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INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
CURSO DE DOUTORADO EM FILOSOFIA
SIMONDON E O HUMANISMO TÉCNICO
Professor Orientador: Aquiles Côrtes Guimarães
Aluno: Sávio Ramos Laterce
Rio de Janeiro
2009
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SIMONDON E O HUMANISMO TÉCNICO
Sávio Ramos Laterce
Tese de doutoramento submetida ao corpo docente do Departamento de Pós-Graduação em
Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais IFCS da Universidade Federal do
Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção de grau de doutor
em filosofia.
Aprovada por:
_______________________________
Prof. Dr. Aquiles Côrtes Guimarães
_______________________________
Prof. Dr. Fernando Fragozo
______________________________
Prof. Dr. Luiz Alberto Oliveira
_______________________________
Prof. Dra. Liliana da Escóssia
_______________________________
Prof. Dr. Fernando Rodrigues
Rio de Janeiro
2009
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Laterce, Sávio Ramos
Simondon e o humanismo técnico/Sávio Ramos Laterce. Rio de
Janeiro: UFRJ/IFCS, 2009.
214p.
Tese Universidade Federal do Rio de Janeiro, IFCS.
1.Simondon. 2.Filosofia da técnica. 3. Humanismo (Dout. IFCS-
UFRJ)
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No começo é a relação.
Gaston Bachelard
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A Theo, que inspirou esse texto e
que alegra minha vida há quase 5 anos.
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AGRADECIMENTOS
Sem a participação de algumas pessoas esse trabalho não teria condições de ser
desenvolvido. Antes de tudo, agradeço à minha companheira Nina pela compreensão de
dias e dias sem poder me dedicar à nossa vida comum. Lembro também da revisão
extremamente competente, que vai muito além das palavras e da língua portuguesa, da
minha amiga Maysa. No campo da philia, não posso esquecer das conversas precisas e
esclarecedoras do professor Luiz Alberto Oliveira e dos amigos Bartô Kapp, Sílvia Costa,
Richard Fonseca, Érica Leonardo, Johnny Alvarez e Rejane Moreira. Pela leitura atenta e
olhar cuidadoso em cada palavra, minha dívida com o amigo Iran Salomão é impagável.
Quero lembrar aqui com carinho do meu orientador Aquiles Côrtes Guimarães pela
paciência demonstradas com todos os meus descaminhos e pela confiança de me conceder
muita liberdade na exploração dos temas e autores. Em função da bolsa de doutorado
recebida, que tornou possível a tranqüilidade para deixar essa tese nascer, sou grato a
CAPES.
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RESUMO
Simondon promoveu uma importante reformulação do conceito de humanismo, ligando-o à
técnica. Outros pensadores, como os sofistas e Galileu, a nosso ver, também produziram
essa aliança. É o que iremos apresentar nos primeiros momentos da tese. Em seguida,
traremos a visão original do humanismo técnico de Simondon. Ao longo da tese, estará
presente a idéia-chave do filósofo, a individuação, que será apresentada em suas diversas
facetas. Daremos ênfase particular, por motivos óbvios, à individuação técnica.
Palavras-chave: Simondon, filosofia, humanismo, individuação técnica
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ABSTRACT
Simondon has remodelled the concept of humanism, making reference to the tecnique.
Other scientists, such as the sophists and Galileo, have contributed to this new vision of
humanism, as we try to prove in this research. This study will present Simondon's original
ideas of technical humanism. His key-notion, the individuation, is explained in rich details
in this research. The phocus will be on the technical individuation.
key words: Simondon, philosophy, humanism, technical individuation.
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SUMÁRIO
Introdução _________________________________________ p. 11
Prólogo _________________________________________ p. 16
UNIDADE I O humanismo técnico antropológico
1. Histórico do humanismo técnico ______________________ p. 20
O humanismo pré-socrático ____________________________ p. 20
O humanismo técnico do século V a.C. ___________________ p. 23
O humanismo técnico na modernidade ___________________ p. 30
O humanismo técnico moderno na política ________________ p.35
2. O antiaristotelismo de Galileu e a nova relação entre natureza
e artifício no alvorecer da ciência moderna _________________ p. 51
Uma nova física______________________________________ p. 52
A condenação do artifício _______________________________p. 54
A matematização moderna do mundo _____________________ p. 57
A questão do movimento ________________________________ p. 61
Giordano Bruno e os infinitos mundos _____________________ p. 64
O realismo científico de Galileu __________________________ p. 65
Um cientista que une teoria e prática ______________________ p. 72
A luta contra uma ciência do senso comum _________________ p. 74
UNIDADE II O humanismo técnico não-antropológico de Simondon
Idéia de relação em Simondon:
uma herança velada e transmutada_______________________ p. 80
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O humanismo de Simondon ____________________________ p. 91
O ser e o ser técnico em Simondon _______________________ p. 98
Diferentes níveis de individuação ________________________ p. 101
Crítica ao princípio de individuação aristotélico_____________ p. 104
Nem estável, nem instável ______________________________ p. 109
Individuação biológica em Simondon _____________________ p. 117
Contradição e paradoxo no amor e na vida_________________ p. 122
Indivíduo e meio associado______________________________ p. 130
A individuação física e a abertura para a técnica _____________ p. 132
Entropia e teoria da informação__________________________ p. 138
Uma união de dois mundos: a entropia informacional_________ p. 146
Novos sentidos para as máquinas_________________________ p. 155
Duas ilusões: o homem como escravizador
ou escravo das máquinas_______________________________ p. 159
Cultura, técnica e enciclopedismo_________________________ p. 163
O técnico como filósofo da técnica_________________________ p. 172
Técnica e alienação____________________________________ p. 179
Objetos concretos e abstratos_____________________________ p. 187
Concretização técnica e aproximação com a natureza__________ p. 193
Evolução genética dos objetos técnicos × demandas psicossociais_ p. 199
Conclusão___________________________________________ p. 205
Bibliografia _________________________________________ p. 207
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INTRODUÇÃO
Esta tese tem como objetivo apresentar a perspectiva totalmente renovada da noção
de humanismo que percebemos na filosofia de Gilbert Simondon. Essa renovação é o que
está sendo nomeado aqui de humanismo técnico. Em linhas gerais, seu projeto é o de
indicar que os objetos técnicos são criações humanas coletivas, sendo cada uma delas uma
síntese de memória, de informação e de aquisição de formas a ser investigada e decifrada.
Isso significa que esses objetos se impregnam dos afetos humanos que os criaram.
Exatamente por isso, eles não se esgotam no presente, mas têm um passado a ser
desvendado e um futuro a ser inventado. Nas reflexões de Simondon, eles são nomeados de
indivíduos, m jeito de ser e história, como fica explícito no título da obra que é eixo
central da investigação que desejamos realizar: Du mode dexistence des objets techniques.
1
Mas para conseguirmos destacar a originalidade da sua abordagem, entendemos que
será necessária uma recuperação histórica da idéia de humanismo, que para nós é um
consistente e mutante conceito filosófico. Em função disso, será preciso definir
constantemente sobre qual dos muitos humanismos existentes estaremos tratando em cada
momento. Apesar de ter sua criação datada de 1538, a noção teve uma larga utilização
retrospectiva, sendo inclusive remetida aos gregos e medievais. O que aconteceu é que ela
foi absorvida e teorizada pelas mais diferentes correntes, inclusive antagônicas, de
pensamento. Com isso, tornou-se imprecisa, vaga, amorfa. Ferrater Mora destaca que essa
abrangência se porque o humanismo pode ser resumido como tendência filosófica na
qual se ressalta algum ideal humano‟”. E completa: “Como os „ideais humanos‟,
proliferaram-se os humanismos. (FERRATER MORA, 2000, p. 1396). Em nome da
1
A obra ainda não tem tradução para a língua portuguesa.
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precisão, tão decisiva quando estamos no campo das idéias singulares de um filósofo,
iremos sempre referenciar que pensador está por trás de cada viés humanista proposto.
A impossibilidade de um humanismo fica patente pelo contraste dos seus
partidários. De um lado está Protágoras, na Atenas do século V a.C., sofista descrente do
poder dos deuses e da natureza nas decisões políticas humanas. De outro, bem mais tarde,
todo o pensamento cristão, que desejou dar ao homem, com o pressuposto da vontade do
Criador, um lugar diferenciado e superior em relação aos outros seres vivos, por sermos
feitos à imagem e semelhança Dele. Em regra geral, humanismo seria uma posição de
domínio que o homem ocupa em relação ao que o rodeia, seja em relação às mais diversas
áreas do conhecimento, seja em decisões éticas e políticas. Porém o que temos nas defesas
humanistas anteriores são duas centralidades, dois humanismos em franca
incompatibilidade. Esses são apenas dois casos; muitos outros, alguns deles com níveis
semelhantes de distanciamento.
A seleção dos modelos humanistas a serem trabalhados por nós foi feita a partir de
um critério, que é resposta a essa pergunta: em que raros momentos históricos podem ser
localizadas alianças entre humanismo e técnica? Acreditamos que, sem essa determinação
prévia, essa pesquisa não seria realizável. Essa é a nossa justificativa para, por exemplo,
não atravessar as vastas paisagens medievais. Nosso plano, em um primeiro momento, é
definir dois modelos de humanismo, ambos ligados especificamente à técnica. A partir da
exposição desse panorama, pensamos que haverá referência suficiente para destacar desse
pano de fundo a grande originalidade que percebemos no humanismo técnico de Simondon.
Começaremos obviamente pela Grécia, lugar onde a idéia de humanismo foi
gestada. Palavras de Werner Jaeger orientam essa nossa aproximação inicial: “O princípio
espiritual dos gregos não é o individualismo, mas o „humanismo‟, para usar a palavra no
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seu sentido clássico e originário. Humanismo vem de humanitas (...) ao lado da concepção
vulgar e primitiva de humanitário, que não nos interessa aqui, um sentido mais nobre e
rigoroso. Significou a educação do homem de acordo com a verdadeira forma humana,
como o seu autêntico ser.” (JAEGER, 1995, p. 12). Esse sentido originário de humanismo
se manifesta de modo explícito na arte grega, pois a sua referência capital, manifesta em
particular na escultura, é a figuração do próprio homem. É visível ainda na noção primeira
de cultura, como saber que se dá em múltiplas áreas (colocaríamos a sofística como
representantes dessa tendência), que se revela como a real possibilidade para o homem
conduzir-se por conta própria na vida, autonomia que os iluministas franceses do século
XVIII atribuem ao conhecimento enciclopédico e que Kant afirma ser uma das condições
para se atingir a maioridade e o pensar por si mesmo. Essa orientação originária grega
segue com o decorrer da história: “Não movimento humanista (...) que de uma forma ou
de outra não deite suas raízes no pensamento grego.” (NOGARE, 1985, p. 25).
Abrimos o cenário, no primeiro capítulo, tendo como atores principais aqueles que,
em função da ira platônica contra a cnica persuasiva e a difusão de opiniões, foram alvo
até hoje de todos os tipos de preconceito e leituras parciais: os sofistas. Ao longo do século
V a.C., a palavra tinha um sentido positivo. Sofista era alguém que detinha conhecimentos
em setores variados e que poderia tratar sobre os mais diversos temas de interesse público.
Era um novo tipo de sábio, de caráter prático e urbano (algo que hoje se assemelharia a um
professor), diferente do modelo anterior do sábio religioso, que representa a palavra divina
e é encarnado por profetas, adivinhos, xamãs etc. A partir de Platão, o significado
reconfigurou-se. Sofista passou a ser aquele que detém um falso saber e que ensina a seus
discípulos as táticas para conquistar uma platéia sem a mínima consistência intelectual. É
essa visão que permanece quase unânime no senso comum até mesmo entre os
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pesquisadores, o que nos uma idéia da força extraordinária do pensamento platônico.
Nossa intenção é conseguir visualizar os sofistas, ou pelo menos uma parte deles, para além
da visão única de Platão e mostrar como alguns se revelaram como defensores da liberdade
de expressão, inauguradores radicais da idéia de centralidade humana no Cosmos e também
como estimuladores do movimento político que representou a maior manifestação de
liberdade do mundo antigo: a democracia grega.
Depois disso, será o momento de trazer outras duas circunstâncias históricas em que
a posição humana em relação ao ambiente que o rodeia foi de decisivo destaque: o
Renascimento e a Revolução Científica. Esses momentos do humanismo moderno foram
distintos do antigo. Os sofistas, pelo menos Protágoras e Górgias, os que mais nos
interessam aqui, viraram as costas para a natureza, ignorando-a, e concentraram-se na
cidade e na produção artificial ligada à linguagem e à política. Já o artista, o filósofo e o
cientista moderno, que em alguns casos estão concentrados na mesma pessoa, praticam o
humanismo de outro modo: a técnica agora se reflete na produção de instrumentos que se
prestam a avaliação, verificação e, principalmente, domínio dos fenômenos naturais. A
idéia agora é dominar a natureza para modificá-la e a precisão da análise vem desses
artifícios. É esse aspecto intervencionista e criador que enobrece uma existência humana
entre os modernos. Nossos personagens principais nessa passagem serão Leonardo e
Galileu, que nos parecem exemplares no sentido de privilegiar a invenção autônoma de
objetos artísticos e científicos, a comprovação experimental da natureza e o artificialismo
da matemática sobre o antigo estatuto medieval do dogma e da contemplação apoiados em
conceitos aristotélicos.
Após isso, no terceiro capítulo da tese, vamos apresentar o sentido de humanismo
técnico de Simondon. Ao contrário dessas duas tendências, que tem o homem como núcleo
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de produção de qualquer conhecimento, esse pensador vai escapar ao antropocentrismo. Os
objetos técnicos têm uma história e uma existência próprias, são caixas pretas que precisam
ser conhecidas para que novos objetos surjam. Eles são, portanto, matéria fundamental para
a sua própria evolução, não sendo a condução exclusivamente humana. A técnica produz
homens e os homens produzem a técnica em regime de igualdade: os resultados são
conjugações relacionais objeto/homem/objeto e homem/objeto/homem que produzem
sínteses singulares. O ponto de partida, em Simondon, é que, para além dos radicalismos
tecnófilos ou tecnófobos, é preciso cogitar a possibilidade de que os objetos técnicos
servem para a expansão da liberdade humana, o que é uma legítima preocupação
humanista.
A inserção das máquinas em uma possível dimensão criativa e, em múltiplos casos,
libertadora para a humanidade é uma grande colaboração filosófica desse pensador. O
homem seria visto como um intercessor, responsável pela transmissão evolutiva que
pode acontecer entre uma máquina e sua próxima versão. Elas são vistas pelo autor como
sistemas abertos, ou seja, estão aptas a receber permanentemente novas informações
fornecidas pelo homem. Não devem ser vistas isoladamente ou apenas no presente, mas
como pertencentes a séries que remetem ao passado e apontam para o futuro em regime de
mutação contínua. Como diz Bernard Stiegler: “O que é interessante não é o indivíduo
técnico que são esta máquina ou aquele objeto, mas o processo de individuação que aparece
por meio da série de objetos técnicos.” (STIEGLER, apud SCHEPS, 1996, p. 174). Uma
pergunta então abriria a possibilidade de saída ao pessimismo majoritário de nossa época
em relação às técnicas, o que Dominique Lecourt chama em sua obra mais recente,
Humano pós humano, de catastrofismo: Por que as materializações posteriores não podem
ser mais humanitárias que as anteriores?
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Vamos defender, como hipótese inicial e genérica, que, em Simondon, existe
humanismo sem que haja necessidade de um antropocentrismo. O problema central então
não é louvar ou recusar a técnica, mas se perguntar o que deve-se fazer com ela,
principalmente em um mundo onde a tecnologia está inevitavelmente presente na vida de
todos. É pensando nisso que acreditamos ser o pensamento de Simondon absolutamente
essencial para refletirmos sobre um panorama que ele não chegou a vivenciar: o mundo
tecnocientífico e biotecnológico contemporâneo, onde uma nova humanidade, e todos os
desafios filosóficos atrelados a isso, está em vias de ser composta em conjugação com as
invenções técnicas.
PRÓLOGO
UM CONSAGRADO PRECONCEITO FILOSÓFICO À TÉCNICA
Ao longo da história da filosofia, clássica e medieval particularmente, sempre foi
feita uma grande separação entre pensamento e técnica. É lembrarmos o papel inferior
que Platão concedia aos trabalhadores manuais, os artesãos, em sua República. Pensar e
agir eram não incompatíveis, como a própria condição para pensar vinha exatamente da
inação. O governante da sua pólis, a melhor possível no plano da materialidade, era o
filósofo, aquele que nunca desempenha qualquer ação prática. Mesmo tendo a noção clara
de que tekhné tinha um sentido nobre entre os gregos, ela jamais deixava de estar ligada a
algum tipo de atividade, de realização material. Era entendida como habilidade, excelência
em elaborar ou preparar algo, seja um sapato, um discurso, um campo de trigo etc. Essa
característica ativa, por si só, a tornava para Platão muito inferior a episteme, ciência que
se realiza em um nível exclusivamente mental, ou seja, contemplativo. Esse entendimento
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do que seja ciência perdura até que sejam dados os primeiros passos da modernidade no
final do período medieval.
A idéia platônica de contemplação, que é o modo como se filosofa (as Formas são
alcançáveis pela visão), sugere a imobilidade, na medida em que contemplar é admirar,
sem intervir, algo que necessariamente é maior e mais importante que nós. Por isso, o
contato com o verdadeiro real será feito com nossos olhos superiores, os da alma, nunca
com os do corpo. Nada que está sendo contemplado deve ser alterado, pois há uma
perfeição inerente no alvo da contemplação. A verdade está fora e no alto, indica o
realismo do pensador grego. Aquele que observa está necessariamente em uma condição
inferior em relação ao observado. O verbo que Platão usa é theorein, significando a
visualização de algo elevado e imaterial que só se torna possível quando a alma está em um
altíssimo nível de pureza e nos livramos tanto quanto é possível do que é próprio do
corpo. Logicamente é desse significado originário que depreendemos a nossa compreensão
atual da palavra teoria. A exceção dessa tendência é perceptível entre sofistas como
Protágoras e Górgias, que ao mesmo tempo que não se dedicam a elaborar teorias,
defendem visões filosóficas na prática e valorizam as técnicas aplicadas à linguagem e à
política.
É relativamente simples perceber que o valor do contemplativo e do imóvel, que
vem da metafísica grega, teve um ajuste preciso aos padrões de pensamento medievais.
Afinal de contas, temos que lembrar como a idéia de Deus se apresenta no cristianismo.
Antes de tudo, Ele, por ser eterno e perfeito, é o próprio repouso absoluto. Depois, o modo
como o cristão se aproxima dEle se por via da busca de cessação dos movimentos e das
paixões corporais e também pelo desenvolvimento da alma, o componente de eternidade
que existe em nós e que nos a chance de habitar o plano divino. Se na Grécia a alma era
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sede da razão, agora é também meio de salvação e conquista da vida eterna. Não se
depreende daí que Deus possa ser contemplado em um face-a-face (Ele pode ser ouvido e
também fala, mas não é visto, pelo menos para a grande maioria dos que tentam estabelecer
contato), mas a atitude cristã é de preparar o espírito para contemplar os sinais enviados por
Ele. Um bom exemplo disso está na importância do silêncio e no incentivo à serenidade
entre os representantes religiosos. Paralelamente a isso, há um permanente estímulo à
intocabilidade e à não-intervenção naquilo que é compreendido como natureza. Esta, que se
revela, desde o Gênesis bíblico, como a grande obra realizada por Deus no começo dos
tempos, está para ser apenas admirada, nunca modificada. É exatamente por isso que o
antípoda de Deus, o diabo, traz inerente a si atribuições ligadas ao artificialismo,
2
à
contranatureza: sedutor, alterador da matéria, contador de mentiras, corruptor da ordem,
estimulador das paixões e ações violentas etc.
É esse quadro mental que se modifica com o despertar da modernidade. A série de
conflitantes visões de mundo que se inaugurou nos séculos finais da Idade Média, e que se
seguiu por pelo menos dois séculos, colocou justamente em lados opostos as idéias de vida
contemplativa e de vida ativa. A idéia de “quem sabe faz”, que é quase incontestavelmente
para nós hoje uma expressão percebida de maneira positiva, só poderia fazer sentido em um
âmbito moderno (mesmo que aconteça ainda dentro do que se nomeia Idade Média), jamais
antes. O que parece é que passou a ser percebido, em um modelo de pensamento de herança
platônica, um desvínculo que se passa no interior da reflexão filosófica, pois historicamente
ele nunca aconteceu, entre técnica e produção de idéias. Exatamente por isso essa tese quer
promover o resgate de uma associação histórica entre esses dois campos.
2
Entendemos aqui como a produção de objetos com condução exclusivamente humana, ou seja, que não são
encontrados na natureza.
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HISTÓRICO DO HUMANISMO TÉCNICO
O humanismo pré-socrático
Para iniciar qualquer histórico sobre o humanismo, por mais breve que ele se
pretenda, é preciso começar recorrendo aos gregos e ao nascimento do livre pensamento
filosófico no século VI a.C. É no cruzamento de Oriente e Ocidente, nas ilhas jônias, que, a
partir de tentativas humanas de entender os processos naturais, a idéia de um novo e
importante papel do homem diante do mundo que o rodeia passa a ter sentido pela primeira
vez, pelo menos até onde podemos desvendar desse universo nebuloso anterior aos relatos
escritos. É preciso não esquecer, como insistiu o grande helenista Erik Havelock em boa
parte da sua obra, que a filosofia começou absolutamente independente da linguagem
textual.
Foi em regime oral que a especulação sobre possíveis e espontâneas regularidades
no mundo natural ganhou sentido, constituindo o começo comum da filosofia e da ciência.
Estamos no ambiente de Tales de Mileto e uma grande ousadia está pronta para ser
empreendida, até onde sabemos, pela primeira vez pela humanidade. É o modo de ver que
se altera radicalmente. O que desaparece é uma hierarquia deuses/homens que eliminava
qualquer possibilidade de um discurso especulativo humano, diferença de poder que
aparece de modo explícito na tragédia grega. Os deuses, habituais comandantes das
diferentes áreas da natureza, deixam esses postos e ela ganha autonomia, passando a ser
causa e efeito dos seus próprios fenômenos. Não estamos absolutamente cometendo a
heresia de sugerir que o sagrado tenha se esvaído do meio natural. O maniqueísmo entre
sagrado/profano, religioso/ateu, que existe para nós, não é cogitado na Grécia Clássica.
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A idéia de théos, anterior e mais ampla que a visão ontológica de Deus cultivada na
cultura judaico-cristã, se liga também à acepção muito mais geral de divino. Diz W. K.
Guthrie: (...) theos, a palavra grega que temos presente quando falamos do deus de Platão
tem primordialmente um valor predicativo (...) Nesse estado de espírito e com essa
sensibilidade para perceber o caráter sobrehumano de muitas das coisas que nos ocorrem
(...) um poeta grego escreveria versos como este: o reconhecimento entre amigos é theos‟.”
(GUTHRIE, 1994, pp. 17-8) Sem estar limitada a entidades antropomorfizadas, a
sacralidade está entranhada em tudo o que existe. Tales chegaria a pronunciar a frase
Mesmo os seres inanimados podem estar vivos; o mundo está cheio de deuses”,
indicando que tudo na natureza traz o atributo de divino. Podemos inclusive afirmar que um
animismo ou um panteísmo estão presentes, na medida em que esse potencial energético
religioso, que não deixa de ser vital a partir desse ponto de vista, se espraia por todos os
corpos, alcançando por exemplo as pedras. Mais uma vez Tales é comentado, desta vez da
perspectiva de Aristóteles: “Parece também que Tales, a avaliar pelo que se conta,
considerava a alma como algo de cinético, se é que ele disse que a pedra [de Magnésia]
possui alma pelo fato de deslocar o ferro.
(KIRK, 1994, p. 93).
A questão é que se não mais seres superiores guiando os fenômenos naturais, o
homem tem um espaço aberto para lançar suas concepções próprias dos acontecimentos. É
assim que um eclipse não é mais, por exemplo, a mão de um deus colocada na frente do sol
ou da lua, mas passa a ser fruto de constâncias naturais de movimentos cósmicos
autônomos, sendo, exatamente por isso, humanamente explicáveis. Usa-se para isso, entre
outros artifícios criados por homens, os números matemáticos. Se, no Egito, a matemática
era usada com o fim prático e religioso de construir uma pirâmide, a tumba de um
homem, na Grécia, esse estudo vai se voltar para o conhecimento livre e desinteressado dos
- 21 -
céus. O próprio Tales, entre outras habilidades, era matemático e astrônomo. Desse
movimento de esquadrinhamento celeste, que privilegiou as estabilidades e repetições,
nasceu a ciência, que nesse momento está completamente imbricada à filosofia.
O que mais nos interessa nessa nova condição é que seguimos de uma natureza
controlada por entidades com superpoderes para a proposição de soluções integralmente
humanas das ocorrências. Não temos mais a voz do deus, por si mesma incontestável,
dizendo como um acontecimento se dá. Surge uma visão individual, mas que se pretende
universal, apoiada em raciocínios humanos e causas imanentes. Aparece também nesse
raiar filosófico inicial uma multiplicidade de análises naturais em choque, o que demonstra
que a polêmica, o combate de idéias, diferentemente do discurso mítico, é componente
constituinte da filosofia desde os primeiros passos. Uma situação interessante se anuncia: o
homem agora tenta explicar o que antes era uma certeza de caráter irrevogável. Não
podemos deixar de ver nessa manifestação de coragem o despertar de um humanismo. Não
é ainda a ocupação humana de um papel central em relação ao mundo, que é a consideração
clássica do que seja humanismo, mas revela-se sem dúvida como uma inédita condição de
importância dada à razão humana. Se não é o humanismo de cores fortes do século V, como
veremos em seguida, já é, no mínimo, o que poderia ser chamado de um humanismo
moderado. Não podemos esquecer que essa renovação do pensamento aconteceu somente
na Grécia e que os impérios em torno continuavam com sua tradição de hierarquia de poder
com vínculos estritamente religiosos. Um homem fazia diferença entre os outros nesses
locais pela sua maior proximidade com a esfera divina. Por isso, aquilo que diziam os
profetas, os adivinhos e os xamãs tinha força de verdade.
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O humanismo técnico do século V a.C.
Um momento mais decisivo na trajetória do humanismo enfatizado por nós acontece
no século V a.C., em Atenas, que aí a liberdade de expressão e a democracia atingiram
um esplendor singular entre as cidades gregas. Nossos personagens agora serão os sofistas,
particularmente aquele que é considerado seu primeiro grande representante: Protágoras.
Ao falar especificamente deste humanismo, o conceito ganha cores mais fortes, pois no
âmbito da pólis, o campo das decisões sobre o futuro cabe única e exclusivamente à
dimensão humana. Os sofistas são aqueles que anunciam, talvez pela primeira vez, que seja
impossível afirmar com plena convicção se os deuses existem ou não existem. Ou, em
sentido mais geral, que sobre o invisível e o misterioso nada se pode dizer, não se pode
opinar. Dessa forma, estão definindo o campo possível do que pode ser conhecido pelo
homem. Pois se os deuses não se deixam afirmar, resta o humano. E completam que, de
todo modo, mesmo que os deuses existam, não têm poder de intervir de maneira direta nas
situações vividas por certa comunidade ou nas decisões referentes à vida pública. Diz
Gilbert Romeyer tratando de Protágoras: “(...) prepara assim por negação de todo recurso
ao absoluto, um humanismo radical.” (DHERBEY, 2002, p. 16). São os homens em
conjunto que decidem por si mesmos como se processará o futuro.
Com uma audácia extrema, que poderíamos chamar de um agnosticismo avant la
lettre, os sofistas chegam a especular que os deuses podem habitar apenas nossas mentes ou
que sua missão principal é a de atender a carências sociais, sendo seres imaginados, não
reais. O ceticismo reinante no pensamento sofista vai levar a um ponto culminante a noção
de autonomia humana, na medida em que as convicções do sujeito vêm dos seus
pensamentos e percepções. O que interessa nesse momento é o que cada homem, com a
competência advinda de um conhecimento adquirido com esforço, pode fazer. Os novos
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tempos anunciam a idéia de que os cidadãos são iguais e rivais, não sendo mais decisiva,
como antes, a questão sangüínea, critério típico do regime monárquico anterior,
aristocrático-religioso. Na democracia, a avaliação é por competência. Todos que têm
direitos políticos em Atenas, cerca de 20% da população ou 6 mil pessoas, são colocados
agora supostamente na condição de pretendentes. É nessa conjuntura igualitária que a
especialidade sofística, ensinar a melhor forma de pronunciar um discurso em defesa de
uma idéia, ganha relevo. Eles tornam-se fundamentais, pois fornecem técnicas para o
acesso ao poder, que na Atenas do século V é pavimentado pela expressividade oral.
Por terem trazido para a educação grega a importância da aquisição de saberes
variados e a maneira de transmiti-los, em disciplinas como oratória, retórica e gramática, os
sofistas ficaram conhecidos como os enciclopedistas da Grécia e o período nomeado como
Iluminismo Grego. É a partir deles, portanto, que podemos falar do que foi também
tremendamente estimulado na Renascença e no Iluminismo do século XVIII que hoje é
conhecido como cultura geral. A referência aqui não é a um saber superficial em diferentes
temas, como pode ser entendida essa expressão hoje. O modelo é a figura multifacetada de
Leonardo da Vinci para a sua época, ou seja, um amplo e profundo conhecimento de
diversas áreas, sem uma separação em especialidades, fenômeno típico do mundo industrial
e cada vez mais acentuado contemporaneamente. Não é coincidência que esses dois
períodos sejam também considerados humanistas, no sentido de posicionar o homem como
referência central do saber. É esse humanismo que vamos privilegiar no primeiro momento
dessa tese.
Argumenta-se que os sofistas não eram filósofos. Partindo de um certo
entendimento do que seja filosofia, isso está correto, pois não foram homens que teorizaram
sistematicamente, elaboraram tratados ou anunciaram publicamente conceitos e visões
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gerais sobre o Cosmos ou as ações humanas. Como remanescentes na pólis da tradição oral
iniciada com os pensadores pré-socráticos, efetivam as novidades de suas idéias na ação
política. É menos especulação e mais prática. O que de inovador se apresenta em praça
pública, no calor dos posicionamentos contraditórios em debate. É por isso que, mesmo
sem uma intenção clara, suas práticas no campo da linguagem e da política incitaram
questionamentos que são filosóficos por excelência: o que é o real? E a verdade? Qual é o
papel do homem em relação ao que o rodeia? Que relação pode existir entre verdade e
palavra?, tema que aliás atravessa toda a filosofia grega posterior. Podemos com
tranqüilidade dizer que os primeiros passos em filosofia política estão sendo dados por eles.
Também é possível afirmar com segurança que grande parte da problemática conceitual e
da reforma educativa proposta posteriormente por Sócrates e Platão tem total dependência
com as defesas sofísticas.
inclusive autores que teorizam que essas duas filosofias seriam impossíveis sem
os sofistas. Com eles, os dados deixam, como antes, de existir por si e o homem passa a
confiar naquilo que ele mesmo tiver proposto, valorado e aprovado, ou seja, a dimensão do
verdadeiro ganha planos terrenos e relativos. Em sua vertente absoluta, a verdade é
simplesmente descartada. A realidade passa a absorver intrinsecamente a contradição e a
multiplicidade. No campo jurídico, por exemplo, a única lei que conta é a criada pelo
homem e apoiada pela comunidade. Como diz G. B. Kerferd em O movimento sofista,
sobre a verdade em sentido único: “(...) opiniões contrárias são igualmente legítimas, a
verdade se torna uma armadilha enganadora, as tentativas de alcançá-la, loucura.”
