborar com
a propaganda patriótica, iniciando-se outra tradição, a dos enredos ufanistas. Para garantir
essa propaganda, os desfiles passaram a ser subvencionados pelo governo, que determina
também que os mesmos fossem realizados na Praça Onze, um ponto já bastante tradicional de
encontro dos sambistas. Só participariam do desfile, no entanto, as escolas regularmente
filiadas à UGES, União Geral das Escolas de Samba. Em 1936, um decreto, impõe às escolas
de samba a obrigatoriedade de seus enredos apresentarem um caráter “didático, patriótico e
histórico”, sobrecarregando de nacionalismo a festa popular.
Em 1936, apesar de muito atacado por intelectuais e analistas eruditos que insistiam na
idéia de decadência, o samba já era entendido como artigo de exportação e de “orgulho
nacional”, não pelo nosso povo, mas também pelo governo. A 30 de janeiro de 1936, com
locução em alemão, foi produzido no Morro da Mangueira, um programa especial de “A Hora
do Brasil”, transmitido diretamente para a Alemanha, com sua parte musical composta
exclusivamente por sambas que, cantados por Cartola e pelo Coro da Estação Primeira de
Mangueira, serviram para um projeto de aproximação entre o Brasil de Getúlio e a Alemanha
93
CAPELATO, Maria H. “Propaganda política e controle dos meios de comunicação”. In: PANDOLFI, Dulce C.
(org.). Repensando o Estado Novo. Rio De Janeiro: Editora FGV, 1999.
42
nazista. Ainda que seja incompreensível que Brasil ensaiasse uma aproximação com uma
nação que pregava a pureza de raça como a Alemanha nazista, usando a música popular
mestiça, houve quem concluísse que o samba estava a servir inocentemente aos interesses do
Estado. Tanto que não tardariam a surgir reações diversas, embora quase sempre muito
tímidas contra essa manipulação no universo do samba. Tentativas de resistência ao controle
do Estado sobre o samba e sobre o carnaval, estão perceptíveis em muitos sambas
“inconformados”, como por exemplo, o de Herivelto Martins e Darci de Oliveira, “Se o
Morro Não Descer, que no carnaval de 1936, criticava a falta de liberdade das escolas.
Em 1936 também se o início de uma interessante disputa entre a UGES (União
Geral das Escolas de Samba, organizada pelo Estado) e a “Associação Carnavalesca Cordão
das Laranjeiras” (representando os sambistas) pela alteração de um novo elemento da tradição
no carnaval. Tratava-se da figura do Rei Momo, criado dois anos antes e que foi questionada e
combatida com a criação, pelo Cordão das Laranjeiras, de uma nova eleição para o
“verdadeiro representante do samba”, que seria chamado de “Cidadão Momo”. Os sambistas
desejavam manter uma relação verdadeira com os representantes da sua arte e assim
resolveram que deveria ter um Cidadão” (eleito) e não um “Rei” para esse papel. E o iriam
buscar entre os elementos de destaque na liderança das escolas e o nas figuras tidas como
patéticas e nomeadas pelas autoridades. Acabou sendo eleito naquele ano, uma personalidade
inegável do mundo do samba, Paulo da Portela, um dos criadores da escola de samba Portela
e personagem constante de muitas histórias sobre o mundo do samba. Tudo em nome de uma
“tradição de liberdade” que se desejava afirmar. No ano seguinte (1937), comprando essa
briga, a UGES criou o concurso do “Cidadão Samba”, como uma forma de se opor ao
“Cidadão Momo”, onde, coincidência ou não, o mesmo Paulo da Portela acabou sendo
também eleito, o que muito colaborou para não se desenvolver ainda mais aquela rinha. A
partir de 1937, o Cidadão Samba” eleito, confirmando a seu poder “conferido pelo povo”,
passaria a promulgar decretos” (nos moldes dos utilizados pelo governo). Quando foi eleito
Alfredo Costa em 1939, o Generalíssimo Sambista” instituía o “Estado da Alegria
Permanente”, num documento onde constava inclusive um “revogam-se as predisposições em
contrário”, demonstrando com essa troça o clima político opressor da época e a reação
debochada do universo do samba.
94
TUPY, Dulce. Carnavais de Guerra: O Nacionalismo no Samba. Rio de Janeiro: ASB Artes Gráficas, 1985.
p.83.
43
No ano de 1937, ano da morte de Noel Rosa, o desfile das escolas já estava
consagrado como a grande manifestação genuinamente brasileira, e como tal não poderia mais
admitir elementos estrangeiros, por isso, pela primeira vez na história dos desfiles, uma
escola, a Vizinha Faladeira, foi desclassificada por apresentar enredo com assunto
internacional. Seu tema era “Branca de Neve e os Sete Anões” – que brincava com os
personagens do primeiro desenho de longa metragem, criado por Walt Disney, e que fizera
tanto sucesso no Brasil (como no mundo) no início daquele mesmo ano. Definia já contornos
bem claros a nossa nova tradição musical popular. Em 1938, um incidente demonstra a
importância que já tinham os desfiles para a cidade: Apesar do temporal que assolava a cidade
do Rio de Janeiro, as 35 escolas de samba desfilaram. Não houve, porém, julgamento, pelo
fato de apenas um julgador comparecer, fato que gerou indignação e protestos entre as escolas
e também na imprensa. A tradição “nacionalista” do carnaval não aceitava mais a sua
interrupção.
Apesar de tantas mudanças conjunturais, não podemos creditar a fixação musical do
paradigma do Estácio
95
somente a elas. Nem mesmo às mudanças que estão diretamente
ligadas ao meio musical, tais como a implementação das rádios comerciais e o
desenvolvimento do mercado de discos. Para o historiador José Adriano Fenerick, não foi o
rádio a mola propulsora da música popular, sobretudo do samba, mas exatamente o contrário
96
. Fenerick cita uma pesquisa de Nicolau Sevcenko para provar que depois do sucesso
marcante do grupo pernambucano Turunas da Mauricéia, do famoso Patativa do Norte
(Augusto Calheiros), em 1928 e 1929 no Rio de Janeiro, as rádios passaram a exigir que
“músicas brasileiras típicas” ocupassem espaços cada vez maiores em suas programações:
Não foi o dio que lançou a música popular, mas o contrário. As coisas estando
nesse pé, deu-se o lançamento de Carmem Miranda pela gravadora Victor, sob
expressas recomendações de seu diretor artístico, Rogério Guimarães: a senhorita
somente cantará música brasileira. Sei que tem cantado alguns tangos, mas a Victor
quer lançar músicas brasileiras típicas. Não revelará também a sua origem
portuguesa, para não prejudicar a imagem brasileira dos discos
97
.
95
O termo cunhado por Carlos Sandroni em sua tese de doutorado (SANDRONI, C. Feitiço decente.
Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Op. cit., 2001), é bastante aceito e utilizado por
vários especialistas das histórias do samba, como Sérgio Cabral e Jairo Severiano, entre outros.
96
FENERICK, José Adriano. Nem do morro nem da cidade: a transformação do samba e a indústria cultural
(1920-1945). São Paulo: Annablume; Fapesp, 2005. (tese de doutorado)
97
SEVCENKO, Nicolau. A Capital irradiante: técnica, ritmos e ritos no Rio” in: História da vida privada no
Brasil. Vol. III. São Paulo: Cia das Letras, 1998. p 592-593.
44
O dio e o Samba juntos fizeram, no início dos anos 1930, um casamento perfeito,
seja porque com as emissoras os sambistas rapidamente se tornavam conhecidos, seja porque
com o samba, a rádio passou a ser um negócio de fato rentável. A geração de Noel estava
assumindo o rádio como lugar da divulgação de suas obras. Coisa que a geração anterior o
pode fazer porque o veículo ainda estava muito pouco disseminado e bastante elitizado, e
porque contava com pouca atenção de empresários e autoridades. O apoio do governo
revolucionário, dando prioridade à divulgação da cultura nacional foi determinante para a
velocidade das mudanças e para a solidificação de toda uma tradição em poucos anos.
Em A Canção no Tempo, Jairo Severiano traz, uma mostra precisa da relação entre a
música nacional e o rádio. A sua pesquisa mostra que entre 1931 e 1940, o samba foi o gênero
mais gravado, atingindo a cifra de 32,45% do repertório apresentado (2176 sambas em 6706
composições). E que sambas e marchas somaram o percentual de 50,71% do repertório
gravado nesta década
98
. Estes dados atestam um deslocamento da preferência musical dos
brasileiros, antes voltada à música erudita, ao jazz, ao tango e ao foxtrote. Surgia enfim o
predomínio de uma “cultura nacional”.
Não podemos deixar de mencionar também algumas outras mudanças estruturais
trazidas pela complexidade cada vez maior do mundo urbano brasileiro. O desenvolvimento
comercial, a chegada de levas de migrantes, a proliferação das favelas e as reformas urbanas,
entre os muitos fenômenos ligados à modernização na cidade do Rio de Janeiro, colocaram
em evidência o novo mundo popular: os novos personagens do mundo urbano e industrial,
que sem a garantia de participação no mercado de trabalho mantinham uma “autenticidade”
de expressão com um toque de rebeldia. Este movimento autêntico ia, no entanto, na
contramão do crescente controle do Estado sobre a sociedade, que agindo com cautela e
habilidade conseguiu cooptá-lo em apoio ao regime de Vargas. Ainda assim, é possível
reconhecer no movimento que massificou o samba, principalmente nos primeiros anos da
década onde um dos principais nomes é o de Noel um formato autônomo de organização
da cidade, com uma postura francamente crítica e debochada.
Santuza Naves explicita esse deboche lembrando que em Noel ele nunca seria
escancarado: “Esse tipo de sensibilidade irreverente (de Noel) encontra a sua forma musical
98
SEVERIANO, Jairo; MELO, Zuza H. A Canção no Tempo. Vol. I (1901-1957). São Paulo: Editora 34, 1997.
p.85-89.
45
numa estética contida, avessa ao excesso estilístico, que exige arranjos mais simples, com o
concurso de poucos instrumentos, e na maneira intimista de interpretar as canções”
99
. Para
Santuza Naves, Noel Rosa ganha destaque entre os compositores seus contemporâneos por
causa também da combinação entre sofisticação musical e poética, com o vocabulário popular
e expressões e modo de falar dos subúrbios cariocas. Noel realmente conciliava com maestria
o refinamento poético do mundo letrado com a sensibilidade desenvolvida no mundo da
prostituição e da malandragem. E nisso ele foi realmente notável. O procedimento favorito: a
paródia em referência a fragmentos do cotidiano urbano. Sendo assim não podemos dizer que
ele seguia apenas o paradigma do Estácio, mas também a sua própria sensibilidade e
facilidade criativa.
Em termos estritamente musicais podemos afirmar que as contribuições
revolucionárias de Noel vão muito além da repetição do que se fazia no Estácio: Noel fazia
uso muito constante, por exemplo, das dissonâncias e de acordes diminutos, numa época em
que o era nada comum na música popular brasileira esse uso. Esta prática associada às
inversões de baixos (quando ao invés das tônicas, as notas mais graves reproduzem outras
notas do acorde, como por exemplo, as terças, quintas ou sétimas), colocavam no passado o
uso restrito de acordes perfeitos e projetavam o compositor no futuro, com suas harmonias
complexas e certas modulações de tom que se tornaram comuns 50 anos depois, no período
pós-bossa nova. Estas características e mais, a fusão das culturas musicais negra e branca,
deram à obra de Noel o papel de linguagem musical brasileira por excelência, mestiça e
autêntica, sofisticada e popular, e inegavelmente muito original.
É Marcos Napolitano quem resume o papel do poeta da Vila dentro do patrimônio
amplo da música popular brasileira: “Noel herda uma tradição, mas protagoniza uma ruptura,
pois sua obra é um dos pontos de construção e continuidade do ‘paradigma do Estácio que,
como sabemos, é herança e ruptura a um tempo com a música urbana anterior”
100
. Estes
sambistas “intelectualizados”, ainda para Napolitano, manifestavam dois tipos de
preocupação: primeiro com a influência estrangeira na cultura brasileira, sobretudo depois de
1932, quando o cinema falado se consolidou, e segundo com a “associação imediata e
99
Naves, Santuza Cambraia. A canção popular entre a biblioteca e a rua”. In: Decantando a República. Vol. 1.
2004. Op.cit. p. 83.
100
Marcos Napolitano em depoimento ao autor. Agosto de 2007.
46
preconceituosa entre samba e malandragem, preocupados com a ampliação e o circuito de
audiência do samba”
101
.
A propaganda da mestiçagem, as escolas de samba, o paradigma do Estácio, a
popularização da rádio, as produções de musicais no cinema e a mediação de compositores
brancos da classe média entre o morro e o asfalto, compõem juntos um fenômeno maior, que
trata da construção da identidade cultural e da urncia de uma modernização que incluía e se
adaptava á ideologia capitalista de industrialização. A construção desta identidade
representava a afirmação do Brasil perante o mundo como nação. E assim, a partir do final
dos anos 1930, as características “próprias” dos brasileiros se tornaram definitivas e
emblemáticas.
Para isso, foi fundamental também, o podemos esquecer, a atuação das diretrizes do
Estado Novo sobre a nossa identidade cultural, na qual o carnaval e o samba, juntamente com
o futebol, cedo formaram uma espécie de cerne ou núcleo central, extremamente duradouro.
Para a “festa maior” do carnaval, as intenções didáticas e ufanistas dos enredos mantiveram-
se presentes nos sambas até o final da ditadura militar de 1964, ou seja, até pelo menos, 1985,
e ainda são comuns até hoje, repetindo a exaustão muitas das nossas “qualidades brasílicas”.
A própria organização do carnaval e das escolas (em alas, comissão de frente etc.) ainda hoje
segue moldes estabelecidos na época. Os desfiles nunca mais puderam ser dissociados da
estrutura governamental e a utilização de temas históricos nos enredos manteve-se como uma
imposição, ainda que não oficial o que obrigou os compositores a produzirem sambas cada
vez mais longos e complexos, e com elementos culturais e lingüísticos novos. Isto acabou
fazendo com que tais canções se afastassem gradualmente do antigo gosto popular para
ocupar um espaço curto e alternado a cada ano na fugaz mídia do entretenimento e do
turismo. Mas esta outra drástica transformação não ocorreu antes de ficar como que
cicatrizada na pele dos brasileiros a sua própria tradição musical popular, que ao seu modo
traduzia a brasilidade.
Porém, a preocupação com a manutenção da tradição cultural fez ser permanente o
sentimento de decadência deste patrimônio. A tese da decadência, que ressurgiu no período da
II Guerra, assumirá feições vigorosas após uma verdadeira invasão de músicas estrangeiras na
programação das rádios brasileiras, especialmente a partir do início da década de 1950. Neste
101
NAPOLITANO, Marcos. A síncope das idéias. Op. cit. p. 25.
47
período, a música popular foi tema constante e controverso na imprensa brasileira, e desta
vez, a idéia de decadência iria se tornar corrente e hegemônica na historiografia da música
popular. Nesta época, marcada pelo crescimento da indústria fonográfica, o samba tradicional
parecia não mais ocupar o lugar central, e dividia as paradas de sucesso do país com rumbas,
tangos, xá-xa-xás, boleros, fox-trots e jazz trazido pelas Big Bands, entre outros ritmos mais
exóticos, que tomavam conta das rádios. É nesse leque de produções estrangeiras ou “de
influências estranhas” que muitos viram uma inequívoca decadência da arte musical nacional.
Mas, poderíamos perguntar, esse sentimento correspondia à realidade?
Ainda que o envelhecimento ou morte de alguns dos ícones dos anos 30 e 40, como o
próprio Noel ou Francisco Alves e Carmem Miranda, fizessem crer que a música popular
estava mesmo sem futuro, em meados dos anos 1950 muitos outros artistas de inegável
qualidade faziam a sua aparição: Dolores Duran, Antônio Maria, Adoniran Barbosa, Jacob do
Bandolim, Ângela Maria, Demônios da Garoa, Os Cariocas, e Tom Jobim o apenas alguns
exemplos; a produção voltada para a festa do Carnaval, para citar outros, teve em
composições de Haroldo Lobo, Braguinha,ssara, Wilson Batista e Zé da Zilda, entre tantos
(Lamartine Babo é o grande exemplo de sucesso de vendas), altíssima qualidade neste
período; o frevo também obteve destaque, através de Severino Araújo e o baião se consagrava
na voz de Luiz Gonzaga entre outros artistas nordestinos; Cartola foi redescoberto por Sérgio
Porto e retornou à vida artística; a turma da Velha Guarda, comandada por Pixinguinha,
voltou a gravar e fazer shows; e havia lugar ainda para novas manifestações musicais como o
bigorrilho, cultivado por Jorge Veiga, para não falar da rica variedade de sambas: samba de
roda, samba de breque, samba-canção e samba-enredo; A atuação de Almirante nos programas
de rádio continuava com grande sucesso, divulgando todo esse rico universo e elegendo os
”ícones eternos” da nossa música (o principal do período foi Noel Rosa) que serviriam para
identificar a nossa “verdadeira” brasilidade contra os estrangeirismos “deturpadores” do
samba. Assim, o cenário musical era muito variado e criativo o que derroca totalmente a
impressão de decadência - sendo ainda o samba o gênero mais no período.
Ainda assim, por sobre essa profusão artística pairou pesada, a nuvem dos julgamentos
pessimistas que novamente condenavam à música brasileira à decadência. E apesar de todos
os memoráveis acontecimentos ligados à música popular desta cada, as opiniões insistentes
sobre a decadência do samba acabaram consagrando os anos 50, como um período de crise.
48
Noel, que foi reconhecido em vida como genial compositor e figura de talento da
boemia do samba, estava praticamente esquecido no final dos anos 1940. Mas no início da
década seguinte, o processo de construção da “genialidade” que marca sua figura histórica,
como categoria de reconhecimento social e estético, terá grande impulso, com os programas
radiofônicos de Almirante e com a exaltação criada pela Revista de Música Popular.
Almirante
102
fazia grande sucesso como radialista da rádio Tupi por este tempo. Com
uma série radiofônica especial dedicada a Noel Rosa, a partir de 1951, onde narrava histórias
“pitorescas” da vida de Noel, entremeadas com gravações antigas e canções realizadas ao
vivo no estúdio, o radialista e cantor Almirante, seu ex-parceiro no grupo O Bando de
Tangarás, dava início a uma verdadeira apologia à figura do compositor. O radialista não se
abstinha em adjetivar Noel com os superlativos mais usuais à época e também de ligá-lo à
tradição, como neste trecho onde faz comentários sobre a marchinha “As Pastorinhas”: “Pela
incomparável beleza de sua melodia... Pelo assunto profundamente brasileiro e tradicional de
seus versos”
103
.
Mais tarde, esses programas foram relançados como uma série de artigos, publicados
na Revista da Semana com o título de Vida de Noel Rosa contada por Almirante, em
publicações semanais (de 18 out. 1952 a 3 jan. 1953). Artigos que seriam ainda reunidos em
um dos livros que se tornaram “clássicos” da historiografia musical brasileira: No Tempo de
Noel Rosa
104
, que acabou servindo de alicerce para a construção do mito. Este projeto de
Almirante foi retocado ainda em 1953, com a nova rie radiofônica, também para a rádio
Tupi, Recordações de Noel Rosa. Nestes programas, assim como na biografia escrita por
Almirante, solidificava-se dentro da tradição a obra de Noel, cuja popularidade seria
confirmada ainda em 1953, com o álbum de três discos de 78 rpm de Araci de Almeida
homenageando Noel Rosa (com capa de Di Cavalcanti), que bateu todos os recordes de
vendagem e consagrou definitivamente o compositor e a intérprete. Mas seria necessário
ainda o aval de outros especialistas para o reconhecimento total. Este viria com a Revista de
Música Popular.
102
Almirante (Henrique Foreis Domingues) foi rebatizado por Cézar Ladeira de "a maior patente do rádio".
103
No Tempo de Noel Rosa (de 5 de junho de 1951). Programa radiofônico produzido e narrado por Almirante, e
comercializado pela Collector's Studios Ltda. (www.collectors.com.br), Fita 5 (AER081). Esta série é de
grande importância histórica para a sica popular brasileira. o 11 fitas magnéticas (K7) com todos os
programas que Almirante apresentou na Rádio Tupi em 1951 contando a vida de Noel Rosa e ilustrados com
mais de 100 músicas interpretadas pelos mais conhecidos astros da emissora.
104
ALMIRANTE. No tempo de Noel Rosa. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1963.
49
A Revista da Música Popular, que circulou no Rio de Janeiro, entre agosto de 1954 a
setembro de 1956, com exatamente 14 edições, representou naquele momento uma tentativa
consciente e bastante séria de resgate, ou reinvenção da tradição, ao esboçar um projeto de
restauração da música brasileira dos anos 1930
105
. Essa publicação teve enorme importância
na formulação e nos debates sobre os contornos da tradição naquele período. Maria Clara
Wasserman, a primeira historiadora a explorar a Revista da Música Popular como fonte para a
história da construção das nossas tradições culturais afirma:
O pensamento disseminado pela Revista gerou ações culturais e correntes
historiográficas ligadas à idéia de raiz na sica brasileira. O samba dos anos 30,
reverenciado pelo periódico como “época de ouro” da música ganhou outro sentido
na interpretação dos “folcloristas urbanos”. A chamada batida tradicional do samba
constituiu-se como representação da verdade histórica em oposição às formas ou
ritmos estrangeiros que seriam anti-nacionais. Portanto, pensar o samba como
“autêntico ou puro”, embora ameaçado pela modernidade e pelo tipo de
popularização do consumo musical dos anos 50, foi a base da proposta da Revista
da Música Popular
106
.
O projeto exposto pela Revista da Música Popular compreendia uma grande estrutura:
um panteão de compositores e intérpretes eleito pelo periódico e pelo público leitor, um papel
de responsabilidade definido para a indústria cultural, parâmetros para juízos de valor, a
elaboração de conceitos generalizantes para a história da nossa música popular, como “velha
guarda”, “samba de raiz” e “época de ouro”, a preocupação com a classificação dos gêneros
musicais e um nacionalismo herdado em parte dos folcloristas da música urbana (Mário de
Andrade e Renato Almeida) e em parte dos jornalistas especializados na história da música
popular (Lúcio Rangel e Ary Vasconcelos). E contou com a colaboração de muitos artigos
assinados por eminentes artistas e personalidades (Sérgio Porto, Fernando Lobo, Rubem
Braga, Paulo Mendes Campos, Nestor de Holanda, Orestes Barbosa, Almirante, Jota Efegê,
Haroldo Barbosa, Vinícius de Moraes, Manuel Bandeira e Ary Barroso, entre muitos outros),
gerando assim, uma verdadeira escola a dominar os julgamentos posteriores sobre a nossa
música. É justamente essa “academia” que vai alçar Noel Rosa a um patamar de figura mítica
do mundo do samba.
A Revista da Música Popular, em absolutamente todos os seus números dedicou ao
menos um artigo sobre o ídolo, considerado por muitos dos seus autores como o principal
105
A Revista da Música Popular teve a direção de Lúcio Rangel e Pérsio de Moraes.
106
WASSERMAN, Clara. “Abre a Cortina do Passado - A Revista da Música Popular e o pensamento folclorista
(Rio de Janeiro: 1954 – 1956)”. Dissertação de mestrado, UFPR, Curitiba, 2002. p. 134.
50
compositor brasileiro, no que diz respeito á genialidade, e digno representante da autêntica
tradição brasileira. Noel chegou a ser classificado por Rubem Braga, como símbolo da
brasilidade:
Os seus sambas de amor mais tristes têm na letra ou na música alguma coisa que
evita o patético pegajoso do tango (...). Noel está precisando de um assunto sério.
Um dia alguém o compreenderá e o faráporque aquele homenzinho sem queixo e
de olhos de criança muitas vezes exprimiu, na ingênua malícia o saborosa de sua
linguagem, mais de dois terços do Rio de Janeiro
107
.
Jota Efegê, um folclorista que escreveu muito sobre a música popular brasileira,
escreveu também um artigo sobre Noel na Revista, classificando-o como o “cantor mais
expressivo da música popular carioca”. E arriscou uma explicação “racional” como
justificativa:
Noel era compositor porque era capaz de decompor e dizer a razão dos elementos
que punha em suas composições. Não era um desses “com jeito para a coisa”, que
às vezes o felizes em suas produções (...) Noel Rosa deve ser lembrado como
compositor, compositor da verdadeira acepção do vocábulo
108
.
A Revista da Música Popular acabou colaborando bastante para que o compositor da
Vila se tornasse o primeiro ícone da nossa música a ser literalmente cultuado: estátuas serão
inauguradas em sua homenagem; o seu túmulo sofre uma reforma; e nos cartuns do
caricaturista e também compositor Nássara, a Araci de Almeida aparecerá sempre chorando e
com uma vela acesa nas os, diante de um retrato de Noel. A partir daí, a genialidade de
Noel Rosa vem novamente à tona, produzindo uma rie de artigos, regravações e até mesmo
contestações, contra o que alguns já consideravam certo exagero de culto, como foi o caso dos
artigos publicados na mesma Revista pelo polêmico Ary Barroso, outro ícone inconteste,
porém ainda vivo e não tão cultuado quanto Noel. Em 1955, surgiria a primeira biografia de
Noel, Noel Rosa e sua época, composta por Jacy Pacheco, primo do compositor, que três anos
mais tarde lançaria um segundo volume dedicado a ele, O Cantor da Vila, que antecederam o
clássico livro de Almirante, lançado apenas em 1963
109
.
107
BRAGA, Rubem. “Noel Rosa; poeta e cronista”. Revista da Música Popular, n.º 1, Pág. 11. dois terços do
Rio de Janeiro” faz parte de um verso da música Quem dá Mais, de Noel Rosa, 1930
108
Revista da Música Popular, nº. 3, pág. 14.
109
PACHECO, Jacy. Noel Rosa e sua época. Rio de Janeiro: G.A. Penna, 1955. PACHECO, Jacy. O cantor da
Vila. Rio de Janeiro: Edições Minerva, 1958. Jacy Pacheco escreveu ainda A Vida e os amores de Noel
Rosa, em formato de Cordel. Rio de Janeiro, s/d., e o artigo “Noel, o poeta do outro mundo”, na Revista de
Música Popular, Rio de Janeiro, nº 12, abril de 1956.
51
Contudo, após as insistentes homenagens da Revista de Música Popular e as sempre
lembradas regravações de suas músicas por intérpretes consagrados na metade dos anos 1950,
como Aracy de Almeida, a memória de Noel caminharia novamente para o limbo. E não seria
requisitada durante o período da Bossa Nova, quando outros compositores da década de 1930,
como Dorival Caymmi e o próprio Ari Barroso seriam mais lembrados e regravados.
Noel faria novamente muito sucesso no final da década de 1960, com as
interpretações também antológicas de Maria Bethânia. De para cá, o reconhecimento à sua
genialidade não parou de produzir mais obras artísticas: Em 1968, Gilberto Santeiro lança o
curta-metragem Cordiais Saudações, exaltando o grande bamba; em 1977, estréia a peça
teatral, dirigida por Plínio Marcos, O poeta da Vila e seus amores; em 1981, Domingos de
Oliveira, encena a peça Rosa (mais uma homenagem a Noel) e o cineasta Rogério Sganzerla
filma o curta Noel por Noel; em 1982, a escola de samba Unidos de Vila Isabel, apresenta o
samba-enredo "Noel Rosa e os poetas da Vila nas batalhas do Boulevard", de J. Albertino; em
1990 é lançado o livro Noel Rosa - uma biografia, de autoria de João ximo e Carlos
Didier, em comemoração aos 80 anos de seu nascimento, que se tornou um grande sucesso
editorial; neste mesmo ano (1990), Rogério Sganzerla explora mais uma vez o ídolo e faz o
documentário Isto é Noel, e Ricardo Van Steen produz o curta Com que roupa. No ano 2000,
ocorre uma edição realmente histórica da obra de Noel: Omar Jubran lança uma caixa com 14
cds, com todas as gravações originais de composições de Noel remasterizadas, incluindo
músicas que não haviam sido editadas comercialmente e até algumas transmissões
radiofônicas, além de composições inéditas. São 229 faixas que passaram a divulgar o
universo das obras de Noel mais do que em qualquer outro momento
110
. E em 2007, estréia
ainda o primeiro longa-metragem sobre o compositor, Noel - Poeta da Vila, baseado na
biografia de João Máximo e Carlos Didier e dirigido por Ricardo Van Steen, nas salas de
cinema em todo o Brasil. Tudo isso, fora os vários livros focalizando a vida e obra de Noel
Rosa que foram lançados nas últimas décadas
111
.
110
Omar Jubran, professor de biologia e colecionador da música brasileira, fez essa coletânea após mais de dez
anos reunindo as primeiras gravações das composições, remasterizando cuidadosamente as faixas e
alocando em apoios institucionais os recursos financeiros.
111
Além das obras sobre Noel citadas, podemos ainda acrescentar: • CALDEIRA, Jorge. Noel Rosa: de costas
para o mar. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982. (Coleção Encanto Radical; v.2) CARVALHO, Castellar
de; e ARAUJO, Antonio Martins de. Noel Rosa: ngua e Estilo, Rio de Janeiro: Thex Ed.: Biblioteca da
Universidade Estácio de Sá, 1999. DOMENICO, Guca. O Jovem Noel Rosa. Rio de Janeiro: Editora Nova
Alexandria, 2003. VASCONCELLOS, Eduardo Alcântara. Noel Rosa para ler e ouvir. São Paulo:
Annablume, 2004.
52
Em apenas sete anos de produção artística (1929 1937), Noel Rosa deixou uma
obra que o consagrou como um dos maiores nomes da música popular brasileira de todos os
tempos”, na opinião de Sérgio Cabral, que acrescenta:
Noel (...) virou nome de rua, nome de escola e nome de túnel, mereceu vários livros
(...), shows e peças teatrais, enredo de escola de samba, foi tema de várias músicas
e nunca foi esquecido, transformando-se numa espécie de símbolo o só do samba
e de Vila Isabel, mas do próprio Rio de Janeiro
112
.
1.2 – De Noel até Chico: a tese da decadência.
A tese da decadência tão apregoada pela Revista de Música Popular nos anos 1950, não
conseguia ver, como afirmamos, que a música brasileira se mantinha em plena atividade e
divulgação, e que, aliás, era cada vez mais expandida a todo o território nacional e internacional. Além
disso, não era verdade que o samba “tradicional” estava sendo substituído, pois ele ainda estava
bastante presente com temas que caracterizavam o ambiente urbano carioca, como o cotidiano do
trabalho e da velha malandragem, cujo maior representante musical naquele momento era Moreira da
Silva, o Kid Morengueira. Talvez, outras transformações notáveis na capital do país, fossem mais
diretamente responsáveis pela sensação de decadência do que os famigerados estrangeirismos. Alcir
Lenharo nos conta que os lugares da boêmia e do meio artístico carioca nos anos 30 e 40 sofreram
uma trajetória descendente: em 1942 foram fechados prostíbulos e desapropriados prédios “velhos e
insalubres”, e em 1946, o presidente Eurico Gaspar Dutra fechou os cassinos e proibiu o jogo no
Brasil
113
. Essas, entre outras interferências na aparência da cidade, como a alteração do bairro da Lapa
e o desmonte do morro de Santo Antônio, entre outros, modificaram os redutos da malandragem,
característica dos anos 30, provocando na população em geral, uma sensação de decadência do próprio
mundo do samba.
O medo de perdermos a cultura aqui construída fez se radicalizarem os discursos a favor de se
preservar a tradição a qualquer custo, especialmente contra os estrangeirismos, a ponto de, em alguns
casos, se formalizarem em leis. A primeira página do jornal O Globo, de 2 de março de 1957, trazia a
manchete: Ao Teatro Municipal caberá defender o prestígio e a tradição do carnaval carioca”. A
matéria explicava que a Polícia, além de impor a proibição do uso de fantasias que atentassem contra a
moral, como calções de banho, maiôs e biquínis, assim como fantasias que imitassem hábitos
religiosos ou uniformes das forças armadas, queria impedir também que se deturpasse a tradição
112
CABRAL, Sérgio. “O Eterno Jovem”. In: Noel Rosa: Songbook. Vol. 3. Rio de Janeiro: Lumiar, 1991.
(produzido por Almir Chediak). p. 15.
53
musical, ameaçada por um novo modismo: A partir das 12 horas de hoje até as 6 h do dia 6
estarão em pleno vigor as instruções baixadas pela Polícia para o carnaval. O tal discutido
rock’n’roll foi posto fora da lei nos bailes carnavalescos. As orquestras estão proibidas de
executar esse gênero musical”
114
.
Porém, na década de 1950, a canção popular brasileira não poderia mesmo ficar imune
aos estilos e novidades que vinham de fora, e esses elementos, mais cedo ou mais tarde, iriam
impor um processo de modernização inevitável.
A reação à modernidade irá se agravar ainda mais com a presença bastante
perturbadora da Bossa Nova, a partir de 1958, com sua opção de renovação estética.
Perturbadora, porque, ao mesmo tempo em que representava uma enorme guinada
modernista, também reivindicava o seu lugar na tradição do samba, acabando por botar muita
lenha no debate e torná-lo ainda mais complexo. Um exemplo das conseqüências se verifica
no I Congresso Nacional do Samba, de 1962, organizado pela Companhia de Defesa do
Folclore Brasileiro, cuja realização tinha a intenção direta de preservar as características do
samba sem tirar-lhe as perspectivas de modernidade e progresso”. Na introdução do
documento, redigido pelo folclorista Edison Carneiro para esse congresso, lê-se: Tivemos em
mente assegurar ao samba o direito de continuar como expressão legítima do sentimento de
nossa gente
115
.
Apesar de todo esse esforço em manter a “pureza” dos ritmos brasileiros, com os
especialistas torcendo o nariz para a Bossa Nova, esta se tornaria uma febre nacional e até
mesmo mundial (a Beautiful Bossa Nova”, título de um LP lançado nos EUA). Resultado:
muitos bons brasileiros não gostaram dessa nossa nova cara. O folclorista Brasílio Itiberê, em
prefácio para um livro de Lúcio Rangel uma demonstração do desagrado que esta
provocou entre os mais “puristas”:
Ela (a música popular) foi ferida de morte na sua parte orgânica mais preciosa,
atingida no cerne, na medula - isto é - no ritmo. Desaparece o ímpeto dinamogênico
do sincopado e, privada de sua vivacidade rítmica, a melodia popular se amolentou,
tornou-se invertebrada, perdendo caracteres raciais específicos (...) Há, entretanto,
113
LENHARO, Alcir. Cantores do dio: A trajetória de Nora Ney e Jorge Goulart e o meio artístico do seu
tempo. Campinas, Editora da Unicamp, 1995. p. 55.
114
O Globo, 2 de março de 1957, manchete e matéria de capa.
115
Edson Carneiro, Carta do samba. Palácio Ernesto, 1962. Apud: WASSERMAN, Clara. “Abre a Cortina do
Passado - A Revista da Música Popular e o pensamento folclorista. (Rio de Janeiro: 1954 – 1956)”.
Dissertação de mestrado, UFPR, Curitiba, 2002. p. 76.
54
um fato que me consola: é pensar que o folclore é coisa eterna e imperecível. A
prova está na vitalidade criadora de alguns remanescentes da velha guarda, a
exemplo desse bravo Pixinguinha
116
.
Itiberê fazia grande confusão entre a tradição do folclore e a tradição do samba
popular urbano, tornando-os sinônimos. A tradição na qual se insere a obra de Noel, que
depois será preservada em linhas gerais por compositores como Chico Buarque, não tinha
nada a ver com “folclorismo”. Nem mesmo Pixinguinha ou o que se fazia na Casa da Tia
Ciata mantinha esta relação tão direta com o folclore. Trata-se de uma forma de acentuar a
importância do patrimônio “perdido”, dando-lhe responsabilidades que não lhe cabem. É um
debate enviesado”, confirma Marcos Napolitano, “no qual intelectuais folcloristas
construíam valores ancorados mais numa “escuta ideológica”, como diria Arnaldo Contier
117
, do que num exame musicológico ou estético mais profundo da obra dos artistas citados
118
.
As palavras de Itiberê representavam mais uma tentativa de recolocar a tradição
alinhada com um determinado projeto de origem, numa posição completamente livre de
“exagerados modernismos”. Postura que terá em José Ramos Tinhorão, um representante das
convicções mais radicalmente conservadoras. Este crítico, que ocupa um lugar destacado na
historiografia da música brasileira, não pela importância da sua grande produção
bibliográfica
119
, como também pela sua verve polemista, ganhou notoriedade (e também
opositores) ao se guiar pela idéia de que a Bossa Nova representava o momento máximo da
ruptura com as origens, logo, com a autenticidade, construindo verdadeiros manifestos contra
a hegemonia que a Bossa Nova parecia exercer no início da década de 1960. Hegemonia que
se consolidará em torno dos programas de televisão, e não mais do dio outra importante
ruptura. Interessante notar que isso se deu justamente em um momento em que a Bossa Nova
buscava nova inspiração na Bahia, com Baden Powell e seus afro-sambas, e no "morro"
(como ocorreu com Carlos Lyra, Nara Leão e Vinicius de Moraes) ou até em Orlando Silva e
nos sambistas antigos (como podemos notar nos álbuns de João Gilberto), ou seja, exatamente
116
ITIBERÊ, Brasílio. In: RANGEL, Lúcio. Sambistas e chorões. Aspectos e figuras da MPB. o Paulo:
Francisco Alves, 1962. p. 8.
117
CONTIER, Arnaldo. Brasil novo. Música nação e modernidade: os anos 20 e 30. Tese de livre docência.
FFLCH-USP, 1988.
118
Marcos Napolitano em depoimento ao autor. Rio de Janeiro, abril de 2007.
119
Entre os livros propriamente historiográficos de José Ramos Tinhorão destacam-se: Samba: um tema em
debate. Rio de Janeiro: Saga, 1966; O samba agora vai: a farsa da música brasileira no exterior. Rio de
Janeiro: JCM Editores, 1969. Pequena História da Música Popular. São Paulo: Ática, 1978; Música
Popular: do gramofone ao rádio e TV. São Paulo: Ática, 1981.
55
quando a Bossa Nova requisitava e confirmava a tradição. De qualquer maneira, a bossa-nova
iria produzir uma real redefinção da tradição permitindo que o canto tivesse a chamada “voz
pequena” de João Gilberto (semelhante a de Noel) e que as letras fossem mais intimistas e
descompromissadas, como em “Desafinado” (Tom Jobim e Newton Mendonça, 1958) e “O
Barquinho” (Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli, que em 1960 teve três gravações
simultâneas: de Maysa, Peri Ribeiro e Paulinho Nogueira, e tornou-se uma das músicas mais
conhecidas e representativas da bossa nova, com várias gravações também no exterior).
Quanto à decadência didaticamente propalada, vejamos essa importante reflexão de Maria
Clara Wasserman:
Nos anos 60, com a ruptura e o deslocamento do lugar social da canção, catalisado
pela bossa nova, a relação com a música dos anos 30 e com o passado musical
como um todo, transformou-se. O ideal de pureza e tradição que Lúcio Rangel e
outros folcloristas tanto perseguiram, deslocou-se para uma perspectiva de
modernização musical e cultural do país como um todo. Ainda assim, em plena
década de 60, o pensamento “folclorista” construído nos anos 50, ainda será
influente, incorporado em parte pela esquerda nacionalista e reforçado sobretudo
após o golpe de 1964, como demonstram os espetáculos “Opinião” e “Rosas de
Ouro”. (...). Neste projeto, síntese das utopias da época, tradição e modernidade,
elite e povo, lazer e consciência social deveriam estar harmonizados num só idioma
político e cultural, a começar pelo campo da música popular. Então, o samba da
“época de ouro” deixou de ser objeto inerte de um culto à tradição e passou a ser
visto como a base musical e ideológica para a formação da moderna música popular
brasileira, que passaria a ser designada pelas suas consagradas iniciais maiúsculas:
MPB
120
.
O que estava sendo considerado pelos críticos como deturpação era na verdade uma
reformulação bastante criativa e convincente. Tanto, que a Bossa Nova é até hoje, em sentido
contrário à condenação que sofreu neste período, um produto de exportação que ainda leva a
marca da brasilidade para todo o mundo. Como o paradigma estava mudando novamente,
Noel estava momentaneamente esquecido, como vimos - ainda que tivesse sido ele, Noel,
quem havia “inventado” ou proposto a chamada “voz pequena” de João Gilberto, mais de 20
anos antes deste.
120
WASSERMAN, Maria Clara. Abre a cortina do passado. Op.cit. p. 137.
56
1.3 – Chico: engajado na tradição
O herdeiro da tradição de Noel Rosa”, bradou um vereador paulista que da tribuna
da mara passava o título de cidadão paulistano para Chico Buarque, em 1967
121
. Essa
aclamação nos chama a atenção pelo seu significado em relação ao reconhecimento de uma
mesma “qualidade” musical e a permanência de elementos tradicionais. Perguntamos-nos
então, o que faria um vereador paulista considerar uma das mais notáveis qualidades artísticas
de Chico Buarque, a sua semelhança musical com Noel?
Toda a década de 1960, tida hoje em dia como um segundo período de grande
importância para a nossa música (após os anos 1930) em termos de qualidade e criatividade
das produções, assistiu a permanência da crítica que apontava a decadência, muito visível na
rejeição, por parte de uma mesma intelectualidade, à Jovem-Guarda, ao movimento
tropicalista e depois à música brega, que iria inundar as gravadoras, tvs e dios nos anos
1970. No livro de Nelson Motta, Noites Tropicais: solos, improvisos e memórias musicais,
lançado no ano 2000
122
, encontramos a confirmação dos preconceitos e juízos de valor
enraizados na década de 1960 pela idéia constante e antiga de decadência, em particular a
contraposição entre a música popular “alienada” e a música popular “culta”. Essa dualidade,
segundo Nelson Motta, já estava bem representada desde meados dos anos 60, através de dois
programas de TV: o programa Jovem Guarda (comandado por Wanderléia, Erasmo e Roberto
Carlos) e o programa O Fino da Bossa (apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues). O
primeiro representava o público “manipulável” e jovem (sem tradições) e o segundo o público
“politizado” e consciente das tradições rixa entre artistas e programas que foi, segundo o
autor, estimulada pela TV Record, interessada em se ver sintonizada com os interesses da
indústria fonográfica.
Contudo, não houve crítica que condenaria a qualidade das canções que disputaram os,
hoje antológicos, Festivais da Canção. Graças principalmente a eles, os anos 1960 ficarão
marcados como um novo período de ouro da música popular, com novos artistas que
121
Nova História da Música Popular Brasileira Chico Buarque. Fascículos Abril Cultural (acompanha um
LP). São Paulo: Abril Cultural, 2ª edição, 1976. p. 2.
122
MOTTA, Nelson. Noites Tropicais: Solos, Improvisos e Memórias Musicais. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.
57
mexeriam bastante com os rumos da velha tradição. Entre os principais, Chico Buarque de
Hollanda.
A TV Excelsior inaugura o extrato dessa nova “era de ouro” com dois festivais: um em
abril de 1965, que teve a vitória de “Arrastão” (Edu Lobo e Vinícius de Moraes, interpretada
por Elis Regina), e outro em junho de 1966, que teve a canção “Porta-estandarte” (de Geraldo
Vandré e Fernando Lona, defendida por Tuca e Airto Moreira) como vencedora. Mas nesse
festival a referência ainda parecia ser a Bossa Nova e o Afro-samba de Baden Powell. As
composições tomam um rumo inesperado a partir do Festival da Canção, agora na TV
Record também realizado em 1966, quando a referência para as composições passou a ser os
festivais anteriores e as músicas passaram a se aproveitar mais do caráter espetacular e
catártico do evento. Venceram, empatadas, “A Banda”, do novato Chico Buarque (que
naquele ano lançou o seu primeiro LP), e “Disparada” de Geraldo Vandré em parceria com
Théo de Barros. Ambas muito ligadas a vários aspectos da tradição.
Esse festival (1966), mais do que um simples marco, representou uma verdadeira
explosão. A música iria se tornar naquele momento uma válvula de escape, cuja pressão
estava sendo produzida pelo clima político que o admitia mais músicas ingênuas e
intimistas. A bossa nova, que durante tanto tempo havia sido sinônimo de modernidade e
sofisticação era agora atropelada pela onda de canções que apresentavam uma densidade
lírica, harmônica e melódica inédita, para não falar do engajamento político de algumas.
