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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROPGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
ÉTICA PROTESTANTE E PÓS-MODERNIDADE:
A FORMULAÇÃO DE UMA PROPOSTA ÉTICA A PARTIR DE DIETRICH
BONHOEFFER
POR
IRENIO SILVEIRA CHAVES
ORIENTADOR: PROF. DR. JOÃO RICARDO CARNEIRO MODERNO
RIO DE JANEIRO
2006
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2
Chaves, Irenio Silveira
Ética protestante e pós-modernidade: formulação de uma
proposta ética a partir de Dietrich Bonhoeffer / Irenio
Silveira Chaves – Rio de Janeiro: Universidade do Estado
do Rio de Janeiro, 2006. 114 p. 29,7 cm.
Dissertação – Mestrado em Filosofia
Bibliografia.
1. Filosofia. 2. Ética. I Título.
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROPGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
ÉTICA PROTESTANTE E PÓS-MODERNIDADE:
A FORMULAÇÃO DE UMA PROPOSTA ÉTICA A PARTIR DE DIETRICH
BONHOEFFER
POR
IRENIO SILVEIRA CHAVES
Dissertação apresentada em cumprimento às
exigências para obtenção do grau de Mestre
do Curso de Pós Graduação Stricto Sensu em
Filosofia da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro.
ORIENTADOR: PROF. DR. JOÃO RICARDO CARNEIRO MODERNO
RIO DE JANEIRO
2006
DEDICATÓRIA
Dedico esse trabalho a Solange Maia da Silva Chaves.
Somente Deus poderia ter permitido um encontro como o nosso.
AGRADECIMENTO
A lista de agradecimentos é imensa:
Aos meus filhos, Eduardo e Caroline, que pagaram um preço enorme pela
ausência do pai.
À minha mãe, Terezinha de Jesus Silveira, que me acolheu como a um
menino na fase mais aguda.
À minha irmã Lunalva Silveira Chaves, pelo apoio além da medida.
Ao Prof. Dr. João Ricardo Moderno, que acreditou e se solidarizou comigo
desde o primeiro dia.
A Deus que me proporcionou este precioso momento, de redimensionar a
vida para um novo começo.
.
EPÍGRAFE
“[...] a liberdade não está no vôo dos pensamentos, mas tão-somente na ação.
Sai da medrosa hesitação para a tempestade dos acontecimentos,
sustentado apenas pelo mandamento divino e pela tua fé,
e a liberdade acolherá teu espírito com júbilo”.
Dietrich Bonhoeffer
RESUMO
O presente trabalho consiste em uma análise do pensamento ético de Dietrich
Bonhoeffer (1906-1945), teólogo alemão morto pelo nazismo acusado de participação em
uma tentativa contra o comando do governo nazista, em uma tentativa de aproximação de
uma compreensão filosófica do período denominado como pós-modernidade. A análise do
pensamento ético de Bonhoeffer concentra-se numa releitura de sua Ética, procurando
destacar as linhas teóricas fundamentais, tanto do ponto de vista da filosofia como também
da teologia. A essência do pensamento ético de Bonhoeffer está na sua preocupação com a
idéia de um cristianismo sem religião num mundo emancipado. A partir daí, então,
procura-se compreender o pensamento e ação contemporâneos a partir das reflexões
filosóficas e éticas em torno da pós-modernidade e, com isso, encontrar diretrizes para a
formulação de uma proposta ética protestante pós-moderna.
PALAVRAS CHAVES: ética protestantismo cristianismo pós-modernidade
moralidade
Contato: Rua Visconde de Uruguai, 133ap. 409, Bairro Ponta D’Areia - 24.040.040
Niterói – RJ - Telefones: (21) 2629-1172 / 9937-6316
ABSTRACT
The present work consists of an analysis of the ethical thought of Dietrich
Bonhoeffer (1906-1945), german theologian died by the naziism accused of participation
in an attempt against the high command nazi government, in an essay of approach of a
philosophical understanding it called postmodern period. The analysis of the ethical
thought of Bonhoeffer is concentrated in a new reader of his Ethics, having looked to
detach the basic theoretical lines, as of the point of view of the philosophy as also of the
theology. The essence of the ethical thought of Bonhoeffer is in his idea of Christianity
without religion in an emancipated world. From there, then, I search understand the
thought and action contemporaries from the philosophical and ethical reflections around
postmodernity and, with this, to find lines of direction for the formularization of an ethical
protestant postmodern proposal.
KEYS WORDS: ethics - Protestantism - Christianity - postmodernity – morality
Contact: Rua Visconde de Uruguai, 133 – ap. 409, Bairro Ponta D’Areia - 24.040.040
Niterói – RJ - Telefones: (21) 2629-1172 / 9937-6316
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... p. 10
Capítulo 1 – ORIGENS DO PENSAMENTO DE DIETRICH BONHOEFFER ....... p. 18
1.1. A AÇÃO RESPONSÁVEL
1.2. VIDA E RESISTÊNCIA
1.3. ORIGENS DA ÉTICA
1.4. CRISTIANISMO SEM RELIGIÃO
1.5. O MUNDO EMANCIPADO
Capítulo 2 – O NOVO RADICALISMO DE BONHOEFFER .................................... p. 43
2.1. A ÉTICA COMO CONFIGURAÇÃO
2.1.1. O mundo dos conflitos
2.1.2. Igreja e mundo
2.1.3. Ética como formação
2.2. A DIALÉTICA DO ÚLTIMO E PENÚLTIMO
2.3. A TEORIA DOS MANDATOS
2.4. A VIDA ÉTICA COMO RESPONSABILIDADE
2.4.1. A estrutura da vida responsável
9
2.4.2. O “ético” e o “cristão” como tema
Capítulo 3 – DIRETRIZES PARA A FORMULAÇÃO DE UMA NOVA ÉTICA ... p. 76
3.1. DEFINIÇÃO DE PÓS MODERNIDADE
3.1.1. Pensamento humano na pós-modernidade
3.1.2. Ética pós-moderna
3.1.3. Religião pós-moderna
3.1. IDENTIDADE CRISTÃ
3.2. PÓS-CRISTIANISMO E NIILISMO
3.3. OUTRA IMAGEM DE DEUS
3.4. CRISTIANISMO E CULTURA
3.5. “ETHOS” CRISTÃO
CONCLUSÃO ............................................................................................................. p. 99
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... p. 103
ANEXOS
ANEXO I – GALERIA DE FOTOS ........................................................................... p. 108
ANEXO II – LEGADO PARA A IGREJA BRASILEIRA ........................................ p. 113
INTRODUÇÃO
Dietrich Bonhoeffer (1906-1945) é desses autores mundialmente respeitados, não
pela ousadia de afirmar que “Deus deixa-se desalojar do mundo e pregar numa cruz.
Deus é impotente e fraco no mundo, e assim nos ajuda e está conosco”, mas por viver a
ousadia de mostrar a sua não conformação com a tragédia do nazismo e, como um pietista
cidadão alemão, participar de uma conspiração para aplicar um golpe de estado contra
Hitler. Condenado à morte aos 39 anos, deixou como herança poucos livros publicados, um
conjunto enorme de sermões, conferências e cartas não publicadas e um livro sobre ética,
ainda manuscrito.
O pensamento de Bonhoeffer é difícil de ser compreendido e expresso, embora seja
marcado por uma brilhante capacidade de argumentação. A idéia de se preocupar com a
formulação de uma proposta ética a partir do pensamento de Dietrich Bonhoeffer é um
desafio para a reflexão sobre a postura protestante no contexto da pós-modernidade. No
presente trabalho, procura-se abordar aspectos da ética cristã, notadamente ligadas à
vertente protestante, em face das proposições éticas pós-modernas, com o propósito de
encontrar as linhas gerais que norteiam o comportamento cristão frente a uma sociedade
não-cristã. Isso se faz à luz do trabalho do teólogo protestante alemão Dietrich Bonhoeffer,
11
cuja obra tem sido bastante divulgada no Brasil mais recentemente, no sentido de
sistematizar o conteúdo de seu legado e seus desdobramentos, no que diz respeito ao tema
da ética.
Bonhoeffer nasceu na época do liberalismo teológico alemão e viveu até o começo
do período em que a idéia da secularização socialista tinha se desenvolvido. Pertencia a
uma família da burguesia: seu pai era um psiquiatra e professor universitário, sua família
praticava uma piedade luterana tradicional, seu atinha trabalhado no palácio imperial,
membros de sua família participavam do comando militar alemão. Era, portanto, da
burguesia tradicional, imperial e prussiana. Começou a estudar teologia aos 17 anos em
Tübingen e continuou seus estudos em Berlim, duas tradicionais escolas teológicas, ao lado
de nomes como Adolf Schlatter, Deissmann, Harnak e Seeberg. Aos 21 anos publicou sua
primeira dissertação, Communio sanctorum, com o subtítulo que definia sua abrangência:
“uma contribuição dogmática à sociologia da igreja”. Aos 23 anos, defendeu a sua tese Akt
und Sein (Ato e Ser), que se propõe a ser uma filosofia transcendental e ontológica na
teologia sistemática. Cidades como Londres, Barcelona, Nova Iorque, além de cidades na
Suécia e Suíça, foram as localidades que freqüentou. Aos 27 anos, dedicou-se à atividade
pastoral. Por causa da ascensão do partido nazista ao poder e a conseqüente reação
opositora de Bonhoeffer, é destituído de suas funções universitárias e junta-se aos pastores
que redigiram a confissão que deu origem à igreja confessante. Nessa fase, escreve
Discipulado, na qual contrasta o que chama de graça barata e graça preciosa:
A graça barata é a pregação do perdão sem arrependimento, é o batismo sem a
disciplina de uma congregação, é a Ceia do Senhor sem confissão de pecados, é
a absolvição sem confissão pessoal. A graça barata é a graça sem discipulado, a
graça sem a cruz, a graça sem Jesus Cristo vivo, encarnado.
[...]
Essa gra é preciosa porque chama ao discipulado, e é graça por chamar ao
discipulado de Jesus Cristo; é preciosa por custar a vida do homem, e é graça
por, assim, lhe dar a vida; é preciosa por condenar o pecado, e é graça por
justificar o pecador. Essa graça é sobretudo, preciosa por tê-lo sido para Deus,
por ter custado a Deus a vida do seu Filho “fostes comprados por preço- e
porque não pode ser barato para s aquilo que para Deus custou caro. A graça é
12
graça sobretudo por Deus não ter achado que seu Filho fosse preço demasiado
caro a pagar pela nossa vida, antes o deu por nós. A graça preciosa é a
encarnação de Deus (BONHOEFFER, 1989, p. 10).
Vários de seus amigos, inclusive Reinhold Niebuhr
1
, fizeram com que se
transferisse para os Estados Unidos, como muitos outros intelectuais alemães fizeram
quando a guerra estourou, em 1939. Mas imediatamente retornou para estar ao lado dos
acontecimentos: “os cristãos alemães vão se defrontar com uma terrível alternativa: ou
querer a derrota de sua nação para que possa sobreviver a civilização cristã, ou querer a
vitória de seu país, mas ao mesmo tempo a destruição de nossa civilização. Eu sei a
escolha que devo fazer. Porém, não posso fazê-la e manter-me ao mesmo tempo em
segurança”, disse. Na Alemanha, participou da conspiração contra Hitler, ao mesmo tempo
em que começava a escrever o que chamou de o grande projeto de sua vida: a Ética. Ficou
noivo em 13 de janeiro de 1943, mas foi preso em 5 de abril do mesmo ano, acusado de
alta traição. Detido na prisão de Tegel, escreveu cartas a seu amigo Ebherard Bethge e para
seus pais, relatando os momentos angustiantes da prisão e também apontamentos de uma
teologia inovadora, fundada na compreensão de que o cristianismo precisa repensar o seu
discurso diante de um mundo a-religioso que chegou ao que chamou de estado de
emancipação. Finalmente, foi transferido para a prisão de Buckenwald e para o campo de
concentração de Flossenburg, onde foi enforcado na manhã de 9 de abril de 1945.
Se vivesse, em 4 de fevereiro 2006 completaria 100 anos. Bethge, certa vez,
perguntou a um pesquisador católico ocupado com a obra de Bonhoeffer qual o segredo da
influência de seu pensamento para além das fronteiras dos credos e dos continentes. O
estudioso respondeu que a causa estava na integridade do teólogo. Sua vida, ação e
1
Reinhold Niebuhr (1892-1971), teólogo nascido na Alemanha e radicado nos Estados Unidos da América,
cujo pensamento voltava-se para uma abordagem ética, na qual se preocupava mais com a questão do homem
e a vida em sociedade do que com a doutrina de Deus e a vida na igreja.
13
pensamento como cristão são dignos de crédito e, por isso mesmo, interpretou com
autoridade o que significa ser cristão.
Ao analisar o seu pensamento, a preocupação foi de aprofundar o conhecimento a
respeito da ética cristã, como também das tendências éticas que predominaram na filosofia
a partir de Nietzsche e do pensamento contemporâneo. A tentativa de confrontar a proposta
de Bonhoeffer com uma abordagem secular, que tem sido considerada estruturalista e
radical pelos estudiosos no assunto, parte do seu próprio trabalho, centrado na preocupação
com a necessidade de elaboração para os fundamentos de um cristianismo a-religioso
frente a um mundo emancipado. Como o trabalho daquele teólogo alemão ficou
incompleto por causa da intervenção nazista, que o condenou à morte muito cedo, seu
pensamento aponta diretrizes que ainda têm produzido efeitos no pensamento protestante
atual.
Com essa pesquisa, a comunidade cristã de um modo geral poderá ter acesso ao
pensamento ético de Bonhoeffer, cuja contribuição tem sido redescoberta com maior
interesse a partir da última década do século XX. Muitos pensadores cristãos, líderes e até
mesmo cristãos comuns que têm acesso a seus livros podem se beneficiar da profundidade
de seus argumentos, ao acompanhar os estudos que têm sido desenvolvidos sobre a vida e
obra desse pensador. Não pela sua desenvoltura na luta contra o nazismo de Hitler, mas
também pela profundidade e contextualização de suas idéias.
Uma contribuição importante e relevante para a pesquisa foi o da Sociedade
Bonhoeffer seção Portuguesa, na pessoa do Pastor Luís Cumaru, que forneceu subsídios
e acesso a uma bibliografia seleta sobre o assunto, assim como a descoberta dos rumos que
a pesquisa sobre esse tema pode alcançar. Já existe uma vasta bibliografia sobre
Bonhoeffer em língua inglesa e alemã. Contudo, em língua portuguesa poucos estudos
14
foram desenvolvidos, a não ser no que diz respeito à edição de seus livros e análise de sua
vida. Grande parte desse material está em bibliotecas e disponível através da Internet.
A intenção desta pesquisa é fazer um levantamento do pensamento ético de Dietrich
Bonhoeffer e das tendências éticas e filosóficas do pensamento protestante, a partir da
influência das idéias de Nietzsche e dos pensadores contemporâneos. A proposta de
Bonhoeffer é de que o cristianismo se livre dos apelos da religião para tornar-se uma
alternativa viável num mundo sem Deus. Ele é reconhecidamente o primeiro pensador a
considerar a ausência da experiência de Deus face ao niilismo dominante. Em meio aos
seus argumentos, Bonhoeffer conviveu num contexto em meio ao qual se formulou
princípios que resultaram numa postura ética dentro do contexto do que tem sido
considerado como pós-moderno.
As obras de Bonhoeffer, já editadas em português, servirão de ponto de partida para
a definição e sistematização das suas proposições. Uma vez identificadas, elas servirão
como fio condutor para definição de uma reflexão da ética pós-moderna. Dentre essas
obras, a principal será a Ética, que ficou incompleta, cujos fragmentos foram encontrados
no local em que Bonhoeffer foi preso. O resgate dos manuscritos se deve ao empenho de
seu amigo Eberhard Bethge, que publicou postumamente muitos de seus trabalhos e se
empenhou por divulgar o conjunto de sua obra.
O pensamento ético de Bonhoeffer pode ser definido dentro dos limites de três de
suas mais importantes obras. A primeira delas é Discipulado, escrito em 1933, na qual
começa a desenhar a necessidade de uma compreensão do homem de forma integral a
partir da centralidade do Cristo. Essa linha de pensamento terá fim (apesar de
inconclusa) nas cartas da prisão, de 1943 a 1945, em observações que faz em meio às
correspondências que envia para o amigo sobre as idéias que ocupam o seu pensamento,
15
principalmente em relação ao conceito de Cristianismo a-religioso em um mundo
emancipado.
Para melhor situar o pensamento de Bonhoeffer, procuro fazer um levantamento
das tendências da filosofia e da teologia alemãs, ricas em produção e em influência sobre
os pensadores de todo o mundo. Nossa atenção está voltada para o pensamento teológico e
filosófico do Século XX, principalmente no que diz respeito à ética.
O problema central se define com a seguinte indagação: como Dietrich Bonhoeffer
propõe que se viva a cristã num mundo sem Deus, vivendo plenamente numa realidade
sem-religião? A partir dessa questão, outras se levantam: como ser cristão identificado com
um mundo sem-religião? Quais foram os fatores que mais influenciaram o pensamento de
Dietrich Bonhoeffer? Quais são os principais conceitos teológicos e éticos de Dietrich
Bonhoeffer? Como se caracteriza o pensamento ético e filosófico contemporâneo a
Bonhoeffer? Qual a relação que se pode estabelecer entre o pensamento de Bonhoeffer e os
pensadores contemporâneos? Quais as diretrizes que Dietrich Bonhoeffer aponta para uma
reflexão sobre ética para hoje?
Para facilitar a compreensão do material escolhido para servir de base para a
abordagem desenvolvida, decidiu-se tratar apenas dos aspectos éticos que envolveram mais
de perto o pensamento de Dietrich Bonhoeffer. Embora a sua conceituação teológica e
filosófica esteja muito ligada à sua proposição ética, procurou-se analisar apenas as
questões que envolvem a ética, confrontando os seus argumentos com aspectos ligados à
sua experiência de vida.
A abordagem central do trabalho é sistematizadora. O método utilizado para essa
sistematização do pensamento de Bonhoeffer é dedutivo, a partir da descoberta dos
princípios gerais e sua relação com a essência do pensamento. O tema inicial diz respeito à
abordagem ética da obra principal de Dietrich Bonhoeffer sobre o assunto, Ética, na qual
16
se concentram os registros principais. Procurou-se, então, mostrar as afirmações e estudos
que, em primeira análise, se mostram mais coerentes com o pensamento do teólogo. A
investigação dos pressupostos dos demais pensadores, buscando tomar posições e chegar
às conclusões necessárias, servem de pano de fundo para a melhor compreensão e
enquadramento do pensamento ético de Bonhoeffer.
A partir da análise dos pressupostos da ética de Bonhoeffer, é possível traçar linhas
gerais que apontam para a elaboração de uma proposta ética protestante pós-moderna, uma
vez que, de um modo geral, esse é o foco principal de sua preocupação. Bonhoeffer é
reconhecidamente um teólogo protestante, segundo a compreensão luterana do termo,
embora a essência de seu pensamento tenha atraído o interesse de muitos teólogos cristãos,
quer sejam católicos ou protestantes.
As fontes são, em sua maioria, de natureza bibliográfica, envolvendo livros dos
autores que trataram da questão ética e do conjunto da obra de Dietrich Bonhoeffer, além
de obras gerais sobre modernidade e pós-modernidade. Como fonte primária, foram usados
usando os livros escritos pelo próprio pensador, traduzidos para o português, citados na
pesquisa, que são: Ética, Resistência e Submissão e Discipulado. Procurou-se em outras
fontes subsídios para a compreensão do seu conteúdo e desdobramentos, abrangendo a
relação do pensamento do autor e os temas que envolvem o contexto da pós-modernidade.
O trabalho está organizado em três capítulos. No primeiro, procura-se fazer uma
apresentação de Dietrich Bonhoeffer, aspectos biográficos, os principais conteúdos de seu
pensamento e uma preocupação com as fontes, as origens de suas idéias no campo da ética.
No segundo capítulo, a preocupação principal se dirige ao conteúdo da Ética, procurando
sistematizá-lo a partir de quatro temas que foram considerados essenciais: a ética como
configuração, a dialética do último e penúltimo, a teoria dos mandatos e o conceito de ação
responsável. No terceiro capítulo, procura-se traçar vinculações com a concepção filosófica
17
do que se pode chamar de pós-modernidade, apontando caminhos para a elaboração de
uma proposta ética a partir do pensamento de Bonhoeffer.
Capítulo 1
ORIGENS DO PENSAMENTO DE DIETRICH BONHOEFFER
“Teólogo, cristão, contemporâneo”, esta é a forma com que Eberhard Bethge
(1970)
2
tentou definir a personalidade de seu amigo íntimo Dietrich Bonhoeffer, ao
escrever um livro com sua biografia. Nessa obra, Bethge (1970) identifica duas grandes
fases na vida de Bonhoeffer: a primeira, de 1931 até próximo de 1939, quando o teólogo
acadêmico se torna um cristão empenhado com a vida da Igreja; a segunda, a partir de
1939, quando o cristão torna-se um homem desse tempo, ativo e comprometido com os
problemas humanos.
Quando Dietrich Bonhoeffer morreu, em 9 de abril de 1945, poucos puderam
avaliar a sua influência no pensamento teológico cristão. Em meio àqueles dias caóticos da
Segunda Guerra Mundial, a coragem de Bonhoeffer se confunde com a atuação de um
teólogo acadêmico ocupado com os problemas de uma igreja militante. Seus escritos
coletados completam um conjunto de dezesseis volumes em alemão. Uma tradução inglesa
2
Amigo íntimo e biógrafo de Dietrich Bonhoeffer que coletou seus escritos e preparou as edições stumas
de suas obras, tais como: Ética, Resistência e Submissão e Obras completas (em alemão e inglês). É autor
também de Bonhoeffer: Exile and Martyr.
19
completa dessa vasta obra foi recentemente editada com um seleto aparato crítico. Em
português, conhecemos apenas cinco volumes dessa sua vasta produção: Discipulado, Vida
em comunhão, Tentação, Resistência e submissão e Ética.
Não obstante, a obra teológica de Bonhoeffer foi elaborada de forma não planejada
e teve que ser encerrada de maneira precoce. O livro Ética, que o próprio Bonhoeffer
esperava ser seu trabalho mais importante, foi deixado sob a forma de fragmentos treze
manuscritos e cento e quinze notas escritas à mão. Somente sessenta anos mais tarde, uma
nova tradução inglesa testifica a importância de seu pensamento, como um todo, assim
como a de sua vida
3
.
Bonhoeffer deve ser compreendido em seus próprios termos, mas, no exemplo da
Ética, o texto sozinho não pode oferecer uma noção clara de suas idéias. É possível
compreender melhor o pensamento de Bonhoeffer quando se observa o que esrefletido
em sua própria vida e no modo como empreendeu suas escolhas. Além disso, uma das
fontes para a geração de Bonhoeffer foi o trabalho de Karl Barth, cujo enfoque sobre o
retorno “ao mundo estranho da Bíblia” inspirou leituras recentes de sua obra. A teologia de
Barth marcou uma completa ruptura com a cultura e a ordem política alemã, conforme o
que Bonhoeffer tinha aprendido de seus mestres quando estudou teologia em Berlim, e
forneceu o ponto de partida para a formação da igreja confessante, que absorveu grande
parte de sua atuação pastoral após a ascensão de Hitler ao poder e que lhe impossibilitou a
continuação de seu trabalho na universidade.
Através da igreja confessante, pastores e cidadãos mantiveram uma igreja fiel aos
princípios históricos da confissão da reforma protestante alemã e puderam resistir às
incursões da organização e da ideologia nazista. Bonhoeffer não tomou parte do
movimento que a lançou em 1934, mas transformou-se rapidamente em um de seus líderes
3
A coleção em inglês das obras completas de Bonhoeffer vem sendo reeditada desde 1991 pela editora norte-
americana Fortress Press (Mineápolis).
20
mais atuantes, e gastou a maior parte do tempo, cerca de uma década, como diretor de um
seminário da igreja confessante. É a este período que nós devemos dois de seus trabalhos
mais extensamente conhecidos, Vida em comunhão e Discipulado. A igreja confessante
manteve uma resistência corajosa ao decreto de Hitler, de que cada instituição alemã teria
que se reorganizar em conformidade com a política nacional-socialista.
Por conta de sua manutenção, a igreja tinha que defender a ideologia de que cada
pessoa e cada instituição existem para servir à nação no comando do Führer. “O corpo de
Cristo ocupa espaço nesta terra”, como Bonhoeffer afirmou no Discipulado, e isso é uma
conseqüência da encarnação do próprio Cristo. Em seu contexto, aquela afirmação tinha
implicações políticas, mas não de forma radical. Se sua declaração impedisse o
envolvimento patriótico dos cristãos alemães com a união da velha Prússia, tanto no plano
político quanto no plano religioso, ou mesmo o ideal nacionalista do partido nazista, sem
dúvida sofreria a crítica da posição luterana clássica, segundo a qual uma lei secular deve
ser obedecida em tudo, exceto quanto em matéria de fé, conforme critérios muito restritos.