(KERFERD, 2003, p. 26). A verdade é relativa a quem a pronuncia e a crença em algo se
dá no âmbito do provisório. Uma das técnicas argumentativas, retóricas, trata do que
Protágoras nomeia de antilogia. O ponto de partida é que sobre qualquer assunto há mais de
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um modo de se posicionar. Isso faz com que dois discursos possam ser coerentes e
incompatíveis ao mesmo tempo. Uma noção de combate, agón, é inerente à cultura grega.
Se antes o cenário era o próprio campo de batalha, com lanças e escudos, agora houve uma
transferência para o âmbito opinativo e lingüístico.
Isso faz com que todo orador digno desse nome seja capaz de elaborar um discurso
de defesa e de ataque sobre o mesmo tema. Estamos falando especificamente de estratégia.
Não é que não exista um ponto de vista defendido em relação a algo, mas, pelo contrário,
você defende melhor algo se conhecer os argumentos daqueles que pensam o oposto. Como
as verdades aparecem, sempre em caráter provisório, no calor dos discursos, opinião e
verdade não se distinguem. Não por coincidência uma noção de tempo que surge é a da
kairós, expressão normalmente traduzida por momento oportuno, pois dependendo da
situação que se apresenta e da expectativa da audiência será dada a importância adequada
ao que você está defendendo ou atacando. Isso quer dizer que os argumentos devem variar
de acordo as circunstâncias.
Existe uma autêntica revolução de costumes em andamento na Grécia. todo um
estímulo para que o valor dos homens seja definido não mais pela referência sangüínea,
mas pela capacidade individual. E ao falar disso na Grécia desse período, falamos ao
mesmo tempo de facilidade de se expressar. É nesse sentido que os sofistas, que são
literalmente professores de oratória e de argumentação (retórica), tornam-se peças
fundamentais na formação educacional complementar, que acaba por constituir uma nova e
necessária paidéia. A tradição educativa anterior condicionava como objetivo a preparação
dos homens para a guerra. Esses novos educadores são causa e conseqüência da abertura
política que está acontecendo em Atenas. Aproveitam-se dos novos tempos democráticos e,
ao mesmo tempo, os estimulam.
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Quando nos perguntarmos porque os sofistas afluíram a Atenas nesse período,
vemos claramente como houve uma forte conjugação de interesses: “Não foi por acaso que
sofistas de todo canto do mundo grego vieram para Atenas (...) Primeiro porque Atenas
oferecia excelentes oportunidades para um sofista ganhar muito dinheiro e, segundo, em
nível mais elevado, porque, sob muitos aspectos, ela estava em processo de se tornar um
verdadeiro centro intelectual e artístico em toda a Grécia.” (idem, p. 38). Atenas, muito em
função do comando político de Péricles, conquistou a maior liberdade de expressão que o
mundo antigo conheceu. Em nenhum outro local, à época e por muitos séculos, tantos
homens tinham a oportunidade de se candidatar ao cargo máximo de poder. Toda essa
revolução de hábitos estimulada pela sofística trazia reações adversas. Os sofistas atraíam
o entusiasmo e o ódio que regularmente advém àqueles que estão envolvidos num processo
de fundamental mudança social. (idem, pp. 43-4).
Não é possível falar dos sofistas sem apontar um dos seus grandes representantes:
Protágoras. Em particular, um ponto que nos interessa é a idéia do homem-medida. A sua
frase mais conhecida é esclarecedora: “O homem é a medida de todas as coisas, das que são
como são e das que não são como não são.” A frase traz ao mesmo tempo a questão do
homem como pólo definidor do que é e do que não é, abrindo um ponto central de
discordância em relação à noção que vem de Parmênides e de todo o eleatismo de que a
verdade existe, é absoluta e externa ao homem. Isso não quer dizer que Protágoras
desconsidere o problema da verdade. O que ele está dizendo é que ela agora é relativa às
produções mentais humanas, ou seja, ela é múltipla e variável. Ele não está dizendo que ela
é individual ou absolutamente fluida. O que está sendo dito, ao nosso ver, é que a postura
do livre pensador é a de abertura a novas reflexões, ou melhor, à aquisição de novas
verdades, conforme essas últimas pareçam mais coerentes e adequadas que as anteriores.
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Por não haver lugar a chegar, não problema em mudar o modo de enxergar o
mundo que nos envolve. Protágoras também não está levando o relativismo a extremos,
indicando que as verdades são referentes a cada indivíduo isoladamente. Sim, as
proposições são individuais, mas não se esgotam com ele, já que política propriamente dita
acontece no âmbito coletivo. É exatamente por isso que vemos uma possibilidade de falar
em ética sofística quando lidamos com Protágoras. Ela pode ser exercida quando um sofista
escolhe seus alunos ou quando os estimula a produzir discursos mais consistentes
sustentados por idéias que eles já possuíam. Há uma falsa e muito comum associação entre
o ato de persuadir e o de enganar.
Podemos afirmar hoje que grandes sofistas, Protágoras certamente incluído entre
eles, por inaugurar a dimensão política no palco da reflexão filosófica, foram os primeiros a
questionar como o homem deve agir em relação ao conjunto dos outros homens. Não é
preciso ir longe para lembrar que a resposta à pergunta como devo agir?, serve de base a
qualquer debate ético. Sua proposta de formar políticos, logicamente sem levar em conta as
interpretações muito tendenciosas de Platão, era unir o que eles pensavam, que vinha da
educação de base na Grécia com as novas exigências que o advento da pólis democrática
demandam. No momento anterior, que Homero simboliza exemplarmente, havia uma
concentração no preparo para a Guerra considerada suficiente. Agora as armas são outras.
São técnicas lingüísticas ligadas à oratória, gramática e retórica que serviriam para produzir
um discurso bem-sucedido. Os sofistas tornam-se essenciais porque passam a oferecer esse
complemento pedagógico ligado à linguagem, algo que se revela absolutamente prioritário
em ambientes onde o poder passa a ser alcançado por meio do saber e da expressão oral.
A idéia seria unir conhecimento e discurso bem articulado, reflexão e
técnica em um sistema. Mas mais que tudo isso, esses primeiros sofistas ajudaram a
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promover uma amplitude inigualável para a liberdade de expressão, que se revela como
humanista. Durante esse período áureo da democracia grega, também conhecido como
Iluminismo Grego, que virou referência de liberdade política para todo o Ocidente, formou-
se um conjunto que uniu um grande avanço nas técnicas da linguagem com os estímulos
políticos de autonomia e liberdade. Simondon traça um vínculo entre a promoção
humanista e o que costuma-se chamar de primeira sofística: “(...) no tempo dos Sofistas e
do Discurso Panegírico, a linguagem, concebida como depositária do saber aparecia como
o fundamento de uma perpétua panegiria da humanidade. (SIMONDON, apud
CHATELÊT, 1994, p. 270).
Mas essa fase durou pouco, mais propriamente 30 anos, quando o espírito libertário
ligado à palavra virou a lei do mais forte, e a palavra democrática fez a passagem para a
palavra tirânica. É nessa segunda sofística, que muitos autores não diferenciam da primeira,
que o horizonte ético vai perder o sentido, pois vai haver uma concentração definitiva nos
indivíduos isolados. O exemplo de sofista do período será Trasímaco. A retórica visa
explicitamente interesses próprios e egoístas. O sucesso do discurso será o primeiro e único
objetivo de quem o pronuncia, deixando de haver qualquer tipo de consideração das
conseqüências, algo que tem importância decisiva quando falamos de ética. Podemos
afirmar que, em termos genéricos, ética e egoísmo não podem andar juntos. A união
anterior entre palavra e pensamento se dissolve. Uma ação ética logicamente parte do
indivíduo, mas inevitavelmente vai além dele, repercute positivamente na vida de outros
indivíduos, o que chamamos normalmente de bem comum. Um sistema homem-mundo se
produz. É exatamente isso que tínhamos na primeira sofística e deixamos de ter na segunda.
A riqueza da união linguagem e conhecimento fica transformada em uma mera oratória
vazia, como se pudéssemos pronunciar um texto favorável à pena de morte durante o dia e
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contrário a ela durante a noite. Esse interesse egoísta conduz a um fechamento e a um
automatismo, ou seja, a uma exclusão da reflexão que só produz retrocesso para o conjunto
dos homens, que se configura nesse caso literalmente como um anti-humanismo.
Isso vale para aplicações técnicas em campos tão diferentes quanto a linguagem ou
as máquinas. Os próprios frutos de períodos humanistas têm que ser permanentemente
revistos. Diz o próprio Simondon: “Parece existir uma lei singular do devir do pensamento
humano, segundo a qual toda invenção ética, técnica, científica que é inicialmente um meio
de liberação e de redescoberta do homem, transforma-se, pela evolução histórica em um
instrumento que se volta contra o seu próprio fim e submetendo o homem, limitando-o.”
(SIMONDON, 1989, pp. 102-2). Isso significa que a busca humanista é um processo
incessante.
O humanismo técnico na modernidade
Nossa localização agora é, particularmente, a cidade-Estado de Florença no século
XV d.C. Depois da Atenas do século V a.C., é possível falar de uma retomada da
visão humanista privilegiada nessa tese. O período histórico nomeado como Renascimento,
termo tremendamente parcial cunhado por quem teve interesses muito diretos em
menosprezar o período medieval, é claramente determinado por um retorno à tradição
greco-romana, em particular a Cícero e aos estudos da língua e autores clássicos (latinos e
gregos) recomendados por ele.
O que uma denominação como Renascimento quer esconder é uma real dívida que
esse momento histórico teve com o passado medieval recente. De nossa parte,
reconhecemos a parcialidade da denominação e, principalmente, a continuidade dos dois
períodos históricos, mas pela relevância que estamos dando às técnicas, nossa ênfase será
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dada às distinções com a Idade Média e às aproximações com a cultura clássica, além do
aspecto original próprio à época, ligado à valorização do indivíduo e da criatividade
inerente a ele. Quanto a essa originalidade, disse Burckhardt em uma citação famosa do seu
clássico A cultura do Renascimento na Itália:
“Na Idade Média (...) o homem reconhecia-se a si próprio apenas enquanto raça, povo, partido, corporação,
família ou sob qualquer das demais formas de coletivo. Na Itália, pela primeira vez, tal véu dispersa-se ao
vento; desperta ali uma contemplação e um tratamento objetivo do Estado e de todas as coisas deste mundo.
Paralelamente a isso, no entanto, ergue-se também, na plenitude de seus poderes, o subjetivo: o homem torna-
se um indivíduo espiritual e se reconhece enquanto tal. (BURCKHARDT, 2003, p. 111).
Não podemos perder de vista que o universo medieval, ou quase todo ele, revelou-se
como um momento de condenação de toda e qualquer criação humana. a cultura
renascentista, ligada definitivamente às invenções, às belas-artes e às letras, existe uma
nítida revalorização da técnica em defesa da liberdade humana. Com o novo depósito de
confiança na inventividade, o homem muda seu papel frente à natureza. Temos que lembrar
que o homem saiu ao mar aberto, local milenarmente associado à loucura, com todos os
seus perigos, tanto míticos quanto reais, apoiado exclusivamente em um artifício humano
próprio da época: a bússola. Deus se mantém como o Criador por excelência,o que não
impede a humanidade de exercer a função de Co-Criadora no que se refere à natureza. Isso
fica patente na obra Criação, de Michelângelo, que ocupa o alto da capela Sistina e mostra
o dedo do Criador, que está em altura ligeiramente superior, quase que tocando no de Adão,
indicando que a chama criativa é transmissível de um para o outro.
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É preciso contemplar o mundo natural, mas também modificá-lo. E o que vem dos
antigos? No retorno aos ideais clássicos promovidos pelo Renascimento está dado o passo
para falarmos de humanismo, pois, de acordo com os renascentistas, a humanidade se
realizou em sua forma mais perfeita nesse momento da Antigüidade, em Atenas e em
Roma. Foi nesses locais que a história humana conseguiu assegurar ao homem, pela
primeira vez, um lugar privilegiado e uma expressão amadurecida. Em função disso, esse
tempo clássico ficou conhecido como “época áurea”. Temos que lembrar que a própria
cidade de Florença, palco fundamental do Renascimento, teve como inspiração física,
política e filosófica a autonomia da pólis grega, em particular a Atenas democrática do
século V a.C. Podemos pensar que a condição de importância dada ao homem vem dos
antigos, enquanto a técnica, no sentido de intervenção e modificação da natureza, surge
como acréscimo originalmente renascentista. Burckhardt ressalta esse aspecto
complementar do ontem e do hoje na constituição desse novo homem: “Do humanista, por
sua vez, exige-se a mais ampla versatilidade, na medida em que tempos seu saber
filológico não deve (...) servir meramente ao conhecimento objetivo da Antigüidade
clássica, mas também ser aplicável no cotidiano da vida real. Assim, paralelamente a seus
estudos sobre Plínio, por exemplo, ele reúne um museu de história natural.” (idem, p. 116).
Além das artes, o humanismo do século XV também esteve ligado visceralmente ao
problema da linguagem e à posição do homem como intérprete de tudo o que lê e ouve. Daí
vinha a sua liberdade. Vemos uma clara relação entre os renascentistas e os sofistas. O
próprio ideal educativo grego de interação de saberes, chamado de humanitas e paidéia, é
grandemente retomado, inclusive em disciplinas como ética, política, dialética, retórica e
gramática. É essa formação ampla que eleva a humanidade ao ponto que ela pode alcançar
em suas reais aptidões, diferenciando-a dos animais. Um dos modos de realizar esse retorno
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à Antigüidade foi empreender de modo sistemático traduções de obras do período clássico
greco-romano, envolvendo autores como Platão, Aristóteles, Epicuro, Cícero etc. Essas
iniciativas buscam a retomada das idéias desses autores em sua autenticidade, ou seja, sem
recorrer a avaliações alheias e deformantes. Era usual na Idéia Média que a visão de Platão
e Aristóteles fosse tomada como definitiva, quase um dogma. Na esteira desse processo,
alia-se o valor do homem e da ordem cronológica dos eventos: “É com o humanismo que
surge pela primeira vez a exigência do reconhecimento da dimensão histórica dos
acontecimentos. (ABBAGNANO, 1984, p. 10). Junto a isso virá também como
conseqüência a importância dada às fontes fidedignas e ao estudo da língua: “Sem
investigação filológica não propriamente humanismo. (idem, p. 11). É desse modo que
os renascentistas vão acreditar que a verdade é filha do tempo, o que aos modernos um
ar cético e os faz acreditar que podem ir mais longe no saber que os antigos foram. A
verdade, agora, é filha do tempo e não da eternidade. Esse posicionamento de respeito ao
passado e confiança no presente fica explícito na famosa frase de Newton: Se enxerguei
além dos outros, é por que estava no ombro de gigantes.
O ouvir-falar, tão satisfatório no período medieval, é substituído por uma avaliação
pessoal que inclusive fica demonstrada pela própria noção de perspectiva na arte, em que
uma visão original e individual de uma situação é o que deve ser retratado. A posição
pessoal do autor e do artista agora é o que interessa. A íntima relação entre história e arte na
Renascença pode ser demonstrada do seguinte modo: “A descoberta da perspectiva
histórica está para o tempo, como a descoberta da perspectiva visual está para o espaço.”
(idem, p. 12). Surge a noção de ponto de vista, não havendo um e verdadeiro modo de
ver algo. Relativizam-se os modos de entendimento. Outra demonstração disso vem com a
própria noção de ensaio, na acepção de seu criador, Montaigne, muito ligada a um juízo
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subjetivo sobre um certo assunto, o que deixa implícito que outras visões, para além
daquela que está sendo defendida, são possíveis.
Individualmente cada um tem que realizar uma restauração histórica. O próprio
Montaigne dirá que não se deve rigidamente ter doutrinas filosóficas, mas filosofar sobre
todos os assuntos e coisas humanas”. A filosofia passa a ser uma experimentação interior e
a autonomia viria com o saber: “O verdadeiro homem é aquele que se desdobrou no
sábio, ou seja, na consciência que adquiriu de si próprio e do mundo.” (idem, p. 37). A
simbologia mítica que representa esse homem é de Prometeu, o deus que roubou o fogo
(saber) dos deuses e o doou aos homens. Em ordem contrária, o homem ignorante é aquele
que não pertence a si próprio, aquele que não alcança a condição humana em sua plenitude.
Essa inovação renascentista de culto à personalidade humana daria a esse período a
alcunha de moderno: “A importância que o mundo moderno atribui à personalidade
humana é o resultado de um propósito atingido pela primeira vez pelo humanismo
renascentista. (idem, p. 12). Promove-se uma liberdade de investigação individual contra a
persistente reverência à tradição. O que se entende é que o mundo foi feito por Deus, mas
para ser usufruído e governado pelo homem. Burckhardt considera que a existência de
tiranias, próprias das cidades italianas dos séculos XIV e XV, só foi possível quando se
instalou um regime político totalmente laico, onde se afirmavam um valor ao
individualismo e um culto à personalidade. Vamos falar de um planejamento da própria
existência, no qual a felicidade e a salvação ultraterrenas não significam o esquecimento da
vida terrena e, pelo contrário, dependem diretamente das ações individuais. O refúgio dos
mosteiros passa a ser algo mal-visto e a atenção tem que ser dada à conexão entre vida
pública e bem comum: “(...) o homem que se refugia na solidão é um egoísta que se esquiva
ao cumprimento da obrigação de trabalhar pelo bem dos seus semelhantes.” (idem, p. 34). É
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nesse sentido que se pode falar de uma valorização da vida ativa, tanto na política quanto
na ciência. Para detalhar um pouco melhor essas duas faces da modernidade, traremos dois
perfis capitais de cada um desses ambientes: primeiro Maquiavel e depois Galileu.
O humanismo técnico moderno na política
Maquiavel é inseparável da política renascentista. Como pensador integralmente
ligado ao seu tempo e como idealizador da política como técnica e construção de imagem,
está a nosso ver intimamente ligado à proposta dessa tese. Algumas perguntas vão nortear
esse texto: Maquiavel pode se destacar do maquiavélico? Será possível visualizar ações
éticas por trás do amoralismo de Maquiavel?
Sobre o pensador florentino paira uma grande mitificação. Muitas visões distorcidas
e exageradas pairam sobre ele. O próprio adjetivo criado sob sua inspiração, maquiavélico,
ganhou várias acepções negativas: falsidade, astúcia, traição, -fé e maldade
despropositada. Tudo isso é fruto, a nosso ver, de preconceito, desconhecimento ou leituras
superficiais e apressadas de seus escritos. Tentaremos também desfazer outra visão
distorcida: a de que o filósofo italiano proporia uma tirania anômica, em que toda lei criada
dependa apenas das vontades pessoais e volúveis do tirano. É preciso estabelecer
diferenciações entre o culto à personalidade, próprio do Renascimento e do qual Maquiavel
é franco partidário, da sua suposta defesa de tiranias, que efetivamente nunca aconteceu.
Maquiavel: a favor do Estado e contra a tirania
Essa suposta orientação para o despotismo é por diversas vezes contrariada em sua
obra, pois esse modelo de governante é apontado como aquele que coloca seus caprichos
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individuais e egoístas como prioridade e não o triunfo do Estado e o bem-estar dos seus
súditos, personalismo que se revela como um claro desvirtuamento do papel de quem
exerce o poder. Maquiavel, que é o inaugurador do que viemos a chamar de ciência
política, aspira todo o tempo à formação de um Estado de Direito, com relações sociais
harmoniosas, instituições fortalecidas e leis estáveis. Um príncipe que tivesse essa sede
excessiva de poder concentrada em si e não no conjunto da comunidade, no lugar de honra,
segurança, serenidade e glória, colheria, pelo menos a longo prazo, infâmia, perigo e
inquietação.
Seu comando, na medida em que governa sempre apoiado no medo e na crueldade
descontrolada, não possui a mínima estabilidade, pois suas ações desrespeitosas,
desmedidas e irracionais acabam atraindo o sentimento que leva à sua queda: o ódio. Ele
deve ser evitado acima de tudo, pois desperta violências que nenhuma muralha consegue
conter. O pensador florentino vai afirmar que a melhor fortaleza para um soberano é, senão
a estima, pelo menos o respeito do seu povo. É por não conquistar nem uma nem o outro
que as tiranias fracassam rapidamente. Esse insucesso constante é suficiente para
desclassificá-las como um regime de governo adequado. Maquiavel defende a eficiência, a
harmonia, o sucesso e a duração de um Estado acima de tudo. O governante, portanto, não é
um ditador, mas um instaurador de regras e segurança, um fundador do Estado. Assim, ao
contrário do que muitos pensam, não temos aqui uma filosofia política que defenda o uso
puro e simples da força, mas uma aplicação planejada da força.
Os tiranos são aqueles que a utilizam sem o cálculo, o que os faz praticar excessos
sem usar de estratégia e sem ter finalidades. Eles sobem ao poder, mas não se mantêm lá.
Podemos dizer que o caos político que se abate sobre Florença em fins do século XV se
deve a uma seqüência de tiranias que sobe e desce ao poder na cidade. É nesse ambiente
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movediço e inseguro que o pensador italiano nasceu e cresceu: “Nesse cenário conturbado
no qual a maior parte dos governantes não conseguia se manter no poder por um período
superior a dois meses, Maquiavel passou sua infância e adolescência.” (SADEK, apud
WEFFORT, 2006, p. 15). Esses eventos geraram uma espécie de trauma em nosso autor, o
que o levava a considerar o acesso tirânico ao governo como ilegítimo: “Na Itália do
Renascimento reina uma grande confusão. A tirania impera em pequenos principados,
governados despoticamente por casas reinantes sem tradição dinástica ou de direitos
contestáveis. A ilegitimidade do poder gera situações de crise e instabilidade permanente
(...)” (MAQUIAVEL, apud MARTINS, 1996, p. 6).
Maquiavel: filho do seu tempo
Vamos nos concentrar nesse texto na avaliação de sua obra mais conhecida O
príncipe. Para uma boa compreensão dessa obra de Maquiavel é preciso avaliar esse
contexto histórico extremamente turbulento em que ela foi produzida. Só desse modo o
pensamento do autor pode ser interpretado como um plano de sobrevivência, um manual
técnico de conduta do soberano, em particular o recém-chegado ao poder. O livro deve ser
visto como um trabalho de consultoria política feito sob medida para uma família florentina
conhecida pela influência política, religiosa (dois de seus integrantes foram papas, quando
política e religião ainda mal se separavam) e pelo patrocínio de grandes artistas da
Renascença: os Médicis. Não podemos esquecer que até em termos econômicos a crise
atinge as cidades italianas. Se antes da queda de Constantinopla, em 1453, elas controlavam
o principal centro de distribuição e comércio de mercadorias do mundo medieval, o mar
Mediterrâneo, após isso e com a descoberta do caminho para as Índias, a primazia
comercial muda de mãos, passando a Portugal e Espanha.
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As reviravoltas políticas eram tantas nesse momento que em muitos casos dormia-se
amigo e acordava-se inimigo, algo que o próprio Maquiavel vivenciou diretamente.
Estamos em 1512 e ele, como secretário da Segunda Chancelaria de Florença, sob o
comando de Savonarola (governante de Florença e opositor dos Médicis), cuida, desde
1498, dos assuntos ligados à segurança interna e externa da cidade. Ele também foi
responsável pela composição de um exército autônomo de Florença, algo que o autor
considerava fundamental para a manutenção e ampliação de um reino. De acordo com suas
idéias, a possibilidade de um Estado perder parte ou integralmente seus domínios era
enorme quando, no lugar de forças próprias, contava-se com o apoio de mercenários ou
com alianças com milícias estrangeiras. Esses tipos de acordo eram sempre frágeis e
inclinados, como mudanças do vento, a traições do dia para a noite. Nesse momento
histórico, quando acontecia um conflito contra os espanhóis, ao planejar ações que não se
revelaram bem-sucedidas, Maquiavel acaba criando a situação ideal para um golpe de
Estado promovido pelos Médicis. É o fim do regime republicano, do qual o filósofo era e
será partidário em toda a sua existência. Mas a condição para a existência da República
obedece a certas normas: tem que haver uma relativa harmonia institucional e equilíbrio de
forças entre os cidadãos.
Quando isso não existe, como na Florença da época em que escreve O príncipe, a
melhor opção é a monarquia. Isso quer dizer que a escolha do melhor regime de governo
não depende de convicções íntimas e prévias de quem comanda, mas da situação concreta.
Com a subida dos Médicis ao poder, Maquiavel é destituído, preso, torturado e exilado a
uma casa de campo afastada de Florença. Isso significa completa exclusão do poder. Um
aspecto curioso é que todos os seus escritos teóricos são elaborados durante esse
afastamento forçado que dura seis anos, sendo O príncipe o primeiro deles. É, portanto, no
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meio dessa crise externa e interna que sua obra é produzida. Como em tantos outros
momentos da história da filosofia, é mais uma vez a conjunção de circunstâncias caóticas,
nesse caso do autor e do seu tempo, que propicia o nascimento de idéias originais,
justificando a noção de que pensar não é absolutamente um ato natural, mas sempre
violento.
A escrita do livro, que se ao longo de 1513, teria a intenção subliminar de
recuperar o prestígio e o cargo perdidos. Isso já fica patente na própria escolha de dedicar a
obra a Lourenço de Médicis. Acreditando ou não no que está dizendo, o autor afirma que só
esse membro da família poderia realizar o desejo, esse sim certamente autêntico, de ver a
Itália unificada. Nosso autor quer alterar a estrutura política, saindo da forma de cidades-
Estado que ele considerava ultrapassada, para o Estado-Nação moderno, com poder
centralizado e dirigido por leis originárias exclusivamente de vontades humanas. Segundo
Maquiavel, a fragilidade da Itália diante das potências estrangeiras, em particular quando
comparada à grande organização francesa, é diretamente proporcional à sua fragmentação
em diversos centros de poder, à sua fragilidade militar, à multiplicidade de tiranias, à
desunião das cidades e às muitas guerras entre elas. Quanto a esse aspecto, resume Carlos
Estevam Martins: “A Itália é assim desarmada política, militar e institucionalmente pelo
anacronismo da organização das cidades-Estado e pela ausência de uma liderança central
incontrastável.” (idem. p. 8)
A importância decisiva da história
Mas como realizar essa difícil unificação italiana? Um primeiro passo é recorrer à
história. Mais precisamente, retornar ao período áureo dos primeiros anos da república livre
romana, onde Tito Lívio, que vai merecer uma obra dedicada só a ele, seria um dos grandes
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líderes. Essa viagem ao passado, que traz de volta algo de puro e forte que tudo que está no
início possui, tem uma missão: encontrar bons exemplos de uma Itália ordenada e coesa.
Esse regresso histórico às origens da prática política e militar romana é um dos elos de
ligação de Maquiavel com o Renascimento, movimento conhecido pelo louvor ao passado
greco-latino. Podemos dizer que nosso pensador italiano representa na política o que
Leonardo da Vinci foi na ciência e na arte. O engenheiro-artista, símbolo maior do espírito
renascentista, vai dizer, tal como Maquiavel teria dito, que a experiência jamais engana e
que o erro é fruto do raciocínio especulativo. Por isso o retorno a tempos remotos não pode
ser aleatório ou idealizado, mas, pelo contrário, ter objetividade. Isso significa que a coleta
de informações, vivências, ensinamentos e orientações dos governantes gregos, romanos ou
até persas deve ser selecionada de modo tal a nos fornecer dados para uma melhor
compreensão e alteração do nosso próprio tempo. A sabedoria de um soberano, ligada
agora diretamente a uma aplicação prática, está no transporte da referência histórica para o
presente. Toda teoria só pode ter sentido se for transformada em ação direta.
Sobre a importância desses estudos, diz Marcel Lamy: “A história fornece exemplos
e contra-exemplos a quem sabe interrogá-la, e vem prolongar e diversificar a experiência.”
(HUISMAN, apud LAMY, 2001, p. 656) Sem esse critério seletivo a história torna-se
vazia: vira mitificação de heróis ou ilusão ufanista. Essa volta no tempo tem ainda outro
alvo: perceber o que é clico e invariável no fluxo histórico. Maquiavel vai afirmar que a
história se repete em suas linhas mestras e cabe ao político reconhecer quando essa
repetição está acontecendo, tendo assim a referência anterior como base para a sua ação.
Ele vai dizer que a espécie humana, movida constantemente por ambições e interesses, é
invariável em todas as épocas. Porém há casos em que a ocasião que se apresenta é
radicalmente nova. Diante disso, o empreendedorismo, a iniciativa e criatividade do
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governante devem ser postos em ação. Ele terá que criar as soluções por conta própria. A
história não resolve os problemas, apenas ajuda com referência em boa parte das situações.
Mas o que faz da Roma Clássica republicana o grande modelo? Foi lá, de acordo com o
autor, que foram produzidos os marcos universais de liderança, ação política e sociedade
em equilíbrio.
Essa avaliação dos grandes líderes e do seu tempo constitui uma fonte que vai
ajudar a encontrar o governante que Maquiavel almeja para a Itália do século XVI. É por
essa volta ao passado em sentido explicativo e objetivo que faz o autor ser chamado de
historicista. A intenção ampla de escrever O príncipe pode ser expressa assim: Incumbe ao
político, segundo Maquiavel, uma tarefa imediata, a única realizável nas circunstâncias
históricas do tempo: fazer surgir um príncipe unificador e reorganizador da nação italiana.”
(ABBAGNANO, 1984, p. 57) Marcílio Marques Moreira percebe um desejo visionário
de formar uma Itália: “Ele se dirige aos Médicis que acabam de retomar o poder em
Florença; mas tem em vista o chefe que assumisse a tarefa de unificar a Itália sob uma
mesma bandeira, de libertá-la das invasões estrangeiras e de pôr fim às rivalidades
fratricidas.” (MOREIRA, apud MAQUIAVEL, 1999, p. 11)
E qual é o motivo dessa obra, escrita há tantos séculos e com interesses tão
específicos, ter-se tornado um clássico e ser tão lida até hoje em todo o mundo? Ela
conseguiu a raríssima mágica do particular tocar o universal. O que Maquiavel disse é
contemporâneo à sua época e a todas as épocas, fazendo uma pergunta de caráter atemporal
que se dispôs a responder ao longo do livro: o que um político deve fazer para manter-se no
poder? Se transpusermos para a nossa realidade do século XXI, mudando o que deve ser
mudado, O príncipe é leitura fundamental para quem administra uma empresa, para quem
fala em público, para quem educa crianças etc. Isto é, é útil para todos, que trata da
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relação de poder, no nível macro dos Estados e no micro, entre os homens, algo referente a
todos os tempos e ao que nenhum de nós pode escapar.
A opção pelo realismo e a recusa do idealismo
O príncipe é uma obra capital, talvez inaugural, do chamado realismo político, cujo
princípio básico é que, ao avaliar uma sociedade, devo me apoiar em como as coisas são ou
estão, não como elas deveriam ser. Essa última postura é típica do idealismo, corrente
filosófica que defende a criação de modelos perfeitos de situação política a ser perseguidos.