Colaborou muito para a repercussão de toda aquela explosão, cabe aqui assinalar, o
barateamento e a sofisticação da nova tecnologia televisiva e fonográfica que finalmente
começava a ser adquirida pela crescente classe média. A vertiginosa ascensão da televisão
nesta década foi equivalente à expansão radiofônica da década de trinta, e como naquela
época, agora aparecia também uma geração de compositores talentosíssimos, que ficariam
conhecidos quase que instantaneamente. A gravação em 33 rotações que permitiu o
surgimento do Long Play (LP) também havia impulsionado o mercado. E, de fato, a safra era
farta e a produção pra de notória. No LP do festival de 1966, nem todos os intérpretes
puderam estar presentes, por motivos de contrato com gravadoras. Assim, Jair Rodrigues,
Nara Leão, Roberto Carlos e Elza Soares tiveram de dar lugar a Chico Buarque, Geraldo
Vandré, Paulinho da Viola, Marília Medalha e Maysa! Estava assim escalado um novo time
58
para a música popular. O evento tornou-se centro de muitas atenções. Lembra o crítico Zuza
Homem de Mello, engenheiro de som na época do evento de 1966:
Para quem estava no meio, ficou evidente que havia uma grande florada na música
brasileira. Não é no festival que a gente começa a perceber isso, muitos daqueles
músicos apresentavam programas na televisão. Aquela final foi um
acontecimento nacional, parecia uma final de Copa do Mundo. Lembro de pessoas
que me procuravam para conseguir uma entrada, quem conseguia era considerado
um sortudo
123
.
Zuza Homem de Melo nos lembra aqui que os programas de TV que antecederam os
festivais (como o Fino da Bossa e a Jovem Guarda, que comentamos) foram fundamentais
para aquela explosão, pois haviam sido laboratórios da nova experiência. Não havia consenso
e nem uma idéia clara sobre o que estava a mudar, mas era certo que a “velha” tradição iria
ser reavaliada de cima a baixo em todas as suas manifestações.
Por tudo isso e também pelo clima político crescentemente opressor, uma expectativa
enorme foi armada para o festival do ano seguinte. O festival de 1967, também na TV Record,
causou verdadeiro furor nacional e premiou algumas das canções que estão presentes hoje em
muitos livros escolares: Ponteio (Edu Lobo e Capinam), Domingo no Parque” (Gilberto
Gil), “Roda Viva” (Chico Buarque) e “Alegria, Alegria” (Caetano Veloso). “Ponteio”, numa
melodia contagiante, remetia a uma série de imagens cheias de brasilidade, para falar de um
violeiro que não quer se calar: jogaram a viola no mundo, mas fui no fundo buscar”;
“Domingo no Parque”, era como uma crônica de Nelson Rodrigues, também muito brasileira:
Olha a faca!”, com ritmo e melodia igualmente acelerados e contagiantes. “Roda Viva”, um
samba que fazia o seu protesto contra a opressão e a redução do homem a uma engrenagem ou
máquina (tema herdado da época de Noel); e “Alegria, Alegria”, que com suas inovações
melódicas e fundamental apoio do ousado arranjo de Rogério Duprat, com orquestra e
guitarras elétricas, causava impacto, sobretudo pela inovação da forma e pelo conteúdo da
letra, em busca do prazer individual libertário (“sem lenço, sem documento, nada nos bolsos
ou nas mãos, eu quero seguir vivendo”). “Alegria Alegria” despontava ainda pela
modernidade, por uma linguagem que poderíamos hoje chamar de globalizada e que ao
mesmo tempo evocava uma raiz brasileira modernista, próxima à Tarsila do Amaral e Oswald
de Andrade, pela realidade fragmentada que apresentavam. Todas essas músicas, que
123
Depoimento de Zuza Homem de Mello dado à Revista dos Bancários, publicação do Sindicato dos Bancários
do Rio de Janeiro, edição nº. 110 de maio de 2006. Disponível no endereço eletrônico:
http://www.spbancarios.com.br/rdbmateria.asp?c=541.
59
apresentavam letras bastante elaboradas, se ligavam ainda a um movimento de escala
planetária da nova juventude”, que teve seu ápice nas manifestações estudantis de 1968, no
Rio, São Paulo, São Francisco, Paris e muitas outras grandes cidades do mundo, e nos
movimentos e shows hippies, que apregoavam a liberdade em quase todos os sentidos e
padronizavam novas linguagens e costumes, como por exemplo o uso da calça jeans. O
Festival assumiu ar de grande expressão da contribuição brasileira para um movimento que
queria mudar o mundo. E novamente erguemos nossas cabeças e nos orgulhamos do nosso
mérito artístico! Havia mesmo sentido na idéia de uma “nova era de ouro”, principalmente
porque a bagagem estética da primeira era de ouro estava toda ali, relida, revalorizada.
Com essa percepção concorda Marcos Napolitano, para quem novos horizontes, para
além da ‘folclorização’ da poesia em música popular estavam sendo avidamente
perseguidos”. É ele quem nos informa que, ainda em 1967, José Carlos Capinam, autor da
letra de “Ponteio”, numa posição interessante acerca da tensão “impasse”/ “evolução”,
reconhecia que a música precisava ter ‘raiz’”, mas fazia uma ressalva:
Tradição e folclore o termos que precisam ser esclarecidos. O folclore que não
corresponde às novas formas de vida precisa ser abandonado, principalmente se não
servir à elaboração de formas contemporâneas. no folclore e no tradicional um
grande material gasto, sem vida, viciado, que não corresponde aos novos bitos,
preocupações e aspirações nacionais de um mundo como o nosso, subdesenvolvido,
mas com uma tarefa imediata - inclusive revolucionária - que é desenvolver-se
124
.
Muita coisa estava para ser transformada, porém resistiria nestes transformadores, que
reconheciam o material “viciado” da tradição, a idéia de não abrir o, em suas obras, de
uma raiz” identificável na brasilidade, ou seja, que expressasse com os códigos
estabelecidos pela tradição, os novos anseios da nação. Assim, ali se engendrava o
amadurecimento da música popular que parecia que iria abandonar o riso inconseqüente do
humor brasileiro, das marchinhas e chanchadas e até da Bossa Nova, para se impor a uma
atitude de compromisso e responsabilidade de “conscientização”, que ia muito além da visão
política esquerdista. Tratava-se de uma conscientização da cultura do homem brasileiro, da
sua arte, que falava do seu trabalho (muito cantado por Gilberto Gil), de suas possibilidades
de liberdade e da força da expressão coletiva, na catarse de uma explosão que extravasou o
auditório do festival e contagiou novamente todo o país.
60
O resultado geral do III Festival de Música Popular Brasileira da Record, de 1967
superou todas as expectativas. Os que queriam acreditar numa ruptura mais profunda na
“linha evolutiva” elegeram as obras de Gil e Caetano (“Domingo no Parque” e “Alegria,
Alegria”) como os novos paradigmas de inovação na música brasileira. Os que se
identificavam, por outro lado, como uma linha mais mantenedora da tradição e que cumpria
ao mesmo tempo com os anseios políticos do momento elegeram Chico e Capinam. De
qualquer jeito, como disse Napolitano: a linha evolutiva deixava de ser uma percepção e se
materializava em obras concretas
125
:
O Festival de MPB de 1967 foi um dos momentos cruciais na formulação do gosto
da música popular e representou, historicamente, o início do processo final de
institucionalização da MPB, consolidado em 1968
126
.
Notava-se tanta diferença nos novos caminhos “evolutivos” da nossa música popular,
que ela agora passava a se chamar “MPB”, como que para marcar a ruptura que os festivais
estavam impondo. Porém, se todos estavam de acordo com a necessidade das mudanças, nem
todos as enxergavam no conjunto das músicas ali apresentadas. Augusto de Campos, por
exemplo, citado por Napolitano, escreve num jornal que “o passo a frente (na linha evolutiva)
teria sido dado por Caetano e Gil”, e nem tanto pela “Banda” e “Disparara” que “passariam
e deixariam tudo no seu lugar”. Numa longa comparação entre Alegria, Alegria” e
“Desafinado”, grande representante da já antiga bossa nova, o poeta faz, de roldão, uma
avaliação não muito positiva para “A Banda”:
Furando a maré redundante de ‘violas’ e marias’ a letra de Alegria traz o
imprevisto da realidade urbana, múltipla e fragmentária, captada isomorficamente,
através de uma linguagem nova, também fragmentada (...), descreve o caminho
inverso de ‘A Banda’: Das duas marchas esta mergulha no passado, na busca
evocativa das purezas das bandinhas e dos coretos da infância. ‘Alegria’ ao
124
Depoimento de José Carlos Capinam para o Jornal do Brasil, 22/10/1067. Apud: NAPOLITANO, Marcos.
“Seguindo a Canção”: engajamento político e Indústria Cultural na MPB (1959- 1969). São Paulo:
Annablume/ Fapesp, 2001. p.208.
125
Marcos Napolitano acrescenta: Mas é importante ter uma perspectiva histórica destas rupturas. Conforme
podemos perceber nas citações acima, os critérios de apreciação e julgamento estavam confusos,
redefinindo-se com grande velocidade”. NAPOLITANO, Marcos. “O tropicalismo no contexto dos
festivais”. Texto originalmente apresentado no Seminário "Tropicalismo 30 anos: a explosão e seus
estilhaços", Depto. Teoria Literária, Universidade de Brasília, outubro de 1997.
126
NAPOLITANO, Marcos. “Seguindo a Canção”: engajamento político e Indústria Cultural na MPB (1959-
1969).o Paulo: Annablume/ Fapesp, 2001. ps. 209-210.
61
contrário, se encharca de presente, se envolve diretamente no dia-a-dia da
comunicação moderna, urbana, do Brasil e do mundo
127
.
Vemos o reinício do debate sobre o paradigma de criação “nacional popular”, e
sobre o conceito vigente de MPB entre os defensores da “linha evolutiva”, na qual o
tropicalismo que havia deixado sua síntese no “álbum-manifesto” lançado em agosto de 1968,
Panis et Circensis, representaria a última vanguarda musical significativa.
Novas opções estéticas trazidas pelo tropicalismo, o engajamento político cada vez
mais explícito e o novo tratamento poético refinado pareciam ter se tornado os novos
elementos a comporem uma “nova” tradição. O público se inflamava com a nova capacidade
de se sentir representado por aquelas novas concepções de modernidade, a ponto de o
tolerar qualquer canção concorrente que o trouxesse muito evidente as possibilidades dessa
identificação. Neste mesmo festival (1967), o público simplesmente se negou a ouvir o
compositor Sérgio Ricardo, que não conseguiu cantar “Beto Bom de Bola” na final do
concurso, sob as vaias e os protestos da platéia, talvez porque se parecia muito com o estilo já
considerado retrô da bossa nova. O compositor e bom cantor Sérgio Ricardo reagiu e gritou:
Vocês são uns animais!”, e para completar, quebrou o violão no banco e o arremessou à
platéia. Sua atitude foi a de devolver a agressão ao público, que se mostrou intolerante com os
deslizes de tonalidade e os problemas com o equipamento de som no início da música, e que
havia, na verdade, escolhido de antemão os seus preferidos. Exigia-se uma outra roupa para
a tradição e aquele samba de letra intrincada e harmonias previsíveis o mais correspondia a
ela. Não para aquele palco e o que ele estava a representar. Mas a tradição em si, apesar de
tudo, não estava sendo negada, ao contrário, estava muito presente até mesmo nas obras mais
esteticamente “revolucionárias”, com nova dose de autenticidade, e preservando algumas das
mesmas “brasilidades”: Ponteio!, êh! José”, Roda mundo”, Viva a banda-da-da!“,
porém com mais inventividade e ousadia.
Se 1967 havia sido um ano explosivo em vários sentidos, 1968 quase seria
hecatômbico, a ponto de os militares investirem pesado contra a onda de transformações e de
manifestações contundentes, com o Ato Institucional nº. 5 (AI-5) no final do ano. No III
Festival Internacional da Canção (FIC), organizado pela TV Globo (1968), o clima era de
127
CAMPOS, A. “A explosão de Alegria Alegria” IN: O balanço da Bossa e outras bossas, São Paulo:
Perspectiva, 1993 (1° ed. 1968), p.153 (Publicado originalmente n’OESP, 25/11/1967). Apud:
NAPOLITANO, Op. cit. p.215.
62
muito nervosismo e agitação tanto que a determinado momento o auditório foi ocupado por
tropas do exército aumentando muito a tensão. “Proibido Proibir”, de Caetano Veloso, foi
desconsiderada pela platéia e impedida na sua realização pelas vaias constantes, o que
provocou no compositor e intérprete uma reação já ensaiada: um poema recitado aos berros
como um contra-protesto, pois ele “adivinhara” que aquela sua música iria extrapolar o que o
público realmente queria. O júri escolheu “Sabiá”, de Chico Buarque e Tom Jobim, muito
mais de acordo com a tradição da brasilidade, deixando “Pra não Dizer que não Falei das
Flores” (ou Caminhando”), de Geraldo Vandré, a preferida do público, em segundo lugar. O
clima de tensão chegou então ao auge quando o apelo político se fez mais urgente e o público
que lotava o Maracanãzinho vaiou compulsivamente o resultado, considerando a música de
Vandré mais apropriada (e politizada) para o momento. A solução conciliatória partiria de
Chico Buarque ao propor ao júri o empate entre as músicas e a divisão do primeiro lugar.
Prontamente aceita a sugestão, sua atitude certamente evitou manifestações que poderiam
degenerar em violência.
Antes de analisarmos o papel desempenhado por Chico Buarque em toda esta
efervescência e seu engajamento na tradição, cabe antes uma descrição do rápido
desaparecimento destes palcos tão ricos, que foram os Festivais da Canção. Depois de 1967,
a politização dos próximos festivais tornara-se mais do que evidente e inevitável - ao que o
governo reagiu com a repressão do AI-5 no final de 1968. A partir daí, os Festivais foram
rapidamente deixando de representar o palco preferencial do nascimento da nova tradição.
Herdaríamos daí um sentimento de “gestação interrompida” que muito colaborou também
para a nova onda dos que apostavam na teoria da constante decadência.
A TV Record realizou os seus festivais, também em 1968 (“São, São Paulo, Meu
Amor”, de Tom Zé, foi a música vencedora) e em 1969 (“Sinal Fechado”, de Paulinho da
Viola), porém, muito cerceados pela censura, os festivais estavam já condenados a não mais
contribuírem de maneira incisiva para a formação de novas roupagens da idéia de tradição.
Um exemplo: Em 1970, “BR-3”, música de Antônio Adolfo e Tibério Gaspar, interpretada por
Tony Tornado e Trio Ternura apresentava uma bela melodia, que não permitia entender muito
bem que a letra falava apenas de morte e desesperança, mas que contou com o carisma black-
power do cantor para levar o primeiro prêmio. Neste festival, a tradição parecia
propositalmente deslocada, deixada de lado, em protesto contra a repressão.
63
Além dos famosos exílios de alguns protagonistas, colaborou para o esvaziamento dos
festivais, um golpe mortal desferido pelos próprios compositores: Em 1971, vários artistas,
entre os quais, Chico Buarque, Edu Lobo, Paulinho da Viola e Tom Jobim, inscreveram
composições no Festival Internacional da Canção (FIC), organizado pela TV Globo, mas as
retiraram na última hora para protestar contra a censura. A música inscrita por Chico, Que
Horas São?”, nem existia. O festival foi quase um total fiasco. A TV Globo iria se ressentir do
golpe e se desestimularia em organizar novos festivais. A cantora Evinha foi a vencedora com
“Kyrie”, de Paulinho Soares e Marcelo Silva, em grande parte por causa da sua voz limpa e
suave. A tradição estava em outra parte, nos discos lançados por estes e outros muitos
intérpretes que não se deixaram abater pela perda do principal palco da MPB. Apesar de
algumas boas composições, os festivais pareciam derrotados pela ausência das estrelas e pelo
sufoco da liberdade - logo essa característica tão propagandeada como parte fundamental da
nossa identidade. A Globo manteve os FICs até 1972, quando a vencedora foi Fio
Maravilha”, de Jorge Ben (hoje, Jorge Benjor), defendida por Maria Alcina, mas era tarde
para a continuidade da segunda época de ouro.
Desta forma, sem a presença física de alguns dos principais talentos, se estabelece na
música popular, no início da década de 1970, o “reino do Brega”, vindo a reforçar
sobremaneira, mesmo sem nenhuma intenção, o sentimento de decadência entre os
especialistas
128
. Preconceitos a parte, a verdade é que, em termos musicais, o que se constata
é que ao final da década de 1970, a música popular brasileira, estava totalmente dirigida pelos
meios de comunicação de massa. Entravamos definitivamente nos ditames da indústria
cultural, caracterizada pelo consumo de sucessos efêmeros que tinham como refrão frases
ontológicas do dito mau gosto: passei a noite procurando tu(1970)
129
, eu batê tu
batê pá tu (1974)
130
, “ele tá de olho é na butique dela” (1975)
131
ou “se te agarro com outro
te mato, te mando algumas flores e depois escapo(1976)
132
; época também em que se nasce
128
Para os pesquisadores Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, em A Canção no Tempo, o VII FIC (realizado
em 1972) foi o último do ciclo dos festivais, encerrando assim uma fase auspiciosa da MPB, uma “última
época de ouro”. O ano de 1973, com o lançamento do grupo Secos e Molhados, corresponderia, segundo
eles ao último “suspiro” de grande criatividade e qualidade estética desse período. SEVERIANO, Jairo, e
MELLO, Zuza Homem de. A canção no tempo - 85 anos de músicas brasileiras - 1901/1985, o Paulo:
Editora 34, 1997/98, 2 vol.
129
“Procurando Tu”, de Antonio Barros e J. Luna, gravado pelo Trio Nordestino, 1970.
130
“Vou Batê Pá Tú”, de Arnaud Rodrigues e Orlandivo, Baiano e os Novos Caetanos, 1974.
131
“Severina Xique-xique”,de Genival Lacerda, com o próprio, 1975.
132
“Se Te Agarro com Outro Te Mat”o, versão de Jean Pierre do sucesso espanhol, “Si te agarro con outro te
mato”, de Cacho Castaña, com Sidney Magal, 1976.
64
a disco music (As Frenéticas, Lady Zu, Harmony Cats, entre outros, a partir de 1977) e o rock
nacional (Rita Lee, The Fevers, Renato e Seus Blue Caps, etc). Isso tudo em meio a uma
centena de cantores e compositores das mais variadas tendências estéticas: Fábio Jr., Ângela
Ro Ro, Zizi Possi, Djavan, Genival Lacerda, Elba Ramalho, Chitãozinho e Xororó, Waldick
Soriano, Simone, Fagner, etc. Entra-se, assim, em um período ao mesmo tempo muito
diversificado e crítico para a MPB, sigla com a qual se pretendeu então abarcar quase todo
esse universo. A tradição se fragmentava e se perdia de seus trilhos originais. Mas não
desaparecia.
Ainda que a produção musical estivesse longe de ser totalmente inaproveitável, a
impressão que ficou da década de 70, sobretudo a partir da segunda metade, foi de
desencanto, bem expresso no desabafo de Belchior, literalmente gritado por Elis Regina:
minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo que fizemos, ainda somos os mesmos e
vivemos, ainda somos os mesmos e vivemos, como nossos pais
133
. Nesse momento, a classe
musical se dividia, no imaginário de boa parte da intelectualidade e da classe média em geral,
entre os artistas que se somariam ao antigo panteão da década de 30 e que ocupavam o espaço
nobre das rádios FM, representando a sobrevivência de antigos padrões (entre os quais, Chico
Buarque, Milton Nascimento, Elis Regina, Caetano Veloso, Gal Costa, Maria Bethânia,
Djavan, Fagner etc.), e aqueles que seriam esquecidos, pois ocupando meios eminentemente
populares, como a rádio AM, se ligavam à necessidade de alegria mais imediata a mesma
inconseqüente alegria do carnaval - necessidade que naquele momento era entendida como
uma faceta da coisa brega: de qualidade duvidosa.
Vejamos um caso curioso da relação entre esses dois mundos: Em 1973, o compositor
Caetano Veloso, após ter sido literalmente rechaçado com Proibido Proibir” no Festival de
1968 e muito pouco compreendido no programa da TV Globo, Tropicália, do mesmo ano,
invertera as expectativas, e agora, no auge de sua carreira tornava-se um autêntico guru
daquela geração. Porém, na qualidade de mestre que agora lhe emprestavam, esperava-se
também dele a condenação ao brega. Porém, quando o compositor de “Qualquer Coisa”
chamou ao palco do show Phono 73
134
, o seu convidado, o cantor Odair José (tido como
133
“Como nossos pais”, Belchior (compositor). LP Falso Brilhante, Elis Regina. Phonogram, 1976.
134
Phono 73 foi um festival realizado no Palácio de Convenções do Anhembi de São Paulo, entre 11 e 13 de
maio de 1973, com todo o elenco da Phonogram, hoje Universal. A multinacional tinha quase todos os
grandes nomes da dita MPB e resolveu reuni-los em um grande evento de marketing com a presença de
Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Elis Regina, entre outros.
65
notório compositor brega) para participar da sua apresentação, teve novamente que ouvir uma
sonora vaia ensurdecendo o teatro, fruto da intolerância do público presente, que execrava o
que parecia ser a antítese do próprio Caetano. Porém, sob um gesto de comando do guru, o
público ficou em silêncio para ouvir, nas vozes de ambos, a canção “Pare de Tomar da Pílula”,
do compositor e intérprete constrangido. As vaias do início viraram aplausos quando Caetano
enfatizou um verso da música: "Não me importa o que os outros vão pensar". No final, a
platéia aplaudiu de pé: Quando sancionada ou “relida” por uma autoridade a qualidade do que
antes era brega passa a ser imediatamente reconhecida. Isto nos mostra quão tênue sempre foi
a linha divisória entre o que merece ou não ser cultuado nesse tipo de julgamento. Ao terminar
a execução daquela música que pareceu mais interessante na voz do compositor baiano, este
proferiu seu próprio julgamento que ia de encontro ao preconceito evidenciado, invertendo
totalmente a sua polaridade: Nada mais Z do que um público classe A
135
, desta vez foi a
platéia que ficou constrangida.
Chico Buarque, com fama de bom moço desde o início da sua carreira, conseguiu
reconhecimento crítico imediato, como atesta seu depoimento para o MIS, aos 22 anos de
idade, adquirindo o caráter de “unanimidade nacional” precocemente outorgado pela crítica.
Ao lado desse reconhecimento, o compositor também será muito lembrado como aquele que
mais manteve intactas as linhas gerais da tradição criada por Noel.
Além da genialidade, o papel que Chico Buarque desempenhou nos anos 1960/70,
para a corrente crítica e para a opinião pública mais nacionalista e ainda herdeira de valores
culturais ligados ao nacional-popular, ameaçados pela internacionalização pop, foi o de ter
preservado um patrimônio ameaçado, e estava agradecida por isto, parte importante da
sociedade nacional - daí a homenagem na Câmara Municipal de São Paulo ao insigne
compositor. Mais uma vez, é Marcos Napolitano, quem lança luzes sobre este
reconhecimento:
A recepção da obra de Chico, pela sua forma e qualidade intrínsecas, possibilitou
a superação momentânea dos dilemas colocados na cena musical brasileira dos
anos 60 pela modernização bossanovista e pelo pop (num primeiro momento,
representado pela Jovem Guarda e depois, num grau mais sofisticado, pelo
Tropicalismo). Enfatizo que este processo foi independente das vontades e dos
projetos autorais do próprio Chico, bastante aberto à Bossa Nova. Trata-se mais
135
ARAÚJO, Paulo César. Eu não sou cachorro não. Música popular cafona e ditadura militar. Rio de Janeiro:
Record, 2002. p. 204.
66
de uma construção da imprensa e da crítica nacionalista, ancorada no
reconhecimento popular da sua obra
136
.
Os interesses da construção da imprensa e da crítica especializada em relação à
manutenção da tradição em Chico Buarque explicam em parte a ligação imediata e muitas
vezes pouco aprofundada entre Noel (que não era referência central para a Bossa Nova) e
Chico. Dois marcos do samba urbano, de épocas distintas, que pareciam colocar a tradição em
um mesmo lugar, ou num lugar único de autenticidade, que sem negar aspectos da
modernidade, sobretudo de ordem temática, davam o sentido de unidade necessária para a
formulação de um sentimento popular nacionalista, ancorado na história da sua construção. A
propaganda da decadência iminente (que foi constante na história da música popular
brasileira), ajuda a entender a excitação em torno da obra de Chico: o problema para os
nacionalistas não era apenas a decadência da cena musical nos anos 1960/ 1970, mas também
o “desvio” da tradição nacional-popular. Enquanto uma infinidade de novos sambistas
alterava algumas estruturas básicas do samba (o que levou Paulinho da Viola a pedir: “não me
altere o samba tanto assim
137
), velhos bambas atestavam em seus depoimentos a
continuidade da tradição através de Chico Buarque, como fez Ismael Silva: “Chico é samba.
É nosso samba (...) Cada um tem seu estilo, mas o que Chico faz não deixa de ser samba, e
por isso é bem aceito”
138
.
As ligações de Chico Buarque com o passado (musical, literário e onírico) se tornaram
evidentes também para lingüistas, literatos e musicólogos especialistas em música popular
brasileira. Charles Perrone, por exemplo, depois de discorrer sobre a importância equivalente
de Chico e de Caetano junto ao público brasileiro dos anos 1970/ 80, marca a diferença do
significado de suas obras com a constatação de que Chico “representa o passado e o presente,
enquanto Caetano, o presente e o futuro
139
. O próprio Caetano, segundo Perrone e seus
colegas co-autores deste artigo, reconhece este dado, caracterizando o colega desta maneira:
Chico anda para a frente arrastando a tradição
140
. Tradição que pode ser entendida, como
o fazem estes autores, como ligada a um sentimento de filiação não a uma estética, mas
também a uma ética mais antiga que atual:
136
Marcos Napolitano, em depoimento prestado ao autor em julho de 2007.
137
Verso de “Argumento”, Paulinho da Viola. LP Paulinho de Viola (Amor a natureza), EMI, 1975.
138
Depoimento de Ismael Silva. In: Nova História da Música Popular Brasileira Chico Buarque. Fascículos
Abril Cultural (acompanha um LP). São Paulo: Abril Cultural, 2ª edição, 1976. p.1
139
PERRONE, Charles. & GINWAY, M. Elizabeth. & TARTARI, Ataíde. “Chico sob a ótica internacional”. In:
FERNANDES, Rinaldo (org). Chico Buarque do Brasil: textos sobre as canções, o teatro e a ficção de um
artista brasileiro. Rio de Janeiro: Garamond/ Fundação Biblioteca Nacional, 2004. pp. 211 – 227. p. 219.
67
Os impulsos fundamentais do fazer musical de Chico poderiam ser
compreendidos como afetivos e éticos; ele foi a consciência de uma geração.
Caetano e seu colega Gil provocam, essencialmente, a consciência da
mutabilidade material, do papel ritual do som, da necessidade da arte
141
.
A preservação das linhas gerais da tradição, enquanto patrimônio estético da arte
popular eminentemente brasileira, justificaria por si o interesse sobre Chico Buarque,
porém, como revelou Marcelo Ridenti, o engajamento da produção buarquiana à tradição ia
além da preocupação com a manutenção da brasilidade do ponto de vista estético, para
apresentar-se também “romântica e revolucionária”, em harmonia, portanto, com o clima
agitado dos anos 1960
142
. Partindo das reflexões de Raymond Williams sobre as "estruturas
de sentimento"
143
, Ridenti nos oferece uma possibilidade de aproximação teórica para
tratar, especialmente no que se refere às artes, do tema do surgimento de um imaginário
crítico nos meios artísticos e intelectuais brasileiros na década de 1960
144
. O autor explica
este termo repetindo o que disse sobre ele Maria Elisa Cevasco:
O termo foi cunhado por Williams para descrever como nossas práticas sociais e
hábitos mentais se coordenam com as formas de produção e de organização
socioeconômica que as estruturam em termos do sentido que consignamos à
experiência do vivido.
(...) trata-se de descrever a presença de elementos comuns a várias obras de arte do
mesmo período histórico que o podem ser descritos apenas formalmente, ou
parafraseados como afirmativas sobre o mundo: a estrutura de sentimento é a
articulação de uma resposta a mudanças determinadas na organização social
145
.
Para os artistas, nem sempre a percepção de que suas obras fazem parte de uma
estrutura de sentimento específica, sendo necessária a passagem do tempo para consolidá-la.
Nas palavras de Williams: “(...) quando essa estrutura de sentimento tiver sido absorvida, são
as conexões, as correspondências, e até mesmo as semelhanças de época, que mais saltam à
vista. O que era então uma estrutura vivida, é agora uma estrutura registrada, que pode ser
examinada, identificada e até generalizada
146
.
140
Caetano Veloso apud: PERRONE, C. op. cit. p. 219.
141
PERRONE, C. et alii. “Chico sob a ótica internacional”op.cit, 2004. p. 220.
142
RIDENTI, Marcelo. “Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960”, in: Tempo Social, revista de sociologia da
USP, v. 17, n. 1. Junho, 2005. pp. 81-110.
143
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
144
RIDENTI, M. op. cit. p. 81.
145
CEVASCO, Maria Elisa. Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra, 2001, pp. 97 e 153. Apud
RIDENTI, op. cit. p. 83.
146
WILLIAMS, Raymond. Drama from Ibsen to Brecht. Londres: The Hogarth Press, 1987. pp. 18-19. Apud
RIDENTI, op. cit. p. 83.
68
A hipótese colocada por Ridenti desde o seu livro Em busca do povo brasileiro, de
2000
147
, é a de que o florescimento cultural e político dos anos de 1960 e início dos de 1970
na sociedade brasileira pode ser caracterizado como correspondente à estrutura de sentimento
romântico-revolucionário, ali nascente, que exprimiu a vontade de transformação, a
necessidade de mudar a História (como propunha Che Guevara), para construir a nova
comunidade, o “homem novo”.
Na visão de Ridenti, Chico Buarque, assim como outros compositores engajados na
proposta revolucionária, estaria propondo um modelo para esse homem novo, buscado
paradoxalmente, no passado, na idealização de um autêntico homem do povo, com raízes
rurais, do "interior do Brasil", ou raízes urbanas dos subúrbios, supostamente o
contaminados ainda pela modernidade urbana capitalista. Semelhante aproximação é
verificável também nas canções de compositores latino-americanos do mesmo período, como
Victor Jara e Violeta Parra, por exemplo. A identidade nacional (e política) do povo fugia
desta forma a submissão ao fetichismo da mercadoria que perpetuava a desigualdade. Nesta
idealização, segundo Ridenti, buscava-se ao mesmo tempo recuperar as raízes populares
nacionais e romper com o subdesenvolvimento,
De fato, a formulação dessa estrutura nos ajuda aqui a compreender as ligações com
projetos políticos que transformaram a defesa da tradição em foco de resistência ás injustiças
do capitalismo. Estaria aí também a adjetivação “romântica” para a estrutura de sentimento da
brasilidade revolucionária, advinda do "romantismo", tal como formulado por Löwy e Sayre
(1995)
148
. Para estes autores, o romantismo não representaria apenas a corrente artística
nascida na Europa no século XVIII, mas, além disso, uma visão de mundo mais ampla, "uma
resposta a essa transformação mais lenta e profunda - de ordem econômica e social - que é o
advento do capitalismo", e que, segundo eles, se desenvolve em todas as partes do mundo até
nossos dias. Nesse caso, comentam os autores, "a lembrança do passado serve como arma
para lutar pelo futuro"
149
. Esta reflexão nos dá um sentido político claro para a existência e a
luta pela sobrevivência da nossa conhecida tradição. Não se trata apenas, a questão da
147
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio de
Janeiro: Record, 2000.
148
LÖWY, Michel & SAYRE, Robert. Revolta e melancolia: o romantismo na contramão da modernidade.
Petrópolis: Vozes, 1995. pp. 33-36. Apud: RIDENTI, op. cit. p.90.
149
LÖWY, Michel & SAYRE, Robert. Op. cit. p. 44
69
tradição, de uma resistência cultural, mas também de uma arma de conscientização, logo
adotada pela esquerda brasileira e muito adequada no combate à ditadura militar.
que se observar, contudo, ainda dentro das reflexões de Ridenti, que a estrutura de
sentimento da brasilidade revolucionária havia nascido antes do combate à ditadura, forjada
no período democrático entre 1946 e 1964, especialmente nos governos de Juscelino e João
Goulart, quando diversos artistas e intelectuais acreditavam fazer parte de uma revolução
brasileira em andamento: A arquitetura de Brasília por Oscar Niemeyer (que por acaso era
comunista); filmes como “O grande momento”, dirigido por Roberto Santos em 1957; o filme
“Cinco vezes favela”, dirigido por jovens cineastas, entre eles Carlos Diegues, Leon Hirzman
e Joaquim Pedro de Andrade em 1961; “Assalto ao trem pagador”, de Roberto Faria, em
1962; “O pagador de promessas”, de Anselmo Duarte em 1962, baseado na peça homônima
de Dias Gomes, e premiado em Cannes em 1963; os filmes rodados em 1963 e exibidos
depois do golpe: “Vidas secas”, de Nelson Pereira dos Santos, “Deus e o Diabo na terra do
sol”, de Glauber Rocha e “Os fuzis”, de Ruy Guerra (trilogia clássica do Cinema Novo); e
ainda outros, como “A hora e a vez de Augusto Matraga”, dirigido em 1965 por Roberto
Santos, com base no conto de Guimarães Rosa; as peças de Gianfrancesco Guarnieri, Augusto
Boal, Francisco de Assis, Oduvaldo Vianna Filho (o Vianinha) e Dias Gomes; as canções de
Carlos Lyra e Sérgio Ricardo e todo o movimento cultural dos Centros Populares de Cultura
(CPCs) da União Nacional dos Estudantes; ou ainda a edição dos três livros da coleção Violão
de rua, cujo poeta mais destacado foi Ferreira Gullar
150
. São todos exemplos expressivos da
estrutura de sentimento romântica e revolucionária, citados por Ridenti e na qual não fica
difícil situar também algumas das canções de Edu Lobo, Geraldo Vandré, cuja carga política
já foi aqui observada e também Chico Buarque.
É claro que a decepção ou a quebra de expectativa que veio com o golpe de 1964 (que
aconteceu sem resistência) foi avassaladora para os arautos da revolução. Em depoimento de
1999, Chico Buarque se lembra: Aquele Brasil foi cortado evidentemente em 64. Além da
tortura, de todos os horrores de que eu poderia falar, houve um emburrecimento do país. A
perspectiva do país foi dissipada pelo golpe”
151
.
150
FELIX, Moacyr (org.). Violão de rua: poemas para a liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, vols. I
e II, 1962. E FELIX, Moacyr (org). Violão de rua: poemas para a liberdade. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, vol. III, 1963.
151
BUARQUE, Chico. Entrevista a Marcos Augusto Gonçalves e Fernando de Barros e Silva. Folha de São
Paulo, Caderno 4, 18 de março de 1999. p. 8.
70
Desta forma fica inevitável para nós a associação entre as propostas revolucionárias
desta arte engajada e a manutenção da brasilidade carregada pela tradição. O tema invariável
das obras citadas é a evocação da liberdade no sentido da utopia romântica do povo-nação.
Revelam, estes artistas, a solidariedade para com os desvalidos e denunciam as condições de
vida subumanas nas grandes cidades e principalmente no campo. Os retirantes nordestinos são
especialmente enfocados. A questão do latifúndio e da reforma agrária também é recorrente,
assim como a conclamação à revolução, em comunhão com as lutas dos povos da América
Latina e do Terceiro Mundo. Tratava-se da possibilidade, enfim, de se construir naquele
momento o "país do futuro", alicerçado nas tradições do passado.
Podemos aventar, ao estabelecer as ligações entre Noel e Chico, que a utopia da
brasilidade revolucionária de Chico buscava suas raízes na ideologia das representações da
mestiçagem na constituição da brasilidade de Noel (ideologia que era muito cara também a
várias personalidades da cada de 1930, como Gilberto Freyre). Os intelectuais e artistas
engajados na estrutura revolucionária entendiam que na década de 1960, o Brasil não havia
ainda alcançado a integração entre as raças, nem a felicidade do povo projetadas na estrutura
de identidade cultural dos anos 1930, impedido como estava pela existência do latifúndio e
pela força do imperialismo e do capitalismo. Por isso, cabia a eles reconduzir o projeto
original retomando a tradição, para direcioná-la a um futuro utópico.
Fica possível, sob esta estrutura de sentimento romântico/ revolucionário, entender a
comoção gerada pelas canções engajadas nos Festivais da Canção e também perceber o
quanto os compositores da Jovem Guarda e mais tarde da música brega nada tinham a ver
com a estrutura de sentimento da brasilidade revolucionária
152
. O mesmo o pode ser dito,
no entanto, de todos os representantes da bossa nova: além dos já citados Carlos Lyra e Sérgio
Ricardo, Nara Leão, Tom Jobim e Vinícius de Moraes (dos versos de 1963: "quando derem
vez ao morro toda cidade vai cantar"
153
), também se encaixaram, em algum momento de
152
Marcos Napolitano nos lembra que a Jovem Guarda bem que tentou ocupar a cena dos festivais com supostas
tentativas de canções engajadas, como a participação de Roberto Carlos cantando “Maria, carnaval e
cinzas”, sobre uma mulher favelada que gostava de samba, ou ainda Ronnie Von com “Minha gente” e
Erasmo Carlos com “Capoeirada” com temas que pareciam correr atrás da tradição. NAPOLITANO, M.
“A canção engajada nos anos 60”. In: DUARTE, Paulo Sérgio & NAVES, Santuza Cambraia, Do Samba-
canção à Tropicália. Rio de Janeiro: Relume Dumará/ FAPERJ, 2003. p.131.
153
“O morro não tem vez”, samba composto por Tom Jobim e Vinicius de Moraes. LP Antônio Carlos Jobim, the
composer plays. Verve / Elenco, 1963. Produzido por Creed Taylor e Aloysio de Oliveira. Gravado nos dias
9 e 10 de maio de 1963, em Nova York. Remasterizado para o formato CD em 1985 pela mesma gravadora.
71
suas trajetórias, à estrutura de sentimento romântico e revolucionário. o tropicalismo, na
avaliação de Marcelo Ridenti, teria sido talvez o derradeiro constituinte da estrutura de
sentimento da brasilidade revolucionária ao mesmo tempo em que anunciava seu esgotamento
e sua superação, por isso com um projeto dúbio: entrar em sintonia com a produção musical
internacional e revalorizar as tradições populares do "Brasil profundo e diverso", estas
esquecidas ou até negadas pela canção engajada. Ou seja, o tropicalismo fornecia uma outra
versão para a brasilidade nacional-popular que negava a solução política da esquerda e
recuperava o que esta considerava representante arcaico do passado colonial ou da alienação.
De qualquer maneira, depois da derrota representada pelo AI-5, em 1968, e pela
década de 1970 a dentro, a busca romântica da identidade nacional do brasileiro permaneceria
com outras características desse romantismo que foi deixando de ser revolucionário, mas que
conservava de outras formas a defesa da brasilidade. No final da década de 1980, a sociedade
havia se modernizado e urbanizado ainda mais, o nacionalismo terceiro-mundista já não
existia e as propostas socialistas estavam desacreditadas. não cabia nas obras artísticas, a
brasilidade ligada á revolução, sendo substituída, para Ridenti, por outra estrutura igualmente
marcante:
(...) pela estrutura de sentimento da individualidade pós-moderna, já esboçada
naqueles mesmos anos de 1960, e caracterizada pela valorização exacerbada do
"eu", pela crença no fim das visões de mundo totalizantes, dado o caráter
completamente fragmentado e ilógico da realidade, pela sobreposição eclética de
estilos e referências artísticas e culturais de todos os tempos, pela valorização dos
meios de comunicação de massa e do mercado, pela inviabilidade de qualquer
utopia
154
.
Talvez pelo romantismo das propostas sociais da década de 1960, o papel de Chico
Buarque permaneceu no período posterior com uma dimensão superlativa em relação ao
projeto de preservação da tradição. Além da filiação ao projeto revolucionário, como coloca
Ridenti, podemos acrescentar ainda que Chico teve papel importante nas mudanças do
mercado musical causadas pelos festivais. Para Marcos Napolitano, Chico é responsável,
juntamente com Elis Regina, por uma reorganização do mercado musical, na formação
também de um novo público que passa a consumir a música popular brasileira, sob a nova
sigla MPB”. Napolitano postula que estes dois artistas, consagrados pela televisão,
trouxeram para a MPB o público que havia passado pela bossa nova sem aderir totalmente a
154
RIDENTI, M. Op. cit. p. 98.
72
ela, “o público do rádio, do bolerão, do samba-canção e das marchas
155
. O vozeirão de Elis
e sua performance exagerada”, juntamente com o culto à melodia (característica comum
também à Chico) serviram para o maestro Júlio Medalha, ainda em 1968, avaliar que estas
eram características ultrapassadas, que representavam a anti-modernidade
156
. Napolitano
enxerga nesta crítica, em contrapartida com o sucesso obtido por Elis, a formação do novo
público, que não estava comprometido apenas com a modernidade, no que ela tinha ou não de
revolucionária, mas desejava também a tradição. Ao considerar que Chico trazia de volta o
Noel, e Elis recuperava a maneira de cantar da época de ouro, o público afirmava este
compromisso com o passado, pulando, praticamente, a bossa nova e negando o estrangeirismo
e o “excessivamente” moderno. Se a bossa nova, que foi símbolo de modernidade, ainda
representava na maioria das suas canções, o mundo da classe dia-alta, o novo samba de
Chico, velho no estilo e na linguagem, mas bastante sintonizado com questões do presente,
atraía integrantes dos mais variados extratos sociais e reunificava a nação através da idéia do
povo brasileiro “em defesa de sua arte”.
Engajado na reforma política ou simplesmente saudoso do tempo da delicadeza
157
,
e em defesa do que “é nosso”, Chico manteve várias das preocupações estilísticas e temáticas
de Noel (assunto a que nos dedicaremos no próximo capítulo). Chico foi o comentarista da
tradição que, ao reafirmá-la, acrescentando elementos próprios, de forma engajada como
entende Ridenti ou simplesmente patriótica e saudosistamente, conseguiu modernizá-la a
ponto de continuar representante do universo cotidiano do samba e do sentimentalismo
brasileiro, e mantê-la ainda nas regras da arte”, ou seja, com elementos identificáveis da
tradição do samba e da canção brasileira. Estas características, aliadas à genialidade também
muito salientada pelos admiradores, fizeram rapidamente de Chico um grande ícone da
cultura popular.
Homenagens e lançamentos comemorativos não tardaram a alcançar Chico Buarque,
em escala bastante semelhante a Noel Rosa e continuam até hoje a reverenciá-lo. Citemos
alguns exemplos: A escola de samba Mangueira fez de Chico, o tema para o seu desfile de
155
NAPOLITANO, Marcos. “A canção engajada nos anos 60”. In: DUARTE, Paulo Sérgio & NAVES, Santuza
Cambraia, Do Samba-canção à Tropicália. Rio de Janeiro: Relume Dumará/ FAPERJ, 2003. p.132.
156
MEDAGLIA, Júlio. “Balanço da Bossa Nova”. (IN: CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras
bossas. 1968 - ed., São Paulo: Perspectiva, 1993). Apud: NAPOLITANO, M. “A canção engajada nos
anos 60”. Op. cit. p. 133. Este ensaio de Júlio Madaglia foi originalmente publicado em 1966 no
“Suplemento literário” d’O Estado de São Paulo”, em númeró especialmente dedicado à música popular.
157
Verso de: “Todo o sentimento” de Cristóvão Bastos e Chico Buarque, LP Francisco. RCA/Ariola, 1987
73
1998, com o qual, aliás, foi campeã daquele ano. O Songbook reunindo 222 de suas
composições, divididas em quatro volumes, foi lançado em 1999, produzido por Almir
Chediak e pela editora Lumiar do Rio de Janeiro, com o acompanhamento de oito CDs que
contaram com a participação de mais de 100 artistas da MPB, tornando-o assim o maior
songbook realizado no Brasil. Dezenas de estudiosos dedicaram muitas páginas de análise
sobre a obra de Chico Buarque, desde o final dos anos 1960 até hoje
158
. Uma série de DVDs
lançados recentemente
159
e uma infinidade de shows temáticos dedicados á obra de Chico, de
vários artistas, completam esta lista que traduz a importância da produção deste que é um dos
mais reconhecidos compositores brasileiros de todos os tempos.