Foi por volta de 1938 que pastores da igreja confessante fizeram o exame dos formulários
de juramento de lealdade a Hitler. Com a aproximação da guerra, Bonhoeffer enfrentou
suas próprias escolhas. Esforçou-se com as idéias do pacifismo cristão e da idéia de não-
violência. Considerou a possibilidade de exílio ou mesmo de retornar a sua carreira de
professor na segurança do seminário teológico da união.
Finalmente, depois de uma visita breve a Nova York, ele retornou a Alemanha em
agosto de 1939, determinado a enfrentar a guerra que estava começando a acontecer e para
ajudar na reconstrução da Alemanha, que certamente ocorreria após o seu final. Não foi,
entretanto, uma testemunha passiva à tragédia que começava a se desenrolar. Transformou-
se em parte de uma conspiração contra Hitler junto ao alto comando do governo alemão,
usando seu papel como agente civil da inteligência militar, dando cobertura para os
21
contatos ecumênicos que permitiriam que os conspiradores fizessem tentativas para o
estabelecimento de um acordo de paz com o governo britânico. Fica claro em seus escritos
qual foi o critério que o pietista Bonhoeffer utilizou para orientar a sua decisão como um
cristão. Ser responsável em uma situação concreta, com a disposição de assumir a culpa,
torna-se um indicativo da ação cristã, que deve ser marcada pelo que chamava de “ação
responsável”.
1.1. A AÇÃO RESPONSÁVEL
Ética poderia ser considerada somente como uma reflexão teológica a respeito da
conspiração que Bonhoeffer participou. Clifford Green (1987)
4
observa que o livro é
original por ser uma obra ética escrita por um teólogo luterano engajado com uma
conspiração para derrubar um ditador. Não obstante, não fica claro nessa obra como (e se
isso pode ser considerado como determinante) que a preocupação de um pequeno grupo de
conspiradores da elite, com privilégios de acesso aos meios do poder, serve de ponto de
partida para a elaboração de um pensamento sobre ética. O que deve merecer maior
atenção é o fato de que o discurso da resistência e do martírio não deve desviar a nossa
atenção da questão crucial a respeito do lugar do cristão na sociedade.
Bonhoeffer começou a escrever o livro em 1940. A guerra havia eclodido, ele
exercia seu trabalho com os seminários da igreja confessante e, nesse mesmo tempo, deu
início a seu papel secreto como mensageiro ecumênico para a conspiração. Parte do seu
conteúdo é dedicada a estabelecer um contraste entre a obra do Cristo, que ama a
humanidade e é desprezado por ela, com o tirano, que despreza a humanidade e é admirado
4
Entre os estudiosos protestantes, o teólogo norte-americano Clifford Green é uma referência do estudo
sistemático do pensamento de Bonhoeffer, mais recentemente.
22
pelas pessoas. Somente pelo fato de que Deus se fez humano é possível saber e não rejeitar
o verdadeiro ser humano.
A referência que faz a Hitler é inconfundível, assim como a decepção de
Bonhoeffer com a massa do povo que não podia ver nada além da decepção. O que se
segue, entretanto, não é a síntese de um argumento moral sobre o totalitarismo, mas o
esforço de Bonhoeffer de superar a tentação de ver o povo alemão com um certo desprezo.
Ele considerava que somente pelo fato de saber que Deus se tornou humano é possível
compreender e não desprezar o ser humano. Essa é a motivação para a formulação do
conceito de ação responsável.
A ação responsável deve ser empreendida em nome destes seres humanos reais a
quem Deus ama, e não para reivindicar sobre eles superioridade, retidão ou sabedoria
própria. A ação responsável ganha agora alguma profundidade teológica. Não é
simplesmente um gesto nobre de uma pessoa responsável, nem um serviço paternalista
oferecido por alguém que faz o bem para aqueles que estão desprovidos de algo. A ação
responsável é uma verdadeira imitação de Cristo, uma disposição de se tornar desprezado e
de se colocar a serviço daqueles que por si mesmos se fizeram desprezíveis. A prontidão
para a morte está presente em cada página do manuscrito, não como um ato da coragem
pessoal, mas como uma afirmação teológica.
Sem sombra de dúvida, este é, sobretudo, um livro sobre a nova vida em Cristo.
Embora esta seja uma expressão que precisa de melhor compreensão, a nova vida em
Cristo” é, para Bonhoeffer, a vida cristã intramundana e suas implicaçõesa partir de uma
decisão pessoal de assumir compromisso com Cristo. O retorno de Bonhoeffer a Alemanha
em 1939 não foi para morrer, mas porque quis participar da possível reconstrução no pós-
guerra. Em grande parte da Ética, este parece ser o seu foco principal, notadamente quando
desenvolve a sua idéia de mandato e de mandamento divino. Para a geração influenciada
23
pela teologia de Karl Barth, era princípio fundamental da ética cristã a noção de
mandamento divino e não sobre o modo como os princípios morais podiam ser aprendidos
e seguidos. Para Bonhoeffer, entretanto, o mandamento não é uma palavra isolada de Deus.
Nós ouvimos o mandamento em circunstâncias específicas, que são sempre relacionadas ao
social mais do que ao individual. Encontramos este mandamento concretamente em quatro
diferentes formas que constituem uma unidade somente no próprio mandamento. Estas
quatro diferentes formas ele chama de mandatos, a saber, a igreja (ou a comunhão), a
família (ou o matrimônio), o trabalho (ou a cultura) e o governo (ou a autoridade).
Em contraste a um regime que desprezava os relacionamentos e a lealdade na vida
cotidiana e que procurava reafirmá-los em sua própria imagem, Bonhoeffer imaginou uma
sociedade em que a unidade é expressa na diversidade institucional. A idéia que estava por
trás dos mandatos da igreja, da família, da cultura e do governo vai além do conceito de
ordenança de Lutero, que servia de apelo aos teólogos sociais conservadores e também
pôde ser usada por simpatizantes do nazismo a fim de fornecer uma fundamentação
teológica racional para o programa de Hitler.
Bonhoeffer percebeu isso e, na Ética, procurou mostrar os seus limites. A ação
responsável não é somente responsável perante Deus. É responsável naqueles lugares
específicos onde a vida é moldada para uma sociedade inteira. Não se pode ser responsável
por si mesmo, sem viver em solidariedade com pessoas que compartilham do mundo uns
com os outros. Não se pode ser responsável somente por ser a igreja.
Bonhoeffer não estava preocupado em formular uma teologia a respeito da
salvação. Os princípios protestantes de sola fide e sola gratia precisavam de uma
realização concreta na vida cristã, uma vez que sua formulação ética consiste no fato de
que vida cristã é vida para o outro. Para o pensamento de Lutero, a salvação do homem
depende totalmente da atividade divina e não é condicionada, de modo algum por qualquer
24
ação humana. Nessa concepção, Deus tomou a iniciativa de restituir, por meio da
obediência de Cristo, a humanidade a sua dignidade e imputou a justiça de Cristo aos que
crêem. Ao contrário do pelagianismo
5
, que defendia a necessidade de uma ação humana na
justificação, a reforma protestante enfatiza que a salvação é um dom da graça de Deus que
é comunicado ao homem. O perdão, a redenção, a salvação, a justificação, termos que
caracterizam a experiência inicial cristã na teologia, são conferidos ao homem somente
pela graça mediante a fé. Porém, a preocupação de Bonhoeffer não é desenvolver essa
teologia, mas saber quais são as suas implicações para a vida cristã no mundo. Em sua
Ética, ele vai indagar sobre o modo como Cristo toma forma no mundo através daqueles
que passaram pela experiência da regeneração pela fé no próprio Cristo, conforme a
concepção luterana. Essa preocupação começa com o Discipulado, quando aborda sobre o
modo como se dá a conformidade de Cristo:
Conseguir a conformidade da imagem de Jesus Cristo o é uma tarefa que
consistisse na realização de uma imagem de Cristo que se nos exigisse. Não
somos s que nos transformamos em imagem de Cristo; é a própria imagem de
Deus, a do próprio Cristo que quer se formar em nós (Gl 4.19)
6
. É a sua própria
estatura que quer revelar-se através de nós. [...]
[...] Na encarnação de Cristo em forma humana, toda a humanidade reencontra a
dignidade da semelhança de Deus. [...] Na comunhão com o encarnado é nos
restituída a nossa verdadeira natureza humana. Somos arrancados do isolamento
gerado pelo pecado, e devolvidos à humanidade toda (BONHOEFFER, 1989, p.
191).
A prática da vida cristã pode ser aprendida somente sob os quatro mandatos
divinos: família, trabalho, autoridade e igreja. Para Bonhoeffer, Deus colocou os seres
humanos sob todos os quatro mandatos, não somente cada indivíduo sobre cada um ou
outro, mas todas as pessoas sob todos os mandatos. Não pode haver um recuo, de um
domínio “espiritual” para um domínio “mundano”. “Deixe a igreja ser a igreja”, então,
5
Ensino que teve origem no final do século IV, por Pelágio, que enfatiza a capacidade do homem em dar os
passos iniciais para a salvação mediante seus próprios esforços, independente da graça.
6
meus filhos, por quem, de novo, sofro as dores de parto, até ser Cristo formado em vós”, de acordo com a
versão revista e atualizada de João Ferreira de Almeida.
25
como queria Karl Barth. Mas deixe também a família, o governo e as instituições
econômicas e sociais que realizam a cultura serem eles mesmos.
A sociedade boa em termos teológicos não é, então, aquela que se conforma a este
ou aquele padrão da legislação ou de organização econômica, mas a que se constitui em
um lugar onde a pessoa possa ser responsável em todos os aspectos do mandato ao mesmo
tempo. Um modo de reconhecer se um governo ou um sistema político está sendo
conduzido de forma equivocada ou injusta é quando este tenta negar a autoridade dos
outros mandatos, reivindicando toda a lealdade para si e redefinindo o critério de
responsabilidade, de tal modo que a pessoa considerada responsável é aquela que serve ao
estado ou ao partido político, traindo, assim, a família, a igreja ou a cultura.
Como Bonhoeffer pensava na reconstrução da sociedade após a guerra, procurou,
sobretudo, remover este peso a respeito do desprezo que os líderes tinham colocado nas
pessoas em relação à vida cotidiana. Hitler, na verdade, era um sintoma desta compreensão
deturpada, e não a sua causa, e a ação responsável envolveria muito mais do que remoção
do sintoma. A ação responsável cria as instituições que permitem que as pessoas
mantenham sua integridade através de todos os ajustes que são essenciais a uma vida
humana plena. Este é o testemunho que a igreja tem que dar ao mundo, que todos os outros
mandatos não existem para criar divisões entre as pessoas ou para afastá-las, mas para
tratá-las como pessoas íntegras perante Deus, o Criador, o Reconciliador e o Redentor
cuja realidade em todos esses múltiplos aspectos é finalmente um Deus que se tornou
humano, Jesus Cristo.
Bonhoeffer desenvolve assim um humanismo teológico profundo que defende a
dignidade e a integridade da vida humana como um testemunho da encarnação. Os detalhes
sobre tal testemunha numa época como a nossa não é fácil de se inferir a partir da reflexão
de Bonhoeffer sobre suas próprias circunstâncias extraordinárias, mas é seguro dizer que
26
isso não estaria restrito a uma proclamação apenas. E é seguro dizer ainda que o
testemunho é importante. Pessoas ainda suportam o peso do desprezo de líderes e de
sistemas que os reduzem a trabalhos forçados, eleições manipuladas, de consumo de
determinados produtos e até mesmo de padrões de comportamento religioso desejado de
acordo com um perfil tido como elevado.
Se o problema de Bonhoeffer era um ditador que ameaçava concentrar todos os
mandatos em um, o de hoje é o oportunismo implacável que fragmenta o mundo em
centros distintos do poder e a perda da unidade das pessoas. Sessenta anos após o fim da
Segunda Guerra Mundial e da morte de Bonhoeffer, ainda estamos esperando a
reconstrução da sociedade pela qual Bonhoeffer ousou esperar. Mas hoje se tem mais
recursos para compreender sua visão. A compreensão de sua ética é um dos meios de que
se dispõe para isso.
1.2. VIDA E RESISTÊNCIA
Dietrich Bonhoeffer nasceu em Breslau, em 4 de fevereiro de 1906. Ele e sua irmã
gêmea, Sabina, eram dois dos oito filhos de Karl e Paula (von Hase) Bonhoeffer. Karl
Bonhoeffer, um professor de psiquiatria e de neurologia na universidade de Berlim, era
considerado um dos principais psicólogos da Alemanha. Quando jovem, Dietrich
Bonhoeffer recebeu o grau de doutor na Universidade de Berlim, em 1927, e se tornou
conferencista na faculdade teológica no início dos anos trinta. Foi ordenado pastor luterano
em 1931 e serviu em duas congregações, a de St. Paul e a de Sydenham, em Londres, de
1933 a 1935.
No ano de 1934, dois mil pastores luteranos organizaram a Liga da Emergência dos
Pastores em oposição à igreja estatal controlada pelo governo nazista. Esta organização
27
evoluiu para a chamada igreja confessante, uma igreja protestante livre e independente.
Bonhoeffer serviu como diretor do seminário da igreja confessante na cidade de
Finkenwalde. As atividades da igreja confessante, porém, virtualmente consideradas
ilegais, e seus cinco seminários foram fechados pelos nazistas no ano de 1937.
A oposição ativa de Bonhoeffer ao nacional socialismo nos anos trinta continuou a
se intensificar até o seu recrutamento na resistência em 1940. O núcleo de uma conspiração
para assassinar Adolph Hitler e para derrubar o Terceiro Reich era formado por um grupo
de elite de dentro do Abwehr (a inteligência militar alemã), que incluía, entre outros, o
almirante Wilhelm Canaris, dirigente da inteligência militar, o general Hans Oster (que
recrutou Bonhoeffer), e Hans von Dohnanyi, que era casado com uma das irmãs de
Bonhoeffer, Christine. Todos os três foram executados juntamente com Bonhoeffer em 9
de abril de 1945, enforcados na manhã daquele dia no campo de concentração de
Flossenburg. Por também desempenhar um papel na conspiração, o irmão de Bonhoeffer,
Klaus, foi fuzilado pelos nazistas junto com um segundo cunhado, Rudiger Schleicher, no
dia 23 do mesmo mês, sete dias antes de Hitler se suicidar.
O papel de Bonhoeffer na conspiração era de um mensageiro e um representante
junto ao governo britânico em nome da resistência, uma vez que o apoio dos Aliados era
essencial para por fim à guerra. Entre as viagens que empreendeu para o exterior a serviço
da resistência, Bonhoeffer ficou na localidade de Ettal, num mosteiro beneditino fora de
Munique, onde se dedicou a escrever a Ética, de 1940 até sua prisão em 1943. Bonhoeffer,
com efeito, formulava a base ética para quando o desempenho de determinadas ações
extremas, tais como o assassinato político, fosse requerido de uma pessoa moralmente
responsável, enquanto que, ao mesmo tempo, era tramada a derrubada do governo no que
todos esperavam que viesse a acontecer em meio a um sangrento golpe de estado. Esta
28
combinação de ação e pensamento pode ser considerada certamente como um dos
momentos mais originais na história da intelectualidade.
O dilema em que vivia o levava a reflexões conflitantes, como pode ser visto no
relato que fez depois de dez anos de perplexidade diante das ações do poder nacional
socialista alemão (o texto foi escrito por ocasião do Natal do ano de 1942), momento em
que chega a se perguntar se houve algum tempo na história em que pessoas “tiveram tão
pouco chão debaixo dos pés”.
O homem de consciência moral se debate solitário com situações
constrangedoras que sobrecarregam sua capacidade de decisão. Porém, a
amplitude dos conflitos dentro dos quais ele tem de fazer suas opções por nada
aconselhado e amparado a não ser por sua própria consciência moral o
despedaça. Os inúmeros disfarces honrosos e tentadores sob os quais o mal se
aproxima dele tornam a sua consciência temerosa e insegura, aque finalmente
ele contenta-se em salvá-la, ao invés de conservá-la limpa, ou seja, até que
engana a sua própria consciência a fim de não desesperar; pois o homem cujo
único amparo é a sua consciência moral jamais conseguirá entender que uma
consciência suja pode ser mais salutar e mais forte do que uma consciência
enganada (BONHOEFFER, 2003, p. 29).
Essas mesmas palavras encontram-se também na Ética (BONHOEFFER, 1988, p.
42). As cartas do período mostram que Bonhoeffer foi assaltado, inicialmente, de um
sentimento conflitante em relação ao seu envolvimento com a conspiração. Mas veio a se
conscientizar posteriormente de que tal ação estava dentro de um plano de compreensão
que lhe deixava em paz consigo mesmo. Ele chegou a afirmar: “o caso pelo qual eu seria
condenado é tão correto, que me poderia sentir orgulhoso dele” (apud BENHOEFT, 1966,
p. 32).
Bonhoeffer (2003, p. 197) escreveu ainda em uma de suas cartas da prisão:
O fato de termos de vivenciar agora de maneira tão intensa as coisas mais
horríveis da guerra decerto constitui para mais tarde, caso sobrevivermos, o
fundamento necessário de experiências para percepção de que a reconstrução da
vida dos povos, tanto interna quanto externamente, será possível sobre a base
do cristianismo. Por isso, devemos realmente guardar dentro de nós, digerir,
fazer frutificar o que estamos vivenciando agora e não nos desvencilhar disso.
Jamais tivemos a oportunidade de sentir o Deus irado de maneira tão palpável, e
também isso é graça.
29
1.3. ORIGENS DA ÉTICA
A partir de 1939, Bonhoeffer coletou trabalhos sobre ética teológica e filosófica.
Sempre que podia, adquiria qualquer coisa do tipo, novo ou de segunda-mão, de uma loja
de livros, segundo seu amigo Bethge (1985). Autores como Dittrich, Richard Rothe,
Hofmann Oettingen, Otto Piper, Scheler, Nikolai Hartmann Herless, Montaigne, Bernanos
e Ernest Hello faziam parte de sua biblioteca. Outros autores que ele consultou foram
Hermann Nohl, Karl Jaspers, Nietzsche, bem como autores que trataram da teologia moral
Católica Romana. Mas o próprio Bonhoeffer reconheceu que aprendeu mais de Don
Quixote do que de muitos livros de ética. Ele retomou a leitura de Balzac e dos grandes
escritores alemães do século dezenove, o que Bethge considerou muito enriquecedor para
ele durante a prisão.
Esta lista é certamente incompleta, e nós não podemos agora ter certeza que ela é
confiável; mas as obras que o amigo enumera mostram suas inclinações literárias
e sua capacidade de absorção. Não havia muita literatura existencialista em seu
sótão (o lugar onde o amigo resgatou o acervo de Bonhoeffer), ele preferia
escritores com idéias históricas e humanísticas. Embora tenha lido bastante, ele
mal redigiu quaisquer listas de referências, e ele raramente apresentava
discussões com outros autores. Ele restringia-se a uma orientação compreensiva,
para formular seu próprio esboço, livre de material trabalhado de fora. Em sua
Ética, em contraste a seu Discipulado, ele trabalhou inteiramente por si mesmo;
não houve mais nenhuma preparação, como tem sido o caso, pela troca de idéias
em seminários ou leituras. Ninguém oferecia quaisquer questões sugerindo
modificações, ou quaisquer contradições. Era bastante raro ele ler algumas
páginas para um de seus amigos, e até mesmo essas sessões foram às vezes todas
interrompidas muito brevemente e por um longo período. Ele nunca ouviu uma
contribuição real para sua Ética (BETHGE, 1985, 620).
Bonhoeffer mesmo achou que o problema era mais complicado do que em
Discipulado. Dentre os teólogos que foram influenciados por Barth, foi por anos
considerado presunçoso por formular uma ética. As tentativas de Emil Brunner
7
e de
7
Henrich Emil Brunner (1889-1966), teólogo suíço, um dos três “Bs” (Barth, Bultmann e Brunner) que mais
influenciaram os estudos teológicos no século XX, cujo pensamento se caracterizava por um alto conceito da
cristologia com ênfase no encontro pessoal em Jesus Cristo como a peça central da fé cristã.
30
Friedrich Gogarten
8
em 1932 haviam sido submetidas a severas críticas. O impulso para
novos projetos éticos, que aconteceu a partir de 1945, foi por aquela época mal
compreendido e por algum tempo não foi considerado como um trabalho atual. Até mesmo
Bonhoeffer achou a tentativa de um outro teólogo, Dilschneider, corajosa, mas sem
sucesso; ele queria controverter, em todo caso, a cristianização de Dilschneider da ordem
mundial das coisas em nome de um “ethos pessoal”.
Bonhoeffer freqüentemente afirmava que a Ética era a tarefa de sua vida. Se,
quando ele escreveu Discipulado, tinha certeza que estava lidando com um tema que
ninguém mais estava interessado e que estava esperando por ele, isto foi até mesmo mais
forte em relação à Ética. “[...] às vezes, penso que já deixei a minha vida mais ou menos
para trás e que somente me faltaria ainda concluir a Ética” (BONHOEFFER, 2003, p. 220).
Em 1932 e 1933, ele havia abandonado o tema da ética que o preocupava desde
quando esteve em Barcelona, e ele não havia tomado parte na discussão sobre ordens de
criação e de preservação. Até aquele momento, sua preocupação era com questões a
respeito de como a Igreja podia pregar o mandamento concreto, e tinha tratado do tema
sobre o senhorio de Cristo, não somente sobre a Igreja, mas sobre o mundo. Ele se
concentrou por anos numa questão menor ligada a regras de vida para aquelas pessoas que
desejariam colocar em prática o senhorio de Cristo na Igreja. Quando retoma o que havia
colocado de lado em 1933, o assunto volta com maior intensidade.
A idéia de “realidade”, por exemplo, que aplicou em Ato e Ser
9
e que o preocupou
em suas conferências na Tchecoslováquia, é desenvolvida de novo, e agora aparece
firmemente ancorada em uma Cristologia. Realidade é sempre a aceitação do mundo pelo
8
Friedrich Gogarten (1887-1967), teólogo alemão, que se ocupou da temática da secularização como
processo de emancipação do mundo moderno da tutela do cristianismo e da Igreja, mas também da
contribuição do próprio cristianismo para a formação do mundo moderno e permanência de impulsos cristãos
na sociedade moderna, numa ambivalência de descontinuidade e de continuidade entre o cristianismo e o
mundo moderno.
9
Akt und Sein, obra filosófica de Bonhoeffer ainda não traduzida para o português, escrita em 1931, na qual
trata de questões de ontologia e de teologia sistemática.
31
único que se tornou homem. Aqui, Bonhoeffer procura evitar uma compreensão mais
positivista ou idealista da realidade, visto que para ele essas concepções são abstrações.
Seu amigo Bethge (2003, p. 621) registra que ele gostaria de “se desviar das pedras
de compreensão ética realística da situação e ainda manter sua validade. Ele gostaria de
sobrepujar o vago e remoto de uma norma ética e ainda aprovar seu interesse em
continuidade”.
Ética é um livro que não foi terminado. O que nós temos o somente fragmentos
póstumos consistindo diversas abordagens coletadas. O que significa que nós não temos
uma ética de Bonhoeffer tal como ele gostaria de ter publicado. O que nós temos é o
registro de seu processo de argumentação deste assunto, processo esse interrompido em
determinados pontos. Bethge detectou pelo menos quatro desses momentos, cada um deles
como uma nova tentativa de tratar do problema, conforme foi apontado no prefácio da
Ética.
No primeiro momento, em 1939 ou 1940, Bonhoeffer começou a escrever, ainda
usando a linguagem de Discipulado, acentuando a unidade de Deus e do mundo em Cristo.
Ocupa-se com a abordagem a respeito do exclusivismo do senhorio de Cristo que é a
mensagem do Discipulado , e o extenso alcance do seu senhorio que é a nova ênfase da
Ética. O exclusivismo, a menos que ele esteja mal compreendido, lugar à noção de
liberdade, de responsabilidade e de descoberta para legitimar a secularização.
No segundo momento, estando Bonhoeffer em uma fazenda em Klein-Krössin, em
setembro de 1940, recomeça a escrever, agora sobre a presença imediata e de aspectos
relacionados ao mundo ocidental. Hitler havia conseguido alcançar suas grandiosas vitórias
então, Bonhoeffer escreveu uma surpreendente confissão de culpa da Igreja.
Teologicamente, Bonhoeffer tomou uma posição em relação à encarnação. A palavra
chave desta segunda tentativa é a conformidade Cristocêntrica (Gleichgestaltung). Cristo,
32
por moldar-se em conformidade com a natureza temporária deste mundo, desenha-se
dentro da própria conformidade. Desta maneira, para Bonhoeffer o cenário do mundo
ocidental se torna o campo marcado pela reflexão ética. A Igreja é claramente considerada
como um pedaço do mundo reconciliado. Essa idéia, de qualquer modo, provê uma relação
muito mais positiva da Igreja para o mundo do que existia no Discipulado. O mundo, que
foi considerado como o lugar para o primeiro passo da fé, agora torna-se o lugar onde o
senhorio de Cristo cria responsabilidades históricas.