O exemplo máximo dessa tendência é a República de Platão, mas que terá em um
contemporâneo do filósofo italiano, Thomas Morus, que escreveu A utopia, um herdeiro
tardio. Maquiavel tem um ponto de partida definitivo: é preciso seguir a verità effetiva
(verdade efetiva) dos acontecimentos e deixar de lado o aspecto imaginativo, ou seja, é
necessário perceber o que se deve fazer e não o que deveria ser feito. No campo político, a
pureza de intenções e a elaboração de planos ideais é capaz dos mais altos crimes. Todo
privilégio deve ser dado à razão pragmática. O monarca, inicialmente, precisa fazer uma
avaliação minuciosa do ambiente no qual está inserido e, em seguida, agir conforme as
circunstâncias, fazendo com que exista o mínimo possível de riscos de ser destronado por
seu povo ou por forças estrangeiras. O sentido de prudência, que na Grécia e na Idade
Média era ligado à obediência de leis naturais ou divinas, vai mudar de aspecto e se
concentrar no que estabelece o príncipe, consistindo “em saber reconhecer a natureza dos
inconvenientes, aceitando como bom o que é menos mau.” (MAQUIAVEL, 1999, p. 130).
Ser prudente agora é evitar divisões e revoltas internas e promover expansões territoriais.
É desse modo que podemos dizer que Maquiavel é amoral, pois em alguns
momentos será uma exigência que o líder do governo aja contra o que era considerado
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previamente virtuoso: a fé, a caridade, a bondade e a religião. A crueldade, por exemplo,
que seria condenada de antemão como vício pelos antigos, é virtude se for utilizada no
estrito limite da necessidade e como única possibilidade naquele momento de condução ao
maior bem-estar possível dos súditos. Isso significa que nessa ótica ser cruel pode ser ético,
se um bem maior do conjunto do povo for o objetivo. Será esse o novo parâmetro. Em via
contrária à moderação aristotélica e sua clara preferência pelo justo meio (meio-termo
estabelecido entre excessos e faltas, de onde viria a famosa idéia da balança da justiça),
Maquiavel diz que a pior alternativa de ação para um príncipe é a decisão através de meias
medidas. Como a atitude é sempre condicionada pelo cálculo, pela estratégia e pela
oportunidade, em muitos momentos será inevitável ser radical. Isso é nítido nas próprias
palavras do pensador: “(...) é preciso tratar bem os homens ou aniquilá-los.” (idem, p. 40)
As únicas ações que podem ser alvo de repreensão são aquelas que colaboram para a
destruição e não para a reparação do que é público.
Essa frieza de análise é nova. O pensador é o primeiro a expor de modo tão cru o
jogo pesado que é a política. Todo o tradicional moralismo piedoso, sujeito a leis eternas e
próprio da Idade Média, está sendo dinamitado. Um governante, por exemplo, não deve
jamais se comprometer com uma noção prévia de Bem.
Aquele que não estiver preparado para enfrentar os difíceis momentos que o poder
exige precisa se manter afastado dos poderes públicos. A existência pode ser calma,
tranqüila e agradável no nível individual ou familiar. Na linha filosófica adotada por
Maquiavel, originalmente o homem não é bondoso ou maldoso, mas o político, que não
pode jamais ser crédulo ou ingênuo, deve estar sempre esperando o pior dos homens, pois
assim ele se prepara adeqüadamente para as situações inusitadas. Só assim ele cria as
“fortalezas” que determinam a sua permanência. Essa atitude defensiva é fundamental
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porque a maior parte dos homens é volúvel. Diz Marcel Lamy: “Quando Maquiavel diz que
os homens são maus, quer dizer inconstantes, enganadores e submetidos a interesses
egoístas e imediatos.” (LAMY, apud HUISMAN, 2001, p. 658). É nesse sentido que temos
que entender a famosa frase de Maquiavel que é melhor ser temido que amado. A questão é
que fazendo-se temer o líder detém o controle sobre as situações. alternativa a priori de
ser objeto de afeto dos súditos, passa a existir uma aceitação e dependência alheias, o que
em política deve ser evitado a todo custo. As paixões são sempre perigosas. De acordo com
o autor de O príncipe, os homens respeitam muito mais por temor que por amor, sendo esta
uma das características imutáveis da humanidade. Se o primeiro sentimento tem a
propriedade de resistir ao tempo, o segundo se desmancha no ar na primeira mudança de
ventos.
Virtù X Fortuna
O que vale para os homens também vale obviamente para os Estados. As alianças
que estes últimos fazem entre si são, em geral, parciais, provisórias. A sugestão é
invariável: dependa o mínimo possível das decisões humanas. É com o fim de minimizar os
perigos de ser surpreendido que Maquiavel recomenda que não sejam feitas associações
com Estados muito poderosos. Preparar-se bem para enfrentar as surpresas da fortuna (o
acaso, o imprevisível) é um tema recorrente em O príncipe. Maquiavel vai dizer que
metade dos acontecimentos em nossa vida tem uma dependência direta de acontecimentos
inesperados e a outra metade vem de uma intervenção própria. Não devemos ficar parados,
mas usar nossa razão para, com capacidade de previsão, tirar o quanto pudermos a
influência do inesperado. Diz ele: Comparo a sorte a um rio impetuoso (...) Todos fogem
diante de sua fúria [mas] quando as águas correm quietamente é possível construir defesas
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contra elas (...)” (MAQUIAVEL, 1999, p. 139). É esse príncipe que evita a sorte, que não
hesita e que é bondoso ou maldoso de acordo com cada caso que Maquiavel descreve como
mais capaz de governar e talvez constituir novos modelos para a história.
O que esse político possui é o que será chamado por nosso autor de virtù, palavra
que tem origem na Roma Clássica e que, por isso mesmo, diverge de qualquer associação
com o conceito de virtude cristã. Virtù é virtude que equivale ao sucesso. Seu sentido
explica-se por uma combinação de múltiplas qualidades: firmeza de caráter, coragem
militar, habilidade no cálculo, capacidade de sedução e inflexibilidade. Resumindo, é tudo
que um general precisa para comandar seus exércitos de modo vitorioso na guerra. Isso
significa que um governante deve possuir em períodos de paz a mesma atenção, cuidado e
competência de um general em guerra. Ou mais, talvez Maquiavel esteja dizendo que o
ambiente político não deixa jamais de ser um cenário, potencial pelo menos, de conflito.
Contrário ao pressuposto medieval de existência de um Bem e um Mal universais e eternos
determinados pela vontade de Deus, o autor vai nos falar de um bem e um mal fundados
pelo ocupante do poder. Se os primeiros passos da separação entre Estado e Igreja foram
dados no século XIII, três séculos depois temos a evidência radical dessa tendência: a
divindade ou o conjunto da sua obra, a natureza, não tem nenhuma participação no
andamento político-jurídico de uma cidade. Assuntos políticos e religiosos devem estar
completamente separados e a última palavra sempre caberá ao poder civil. Isso fica claro
quando, no momento de avaliar a Igreja, Maquiavel o faz considerando sua influência no
sentido estritamente temporal. Como não há nada de natural nas relações humanas, a
coerção e a gestão de um grupamento humano é de total responsabilidade do líder.
Se no pensamento antigo e medieval a natureza era sábia e fator de inspiração
permanente para as ações e legislações humanas, a posição moderna, que Maquiavel
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encarna exemplarmente no campo político, é outra. A idéia agora é que a interferência
humana sobre o que é natural tornou-se uma exigência fundamental para uma vida mais
harmônica no âmbito privado e público. Uma outra confusão recorrente em relação a
Maquiavel é acreditar que ele foi defensor do ateísmo. Em diversas passagens, o filósofo
deixa claro que Deus existe, mas arranjou propositalmente o mundo de modo tal que um
complemento à sua obra tivesse que ser feito pelos homens. justiça a partir de uma
intervenção humana, ou seja, com boa educação que gera boas instituições e boas leis. Se
antes Ele criava, agora uma co-criação a ser desempenhada pela humanidade. O
espírito renascentista, expresso no alto da capela Sistina, em que Deus transmite o espírito
criativo a Adão (Deus está em um plano levemente superior e o dedo de Um quase toca o
do outro), perpassa todo o pensamento de Maquiavel. O homem não é mais apenas
espectador dos fenômenos, mas também ator, e ele se aproxima do divino na medida em
que traz ao mundo novidades nos universos material ou mental.
O homem é mais uma vez medida de todas as coisas
Duas habilidades são fundamentais em política nesse novo momento: a astúcia e o
oportunismo. Um bom político precisa aproveitar o momento oportuno de intervenção
(idéia de kayrós defendida pelos sofistas no século V a.C.). De acordo com o autor, o
grande líder percebe e age nesse instante favorável, sendo esta a sua única dívida com o
acaso: “Examinando sua vida e seus feitos veremos que nada deveram à sorte, a não ser
oportunidade matéria que moldaram de forma própria. Sem essa oportunidade, seus
valores não teriam sido aproveitados; sem estes, a oportunidade teria sido vã.”
(idem, p.
54). Essa postura ativa, e não contemplativa, deixa clara mais uma profunda ligação de
Maquiavel com o Renascimento: o antropocentrismo, doutrina filosófica que posiciona a
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humanidade como criadora de todos os valores morais, científicos e artísticos. O ser
humano é o centro de referência de qualquer saber que é produzido e é também quem
atribui o valor que cada ação ou objeto humano possui. Retomando palavras atribuídas ao
sofista Protágoras da Atenas democrática do século V a.C., o homem em Maquiavel
também é a “medida de todas as coisas.
Logicamente esse posicionamento engloba os âmbitos jurídico e político. Maquiavel
diz que o homem deve entender que qualquer resolução normativa só pode acontecer
no interior de uma comunidade de homens. As leis vêm exclusivamente da esfera humana e
cada sociedade é responsável pela própria existência equilibrada ou caótica. A partir dessa
linha de raciocínio, o ato que institui o Estado é o de um legislador que define o certo e o
errado. Portanto, em Maquiavel o único direito válido é o artificialmente criado pelo
homem, o positivo (do latim positum, posto, colocado). Seu sentido de justo mais uma vez
denota essa tendência. Carlos Estevam Martins resume o conceito para o nosso autor: “Por
justiça entende um conjunto de boas instituições, mantenedoras da ordem e da estabilidade
sociais, bases sobre as quais possam ser construídas as virtudes cívicas.” (MARTINS, apud
MAQUIAVEL, 1996, p. 11)
Vamos pensar que o próprio andamento dos acontecimentos levava a uma
necessidade de presença legislativa humana. O crescimento econômico e o
desenvolvimento urbano, visíveis particularmente na Florença do século XV, tornaram
indispensável a existência de leis civis que regulassem as relações comerciais e sociais. É
como se estivéssemos dizendo que os homens nessa conjuntura eram levados a se
preocupar mais consigo mesmos, pois a Igreja ou a Bíblia não tinham respostas satisfatórias
para dar conta dos novos problemas e as novas interações sociais que se apresentavam.
Com essa nova conduta, que podemos chamar de inauguradora da filosofia e do Estado
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modernos, sairemos de um ambiente extremamente hierarquizado onde o nascimento
definia o destino de cada pessoa, para um outro momento em que a competência e
eficiência individuais passam a ser privilegiadas. Um valor do novo, do movimento e da
mudança são incorporados ao campo do pensamento. Vamos lembrar que até mesmo aquilo
que define o índice de riqueza no plano econômico passa de algo fixo, a terra, para algo
móvel, a moeda circulante. Maquiavel vai afirmar que mesmo um príncipe que chega ao
poder por via hereditária não possui as garantias de antes. Nesses novos tempos, ele será
obrigado a mostrar que merece ocupar a posição de liderança. No lugar do privilégio do
sangue e da família, tipicamente medievais, uma espécie de relação contratual se
estabelece. Um monarca só permanece no poder se tiver sucesso no interior dos seus
domínios com seu povo e seu exército e, quanto ao exterior, se estiver bem preparado para
invadir e bem resguardado para não ser invadido.
A essência está na aparência
Maquiavel torna explícito, talvez de modo inédito, que política é uma questão de
aparência, de imagem, e não de essência. Ser e parecer, que durante tantos séculos (mais
precisamente, desde a Grécia Clássica) estiveram separados na história da filosofia,
compõem agora um conceito só. O privilégio é todo direcionado ao modo como um político
aparenta governar. Maquiavel reafirma isso quando diz que se um governante tiver algo
desagradável a realizar que faça isso sumária e rapidamente, pois um desgaste de imagem
certamente virá daí. Pelo contrário, se sua ação tomar a direção de algo humanitário ou que
será bem visto por todos, que a conduza aos poucos e em etapas e que reverta para si toda a
repercussão pública (hoje diríamos publicidade ou marketing pessoal) proveniente dela
durante seu período de execução. Mas todas essas iniciativas fazem sentido se a
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felicidade do seu povo for o interesse final do príncipe. É assim que a famosa frase “os
fins justificam os meios” pode ser entendida como o pensador italiano efetivamente a
pensou. É assim que pensamos defender um humanismo pouco convencional nas idéias do
pensador florentino. No nosso modo de entender é por toda essa visão renovadora do que é
fazer política que foi feita a associação entre as idéias de Maquiavel e tudo o que é
maquiavélico.
No próximo item enfocaremos o humanismo técnico no ambiente científico. Para
isso, analisaremos um pensador que, a nosso ver, é modelo moderno em ciência: Galileu
Galilei.
O ANTIARISTOTELISMO DE GALILEU E A NOVA RELAÇÃO ENTRE NATUREZA
E ARTIFÍCIO NO ALVORECER DA CIÊNCIA MODERNA
Nossa idéia para esta etapa do trabalho é tentar investigar que novo tipo de
humanismo pôde ser pensado a partir do momento em que uma reformulação do conceito
de natureza foi empreendida no nascimento da ciência moderna no século XVII.
Tentaremos dar conta de algumas perguntas.
Que papel inédito os filósofos-cientistas, esses novos atores do pensamento, em
particular no nosso caso a figura de Galileu Galilei, deram ao homem, que agora se revela
pela primeira vez no papel de dominador do meio natural? Que novo tipo de humanismo se
extrairia como singular a esse período? Não como negar que há um humanismo
medieval. que essa mentalidade posicionava o homem abaixo da natureza, pois esta
representava a totalidade da criação divina, sua obra prima. O valor privilegiado do humano
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aparecia no contraste com as outras espécies animais e vegetais, na medida em que foi feito
à imagem e semelhança de Deus, detém uma alma distinta e passível de salvação. O
humanismo técnico de Galileu colidirá exatamente contra esse de ordem metafísica e
origem medieval. Que aspecto absolutamente transformador tiveram a instrumentalização
da ciência e a introdução da matemática e do cálculo no mundo físico (que podemos
apontar como modos de artificialismo e de afirmação do homem sobre o mundo natural),
combinações que promoveram pela primeira vez a intimidade entre o céu e a terra, um
valor equilibrado entre a teoria e a prática? Algo de muito decisivo eclodiu no século XVII
e promoveu uma renovação completa da visão de mundo e do próprio significado de
ciência que se tinha até então. Tentar expor alguns aspectos dessa autêntica revolução é o
que pretendemos aqui e, diretamente ligado a isso, mostrar que novo papel é sugerido para
a humanidade na nascente revaloração que se estabelece entre natureza e artifício.
Uma nova física
A escolha de Galileu tem uma razão particular. Nós o consideramos paradigma do
cientista moderno, que ele é o primeiro a propor uma independência entre ciência e
teologia, dizendo que a Bíblia não pode ser o parâmetro para o estabelecimento de verdades
científicas. Deus, com sua razão infinita e como o maior dos matemáticos, criou a natureza
de modo tal que pudesse ser decodificada matematicamente pelo homem. Esse ponto de
vista é uma espécie de bandeira da independência científica: o mistério de uma natureza
matematizada é o único mistério a ser levado em conta pelo cientista. Podemos dizer que
Galileu recupera o espírito desbravador de Tales. Ele foi quem, supostamente pela primeira
vez, experimentou o mundo natural sem levar em conta as pressuposições míticas
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anteriores. É esse ceticismo que suspende as certezas anteriores que marca, a nosso ver, o
primeiro momento do humanismo grego e também o de Galileu.
Estamos partindo do pressuposto que ao longo de todo o período medieval, por inspiração
da filosofia grega de base empirista (o ponto de partida para qualquer conhecimento é a
passagem necessária pelos sentidos) de Aristóteles, uma supremacia da natureza sobre o
homem era claramente estabelecida. Cabia a ele nesse momento apenas descobrir, com a
ajuda da razão (a luz natural doada por Deus a nós), o que era inerente à ordem natural. O
papel do homem de ciência nessa época era desvendar o que estava lá, nunca inventar
algo, pois não havia a menor necessidade de que isso acontecesse. Ir contra as idéias
aristotélicas é, em muitos casos, praticar uma heresia passível de graves punições. O louvor
a Aristóteles e o entendimento de sua filosofia como verdade imutável se estendem pelo
século XVII adentro, estando presentes no lema dos jesuítas: em lugar e em momento
algum deixarás de aceitar Aristóteles. Foi esse dogmatismo que gerou o chamado
raciocínio instrumentalista, pois até seria possível discordar das teses cosmológicas do
pensador grego ex suppositione, como hipótese, desde que as observações anteriores e as
regras de entendimento da natureza fossem preservadas. Ser instrumentalista significa não
ser realista: (...) as hipóteses astronômicas não têm (...) alcance real; não podem nem
pretendem fornecer as causas dos movimentos celestes. Devem apenas fornecer os cálculos
que concordam com as observações.” (MARICONDA, VASCONCELOS, 2006, p. 100). O
trecho de uma carta do cardeal Bellarmino, o maior teólogo jesuíta da época, ao padre
Antonio Foscarini, um defensor das novas idéias, resume essa postura: “Digo que me
parece que o Sr. e o Sr. Galileu agiriam prudentemente contentando-se em falar ex
suppositione e não absolutamente, como sempre acreditei que tenha falado Copérnico.”
(idem, p. 99).
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Os padres da Sociedade de Jesus foram os principais ideólogos do momento talvez
mais forte de conservadorismo da Igreja, a Contra-Reforma. Eles foram também os mais
bem preparados inimigos de Galileu. A idéia de criar instrumentos para dominar a natureza
ou para colocar à prova o que meus sentidos percebem, algo que para nós seria uma espécie
de resumo da atividade científica no nosso modo contemporâneo de entendimento (e que
nasce ou, no nimo, se desenvolve com Galileu), era impensável nesse momento. A
natureza é em si perfeita ou pelo menos tão aperfeiçoada quanto Deus quer que ela seja. A
técnica ou a prática, entendidas aqui como fabricadoras de objetos advindos diretamente do
engenho, de artifícios humanos, são sempre consideradas como algo menor do que tudo
aquilo que é natural. Menor, quando não pecaminoso.
A condenação do artifício
Na simbologia da Idade Média, o diabo é aquele que representa o inventor por
excelência, o habilidoso dominador do reino do fogo (elemento que desde a Grécia e seu
deus Prometeu esteve associado ao domínio técnico), o rei das artimanhas e da farsa, o pai
daquilo é antinatural. Em suma, é aquele que traz ao mundo o que o mundo não tinha e,
segundo o pensamento da época, não precisava trazer, o mestre dos artifícios. A sodomia,
por exemplo, prática que sempre foi associada a possessões demoníacas e que levou muita
gente para a fogueira durante a Inquisição, era um pecado considerado gravíssimo pelo fato
de ser contrário à natureza. O que está sendo dito aqui é que durante todo o período
medieval o que é bom, belo e verdadeiro tem suas fontes enraizadas na natureza, ao
contrário do que é artificial, que tem analogias com o jogo, a estratégia, a ilusão e a
mentira. A figura demoníaca manterá por sinal uma forte ligação com outro mito grego, o
de Hermes, que na Grécia representava a idéia de mensageiro com o mundo dos mortos, o
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Hades. Esse deus também será protetor dos comerciantes, que o liga diretamente ao
artificialismo, tanto no aspecto da circulação da moeda quanto no ato de convencimento
usado nas vendas de produtos e idéias. O que essa entidade mítica do diabo tem a nos dizer
é que ao longo da Idade Média a atividade fabricadora e a transformadora são altamente
condenáveis. O que o homem pode chegar a fazer é incomparável com a grandiosidade
intrínseca à natureza. o é preciso criar nada, pois Deus é o único Criador. Prova disso é
que as palavras novo e invenção nem sequer existiam. Se individualmente somos a
criatura mais perfeita trazida à luz por Deus, o conjunto de toda a obra divina, resumida no
mundo natural, está muito acima de tudo o que podemos fazer.
Um assunto paralelo, mas relacionado a esse, se reflete no contraste entre trabalho
intelectual e manual, que mais uma vez nos remete à Grécia Antiga, mas penetra de um
modo mais profundo no ideário medieval, com total privilégio para o primeiro e nítido
desprezo ao segundo. Em sociedades aristocráticas (a democracia grega era aristocrática no
sentido que queremos dar aqui), trabalhar com as mãos é para os escravos ou servos, seres
naturalmente mais propensos a se dedicar à parte física dos apetites, às ações mundanas e às
vontades baixas e instintivas, em detrimento do cultivo do ócio contemplativo, intelectual.
É preciso lembrar que quem ocupa os altos cargos da cidade ideal de Platão são aqueles que
pensam mais e agem menos. Na Grécia, o trabalho que usa as mãos está ligado ao
movimento e à mudança, ou seja, ao devir, algo necessariamente menor do que o ato de
pensar e conhecer as essências que se liga a uma inação. Assim, usa o corpo, a matéria,
quem não tem condições de usar a cabeça, o espírito. No caso medieval, talvez o demérito
por tudo que é realizado manualmente seja ainda mais nítido. O nobre se diferencia do
servo e do vassalo justamente pelo fato de não se dedicar a nenhum tipo de trabalho ou
ação prática. Suas mãos precisam ser irretocavelmente lisas e as suas atividades devem ser
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dedicadas aos jogos, às festas e às artes. Além disso, a essência única, Deus, é o próprio
retrato inspirador da imobilidade para todos os homens. De um modo ou de outro, o ponto a
se atingir que se direciona à verdade, mesmo sem jamais atingi-la é o mesmo: o repouso.
Está envolvida nesse panorama a íntima ligação entre as criações técnicas e o uso
das habilidades manuais, vindo daí um desprestígio de ambas. Os olhos, como disse
Aristóteles, seguem sendo, inclusive muitos séculos depois, os espelhos da alma. As mãos,
poderíamos dizer, são os do corpo. Nem é preciso dizer que o teórico está ligado aos olhos
e o prático às mãos. O empirismo de Aristóteles não tinha qualquer vínculo com a
confecção de objetos que se efetivassem em qualquer aspecto prático, ou seja, não
motivava em nenhum instante o aparecimento de uma ciência experimental. A mera
observação desinteressada é suficiente para desencadear o processo de conhecimento. É
certo que essa ação empírica não será suficiente para se fazer ciência (episteme), pois será
necessária a entrada em cena do intelecto racional, organizando e aprimorando aquilo que
foi experienciado. De todo modo, é marcante a confiança que Aristóteles deposita na visão
natural. Mesmo sendo empirista e um admirador dos fenômenos físicos, para Aristóteles a
verdade não pode ser extraída da simples vivência com os particulares, mas terá que ser
abstraída pela razão, a partir do desvelamento da essência geral escondida por trás das
características individuais. Não deixa de ser surpreendente que o grande difusor da
metodologia científica do Ocidente recomende uma completa abstenção da presença
humana no sentido de intervir na natureza. O avanço da ciência ser fruto direto do
progresso instrumental e de cientistas que colocam a mão na massa, posicionamento hoje
considerado óbvio, deu seus primeiros passos na Renascença e alcançou sua maturidade
no nascimento integrado da filosofia e da ciência modernas no século XVII. E quando
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condicionamos o progresso ao aprimoramento instrumental, estamos logicamente
valorizando o que é feito pelo homem.
Sabemos também, a partir das idéias aristotélicas, amplamente seguidas na Alta
Idade Média, que se conhece algo verdadeiramente quando esse algo pode ser ensinado.
É exatamente esse aspecto de transmissão do conhecimento que estaria vetado segundo esse
regime de pensamento ao saber prático e técnico. Segundo uma antiga tradição da Idade
Média, a arte humana, entendida à maneira grega como habilidade ou excelência (teckné)
em certa atividade, era simia naturae, literalmente macaca da natureza. Se atingir a sua
perfeição é impraticável, copiá-la, nesse caso, é tudo o que é possível. Cabe ao homem cair
de joelhos diante dessa exterioridade monumental que está abaixo do próprio Criador,
sendo sua obra-prima. São Tomás deixa isso muito claro em seus textos jurídicos ao
escalonar leis naturais e leis humanas, tendo as primeiras um nível de aproximação com a
verdade e com Deus muito maior do que as outras. A idéia tão banalizada no senso comum
de que arte (entendida não no aspecto estético, mas também como produção humana
de artefatos, habilidade, teck) imita a vida é proveniente desse raciocínio. O que nos
interessa pesquisar nesse momento é que novo modelo de ciência pôde começar a ser
verificado a partir da nova posição de domínio e posse do ambiente externo que o homem
passou a ocupar.
A matematização do mundo
Caminhamos, ao longo de alguns séculos, da base medieval de princípio
contemplativo na observação dos fenômenos naturais, celestes em especial (que tinham por
trás de si a marca da eternidade e da perfeição divinas), para a nova determinação moderna
de comprovação instrumental, artificial, de todos eles. A atitude moderna traz consigo um
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ceticismo, no sentido de que não se acredita mais em teses anteriores pelo simples fato de
que são verdadeiras muitos séculos. O que a tradição afirma teque passar pelos testes
da comprovação experimental regulada matematicamente. Passamos de uma ciência que
contempla, observa placidamente sem intervir, para uma outra de caráter ativo e
modificador. Saímos da pura e simples visualização com olhos naturais para o uso de
aparelhos óticos e a colocação em xeque daquilo que se vê à primeira vista. Na introdução à
edição brasileira de Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo, Pablo Rubén
Mariconda resume o pensamento de Galileu, indicando que ele esboça as bases do
pensamento mecanicista do estudo do funcionamento da visão: “(...) as observações
telescópicas servem para corrigir as observações feitas a olho nu”. (MARICONDA, apud
GALILEI, 2004, p. 18). Fazer ciência agora é substituir um olho natural por um olho
técnico.
É nessa trilha que Koypercebe a diferença entre experiência e experimentação.
Esta última, no caso, sempre lança mão de invenções humanas para a investigação
científica, exigindo como condição fundamental que a teoria comande a prática. será
experimentação se uma hipótese teórica se impuser à percepção sensível, à pura e simples
experiência. Torna-se ingênuo e superficial apenas observar o ambiente natural, pois é
mantida uma identidade que pode ser enganosa entre realidade e aparência. Os
instrumentos produzidos por mãos humanas são agora um fator essencial para a
comprovação de qualquer teoria, revelando-se também como uma peça fundamental na
construção de uma verdade científica. É essa nova valoração dos objetos artificiais, que
entendemos como aqueles que são elaborados pela mente humana, que pensamos ser uma
característica diferenciadora da ciência moderna e do humanismo de caráter técnico que a
acompanha. O raciocínio científico não exclui mais a sua aplicação. Parafraseando Koyré,
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seguimos de uma técnica de adaptação, com resultados previamente assegurados, própria
da Idade Média, para uma técnica de exploração típica da modernidade. Para compreender
essas distintas abordagens, tentaremos colocar em confronto os entendimentos do que seja
o movimento para Aristóteles e para Galileu, dois personagens emblemáticos da ciência
antiga e da nova respectivamente.
Entre os medievais, com o apoio da física aristotélica, está presente a idéia de que o
deslocamento de um corpo depende de algo alheio a ele, um outro corpo que faria o papel
de causa motor, este se encontrando em um estado hierarquicamente mais próximo do
ideal, ou seja, do repouso. Essa perfeição natural atingiria seu ápice na figura imóvel do
Primeiro Motor, o Deus aristotélico, a causa incausada que move todas as coisas sem se
mover, que dá um limite final a qualquer alteração e que, ao mesmo tempo, é a luz de fundo
que guia e ordena todas as variações. O movimento, que é uma condição violenta e
contranatural, teria que cessar em algum momento. O modo que Aristóteles encontrou para
resolver isso foi inventando uma forma pura e imóvel que fizesse o papel de pêndulo do
Cosmos. Além de sustentáculo, Ele é o que podemos chamar de ímã do mundo, inspiração
cósmica que faz com que as coisas realizem a sua natureza, se não acontecerem
deformações motivadas pela combinação da matéria com o tempo. O princípio dogmático
presente na obra aristotélica, seguido estritamente ao longo da Idade Média, pode ser
explicado pelo caráter determinista do resultado final (em ato) poder ser previsto desde o
começo (em potência).
Com essa finalidade universal, o mundo ganha uma unidade, um fechamento, uma
objetivação, enfim, uma hierarquia última que comanda, mesmo totalmente desprovida de
vontade ou de qualquer antropomorfismo, a destinação de tudo o que se move. É assim que
efetivamente podemos falar de um Cosmo, uma esfera limitada (para o grego tudo o que é
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racional tem bordas, a própria forma fazendo o papel de delimitadora espacial) que define
um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar. É óbvio que essa idéia de comando
pleno foi, com alguns retoques, como por exemplo a saída de causa final para causa inicial,
uma decisiva influência na composição filosófica do Deus cristão. O cristianismo precisava
de uma base filosófica para se afirmar e Aristóteles colaborou muito para isso, em
particular a partir da invasão árabe na península Ibérica no século VIII. Antes disso, outra
filosofia grega imperava absoluta na Idade Média: a platônica. A questão é que os árabes,
ao contrário do que ocorria no Ocidente, vinham estudando Aristóteles ininterruptamente
havia muitos séculos. Mais precisamente desde a assombrosa expansão guerreira realizada
por Alexandre, o Grande, da Macedônia, no século III a.C. Em virtude da sua forte ligação
com tudo o que dizia respeito à Grécia, em particular com o mesmo Aristóteles, de quem
foi aluno por alguns anos, na medida em que ocupava um novo território, Alexandre exigia
que se desse nesse local uma assimilação da cultura grega. Assim, as idéias de Aristóteles
entraram e não mais saíram das especulações filosóficas árabes, que tem Avicena e
Averróis como os dois representantes mais conhecidos. É o retorno do pensamento
aristotélico ao Ocidente na Alta Idade Média que ocupará nosso cenário agora.
O movimento para Aristóteles ocupa uma posição ontológica inferior ao repouso.
Tanto é que o tipo mais próximo deste último é justamente o circular uniforme dos astros,
pois se movem de modo constante e retornam sempre ao ponto inicial, fechando o círculo.
Por maior que fosse o naturalismo e o interesse terreno de Aristóteles, inevitavelmente
dois mundos: o do céu, incorruptível e regulado pela ordem, constância e regularidade das
causas e efeitos e o da terra, sujeito às variâncias da matéria e à imprecisão, por exemplo,
de dias que variam temporalmente, ficando, por exemplo, mais longos ou mais curtos de
acordo com as estações.
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Além disso, os corpos celestes são constituídos de um elemento natural
diferenciado: o éter, que podemos ainda entender como matéria, mas em versão tão sutil
que quase toca a perfeição imaterial. É assim que os dois mundos se diferenciam. O
superior, chamado de supralunar, e o inferior, o sublunar, que será composto pela mistura
dos quatro elementos básicos: água, fogo, terra e ar. Essas matérias-primas, formadoras de
todos os corpos terrenos, estão combinadas embaixo e a quinta essência, etérea, está em
cima e compõe os astros. Por estar sozinho nesse patamar superior e por ser o que de
mais próximo da imaterialidade, o éter promove a diferença de qualidade, de natureza, entre
as duas realidades. O movimento dos corpos terrestres se daria em linha reta e sem qualquer
ordem e regularidade, enquanto o celeste seria circular. Precisamos atentar para o fato de
que o círculo é uma obsessão no pensamento grego. Para começar, é a figura geométrica
mais perfeita na matemática. É também a estrutura circular que distribui os cidadãos gregos
na ágora, praça pública que ocupa o ponto central da pólis e que é uma espécie de marco da
democracia grega. É ainda pela noção de circularidade que se compreende a passagem do
tempo. A cada determinado período, tudo se repete do mesmo modo com tudo que existe
nesse mundo. É o chamado eterno retorno, que, independente do nascimento da filosofia,
estava presente nos mitos arcaicos, não só gregos, como nos de muitos povos orientais, cujo
passado religioso se perde na profundidade das eras.