Noel, Chico e muitos outros artistas de várias épocas distintas dessa nossa história
ganharam, desde os anos 70 a hoje, inúmeras biografias, reedições de suas obras,
regravações, shows temáticos, estudos acadêmicos, séries televisivas, reportagens e
homenagens das mais diversas. Isto atesta que categoricamente não podemos concordar com a
morte da tradição que eles representam, apesar de vermos superada a estrutura sentimental
revolucionária dos anos 1960.
158
Uma lista completa de obras dedicadas a Chico Buarque ficaria sempre incompleta, dada a multiplicidade e o
número constantemente acrescido de produções, no entanto, listamos aqui algumas das mais importantes
análises sobre a obra de Chico Buarque: • CARVALHO, Gilberto de. Chico Buarque, Análise Poético-musical.
Rio de Janeiro: Editora CODECRI, 1982. • CÉSAR, Ligia Vieira. Poesia e Política nas Canções de Bob Dylan
e Chico Buarque. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 1993. DINIZ, Júlio. “A voz e seu dono poética e
metapoética na canção de Chico Buarque de Hollanda”. In. FERNANDES, Rinaldo de (Org.). Chico Buarque
do Brasil. Rio de Janeiro: Garamond / Biblioteca Nacional, 2004, pp. 259-271. FERNANDES, Rinaldo.
Chico Buarque do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2004 (Esta publicação apresenta dezenas de
depoimentos de artistas e personalidades, além de ensaios acadêmicos sobre Chico). • FONTES, Maria Helena
Sansão. Sem Fantasia - Masculino e Feminino em Chico Buarque. Rio de Janeiro: Graphia Editorial, 2003.
MENESES, Adélia Bezerra de. Desenho Mágico - Poesia e Política em Chico Buarque. São Paulo: Atel
Editorial, 2000. MENESES, Adélia Bezerra de. Figuras do Feminino na Canção de Chico Buarque. São
Paulo: Ateliê Editorial, 2000. ed. ampliada 2002.• NEPOMUCENO, Eric, “Anotações sobre o escritor e o
leitor Chico Buarque de Hollanda” [sobre o processo criativo de Chico]. In: Revista CULT. São Paulo: Editora
17, 69. p. 64-65, 2003. PERRONE, Charles A. Letras e Letras da Música Popular Brasileira. Rio de
Janeiro: Elo ed., 1988 SILVA, Anazildo Vasconcelos da. A poética de Chico Buarque: a expressão subjetiva
como fundamento da significação. Rio de Janeiro: Editora Sophos, 1974. SILVA, Fernando de Barros. Chico
Buarque, na Coleção Folha Explica. o Paulo: Publifolha, 2004. TABORDA, Felipe (org.). A Imagem do
Som de Chico Buarque: 80 composições de Chico Buarque interpretadas por 80 artistas contemporâneos. Rio
de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1999. URICH, Silvia e ECHEPARE, Roberto. Chico Buarque.
Argentina: Gray Edciones, 1985. VELOSO, Caetano. “Chico”. In: Verdade Tropical. São Paulo: Cia das
Letras, 1997, p.230-235. WERNECK, Humberto e JOBIM, Tom. Chico Buarque - Letra e música. o
Paulo: Companhia das Letras, 1989, 2 vol.• ZAPPA, Regina. ZAPPA, Regina. Chico Buarque: para todos.
ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará/ Prefeitura, 2000 (coleção Perfis do Rio, 26).
159
DVDs de Chico Buarque: Chico e as cidades, 1998; Chico ou o país da delicadeza perdida, 2003; e a série
produzida pela EMI Music Brasil Ltda:
• Box Chico Vol. 1: Meu Caro Amigo; À Flor Da Pele; Vai Passar (3 DVDs);
• Box Chico Vol. 2: Anos Dourados; Estação Derradeira; Bastidores (3 DVDs);
• Box Chico Vol. 3: Canções de Amor, Futebol e Literatura (3 DVDs);
• Box Chico Vol. 4: Cinema, Roda Viva e Saltimbancos (3 DVDs).
74
Devemos ainda acrescentar, continuando o debate sobre a decadência da música popular
no Brasil, que as novas produções musicais, de qualidade reconhecida ou o, o retiraram
das prateleiras, das estantes e dos palcos, as músicas populares de todas as épocas e estilos,
que continuam a “fazer a cabeça” de gerações e gerações de novos ouvintes. Graças também a
verdadeira “resistência cultural”, na transmissão de discos de pais para filhos, estes acabam
conhecendo e acompanhando o repertório imenso de boa qualidade, que pode não mais
freqüentar a maioria das rádios, mas está cotidianamente presente nas casas de espetáculo, nos
bares e lares brasileiros. Isso nos leva a conclusão de que, se a tradição não tem garantias de
permanência nas composições de hoje, pelo menos está sendo preservada com luxo nas
estantes.
Afirmamos que a tradição continua aí. Seus mais notáveis continuadores ou repetidores
mais fiéis, no entanto, nem sempre estão entre os mais vendidos. A razão deste fenômeno
ainda precisa de análises mais detalhadas e compreendidas em todas as suas complexas
implicações, uma vez que fatores mais distantes da produção musical, como o perfil exigido
pelas gravadoras, os interesses comerciais ou ideológicos, os patrocínios, o jabá (reprodução
de músicas mediante pagamento) e o jogo com a mídia, adquirem maior peso na determinação
dos sucessos. Concordamos enfim com Néstor García Canclini, para quem a indústria cultural
tornou-se determinante, pois é ela quem tem hoje o maior poder de decidir os sucessos, e se
interessa mais pelo “popular” do que pela tradição:
O que é o povo para o gerente de um canal de televisão ou para um pesquisador de
mercado? (...) Para a mídia, o popular o é o resultado de tradições, nem da
personalidade coletiva, tampouco se define por seu caráter manual, artesanal, oral,
em suma, pré-moderno. (...) A noção de popular construída pelos meios de
comunicação, e em boa parte aceita pelos estudos nesse campo, segue a lógica do
mercado. “Popular” é o que vende maciçamente, o que agrada a multidões. (...)
Para o mercado e para a dia o popular não interessa como tradição que perdura.
Ao contrário, uma lei da obsolescência incessante nos acostumou a que o popular,
precisamente por ser o lugar do êxito, seja também o da fugacidade e do
esquecimento. (...)
(...) O popular o consiste no que o povo é ou tem, mas no que é acessível para
ele, no que gosta, no que merece sua adesão ou usa com freqüência. Com isso é
produzida uma distorção simetricamente oposta à folclórica: o popular é dado de
fora ao povo
160
.
160
CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas bridas. Estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 1997. 3ª ed. 2000. ps. 259, 260 e 261.
75
São muitas as reflexões que podemos desenvolver partindo das afirmações deste
estudioso argentino. Ousemos algumas: A partir da diferenciação proposta por Canclini entre
o “popular” e a “tradição”, muito útil para nossa reflexão, aventamos que seria preciso tentar
o resgate de uma história da relação desses conceitos. A indústria cultural e a sua interferência
na determinação dos “sucessos” nacionais também têm sua história, ainda pouco revelada.
Nela, podemos supor que o jogo entre a tradição e o consumo massivo de suas representações
teve altos e baixos de acordo com muitas variantes, das quais o mercado fonográfico sempre
foi importante, mas talvez nem sempre primordial. Canclini nos sugere uma saída para
analisar a continuidade da tradição: a noção do “popular” é construída pela mídia e muitas
vezes confundida com aquilo que o povo “realmente” admira e consome confusão presente
inclusive, segundo ele, em trabalhos de estudiosos. Outro ponto: se é verdade que para a
mídia o popular não interessa como tradição que perdura”, é verdade também, por outro
lado, que a tradição também sempre vendeu, e nunca foi totalmente desprezada pela mídia. A
fugacidade e o esquecimento atendem a indústria consumista, mas atendem também á
necessidade de representação de uma realidade bem mais acelerada e dinâmica o ritmo da
globalização, de relações de curto prazo em universos cada vez maiores. Neste sentido, estas
características algo indesejadas estariam dando conta de uma nova necessidade da nossa
sociedade, e, por sua vez, podem se tornar tradicionais. Estaríamos novamente diante de outra
mudança nas estruturas da nossa tradição e da noção de brasilidade, e não apenas diante do
poder perverso da mídia. E, por fim, não é difícil perceber que Canclini tem razão quando
afirma que o popular é dado de fora ao povo”, mas precisamos não esquecer que mais
dialética nesta relação do que cabe nesta expressão: afinal existem muitas variantes não
totalmente esclarecidas, que, para além dos investimentos milionários e da boa divulgação,
influem decisivamente na eleição de “grandes sucessos” da nossa música popular, como por
exemplo, os modismos, as influências estrangeiras, oportunismos temáticos, criação de um
público consumidor específico, etc.
Para finalizar este debate lembramos ainda que os novos movimentos musicais das
últimas décadas estão a ampliar e não a restringir o espaço criativo. O rock, por exemplo, é
hoje um importante dispositivo de reflexão sobre temas do presente, e ao mesmo tempo pode
ser visto como um canal para a coletivização, como possibilidade de superação da solidão e
do isolamento a que o sistema social e o individualismo crescente produzem. O fenômeno do
funk nos morros e subúrbios cariocas, para além de um sentimento crítico nacionalista mais
76
estéril, que unicamente a decadência do samba, pode estar servindo à reconstituição de
novos e importantes territórios existenciais, espaços alternativos de grande valor dentro de um
universo exíguo de possibilidades de lazer e de expressividade para emoções coletivas.
Devemos evitar confundir o que a Mídia nos apresenta como representantes da nossa
cultura com aquilo que o nosso povo realmente produz e consome. Não julguemos pela
péssima qualidade de alguns dos produtos anunciados por essa mídia da música aliás, esta
sim decadente graças à produção pirata e ao formato eletrônico do mp3 – toda a produção rica
e diversificada da música popular que podemos encontrar a qualquer hora em quase todos os
cantos do nosso país. A qualidade estará, via de regra, muito presente, desde que nos
esforcemos para lançar a vista um pouco além daquilo que os meios mais imediatos nos
oferecem, e que vejamos com um pouco mais de profundidade a arte que realmente tem
potencial para ficar marcada na história.
Como todo processo de construção nacional, a invenção da brasilidade definiu como
puro ou autêntico aquilo que foi produto de uma longa negociação, envolvendo grupos sociais
e interesses muito diversos. Para a brasilidade ainda hoje presente, o samba do morro é considerado
o ritrno mais puro, o contaminado por influências alienígenas, e que precisa ser preservado. Toda
essa hisria sobre a construção da tradição, e da busca dos seus significados, nos serviu aqui para
comprovar a existência de uma trajetória evolutiva e permanente nas suas diversas representões,
e ao mesmo tempo localizar nos peodos indicados como as “melhores fases” da canção popular,
os autores Noel Rosa e Chico Buarque, cujas obras serão relacionadas e analisadas nos próximos
catulos.
1.4 - Noel e Chico: laços e heranças.
As ligações estéticas entre a produção musical popular brasileira dos anos 1930 e a
prodão dos anos 1960 foram exploradas em obras de muitos especialistas. Hemano Vianna,
por exemplo, cita Annio Cândido em seu artigo "A Revolução de 1930 e a Cultura", para fazer
uma escie de resumo da história da transformação do samba de ritmo maldito à música nacional
nos anos 1960:
77
(...) na música popular ocorreu um processo (...) de "generalização" e
"normalização, só que a partir das esferas populares, rumo às camadas médias e
superiores. Nos anos 30 e 40, por exemplo, o samba e a marcha, antes praticamente
confinados aos morros e subúrbios do Rio, conquistaram o País e todas as classes,
tornando-se um pão-nosso quotidiano de consumo cultural. Enquanto nos anos 20
um mestre supremo como Sinhô era de atuação restrita, a partir de 1930 ganharam
escala nacional nomes como Noel Rosa, Ismael Silva, Almirante, Lamartine Babo,
João da Bahiana, Nássara, João de Barro e muitos outros. Eles foram o grande
estímulo para o triunfo avassalador da música popular nos anos 60, inclusive de sua
interpenetração com a poesia erudita, numa quebra de barreiras que é dos fatos mais
importantes da nossa cultura contemporânea e começou a se definir nos anos 30, com
o interesse pelas coisas brasileiras que sucedeu ao movimento revolucionário
161
.
É de fato inegável a influência de Noel em composições de muitos dos continuadores
das linhas mais gerais da tradição, ligada ao universo popular urbano brasileiro. Entre eles, o
nome de Chico Buarque é lembrado com freqüência. Vejamos alguns depoimentos:
Disse dele a cantora Maria Bethânia: nenhum compositor urbano que se leve a sério
escapa das influencias de Noel. Suas músicas continuam. Com maior ou menor
humor, com maior ou menor esperança, Chico Buarque e Aldir Blanc, fundamen-
talmente, levam adiante a obra de Noel Rosa, junto com João Nogueira, Jards
Macalé, Paulinho da Viola, e até mesmo compositores de rock, como Cazuza. Os
amores impossíveis as musas, o bar, os malandros, a crítica e a observação do
cotidiano com eles permanecem, após retratados por Noel, compositor totalmente
imerso em seu mundo de criação. (Mauro Dias)
162
.
Noel, apesar de ter uma boa cultura, buscava inspiração de suas letras no cotidiano
e o cotidiano de Noel era e é também o meu, o nosso, muita boêmia, o botequim, o
bate-papo nas ruas e em tudo isso eu tenho uma grande influência dele. (João
Nogueira)
163
.
A importância de Noel es provada na influência que teve em grandes
compositores como Chico Buarque, João Nogueira, Paulo César Pinheiro e outros.
Cantores como Gal Costa, Bethânia, Maria Creuza estão regravando suas músicas.
(César Costa Filho)
164
.
Os meninos de minha idade tinham três referências de grandeza: o presidente
Getúlio Vargas, Deus e Noel Rosa. (Aldir Blanc)
165
.
Os motivos de se ter perpetuado essa herança foi alvo de especulação de alguns
especialistas, que em geral o tomaram muito cuidado em camuflar o inevitável juízo de
161
“A Revolução de 1930 e a cultura”.In: Educação pela Noite e Outros Ensaios (pp. 181-98). São Paulo: Ática,
1989, p.198. Trecho comentado por Hermano Vianna: op. cit. p.29.
162
DIAS, Mauro. Jornal O Globo de 26/4/87 (Domingo), Segundo Caderno, p.4. Mauro Dias é crítico musical.
163
João Nogueira, em depoimento a jornalista Lena Brasil para o jornal Última Hora, 1/5/1977, Caderno
cultura. p.7
164
César Costa Filho em depoimento a jornalista Lena Brasil, para o jornal Última Hora, 1/5/1977 (domingo).
Caderno cultura, p.7. Acervo Almirante, Museu da Imagem e do Som (MIS), Rio de Janeiro. Cantor e
compositor, César Costa Filho foi um dos fundadores do Movimento Artístico Universitário (MAU), ao lado
de Ivan Lins, Gonzaguinha e outros.
165
Aldir Blanc, em depoimento a Hugo Sukman e João Máximo, publicado no jornal O Globo de 24/2/96
(Sábado), Segundo Caderno, p.10. Acervo Almirante, Museu da Imagem e do Som (MIS), Rio de Janeiro.
78
valor em suas análises. Nelas, Chico Buarque também aparece com freqüência, relacionado
com Noel de diversas maneiras:
A que deve Noel Rosa sua perenidade? Impossível dizer. O fato de ter sido um
letrista inovador, quase revolucionário, substituindo o parnasianismo dos nossos
velhos seresteiros por uma poesia nova, simples, coloquial, fundamentada nas
coisas do dia-a-dia, poderia ser uma explicação. Poderia não incorresse ela num
velho erro: o de atribuir apenas às letras a importância de Noel Rosa. Outros
admiráveis letristas brasileiros Chico Buarque, por exemplo têm carregado o
mesmo peso. A força de seus versos é tanta que ouvidos desatentos mal prestam
atenção na excelência de sua música. E Chico, como Noel, é no mínimo
excepcional compositor.
(...) Estaria na identificação com as coisas do povo a exploração? Noel Rosa cantou
o malandro, a mulher da noite, o mendigo, a operária da fábrica, o guarda noturno,
o homossexual, o bandido, o lúnpen, numa época em que nada disso como se diz,
dava samba. Entendendo sua cidade, e por extensão o Brasil de tanga onde vivera
seus 26 anos, quatro meses e 24 dias, teria se enraizado de tal forma na alma do
povo que não morreria nunca. Mas, tendo sido o primeiro e não o único, porque só
ele, dos poetas de rua, ficou? um caminho mais curto e simples pra explicar a
perenidade de Noel Rosa, não a explicar (...) (João Máximo)
166
.
Para muitas pessoas comuns e fãs da tradição musical popular brasileira, e até mesmo
entre compositores e cantores, Chico representa até mesmo uma reencarnação da genialidade
de Noel:
As pessoas falam que o Chico Buarque é o segundo Noel. (João Nogueira)
167
.
Hoje, tem um cara que me lembra muito Noel, não pelo lado poético e musical
mas pelo aspecto familiar: o Chico Buarque. É tudo igualzinho. Eles m muito a
ver um com o outro e eu tenho a impressão de que o Chico ouviu muito Noel Rosa.
(Martinho da Vila)
168
.
Tem uma música, chamada Cordiais Saudações (do Noel), que hoje, quando eu
escuto Meu Caro Amigo, do Chico, uma me lembra muito a outra. (João de Barro,
“Braguinha”)
169
.
Para quem admite a hipótese de reencarnação, esta outra seria bastante provável:
Chico Buarque é Noel Rosa redivivo. Há quem a isso objete, entretanto. (...) Com
Chico Buarque, há de fato muita coisa em comum. (Muniz Sodré)
170
.
Como a heroína de Três Apitos (Noel), Chico tem sua mulher fisicamente
inalcançável cantada em As Vitrines. (Mauro Dias)
171
.
166
MÁXIMO, João. “A Inexplicável permanência do jovem sambista”. In: O Globo, 17/2/1997. Segundo
Caderno, p.1.
167
João Nogueira, em depoimento a jornalista Lena Brasil para o jornal Última Hora, 1/5/1977 (domingo).
Caderno cultura, p.7. Acervo Almirante - Museu da Imagem e do Som (MIS), Rio de Janeiro.
168
Martinho da Vila, em depoimento a jornalista Lena Brasil. Op. Cit.
169
João de Barro, (Braguinha) em depoimento a jornalista Lena Brasil. Op. Cit.
170
SODRÉ, Muniz. “A lira independente”. In: ROSA, Noel. Noel Rosa: songbook. Vol. 3, (produzido por Almir
Chediak) . Rio de Janeiro: Lumiar, 1991. ps. 10-11.
171
DIAS, Mauro. Jornal O Globo de 26/4/87 (Domingo), Segundo Caderno, p.4.
79
também, por outro lado, entre nossos grandes compositores, alguns dos quais da
mesma geração de Chico, que não assumem nenhuma herança direta de Noel considerando-a
inclusive rara. Mas ainda entre esses casos, encontramos quem veja alguma ligação entre Noel
e Chico.
Acho que chega a idade em que a gente tem que recuperar o que se perdeu. A obra
de Noel, tirando alguma coisa do Chico Buarque e do Paulinho da Viola, passou
incólume pela minha geração. (Ivan Lins)
172
.
De qualquer forma, ver a obra de Chico como uma “reencarnação” da obra de Noel é
claro, é um completo exagero, e servia apenas para exaltar a tradição que muitos queriam ver
preservada com urgência. Noel era uma importante fonte de brasilidade, e, como diz Muniz
Sodré, identificável em composições de um sem número de autores espalhados pelo Brasil:
Noel Rosa é contemporâneo, moderno, atual. Seria difícil revê-lo por
'reencarnação', porque ele é absolutamente singular. Mas nessa linha hipotética, (...)
Noel está em Chico, Caetano, Gil, João Nogueira, Nelson Cavaquinho, Paulinho da
Viola, Cartola e tantos outros poetas do povo e da Nação. Noel Rosa é raiz e fonte
de brasilidade
173
.
Mostrou-se bastante conveniente para os defensores da idéia da “linha evolutiva da
MPB” que Chico bebesse ou a brotasse desta mesma fonte. Mas o que o próprio Chico
Buarque tem a dizer da influência que recebeu de Noel Rosa? Em uma entrevista para a rádio
Eldorado, de São Paulo, concedida a Geraldo Leite, Chico cita o poeta da Vila na lista dos
compositores que o influenciaram, mas não esclarece os detalhes sobre a herança assumida:
Chico Buarque: Noel Rosa, sem dúvida, Ismael, Wilson Batista, Geraldo Pereira.
Em outra linha: Custódio Mesquita, Ari Barroso e outros que estou me esquecendo
agora. (...)
Rádio Eldorado (Geraldo Leite): Conheço, por exemplo, muitos críticos que
sempre te alinharam mais ao lado do Noel e nem sei se de tua parte ou da parte do
próprio Ismael Silva muita gente te... você mesmo indicava o Ismael como uma das
maiores influências. Tinha alguma?
Chico Buarque: o, o que havia era uma (riso), uma tentativa até de dizer: olha
também do Ismael, porque eu fiquei muito marcado como uma espécie de um novo
Noel, até porque havia algumas coisas. Havia até citações. Eu citava Noel no samba
A Rita. Eu fiz algumas canções à maneira de Noel. Claro que Noel me marcou
muito. Mas eu queria dizer: também tem o Ismael. Eu gosto tanto de Ismael quanto
de Noel. Mas eu não posso negar que Noel, pra mim, representou uma influência
mais forte até do que o Ismael. Mas eu queria fazer justiça: Ismael estava vivo e
172
Ivan Lins, em depoimento à Hugo Sukman, para o jornal O Globo, 17/2/1997. Segundo Caderno, p.1.
173
SODRÉ, Muniz. “A lira independente”. Op. cit., 1991, pp. 10-11.
80
esquecido. Ismael eu conheci muito, era um grande personagem. Noel era uma
lenda pra mim
174
.
Sérgio Buarque de Holanda emitiu a sua opinião de historiador sobre a questão da
comparação de Noel com o próprio filho:
Não acredito que Noel exerça influência sobre Chico. A maior semelhança entre os
dois é a temática: urbana. Caymmi, Ataulfo e Ismael marcaram mais que Noel.
Chico também não é um compositor de classe média, como afirmam por aí. o há
dúvida, Noel e Chico também se assemelham um pouco, porque ambos enfocam
temas urbanos. Nada mais. Aliás, há no Brasil uma mania de Noel! Qualquer
compositor que surge é imediatamente comparado com o grande criador carioca.
Creio que há um pouco de exagero em tudo isso. (Sérgio Buarque de Holanda)
175
.
Ainda que não confirmada por historiadores como Sérgio Buarque ou por outros
especialistas da canção popular, uma ligação, digamos, ideológica entre Noel e Chico,
exagerada ou não, se solidificou dentro de certo senso comum, e ainda mais quando alguns
intérpretes resolveram ressaltá-la em seus shows e discos. A “personalíssima” Isaura Garcia
foi a primeira grande intérprete a ressaltar a ligação entre os compositores, em 1970, quando
gravou pela Continental, um LP com o título Chico Buarque de Hollanda e Noel Rosa na voz
de Isaura Garcia. Trinta anos depois, foram lançados no mercado dois trabalhos discográficos
com o mesmo tema: O grupo vocal Garganta Profunda lançou o cd Chico e Noel em revista,
2000, (Rioarte/ Prefeitura do Rio de Janeiro), comemorando 15 anos de existência do grupo, e
o cantor Renato (ex-Boca Livre) lançou o cd Filosofia, pela Universal Music, ambos
relacionando as obras de Chico Buarque e Noel Rosa. Em shows de música popular, comuns
em bares e casas noturnas, também é comum os intérpretes fazerem algumas associações
entre obras desses autores. Temos então uma ligação inequívoca, ao menos no imaginário
urbano brasileiro, entre os dois grandes compositores. Mas qual seriam de fato essas
semelhanças?
Grandes cronistas urbanos, Noel Rosa e Chico Buarque estão bem próximos um do
outro no imaginário da canção popular brasileira, e não foi por acaso que Chico foi escolhido
para interpretar o papel de Noel no filme O Mandarim, de Julio Bressane (1995). As
174
Chico Buarque em entrevista a Geraldo Leite, para o programa Certas Palavras, da Rádio Eldorado em
27/9/1987. Disponível no endereço eletrônico:
http://chicobuarque.uol.com.br/texto/entrevistas/entre_eldorado_27_09_89.htm
175
Sérgio Buarque de Holanda em texto sobre seu filho Chico, escrito originalmente para o nº. 1 da revista Pais
e Filhos, (setembro de 1968), republicado na Folha de S.Paulo de 19 de outubro de 1991 (sábado), com o
título: O Historiador Escreve Sobre Seu Filho Chico Buarque. Disponível na íntegra no endereço eletrônico:
http://almanaque.folha.uol.com.br/sergiobuarque1.htm.
81
coincidências fazem constatar muito mais do que apenas a inspiração que Noel legou ao
Chico. Revelam universos populares urbanos, fixados também nas obras de inúmeros outros
autores que compartilham e repetem os conceitos presentes nestes dois grandes compositores,
mas que entre eles se mostram particularmente semelhantes. Percebemos, por exemplo, que
Chico e Noel colaboraram sobremaneira para a permanência de um espaço moral na música
bastante distinto do moralismo presente nas regras de convívio social, um lugar mais ousado e
livre, ou mais tolerante e compreensivo, que não é o comum nas relações cotidianas. É
como se a música suprisse, nesse caso, a necessidade de uma realidade mais afetiva,
harmoniosa e interessada. Daí a exaltação à orgia, aos malandros, prostitutas, enjeitados, e a
todos os que representam certos extremos do nosso mosaico social sobrecarregado de emoção
e pobreza.
A brasilidade dos dois autores, que se expressa de inúmeras formas, também apresenta
uma série de pontos comuns. Entre elas, a linguagem das ruas, a língua “brasileira”, carregada
de gírias, que é apresentada, contudo, sem perder a profundidade poética da reflexão.
Linguagem de indivíduos que muitas vezes estão à margem da “sociedade”, que conhecem a
sua falsa moral “por dentro” ou “por baixo” e que exprimem sua realidade na forma de
comunicação que se lhes permitem: a música, onde se mostram sensíveis e conscientes. Para
eles, por exemplo, o samba sempre será um espaço de catarse, onde o trabalhador “explorado”
tem o seu refúgio. Os autores em questão reclamam a nossa autenticidade e a sua
preservação, a nossa moral permissiva, solidária e alegre “as coisas nossas” o conjunto de
aspectos discutidos e analisados nos capítulos anteriores sobre o rótulo de “brasilidades”,
entre as quais se destaca uma imagem menos séria e mais libertária do que as autoridades, os
bons costumes e as leis gostariam de impor.
Como vimos, nos anos 1960\70, houve a predominância de uma estica contestaria por
parte dos artistas engajados, que os impeliu ao que havia de novo em termos de composição. Chico
Buarque porém, considerado por muitos como símbolo de resistência cultural, o optou
totalmente pela incorporação das novidades idearias e sonoras, trazidas, sobretudo, pelo
tropicalismo. Antes, manteve o que podemos chamar de uma fidelidade à linguagem samstica
carioca, fundindo o velho estilo dos anos 1930/ 40 com a então já consagrada bossa-nova,
mantendo a contestação e produzindo verdadeiros paralelos com a estética de Noel. É o maestro
Tom Jobim, em entrevista a Almir Chediak (incluída no Songbook do Noel), quem nos
82
confirma outros paralelos, como os estritamente musicais, entre eles, ampliando para os
elementos harmônicos as semelhanças dos temas e de suas formas de tratamento:
Tom Jobim (...) Noel é um cara formidável, um cara que marcou a minha vida,
determinou minha paixão pela música brasileira. Quando vejo você tocando (p/
Almir Chediak), com essas inversões, me lembro do Noel e do Chico.
Almir Chediak – O Chico talvez seja o compositor que mais se aproxima de Noel.
Tom JobimPelo estilo. Um cara que fala das coisas que existem mesmo. Ele fala
do botequim, da Maria, da cachaça, do povo. Uma coisa muito brasileira, muito
autêntica. Com que roupa?, por exemplo: essas inversões no violão, a sétima no
baixo, depois a terça no baixo, sétima no baixo, resolvendo pra terça no baixo ... e
vai por aí. Um negócio muito bom
176
.
Tom ressalta que o uso de dissonâncias, como na utilização das sétimas (intervalo de
sete tons), de inversões de baixos (que tocam as sétimas e terças, quando o mais comum seria
o uso das notas tônicas como base para os acordes) e de acordes diminutos (com terças e
quintas menores), não eram absolutamente comuns na música popular que se fazia até os anos
1930, o que coloca Noel como um inovador também dentro dos rigores musicais da época,
que não experimentava ainda harmonias diferentes e certas modulações de tons, praticados
por ele. Mais tarde esses recursos técnicos se tornariam “clichês”, como lembra Tom Jobim
nesta mesma entrevista (p.16), reforçados em sambas de legítimos “continuadores” da
tradição como Chico Buarque.
Chico e Noel cantaram paixões e personagens comuns ou incomuns de maneira a
emocionar pela “verdade” da narração. Mantiveram um olhar crítico em relação ao meio
social e político brasileiro e utilizaram formas poéticas especiais, como o uso de expressões
populares, rimas surpreendentes e bem humoradas, antíteses e metáforas presentes na
literatura de salões, mas adaptadas por eles para o povo. Através deles, os ouvintes poderiam
perceber melhor o contorno social do brasileiro e se identificar com seus personagens ou
reconhecê-los nas ruas. Entre eles também a semelhança do jogo de palavras e do
significado duplo das frases. A alegria, a irreverência e o “jeitinho brasileiro” são alguns
outros temas privilegiados por ambos em semelhantes estilos de composição e idéias, que os
identifica com a classe média urbana e os tornam ricas fontes de pesquisa da nossa cultura
popular.
176
“Entrevista com Tom Jobim”. In: Noel Rosa: Songbook. Vol. 3. Rio de Janeiro: Lumiar, 1991. (produzido por
Almir Chediak). p. 14.
83
Revistos vários aspectos da tradição musical brasileira, a metodologia que seguiremos
agora fará a associação das composições de forma comparativa, como foi dito,
evidenciando os pontos coincidentes nas produções dos dois compositores analisados.
Veremos em detalhes estas semelhanças, em busca da definição do universo musical dos
compositores e da importância de suas obras para a construção cultural da própria sociedade
brasileira, permitindo uma visão do significado e da razão do alcance extraordinário que elas
tiveram e têm entre nós.
84
CAPÍTULO 2 – Noel e Chico: críticos brasilianistas.
2.1 - Defensores da brasilidade.
Viemos até agora desenvolvendo considerações que muitas vezes aliaram os
compositores estudados à idéia de brasilidade, contida na estética musical e nas temáticas
utilizadas - o que nos permitiu enxergar ligações destes com elementos mais óbvios, como o
próprio samba ou o carnaval. A partir daqui, veremos em detalhes, como se estabeleceram em
suas obras estas relações.
Em primeiro lugar é preciso ressaltar que as filiações de Noel Rosa e de Chico
Buarque ao assunto da brasilidade não podem ser entendidas como compromissos tácitos com
os elementos da modernidade, onde os autores (especialmente Noel) retratavam um Brasil
novo, desligado do “ultrapassado” universo ruralista do passado. A análise que destaca os
elementos comuns à música urbana popular e ao movimento artístico e intelectual modernista,
como vemos em Affonso Romano de Sant’Anna, Carlos Sandroni e Hermano Vianna carece
dos elementos que representam o Brasil arcaico, que de formas distintas adaptava-se à
modernidade e ainda evocava saudosismos bucólicos e líricos típicos da herança européia.
Muitas vezes nos pareceu até mesmo paradoxal a relação entre tradição e modernidade
em ambos os compositores. Por exemplo: no plano estritamente instrumental, Noel Rosa,
como afirmamos, apostava na modernidade de um ritmo mais afinado com o processo de
urbanização (o paradigma do Estácio, de Carlos Sandroni
177
), contudo, quando se tratava de
exaltar através das letras os elementos “verdadeiramente” nacionais, muitas vezes, era no
velho mundo rural do passado que ele ia buscá-los. Tendência dúbia, aliás, que irá ser
perpetuada pela “tradição”. Vamos encontrar um exemplo desta aparente contradição na
composição de Noel Rosa que buscava justamente definir o que eram “coisas nossas”.
O samba “São coisas nossas” foi composto como um comentário a uma avaliação feita
pelo cinema nacional, sobre quais eram os principais elementos culturais brasileiros. Escrito
em 1932, sob a inspiração do filme falado (novidade na época) “Coisas Nossas” primeiro
177
SANDRONI, Carlos. Feitiço decente. Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar / Editora UFRJ, 2001.
85
filme falado feito no Brasil
178
, que apresentava uma versão para estrangeiros sobre a cultura
popular brasileira. A letra deste samba traz elementos que oscilam entre os representantes de
uma tradição arcaica rural e os da modernidade inevitável, e ainda com uma clara tendência
ao lamento pelas perdas provocadas pelo desenvolvimento urbano:
Queria ser pandeiro
Pra sentir o dia inteiro
A tua mão na minha pele a batucar
Saudade do violão e da palhoça
Coisa nossa, coisa nossa.
O samba, a prontidão e outras bossas
São nossas coisas... São coisas nossas! (...)
(São coisas Nossas, Noel Rosa, 1932)
A saudade do autor é a saudade do sertão e da palhoça, que a crescente urbanidade
afasta cada vez mais. Mas estão presentes também neste rol de coisas nossas, as modernidades
da cidade, que começam com o samba (patrimônio recentemente incorporado), a prontidão
(que vem de “pronto”, ria carioca equivalente à “sem dinheiro” - condição da maioria dos
brasileiros e muito visível na nova conformação urbana das favelas), e vai para uma série de
personagens da cidade que quase sempre estão ligados a essa condição:
Baleiro, jornaleiro
Motorneiro, condutor e passageiro
Prestamista e vigarista
E o bonde que parece uma carroça
Coisa nossa, coisa nossa.
Menina que namora
Na esquina e no portão
Rapaz casado com dez filhos, sem tostão
Se o pai descobre o truque dá uma coça
Coisa nossa, muito nossa!
(São coisas nossas, Noel Rosa, 1932)
Bonde e carroça: modernidade e tradição se equivalem na letra do samba. O antigo
namoro no portão, da menina inocente e recatada, é transgredido pelo namorado que é casado
e sem tostão! Noel revela que são coisas nossas também o subterfúgio e o mundo das
aparências cultivado pela sociedade urbana, que ainda sonhava em ser européia e relutava em
aceitar não a mestiçagem, como também a nova moral da cidade. O uso da enumeração,
178
O filme Coisas Nossas” foi produzido pelo americano Wallace Downey e estreou no cine Eldorado do Rio
de Janeiro em 30 de novembro de 1931. Utilizava o sistema Vitafone, onde o som gravado num disco comum
de 78 rpm era sincronizado ao movimento das imagens projetadas. No elenco, entre outros figuravam
Procópio Ferreira, Baptista Júnior, Jararaca & Ratinho, Paraguaçu e Napoleão Tavares e sua orquestra. Até
hoje não se conhece nenhuma cópia sobrevivente.
86
recurso também utilizado por literatos como Oswald de Andrade
179
, baleiro, jornaleiro etc.,
aproxima a letra de uma linguagem telegráfica, fotográfica ou até cinematográfica. Porém,
apesar dessa semelhança com a linguagem modernista, a relação de Noel com a modernidade
não se mostra fácil de definir. Como vemos em Três apitos, composição de 1933:
Quando o apito
Da fábrica de tecidos
Vem ferir os meus ouvidos
Eu me lembro de você
(...)
Você que atende ao apito
De uma chaminé de barro
Por que não atende ao grito tão aflito
Da buzina do meu carro?
Sou do sereno
Poeta muito soturno (...). (Três Apitos, Noel Rosa, 1933)
Se a modernidade representada pela fábrica atrapalha o seu namoro, a modernidade do
automóvel (ícone privilegiado no universo masculino) é o seu orgulho e argumento para atrair
a namorada. A dinâmica do mundo urbano moderno era sem dúvida a do mundo das
composições de Noel, e nele se encaixava muito bem a sua criatividade ousada. A
modernidade se mostrava muito complexa em seus vetores valorativos, e o estes conflitos
mais evidentes em seus sambas, do que sua suposta adesão à estética modernista.
Noel se declara poeta e boêmio, fixando um “personagem brasileiro” muito comum
aos sambas. Personagem em tudo oposto ao burguês, mas que tampouco es do lado do
proletariado clássico. O “herói brasileiro” das canções de Noel estará muito menos ligado ao
trabalhador, do que ao vagabundo, ou o bon vivant, poeta e cantor, galante e namorador;
vivendo no mundo do prazer: o prazer do amor, da bebida e da canção. A relação do
compositor com a modernidade é, portanto, tumultuada também, porque o samba escolhe uma
terceira opção para o dualismo da luta de classes.
O compromisso com a modernidade é muito evidente, no entanto, quando se trata de
definir um cenário para os sambas. Trata-se do cenário urbano que a partir daí pertencerá à
tradição, criada em parte por Noel e reforçada depois por Chico Buarque:
179
Um exemplo de enumeração na modernista poesia de Oswald de Andrade: “(..) A campanhia telefona/
Cretones/ O cinema dos negócios/ Planos de comprar um forde/ o piano fox-trota/ janela/ Bondes”. Do poema
Postes da Light (Bengaló), contido no livro de poesias Pau Brasil, publicado em Paris (ed. Au Sans Pareil) em
1925. IN: ANDADRE, Oswald de. Oswald de Andrade / seleção de textos, notas, estudos biográficos,
histórico e crítico por Jorge Schwartz. 2ª ed. São Paulo: Nova Cultural (série Literatura Comentada), 1988.
87
Eu faço samba e amor até mais tarde
E tenho muito sono de manhã
Escuto a correria da cidade, que arde
E apressa o dia de amanhã
De madrugada a gente ainda se ama
E a fábrica começa a buzinar
O trânsito contorna a nossa cama, reclama
Do nosso eterno espreguiçar. (...) (Samba e amor, Chico Buarque, 1969)
Este cenário é em essência, o mesmo de Noel, apenas visto de outro ângulo por Chico
Buarque. A diferença é que nesta canção, o eu lírico tem a namorada, mas os símbolos da
modernidade na cidade, do lado de fora do ninho de amor, continuam a atrapalhar a paz do
casal: a mesma buzina da fábrica que aparece em Noel, e o trânsito barulhento da cidade ainda
mais tumultuada. O personagem brasileiro continua o mesmo. Chico escreveria ainda outras
referências a esta buzina (ou sirene) da fábrica como uma inimiga do amor, como na canção
“Primeiro de Maio” (1977), um dia em que os trabalhadores não precisam se preocupar com
ela:
Hoje a cidade está parada
E ele apressa a caminhada
Pra acordar a namorada
(...)
Quando a sirene não apita
Ela acorda mais bonita
Sua pele é sua chita, seu fustão
E, bem ou mal, é seu veludo
É o tafetá que Deus lhe deu
(Primeiro de Maio, Milton Nascimento e Chico Buarque, 1977)
A operária da fábrica de tecidos, neste dia em que não responde ao apito que a
escraviza, acorda até mais bonita”, podendo cuidar de si do mesmo modo que faz na fábrica
com os panos. O cenário e os personagens são também os mesmos.
No próximo segmento da canção “Samba e amor”, em apenas uma estrofe, vemos
resumido o núcleo central da brasilidade cantada nas demais composições dos dois autores:
No colo da bem-vinda companheira
No corpo do bendito violão
Eu faço samba e amor a noite inteira
Não tenho a quem prestar satisfação. (...)
(Samba e amor, Chico Buarque, 1969)
“Samba e amor” é tudo o que o poeta boêmio pode desejar, representados aqui pelos
corpos da bem-vinda companheira e do bendito violão. Isto tudo usufruído por quem foge do
trabalho e não tem a quem prestar satisfação. Este é o herói brasileiro por excelência na
88
canção popular brasileira, exaltado pelos compositores aqui analisados, amante inveterado do
samba (e do carnaval), das mulheres, da vida boêmia. Um brasileiro que representa os sonhos
dos brasileiros, distante do seu real cotidiano de trabalhador. Depois de fazermos a ressalva de
que a “companheira” que aparece em Chico Buarque, será a “mulata” ou a “morena” para
Noel Rosa, podemos afirmar que nesta canção estão os mesmos “patrimônios culturais”
brasileiros relacionados por Noel. Vejamos, para corroborar esta afirmação, a significativa
composição de Noel sobre o tema, com o título de Quem mais (ou Leilão do Brasil), que
traz no selo do disco a descriçãosamba humorístico”:
Quem dá mais?
Por uma mulata que é diplomada
Em matéria de samba e de batucada
Com as qualidades de moça formosa
Fiteira e vaidosa, e muito mentirosa
Cinco mil réis, duzentos mil réis, um conto de réis!
Ninguém dá mais de um conto de réis?
O Vasco paga o lote na batata
E em vez de barata
Oferece ao Russinho uma mulata (...).
(Quem dá Mais?, Noel Rosa , 1930)
Como sendo obrigado a vender seus maiores” patrimônios, o compositor ironiza a
situação financeira caótica do país. O primeiro "tesouro" brasileiro a ser oferecido é a mulata.
Suas qualidades e defeitos (que não são vistos como tais) são anunciados em um leilão.
Diplomada em matéria de samba e de batucada, ela personifica várias características do “povo
brasileiro” e o seu “preço” (uma referência à escravidão que também marcou o país) pode
variar conforme a capacidade financeira do comprador (50 mil, 200 mil ou 1 conto), quase
como se fosse uma prostituta: fiteira, vaidosa e muito mentirosa. Quanto a este último
detalhe, é preciso comentar que em suas letras, Noel teria uma relação constante e ambígua
com as mentiras das mulheres
180
. O Vasco (o futebol despontando como outra das novas
brasilidades) acaba arrematando o lote (da mulata), para doá-lo ao seu jogador Russinho,
bastante popular no Rio de Janeiro à época, e que havia sido premiado com uma barata (um
automóvel esportivo da época) da Chrysler. Noel faz a troca da barata (importada) pela mulata
(nacional), o que para ele “é negócio”.
Na segunda estrofe, o leiloeiro oferece o segundo “tesouro” da brasilidade:
180
Noel Rosa muitas vezes se queixará desta prática, mas ás vezes confessará seu fascínio por este recurso, para
ele tão sedutoramente feminino, como no samba Mentir (Mentira Necessária) de 1932, quando afirma: A
mulher que não mente não tem valor”, samba gravado por Mário Reis. 78 rpm, Odeon, 1933.
89
(...) Quem dá mais...?
Por um violão que toca em falsete
Que só não tem braço, fundo e cavalete
Pertenceu a dom Pedro, morou no palácio
Foi posto no prego por José Bonifácio
Vinte mil réis, vinte e um e quinhentos, cinqüenta mil réis!
Quem dá mais?
De cinqüenta mil réis?
Quem arremata o lote é um judeu
(Quem garante sou eu)
Pra vendê-lo pelo dobro no museu (...)
(Quem dá Mais?, Noel Rosa , 1930)
A origem das dívidas externas brasileiras, as mesmas que levavam ao leilão do
patrimônio nacional, e a situação de pobreza do país que havia obrigado o patriarca ao gesto
desesperado, são os motes para o humor deste trecho. O violão hipotético, apesar de inútil tem
seu valor “histórico”, que interessa apenas ao museu, como se este fosse um depositório de
inutilidades históricas. Com essa crítica é que se reveste o personagem do judeu, que longe de
representar um sentimento anti-semita do autor, como pode sugerir hoje em dia a primeira
audição, aludia ao vendedor ambulante apelidado à época de prestamista ou simplesmente de
“judeu“. Chamavam de judeu até mesmo aos turcos que faziam este tipo de comércio
181
. Era
comum à população de baixa e média renda manter dívida com este tipo de comerciante,
sempre renovada na encomenda de novas mercadorias, de forma que a esperteza do judeu é
que é o alvo da crítica de Noel e não sua característica racial
182
.