A terceira tentativa foi a mais compacta. Bonhoeffer entrou no monastério de Ettal
por volta do ano de 1940-1941 para o período de trabalho mais longo daqueles anos de
guerra. Nessa fase, ele começou a desenvolver sua idéia de justificação e da nova e
frutífera distinção entre o último e o penúltimo, tema que repetidamente retornou enquanto
estava na prisão.
A quarta nova linha de argumentação possibilitou a elaboração daqueles capítulos
em que Bonhoeffer tem uma impressão política mais forte. Eles foram esboçados durante
suas pausas em Krössin ou Friedrichsbrunn (segundo o próprio Bethge) nos tempos
cruciais das ações conspiratórias de 1941 e 1942. Dessa maneira, Bonhoeffer desenvolve
sua disposição temática sobre ética, que começa a ser formulada com o Discipulado e
termina com as cartas da prisão, com a formulação de sua idéia de “mundanidade” e de
“cristianismo sem religião” num mundo emancipado.
As páginas do manuscrito da Ética estavam na mesa em Marienburger Allee,
quando Bonhoeffer foi detido em abril de 1943. Ao lado dele, as notas para o capítulo “A
Ética e o Cristão como um Tema” espalhadas por todos os lados e, numa delas, estava o
título “Estando Pronto para o Mundo”. Quando escreveu a nota “Após Dez Anos”
compartilhou com seus amigos:
Não somos Cristo, mas se quisermos ser cristãos, importa que participemos da
grandeza de coração de Cristo por meio da ação responsável, que com liberdade
33
aproveita a oportunidade e se expõe ao perigo, e por meio do compadecer-se
autêntico, que não brota do medo, mas do amor libertador e redentor de Cristo
para com todos os que sofrem. A espera passiva e a assistência indiferente não
são atitudes cristãs. Não são as experiências no próprio corpo que chamam a
pessoa a agir e a compadecer-se, mas as experiências no corpo dos irmãos, pelos
quais Cristo sofreu (BONHOEFFER, 2003, p. 40).
Durante muito tempo, a Ética de Bonhoeffer foi ignorada pelos meios acadêmicos e
teológicos, embora tenha sido publicada pelo seu amigo Bethge em 1948. Somente depois
que Bethge coletou e publicou as cartas da prisão ao amigo e seus pais, em 1951, com o
título de Resistência e submissão
10
, é que Bonhoeffer alcança notoriedade e respeito por
suas idéias esboçadas em meio ao caos e o horror da guerra. O primeiro trabalho que
divulgou e popularizou o nome do autor e o seu pensamento contido na Ética e em suas
cartas da prisão foi Honest to God, do Bispo J. A. T. Robinson, em 1963, considerando
Bonhoeffer como um dos três mais importantes teólogos do século XX, ao lado de
Bultmann e Tillich.
A concepção ética de Bonhoeffer tem origem no pensamento luterano. Michel
Keeling (2002) salienta que todo o sentido do ensino ético da Reforma es no duplo
princípio de liberdade total e de disponibilidade total do cristão: “O cristão é
soberanamente livre de quem quer que seja, e não sujeito a ninguém. O cristão é em tudo
obediente servidor de todos, e subordinado a todos” (DILLENBERGER, apud KEELING,
2002, p. 129). A salvação tem conseqüências sociais, motivadas pelo tema da
responsabilidade do cristão para com o próximo. A deve ser sempre ativa na prática do
amor e nas boas ações, considerando o cristão como “um tipo de Cristo” para o próximo.
Max Weber (2002) entendeu dessa forma o modo como Lutero trouxe um
significado religioso para as atividades seculares. O conceito de vocação foi o ponto de
partida para essa concepção. “O único modo de vida aceitável por Deus não estava na
10
Widerstand und Ergebung. Briefe und Aufzeichnungen aus der Haft. Publicada de forma completa em
português somente em 2003.
34
superação da moralidade mundana pelo ascetismo monástico, mas unicamente no
cumprimento das obrigações impostas ao indivíduo pela sua posição no mundo” (WEBER,
2002, p. 68). Por isso, Lutero não serve de ponto de partida para a interpretação weberiana
sobre a relação entre a ética protestante e o espírito do capitalismo. A concepção que
Weber adota é a influência do calvinismo e das seitas puritanas decorrentes do movimento
iniciado pela Reforma protestante, que favorece o individualismo e enfraquece o sentido de
comunhão. Essa não é a preocupação ética de Bonhoeffer.
1.4. CRISTIANISMO SEM RELIGIÃO
André Dumas
11
viu algo de positivo no fato de que Bonhoeffer nasceu na mesma
cidade de Schleiermacher e que foi aluno de Adolph Von Harnack, dois pensadores
alemães que revolucionaram o pensamento teológico, o primeiro em relação à
hermenêutica e o segundo em relação à questão histórica e dogmática, e abriram caminho
para a teologia liberal. Dumas, inclusive, tentou resumir o modo como Eberhard Bethge
interpretou a vida de seu amigo íntimo: “Bonhoeffer, quando tinha vinte anos, disse aos
teólogos: vosso tema é a igreja. Quando tinha 30 anos, disse à igreja: teu tema é o mundo.
E quando tinha próximo de 40 anos, disse ao mundo: teu tema, que é o abandono, é o tema
próprio de Deus; com este tema, ele não engana a tua existência, mas que a abre”.
O foco central que deve servir como viés para a compreensão do pensamento
fragmentário e inconcluso de Bonhoeffer é o que registrou em uma de suas cartas da
prisão: “a questão é: Cristo e o mundo que atingiu a maioridade” (BONHOEFFER, 2003,
p. 436). Moltmann (apud GIBELLINE, 1998, p. 105) entende que foi Bonhoeffer que
11
A fonte foi fornecida pela Sociedade Internacional Bonhoeffer Seção Língua Portuguesa, sob a forma de
cópia xerográfica de parte de um livro em espanhol que aborda a vida de teólogos do século XX, sem
identificação das referências bibliográficas. A citação a esse mesmo trabalho, no entanto, é encontrada em
outros estudos sobre Bonhoeffer, sem indicação das referências.
35
consignou à teologia a possibilidade da recuperação do horizonte, perdido por ocasião da
teologia liberal do final do século XIX e início do século XX e que procurou ser resgatado
pela teologia dialética, da década de 1920 a 1930. Segundo essa compreensão, a teologia
perdeu o horizonte da realidade secular e histórica, em que o anúncio da revelação
encontra-se desvinculado da realidade secular.
A partir do Iluminismo, a consciência religiosa da humanidade mudou
radicalmente. Da sacralização dos problemas filosóficos da Idade Média passou-se à
racionalização das questões relacionadas à fé. Kant acreditava que o mundo estava no
limiar de sua maioridade, embora, na realidade, os homens estivessem fundados em
pressupostos como a existência de Deus, ainda que não prestassem muita atenção a Ele.
Kant afirmou em seu artigo “Resposta à pergunta: Que é ‘Esclarecimento’?”:
Esclarecimento significa a saída do homem de sua menoridade, da qual o
culpado é ele próprio. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu
entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado
dessa menoridade se a sua causa não estiver na ausência de entendimento, mas
na ausência de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de
outrem. Sapere aude! Tem a ousadia de fazer uso de teu próprio entendimento
tal é o lema do Esclarecimento [Aufklärung].
12
Bonhoeffer acreditava que o mundo moderno tinha chegado a essa maioridade,
deixando de lado toda autoridade fora de si mesmo. Por essa razão, era hora da igreja
enfrentar esse fato e reconhecer que o homem moderno vive como se Deus não estivesse
presente. Para ele, o movimento em direção à autonomia humana havia chegado a sua
plenitude no século XX: “o ser humano aprendeu a dar conta de si mesmo em todas as
questões importantes sem apelar para a ‘hipótese de trabalho Deus’” (2003, p. 434).
Ao analisar a experiência religiosa contemporânea, Peter Berger (1973, p. 14)
constatou uma evasão do sobrenatural, que vivemos um tempo em que o divino “se retraiu
para o fundo da preocupação e consciência humanas”. Dietrich Bonhoeffer (2003, p. 369)
12
KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: Que é “Esclarecimento”? In: Fundamentos da metafísica dos
costumes e outros escritos. Trad. Alex Martins. São Paulo: Martin Claret, 2002. p. 125.
36
também havia afirmado que “rumamos para uma época totalmente arreligiosa; as
pessoas, sendo como são, simplesmente não conseguem mais ser religiosas”. As questões
que ele levanta em seguida são significativas e ainda atuais:
Como poderá Cristo tornar-se Senhor também dos arreligiosos? Existem cristãos
arreligiosos? Se a religião é apenas uma roupagem do cristianismo e também
essa roupagem teve aspectos muito diferentes em diferentes épocas o que seria
então um cristianismo arreligioso? [...] O que significam uma igreja, uma
comunidade, uma prédica, uma liturgia, uma vida cristã num mundo arreligioso?
Como podemos falar de Deus – sem religião, ou seja sem os pressupostos
temporalmente restritos da metafísica, da interioridade etc. etc.? Como podemos
falar (ou talvez nem mesmo se possa mais falar’ disso como até agora) ‘de
maneira mundana’ de ‘Deus’? Como podemos ser cristãos ‘de maneira
arreligiosa e mundana’? Como podemos ser ekklesia, convocados dentre outros,
sem nos entendermos como preferidos em sentido religioso, mas como pelo
contrário, totalmente pertencentes ao mundo? (2003, p. 370-371).
A característica principal do liberalismo protestante alemão, especialmente desde o
século XIX até a Primeira Guerra Mundial, foi de relacionar conceitos da tradição cristã
aos dados da história. Era, por assim dizer, uma preocupação antropológica, fundada no
espírito da época marcada por uma consciência burguesa triunfante, confiante na
racionalidade e capacidade humanas, firmada na interpretação progressiva da história. Esse
modo de interpretação, influenciada pelo positivismo de um lado e pelo historicismo de
outro, acabou por tornar-se ingênuo e superficial após a Primeira Guerra Mundial. A
teologia liberal do final do século XIX, início do século XX, pode ser caracterizada como
“perda do centro”. A teologia dialética foi uma reação visando à recuperação da
transcendência da palavra de Deus como tema da teologia. O problema, entretanto, com o
desenvolvimento do pensamento teológico, principalmente em função da Segunda Guerra
Mundial, é que isso conduziu a uma preocupação com o horizonte da missão, no que diz
respeito ao confronto com a realidade secular, não pela afirmação da teologia dialética,
mas também por uma retomada da crítica da teologia liberal.
A neo-ortodoxia que emerge descobre os pontos fracos da teologia liberal e rejeita
os pontos de partida antropológicos e históricos. Peter Berger concorda que o liberalismo
37
enfatizou os caminhos do homem para Deus e que a neo-ortodoxia, tendo Karl Barth como
um de seus expoentes, enfatizou os relacionamentos de Deus para com o homem. A
orientação teológica de Dietrich Bonhoeffer pode ser entendida dentro do contexto da neo-
ortodoxia, em que a aproximação entre o homem e Deus somente pode ser compreendida
por meio de uma revelação divina, atribuída inteiramente a uma atividade e iniciativa
divina, sem a interferência da condição humana.
Segundo Jürgen Moltmann (apud GIBELLINI, 1998, p. 105):
Hoje poderíamos definir nossa situação como uma igualmente “perda do
horizonte”, do horizonte da realidade secular, histórica, espiritual. [...] É
assustadoramente evidente que o anúncio da revelação hoje está desvinculado da
realidade secular. O caminho que leva do centro aos horizontes parece obstruído.
E, contudo, não existe centro sem horizonte, não existe centro sem
circunferência e – falando concretamente – não existe Cristo sem seu régio
senhorio secular e corporal. [...] Mas como aplicar essa amplitude do horizonte à
realidade de Cristo?
Rudolf Bultmann seguiu o caminho da teologia hermenêutica, considerando que a
palavra de Deus é esclarecimento da existência humana. Karl Barth tratou desse tema ao
refletir sobre a passagem gradual da reflexão dialética para a analogia da fé, assim como o
reconhecimento da humanidade de Deus em Jesus Cristo. O que Moltmann sugere, no
entanto, é que foi Dietrich Bonhoeffer quem deu à teologia o tema da recuperação do
horizonte, apontando para uma esperança ao tratar do problema de uma ética cristã para
esse tempo. Sua preocupação principal era de que fosse possível a defesa de um
cristianismo sem religião.
1.5. O MUNDO EMANCIPADO
A formulação de uma ética concreta não está preocupada com princípios e normas,
mas interroga pela vontade de Deus, preocupa-se com a questão do mandato concreto de
Deus, que alcance o homem na realidade do mundo. Para Dietrich Bonhoeffer, é preciso
38
deixar de lado um pensamento em duas esferas, que distingue um espaço sagrado e um
espaço profano, que separa o que é cristão do secular, o espiritual do temporal. A
concepção ética não faz essa distinção, essas esferas não se contrapõem, mas mantém
juntas a realidade de Deus e a realidade do mundo.
Bonhoeffer compreendia que a teologia precisa assumir radicalmente a autonomia
mundana, entendida como a descoberta de leis segundo as quais o mundo vive e se basta a
si mesmo nos domínios das ciências, da vida social, da vida política, da arte, da ética e da
religião, e que toda a tentativa de tomar Deus como hipótese de trabalho exige sempre a
construção de um projeto humano. É dessa forma que Angel Castiñeira (1997, p. 57)
entende a proposta do pensamento teológico de Bonhoeffer:
[...] uma teologia que não pretenda frear o processo de maturação do mundo,
introduzindo, às escondidas, Deus num falso espaço de necessidade, num recanto
suburbano-limite da existência humana o dos problemas insolúveis ou o das
fraquezas humanas , mas que pretenda afirmar Deus como centro da existência
humana, a partir da afirmação do homem. O cristianismo, dirá, deve viver
realmente no mundo sem Deus, e não deve tentar preencher religiosamente esta
ausência de Deus no mundo.
Bonhoeffer escreve na carta de 30 de abril de 1944 (2003, p. 369):
O que me ocupa incessantemente é a questão: o que é o cristianismo ou ainda
quem é de fato Cristo para nós hoje. Foi-se o tempo em que se podia dizer isso
para as pessoas por meio de palavras sejam teológicas ou piedosas; passou
igualmente o tempo da interioridade e da consciência moral, ou seja, o tempo da
religião de maneira geral. Rumamos para uma época totalmente arreligiosa; as
pessoas, sendo como são, simplesmente não conseguem mais ser religiosas.
Para ele, o que caracterizou o cristianismo nos 1.900 anos de pregação que o
antecederam estava baseado no que chamou de a priori religioso das pessoas. O
cristianismo se constituiu numa forma de religião, compreendida como uma forma de
expressão historicamente condicionada e passageira do ser humano. E se as pessoas
(principalmente diante do horror da guerra, que remete à necessária pergunta sobre onde
39
está Deus) vierem a se tornar a-religiosas, qual deve ser a postura do cristianismo, diante
do modo como existiu até agora? Essa questão o inquietava.
[...] eu gostaria de falar de Deus não nos limites, mas no centro, não nas
fraquezas, mas na força, portanto não na morte e na culpa, mas na vida e no bem
das pessoas. Nos limites, parece-me mais adequado calar e deixar que o
insolúvel permaneça sem solução. [...] O além de Deus não é o além de nossa
capacidade de compreensão! A transcendência gnosiológica nada tem a ver com
a transcendência de Deus. Deus é transcendente no centro de nossa vida. A igreja
não está onde a capacidade humana falha, nos limites, mas no centro da
realidade. [...] Que aparência terá esse cristianismo arreligioso e que forma
assumirá são questões com que estou me ocupando intensamente agora [...]
(2003, p. 374).
A preocupação de Bonhoeffer passa a ser, então, como proclamar Deus e sua
palavra de uma forma não religiosa. “O que está em pauta não é o além, mas este mundo e
como ele é criado, conservado, estruturado em leis, reconciliado e renovado” (2003, p.
380). Para ele, a igreja que durante anos lutou pela sua própria preservação, fazendo disso
seu fim em si mesma, é incapaz de ser portadora de uma palavra de reconciliação e de
redenção que atinja os seres humanos e o mundo em sua forma de compreender a
realidade.
Assim justifica mais adiante:
Devemos encontrar Deus naquilo que conhecemos e não naquilo que não
conhecemos; Deus não quer ser compreendido por nós nas questões não
resolvidas. Isso vale para a relação entre Deus e o conhecimento científico. Mas
vale também para as questões humanas gerais da morte, do sofrimento e da
culpa. [...] De fato, pessoas de todas as épocas conseguiram resolver essas
questões também sem Deus, e simplesmente não é verdade que só o cristianismo
tenha a solução para elas. [...] Deus tem de ser conhecido não apenas nos limites
de nossas possibilidades, mas no centro da vida; Deus quer ser conhecido na
vida e não apenas na morte, na saúde e na força e não apenas no sofrimento, na
ação e não apenas no pecado. A razão disso está na revelação de Deus em Jesus
Cristo. Ele é o centro da vida, e de modo algum “veio para” trazer a resposta
para questões não resolvidas (2003, p. 415).
Para Bonhoeffer, o movimento em direção à autonomia humana começou ainda no
final da Idade Média (ele o situa mais ou menos no século XIII, correspondente à teologia
escolástica de Anselmo, 1033-1109, e Tomás de Aquino, 1225-1274) e se concretizou em
sua época. Mas, nos cem anos anteriores a seu tempo, esse movimento se acentuou
40
também em relação ao conhecimento de Deus. O mundo que chegou à consciência de si
mesmo e de suas leis está a tal ponto seguro de si mesmo que ficamos inquietos com isso”,
disse (2003, p. 435).
Segundo Bonhoeffer, Deus está sendo empurrado cada vez mais para fora do
âmbito de um mundo que atingiu a maioridade. Desde Kant, passando pelas afirmações de
Feuerbach, Hegel e Nietzsche, Deus é remetido para um espaço além do mundo. Ele
afirma, então, que “Jesus reclama para si e para o reino de Deus toda a vida humana em
todas as suas manifestações. [...] Jesus Cristo reivindica para si o mundo que atingiu a
maioridade” (BONHOEFFER, 2003, p. 459).
Quando Bonhoeffer se refere ao ser humano, o faz em relação ao ser humano
inteiro tal como ele é diante de Deus. Isso implica em uma proposta de uma ação
proclamadora:
O que pretendo com isso, portanto, é que Deus não seja introduzido
clandestinamente em algum derradeiro lugar secreto, mas que simplesmente se
reconheça a maioridade do mundo e do ser humano, que o ser humano não “seja
tornado ruim” na sua mundanalidade, mas que seja confrontado com Deus e no
seu ponto mais forte, que se desista de todos os truques padrescos e não se
encarem a psicoterapia e a filosofia existencialista como precursoras de Deus
(BONHOEFFER, 2003, p. 466).
A maioridade do mundo leva ao reconhecimento da nossa situação perante Deus,
que nos faz saber que temos que viver como pessoas que dão conta da vida sem Deus.
Bonhoeffer afirma:
“O Deus que está conosco é o Deus que nos abandona (Mc 15.34)! O Deus que
faz com que vivamos no mundo sem a hipótese de trabalho Deus é o Deus
perante o qual nos encontramos continuamente. Perante e com Deus vivemos
sem Deus. Deus deixa-se empurrar para fora do mundo até a cruz; Deus é
impotente e fraco no mundo e exatamente assim, somente assim ele esconosco
e nos ajuda” (2003, p. 487-488).
Bonhoeffer está consciente de que esse modo de compreender é uma inversão de
tudo o que o ser humano religioso espera de Deus:
41
O ser humano é conclamado a compartilhar do sofrimento de Deus por causa do
mundo sem Deus. Portanto, ele realmente tem de viver no mundo sem Deus e
não deve procurar encobrir ou idealizar em termos religiosas essa ausência de
Deus; ele tem de viver de “forma mundana”, isto é, está liberto dos falsos
vínculos e bloqueios religiosos. Ser cristão não significa ser religioso de uma
determinada maneira, tornar-se alguém (um pecador, um penitente, um santo),
com base em alguma metodologia, mas significa ser uma pessoa; Cristo não cria
em s um tipo de ser humano, mas o próprio ser humano. Não é o ato religioso
que produz o cristão, mas a participação no sofrimento de Deus na vida
mundana. Esta é a metanoia: não pensar primeiro nas próprias necessidades ou
aflições, perguntas, pecados e medos, mas deixar-se arrastar para o caminho de
Jesus, para dentro do evento messiânico de Isaías 53
13
.
Nesse sentido, o ser humano é remetido a si mesmo, com quem ainda não
conseguiu lidar muito bem. Nossa relação com Deus não é uma relação religiosa com um
ser mais elevado ou superior. A relação com Deus é uma nova vida de existência para os
outros, como participação do ser de Jesus. “O transcendente não são as tarefas infinitas,
inatingíveis, mas é o respectivo próximo que está ao alcance” (BONHOEFFER, 2003.
510).
Bonhoeffer desafia a igreja contemporânea a sair de sua estagnação, para agir e
proclamar no mundo numa confrontação intelectual com o mundo. “Também temos de
arriscar dizer coisas que possam ser contestadas, desde que dessa maneira mexamos com
questões vitais. Como teólogo moderno’ que ainda traz dentro de si o legado da teologia
liberal, sinto-me no dever de tocar nessas questões” (BONHOEFFER, 2003, p. 507-508).
Sua proposta, que pode ser resumida na expressão “cristianismo a-religioso num mundo
emancipado”, apesar de ter sido produzida de modo fragmentário e incompleto, aponta
para um cristianismo que deve ser vivido na responsabilidade, na participação e na
13
Referência ao texto bíblico que consiste na profecia a respeito da vinda do messias, na condição de um
servo sofredor: “Quem creu em nossa pregação? E a quem foi revelado o braço do Senhor? Porque foi
subindo como renovo perante ele e como raiz de uma terra seca; não tinha aparência nem formosura;
olhamo-lo, mas nenhuma beleza havia que nos agradasse. Era desprezado e o mais rejeitado entre os
homens; homem de dores e que sabe o que é padecer; e, como um de quem os homens escondem o rosto, era
desprezado, e dele não fizemos caso. Certamente, ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas
dores levou sobre si; e s o reputávamos por aflito, ferido de Deus e oprimido. Mas ele foi traspassado
pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniqüidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e
pelas suas pisaduras fomos sarados” (Isas 55.1-5, de acordo com a versão Revista e Atualizada de João
Ferreira de Almeida).
42
solidariedade com o mundo, que se torna capaz do diálogo a partir de novas palavras e
novas ações.
Capítulo 2
O NOVO RADICALISMO DE BONHOEFFER
Para Bonhoeffer, o objetivo da ética não pode ser uma ética de princípios ou de
normas, o objetivo da ética não é o conhecimento do bem e do mal. Esse tipo de
pensamento exige primeiramente uma formulação para que depois se aplique à realidade.
Seu objetivo estava voltado declaradamente para a elaboração de uma ética que guie os
cristãos e que interrogue sobre o mandamento concreto de Deus. Por isso, elabora, a partir
de uma crítica à iniciativa kantiana e à metafísica, uma ética baseada na ação responsável,
a partir da compreensão do que chamou de mandato concreto de Deus. Poderíamos falar de
uma teologia ética, que começa com a reflexão do que significa seguir a Cristo, no
Discipulado, e que se prolonga com a temática do mundo emancipado, de Resistência e
submissão.
No Discipulado, Bonhoeffer deixa claro que a questão importante era a obediência
à vontade de Cristo.
[...] Segui-lo, eis uma coisa sem conteúdo. Isso de fato não constitui um
programa de vida cuja realização fizesse sentido; não é um objetivo, um ideal
pelo qual se deva lutar; nem é algo que, pelos padrões humanos, mereça o
sacrifício de qualquer coisa ou de nós próprios. [...] em si, continua sendo uma
44
coisa absolutamente destituída de significado, sem merecer atenção. [...] O
discípulo é arrancado de sua relativa segurança de vida, e lançado à incerteza
completa (i. e. na verdade, para a absoluta segurança e proteção da comunhão
com Jesus); de uma situação previsível e calculável (i. e. de uma situação
totalmente previsível) para dentro do imprevisível e fortuito (na verdade, para
dentro do que é unicamente necessário e previsível); do domínio das
possibilidades infinitas (i. e. para a única realidade libertadora). [...]
O chamado ao discipulado é, portanto, comprometimento exclusivo com a
pessoa de Jesus Cristo, a subversão de todos os legalismos mediante a graça
daquele que chama. [...] (BONHOEFFER, 1980, p. 20-21).
Para Bonhoeffer, o caminho do sofrimento pessoal é um caminho mais promissor e
mais seguro para se desenvolver o pensamento e a ação, mais do que em meio a uma vida
confortável. É o que tentou mostrar e que vivenciou nas cartas da prisão. Na Ética,
Bonhoeffer desenvolve o significado desse caminho sacrificial e trata o sofrimento humano
com especial cuidado, evitando o caminho especulativo da tradição teológica sobre a
hostilidade divina ao pecado humano. Num tempo de desencantos, Bonhoeffer anuncia que
Cristo assume o mundo e que o mundo, tal como se encontra, está reconciliado com
Deus em Cristo.