A questão do movimento
Voltando a Aristóteles, quanto mais sujeito ao movimento (e movimento significa
mudança) algo está, menor a sua importância e maior a sua distância da condição idealizada
de imobilidade. Nesse sistema de mundo, um corpo, em função da sua materialidade, não
pode se mover espontânea e autonomamente. O mundo ficaria sujeito demais aos delírios
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de alterações desordenadas, ao devir. Tudo o que se move, segundo ele, precisa ter uma
base fixa para lhe dar sustentação, do mesmo modo como a matéria e suas diversidades e
modificações temporais precisam de uma forma genérica como um solo firme. O que
devém tem uma dívida com o que nunca devém, com a Forma. É ela que orienta, como uma
inspetora, os caminhos selvagens e imprevisíveis que a matéria tomaria se fosse deixada a
si mesma. É em função dela que temos abacates nascendo de abacateiros e não bananas ou
caquis. Do mesmo modo como os muitos tipos de tigre existentes precisam de uma forma
tigre. O particular precisa do universal, a matéria precisa da forma. Mesmo que o ser se
diga de várias maneiras, como afirma Aristóteles, a imposição necessária é que haja o ser.
O movimento é sempre equivalente a um processo de alteração, a uma situação
aberrante que tenderia naturalmente à calmaria, a um encaminhamento para o repouso, este
sim um estado, uma condição estável. Ao mover-se, o corpo está sofrendo uma espécie de
violência, pois está deslocado do seu lugar natural, lugar que é definido pela porção
majoritária de um dos quatro elementos em determinado corpo. Se, por exemplo, for o ar, o
meio aéreo será para aquele ser individual o ambiente que a natureza definiu para ele. Até
mesmo a justificação da Terra estar no centro do mundo, tese aristotélica que justificará
todo o pensamento medieval, é dada pelo seu caráter pesado, o que talvez nos uma
indicação do próprio nome dado ao planeta. É possível pensar inclusive que tudo o que for
provido mais por terra do que por outros elementos, tende mais facilmente ao repouso.
Para verificar como o deslocamento é uma espécie de contrariedade à condição natural do
corpo (só o que é imperfeito se move), temos o famoso exemplo da pedra que, ao ser
jogada para o alto, realiza uma movimentação antinatural, conquistando apenas
momentaneamente o ar, um elemento que não é o seu. A natureza da pedra, em função do
seu peso, a conduz de volta à terra. Desse modo, a tendência é que ela rapidamente retorne
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ao seu local próprio, assim que termine a motivação exterior. Cessando essa causa externa,
digamos assim artificial, retorna-se à natureza, ou em outras palavras, à situação de
imobilidade terrena peculiar à pedra. É necessário explicar a intervenção de uma força, que
equivale a uma corrupção, para dar conta do movimento (Galileu diz que uma força é
necessária para promover uma aceleração, não um movimento). O repouso em Aristóteles é
tão óbvio que dispensa explicações. A matéria, pelo menos a do mundo sublunar, pelo seu
caráter mutante e variado não pode ser medida em números. Daí a Filosofia da Natureza, a
física aristotélica, em contraste com a prática que vai surgir junto com a modernidade, ser
efetivamente antimatemática. A compreensão física do mundo terreno pode ser vaga, pois
ela se baseia na imprecisão mesma da percepção sensível. É exatamente essa idéia do
movimento como uma privação provisória ou uma condição prévia e inferior do ser que
desaparece no alvorecer da ciência moderna. O movimento pode ser produzido pela própria
coisa, por quem a observa ou por ambos. Galileu colocará o movimento e o repouso no
mesmo nível ontológico. Aliás, surge com ele a idéia de relatividade nos dois casos. Um
determinado corpo estará em movimento ou em repouso dependendo das suas relações
circunstanciais em relação a outros corpos: “(...) só podemos dizer que um corpo está em
movimento, se o considerarmos relativamente a um corpo em repouso isto é, ao qual falte
aquele movimento tomado como ponto de origem do sistema de referência. Portanto,
movimento e repouso são conceitos complementares: um pode ser definido por
referência ao outro. (MARICONDA, VASCONCELOS, 2006, p.140). Eu estou em
repouso em relação à mesa na qual escrevo, pois eu e ela somos passageiros do movimento
realizado pela Terra, o que faz esse movimento planetário ser inexistente para nós. Mas, por
outro lado, estou em movimento em relação a Júpiter, pela razão de ser habitante da Terra e
acompanhar sua rotação em torno de si e sua translação em torno do Sol, enquanto Júpiter
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teria seus próprios movimentos independentes. Surge assim a noção de referencial, pois o
conhecimento de algo passa a ter uma íntima ligação com a localização do observador e
com o seu ângulo de visão. Ao mudar o ponto de vista, podemos alterar completamente a
compreensão de um fenômeno. A idéia de relatividade terá como um dos seus efeitos o que
ficará conhecido como movimento participado: O movimento da Terra fica totalmente
imperceptível para nós, habitantes e participantes desse movimento. (idem, p. 133). O que
explica a sensação de imobilidade que percebemos, que será um grande argumento dos
aristotélicos contra Galileu, é que tudo o que habita o planeta é componente invariante de
todos os movimentos terrestres. O próprio Galileu explica: “(...) o movimento entanto é
movimento e como movimento opera, enquanto tem relação com coisas que carecem dele;
mas entre as coisas que participam igualmente nada opera e é como se ele não fosse.”
(GALILEI, 2004, p. 196). A nova teoria da mobilidade é uma alternativa às situações
radicais defendidas por Aristóteles: ou o corpo está em movimento absoluto motivado
exteriormente ou em repouso absoluto, condição adequada a sua natureza. Isso se dá
porque, de acordo com essa visão renovada, não existem mais lugares naturais que
necessariamente devam ser ocupados.
Giordano Bruno e os infinitos mundos
Um contemporâneo de Galileu, Giordano Bruno, o primeiro pensador a ter a
ousadia de defender a idéia de um universo infinito, curiosamente sem ter qualquer ligação
direta como operador da nascente ciência moderna ou da matemática, dizia que nele todos
os lugares são naturais. O argumento de Bruno era exclusivamente filosófico e ele contesta
Aristóteles de dentro, sendo, como os maiores defensores do pensador grego, também um
teólogo: se Deus é um Ser com infinitos poderes, o que o impediria de criar um Universo
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infinito e com um número também infinito de mundos. Tais idéias revelavam-se perigosas
demais para toda a estrutura de Cosmos fechado entendida como uma verdade dogmática
na Idade Média. Todo o edifício teórico medieval depende da manutenção de certas
hierarquias interdependentes: a Terra deve ser o centro de um mundo limitado, a Igreja
católica ser o centro da Terra e o homem ser o centro de outras espécies vivas. Sem esses
círculos concêntricos, a Idade Média não se sustenta. Na verdade, a época de Bruno, a
mesma de Galileu, era um período de forte ortodoxia religiosa, a chamada Contra-Reforma,
pois a Igreja Católica vinha perdendo espaço nos últimos séculos com uma série de ataques:
o retorno da vida urbana, a criação das universidades, a volta da circulação das moedas, a
Reforma Protestante e a série de visões divergentes (que se apresentam na constituição de
seitas, como a dos franciscanos e beneditinos) no interior mesmo do catolicismo. Isso
levava a manifestações de intolerância e forte repressão a qualquer iniciativa que
supostamente ameaçasse o poder católico. Giordano Bruno está negando veementemente
uma ordem tida como inquestionável em um momento ainda mais conservador da
tradicionalmente conservadora Igreja Católica. O resultado é que esse pensador é incitado a
negar suas teses, e, por isso não acontecer, é queimado pelo Santo Ofício em 1600.
O realismo científico de Galileu
Retornando a Galileu, surge com ele, mesmo que isso não tenha sido afirmado de
modo explícito, a importante questão da inércia, que pela primeira vez plena autonomia
ao movimento. Resumidamente, a teoria revolucionária diz que se um corpo está em
repouso tenderá a continuar nesse estado, assim como, se está em movimento, continuará
nessa condição se não houver qualquer interferência externa contrária a ele, persistindo por
si e em si. Para nós hoje isso é absolutamente corriqueiro, mas para um contemporâneo de
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Galileu, acostumado a pensar aristotelicamente, imaginar que um corpo possa seguir
indefinidamente em movimento (uma potência que não conduza a um ato) soa não como
estranho, mas talvez como insano. Temos que lembrar que é intrínseca ao lugar natural em
Aristóteles a condição da imobilidade e que o objetivo e fim de todo movimento é o
repouso. Não era esse apenas o pensamento majoritário da época. Dizer algo diferente
equivale a uma heresia, o que nos em larga medida a noção de que teorias que tornaram-
se óbvias para nós foram largamente combatidas em períodos anteriores. O óbvio
simplesmente não existe, ele é criado.
Mas era possível defender teorias diferentes das defendidas pela Igreja. Mas se
podia falar disso por hipótese, ex suppositione, nunca realisticamente, o que foi o problema
de Galileu. Sua intenção sempre foi clara: demonstrar que a matemática e os instrumentos
combinados com a observação são capazes de me revelar o mundo tal qual ele é, sendo a
palavra final não a de Aristóteles, algum Doutor da Igreja ou da Bíblia, mas a do cientista,
sem certezas prévias e no calor das pesquisas. O outro raciocínio, que ganhou o nome de
instrumentalista, tinha como missão usar os artifícios matemáticos apenas para adaptar às
teses aristotélicas e às Sagradas Escrituras. Era o que habitualmente se chamava de salvar
as aparências (aparência e realidade uniam-se no empirismo aristotélico): Costuma-se
chamar essa posição de instrumentalista, porque, em sentido estrito, as hipóteses são
consideradas meros instrumentos convenientes para a representação dos fenômenos.
(MARICONDA, VASCONCELOS, 2006, p. 98). Os cálculos astronômicos devem
concordar com as observações, sendo a astronomia “uma ciência matemática cujas
hipóteses não têm alcance real, sendo meros instrumentos de cálculo. (idem, p. 100).
A afirmação de um novo paradigma científico se sempre com muitos conflitos e
muitas vezes com algumas mortes, como vimos com Giordano Bruno. Aconteceria o
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mesmo com Galileu, se ele não tivesse voltado atrás para renegar a tese heliocêntrica
copernicana, que colocava abaixo o poderosíssimo pilar geocêntrico (a Terra ocupa a
posição central do mundo) do pensamento católico e afirmar que não a Terra, mas o Sol
ocupava o centro do Cosmo. Koyré marca bem essa luta hercúlea quando diz que Galileu
teve de reformar nosso próprio intelecto, fornecer-lhe uma série de novos conceitos,
elaborar uma nova idéia de natureza, uma nova concepção de ciência, vale dizer, uma nova
filosofia. Por isso, além de um grande cientista, ele pode ser considerado um grande
filósofo, pois trouxe uma visão de mundo que o homem ainda não tinha tido até então e
suas concepções metodológicas marcaram profundamente o que entendemos hoje como
ciência. A matéria, diferentemente das considerações platônicas e aristotélicas, passa a ser
objeto único do conhecimento científico.
Galileu encarna de modo exemplar a postura moderna: duvidar de tudo o que
disseram os antigos antes de crer. A descoberta de uma verdade, agora, necessita de uma
comprovação material. Com ele, não mais diferentes leis regulando o mundo supralunar
e o sublunar. Finda-se qualquer prevalência do céu sobre a terra, qualquer hierarquia de
dois mundos regulados por estatutos diferentes. Portanto, temos a partir daí literalmente um
Universo. Que leis são essas? Leis matemáticas. Deus criou um mundo cifrado que
poderá ser descoberto por aqueles que conseguirem desvendar seus segredos numéricos. O
acesso à natureza deixou de ser, digamos assim, um processo natural, facilmente acessível a
todos os homens. Agora alcançarão a verdade escondida na natureza os poucos homens
que conseguem combinar raciocínio científico-matemático e aplicação técnica; em outras
palavras, que, ao mesmo tempo, calculam e manipulam instrumentos para investigar o
ambiente externo. Esse mundo obscuro se coloca em confronto direto com aquele ligado à
percepção sensível e ao empirismo (“todo saber começa pelos sentidos”) aristotélicos. É
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justamente esse último que está deixando de ser tomado como fonte para a investigação
científica. A ligação que Galileu pretende estabelecer remete à união entre teoria e prática
desenvolvida pelo “ideal renascentista de união do conhecimento teórico dos matemáticos
com o conhecimento prático dos técnicos. (idem, p. 34). A experimentação tem que ser
controlada e o controle é realizado pelo cálculo matemático. É desse berço da chamada
matemática aplicada, que se remete a Euclides e Arquimedes, que virá uma das novas
ciências inventadas por Galileu: a mecânica ou ciência da resistência dos materiais. Temos
então uma nova maneira de considerar o valor da experimentação. É nesse sentido que
nosso pensador, ao mesmo tempo que discorda de Aristóteles, faz o mesmo com o método
experimental de Francis Bacon. Vamos abrir então um pequeno parêntese para situar em
linhas gerais a filosofia deste último, ela mesma trazendo também, em um sentido
completamente distinto, um forte viés antiaristotélico.
Desde o primeiro momento, a idéia de Bacon foi recolocar a ciência em novas
bases, privilegiando nitidamente a prática em detrimento da teoria, promovendo uma
reviravolta completa em relação aos padrões de investigação científica que vinham sendo
praticados até então. Em vez do lema medieval “Não vá além”, Bacon mantém uma
profunda confiança no progresso e na razão humanas. Um empirismo é inerente a essa nova
orientação. Aquilo que meus sentidos captam é o único ponto de partida seguro para
qualquer ciência. No passado, a filosofia perdeu o seu rumo na direção da abstração ao
privilegiar o método dedutivo, em que se deveria conhecer inicialmente o que de mais
geral para em seguida poder atuar no particular. O método anunciado por Bacon é a via
contrária: a indução. O cientista deve ir do particular para o geral, partindo de vivências
corriqueiras e complexificando suas noções com o avançar do trabalho. O nome de uma das
obras capitais de Bacon revela suas intenções: Novum Organon, uma clara referência ao
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Organon (em grego, instrumento), de Aristóteles, indicando que era preciso uma nova
abordagem científica, agora técnica, um novo modo de fazer filosofia, mais adequado a um
mundo à medida do homem que estava sendo anunciado.
Uma frase famosa de Bacon que revela claramente esse humanismo é “o homem é
deus para o homem”. O empirismo de Aristóteles era para ele apenas uma capa superficial.
Para o pensador grego, a empiria teria que virar episteme, a experiência teria que se
transformar em essência, a concretude teria que se transformar em abstração. A importância
que tinha a indução nos primórdios da investigação aristotélica se perdia em seguida nas
deduções, generalizações finais, que é o que prevalecia, pois Aristóteles era um pensador
finalista. Já Bacon acredita que devemos permanecer todo o tempo envolvidos com os fatos
materiais sujeitos ao experimento. O que Bacon metodologicamente chama de indução é
insuficiente para Galileu. Para este último, a experiência precisa ser dirigida por
pressupostos teóricos. Sem isso, ela é apenas uma coleção de fatos, de opiniões coletadas
do senso comum. Diz Galileu: “Por mais que acumule exemplos, terei sempre apenas uma
maior quantidade de particulares, mas todos igualmente desconhecidos”. (ROVIGHI
VANNI, 1999, p. 53). O movimento é regido por números e Galileu é o primeiro a
descobrir isso. Koyré resume esse novo entendimento no nível ontológico: “(...) os corpos
que se movem em linha reta num espaço vazio infinito não são corpos reais que se
deslocam num espaço real, mas corpos matemáticos que se deslocam num espaço
matemático”. (KOYRÉ, 1991, p. 166). Se para Aristóteles o corpo não poderia ser retirado
do seu ambiente, que está qualitativamente, por essência, ligado a ele, para Galileu esse
mesmo corpo é um conjunto de dimensões largura, altura, profundidade que pode ser
isolado da sua suposta localização natural e investigado separadamente. Não mais na
natureza qualquer tipo de lugar privilegiado ou predeterminado. Talvez tenhamos aí o berço
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originário de uma simulação laboratorial da ciência, algo impensável antes do advento da
modernidade.
Galileu estabelece ainda uma distinção importante entre qualidades primárias e
secundárias de um corpo físico. As primeiras e mais decisivas são a forma, figura, número
contato e movimento; as segundas são as cores, sons, sabores, odores etc. A diferença
envolve diretamente o que pode ser calculado, o que nos faz seguir do espaço físico
qualitativamente diferenciado para o espaço geométrico homogêneo: “As distinções entre
qualidades primárias e secundárias visam, assim, à eliminação das qualidades subjetivas e
reduzem a natureza a termos quantitativos, isto é, passíveis de tratamento matemático e de
determinação experimental.” (MARICONDA, VASCONCELOS, 2006, p. 113). Aquilo
que Aristóteles entendia como categorias, Galileu colocará no nível impreciso da percepção
subjetiva. Esses aspectos qualitativos interessam se tiverem um status objetivo, em
outras palavras, “quando participam necessariamente do conceito de corpo físico, existindo
neste como elemento racional e quantitativo passível de tratamento matemático”.
(MARICONDA, apud GALILEI, p. 54) O pensador italiano está alheio a qualquer
transcendência. O mundo é entendido de modo mecanicista: é feito de matéria e
movimento. Com isso, o valor do que é material muda completamente, pois ao contrário
das concepções platônico-aristotélicas, agora, ao examinar os corpos, podemos produzir
demonstrações objetivas, inalteráveis e de altíssimo rigor.
Na nova metodologia científica de Galileu, teoria e prática se unem de modo
absolutamente complementar. A experiência é orientada diretamente pelos pressupostos
teóricos, mas a prova, a conclusão científica não deixa de ser dependente da experiência,
pois aí fecha-se o processo. É nesse sentido que a intervenção humana, a artificialização do
processo de desvelamento da natureza, é uma peculiaridade do momento em que vive
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Galileu, tendo nele um personagem privilegiado para perceber esse novo modo de produção
da verdade. O homem sai da condição de simples criatura divina para assumir um papel de
inventor de objetos, de co-criador do mundo. De acordo com essa idéia, Deus não fez um
mundo acabado e definitivo, mas uma obra aberta a ser permanentemente completada por
mãos e mentes humanas. É nesse sentido que a ciência moderna se caracteriza por ser
instrumental.
Ao combinar uma grande capacidade operacional com uma espetacular formação
matemática, que resume a noção moderna de técnica, Galileu tornou-se um poderoso
inventor: a bomba dágua, o termoscópio (antecessor dos nossos termômetros), o compasso
geométrico-militar e, mais tarde, como veremos em seguida, quando ele tiver voltado seu
interesse para os movimentos celestes, o telescópio. Ele tocou também em teses
milenarmente consagradas, como a lei da queda dos corpos. Segundo dizem, lançou, da
Torre di Pisa, uma esfera de cortiça e outra de chumbo da mesma altura, comprovando que
elas chegam no chão ao mesmo tempo. A velocidade de chegada ao solo não depende,
portanto, como dizia Aristóteles, do peso do corpo. O que disse Galileu é facilmente
comprovável por qualquer criança hoje. Uma segunda criação interessante é o cronômetro
de água, muito anterior a qualquer outro cronômetro, onde a idéia era estabelecer as
proporções regulares entre temporalidades e pesos da água que caem de uma certa altura
em um balde por um orifício.
Outra conquista importante trazida pelas suas teses acontece na combinação entre
técnica e arte da guerra, tradição proveniente da Renascença. Segundo ele defende, de
modo inédito, a trajetória dos projéteis desenvolve uma movimentação em forma de
parábola. Isso é constatado sempre que observamos o grau de angulação de qualquer lança-
mísseis atual. É claro que toda uma possibilidade de problematizar as implicações éticas
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das descobertas de Galileu, mas temos que pensar que sua luta foi pela afirmação de uma
ciência desvinculada de dogmas e afastada da interferência direta de homens religiosos, o
que levando em conta o momento histórico, demarca, a nosso ver, uma atitude libertária. É
a Bíblia que se deve adequar à ciência e não o contrário e a comprovação científica será
superior a qualquer princípio de autoridade, seja de um Doutor da Igreja ou do Filósofo,
como Aristóteles torna-se conhecido nos séculos finais da Idade Média.
Um cientista que une teoria e prática
Nosso pensador italiano também parecia ver como decisivo o trabalho de divulgação
científica, para usar uma expressão de nossos dias, fazendo uma opção clara por trazer a
linguagem científica para um nível de compreensão possível ao homem comum: (...) o
desejo de alcançar, em suas obras publicadas, o maior público possível pode ter sido a
causa de Galileu simplificar a exposição de experimentos (...)” (MARICONDA,
VASCONCELOS, 2006, p. 51). A própria escolha do modo dialógico em dois de seus mais
importantes livros deixa isso claro. Fica exposto nessa prática, a nosso ver, um intenso
vínculo humanista, pois a tradição de expandir o número de leitores de obras científicas e
literárias vem, ainda com um certo elitismo, da Renascença e segue em uma corrente
ampliadora que desemboca no projeto da Enciclopédia. A pretensão era concentrar em
um mesmo livro, que contava com a participação dos maiores especialistas em cada área,
todo o saber humano e, mais que tudo, disponibilizá-lo ao homem comum. Na medida em
que os homens são percebidos como iguais, concepção definidora do humanismo moderno,
o conhecimento não deve permanecer em castelos e mosteiros, mas estar acessível a todo
aquele que queira conhecer mais do que conhece. É a partir desse posicionamento que
tivemos o século XVIII como o século que definiu cultura, no sentido de formação ampla
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em tudo que diz respeito ao homem (em relação a si e ao mundo), que temos hoje. Kant
mostra que o resultado dessa aquisição é a liberdade: “Num ser racional, cultura é a
capacidade de escolher os seus fins em geral (e portanto de ser livre). Por isso, a cultura
pode ser o fim último que a natureza tem condições de apresentar ao gênero humano.”
(ABBAGNANO, 1998, p. 226). Nesse momento ser culto “não significava dominar apenas
as artes liberais da tradição clássica mas conhecer em certa medida a matemática, a física,
as ciências naturais, além das disciplinas históricas e filológicas. O conceito de cultura
passou a significar enciclopedismo, isto é, conhecimento geral e sintetizado de todos os
domínios do saber. O nosso pensador está no meio desse caminho entre a Renascença e o
Iluminismo e, de acordo com o que pretendemos demonstrar, é integrante importante dessa
história humanista.
A capacidade criativa de Galileu também se volta para os céus. É o momento em
que da mecânica ele se volta para a astronomia. A partir de informações esparsas de
artesãos, produz um instrumento ótico, o perspicillum, que poderíamos entender como o
ancestral do telescópio. É interessante pensar que a técnica de produção de lentes estava
bastante desenvolvida na sua época, mas ninguém antes tinha pensado em compor um
objeto com lentes para mirar os astros. Foi o ponto de partida teórico de Galileu de que
existia uma uniformidade material entre o Céu e a Terra que fez com que ele quisesse
conferir isso na prática. Ou seja, foi a teoria que o levou a inventar meios práticos para
comprová-la. O que esse momento de nascimento da modernidade tem de muito original e
o que nos levou a elaborar um trabalho sobre a presença de um humanismo técnico em
Galileu é que a prova científica tornou-se absolutamente necessária na perspectiva
científica moderna e esta prova recebe a sua legitimação através de sofisticados objetos
criados por homens. O olho natural ficou nu e passou a ser visto como insuficiente para a
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percepção de certos fenômenos. A verdade agora necessitava do artificialismo da
vestimenta técnica. O que se tem ao fim desse processo é muitas vezes uma visão
completamente distinta e às vezes contrária à opinião, esta última embasada somente nos
sentidos, do senso comum. Padre Mersenne resume esta importância do aparato técnico:
“(...) conhecemos as verdadeiras razões daquelas coisas que podemos construir com as
mãos ou com o intelecto. (ROSSI, 2001, p. 251). Podemos dizer que a própria autonomia
buscada por Galileu para a ciência, no que diz respeito a fenômenos naturais, em relação a
qualquer forma de autoridade exterior a ela, seja teológica ou aristotélica, será possível
com a ajuda da instrumentalização. Koyré inclusive estabelece uma diferença entre
utensílio, que tem um uso exclusivamente prático, e o instrumento que serve à teoria, ou
seja, à ciência. O curioso é que pode se tratar do mesmo objeto, uma luneta por exemplo,
sendo decisivo o uso que se faz dele.
A luta contra uma ciência do senso comum
O que a primeira impressão nos diz é que a Terra está parada e que o Sol gira em
torno dela. Segundo Alexandre Koyré, um aspecto teórico, não empírico mas
matemático e instrumental, poderá promover alterações dessa premissa sensível. São leis de
natureza teórica que vão determinar o comportamento espacial e temporal dos corpos
materiais. Foram exatamente estas leis que tornaram possível a revolução científica do
século XVII. Galileu vai dizer que a boa física é feita a priori. O que Koyré conclui é que o
senso comum, a experiência cotidiana, estão do lado de Aristóteles, o que torna
extremamente difícil a missão de vários pensadores modernos anteriores a Galileu, e
logicamente ele próprio, para afirmar suas idéias novas. Entre eles, estão Copérnico, Kepler
e Giordano Bruno. Segundo Koyré, a luta mais inglória para a afirmação de uma nova
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teoria científica é contra o senso comum. Tal era o poder dogmático de Aristóteles, que
perdurou por toda a Idade Média e ainda estava presente dois séculos depois do que é
considerado o seu fim, que os homens nem sequer se arriscavam a experimentar algo que
pudesse ir de encontro à física aristotélica.
Aristotélicos contemporâneos a Galileu chegavam a se negar a observar os céus
com qualquer instrumento ótico ou argumentavam que o próprio instrumento produzia
ilusões de ótica. Temos que lembrar que o discurso de autoridade (por exemplo, o que o
Papa pronuncia é uma verdade definitiva) era peça chave do pensamento escolástico e
contra-reformista. Uma certa teoria científica tinha ali o papel de salvar as aparências, em
suma, de confirmar, mesmo usando hipóteses e cálculos matemáticos, uma verdade prévia.
Foi na superação desse dogmatismo e na suspensão de qualquer certeza anterior que
podemos perceber o nível de coragem de um pensador como Galileu. O relato da sua
observação com o perspicillum presente na obra A mensagem das estrelas é emblemático
na quebra de vários preceitos supostamente inquestionáveis até então. O primeiro deles é
que a Lua não é mais aquele astro alvo e impecável como vinha sendo visto por muitos
séculos. Encantado com as próprias descobertas, diz Galileu: “(...) qualquer um pode dar-se
conta com a certeza dos sentidos que a Lua não é coberta por uma superfície lisa e polida,
mas áspera e desigual, do mesmo modo que a Terra”. (GALILEI, 1987, p. 36). Não é à toa
que a prática da ciência moderna tornou-se conhecida como desencantadora do mundo. A
lua de Galileu definitivamente não é a lua dos poetas. A nova postura do cientista é de
duvidar do passado, do princípio de autoridade e, conseqüentemente, das Sagradas
Escrituras. Isso proporcionaria a autonomia científica: (...) a ciência deve decidir livremente
as suas questões internas sem as influências dos padrões externos de decisão representados,
à época, pela Filosofia natural aristotélica. (MARICONDA, VASCONCELOS, 2006, pp.
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101-2). Agora é a Bíblia que deve se adequar à ciência e não o contrário e a matemática
deve se sobrepor à teologia.
Pode ser que não se tenha em um primeiro impacto a dimensão revolucionária de
um posicionamento como esse, pois não existe nada mais banal do que isso para nós hoje.
Mas grandes idéias não são óbvias, tornam-se óbvias. Dizer que a Lua tem depressões,
vales, montanhas e um solo acidentado, ou seja, que tudo o que existe é similar ao que
existe aqui, é, à época, ruir com toda uma visão de mundo que vem de longa data. Em
outras palavras, ele está dizendo que a matéria presente na esfera celeste é exatamente a
mesma da terrestre. O que está sendo dinamitado aqui com a combinação de teoria e
desenvolvimento instrumental é a separação entre o Céu e a Terra (em que existia uma
diferença de qualidade entre o mundo supra-lunar e o sub-lunar) como duas realidades
regidas por leis e elementos naturais distintos. Junto com isso, vem abaixo também a
milenar perfeição e incorruptibilidade dos astros, dois princípios capitais da filosofia
aristotélica e, por decorrência, da filosofia medieval. A Lua até então era uma esfera lisa,
uniforme e exatíssima, tal como aparece aos olhos naturais humanos. Em suma, é toda a
visão aristotélica do mundo físico que influenciou corações e mentes ao longo de 21
séculos que está sofrendo um poderoso ataque. A partir da observação telescópica das
manchas solares e das crateras lunares, “o princípio cosmológico aristotélico da
incorruptibilidade, imutabilidade e inalterabilidade do mundo celeste está
irremediavelmente refutado.” (idem, p. 84).
Um outro momento importante para se perceber o avanço contra Aristóteles é na
questão do movimento. Com Galileu, ele ganha um novo estatuto, sendo criada inclusive
uma ciência autônoma para estudá-lo: a Dinâmica. De acordo com o seu princípio, um
corpo não precisa necessariamente de corpos alheios a si para se movimentar. Essa
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capacidade é inerente aos próprios corpos. O movimento, de modo inédito, passa a ser visto
como causa do próprio movimento. Aliás, a idéia de máquina só faz sentido se entendermos
que os corpos ou objetos podem realizar acionamentos ou deslocamentos independentes
uns dos outros, algo que não era possível dentro do sistema teórico aristotélico e medieval.
O relógio nos um bom exemplo disso. Ele talvez seja o símbolo mais marcante da nova
mentalidade moderna e do novo papel fabricador do homem diante da natureza. Com ele,
podemos perceber que a partir de agora, pela primeira vez, o domínio do tempo pertence a
um âmbito humano, não mais ao divino, como vinha sendo pensado até então. Não
podemos esquecer, como nos diz Jacques Le Goff no livro A bolsa e a vida”, a
perseguição sofrida pelos judeus ao longo de todo o período medieval por prática da usura,
que tinha ali a acepção de emprestar dinheiro a juros. O caráter grave dessa atividade,
considerada um pecado dos mais abomináveis, explica-se na medida em que era
compreendida como uma tentativa humana de dominar a temporalidade e fazer uso próprio
dela. O que era deixado de lado é ser Deus o único e absoluto Senhor do Tempo. esse
aspecto nos esclarece como o relógio seria algo completamente impensável nesse
momento histórico.
Outra noção peculiar aos modernos e, particularmente a Galileu, se na ligação
entre saber e fazer como algo concernente ao homem, know-how como nós chamaríamos
em nossos dias. “Quem sabe faz é sem dúvida alguma um emblema que faz sentido em
um regime de idéias próprio do mundo moderno. É preciso recordar que foi com a
confiança em um instrumento absolutamente artificial, a bússola, que o homem enfrentou
mares nunca antes navegados, locais que até aquele momento estavam associados à
manifestação da loucura e dominados por monstros pavorosos e abismos colossais ao fim
do horizonte. A confiança na ciência e no que o homem pode realizar, uma espécie de novo
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ato de fé, o fez superar esses fantasmas. Essa tradição anterior a Galileu abriu caminho para
a conquista de outros continentes. ele propriamente abriu caminho para o entendimento
da conquista celeste e para a matematização do mundo físico.