O terceiro “tesouro” nacional a ser leiloado era o samba, mas não o samba genérico, o
ritmo transformado em patrimônio, e sim aquele mesmo samba que estava sendo cantado,
feito num padrão diferente do da turma do Escio, padrão mais próximo ao samba do
Salgueiro, feito sem introdução e sem segunda parte, com um simples estribilho formato
adequado para os inúmeros improvisos que os sambistas de lá faziam:
Quem dá mais?
Por um samba feito nas regras da arte,
Sem introdução e sem segunda parte,
Só tem estribilho, nasceu no Salgueiro
E exprime dois terços do Rio de Janeiro
Quem dá mais?
Quem é que dá mais de um conto de réis?
Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três!
Quanto é que vai ganhar o leiloeiro
181
MÁXIMO, J; DIDIER, C. Opus cit. p. 167.
182
Noel Rosa falaria ainda, no ano seguinte, sobre o costume de “empenhar-se” em vidas com estes “judeus”,
no samba Cordiais saudações: "A vida em casa eshorrível/ Ando empenhado nas mãos de um judeu".
Cordiais Saudações, Noel Rosa, “samba epistolar”. Noel Rosa e Bando de Tangarás. 78 rpm. Parlophon, 1931.
90
Que também é brasileiro
E em três lotes vendeu o Brasil inteiro?
Quem dá mais... ? (Quem dá mais?, Noel Rosa, 1930)
Apesar das deficiências, semelhantes ás do violão pertencente a Pedro I, este samba
havia sido gerado nas regras da artefrase que deu ensejo a inúmeras reflexões (muitas
acadêmicas) sobre o samba do período e, além disso, poderia exprimir dois terços do Rio
de Janeiro(outro verso bastante comentado pelos especialistas e apreciadores de Noel) e que
atestava assim o valor e a autenticidade, ou antes a brasilidade, deste samba “capenga”, como
o próprio país, mas verdadeiro, alegre, descompromissado, “autêntico” como o próprio
brasileiro . Todo o samba dizia que o Brasil vinha mantendo em situação precária os seus
grandes patrimônios: a mulata, o samba e o violão (que se tornara o instrumento musical mais
emblemático da brasilidade, juntamente com o pandeiro), e agora o país era obrigado a se
desfazer deles pelo preço que dessem. É relevante notar que a venda do artigo samba”, na
última parte da canção, não produz a mesma ironia dos versos anteriores, porque enquanto a
mulata e o violão (que existia na metáfora) eram de fato artigos invendáveis, este (o
samba), que deveria acompanhá-los nesta categoria, não o era, uma vez que vender as
composições fazia parte do cotidiano dos sambistas da sua época. Vender o samba
representava vender o talento, coisa também invendável, no entanto, pela necessidade do
sambista, este era livremente comercializado por outros brasileiros”, que se aproveitavam do
talento alheio. Está aí outra brasilidade evidenciada: ao dizer que o leiloeiro é também
brasileiro, o poeta denuncia a corrupção e a falta de patriotismo tão comuns ao povo do
Brasil.
Os três lotes: a mulata mentirosa, o violão que não é mais um violão, e o samba
incompleto, mas ainda competente, apresentam qualidades e defeitos tipicamente brasileiros,
falseados, disfarçados e colocados à venda em um leilão, onde se tentaria exagerar a respeito
da qualidade dos produtos para que se obtivesse o melhor preço possível. No discurso de
venda, porém, nossas riquezas estavam comicamente depauperadas. A ironia ácida se dilui
no cômico absurdo da situação e tudo se torna lógico dentro de um non-sense geral, pleno de
significados críticos. Para Noel, nesses três lotes estava o Brasil inteiro”, vendido por um
brasileiro, que surpreende por sua falta de amor ás brasilidades. Notemos que os símbolos da
brasilidade estão todos ligados à modernidade, mas não descartam suas heranças históricas: a
escravidão e a musicalidade de negros e brancos.
91
Chico Buarque também usará de um pregão para anunciar outros bens culturais
brasileiros, que, como aqueles de Noel, pareciam em vias de extinção:
Estou vendendo um realejo
Quem vai levar?
Quem vai levar?
Já vendi tanta alegria
Vendi sonhos a varejo
Ninguém mais quer hoje em dia
Acreditar no realejo
(...)
Quando eu punha na calçada
Sua valsa encantadora
Vinha moça apaixonada
Vinha moça casadoura
Hoje em dia já não vejo
Serventia em seu cantar
Então eu vendo o realejo
Quem vai levar ? (...) (Realejo, Chico Buarque, 1967)
Aqui, os elementos da brasilidade ameaçada são todos provenientes de um Brasil
arcaico, anterior à modernização urbana, do tempo do realejo e das previsões futurológicas
que ele fazia (“alegria / sonhos”), do tempo da valsa e da inocência das moças casadoiras. E
quem os vende aqui não é um interesseiro qualquer (um brasileiro sem coração, como em
Noel), mas o próprio artista, que vê com tristeza a modernização substituindo o encanto de um
passado cultural romântico. Tradição aqui tem uma raiz mais profunda, que estava ameaçada
pelo comércio do que não se deveria vender: aquilo que “é nosso”. É a mesma preocupação
do samba de Noel. Chico ainda repetirá essa mesma ameaça sobre o “patrimônio brasileiro”
tempos depois em “Bancarrota blues”, de 1985:
Uma fazenda / Com casarão
Imensa varanda
Dá gerimum / Dá muito mamão
Pé de Jacarandá
Eu posso vender
Quanto você dá? (...) (Bancarrota Blues, Edu Lobo e Chico Buarque, 1985)
Aqui, as riquezas da terra em que “se plantando tudo dá” (o mundo rural arcaico
brasileiro) estão todas se desfazendo a qualquer preço, sendo desperdiçada pelos próprios
brasileiros, como vemos acontecer com os casarões (sedes das fazendas de café), as
varandas, o jacarandá. Este sentimento de perda da brasilidade arcaica rural, que ás vezes
se torna também urbana, serepetido algumas vezes por Chico Buarque, quase sempre
com profunda tristeza, como na canção “Gente Humilde”:
Tem certos dias
92
Em que eu penso em minha gente
E sinto assim
Todo o meu peito se apertar
(...)
Igual a como
Quando eu passo no subúrbio
Eu muito bem
Vindo de trem de algum lugar
(...)
São casas simples
Com cadeiras na calçada
E na fachada
Escrito em cima que é um lar
Pela varanda
Flores tristes e baldias
Como a alegria
Que não tem onde encostar
E aí me dá uma tristeza
No meu peito
Feito um despeito
De eu não ter como lutar
E eu que não creio
Peço a Deus por minha gente
É gente humilde
Que vontade de chorar
(Gente humilde, Garoto, Vinícius de Moraes e Chico Buarque, 1969)
Cadeiras na calçada, varandas, vida simples do subúrbio, cada vez mais transformado
pela violência e pelo trânsito, estes são os sinônimos da brasilidade quase perdida nesta
canção, feita em parceria com outro “poeta das brasilidades”, Vinícius de Moraes, e com o
músico Garoto. Os lares antes abertos e emocionantes pela humildade e personalidade das
fachadas, serão compulsoriamente agredidos no choque com a modernidade industrial dos
anos 1960 e daí a sensação de perda gradual desta realidade que era tão “nossa”. Nesta letra,
sentimos que o brasileiro não é mais o vagabundo idealizado, mas o trabalhador humilde que
crê em Deus e vive sem grandes pretensões, e por quem, ainda, é quase impossível se fazer
alguma coisa, restando ao cantor o despeito de “não ter como lutar”. Vemos aqui um traço
evidente da estrutura de sentimento da brasilidade revolucionária proposta por Marcelo
Ridenti e explanada no capítulo anterior, e que envolve a identificação dos artistas
“engajados” com o "homem simples". A vida humilde que carrega em si não apenas uma
inerente simpatia, mas até mesmo uma beatitude coroada pelo sofrimento. O mesmo contexto
aparece em “A Banda”:
(...) A minha gente sofrida
Despediu-se da dor
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
(...) A moça triste que vivia calada sorriu
93
A rosa triste que vivia fechada se abriu
E a meninada toda se assanhou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
(...) Minha cidade toda se enfeitou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
Mas para meu desencanto
O que era doce acabou
Tudo tomou seu lugar
Depois que a banda passou (...) (A Banda, Chico Buarque, 1966)
A Banda, outro patrimônio tão esquecido quanto o realejo, a carroça ou a palhoça, tem,
como estes, um encanto próprio, capaz de transformar as mais profundas tristezas e até de
conter por um instante o moto-contínuo da modernidade, paralisando todas as atividades da
cidade. Mas, assim como o realejo e o antigo coreto, a banda não encontra mais o seu lugar
nas grandes cidades, e sim talvez somente nas cidades do interior onde parte da brasilidade
“mais autêntica” sobrevivia supostamente com mais dignidade. No final, a mesma gente
sofrida volta para a sua dor diária. E a banda? Quando voltará? Estávamos perdendo mais que
um patrimônio: um verdadeiro lenitivo para a vida moderna, representando um instante de
sonho, e um sonho coletivo.
Em “Samba da boa vontade”, composto em parceria com João de Barro, em 1931,
Noel Rosa faz um resumo da sua visão sobre o Brasil. Contemporânea dos acontecimentos
tumultuados da Revolução de 1930, a música é uma resposta ao pedido do Governo
Provisório para que a população mantivesse o otimismo (perante as dificuldades que
encarava), e que apontava as mazelas do país em época de crise internacional, sem nunca
perder o bom humor e a sutileza da ironia:
- Campanha da Boa Vontade! (falado)
Viver alegre hoje é preciso
Conserva sempre o teu sorriso
Mesmo que a vida esteja feia
E que vivas na pinimba
Passando a pirão de areia
Gastei o teu dinheiro
Mas não tive compaixão
Porque tenho a certeza
Que ele volta à tua mão
Se ele acaso não voltar
Eu te pago com um sorriso
E o recibo hás de passar (...)
(...) Comparo meu Brasil
94
A uma criança perdulária
que anda sem vintém
Mas tem a mãe que é milionária
E que jurou, batendo o pé
Que iremos à Europa.
Num aterro de café.
(Samba da Boa Vontade, Noel Rosa e João de Barros, 1931)
João Máximo e Carlos Didier na biografia que fizeram de Noel, afirmam que nesta
música, o compositor deixava claro o que pensava do capitalismo: “os ricos podem gastar seu
dinheiro à vontade, pois ele sempre acaba voltando às suas mãos
183
. Isto nos informa que a
estrutura de sentimento da brasilidade revolucionária, que Ridenti localizou nos anos 1960,
tem suas ligações muito claras com a formulação da identidade cultural brasileira á época
de Noel, como nestes exemplos, com a denúncia da desigualdade social e da malversação de
nossas riquezas. Aqui, o café (outro símbolo da brasilidade) jogado ao mar, em quantidade
que tornaria possível um aterro que levasse á Europa, servia de prova da irresponsabilidade de
uma nação-criança esbanjadora e inconseqüente: o produto do país da monocultura e da
pobreza generalizada jogado ao mar em estranhas políticas econômicas, em meio a sorrisos
inexplicáveis de Getúlio Vargas. Realidade ainda mais inexplicável quanto se observa a
imensa riqueza natural do país (“tem a mãe que é milionária”).
Esta denúncia é reiterada uma vez mais na canção de Chico Buarque que equivale à
despedida de outras das nossas riquezas, em meio às alterações culturais: Bye-Bye Brasil:
(...)Tomei a costeira em Belém do Pará
Puseram uma usina no mar
Talvez fique ruim pra pescar, meu amor...
(Bye-bye Brasil, Roberto Menescal e Chico Buarque, 1979)
No Tocantins
O Chefe dos Parintintins
Vidrou na minha calça Lee
Eu vi uns patins pra você
Eu vi um Brasil na tevê
Peguei uma doença em Belém
Agora já tá tudo bem,
Mas a ligação tá no fim
Tem um japonês trás de mim
Aquela aquarela mudou (...)
No Tabariz
O som é que nem os Bee Gees
(...)
Eu tenho saudades da nossa canção
Saudades de roça e sertão (...)
(Bye-bye Brasil, Roberto Menescal e Chico Buarque, 1979)
95
Fica evidente nesta canção que o Brasil “autêntico” idealizado por Ary Barroso
(“Aquarela do Brasil”, 1939), por David Nasser e Alcir Pires Vermelho (“Canta, Brasil”, de
1941) ou por Silas de Oliveira (“Aquarela brasileira”, 1964) ficou no passado: “Aquela
aquarela mudou...”, diz Chico Buarque. Não se poderia mais cantar as velhas belezas naturais
ou humanas do país, ou de tomá-lo através de categorias ingênuas como “povo”, raça”,
“brejeirice” ou malemolência”, com na velha versão ufanista. A calça Lee, os patins, o
japonês, todos estes elementos exógenos da “Aquarela do Brasil”, mudaram de vez o cenário
nacional. E aqui voltamos ao início deste capítulo, quando Noel também anunciava suas
saudades de roça e sertão. A saudade forma de sentimentalismo tipicamente português
será, por si, um tema constante na música popular brasileira e parte intrínseca da tradição
tupiniquim: saudade de um amor antigo, de um tempo perdido, de um Brasil “autêntico” mas
ameaçado; de um Brasil idealizado na música como seria a própria favela ou o subúrbio,
transformada muitas vezes em lugar de gente simples, trabalhadora e honrada”. A crítica e a
denúncia, assim como em Noel, comandam a mensagem musical desta música de Chico.
Para Adélia Bezerra de Menezes, ao tempo de resistência política, os temas
predominantes na obra de Chico Buarque, nas duas primeiras décadas da sua produção, eram:
a nostalgia, a utopia e a crítica social. Estes temas foram, sem dúvida, muito marcantes
durante o período do regime militar, mas não podemos deixar de lembrar que também foram
comuns nos anos 1930. Afinal, para o Brasil, os dois períodos são considerados especialmente
conturbados, revolucionários, e por isso mesmo com a presença crescente de forças
repressoras. Para a pesquisadora, estas características revelariam uma recusa da realidade
imposta no presente de Chico Buarque, configurando uma luta de resistência
184
. Para nós,
revelam ainda uma parte importante da brasilidade: a sensação também perene de
incapacidade do povo brasileiro de realizar no presente” (fosse nos anos 1930 ou nos anos
1960), as transformações necessárias para a felicidade e harmonia da Nação. Nostalgia, utopia
e crítica social dão forma a uma reação a esta impossibilidade, e são particularmente visíveis
nos momentos de tensão social e política, como as que caracterizam estes anos. Daí serem
estes elementos comuns nas obras de compositores mais sensibilizados com as questões que
envolvem a qualidade de vida e a liberdade de expressão do povo brasileiro. A reação dos
compositores não pode deixar de ser entendida como uma forma contundente de manifestação
183
MÁXIMO, J & DIDIER, C. Noel Rosa, uma biografia. Op. cit, 1990. p. 170.
184
MENESES, Adélia Bezerra de. Desenho Mágico: poesia e política em Chico Buarque. ed. o Paulo:
Ateliê Editorial, 2000 (Prêmio Jabuti de Ensaio – 1982).
96
de patriotismo, de onde concluímos que Noel e Chico são grandes exemplos de patriotas, ou
apaixonados “brasilianistas”.
Vimos que, por possuir enorme capacidade de eloqüência, a poesia destes
compositores é, sem dúvida alguma, o que mais chama atenção dos historiadores e analistas
literários, assim como dos jornalistas, críticos e amesmo dos s. Porém, para verificarmos
outras formas de brasilidade, não podemos esquecer de atentar também para os aspectos
melódicos e harmônicos das composições - elementos essencialmente nacionais, que também
foram alterados e reforçados pelos nossos dois compositores, como nos lembra Sérgio Cabral:
Noel Rosa, como Chico Buarque de Hollanda e Caetano Veloso, chama a nossa
atenção, primeiramente, pela letra. Ele, Chico e Caetano são poetas que
encontraram na música popular o campo ideal o para fazer poesia, mas
também para mudar as antigas regras.
(...)
Ao revolucionarem a letras, acabaram revolucionando a música. É avaliar a
obra de Noel, Chico e Caetano, no início das suas carreiras, para comprovar que
não são apenas as suas letras que são novas; a música também é. É a letra
carregando a música para novos horizontes. O mesmo poderia ser dito em relação
a compositores como Cole Porter ou Antônio Carlos Jobim e Newton Mendonça.
Mas estes são essencialmente músicos, ao passo que Noel, Chico e Caetano o
essencialmente poetas
185
.
Em “Com que roupa”, primeiro grande sucesso de Noel Rosa, temos, o um
exemplo do que afirma Sérgio Cabral, mas também uma mostra de como a brasilidade pode
estar sendo discutida ou inferida através de elementos exclusivamente musicais (harmônicos,
rítmicos e melódicos), ou em elaboradas formas de metalinguagem. João Máximo e Carlos
Didier nos contam, por exemplo, que a melodia que originalmente acompanhava os primeiros
versos do samba de Noel, teve que se submeter às alterações do maestro e arranjador Homero
Dornellas para torná-la publicável. Isto foi necessário porque a música apresentava a mesma
seqüência de notas da primeira estrofe do Hino Nacional Brasileiro, composto por Francisco
Manuel da Silva, que Noel já havia parodiado na adolescência e que tinha o hábito de tocar ao
violão
186
. Seria possível perceber aqui mais uma ligação entre o personagem que não tem
roupa para ir ao samba e o país depauperado em que ele vive. A sutileza, no entanto, dificulta
muito a compreensão desta crítica, até porque as alterações colocadas pelo Maestro Dornelas,
com o consentimento de Noel, lançam longe a possibilidade desta associação pelo ouvinte.
185
CABRAL, Sérgio. “O eterno jovem”. In: Songbook Noel Rosa. Vol 1. Produzido por Almir Chediak.
Petrópolis: Ed Vozes/ Lumiar, 1991. p. 8 e 10.
186
MÁXIMO, J & DIDIER, C. Op. cit. 1990, pp. 120-121.
97
Porém, podemos imaginar o impacto que teria o grande sucesso “Com que roupa”, em 1930,
se na melodia inicial fosse facilmente reconhecível o Hino Nacional.
No que se refere à brasilidade, mais importante porém, do que perceber as críticas
sutis que alusões como esta podem inferir, é atentar para o fato de que a melodia deste e de
outros sambas trazem também um registro melódico que se aproxima da linguagem falada, no
caso, a maneira de falar do brasileiro, ou melhor, do carioca. Ou seja, a linha melódica a
seqüência de notas que formam a frase melódica - apresenta alterações na escala musical
(notas graves e agudas) que são correspondentes à forma falada, como uma repetição, dentro
da escala musical, da entonação típica do “falar á brasileira”. Este tipo de construção
melódica, onde a letra “se casa” com a melodia seguindo a forma da voz falada, foi
classificada por Luís Tatit, como a primeira das mais evidentes formas de “persuasão”
utilizada pelos compositores para obter a assimilação de suas músicas pelo público
consumidor. Está aí, mais um elemento importante da tradição. A esta forma, ele deu o nome
de Persuasão Figurativista, que foi utilizada não por Noel, mas por muitos compositores,
entre os quais, também Chico Buarque.
Cabe aqui uma pequena explanação sobre as descobertas e afirmações de Luís Tatit
que em seus livros A canção e O cancionista
187
, trouxeram novos e valiosos parâmetros para
a discussão sobre os elementos formais da canção. É reconhecido o valor intrínseco que se
á construção melódica e á construção poética. Tatit, porém, atentou para um elemento muito
importante, mas pouco notado ou comentado. Trata-se da forma de união destes dois
elementos, que significa uma arte a parte. Para o músico e musicólogo, que utiliza a semiótica
como a base teórica auxiliar principal, o êxito de comunicação entre o destinador (ou locutor -
compositor) e o destinatário (ouvinte) depende fundamentalmente da adequação e da
compatibilidade entre a linha melódica e a letra. Deste “casamento” depende toda a “eficácia
da canção”, que tem como um dos seus ingredientes principais, segundo a análise de Tatit, os
“processos de persuasão”. Como eficácia, entendemos o sucesso da comunicação traduzida
pelo desejo do consumidor de ouvir uma determinada canção, e por processos de persuasão,
as formas de adequação entre a melodia e a letra, que são basicamente três: Persuasão
figurativa, persuasão passional e persuasão decantatória. Formas que são paralelas em
termos de produções individuais, que podem apresentar-se mescladas em muitas composições
187
TATIT, Luiz. A Canção: eficácia e encanto. São Paulo: Atual, 1986; e TATIT, Luiz. O cancionista:
composição de canções no Brasil. São Paulo: EDUSP, 1996.
98
e que são presentes em todas as fases da produção musical popular brasileira. Se, por
exemplo, ouvirmos “Garota de Ipanema”
188
, poderemos perceber a “coincidência” ou
compatibilidade entre o texto, que descreve o balanço do andar da “garota” e a melodia que
reitera este balanço, reforçando a mesma regularidade dos passos. Esta compatibilidade nos
persuade, nos “encanta”, e somos levados a querer ouvir cada vez mais e a reconhecer que a
canção nos agrada. Esta adequação justifica, segundo os parâmetros apresentados, a eficácia
da canção
189
. Por hora, continuemos comentando o formato dos sambas de Noel e de Chico.
Dissemos que uma das formas mais notórias de adequação entre os elementos
constitutivos na música de Noel Rosa, é aquela que Tatit chamou de persuasão figurativa,
onde a melodia reproduz as inflexões entoativas e os sintomas gerais da fala
190
. Nestes
casos, estamos diante de composições que comunicam o apenas a mensagem da letra, mas
também muito da conformação da fala, muito do som ou do jeito brasileiro de falar. Isto é
mais facilmente percebido nas composições que simulam um interlocutor para o eu poético,
ou seja, que simulam um diálogo. Veremos os exemplos, adaptando a representação gráfica
criada também por Luís Tatit, onde a letra da canção é colocada em diferentes espaços
horizontais equivalentes às alturas musicais da melodia. No gráfico assim obtido, cada linha
representa o espaço musical de um ou meio tom dentro da tonalidade da canção - a primeira
linha de cima representando a nota mais aguda da melodia cantada e a última linha abaixo, a
nota mais grave. Neste tipo de representação, estaremos desprezando as diferenças causadas
pelos acidentes musicais (sustenidos, bequadros e bemóis) em prol da simplificação visual na
compreensão de uma linha melódica gráfica simétrica com a da canção, mas que não tem o
compromisso de ser-lhe absolutamente equivalente
191
:
188
“Garota de Ipanema”, Tom Jobim e Vinícius de Moraes.
189
Arranjos e gravações trabalhadas podem intensificar a “eficácia da canção”, contudo, os elementos principais,
melodia/harmonia, letra e a adequação entre estes, são, na opinião de Luiz Tatit, os elementos essenciais
identificáveis em qualquer canção e que tornam possível a persuasão do ouvinte.
190
TATIT, Luiz. A Canção. Op. cit. p.31.
191
A forma gráfica aqui apresentada é uma adaptação do formato criado por Luiz Tatit para dispensar o uso de
partituras e explicitar os desenhos melódicos. A diferença básica é que Tatit a cada linha o valor preciso de
meio tom, ao passo que aqui, cada linha (ou cada espaço horizontal) representa às vezes meio tom e outras
vezes um tom inteiro, correspondendo à tonalidade colocada pela música. Com esta simplificação, um número
menor de espaços (ou linhas) é utilizado, permitindo assim uma identificação mais clara das “linhas
melódicas”, dos temas” que se repetem, dos pontos de tensão (frases ascendentes ou que se dirigem para os
tons agudos) e dos pontos de repouso (frases descendentes ou que se dirigem para os tons graves). Os
acidentes musicais (sustenidos, bemóis e bequadros) são aqui desprezados em prol deste reconhecimento
facilitado. É importante notar como a letra apresenta a preocupação de acompanhar a melodia no que se refere
a esse campo de tensões, para que haja coerência entre as informações associadas. Sem esta coerência não
ocorreria a persuasão figurativa e o ouvinte não seria “cooptado”. As alturas relativas em que as letras foram
colocadas nestes gráficos seguiram sempre as notas musicais das partituras publicadas nos songbooks
99
A Rita, Chico Buarque, 1965 :
e
-
me é
-
la o de
-
vou
-
riso
dela
com que
Rita meu
-
ri
-
A le
-
sor
-
-
so Meu
-
to
sor
-
No
as
-
Levou jun
-
-
sunto
pei
-
Levou
-
tra
-
tra
-
pra
-
Que
-
reito
Arrancou
-
seu
-
to,
-
po,
-
to pa
-
di
-
-
me
-
to E r
e
-
seu seu
do
-
pel!
tem
mais
Vemos no desenho criado pela letra relacionada com as alturas musicais, uma forma
correspondente com a forma natural da fala, num tom de conversa coloquial, onde alguém
lamenta a perda de um grande amor. Para maior verificação desta relação basta fazer a
experiência de dizer o texto procurando entonações equivalentes às do gráfico. Nota-se, por
exemplo, como as frases conclusivas equivalem sempre a frases em escalas descentes, como
em No sorriso dela meu assunto ou E tem mais”. Quando o personagem enumera os
pertences levados pela Rita (novamente o uso da enumeração), o compositor repete a mesma
nota aguda nas sílabas tônicas de cada elemento seu retrato/ seu trapo/ seu prato”, (tra tra
pra) e numa nota abaixo as sílabas seguintes (to po to) criando um jogo onomatopaico
que correspondente também a uma provável interpretação falada, que repete o tom agudo em
cada elemento e que no caso, se transforma quase num trava-língua. Notemos que as palavras
escolhidas parecem partir-se, rasgarem-se, como se poderia fazer com retratos, trapos e
pratos, no momento de separação ou briga de um casal, com sílabas que se assemelham ao
som de coisas quebradas. E o que dizer da naturalidade da melodia em Que papel!”, onde a
produzidos por Almir Chediak: Songbook Noel Rosa, 3 volumes. Rio de Janeiro: Lumiar, 1991; e Songbook
Chico Buarque, 4 volumes. Rio de Janeiro: Lumiar, 1999.
100
última nota (a terça menor do acorde), rompendo com a seqüência anterior, corresponde a
uma suspensão melódica perfeita para o sentido exclamativo?
Na seqüência da mesma música: Uma imagem de são Francisco/ E um bom disco de
Noel”, Chico une, numa mesma frase, o seu próprio nome ao de Noel (ainda que não o tivesse
propositalmente) para resumir o que a Rita havia levado de mais valor: dois patrimônios
inegáveis da tradição cultural brasileira: a devoção a São Francisco (a religiosidade do povo)
e o bom samba de Noel:
A Rita, Chico Buarque, 1965 (continuação):
-
cis
-
E um bom dis
-
de
No
-
São Fran
-
-
co
-
co
-
magem de
-
tou
-
mor
Rita nos
-
Uma i
-
A ma
-
-
so a
-
-
el
-
tão
não não Mas causou per
-
Nem
Por
-
ti
-
-
gança heran
-
tos
-
-
que
-
nha
De
-
ça
um
vin
-
dei
-
Não levou
-
xou
anos
O
da
-
Levou pla
-
po
-
-
ganos Os meus vinte
-
das os
-
nos
-
bres meu cora
-
-
nos meus Meus en
-
-
ção
e
101
E além de
Me deixou
tudo
vi
-
mudo
-
o
-
Um
-
lão
Para a segunda letra, a partir de A Rita matou nosso amor...” notamos que a melodia
volta ao início, mas para depois ter um novo desfecho com frases cada vez mais agudas que
acompanham o crescimento da emoção do personagem - atingindo o clímax de sua revolta, e
também do tom musical, na palavra anos”, da frase: Os meus vinte anos do meu coração-
justamente a sua perda mais significativa, a da ilusão da juventude ao acreditar na eternidade
do amor, uma ilusão que lhe custou “anos”. Daí o tom mais lancinante da palavra. No final a
herança deixada por Rita é ainda mais triste: deixou mudo o violão”. A tristeza calou o que o
compositor tinha de mais autenticamente seu (brasileiro). Mas esta, é uma afirmação que o
próprio samba desmente, mostrando a sua capacidade plena de expressar a desilusão. E, se na
sua desilusão, o poeta estava arrasado e querendo ficar mudo, ao contrário, pululava a
eloqüência do seu violão. Vemos, a propósito, como as rimas se beneficiam das repetições
melódicas, tais como ocorre na rima Francisco/ disco”. O intervalo musical das sílabas
cis-co e da palavra disco é exatamente o mesmo reforçando a musicalidade própria da rima.
Neste tipo de composição (persuasão figurativa), a ação é sempre presentificada, isto
é, a letra simula uma ação no presente, como no suposto ou implícito diálogo entre o amante
de Rita e o ouvinte do samba fazendo o papel de interlocutor. Esta foi e continua sendo uma
marca característica do samba carioca, o uso da persuasão figurativa, formalizada ou
constituída nos anos 1930, onde as canções simulam a linguagem coloquial, com as elevações
e descendências de tons típicas do discurso lingüístico oral. Figurativizar significa, no uso que
fez Tatit para caracterizar esta forma de persuasão, simular através da presentificação uma
comunicação ou uma ação do dia-a-dia. Vejamos este formato nestes trechos de sambas de
Noel:
102
Espera mais um ano”, Noel Rosa, 1932:
-
zer
posso
Um Vou fa
-
mais a
-
ver
-
pera
-
no ver o posso
Que eu
que
Vou Não
Es
-
-
to teu
-
ver nes
-
re
-
-
te
-
men
-
Pois não re
-
-
ri
-
-
sol
-
mo
-
a
-
o
-
que
-
-
chei
-
mento (...)
Seja Breve!”, Noel Rosa, 1933:
-
ver
-
Seja Seja
-
treve
-
sa
-
mole
Breve!
breve!
-
bi porque vo
-
se a
-
-
gar sua con
-
-
ce
-
per
-
Não A prolon
-
Seja
Não a
-
-
tro
-
vou o
Breve!
-
do o tem
-
-
mole!
-
cabo perden
-
con
-
-
brar vo
-
deve
a
-
-
-
não
que
Se
-
-
le E co
-
-
po me
Notemos que a simulação de diálogo ganha realidade com a presentificação da ão,
com os verbos no imperativo: Espera”, Seja breve!”, Não amole!”, e com a repetição
melódica da entonação da fala, que faz com que imaginemos que há um interlocutor presente.
No primeiro exemplo, Espera mais um ano”, Noel faz referência aos jargões que os
funcionários das repartições públicas, foram obrigados a criar depois das ordens do Governo
103
Provisório de Getúlio para jamais dizer “não” ao contribuinte. Frases tais como: Por
gentileza, cavalheiro, traga-me uma estampilha e um retratinho três por quatro que eu vou
ver o que posso fazer pelo senhor
192
passaram a ser sistematicamente utilizadas e portanto,
não poderiam ser ignoradas por um crítico debochado como Noel, que aproveitará este tema
também na marcha Gosto, mas o é muito” (com Ismael Silva e Francisco Alves, 1931):
Fica firme, não estrilha/ Traz o retrato e a estampilha/ Que eu vou ver/ O que posso fazer
por você”.
Notemos, através do gráfico, como a linguagem da confusa burocracia da época
aparece neste samba registrada também na melodia, que reforça a entonação da mesma: Vou
ver o que posso fazer”, terminando numa nota aguda, repete a entonação de um funcionário já
sem paciência, que responde mais incisivamente à insistência de quem o procura. A mesma
sensação de presentificação fica evidente no efeito criado pela repetição melódica da frase em
“Seja breve!”. Esta música apresenta uma pequena extensão de notas na melodia menos de
uma oitava o que aproxima ainda mais a melodia do tom coloquial da fala. A situação
relatada parece estar sendo vivida no exato momento em que a canção se realiza: Não
percebi porque você se atreve/ a prolongar sua conversa mole”.
Exemplos da utilização de recursos semelhantes, na aplicação da persuasão figurativa,
encontraremos de forma abundante em Chico Buarque:
Acorda, amor”, Chico Buarque, 1974:
-
corda amor, Eu
ti
-
-
gora So
-
-
ve um
-
nhei fora Ba
-
A
-
pe
-
que
-
ten
-
-
tão
-
sade
-
ti
-
-
do por
-
-
lo
a
-
-
nha gente no
192
Sérgio Cabral, nota para “Espera mais um ano”, in: Songbook Noel Rosa, volume 2, produzido por Almir
Chediak. Rio de Janeiro: Lumiar, 1991. p. 47.
104
O uso do verbo no imperativo (“Acorda”), dos dêiticos
193
espaciais (“lá fora”, “no
portão”) e da linha melódica bastante aproximada à entonação da fala, no mesmo provável
ritmo e interpretação de um ator para este texto, presentificam o discurso, da mesma maneira
que nas canções de Noel Rosa. Dêiticos (espaciais, temporais, vocativos, demonstrativos e de
gestualidade, além dos verbos no imperativo, já exemplificados
194
), estas partículas que
ajudam a vivenciar “no presente” a história cantada, são utilizadas muito comumente por
nossos compositores, como nestes trechos, onde aparecem sublinhados: Conversa de
botequim”, de Noel Rosa e Vadico (1935): Fecha a porta da direita com muito cuidado/ (..)/
perguntar ao seu freguês do lado”; Cordiais saudações”, de Noel Rosa, 1931: Estimo
que este mal traçado samba”; “Já não posso mais” de Noel Rosa e Almirante, 1931: Adeus,
mulher fingida/ Eu vou-me embora”; “Um chorinho”, de Chico Buarque, 1967: Vem,
morena/ Não me despreza mais, não”; Até pensei”, de Chico Buarque, 1968: todo balão
caia”; Feijoada completa”, de Chico Buarque, 1977: Mulher/ Não se afobar/ Não tem
que pôr a mesa, nem lugar”. “Vai trabalhar vagabundo” de Chico Buarque, 1975: Vai
trabalhar, vagabundo/ Vai trabalhar, criatura”; “Meu caro amigo”, de Francis Hime e Chico
Buarque: “Aqui na terra tão jogando futebol”, e etc.
É claro, que o uso de refrões interrompe a naturalidade deste recurso, que se vê
obrigada adaptar-se à repetição de uma “conclusão geral”, que de forma absolutamente
diferente do poema literário, se apresenta não no final, mas ao longo da história da canção.
Uma vez que a cada estrofe teremos sempre uma mesma melodia repetida (conhecidas como
“segundas partes” da música), à letra cabe a dinâmica necessária para a manutenção do fio
condutor da narrativa e do interesse do ouvinte, e por isso nestas partes ela nunca se repete. As
chamadas segundas partes correspondem, portanto, ao discurso em si, na sua dinâmica de
apresentação e relato dentro do tema da canção, justamente a parte mais eloqüente e
informativa, e apresentam a dificuldade de delimitar em seus poucos versos (a cada reinício
melódico) um discurso completo: com começo, meio e fim, ou com apresentação,
argumentação e conclusão parcial, que ainda devem estar ligadas à afirmativa expressa pelo
refrão (conclusão final). A dificuldade para o letrista nos parece ainda maior quando notamos
193
Dêiticos são todos os elementos lingüísticos que servem para caracterizar uma situação de locução. Estes
elementos como que mostram o lugar e o momento da ação. Presentificam a cena, dando-nos a impressão de
sua ocorrência naquele exato momento. Os dêiticos e as entonações se atraem mutuamente. Um não aparece
sem o outro” (TATIT, Luis. A Canção, op. cit. p. 39).
194
Estas são as modalidades de dêiticos que presentificam a ação nas canções populares, segundo o estudo de
TATIT, Luiz. Op. cit.
105
que as estrofes contêm, na mesma melodia que se repete, uma intencionalidade expressiva
igualmente repetida. A genialidade está em encontrar versos rimados que se encaixem nesta
intenção preparada ou moldada pela melodia e ao mesmo tempo na história que a canção
relata. Tomemos por exemplo ”É bom parar”, de Noel Rosa:
(REFRÃO ou Primeira parte:)
Por que bebes tanto assim, rapaz?
Chega, já é demais!
Se é por causa de mulher, é bom parar
Porque nenhuma delas sabe amar
(Segundas Partes:)
1 - Se tu hoje estás sofrendo
É porque Deus assim quer
E quanto mais vais bebendo
Mais lembras dessa mulher.
Não crês conforme suponho,
Nestes versos da canção:
Mais cresce a mulher no sonho,
(Oi...) Na taça e no coração
195
2 - Sei que tens em tua vida
Um enorme sofrimento
Mas não penses que a bebida
Seja um medicamento.
De ti não terei mais pena
É bom parar por aí
Quem não bebe te condena, oi...
Quem bebe zomba de ti
(É bom parar, Noel Rosa e Rubens Soares, 1936)
O refrão corresponde, neste caso, aos quatro primeiros versos, nos quais a referência à
entonação da fala é bastante perceptível. Ele nos comunica a idéia central da música, que é
também conclusão da história que ainda vai ser contada. Este parece ser (estranhamente) a
junção de dois refrões. O primeiro: Porque bebes tanto assim, rapaz/ Chega já é demaise o
segundo formado pelas duas outras frases cantadas duas vezes: Se é por causa de mulher/ é
bom parar/ Porque nenhuma delas sabe amar”. Cada parte deste anômalo refrão duplo tem
um final próprio e poderia aparecer em duas músicas distintas. Unidas desta forma, Noel
simula perfeitamente, na letra e na entonação musical, o discurso presentificado de alguém
que tenta consolar um bêbado que sofre por amor. Cada frase tem sua própria métrica, assunto
e conclusão. Entre elas, o espaço temporal e a súbita mudança de tom da melodia,
recomeçando mais aguda, reforçam a presentificação da cena adaptando-se perfeitamente à
situação, onde o conselheiro permite um instante de reflexão antes de proferir seu segundo
conselho.
195
Versos da valsa-canção “A mulher que ficou na taça” de Orestes Barbosa e Francisco Alves, 1934.
106
Depois do refrão, as duas estrofes seguintes repetem a mesma estrutura melódica,
exigindo que as letras tenham similaridade expressiva. Os quatro primeiros versos de cada
estrofe têm obrigatoriamente, portanto, que conter a explanação de uma idéia, pelo caráter
conclusivo da melodia nos versos: quanto mais vais bebendo/ mais lembras dessa mulher
(1ª estrofe) e Mas não penses que a bebida/ Seja um bom medicamento (2ª estrofe). Os
versos seguintes exigem mais habilidade, pois correspondem ao trecho onde a melodia vai
para a nota mais aguda, revelando com isso um ponto de tensão, que corresponde aos versos:
Não crês conforme suponho/ Nestes versos da canção:(1ª estrofe) e De ti não terei mais
pena/ É bom parar por aí...(2ª estrofe). Os dois trechos exigem continuidade no discurso
verbal da mesma forma que a melodia exige a frase melódica conclusiva que distende a tensão
criada por ela, e teremos portanto, na primeira estrofe, os versos: Mais cresce a mulher no
sonho, oi.../ Na taça e no coração.”; e na segunda, o aforismo: Quem não bebe te condena,
oi.../ Quem bebe zomba de ti.”, ambas, conclusões parciais que se encaixam no refrão a
intenção geral sugerida pela música.
Muitas vezes, o discurso se impõe de tal maneira no formato melódico que os
compositores chegam a evitar o uso de refrões, para naturalizá-lo ao máximo. Isso representa
uma dificuldade a mais para o intérprete e também para a memorização dos ouvintes,
distanciando-os, portanto, de certa facilidade na receptividade, mas não chega a impedir o
surgimento de melodias igualmente inesquecíveis. ”Três apitos” de Noel (1933), já aqui
apresentada, é uma delas. Não tem estribilho nem refrão, o que torna o discurso mais linear,
como percebe Jorge Caldeira:
O intérprete [da canção Três Apitos”] tem que se guiar pelo sentido da letra; se
cantar alguma estrofe fora de ordem (o que é possível quando não refrão), ela
perde totalmente o sentido. [...] Noel fazia músicas como quem fala
196
.
Além de definir mais claramente do que qualquer compositor anterior o uso da
persuasão figurativa, a criatividade aliada à modernidade em Noel, produziu formatos
melódicos simplesmente inéditos na música popular brasileira. Como é o caso do uso do
isomorfismo das canções: “Gago Apaixonado”, onde a melodia se submete totalmente à
196
CALDEIRA, Jorge. Noel Rosa: de costas para o mar. São Paulo: Brasiliense, 1982 (3ª edição). p. 60.
107
dificuldade de fala do personagem, e “Cordiais Saudações”, onde a letra e a melodia repetem
a entonação da leitura de uma carta
197
:
- Correio!
Cordiais Saudações!
Estimo/ Que este mal traçado samba
Em estilo rude na intimidade
Vá te encontrar gozando saúde
Na mais completa felicidade
(Junto dos teus, confio em Deus)
Em vão te procurei
Notícias tuas não encontrei
Eu hoje saudades
Daqueles dez mil réis que eu te emprestei
Beijinhos no cachorrinho,
Muitos abraços no passarinho
Um chute na empregada
Porque já se acabou o meu carinho
A vida cá em casa está horrível
Ando empenhado nas mãos de um judeu
O meu coração vive amargurado
Pois minha sogra ainda não morreu
(Tomou veneno e quem pagou fui eu)
Sem mais, para acabar
Um grande abraço queria aceitar
De alguém que está com fome
Atrás de algum convite pra jantar.
Espero que notes bem
Estou agora sem um vintém
Podendo, manda-me algum...
Rio, 7 de setembro de 31!
(Responde que eu pago o selo)
(Cordiais saudações, Noel Rosa, 1931)
Vemos também nos versos desta verdadeira crônica de época, mais uma vez a
apropriação de um símbolo pátrio numa forma que subverte seu significado, à semelhança dos
modernistas. Neste “samba epistolar” (segundo o selo do disco
198
), depois de pedir a
devolução de um empréstimo, do qual está necessitado, o autor da carta conclui: podendo,
manda-me algum.../Rio, 7 de setembro de 31”, datando a correspondência com o aniversário
da independência do Brasil, o mesmo país de “Quem dá mais?”, que “já nasceu endividado”.
197
“Gago Apaixonado”, Noel Rosa, 1930. Samba gravado por Noel Rosa em 1931, pela gravadora Columbia.
“Cordiais Saudações”, Noel Rosa, 1931. “Samba epistolar”, gravado pelo autor e a Orquestra Copacabana.
Parlophon, 1931.
198
“Cordiais saudações” samba epistolar, Noel Rosa, gravação de Noel Rosa e Bando dos Tangarás.
Parlophon, 1931.
108
Uma mensagem mandada por Chico Buarque numa fita K7 ao amigo Augusto Boal,
exilado na França, produziu um samba muito semelhante na utilização do mesmo
isomorfismo do “samba epistolar” de Noel:
Meu caro amigo me perdoe, por favor
Se eu não lhe faço uma visita
Mas como agora apareceu um portador
Mando notícias nessa fita
(...)
Meu caro amigo eu bem queria lhe escrever
Mas o correio andou arisco
Se me permitem vou tentar lhe remeter
Notícias frescas neste disco
Aqui na terra, tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock’ n’ roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui ta preta.
A Marieta manda um beijo para os seus
Um beijo na família, na Cecília e nas crianças
O Francis aproveita pra também mandar lembranças
A todo pessoal
Adeus
(Meu caro amigo, Francis Hime e Chico Buarque, 1976)
Chico Buarque, nesta canção, novamente luta contra a censura e a repressão violenta
(“a coisa aqui preta”) presente no país durante a ditadura militar. Mas, notemos que frases
como Um beijo na família, na Cecília e nas criançasou O Francis aproveita pra também
mandar lembranças”, também são típicas de mensagem epistolares ou telefônicas e nisto esta
composição se aproxima bastante da de Noel, vista no exemplo anterior.
Jorge Caldeira observa que Noel se aproxima das propostas do movimento modernista,
também quando se trata da valorização da “língua brasileira”, como o povo a pronuncia
199
. E
Antônio Pedro Tota comenta um exemplo:
Noel Rosa, ao contrário dos compositores do seu tempo, pôs-se logo à vontade,
no que diz respeito à língua, no samba de estréia Com que roupa? [1930], usando
como mote, no título, um coloquialismo então em voga, a par de uma sintaxe e de
um léxico bem brasileiras, ou melhor, cariocas, utilizando, enfim, o português do
Brasil em sua modalidade mais viva e representativa (...)
200
.