Jesus Cristo toma forma no mundo através dos seres humanos e essa é, para
Bonhoeffer, a razão de ser da existência humana. Apenas uma parcela da humanidade tem
consciência disso e essas pessoas em quem Cristo toma forma se constituem em uma nova
comunidade, que é a igreja. Não se trata, obviamente, da dimensão institucional que a
igreja adquiriu historicamente, mas o conjunto daqueles que assumiram o chamado e o
comprometimento de seguir a Cristo. Essa igreja permanece sob o julgamento divino, uma
vez que sua função é ser o lugar onde as pessoas se reconhecem culpadas. O cristão, por
conseguinte, existe em tensão, vivendo o que chama de condição última (o já-redimido) em
plena condição penúltima (o ainda-por-redimir). Na condição última do cristão, a questão
ética não está relacionada à norma, mas ao perdão e a plenitude de vida em Cristo. Esse é o
futuro em cuja esperança está firmada a fé cristã. Porém, essa condição última já se
antecipa no presente, que é um tempo de combate e de esperança, o que ele chama de
45
condição penúltima. Em Cristo, a realidade de Deus encontra-se com a realidade do
mundo. A vida cristã, então, é definida como a participação nesse encontro de Cristo com o
mundo.
Para a abordagem sobre o conteúdo da Ética, optamos por seguir os sub-itens
adotados por Gibelline (1998). Os sete fragmentos principais da obra são sistematizados
em quatro grandes temas: a ética como configuração; a dialética do último e penúltimo; a
teoria dos mandatos e a vida ética como responsabilidade. Estes temas servirão de base
para os comentários feitos a seguir.
2.1. A ÉTICA COMO CONFIGURAÇÃO
Com um viés muito semelhante à filosofia aristotélica, Dietrich Bonhoeffer
estabelece o princípio distintivo da ética cristã como sendo a busca da origem de toda e
qualquer preocupação ética. Desde o começo da Ética a Nicômaco, Aristóteles define a
ética como o estudo da ação humana fundamentada no bem: “admite-se geralmente que
toda arte e toda investigação, assim como toda ão e toda escolha, têm em mira um bem
qualquer; e por isso foi dito, com muito acerto, que o bem é aquilo a que todas as coisas
tendem” (1973, p. 249). Fica claro que a existência humana se inscreve num plano geral e
harmonioso, mas de realização bastante complexa. A natureza humana, para Aristóteles,
encerra em sua estrutura o conflito da forma, que luta para subordinar a matéria, e da
razão, que tenta comandar as paixões, desejos e sentimentos, na perspectiva do dualismo
psicofísico a superioridade da alma sobre o corpo e a distinção entre a parte racional e a
parte dominada pela vontade. Entretanto, para ele a idéia não existe separada dos
indivíduos concretos. Por isso, é preciso distinguir o que o indivíduo é atualmente e o que
46
pode vir a ser. Enquanto Deus é ato puro, o homem é atividade, passagem da potência ao
ato.
O que é a felicidade, então para Aristóteles? É a vida teórica ou contemplação,
como atividade humana guiada pela razão, que não se realiza de forma acidental, mas
mediante a aquisição das virtudes, como sendo certos modos constantes de agir. As
virtudes são atitudes adquiridas e se constituem num termo médio e equilibrado entre dois
extremos. A felicidade que se alcança por meio da virtude exige condições que o se
bastam sozinhas para se realizarem, como a liberdade. O triunfo da virtude é, portanto, a
vitória do homem sobre si mesmo, conquistando a harmonia interior, quando se torna
senhor de si.
Porquanto a existência é boa para o homem virtuoso, e cada um deseja para si o
que é bom, ao passo que ninguém desejaria possuir o mundo inteiro se para tanto
lhe fosse preciso tornar-se uma outra pessoa (quanto a isso, Deus é quem tem a
posse atual do bem). Tal homem só deseja essas coisas com a condição de
continuar sendo o que é; e o elemento pensante parece ser o próprio indivíduo,
ou sê-lo mais do qualquer outro dos elementos que o formam. E ele deseja viver
consigo mesmo, e o faz com prazer, que se compraz na recordação de seus
atos passados e suas esperanças para o futuro são boas, e portanto agradáveis
(ARISTÓTELES, 1973, p. 403).
Aristóteles elabora um discurso sobre a felicidade do homem que se tornou
consciente de si:
Mas uma tal vida é inacessível ao homem, pois não será na medida em que é
homem que ele viverá assim, mas na medida em que possui em si algo de divino.
[...] Se, portanto, a razão é divina em comparação com o homem, a vida
conforme a razão é divina em comparação com a vida humana. Mas não
devemos seguir os que nos aconselham a ocupar-nos com coisas humanas, visto
que somos homens, e com coisas mortais, visto que somos mortais; mas, na
medida em que isso for possível, procuremos tornar-nos imortais e envidar todos
os esforços para viver de acordo com o que há de melhor em s; porque, ainda
que seja pequeno quanto ao lugar que ocupa, supera a tudo o mais pelo poder e
pelo valor (ARISTÓTELES, 1973, p. 429).
O objetivo da ética aristotélica é tornar o homem bom. “Não investigamos para
saber o que é virtude, mas a fim de nos tornarmos bons, do contrário o nosso estudo seria
inútil” (ARISTÓTELES, 1973, p. 268). Indagará mais adiante: “Se estes, assim como a
47
virtude e também a amizade e o prazer, foram suficientemente discutidos em linhas gerais,
devemos dar por terminado o nosso programa?” (p. 432). A resposta pode ser negativa,
pois a ética não visa à especulação, mas à prática. “No tocante à virtude, pois, não basta
saber, devemos tentar possuí-la e usá-la ou experimentar qualquer outro meio que se nos
antepare de nos tornarmos bons” (p. 432).
O tema que envolve a ética cristã, para Bonhoeffer, contudo, não é um princípio ou
uma norma, mas o fato da reconciliação do mundo com Deus realizada em Cristo. A crítica
de Bonhoeffer das concepções éticas resulta numa idealização de uma formulação ética
que é aristotélica em sua orientação, mas que é cristológica
14
em sua expressão. Ela
compartilha com um caráter orientado de moralidade e, ao mesmo tempo, ela descansa
firmemente na sua cristologia. Para Bonhoeffer, o fundamento do comportamento ético é
marcado pela preocupação sobre como a realidade do mundo e como a realidade de Deus
são reconciliadas na realidade de Cristo. A questão é: como Cristo toma forma no mundo?
Jesus Cristo não é o mestre simplesmente, mas aquele que forma e a essência da ética é
estabelecer uma “con-formação” com Cristo.
2.1.1. O mundo dos conflitos
Na origem de sua concepção ética, a noção de bem e de mal não é o alvo da
reflexão. “Saber do bem e do mal significa compreender a si mesmo como origem do bem
e do mal, como fonte de uma eterna escolha e eleição” (BONHOEFFER, 1988, p. 16)
15
. O
“eternamente Uno” é o único que possui total conhecimento do bem e do mal. Mas,
14
A área de estudo da teologia que desenvolve a interpretação da pessoa e da obra de Jesus Cristo, tanto do
ponto de vista histórico quanto do ponto de vista da fé, e que por essa razão se constitui como definidora da
essência do próprio cristianismo.
15
As citações à Ética de Bonhoeffer são retiradas da primeira edição em língua portuguesa, publicada pela
Editora Sinodal (São Leopoldo, RS), impressa em 1988, traduzida por Helberto Michel da nona edição alemã
da Ethik. Desse ponto em diante, a referência a essa obra será feita apenas pela indicação do número de
página onde se encontra a citação literal.
48
quando o homem entende a si mesmo como origem do bem e do mal, torna-se como Deus,
contra Deus. “Em lugar de Deus, o ser humano enxerga a si mesmo” (p. 17). Com isso,
nasce o pudor, a vergonha porque perdeu a algo que faz parte de sua essência e que
constitui a sua integridade.
Assim como Nietzsche afirma que “todo espírito profundo precisa de uma
máscara”, Bonhoeffer reconhece que essa máscara não é um simples disfarce. Ela encobre
o desejo humano de recuperar a integridade perdida. O pudor, uma sensação de perda,
sustenta a vergonha. O ser humano sente que falta algo em si. Esta sensação é apoiada pela
dicotomia original que mascara a realidade. O pudor, a vergonha da nudez, provoca a
busca da unidade perdida. Como máscara, o pudor encobre a capacidade criadora do
homem. “Isso vale tanto para a gestação da vida humana como para o surgimento da obra
de arte, da descoberta científica e de toda e qualquer obra criativa nascida da união do ser
humano com o mundo das coisas” (p. 18). A dialética desta tensão – coberto e descoberto –
só pode ser superada pelo perdão (a negação da vergonha: a humilhação), que se concretiza
na confissão.
A consciência é o sinal de desunião do homem consigo mesmo. Ela trata da relação
do homem consigo mesmo e faz com que o relacionamento com Deus e com o outro surja
dessa relação.
Sabendo do bem e do mal na separação da origem, o ser humano passa a refletir
sobre si mesmo. Sua vida, agora, consiste na autocompreensão, como
originalmente consistia em seu saber de Deus. O autoconhecimento se tornou
parâmetro e objetivo da vida [...] Autoconhecimento é o interminável esforço do
ser humano de superar, mediante o pensamento, a desunião consigo mesmo,
distinguindo-se incessantemente de si mesmo, é o interminável esforço do ser
humano de chegar à unidade consigo mesmo (p. 19-20).
Sua gnosiologia é baseada na afirmação de que “conhecer significa agora
estabelecer o relacionamento consigo mesmo, significa reconhecer a si mesmo em tudo e
tudo em si mesmo” (p. 20). É nessa perspectiva que se encontram as dicotomias resultantes
49
do saber o bem e o mal, tais como o ser e o dever, a vida e a lei, razão e instinto, dever e
desejo, o necessário e o opcional etc. Isso é o ser humano.
Para Bonhoeffer, que entende o mundo como o mundo da unidade reencontrada, a
reconciliação tornou-se o ponto decisivo da experiência especificamente ética. Não na
revelação bíblica a desintegração do ser humano por causa do conflito, mas algo que é
“natural, alegre, certo e claro”.
Bonhoeffer usa a figura do fariseu para afirmar que é no encontro com Jesus que o
antigo e o novo ficam claramente evidentes. O fariseu é o ser humano digno de admiração,
que coloca toda a sua vida sob o conhecimento do bem e do mal, que é um juiz rigoroso
tanto de si mesmo quanto do próximo para honra de Deus, de quem, humildemente,
recebe seu saber. Para o fariseu, cada momento da vida se torna uma situação de conflito
em que deve escolher entre o bem e o mal.
Evidentemente, diferenças entre o pecador e aquele que se esforça pelo bem,
diferenças que nunca devem ser desconsideradas. Quem despreza as tais diferenças peca
contra o conhecimento do bem e do mal. Assim como a pergunta e atenção da parte dos
fariseus provêm da desunião do saber do bem e do mal, da mesma forma a réplica de Jesus
emana da unidade com Deus, com a origem, da desunião superada do ser humano em
relação a Deus. “O que acontece entre Jesus e os fariseus é mera repetição daquela
primeira tentação (Mateus 4:1-11)
16
na qual o diabo tentou prender Jesus em sua
discordância na palavra de Deus e que Jesus venceu a partir de sua unidade essencial com a
palavra de Deus” (p. 21).
A ação de Jesus consiste na realização da vontade divina. “A liberdade de Jesus não
é a escolha arbitrária de uma entre incontáveis possibilidades. Antes, consiste justamente
na completa simplicidade de sua ação, para a qual nunca existem várias opções, conflitos e
16
Essa passagem bíblica narra o episódio da tentação de Jesus Cristo no deserto depois de um jejum
prolongado.
50
alternativas, mas sempre uma coisa só” (p. 22). Jesus vive e age a partir da vontade de
Deus, não a partir do conhecimento do bem e do mal. Esse conceito de vontade divina é o
princípio afirmativo da vida de Jesus, é vontade de potência.
Quando Jesus estabelece o princípio “não julgueis, para que não sejais julgados”,
não o faz no sentido de uma prudência, mas na perspectiva de sua própria missão, que não
veio para julgar, mas para salvar. Nesse sentido, Jesus exige a conversão do homem em
todo o seu ser, expondo-o como pecador. “Jesus exige a superação do conhecimento do
bem e do mal, exige a unidade com Deus” (p. 23). A capacidade humana de julgar por si só
não é resultado da maldade do ser humano, mas é a sua essência que se revela no discurso
e, por isso, é a raiz de todos os fenômenos psicológicos perceptíveis. Bonhoeffer identifica
isso a partir da compreensão de Nietzsche, uma vez que o julgar não é errado por brotar de
motivações obscuras, mas porque é próprio do ser humano em sua essência. A conversão
do fariseu só pode nascer do conhecimento superado do bem e do mal em Jesus Cristo.
Mas um julgar que nasce da unidade realizada em Cristo, que consiste em um
saber novo que supera o conhecimento do bem e do mal, “como não-sabedor, tornou-se
sabedor somente de Deus e, nele, de tudo. [...] Ele conhece a Deus como a suspensão de
toda a dissensão, de todo julgar e condenar, como aquele que ama e vive” (p. 24).
Mais adiante, ele afirma sobre o modo como o ser humano é chamado para fora
dessa compreensão dualista e, assim, dar lugar à experiência libertadora da conversão:
O ser humano não pode viver, ao mesmo tempo, na reconciliação e na desunião,
na liberdade e sob a lei, na simplicidade e na discordância. [...] esta palavra de
Jesus [...] significa o chamamento para sair da dicotomia, da defecção, do saber
do bem e do mal, para a reconciliação, para a unidade, para a origem, para a
nova vida que está somente em Jesus. É o chamado libertador para a
simplicidade, para a conversão. [...] para os que vivem na suspensão do saber a
respeito do bem e do mal, não mais escolha entre múltiplas alternativas;
existe sempre só o fato da eleição para a símplice prática da uma vontade divina,
não mais podendo haver para o seguido de Jesus noção do próprio bem (p. 25-
26).
51
Cabe, então, ao cristão o examinar qual seja a vontade de Deus como exercício do
examinar-se a si mesmo. Não se trata de um exame ingênuo nem de um sistema de regras,
mas que se faz novo e diferente nas diferentes situações da vida. Não se pode discernir a
partir de si mesmo, a partir do saber do bem e do mal.
Nem a voz do coração, nem alguma inspiração, nem tampouco algum princípio de
validade universal podem ainda ser confundidos com a vontade de Deus que se revela
sempre nova somente a quem sempre procede ao exame. “O exame aflora a partir de uma
metamorfose, ou seja, de uma renovação de mente (Romanos 12:2)” (p. 26). Bonhoeffer
desenvolve, então, o examinar a si mesmo para que se reconheça a vontade de Deus, para
que o homem dependa exclusivamente da graça, que se renova e quer se renovar todos os
dias” (p. 26).
Como discernir a vontade de Deus? Como estabelecer uma decisão que tenha como
ponto de partida o exame de si mesmo? Bonhoeffer comenta:
[...] viver e crescer no amor significa: viver na reconciliação a unidade com Deus
e os semelhantes, significa viver a vida de Jesus Cristo. [...] Somente com base
em Jesus pode-se discernir qual seja à vontade de Deus. [...] Este examinar nasce
do saber-se guardado, sustentado e guiado pela vontade de Deus, do saber acerca
da graciosa unidade, concedida, com a vontade de Deus, e procura robustecer
este saber dia após dia na vida concreta. [...] Sob essa pressuposição, no entanto,
deve-se examinar realmente qual é à vontade de Deus, o que é certo em dada
situação, o que agrada a Deus, pois vida e ação devem ser concretas. [...] Então,
após todo sério examinar, haverá também a liberdade para real decisão e, nela, a
confiança de que, através de tal examinar, Deus mesmo, não o ser humano,
impõe a sua vontade. [...] Não existe apenas um auto-exame farisaico, mas
também um cristão, isto é, um auto-exame que não visa o próprio saber a
respeito do bem e do mal e sua concretização na vida prática, mas que renova
diariamente a percepção de que “Jesus Cristo está em nós”. Para o cristão, [...]
Jesus deve ocupar nele exatamente o espaço até agora preenchido pelo próprio
saber acerca do bem e do mal. [...] No auto-exame dos cristãos o olhar não se
desvia de Jesus para o próprio eu; mas, fica preso em Jesus Cristo. Sob esta
pressuposição da presença e ão de Jesus em nós, de ele nos pertencer, pode e
deve surgir a pergunta se e como s lhe pertencemos, nele cremos e a ele
obedecemos na vida cotidiana. [...] Nosso único critério é o próprio Jesus Cristo
vivo. [...] O exame da vontade de Deus é, de certo modo, parte da própria
vontade de Deus da mesma forma como o auto-exame do cristão é parte da
vontade de Jesus Cristo em nós (p. 27-29).
52
A única postura adequada para o ser humano perante Deus é a prática da sua
vontade. O sermão do monte
17
é um chamado para o fazer cristão como submissão à
vontade de Deus. “No cumprimento da vontade de Deus o ser humano desiste de todo
direito próprio, de toda autojustificação” (p. 29). Quando a Escritura exige ação, ela remete
o ser humano ao próprio Jesus Cristo, não à sua própria capacidade. As duas atitudes que
se pode ter perante a lei, o julgar e fazer, excluem-se reciprocamente.
O praticante da lei por certo deve ser também um ouvinte, mas de tal modo
apenas, que o ouvinte seja, ao mesmo tempo, o praticante (Tiago 1:22). Um
ouvir que não se convertesse, no mesmo instante, em fazer, transforma-se
naquele saber do qual nasce o julgar e, assim, a dissolução de todo fazer (p. 30).
Por praticante devemos entender como aquele que simplesmente não conhece outra
postura diante da palavra de Deus ouvida do que o seu cumprimento, que “permanece
rigorosamente orientado para a própria Palavra, sem dela haurir um saber pelo qual de
torna juiz do irmão, de si mesmo e, finalmente, também da própria palavra de Deus” (p.
31). O praticante se realiza em ouvir e o ouvinte se realiza em fazer. Dessa forma, apenas
uma coisa é necessária, que não consiste em simplesmente ouvir ou fazer, mas “ambos em
um só, isto é, estar e permanecer na unidade com Jesus Cristo e orientado para ele, receber
dele palavra e ação” (p. 31).
A palavra chave que caracteriza esse ser humano é amor, que marca a superação do
conflito. Não se restringe ao ethos, quer seja de ordem pessoal ou a questões relativas à
subjetividade em contraposição com a impessoalidade e a objetividade, como a relação
entre amor e verdade o amor como algo pessoal e a verdade como algo impessoal. O
amor não conhece o conflito, mas está além dele. Um amor que abrange tão somente o
âmbito dessas relações pessoais não corresponde ao amor que envolve a compreensão
cristã, principalmente no modo de interpretação de Bonhoeffer.
17
Um estudo desenvolvido sobre a ética do sermão do monte encontra-se no livro CHAVES, Irenio Silveira.
Mateus: o evangelho do Reino. 2. ed. Rio de Janeiro: Juerp, 2004.
53
sabe o que é amor quem conhece a Deus, não ao inverso: sabendo primeiro, e
por natureza, o que é o amor, sabe-se então também o que é Deus. [...] Ningm
sabe o que é amor, a não ser na auto-revelação de Deus. Assim, amor é revelação
de Deus. Revelação de Deus, no entanto, é Jesus Cristo. [...] O amor tem sua
origem em Deus e não em nós; o amor é postura divina e não comportamento
humano (p. 33).
A entrega de Jesus pela humanidade é um ato de amor por excelência. Jesus é a
única definição suficiente de amor. É somente na ação e no sofrimento concretos do
homem Jesus Cristo que podemos ter uma compreensão clara do que vem a ser amor. O
amor de que Bonhoeffer fala é agape, uma palavra grega essencialmente do contexto do
Novo Testamento, que envolve uma ão desinteressada de se dar. “Amor significa sofrer
a metamorfose de toda a existência por parte de Deus e em Deus. Amor não é escolha do
ser humano, mas eleição do ser humano por Deus” (p. 34). Por conseguinte, o amor se
baseia exclusivamente na circunstância de sermos amados por Deus. Isso quer dizer que o
nosso amor não pode ser outra coisa do que a aceitação do amor de Deus em Jesus Cristo.
“É com o amor de Deus, e nenhum outro, [...] que o ser humano ama a Deus e ao próximo.
[...] O amor de Deus inclui o amor a Deus. [...] Somos amados e reconciliados por Deus em
Cristo como seres humanos inteiros. É como seres humanos inteiros, raciocinando e
agindo, que amamos a Deus e aos irmãos” (p. 34-35).
2.1.2. Igreja e mundo
“O mais precioso do cristianismo é Jesus Cristo mesmo” (BONHOEFFER, 1985, p.
36). Baseada na afirmação bíblica de que “quem não é contra nós, é por nós”
18
, Bonhoeffer
constata que a história do cristianismo é marcada por um triunfo contra toda a intolerância
e brutalidade, como também de toda a afirmação de autonomia e de liberdade do
pensamento humano. “Diante do anticristo uma coisa tem poder e persistência: Jesus
18
Mateus 12.30
54
Cristo mesmo” (p. 36). Não se trata de um triunfalismo. A razão desse triunfo está no fato
de que, “onde o nome de Jesus Cristo é pronunciado, há proteção e reivindicação” (p. 37).
A explicação a isso se dá da seguinte forma:
[...] quando, sob a pressão de poderes anticristãos, se agrupam comunidades de
clara profissão de fé, que tiveram que procurar por uma nítida decisão a favor ou
contra Cristo em rigorosa disciplina doutrinária e ética, quando estas
comunidades confessantes, foadas à luta, tiveram que reconhecer na
neutralidade de muitos cristãos o supremo perigo da decomposição interna e da
dissolução da Igreja e até a hostilidade a Cristo propriamente dita, quando a
exclusividade da exigência de uma clara confissão de Cristo fez decrescer cada
vez mais o grupo dos cristãos confessantes, quando portanto, aquela palavra
“quem não é por mim, é contra mim” se tornou experiência concreta para a
comunidade cristã, aí ele obteve, justamente através dessa concentração no
essencial, uma liberdade e abertura interna que a preservou de todas as
delimitações tímidas (p. 37).
A afirmação de Jesus Cristo foi o motivo pelo qual a Igreja se conscientizou da
amplitude de sua responsabilidade. Hoje, a relação da igreja com o mundo não se dá de
forma tranqüila. “Não cabe uma cultura cristã que torne o nome de Jesus Cristo aceitável
perante o mundo; pelo contrário, o Cristo crucificado se tornou refúgio, justificação,
proteção e exigência para os valores superiores e seus defensores em sofrimento” (p. 38).
Bonhoeffer lembra que é na figura do publicano e da prostituta que o evangelho de Jesus
Cristo se faz compreensível aos seres humanos. Cristo pertence aos maus e aos bons; ele
lhes pertence na condição de pecadores, isto é, como pessoas que, no mal e no bem, se
separaram da origem. Chama-os de volta à origem para que não sejam mais bons e maus,
mas pecadores justificados e santificados” (p. 39). Essa é uma questão teológica que
tentará resolver mais adiante. Nesse ponto da Ética, ele usa esse argumento para introduzir
a questão fundamental a respeito da relação da Igreja e Jesus Cristo. É interessante notar
que a igreja sempre refletiu sobre a sua relação com o mundo mal e pecador, mas a relação
do bem com Cristo pouco foi pensada, e é isso que Bonhoeffer se propõe a fazer.
55
2.1.3. Ética como formação
Bonhoeffer faz uma crítica a uma ética teórica que não interessa em nada. Para ele,
o teórico da ética se tornou cego a ponto de não poder captar a realidade com seus
conceitos preconcebidos. Quem seriam esses teóricos da ética? Para início dessa
compreensão, Bonhoeffer foi um crítico da ética kantiana.
Kant é um marco central na história da ética: o movimento de reflexão entre lei e
liberdade encontraram um equilíbrio em seu pensamento, como também suas idéias
influenciaram toda a reflexão a seguir. Na verdade, Kant rompeu com os fundamentos de
uma ética smica e natural e estabeleceu o princípio da autonomia da vontade como a
base da moralidade. O fundamento do agir moral para Kant reside em uma vontade livre e
autolegisladora. Lutero já havia contestado a ética aristotélica das virtudes, considerando-a
como um insulto contra Deus, segundo a qual o homem poderia controlar suas paixões a
partir de seu próprio esforço, sem o auxílio divino. Para Kant, entretanto, o mal como
desvio moral está em converter a sensibilidade como norma e o desejo como um absoluto,
instaurando um egocentrismo. A moral, então, fica circunscrita à dimensão da razão
prática.
Em Kant, a vida moral começa por libertar-se do reino da sensibilidade que nunca
poderá fornecer um princípio universalmente válido. O princípio da ética kantiana consiste
na vontade, que é boa por definição e inclui a noção do dever moral: “neste mundo, e até
também fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem
limitação a não ser uma coisa: uma boa vontade” (KANT, 1974, p. 203). Para Kant, o
homem não é espontaneamente moral. Por isso, a norma da moralidade será um dever, um
56
imperativo. A famosa formulação do imperativo categórico
19
é, sem dúvida, uma
imposição da vontade de agir conforme o dever e conforme máximas universais. Entenda-
se máxima como um princípio subjetivo que orienta a vontade de um sujeito, que atuam
como regras que ele mesmo se como normas de sua vontade e que o conduz à ação
segundo a representação das mesmas.