É curioso pensar que, foi a partir de uma grande confiança no homem e na sua
capacidade de criação técnica, que esse arranjo antropocêntrico do Cosmos foi sendo
dilapidado. Segundo o raciocínio medieval, Deus fez o mundo de modo tal que a Terra
estivesse no centro do Universo e o homem estivesse no centro da Terra como a criatura
divina feita à Sua imagem e semelhança. É possível pensar, inclusive, que uma tradição
do pensamento cristão que defende um humanismo, apoiado na idéia de que o homem seria
a espécie central na natureza e a única com alma inteligente. Logicamente todas as
recorrências que fizemos e que vamos fazer ao humanismo seguirão caminhos
completamente distintos desse viés religioso.
Galileu, por sinal, está contestando esse tipo de humanismo, que é um dos pilares
que alicerça o sistema medieval. Outro é a finitude do mundo. Surge daí uma questão: que
grande grau de importância teria o homem em um Universo acentrado e de grandezas
infinitas, ou pelo menos indeterminadas como preferia dizer Galileu depois do que
aconteceu a Giordano Bruno? Uma pergunta possível e arrasadora para as pretensões
antropocêntricas de importância do homem seria: diante desse novo cenário, será que não
existiriam seres mais capazes que nós localizados em algum outro ponto desse universo
agora assustadoramente grande e que, claro, também são obras de Deus? Mas apesar dessas
demolições antropocêntricas que contestam a importância humana diante da grandeza do
Universo, Galileu, seguindo a orientação mecanicista, vai visualizar os objetos, a matéria
como morta, o que divide sujeito ativo/objeto passivo, mantendo nesse sentido uma ligação
com o humanismo tradicional, ou seja, com uma centralidade humana em relação às
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certezas. Portanto em um certo aspecto, o de afirmação humana sobre o que lhe é externo,
Galileu permanece como um defensor da postura antropocêntrica.
Para essa nova visão, a técnica humana, o modo diferente com que passou a se
entender a produção de instrumentos científicos, foi absolutamente decisiva. O que se exige
agora é que o real seja estabelecido pela superação da visão natural (o olho que fica nu) e
do senso comum pelo recurso a instrumentos técnicos artificiais e à matemática aplicada,
estando esta a partir desse momento combinada à física. Esses, junto com a razão humana,
serão agora os avalistas e os construtores da verdade científica, verdade que trouxe, sem
dúvida, mitificações (uma nova visão do que seja a verdade), mas que ao mesmo tempo
significou naquele instante a conquista de novas liberdades.
A partir de agora, vamos avaliar uma outra possibilidade de humanismo técnico,
tentando trazer a visão de Simondon, que acreditamos ser bem distinta das posições
apresentadas até o momento.
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SIMONDON E A INDIVIDUAÇÃO: DO BIOLÓGICO AO TÉCNICO
Idéia de relação em Simondon: uma herança velada e transmutada
A filosofia de Simondon é impensável sem o rompimento do vínculo substancialista
sujeito-objeto e a afirmação da relação como central ao processo de constituição dos
indivíduos. Essa reversão conceitual com o modelo majoritário da filosofia no Ocidente foi
inaugurada pela chamada filosofia da diferença, a nosso ver, a partir de David Hume, e
depois continuada por Nietzsche, Marx, Bergson e, mais recentemente, está presente nas
idéias de Foucault e Deleuze. Com todas as distinções que esses pensadores mantêm entre
si, a contraposição comum referente ao substancialismo é que ele ocultaria a relação
originária que promove a eclosão dos seres. Para essa esteira de pensadores, entre os quais
incluímos Simondon, vale o que diz Bachelard referindo-se à teoria da relatividade em
primeira frase de sua obra: “No começo é a relação”. Obviamente, essa relação não se dará
entre termos isolados e completos, como seria a que se dá entre a forma e a matéria
aristotélicas, mas por componentes em devir, o que traz um aspecto permanente de
imprevisibilidade aos resultados.
Toda filosofia tem um ponto de partida, uma hipótese que se torna o seu pilar. A de
Simondon é a noção relacional. Os indivíduos não serão mais vistos como termos,
essencialidades, mas como ações. neles, em particular nos vivos, um algo mais.
Simondon dirá “mais que um”, um pré-individual que tornará possível uma continuidade
das variações ou individuações. Não temos mais a fixidez de substantivos, mas a
transitoriedade de verbos no infinitivo. A visão é a de uma individualidade que detêm em si
uma reserva energética. Diz Pascal Chabot sobre o autor: “Ele não encara as coisas em
termos de forma e matéria, mas em termos de energia e estrutura” (CHABOT, 2002, p. 7).
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A preocupação de Simondon é com o desenvolvimento do indivíduo e suas relações entre
si: sejam pessoas, objetos, o meio ou consigo mesmo. Potencialidades pré-individuais
atuam nesses diferentes níveis produzindo individuações diversas. Essa opção conceitual
pela relação se mostrará efetiva indistintamente nos níveis orgânicos e inorgânicos. O
humanismo técnico de Simondon, que procuraremos defender como foco central nessa
etapa da tese, parte do princípio de que a criação e a utilização dos objetos técnicos a todo
momento interfere na produção de subjetividades (que se refere a indivíduos construídos na
medida de suas experiências e ao longo de toda a vida, toda essa variedade ocupando o
mesmo corpo) e vice-versa. Nós agiríamos sobre os objetos e somos, ao mesmo tempo, o
resultado dessa atividade.
Vemos uma grande originalidade em nosso pensador, pois é muito rara uma
perspectiva humanista que envolva a área técnica sem que isso comprometa um domínio
integral humano nos processos inventivos, ou seja, um antropocentrismo. Consideramos
que essa diferenciação conceitual compõe o centro nervoso do nosso trabalho. A visão
antropocêntrica, a nosso ver, possui um aspecto individualista, egocêntrico, no sentido de
voltar-se para uma interioridade, para um sujeito fechado em si mesmo, que tem um nome,
assina suas obras e detém um controle sobre os usos e efeitos dos objetos que cria. Um
comentador de Simondon, Didier Debaise, dique essa linha de pensamento é partidária
de uma “ontologia implícita”. A individualidade encontra-se, assim, absolutamente distinta
de uma realidade exterior, que será vista como um corpo estranho, quando não inimigo;
algo que, no campo dos objetos, está ali para ser pensado por um cérebro humano e
dominado por suas os. Essa foi a linha humanista que tivemos até aqui nessa tese.
Acreditamos que Simondon vai nos propor outra. Seu humanismo, a partir da noção de que
os indivíduos mantêm sempre uma abertura relacional, volta-se necessariamente para a
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dimensão do outro e de si, onde as fronteiras do interior e do exterior são ultrapassadas.
Não falaremos de somas, diminuições ou exclusões, mas de fusões. A distinção entre essas
duas realidades, dentro e fora, que a filosofia tradicional manteve como dialeticamente
contrárias, em nosso autor é relativa. A partir do momento em que entendemos que o
indivíduo se modifica com o fluxo do tempo, ele torna-se capaz de absorção permanente e o
que é “exterior a ele pode tornar-se interior.” (COMBÉS, 1999, p. 37)
Mas, ao defender esse posicionamento positivo e construtivo da diferenciação,
Simondon demonstra a linhagem de pensamento da qual faz parte. É isso que faz com que
consideremos importante enaltecer alguns indícios dessa herança, revelada pelo autor
apenas nas entrelinhas. Por questões de método e para tornar possível sua realização em
poucas páginas, vamos priorizar o inaugurador da tradição que identifica os indivíduos ao
conjunto das suas relações, o filósofo escocês David Hume.
Para falar de individuação, de indivíduos abertos a variações contínuas, é preciso
pensar que nessa abertura faz-se necessária uma mescla entre termos, uma visão processual
que dissolva individualidades supostamente fechadas. A junção traz qualidades e resultados
novos e imprevisíveis. É , precisamente, que vemos uma fonte humeana na filosofia de
Simondon. Para a composição de um padrão científico aos moldes da modernidade é
perfeitamente conveniente a idéia de um sujeito refratário e isolado do mundo externo,
como defenderia a tradição que alinha, apesar das grandes distinções inerentes a cada
filosofia, pensadores como Descartes, Galileu e Kant. Temos nesse caso, de modo
paradigmático, uma esfera subjetiva animada, qualitativa, metafísica, em suma, racional,
manipulando uma objetividade quantitativa, física, desprovida de vida. No racionalismo
moderno, particularmente o cartesiano, é fundamental que o mundo comece a existir na
medida em que um homem o perceba e a este caiba o papel de desconfiar de modo total da
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sua concretude. Diferentemente da tendência aristotélico-tomista, em que uma essência
verdadeira no que é exterior ao homem, temos o inverso no idealismo moderno. O sujeito é
centro de referência de todo e qualquer conhecimento. As capacidades mentais internas são
usadas para revelar o quede verdadeiro, no ambiente externo e, com isso, chegar a fatos
demonstráveis inquestionavelmente. Por mais que tudo varie, permanece essa estrutura
interna, essa substancialidade, como sede da razão e ponto invariável de equilíbrio estável.
Qualquer diferença está englobada e é submissa a essa identidade última. A supremacia é
do interior sobre o exterior.
Foi essa premissa antropológica e antropocêntrica que nos deu uma prerrogativa de
sermos os senhores absolutos da natureza, gerando, por exemplo, a inacreditável destruição
do ambiente natural desde o nascimento da ciência moderna, no século XVII. A noção de
ecologia como conservacionismo ambiental, nascida no século XX, é, sem dúvida, marca
do nosso tempo e um claro sinal de alerta em relação ao otimismo racionalista setecentista,
que acreditou em um avanço sem limites da ciência, premissa que permaneceu inabalável
até fins da Primeira Guerra Mundial e seu saldo, inédito na história, de 14 milhões de
mortos. Um psicólogo inglês do século XX, Christopher Lasch (1990), chegou a afirmar
que a ecologia só nasceu pelo medo de desaparecermos de uma hora para outra pela
devastação desenfreada do meio ambiente que produzimos. Em outras palavras, não
estaríamos pensando nas plantas, nos animais ou nas gerações futuras, mas apenas em
nossa própria preservação humana.
Em algum momento veio a crise: será que os avanços científicos são benéficos de
modo irrestrito para a humanidade, como pensavam filósofos como Descartes? Que nível
de controle pode ter o homem sobre as ocorrências naturais? Como podemos falar de
evolução científica se isso desencadeou armamentos que produziram nas duas guerras
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mundiais os maiores genocídios humanos vistos na história? A partir dessas perguntas,
filosóficas por excelência, questiona-se a arrogância da razão ocidental e, como vimos no
capítulo anterior, um certo humanismo ligado à ela. O combate a essa pretensão
racionalista, inspirado pela linhagem filosófica da qual participa Simondon, se volta nesse
momento para uma de suas bases mais importantes: o sujeito. Podemos dizer que o
movimento conhecido como crise da razão (que acaba revelando-se como uma crise do eu,
do sujeito), que é vivido pela filosofia até hoje, inicia-se com essas dúvidas. Quando elas
apareceram? É nesse momento que nos deparamos com a filosofia de Hume.
Em sua construção de idéias, a visão de um sujeito controlador e com um intelecto
separado do mundo material sofre fortes abalos. Percebe-se claramente em Hume o
nascimento de uma filosofia que privilegia não a identidade (com expressões variáveis na
história do pensamento, mas sempre presente desde Parmênides), mas a diferença. Para
entendermos a grande reorientação do pensamento racionalista grego, medieval e moderno
(mais especificamente, cartesiano), é preciso perceber que o foco não é o ponto final e
imóvel, mas o processo. O princípio é relacional e não finalista. Nessa linha de pensamento
não indivíduo plenamente formado, pois os vínculos que estabelecemos com coisas e
pessoas não cessam de me transformar enquanto estou vivo. O indivíduo é uma obra em
construção, é uma expressão criativa do mundo como diria Whitehead, e não o objetivo
final de uma forma realizada, como afirmaria Aristóteles. Não há possibilidade de haver um
sujeito único, mas vamos falar de um sem-número de sujeitos (ou melhor, subjetividades,
em um sentido foucaultiano) que vão sendo compostos em uma mesma existência através
dos vínculos estabelecidos com outros corpos até aquele momento. Vamos nos
reconstruindo na medida em que nos relacionamos. O acúmulo das minhas vivências
acrescenta camadas de indivíduos e não perdemos nada do passado. Sujeitos variados
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virtuais habitam cada um de nós e os utilizamos em diferentes circunstâncias, enquanto
continuamos produzindo outros nas novas relações que estabelecemos. Não somos
alguma coisa, mas estamos alguma coisa. A idéia de individuação de Simondon nos
exatamente essa mesma direção de permanente produção de indivíduos a partir de um
mesmo ser, onde a permanência de tendências heterogêneas e conflitantes gera uma crise
freqüente de si consigo. Nosso filósofo francês nomeará isso de polarização.
Um aspecto curioso é que Aristóteles também possui um conceito próprio de
relação, e mais uma vez ele será contraponto, nesse caso, tanto a Simondon quanto a Hume.
De início, o pensador macedônio estabelece uma cisão entre termo e relação. Não é à toa
que a expressão termo significa etimologicamente nome e fim, o que se adequa de modo
duplo ao que Aristóteles entende por substância. Em regime inverso a essa parte
importante, decisiva e concludente do ser, a relação é entendida apenas como uma das
categorias, a que especifica quantidade e qualidade de algo ou alguém. Ela não tem
existência autônoma, mas é uma modalidade de existência de um sujeito, ou seja, algo
acessório que tão-somente caracteriza e não define essencialmente o indivíduo. Temos,
portanto, o ponto fixo substancial e a variação, própria ao aspecto relacional, sempre
inferior, adjetiva, acidental. Como já vimos, o que está em movimento tem condição
ontológica menor do que aquilo que é fixo. O próprio Aristóteles diz: A relação não pode
ser concebida sem alguma outra coisa que lhe sirva de sujeito.” (ARISTÓTELES,
Metafísica, 1088a, 25, in DEBAISE, 2002, p. 55). Enquanto Aristóteles nos fala do ser em
relação, Simondon nos traz um ser que se constitui através da relação. Não é mais o
privilégio do fim, do fixo e da lógica formal, mas da operação: Situação que confere às
relações uma carga de ser que excede e ultrapassa a ordem do conhecimento e das
significações estritamente lógicas.” (GARELLI, apud SIMONDON, 2005b, p. 14).
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Voltando a Hume para estabelecer o contraste, ele vai dizer que aquilo que sou em
um certo momento da vida é a soma de tudo que experimentei. Somos uma coleção de
impressões, percepções e idéias, sempre mutantes. Ou seja, seríamos uma profusão de
sujeitos, cada um deles compondo-se, descompondo-se e recompondo-se em novas
relações. É um sistema em contínuo movimento de reorganização, refazendo-se
permanentemente nas suas interações com o meio externo. Isso produz subjetividades
díspares com o passar do tempo. Mas, em termos perceptivos, temos certas ilusões
projetivas. Estamos constantemente tentando antecipar nossas reações futuras a partir de
experiências passadas. Depositamos, de acordo com Hume, alto grau de confiança em
previsões, que muitas vezes revelam-se castelos de cartas, que a própria circunstância
determinará suas conseqüências. Ao contrário da tradição filosófica que privilegia a
identidade e que se concentra na origem ou na finalidade de existências individuais, em
Hume (e em Simondon), ao contrário, o foco é no meio, na operação e recriação
permanente dos indivíduos. De acordo com Hume, uma repetição de hábitos cria auto-
imagens construídas. É comum, apoiados em ocorrências que se repetiram várias vezes,
afirmarmos expressões do tipo: eu sou uma pessoa que nunca vai reagir a um assalto,
como se isso fosse algo certo e permanente. Afirmamos padrões de comportamento
próprios, chegamos até a chamar isso de personalidade, perdendo a noção de que, na
ocorrência do acontecimento, tudo pode ser diferente do que foi previsto. O filósofo
escocês poderia, a exemplo de Heráclito, ter afirmado: “Espere o inesperado”.
Em função da profusão de sujeitos que nos habita, somos levados a agir de modo
diferenciado e até contraditório com diferentes pessoas que conhecemos. Uma soma
provisória de hábitos seria “a raiz constitutiva do sujeito e, em sua raiz, o sujeito é a síntese
momentânea do tempo, a síntese do presente e do passado em vista do porvir.” (DELEUZE,
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2001, p. 103). Sendo assim, é alterar vivências para termos novos sujeitos. Como então
falar de um eu? Hume explica a formação do sujeito único, que ele considera como mais
uma ilusão inventada por nós:
“Se alguma impressão origem à idéia de eu, essa impressão tem de continuar invariavelmente a mesma, ao
longo de todo o nosso curso de nossas vidas pois é dessa maneira que o eu supostamente existe. Mas não há
qualquer impressão constante e invariável. Dor, prazer, tristeza e alegria, paixões e sensações sucedem-se
umas às outras, e nunca existem ao mesmo tempo. Portanto, a idéia de eu não pode ser derivada de nenhuma
dessas impressões, ou de nenhuma outra. Conseqüentemente, não existe tal idéia.” (HUME, 2000, p. 284).
O que usualmente chamamos de verdade, Hume vai dizer que é apenas uma
expectativa que mantenho com relação a mim mesmo e com o que me rodeia. o próprio
acontecimento se dando (o se faisant, na expressão de Bergson) definirá de que maneira
vamos reagir ou algo vai se dar, sendo isso imprevisível de antemão. Em função dessas
pretensões, quando algo não ocorre de acordo com o esperado, pronunciamos frases como:
“mas sempre foi assim” ou “eu não esperava isso de você”. Também não nos reconhecemos
em nossas ações e construímos, por exemplo, essas frases: “como fui capaz disso?” ou
“você tem certeza de que era eu mesmo?”.
O filósofo escocês afirma que essa previsibilidade, que nomeamos como racional, é
passional. Primeiro queremos fazer algo, depois descobrimos motivações racionais para
justificar essa escolha. A razão não seria, como pensaram Aristóteles e Descartes, um
aspecto essencial, constituinte do homem. Em Hume, a paixão desempenha esse papel. Ela
sempre vem antes, é mais forte do que a racionalidade e precisamos dela para seguir
vivendo. Entramos em prédios, andamos em aviões ou cruzamos pontes sem cogitar a
possibilidade de que um acidente possa acontecer. O que aguardamos, sem sombra de
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dúvida, de modo inconsciente, é: se não aconteceu até hoje, porque aconteceria justamente
comigo? Esse tom provocativo contra os racionalismos extremados é para nos dizer que
não haveria verdades definitivas, mas probabilidades. Nossas ações são apoiadas em
crenças, não em certezas. O que esperamos ser uma permanência, uma estabilidade, é
apenas uma possibilidade maior ou menor de certas relações se darem. Essa associação de
idéias que se faz regular é o que Hume chama de conjunção constante.
É daí que passamos a estabelecer uma união, construída e não essencial, entre causa
e efeito: “(...) lembramo-nos de ter visto aquela espécie de objeto que denominamos chama,
e de ter sentido aquela espécie de sensação que denominamos calor. Sem mais cerimônias
chamamos a primeira de causa e à segunda de efeito(...)”(idem, p. 116). A eternidade
pretendida para o nexo causal torna-se então apenas provável. O ponto radical é atingido
pelo pensador quando ele pergunta se podemos ter certeza de que o Sol nascerá amanhã.
Isso é uma verdade científica? Não, para ele é um acontecimento que muito provavelmente
ocorrerá, pois está nascendo diariamente bilhões de anos, mas isso não implica de modo
prévio que continue a acontecer no dia seguinte. Uma catástrofe cósmica pode destruir o
Sol e não teremos nada a fazer quanto a isso. Mas, em nossa arrogância, achamos que
sempre teremos tudo sob controle. O meio externo simplesmente repetiria as relações
anteriores e esperadas. Isso faz de nós crentes que acreditam ser capazes de possuir
verdades plenas.
Hume também afirma que as relações são exteriores aos seus termos. A mera soma
matemática não é exata em toda e qualquer situação. Do vínculo entre homens ou deles
com outros animais e objetos, teremos como resultado mais do que a soma aritmética dos
elementos que se apresentaram de início. Todos saem diferentes das experiências que
vivenciam. Mas, mesmo dando privilégio à relação, na medida em que esta é colocada
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como fator de constituição dos seres, em Hume os termos continuam sendo levados em
conta. Em Simondon, a relação ganhará um sentido de plenitude ainda maior, pois nem
sequer será preciso utilizar a palavra termo, que ser e relação não serão mais distintos,
mas passarão a compor uma e mesma realidade. O empirismo inglês, apesar da influência
explícita no pensamento de Simondon, tratará somente do aspecto exterior das relações. A
questão é que não nos diferenciamos apenas de outros e por meio de outros, mas também
de nós mesmos. O aspecto relacional também vai se direcionar para a dimensão do
pensamento, da vida afetiva, campo que Kant chamou de transcendental. Nosso autor, por
seu lado, denominará esse âmbito das relações internas de psiquismo, que seria a atividade
de um ser que “para resolver sua própria problemática é obrigado a intervir em si mesmo
como elemento do problema.” (SIMONDON, apud COMBÈS, 1999, p. 32). A distinção
com a visão kantiana é que em Simondon não temos a permanência do sujeito substancial
(sede do transcendental), essencial na teoria do conhecimento de caráter idealista do
filósofo alemão. As duas influências se combinam: de Hume virá a colocação da relação
em um papel de protagonista na composição dos seres e, de Kant, a noção de transcendental
que, sem a centralidade subjetiva, ganha incrível semelhança com a força criativa que
Simondon percebe na natureza e que nomeia de pré-individual. A proximidade filosófica
passa a se dar então com Bergson e sua noção de diferença interna, conceito que terá
aplicações válidas tanto no plano biológico como no psíquico: “(...) o que difere não é mais
o que difere de outra coisa, mas o que difere de si. (DELEUZE, 1999, p. 103). Curar-se de
uma doença ou tomar uma decisão são dois modos de recomposição do indivíduo que se
alternam no vivo em ritmo de continuidade, sempre com o intuito de resolver problemas.
Com isso, nenhuma separação dualista mente/corpo, por exemplo, pode ser vislumbrada. O
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estrutural e o noético são duas instâncias de variabilidade intimamente unidos no ser, dois
momentos da individuação.
Voltando aos pontos comuns entre Simondon e Hume, se a pergunta cartesiana era:
Como pode algo dar-se a um sujeito?, a de Hume é outra: Como se constitui um sujeito
a partir das vinculações que ele estabelece?”. A questão é como se inventa um sujeito em
cada situação que ele experimenta. O eu, que agora deixa de ser uma estabilidade, uma
mônada, torna-se uma produção provisória e singular do tempo. O que é privilegiado nessa
visão não é a generalidade de um indivíduo ou de um sujeito, mas a singularidade plena que
constitui cada ser singular, pois eu possuo aquela coleção de vivências, o que será a base
individual para novos saltos transformadores. A subjetividade é prática, móvel e nasce de
uma permanente interação entre objeto e sujeito. Simondon e Hume partilham
integralmente desse modo de entender a diferença como um contínuo movimento
afirmativo do ser. É dessa maneira que percebemos um vínculo subentendido, que não
abertamente pronunciado, entre esses pensadores. Muriel Combès revela o que seria a visão
comum a ambos, usando as próprias palavras do pensador francês: “(...) a relação não pode
jamais ser concebida como relação entre preexistentes, mas como regime recíproco de troca
de informação e de causalidade em um sistema que se individua. (SIMONDON, apud
COMBÈS, 1999, p. 81). O que acreditamos ser original em Simondon, além do
transcendentalismo assubjetivo de que falamos, e que será um ponto decisivo nesse
trabalho, é que o autor realizará uma transposição do conceito de relação para pensar tipos
de constituição individuais inusitadas, inclusive as que se localizam no âmbito psíquico e
nos vínculos homem/objeto, invenção/ técnica. É importante ressaltar que um objeto
técnico entrará na vasta acepção de indivíduo trazida por nosso pensador. Passaremos a ver
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agora alguns conceitos originais de nosso filósofo que consideramos fundamentais para
uma compreensão do seu humanismo técnico.
O humanismo de Simondon
Após esse panorama histórico e conceitual do encontro entre humanismo e técnica e
dessa breve apresentação da inspiração humeana da idéia de relação em Simondon, é hora
de tentarmos expor a renovadora visão do pensador francês ligada às questões humanistas.
O que se associa classicamente a essas idéias, que procuramos apresentar nos capítulos
anteriores, é um papel central do homem diante do mundo que o envolve. Temos duas
situações: um homem que ou ignora a natureza, como os sofistas, ou se entende como seu
dominador através da instrumentalização, a exemplo de Galileu.
Esse tipo de humanismo (que não abandona um comando humano em relação ao
meio externo, um antropocentrismo, mesmo que velado) ganhará contornos radicais no
individualismo cartesiano, em sua distinção dualista entre um sujeito controlador de um
lado e objetos controlados de outro, uma pura alma (mente) qualitativamente pensante em
uma ponta e uma matéria inerte, despotencializada e desprovida de qualidade na outra.
Sobre isso, com inspiração em Simondon, diz Peter Pál Pelbart: O humanismo clássico
concedeu um privilégio excessivo ao indivíduo constituído, em detrimento do processo
de individuação.” (PELBART, apud CADERNOS DE SUBJETIVIDADE, 2003, p. 113). É
nesse sentido que fizemos questão de apontar como o humanismo de Simondon está
vinculado à fonte relacional de Hume, abertamente anti-cartesiana, e não a racionalismos
extremos, verdades eternas e centralidades do sujeito. O ponto-de-vista é operativo, é
interior às circunstâncias que se apresentam. Quando falamos de relação, temos uma
conjugação de elementos, uma perda dos limites da individualidade que não pára de se
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modificar, que traz resultados inesperados e que inviabiliza os equilíbrios estáveis e as
identidades fechadas defendidas pela perspectiva humanista tradicional. Temos simbioses e
não sujeições.
Simondon não não compartilha dessa visão antropocêntrica, como a considera
escravizadora e finalista. Avaliando criticamente sob esta ótica cartesiana, que imagina uma
natureza como serva da humanidade, ele diz sobre a vinculação entre homem e máquina:
“A máquina é somente um meio; o fim é a conquista da natureza, a domesticação da
natureza: a máquina é uma escrava que serve para fazer novos escravos.” (SIMONDON,
1989, p. 127). Todo dualismo deve ser combatido, particularmente esse que se “entre
[o] ato de conhecimento intelectual, abstrato, e [os] objetos inertes sobre os quais se aplica
o ato cognitivo.” (GARELLI, apud SIMONDON, 2005b, p.14). A proposta do autor escapa
a qualquer separação radical entre vivo/bruto, defendida por exemplo pelo vitalismo de
Cuvier, que vai perceber uma qualidade especial aos corpos vivos, um princípio de
vitalidade externo à matéria que explicaria, por exemplo, o “rubor das mulheres diante do
ser amado”. Acontecimentos como esses, considerados inexplicáveis pela simples
constituição físico-química dos corpos, serão base para a fundação da biologia, a partir do
próprio Cuvier, no começo do século XIX. Também não percebemos a visão contrária,
estritamente mecanicista, em nosso autor, pois a pura e simples junção das partes materiais
não fornece o todo daquele indivíduo. O mecanicismo seria incapaz de dar conta da
virtualidade da memória, por exemplo, até mesmo em objetos técnicos. Segundo
Simondon, na criação técnica o que é uma simbiose, uma troca de energia entre o
homem e suas invenções. Por serem fruto de elaborações humanas, os objetos guardam
uma humanidade escondida. Em contrapartida, um transbordamento vital segue em fluxo
contínuo do homem às suas obras. Ao tratar desse potencial criativo, John Hart fala de uma
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“fonte somática” (claramente não percebendo distinções entre corpo e mente), que ele
reconhece nos australantropos: “(...) as maravilhosas pedras polidas, que representam para
nós as concepções da humanidade mais antiga, são inicialmente emanações do corpo.”
(HART, apud SIMONDON, 1989, p. XII)
A palavra emanação merece nossa atenção. Remetida originalmente a Plotino, vai
ganhar uma transposição técnica nas palavras de John Hart. Como ligar Plotino e
Simondon? Em função de o primeiro dizer que nós humanos e todos os outros integrantes
da natureza participamos parcialmente do Princípio criador integral, Deus, todos os seres
naturais acabam, pela sua ligação original, indo além de si e também criando. É um
transbordamento criativo divino (uma emanatio) que traz os seres à vida, o que faz com que
algo dessa fonte originária permaneça com cada um deles: “(...) Todos os seres, enquanto
permanecem, produzem necessariamente em torno de si e de sua substância uma realidade
que tende para o exterior e provém de sua atualidade presente (...) algo emana deles e em
torno deles, uma realidade de que usufruem todos os que estão próximos (...)” (PLOTINO,
apud ABBAGNANO, 1998, p. 310). Essa transferência emanadora tem o dupla: iria do
homem aos objetos criados por ele e vice-versa. Assim seria possível defender a presença
de uma emanação técnica em Simondon, que nos parece a proposta implícita desse
comentador.
Nosso autor dirá que as composições técnicas são feitas de matéria, forma e energia.
Os objetos seriam estruturações de uma energia potencial humana entranhada neles e que
pode e deve ser continuada por outros homens. Isso nos a possibilidade de começar a
perceber um contingente de vitalidade e de evolução nas máquinas. Com isso, rejeita-se a
convicção histórica e muito disseminada na filosofia, tanto em sua linhagem mecanicista
quanto vitalista, de que os objetos técnicos são passivos, mortos, estando sempre
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completamente inertes e à mercê dos homens. Foi essa condição energética, trazida pelas
conceituações termodinâmicas, que a física antiga e a clássica não conheceram, que vai
ajudar a produzir, como veremos, um novo modo de visualizar o indivíduo em nosso autor.
No humanismo de Simondon, que estamos nomeando de humanismo técnico, não
qualquer hierarquia entre homens e coisas. Não atividade e superioridade dos
primeiros e conseqüente passividade e inferioridade dos segundos. O contato, para ser
criativo, deve ser de companheirismo e igualdade. A causalidade é recíproca: os objetos nos
modificam, nós os modificamos. Não nada que lembre idealismos, isolamentos
egocêntricos. Não gênios isolados, como ilhas, mas toda invenção técnica, além de ser
coletiva, conta com a historicidade inerente a cada objeto. Cada um pertence a uma família,
possuindo uma linhagem genética, uma genealogia. É nesse sentido que o uso estrito da
expressão inanimado perde o seu sentido e podemos atribuir ao autor uma renovação do
fisicalismo. Isso significa que nem todas as elaborações psíquicas e naturais vão poder se
resumir a processos físicos. A física, ou melhor, a física clássica, não poderá ser parâmetro
para todos os acontecimentos na natureza, como foi a pretensão dos lógicos fisicalistas do
Círculo de Viena. A presença da energia e de história humana na produção dos seres a
eles um contingente de vida e memória que escapa às meras dimensões geométricas e
materiais. A mera divisão da matéria em partes, que fazia parte da proposta daqueles
lógicos, não dá conta dos acontecimentos, seja na produção de seres vivos, brutos ou
técnicos. Algo de humano e de intangível permanece nas criações humanas. O objeto não se
separa da inventividade presente nele. John Hart afirma que algo de eterno permanece
ligado a cada um deles, extrapolando-se à resposta a uma necessidade útil ou o atendimento
a uma função que se revela como exigência inicial a ser usualmente cobrada de um objeto.