Mas, é preciso frisar que esta aproximação, ou filiação, à “língua do povo” não exclui
as influências exteriores ao universo popular, no caso, trazidas pela “boa educação” dos
199
Jorge Caldeira nos este exemplo tirado de Manuel Bandeira: A vida não me chegava pelos jornais e pelo
livros/ vinha da boca do povo na língua errada do povo/ Língua certa do povo”. Op. cit. p.60.
109
colégios de classe média alta e bancos de universidades freqüentados pelos autores. Noel
Rosa e Chico Buarque buscaram com esmero a realização de uma poesia “autenticamente”
brasileira numa junção do coloquialismo e da linguagem lírica herdada dos poetas da língua
portuguesa. Há até mesmo referências a versos consagrados do universo literário erudito
brasileiro em suas composições, como em “Sabiá”, a canção de Chico Buarque e Tom Jobim,
que faz referência ao célebre poema de Gonçalves Dias
201
:
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir cantar
Uma sabiá
(...)
Vou deitar a sombra de uma palmeira
Que já não há
Colher a flor
Que já não dá (...) (Sabiá, Tom Jobim e Chico Buarque, 1968)
Apesar de serem os autores focados muito comentados por reproduzirem a linguagem
das ruas, o discurso lingüístico de Noel, como o de Chico, o representa apenas o discurso
coloquial popular, mas oscila, como vimos neste último exemplo, entre a norma coloquial e a
norma literária ou “urbana culta”, numa formulação cuidadosa. Os exemplos a seguir
demonstram como se na obra dos compositores que estamos analisando, essa inter-relação
da cultura letrada branca com o universo popular mestiço, e como assim se estabelece a
relação de equilíbrio necessária para obter a representação mais completa possível do ideário
da sociedade urbana. Em seus sambas, os provérbios e expressões populares (grifados nos
exemplos abaixo) ficam revestidos de figuras de linguagem elaboradas, com sentidos e rimas
surpreendentes:
Teus impropérios retribuo com brandura
Pois água mole
200
TOTA, Antonio Pedro. “Cultura, política e modernidade em Noel Rosa”. In: São Paulo em Perspectiva,
vol.15 nº.3, ISSN 0102-8839. São Paulo: Fundação SEADE (Revista eletrônica) Julho/ Setembro, 2001.
http://www.scielo.br/scielo.php. Acesso 25/10/2007.
201
Trata-se de uma referência à “Canção do exílio”: Minha terra tem palmeiras/ Onde canta o sabiá/ As aves
que aqui gorjeiam,/ o gorgeiam como lá/ (...)”. A "Canção do Exílio" de Gonçalves Dias obteve grande
empatia na sociedade brasileira desde a primeira publicação no Brasil, em 1846, com o livro Primeiros cantos
(Coleção "Nossos clássicos". São Paulo: Agir, 1969). Dois de seus versos estão citados no Hino Nacional
Brasileiro ("Nossos bosques têm mais vida/ Nossa vida, mais amores."), e ganhou citações, paródias e
recriações, principalmente dos poetas modernistas como Oswald de Andrade (“Canto de Regresso à Pátria”),
Carlos Drummond de Andrade (“Europa, França e Bahia” e “Nova Canção do Exílio”) e Mário Quintana
(“Uma Canção”), e também de outros compositores populares além de Chico Buarque, como Taiguara (“Terra
de Palmeiras” - produzido em 1975, em Londres, em um disco que foi proibido no Brasil), onde dizia
Sonhada terra das palmeiras/ Onde andará teu sabiá?/ Terá ferido alguma asa?/ Terá parado de
cantar?/(..)/ Ah! Minha amada amordada/ de amor forçado a se calar(disponível no endereço eletrônico:
http://www.imyra-tayra-ipy-taiguara.com/id4.html).
110
Na pedra dura tanto bate até que fura
(...)
Espero
Ainda ver-te entre lágrimas bem mal
Meu bem, escuta:
A araruta tem seu dia de mingau!
(Araruta, Noel Rosa e Orestes Barbosa, 1932)
Até amanhã, se Deus quiser
Se não chover/ Eu volto pra te ver/ Oh! mulher
(...) Não vou por gosto/ O destino é quem quer
Adeus é pra quem deixa a vida
É sempre na certa que eu jogo
Três palavras vou gritar por despedida
Até amanhã, até já, até logo...
(Até Amanhã, Noel Rosa, 1932)
(...) Deus sabe o que faz
O chiquê é feio pra quem pode ter
Quanto mais para quem não tem nada de seu
Ai de quem não sabe se reconhecer
Nunca vi um gênio igual ao teu.
(Deus sabe o que faz, Noel Rosa, Ismael Silva e Francisco Alves, 1933)
A sua vida nem você escreve
E além disso você tem mão leve
Eu só desejo é ver você nas grades
Para dizer baixinho sem fazer alarde:
“Deus lhe guarde! Vá com Deus!”
(Seja Breve!, Noel Rosa, 1933)
Masacha quem procura/ E agora para ter certeza
Vais provar toda a dureza/ Desta madeira de lei.
(Vou te ripar, Noel Rosa, 1930)
Por que você me nega
A esmola de um olhar?
O Sol nasceu pra todos
Também quero aproveitar
(O Sol nasceu pra todos, Noel Rosa e Lamartine Babo, 1933)
Por me deixar respirar
Por me deixar existir
Deus lhe pague
(Deus lhe pague, Chico Buarque, 1971)
Mulher/ Não vá se afobar
Não tem que pôr a mesa, nem dá lugar
Bota a mesa no chão e o chão ta posto
E prepare as lingüiças pro tira-gosto
(Feijoada completa, Chico Buarque, 1977)
Aqui na terra, tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock’ rol
Uns dias chove, noutros dias bate sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta
(Meu caro amigo, Francis Hime e Chico Buarque, 1976)
111
Além do refinado equilíbrio de que estamos falando na linguagem dos sambas, entre a
fala coloquial e os recursos poéticos literários, os autores demonstram ainda a preocupação de
preservar ou reiterar a brasilidade dos versos. Brasilidade absolutamente idealizada por eles.
No caso de Noel, encontramos a rejeição aos estrangeirismos que penetravam a sociedade
carioca principalmente através do cinema, como na composição de 1933, “Não tem tradução”,
onde também música e letra se integram perfeitamente:
O cinema falado/ É o grande culpado/
Da transformação/ Dessa gente que sente
Que um barracão/ Prende mais que um xadrez
Lá no morro, se eu fizer uma falseta
A Risoleta/ Desiste logo do francês e do inglês
A gíria que o nosso morro criou/ Bem cedo a cidade aceitou e usou/
Mais tarde o malandro deixou de sambar/ Dando pinote
E só querendo dançar o fox-trot
Essa gente hoje em dia/ Que tem a mania/ Da exibição/
Não se lembra que o samba/ Não tem tradução/ No idioma francês/
Tudo aquilo que o malandro pronuncia/ Com voz macia
É brasileiro, já passou de português
Amor, lá no morro, é amor pra chuchu
As rimas do samba não são “I love you
E esse negócio de “alô”, “alô, boy”/ “Alô, Johnny
Só pode ser conversa de telefone.
(Não tem tradução (Cinema falado), Noel Rosa, 1933)
A contundência com que se combate a influência do cinema estrangeiro o aparece
justificada apenas nos estrangeirismos adotados na cidade. Estes, menos perigosos, porque na
hora em que a gíria que o nosso morro criou(e que “cedo a cidade aceitou”) se faz a única
linguagem realmente adequada (“se houver uma falseta”), ela sabe se impor: A Risoleta/
Desiste logo do francês e do inglês”. As acusações, no entanto, vão além. O próprio malandro
(esse personagem tão brasileiro e ao qual dedicaremos um capítulo mais a frente), graças ao
cinema americano, vinha mudando seus hábitos, deixando “de sambar/ Dando pinote/ E
querendo dançar o fox-trot”! Depois de dizer que copiar o cinema é coisa de gente exibida,
Noel lembra que a nossa linguagem popular é única (“não tem tradução no idioma francês”) e
finalmente, na frase que se tornou célebre, afirma que, além de tudo ela é “nossa“: Tudo
aquilo que o malandro pronuncia/ com voz macia/ é brasileiro, passou de português”. Um
discurso cheio de valores nacionalistas, mas não do nacionalismo oficial, e sim de um
patriotismo “bairrista” que nascia no morro e contaminava a cidade, e que era entendido pelo
compositor como “brasileiro de fato e de direito”.
112
Mas o cinema influía ainda mais fortemente na aparência do vestuário e nos hábitos, e
este era o raio de influência amplo que parece ter preocupado Noel. Vamos ver outra crítica
semelhante no seu samba-choro Tarzan, o filho do alfaiate”, onde o alvo são os jovens das
boas famílias, que querendo imitar o musculoso Tarzan do cinema, muitas vezes recorriam
aos alfaiates para rechear de algodão as ombreiras dos paletós...
Quem foi que disse que eu era forte?
Nunca pratiquei esporte/ Nem conheço futebol
O meu parceiro sempre foi o travesseiro
E eu passo o ano inteiro sem ver um raio de Sol
A minha força bruta reside/ Em um clássico cabide
Já cansado de sofrer
Minha armadura é de casimira dura
Que me dá musculatura
Mas que pesa e faz doer.
(...)
Um argentino disse/ Me vendo em Copacabana
“No hay fuerza sobre-humana
que detenga este Tarzan!”.
(Tarzan, o filho do alfaiate, Noel Rosa e Vadico, 1936)
Critica semelhante aos veículos de comunicação de massa, como deturpadores da
cultura brasileira, fez Chico Buarque em relação à televisão:
O homem da rua
Fica só por teimosia
Não encontra companhia
Mas pra casa não vai não
Em casa a roda
Já mudou, que a moda muda
A roda é triste, a roda é muda
Em volta lá da televisão (...)
O homem da rua
Com seu tamborim calado
Já pode esperar sentado
Sua escola não vem não
A sua gente
Está aprendendo humildemente
Um batuque diferente
Que vem lá da televisão (...)
Os namorados
Já dispensam seu namoro
Quem quer riso, quem quer choro
Não faz mais esforço não
E a própria vida
Ainda vai sentar sentida
Vendo a vida mais vivida
Que vem lá da televisão
O homem da rua
Por ser nego conformado
Deixa a lua ali de lado
113
E vai ligar os seus botões
No céu a lua
Encabulada e já minguando
Numa nuvem se ocultando
Vai de volta pros sertões. (A televisão, Chico Buarque, 1967)
Segundo a canção, a televisão estava a substituir perigosamente o diálogo familiar, o
samba das ruas e até mesmo o amor entre os casais, mudando antigos hábitos brasileiros. A
televisão, na qual, de forma contraditória com esta música, Chico Buarque faria a sua
projeção nacional, reforçava a “intenção alienante das elites no poder” e por isso deveria ser
denunciada e combatida. Até a velha Lua, antes tão exaltada e cantada pelos poetas, agora se
sentia ameaçada pela televisão e se recolhia encabulada, indo juntar-se às demais brasilidades
tão desprezadas e esquecidas, como os sertões. A queixa não está mais focada nos
estrangeirismos, como em Noel, mas sim na mudança de hábitos que tornavam calados as
famílias, o samba e o casal de namorados. Os estrangeirismos trazidos pelo cinema, por outro
lado, de certa forma incorporados pela sociedade urbana, na obra de Chico não são vistos
por este como fatores de deturpação do idioma nacional”, mas sim como elementos
complementares que passam a servir a uma linguagem apropriada sobretudo para o amor.
Mesmo quando seus significados se revelam vagos ou imprecisos, como quem os repete
por gostar”, e apesar de não terem tradução (como Noel afirma em relação ao samba), sempre
combinavam bem” com as confissões que “dublavam as paixões”, servindo perfeitamente na
representação da incerteza e da inconstância do amor:
Tantas palavras
Que eu conhecia
Só por ouvir falar, falar
Tantas palavras
Que ela gostava
E repetia
Só por gostar
Não tinham tradução
Mas combinavam bem
Toda sessão ela virava uma atriz
“Give me a kiss, darling”'
“Play it again”
Trocamos confissões, sons
No cinema, dublando as paixões
Movendo as bocas
Com palavras ocas
Ou fora de si
Minha boca
Sem que eu compreendesse
Falou c'est fini
C'est fini (...)
(Tantas palavras, Dominguinhos e Chico Buarque, 1983)
114
Para finalizarmos este capítulo, resta frisar ainda que a brasilidade representada pelas
canções de Noel Rosa e Chico Buarque, é aquela identificada com o cidadão das classes
média e baixa da cidade do Rio de Janeiro. Este manifestou-se como brasileiro, na produção
musical popular, muito antes das outras sociedades urbanas do país, inclusive da paulistana,
equivalente em muitos aspectos econômicos e sociais à do Rio de Janeiro. A este propósito,
José Ramos Tinhorão constata:
Foi preciso esperar ainda uma geração [após a de Noel Rosa] para que em São
Paulo, à semelhança do Rio de Janeiro, as classes dias e baixas da cidade,
compostas, o mais predominantemente por imigrantes, mas também por seus
descendentes e por brasileiros de outras regiões que para lá migraram durante seu
período de mais rápido crescimento se sentissem, também, brasileiras, e
pudessem expressá-lo por meio da música
202
.
A música urbana carioca serviu de parâmetro ou matriz, influenciando em todos os
sentidos, inclusive na expressão da identidade cultural brasileira, a produção da música
popular urbana do restante do país. Todos os elementos aqui discutidos e identificados nas
canções de Noel Rosa e Chico Buarque, como representantes da brasilidade, podem também
ser encontrados em muitos outros compositores, porém, a semelhança da obra destes dois
cariocas torna possível a inserção de ambos dentro de um procedimento comum, que estamos
aqui a definir como parte da tradição da música popular brasileira. Concluímos por fim, que a
exaltação de seus elementos constitutivos fazem da brasilidade um importante ponto de
afirmação da identidade cultural do povo brasileiro, e neste quesito, estes autores deram
contribuição significativa às reflexões sobre os seus significados e à definição de seus
contornos.
2.2 - A filosofia do samba nas regras da arte.
Para os compositores aqui focados, Noel Rosa e Chico Buarque, a música popular, e
em especial, o samba, ocupam lugar privilegiado no dia-a-dia do brasileiro. O samba é, para
estes compositores, um meio de expressão genuinamente popular que apresenta a capacidade
de aliviar a pressão do mundo do trabalho e diminuir as conseqüências da injustiça social.
Não é difícil perceber um certo poder “curativo” da canção, sobre a sociedade, em letras como
da música “A Banda”, já aqui discutida, quando assistimos à paralisação da realidade triste,
rotineira e sem vida de uma cidade pequena, substituída por um instante de utopia. A alegria
115
repentina trazida pela Banda tem muito em comum com o clima permissivo do samba e do
carnaval. Estes, muito presentes na obra de Chico Buarque, como afirmou Affonso Romano
de Sant’Anna:
É bem grande o número de composições de Chico Buarque que tratam de
carnaval. Evidentemente, carnaval aqui não é apenas a festa brasileira. O
tratamento que recebe é o mesmo do rito e do mito. Um tempo-espaço em que a
comunidade liberta todas as suas repressões assumindo nas máscaras e nos
disfarces a sua verdadeira identidade
203
.
O carnaval aparece nas canções de Chico, sobretudo entre suas composições iniciais,
com esse poder imenso de alterar a realidade triste do dia-a-dia, dando a si mesmo e ao seu
principal componente, o samba, de fato, uma função ritualística e um espaço definido para a
superação das mazelas. Vejamos os exemplos:
No carnaval, esperança
Que gente longe viva na lembrança
Que gente triste possa entrar na dança
Que gente grande saiba ser criança
(Sonho de um carnaval , Chico Buarque, 1965 )
Com o samba eu não compro briga
Do samba eu não abro mão
(...)
Traga-me um violão
Antes que o amor acabe
Hoje, nada
Me cala este violão
Eu faço uma batucada
Eu faço uma evolução
Quero ver a tristeza de parte
Quero ver o samba ferver
No corpo da porta-estandarte
(Amanhã, ninguém sabe, Chico Buarque, 1966)
Quem canta comigo
Canta o meu refrão
Meu melhor amigo
É meu violão
(...) Eu nasci sem sorte
Moro num barraco
Mas meu santo é forte
E o samba é meu fraco
No meu samba eu digo
O que é de coração
(Meu refrão, Chico Buarque, 1965)
202
TINHORÃO, J.R. História Social da Música Popular Brasileira. São Paulo: Ed. 34, 1999, p. 298.
203
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Música popular e moderna poesia brasileira. Petrópolis: Vozes, 1977.
p. 102.
116
Mais uma vez, o samba, com o imprescindível violão, é o redentor, a principal forma de
aliviar a dura realidade de um personagem sem sorte, que mora num barracão. O carnaval é o
espo-tempo da liberdade, onde podem ser realizados os desejos reprimidos durante o restante no
ano. O compositor, no papel de brasileiro,se guardao ano inteiro para quando o carnaval chegar:
Quem me vê sempre parado, distante
Garante que eu não sei sambar
Tou me guardando pra quando o carnaval chegar
Eu tô só vendo, sabendo, sentindo, escutando
E não posso falar
Tou me guardando pra quando o carnaval chegar
Eu vejo as pernas de louça da moça que passa e não posso pegar
Tou me guardando pra quando o carnaval chegar
(...)
E quem me ofende, humilhando, pisando, pensando
Que eu vou aturar
Tou me guardando pra quando o carnaval chegar
E quem me vê apanhando da vida duvida que eu vá revidar
Tou me guardando pra quando o carnaval chegar
Eu vejo a barra do dia surgindo, pedindo pra gente cantar
Tou me guardando pra quando o carnaval chegar
Eu tenho tanta alegria, adiada, abafada, quem dera gritar
Tou me guardando pra quando o carnaval chegar
(Quando o carnaval chegar, Chico Buarque, 1972)
O carnaval (e o samba) promete satisfazer asrias carências dos brasileiros, em época de
repressão crescente: os seus desejos de alegria, de prazer sexual, de se sentir realizado, de revolta, e
até mesmo seu desejo de suprir a falta de sentido na própria exisncia, na desilusão com o caráter
humano. Estas músicas fazem parte de um tipo de arte que mexe com as "estruturas" mais
duramente estabelecidas pela sociedade urbana, questionando a ordem e as regras coletivizantes
para um mundo que parece caótico e opressivo.
Jorge Caldeira observa que, em Noel ocorre o mesmo, o samba parece adquirir
extraordinários poderes
204
, como nestes exemplos: Porque o samba mata a fome
(“Coisas Nossas”, 1932); Que faz dançar os galhos do arvoredo/ E faz a Lua nascer mais
cedo(‘Feitiço da Vila”, com Vadico, 1934);O mundo é um samba que eu danço/ sem nunca
sair do meu trilho(“Até amanhã”, 1932). Vemos nestes exemplos o mesmo lugar mítico para
o samba, que está em Chico Buarque: o de redentor das mazelas urbanas.
De todas as composições de Noel que exaltam o samba, talvez os mais célebres versos,
que resumem bem a importância deste para o autor, vem da segunda estrofe de “Feitio de
Oração”, hoje um “clássico” da música popular brasileira:
204
CALDEIRA, Jorge. Noel Rosa: de costas para o mar. São Paulo: Brasiliense, 1982 (3ª edição). p. 54.
117
Quem acha vive se perdendo
Por isso agora eu vou me defendendo
Da dor tão cruel dessa saudade
Que por infelicidade meu pobre peito invade
(...)
Batuque é um privilégio
Ninguém aprende samba no colégio
Sambar é chorar de alegria
É sorrir de nostalgia
Dentro da melodia. (Feitio de Oração, Noel Rosa e Vadico, 1933)
Batuque, longe de ser coisa de gente pobre, se transforma em privilégio de poucos,
pois o se “aprende samba no colégio”. O samba é o território da felicidade, onde se
choro, é de alegria, e se saudade, esta se transforma em alegre melodia, capaz de inverter a
dor (“sorrir de nostalgia”). O poder de transformação da realidade faz do samba uma
“oração”, onde o compositor clama por um mundo mais alegre.
De forma semelhante, em Chico Buarque, samba e carnaval são capazes de anunciar
um novo amanhã, pleno de realizações, como em “Ole, Olá” - uma canção que consolou os
derrotados do golpe de 1964 pela perda da oportunidade de se fazer a revolução e também
pela possível extinção das origens tradicionais e populares da “MPB”, ameaçada que estava
pela indústria cultural:
Não chore ainda não
Que eu tenho a impressão
Que o samba vem aí
O samba tão imenso
Que eu às vezes penso
Que o próprio tempo
Vai parar para ouvir (...)
Luar, espere um pouco
Que é pro meu samba poder chegar
Eu sei que o violão
Está fraco, está rouco
Mas a minha voz
Não cansou de chamar
Olê olê olê olá
Tem samba de sobra
Ninguém quer sambar
Não há mais quem cante
Nem há lugar mais lugar
O sol chegou antes
Do samba chegar
(Olé, olá, Chico Buarque, 1965)
O final desta canção nos recorda Noel: Sol, pelo amor de Deus/ Não venha agora/
que as morenas/ vão logo embora(“Feitiço da Vila”, Noel e Vadico, 1934). que aqui, o
118
samba é que chega atrasado, nasce no fim, quando chega o sol - impedido como a própria voz
do cantor, cerceado pela ditadura militar.
Na letra e música de Chico Buarque, em sua canção o eu lírico afirma-se, não
pela mera expressão sentimentalista de uma alma individual, mas pela
identificação com um espaço social, onde a existência se reorganiza pela poesia –
o samba, para ele
205
.
Com esta reflexão de Muniz Sodré, concluímos que o “poder extraordinário” do
samba foi preservado dentro da tradição, nas composições. Sem ele, o que sobra é a tristeza de
uma realidade crua, sem sonhos, sem alegria, sem esperança, sem o espaço social
proporcionado apenas por ele. E sendo desta forma tão precioso, é natural que os
compositores atentassem sempre para o seu valor:
Fiz um poema pra te dar
Cheio de rimas que acabei de musicar
Se por capricho
Não quiseres aceitar
Tenho que jogar no lixo
Mais um samba popular
Eu bem sei que condenas
O estilo popular
Sendo as notas sete apenas
Mais eu não posso inventar.
(...)
Por motivos bem diversos
Escrevi meu samba assim
Fiz o coro após a os versos
E a introdução eu fiz no fim.
(Mais um samba popular, Noel Rosa e Arthur Costa, 1931)
Você é um colosso
Comeu sandwich
Falando bem grosso
Que samba é maxixe
Eu disse: “Caramba!
Não sou seu vassalo”
Falou mal do samba,
Pisou no meu calo!
(Você é um colosso, Noel Rosa, 1934)
Chico Buarque, falando do samba e de sua preservação criou uma composição notável
em que o sentido da letra, que a princípio defende as modernizações, se inverte totalmente,
vindo a condená-las a partir da metade da música em diante, simplesmente deslocando um
verso e mantendo a melodia:
205
SODRÉ, Muniz. “A lira independente” In: Songbook Noel Rosa. Produzido por Almir Chediak. Petrópolis:
Ed. Vozes/ Lumiar, 1991. p.8.
119
Eu hoje fiz um samba bem pra frente
Dizendo realmente o que é que eu acho
Eu acho que o meu samba é uma corrente
E coerentemente assino embaixo
Hoje é preciso refletir um pouco
E ver que o samba está tomando jeito
Só mesmo embriagado ou muito louco
Pra contestar e pra botar defeito
Precisa ser muito sincero e claro
Pra confessar que andei sambando errado
Talvez precise até tomar na cara
Pra ver que o samba está bem melhorado
Tem mas é que ser bem cara de tacho
Não ver a multidão sambar contente
Isso me deixa triste e cabisbaixo
Por isso eu fiz um samba bem pra frente
Dizendo realmente o que é que eu acho
Eu acho que o meu samba é uma corrente
E coerentemente assino embaixo
Hoje é preciso refletir um pouco
E ver que o samba está tomando jeito
Só mesmo embriagado ou muito louco
Pra contestar e pra botar defeito
Precisa ser muito sincero e claro
Pra confessar que andei sambando errado
Talvez precise até tomar na cara
Pra ver que o samba está bem melhorado
Tem mas é que ser bem cara de tacho
Não ver a multidão sambar contente
Isso me deixa triste e cabisbaixo
Por isso eu fiz um samba bem pra frente
Dizendo realmente o que é que eu acho
(Corrente (Este é um samba que vai pra frente), Chico Buarque, 1976)
O samba, para Chico Buarque, não podia nem devia seguir modismos e ignorar o
desejo da multidão. Para que o samba não se transformasse definitivamente em um samba
que vai pra frente”, à semelhança do país da ditadura (no slogan: Este é um país que vai pra
frente), Chico demonstraria toda a sua habilidade na troca de sentido das frases sem, no
entanto, alterá-las. Da mesma forma, que ludibriava a censura, o compositor brincava com a
ironia de suas idéias, para chamar a atenção para a tradição: O samba não deve mudar!
120
2.3 – Críticos das elites e defensores dos marginalizados.
A hipocrisia da sociedade, que dá muita importância ao mundo das aparências, foi alvo
constante de muitos compositores populares brasileiros, e é claro também de Noel Rosa:
Não creia nestas mentiras/ Que roubam nossa alegria
Os invejosos se vingam/ Armados de hipocrisia.
A mentira, infelizmente/ O mais forte amor destrói.
Mas, se eu não tenho remorso/ O meu coração não dói. (...)
(Qual foi o mal que eu te fiz?, Noel Rosa e Cartola, 1932)
Quantas vezes nós sorrimos sem vontade
Com o ódio a transbordar no coração
Por um simples dever da sociedade
No momento de uma apresentação (...)
(Prazer em conhecê-lo, Noel Rosa e Custódio Mesquita, 1932)
A estas mentiras, que para o autor fazem parte da armação hipócrita da sociedade
como um todo, Noel muitas vezes somou ataques diretos à elite, sempre associada ao poder
político, como vemos neste contundente samba, gravado em plena ditadura varguista (1933):
Você tem palacete reluzente
Tem jóias e criados à vontade
Sem ter nenhuma herança ou parente
Só anda de automóvel na cidade...
E o povo já pergunta com maldade:
Onde está a honestidade?
Onde está a honestidade?
O seu dinheiro nasce de repente
E embora não se saiba se é verdade
Você acha nas ruas diariamente
Anéis, dinheiro e até felicidade...
Vassoura dos salões da sociedade
Que varre o que encontrar em sua frente
Promove festivais de caridade
Em nome de qualquer defunto ausente...
(Onde está a honestidade?, Noel Rosa e Francisco Alves, 1933)
Riqueza e sorte inexplicáveis o os indícios da desonestidade dos ricos, que ficam
ainda mais ricos com seus “festivais de caridade”. O mesmo tema e a mesma forma irônica de
criticar as elites está bem presente também em Chico Buarque, como vemos neste samba
chamado “milagre brasileiro”, uma referência ao desenvolvimento econômico do período
militar que beneficiou apenas a mesma classe social:
Cadê o meu?
Cadê o meu, ó meu?
Dizem que você se defendeu
121
É o milagre brasileiro
Quanto mais trabalho
Menos vejo dinheiro
É o verdadeiro boom
Tu tá no bem bom
Mas eu vivo sem nenhum
(Milagre brasileiro, Julinho da Adelaide, pseudônimo de Chico Buarque, 1975)
Sambas que apresentam este tipo de crítica aproximaram Noel Rosa e Chico Buarque
dos inúmeros desempregados que não tinham sorte alguma e que esperavam em vão por um
trabalho em épocas de crise. Porém, suas simpatias se dirigiram preferencialmente àqueles
que se encontravam em condições ainda mais precárias, os marginalizados. Um exemplo: Em
”O Orvalho vem Caindo” (1933), ironizando a associação entre o azul-anil da bandeira
nacional com o céu do Brasil, Noel se coloca no lugar de um morador de rua:
O orvalho vem caindo/ vai molhar o meu chapéu
E também vão sumindo/ As estrelas lá do céu
Tenho passado tão mal/ A minha cama é uma folha de jornal
Meu cortinado é o vasto céu de anil
e meu despertador é o guarda civil...
(que o salário ainda não viu!) (E...)
A minha terra dá banana e aipim
Meu trabalho é achar quem descasque por mim...
(Vivo triste mesmo assim!) (E...) (...)
(O orvalho vem caindo, Noel Rosa e Kid Pepe, 1933)
A ironia da situação do mendicante que vive na terra do “se plantando tudo dá” (“A
minha terra banana e aipim”) aparece reforçada na “vagabundagem” do personagem:
Meu trabalho é achar quem descasque por mim”. Na música de Noel, a preguiça não es
num personagem mítico como Macunaíma, com quem a identificação é simbólica e sutil, mas
num brasileiro típico que se vê nas ruas. E assim, com ironia, a desgraça social se transforma
em deboche e crítica maliciosa. Da mesma forma como nesta música, muitos outros
personagens rejeitados pela sociedade, ou que vivem a margem dela, mereceram de Noel
Rosa referências e homenagens, ora cômicas, ora trágicas, mas sempre simpáticas e
compreensivas:
E quando passo pela praça
Quase como o chafariz
Quando minha fome aperta
Dou dentadas no nariz
(Sem tostão, Noel Rosa, 1932)
A cozinheira já não dorme
Pois a patroa só mastiga
122
(...)
Quero comer não posso
Quero comer não posso
Eu tenho um troço que me aborrece:
Já não janto nem almoço
(Não me deixam comer, Noel Rosa 1932)
O que eu tô vendo
É que se eu não me defendo
Vou acabar me comendo
Pra poder me alimentar
(Faz Três semana, paródia de Noel Rosa para Suçuarana, de Heckel Tavares e
Luís Peixoto, s/d.)
João Ninguém
Que não é velho nem moço
Come bastante no almoço
Pra esquecer do jantar
Num vão da escada
Fez a sua moradia
Sem pensar na gritaria
Que vem do primeiro andar
(...)
João Ninguém
Não tem ideal na vida
Além de casa e comida
Tem seus amores também
E muita gente
Que ostenta luxo e vaidade
Não goza a felicidade
Que goza João Ninguém
(João Ninguém, Noel Rosa, 1935)
Mulata fuzarqueira da Gamboa
Só anda com tipo à-toa
Embarca em qualquer canoa
(Mulata fuzarqueira, Noel Rosa, 1931)
Maria Fumaça/ Fumava cachimbo
Bebia cachaça
Maria Fumaça/ Fazia arruaça
Quebrava a vidraça (...)
Maria Fumaça/ Só achava graça
Na própria desgraça
Dez vezes por dia/ A delegacia
Mandava um soldado
Prender a Maria/ Mas quando se via
Na frente da praça
Maria sumia/ Tal qual a fumaça
(Maria Fumaça, Noel Rosa, 1936)
Foi num cabaré da Lapa
Que eu conheci você
Fumando cigarro
Entornando champanhe no seu soirée
(...)
No outro dia lá nos Arcos eu andava
À procura da dama do cabaré.
(Dama do Cabaré, Noel Rosa, 1936)
123
Famintos, miseráveis, vagabundos, empregadas, dançarinas, prostitutas: Noel Rosa se
identifica com o baixo escalão da sociedade, a ponto de assumir realmente o papel do
marginalizado, de onde pode criticá-la sem medo, pela hipocrisia e pela desumanidade
aparente no convívio urbano. Vemos esse papel no auto-retrato da canção que o consagrou
como o “filósofo do samba”:
O mundo me condena /E ninguém tem pena
Falando sempre mal do meu nome.
Deixando de saber/ Se eu vou morrer de sede
Ou se vou morrer de fome
Mas a filosofia/ Hoje me auxilia
A viver indiferente assim.
Nesta prontidão sem fim/ Vou fingindo que sou rico
Pra ninguém zombar de mim.
Não me incomodo/ Que você me diga
Que a sociedade é minha inimiga
Pois cantando neste mundo/ Vivo escravo do meu samba,
Muito embora vagabundo
Quanto a você/ Da aristocracia
Que tem dinheiro/ Mas não compra alegria
Há de viver eternamente
Sendo escrava dessa gente
Que cultiva a hipocrisia.
(Filosofia, Noel Rosa e André Filho, 1933)
Falando de si mesmo e de suas dificuldades financeiras, que o colocaram de fato
constantemente na marginalidade, Noel acusa mais uma vez a falta de solidariedade, a
indiferença, a maldade do “mundo das aparências”. E comentando um pensamento algo
marxista (“Que a sociedade é minha inimiga”) - que não deixa também de ser hipócrita (a
mesma pessoa que afirma esta frase é da aristocracia”) -, ele se recusa a engajar-se em
qualquer ideologia, se dizendo escravo”. Ou seja, ao invés de declarar-se partidário de um
ideal social libertário em luta contra a elite burguesa, como na visão política da esquerda,
Noel coloca o mundo especial do samba, com suas qualidades mágicas (como vimos no
capítulo anterior), como a alternativa clara para a busca da felicidade (“Vivo escravo do meu
samba/ Muito embora vagabundo”). Desta forma, se referindo ao mais primitivo modo de
produção, ele rejeita a idéia de evolução e progresso em direção ao socialismo, e invertendo
novamente os termos qualificativos, termina por acusar a “sociedade” de ser o seu próprio
algoz: escrava do dinheiro e de si mesma, ou melhor da própria hipocrisia. Filosofia de sobra
para um samba popular.
124
Este samba (“Filosofia”, de 1933, gravado neste ano por Mário Reis e a orquestra de
Pixinguinha), que diz tanta coisa sobre o seu criador, foi regravado por Chico Buarque no LP
“Sinal Fechado”, de 1974, confirmando a herança “filosófica” acumulada por este, com a
mesma postura crítica do poeta da Vila.
A diferença é que em Chico, a crítica social pode ser mais diretamente associada à
crítica política. Muitas de suas composições foram usadas como propaganda ideológica de
resistência à ditadura do Regime Militar, dada a facilidade de se perceber nelas o engajamento
político. Para pesquisadores como Júlio César Valadão Diniz, Chico faz sua opção pelo
engajamento a partir de 1969, com a composição “Agora falando sério”, verdadeiro manifesto
de rompimento com a fase do bom moço e do lirismo saudosista de composições como “A
Banda”:
Agora falando sério
Eu queria não cantar
A cantiga bonita
Que se acredita
Que o mal espanta
Dou um chute no lirismo
Um pega no cachorro
E um tiro no sabiá
Dou um fora no violino
Faço a mala e corro
Pra não ver a banda passar (...)
(Agora falando sério, Chico Buarque, 1969)
Esta música, onde o compositor anuncia querer dar um tiro no sabiáe correr “pra
não ver a banda passar”, presente no LP Chico Buarque Hollanda, nº. 4 (PolyGram, 1970),
torna claro esse seu rompimento com a produção da primeira fase, que seria para Diniz,
simbólica de uma classe média que ainda acreditava em banquinhos, barquinhos e violões
206
. Porém, verificamos que é problemático afirmar tão categoricamente um rompimento com
uma fase ingênua. Podemos encontrar exemplos de composições “engajadas” também na
primeira fase, tais como “Tamandaré” (proibida pela Censura) e Pedro Pedreiro”, ambas de
1965, ou “Roda Viva”, de 1967. De qualquer maneira, se algo que Chico Buarque não
rompe, é com sua filiação à tradição. Dar um “chute no lirismo, um pega no cachorro e um
tiro no sabiá”, foram promessas nunca cumpridas, e que fizeram apenas o papel de desabafo,
logo após o AI 5. Ou poderíamos levar a sério o abandono do lirismo em composições
125
posteriores? Contudo, sua postura de alinhamento à poética de resistência refletida nos
personagens marginalizados se torna cada vez mais evidente, a ponto de Glauber Rocha
transforma-lo em um herói da democracia, em uma entrevista em 1974: “o nosso Errol Flynn
207
.
Marco mais significativo do que a canção “Agora falando sério”, para o tom enfático
do desabafo de Chico Buarque, veio antes desta composição, com a peça Roda Viva
208
, de
1968. Nessa comédia musical, dirigida pelo então revolucionário diretor Celso Martinez
Corrêa, um sambista popular (Benedito Silva) se transformado pelo empresário (manager)
Anjo da Guarda, em “Ben Silver”, com um novo visual pop e com o conseqüente rompimento
com os elementos autênticos do mundo do samba. Ao renegar assim a própria tradição, o
personagem pagará o desvirtuamento da sua arte com o fracasso total. Para tornar ainda mais
patética a derrota do artista frente à indústria cultural e a sua total cooptação pelos meios de
comunicação de massa, o autor faz o empresário insistir em uma nova mudança drástica: “Ben
Silver” se torna Benedito Lampião, autêntico representante da legítima música brasileira”, e
capaz de competir com os novos astros nacionais do gênero canção de protesto, Geraldo
Vanderbeilt (Geraldo Vandré), Chico Pedreiro (o próprio Chico Buarque) e Maria Botânica
(Maria Bethânia). Porém, após uma excursão bem sucedida aos EUA (país interessado na
cultura alheia apenas como atração exótica, folclórica e efêmera) Benedito é rejeitado pelo
público brasileiro, que já não o reconhecia mais como o seu representante. Um artista que não
representa mais o seu povo se sem saída. No final do espetáculo, Benedito se suicida,
jogando-se na frente de um carro. O séqüito de fãs enlouquecidos comem sua carne e um
novo ídolo é erguido. A Roda Viva o parava. Celso colaborou para a agressividade do
espetáculo com ações como a simulação de sexo com a imagem da Virgem Maria e fazendo
espirrar na platéia o sangue do fígado de boi que era devorado pelos atores, simulando a carne
do ex-astro. O texto, que havia sido liberado pela Censura com alguns poucos cortes dos
palavrões, acabou sendo enxertado com outros tantos no decorrer da temporada. Toda esta
postura revolucionária levou o CCC (Comando de Caça aos Comunistas, grupo paramilitar de
direita) a investir contra os atores que foram espancados, e contra os cenários, destruídos na
206
DINIZ, Júlio Cesar Valadão. “A voz e seu dono: poética e metapoética na canção de Chico Buarque de
Hollanda”. In: FERNANDES, Rinaldo (org). Chico Buarque do Brasil: textos sobre as canções, o teatro e a
ficção de um artista brasileiro. Rio de Janeiro: Garamond / Fundação Biblioteca Nacional, 2004. p. 261.
207
Apud: WERNECK, Humberto. “Gol de Letras”. In: HOLLANDA, Chico Buarque de. Chico Buarque, letra e
música: incluindo Gol de Letras de Humberto Werneck e Carta ao Chico de Tom Jobim. São Paulo: Cia. das
Letras, 1989. p.138.
126
temporada paulista (17 de julho de 1968, no Teatro Galpão), e a seqüestrarem dois atores em
Porto Alegre, abandonando-os depois num matagal distante
209
. Estes acontecimentos
serviram para que a peça fosse proibida em todo o território nacional e impulsionaram a
promulgação do AI-5, em 13 de dezembro daquele mesmo ano, que deu início ao
recrudescimento das perseguições políticas, das torturas e dos assassinatos “oficiais” e
também da Censura. Chico se tornava ele próprio um dos personagens centrais do cenário
político revolucionário – ainda que sempre viesse a negar esse papel.
A peça Roda Viva” iria remexer a imagem de bom moço, de boa família e bem
comportado, que se formou em torno de Chico, e surpreender a antiga unanimidade que havia
em torno de suas composições, bem mais do que a composição do ano seguinte Agora
falando sério”, utilizada por Júlio César Valadão Diniz como marco de ruptura. Como
descreve Adélia B. de Meneses:
O público ou melhor , parte dele, pois a unanimidade se desfizera passa a
responsabilizar o diretor [Celso Martinez Correa] pelo radicalismo agressivo
da peça, mas Chico Buarque a assume. Essa mudança de imagem se opera em
vários veis, em relação a públicos diferentes: diante daqueles que viam em
Chico o tranqüilizante “bom moço” e que agora se sentem decepcionados; diante
do blico simpatizante do Tropicalismo e que, por motivos diferentes renega o
autor de Carolina Chico passa a ser acusado de intransigente defensor do estilo
tradicional de compor
210
.
Notamos nesse comentário, que o público mesmo chocado com a nova postura do “ex-
bom moço” continuará reconhecendo em Chico Buarque, um defensor da tradição.
O engajamento político é também percebido nos outros musicais escritos por Chico
Buarque nos anos 1970, Calabar, o elogio da traição (1973)
211
, Gota d’água (1975)
212
e
Ópera do Malandro (1978)
213
, em todos eles, cabe ressaltar, vemos muito da tradição criada
nos anos 1930.
208
As músicas da peça eram Roda Viva” e “Sem fantasia”, e foram gravadas por Chico Buarque no LP Chico
Buarque de Hollanda vol. 3, RGE, 1968.
209
Acontecimentos descritos por Humberto Werneck, in: “Gol de letras”. Op. cit. pp. 81/82.
210
MENESES, Adélia B. de. Desenho gico: poesia e política em Chico Buarque. o Paulo: Hucitec, 1982,
p. 25.
211
BUARQUE, Chico e GUERRA, Ruy. Calabar, o elogio da traição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1973. Peça proibida pela Censura no dia de sua estréia.
212
BUARQUE, Chico e PONTES, Paulo. Gota d’água. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.
213
BUARQUE, Chico. Ópera do malandro: comédia musical.o Paulo: Cultura, 1978.
127
Calabar, invertendo a versão da história oficial, mostra o personagem “traidor” de
Portugal (e por extensão, do Brasil) durante as invasões holandesas, como um verdadeiro
brasileiro, patriota que se revoltava contra o sistema injusto imposto pelos lusitanos.
Representava uma metáfora para o clima de perseguição e censura do regime militar: o traidor
do governo como herói da nação. Bárbara (a amante de Calabar) e Ana de Amsterdam (uma
prostituta) representam a voz angustiada dos excluídos. A mulher tão sufocada e submissa do
século XVII, cenário histórico da peça, une assim o encanto de sua suposta fragilidade com a
coragem das heroínas, unindo-se a voz das feministas e dos movimentos libertários que se
intensificaram na década de 1960. As personagens femininas fortes, a partir desta peça,
ganham um papel muito especial na obra de Chico, a ponto de serem lembradas por alguns
estudiosos como as mais marcantes das composições do autor
214
.
Em Gota d’água, o tema da traição e da injustiça retorna para também dar voz aos
excluídos: Um “sambista” trai a sua classe social ao abandonar a mulher e os dois filhos para
se casar com a filha de um grande proprietário do conjunto residencial onde vivia. Joana, a
mulher traída, assim como na tragédia grega “Medéia”
215
, que serviu de inspiração para a
peça, acaba envenenando os dois filhos e a si mesma, num ato extremo de vingança. Mais
uma vez, em seu clamor ouve-se a voz dos enjeitados e abandonados pelos poderosos. Para
enfatizar ainda mais a crítica que permeia a peça, os autores afirmam no prefácio da primeira
edição: “[...] o povo sumiu da cultura produzida no Brasil dos jornais, dos filmes, das
peças, da TV, da literatura, etc. [...] O povo brasileiro deixou de ser o centro da cultura
brasileira
216
. Era uma crítica direta às gravadoras, à televisão e às demais formas de mídia
que estavam a “eliminar” o povo, a distorcer a tradição e a ignorar a voz dos oprimidos, em
alinhamento com a Censura.
Na “Ópera do Malandro”, a tradição nascida nos anos 1930 é toda reconstituída, desde
os cenários aos personagens, e também muito da porção essencialmente musical. Aqui, com
os mesmos retoques irônicos da peça que lhe serviu de inspiração,A ópera dos três vinténs”,
214
Exemplos desta afirmação se encontram em: FONTES, Maria Helena Sansão. Sem Fantasia - Masculino e
Feminino em Chico Buarque. Rio de Janeiro: Graphia Editorial, (coleção Temas e Reflexões), 2003; e
MENESES, Adélia Bezerra de. Figuras do Feminino na Canção de Chico Buarque.o Paulo: Ateliê
Editorial, 2000. 3ª ed. Ampliada, 2002.
215
Medeia, de Eurípides, foi encenada pela primeira vez em 431 a. C.
216
BUARQUE, Chico e PONTES, Paulo. Gota d’água. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. xvi.