Os sucessores de Kant, como Fichte e Schelling, também são igualmente
contestados entre os teóricos da ética, assim como aqueles a quem Bonhoeffer chama de
razoáveis e fanáticos da ética. “O homem de consciência”, por conseguinte, “luta
solitariamente contra a superioridade das situações forçosas a exigirem decisão” ( p. 42).
Bonhoeffer continua:
Os incontáveis disfarces e máscaras honrosos e sedutores em que o mal se
aproxima dele tornam sua consciência medrosa e insegura, até que, por fim, ele
se contenta em ter uma consciência salva em lugar de uma consciência limpa, até
que mente à sua própria consciência para não desesperar. O homem cujo único
apego é a sua consciência jamais entenderá que uma consciência suja pode ser
mais sadia e mais forte do que uma consciência ludibriada (p. 42).
Usa a figura de Dom Quixote para dizer que o mesmo se na luta de um mundo
velho contra o mundo novo. As propostas éticas se mostraram inúteis. O fracasso ético
denuncia que “só quem souber conjugar simplicidade e inteligência subsistirá” (p. 43). O
simples é aquele que, mesmo em meio à confusão e a perversão, mantém os seus olhos
voltados para as simples verdades de Deus, não estando preso a princípios, mas
comprometido pelo amor de Deus. Essa simplicidade gera inteligência. O inteligente é
aquele que vê a realidade como ela é, ou seja, a realidade em Deus. Não é o mesmo que ser
bem informado ou conhecer os processos exteriores, mas é vislumbrar a essência das
coisas.
19
“Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”.
KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Abril Cultural, 1974. p. 223. Coleção Os
pensadores.
57
um lugar onde Deus e a realidade do mundo estão reconciliados de maneira que
é possível abranger Deus e o mundo num olhar. “Este lugar não fica em qualquer parte
além da realidade, no mundo das idéias; fica em meio à história, como milagre divino; fica
em Jesus Cristo, o reconciliador do mundo” (p. 44). Bonhoeffer convida: Ecce homo
vede que ser humano!” (p. 44). Em Jesus Cristo aconteceu a reconciliação do mundo com
Deus. “Nele se desvenda o mistério do mundo, assim como nele se revela o mistério de
Deus”.
Acerca do sentido da encarnação de Cristo, Bonhoeffer declara:
Numa incompreensível inversão de todo pensamento justo e piedoso, Deus
declara a si mesmo culpado em relação ao mundo, apagando, com isso, a culpa
do mundo; Deus mesmo trilha a humilhante via da reconciliação, absolvendo,
com isso, o mundo; Deus quer ser culpado de nossa culpa, assumindo castigo e
sofrimento que a culpa trouxe sobre nós (p. 44).
Jesus Cristo é “o imperscrutável mistério do amor de Deus ao mundo”. O amor de
Deus abrange o ser humano como ele é. Jesus Cristo se torna verdadeiro ser humano e
companheiro de pecadores. “Deus se fez ser humano por amor ao ser humano. [...] Jesus
não é um ser humano, mas o ser humano” (p. 45). É somente pelo mistério da encarnação
de Deus que se faz possível conhecer o ser humano em sua condição real. Esse ser
humano, tal como pode ser conhecido, pode viver diante de Deus tal qual é e pode, assim,
ter comunhão uns com os outros, sem o desprezo ou a idolatria.
O reconciliador do mundo se apresenta como “o ser humano condenado por Deus, a
figura da miséria e da dor” (p. 47). A figura do condenado e crucificado é estranha a um
mundo cujo parâmetro é o sucesso. Em relação a isso, Bonhoeffer identifica três atitudes:
(a) para quem o sucesso é o bem supremo, a capacidade de discernimento ético e
intelectual é insuficiente; (b) a tese de que quem é bom tem sucesso, que tende ao
fracasso; (c) e há a afirmação de que todo o sucesso procede do mal, que consiste em uma
58
crítica estéril e farisaica. “A figura do crucificado desautoriza todo raciocínio orientado
pelo sucesso, pois esta maneira de pensar corresponde a uma negação do juízo” (p. 48).
Em Jesus Cristo, o encarnado, crucificado e ressurreto, a humanidade se faz nova.
“Pelo milagre divino foi criado um novo ser humano, uma nova vida, uma nova criação”
(p. 48). Jesus Cristo é o ressurreto que traz em si a nova humanidade. “Somente a forma de
Jesus Cristo enfrenta o mundo. É desta forma que emana toda a formação de um mundo
reconciliado com Deus” (p. 49).
Bonhoeffer usa, então, a palavra “formação”
20
para designar o modo como o
homem é incorporado à forma de Cristo: “em toda a formação ela se interessa tão-somente
por aquela única que venceu o mundo, isto é, pela forma
21
de Jesus Cristo” (p. 50). Estar
conformado com o encarnado significa ser realmente humano, o ser humano real. Não
significa que o ser humano se torna Deus, mas que Deus toma forma no humano para que
este possa ser humano perante Deus.
Mas este desejo de tomar forma em todos os seres humanos é uma obra inacabada.
“Aquele que assumiu a forma do ser humano pode tomar forma num pequeno grupo:
este constitui sua Igreja” (p. 51). Por isso, no Novo Testamento a igreja é chamada de
corpo de Cristo, a forma do próprio Cristo. Não se trata de uma comunidade religiosa de
admiradores ou de uma estrutura eclesial. “A Igreja pode chamar-se corpo de Cristo porque
no corpo de Jesus Cristo foi realmente assumido o ser humano e, portanto, todos os seres
humanos. [...] A Igreja é o ser humano humanizado, julgado e ressuscitado para uma nova
vida em Cristo” (p. 51).
Mais adiante, Bonhoeffer vai afirmar:
20
Do alemão gestaltung, que o tradutor sugere como tradução alternativa termos como “configuração”,
“estruturação” ou “moldagem.
21
Do alemão gestalt, que, da mesma forma, pode ser traduzido por “figura”. O tradutor explica que optou por
“forma” para, com isso, tentar reproduzir o jogo de palavras do autor.
59
Em sua Igreja, Cristo não governa com a espada, mas tão-somente com sua
palavra. Unidade de existe sob a verdadeira palavra de Jesus. [...] há
uma Igreja, qual seja, a Igreja da fé, governada somente pela palavra de Jesus
Cristo. Esta é a verdadeira Igreja católica, que jamais sucumbiu e que subsiste,
oculta, mesmo na Igreja de Roma (p. 57).
Este é o ponto de partida da ética cristã de Bonhoeffer: “o corpo de Cristo, a forma
de Cristo na forma da Igreja, a formação da Igreja de acordo com a forma de Cristo” (p.
52). Bonhoeffer reconhece que essa concepção difere das concepções éticas que o
antecederam, por isso a denomina de ética concreta. Isso porque o interesse do Jesus
histórico não foi o de estabelecer princípios universais. “Não importava se a gente pudesse
transformar ‘a máxima de uma ação em princípio de uma legislação universal’ (Kant), mas
se minha ação agora ajuda ao próximo a ser um ser humano perante Deus” (p. 52).
Ele qualifica a sua ética como concreta. Mas, o que seria ética cristã concreta?
A ética cristã concreta está além do formalismo e da casuística; enquanto
formalismo e casuística partem da luta do bem com o real, a ética cristã pode
partir da reconciliação acontecida no mundo com Deus e com o ser humano
Jesus Cristo, da aceitação do ser humano real por parte de Deus (p. 53).
A questão do Cristo que toma forma “entre nós hoje aqui” levanta o problema da
temporalidade e da noção de espaço que Bonhoeffer tem em mente. Fica claro que se trata
de um tempo que corresponde ao contexto histórico que estamos vivendo: “como seres
históricos, estamos em meio a um processo de concretização de Cristo num segmento da
história da humanidade que ele mesmo escolheu” (p. 63). O espaço é o Ocidente, onde o
cristianismo exerceu sua maior influência e penetração. Contudo, a intenção não é de se
forjar um programa para moldar o Ocidente ou para ocidentalizar o mundo, mas de deixar
claro como Jesus Cristo toma forma no mundo.
Ética como formação é, portanto, o risco de falar do processo em que a forma de
Jesus Cristo ganha forma em nosso mundo, sem falar de maneira abstrata nem
casuística, nem de maneira programática nem meramente reflexiva. [...] aqui
existem mandamentos e instruções concretas para as quais se exige obediência.
Ética como formação só é possível com base na atual presença da forma de Jesus
Cristo em sua Igreja. A Igreja é o lugar onde se proclama e acontece o processo
60
em que Jesus Cristo toma forma. A ética está a serviço desta proclamação e deste
acontecimento (p. 54).
A história do Ocidente é caracterizada por herança e decadência. Herança histórica
que testemunha o Cristo que toma forma e reconcilia o mundo consigo. Decadência que
corresponde ao processo de secularização que se inicia rapidamente e que toma forma em
pleno século XX. “Com a perda da unidade criada pela forma de Jesus Cristo, o Ocidente
está diante do nada” (p. 63). A ruína dos valores tradicionais consagrados na civilização
ocidental após a Revolução Francesa conduz à descrença em um futuro que seja glorioso
para a humanidade. “A libertação do ser humano, como ideal absoluto, leva à
autodestruição humana” (p. 61). No final desse caminho está o niilismo
22
.
As conseqüências éticas dessa crise são testemunhadas pelo próprio Bonhoeffer,
que, diante da tragédia do totalitarismo nazista, descreve o estado de decadência a que
chegou o Ocidente. “O mundo ocidental sente a singularidade do momento em que vive e
se atira aos braços do nada” (p. 63). O que é esse estado niilista para Bonhoeffer? O nada
para o qual a humanidade se encaminha é o nada da rebelião, da hostilidade a Deus e ao
humano. “É um nada criativo, que insufla seu hálito antidivino em tudo que existe, dando-
lhe, aparentemente, nova vida, ao mesmo tempo em que lhe suga a sua essência própria,
até que se desfaça como casca morta e seja jogado fora” (p. 63).
Bonhoeffer enfatiza, então, o que seria esse princípio de compreensão da condição
pós-moderna:
Em vista do abismo do nada, cessa a pergunta pela herança histórica, cuja
recepção implica, ao mesmo tempo, elaboração do presente e transferência para
o futuro. Não há futuro nem passado. Só existe ainda o momento salvo do nada e
a caça do próximo momento. A o que foi ontem cai no esquecimento, e o
amanhã está distante demais para comprometer hoje (p. 63).
22
Termo empregado por Nietzsche para designar o resultado da decadência européia. Negando a crença em
um valor absoluto, a humanidade deve superar a moral e a metafísica cristãs para situar-se “para além do bem
e do mal”.
61
A nova moral que surge, a moral pós-moderna, é marcada também pela decadência:
Como não nada de caráter duradouro, quebra-se a base da vida histórica, a
confiança, em toda forma. Como não existe confiança na verdade, a propaganda
sofista toma seu lugar. Como não há confiança na justiça, declara-se justo que é
de proveito. Mas também a confiança não-declarada no próximo, que se baseia
na circunstância, se transforma em regular e respeitosa observação recíproca das
pessoas. uma resposta para a pergunta que permanece: o medo do nada. A
mais assombrosa constatação que hoje fazemos é que, diante do nada, abandona-
se tudo: o juízo próprio, o ser humano, o próximo. Onde esse medo é explorado
inescrupulosamente não há limites para o que se pode conseguir (p. 64).
Bonhoeffer destaca que, diante dessa crise, duas coisas podem apontar para uma
solução: de um lado o milagre de um avivamento da fé e a força de “aquele que detém”
23
,
expressão usada na Bíblia para o fenômeno escatológico para descrever o poder que Deus
se vale para pôr ordem e para preservar o mundo da destruição. Em outras palavras,
somente a afirmação de uma espiritualidade voltada para ação salvadora de Deus, “que
intervém a partir de cima, do além do historicamente alcançável e provável, que do nada
cria nova vida” (p. 64). Anunciar esse milagre é tarefa da igreja. O outro aspecto da
solução está na ão do poder do Estado que impõe ordem e, assim, pode evitar que se
chegue ao abismo. Embora essas duas soluções pareçam distintas, elas se aproximam
quando confrontadas com o caos.
Diante dessa situação ímpar, que será desenvolvida em suas cartas da prisão na
concepção de um mundo emancipado, a Igreja possui uma tarefa ímpar: “testemunhar de
Jesus Cristo como o Senhor vivo a um mundo que dele se apartou depois de tê-lo
conhecido” (p. 64). Ela precisa declarar que “o ser humano real, julgado e renovado o
existe senão na forma de Jesus Cristo e, conseqüentemente, na conformação com ele” (p.
65). Por isso, é portadora do chamamento para um reconhecimento dessa apostasia, que
não somente é uma apostasia em relação à Cristo, mas é também uma apostasia de sua
própria essência. Nisso consiste a culpa. “O lugar onde esse reconhecimento de culpa se
23
O texto bíblico que trata desse tema é 2 Tessalonicenses 2.7, que diz: “Com efeito, o mistério da iniqüidade
já opera e aguarda somente que seja afastado aquele que agora o detém”.
62
torna realidade é a Igreja. [...] a Igreja é justamente a comunidade de pessoas que, pela
graça de Cristo, foram levadas ao reconhecimento da culpa em relação a Cristo” (p. 65).
A igreja é, portanto, a comunhão das pessoas que foram atingidas pelo poder da
graça de Cristo e que, por isso, “confessam e assumem seu pecado pessoal e a apostasia do
mundo como culpa em relação a Jesus Cristo” (p. 66). É impressionante a confissão de
culpa pessoal que Bonhoeffer faz: sou culpado de desejos desordenados, sou culpado de
covarde silêncio onde deveria ter falado, sou culpado de hipocrisia e de falta de veracidade
diante da violência, sou culpado da falta de misericórdia e de regenerar os mais pobres dos
irmãos... (p. 66). Mais impressionante ainda é a confissão de culpa da igreja, que deve se
confessar responsável tanto pela sua própria brutalidade e intolerância quanto até mesmo
pelo seu silêncio e negligência diante da exploração humana, muitas vezes em nome da
busca de uma segurança, sossego e posses a que não tinha direito.
2.2. A DIALÉTICA DO ÚLTIMO E PENÚLTIMO
A ética concreta começa com a palavra da justificação pela graça, o eixo principal
da formulação da Reforma protestante. A justificação tanto é por graça quanto é por fé.
“Somente a fé justifica uma vida, não o amor ou a esperança. Pois somente a fé alicerça a
vida sobre base nova, e somente esta base nova justifica que possa viver diante de Deus”
(p. 71). Essa palavra da justificação tem um caráter final tanto pelo seu conteúdo
qualitativamente derradeiro, conquanto não palavra de Deus que suplante a sua graça,
quanto pelo seu sentido cronológico, porque sempre algo que a precede, um tempo em
que ela se insere. “Tempo da graça é tempo último no sentido de que jamais é possível
contar com outra e futura palavra de Deus além daquela que agora me atinge. um
tempo de tolerância, de espera e de preparação por parte de Deus e um tempo final que
63
julga e interrompe o penúltimo” (p. 73). um caminho a ser percorrido até o final, “até
ali onde Deus lhe põe termo” (p. 73). A graça que justifica é palavra derradeira, última,
insuperável, que soa como ruptura. O que continua existindo precede a graça, é penúltimo.
O problema da relação entre o penúltimo e último pode ser resolvido
extremadamente de uma forma radical ou como um compromisso. A solução radical
a realidade última e a total ruptura com penúltimo, quando “derradeiro e penúltimo estão
em oposição excludente” (p. 74). Nesse caso, a palavra da graça se converte em palavra
fria e legalista que despreza o mundo. A solução de compromisso, por sua vez, faz a
separação entre palavra derradeira e as coisas penúltimas. O penúltimo não é ameaçado
pelo derradeiro, mas permanece como coisas que precisam ser feitas no cotidiano. Para se
evitar o erro desses extremos, Bonhoeffer elabora uma concepção teológica fundamentada
na humanidade, crucificação e ressurreição de Jesus Cristo, que resulta em vida eterna e
nova vida. “Vida cristã é vida com Jesus Cristo encarnado, crucificado e ressuscitado” (p.
77). A vida cristã é resultado de uma tensão entre o último e o penúltimo, é confronto,
resultado do encontro da realidade de Deus com a realidade do mundo em Cristo.
A dialética do último e do penúltimo exige a preparação do caminho, que é uma
ação formativa e visível, que torna a graça acessível. Não se trata da simples criação de
condições desejáveis e funcionais, da concretização de um programa de reformas sociais,
mas sim na proclamação de uma realidade espiritual que consiste na vinda de Cristo, para
que chegue até mim o último, quando Cristo toma forma e aponta para uma esperança
escatológica
24
. “[...] é preciso cuidar para que haja a possibilidade externa de ouvir e
atender o chamado da pregação” (p. 81). A preparação do caminho exige conversão
concreta, o que a condição de chegar até a realidade última como uma resposta de fé.
24
A escatologia é uma área de estudo da teologia que é tradicionalmente definida com a doutrina das
“últimas coisas”, relacionada a uma compreensão da vida humana em relação à morte, ressurreição, juízo
final e a vida após a morte.
64
Nesse sentido, a preparação do caminho inclui o respeito às realidades penúltimas por
amor às realidades últimas que estão por vir. “O penúltimo será tragado pelo derradeiro;
não obstante, conserva sua necessidade e seu direito enquanto o mundo existir” (p. 82).
Nisso está toda a essência da vida cristã.
Vida cristã é o início do derradeiro em mim, a vida de Jesus Cristo em mim. Mas
sempre é também vida no campo do penúltimo à espera do derradeiro. A
seriedade da vida cris está unicamente no derradeiro; contudo, o penúltimo
também possui a sua seriedade, que consiste justamente em não confundir o
penúltimo com o derradeiro, em considerar o penúltimo um gracejo diante do
verdadeiro, para que ambos, derradeiro e penúltimo, preservem sua seriedade (p.
82).
A partir dessa dialética do último e penúltimo, Bonhoeffer tenta recuperar a noção
do “natural”, que é próprio de uma teologia natural desenvolvida pelo pensamento católico
romano no Concílio Vaticano I (1870). Aquele concílio procurou reafirmar que Deus
realmente pode ser conhecido pela razão e que a filosofia é uma forma legítima e
verdadeira de teologia, opondo-se, assim, aos céticos do século XIX e aos movimentos
filosóficos a partir de Kant. A teologia protestante, principalmente a chamada teologia
reformada, questionava quanto ao impacto da filosofia sobre a teologia e insistia numa
volta às Escrituras. Defendia que todos os homens possuem algum conhecimento implícito
da existência de Deus, como o conceito do sensus deitatis
25
de Calvino, mas o considerava
um conhecimento inútil, pois se encontra à parte da revelação da vontade e da graça de
Deus em Jesus Cristo.
Bonhoeffer, no entanto, afirma:
A razão não é um princípio divino de saber e ordem, superior ao natural,
existente no ser humano; ela própria é parte desta forma de vida preservada, a
saber, aquela parte apta a trazer à consciência, a “perceber” como uma unidade o
todo e geral existente no real. [...] É a percepção consciente do natural em sua
25
Termo usado por Calvino para se referir ao conhecimento inato que todo homem tem de Deus, uma vez
que Deus se revelou universalmente ao homem, tanto na natureza como na consciência humana. A percepção
de Deus é uma intuição imediata da existência do único Deus que foi obscurecida pelo pecado. Por isso, o
homem não pode fugir de Deus e é considerado responsável pela revelação dada e indesculpável pela rejeição
a ela.
65
realidade dada. O natural e a razão se correspondem como forma de ser e forma
de consciência de vida preservada.
A razão reconhece o natural como algo universalmente estabelecido,
independente da possibilidade de controle empírico (p. 84).
Essa afirmação se distingue, então, tanto da teoria católica, em que a razão preserva
uma integridade essencial, quanto do Iluminismo, em que o natural se fundamenta na
realidade objetivamente dada. Para Bonhoeffer, a fundamentação do natural está na
espontaneidade subjetiva da razão.
2.3. A TEORIA DOS MANDATOS
A pergunta pela boa vida, a essência de toda a preocupação ética (ou “como me
tornarei bom?”), deve ser substituída pela pergunta acerca da vontade de Deus. Uma vez
que a origem da ética cristã está na realidade de Deus em sua revelação em Cristo, o
problema da ética cristã é a concretização dessa realidade de Deus em Cristo e suas
criaturas. O que Bonhoeffer chama de bem é a própria realidade vista e reconhecida em
Deus, que atinge o ser humano em sua totalidade. “O ser humano é um todo indivisível,
não como indivíduo em sua pessoa e obra, mas também como membro da coletividade
dos seres humanos e das criaturas na qual está inserido” (p. 109). O sentido, então, de se
perguntar pelo bem ou pelo que é bom deve estar associado ao esforço de conseguir
participar da totalidade da realidade de Deus. A questão que se levanta é como esta
realidade atua como realidade presente agora e como se deve viver nela.
Para isso, é preciso superar um tipo de pensamento que pensa em duas esferas, que
contrapõe um espaço sagrado e um espaço profano, um espaço cristão e um espaço
mundano, sobrenatural e natural, revelacional e racional, um espaço espiritual e um espaço
temporal. “Não verdadeira vivência cristã fora da realidade do mundo, nem verdadeira
66
secularidade fora da realidade de Jesus Cristo” (p. 113). Embora a igreja ocupe um espaço
no mundo, o espaço da igreja não disputa uma parte do território do mundo, mas é o lugar
para testemunhar que o mundo está reconciliado por Deus. A igreja, volta a deixar claro,
não é uma sociedade cultual e não tem como papel tornar-se uma organização religiosa
empenhada com a vida piedosa. Mas aqueles que pertencem à igreja têm a incumbência de
serem testemunhas de Cristo para o mundo. A essência da mensagem cristã é que “Deus
amou o mundo e o reconciliou consigo” (p. 115). Nesse sentido, “não existem, portanto,
duas esferas, mas a esfera única da realização de Cristo, em que a realidade de Deus e a
do mundo se fundem” (p. 112). Entre as duas esferas, portanto, “existe uma unidade dada
somente na realidade de Cristo, isto é, na nessa derradeira realidade” (p. 112).
Bonhoeffer a chama de “unidade polêmica” (p. 113).
O relacionamento entre o mundo e Cristo se concretiza em determinados mandatos,
que são concretizações do mandamento de Deus na realidade do mundo. Mandato é a
tarefa concreta atribuída por Deus. Não se trata de princípios éticos que devam ser
aplicados ou ordens divinas que permanecem desde a criação para deixar clara a vontade
de Deus, nem tampouco um determinismo para o qual a liberdade e a vontade humana se
submetem. Os mandatos “existem porque o ordenados por Deus, e são mandatos
divinos na medida em que sua existência se submete – consciente ou inconscientemente – à
incumbência divina” (p. 117). São quatro os mandatos divinos: (a) o trabalho, (b) o
matrimônio, (c) a autoridade e (d) a igreja. O aprendizado da vida cristã se sob esses
quatro mandatos.
O mandato do trabalho, que abrange o aspecto cultural, se encontra na criação e
corresponde à atividade humana pela qual o homem participa da criação e transforma a
natureza, criando novos valores. O mandato do matrimônio, que envolve o casamento e a
família, cria novas vidas para viverem a realidade de Deus em Cristo. O mandamento da
67
autoridade, que envolve o poder político, não é criador, mas conserva em ordem, por meio
de leis, a realidade criada. O mandato da igreja, que envolve a comunhão, concretiza a
realidade de Cristo no mundo através da pregação, da disciplina e da vida nova.
A indagação pela vontade de Deus encontra resposta na teoria dos mandatos, que se
concretiza no lugar onde o Senhorio de Cristo encontra o homem na realidade do mundo.
“A vontade de Deus, no entanto, outra coisa não é do que a concretização da realidade de
Cristo entre nós e em nosso mundo. A vontade de Deus, portanto, não é uma idéia que
clama por realização; antes, ela mesma é realidade na auto-revelação de Deus em Jesus
Cristo” (p. 119).
2.4. A VIDA ÉTICA COMO RESPONSABILIDADE
Bonhoeffer entende que a pergunta pelo bem tanto é formulada quanto respondida
“em meio a situações definidas e ao mesmo tempo inacabadas de nossa vida. [...] A
pergunta pelo bem é inseparável da indagação pela vida, pela história” (p. 120). A
proclamação de que Jesus Cristo é a vida nos confronta com a realidade de que minha vida
está fora de mim mesmo, “minha vida é um outro, um estranho, Jesus Cristo” (p. 120). E,
ao sermos confrontados pela palavra, o homem reconhece que se desviou da vida e que
vive a contradição. Nessa afirmação, ouvimos o não à nossa vida, que só é vida, mesmo na
contradição, por causa de Jesus Cristo, que é origem, essência e objetivo de toda vida.