Sobre esse aspecto, nos diz Muriel Combès: Se bem que inventado (o que o distingue de
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um ser vivo), e justamente porque inventado por um vivo capaz de se auto-condicionar, o
ser técnico é dotado de uma certa autonomia.” (COMBÈS, 1999, p. 96). Um humanismo
anômalo, alheio à antropologia, é extraído daí. Sobre isso, a autora francesa continua: “(...)
temos uma proposição de filosofia que poderíamos dizer humanista, mas de um humanismo
que se constrói na ruína da antropologia e sobre a renúncia da idéia de uma natureza ou de
uma essência humana.” (idem, p. 84). Aparentemente de modo paradoxal, teríamos a defesa
de um humanismo sem homem, segundo o qual o problema é como este ser humano pode ir
além de si mesmo, o que ele pode vir a ser em suas alterações vitais, cnicas, mentais e
coletivas. Essa questão não poderia ser mais relevante para o nosso momento presente,
que a humanidade, através da técnica, está prestes a construir uma outra ou uma pós-
humanidade.
A noção de indivíduo, no contexto simondoniano, será completamente transmutada
em sua raiz etimológica. Originalmente significa indiviso, ou seja, com tendência ao
fechamento sobre si, à não integração com outros corpos. Simondon amplia e reorienta esse
conceito. Indivíduo, para esse autor, pode ser o homem, o protozoário, o cristal, a máquina
ou até uma idéia. Mais que isso: cada um deles permanece individuando-se ao longo de sua
existência. Esse processo contínuo de transmutação do indivíduo será chamado de
individuação, que é, sem dúvida, o conceito solar desse pensador, em relação ao qual todos
os outros são satélites. É também o substrato de toda a sua filosofia, aquilo a que ele se
dedicou a vida inteira. Bergson nos dirá que a compreensão do pensamento de um autor se
pela visão simples desse único conceito que é resultado de todo o seu esforço filosófico,
mas diz também que só chegamos lá ao final de um grande esforço.
Esse ponto de concentração, que é devedor de muita complexidade anterior, é
chamado intuição:
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“(...) um contato freqüente com o pensamento do mestre pode nos conduzir, por uma impregnação gradual a
um sentimento totalmente diferente (...) na medida em que nós procuramos nos instalar no pensamento do
filósofo no lugar de dar voltas, nós vemos sua doutrina se transfigurar. Inicialmente a complicação diminui.
Depois as partes entram umas nas outras. Enfim, tudo se concentra em um ponto único (...) simples,
infinitamente simples.” (BERGSON, 1993, p. 118-9).
Em outro momento, Bergson define a intuição desse modo: “(...) significa então
inicialmente consciência, mas consciência imediata, visão que a custo se distingue do
objeto visto, conhecimento que é contato e mesmo coincidência.” (idem, p. 27).
Inevitavelmente decorrente dessa idéia de individuação (a intuição simondoniana, de
acordo com a conceituação de Bergson), surge uma nova ontologia, ou ontogênese (para
sairmos da idéia de indivíduo aristotélica), para usar uma noção própria ao nosso pensador
e que sugere uma criação continuada, inclusive no plano dos seres técnicos. Presente,
passado e futuro se misturam e unem o que é interior e exterior ao indivíduo, pois a
individuação que envolve o vivo “libera um tempo que condensa o passado no lado de
dentro, faz acontecer o futuro no lado de fora e os confronta no limite do presente vivente.”
(DELEUZE, 1988, p. 127). O tulo da obra de Simondon - central para a defesa que
queremos nessa tese Sobre o modo de existência dos objetos técnicos, deixa claro
que o autor percebe aí a presença de uma categoria especial de seres que merece ser
estudada. O papel de excelência para o homem seria o de injetar energia e informação para
liberar, orientar e canalizar a melhor formação possível de mediações técnicas. E a utopia
possível: tornar a vida humana melhor. No estabelecimento dessas adesões singulares entre
homens e máquinas, levando em conta uma postura ética, está o passo decisivo para
pensarmos um humanismo técnico. O momento agora é de examinarmos, com um pouco
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mais de atenção, a noção renovada de ser que é anunciada pelo conceito de individuação
defendido por Simondon.
O ser e o ser técnico em Simondon
Mas qual seria, em linhas gerais, a diferença entre os modos ontológico clássico e o
desse autor de compreensão do que seja o Ser? A marca distintiva anterior concentra o
surgimento dos indivíduos em um ponto de partida, prévio ou final, mas sempre eterno, a
exemplo da Forma em Aristóteles ou do Átomo em Epicuro e Lucrécio. O entendimento de
Simondon é que a emergência ontológica se dá de modo genético, relacional e imprevisível.
Além disso, esses dois sistemas de pensamento deixam escapar a questão energética
envolvida na tomada de forma. De acordo com o autor, é preciso abolir todo e qualquer a
priori ou a posteriori e concentrar-se em um a praesenti. É o que separa a existência de um
princípio de individuação, que busca a constituição de uma identidade prévia com causas já
individuadas e de resultados esperados, da operação de individuação, que segue o
imprevisível devir do ser. Os conceitos de devir e ser, classicamente pensados como
separados, estarão juntos na incessante variabilidade de todas as coisas. Para além da
condição atual, portanto, o indivíduo apresenta um potencial virtual de transformação que
também faria parte dele. A união do que ele é e do que pode vir a ser, Simondon chamará
de ser. Uma ontologia apoiada na idéia de substância, de um ponto fixo que dá consistência
às variações (a Forma e o Átomo são exemplos), não fará sentido nessa nova visão. O ser é
transicional, o devir está incorporado ao ser sob a forma de energia. Foi esse acréscimo
energético, que veio com a física termodinâmica, que propiciou ao nosso filósofo uma
reformulação ontológica completa. É o indivíduo mais as suas individuações que será
chamado de ser.
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Na ontogênese, que será a ontologia simondoniana, parte-se dessa mobilidade e a
diferenciação acontece através de e não a partir de. Assim, podemos falar em
individualidade se ela for compreendida como móvel, pertencente a um processo de
transformação que não pára de acontecer. Para confirmar esse aspecto transitório, diz o
autor: “O indivíduo não é um ser, mas um ato.” (SIMONDON, 1995, p. 189). Essa nova
postura inverte o nivelamento consagrado na filosofia, desde a Grécia, que sempre
considerou o indivíduo constituído maior que a individuação, ou seja, privilegia o
andamento em moto continuo de auto-composição e não o fim ou início desse processo.
Para indicar explicitamente sua proposta de renovação, Simondon afirma logo nas
primeiras páginas de sua obra inaugural, O indivíduo e sua gênese físico-biológica, que é
preciso “conhecer o indivíduo pela individuação e não a individuação a partir do
indivíduo.” (SIMONDON, 2005b, p. 14).
Ao falarmos de individuação, é preciso ter como ponto de vista o interior de uma
operação, um estado ricamente potencializado no qual as variações estão acontecendo, não
havendo limites individuais completamente determinados nem resultados que possam ser
antecipados. Isso quer dizer que novos indivíduos estão sendo produzidos no mesmo
indivíduo. Este é apenas um momento da individuação, o que Simondon chamará de “fase”.
Quanto a essa produção temporal em fluxo, Levinás teria uma bela fórmula: “O tempo é o
não-definitivo do definitivo.” (LEVINÁS, apud MICOUD in ROUX, 2002, p. 192). A
perspectiva é de fusão de realidades díspares, de associações. O que não se esperava que
pudesse estar unido, acaba por estar. É essa junção heterogênea, tensa e harmônica ao
mesmo tempo, que entendemos como relação. Um ato perceptivo seria um exemplo: o que
o olho esquerdo se une diferencialmente ao que o direito e o resultado surpreendente
é a percepção. Atingir a Forma não é, então, anular as tensões, como diria Aristóteles, mas
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torná-las provisoriamente compatíveis. Os indivíduos seriam resultados parciais provisórios
que guardam consigo uma reserva energética potencial que lhes proporciona uma
multiplicidade de individuações futuras.
No âmbito da individuação técnica, no qual os objetos também serão entendidos
como seres, o autor tem uma proposta clara: sua intenção é reincorporar os objetos à
dimensão a que eles pertenceriam originalmente em sua escala histórica. Daí a necessidade
de educação, que virá da aquisição de uma cultura técnica, segundo a qual existirão homens
que compreendam claramente o sentido evolutivo das criações técnicas. Esse é o homem
que será chamado de técnico, contrariando a noção comum atual de técnico, como
indivíduo de aprendizado apenas empírico e de atuação única e exclusiva no campo prático.
Em Simondon, essa figura vai se remeter diretamente ao significado primeiro da palavra
engenheiro, o que nos faz lembrar os precursores da união entre a matemática e o mundo
físico, a matemática aplicada: Arquimedes e Galileu. Sua área de atuação necessita de uma
nova área de estudos, que terá o papel de dar sentido ao uso, entender a interioridade dos
sistemas de funcionamento e refletir cientificamente sobre as máquinas e as operações
técnicas, a mecanologia. Sobre a definição precisa dessa ciência aos olhos de Simondon,
diz Bernard Stiegler: “(...) a matéria que funciona não é objeto da física, mas da
mecanologia, uma ciência que estuda os processos evolutivos dos objetos técnicos
industriais.” (STIEGLER, apud SCHEPS, 1996, p. 74). Ciência e técnica não se separam,
mas se complementam. A primeira entraria com a parte diretamente ligada à produção
teórica de conceitos e a segunda com toda a parte prática, experimental, de produção de
objetos. Vistas em geral como separadas, quando não como inimigas, terão aqui um
momento privilegiado de união. O técnico inclusive tem a capacidade de reunir os dois
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mundos. Posteriormente tocaremos de modo mais detido nessa relação ciência/técnica e
definiremos de modo mais nítido a figura do técnico.
A originalidade de Simondon se destaca, antes de tudo, pela sua perspectiva neutra,
nem otimista nem pessimista em relação às elaborações técnicas. O resultado, positivo ou
negativo, dependeria da condução humana. Isso é um forte avanço, pois a história da
filosofia é plena de preconceitos contra as produções materiais, a começar por Platão e
incluindo as orientações de pensamento ditas humanistas (estamos nos remetendo em
particular ao humanismo cristão). Essa postura tem reflexos contemporâneos. Quando
vemos em indústrias a permanência da divisão entre planejadores e operários temos a
atualização desse preconceito. O que está por trás disso é o princípio de que quem idealiza
não produz e vice-versa. Em Simondon, existe a possibilidade aberta de um vínculo mais
harmônico entre a humanidade e os avanços da técnica associada à ciência, uma reflexão
que se revela absolutamente urgente em uma realidade de avanços técnicos velozes e
assustadores dos tempos que vivemos. Um aspecto muito interessante na abordagem de
Simondon é que as noções de indivíduo e individuação são pensadas para além da fronteira
do vivo, alcançando também o mundo físico, técnico, social e mental.
Diferentes níveis de individuação
Ao falar de indivíduo ou individuação,podemos ter a falsa impressão inicial de que
nosso autor está produzindo uma antropologia ou uma tese biológica. Isso é desmentido em
vários momentos. O conceito de individuação atingirá diferentes domínios, como a matéria
dita bruta, a vida, a sociedade, a percepção e os objetos técnicos, alcançando
respectivamente diferentes regimes: o físico, o biológico, o coletivo, o psíquico e o técnico.
Por fim, remetendo-se à própria filosofia e ao seu movimento criativo permanente, o autor
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posiciona o campo de idéias como mais uma das modalidades da individuação. Como o
pré-individual é uma fonte ilimitada, todos os processos criativos são individuantes. Toda a
natureza se integra: “(...) ele [Simondon] admite que todos os passos evolutivos, desde a
materialização de elétrons até a invenção tecnocientífica, passando pela aparição da vida
sobre a terra, as etapas do desenvolvimento humano embrionário no seio maternal, os da
aprendizagem de andar pela criança e a operação cognitiva pela qual o filósofo extrai o
processo individuante o passos „individuantes‟(...)” (LARGEAULT, apud CHATELÊT,
1994, p. 38). Os problemas que não são resolvidos em um âmbito são repassados para
outro. Seria, por exemplo, uma incompletude biológica, uma impossibilidade do organismo
de resolver toda a nossa conjuntura problemática, que levaria à experiência mental e
técnica. Em Simondon, um livro ou uma faca são compreendidos como indivíduos em
regime de devir. Um aspecto curioso é que, apesar de recusar uma centralidade humana,
acreditamos que seja possível falar de uma perspectiva humanista em sua filosofia. A
renovação da ontologia levaria a uma renovação do próprio humanismo. É preciso dizer
que acreditamos integralmente na hipótese - ponto de partida dessa tese de doutoramento -
de que é possível ser humanista sem ser antropocêntrico e percebemos isso nas reflexões de
Simondon.
Ele vai promover uma completa reformulação da conceituação tradicional de
humanismo, que vem da pólis dos sofistas e passa pela Revolução Científica e pelo
Iluminismo, atribuindo ao homem a condição de protagonista diante do mundo que o
envolve. Temos nesses períodos históricos um homem que se coloca como dominador da
natureza a partir das suas produções instrumentais. Isso significa que, de um lado, está o
homem e, de outro, separado dele, o ambiente que o rodeia e o qual ele deve dominar. Se a
primeira forte manifestação desse posicionamento filosófico é grega e ligada à linguagem,
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em um período que alcança os séculos VI e V a.C., o ápice desse processo será atingido nos
séculos XVII e XVIII. Ao contrário de todos esses outros posicionamentos anteriores, o que
temos em Simondon é um outro humanismo. É essa alteridade que será a tese geral que
procuraremos defender no restante desse trabalho.
No decorrer das próximas páginas nos concentraremos especificamente sob a vereda
que parte do biológico e segue ao técnico, esse último nosso foco decisivo. Em nome de
uma seqüência que acreditamos lógica, começaremos a definir a individuação biológica e,
depois, trataremos, de modo mais alongado, da individuação técnica. Na verdade, não é um
bom caminho nos isolarmos nos problemas técnicos e nos esquivarmos dos outros modos
de individuação, pois não nenhuma separação definitiva entre eles. Ao contrário, um
modelo de individuação passa a atuar no limite atingido pelo estágio anterior. É o que
Simondon nomeará como mudança de fase por saturação. Alterações não vêm de
incapacidades, como diria Aristóteles, mas de amplificações em efeito cascata. Quando não
se dão em um campo, partem para outro onde haja menos rigidez. O que existe, portanto,
são diferentes níveis de individuação, cada um com a sua singularidade própria. E se os
indivíduos podem ter mais ou menos capacidade de seguir se individuando, temos que
pensar que existe aquilo que Simondon nomeia de p-individual pleno, sem fases, que
abastece e distribui esses contingentes energéticos individualmente, o pré-individual
menor, de cada indivíduo.
É nessa via contínua e ramificada que tentaremos não nos perder a seguir. Tal como
fizemos em capítulo anterior com Galileu, o contraponto nesse momento, pelo menos ao
início, também será a filosofia de Aristóteles, que aparentemente se apresenta como
passagem obrigatória de debate e território de conflito em relação a toda renovação
empreendida pelo pensamento moderno e, em certas passagens, até mesmo contemporâneo.
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O debate com Aristóteles não é algo colocado de modo subliminar em sua obra. Ele abre
seu livro L´individu et sa genèse physico-biologique, que seria uma primeira parte de sua
tese de doutoramento, com uma crítica direta à visão aristotélica sobre o indivíduo e a
individuação.
Na reformulação do conceito empreendida pelo filósofo francês, temos consciência
clara da contraposição que foi feita também ao atomismo grego, naquilo que nele se
assemelha ao hilemorfismo aristotélico, ou seja, a pressuposição de que haja uma causa
primeira e de que o indivíduo seja algo pré-definido de antemão. É comum a ambas
ontologias perderem o processo e permanecerem com os extremos. Em nosso
desenvolvimento, preferimos, por estratégia prévia e arbitrária, em vista de uma maior
coerência com o restante do trabalho, nos concentrar na crítica à conceituação aristotélica.
Nossa hipótese inicial é que está nesse novo entendimento da relação
indivíduo/individuação a chave para a reformulação do humanismo que acreditamos
constituir-se como um dos grandes momentos criativos da filosofia do século XX.
Crítica ao princípio de individuação aristotélico
A individuação, tal como foi pensada por Aristóteles, sempre produziu uma aliança
que se revela ao mesmo tempo como profunda divergência. Todo indivíduo, vivo ou não, é
um composto de forma e matéria, com permanente predomínio da primeira sobre a
segunda. O indivíduo, resultado do processo de individuação, é uma união, mas de
componentes qualitativa e hierarquicamente diferenciados. A matéria está ali com uma
função determinada e menor: adaptar-se a estruturas prévias. O comando do processo, a
parte disciplinadora, cabe ao aspecto formal, que se define como a estabilidade eterna do
que é. Se chamamos cavalo por esse nome, é porque uma característica comum que une
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todos os cavalos e que nunca vai se alterar. O que temos então são moldes imateriais,
perenes e perfeitos, aos quais uma certa porção de matéria simplesmente se adequa.
Isso significa que a organização e a regularidade da natureza, cujo desvelamento é o
que se denomina como ciência até hoje, dependem, portanto, única e exclusivamente, do
conhecimento referente à forma. É ela que ao mesmo tempo é inerente a cada indivíduo e
também comum a todos aqueles que pertencem ao mesmo gênero. À matéria está destinado
o mero papel de serviçal. É essa hierarquia dualista que propicia uma racionalidade, uma
coerência intrínseca à chamada ordem natural, que faz com que, por exemplo, de
jabuticabeiras nasçam jabuticabas e não caquis ou mangas. A forma é entendida assim
como princípio de individuação, algo anterior e determinante na constituição dos
indivíduos. É ela que produz um isolamento das individualidades, faz com que elas sejam o
que são e que resistam ao que não são. Essa visão aristotélica trouxe a idéia de que as
espécies (formas) biológicas são imutáveis. Para termos noção da força descomunal dessa
idéia, temos que recordar que foi apenas no século XIX, com muito tormento e polêmica no
nível mental e social, que Wallace e Darwin colocaram uma espontaneidade mutante na
natureza, aparecendo assim a possibilidade do surgimento de novas espécies que, aliás, não
deixam também de ser formas, apesar de, agora, mutáveis. Por um certo viés, o pensamento
biológico continua aristotélico.
A condição inferior da matéria para Aristóteles é determinada pela sua condição
variante, sendo a variação, portanto, sinônimo de imperfeição. Quando um indivíduo nasce
sem um braço, essa é uma deficiência que só pode ser advinda da materialidade, pois a sede
do erro pode ser encontrada nela, ou seja, em uma inevitável inconstância ligada à
transformação que se processa nessa dimensão superficial. O que está sendo dito é que
tudo o que está em movimento, ocupa uma condição antinatural, um estado violento, como
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diria o pensador macedônio. Lembremos que mudança tem um sentido de corrupção em sua
ontologia. Além disso, do ponto de vista aristotélico, a individuação é um processo de
mudança que tem sentido se conduzir a um fim orientado, pré-programado e superior: o
indivíduo pleno, a forma realizada. Como pensador finalista, irá fazer dessa individualidade
o objeto definitivo e pleno da individuação. Assim, para ele, o indivíduo, entendido como
ponto fixo de chegada, é maior que a individuação. Se a ordem natural das coisas for
realizada, o que é potência, que tem no aristotelismo um sentido de potencialidade (a
condição latente de um potro virar um cavalo no futuro, por exemplo), irá se realizar em ato
(o cavalo adulto no presente). Em Aristóteles, está definido pela natureza que aquilo que
está em movimento (individuando-se) esteja encaminhando-se naturalmente para a situação
de repouso (individualidade plena). As variações que temos, após esse último estágio ser
atingindo, o que equivale à tomada de forma, é o desgaste que conduz à extinção da
matéria, à morte.
Simondon foge a essa dicotomia hierarquizada de Aristóteles. Aliás, toda e qualquer
forma de hierarquia perderá o sentido em sua proposta filosófica. Sua idéia de individuação
passa por uma interdependência entre indivíduo e meio. O que está fora interage com o que
está dentro e vice-versa em regime permanente, não havendo qualquer orientação ou
objetivação planejada antecipadamente nas mudanças que um indivíduo vivo experimenta
ao longo de sua existência. Com essa nova perspectiva desaparece de uma vez qualquer
tipo de domínio, termo elementar anterior ou condição de possibilidade que oriente ou
determine o processo: “Nesse sentido, a operação de individuação é contemporânea do
indivíduo que funda, ela é, por assim dizer, o ser do indivíduo. (FONSECA, 2003, p. 43).
Privilegiando o movimento e a diferenciação, Simondon substituirá o princípio de
individuação pela operação de individuação. Aliás, o que está sendo questionado é se a
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individuação tem um princípio. Fica estabelecida, portanto, a distinção entre um
pensamento processual, no qual a mobilidade vale por si, e um pensamento essencialista,
em que o movimento é sempre servo de pontos gidos. O ser em Simondon é muito mais
que o indivíduo. Não teremos mais em Simondon o ser enquanto um, fechado em si,
igualando-se à individualidade, como afirmaria a ontologia tradicional, mas o que ele
chamará de ser enquanto ser, que é o ser somando-se a tudo que foi e ao que pode vir a ser,
ou seja, em regime de devir. O que ele conceituará como ser é uma combinação do par
indivíduo/meio. Os problemas que o meio oferece, somado ao que próprio indivíduo pode
vir a ser, promovem as contínuas individuações. A riqueza do ser combina estrutura
individual e operação individuante, implicando que “as estruturas devem ser conhecidas
pelas operações que as dinamizam e não o inverso” (COMBÈS, 1999, p. 22). Voltamos ao
conceito relacional, em que se pensa “o ser através da multiplicidade de relações onde ele
se individua. (idem, p. 22).
Como todas as dicotomias serão extintas (o que faz Simondon desacreditar da
validade do raciocínio de oposição entre pares motivado pela dialética), ser, nessa
perspectiva, inclui o devir. Aliás, a associação conflitante entre ser e devir, base da
ontologia tradicional, é válida se o ponto de partida for uma doutrina que privilegie o
modelo fixo, a exemplo da forma aristotélica. Variação e permanência não se distinguem.
Diante dessa visão, o indivíduo não é alguma coisa de modo definitivo, ele está sendo. Não
há, como na tradição aristotélica, fragilidade no entendimento da mudança, mas pelo
contrário, um fortalecimento, uma condição mesma de seguir existindo. A todo tempo,
seres vivos recebem e fornecem informações (para nosso pensador forma é informação) e a
mensagem recebida mantém sempre um caráter heterogêneo em relação àquela que sai.
Simondon incorpora nessa idéia certas teorias ligadas à cibernética, que não traçam linhas
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de separação entre homens e máquinas ou homens entre si. Tais teorias não colocam o
receptor dos dados como algo passivo. Abordaremos essas noções informacionais com mais
cuidado posteriormente. Por enquanto, podemos dizer que essa absorção informativa faz as
formas perderem seus contornos estanques e ganharem fluidez nos vínculos com os outros
seres e consigo mesmos. O indivíduo é realidade relativa, não é o todo do ser, mas apenas
um dos seus momentos, na medida em que este último continua atualizando, ao longo da
existência, suas potencialidades. Simondon resume a união ser/devir: “(...) é possível supor
que o devir é uma dimensão do ser, que corresponde a uma capacidade que o ser tem de se
defasar em relação a si mesmo, de se resolver defasando-se.” (SIMONDON, 2005, p. 25).
Sem uma finalidade determinada, a individuação perpetua-se.
No vivo, sempre é possível uma realimentação do sistema, aquilo que ficou
conhecido como feedback. Agora, diferentemente de Aristóteles, eles se compõem de modo
constante enquanto vida. Isso mais uma vez se esclarece quando pensamos que
simultaneamente o indivíduo cria o meio e o meio cria o indivíduo. É o que pode ser
chamado de individuar-se. Temos uma união micro-macro, como no exemplo da
fotossíntese, quando o nível infra-molecular do vegetal entra em contato direto com o
macrocósmico do Sol. Essa substituição conceitual também resume o igualitarismo que é
pensado para as partes envolvidas no processo. Fica claro que não há um determinismo do
dentro sobre o fora, nem o contrário. Forma e matéria também não estão mais
desvinculadas, não havendo, portanto, a histórica vinculação de senhora de um lado e a
escrava do outro. Ambas estão simultaneamente em presença, em choque. Estrutura e
operação são pensadas como simultâneas e não há uma sem a outra. Não haverá privilégio
do começo ou do fim, mas da transitividade da mediação, do constituir-se, do fazer-se. A
noção ampliada de ser leva também à necessidade de revisões de conceitos como sujeito e
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objeto. No humanismo de Simondon, diferentemente do humanismo tradicional que vimos
anteriormente, não temos a atividade e preponderância do primeiro face à inferioridade
passiva do segundo. Sujeitos constituem-se, sujeitos constituem objetos e objetos
constituem sujeitos.
Nem estável, nem instável
Uma relação tensa é mantida em caráter integral todo o tempo, sendo a mudança
incessante a crise que, em caráter paradoxal, garante a estabilidade dos indivíduos. Ou
melhor, a metaestabilidade. Esse conceito, que Simondon traz, entre outros, da física
termodinâmica, merece algumas palavras. Um processo metaestável de mudança acontece
longe da condição de equilíbrio e do alcance de qualquer estabilidade definitiva, o que não
quer dizer que se caia integralmente na instabilidade. Mais uma vez um não é dito aos
dualismos. Não é mudar ou manter, pensados separadamente e em oposição, mas mudar
para se manter. Haverá equilíbrio, mas na alteração. Em vez de homogeneidade, o
indivíduo mantém uma carga de incompatibilidade no que se refere a si mesmo. Uma
condição tensa é essencial à vida. Se ele não possui incompatibilidades internas está morto.
Isso levará Muriel Combès a dizer que toda individualidade vai além de si, é “mais que
um”, mais que a unidade e mais que a identidade. O indivíduo está sempre sendo colocado
em situações que o desafiam e o superam.
É esse panorama crítico que faz com que as existências sejam algo em permanente
construção. As individuações existem na tentativa de resolução de problemas que seguem
acontecendo enquanto o indivíduo existe. Essas variações permanentes acontecem por que
mais, sobresaturação ou sobrefusão nas palavras de Simondon, nunca menos. Em uma
postura filosófica como essa, jamais um movimento de mudança poderia ser explicado por
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falta ou imperfeição. Essa negatividade da variação é percebida, como vimos, na tradição
aristotélica, entretanto, mesmo que de modo sutil, ela também está presente na noção de
adaptação darwinista, em que temos a alteração como uma situação intermediária que
acontece entre uma identidade e outra, ou seja, ainda são os pontos fixos que interessam.
Darwin chega a falar de sub-espécie, algo entendido como inferior à espécie constituída,
para demonstrar o aspecto menor da mutação. Mesmo defendendo, ao contrário de
Aristóteles, que as formas (espécies) variam ao longo do tempo, a noção adaptativa busca,
como um objetivo, a chegada a uma estabilidade, a acomodação a uma exterioridade.
Além disso, essa perspectiva não relevância aos atos criativos implícitos nas
resoluções de problemas. As variações são casuais, pois indivíduo e meio estão separados.
Essa situação apresenta dois caminhos para os seres vivos: ou acontece adequação a um
contexto dado ou resta a extinção. Essa passividade adaptativa do indivíduo não existe na
filosofia de Simondon: “(...) o organismo vivo, longe de ser o produto ou joguete da
evolução, é o agente.” (LARGEAULT, apud CHATELÊT, 1994, p. 40). O próprio autor se
manifesta quanto a isso, mais uma vez partindo do princípio relacional: “A noção de
adaptação é mal formada para o vivo, na medida em que ela supõe a existência de termos
como precedendo a relação.” (SIMONDON, 2005b, p. 212). A característica que marca o
ser vivo é sua capacidade de participar da própria evolução, de colaborar na invenção de
estruturas novas para si. É sujeito e objeto das suas individuações. A questão da dicotomia
estabilidade/instabilidade, método típico do pensamento dialético, que envolve termos
separados em choque, é que essa divisão sempre leva em conta uma cessação de processos
e um isolamento de termos. Seria como querer optar por um devir sem ser ou por um ser
sem devir. É querer Dioniso sem Apolo ou Apolo sem Dioniso, para indicarmos o ponto
central da problematização trazida por Nietzsche para a composição da obra de arte entre os
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gregos em O nascimento da tragédia. O que é uma crise que é inerente ao processo
(interna e não externa) e que gera harmonia entre os princípios de manutenção e variação.
Eles agem simultaneamente. :
“(...) o contínuo desenvolvimento da arte está ligado à duplicidade do apolíneo e do dionisíaco, da mesma
maneira como a procriação depende da dualidade entre os sexos, em que a luta é incessante e onde intervêm
periódicas reconciliações (...) ambos os impulsos tão diversos, tão diversos, caminham lado a lado, na maioria
das vezes em discórdia aberta e incitando-se muitas vezes a produções sempre novas (...) através de um
miraculoso ato metafísico da „vontade‟ helênica apareceram emparelhados um com o outro, e nesse
emparelhamento tanto a obra de arte dionisíaca quanto a apolínea geraram a tragédia ática.” (NIETZSCHE,
2003, p. 27).
O estável em caráter integral (escolha unilateral pelo ser em sentido clássico)
eliminaria a possibilidade de mudança, não permitindo a entrada de qualquer informação
nova e a total instabilidade (escolha unilateral pelo devir) não permitiria a existência de
nenhuma configuração durável. Toda escolha radical de qualquer um dos lados seria
ilusória e não acompanharia os movimentos próprios da existência. Daí vem a opção pela
metaestabilidade, que promove a convivência do indivíduo com o pré-individual que
também o compõe. O que ele é e o que ele vai ser se misturam. Um exemplo simples e
cotidiano que inviabilizaria de uma vez os dois extremos é o de uma ponte de concreto
(uma ponte também é um indivíduo para Simondon), que para se preservar inteira exige
uma maleabilidade de movimento de acordo com a intensidade dos ventos e de expansão e
contração estrutural, proporcionalmente ao calor ou ao frio. Ela deve ser sólida, mas não
pode ser rígida. Sem essas versatilidades de razoável mobilidade (o que à primeira vista nos
impressiona que estamos acostumados a perceber esses objetos como absolutamente
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sólidos e compactos), a ponte simplesmente se quebraria. Isso significa que até o que
consideramos mais fixo e imóvel precisa, para se manter, atualizar potencialidades, mesmo
que mínimas, de alteração de acordo com desafios (problemas) que são colocados pelo
ambiente externo. Há, até mesmo nesse caso, um devir, muito aprisionado, mas presente.
Esse exemplo entraria no que Simondon classifica como individuação física. Podemos
dizer que, para esse tipo de ser, com potencial mínimo de variabilidade, onde as
circunstâncias de alteração são meros encaixes diante de desafios colocados externamente,
a idéia de adaptação se adequa muito bem.
Se isso vale para a rigidez do concreto, o que não será a metaestabilidade para nós,
criaturas de característica eminentemente plástica, com poder de auto-produção
(autopoiesis) e suscetíveis a recriações de caráter recorrente? Os indivíduos estão colocados
em um frágil equilíbrio a meio caminho entre o estável e o instável: “O indivíduo seria
pensado, portanto, como um sistema em equilíbrio instável, ou seja, um regime capaz de
ganhar novas configurações sem contudo se desfazer, um sistema onde novas formas
emergem e, no entanto, pela própria instabilidade do sistema essas mesmas formas podem
dar lugar a outras.” (FONSECA, 2003, p. 43). Saímos assim da idéia consagrada
milenarmente na filosofia do Ser substancial, que aponta diretamente para um imobilismo.