128
de Bertolt Brecht e Kurt Weill
217
, Chico parece demonstrar como o país deixava de ser
corporativista e promotor do desenvolvimento nacional da indústria nos anos 1930/ 40 para
ser um Estado que promovia intensamente o investimento estrangeiro, institucionalizado
pelos militares nos anos 1960/ 70. Chama-nos a atenção no texto, o contraste entre o que
dizem os personagens e o que eles fazem a seguir. Chico coloca cuidadosamente estas
contradições, como a querer provocar no ouvinte a reflexão sobre a realidade política e a ética
individual, ao mesmo tempo em que evita a simples identificação imediata entre o
personagem e o público. Os personagens se mostram em flagrantes contradições quando
invariavelmente após a exposição de seus sentimentos sinceros, agem de forma inescrupulosa
e interesseira. Para além das metáforas políticas, era ao próprio cidadão brasileiro que se
dirigia a crítica, no comportamento dúbio, covarde, guiado pelo interesse e entregue às regras
do “jogo sujo”. No final da peça, num falso final feliz, a ironia ganha forma na citação de uma
série de produtos americanos que a partir dos anos 1940 iriam invadir o Brasil,
“americanizando” cada vez mais a cultura brasileira:
[...] Pra quem viveu/ só de café e banana
Tem gilete, Kibon/ Lanchonete, Neon
Petróleo/ Cinemascope, sapólio
Ban-lon/ Shampoo, tevê
Cigarros longos e finos/ Blindex fumê
Já tem Napalm e Kolynos/ Tem cassete e ray-ban
Camionete e sedan/ Que sonho
Corcel, Brasília, plutônio
Shazam/ Que orgia/
Que energia/ reina a paz no meu país
Ai, meu Deus do céu/ Me sinto tão feliz. (Ópera, Chico Buarque, 1977/78)
Num segundo final, em uma cena que foge ao enredo da peça, aparece a figura do
“autêntico malandro carioca”, João Alegre, suposto autor da mesma, que na última canção
retoma á crítica social numa clara rejeição da glorificação do progresso, ironicamente
evidente na música anterior.
Chico Buarque inseriu-se na ebulição política e cultural do Brasil dos anos 1960/70, a
ponto de Gustavo Conde referir-se á um efeito censura: À medida que se tornavam públicas
as ações da censura nas canções de Chico, uma expectativa para cada nova canção se
217
“A Ópera dos três vinténs”, de Bertolt Brecht, com composições de Kurt Weill, foi encenada pela primeira
vez na Alemanha em 1928.
129
criava
218
. Porém, é preciso relembrar que Chico jamais aceitou qualquer rótulo, ou, como
afirma Regina Zappa, não quis ser tachado de compositor romântico e lírico, nem cantor de
protesto
219
, pois a sua profusão criativa não poderia se limitar a conceitos provisórios.
É importante frisar mais uma vez que, apesar de ser um defensor dos oprimidos contra
os interesses do capitalismo, Chico (assim como Noel) irá compor de forma a agradar
indivíduos de todas as classes sociais, devido em grande parte a capacidade de suas obras de
representarem o mundo popular com requintes de erudição, ou como esclarece Charles
Perrone:
O apelo musical dele [de Chico Buarque] cruza linhas divisórias de classe porque
as canções são ao mesmo tempo “populares” em seus fundamentos e temas
musicais e “eruditas” por seu refinamento e tons líricos sofisticados.
220
Todas as canções apontadas como politicamente significativas de Chico conterão estes
dois elementos: Pedro Pedreiro” e “Tamandaré” (1965); “Roda viva” e ”Quem te viu, quem
te vê” (1967); “Sabiá” (com Tom Jobim) e “Bom Tempo” (1968); “Rosa dos Ventos” e “Gente
humilde” (com Garoto e Vinícius de Moraes - 1969); “Apesar de vocêe “Samba de Orly”,
(com Vinicius de Moraes e Toquinho (1970); Construção”, Cotidiano” e “Deus lhe pague”
(1971); “Bom conselho” e “Partido Alto” (1972); “Fado tropical”, “Vence na vida quem diz
sim”, Cobra de vidro” (estas em parceria com Ruy Guerra), e Cálice” (com Gilberto Gil,
1973); “Acorda, Amor” (com o pseudônimo Julinho de Adelaide, 1974); “Milagre brasileiro”
(também como Julinho de Adelaide) , Gota d’água” e “Tanto mar”, (1975), “Angélica” (com
Miltinho, 1977), “Hino de Duran (Hino da Repressão)” (1979), “Vai passar” e “Pelas tabelas”,
(1984). É preciso lembrar, no entanto, que muitas destas canções permitem leituras distintas,
entre uma visão exclusivamente política e outras mais limitadas ao campo discursivo da
canção, onde os personagens podem representar “qualquer um” ou outras intenções (como em
”Quem te viu, quem te vê”, de 1967, ou até mesmo em “Apesar de você”, 1970). Isto nos
obriga a fazer ressalvas ao relativo engajamento “evidente” de algumas destas canções.
218
CONDE, Gustavo. “Do riso cancionista em Chico”. In: FERNANDES, Rinaldo (org). Chico Buarque do
Brasil: textos sobre as canções, o teatro e a ficção de um artista brasileiro. Rio de Janeiro: Garamond /
Fundação Biblioteca Nacional, 2004. p. 245.
219
ZAPPA, Regina. Chico Buarque: para todos. Rio de Janeiro: Relume Dumará/ Prefeitura do Rio de Janeiro,
1999 (Coleção Perfis do Rio), p.10.
220
PERRONE, Charles, GINWAY, M. Elizabeth & TARTARI, Ataíde. “Chico sob a ótica internacional”. In:
FERNANDES, Rinaldo (org). Chico Buarque do Brasil: textos sobre as canções, o teatro e a ficção de um
artista brasileiro. Rio de Janeiro: Garamond/ Fundação Biblioteca Nacional, 2004.
130
Deslocando o foco sobre o engajamento político contra a ditadura, que pressupõe a
defesa dos oprimidos, poderemos perceber também na obra de Chico Buarque que, assim
como na de Noel Rosa, o compositor se coloca de maneira geral como um defensor dos
marginalizados: prostitutas, meninos de rua, travestis, malandros, retirantes, humildes
trabalhadores, miseráveis e rejeitados em geral, que são descritos em versos elaborados e
condescendentes. Sobre o perfil destes personagens cantados por Chico Buarque, comenta
Adélia Bezerra de Menezes
Uma galeria imensa que engrossará a romaria dos mutiladosde que se fala em
O que será?”, daqueles que foram mutilados física e socialmente: os infelizes,
as meretrizes, os bandidos, os desvalidos ao que vêm acrescentar as mulheres
abandonadas, os pivetes, os operários, os pedreiros, o malandro.
221
Seguem aqui alguns exemplos, começando por um personagem muito parecido com o
João Ninguém de Noel Rosa (1935), o Zé Qualquer:
Zé Qualquer tava sem samba, sem dinheiro
Sem Maria sequer
Sem qualquer paradeiro
Quando encontrou um samba
Inútil e derradeiro
Numa inútil e derradeira
Velha nota de um cruzeiro
(Tamandaré, Chico Buarque, 1965)
Pedro pedreiro penseiro esperando o trem
Manhã, parece, carece de esperar também
Para o bem de quem tem bem
De quem não tem vintém
Pedro pedreiro fica assim pensando
Assim pensando o tempo passa
E a gente vai ficando pra trás
Esperando, esperando, esperando
(Pedro Pedreiro, Chico Buarque, 1965)
No sinal fechado
Ele vende chiclete
Capricha na flanela
E se chama Pelé
(...) Meio se maloca
Agita numa boca
Descola uma mutuca
E um papel (...)
Batalha na sarjeta
E tem as pernas tortas
(Pivete, Francis Hime e Chico Buarque,1978)
221
MENESES, Adélia Bezerra. Chico Buarque de Hollanda: literatura comparada. São Paulo: Abril Educação,
1980. p. 98.
131
Amando noites afora
Fazendo a cama sobre os jornais
Um pouco jogados fora
Um pouco sábios demais
(Amando sobre os jornais, Chico Buarque, 1979)
Chega no morro com o carregamento
Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador
(...)
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
E ele chega...
Chega estampado, manchete, retrato
Com venda nos olhos, legenda e as iniciais
Eu não entendo essa gente, seu moço
Fazendo alvoroço de mais
(O meu guri Chico Buarque, 1981)
Na rodoviária / Assumem formas mil
Uns vendem fumo/ Tem uns que viram Jesus
Muito sanfoneiro / Cego tocando blues
Uns têm saudade/ E dançam maracatus
Uns atiram pedra / Outros passeiam nus
Mas há milhões desses seres
Que se disfarçam tão bem
Que ninguém pergunta
De onde essa gente vem (...)
São faxineiros/ Balançam nas construções
São bilheteiras/ Baleiros e garçons
(Brejo da Cruz, Chico Buarque, 1984)
Será verdade
Que eu cheguei nessa cidade
Pra primeira autoridade
Resolver me escorraçar
(A violeira, Tom Jobim e Chico Buarque, 1983)
A Conceição incomodada
Vai ouvir nossa oração
Nos livrar da seca, da enxurrada e da estação ruim
(A permuta dos santos , Edu Lobo e Chico Buarque, 1987-1988)
E se definitivamente a sociedade só te tem desprezo e horror
E mesmo nas galeras és nocivo, és um estorvo, és um tumor
Que Deus te proteja
És preso comum
Na cela faltava esse um
(Hino da repressão (Segundo turno), Chico Buarque, 1985)
Neste último exemplo, vemos claramente retratado o mesmo confronto que nos
sambas de Noel Rosa opõe a “sociedade” aos seus “anti-sociais”. Chico Buarque dedicará
também muitas de suas composições ao mundo da prostituição:
Sou perfeita porque
Igualzinha a você
Eu não presto
Eu não presto
132
Traiçoeira e vulgar
Sou sem nome e sem lar
Sou aquela
Eu sou filha da rua
Eu sou cria da sua
Costela
Sou bandida
Sou solta na vida
E sob medida
Pros carinhos seus
Meu amigo
Se ajeite comigo
E dê graças a Deus
(Sob medida , Chico Buarque, 1979 )
Foi proclamada a república
Neste bordel
Eu vou virar artista
Ficar famosa, falar inglês
Autografar com as unhas
Eu vou, nas costas do meu freguês
Eu cobro meia entrada
Da estudantada que não tem vez
Aqui no meu teatro
Grupo de quatro paga por três
(...) Ao povo nossas carícias
Ao povo nossas carências
Ao povo nossas delícias
E nossas doenças
(Mambordel, Chico Buarque, 1975)
Se acaso me quiseres
Sou dessas mulheres
Que só dizem sim
(Folhetim, Chico Buarque, 1977-1978)
Ai, se papai me pega agora
Abrindo o último botão
Será que ele me leva embora
Ou não (...)
Será que ele me trata à tapa
E me sapeca um pescoção
Ou abre um cabaré na Lapa
E aí me contrata
Como atração
(Ai, se eles me pegam agora, Chico Buarque, 1977-1978 )
Quem me dera amarrar meu amor quase um mês
Mas escuta o que dizem as pedras do cais
Se eu deixasse juntar de uma vez meus amores num porto
Transbordava a baía com todas as forças navais
(A mulher de cada porto, Edu Lobo e Chico Buarque, 1985)
Se o cliente quer rumbeira, tem
Com tempeiro da baiana
Somos las muchachas de Copacabana (bis)
(Las muchachas de Copacabana, Chico Buarque, 1985)
133
Em “Ai, se papai me pega agora”, música integrante da “Ópera do malandro”, na peça
que tem o mesmo cenário histórico de Noel, Chico faz referência ao cabaré da Lapa, onde as
dançarinas, tal qual a Ceci de Noel (a Dama do cabaré”, 1936), muitas vezes se prostituíam.
Em outras composições, Chico Buarque dá voz aos homossexuais, como o travesti Geni de “A
ópera do malandro”:
De tudo que é nego torto
Do mangue e do cais do porto
Ela já foi namorada
O seu corpo é dos errantes
Dos cegos, dos retirantes
É de quem não tem mais nada
(Geni e o zepelim, Chico Buarque, 1977-1978)
Vamos ceder enfim à tentação
Das nossas bocas cruas
E mergulhar no poço escuro de nós duas
Vamos viver agonizando uma paixão vadia
Maravilhosa e transbordante, feito uma hemorragia
(Bárbara, Chico Buarque e Ruy Guerra , 1972-1973 )
Amavam um amor proibido
Pois hoje é sabido
Todo mundo conta
Uma andava tonta
Grávida de lua
E outra andava nua
Ávida de mar
E foram ficando marcadas
Ouvindo risadas, sentindo arrepios
(Mar e lua, Chico Buarque, 1980)
Personagens homossexuais também estão presentes em Noel Rosa, que inaugura, de
forma ousada para a época, este delicado tema na música popular:
As morenas do lugar
Vivem a se lamentar
Por saber que ele não quer
Se apaixonar por mulher
O mulato é de fato
E sabe fazer frente
A qualquer valente,
Mas não quer saber de fita
Nem com mulher bonita
(Mulato Bamba (Mulato forte), Noel Rosa, 1931)
Um dos mais célebres temas de piadas, o rico e o pobre, é outro excelente mote para as
críticas sociais dos compositores. Na “Opereta do moribundo” (Edu Lobo e Chico Buarque,
música integrante da peça O corsário do rei, de 1985), Chico reproduz o discurso popular
referente á duas situações análogas, porém distantes: o “Funeral do rico” e o “Enterro de
134
pobre”, usados como subtítulos de cada uma das metades da mesma canção. Ambos os
personagens levando para o túmulo suas preocupações mais comuns e fúteis, entre amigos
interesseiros:
I - Funeral de rico
Rico quando vai
Desta vida, sempre vai de mau humor
Ir deitado de casaca é um terror
Abafado e morto de calor
Aturar a marcha fúnebre
Só de imaginar
Que os amigos vão deitar nos seus sofás
Vão tomar os seus vermutes, os seus cristais
E as suas mulheres principais
Já na beira do seu túmulo
- Gente, quanta gente
Que excelente funeral
- Ficas bem de preto
E o cabelo ao natural
- Dizem que o eminente
Triplicou seu capital
- Vai sobrar para gente
Que nem viu ele vivo
- Tem até donativo
Para as obras do hospital.
II - Enterro de pobre
Pobre quando vai
Sempre dizem que ele vai pra uma melhor
Vai olhando aquela gente ao seu redor
Todos com poeira e com suor
Ele achando a coisa ótima
Só de imaginar
Que os amigos vão pagar o seu caixão
O barbeiro, o aluguel do rabecão
O vinho do padre, o sacristão
E o sermão na igreja gótica
- Gente, não tem gente
Tem parente pobre só
- Esse teu modelo
Mais parece um dominó
- Nem o indigente
Quis herdar o seu paletó
- Vai sobrar para a gente
Que nem viu ele vivo
- Tem até um passivo
No caderno do Jacó
(Opereta do moribundo, Edu Lobo e Chico Buarque, 1985)
Os amigos do morto rico transformam o funeral em mais um encontro social e
esperam desfrutar de algum benefício deixado pelo defunto. aos amigos do morto pobre
135
sobram contas a pagar, com o enterro e as dívidas deixadas por ele. Em ambos os funerais, os
amigos possuem preocupações que ultrapassam as homenagens aos mortos e que revelam o
comportamento hipócrita que perpassa a sociedade brasileira como um todo, movida pelas
aparências e pelos interesses pessoais. Ao mesmo tempo, o humor ameniza esta crítica,
revelando mais as afetações dos ricos (“ir deitado de casaca é um terror/ Abafado e morto de
calor/ Aturar a marcha fúnebre ou “ficas bem de preto/ e o cabelo ao natural”) e a
mesquinhez dos pobres (“de imaginar/ Que os amigos vão pagar o seu caixãoou “Gente,
não tem gente/ Tem parente pobre ”). Podemos aventar muitos exemplos na obra de Chico
Buarque que, a semelhança desta canção, contém a mesma crítica à hipocrisia da sociedade
como vimos em Noel Rosa:
Ele faz o noivo correto
E ela faz que quase desmaia
Vão viver sob o mesmo teto
Até que a casa caia
Até que a casa caia
(...)
Ele é o funcionário completo
E ela aprende a fazer suspiros
Vão viver sob o mesmo teto
Até trocarem tiros
Até trocarem tiros
Ele tem um caso secreto
Ela diz que não sai dos trilhos
Vão viver sob o mesmo teto
Até casarem os filhos
Até casarem os filhos (...)
(O casamento dos pequeno burgueses, Chico Buarque, 1977-1978)
O samba de Noel, em geral menos sério ou mais debochado que o de Chico, disfarça a
crítica em auto-crítica, e o eu poético, que é quase sempre um pico brasileiro confessa
também ser um bom trapaceiro:
Eu hoje já não ando mais fagueiro
Pois o dinheiro
Não é fácil de ganhar
Mesmo eu sendo um cabra trapaceiro
Não consigo ter nem pra gastar
Eu já corri de vento em popa
Mas agora com que roupa...
Com que roupa, eu vou? (...)
(Com que roupa?, Noel Rosa, 1930)
Essa cumplicidade entre o brasileiro e o “Brasil da trapaça” – mais um traço da
identidade cultural brasileira surge muitas vezes nas letras de Noel, assim como nas letras
136
de Chico, onde a trapaça pode assumir dimensões metafóricas diversas, chegando inclusive a
ser sinônimo de elegância:
Contigo aprendi
A perder e achar graça
Pagar e não dar importância
Contigo a trapaça
Por trás da trapaça
É pura elegância
(Trapaças, Chico Buarque, 1989)
Os personagens marginalizados das canções de Chico Buarque (o malandro, o menino
de rua, a prostituta, o nordestino, o homossexual, etc) são, na opinião de Adélia Bezerra de
Menezes, os personagens que apareceram, durante um período especialmente propício a
criticas sociais, com o propósito de satirizar as falhas da nossa sociedade
222
. Chico fez,
segundo a pesquisadora, a redução da sociedade à arquétipos, acrescentando algumas
referências à fatos históricos ligados pelo contexto do regime militar, tais como a
desvalorização do cruzeiro (“Tamandaré”), a ditadura militar e suas formas de repressão
(“Cálice” de 1973; Acorda Amor” de 1974), ou a Abertura política (“Vai passar”, 1984). A
mesma afirmação, guardadas as devidas referências históricas, se aplica muito bem aos
personagens de Noel, que também se utilizou de arquétipos e fez alusões a fatos históricos da
primeira ditadura, como o “Samba da Boa Vontade” (Noel Rosa e João de Barros, 1931),
por nós analisado como uma crítica à política econômica do governo Vargas, ou os sambas
“O pulo da hora” (1931) e Por causa da hora” (1931), que brincam com a confusão gerada
pela introdução do horário de verão.
Nota-se que enquanto Noel não vê problemas na fusão do eurico com o eu cantor, de
corpo presente, como nas canções “Palpite infeliz” (com Eduardo Souto, 1931) ou “O x do
problema” (1936), Chico representa mais uma voz interdita, às vezes irônica, às vezes trágica,
que evita essa fusão, aumentando a complexidade metafórica, para, entre outras razões,
driblar a censura. São os personagens que irão lhe emprestar a voz, num jogo onde a criatura
diz o que permite o criador, como se o que dizer não fosse uma escolha do compositor. Jogo
lúdico e alternado com a realidade que sentido pleno, por exemplo, à voz feminina ou às
vozes dos muitos personagens, e também aos temas que vão da Grécia antiga (“Mulheres de
222
MENEZES, Adélia Bezerra. Desenho gico: poesia e política em Chico Buarque. São Paulo: HUCITEC,
1982. p. 94.
137
Atenas”, com Augusto Boal, 1976) às páginas policiais dos jornais (“O Meu Guri”, 1981), e
ao uso muito delicado, por vezes com duplo sentido, de expressões e ditados populares.
Nos anos 1990, Chico Buarque mudaria o seu foco de abordagem do ponto de vista do
“intelectual politicamente engajado” para o contador de histórias de angústia, incerteza e a
busca de uma identidade pessoal”, pelo menos essa é a conclusão apresentada por Charles
Perrone, para quem Chico teve que, neste momento, reinventar a si mesmo, uma vez
removido o objeto de protesto” e realizar uma transição forçada pela circunstância:
Chico fez a transição entre se exprimir como a voz do povo a se exprimir como
indivíduo sobre a sociedade e a natureza da realidade, enquanto as escolhas
políticas, éticas e morais se tornavam cada vez mais complexas
223
.
Contudo, podemos afirmar, por outro lado, que existem alguns elementos que
permaneceram em suas músicas, apesar da transição identificada por Perrone. Um exemplo é
a preocupação de representação da brasilidade, que prosseguirá nos trabalhos mais recentes de
Chico Buarque. Além dos possíveis exemplos que contém muito da brasilidade, como “Chão
de esmeraldas” (com Hermínio Bello de Carvaho, 1997) e Carioca” (1998), lembramos a
capa de Paratodos
224
de 1993, que traz no centro uma foto de Chico aos dezessete anos
(feitas pela polícia) entre fotos de pessoas anônimas das mais variadas etnias, representando
claramente o conjunto brasileiro;
Uma relação parecida está na capa do CD As cidades
225
, em que o rosto do artista é
transfigurado digitalmente de forma a assumir, em várias montagens, diferentes traços étnicos,
como se quisesse fundir sua imagem com a da a diversidade migratória do Brasil. No
conteúdo destas novas canções, uma voz voltada pra dentro muito mais do que pra fora, em
mensagens cada vez mais herméticas, mas ainda com muita brasilidade, como no “Xote da
navegação” (com Dominguinhos, 1998) e no samba “Injuriado” (1998), cuja melodia mantém
muito dos traços estilísticos de Noel Rosa.
223
PERRONE, Charles, GINWAY, M. Elizabeth & TARTARI, Ataíde. “Chico sob a ótica internacional”. In:
FERNANDES, Rinaldo (org). Chico Buarque do Brasil: textos sobre as canções, o teatro e a ficção de um
artista brasileiro. Rio de Janeiro: Garamond/ Fundação Biblioteca Nacional, 2004. p. 220.
224
LP e CD Paratodos, Chico Buarque. BMG Ariola, 1993.
225
CD As cidades, Chico Buarque. BMG, 1998.
138
2.4 - A escola da malandragem.
Um dos temas ligados à brasilidade mais constantes na obra de Noel Rosa, assim
como na de Chico Buarque, é o da malandragem, muito comum à época de Noel, como
afirma Jorge Caldeira:
“Quando Noel se tornou compositor profissional, um tema de larga tradição
dominava a música popular: a malandragem”
226
.
Vamos então analisá-la. Vimos que nos anos 1930, muitos artistas e intelectuais, como
Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Villa Lobos, Pixinguinha e Noel Rosa, entre
muitos outros, colaboraram cada qual ao seu modo para uma definição dos nossos contornos
culturais nacionais. Nestes anos, formalizaram-se de fato alguns projetos de construção do
orgulho brasileiro - uma definição sócio-cultural da nação e dos nossos particularismos.
Projetos que se manifestavam na arte erudita e popular e que se encaixavam numa ou noutra
vertente das duas mais preponderantes. Havia, como atestamos nos críticos da música popular
do início desta década, uma corrente que desejava a nossa autenticidade nacional através de
uma ótica “estrutural” mais próxima da européia, preocupando-se em localizar aquilo que nos
faltava para sermos como as nações do Velho Continente. Esta corrente obedecia em “linhas
gerais” às regras civilizadoras da cultura ocidental cristã e capitalista, de metodologias
definidas e com prioridades estabelecidas na Europa. Parte desse pensamento brasileiro
buscava ainda uma “pureza” que tinha sinônimo de perfeição, e apontava para uma forma
unificadora, e às vezes até mesmo totalitária de nação. Um outro projeto, este de fato popular
e bem mais abrangente, afirmaria características nascidas aqui, bem como a nossa
miscigenação racial.
Surgia, portanto, um embate moral interno na nossa sociedade que, emergindo de um
prolongado convívio escravista, dispunha dos modelos franceses, americanos e alemães de
civilização, para a formação de um Brasil urbano, industrial, civilizado e "moderno". Neste
sentido, as regras sociais impostas a partir de Getúlio representavam um trilho por onde
seguiria a moderna civilização brasileira, definindo uma moral de "aparências" - uma lei geral
em um mundo em desordem. De fato, a partir da Revolução de 1930, Getúlio Vargas procurou
controlar a cultura e os meios de comunicação, como vimos em capítulo anterior, utilizando-
226
CALDEIRA, Jorge. Noel Rosa: de costas para o mar. São Paulo: Brasiliense, 1982 (3ª edição). p. 23.
139
os como instrumentos de formação da sociedade, num projeto para disciplinar o cidadão
brasileiro, com o rádio e as festas populares ampliando a nossa “consciência cultural“.
Paralelamente, contudo, a música popular dava vazão, a outra moral bem mais
permissiva porque provinha de um grupo social marginalizado e porque não pretendia seguir
exatamente o moralismo europeu. Pureza da raça, unidade de credo e organização do povo em
associações não poderiam sustentar a verdadeira” representação do brasileiro - esse modelo
jamais poderia ser aplicado em sua essência à brasilidade. Essa crítica está presente em
inúmeras composições contemporâneas que iriam defender o que era verdadeiramente
“nosso”, e que serviriam de "válvulas de escape" para as pressões ao mundo popular.
Para exemplificar este debate musical sobre as raízes negras do samba podemos citar a
atuação de Joubert de Carvalho, como um dos defensores do saneamento musical do Brasil.
Numa década de inequívoco domínio do samba como gênero musical (1930), Joubert de
Carvalho, médico e filho de fazendeiro rico, propôs uma alteração do eixo sobre o qual se
apoiava a música popular brasileira e, desalinhado com os adeptos da miscigenação, clamou
por uma valorização da raça branca. Em “Sai da Toca, Brasil!”, uma composição sua de 1938,
gravada por Carmem Miranda, chegou a afirmar que senzala, macumba e o bater o no
chão, eram elementos que pertenciam ao passado: “a dança agora é no salão”, dizia. Para ele,
era preciso elevar o Brasil ao foro de civilidade, trocando a favela, tão cantada nos sambas-
malandros pelo arranha-céu. E proclamava:
Brasil das avenidas
Da praia de Copacabana e do asfalto
A tua gente branca e forte
Ninguém cantou ainda bem alto
(...)
Brasil, deixa a favela
pois o arranha-céu é o que se recomenda (...)
(Sai da toca, Brasil!, Joubert de Carvalho, 1938)
A contradição dessa letra com as condições populares se torna ainda mais gritante
quando reparamos que “Sai da Toca, Brasil!” é uma rumba! A resposta veio logo: Nelson
Petersen, integrante do Bando Carioca, compôs um samba, também gravado por Carmem
Miranda ainda neste mesmo ano, que contra-argumentava:
Quem condena a batucada
Dessa gente bronzeada
Não é brasileiro
E nada mais bonito é
140
Que um corpo de mulher
A sambar no terreiro. (...)
O samba nasceu num cruel barracão
Foi educado sambando no chão
Com a gente de cor (...)
(Quem Condena a Batucada, Nelson Petersen, 1938)
Era totalmente impossível, no final da década de 1930, para quem quer que seja
decretar o fim do samba ou negar suas negras raízes. Esta era uma batalha perdida para os
nacionalistas que pretendiam “embranquecer” o povo. Um embate ainda maior se deu,
entretanto, e desde o início da década, em relação à malandragem, um terreno bem mais
suscetível às críticas.
Roberto da Matta definiu o malandro como um ser deslocado das regras formais,
fatalmente excluído do mercado de trabalho, aliás definido por nós como totalmente avesso
ao trabalho e individualizado pelo modo de andar, falar e vestir-se
227
. E José Miguel Wisnik
completou:
A malandragem é uma negação da moral do trabalho e da conduta exemplar
(efetuada através de uma farsa paródica em que o sujeito simula ironicamente ter
todas as perfeitas condições para o exercício da cidadania). Acresce que essa
negativa ética vem acompanhada de um elogio da orgia, da entrega ao prazer da
dança, do sexo e da bebida
228
.
Foi agindo como uma válvula de escape, que a ideologia da malandragem, em tudo
oposta à ideologia do trabalho, teve na música popular, o seu espaço de expressão por
excelência, dado que o músico e o malandro por vezes se identificavam nos espaços que
ocupavam e no tipo de vida que levavam. O malandro, herdeiro do bilontra, personagem
carioca esperto e oportunista” do século XIX
229
, que substitui a metodologia cartesiana pela
manha e pelo jeitinho, o trabalho pela expropriação e o isolamento por certo exibicionismo,
justifica seu comportamento na injustiça social que exclui o trabalhador nacional honesto.
Assim esexpresso, por exemplo, em sambas como Lenço no Pescoço, de Wilson Batista:
eu vejo quem trabalha andar no miserê”.
227
DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro:
Rocco, 1997. p. 263.
228
WISNIK, José Miguel. “Algumas questões de música e política no Brasil”. In: BOSI, Alfredo (org.) Cultura
brasileira: temas e situações. São Paulo: Ática, 1987. p. 119.
229
A peça de teatro de revista “O Bilontra”, de 1886, de Arthur Azevedo é o melhor exemplo da utilização deste
personagem nos palcos cariocas. A partir desta revista, o personagem transformou-se num dos melhores
exemplos sobre a discussão da ideologia burguesa do trabalho em oposição à entrega às tentações do ganho
fácil que a ociosidade e o jogo prometem. Um estudo muito interessante sobre o tema se encontra em:
MENCARELLI, Fernando Antonio. Cena Aberta: A Absolvição de Um Bilontra e o Teatro de Revista de
Arthur Azevedo. Campinas: Editora da Unicamp / Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 1999.
141
O sonho do malandro é ganhar no jogo do bicho - uma contravenção que é uma das
portas de entrada para a “vida fácil”, e sua prática é viver de “subtrações” sobre algum
“otário”, além de “gerenciar” prostitutas. O malandro se opõe, portanto, ao esforço
disciplinador do governo em relação aos trabalhadores, que eram encaminhados para a rotina
da produção. E foram muitos os sambistas que, como Wilson Batista, defendiam a
malandragem, mostrando o “orgulho de ser vadio”.
Conforme afirma Cláudio Aguiar Almeida
230
, Wilson estaria refletindo não só o
embate moral descrito, mas também os anseios de uma massa de trabalhadores submetida a
imensas dificuldades. A malandragem pode ser associada a uma reação à aceleração do
processo de urbanização do Rio de Janeiro entre o final da década de 1920 e o início dos anos
30, quando as populações rem-chegadas do campo tinham que se adaptar às péssimas
condições de trabalho, baixos salários, jornadas exageradamente longas, inexistência de
períodos de descanso remunerado e a super-exploração da mão-de-obra, inclusive feminina e
infantil. As greves eram reprimidas com violência pelas autoridades, que encaravam o
problema como questão meramente policial. A resposta a essa opressão do mundo do trabalho,
surge, portanto, numa série bastante significativa de sambas que procuraram exaltar a figura
do malandro, um tipo que preferia antes dedicar-se a bicos, pequenos furtos, e exploração de
mulheres, do que entregar-se ao trabalho pesado, que só trazia benefícios aos patrões. Jorge
Caldeira complementa:
Em meio à dureza geral, (...) por que maltratar o corpo noite e dia a troco de um
salário de fome, se era possível passar melhor vivendo da malandragem? Foi
justamente na sica popular que esta questão se colocou de maneira mais
acabada. Na década de vinte, os negros e mulatos que primeiro tocaram o samba
colocaram esta dúvida em forma de música, optando claramente pela
malandragem. Criou-se na canção uma imagem invertida do trabalho, onde o
operário ficava à sombra e o ócio era agente de realização
231
.
João da Baiana, Caninha, Donga, Sinhô e Heitor de Prazeres foram alguns dos
compositores que, desde a década de 1920, vinham defendendo a malandragem, que
sobreviveria na música popular até a implantação do Estado Novo (1937-45), e depois dele,
nos sambas cantados por Jorge Veiga ("Estatutos da Gafieira”, de Billy Blanco, de 1954), ou
compostos por Geraldo Pereira (“Escurinho”, 1955), nos sambas de breque de Moreira da
230
ALMEIDA, Cláudio Aguiar. Cultura e sociedade no Brasil : 1940 -1968. São Paulo: Ed. Atual, 1996.
231
CALDEIRA, Jorge. Op, cit. p. 25.
142
Silva (“Na subida do morro”, com Ribeiro da Cunha, 1958; “Bamba de Caxias”, também com
Ribeiro Cunha, 1970), ou ainda com João Nogueira (“Malandro 100”, com Luiz Grande,
1986) e Martinho da Vila (“Coração de malandro”, com Garcia do Salgueiro, 1987). Mas foi
na década de 1930, que a malandragem conheceu o seu maior prestígio. Cláudia Matos, em
seu livro: Acertei no Milhar: Malandragem e Samba no Tempo de Getúlio
232
, discute a
grande dimensão social que assumiu a malandragem nos anos 1930 e o esforço do governo
Vargas em acabar com ela, através da imposição de uma censura. Essa pesquisadora nos relata
que as letras de samba, por esta época constituíram o principal, senão único “documento
verbal” que as classes populares do Rio de Janeiro produziram autônoma e espontaneamente,
representando a “voz” dos segmentos sociais habitualmente relegados ao silêncio “coisa de
preto e de pobre”, ou seja, de grupos “avessos às regras da civilização e do trabalho”. Nesta
época, para muitas das nossas autoridades, a ato de tocar violão consistia num verdadeiro
atestado de vadiagem. Samba e malandragem, portanto, tinham, nos anos 30, uma missão de
representação desse universo marginalizado, e ligações evidentes entre si e com um tipo de
vida desregrada e livre, expressa na exaltação ao ócio, à orgia e à vida boêmia. Tudo a ver
com Noel Rosa, de acentuada vocação para a boemia, e que daria com muito prazer a sua
significativa contribuição para a continuidade e solidificação de mais essa tradição:
Sambista que se prezasse não tinha nada a ver com o batente, e a imagem do
malandro batuqueiro era feliz: o operário otário dava duro no batente, mas o
terno branco acabava na mão do sambista. (...) A sabedoria e a malícia eram tidas
como as únicas armas para ganhar a vida em meio à miséria geral com a
vantagem de que o corpo ficava resguardado para os prazeres do samba e do
amor
233
.
O Malandro Noel
É bastante conhecida na historiografia da música popular brasileira, a polêmica
musical entre Wilson Batista e Noel Rosa, que algumas vezes foi interpretada como uma
divergência em relação à malandragem no samba popular. “Lenço no Pescoço”, de Wilson
Batista, gravado por Sílvio Caldas, nem fez muito sucesso, mas rebatida verso por verso no
samba de Noel, suscitaria as respostas e contra-respostas que levantaram a polêmica, esta sim
famosa. Wilson estaria defendendo a imagem do malandro, dito vadio ou que vive de
expedientes suspeitos; ao passo que Noel, fazendo uma crítica á malandragem estaria
232
MATOS, Cláudia . Acertei no Milhar: Malandragem e Samba no Tempo de Getúlio. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1982.
233
CALDEIRA, Jorge. Noel Rosa: De Costas para o Mar. São Paulo: Brasiliense, 1982. pp. 23 e 25.
143
defendendo o ponto de vista do trabalhador. Comparando essas composições parece mesmo, a
princípio, que faz sentido essa percepção:
Quadro comparativo 1: A malandragem em Wilson Batista e Noel Rosa:
Lenço no pescoço - Wilson Batista, 1933
Com meu chapéu de lado, tamanco arrastando
Lenço no pescoço, navalha no bolso
Eu passo gingando, provoco e desafio
Eu tenho orgulho em ser tão vadio
Sei que eles falam desse meu proceder
Eu vejo quem trabalha andar no miserê
Eu sou vadio porque tive inclinação
Eu me lembro era criança
Tirava samba-canção
Comigo não
Eu quero ver quem tem razão
E eles tocam. E você canta
E eu não dou. Ai!
Rapaz Folgado - Noel Rosa, 1933
Deixa de arrastar o teu tamanco
Pois tamanco nunca foi sandália
E tira do pescoço o lenço branco
Compra sapato e gravata
Joga fora esta navalha que te atrapalha
Com chapéu do lado deste rata
Da polícia quero que escapes
Fazendo um samba-canção
Já te dei papel e lápis
Arranja um amor e um violão
Malandro é palavra derrotista
Que só serve pra tirar
Todo o valor do sambista
Proponho ao povo civilizado
Não te chamar de malandro
E sim de rapaz folgado
Porém, ao lançarmos um olhar mais vasto sobre a produção musical de Noel,
percebemos o quanto de equívoco nesta interpretação literal da letra de Noel. Na visão
generalizada sobre a polêmica, como nos apresenta, por exemplo, Cláudio Aguiar Almeida
234
, Noel se coloca contra a imagem do rapaz folgado”, que depunha contra o sambista, ele
próprio associado ao malandro, refletindo assim a postura moralizadora propagandeada pelo
Estado. Noel estaria, portanto, defendendo a “classe”, ao tentar desassociá-la da
malandragem, que reforçava os preconceitos existentes, e até mesmo a postura
governamental. Contudo, não era exatamente a malandragem que estava em questão nesta
música, mas o “malandro Wilson Batista”, que tempos antes havia vencido Noel numa disputa
por uma morena da Lapa, segundo nos descreve a biografia de Noel escrita por João Máximo
e Carlos Didier
235
. Esse era, na verdade, o verdadeiro motivo da resposta condenatória de
Noel: apenas uma vingança pessoal. Se não, seria impossível explicar como um compositor
tão próximo aos encantos da malandragem, tenha se convertido no anti-malandro. Como
entender (repetindo a pergunta formulada por João Máximo e Carlos Didier) que aquele que
retratava a vida do malandro em tantos sambas, havia composto uma música contrária à
234
ALMEIDA, Cláudio Aguiar. Cultura e Sociedade no Brasil: 1940 – 1968. São Paulo: Atual, 1996. pp. 8 a 14
(“Malandros x Trabalhadores”).
235
MÁXIMO João & DIDIER Carlos. Noel Rosa - Uma biografia. Op. cit., 1990. p. 292.
144
malandragem, dentro de um cabaré da Lapa entre copos de cerveja e mulheres cansadas?
236
.
Noel não tinha nada contra a malandragem, muito pelo contrário, ainda que
pretendesse realmente desassociar as imagens do sambista e do malandro. Rapaz Folgado”
põe em questão amesmo uma “falta de malandragem” do alegado malandro Wilson Batista,
que ao tornar muito notória a sua condição de “malandro”, vestindo-se e andando de maneira
chamativa, acabaria atraindo sobre si os olhos da lei. Dentro dos códigos da verdadeira”
malandragem, a arte da dissimulação era essencial. Não fazia parte da malandragem
“aparecer” demais. Disso Noel sabia muito bem, como fica evidente em “Escola de
Malandro”, de 1932:
A escola do malandro
É fingir que sabe amar
Sem elas perceberem
Para não estrilar...
Fingindo é que se leva vantagem
Isso, sim, é que é malandragem
(Quá, quá, quá, quá...)
Oi, enquanto existir o samba
Não quero mais trabalhar
A comida vem do céu,
Jesus Cristo manda dar!
Tomo vinho, tomo leite,
Tomo a grana da mulher,
(...)
(Escola de Malandro, Noel Rosa, Orlando Luiz Machado e Ismael Silva, 1932)
João Máximo e Carlos Didier, na biografia de Noel, confirmam muitas vezes a
proximidade deste com o mundo da malandragem:
Todos esses códigos próprios de vida [da malandragem] somados ao fato de
que por trás da cara feia de muito malandro se escondem boas almas, amigos
leais, braços fortes dispostos a ajudar em hora de aperto é que fascinam Noel.
Terá muitos malandros entre os seus amigos mais chegados, fará o que puder por
eles e por eles será socorrido inúmeras vezes. A julgar por um punhado de
sambas que comporá sobre malandros e malandragem, mesmo não sendo
exatamente este o seu mundo, conhece-o bem, compreende-o
237
.
“Rapaz Folgado”, portanto, era apenas uma desforra pessoal, que Wilson não ia deixar
pra lá, dando prosseguimento a seqüência de sambas que de lado a lado não passavam de
provocações. Essa polêmica descambaria alguns anos (e sambas) depois para o lado
236
Cena descrita por João Máximo e Carlos Didier em Noel Rosa - Uma biografia. Op. cit., 1990. p. 292.
237
Noel Rosa - Uma biografia. Op. cit., 1990. p. 133.
145
puramente pejorativo, tendo o “Frankenstein da Vila” (1935) de Wilson, se constituído no
ponto mais diretamente agressivo, mas que geraria também sambas muito bons e conhecidos,
como “Conversa Fiada” (1934) de Wilson e “Palpite Infeliz” (1934) de Noel, que deixariam
de fora o tema inicial da malandragem.
Pretendemos construir uma imagem mais completa da malandragem retratada por
Noel Rosa, entendendo o compositor muito mais como seu defensor do que como o anti-
malandro que a disputa musical com Wilson Batista pode nos fazer acreditar. A posição de
Noel Rosa nunca foi ditada pelo espírito da exaltação ao trabalho, como vimos nos capítulos
anteriores, mantendo antes e sempre uma postura crítica em relação a ele, muito mais próxima
da "paródia" ao cotidiano, do que da "paráfrase" constante no samba-exaltação
238
. Ary
Barroso e Villa Lobos foram tomados por Afonso Romano de Sant’Anna como exemplos
máximos de compositores cujas obras corresponderam ao espírito da exaltação nacional, em
apoio à ideologia oficial, enquanto Noel, entre outros, navegaram em corrente contrária, na
contramão do “oficialmente correto e louvável”, agindo portanto, como um "verdadeiro
modernista". Afonso Romano percebeu que é fácil encontrar nas composições de Noel a
exaltação à malandragem. Vejamos essa letra que é, como Rapaz Folgado”, do mesmo ano
de 1933:
Nunca mais esta mulher
Me vê trabalhando !
Quem vive sambando
Leva a vida para o lado que quer
De fome não se morre
Neste Rio de Janeiro
Ser malandro é um capricho
De rapaz solteiro.
A mulher é um achado
Que nos perde e nos atrasa.
Não há malandro casado,
Pois malandro não se casa
Com a bossa que eu tiver,
Orgulhoso eu vou gritando :
Nunca mais essa mulher,
Nunca mais essa mulher
Me vê trabalhando !
Antes de descer ao fundo
238
É Afonso Romano de Sant’Anna, em seu livro Música Popular e Moderna poesia Brasileira (Petrópolis:
Vozes, 1978), no capítulo intitulado “As origens do samba, Noel Rosa e o Modernismo”, quem primeiro
ressaltou o caráter parodístico do compositor aliando-o ao movimento modernista: Noel Rosa está para o
Modernismo assim como Ari Barroso está para a poesia ufanista da ditadura de Vargas”. (p.197). Assunto
comentado no primeiro capítulo.
146
Perguntei ao escafandro
Se o mar é mais profundo
Que as idéias do malandro
Vou, enquanto eu puder,
Meu capricho sustentando.
Nunca mais essa mulher,
Nunca mais essa mulher
Me vê trabalhando !
(Capricho de Rapaz Solteiro, Noel Rosa, 1933)
está o malandro de Noel. Nesta letra, a vida parece ser mais fácil para quem souber
ser esperto; para quem conseguir permanecer livre, permanecer com o capricho de ser
malandro e não cair nas armadilhas da sociedade, como o trabalho e o casamento. Podemos
nos indagar, quando pensamos nas formas de receptividade que sambas deste tipo ganhavam,
quantos ouvintes espalhados pelo Rio de Janeiro e pelo Brasil, trabalhadores sofridos, não
invejariam esse malandro? Que mistérios e delícias essa vida livre poderia ensejar? Que
forças ocultas agiriam em relação à malandragem, a ponto de inferir-lhe tantos encantos?
Além da atratividade do ócio, das formosas mulheres e do samba, a malandragem dava certa
imunidade mágica às “armadilhas da vida”, sustentada não por sua inerente esperteza, mas
também por sua proximidade com certos universos religiosos como o do Candomblé e da
Umbanda, onde o malandro se assume como uma “entidade” de nome Zé Pilintra, de chapéu e
terno brancos. Noel ressalta a resistência mágica do malandro nestes outros versos, escritos
para o mesmo samba, mas não aproveitados na gravação:
Muito mais que a canoa
O malandro em terra joga.
A canoa afunda à-toa,
Ele vira e não se afoga.