Trata-se, então, de um sim da criação, da reconciliação da redenção que
compreende em si o não do juízo. Bonhoeffer afirmou:
É o sim ao que foi criado, ao devir, ao crescimento, à flor e à fruta, à saúde, à
felicidade, à capacidade, ao desempenho, ao valor, ao sucesso, à grandeza, à
honra, enfim, o sim ao desdobramento do vigor da vida. É o não à apostasia da
origem, da essência e do objetivo da vida apostasia esta já sempre inerente a
toda essa existência –, o não que significa morte, sofrimento, pobreza, renúncia,
68
sacrifício, humildade, humilhação, autonegação e que nisso contém o sim à
nova vida... (p.123).
Essa “unidade polêmica” também presente entre o sim e o não permite superar os
obstáculos gerados pelas soluções extremas. A vida cristã não vive só o sim ao mundo nem
somente o não da renúncia, mas consiste na vida responsável, que vive a tensão entre o sim
e o não.
A vida que encontramos em Jesus Cristo como sim e não à nossa vida quer ser
respondida por uma vida que assume e une esse sim e não.
Essa vida como resposta à vida de Jesus (como sim e não sobre a nossa vida)
chamamos de “responsabilidade”.
[...] Responsabilidade significa, portanto, que se empenhe a vida toda, que o
lance seja de vida ou de morte (p. 124).
Temos, então, o conceito que Bonhoeffer desenvolve sobre o que é
responsabilidade. A vida cristã é vida ética vivida na responsabilidade e “responsabilidade
só existe no testemunho de Jesus Cristo com palavra e vida” (p. 125).
2.4.1. A estrutura da vida responsável
A vida responsável é determinada tanto pela vinculação ao próximo, ao outro, e
pela liberdade, de forma que a vinculação ao outro é que estabelece a liberdade e sem essa
vinculação e sem essa liberdade não pode haver responsabilidade. Essa vinculação ao
outro, ao próximo, a Deus e a si mesmo como um outro assume a forma de representação e
de conformidade com a realidade. Vida é representação conquanto existimos para o outro.
“O conceito duma responsabilidade por si mesmo faz sentido na medida em que visa a
responsabilidade que assumo perante mim mesmo como ser humano porque sou um ser
humano, portanto. Auto responsabilidade é, na verdade responsabilidade frente ao ser
humano” (p. 126). Jesus viveu essa vida de forma representativa de modo que toda a vida
se fez representativa nele. “Representação e, por conseguinte, responsabilidade existem
69
na dedicação integral da própria vida ao semelhante” (p. 126). O abuso da vida
representativa está na absolutização do eu ou na absolutização do próximo. Por isso,
Bonhoeffer diz não ao utilitarismo de John Stuart Mill e não ao personalismo de F.
Schiller, expressões do pragmatismo. Até mesmo a compreensão de Nietzsche de uma
humanidade dominada por uma mentalidade servil, cujas decisões se dão a partir do que
está em conformidade com a realidade, se torna incompleta uma vez que, nesse caso,
conformidade com a realidade não seria o mesmo que responsabilidade.
Ação responsável é, portanto, “agir em conformidade com Cristo, é agir de forma
condizente com a realidade” (p. 128). Ação em conformidade com Cristo é ação
responsável porque reconhece o mundo como o mundo amado, julgado e reconciliado com
Deus em Jesus Cristo. A distinção entre “mundano” e “cristão” é reconhecida em sua
unidade na ação responsável concreta, que é limitada porque se realiza no mundo e dentro
de nossa condição de criaturas. Dentro desses limites, abrange a realidade como um todo.
A ação responsável também não é absoluta porque está dentro dos limites do conhecimento
humano.
Ação responsável, então, implica em relacionamento e em conhecimento. Trata-se
de uma dimensão relacional, uma vez que é na relação objetiva com as coisas, isenta e livre
de interesses secundários, que o ser humano encontra a si mesmo e, ao mesmo tempo,
liberta o ser humano de si mesmo. Trata-se de uma dimensão epistemológica, uma vez que
faz parte da ação responsável descobrir e observar a lei básica que constitui cada coisa.
Bonhoeffer não ignora a necessidade. Seu conceito de necessidade se aproxima do
ceticismo de Hume, que considera apenas como resultado de nossa percepção do real. A
compreensão de Bonhoeffer está ligada a uma concepção mais de caráter político.
A essência da ação responsável está na disposição de assumir culpa bem como no
exercício da liberdade. Para Bonhoeffer, “assumir culpa” é amor ao ser humano real. É isso
70
que fez Jesus Cristo assumir o ônus da culpa. “Um amor que abandonasse o ser humano
em sua culpa não teria como objeto o ser humano real. [...] Todo aquele que age com
responsabilidade se torna culpado porque Jesus assumiu a culpa de todos os seres
humanos” (p. 134). Mas, essa ação responsável é limitada pela voz da consciência que,
situada além da vontade e da razão, clama pela unidade da existência humana consigo
mesma” (p. 135) e que aparece tanto para acusar a unidade perdida quanto para advertir da
perda de si mesmo.
A consciência é a voz do ser autêntico, que não visa a um determinado fazer, mas a
um determinado ser, que aponta para a unidade consigo mesmo. “A voz da consciência
tem, portanto, sua origem e seu objetivo na autonomia do próprio eu” (p. 135). Assumir a
essência da vida responsável é um deslocamento, no momento em que a unidade da
existência humana, fundada na autonomia do sujeito, é achada além do próprio eu e sua lei,
é achada somente em Jesus Cristo. Nisso está o milagre da transformação.
Se Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro ser humano, se tornou o ponto de
unidade da minha existência, a consciência continua sendo, formalmente, a voz
do meu ser autêntico para a unidade comigo mesmo, que essa unidade não
pode mais ser concretizada pelo regresso à minha autonomia alimentada pela lei,
mas na comunhão com Jesus Cristo. [Ele] é o libertador da consciência, para que
esta sirva a Deus e ao próximo... (p. 135-136).
A consciência libertada e a ão responsável estão também em tensão. A
consciência estabelece dois limites para que a assunção da culpa seja realizada na ação
responsável. O primeiro limite é que a consciência libertada em Cristo é o chamado para a
unidade do homem consigo mesmo. A culpa a ser assumida na ação responsável está além
da capacidade humana de suportá-la em sua unidade consigo mesmo. O segundo limite é
que a consciência libertada em Jesus Cristo coloca a ação responsável diante da lei que
71
preserva o ser humano na unidade consigo mesmo, que é a lei do amor a Deus e ao
próximo
26
.
Nesse sentido, “só o ser humano de consciência livre pode assumir
responsabilidade(p. 138). Bonhoeffer não é um determinista. Para ele, responsabilidade e
liberdade são termos correlatos. A ação responsável é uma aventura livre, que acontece no
comprometimento com Deus e com o próximo, como Jesus Cristo vivenciou, e que se
constitui a única forma de se obter liberdade. Contudo, não se pode falar de
responsabilidade sem obediência. “Responsabilidade não existe apenas ao lado das
relações de obediência, mas também em seu espaço dentro destas” (p. 140). A nova
“unidade polêmica” está, então, na tensão entre ser obediente e ser livre. Jesus Cristo
concretizou essa unidade. “Como obediente, ele cumpre a vontade do Pai em cega
obediência à lei que lhe foi imposta. Como livre, ele confirma esta vontade de
conhecimento próprio, de olhos abertos e de coração alegre, recriando-a, por assim dizer, a
partir de si mesmo” (p. 140).
Não se trata de uma autonomia da obediência, que resultaria na ética do dever de
Kant. Nem se trata da autonomia da liberdade, que resultaria na transvaloração dos valores
de Nietzsche. Trata-se da “unidade polêmica” entre obediência e liberdade na ação
responsável.
A obediência sabe o que é bom e o faz, a liberdade arrisca agir e confia a Deus o
julgamento sobre o bem e o mal. A obediência cumpre cegamente, a liberdade
tem olhos abertos. A obediência age sem perguntar, liberdade pergunta pelo
sentido. A obediência tem mãos amarradas, a liberdade é criativa. Na obediência
o ser humano cumpre o Decálogo de Deus, na liberdade ele cria novos decálogos
(Lutero).
Na responsabilidade acontecem tanto obediência quanto liberdade. Ela carrega
em si essa tensão. Qualquer autonomia de uma contra a outra seria o fim da
responsabilidade. ão responsável é, ao mesmo tempo, comprometida e
criativa (p. 140).
26
Em Marcos 13.22 diz: “e que amar a Deus de todo o coração e de todo o entendimento e de toda a força, e
amar ao próximo como a si mesmo excede a todos os holocaustos e sacrifícios”, de acordo com a versão
Revista e atualizada de João Ferreira de Almeida.
72
A ação responsável coloca o homem num campo de ação cujo limite é o próximo.
Esse mesmo próximo a quem Nietzsche (2002, p. 59) se referiu em seu Zaratustra
27
, que
inclui o distante e que não se confunde com o amor próprio:
Vós outros andais muito solícitos em redor do próximo, e manifestai-o com belas
a palavras. Mas eu vos digo: o vosso amor ao próximo é vosso meu (sic) amor a
vós mesmos.
Fugis de s em busca do próximo, e quereis converter isso numa virtude; mas
eu compreendo o vosso “desinteresse”.
O Tu é mais velho do Eu; o Tu acha-se santificado, mas o Eu ainda não. Por isso
o homem anda diligente atrás do próximo.
Acaso vos aconselho o amor ao próximo? Antes vos aconselho a fuga do
“próximo” e o amor ao remoto!
2.4.2. O “ético” e o “cristão” como tema
O ético enquanto tema é evidente em si mesmo. É assistemático porque diz respeito
ao ser humano, que é vivo e mortal num mundo finito e destrutível. O fenômeno ético tem
seus limites: ninguém vive tomando decisões derradeiras a todo instante. A limitação do
ético no espaço e no tempo não implica sua validação ou não. Bonhoeffer brinca com a
expressão: “não se caça tico-tico com canhões” (p. 147). O “dever” e as obrigações de um
pai numa família, por exemplo, assumidas passivamente, durante a plena harmonia do lar,
não demonstra o fenômeno ético, mas ele está presente nas palavras de Bonhoeffer,
“dormita”. Porém, quando a ordem é quebrada, ele se levanta, até que a ordem volte à
cena. Assim, o ético é tema quando a situação de uma época o exige.
Ética o pode ser o simples desejo de como o mundo deveria ser, assim como
alguém que viva buscando normatizar a conduta moral não pode ser considerado ético.
Todo discurso que pretende ser ético carece de uma autorização. E irá encontrá-la na
vida humana concreta. “Não se pode falar de ética no vácuo, na abstração, mas apenas no
27
cf. NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Trad. Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2002.
73
comprometimento concreto” (p. 150). O que dá expressão ao discurso ético não é o
conteúdo correto, mas a autoridade de quem o diz. Deverá vir sempre acompanhado pela
vida do que discursa. De fato, “o autêntico discurso ético não se esgota numa única
proclamação; exige repetição, constância e tempo” (p. 151). O fundamento da competência
concreta para o discurso ético está além do ético-fenomenológico. Está nas manifestações
diretas da vontade de Deus. Sua finitude é superada pela infinita vontade de Deus, o
mandamento divino, que abrange a vida toda, incondicional e total: “o mandamento é a
única autorização para o discurso ético” (p. 153).
Embora o mandamento de Deus seja sempre percebido em tempo e espaços
específicos, ele é atemporal. “A concreticidade do mandamento de Deus consiste em sua
historicidade; nós o encontramos sob forma histórica” (p. 153). O mandamento divino nos
encontra e nos atinge nos lugares onde se concretizam os mandatos divinos: na igreja, na
família, no trabalho ou cultura e através da autoridade ou governo.
O mandamento de Deus, tal qual revelado em Jesus Cristo, sempre é palavra
concreta dirigida a alguém, nunca um discurso abstrato sobre algo ou alguém.
Sempre é interpelação e requisição, e isso de forma tão abrangente e
determinante que diante dele não há mais liberdade de interpretação e aplicação,
mas tão-somente a liberdade de obediência ou desobediência (p. 154).
Aqui, precisamos fazer uma distinção necessária: “o mandamento de Deus é
permissão de viver como ser humano diante de Deus (p. 155), enquanto que mandato
divino é incumbência concreta fundamentada na revelação de Jesus Cristo e revelada nas
Escrituras
28
. O mandamento “se diferencia de todas as leis humanas pelo fato de que
ordena a liberdade” (p. 155). O mandamento de Deus só pode ser encontrado onde existem
os mandatos divinos. Os mandatos dependem do mandamento revelado em Jesus Cristo e
formam um conjunto harmônico em que um mandato está orientado para o outro.
28
Referência à Bíblia como texto revelado e que se constitui como guia para a vida cristã.
74
No âmbito da igreja, o mandamento divino encontra-se sob duas formas: a pregação
e a confissão, ou seja, na proclamação e na disciplina, na forma pública e na forma
sigilosa, dirigida à comunidade e ao indivíduo. Ambas as formas são proclamações da
revelação divina. “Deus quer um lugar onde sua palavra seja sempre de novo dita,
proclamada, comunicada, interpretada e divulgada até o fim dos tempos” (161). A
pregação não tem duas características: uma genérica, racional, e outra para os fiéis, uma
palavra para o mundo e outra para a comunidade cristã. “Seu mandamento é aquele um
mandamento revelado em Jesus Cristo e que ela prega ao mundo todo” (p. 163). Ao
proclamar o mandamento ao mundo todo, a igreja o testemunho de que Jesus Cristo
como Senhor e Salvador da comunidade dos fiéis e do mundo todo, conclamando a todos
para a sua comunhão.
O cristão não é um fim em si mesmo nem está além do humano, mas é o ser
humano que pode e deve viver diante de Deus como ser humano, assim como, por meio da
crucificação de Jesus, o mundo foi liberto para viver em autêntica “mundanalidade”
29
. Isto
significa o fim da tensão entre “cristão” e “mundano” e que todos estão convocados “para
a simplicidade da ação e vida na fé na acontecida reconciliação do mundo com Deus” (p.
163). O conceito de “autêntica mundanalidade” Bonhoeffer não pôde desenvolver, mas
deixou claro que ela existe com base na pregação da cruz de Jesus Cristo, que é o
Senhor vivo, a quem foi dado todos os poderes do mundo.
O senhorio de Jesus Cristo não é alienígena, e sim o senhorio do Criador,
Reconciliador e Redentor, o senhorio daquele, portanto, pelo qual e para o qual
tudo existe e no qual toda a criação tem sua origem, meta e essência. Jesus Cristo
não impõe uma lei estranha à criação, mas também não tolera que a criação
tenha quaisquer “leis próprias” independentes do seu mandamento. O
mandamento de Jesus Cristo, o senhor vivo, liberta a criatura para o
cumprimento da lei que lhe é própria, isto é, que lhe é inerente a partir de sua
origem, objetivo e essência em Jesus Cristo ( p. 164).
29
A idéia de “mundanalidade” está relacionada à “mudanidade” de Martin Heidegger, em Ser e tempo, que
caracteriza o próprio modo de ser do mundo, previamente constituído, para onde o homem é lançado, a partir
do qual sua experiência adquire sentido e em relação ao qual deve estabelecer sua identidade.
75
Bonhoeffer entende que onde este Jesus Cristo, Salvador e Senhor, for proclamado
de acordo com o mandato divino, sempre haverá ali uma comunidade, porque essa
comunidade tem o dever de estar a serviço do mundo todo. “A comunidade cristã está no
lugar em que o mundo todo deveria estar; neste sentido, ela serve representativamente ao
mundo e existe em função dele” (p. 165). Por isso, tem uma determinação divina a
cumprir: estar orientada para o mundo e estar orientada para si mesma como lugar de
presença de Jesus Cristo.
Capítulo 3
DIRETRIZES PARA A FORMULAÇÃO DE UMA NOVA ÉTICA
A preocupação com uma ética protestante na pós-modernidade implica em uma
definição do intrigante significado do que vem a ser pós-moderno. A primeira pergunta que
se faz diante da análise do momento vivido é se a humanidade encontra-se de fato na pós-
modernidade. Pode-se falar de uma pós-modernidade ou de um período tardio da
modernidade? Para Lyotard, em A condição pós-moderna, a interpretação do nosso estado
de cultura como pós-moderno é válido em função de fatores como a crise dos discursos
unificadores, a fragmentação dos saberes, o fim das metanarrativas, a crise das utopias e o
esvaziamento do conceito de verdade.
A palavra “pós-modernidade” é em si mesma marcada por um equívoco, uma vez
que, como reconhece Lyotard, não pode significar meramente o que vem após a
modernidade, uma vez que a idéia de moderno diz respeito ao “agora”. Talvez se deva
dizer de um modo de pensar que compreende esse tempo que se chama hoje, um período
hodierno.
77
Tomando por base a herança da crítica nietzscheana à razão e ao paradigma do
sujeito, filósofos chamados pós-modernos e s-estruturalistas, como Derrida, Deleuze e
Foucault, puderam repensar internamente o estruturalismo e desenvolver novas formas de
abordagem na investigação da cultura, tais como a desconstrução, a microfísica, a
transvaloração dos valores e o método genealógico aplicado na história.
Mas, como aponta Habermas (2002)
30
, a pós-modernidade, à qual se refere como
um “projeto inacabado”, é um discurso insuficientemente definido e demasiadamente
migratório. As tentativas de superação da filosofia do sujeito e da superação da metafísica
caíram vítimas do conflito entre a razão e o discurso, que acabam por se mostrar como os
únicos que podem fazer a própria crítica, o que consiste a base da modernidade. Para
aqueles que entendem que a modernidade ainda não chegou ao fim, não se pode ignorar os
resultados efetivos que o esforço de emancipação conduziu a humanidade e que estão
presentes nesse tempo, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a democracia,
a ação jurídica fundamentada na razão dialógica, os avanços científicos e tecnológicos e os
direitos individuais reconhecidos de grupos minoritários. Além disso, a idéia da pós-
modernidade encobre a ação unilateral e tendenciosa das articulações econômicas do
capitalismo, que cerceiam, por meio da ação da indústria cultural, a garantia de igualdade
trazida pela modernidade, e que se torna a lógica cultural capitalista nesse período que
compreende o final do século XX, começo do século XXI.
O que normalmente se chama de pós-modernidade está ligado à condição sócio-
cultural e estética do estágio do capitalismo pós-industrial e rompe com as antigas
verdades absolutas, como marxismo e liberalismo, típicas da modernidade. Lyotard (2006,
XV) afirma que “designa o estado da cultura após as transformações que afetam as regras
dos jogos das ciências, da literatura e das artes a partir do final do século XIX”. Esse
30
Cf. O Discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 122-151.
78
estado da cultura é marcado por um deslocamento do modo narrativo. Uma vez que a
modernidade legitima o saber por um metarrelato, a pós-modernidade caracteriza-se, então,
por uma incredulidade em relação aos metarrelatos.
[...] Ao desuso do dispositivo metanarrativo de legitimação corresponde
sobretudo a crise da filosofia metafísica e da instituição universitária que dela
dependia. A função narrativa perde seus atores (functeurs), os grandes heróis, os
grandes perigos, os grandes périplos e o grande objetivo. Ela se dispersa em
nuvens de elementos de linguagem narrativos, mas também denotativos,
prescritivos, descritivos etc., cada um veiculando consigo validades pragmáticas
sui generis. Cada um de nós vive em muitas destas encruzilhadas. Não
formamos combinações de linguagem necessariamente estáveis, e as
propriedades destas por nós formadas não são necessariamente comunicáveis
(LYOTARD, 2006, XVI).
3.1. DEFINIÇÃO DE PÓS MODERNIDADE
3.1.1. Pensamento humano na pós-modernidade
Na filosofia, parte-se da compreensão de que, na passagem da modernidade para a
pós-modernidade, houve um abandono tanto das descrições ontológicas da realidade como
da idéia de que existe algo que transcende e que está presente na própria realidade, para se
afirmar que tudo o que há é inerente à própria realidade, uma vez que é a perspectiva do eu
que interpreta a realidade. O mundo não é mais compreendido a partir de uma objetividade
do conhecimento por um sujeito autônomo e desapaixonado, mas condicionado historica e
culturalmente, o que faz com que o conhecimento seja sempre relativo e incompleto. A
pós-modernidade, então, se refere à atitude intelectual e à cosmovisão predominante que
vai se tornando cada vez mais presente na sociedade hodierna, que decorre de uma rejeição
radical da estrutura engendrada pelo Iluminismo e que vem se desencadeando desde o final
do século XIX, com a crítica nietzscheana ao pensamento kantiano e ao idealismo de
Hegel, assim como com a sua desilusão em relação à moral cristã.
79
Como fenômeno cultural, a pós-modernidade emerge após a década de 1960, com o
fim da chamada era industrial e o início da formulação de uma sociedade dominada pela
tecnologia da informação. Essa sociedade produz uma classe nova de pessoas em
substituição ao proletariado. Além disso, a pós-modernidade provoca alguns
deslocamentos: da consciência nacional para a noção de um mundo globalizado; da
produção em massa para a produção segmentada; do mundo dos objetos duráveis para o
mundo das coisas obsoletas e descartáveis; do mundo da centralidade e autonomia do
sujeito para o mundo da desconstrução da individualidade.
David Harvey (2006) fala da necessidade de acolher a fragmentação e a
descontinuidade com conseqüências nas formas de representação do conhecimento. Não há
mais padrões comuns com os quais as pessoas possam fazer correlações ou buscar
referências ou poder legitimador. É o que Foucault chama de “heterotopia”, ou a
coexistência num mesmo espaço impossível de uma diversidade de mundos possíveis.
As heterotopias inquietam, sem vida porque solapam secretamente a
linguagem, porque impedem de nomear isto ou aquilo, porque fracionam os
nomes comuns ou os emaranham, porque arruínam de antemão a “sintaxe”, e
não somente aquela que constrói as frases aquela menos manifesta, que
autoriza manter juntos” (ao lado e em frente umas das outras) as palavras e as
coisas. [...] as heterotopias [...] dessecam o propósito, estancam as palavras nelas
próprias, contestam, desde a raiz, toda a possibilidade de gramática; desfazem e
imprimem esterilidade ao lirismo das frases (FOUCAULT, 2002, XIII).
Harvey fala ainda que a preocupação com a fragmentação e a instabilidade da
linguagem e dos discursos leva à concepção esquizofrênica da personalidade, cuja
preocupação está concentrada no significante e não no significado. É a redução da
experiência a um presente vivido, intenso, que se resume ao instante, diferente da
concepção do alienado do marxismo ou do paranóico da psicanálise. O que se vê, com isso,
é a evaporação de todo o sentido de continuidade e de memória histórica, no que diz
respeito inclusive a valores e crenças. Harvey argumenta que o outro lado dessa perda de
temporalidade e dessa busca do impacto instantâneo é uma perda de profundidade. Tal
80
como diZygmunt Bauman (1998, p. 112): “o mundo construído de objetos duráveis foi
substituído pelo de produtos disponíveis projetados para imediata obsolescência. Num
mundo como esse, as identidades podem ser adotadas e descartadas como uma troca de
roupa”.
3.1.2. Ética pós-moderna
Assim como no campo filosófico, a ética pós-moderna aponta para deslocamentos
que resultam na formulação de uma nova identidade que é definida por uma ideologia de
consumo, segundo a qual a “imagem” domina a realidade. Gilles Lipovetsky (2005)
considera que aquilo que é visto define o que deve ser, de tal modo que quase ninguém
mais se importa com o que é realidade”. A imagem pública passa a ser objeto de culto e
de desejo. A busca de gratificação, do prazer e realização individual é o ideal supremo. A
diversidade e a fragmentação possibilitam uma multiplicidade de valores com opções
individuais, mas nenhuma delas autêntica. Ao mesmo tempo, os meios de comunicação de
massa e informação formam a opinião pública e prescrevem as normas de consumo e
comportamento, substituindo a interpretação religiosa e a ética com informação precisa,
instantânea, direta e objetiva. Ela valoriza o que parece real acima dos conceitos de bem e
mal.
Vivemos uma época que nega o dever absoluto da ética. Em seu lugar, toma forma
uma ética que proclama o direito individual à autonomia, felicidade e satisfação pessoal. O
pós-modernismo pode ser visto como uma época de pós-moralidade porque despreza
valores incondicionais mais elevados, tais como o serviço em favor do outro e o
voluntarismo.
81
O pós-modernismo, por conseguinte, não propõe um caos moral, mas redireciona as
preocupações éticas mediante um comprometimento de poucas bases com valores que o
interferem na liberdade individual. Trata-se de uma ética neo-hedonista que mistura dever
e negação do dever, uma vez que o individualismo absoluto destruiria as condições
necessárias para facilitar a busca de prazer e realização individual. A preocupação moral
pós-moderna não expressa apego a valores, mas contestação contra qualquer tentativa de
limitações à liberdade individual. O objetivo não é a afirmação da virtude, mas a obtenção
do respeito à dignidade humana. Essa nova moralidade está condizente com os padrões
determinados pelo consumismo, pela necessidade de prazer e de busca de realização
pessoal.