Essa ânsia de repouso, que se iniciou entre os eleatas pré-socráticos, e que ainda hoje nos
ronda todo o tempo, teria seu paradigma absoluto e próximo a nós na moral cristã, mais
especificamente na plenitude imóvel representada por Deus. Se a vida for pensada como
mobilidade positiva e criadora, podemos ver nessa prática religiosa - a partir das reflexões
demolidoras de Nietzsche - um culto à morte: “O cristianismo foi desde o início, essencial e
basicamente, asco e fastio da vida na vida, que apenas se disfarçava, apenas se ocultava,
apenas se enfeitava sob a crença em „outra‟ e „melhor‟ vida. O ódio ao „mundo‟, a maldição
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dos afetos, o medo à beleza e à sensualidade, um lado-de-lá inventado para difamar melhor
o lado-de-cá, no fundo um anseio pelo nada, pelo fim, pelo repouso (...)”(NIETZSCHE,
2003, p. 19).
Pode-se argumentar que não vivemos mais exclusivamente essa realidade que
privilegia a imobilidade. uma outra tendência que ocupa o pólo oposto, dando forte
ênfase ao materialismo e à velocidade. O que passa a ser valorizado nesse regime de idéias
é a mobilidade desregrada e sem limites. Se antes o modelo único era ser sem devir (Deus),
agora também teríamos devir sem ser (homem permanentemente ansioso). O estímulo é a
velocidades cada vez mais intensas que não deixariam nada se manter, como se a profecia
de Marx de que tudo que é sólido se desmancha no ar pudesse se concretizar em toda e
qualquer situação. Isso também seria claramente perceptível no aspecto simbolicamente
positivo - promovido pela publicidade e pelo marketing - que ganha qualquer novidade,
seja no consumo de produtos, seja nas relações sociais. O novo passa a ser pensado como
benéfico apenas pelo fato de deter uma diferença qualquer, independentemente da sua
relevância.
Essa outra ponta extrema está ligada a uma expectativa social, a um modismo, pois
existe um culto contemporâneo (iniciado sem dúvida pelo pensamento moderno) à
agilidade e à juventude, pois permanecer tornou-se equivalente a envelhecer, o que nessa
perspectiva contemporânea teria o sentido de decair, seguir para a morte. Se antes, com a
idéia clássica de Ser (que mostrou claramente sua força até a virada do século XVIII para o
XIX), teríamos uma celebração à eternidade, viveríamos agora a religião do novo, do risco
e das emoções fortes, cujo mito indica que devemos começar sempre tudo do zero. Apaga-
se a memória e enterra-se todo e qualquer passado. O que acontece é que os dois
radicalismos se apresentam a nós, nenhum deles conseguindo, segundo Simondon, explicar
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as transmutações. Isso nos leva a pensar que um ser fechado ou absolutamente aberto (onde
nem seria possível a qualquer individualidade se compor) são termos pontos opostos de
uma mesma ilusão. Sem os dois princípios, o ser e o devir fundindo-se, atuando
conjuntamente, não podemos explicar as transformações individuais reais: “(...) seja um
substancialismo absoluto, seja um dinamismo absoluto não deixa lugar à relação no interior
do ser individual.” (SIMONDON, apud LARGEAULT in CHATELÊT, 1994, p. 31).
O ser, no espectro da ontogênese, será metaestável e repensado em devir, como
transdutivo, que é “o modo de unidade do ser através (...) de suas múltiplas individuações”.
(COMBÈS, 1999, p. 15). Ele não é mais visto como “uma unidade de identidade que é a do
estado estável no qual nenhuma transformação é possível; o ser possui uma unidade
transdutiva”. (SIMONDON, 1995, p. 29). Não teremos que optar pela indução ou dedução
(a transdução é uma recusa de ambas e a afirmação de uma terceira via), pelo empirismo ou
racionalismo, mas nos posicionaremos no espaço intermediário. Na atividade transdutiva,
em ritmo de propagação, cada estrutura criada serve de princípio de constituição para a
região seguinte. Podemos perceber isso em uma individuação mental, quando uma
invenção serve de base para a outra. As alterações, portanto, são descontínuas, o devir
manifestando-se em saltos. O ser é um “nó comunicativo” que abriga tendências opostas,
sendo uma mediação entre um mundo cósmico, maior que ele, e seus próprios componentes
moleculares, menores que ele. É nesse sentido que ele é mais e menos que a unidade. Esse
reposicionamento conceitual elaborado por Simondon seria necessário devido à falência de
um sistema de pensamento que enfatiza a importância da estabilidade. Em nossa realidade
física, de paradigma energético, esse requisito não é mais decisivo. Com isso, o modo
tradicional de refletir sobre os problemas ontológicos não mais conta do real que se
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apresenta aos nossos olhos. A lógica, por exemplo, que trabalha com seres individuados,
não serve de parâmetro às reflexões de Simondon.
Podemos acrescentar que hoje, a impossibilidade de defender um essencialismo dos
seres radicaliza-se quando pensamos nas transformações possíveis que os avanços da
ciência podem proporcionar, no aspecto de interferência genética, em relação à própria
idéia de humanidade. Exemplos díspares que nos vêm à cabeça e que mostram essas
assustadoras capacidades são a clonagem animal, a seleção sexual de descendentes e a
recriação de órgãos em laboratório. Parece que o último bastião possível para justificar um
substancialismo (formas isoladas em sua própria imutabilidade) cai quando passa a existir
uma efetiva manipulação no nível do gene. Mas o outro lado, que defende um princípio de
mudança, no qual nada se mantém, também é ilusório. É uma fachada que atende a
expectativas sociais. Inclusive no próprio raciocínio biológico, percebemos várias e
intensas ligações com os parâmetros aristotélicos de pensamento. Para permanecermos com
um item, fiquemos com a idéia de que uma condição de repouso atingida é sempre a
finalidade de qualquer mobilidade anterior. Aristóteles não foi o inventor do privilégio do
estável sobre o móvel, mas o principal disseminador dessa idéia no interior do campo
científico. Essa idéia avançou por toda a Idade Média, perseverou em grande parte do
raciocínio científico moderno e apresenta um grande número de cultuadores ainda em
nossos dias. Isso faz do pensador macedônio, senão o maior, um dos grandes arquitetos do
pensamento ocidental e de um modelo de ciência que ainda hoje está muito presente.
Precisamos lembrar a importância ainda vigente das noções aristotélicas de gênero e
espécie no pensamento biológico, mesmo com todas as mudanças recentes acontecidas
nessa área desde Darwin e Mendel.
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É paradoxal que, apesar dos modismos ligados à mobilidade em nossos dias,
continuemos a pensar aristotelicamente mesmo ser ter lido uma linha da sua obra. Suas
idéias chegam a nós como ondas invisíveis que a cultura transporta. A herança está
concentrada na idéia de que para tudo que se movimenta é preciso que exista algo fixo que
sustente esse movimento. A tese vale para todo o conjunto da obra aristotélica e para os
seus dualismos: forma/matéria, ato/potência, necessidade/ contingência, sendo os primeiros
elementos fixos a condição para a existência dos segundos, móveis. A imagem imediata
que nos chega é a do pêndulo, onde temos claramente um apoio imóvel guiando e
direcionando as ações. A questão é que a filosofia aristotélica tinha a exigência de uma
imobilidade definitiva. É assim que chegamos à idéia de Deus em Aristóteles, conceito
também nomeado de Motor Imóvel. É Ele o repouso definitivo que equilibra o mundo,
dirige os movimentos naturais e propicia todas as realizações, fazendo a passagem das
potencialidades a atos. Não esqueçamos que, para o filósofo, movimento é sinônimo de
imperfeição. Sendo Finalidade Absoluta, direção de todas as mudanças, tudo tende a Ele,
mas nada o alcança. Por analogia, a imagem que se pode ter é a de um ímã de proporções
cósmicas, um atrator universal, um pêndulo dos pêndulos.
Os eventos acontecem sem qualquer intervenção direta Dele no processo de
mudança e movimento. Não necessidade, pois Ele é um inspirador, à maneira de um
puro conceito, desprovido de atividade, desejos e vontades. O próprio uso da expressão
Ele é problemática, que não nem sombra de personalismo na idéia aristotélica de
Deus. Sendo perfeito, não tem nada a realizar, não precisando querer algo exterior a si
mesmo, o que implicaria um deslocamento. Inclusive, é essa sua condição de completa
impassibilidade que proporciona a movimentação alheia, pois, para os gregos que seguem a
via parmenídica de pensamento (Aristóteles se inclui aí), a imobilidade é prerrogativa
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necessária para a perfeição. A supremacia da ação sobre a passividade é própria da reflexão
filosófica a partir da modernidade. Com as devidas exceções, na Antiguidade grega ou na
Idade Média, acontecia o inverso. Para darmos um exemplo, qualquer filhote chega à
idade adulta um dia em função dessa atração que faz a imperfeição se aproximar da
perfeição - que é Deus - sem jamais atingi-la. O ser chega apenas a esse repouso relativo,
que é a forma realizada, em que o animal adulto mantém, por um certo período (nossa parte
material se desgasta e nos leva à morte), a sua plenitude vital. Essa é a seqüência da ordem
natural.
Individuação biológica em Simondon
Em Simondon, ao contrário, não paralisação de movimentos. É isso que faz, de
acordo com o autor, a rigidez da condição estável ser fruto de uma visão pouco
aprofundada do problema. O repouso, nessa visão, seria condição ilusória, fabricada por
uma certa percepção humana. Seguindo a mesma rota, Whitehead diz que o indivíduo é
uma “concreção efêmera”, uma mônada fluida, ou seja, um “ser transicional” enquanto está
vivo. Na medida em que é “expressão momentânea da criatividade do mundo” e,
completaríamos, de si mesmo, chegaria à estabilidade ao morrer. Simondon partilha
dessa idéia: “Só a morte seria a resolução de todos os problemas; e a morte não é solução
de nenhum problema.” (LARGEAULT, apud CHATELÊT, 1994, p. 27). O filósofo francês
essa morte como falência energética. Encerra-se em certo momento a capacidade de
continuar realizando potenciais, à maneira de indivíduos físicos que o possuem mais
nenhuma alteração construtiva quando interagem com a realidade exterior. O tijolo que
ganha a condição sólida (e definitiva) é um exemplo de sistema morto que, a partir desse
instante, sofrerá apenas ações de desgaste com a passagem do tempo. Podemos pensar que
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a noção de adaptação, como simples adequação passiva do indivíduo às determinações
exteriores, sejam próprias desse estado que os corpos físicos ou os ex-vivos experimentam.
Em outras palavras, só o equilíbrio estável é adaptativo.
Quanto ao vivo, se pensarmos que cada ão sua é uma tentativa de descobrir
compatibilidades, a resolução, sempre parcial, dos problemas não cessa de acontecer
enquanto há vida. O indivíduo, portanto, é pensado em equilíbrio metaestável e só consegue
manter-se ao preço de individuações sucessivas, onde a solução de um problema leva ao
enfrentamento de outro. Mas como explicar então o fim inexorável, mesmo com essa
possibilidade de reversão da morte e da entropia? Temos que pensar que a manutenção vital
tem seu preço. E também lembrar que o pré-individual em cada ser vivo é limitado, e a
morte, em um prazo mais ou menos longo, é conseqüência inevitável. Viver é lutar contra
forças que querem nos desintegrar. Mas o nosso sucesso nessa luta gera resíduos
(Simondon nomeia de escória) em sucessão, não-absorvíveis pelo organismo, que podemos
chamar de tóxicos. A própria diferença entre a capacidade maior de regeneração de feridas,
o restabelecimento mais rápido da cura de doenças e a melhor condição física quando
comparamos jovens e velhos seria determinada por esse acúmulo que, por fim, nos destrói.
Isso significa que em sistemas vivos o que restaura também acaba por matar. Mais uma
vez, paradoxalmente, recriar-se é morrer. A cada sucesso, um passo é dado para a derrota
final e inevitável. A condição de estabilidade, que é mortal desse ponto de vista, o alcança
paulatinamente a cada individuação. Uma carga nociva, uma energia morta, que não se
integra harmoniosamente ao corpo, acrescenta-se a ele de modo contínuo. Diz Simondon:
“O indivíduo ganha pouco a pouco elementos de equilíbrio estável que o carregam e o
impedem de ir na direção de novas individuações.” (SIMONDON, 2005b, p. 215). É
interessante pensar, por outro lado, que o reabastecimento constante de informações em
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pessoas mais velhas produz um alongamento da lucidez e uma permanência da memória.
Pesquisas recentes apontam uma vinculação entre hábito de leitura e menor probabilidade
de desenvolvimento de doenças como Alzheimer.
Essa visão da oposição Vida/Morte nos recorda mais uma vez a negação dos
dualismos proposta por Simondon. Para entender os processos de mudança, é preciso então
reverter a tendência de separar definitivamente quente/frio, doce/amargo, bom/mau etc. e
fazer um esforço para produzir a interpenetração necessária existente entre as duas partes.
Como diz nosso autor, esses opostos são duas grandezas que inicialmente não se
comunicam, mas que ao serem colocadas em contato, acabam estabelecendo vínculos
imprevistos, originais. Essa postura de pensamento, que liga Simondon aos pré-socráticos
(Heráclito, em particular), será vista com mais detalhe no sub-item a seguir. Um aspecto
interessante é que aquilo que vale para a individuação biológica, valerá também para as
criações humanas, para as individuações técnicas. Em ambos os casos, temos invenção,
diferenciações que não são de natureza, no sentido essencialista, mas de nível: “(...) a
diferença entre a invenção natural e a invenção técnica é que o vivo, ele mesmo, é parte da
solução do problema, enquanto o inventor permanece exterior à máquina.” (LARGEAULT,
apud CHATELÊT, 1994, p. 25). Não podemos esquecer que o mesmo ser, em especial no
caso da complexidade humana, é passível de várias camadas distintas de individuação.
Tanto não separação estrita entre as partes envolvidas nas individuações, que a
própria divisão clássica indivíduo biológico/meio é desmontada. O meio equivaleria ao pré-
individual presente ao indivíduo: “É porque o vivo é um ser individual que traz com ele o
seu meio associado que o vivo pode inventar.” (SIMONDON, 1989, p. 58). Extraímos daí
uma diferença do vivo para o não-vivo: as quinas só são capazes de manter a sua
individuação, não de ampliá-la por si mesmas, enquanto o ser vivo é não capaz de
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conservar como aumentar o conteúdo próprio ou externo de informação. Ele existe e
persiste no presente, constituindo continuamente o futuro. A individuação viva se preenche
por dentro, mas se projeta também para fora: “O indivíduo vivo é capaz tanto de relação
para o interior de si mesmo cuja ilustração seria a regeneração, como a gênese interna
quanto relações que se exercem para o exterior, como a reprodução. (COMBÈS, 1999, p.
43). Não podemos esquecer que esse sentido externo, no caso humano, pode se dar em
termos de fabricação de idéias e objetos, ou seja, individuações psíquicas e técnicas,
respectivamente.
O vivo transforma desordem em reordenação por ser autônomo em relação aos
dados que recebe e aos que possui. É isso que o torna autofabricador no sentido evolutivo
ou autopoiético, na expressão dos biólogos Maturana e Varela. Isso significa que a
individuação e possível progresso das máquinas dependem diretamente da incompletude da
individuação vital dos homens. Individuações técnicas não acontecem sem a nossa
participação. um movimento transdutivo que passa do biológico ao técnico. Mas isso
não quer dizer que a via não seja de mão dupla. Se a corrente energética fluísse apenas do
homem para os objetos, Simondon estaria reproduzindo o modelo moderno de Descartes e
Galileu, a nosso ver, marcadamente antropocêntrico. Na orientação simondoniana, não
usos totalmente previsíveis para as máquinas criadas e, logicamente, nos alteramos com os
vínculos que estabelecemos com elas. Os criadores emitem e recebem “vida” dos objetos
que criam. Essa vivacidade humana transmitida para os objetos técnicos adere a eles como
memória, fazendo deles um composto histórico, um conjunto de invenções humanas. Essa
singularidade produziria uma diferença entre a individuação técnica e a pura e simples
individuação física, já que para os seres físicos o passado é radicalmente passado.
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Mais contemporaneamente, temos também que lembrar que recursos
tecnológicos que são inoculados em nossos corpos e deixam muito fragilizada essa relação
exterior/interior, pois esses inventos modificam nossos corpos, nossas atitudes, nosso modo
de pensar etc. Podemos dizer que, na esteira do pensamento moderno, os inventores
mantinham uma distância, até mesmo física, dos objetos que criavam. O idealismo
cartesiano de separação eu-mundo aparece como um exemplo definitivo dessa postura
mental. Hoje, a partir das biotecnologias, com a produção de próteses internas, produção
laboratorial de órgãos, tratamentos genéticos de doenças, retardamento do envelhecimento,
torna-se necessário pensar de outro modo. O dualismo artificial/natural, tão decisivo em
padrões de orientação cartesiana, torna-se sem sentido hoje. Como estamos falando de uma
incorporação de elementos com grau de rejeição zero ou muito próximo a zero pelo
organismo (se um fígado for reconstruído “artificialmente” a partir da célula-tronco de um
indivíduo, ele será o “mesmo” fígado novamente). O que seria pensado em parâmetros
anteriores como artifício, simplesmente se indiferencia harmoniosamente nos corpos,
tornando-se natural. Nessa perspectiva particular da intervenção genética, diz Dominique
Lecourt: “As pesquisas sobre célula-tronco [células anteriores à especialização funcional
orgânica, ou seja, capazes de produzir qualquer novo órgão do corpo], aplicando a técnica
de clonagem aos primeiros estágios da divisão celular do óvulo fecundado, prometem a
chegada de uma medicina dita regenerativa (...)”. Com isso, “(...) anuncia-se também assim
a era dos transplantes humanos sem risco de rejeição.” (LECOURT, 2005, p. 26). Esse
processo de perfeita aderência ao corpo também pode ser externo. As malhas de piscina,
inspiradas em peles de tubarão, que diminuem muito o atrito dos nadadores com a água e os
faz flutuar mais, é um exemplo patente disso. Interessante é que Simondon nos
condições de pensar esses problemas contemporâneos sem ter tido a oportunidade de
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conviver diretamente com eles. Isso, a nosso ver, o coloca em um patamar visionário, típico
dos grandes filósofos, sendo um produtor extemporâneo de conceitos que “aponta flechas
para o futuro”, como diz Nietzsche.
Contradição e paradoxo no amor e na vida
A oposição de forças, inerente aos processos de diferenciação, está ligada
conceitualmente a paradoxos, não a contradições. Esses dois substantivos, que no uso
cotidiano e nos dicionários têm o mesmo significado, divergem nas teorias de Simondon,
mais uma vez inspiradas na física contemporânea. Falemos um pouco mais sobre isso.
A contradição quer estabelecer separações definitivas, lados opostos apartados, com
termos isolados ou até mesmo inconciliáveis, como seria o caso das manifestações de
preconceito racial, entre brancos e negros, neonazistas e homossexuais, ou religiosa, entre
judeus e muçulmanos, xiitas e sunitas etc. Por sua vez, o paradoxo nos fala de uma dupla e
simultânea influência e fusão de opostos. Os aspectos díspares estão integralmente
presentes, mesmo considerando sempre que apenas um possa se expressar, ganhar
visibilidade. O que acontece é que um se atualiza enquanto o outro permanece virtual, o
que não indica de modo algum uma fraqueza da virtualidade, como legitima em geral o
senso comum. Quando pensamos no mundo dos computadores, fica claro que virtual é
entendido como uma condição apagada, distante e menor em relação ao atual que assume
na linguagem cotidiana a mesma significação de real.
A ação que se realiza é a de baixar um arquivo da Internet ou do correio eletrônico.
Se no momento anterior, ainda na virtualidade, ele é abstrato, longínquo, conquista
realidade plena a partir do instante em que se torna palpável, manipulável no presente por
mim. Isso nos faz lembrar imediatamente a dupla conceitual Ato/Potência de Aristóteles,
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segundo a qual o que é importante é o que se finaliza em ato, o que se atualiza, o que deixa
de ser apenas capacidade e se realiza de modo efetivo. Por mais distante que possa parecer
inicialmente, existe uma sutil conexão entre o universo da informática e as idéias
aristotélicas. Atual e virtual são pensados então em termos de contradição. Se formos
estabelecer uma relação de importância, em um aspecto mais amplo, que levaria em conta o
conjunto de todos os pares de opostos, iremos ver que a riqueza está no virtual, que
aquilo que chega a se materializar pode ser visto, em outro ângulo, como apenas uma das
faces do virtual. É que aportamos no paradoxo. As realidades em oposição são
contemporâneas. Uma aparece e a outra permanece oculta, mas presente. Existe ainda uma
interdependência dos dois componentes. Aqui um não vive sem o outro, um se explica pelo
outro e as posições do que é atual e virtual podem se inverter em caráter imediato,
justamente pela radical distância e permanente presença de ambos. Que tempo é necessário
para se ir do amor ao ódio? Além de nenhum, uma decepção potencializará o último na
proporção da intensidade do primeiro.
Um dos pontos marcantes das relações afetivas do mundo contemporâneo é que as
pessoas, como aponta Bauman, apesar da sua imensa necessidade de escapar da solidão,
para se salvaguardar do sofrimento, estão estabelecendo vínculos cada vez mais
diversificados e fugazes, ou seja, frágeis. O que se deseja é a mais alta intensidade sem
qualquer intimidade. O envolvimento não pode ser adiado, pois esse é um sacrifício
inaceitável em nossa sociedade contemporânea, mas não pode trazer consigo compromissos
futuros. O domínio racional da situação não pode ser perdido, pois o risco e a chance de
frustração passam a ser incalculáveis. Parte-se do princípio ilusório que podemos controlar,
no campo afetivo, os acontecimentos futuros ou que a experiência traria o conhecimento. A
suposta solução passa por reduções da carga emotiva. Menos possibilidade de ódio e,
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conseqüentemente, menos de amor, para dizer em outras palavras, menos vida. A intenção
é tirar do amor o seu coeficiente de incerteza e adotar o princípio do cálculo e do
investimento econômico para avaliar as relações. Com isso, a palavra perde a grandeza do
seu significado: “Noites avulsas de sexo são referidas pelo codinome „fazer amor‟.”
(BAUMAN, 2004, p. 19). Pessoas são colocadas no mesmo nível dos objetos: “Você pede
menos, aceita menos e, assim, a hipoteca a resgatar fica menor.” (idem, p. 46).
Tenta-se de toda maneira evitar os aspectos paradoxais, a luta diária e a ausência de
sossego inerentes ao próprio vínculo emocional. É o que autor chama de amor líquido. De
acordo com a ótica afetiva dos nossos dias: “(...) é possível buscar „relacionamentos de
bolso‟, do tipo de que „se pode dispor quando necessário‟ e depois tornar a guardar (...) No
todo, o que aprendem é que o compromisso, em particular o compromisso a longo prazo, é
a maior armadilha a ser evitada no esforço por ´relacionar-se`.” (idem, p. 10). A idéia é
manter-se sóbrio”, como diz Bauman. Nada de amor à primeira vista ou arroubos
apaixonados, mas a disponibilidade de quem está prestes a abandonar o barco se a parceria
deixa de ser conveniente. Para muitas pessoas em nossos dias, é justamente no instante em
que suas relações vão tomando bases sólidas que é chegada a hora de encerrá-las, que
junto com o sentimento mais profundo vem também uma incômoda responsabilização pelo
outro, a possibilidade maior de sofrimento e o conseqüente perigo da perda da liberdade.
Pensa-se em evitar as altas cargas energéticas amorosas para evitar riscos de decepção.
É assim que caminha a tendência individualista de nossos dias. Na liquidez
contemporânea tudo é ligado a uma satisfação rápida, instantânea, pois o que é de curta
duração é facilmente descartável. As pessoas viram mercadorias e a gica do consumo
toma conta de todas as áreas da existência. Viramos aquilo que Bauman chamará de homo
consumens: “É assim que numa cultura consumista como a nossa (...) favorece o produto
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pronto para uso imediato, o prazer passageiro, a satisfação instantânea, resultados que não
exijam esforços, receitas testadas, garantias de seguro total e devolução do dinheiro.”
(idem, p. 21). É nessa tentativa, no caso contraditória, de controlar o incontrolável e de
fugir desesperadamente da solidão e das emoções fortes ao mesmo tempo, que erguemos
trincheiras na vã esperança de viver melhor. Vida e risco estão atavicamente ligados. Eros e
Tanatos continuarão a ser opostos complementares, gêmeos siameses. Os radicalismos da
escravização de si ou de possessão do outro estão sempre à espreita para se manifestar. Mas
se a saudável luta por saúde da relação for mantida, temos uma ética amorosa em que um
cuida do outro.
Falemos mais do paradoxo. Nossa fonte primária são os gregos. Quando pensamos
na medicina grega clássica de Hipócrates, essa questão do conflito dos opostos ressurge de
modo intenso. Essa é, entre muitas outras, mais uma herança deixada pelo pensamento
oriental na filosofia grega nascente. Na idéia grega da saúde, originária dos chineses, somos
regulados por quatro forças divididas duas a duas, quente e frio de um lado, seco e úmido
do outro. É um choque de forças, onde o combate permanente e a participação integral das
duas em oposição é condição primária para a manutenção do equilíbrio orgânico. Caímos
doentes, inclusive no amor, quando uma delas excede ou tem relaxada a sua condição
natural, pois nesse instante o par passa a estar em uma condição de desequilíbrio. Houve
um afrouxamento e a luta entre as duplas perdeu seu status de potências iguais e opostas. O
mesmo princípio de tensão que definia a divisão de poderes entre os cidadãos na pólis (só
democracia se houver igualdade e rivalidade) valia para a interioridade do corpo. É
muito curiosa essa constante associação grega entre as estruturas do corpo e da cidade,
como se as mesmas leis regulassem um e outro e como se o indivíduo fosse constituído
organicamente pela sua terra natal. O político e o biológico eram inseparáveis. Lembremos
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que na divisão funcional e hierárquica que Platão realiza em “A República”, ele liga o
artesão ao baixo ventre, o guerreiro ao tronco forte e corajoso e a cabeça ao filósofo-rei.
Podemos também entender melhor, a partir daí, porque cada grego é visto muito mais como
filho de uma cidade do que de um pai e uma mãe e também o fato de o exílio ser tomado
como uma das mais terríveis infâmias a que se pode submeter um condenado, algo que é
facilmente visível nas figuras de Édipo e Sócrates.
Voltando à questão da doença como cessação provisória de um conflito (a definitiva
é a morte do organismo, visão muito próxima a de Simondon, quando se refere ao fim da
metaestabilidade), a febre, por exemplo, seria uma vitória temporária do quente sobre o
frio. A cura será conquistada quando o corpo conseguir restabelecer o equilíbrio,
(metaestável) como uma lei de compensações, um retorno à justa medida, muito próprio do
pensamento grego clássico desde o Cosmos pré-socrático até a ética aristotélica. Esse
conceito aparece em facetas tão diferentes quanto a noção de justiça de Anaximandro e a
visão médica de Álcmeon: “Álcmeon de Crotona, que também pertencia ao círculo
pitagórico, ao definir o binômio saúde-doença, referiu-se a potências (dynamis) opostas que
misturadas de forma equilibrada no interior do corpo humano, conferem a este o estado de
saúde.” (FRIAS, 2005, p. 25). Em linguagem científica contemporânea, que se remete à
teoria cibernética, o que temos são novas informações introjetadas no sistema, no caso o
corpo, que o reorganizam e restabelecem o equilíbrio, a condição sã.
Esse problema da tensão e do paradoxo nos remete mais uma vez à Grécia, ao
lembrarmos do conceito de harmonia de contrários de Heráclito. Poderíamos enumerar,
inspirados nele, alguns pares capitais, como a fome e a saciedade, a guerra e a paz, o doce e
o amargo, a vida e a morte e, como vimos, a saúde e a doença. A manutenção do Cosmos
depende dessa alternância de princípios, que se revela no conceito de devir do pensador
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pré-socrático. Este pode ser definido brevissimamente como transformação incessante de
todas as coisas. Diz ele em seu fragmento 51: “Estes [os ignorantes] não compreendem
que o diferente concorda com ele mesmo: harmonia de contrários, como a harmonia do
arco e da lira. Esse conceito costuma ser simbolizado com a famosa metáfora do rio,
atribuída ao pensador pré-socrático, que diz que não se pode mergulhar duas vezes no
mesmo rio, pois, no segundo mergulho, nem as águas nem quem mergulha serão os
mesmos. Isso nos leva à idéia de que os atributos estão a todo tempo transmutando-se em
seus contrários, sendo essas inúmeras passagens justamente a garantia da permanência. Não
por acaso é concedida também a ele a autoria da frase “A guerra é o pai de todas as coisas”,
sendo a única explicação para a permanente criação na natureza, esse combate que nunca
finda. saída do equilíbrio ou desarmonia quando a disputa acaba, quando cessa a
realimentação. É a falência do sistema. Heráclito e Simondon estão unidos ao afirmar,
paradoxalmente, que o único aspecto imutável no Cosmos é a mudança. O próprio pensador
francês anuncia o ponto de vinculação no entendimento da vida: “(...) devemos lembrar que
os pré-socráticos conceberam a complementaridade de uma maneira diferente, como dupla
de contrários, nascimento e morte, descida e subida, caminho para o alto e caminho para
baixo. Para eles, a morte de um ser é condição do nascimento de outro (...)” (SIMONDON,
2005b, p. 503).
Toda essa problemática trazida pelos pré-socráticos nos fornece elementos que
alimentam a reflexão de Simondon sobre o indivíduo biológico e também no que se refere
a ele em sua interação com as máquinas. Quando nosso pensador substitui o princípio de
individuação pela operação de individuação, ou seja, troca o estável pelo móvel, temos um
processo genético, em que permanentes reelaborações vão sendo promovidas nos e pelos
indivíduos. Enquanto vida, alteração. Daí torna-se possível falar em ontogênese, ou
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seja, o devir ligado ao ser e o ser ligado ao devir. Ao contrário de Aristóteles, a realidade
potencial, ligada aqui à individuação, é tremendamente ampla e rica em possibilidades que
apontam o futuro ao passo que o puro e simples estado atual do indivíduo é uma abstração,
pois concentra-no no presente e em uma condição hipotética de acabamento e paralisação,
que não chega a acontecer se vida, que as potencialidades virtuais estão
permanentemente abastecendo e enriquecendo esse suposto aqui e agora.
O indivíduo não é algo dado desde o início. Não essencialidade a realizar. Ele
está em constituição (através de múltiplas individuações) ao longo de toda a existência. O
que alguns autores, como Bergson e Pierre Levy, nomeiam como virtual, Simondon
chamará de pré-individual ou potencial. É isso que faz com que seres vivos sejam por toda
a vida não apenas produto da individuação, mas “teatro” de individuação. O pré-individual
é a fonte irradiadora. Todos temos uma reserva de devir, potenciais a desenvolver: o que
chegamos a ser ou fazer é uma pequeníssima parte do que podemos chegar a ser ou fazer.
Acontece um grande alargamento do sentido de ontologia. Será substituída a noção de ser
enquanto um, indivíduo fechado em si mesmo de raiz aristotélica, pela de ser enquanto ser,
a soma do indivíduo atual mais a porção pré-individual que o compõe.