(Capricho de Rapaz Solteiro, Noel Rosa, 1933 - estrofe o utilizada na
gravação)
É claro que Noel está do lado do malandro. E quem sabe não queria imitar-lhe também
a sua condição, de quem leva a vida sambando pro lado que quer”, sem se tornar
“trabalhador” e evitando o casamento, pois malandro não se casa”? Com apenas dezenove
anos, Noel já demonstrava essa admiração no samba “Vingança de Malandro” (1930):
É vivendo que se aprende
O malandro tudo entende
Eu espero a minha vez (...)
Ela hoje tem a nota
Pra comprar minha derrota
Seu amor vou aceitar
Pois assim eu vou tomar
Pouco a pouco o seu dinheiro
E depois vou me pirar!.
147
(Vingança de Malandro, Noel Rosa, 1930):
E temos que lembrar também, que Noel não foi amigo, mas chegou a presentear os
notórios malandros Kid Pepe, Zé Pretinho e Germano Augusto, com quatro de seus sambas:
O Orvalho Vem Caindo” (Noel Rosa e Kid Pepe, gravado por Almirante e Os
Diabos do Céu em 1933 pela Victor/ RCA Camdem).
Tenho Raiva de Quem Sabe” (Noel Rosa, Pretinho e Kid Pepe, gravado por
Mário Reis e Os Diabos do Céu em 1934, pela Victor/ RCA Camdem).
Se a Sorte Me Ajudar” (Noel Rosa e Germano Augusto Coelho, gravado por
Aurora Miranda, João Petra de Barros e Orquestra Odeon em 1934, pela Odeon).
Não Foi por Amor” (Noel Rosa, Zé Pretinho e Germano Augusto Coelho gravado
por Orlando Silva e Os Diabos do Céu em 1936 pela Victor/ RCA Camdem).
João Máximo e Carlos Didier relatam que Noel aceitou certos favores dos malandros
Germano Augusto Coelho e Kid Pepe (Giuseppe Gelsomino, ex-pugilista), ambos
compradores de samba. Este último, que foi parceiro de Noel em “O orvalho vem caindo”
chegou a fazer várias ameaças a Noel, perseguindo-o e exigindo-lhe parceria exclusiva
239
.
Noel se viu obrigado a fugir de Kid Pepe e a pedir auxílio a Pretinho para livrar-se do
malandro. Pretinho (Manuel do Espírito Santo) começou sua amizade com Noel em 1934,
a partir de encontros casuais em botequins da Praça Tiradentes e chegou a ajudá-lo em uma
mudança para um sobrado alugado, onde Noel passou a viver temporariamente depois que se
casou. Afirmam os biógrafos, que Noel contou com Pretinho para proteger-lhe também de
muitos outros malandros fortes que o compositor acabava provocando, instigado pela bebida.
À Pretinho entregará o samba “Tenho raiva de quem sabe”, composto também a partir do
refrão criado pelo amigo. À Germano Augusto (que foi motorista de Francisco Alves), Noel
dará o samba “Se a sorte me ajudar”, refeito por Noel a partir de um tema de Germano. E a
estes dois malandros, presenteará ainda com “Não foi por amor”. Em nenhuma dessas três
composições o nome de Noel aparecerá como autor. Contam os autores da biografia de Noel,
que este dissera a Germano e a Pretinho, que esta última composição era mesmo um
239
MAXIMO, J. & DIDIER, C. Op. Cit. p. 272 – 273. Estes autores declaram que neste samba “Noel entrou com
letra e música e Kid Pepe com os músculos” (p. 273).
148
presente e que não queria participação alguma em crédito em disco ou partitura, e nem
pagamento de direitos autorais. Contudo, quando o samba foi gravado por Mário Reis, o disco
atribuía a autoria a Pretinho e a Kid Pepe! Este último, responsável por apresentar a
música a Mário Reis, sentiu-se autorizado a excluir Germano e a incluir o seu nome, a revelia
de Zé Pretinho. Mas Noel, sem saber da tramóia de Kid Pepe, ficou zangado com Zé Pretinho,
a quem passou a culpar pela suposta traição. Evitando falar com Pretinho e destratando-o
na frente dos amigos, Noel acabou sendo agredido por este, que com um bofetão o fez voar
pelo estúdio da Rádio Cruzeiro do Sul, onde o poeta da Vila se apresentava, e a amizade
acabou
240
.
Apesar das divergências e até do medo de enfrentar os malandros, Noel chegou a
andar com outros dois malandros ainda mais violentos e até cruéis: Baiaco (Oswaldo
Vasquez) e Saturnino Gonçalves. Por tudo isso, João Máximo e Carlos Didier revelam
surpresa em relação à implicância de Noel com o samba “Lenço no pescoço” de Wilson
Batista. Tudo isto demonstra a interação tumultuada, mas também repleta de fascínio, de Noel
com o mundo da malandragem.
O samba Voltaste”, de Noel (1934), se encaixa bem nesta relação tumultuada, seja
como alusão à perseguição perpetrada por Kid Pepe, seja como nova resposta ao malandro de
“Lenço no Pescoço” de Wilson Batista. Mas não enxergamos indícios de que Noel
repudiasse o mundo da malandragem. Afinal todo malandro também tem os seus desafetos:
Voltaste novamente pro subúrbio
Vai haver muito distúrbio,
Vai fechar o botequim
Voltaste e o despeito te acompanha
E te guia na campanha
Que tu fazes contra mim.
(...)
Voltaste pra fabricar defunto,
Para fornecer assunto
Aos diários da manhã.
Voltaste novamente sem dinheiro,
Tapeando o açougueiro
Que não tem golpe de vista
(...)
Voltaste demonstrando claramente
Que o subúrbio é ambiente
De completa liberdade.
Voltaste, mas falhou o teu projeto,
240
MAXIMO, J. & DIDIER, C. Op. Cit. p. 292-295.
149
Não te dou o meu afeto,
Quando eu quero eu sou ruim.
Voltaste confessando sem vaidade
Que a tua liberdade é viver bem preso a mim.
(Voltaste (pro subúrbio), Noel Rosa, 1934)
Também parece claro, por outro lado, que apesar de admirar a malandragem, Noel
jamais seria um malandro de verdade. Afinal, o compositor da Vila jamais viveu de
subterfúgios, espertezas e golpes, nem de longe tinha o porte físico necessário para a
malandragem, e nem sequer havia conseguido evitar a armadilha do casamento, quando foi
obrigado a ele em 1934, com Lindaura, quando parecia estar apaixonado mesmo era por Ceci,
a “dama do cabaré”. Como confirmam João Máximo e Carlos Didier, sobre Noel:
Não é propriamente um malandro, desses que exploram as mulheres e acreditam
que pancada as amacia. Seus sambas pregando esse tipo de malandragem o
devem ser tomados ao pé da letra. São mais pose do que convicção, menos
vontade de agir do que de cantar como malandro
241
.
Noel, podemos assim aventar, na verdade se colocava na posição de observador de
dois mundos pelos quais de movia, como em “Esquina de Vida” (em parceria com Francisco
de Queiroz Mattoso, 1933): É na esquina da vida/ Que assisto à decida/ De quem subiu/ Faço
o confronto/ Entre o malandro pronto/ E o otário/ que nasceu pra milionário”.
Ainda assim, podemos afirmar que Noel é, sem dúvida, simpático a malandragem, a
ponto de lamentar as transformações que a modernidade estava a operar também nesse
mundo, como no samba “Não tem tradução” de 1933, no trecho aqui referido: Mais tarde
o malandro deixou de sambar/ dando pinote/ E só querendo dançar o fox-trot!”.
É importante ressaltar ainda que a música popular dedicaria através de muitos
compositores e durante um grande período da sua história um verdadeiro culto ao personagem
do malandro, que inspirado da vida real, tornava possível, ao menos no mundo da música, a
satisfação de alguns dos desejos reprimidos da população urbana. Façamos um parêntesis para
perceber esse fascínio neste samba de J. Cascata, de 1937, onde um “bom moço” abandona a
cidade para fazer parte da “turma da Mangueira”, “com suas pastoras formosas”:
(...)
Nossos olhares cruzaram
E eu, para te fazer a vontade
Tirei fora o colarinho
Passei a ser maladrinho
241
MAXIMO, J. & DIDIER, C. Op. Cit. p. 275.
150
Nunca mais fui à cidade
Pra gozar o teu carinho
Na tranquilidade
E hoje faço parte da turma
No braço eu trago sempre o paletó
Um lenço amarrado no pescoço
Eu já me sinto outro moço
Com meu chinelo charló
E até faço valentia
E tiro samba de harmonia
(Meu Romance, J. Cascata, composta em 1937 e gravada em 1938)
Também a maneira de cantar, trazida pelas composições que exaltavam a
malandragem, debochada, sem referências ao bell canto, reforçada por ousadias melódicas
dos instrumentos acompanhantes (em especial dos metais) e pelo constante contraponto
rítmico, definiu todo um “clima” para a música desta época, influenciando outros tipos de
composições distintas, como as marchinhas de Lamartine Babo e as interpretações de Mário
Reis. Na verdade, a música contestadora dos anos 1930, carregada de malandragem terá uma
ação prolongada e bem significativa, sobretudo a partir de seu resgate nos anos 1960, quando
vários artistas (e em especial Chico Buarque) vão recuperar esse repertório, naquela altura
um tanto esquecido, utilizando-o como paradigma para a nova postura questionadora que
surgia. É aí que a malandragem faz a sua reaparição, carregada no glamour saudosista.
O malandro Chico
As composições de Chico Buarque que fazem referências á malandragem podem ser
divididas em três fases distintas, que correspondem á releituras atualizadas sobre o tema:
Quadro histórico das composições que se referem à malandragem em Chico Buarque.
1ª fase (1965 – 1972)
O malandro tradicional
Juca
Fica
Malandro quando morre
Meu refrão
Logo eu?
Samba e Amor
Mambembe
Partido Alto
2ª fase (1977 – 1979)
A nova malandragem ou
a morte do velho malandro
Vai trabalhar vagabundo
Homenagem ao Malandro
O Malandro
O Malandro nº. 2
Hino de Duran
3ª fase (1985)
O retorno nostálgico da malandragem
A volta do malandro
Hino da Repressão
Desafio do malandro
151
Na primeira fase, Chico Buarque resgata o velho malandro cantado por Noel. Numa
comparação detalhada entre as composições desta fase com as composições de Noel que
falam da malandragem, é possível perceber muitas semelhanças e continuidades:
Quadro comparativo 2: A malandragem em Noel Rosa e Chico Buarque
O Malandro de Noel
Eu devo, não quero negar,
Mas te pagarei quando puder,
Se o jogo permitir,
Se a polícia consentir
E se Deus quiser...
(...)
Tu podes guardar o que eu te digo
Contando com a gratidão
E com o braço habilidoso
De um malandro que é medroso,
Mas que tem bom coração.
(Malandro Medroso, Noel, 1930)
O malandro de Chico
Diz que eu sou um subversivo
Um elemento ativo (...)
Diga que o meu samba é fraco
E que eu não largo o taco
Nem pra conversar com você
(...)
Diz que eu ganho até folgado
Mas perco no dado
E não lhe dou vintém
Diz que é pra tomar cuidado
Sou um desajustado
E o que bem lhe agrada, meu bem.
(Fica, Chico, 1965)
E às pessoas que eu detesto
Diga sempre que eu não presto
Que o meu lar é o botequim. (Último Desejo, Noel, 1936)
Diga ao primeiro que passa
Que eu sou da cachaça
Mais do que do amor. (Fica, Chico, 1965)
Quando eu me formei no samba
Recebi uma medalha
Eu vou pra Vila
Pro samba do chapéu de palha
A polícia em toda a zona
Proibiu a batucada
Eu vou pra Vila
Onde a polícia é camarada.
(Eu vou pra Vila, Noel, 1930)
Juca ficou desapontado
Declarou ao delegado
Não saber se amor é crime
Ou se samba é pecado
Em legítima defesa
Batucou assim na mesa
O delegado é bamba
Na delegacia
Mas nunca fez samba
Nunca viu Maria. (Juca, Chico, 1965)
Vivo contente embora esteja na miséria
Que se dane! Que se dane!
Com esta crise eu levo a vida na pilhéria
Que se dane! Que se dane!
Não amola! Não amola!
Não deixo o samba
Porque o samba me consola
(...)
Fui processado por andar na vadiagem
Que se dane! Que se dane!
Mas me soltaram pelo meio da viagem
Que se dane! Que se dane!
(Que se Dane, Noel Rosa e Jota Machado , 1931)
O meu destino
Foi traçado no baralho
Não fui feito pra trabalho
Eu nasci pra batucar
(Felicidade, Noel Rosa / René Bittencourt , 1931)
Este mulato forte é do Salgueiro
Passear no tintureiro* era o seu esporte
Eu nasci sem sorte
Moro num barraco
Mas meu santo é forte
E o samba é meu fraco
(Meu Refrão, Chico, 1965)
Deus me deu mão de veludo pra fazer carícia
Deus me deu muitas saudades e muita preguiça
Deus me deu pernas compridas e muita malícia
Pra correr atrás de bola e fugir da polícia
Um dia ainda sou notícia
(...)
Deus é um cara gozador, adora brincadeira
Pois pra me jogar no mundo, tinha o mundo
Inteiro
Mas achou muito engraçado me botar cabreiro
Na barriga da miséria, eu nasci batuqueiro
Eu sou do Rio de Janeiro
(Partido Alto, Chico, 1972)
Inda garoto, deixei de ir à escola
152
Já nasceu com sorte
E desde pirralho
Vive à custa do baralho
Nunca viu trabalho (Mulato Bamba, Noel, 1931)
(*tintureiro: na gíria da época, o carro da polícia,
camburão)
Cassaram meu boletim
Não sou ladrão, eu não sou bom de bola
Nem posso ouvir clarim
Um bom futuro é o que jamais me esperou
Mas vou até o fim
(Até o fim, Chico Buarque, 1978)
Eu nascendo pobre e feio
Ia ser triste o meu fim,
Mas crescendo a bossa veio,
Deus teve pena de mim
(Riso de Criança, Noel, 1934)
Deus me fez um cara fraco, desdentado e feio
Pele e osso simplesmente, quase sem recheio
Mas se alguém me desafia e bota a mão no meio
Dou pernada a três por quatro e nem me
Despenteio
Que eu já tô de saco cheio !
(Partido Alto, Chico, 1972)
Sou do sereno,
Poeta muito soturno
Vou virar guarda noturno
E você sabe por q
(Três Apitos, Noel Rosa, 1933)
Não sei se preguiçoso ou se covarde
Debaixo do meu cobertor de lã
Eu faço samba e amor até mais tarde
E tenho muito sono de manhã
(Samba e Amor, Chico, 1969)
Você grita que eu não trabalho,
Diz que eu sou um vagabundo.
Não faça assim, meu bem !
Pois eu vivo ativo neste mundo
A espera do trabalho
E o trabalho não vem.
Quando eu me sinto bem forte
Vou procurar um baralho,
Mas fico fraco e sem sorte
(Cadê trabalho?, Noel e Canuto, 1931, samba jamais
gravado)
Essa morena de mansinho me conquista
Vai roubando gota a gota
Esse meu sangue de sambista
(...)
A minha amada
Diz que é pra eu deixar de férias
Pra largar a batucada
E pra pensar em coisas sérias
E qualquer dia
Ela ainda vem pedir, aposto
Pra eu deixar a companhia
Dos amigos que mais gosto
(Logo Eu?, Chico, 1967)
Acordei com pesadelo,
Quase que o chão escangalho
Com dores no cotovelo
Por sonhar com o trabalho!
Trabalho é o meu inimigo,
Já quis me fazer de tolo:
Marcando encontro comigo,
O trabalho deu o bolo.
(Cadê trabalho?, Noel e Canuto, 1931, samba jamais
gravado)
O refrão que eu faço
É pra você saber
Que eu não vou dar braço
Pra ninguém torcer
Deixa de feitiço
Que eu não mudo não
Pois eu sou sem compromisso
Sem relógio e sem patrão
(Meu Refrão, Chico, 1965)
(...) Entretanto ali bem perto
Morria de um tiro certo
Um valente muito sério
Professor dos desacatos
Que ensinava aos pacatos
O rumo do cemitério
(...)
No século do progresso
O revolver teve ingresso
Pra acabar com a valentia.
(Século do Progresso, Noel, 1934)
Cai no chão
Um corpo maltrapilho
Velho chorando
Malandro do morro era seu filho
(...)
Menino quando morre vira anjo
Mulher vira uma flor no céu
Pinhos chorando
Malandro quando morre
Vira samba.
(Malandro quando morre, Chico, 1965)
A tradição em torno da ideologia da malandragem, retratada por Noel, está toda
resgatada nos sambas do Chico “puro Noel” como diziam os críticos. Está um dos
153
motivos para as principais comparações entre as obras de Noel e do Chico, sobretudo nesta
sua primeira fase produtiva sobre o tema. Em ambos, o malandro é o mesmo: devedor, viciado
em jogo (baralho, dados e bilhar) e na bebida (“eu sou da cachaça”, “meu lar é o botequim”),
pobre e feio, perseguido pela polícia, a quem ludibria com a esperteza, ainda que nem sempre
consiga evitar os “passeios no tintureiro (carro de polícia para transporte de presos, o
camburão da época de Noel
242
) e nem os eventuais depoimentos ao delegado.
Vemos nessa comparação que os compositores recriaram o mesmo malandro: que não
a mínima para as responsabilidades da vida conjugal (“Não amola! Não deixo o samba,
porque o samba me consola”, deixa de feitiço, que eu não mudo não”); que é desbocado
(“Que se dane!”, “Que eu já estou de saco cheio!”); que vira as noites na orgia, dormindo pela
manhã; que nasceu batuqueiro, briguento e sem futuro (“desde piralho, vive a custa do
baralho”, um bom futuro é o que jamais me esperou”); desajustado assumido, mas de bom
coração e amado pelas mulheres; sujeito que o pode nem sonhar com o trabalho
(“Trabalho é meu inimigo”, Pois eu sou sem compromisso, sem relógio e sem patrão”); que
é sambista fiel, e que provavelmente irá morrer de maneira trágica, covardemente assassinado.
Mas, é preciso lembrar que, assim como Noel, Chico também nunca foi um malandro
de verdade, e como ele, apenas utilizou o universo da malandragem como veículo adequado
para expressar o desejo pela liberdade - a “liberdade a brasileira”, com os diversos sentidos
aqui apresentados. Entre eles, o combate a ideologia do trabalho, que na visão dos autores
escraviza e disciplina de forma destrutiva a personalidade do trabalhador brasileiro.
Contudo, Chico Buarque de Hollanda iria aos poucos diminuindo suas referências ao
malandro tradicional até que em 1972 comporia o último samba (“Partido alto”) desta sua
primeira fase de homenagens à essa figura tão emblemática da canção popular
243
. Fase em
que ainda procurava um retrato mais ou menos fiel do malandro tradicional. Porém, depois
deste samba, Chico Buarque percebeu que não cabia mais na realidade nacional o mesmo tipo
de referência ou exaltação à malandragem tradicional, que já corria o risco de se tornar
242
Noel Rosa - Uma biografia. Op. cit., 1990. pp. 220 e 226 – nota de rodapé nº 4.
243
Nos exemplos citados, todas as canções de Chico Buarque se situam neste período (1965 1972), com
exceção de um trecho da música Até o fim, de 1978, citada apenas para corroborar as muitas semelhanças entre
a “velha” malandragem cantada por Noel e a malandragem de Chico nesta sua primeira leva de produções
dedicada ao tema. O trecho em questão foi apresentado porque se encaixa perfeitamente dentro do espírito
destas canções, apesar de pertencer a uma fase de reavaliação do personagem do malandro. As composições
relativas às próximas fases contêm diferenças marcantes com a malandragem tradicional e serão analisadas a
seguir.
154
repetitiva e quase ingênua ou fora da realidade, pela total ausência do contexto original que
havia inspirado tantos sambistas e pela total inaplicabilidade da sua ideologia ao contexto
formalizado no Brasil. Após o seu exílio voluntário na Itália e o endurecimento cada vez
maior do Regime Militar (depois do Ato Institucional 5, de 1968), a censura e as
perseguições políticas levaram Chico Buarque a adotar um discurso mais contundente e
ligado às questões sociais e políticas mais atuais e urgentes. A malandragem, com todo o seu
glamour libertário, se viu repentinamente relegada ao passado. em “Partido Alto”, de 1972,
podemos notar um grau de rebeldia e agressividade bem maior do que nos sambas anteriores,
resultado do aumento do clima opressivo: Deus é um cara gozador/ adora bricadeira (...)/
Na barriga da miséria / eu nasci batuqueiro”; “Que eu de saco cheio”. O Brasil, a
semelhança do que ocorrera com o estabelecimento do Estado Novo (1937-45), vivia um
novo período de ditadura plena, com o cerceamento das liberdades e dos direitos humanos. E
da mesma forma, a malandragem que teve de desaparecer dos sambas na ditadura de Getúlio,
também agora iria recolher-se prudentemente ao lugar mítico dos antigos sambas, onde foi
provavelmente mais ativa do que na vida cotidiana real do Rio de Janeiro.
Veremos surgir neste início da década de 1970, a fase mais marcadamente política das
obras de Chico, que usará seu talento para combater a opressão da ditadura e lutar pela
liberdade de expressão, como já comentamos. O velho malandro, cada vez menos admirado,
passava a ser taxado apenas como um vagabundo e Chico Buarque irá lamentar essa
transformação no samba “Vai trabalhar vagabundo”, de 1975. É interessante lembrar que Noel
Rosa também havia composto um samba onde comenta a decadência da malandragem em
meio às tentativas de transformação do malandro num trabalhador, a exemplo do samba
comentado, Rapaz Folgado”, onde alertava: Malandro é palavra derrotista/ Que serve
pra tirar/ Todo o valor do sambista”. Trata-se de “Se a sorte me ajudar” (com Germano
Augusto, 1934), também já comentado. Vamos comparar esse samba de Noel com alguns
trechos da composição de Chico Buarque:
Quadro comparativo 3: O fim da malandragem em Noel Rosa e em Chico Buarque
Se a Sorte Me Ajudar, Noel Rosa, Germano Augusto
Coelho, 1934.
Se a sorte me ajudar
Eu vou te abandonar
Vou mudar de profissão
Porque a palavra malandragem
Só nos trouxe desvantagem
Vai trabalhar vagabundo - Chico Buarque, 1975.
Vai trabalhar, vagabundo
Vai trabalhar criatura
Deus permite a todo mundo
Uma loucura
(...)
Prepara o teu documento
155
E você não vai dizer que não
Quem faz seus versos
E no morro faz visagem
Leva sempre desvantagem
Dorme sempre no distrito
Entretanto quem é rico
E faz samba na avenida
Quando abusa da bebida
Todo mundo acha bonito
Antigamente, o folgado era cotado
E era bem considerado
Ia ao baile de casaca
Hoje em dia por despeito
Ele é sempre perseguido
E é mal compreendido
Pela própria parte fraca
Carimba o teu coração
Não perde nem um momento
Perde a razão
Pode esquecer a mulata
Pode esquecer o bilhar
Pode apertar a gravata
Vai te enforcar
Vai te entregar
Vai te estragar
Vai trabalhar
(...) Vai terminar moribundo
Com um pouco de paciência
No fim da fila do fundo
Da previdência
(...) A criançada chorando
Tua mulher vai suar
Pra botar outro malandro
No teu lugar
Noel, neste seu samba em parceria com o malandro Germano Augusto, es
lamentando a imposição crescente para o fim da malandragem. A decadência do mito do
malandro, incompreendido, malvisto a mesmo pela “parte fraca”, isto é, pela população
pobre que agora o rejeita, parecia inevitável naquele distante 1934. O malandro, que
começava a ser vítima da ideologia do trabalho de Vargas, podia continuar a fazer os seus
versos, mas não devia mais fazer tanta “visagem” - gíria carioca para seus gestos exagerados
feitos com o intuito de impressionar. Como o próprio Noel havia acentuado no seu samba
“Rapaz Folgado”, criado no ano anterior a este, era preciso manter a discrição, ludibriando
toda a gente e usando uma de suas principais armas, o fingimento, para não ser mais
perseguido. Noel continua a defender a malandragem, mas alerta ao velho malandro, aquele
da rasteira e da habilidade, com a ginga de corpo e terno branco, que seu tempo de visagem e
pequenos golpes estavam com os dias contados. Sensação que Noel confirma no trecho
também já apresentado do seu samba “Século do Progresso”, composto neste mesmo ano de
1934: no século do progresso/ o revolver teve ingresso/ pra acabar com a valentia”. Noel
também havia deixado claro, em “Se a sorte me ajudar”, que na sociedade da hipocrisia, o
mau comportamento era julgado de acordo com as posses do infrator: Entretanto quem é
rico/ E faz samba na avenida/ Quando abusa da bebida / Todo mundo acha bonito”.
Chico Buarque, presenciando um clima ainda mais repressivo, em “Vai trabalhar
vagabundo”, não apontava nenhuma saída para a velha malandragem: “Pode esquecer a
mulata/ Pode esquecer o bilhar/ Pode apertar a gravata/ Vai te enforcar”. Aqui, o trabalho é
a forma de suicídio da malandragem. O pessimismo impera nessa composição, feita em ritmo
e melodia, contraditoriamente alegres, o que reforça a própria contradição do autor, que, no
156
fundo, gostaria de continuar a defender a malandragem. Essa letra, que se utiliza da
contundência que o momento político exigia para condenar o malandro a perder a razão, a
tirar os documentos, e a aprender a paciência para terminar moribundo na fila do Instituto de
Previdência Social, faz despertar, por outro lado, o malandro calado que existe dentro de todo
o trabalhador. Relacionando o seu esforço diário á total falta de perspectiva em um futuro
melhor numa repetição do conselho às avessas, da música “Bom Conselho, de 1972: está
provado, quem espera nunca alcança - o trabalhador resignado se imediatamente
questionado pela música, pois quem vai trabalhar também vai se enforcar, se entregar, se
estragar”. A defesa da malandragem nesta canção, da mesma forma que na música de Noel,
continua ainda de pé, apesar de toda a adversidade dos momentos históricos respectivos.
Ao voltar ao tema, na virada de 1977 para 78, com ”Homenagem ao Malandro”
parte integrante da “Ópera do Malandro”, Chico o poderia deixar de constatar que aquela
velha malandragem realmente não existia mais. Ou melhor, que ela agora não vivia mais nos
morros onde tinha nascido e nem nos cabarés da Lapa que a haviam consagrado. O Malandro
estava mudado. Agora, nos escritórios, ocupando cargos públicos e as colunas sociais, com
um novo aparato de malandro oficial”, com contrato, com gravata e capital”, tinha uma
nova conjuntura, onde ele nunca se mal”. A nova malandragem, oposta diametralmente à
antiga, aposentou a briga e a navalha (do malandro de “Lenço no pescoço”), e já não se coloca
mais contra o casamento e nem contra o trabalho! Ainda que, quanto a este, não se pode dizer
que haja exatamente adesão. Da malandragem original se manteria a exploração sobre “os
otários” e a esperteza de enganar os “honestos”, usando para isso, espertamente, a própria
estrutura do Estado, que permite a transformação deste malandro em político”. Este seria o
malandro “profissional”, que com o respaldo oficial, comete delitos bem maiores do que os do
malandro original, mas que tem a anuência do poder e até mesmo da sociedade. A nova
malandragem não era mais para ser exaltada, e sim denunciada:
Eu fui fazer um samba em homenagem
À nata da malandragem
Que conheço de outros carnavais
Eu fui à Lapa e perdi a viagem
Que aquela tal malandragem
Não existe mais
Agora já não é normal
O que dá de malandro regular, profissional
Malandro com aparato de malandro oficial
Malandro candidato a malandro federal
Malandro com retrato na coluna social
Malandro com contrato, com gravata e capital
157
Que nunca se dá mal
Mas o malandro pra valer
Não espalha
Aposentou a navalha
Tem mulher e filho e tralha e tal
Dizem as más línguas que ele até trabalha
Mora lá longe e chacoalha
Num trem da Central
(Homenagem ao malandro, Chico Buarque, 1977-1978)
Na última estrofe, o compositor não se esquece, no entanto, do velho malandro (o
malandro pra valer”), porém lamenta: ele agora já não se espalha”, casou-se e para
sustentar a família precisa chacoalhar num trem da central. Foi exatamente esta imagem a
do malandro carioca dentro deste trem a escolhida para figurar na capa e no encarte do
álbum duplo com as canções da Ópera do Malandro, como num retrato derradeiro do que
havia sobrado da velha malandragem
244
. O que essa música nos comunica é que o conceito de
malandragem havia se ampliado definitivamente, diferenciando dois tipos de malandros. O
bon vivant de Noel havia perdido o seu espaço, não freqüentava mais o botequim ou os
cabarés. Ele rendeu-se ao trabalho e dos velhos tempos mantinha somente o terno branco e
um certo ar de distinção. o ambiente para o novo malandro é palaciano e oficial, com
acordos por debaixo dos panos e troca de favores. O bom humor de Noel que cristalizou o
comportamento do malandro na tática do jeitinho e do “bom coração”, cede espaço agora para
um outro humor, bem mais sarcástico, como percebemos também em “Partido Alto”, de
Chico.
A mesma percepção, ou constatação de transformação do malandro, está registrada em
composições de outros dignos herdeiros de Noel, como João Bosco e Aldir Blanc, como
vemos na canção intitulada “Bandalhismo”, de 1980:
Meu coração tem botequins imundos
Antros de ronda, vinte-e-um, purrinha
Onde trêmulas mãos de vagabundos
Batucam samba-enredo na caixinha
Perdigoto, cascata, tosse, escarro
Um choro soluçante que não pára
Piada suja, bofetão na cara
E essa vontade de soltar um barro...
Como os pobres otários da Central
Já vomitei sem lenço e sonrisal
O P.F. de rabada com agrião...
Mais amarelo que arroz de forno
244
Esta produção gráfica tem a assinatura prestigiosa de Elifas Andreato e fotos de Alexandre Sardá.
158
Voltei pro lar, e em plena dor-de-corno
Quebrei o vídeo da televisão.
(Bandalhismo, João Bosco, Aldir Blanc, 1980)
Neste cenário lamentável mora a certeza de que mudaram mesmo os tempos. No
botequim de Aldir Blanc e João Bosco não é mais possível perturbar o garçom ou os
freqüentadores com uma brincadeira, e muito menos pendurar a conta num cabide ali em
frente (como em “Conversa de Botequim”, Noel Rosa e Vadico, 1935). Aquele bom humor
das músicas de Noel foi substituído nesta letra, por um sentimento de opressão e revolta
contida, descontada no vídeo da televisão, que hipocritamente insiste em mostrar uma outra
realidade. A necessidade de uma linguagem agressiva transformou o botequim num lugar de
miséria moral e material, onde não existem mais os malandros, mas somente os “vagabundos”
que, com mãos trêmulas (sinal inequívoco da decadência física), insistem em batucar um
samba-enredo. O eu-lírico, freqüentador dos botecos, não tem nada de esperteza e ginga e
se como mais um entre os pobres otários da Central”. É quase a mesma imagem da
música de Chico Buarque, com uma dose extra de degradação e de revolta. Mas em Chico,
restava ainda algum lamento sincero pela perda de “antigos preceitos morais”, a referência ao
universo da malandragem como sinônimo de brasilidade, e a exaltação de um passado mais
romântico.
A malandragem estava então totalmente ultrapassada? Era o fim desta importante
tradição da música popular brasileira? Chico Buarque não iria se conformar com essa perda
total.
Para resgatar de fato alguma coisa da antiga malandragem foi preciso que Chico
Buarque também recriasse o ambiente original (e o seu glamour) escrevendo e compondo um
dos mais belos musicais da dramaturgia brasileira. Convenientemente, Chico teria o cuidado,
de localizar a sua história sobre a malandragem dentro do seu primeiro período de real
decadência, no início dos anos 1940, ou seja, no auge da repressão do Estado Novo, mantendo
assim o seu paralelo com o momento também de decadência em que estava sendo escrita a
sua peça. A famosa “Ópera do Malandro” (1978), aqui comentada, foi baseada, como
explica o autor no prefácio da peça, na “Ópera dos Mendigos” (1728), de John Gay, e na
“Ópera dos Três Vinténs” (1928) de Bertolt Brecht e Kurt Weill, e teve a direção de Luiz
Antônio Martinez Correa. A peça resgatava o bom malandro, ao mesmo tempo em que
denunciava a extensão da malandragem para outras esferas, onde a sua atuação era bem mais
159
pernóstica. A história se desenvolve em torno das relações entre os dois tipos de malandros,
que acabamos de apresentar, e que se tornam inimigos: Max Overseas, o “bom malandro”,
contrabandista (criminalidade que não afeta diretamente o povo, mas “apenas” os
comerciantes e o Estado) e que percebe que suas atividades estão em declínio; e o
comerciante Fernandes de Duran, o “mau malandro”, que juntamente com sua mulher, Vitória
Régia, “exploram uma cadeia de bordéis na Lapa, empregando centenas de mulheres”
245
.
também o policial corrupto, o inspetor Chaves, que com a sua própria malandragem, controla
a moral e os bons costumes da cidade, mas aceita os presentes e subornos de Duran. O clima
de miséria moral e corrupção se assemelham aos tempos em que a peça foi escrita, mas se
resgata o bom humor, o código de honra da antiga malandragem e o seu olhar condescendente
para com os perseguidos ou oprimidos, como os miseráveis, os artistas, bandidos, travestis e
prostitutas.
Das dezesseis canções especialmente compostas para a peça (às quais se soma um
pout-pouri com paródias de trechos de árias de óperas famosas), quatro se referem
diretamente á malandragem (“O Malandro”, “Hino de Duran”, “Homenagem ao Malandro”, e
“O Malandro nº. 2”), e duas atacam a ideologia burguesa do trabalho (“O casamento dos
pequenos burgueses” e “Se eu fosse o teu patrão”). Na primeira destas canções, se apresenta o
malandro tradicional e, em seguida, o modo como a malandragem havia se espalhado em
vários meios sociais até se tornar a prática de banqueiros e até de investidores estrangeiros,
para depois, invertendo o processo, demonstrar que o único que paga pelos delitos é o
malandro original, considerado culpado, mas na verdade, vítima de todas as armações:
O malandro/ Na dureza
Senta à mesa/ Do café
Bebe um gole/ De cachaça
Acha graça/ E dá no pé
O garçom/ No prejuízo
Sem sorriso/ Sem freguês
De passagem/ Pela caixa
Dá uma baixa/ No português
O galego/ Acha estranho
Que o seu ganho/ Tá um horror
Pega o lápis/ Soma os canos
Passa os danos/ Pro distribuidor
Mas o frete/ Vê que ao todo
Há engodo/ Nos papéis
E pra cima/ Do alambique
245
Encarte do álbum duplo: Ópera do Malandro, 1978, Polygram, produzido porr Sérgio de Carvalho.
160
Dá um trambique/ De cem mil réis
O usineiro/ Nessa luta
Grita (ponte que partiu)
Não é idiota/ Trunca a nota
Lesa o Banco do Brasil
Nosso banco/ Tá cotado
'Tá cotado
No mercado/ Exterior
Então taxa/ A cachaça
A um preço/Assutador
Mas os ianques/ Com seus tanques
Têm bem mais o/ Que fazer
E proíbem/ Os soldados
Aliados/ De beber
A cachaça/ Tá parada
Rejeitada/ No barril
O alambique/ Tem chilique
Contra o Banco do Brasil
O usineiro/ Faz barulho
Com orgulho/ De produtor
Mas a sua/ Raiva cega
Descarrega/ No carregador
Este chega/ Pro galego
Nega arreglo/ Cobra mais
A cachaça/ Tá de graça
Mas o frete/ Como é que faz?
O galego/ Tá apertado
Pro seu lado/ Não tá bom
Então deixa/ Congelada
A mesada/ Do garçom
O garçom vê/ Um malandro
Sai gritando/ Pega ladrão
E o malandro/ Autuado
É julgado e condenado culpado
Pela situação.
(O malandro - Kurt Weill, Bertolt Brecht - versão livre de Chico Buarque ,
1977 / 78)
Não se trata mais de exaltar a antiga malandragem, mas de denunciar a injustiça e a
perseguição aos mais fracos, bem como os interesses escusos que, ao percorrer todo o
espectro social, demonstrava em cada nível, um conceito e uma prática própria de
malandragem. O arranjo musical acrescenta a cada estrofe um grupo instrumental distinto e o
toque da caixa de fósforos vai aos poucos se transformando num acompanhamento orquestral,
o que reforça a idéia de que é o pequeno gesto do malandro no início (sair do bar sem pagar a
conta) que desencadeia todo o processo de malandragens cada vez maiores. Na última canção
da peça, “O Malandro 2”, a melodia é a mesma (de Kurt Weill), mas o arranjo realiza o
movimento contrário: começa com o tutti da orquestra e termina com a voz acompanhada pela
161
caixinha de fósforo. Esse esvaziamento acaba reforçando também a sensação de solidão e
abandono do velho malandro, que é mostrado morto na sarjeta do país”, na sua forma
tradicional de morrer, assassinado: é um presunto”, foi encontrado mais furado/ que
Jesus”). A descrição de detalhes do seu corpo torturado também chama a atenção para essa
prática, bastante comum no Regime Militar, e torna mais contrastante a reação da sociedade
que assiste impassível à injustiça: “E quem passa/ Acha graça/ na desgraça/ do infeliz”.
O malandro/ Tá na greta
Na sarjeta/ Do país
E quem passa/ Acha graça
Na desgraça/ Do infeliz
O malandro/ Tá de coma
Hematoma/ No nariz
E rasgando/ Sua bunda
Um funda/ Cicatriz
O seu rosto/ Tem mais mosca
Que a birosca/ Do Mané
O malandro/ É um presunto
De pé junto/ E com chulé
O coitado/ Foi encontrado
Mais furado/ Que Jesus
E do estranho/ Abdômen
Desse homem/ Jorra pus
O seu peito/ Putrefeito
Tá com jeito/ De pirão
O seu sangue/ Forma lagos
E os seus bagos/ Estão no chão
O cadáver/ Do indigente
É evidente/ Que morreu
E no entanto/ Ele se move
Como prova/ O Galileu /
(O malandro nº. 2, Kurt Weill, Bertolt Brecht - versão livre de Chico
Buarque ,1977/ 78)
É interessante notar que na última estrofe, Chico Buarque faz questão de nos dizer que
mesmo morto, o malandro, transformado em indigente, continuava a “burlar as leis”, e ao
invés de permanecer imóvel, como desejavam as autoridades, ele ainda se movia, seguindo
uma lei maior, da natureza”, e que havia sido formulada por Galileu. Seria a mensagem de
que a antiga malandragem iria continuar atuando e surpreendendo, mesmo depois de
decretada oficialmente a sua morte? Um outro ponto notório é que, coincidência ou não,
Galileu Galileié o título de uma outra peça de Bertold Brecht, bastante encenada no Brasil
nos anos 1970, e que representava uma forte propaganda contra a repressão e a censura de
idéias e expressões.
162
Na Ópera do Malandro, para cumprir a tarefa de penalizar apenas o lado mais fraco, a
polícia deveria ser necessariamente corrupta e implacável nos seus métodos de crueldade,
como registra o Hino de Duran:
Se tu falas muitas palavras sutis
E gostas de senhas, sussurros, ardis
A lei tem ouvidos pra te delatar
Nas pedras do teu próprio lar
Se trazes no bolso a contravenção
Muambas, baganas e nem um tostão
A lei te vigia, bandido infeliz
Com seus olhos de raio-x
Se vives nas sombras, frequentas porões
Se tramas assaltos ou revoluções
A lei te procura amanhã de manhã
Com seu faro de dobermann
E se definitivamente a sociedade só te tem
Desprezo e horror
E mesmo nas galeras és nocivo
És um estorvo, és um tumor
A lei fecha o livro, te pregam na cruz
E depois chamam os urubus
Se pensas que burlas as normas penais
Insuflas, agitas e gritas demais
A lei logo vai te abraçar, infrator
Com seus braços de estivador
Se pensas que pensas (...)
(Hino de Duran (Hino da Repressão) , Chico Buarque, 1979)
246
.
Este “hino da repressão” leva o nome do “mau” malandro Duran, que conta com a
força policial para garantir seus rendimentos, e é uma clara denúncia dos métodos usados pela
pratica repressiva do regime militar, com suas tecnologias de utilização de raios X e escutas
instaladas para as delações nas pedras do seu próprio lar”. A canção também nos fala das
perseguições aos quetramam assaltos e revoluções”, e também aos contraventores, viciados,
traficantes (muambas, baganas), aos miseráveis (e nem um tostão) e principalmente aos
subversivos, que através de senhas e palavras sutis”, insuflam, agitam e gritam demais”.
Sem perder o elo com o início dos anos 1940, também marcados pela censura e pela
repressão, a música fazia uma obvia referência à arbitrariedade das prisões que então se
realizavam, inclusive com o próprio compositor que teve de ir algumas vezes à delegacia para
responder pela “sutileza” de suas mensagens musicais. A malandragem representou um pólo
163
ou uma postura de oposição à repressão em ambos os momentos históricos. Daí a
conveniência desta homenagem ao malandro, nos anos 1970.
Oito anos depois de escrever a “Ópera do Malandro”, Chico Buarque retomaria a
história e o tema para a realização de um filme homônimo, dirigido por Ruy Guerra (1985).
Para tanto, ele compõe uma série de novas canções, das quais duas resgatariam saudosamente
o malandro tradicional: “A volta do malandro” e “Desafio do malandro”. Estas composições
representam a última fase de dedicação do artista ao tema da malandragem e não poderia
deixar de conter o inevitável saudosismo. Na primeira canção, usada na abertura do filme, o
malandro volta desconfiado, pisando na ponta dos pés e andando de viés”, para concluir que
o malandro é o barão da ralé”:
Eis o malandro na praça outra vez
Caminhando na ponta dos pés
Como quem pisa nos corações
Que rolaram nos cabarés
Entre deusas e bofetões
Entre dados e coronéis
Entre parangolés e patrões
O malandro anda assim de viés
Deixa balançar a maré
E a poeira assentar no chão
Deixa a praça virar um salão
Que o malandro é o barão da ralé
(A volta do Malandro, Chico Buarque, 1985)
A segunda canção foi composta em forma de diálogo, onde dois malandros se
enfrentam numa disputa situação também caracterizada por Noel Rosa, na música É preciso
discutir, composta em 1931. Cabe aqui mais um paralelo entre estas duas composições:
Quadro comparativo 4: A disputa dos malandros em Noel Rosa e em Chico Buarque
É preciso discutir, Noel Rosa, 1931
- Na introdução deste samba,
Quero avisar por um modo qualquer
Que esta briga é por causa de uma mulher.
- E eu aviso também
Que neste samba agora me meto
Para cantar com Francisco Alves em dueto.
(Refrão) - É preciso discutir...
- Mas não quero discussão...
- Da discussão sai a razão...
Desafio do Malandro, Chico Buarque, 1985
- Você tá pensando que é da alta sociedade
Ou vai montar exposição de souvenir de gringo
Ou foi fazer a fé no bingo em chá de caridade
Eu não sei não, eu não sei não...
Só sei que você vem com five o'clock, very well, my
friend
A curriola leva um choque, nego não entende
E deita e rola e sai comentando
Que grande malandro é você!
- Você tá fazendo piada ou vai querer que eu chore
246
“Hino de Duran” só foi incluído na Ópera do Malandro, quando da sua versão para a temporada paulista de
1979, quando já se faziam sentir os “novos ares” da abertura política.
164
- Mas às vezes sai pancada...
- A questão é complicada...
- Quero ver a decisão...
- A mulher tem que ser minha...
- A mulher não traz letreiro...
- Foi comigo que ela vinha...
- Mas fui quem viu primeiro...
- Ela é minha porque vi...
- Mas quem segurou fui eu...
- A conversa já meti...
- A mulher não escolheu...
- (E podes crer que é... ) (refrão)
- Já perdi a paciência...
- Eu por ela me arrisco...
- Sou capaz de violência...
- Mas não vai quebrar o disco...
- Quanto tempo foi perdido...
- Perdi tempo pra ganhar...
- Ganhar fama de atrevido...
- Quem se atreve quer brigar...
(- E podes crer que é preciso...)
A sua estampa eu já conheço do museu do império
Ou mausoléu de cemitério, ou feira de folclore
Eu não sei não, eu não sei não...