Segundo Lipovetsky (2005), essa nova moralidade, no entanto, é ambígua. Ao
mesmo tempo em que temos, de um lado, um individualismo sem regras, temos, por outro,
um espírito de vigilância ultramoralista, pronto a denunciar todo atentado à liberdade
humana e ao direito à autonomia individualista. Nesse contexto, a moralidade neo-
hedonista da vida pós-moderna se traduz em exigências que percorrem duas direções
opostas, uma que estabelece regras e outra que promove o prazer e a exoneração da
responsabilidade moral, a exaltação do consumo, a preocupação com a imagem e a
valorização do corpo. Temos diante dos olhos a emergência de uma cultura inédita, que
divulga mais propriamente as normas do bem-estar do que as obrigações supremas do
ideal. Assim, a exigência da ética é mostrada em toda parte, enquanto que se despreza o
estímulo a sacrificar os próprios interesses por causa de outros. O que se vê, na verdade, é
que os valores não desaparecem, mas transformam-se.
Para muitos, o pós-modernismo trouxe a emancipação dos padrões morais, libertou
do dever e desarticulou a moral da responsabilidade. Para Bauman (1997), os grandes
temas da ética não perderam a sua força. Eles precisam ser revistos e tratados de um modo
82
inteiramente novo. A era pós-moderna, sugere ele, pode ainda representar uma alvorada e
não um entardecer para a ética. Para Bauman, a pós-modernidade é uma modernidade sem
ilusões, emancipada da falsa consciência, das aspirações irreais e dos objetivos
irrealizáveis. Bauman caracteriza essa nova época como um reencantamento do mundo,
devolvendo dignidade às emoções e legitimidade ao inexplicável. Livres da prisão da
modernidade, pode-se agora se confrontar com a capacidade ética da humanidade sem
ilusões. Embora tudo isso não torne a vida moral mais fácil, diz Bauman, pode-se ao
menos sonhar em torná-la um pouco mais ética.
3.1.3. Religião pós moderna
Em seu O mal estar da pós-modernidade, Bauman identifica que a pós-
modernidade é marcada por um surto de aconselhamento em função da insegurança
existencial centrada na identidade individual. É a era dos especialistas em identificar
problemas, daqueles que propõem soluções para a restauração da personalidade, dos que
apresentam guias infalíveis para relacionamentos saudáveis, dos autores de livros de auto-
ajuda.
Os homens e mulheres pós-modernos realmente precisam do alquimista que
possa, ou sustente que possa, transformar a incerteza de base em preciosa auto-
segurança, e a autoridade da aprovação (em nome do conhecimento superior ou
do acesso à sabedoria fechado aos outros) é a pedra filosofal que os alquimistas
se gabam de possuir (BAUMAN, 1998, p. 227).
Essa incerteza não gera a procura pela religião, mas a procura de especialistas de
identidade. Os homens não precisam mais de pregadores que lhes apontem suas fraquezas
e insuficiências humanas. “Eles precisam da reafirmação de que podem fazê-lo e de um
resumo a respeito de como fazê-lo” (BAUMAN, 1998, p. 222). Em lugar de promover a
experiência vivida pelos “aristocratas” da tradição religiosa, a pós-modernidade coloca ao
83
alcance de cada indivíduo uma perspectiva de auto-aprendizado dessa experiência
religiosa. Em lugar de celebrar a fraqueza humana, a concepção pós-moderna pressupõe a
capacidade infinita de realização humana. A versão religiosa da pós-modernidade visa à
reconciliação do fiel a uma vida de prosperidade e de sucesso organizada em torno do
dever de um consumo devotado e contínuo, ao contrário da experiência anterior,
notadamente pietista, que visava à reconciliação do fiel com uma vida de privações e de
ideal ascético.
Os exemplos e profetas da versão pós-moderna da experiência máxima são
recrutados da aristocracia do consumismo aqueles que conseguiram
transformar a vida numa obra de arte da acumulação e intensificação das
sensações, graças a consumir mais do que os que procuram comumente a
experiência máxima, consumir produtos mais refinados e consumi-los de um
modo mais requintado (BAUMAN, 1998, p. 224).
Das contradições da vida pós-moderna, surge uma forma de religiosidade que se
caracteriza como uma oferta de racionalidade alternativa aos problemas gerados pela
insegurança das escolhas. O fundamentalismo consiste na promessa de uma autoridade, de
um olhar orientador, que consistência às decisões da vida que devem ser tomadas. Num
mundo de fragmentações e diversidade, o fundamentalista tem coragem de dizer a maneira
como se deve decidir de modo que essa decisão encontre uma justificação segura. O
fundamentalismo religioso faz parte de um conjunto de soluções totalitárias oferecidas
como alternativa à desilusão da liberdade individual excessiva da pós-modernidade.
“O fundamentalismo é um remédio radical contra esse veneno da sociedade de
consumo conduzida pelo mercado e s-moderna – a liberdade contaminada
pelo risco (um remédio que cura a infecção amputando o órgão infeccionado
abolindo a liberdade como tal, na medida em que não nenhuma liberdade
livre de riscos)” (BAUMAN, 1998, p. 228).
84
3.2. IDENTIDADE CRISTÃ
Superar a menoridade através da razão foi a aposta do homem moderno. O
Iluminismo, afirmou Kant, era a libertação do homem de sua menoridade. Para ele,
menoridade é a incapacidade do homem de tomar decisões por si próprio, somente a partir
do seu próprio entendimento, sem a mediação de outro. Com isso, estavam comprometidos
os fundamentos da fé, que á a confiança no Outro. O ideal autônomo iluminista remetia a
um materialismo e a um ateísmo, em última instância. Hegel compreendia que quanto mais
a razão humana se fecha em si mesma, mais se afasta de Deus e mais amplia o campo do
finito, da imanência. Razão é a negatividade da fé. A inteligência pura se manifesta
fenomenicamente numa atividade própria e autêntica, enquanto que a pura consciência
da essência absoluta é uma consciência alienada
31
. A modernidade, na verdade, buscava
uma concepção religiosa livre dos elementos supersticiosos da religião cristã, mas buscava
também um modelo de Deus e de religião que se aproximasse com a visão mecanicista de
um mundo idealizado. De um mundo fundamentado na fé, saltava-se para um mundo
regido pela razão que se introduzia também na teologia racional.
O ateísmo moderno nasce com Feuerbach, Marx, Nietzsche e Freud e se desenvolve
com uma afirmação de cientificidade para questionar a fé em Deus e o cristianismo como
sistema religioso. O ponto de partida para a abordagem filosófica sobre a pergunta por
Deus e a respeito da religião não é mais a natureza, mas o próprio homem. A teologia é, na
verdade, uma antropologia. Nega Deus para afirmar o homem. As ideologias que surgem
afirmam que não libertação do homem sem negação de Deus. A religião passa a ser
expressão e causa da alienação humana. O conhecimento que o homem tem de Deus é
31
Cf. HEGEL, G. W. F. A fenomenologia do espírito. Trad. Paulo Meneses. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2001.
p. 62. Parte II.
85
apenas conhecimento de si mesmo, de sua própria essência, o ser absoluto é o próprio
homem em sua essencialidade. Feuerbach (apud ZILLES, 1991, 104) afirmou:
Como o homem pensar, assim é o seu Deus: quanto valor tem o homem, tanto
valor e não mais tem o seu Deus. A consciência de Deus é a consciência que o
homem tem de si mesmo, o conhecimento de Deus é o conhecimento que o
homem tem de si mesmo. Por seu Deus conheces o homem; e, vice-versa, pelo
homem conheces o seu Deus. Ambas as coisas são idênticas
32
.
Foi essa compreensão que influenciou Marx a considerar a religião como
instrumento de alienação, segundo a qual o homem projeta para fora de si, de maneira e
inútil, seu ser essencial e perde-se na ilusão de um mundo transcendente. A religião desvia
a atenção desse mundo e de sua transformação para um outro mundo, para o além. Assim,
a religião age como um calmante para a sociedade, é “ópio do povo”.
Para Freud, “Deus é uma ilusão infantil”. Freud a religião como regressão ao
mundo ideal da criança. Na religião, o homem foge da dura realidade, escondendo-se num
mundo ideal da infância. Por isso, a religião é ilusão, uma neurose obsessiva.
Nietzsche desfechou a crítica mais dura e contundente à religião e à compreensão
da existência de Deus. Para ele, a religião é a destruição de tudo quanto de nobre, de
alegre, na vida humana. Por isso, é inimiga mortal da humanidade, tendo promovido uma
profunda corrupção do homem, transformando-o em covarde, fraco, escravo. O tema
central de sua crítica é a morte de Deus. Se Deus é invenção da debilidade humana, sua
negação será a superação do próprio homem. A idéia de Deus, para Nietzsche, tornou-se
vazia, sem qualquer utilidade para o mundo. Afirma, então, que a história de Deus acabou.
Deus não morreu apenas, sempre esteve morto.
Bonhoeffer se antecipou ao ver que o mundo já não concebe mais Deus como uma
hipótese de trabalho. Daí a necessidade de uma teologia que não pretenda frear o processo
de amadurecimento e secularização nem que pretenda introduzir Deus de forma
32
Cf. ZILLES, Urbano. Filosofia da religião. 2. ed. São Paulo: Paulos, 1991. p. 99-119.
86
clandestina na realidade do mundo. A pós-modernidade exige que a igreja empreenda um
repensar de toda a sua formação discursiva, que não priorize a legitimação de seus dogmas
e de sua ortodoxia, mas que consiga avaliar se a mensagem de Cristo continua sendo boa
nova que reflete a convicção do crente que assume o viver responsável no mundo sem
Deus. A deve se reverter em ato, como realização histórica que busca a libertação
humana, ou se tornará um discurso voltado para si mesmo. A teologia que resulta dessa
compreensão afirma que o Deus da cruz deseja a maioridade do homem e vai ao seu
encontro no mundo, sem a necessidade da religião.
A época da pós-modernidade para o cristianismo corresponde ao fato de que se
assume a experiência da ausência de Deus, vivendo, ao mesmo tempo, a fé em Jesus Cristo
em um mundo a-religioso, sem tentar transformá-lo religiosamente. A condição pós-
moderna reclama um cristianismo que também se faz adulto, porque assume viver
mundanamente e que, por isso mesmo, participa do sofrimento de Deus no mundo. Um
cristianismo que fale de Deus sem religião e que propõe o princípio de uma vida cristã
secularizada como possibilidade de fé autêntica.
3.3. PÓS-CRISTIANISMO E NIILISMO
“O maior dos acontecimentos recentes que Deus está morto’, que a crença no
Deus cristão caiu em descrédito começa a lançar suas primeiras sombras sobre a
Europa”, afirma Nietzsche (1983, p, 211) em A gaia ciência. A tradição filosófica
ocidental foi construída em torno de uma compreensão positiva de valor, desde o
pensamento grego a o Iluminismo. Nietzsche foi quem investiu contra essa tendência,
cuja base está em sua concepção da morte de Deus. A crença em Deus perdeu sentido e em
seu lugar resta apenas a vontade de potência como motivo primordial para a ação humana,
87
o desejo de aperfeiçoar e transcender o eu pelo exercício criador pessoal, sem depender de
qualquer coisa externa. Para Nietzsche, a cultura ocidental rompeu com o transcendente e,
como conseqüência, resultou que os valores tradicionais não se mostraram suficientes para
servir de fundamento para um reino além da mente humana.
Mas, para Nietzsche, a destruição da ilusão não estabelece verdade alguma, mas
uma ampliação do encontro de si mesmo. A ânsia de encontrar um novo sentido leva ao
paradoxo de afirmar como sentido a desesperança de todo sentido. Uma autêntica
superação da morte de Deus se a partir da superação da moral que decorre dela. Morte
de Deus significa que a fé em Deus tornou-se em descrença e sua proclamação corresponde
a um pós-cristianismo que aponta para um novo horizonte totalmente livre. A superação da
morte de Deus implica em uma afirmação de toda realidade restituída em sua
profundidade, a abertura da existência a uma pluralidade de interpretações.
A vontade que afirma precisa engendrar-se, dar origem a si mesma, a partir de um
princípio que lhe seja imanente, que obriga a deixar de lado um Deus que desnaturaliza as
forças criativas do ser humano de estabelecer valor e sentido, a transvaloração dos valores.
Com isso, Nietzsche nega um Deus que é contradição da vida para assumir a existência a
partir de si mesmo, como perspectiva e como pretensão de auto-suficiência. Antes, como
diria o seu Zaratustra, “acreditaria em um deus que soubesse dançar”. Rejeita, portanto, um
cristianismo preocupado com o pecado e com a regulamentação moral que sufoca a
capacidade criadora humana.
Foi Nietzsche quem empregou o termo “niilismo” para designar o estado em que
resultou a decadência ocidental, a descrença em um futuro promissor para a humanidade,
que se opõe à idéia de progresso. “Niilismo é então o tomar consciência do longo
desperdício de força, o tormento do ‘em o’, a insegurança, a falta de ocasião para se
recrear de algum modo, de ainda repousar sobre algo a vergonha de si mesmo, como
88
quem se tivesse enganado por demasiado tempo” (NIETZSCHE, 1983, p. 381). A
proclamação da morte de Deus foi um clamor por uma abertura do homem à afirmação de
si mesmo, como também foi uma advertência contra o niilismo que aniquila o homem e o
reduz à desilusão. Essa atitude, no entanto, deve levar a novos valores afirmativos da vida,
situando-os “para além do bem e do mal”, segundo os princípios metafísicos tradicionais e
da “moral de rebanho” que o cristianismo se caracterizou na modernidade.
“Se Deus não existe, tudo é permitido”, dirá Dostoievski. A moralidade passa a ser
produto do condicionamento social e a realidade mais relevante é a liberdade individual,
cuja expressão é a aniquilação do homem. Quando Bonhoeffer fala da necessidade de se ir
adiante sem recorrer a Deus como “hipótese de trabalho”, reconhece que toda a tentativa
nesse sentido sempre resultou na construção de um projeto humano segundo a qual o
homem poderá encontrar uma resposta previsível. Ao considerar isso, Angel Castiñeira
(1997) vê que a compreensão da morte de Deus foi necessária para possibilitar uma
teologia que não pretenda frear o processo de maturidade do mundo.
A condição pós-moderna do homem que vive a ausência de Deus é o abandono, a
angústia e o terror da finitude. Por essa razão, a pós-modernidade opta pela ambigüidade,
pela oscilação entre o vazio e a auto-afirmação. Esse é o desafio do viver cristão, que sabe
manter o núcleo original da tradição, que é o testemunho da fé em Jesus Cristo e suas
implicações, ao mesmo tempo em que não se menospreza a condição histórica que nos leva
a reinterpretar constantemente essa tradição. Vida cristã, portanto, é vida sob tensão, como
definiu Bonhoeffer, que muitas vezes tem se expressado de forma contraditória, tal como
na crise gerada pela escolha de se viver entre uma teologia da libertação e um
fundamentalismo teológico crescente.
Desde o início de sua reflexão ética, Bonhoeffer estava consciente da condição de
viver uma época marcada por fortes tensões que A. Gallas (apud FORTE, 2006, p. 108)
89
descreve como experiência de tríplice laceração”: a fragmentação da cultura, a separação
entre e razão que remete a uma compreensão do cristão em duas esferas e a quebra da
unidade do sujeito que Bonhoeffer vivenciou como opositor e vítima do nazismo. A
situação trágica que a Alemanha e a humanidade viveram evidenciou o estado puramente
niilista que resultou a história do Ocidente e a idéia do mundo emancipado, a experiência
do nada e da decadência.
Ao interpretar a condição da decadência do Ocidente, Bruno Forte (2006, p. 112)
afirma:
A decadência não é o abandono dos valores, a renúncia de viver por alguma
coisa pela qual, todavia, valha a pena viver. A decadência é um processo bem
mais sutil: priva o ser humano da paixão pela verdade, torna-o escravo das
aparências, induzindo-o a um otimismo ingênuo, universal, que não precisa
sustentar a positividade do bem, a negatividade do adversário nem a própria
dignidade, porque tende somente a dobrar todas as coisas à própria vantagem a
interesse. No clima da decadência, tudo conspira para levar os seres humanos e
não refletir mais, a não enfrentar a fadiga e a paixão da verdade, para entregar-se
ao imediatamente aprazível, tendo como interesse único o consumo imediato.
Em todos os contextos, é o triunfo da falsidade em detrimento da verdade!
Diante desse diagnóstico, o pensamento de Bonhoeffer lança um desafio de retorno
à realidade firmada na necessidade de fundar toda a concepção ética àquele que se
apresenta como a verdade, Jesus Cristo.
3.4. OUTRA IMAGEM DE DEUS
A compreensão de Deus na modernidade envolvia um processo que vai desde a
redução do Absoluto a um processo de secularização até a afirmação da morte de Deus.
Isso implica que, na modernidade, a abertura para o Outro é comprometida, de tal modo
que o Outro se desfaz para dar lugar ao eu solipicista e narcisista. A pós-modernidade,
porém, com a afirmação da desconstrução e do fragmento, incorpora o pressuposto do
totalmente Outro e permite estabelecer novamente o diálogo entre fé e razão, agora
90
marcado pela carência de certezas absolutas. Angel Castiñeira (1997, p. 147) nisso uma
autêntica dialética da “iluminação” que reconhece, “em nome da razão, a auto-
incapacidade de iluminar ou de anunciar todos os aspectos da dimensão humana e,
portanto, deveria deixar espaço para a busca daquilo que como alteridade radical se nos
apresenta como inefável ou ‘inapreensível’, aquilo que se sustém no âmbito limitado da
razão”.
Deus pode ser conhecido como aquele que não pode ser expresso com a palavra,
não mais de um modo conceitual e provável. Quando se tenta estabelecer o conhecimento
de Deus a partir do conceito, tal como na modernidade, corre-se o risco de ter uma idéia de
Deus como um ídolo, de acordo com os limites da própria razão, e não em sua essência de
Deus. Nisso consiste a história do ateísmo da modernidade, que é um ateísmo também
conceitual, decorrente do erro de se ter pretendido, a partir da metafísica (e de uma
teologia fundada em um saber metafísico), estabelecer princípios absolutos para o
conhecimento de Deus de modo objetivo por meio dos conceitos. A experiência de Deus
na pós-modernidade, segundo Castiñeira (1997, p. 149), implica em um modo diferente de
ver, “em que Deus já não se oferece como objeto de visão, mas como o sujeito de um olhar
que, silenciosa e discretamente, vê-nos na face”.
Isso, de forma alguma, não aponta para uma teologia da contemplação ou para uma
teologia antimoderna, mas uma teologia que esteja “atenta em distinguir o conteúdo
inefável da e o mesmo fato comunicável da fé” (CASTIÑEIRA, 1997, p. 150). Hans-
Georg Gadamer (1998), por sua vez, elabora uma compreensão da linguagem humana em
que a palavra é um puro acontecer, tomando como ponto de partida a idéia do “verbo de
Deus” no prólogo do Evangelho de João. “A singularidade do acontecimento da redenção
leva à introdução da essência histórica no pensamento ocidental e permite também que o
91
fenômeno da linguagem emerja de sua imersão na idealidade do sentido e se ofereça à
reflexão filosófica” (GADAMER, 1998, p. 609).
Para Gadamer (1998), a palavra é criadora e salvadora. Da mesma forma com que
Deus se fez carne, a palavra se torna som, ou seja, emerge e se manifesta em sua
exteriorização como palavra. Enquanto a palavra de Deus é uma unidade perfeita que
expressa o todo do divino, a palavra humana precisa ser sempre atualizada, porque é como
espelho que reflete a expressão do que uma coisa é. A palavra humana, além disso, é
palavra imperfeita porque não pode expressar o nosso espírito de maneira perfeita. Por
causa das limitações do intelecto, precisamos de uma multiplicidade de palavras. A palavra
também é acidente do espírito, uma vez que, como se dirige para a coisa, não pode contê-la
em si como um todo. Gadamer nessa distinção entre palavra de Deus, que é una, e
palavra humana, que é multiplicidade, uma relação puramente dialética que se aplica à
proclamação da mensagem cristã.
A proclamação da salvação, o conteúdo da mensagem cristã, é, por sua vez, um
acontecer de natureza própria no sacramento e na prédica, e tão-somente
expressa aquilo que ocorreu no ato redentor de Cristo. Nessa medida, continua
sendo uma única palavra, a que sempre de novo se proclama na prédica. É
evidente que no seu caráter de mensagem, existe já uma alusão à multiplicidade
de sua proclamação. O sentido da palavra não pode separar-se do acontecer
dessa proclamão. O caráter de acontecer faz parte, antes, do próprio sentido. É
como uma maldição, que evidentemente não se pode separar do fato de que é
dita por alguém contra alguém. O que se pode compreender nela não é, em caso
algum, um sentido lógico do enunciado, passível de ser abstraído, mas a
maldição que nela tem lugar. O mesmo ocorre com a unidade e a multiplicidade
da palavra que a Igreja anuncia. A morte na cruz e a ressurreição de Cristo são o
conteúdo da mensagem da salvação que é pregada em todo sermão. O Cristo
ressuscitado e o Cristo da prédica é um e o mesmo (GADAMER, 1998, 621).
A pós-modernidade reclama um discurso teológico capaz de despertar ainda o
desejo de Deus que mantenha o essencial do cristianismo, que é o testemunho do Cristo
mesmo, o Deus impregnado do humano, sem menosprezar a situação histórica que
reinterpreta constantemente essa tradição. Uma teologia que assume uma hermenêutica
atualizadora da palavra de Deus, que tenha em conta a distância e a diferença, que reclame
92
um sujeito da maioridade que reafirme sua identidade diante do outro, queo tema
apresentar o impensável Deus ausente. Castiñeira (1997, p. 153-154) afirma que “só um
discurso teológico que tenha em conta os sujeitos sofredores da história, um cabedal
teológico cultivado a partir de uma comunidade de comunicação plural que entenda a
Igreja como um espaço culturalmente policêntrico pode hoje triunfar”.
3.5. CRISTIANISMO E CULTURA
A partir do impacto provocado pelo pensamento revolucionário de Marx, é possível
concordar com Karl Barth que religião é mesmo a mais alta expressão do pecado humano.
Ou mesmo com Paul Tillich, teólogo alemão refugiado de Hitler nos Estados Unidos, que
afirmou que Jesus veio ao mundo para provar que a religião não compensa e que o
Evangelho significa exatamente a libertação do fardo da religião da lei e da lei da religião.
Mas é em Richard Niebuhr (1967) que se encontra uma tentativa de abordar questões
passadas e presentes relativas ao por quê, ao como e ao para quê do encontro entre os
cristãos e o seu contexto cultural. De uma forma própria, Niebuhr revela o que vai
percebendo na história da igreja, assinalando aspectos que são fundamentais e normativos
da vida da comunidade cristã em seu confronto com o mundo.
Para Niebuhr, uma distinção necessária é entre religião, como fardo e instrumento
de dominação, e Evangelho, como mensagem de libertação dos cativos. É necessário
também distinguir entre fé, como resposta positiva ao ato de libertação, e cultura, como
meio através do qual a se expressa. É necessário inclusive superar definitivamente o
conceito de “fé religiosa”, uma vez que fé e religião são inconciliáveis.
Uma pode subsistir com o sufocamento da outra. A fé é a semente fértil. A religião é a
semente esterilizada que pode servir para comer ou para o comércio. A é o futuro. A
religião é o apego ao passado, à segurança, ao status quo, muitas vezes feita em nome do
futuro, e quase sempre feita em beneficio dos comerciantes. A fé é o desapego dos que
93
aguardam a madrugada e não perdem tempo olhando para trás. A fé é a loucura, a audácia.
A religião é a prudência, o instinto de conservação (NIEBUHR, 1967, p. 15-16).
Ao interpretar o papel da igreja, Niebuhr viu que, como instituição, a igreja
cometeu um ato de grande traição ao assumir o papel de portadora e testemunha do
Evangelho, ao se apresentar como “defensora” do Evangelho. Essa postura se refletiu
“num esforço de domesticar o Evangelho, a serviço de determinada cultura e dos seus
interesses arraigados”. Niebuhr entende que isso se deu ao longo da história de diferentes
formas, que as classifica como momentos em que Cristo foi apresentado como contra a
cultura, pertencente à cultura, acima da cultura, como um paradoxo e como transformador
da cultura. “Ao invés de seguir o caminho da fé, a Igreja se colocou na defesa dos
privilégios que lhe garantiam a segurança, na santificação do status quo, e a religião
resultante dessa traição tornou-se a principal sustentação da ideologia das classes
dominantes, da luta pela santificação dos objetos” (NIEBUHR, 1967, p. 16).
É preciso concordar com Marx que “a critica à religião é o inicio de toda a critica”.
Através da compreensão de Niebuhr é possível ver que a secularização, como abandono
progressivo das formas de vida religiosa, segue duas diretrizes. A primeira, provocada pela
própria cultura que vai tomando forma numa sociedade em rápido processo de
industrialização, a religião perde a sua importância na solução e explicação dos problemas
humanos. A segunda, provocada por um aprofundamento do conhecimento do Evangelho,
os cristãos estão compreendendo que historicamente a religião tem sido o grande obstáculo
à propagação do Evangelho.
Ainda que as atitudes cristãs ao longo da história possam ser entendidas como fugas
e rejeições das instituições da sociedade, como pode ser visto na contra-cultura, elas têm
sido de grande importância, tanto para a igreja como para a cultura.
Elas m mantido a distinção entre Cristo e César, entre revelação e razão, entre
a vontade de Deus e a vontade do homem. Elas têm provocado reformas tanto na
94
Igreja como no mundo, muito embora não fosse este o seu propósito. Eis porque
homens e movimentos desta espécie são sempre celebrados pelo seu heróico
papel na história de uma cultura que eles rejeitaram (NIEBUHR, 1967, p. 89).
Peter Berger (1985), em contrapartida, afirma que a religião desempenhou um
papel importante e estratégico para a construção do entendimento humano. Sem dúvida, a
condição humana, marcada pelo sofrimento e com a certeza da morte, exige interpretações
que dêem sustentação para enfrentar a crise gerada pelo sofrimento e a morte. Para Max
Weber (2002), há uma necessidade social da compreensão de uma teodicéia, compreendida
por ele como justificação em Deus, que são as tentativas que procuram explicar como um
Deus que é soberano, todo-poderoso e infinitamente bom, como é explicado pela teologia
ortodoxa, pode permitir o sofrimento e o mal no mundo.
Um ponto de partida que se mostrou viável para a teologia foi a compreensão de
que os fenômenos religiosos são projeções humanas, produtos da história, construídas pelo
homem. Esse ponto de partida não pode deixar de considerar que essas projeções humanas
existem e são indicadoras de uma realidade verdadeiramente outra, que a imaginação
humana reflete. Esse ponto de partida é antropológico, um empreendimento filosófico que
se fundamenta na pergunta: “O que é o homem?”
Se as projeções religiosas do homem correspondem a uma realidade que é sobre-
humana e sobrenatural, então parece lógico procurar vestígios desta realidade no
próprio projetor. Não é para propor uma teologia empírica o que seria
logicamente impossível – mas antes uma teologia de sensibilidade empírica
muito aguda que buscasse correlacionar suas proposições com o que pode ser
empiricamente conhecido. Na medida em que seu ponto de partida for
antropológico, uma tal teologia voltará a algumas das preocupações
fundamentais do liberalismo protestante – sem, espera-se, a condescendência
com os “eruditos desdenhadores da religião” e seus vários utopismos (BERGER,
1973, p. 69).
Peter Berger sugere, então, que o pensamento teológico procure descobrir o que ele
chama de sinais de transcendência no âmbito da condição humana, compreendidos como
fenômenos que se encontram no domínio da realidade natural, cotidiana, que apontam para
95
além da realidade. Ele sugere que “gestos humanos prototípicos” que podem constituir
tais sinais, tal como a propensão para a ordem, de tal modo que, no centro do processo de
tornar-se plenamente humano, podemos encontrar uma experiência de confiança na ordem
da realidade. Outro sinal é o argumento da esperança, que consiste na orientação da
existência humana para o futuro, na concretização de projetos. Um terceiro sinal é o
argumento do humor, que reconhece a contraditória condição humana como cômica e, por
isso, relativizadora.
Esses sinais de transcendência de nossa época são rumores de que o sentimento
religioso não está ausente. Antes, a redescoberta do sobrenatural consiste em uma
reconquista da abertura na percepção da realidade.
O benefício moral principal da religião é que ela permite uma confrontação com
a época em que se vive numa perspectiva que transcende à época e assim a
coloca em proporção. [...] Encontrar coragem para fazer o que se tem que fazer
num dado momento não é o único bem moral. É também um grande bem moral
que este mesmo momento não se torna o momento absoluto e final da existência,
que, em aceitando suas exigências, não perde a capacidade de rir e brincar
(BERGER, 1973, p. 126).
3.6. “ETHOS” CRISTÃO
Resta-nos agora a pergunta a respeito de como deve ser um cristianismo que ouse
subsistir na pós-modernidade. Dois aspectos se tornam relevantes na discussão que esse
tema pode levantar. O primeiro diz respeito à eloqüência da mensagem cristã, de que
maneira ela ainda se faz relevante hoje. A segunda questão envolve o sentido da
espiritualidade, se é possível redescobrir o valor da religião e do viver cristão para hoje.
Estas questões estão relacionadas ao problema levantado por Bonhoeffer a respeito do
modo como Cristo toma forma no mundo, na vida e na comunhão da igreja. A questão,
96
então, é mais uma vez: como é possível um cristianismo a-religioso num mundo sem
Deus?
Ao levantar o problema de saber como pode se dar um saber filosófico sobre o
saber moral do homem, Gadamer (1997) se reporta a Aristóteles, cuja ética se distingue da
natureza exatamente porque nela o homem vem a ser tal como veio a ser através do que faz
e do modo como se comporta. A noção desse ethos se opõe à noção de natureza, pelo fato
de que esta se rege por leis distintas. Nesse sentido, o saber ético exige que aquele que age
deve ver na própria situação concreta o que esta exige dele. Esse saber não pode ser um
saber exato pois envolve aspectos da decisão e da vontade e nada pode se interpor a essa
autonomia do sujeito. Isso suscita o problema do método, uma vez que, diante da idéia do
bem, é preciso encontrar o modo pelo qual se torne visível o perfil das coisas e ajudar a
consciência moral a decidir. Essa questão de como ajudar é um problema moral, uma vez
que isso supõe uma maturidade existencial do sujeito que age. “[...] por educação e
exercício ele já deve ter desenvolvido uma determinada atitude em si mesmo, e seu
empenho constante deve ser mantê-lo ao largo das situações concretas de sua vida e
conservá-la através de um comportamento correto” (GADAMER, 1997, p. 467).
O problema do saber ético esno fato de que o saber deve orientar o fazer. “Seu
objeto é o homem e o que este sabe de si mesmo. Este porém se sabe a si mesmo como ser
que atua, e o saber que, deste modo tem de si mesmo não pretende comprovar o que é.
Aquele que atua lida, antes, com coisas que nem sempre são como o, pois que podem
também ser diferentes” (GADAMER, 1997, p. 468). O saber ético, portanto, não é como o
saber objetivo da ciência, a episteme (conhecimento), que repousa sobre a observação.
Envolve as ciências do espírito, é phronesis (ação de pensar, percepção, entendimento de
uma coisa).
97
Castiñeira (1997) reconhece que uma teologia cristã pós-moderna deve tornar
eloqüente a mensagem cristã, no sentido de possibilitar o encontro entre Deus e o homem,
sem anular um nem outro. “Deve ser um cristianismo que ouse recordar a origem, assinalar
a promessa não possuída, denunciar a constante criação de novos ídolos, as atitudes
desesperançosas, sem que por isso tenha de deixar de reconhecer as próprias inseguranças”
(CASTIÑEIRA, 1997, p. 174). Entretanto, a tentação da condição pós-moderna, de um
discurso absorvido pelo espetáculo dos anúncios, pode conduzir à substituição da voz de
Cristo pela “megafonia” que atrai as multidões, em lugar de pessoas concretas.
Tal como no saber ético, a experiência religiosa deve ser vista a partir da relação do
ser com a ão concreta, quando torna possível a presença e a ação de Deus por meio de
sua própria ação, quando é capaz de narrar e demonstrar o amor de Deus. Nesse caso, “não
é que o homem tenha experiência de Deus, mas que o homem é experiência de Deus
(CASTIÑEIRA, 1997, p. 179). Na experiência de Deus, o homem não perde a condição de
sujeito, mas estabelece uma relação intersubjetiva com a dimensão do sagrado. Nesta
relação, o sujeito se reafirma e reconhece que não é o protagonista da relação. Essa relação,
na qual Deus não deixa de ser o Deus inefável (que não pode ser expresso por palavra, mas
que exige uma atualização e correção constante da linguagem e imagem de Deus), passa a
ser uma relação necessariamente interpessoal.
O cristianismo deve aceitar a sua condição minoritária em meio ao pluralismo
religioso e, em meio à fragmentação da experiência religiosa, deve acolher novas formas
de espiritualidade, de modo que possa penetrar na dor e no conflito do mundo secularizado.
Um modelo de espiritualidade que é ambíguo e ambivalente, visto que, ao rejeitar o ideal
de um sujeito auto-suficiente, confronta-se com a finitude e que resiste a ter que decidir
entre o desespero e a fé. Michel Foucault (2004) faz uma análise da expressão “tem
cuidado de ti mesmo” (epimeléia heautou) para a filosofia como possibilidade dialógica de
98
intersubjetividade e de autoconsciência. O que Foucault (2004) chama de espiritualidade,
ao tratar do sentido, corresponde a um conjunto de práticas que visam, não ao
conhecimento, mas ao acesso à verdade, de tal maneira que não pode haver verdade sem
que haja conversão do sujeito.
A espiritualidade postula que a verdade jamais é dada de pleno direito ao sujeito.
A espiritualidade postula que o sujeito enquanto tal, não tem direito, não possui
capacidade de ter acesso à verdade. Postula que a verdade jamais é dada ao
sujeito por um simples ato de conhecimento, ato que seria fundamentado e
legitimado por ser ele o sujeito e por ter tal e qual estrutura de sujeito. Postula a
necessidade de que o sujeito se modifique, se transforme, se desloque, torne-se,
em certa medida e acerto ponto, outro que não ele mesmo, para ter direito ao
acesso à verdade. A verdade é dada ao sujeito a um preço que e em jogo o
ser mesmo do sujeito (FOUCAULT, 2004, p. 19 e 20).
O movimento pelo qual o sujeito tem acesso à verdade inclui o amor (em Foucault,
denomina-se eros; em Bonhoeffer e nas Escrituras, denomina-se ágape) e o trabalho
(áskesis, que consiste no esforço humano em relação ao ideal ascético). Portanto, a verdade
não é uma recompensa dada ao sujeito pelo fato de conhecer. Mas é o que completa o ser
do próprio sujeito e que o transfigura. Além disso, como assevera Castiñeira (1977), a
verdade não é resultado do sujeito solitário, mas o acordo comunicativo entre sujeitos.
Richard Foster (2001) no exemplo de Bonhoeffer um dos modelos de
espiritualidade válido para esse tempo como exemplo de coragem e compaixão. Ele, então,
alinha as razões pelas quais chega a essa conclusão. Em primeiro lugar, Bonhoeffer parte
da convicção de Cristo como o centro de uma compreensão e interpretação do mundo. Por
outro lado, essa compreensão de Cristo como centro conduz a uma ação cristã responsável
no mundo. Esse mesmo modo de compreensão pode ser visto no pensamento de Hans
Küng (1976, p. 472): “o especificamente cristão, portanto, está em que todas as exigências
éticas são compreendidas à luz do domínio de Jesus Cristo crucificado”. O que distingue o
cristão é o seu engajamento último à pessoa de Jesus Cristo como o encarnado que vive e
que toma forma no comprometimento de uma vida que se rende ao seu senhorio.
CONCLUSÃO
A questão que se levanta sobre a relação da formulação de uma ética protestante e
com a pós-modernidade é que existe um conflito presente na relação entre o pensamento
que elabora uma ação do protestantismo no momento atual e a maneira como se manifesta
culturalmente o homem contemporâneo. Este conflito reside principalmente no modo
como esses dois ambientes se intercomunicam. Um protestantismo marcado por um
discurso ético formulado a partir de um pensamento fundado na modernidade, que divide a
interpretação da realidade em dois mundos, por um lado, e a sociedade pós-moderna, cuja
construção da realidade é marcada pela fragmentação e pela ambivalência.
De um modo muito próprio, Dietrich Bonhoeffer é o primeiro pensador protestante
a constatar essa distância e apresentar, pelo menos, a necessidade de se encontrar um
caminho para a eliminação, ou atenuação, dessa distância. O essencial do pensamento de
Bonhoeffer pode ser resumido em apenas uma única afirmação: o cristianismo sem religião
num mundo sem Deus. O modo como elaborou o seu pensamento chegou ao conhecimento
de uma forma fragmentária e inconclusa. Talvez por isso mesmo suas idéias sejam tão
atuais e necessitem sempre serem visitadas. Houve um período em que se viu o conteúdo
de suas idéias apenas em função do seu modo de vida, engajado e comprometido com os
100
problemas de seu tempo, a ponto de assumir o preço de uma vida a serviço da
transformação da realidade histórica vivida pela humanidade durante a Segunda Guerra
Mundial. Nem mesmo a dubiedade de seu trabalho de contra-espionagem tem sido usado
como argumento para colocar em prova sua coerência ética. Antes, sua própria vida é o
critério de validação para seu pensamento.
Deixando de lado todas as pretensões de um enaltecimento da vida daquele que fora
enforcado pelo nazismo, acusado de alta traição, é preciso olhar o conjunto das idéias desse
“vencedor e vítima do nazismo”
33
como uma proposta de reflexão ética para esse tempo.
Em princípio, é preciso ter uma compreensão clara do modo como o pensamento de
Bonhoeffer se estrutura, assinalado por quatro viés muito bem delineados. O primeiro é o
da centralidade de Cristo como Deus encarnado, que toma forma no mundo a partir da vida
concreta dos cristãos em comunhão. O segundo tema é a sua compreensão de que o mundo
chegou a sua idade adulta que anseia por afirmação. Uma maioridade que permite a
manipulação pelo poder totalitário, como aconteceu com o nazismo. O terceiro tema é o da
necessidade dos cristãos terem uma vida simples, sem reivindicação de poder e de
autoridade. O quarto e último tema que aponta para uma ética é o de que viver de forma
cristã no mundo é viver para os outros de modo responsável.
Em sua Ética, Bonhoeffer estabelece três diretrizes fundamentais para a elaboração
de uma proposta ética. Sua primeira preocupação está ligada à necessidade de uma reflexão
a respeito do modo como Cristo toma forma no mundo. Em função disso, encontra-se a sua
cosmologia, ao entender o modo como o mundo está reconciliado com Deus em Jesus
Cristo. Outra compreensão fundamental é o da “unidade polêmica”, que remete à
compreensão de que vida cristã é vida sob tensão, é viver a contradição de estar diante de
33
Expressão utilizada por Georges Hourdin como título do livro que escreveu sobre Bonhoeffer. HOURDIN,
Georges. Vítima e vencedor do nazismo: Dietrich Bonhoeffer. Trad. Magno Vilela. São Paulo: Paulinas,
2002.
101
uma realidade penúltima, vivendo a condição última, é viver a liberdade sem rejeitar a
obediência. Finalmente, sua ética aponta para a definição do modo como a vida em
conformidade com Cristo deve ser vivida sob a égide do agir responsável.
Contudo, o seu pensamento fragmentado e inconcluso deixa alguns pontos em
aberto, que exigem uma atualização constante. Questões como: de que forma é possível
falar de Deus num mundo sem Deus? Como se apresenta um cristianismo a-religioso?
Como deve ser a vida de disciplina do cristão num mundo secularizado? São questões que
devem sempre ser feitas, uma vez que, na diversidade de respostas possíveis, encontra-se o
caminho para a solução do conflito.
A relevância de Bonhoeffer hoje é que, a partir de suas obras, surge para a teologia
a abertura para a elaboração de um discurso teológico em que a mensagem tradicional, do
Deus que se encarna e que assume a cruz e a ressurreição, se torna relevante e sempre
nova. Sua vida e a chamada a um seguimento de Cristo de forma responsável suprem o
modelo de uma espiritualidade que integra, em um mesmo sujeito, o saber comprometido
com Cristo e com o mundo. O pensamento de Bonhoeffer aponta para a possibilidade de
diálogo da teologia com o mundo a partir da compreensão de que o modelo que valorizava
a razão e o absoluto fracassaram. A redescoberta do sujeito que se diante do dilema da
decisão e assume a ambivalência do mundo sem se mostrar arrogante é o caminho que se
mostra viável.
A proposta de um discurso ético protestante para a pós-modernidade não aponta
para uma harmonização, mas para o conflito. Uma vez que vida cristã é vida sob tensão, é
na “unidade polêmica” (para usar um termo do próprio Bonhoeffer) entre discurso e ação
que se encontra a validade e a atualidade da relação entre protestantismo e
contemporaneidade. A pós-modernidade exige uma linguagem que remeta a um universo
de significação e simbolismo do Deus encarnado em Jesus Cristo, que reconcilia o mundo
102
consigo, e que toma a em sua ação concreta como eixo principal da interpretação da
palavra de Deus como palavra aos homens. A pluralidade das significações requer um
discurso que seja capaz de despertar nos homens pós-modernos o desejo de Deus, que seja
mediado por uma comunidade que é fruto desse encontro pessoal com Deus em Cristo, que
lhe dá expressão e forma.
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ZILLES, Urbano. Filosofia da religião. São Paulo: Paulus, 1991.
ANEXOS
Anexo I
GALERIA DE FOTOS
Foto 1. Os gêmeos Dietrich e Sabine Bonhoeffer - 1914
Bilder aus seinem Leben, p. 27.
Foto 2. Dietrich e Sabine, o sexto e o sétimo entre oito irmãos.
Bilder aus seinem Leben, p. 28.
Fonte das fotos e legendas: página da Sociedade Internacional Bonhoeffer- Seção Língua Portuguesa.
Disponível em <http://www.sociedadebonhoeffer.org.br/quem_foi.htm>. Acesso em 30 jul 2006.
109
Foto 3. D. Bonhoeffer, setembro de 1930. Fotografia para o registro no “Union
Theological Seminary”, N.Y.
Bilder aus seinem Leben, p. 65.
Foto 4. D. Bonhoeffer, agosto de 1935 , seminário de Finkenwalde.
Bilder aus seinem Leben, p. 141.
110
Foto 5. Pastorado Coletivo em Gros-Schlönwitz.
Praia do mar do oriente. Bonhoeffer, ao lado de Heins Fleichhack; do outro lado à direita,
E. Bethge.
Bilder aus seinem Leben, p.167.
Foto 6. D. Bonhoeffer retorna da América em Julho de 1939 - Foto, Londres 1939.
Bilder aus seinem Leben, p. 165.
111
Foto 7. Fac símile da Carta escrita na prisão de Tegel (Berlim) em agosto de 1943.
Widerstand und Ergebung, p. 145
Foto 8. Casa dos pais de D. Bonhoeffer, em Marienburger Allee 43 (Berlim). A
importância da família de D. Bonhoeffer e sua tradição, ponto seguro de orientação para o
seu caminho.
112
Foto 9. Pátio do presídio de Tegel, 1944.
Bilder aus seinem Leben, p. 203.
Anexo II
LEGADO PARA A IGREJA NO BRASIL
Por Luís Cumaru
Constitui-se um verdadeiro desafio para mim, falar da importância da vida e obra
de Dietrich Bonhoeffer para o meu país. Minha admiração por ele vem desde 1983, quando
eu estudava em curso teológico. Muito tempo depois li a sua biografia escrita por Eberhard
Bethge, mas foi em 1996, quando conheci e me filiei a sociedade internacional Bonhoeffer,
seção de língua inglesa, que pude conhecer a largura e o comprimento, a altura e a
profundidade do seu legado.
D. Bonhoeffer viveu no período considerado por muitos estudiosos, como o mais
importante e crítico do século XX, a guerra mundial (segundo a Universidade Estadual
do Rio de Janeiro o número de mortos neste período é o equivalente a toda população
Brasileira recenseada em 1950). Embora o Brasil só tenha entrado na guerra em 1944,
sabemos pela obra de Stanley Hilton - "Suástica sobre o Brasil", que no início dos anos 40,
a ABWER (departamento de inteligência militar da Alemanha, onde Bonhoeffer trabalhou
como agente de informações durante os últimos anos de sua vida) estabeleceu aqui uma
ampla rede de espionagem, devido a posição altamente estratégica do nosso país. Mas
embora o seu legado seja muito amplo na área social e ética, é nas suas reflexões
teológicas sobre a igreja (eclesiologia) que vou me concentrar agora.
As Igrejas Cristãs Evangélicas brasileiras(ou protestantes - expressão não muito
corrente hoje em dia e que se aplica mais as denominações históricas) são bem jovens.
no século XIX foram fundadas as primeiras congregações por missionários estrangeiros em
nosso solo. Oscilando entre a influência de teologias vindas do exterior e a formulação de
uma teologia nativa e contextualizada, nosso protestantismo amadurece buscando ter uma
identidade própria. É dentro desta realidade que vejo a importância do legado de
Bonhoeffer que sempre equilibra a teologia reformada com a teologia bíblica. Para ele a
identidade da Igreja é Jesus Cristo, e isto não no sentido do programatismo, mas no sentido
da Igreja ser a forma de Cristo no mundo. Me fundamento especialmente no capítulo A
Imagem de Cristo, do livro Discipulado, e no capítulo Ética como Formação, da sua obra
póstuma, Ética. Esses dois capítulos me trazem a mente a sentença de Goethe – “O
comportamento é um espelho onde cada um mostra qual é a sua imagem”. De acordo com
Bonhoeffer a Igreja é chamada a refletir a figura e o amor de Cristo, em ações e palavras.
Pastor e Presidente da Sociedade Internacional Bonhoeffer, Seção Língua Portuguesa. Este artigo é uma
versão em português de The Importance of Legacy of D. Bonhoeffer to the Church in Brazil, publicado no
boletim da seção de língua inglesa da SIB. Usado com permissão.
114
Assim como o Cristo Encarnado - o Deus que se fez homem - somos chamados a viver a
em meio ao mundo criado e amado por Deus. Jesus sentava-se a mesa com amigos e
inimigos, participava das festas e tradições do seu povo e nos chama a vivermos uma
espiritualidade não alienada, mas participativa no mundo . Em sua tese de doutorado
Sanctorium Communio - Um Estudo Teológico da Sociologia da Igreja, ele expressou isso
da seguinte forma: “precisamente no contexto diário da vida que a igreja é crida e
experimentada”. Na conformação com o Cristo Crucificado, ele nos diz que a marca e o
sucesso da Igreja neste mundo chama-se cruz, e não a glória e o sucesso visíveis. Nos
últimos anos tem crescido em nossa terra a 'teologia da prosperidade', que afirma que todo
o sofrimento é conseqüência de pecado e falta de fé. Não rejeitando a possibilidade de uma
vida terrena próspera, nosso teólogo escreveu em uma das suas cartas da prisão “que a
benção inclui a cruz, e que a cruz inclui a benção”. E em Sanctorium Communio ele diz: “a
realidade da igreja não é experimentada em momentos de exaltação espiritual, mas com as
rotinas e sofrimentos da vida diária, no contexto do serviço ordinário”. E na conformação
com o Cristo Ressuscitado e Transfigurado, ele nos fala da realidade da nova criação em
Cristo, que já manifesta os sinais do seu reino no tempo presente. A partir então dessa
conformação com a encarnação, cruz e ressurreição, vem então a sua definição
eclesiológica: “a Igreja é Cristo existindo em forma de comunidade”.
“Na Igreja temos um único altar, o altar do Altíssimo, diante do qual todas as
criaturas devem dobrar os joelhos” (sermão de fevereiro de 1933, logo após a ascensão de
Hitler ao poder). É diante do altar do Deus que se fez homem, morreu e ressuscitou que a
igreja tem de servir e deixar que o amor do seu Senhor se reflita ao mundo. Uma igreja que
crê e vive nessa comunhão do Cristo total, não se deixa intimidar diante dos poderes
contrários à vontade de Deus, sejam eles de ordem secular ou religiosa, nem se torna
subserviente de uma estrutura política corrupta e criminosa. O Brasil atravessa um
momento bastante difícil: índice de analfabetismo e criminalidade alarmantes, contraste
social marcante, onde há uma concentração maior de riquezas por uns poucos, e um
número cada vez maior de pobres vivendo em condições sub-humanas. Uma crise política
preocupante, onde candidatos de caráter duvidoso, barganham favores em troca de votos
dos cristãos. Portanto de acordo com a encarnação, devemos buscar o reino de justiça e paz
dentro do nosso contexto. Devemos também ter a coragem de se preciso for, sofrer por
causa da nossa e pela causa da justiça em conformidade com a cruz. Mas tudo isso na
comunhão do Ressuscitado que prometeu fortalecer e estar com a sua Igreja até a
consumação dos séculos.
Finalmente tudo isso ganha um valor especial pela forma com que Bonhoeffer
refletiu em sua vida essas realidades. Amou a igreja do seu tempo, sofreu com ela e por
ela, mas também participou ativamente do destino da sua pátria, e quando viu que a sua
igreja silenciou diante de tanta injustiça, que os cristãos não levantaram suas vozes em
favor “dos irmãos mais fracos e indefesos de Jesus Cristo-(os judeus e os 200.000
considerados indignos de viver, entre eles os deficientes físicos e mentais, todos estes
condenados a eutanásia, mais os milhares de ciganos, homossexuais e testemunhas de
Jeová levados para os campos de extermínio)” não calou e nem desistiu mesmo sabendo o
risco que iria correr se fosse adiante pela causa. Consciente que o discípulo não está acima
do seu mestre e nem o servo acima do seu senhor , não se conformou em ser um cúmplice
dos crimes praticados pelo seu próprio povo, pagando assim um alto preço, o martírio aos
39 anos de idade. Sua vida é um testemunho vivo de suas palavras que merecem e devem
ser conhecidas e estudadas por nossa Igreja no Brasil.
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