Só sei que você vem com reco-reco, berimbau, farofa
Acurriola tem um treco, nego faz galhofa
E deita e rola e sai comentando
Que grande malandro é você...
- Você que era um sujeito tipo jovial
Agora até mudou de nome...
- Você infelizmente continua igual
Fala bonito e passa fome...
- Vai ver que ainda vai virar trabalhador.
Que horror...
- Trabalho a minha nega e morro de calor...
- Falta malandro se casar e ser avô...
- Você não sabe nem o que é o amor. Malandro infeliz...
- Amor igual ao seu, malandro tem quarenta e não diz...
- Respeite uma mulher que é boa e me sustenta...
- Ela já foi aposentada...
- Ela me alisa e me alimenta...
- A bolsa dela está furada...
- E a sua mãe tá na rua.... (breque)
- Se você nunca teve mãe, eu não posso falar da sua.
- Eu não vou sujar a navalha nem sair no tapa...
- É mais sutil sumir da Lapa...
- Eu não jogo a toalha...
- Onde é que acaba essa batalha?
- Em fundo de caçapa.
- Eu não sei não, eu não sei não...
(Os dois) - Só sei que você perde a compostura quando eu
pego o taco / A curriola não segura, nego coça o
saco / E deita e rola e sai comentando que
grande malandro é você!
A semelhança entre estas músicas é notável, não no tema, mas no formato musical
(samba dos anos 1930) e na linguagem. Ambas representam uma disputa entre dois
malandros: o samba de Noel, por uma mulher e o do Chico, pelo próprio status de malandro.
A possibilidade de haver violência entre eles é sempre contornada por uma verborragia
malandra que torna a discussão atraente para o ouvinte, surpreso com as provocações e
respostas. A proximidade do estilo de Noel com a estética do movimento modernista, fica
clara no uso da presentificação da discussão, ou seja, com a utilização quase cênica de um
diálogo, como no uso da metalinguagem (“...neste samba agora me meto / Para cantar com
Francisco Alves em dueto”, Mas não vai quebrar o disco...”) e da “fala das ruas”, com
expressões populares e jargões comuns (“às vezes sai pancada...”, Sou capaz de violência”,
165
Ganhar fama de atrevido”)
247
. Recursos que estão presentes também na canção de Chico
Buarque.
No samba de Noel, a malandragem está na artimanha dos argumentos expostos na
disputa pela mulher, na linguagem e no uso do jeitinho para contornar as vias de fato (“Mas
não quero discussão...”, Já perdi a paciência...”). Chico Buarque, por sua vez, resgata mais
uma vez a malandragem tradicional, repetindo as suas regras básicas: o malandro
“verdadeiro” não se casa, não trabalha, ludibria e nunca é pego. Mas, ao mesmo tempo, Chico
coloca nesta disputa os dois tipos de malandragem: a tradicional, que corresponde a estas
regras e já bastante decadente nos anos 1940 (a história contada na “Ópera do Malandro” se
passa em 1942); e a versão mais adaptada, e, portanto, com mais futuro naquele momento
(representada pelo herói da peça, o malandro Max Overseas). Para o primeiro malandro, o
segundo (mais moderno) perde a sua autenticidade, entre outros motivos, porque carrega nos
estrangeirismos: “five o'clock, very well, my friend”, também porque trabalha (ainda que numa
atividade ilegal) e principalmente porque é casado, ainda que seu casamento se assemelhe a
um “golpe do baú” (“respeite uma mulher que é boa e me sustenta.”). Enquanto que para o
segundo, o primeiro (mais tradicional) é peça de museu: ou mausoléu de cemitério, ou feira
de folclore”, ou seja, já sem futuro por falta justamente de modernização. Para este,
modernizar-se seria adaptar-se às novas condições, o que iria garantir algum futuro para
malandragem, falando inglês e vivendo da contravenção. O malandro moderno” pensa que é
da alta sociedade porque consegue manter-se com certa dignidade, enquanto que o
malandro tradicional infelizmente continua igual / fala bonito e passa fome”, e ainda por
cima não conhece o amor, por isso não se casa: Você não sabe nem o que é o amor /
Malandro infeliz...” A malandragem do tipo tradicional já estaria defasada e tão presa às
raízes originais que ainda mantinha elementos que nem eram cariocas: reco-reco, berimbau,
farofa”, representando muito mais o passado (com elementos culturais da Bahia) do que o
presente modernizado. Chico faz ai a metáfora da discussão sobre a tradição e a modernidade,
que comentamos em capítulo anterior, esclarecendo a necessidade de adaptação do mundo da
malandragem, que não teria nunca deixado de existir, apesar das alterações a que se viu
obrigado pelas condições de cada época.
247
Esta proximidade entre as composições de Noel Rosa e o Movimento Modernista é bastante defendida por
Affonso Romano de Sant’Anna, no livro já comentado: Música Popular e Moderna Poesia Brasileira
(Petrópolis: Vozes, 1978), no capítulo: “As origens do Samba, Noel Rosa e o Modernismo”, p. 183.
166
Tanto na canção de Noel quanto na de Chico, nenhum dos dois malandros em disputa
saem vitoriosos e muito menos resolvem suas diferenças, mantendo outra característica do
mundo da malandragem: o impasse, o jogo agressivo de palavras, a rivalidade entre os que se
julgam representantes “verdadeiros” da malandragem, que sempre concorrerão por mulheres,
prestígio, áreas de atuação, e mais tarde pelos pontos de tráfico de drogas.
Mas a malandragem, hoje em dia (século XXI), o vem mais sendo cantada. Talvez
pelo aumento drástico da violência urbana que embrulhou totalmente o antigo glamour da
malandragem no pacote da violência gratuita. Chico Buarque, nunca mais dedicaria uma
música a esse mundo. Hugo Carvana, autor e diretor de dois filmes chamados “Vai Trabalhar
Vagabundo I e II”, declarou numa entrevista que não mais ambiente, nem clima, para
repetir a dose de elogios à malandragem, porque os anos 1990 teriam acabado definitivamente
com a figura do malandro: “É que ele foi substituído pelo traficante, pelo bandido com AR-15,
que dita a lei na favela abandonada pelo Estado
248
. Essa é uma tradição que não existe
mais. Contudo, o malandro permanece como personagem mítico do mundo do samba e um
dos símbolos, ainda que atualmente morto, da brasilidade.
2.5 – O sentimentalismo à brasileira.
Nas letras da caão popular brasileira, de maneira geral, a mulher ocupa um espaço
muitas vezes marginalizado, como ria (na expressão de Maria Célia Paoli
249
) à ordem
estabelecida pela cidade. É claro, que tal posição é resultado da vio predominante masculina do
diálogo musical, onde as mulheres aparecem como sedutoras e traiçoeiras. Isso, depois de uma
fase inicial das primeiras décadas do século XX, quando eram mais retratadas como musas
encantadoras. Tudo isto é exemplo de uma nova esfera da intimidade, que junto com a cidade,
estava a se delinear. Exigência do próprio modernismo que o Rio de Janeiro tentava esboçar, a
mulher mostrava-se mais “solta”, autônoma, como parte das transformações em curso.
Para a autora, nossos compositores populares comentaram inúmeros estados emocionais
da vida privada, íntima e amorosa, tornando-os públicos, e mais do que isso, criando valores
248
Citação presente em publicação eletrônica: Cultura, Carnaval E Cinzasde Nei Duclós. Texto datado de 27
de Outubro de 2005: no site http://www.consciencia.org/neiduclos/Article166.html. .
167
referenciais para a expressividade emocional da sociedade brasileira. No que se refere à
intimidade, constata Maria lia Paoli, as relações amorosas descritas pelos sambas populares
deixavam os pades burgueses que sempre procuraram manter as mulheres escondidas e
incomunicáveis, para serem postas em discuso em alto e bom som
250
. Na elaboração das
situações e impasses, desejos, medos e dores, todo um arcabouço moral da intimidade começa a
ser discutido e aceito por um grande número de brasileiros. Mais tarde este arcaboo sentimental
se referido também como uma das mais importantes brasilidades: “o sentimentalismo à
brasileira”.
Aos poucos as canções foram construindo um painel amoroso onde as mulheres, podemos
dizer, ocupavam uma posição a priori na reflexão do compositor popular - posição cambiante
como a ppria situação feminina perante a sociedade industrial. O papel mais comum reservado à
mulher nos sambas dos anos 1930 será o de transgressora ou infratora. Neste caso, ela aparece
descumprindo as leis da moralidade, da fidelidade e do amor, ou até mesmo da simples
cordialidade e respeito, como vemos nestes sambas de Noel:
Tu pedes mandando/ “Faça o favor” a tua boca nunca diz
Tu cedes negando/ Com esses olhos que pra mim são dois fusis...
(...)
Mentindo/ A tua boca beija e mente sem sentir
Desejas sorrindo/ Que o teu perdão, humildemente eu pedir...
Não peço/ Espero/ Ainda ver-te entre lágrimas bem mal
Meu bem, escuta:/ A araruta tem seu dia de mingau!
(Araruta, Noel Rosa e Orestes Barbosa, 1932)
Vo foi o meu azar/ (Você foi o meu azar)
Estragou a minha vida/ (Por ser falsa e convencida)
Para me fazer chorar/ (Quis me deixar)
Hoje volta arrependida (Por ser mal-sucedida)
(Você foi o meu azar, Noel rosa e Arthur Costa, 1931)
(...) Se tens prazer em me ver chorar
Por favor me deixa em paz/ Isso não se faz
(Issoo se faz, Noel Rosa, Ismael Silva e Francisco Alves, 1933)
Meu bem,o me faças sofrer
Tu queres ter liberdade demais
Os homens, tu conquistas um por um
Sem amar nenhum
(Nunca, jamais, Noel Rosa, 1932)
Tudo passou tão depressa
Fiquei sem nada de meu
E esquecendo a promessa
249
PAOLI, Maria Célia. “Os amores citadinos e a ordenação do mundo pária: as mulheres, as canções e seus
poetas”. In: Decantando a República. Vol 3. Op. cit., 2004. p.69.
250
Idem. p.70.
168
Vo me esqueceu
E partiu/ Com o primeiro que apareceu
Não querendo pobre como eu. (...) (Pra esquecer, Noel Rosa, 1933)
O compositor se mostra perdido e confuso diante da “nova” liberdade feminina (“Tu
queres liberdade demais”). As arbitrariedades e a quebra das regras por parte das mulheres trazem
sempre as piores conseqüências para a vida do homem, como vemos na continuidade desta última
canção, das citadas acima:
E hoje em dia/ Quando por mim vopassa
Bebo mais uma cachaça/ Com meu último tostão
Pra esquecer a desgraça/ Tiro mais uma fumaça
Do cigarro que eu filei/ De um amigo que outrora sustentei.
(Pra esquecer, Noel Rosa, 1933)
(...) O capricho da mulher/ Faz o homem padecer
É veneno quando quer/ Que maltrata e faz morrer
(Sei que vou perder, Noel Rosa e Nono e Alfredo Lopes Quintas, 1933)
É por ela, que o homem destrói a sua vida e sua dignidade. Ela é sempre a culpada por
seus caprichos e venenos - a mulher viou inconseqüente, como a Eva do Paraíso, que mantém
ainda o pendor para o pecado. E por isso, estassicas entendem com naturalidade o castigo que
lhe ime o homem, ferido na honra e no bolso. Em tudo opostas às Emílias e Amélias, que
apareceriam mais tarde na sica popular
251
como exemplos de mulheres que se sacrificam por
seus homens, as mulheres de Noel são exigentes, manhosas, gananciosas e cheias de artimanhas e
mentiras. Chico Buarque também canta a sua desiluo de maneira semelhante, conseências das
muitas mentiras e injustiças das mulheres, desde a suas primeiras composições sobre o tema,
como em “Madalena foi pro mar”, de 1965, onde a mulher abandona o lar e os filhos para voltar a
ser a "Madalena" bíblica. Vejamos também outros exemplos:
Madalena foi pro mar
E eu fiquei a ver navios
Quem com ela se encontrar
Diga lá no alto mar
Que é preciso voltar já
Pra cuidar dos nossos filhos (...) (Madalena foi pro mar, Chico Buarque, 1965)
Tinha pra mim / Que agora sim
Eu vivia enfim o grande amor
Mentira
Me atirei assim/ De trampolim
Fui ao fim um amador
251
“Emília”, de Wilson Batista e Haroldo Lobo, gravada por Vassourinha. Rio de Janeiro: Colúmbia, 1942; e
“Ai que saudades da Amélia”, de Mário Lago e Ataufo Alves, gravado por Ataufo Alves. Rio de Janeiro:
Sinter, 1955.
169
Passava um verão/ A água e pão
Dava o meu quinhão pro grande amor
Mentira
Eu botava a mão/ No fogo então
Com meu coração de fiador
Hoje eu tenho apenas uma pedra no meu peito
Exijo respeito, não sou mais um sonhador
Chego a mudar de calçada
Quando aparece uma flor
E dou risada do grande amor
Mentira (...) (Samba do grande amor, Chico Buarque, 1983)
Pois é
Fica o dito e o redito por não dito
E é difícil dizer que foi bonito
É inútil cantar o que perdi
(...)
Então
Disfarçar minha dor eu não consigo
Dizer: somos sempre bons amigos
É muita mentira para mim
Enfim
Hoje na solidão ainda custo
A entender como o amor foi tão injusto
Pra quem só lhe foi dedicação (Pois é, Tom Jobim e Chico Buarque, 1968)
Para estas mulheres traidoras e inconseqüentes, os compositores muitas vezes reservarão
uma forma de vingança poética muito comum, que é imaginar a humilhação do seu
arrependimento ou o seu fracasso no outro amor.
Mesmo que você feche os ouvidos
E as janelas do vestido
Minha musa vai cair em tentação (...)
(Choro bandido, Edu Lobo e Chico Buarque, 1985)
Quando eu queria o teu amor
Não davas atenção ao meu
Pra mim tu não tens mais valor
Agora quem não quer sou eu (...)
(Quem não quer sou eu, Noel Rosa e Ismael Silva, 1933)
Começaste me humilhando,
Me fizeste de capacho,
Mas agora estou mandando
E tu já ficaste por baixo! (...) (Contraste, Noel Rosa, 1933)
Nas composões de Noel Rosa, muitas vezes a quebra das regras impostas pelo mundo
masculino justifica até mesmo a violência corporal:
Toma cuidado que eu te ripo/ Porque tu não é meu tipo
(...)
O Baneu sempre evito/ Pois não me fica bonito/
Exemplar uma mulher
(...) Tanto tu disseste que escutei/ Que não achas a lei dura
Masacha quem procura/ E agora para ter certeza
170
Vais provar toda a dureza/ Desta madeira de lei.
(Vou te ripar, Noel Rosa, 1930)
Vai haver barulho no chatô/ Porque minha morena falsa me enganou
Se eu ficar detido/ Por favor, vá me soltar
Tenho o coração ferido/ Quero me desabafar
(Vai haver barulho no chateaux, Noel Rosa e Walfrido Silva, 1933)
Faz hoje ums que fui naquele morro
E a Juju pediu socorro
da ribanceira
Toda machucada
Saturada de pancada
Que apanhou do seu mulato
Por contar boato
Meu coração bateu a toda pressa
E eu fiz uma promessa
Pra mulata não morrer...
Pela padroeira
Ela foi bem contemplada
Levantou do chão curada
Saiu sambando fagueira.
(De qualquer maneira, Noel Rosa, 1933)
“Ripar” as mulheres, especialmente as mulatas dos morros, parecia mesmo lugar comum
nos sambas de Noel. Em todos os exemplos, a mulher dava motivos para a surra que levava e se
justificava a cena com certa naturalidade. No primeiro exemplo, porque andava “procurando” e
quem procura, acha; no segundo, por causa da sua falsidade; e no terceiro, “por contar boato”,
sendo que neste último caso, não é o eu rico quem “corrige” a mulata, porque o é ele o traído
(o mulato), mas sim o amante, que sabe que ela “tem que pecar”, e age quase que “por natureza”,
dando sempre desculpas esfarrapadas. Notemos também nesta letra, que é a promessa que o
amante (o eu-lírico) faz a padroeira, que traz a cura milagrosa à mulata: Até junto a Santa, é o
homem quem tutela a mulher.
Em Noel Rosa, a raiva e o castigo a que os “homens“ têm direito sobre as “mulheres vis”
podem ainda ser substituídas pelo deboche, como vemos entre os sambas humorísticos de Noel.
Por exemplo, em “Julieta”, um fox-trot:
Julieta (...)
Tens a volúpia da infidelidade
E quem te paga as dívidas sou eu
(...) Tu decretaste a morte aos madrigais
E constróis um castelo de ideais
No formato elegante de um chapéu
(...)
Nos teus anseios loucos, delirantes
Em lugar de canções queres brilhantes
Em lugar de Romeu, um coronel
(Julieta, Noel Rosa e Erastenes Frazão, 1931)
171
O humor fica mais explícito quando se houve a letra encaixada à melodia elaborada como
uma típica canção romântica norte-americana com sotaque de parnasianismo brasileiro. O “elogio
óbvio que sugere a linha melódica e a orquestração da primeira gravação (Castro Barbosa e
orquestra Odeon, agosto de 1933) choca com a intenção de escárnio da letra. Transparece também
a crítica às canções com letras parnasianas, com o exagero de labas e de palavras rebuscadas
(volúpia, madrigais, anseios), presentes em grandes sucessos da época, como “A Rosa”, de
Pixinguinha e Otávio de Souza.: Tu és divina e graciosa/ Estua majestosa/ do amor/ por Deus
esculturada
252
.
Mas, ao mesmo tempo, como bom representante das contradições do mundo moderno
urbano, Noel não esquece das regras do cavalheirismo, ainda bastante referidas e a cultuadas:
Na mulher não se dá nem com uma flor
Seja feia, bonita, sincera ou fingida
Rica ou pobre ou como for...
Sem mulher, que seria dessa vida (...)
Embora, haja o que houver,
Eu me sinto sem razão batendo na mulher.
A mulher é linda harmonia
Que enche sempre a nossa melodia
De alegria ou de tristeza,
Que bate na mulher ofende a natureza.
(Nem com uma flor, Noel Rosa e Francisco Alves, 1933)
Chico Buarque irá reproduzir ao seu modo todos estes estados da alma, em que o homem
é vítima ou felizardo, exige castigos ou recompensas, quer agredir ou defender, com o mesmo
universo do sentimentalismo à brasileira das canções de Noel Rosa. Contudo, ele acrescentaria à
este universo, a inutilidade da idéia de leis e regras para o amor conjugal:
O que não tem medida, nem nunca te
E nem dez mandamentos vão conciliar
O que não tem governo, o que o tem juízo
(O que será flor da pele), Chico Buarque, 1976)
No Brasil dos anos 1960/70, a mulher estava a romper com os ditames que a
conformavam dentro do parâmetro machista da e de família e esposa submissa. E a reação do
compositor seria reproduzir o atual “descontrole” sobre a nova mulher. Mas, os pametros
continuavam ali, como marcos capazes de atestar a distância que agora ela se colocava. Os
sentimentos do poeta tendem, a partir de então, a mostrarem-se mais conflituosos: de um lado
252
“A Rosa”, letra de Otávio de Souza para a melodia de Pixinguinha, gravada por Orlando Silva em 1937, pela
Columbia.
172
estão colocados os antigos valores e de outro, os postulados mais democráticos das novas relações
amorosas, aumentando consideravelmente a complexidade desta representação.
É claro que nas canções de Chico o cenário em relação à violência com as mulheres não
estava revestida da “naturalidadecom que nos deparamos nos sambas de Noel. Mas, ele não
deixa de retratá-la, porém pelo ângulo oposto, uma vez que a voz feminina, secularmente abafada
pelo universo masculino, se encaixava perfeitamente na analogia com a “falta de liberdade” de
que se queixava toda a juventude nos anos 1960:
Sou Ana de vinte minutos
Sou Ana da brasa dos brutos na coxa
Que apaga charutos
Sou Ana dos dentes rangendo
E dos olhos enxutos
Até amanhã, sou Ana
Das marcas, das macas, das vacas, das pratas
Sou Ana de Amsterdam
(Ana de Amsterdam, Chico Buarque e Rui Guerra, 1972/73)
Tira as mãos de mim Põe as mãos em mim
E se a febre dele
Guardada em mim
Te contagia um pouco
(Tira as mãos de mim, Chico Buarque e Rui Guerra, 1972/73)
Vence na vida quem diz sim
Se tei o corpo
Diz que sim
Torcem mais um pouco
Se teo um soco
Se te deixam louco
Se te babam no cangote
Mordem o decote
Se te alisam com o chicote
Olha bem pra mim
Vence na vida quem diz sim
(Vence na vida quem diz sim, Chico Buarque e Ruy Guerra, 1972/73)
Nestas três canções da peça Calabar, o poeta assume o papel feminino e assim travestido,
pode criticar o autoritarismo com forte ironia, indo além da defesa a que a “mulher”, nos anos
1970 tinha direito. O olhar feminino passou mesmo a ser uma das grandes marcas das
composições de Chico Buarque. Gilberto de Carvalho chega a afirmar que o cantar no
feminino” é o traço poético mais importante de Chico Buarque, o mais evidente, o que mais salta
aos olhos:poucos souberam traduziro bem no canto o sentimento feminino quanto ele
253
.
253
CARVALHO, Gilberto. Chico Buarque: alise poético-musical. ed. Rio de Janeiro: Codecri, 1982, p. 29.
173
Luciana Eleonora de Freitas observa que este recurso poético é característico das cantigas
de amigo medievais e que aparece também, embora em menor proporção, em outros
compositores da Música Popular Brasileira, como Ari Barroso, Caetano Veloso e Gozaguinha
(“Camisa Amarela”, “Esse cara”, “Explode coração”)
254
. E temos que lembrar que Noel
também utilizou a voz feminina para expressar o universo dos seus sentimentos. Porém, nem
nestes casos, ele colocou a mulher no lugar de vítima:
muito tempo
Minha amiga me avisava
Que ela sempre conversava
Com você no seu jardim
E começou a nossa parceria
Eu fui por ela e ela foi por mim.
Vo pensou que fomos enganadas
Marcando encontro em horas alternadas
Que nós fizemos a sua vontade (...)
Quando voestava sem tostão
Eu pedia bala!
s aturamos
Os seus modos irritantes
Mas filamos bons jantares
Nos melhores restaurantes
Vo não sai do nosso pensamento
Vo foi negócio e foi divertimento.
(Amor de parceria, Noel Rosa, 1933, gravado por Aracy de Almeida em 1935)
Nasci no Estácio
Eu fui educada na roda de bamba
E fui diplomada na escola de samba
Sou independente conforme se vê (...)
E não acredito que haja muamba
Que possa eu fazer gostar de você
(O x do problema, Noel Rosa, 1936)
Escutei a vizinha falar
Que ele, de pirraça
Seguiu com o pra
Ficando no xadrez
Pela décima vez
Ele está inocente
Nem sabe o que fez.
(Pelacima vez, Noel Rosa, 1935)
Notamos pontos comuns entre os compositores aqui expostos, nos registros relativos das
mudanças do papel feminino na era industrial. vimos em “Três apitos”, como Noel colocou o
trabalho operário feminino como inimigo do relacionamento amoroso, mas o trabalho na brica
traria implicações bem mais profundas, nos anos 1930, como ele mesmo também registra em
“Você vai se quiser”:
254
CALADO, Luciana E. de Freitas. Chico Buarque: um moderno trovador. João Pessoa: Idéia, 2000. p. 58.
174
Vo vai se quiser...
Vo vai se quiser...
Pois a mulher não se deve obrigar a trabalhar,
Maso dizer depois
Que você não tem vestido
Que o jantar não pra dois
Todo cargo masculino
Desde o grande ao pequenino
Hoje em dia é pra mulher.
E por causa dos palhaços
Ela esquece que tem braços
Nem cozinhar ela quer
Os direitoso iguais
Mas até nos tribunais
A mulher faz o que quer
Cada qual que cave o seu
Pois o homemnasceu
Dando a costela à mulher
Seriam, para Noel, palhaços, os que davam cargos para as mulheres? Este parece ter sido
um pensamento comum à época: A mulher poderia assumir certos papeis masculinos, mas, já que
estava “invertendo as regras”, ela deveria esquecer o dinheiro e os presentinhos que ganhava do
seu homem (“Mas o dizer depois/ Que você o tem vestido/ Que o jantar não pra
dois”). E, se viesse a arrumar um emprego, não poderia esquecer de fazer as tarefas femininas do
lar, que lhe cabiam: “Nem cozinhar ela quer”. Para fazer frente aos “direitos iguais” reivindicados
pela mulher, Noel lembraas injustiças que ela comete ao fazer o que quer, penalizando o
homem “desde sempre”, pois este “nasceu dando a costela à mulher”.
Chico Buarque não insinuaria a mesma condenão de Noel Rosa ao desejo” ou
necessidade da mulher de trabalhar fora de casa, até porque ao seu tempo o era mais o
comum o questionamento sobre a participão feminina no mercado de trabalho, ainda assim
expressaria as mesmas dores de cotovelo, derivada da sua “independência”. Apesar da condição
de ria e da condenação constante pelo comportamento imprevisto, a mulher pode, em suas
canções, tornar-se ainda uma obsessão para o pobre homem, vítima que é, no universo das
canções, de sua superioridade de encanto. A partir deste sentimento os autores passam a ter
inspirações poéticas notáveis, com o uso de figuras de linguagem e outros hábeis jogos de
palavras como em:
Amanhece e anoitece/ Sem parar o meu tormento
Por saber que quem me esquece/ Não me sai do pensamento
(Vejo Amanhecer, Noel Rosa e Francisco Alves, 1933)
175
Julieta
Tu não ouves meu grito de esperança
Que afinal de tão fracoo alcança
As alturas do teu arranha-céu. (...)
(Julieta, Noel Rosa e Eratóstenes Frazão, 1931)
Como?
Se entornaste a nossa sorte pelo chão?
Se na bagunça do tu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu?
Como?
Se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato ainda pisa no teu (...)
(Eu te amo, Tom Jobim e Chico Buarque, 1980)
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu
(Pedaço de mim, Chico Buarque , 1977-1978)
Trocando em miúdos, pode guardar
As sobras de tudo que chamam lar
As sombras de tudo que fomos nós
As marcas de amor nos nossos lençóis
As nossas melhores lembranças
(Trocando em miúdos, Francis Hime - Chico Buarque, 1978)
Ou mesmo, invertendo novamente os papéis através de suas vozes femininas, é a mulher
que expressa sua total submissão, que não obstante “o poeta deveras sente”:
Jureio mais amar/ Pela décima vez
Jureio perdoar/ O que ele me fez
O costume é a força/ Que fala mais forte
Do que a natureza
E nos faz/ Dar prova de fraqueza
(...)
(Pelacima vez, Noel Rosa, 1935)
E me arrastei e te arranhei
E me agarrei nos teus cabelos
No teu peito/ Teu pijama
Nos teus pés / Ao pé da cama
Sem carinho, sem coberta
No tapete atrás da porta
Reclamei baixinho
(Atrás da porta, Francis Hime e Chico Buarque , 1972)
O fascínio dos compositores pode levar o objeto amado a ocupar uma posição totalmente
inatingível, de onde se mantém ignorante da paixão do poeta, e fazendo somente aumentar a sua
dor:
Olha
Será que ela é moça
176
Será que ela é triste
Será que é o contrário
Será que é pintura
O rosto da atriz
(...)
E se eu pudesse entrar na sua vida
(Beatriz, Edu Lobo e Chico Buarque, 1982)
Abrindo salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão
(As vitrines, Chico Buarque, 1981)
Deixe em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção, faça não
Pode ser a gota d'água
(Gota d'água, Chico Buarque, 1975
As canções de amor de Chico Buarque provam que, da mesma forma que as canções de
Noel Rosa, a canção popular continuou a escancarar os segredos mais íntimos, a perplexidade e a
reação às perdas e ganhos, comentando as mudanças morais e até mesmo arriscando conselhos,
como o uso do bom senso num universo onde as medidas serão sempre relativas. “Poetas
conselheiros” tornaram expressiva a esfera da vida íntima e ao mesmo tempo definiriam mais um
ponto fundamental entre as principais características da brasilidade na sica popular, o
sentimentalismo à brasileira:
Por trás de um homem triste
sempre uma mulher feliz
E ats dessa mulher
Mil homens, sempre tão gentis
Por isso, para o seu bem
Ou tire ela da cabeça
Ou mereça a moça que votem (...)
(Deixe a menina, Chico Buarque, 1980)
Desta forma, a discussão amorosa na caão acabou gerando uma pedagogia” sobre a
vida íntima, que se espalhou pela sociedade através dos grandes sucessos discográficos, e da qual
Noel e Chico foram grandes colaboradores.
As canções criadas para retratarem o universo amoroso apresentam melodias mais livres
da entonação da fala como num discurso coloquial (típica da persuasão figurativa, como vimos) e
mais ligadas a um discurso reflexivo interior, sem tantos saltos de tons, onde as notas agudas
corresponderão à momentos de tensão na letra e as notas graves nos finais das frases a momentos
177
de distensão ou conclusão da exposição de um sentimento. Assim, a canção de amor brasileira,
que se utiliza da Persuasão Passional outra das mais comuns cnicas de persuasão usadas
pelos compositores para cooptarem os ouvintes, segundo os critérios de Luiz Tatit estabeleceu
no país parâmetros gerais para os relacionamentos íntimos, com tensões específicas para classes
distintas de sentimentos. Formou-se assim um verdadeiro vocabulário sentimental expresso
exclusivamente pela linguagem musical. Esta constatação assume denotada importância quando
lembramos que nos países europeus, este papel coube não à música popular, mas sim a literatura,
ou como afirma Maria Célia Paoli:
Em uma palavra, parece-me, a canção popular urbana cumpriu o trabalho simlico e
imaginário de construir um referencial de interpretação da vida privada popular, coisa
que, nas sociedades onde a modernidade se originou, foi tarefa da literatura moderna,
no próprio momento em que se construíam os espaços públicos das grandes cidades
255
.
Construindo um referencial para o sentimentalismo amoroso, os compositores populares
vieram dar conta da tarefa de interpretação da vida privada, fazendo o papel que coube a literatura
na Europa. Esta percepção só reforça nossa afirmação sobre a importância do conteúdo simlico
da caão popular brasileira, sobretudo no que se refere às particularidades nacionais, no caso, o
erotismo e a vida conjugal do brasileiro. A situação marginalizada ou “pariada mulher nas letras
da canção é evidente, porém representa o apenas o machismo de seus companheiros que
participam do mesmo estrato social, mas também as reflexões dos compositores sobre o amor e
sobre o lar na cidade moderna. Vemos que as mulheres em Noel, praticamente o sofrem, mas
fazem sofrer. em Chico, além desse retrato, veremos com mais constância a mulher rejeitada,
humilhada, que enfrenta as mesmas dificuldades dos homens na realização de seus sonhos
amorosos, mas que acumula sobre si os preconceitos e a prepotência do mundo masculino, o que
a coloca num lugar privilegiado das canções. A sica popular explorou, desse ponto de vista, a
demarcação de códigos e limites internos de compromissos mútuos de dignidade e fidelidade,
reconhecidos publicamente, ainda que diversificados até as fronteiras morais da cidade.
É importante ressaltar que nesta pedagogia amorosa demonstrada na canção popular não
predomina nem a moral dos discursos vigentes, nem as transgressões de sua ordem, mas sim uma
coletânea de experncias e lições destas duas posições e de outras entre elas. Não há consenso,
por exemplo, se é preferível a paz e a concórdia no lar ou a vida entregue às paixões. O equibrio
255
PAOLI, Maria Célia. “Os amores citadinos e a ordenação do mundo pária: as mulheres, as canções e seus
poetas”. In: Decantando a República. Vol 3. Op. cit., 2004. p.74.
178
amoroso vai sempre pender em cada caso para uma das variantes possíveis no universo urbano e
deve ser decidido de forma individual, porém tendo em vista a lista de conseências possíveis,
que são elaboradas e discutidas pela canção.
Conclusões
Noel Rosa e Chico Buarque de Hollanda estão entre os mais destacados ou citados
compositores das duas mais importantes fases de “fixação” da canção brasileira moderna: os
anos 1930 (Época de Ouro) e os anos 196080 (Era dos Festivais da Canção e da solidificação
da sigla MPB). certa unanimidade no julgamento de que suas obras se tornaram
paradigmas de qualidade e representatividade da tradição dentro da música popular brasileira.
O que se constatamos nesta analise da história da musica popular no Brasil é que Noel Rosa
tornou-se dos construtores da tradição (ou das bases estéticas e simbólicas da tradição musical
brasileira), ainda que não tenha intencionado este papel, enquanto Chico Buarque pode ser
compreendido como um comentador da tradição, reforçando o universo criado em parte por
Noel, desenvolvendo os seus significados e ao mesmo tempo evitando alterações e modismos
que ao seu tempo estavam a propor novos rumos para a música popular. Ambos utilizaram em
seus universos de representações, elementos comuns ou semelhantes, muitas vezes ligados à
idéia de brasilidade, em momentos cruciais da história da cultura musical brasileira.
Constatamos que “Tradição” é uma construção narrativa, um discurso sobre valores
nacionais, gerado a partir de debates sobre a brasilidade. Como todo processo de construção
nacional, a invenção da brasilidade definiu como puro ou autêntico aquilo que foi produto de
uma longa negociação, envolvendo grupos sociais e interesses muito diversos.
De maneira mais eficaz do que através de outras produções artísticas, a identidade
nacional se conformou principalmente através da música popular, graças aos programas de
rádio e de televisão, durante o século XX. Toda a profusão artística dos compositores
analisados colaborou bastante para a constituição da brasilidade entre uma imagem ufanista,
de riquezas infinitas e progresso industrial iminente, e outra imagem idealizada de sociedade,
de povo sofrido, mas alegre; explorado, mas extrovertido; ignorante, mas cordial; com hábitos
diversos, porém coeso frente ao sentimento nacional”. Povo que dava o seu “jeitinho” pra
manter o bom humor, com uma tendência a comemorar a vida, e, portanto a valorizá-la, Todos
179
esses idealismos foram proporcionados cotidianamente pelas músicas populares que definiam,
através da repetição dos conceitos, os caracteres eleitos brasileiros. A centralização dessa
identidade esteve sem dúvida sobre o Rio de Janeiro, cidade de onde partiam as principais
transmissões radiofônicas e televisivas e produções discográficas, teatrais e cinematográficas.
A brasilidade, portanto, terá muito de carioca.
Os fios da tradição que ligam os dois compositores aqui estudados podem ser
compreendidos em dois sentidos: a) como elo, socialmente construído entre eventos e
personagens do passado e o presente; b) como incorporação de elementos estéticos herdados
do passado na obra dos dois compositores. Em relação a este último aspecto, Noel herda uma
tradição, mas protagoniza uma ruptura, pois sua obra é um dos pontos de construção e
continuidade do “paradigma do Estácio”
256
, que é herança e ruptura a um tempo com a
música urbana anterior. Já Chico Buarque, especialmente num primeiro momento de sua
carreira, volta-se para a tradição já tomada como cânone” (o samba carioca dos anos 1930),
devidamente filtrado pela “ruptura” da Bossa Nova. Ou seja, nos dois casos, temos um
balanço e uma combinação diferenciada entre “tradição” e ruptura” e a escolha dos
elementos que deveriam definir o procedimento tradicional.
A tradição atendeu à necessidade de conformação das características básicas da
brasilidade, e neste sentido a sua construção e manutenção foi até certo ponto bastante
consciente tanto em Noel Rosa, como em Chico Buarque.
Chico Buarque, “engajado na tradição”, irá preservar, em suas canções, muito do
ideário “próprio dos brasileiros”, presente nas obras de Noel Rosa: a defesa da preservação da
cultura popular brasileira e do samba “autêntico”; a crítica às elites em defesa dos
marginalizados na sociedade urbana; a exaltação à malandragem; e o sentimentalismo e a
exposição do universo íntimo amoroso, dentro dos mesmos padrões. Ambos apresentam a
preferência por temas do cotidiano popular e assumem comumente a identidade do sambista
do subúrbio carioca, embora pertencentes a uma classe mais privilegiada em relação á este.
Ambos freqüentaram colégios conceituados e faculdades, começaram suas carreiras muito
jovens e logo se encantaram com a música que provinha dos morros e subúrbios. Também nos
aspectos técnicos de composição musical e lírica, os dois músicos e poetas se assemelham de
256
SANDRONI, Carlos, O feitiço decente. Op. cit. 1997.
180
forma a asseverar procedimentos comuns, que se transformaram em “formas tradicionais” de
composição.
Ao analisarmos o universo e o procedimento comum aos autores, e principalmente o
ideário comum que preservam suas obras, aparece também algumas importantes diferenças,
como a constatada pelo historiador Marcos Napolitano em diálogo informal: Em Noel, a
ironia se resolve pelo humor, e em Chico, pela melancolia (que, é conveniente lembrar, está
relacionada ao estatuto do saudosismo em meio à modernidade)”
257
. Chico Buarque que teve
(e tem) muito mais tempo do que Noel Rosa para o amadurecimento artístico, acabou
desenvolvendo sua criatividade por caminhos nem sonhados por este, diversificando bastante
a sua obra. Ainda assim se nota a referência constante ao universo criativo e temático de Noel
Rosa e a preocupação em manter os padrões tradicionais de composição da música popular
brasileira.
Os interesses da construção da imprensa e da crítica especializada em relação à
manutenção da tradição, explicam em parte a ligação imediata e muitas vezes pouco
aprofundada entre Noel e Chico. Dois marcos do samba urbano, de épocas distintas, que
pareciam colocar a tradição em um mesmo lugar, ou num lugar único de autenticidade, que
sem negar aspectos da modernidade, sobretudo de ordem temática, davam o sentido de
unidade necessária para a formulação de um sentimento popular nacionalista, ancorada na
história da sua construção. Nesta idealização, buscava-se ao mesmo tempo recuperar as raízes
populares nacionais e romper com o subdesenvolvimento.
Esta reflexão nos um sentido político claro para a existência e a luta pela
sobrevivência da nossa conhecida tradição. Não se trata apenas, a questão da tradição, de uma
resistência cultural, mas também de uma arma de conscientização, logo adotada pela esquerda
brasileira e adequada inclusive no combate à ditadura militar, no caso das canções de Chico
Buarque.
Podemos aventar, para corroborar as ligações entre Noel e Chico, que a utopia da
brasilidade revolucionária de Chico buscava suas raízes na ideologia das representações da
mestiçagem, na constituição da brasilidade que se detecta em Noel. Os intelectuais e artistas
engajados na estrutura revolucionária entendiam que na década de 1960, o Brasil não havia
181
ainda alcançado a integração entre as raças nem a felicidade do povo, projetadas na estrutura
de identidade cultural dos anos 1930, que estava impedido pela existência do latifúndio e
pela força do imperialismo e do capitalismo. Por isso, cabia aos compositores engajados dos
anos 1960/70 reconduzirem o projeto original retomando a tradição, para direcioná-la a um
futuro utópico.
Marcos Napolitano acrescenta ainda a idéia de que Chico Buarque juntamente com
Elis Regina, o os responsáveis por uma reorganização do mercado musical, na formação
também de um novo público que passa a consumir a música popular brasileira, sob a nova
sigla “MPB”. Estes dois artistas, consagrados pela televisão, trouxeram para a MPB o público
que havia passado pela bossa nova sem aderir totalmente a ela; um novo público, que não
estava comprometido apenas com a modernidade, no que ela tinha ou não de revolucionária,
mas desejava também a volta das formas tradicionais de composição. Ao considerar que
Chico trazia de volta o Noel, e Elis recuperava a maneira de cantar da época de ouro, o
público afirmava este compromisso com o passado, pulando”, praticamente, a bossa nova e
negando o estrangeirismo e o “excessivamente” moderno.
Se a bossa nova, que foi símbolo de modernidade, ainda representava na maioria das
suas canções, o mundo da classe média-alta, o novo samba de Chico, velho no estilo e na
linguagem, mas bastante sintonizado com questões do presente, atraía integrantes dos mais
variados extratos sociais e reunificava a nação através da idéia do povo brasileiro “em defesa
de sua arte”, já “tradicional”.
Assim, engajado na reforma política ou simplesmente saudoso da época de ouro”,
Chico manteve várias das preocupações estilísticas e temáticas de Noel. As coincidências
fazem constatar muito mais do que apenas a inspiração que Noel legou ao Chico. Revelam
universos populares urbanos comuns, fixados também nas obras de inúmeros outros autores
que compartilham e repetem os conceitos presentes nestes dois grandes compositores, mas
que entre eles se mostram particularmente semelhantes. Percebemos, por exemplo, que Chico
e Noel colaboraram sobremaneira para a permanência de um espaço moral na música bastante
distinto do moralismo presente nas regras de convívio social, um lugar mais ousado e livre, ou
mais tolerante e compreensivo, que não é tão comum nas relações cotidianas. É como se a
música suprisse, nesse caso, a necessidade de uma realidade mais afetiva, harmoniosa e
257
Marcos Napolitano em depoimento ao autor, em 27 de fevereiro de 2007.
182
interessada. Daí a exaltação à orgia, aos malandros, prostitutas, enjeitados, e a todos os que
representam certos extremos do nosso mosaico social sobrecarregado de emoção. Mas é
importante ressaltar também que a malandragem representou um pólo ou uma postura de
oposição à repressão em ambos os momentos históricos.
Noel Rosa e Chico Buarque buscaram também, e com esmero, a realização de uma
poesia “autenticamente” brasileira numa junção do coloquialismo e da linguagem lírica
herdada dos poetas da língua portuguesa, e, portanto, não é verdade que privilegiavam
somente a linguagem das ruas.
As canções de amor de Chico Buarque provam que, da mesma forma que as canções de
Noel Rosa, asica popular continuou a escancarar os segredos mais íntimos, a perplexidade e a
reação às perdas e ganhos, comentando as mudanças morais e até mesmo arriscando conselhos,
como o uso do bom senso num universo onde as medidas serão sempre relativas. “Poetas
conselheiros” tornaram expressiva a esfera da vida íntima e ao mesmo tempo definiriam mais um
ponto fundamental entre as principais características da brasilidade na sica popular, o
sentimentalismo à brasileira. Desta forma, a discuso amorosa na canção acabou gerando uma
“pedagogia” sobre a vida íntima, que se espalhou pela sociedade através dos grandes sucessos
discográficos, e da qual Noel e Chico foram grandes colaboradores. Esta constatação assume
denotada importância quando lembramos que nos países europeus, este papel coube não à música
popular, mas sim à literatura.
Também certos aspectos técnicos, exclusivamente musicais, se tornaram comuns a esses
compositores, e inovações postas por Noel serão repetidas por Chico: como o uso de certas
dissonâncias, de inversões de baixos (que tocam as sétimas e terças, quando o mais comum
seria o uso das notas tônicas como base para os acordes) e de acordes diminutos (com terças e
quintas menores), e que mais tarde se tornariam “clichês”. Também o uso da persuasão
figurativa, que foi constituída nos anos 1930 - onde as canções simulam a linguagem
coloquial, com as elevações e descendências de tons típicas do discurso lingüístico oral - é
uma outra característica técnica de Noel reforçada por Chico Buarque.
Chico e Noel cantaram paixões e personagens comuns ou incomuns de maneira a
emocionar pela “verdade” da narração. Mantiveram um olhar crítico em relação ao meio
social e político brasileiro e utilizaram formas poéticas especiais, como o uso de expressões
183
populares, rimas surpreendentes e bem humoradas, antíteses e metáforas presentes na
literatura de salões, mas adaptadas por eles para o povo. Através deles, os ouvintes poderiam
perceber melhor o contorno social do brasileiro e se identificar com seus personagens ou
reconhecê-los nas ruas. Entre eles também a semelhança do jogo de palavras e do
significado duplo das frases. A alegria, a irreverência e o “jeitinho brasileiro” são outros
temas privilegiados por ambos em semelhantes estilos de composição, que os identifica com a
classe média urbana e os tornam ricas fontes de pesquisa da nossa cultura popular.
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Ao Chiado Brasileiro História do Carnaval Carioca. Idealização Roberto
Lapiccirella. http://www.geocities.com/aochiadobrasileiro.
FGV CPDOC Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea
do Brasil. - http://www.cpdoc.fgv.br/comum/htm/index.htm
MPB Cifratinga: http://cifrantiga4.blogspot.com.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
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