A visão de Aristóteles de potencialidade é bem diferente dessa. Para ele, por
exemplo, quando somos crianças temos apenas a potência de ser racionais, pois àquela
altura somos apenas adultos em potencial, sendo mais instinto que inteligência. Em suma, o
que temos são homens inacabados. Se tudo correr bem, o que é seexatamente igual ao
que estava definido de modo latente desde o início. No mundo aristotélico, o que se
espera é que não haja surpresas. Isso é o que significa a realização da Forma. Não se leva
em conta o valor intrínseco do presente, mas o seu resultado definido previamente a partir
de experiências passadas que se repetem. É isso que faz Aristóteles ver o passar do tempo
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como uma possível perda, já que seria a instância proporcionadora do imprevisto, do
acidental, da casualidade, ou seja, de tudo aquilo que pode desviar o indivíduo da sua
tendência intrínseca, natural, essencial. O avanço temporal, muitas vezes nomeado por ele
como corrupção, pode apenas atrapalhar os planos. O futuro não pode ser criador, apenas
desarticulador.
Assim, não é por acaso que, para Aristotéles, é no tempo e no seu parceiro de todas
as horas, o movimento, que são produzidos os aspectos irrelevantes dos indivíduos, os
acidentes, as idiossincrasias, ou seja, o que deve ser descartado no caminho de conhecer
algo cientificamente. De acordo com a conceituação aristotélica tudo o que é particular aos
indivíduos não está na ordem da necessidade, ou seja, pode ser diferente do que é, estando
em claro descompasso com o que é verdadeiro. Isso explica a sua menor importância. É
acidental aquilo que não é essencial, ou seja, aquilo que não caracterizaria o homem como
homem, o tigre como tigre.
Indivíduo e meio associado
É essa estrutura de pensamento que Simondon inverte. De acordo com ele, o futuro
do indivíduo é imponderável, que virtual. Ao contrário da concepção negativa de
Aristóteles, aqui o tempo é positivo, construtor de realidades impassíveis de previsão.
Como não ponto de chegada, forma a ser realizada ou essência a ser atingida, o porvir
chega como soma, não como possível diminuição, despotencialização. O ato construtivo é
da própria relação. A individuação se em uma íntima associação do indivíduo com o
meio, os dois se unindo para resolver uma situação, um problema que se manifesta. Para
sermos mais fiéis ao autor, o conceito nomeado por Simondon para essa união dentro/fora é
meio associado. De acordo com esse conceito, não se poderia imaginar, por exemplo, a
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criação de um objeto sem levar em conta o entorno cultural a que ele pertence e o grande
número de criadores que possui. É assim que podemos pensar que o corpo e o modo de ser
de um mineiro produz a mina e é produzido por ela. Mineiro e mina compõem um
conjunto, um sistema. É nesse sentido que o resultado, sempre provisório, da
individuação não tem nada de acidental, mas ao contrário é de uma precisão absoluta.
Cada nova individuação é a solução sob medida de um desafio que vale para
aquele caso. Por isso o resultado da soma indivíduo/meio não é imprevisível, como
também não tem nada de casual e produz inclusive associações entre natureza e técnica: “O
meio associado é mediador da relação entre os elementos técnicos fabricados e os
elementos naturais no seio dos quais funciona o ser técnico.” (SIMONDON, 1989, p. 57).
O meio não existe portanto nem antes nem depois do objeto, mas é contemporâneo a ele.
Também não é superior ou inferior ao indivíduo, mas se equipara, se funde com ele. O
homem cria o meio e ao mesmo tempo é condicionado por ele. Nesse regime produtivo do
tempo e desprovido dos vícios hierárquicos e deterministas entre o que está dentro ou fora,
Simondon vai dizer que as soluções vêm do que ele chama de causalidade recorrente ou
recíproca. Existe nesse posicionamento a superação da visão tradicional de que ou bem o
mundo se adapta a nós ou nós a ele. O que temos é uma composição em que aquilo que
aparece é fruto de uma união singular e indistinguível entre ser, vivo ou técnico, e mundo.
De acordo com o filósofo francês, jamais um ou outro estão integralmente dados.
Ambos são providos de cargas pré-individuais, ou seja, são multiplicidades virtuais que se
reúnem simultânea e permanentemente produzindo atualizações sempre inesperadas.
Indivíduo e meio estruturam-se ao mesmo tempo. A soma de ambos é o que nosso autor
nomeará como ser. Ao ouvirmos da parte de geneticistas que todas as nossas células, à
exceção das neuronais, se renovam em um período de cinco anos, podemos conceber que
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nos tornamos outra pessoa no sentido propriamente biológico durante esse intervalo. Se é
assim no que diz respeito ao plano estritamente corporal, o que não será possível conceber
de diferenciação no campo mental, psíquico, espiritual? Mas existe um tipo de individuação
anterior e mais radical que essa: a que ocorre na ordem física. Será essa a nossa passagem
necessária para que se possa fazer a ligação entre mundo físico, vida e técnica.
A individuação física e a abertura para a técnica
Quando fala da fabricação de tijolos, paradigma para a individuação no plano físico,
Simondon indica que a a sua completa solidificação é mantida uma presença pré-
individual, muito limitada, mas real, que se encerra definitivamente quando o processo
de modelagem termina e temos um tijolo pronto, formatado e seco. Isso significa que
podemos considerar que exista um componente de virtualidade, logicamente restrito e
breve, até mesmo em corpos chamados brutos. Uma operação de individuação curta, mas
real, tem lugar aos momentos que antecedem a constituição de um indivíduo pronto.
Até o seu enrijecimento completo, a argila não é passivamente indeterminada e
inerte, ou seja, morta - visão da matéria em uma tradição antiga (aristotélica) e moderna/
mecanicista de pensamento (cartesiana e galileliana) - mas ativamente plástica. Antes da
estruturação última são mantidas possibilidades diversas de atualização. O conteúdo não é,
ou ainda não é, escravo definitivo da formatação e o que existe provisoriamente é uma
disputa do molde com uma materialidade ainda fluida. Desse encontro ou confronto sairá o
aspecto final a ser possuído pelo tijolo. O caminho vai da modelagem, onde se presencia
um movimento e um inacabamento (vestígios de vitalidade), à moldagem, que é quando se
atinge a forma final e rígida. Essa riqueza pré-individual, presente antes da conclusão do
processo, torna inadequada a idéia aristotélica de que a forma comanda solitariamente o
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processo de constituição dos indivíduos. O papel do molde é delimitar, conter os avanços
hipoteticamente irrestritos que a matéria pode alcançar.
Simondon argumenta que a parte positiva do processo vem da materialidade. Por
duas razões: a primeira é porque ela traz em si condições intrínsecas naturais para a
composição de certos formatos, deixando-se modelar em determinados níveis, e a outra é
em função de haver uma transmissão energética que se dá entre o trabalhador e o seu objeto
de trabalho. A matéria será, por isso, o vetor de energia e abriga em si as possibilidades de
conquistar uma forma dada. Exemplifiquemos com o mesmo tijolo. A qualidade da terra e o
cuidado do artesão na preparação dos elementos, que farão parte desse objeto, são pontos
essenciais para se atingir um padrão final adequado: seco, sem rachaduras e sem
pulverização. Inversamente, quem preparou o molde não perdeu de vista em momento
algum o processo de fabricação que se dará neste espaço. Suas intenções e sua memória
estão incluídas na preparação dessa estrutura. Pode-se ter a impressão de que o molde
exerceria nesse contexto um papel de pura negatividade. Porém, temos que lembrar que
sem uma canalização de energia não é possível constituir um sistema, ou seja, existir um
indivíduo. Quando falamos de existências, seja em dimensões vivas ou técnicas, um
convívio necessário do caos com a ordem. Divergindo mais uma vez de Aristóteles,
Simondon nos diz que matéria e forma são inseparáveis, uma está inserida na outra, tanto
na natureza quanto na elaboração humana.
Duas operações técnicas se deram antes, as que produziram a argila e o molde
separadamente, antes de ambos se unirem. São realidades heterogêneas que, juntas,
produzem uma realidade intermediária. Esse encontro será definido, por nosso autor, como
comunicação interativa. É óbvio que no momento em que a solidificação se conclui,
passamos a ter uma dimensão física que cessou terminantemente de se alterar. Esse é o
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momento em que as forças de ação da argila e de reação do molde são iguais e em vias
opostas. Alcança-se um equilíbrio estável que, como vimos, é sinônimo de morte. A
condição líquida do barro é o que lhe condições de prosseguir as individuações. O tijolo,
agora desprovido de fluidez, é semelhante a uma pedra, ou seja, algo que perdeu por
completo a capacidade de seguir se transformando, é uma singularidade parasita.
A solidez equivale a um encerramento do futuro, ou pelo menos de um futuro que
detenha algum grau de imprevisibilidade. Não é à toa que podemos estabelecer uma
relação, não metafórica, do envelhecimento com um enrijecimento, com uma oxidação,
ou seja, com uma solidificação. A capacidade de refazer-se, manter-se jovem, própria do
que é vivo, que os biólogos chamam neotenia, está ligada a uma condição de mobilidade
típica do que é fluido. A distinção entre o vivo e o não-vivo é marcada pela diferença entre
modular-se e moldar-se: “Moldar é modular de maneira definitiva, modular é moldar de
maneira contínua e perfeitamente variável.” (SIMONDON, 2005b, p. 47). Se em um tijolo,
a operação se dá de uma só vez e em um nível espacial, no vivo o movimento de
reconstrução é seqüenciado, temporal, onde uma ação realizada é princípio de outra ação a
se realizar. Podemos dizer, então, que um ser vivo, ao morrer, atingiria uma espacialização
e, tal como um tijolo, a sua moldagem derradeira, a sua petrificação. Na medida em que a
rigidez é atingida, temos um indivíduo acabado. Podemos dizer que morremos de um
excesso de eu, de uma individualização extrema e isoladora. Esse é o momento em que
novas individuações não são mais viáveis. As potencialidades acabaram. Atingiu-se a
homeostase ou falência energética. As únicas alterações futuras serão negativas, ligadas a
desgaste, desestruturação e decomposição. Independentemente disso, pensar esse processo
na via da individuação, ou seja, da valorização da diferença, é pensar que não existem dois
tijolos estritamente iguais. A relação entre o molde e a argila será única em cada
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composição individual e não se repete jamais. A metáfora do rio de Heráclito vale até
mesmo para o universo de elaboração dos tijolos.
A partir dessas noções, abre-se a perspectiva para se refletir sobre o aspecto pré-
individual presente nas invenções humanas. É essa participação, inclusive, que garante um
permanentemente abastecimento de pré-individualidade no âmbito dos objetos técnicos. A
modulação, presente apenas por alguns instantes nos objetos físicos, pode ser constante se a
criatividade humana continuar se aplicando em regime coletivo a eles. uma vitalidade
que ultrapassa os homens e atinge suas criações. Como estamos falando de energia e troca
de informações e não de substâncias ou termos, temos a possibilidade de pensar em
transmissão, contágio entre um corpo e outro. Existe para o nosso pensador, tal como se
entende para os seres vivos, em particular desde Darwin, uma continuidade histórica, uma
linhagem evolutiva própria de um certo conjunto de inventos técnicos. Simondon, ao
separar os objetos de sua pura e simples função mecânica, ou seja, do seu isolamento
inorgânico, aponta sua possibilidade evolutiva, filogenética e hereditária. São compostas
relações familiares, porém pouco comportadas. Como diz Yves Deforge: “Os objetos
técnicos (e não os mecanismos) constituem famílias cuja característica é de ter a mesma
função (servir a mesma coisa), mas as famílias são disparatadas, porque o mesmo efeito
pode ser obtido por meios muito diferentes. (DEFORGE, apud CHATELÊT, 1994, pp.
180-1). Com um raciocínio muito particular, Simondon transfere a noção ontogenética,
normalmente limitada apenas às conceituações biológicas, para a dimensão dos objetos
técnicos. São seres com toda a complexidade inerente a eles. Uma máquina, para ser
compreendida, necessita da integração de vários campos de saber distintos. Uma estrada
(classificada como máquina, a exemplo de uma ponte), para ser efetivamente conhecida,
exige informações em engenharia, geografia, ecologia, história, física, meteorologia etc.
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Em Simondon os objetos ganham a espessura de indivíduos, são entidades temporais que
têm ancestralidade, presença atual e posteridade.
Essa interdisciplinaridade talvez seja fruto de uma forte influência da cibernética e
da teoria da informação sobre sua obra. Esse problema será examinado mais tarde. A
cibernética e a teoria da informação lançam suas teias de noções para campos o distintos
quanto a física, a economia, a comunicação, a biologia e o processo de cognição. A ciência
no século XX passou a lidar com situações de complexidade tal que a clássica tradição de
ligação linear entre causa e efeito não dava mais conta. Nesse novo contexto, temos para
um mesmo efeito a incidência simultânea de várias causas. Mas o começo dessa orientação
de pensamento na física, de acordo com o pai da cibernética, Norbert Wiener, foi com
Gibbs e a entropia termodinâmica. Foi a partir daí que a certeza newtoniana de que
verdades definitivas possam ser conquistadas no mundo físico sofreu grandes abalos. Algo
de “irracional”, probabilístico e casual, que chegara à biologia com Darwin, acabou se
incorporando ao mundo físico. Idéias como contingência, caos, estatística e
irreversibilidade, impensáveis na ciência moderna clássica, alcançaram essa área e lhe
deram um aspecto de incerteza que ela negara.
Diz Wiener sobre esse novo momento em que os físicos incorporam noções
estatísticas: “Os novos estatistas (...) rejeitaram a suposição de que sistemas com a mesma
energia total pudessem ser distinguidos com nitidez, indefinidamente, e descritos para
sempre a partir das mesmas leis causais.” (WIENER, 1990, p. 10). As soluções dadas
tornaram-se mais humildes, pois não são mais universais, mas apenas prováveis e válidas
para um certo grupo específico de situações. A física deixa de cuidar do que irá sempre
acontecer para ter atenção ao que acontecerá com esmagadora probabilidade. Não se fala de
um mundo compacto, absoluto, simétrico, puro, homogêneo e com leis eternas, como o de
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Newton, mas de acontecimentos similares e comparáveis, todos sujeitos a uma direção
privilegiada de um tempo que não retorna. Na realização de um trabalho, uma parte da
energia acaba sendo revertida em calor e é isso que a física termodinâmica vai querer
calcular. Saindo dos us ideais teóricos de um tempo absoluto e reversível de Newton e
convivendo com os fenômenos e a temporalidade de mão única do passado para o futuro, a
ciência física torna-se histórica, passando a haver um papel humano na sua elaboração.
Ciência, cultura e sociedade ganham uma aproximação. Prigogine resume esse novo
entendimento que coloca tudo que na natureza em deriva: “A existência de uma flecha
do tempo comum aos sistemas físicos e aos homens talvez seja o fato que melhor exprime a
unidade do Universo.” (PASTERNAK, 1992, p. 43).
O caminho da cibernética foi seqüenciado ao da termodinâmica e tinha pontos
comuns com a termodinâmica, como, por exemplo, a ausência de certezas finais na
natureza. Ambas também concordam que o equilíbrio, tão valorizado no passado científico
recente, significa agora inexistência do ser. Houve também, por parte da cibernética, uma
ampliação do entendimento dos indivíduos como sistema, no qual cada componente deve
interferir diretamente no bom funcionamento de outro. Daí vem a noção de rede e a
possibilidade de integração, na teoria e na prática, de várias máquinas. Outro grande ganho
foi na interdisciplinaridade. a interpenetração de vários saberes pode oferecer soluções
compatíveis com os problemas que a ciência e a sociedade contemporânea se colocam. A
amplitude é enorme. Possuindo o mérito (que depois veremos que também pode ser
demérito) de não fazer distinções entre estruturas vivas e não-vivas, lida com situações tão
díspares quanto a avaliação de redes neuronais, o controle da trajetória dos satélites, a
previsão de safras agrícolas, a ecologia das populações, os mecanismos de aprendizagem
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etc. Se lembrarmos da generalizada informatização de todas as áreas do mundo
contemporâneo, teremos idéia da relevância da sua fonte, que é a cibernética.
O resultado geral, trazido por essas duas novas ciências, foi, na linha da tradição
humanista e enciclopedista, desfazer uma suposta separação definitiva entre os campos de
saber. Os grandes problemas que atingiram o século XX, a ecologia seria um exemplo, não
têm soluções possíveis sem uma grande colaboração envolvendo cruzamentos
interdisciplinares. Veremos agora de um modo mais cuidadoso as conceituações que
Simondon toma emprestado da termodinâmica e o que ele retira da cibernética e da teoria
da informação, o que gera a sua tendência de interpretação do mundo físico e vivo.
Esperamos demonstrar também, com outros detalhes, as diferenças fundamentais entre a
termodinâmica e a cibernética, já que o nosso autor toma emprestado conceitos das duas.
Entropia e teoria da informação
Na tentativa de fugir dos binômios animado/inanimado, natural/artificial, Simondon
recorre a noções da cibernética. Ele reconhece nessa ciência o grande mérito de deixar de
lado as separações radicais entre esses mundos. É certo que essa linha de pensamento
tendeu muitas vezes, até pelas suas inovações, a um reducionismo mecanicista e a um
automatismo exagerado. Nosso autor fará uma seleção conceitual e permanecerá com o que
ele considera mais inventivo nessa ciência para continuar refletindo sobre suas próprias
questões. Uma assimilação que se revelará como fundamental é a noção de feedback, a
retroalimentação de informações que reabastece e repotencializa um sistema, como que
rejuvenescendo-o, sempre em acordo com o ambiente externo. Wiener a define assim: “(...)
capacidade de ajustar a conduta futura em função do desempenho pretérito.” (WIENER,
1990, p. 33).
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Um aspecto importante ligado a essa idéia é a versatilidade. Ela nos ajuda a pensar o
que se passa nos e entre os corpos vivos e também as relações homem/máquina e até
máquina/máquina. O problema é que, diversamente de Simondon, Wiener desconsidera um
comando humano das relações e promove uma analogia plena do mundo humano e
maquínico, onde sinapses e os dispositivos comutadores se equivalem. O que ele visualiza,
de modo excessivo para Simondon, é uma atitude de livre escolha da máquina automática
pela presença da memória: “Tanto na máquina quanto no nervo um dispositivo
específico para fazer com que as decisões futuras dependam das passadas.” (idem, p. 34).
Simondon acredita na existência de duas memórias bem distintas quando falamos de
homens e autômatos. O que Wiener faz, de acordo com o nosso filósofo francês, é
superpor, sem critério, capacidades heterogêneas. As máquinas são capazes de absorver
gigantescas quantidades de informação, mas de modo desordenado e desconectado
(lembremos que nossos arquivos no computador não se comunicam a partir de si mesmos).
Por sua vez, nossas lembranças são seletivas, organizadas e interligadas, pois a
característica marcante do vivo é o passado se integrar ao presente e projetar-se sobre o
futuro. É que estabelece uma diferença de natureza e não de grau entre o nervo e o
dispositivo maquinal.
Nosso pensador aponta essa intensa heterogeneidade e anuncia, naquele
momento, uma dificuldade que se presencia até hoje e talvez se presencie em todas as
épocas: a impossibilidade de ação espontânea em máquinas. Um exemplo são as traduções
automáticas realizadas por computadores, em particular de poesia. Por serem ao -da-letra
e insensíveis às delicadezas de significado de cada palavra, muitas vezes degeneram
totalmente o sentido original. A proposta simondoniana não é de isolar ou unir radicalmente
homens e máquinas, mas de harmonizar as peculiaridades, afirmando que uma operação
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técnica complexa necessita de ambas. Caminhando na contra mão dos partidários do
automatismo cibernético, diz que as máquinas mais avançadas aquelas que apresentam
auto-regulação e pertencem a conjuntos técnicos (diversas máquinas ligadas e
interdependentes umas às outras) são justamente as que mais precisam da participação
humana. Esses entusiastas tecnológicos teriam esquecido que essas alternativas amplas de
operação foram humanamente infundidas e que, por si, as máquinas tendem ao isolamento.
Cabe aos homens a responsabilidade de perceber as possibilidades de ligação entre os
diversos indivíduos técnicos, colocando-os em comunicação. Simondon resume esse
posicionamento: “É o homem que conhece os esquemas internos de funcionamento e os
organiza entre si. As máquinas, ao contrário, ignoram as soluções gerais, não podem
resolver problemas gerais.” (SIMONDON, 1989, p. 126). Mas, mesmo com todas as
divergências de pensamento, Simondon concorda com o ponto central da teoria cibernética:
o processo de reassimilação de intervenções externas oferece saídas organizativas, mesmo
que sejam inevitavelmente temporárias, à entropia, o que vale para o vivo e para o não-
vivo.
Esse último conceito merece mais algumas palavras. Conhecida como segunda lei
da termodinâmica e significando evolução em grego, o princípio entrópico indica que uma
desconstituição inexorável e um desaquecimento progressivo transformam sistemas
isolados organizados em desorganizados em regime contínuo e crescente. A orientação
determinista é que a desordem tome o lugar da ordem com o passar do tempo. Em termos
de cálculos na física, a entropia, que sempre aumenta, é a medida numérica dessa
desordenação, da dissipação calorífica. O que se pretende é precisar o coeficiente de
desperdício de energia, o resíduo térmico que não chega a se transformar em trabalho
mecânico. O processo de resfriamento universal, que corpos aquecidos estão sempre
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transmitindo calor aos menos aquecidos, leva a situações caóticas insustentáveis e
irreversíveis, o chamado horizonte entrópico, ou seja, à morte energética. Isabelle Stengers
diz sobre os princípios gerais da entropia: “(...) é a „perda‟, então, que deve tornar-se o
sujeito principal dessa experiência porque é em termos de perda que o ciclo ideal define os
processos naturais (...) toda transformação energética resulta em uma dissipação sem
retorno de energia [grifo da autora].” (STENGERS, 1997, p. 56). Lembremos que esse
paradigma físico será pensado em outros modelos de individuação para Simondon.
Apesar de ajudar Simondon a pensar, trazendo também vários conceitos importantes
que serão retrabalhados em sua filosofia (potencial energético, metaestabilidade etc.), não
podemos esquecer que a visão entrópica de desgaste irreversível estará em desacordo com a
orientação filosófica, intimamente ligada ao devir, do nosso autor. uma espécie de
resignação presente nessa idéia, um tempo negativo que tudo deteriora e conduz a um
fatalismo com o avanço das horas. Pensar que a dimensão temporal não possa ser
construtiva e criadora, mas apenas destrutiva, é um total absurdo para Simondon. É óbvio
que todos os elementos individuais que compõem o universo vão se desfazer. Mas a
natureza, em seu conjunto, permanece em suas diversificações exuberantes e soluções
surpreendentes. Pois, se não dúvida de que o fim chegará para todos os corpos, existem
sempre reversões locais e provisórias. Essa especificidade o próprio Wiener percebeu na
vida e em sua continuidade mas, reside o problema, transportava o mesmo raciocínio às
máquinas: “Todavia enquanto o universo como um todo (...) tende a deteriorar-se, existem
enclaves locais cuja direção parece ser o oposto a do universo em geral e nos quais uma
tendência limitada e temporária ao crescimento da organização. A vida encontra seu habitat
em alguns desses enclaves.” (WIENER, 1990, p. 14). Esse aspecto reversível da entropia
tornou-se conhecido como negentropia. Vem daí a escolha de Simondon por se aproximar
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de certas conceituações cibernéticas, como as idéias de feedback e informação, pois elas
possibilitam pensar essas reorganizações momentâneas que retiram os sistemas individuais
de um isolamento que seria mortal para eles.
Um outro ponto importante para distinguir a termodinâmica e a cibernética é
perceber claramente que elas pertencem a momentos históricos divergentes. A primeira
cuida do controle de perdas de energia em estruturas mecânicas, preocupações ligadas ao
que é próprio do período posterior à Revolução Industrial. Esse é um marco temporal que
Simondon considera decisivo, pois anuncia uma fase de liberação humana, já que determina
a transferência do homem como força mecânica para a máquina. Sai da condição de
“máquina” para a de condutor da máquina. Os símbolos do período, o carvão e o trem,
ligam-se diretamente a estruturas mecânicas do mundo termodinâmico e que transmutavam
energia térmica em trabalho. Sua importância é manifesta até na literatura do século XIX,
quando eles conquistam o estatuto de protagonistas em romances, como Germinal e A
besta humana, de Émile Zola. a teoria da informação nasce para dar conta de
circunstâncias surgidas no decorrer do século XX. Seu paradigma é outro. Sua esfera de
atuação é a dos sistemas de comunicação e seu foco mais direto é a qualidade do envio e
recepção de sinais e sua compreensão. Para explicitar a diferença: “Em nosso século [XX],
porém, surgiram outros engenhos onde esta medida de rendimento [energético] é
insignificante (...) Quando se vai enviar uma mensagem por meio do correio ou de um
cabo telefônico , importa menos a quantidade de energia empenhada no processo e mais a
qualidade da transmissão.” (BENNATON, 1985, p. 125).
O problema dos dispêndios de energia não se faz prioritário no âmbito das novas
máquinas, as dos meios informáticos e de comunicação. O seu gigantismo (o rendimento é
proporcional à dimensão dos motores e instalações), símbolo da termodinâmica, perde a
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relevância e, contrariamente, entramos na fase da diminuição dos dispositivos, tendência
iniciada nos anos 50 do século XX e mantida de modo crescente até os nossos dias. A
potência tornou-se inversamente proporcional ao porte físico. Nosso filósofo antevê essa
crescente reorientação dos tipos de máquina: “É possível que uma das causas da tendência à
redução das dimensões observada depois de 1946, resida na descoberta deste imperativo
das técnicas de informação: construir indivíduos técnicos e, sobretudo, elementos de menor
dimensão, porque eles são mais perfeitos, têm um melhor rendimento de informação.”
(SIMONDON, 1989, p. 133). As grandes dimensões levam, quanto à informação, a um
aumento do tempo de transmissão, o que é, na verdade, um retardo, uma grave deficiência
nesse novo contexto que tem a velocidade como um valor essencial. Simondon percebe
inclusive uma incompatibilidade entre os âmbitos energético e informacional. O aumento
de uma leva em geral a uma perda da outra: “As características de rendimento dos canais de
informação não são características energéticas e muitas vezes um bom rendimento em
informação caminha junto com um mau rendimento energético.” (idem, p.132).
Michel Serres vê essa virada em seu sentido radical nos anos 60 do século XX: “(...)
durante os anos 60, a humanidade passou bruscamente dos meios e forças de produção às
redes de comunicação.” (SERRES, 2003, p. 27). De acordo com Serres, foi quando saímos
da esfera industrial, cujo símbolo divino seria Prometeu e o fogo gerador do trabalho, para
a pós-industrial, onde Hermes, deus que conduz mensagens e que realiza trocas e
traduções, passou a ter a supremacia. Além disso, é ele também o deus enciclopédico da
interação entre saberes díspares, uma divindade mestiça que cuida das “relações
flutuantes”, como diz Serres. Diante desse privilégio do meio e não dos começos ou fins,
esse autor afirma que se a divindade fosse representada no campo lingüístico, seria
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simbolizada por preposições conectadoras, que ocupam intervalos entre as coisas, e não
substantivos independentes, auto-suficientes e encerrados em si, à maneira de termos.
A perspectiva nessa nova ambientação é de que novas informações produzem
rearranjos, contraefetuações inesperadas. Essas novidades alteram todo o futuro do sistema.
É nesse ponto que pode ser superada, pelo menos em pontos determinados e provisórios, a
inevitabilidade da “morte térmica. Do ponto de vista cibernético não haveria fatalismo
generalizado, caminho reto para a desconstituição em todos os níveis. Poderíamos alegar
que a recomposição informativa teria validade para corpos vivos, como seria facilmente
visível na cura de uma gripe, por exemplo. De modo inovador, Simondon projeta o
raciocínio também para o que não é vivo. As máquinas escapam à decomposição inexorável
do tempo, na medida em que são retroalimentadas pela inventividade informativa humana.
Esse momento em que o homem torna-se o mediador comunicativo da máquina, vivendo
entre elas, Simondon vai chamar de vida técnica. As máquinas, ao contrário do exagero de
Wiener, em si mesmas são fechadas, são “mônadas de automatismo”, mas os homens têm a
possibilidade de injetar vitalidade e promover a criação de novas funções e também a
interrelação entre elas. Em suma, eles são capazes de transmitir o vivo presente neles àquilo
que fabricam. Um indeterminismo e uma fluidez atingem, portanto, este universo que
normalmente é visto como inanimado. O humano e suas produções podem ser também
pensados como retentores de informação, conservadores de energia, como indica a primeira
lei da termodinâmica, o que sugere que nosso autor realmente bebe antropofagicamente nas
duas fontes.
Como a interligação espontânea entre as máquinas é, ou pelo menos ainda é, uma
quimera de ficção científica, cabe ao homem promover as interações. Isso significa que a
existência de novas individuações maquínicas e a conexão entre indivíduos técnicos jamais
- 140 -
podem prescindir da presença humana. Esse progresso individual e o agenciamento coletivo
das máquinas produzirão uma vitalidade excêntrica: “Há algo de vivo em um conjunto
técnico e a função integradora da vida pode ser assegurada por seres humanos.”
(SIMONDON, 1989, p. 125). Em linguagem cibernética, novas entradas (inputs) humanas
gerariam novas saídas (outputs) maquínicas e vice-versa. Como podemos perceber,
Simondon aproxima-se da cibernética, mas sem jamais prescindir de uma postura crítica.
Concordaria plenamente com Wiener quando este define suas diferenças com a
termodinâmica: do mesmo modo que a entropia é uma medida de desorganização, a
informação é uma medida de organização. Mas discordaria das utopias de liberdade
maquinal imaginadas pelo autor de Cibernética e sociedade, além de deixar claro que o
vivo é permanentemente contemporâneo a si mesmo, enquanto as máquinas são puro
passado.
As soluções biológicas (sempre passíveis de combinação com as soluções técnicas,
o que acontece em escala exponencialmente crescente em nossos dias) que se apresentam
são constantes e inesperadas e as individuações são permanentes. À heterogeneidade dos
indivíduos em relação a si mesmos, que é fonte alimentadora dos processos de
individuação, Simondon o nome de disparição, tradução aproximada para a expressão
que ele cria e chama de disparation. Todo indivíduo mantém uma crise em si mesmo, pois
está sempre em construção, sendo disparatado. O mais famoso aforismo atribuído a
Heráclito resume essa idéia paradoxal: “Descemos e não descemos o mesmo rio, nós somos
e não somos” (REALE, 1993, p. 64, v.I). As novas informações trazem novas
problematizações. Os seres simultaneamente se organizam e se desorganizam. E tal como
um prédio em construção, os andares inferiores fornecem a base para os superiores. Esse
movimento constituinte próprio da vida (que tem os cristais como modelo primeiro) pode
- 141 -
ser transferido para as máquinas. São indivíduos humanos abertos produzindo inventos
abertos. As tensões aí não são anuladas, mas compatibilizadas temporariamente durante um
período de tempo. Entre os séculos XIX e XX, novas máquinas tiveram que produzir novos
entendimentos: com isso, passamos do modelo de indivíduos fechados que perdem energia
da termodinâmica para o de seres que trocam informações na cibernética. Podemos pensar
que Simondon teve necessidade de fazer, com as suas próprias teses, essa passagem de um
pensamento científico para o outro, apesar das intensas vinculações termodinâmicas
presentes em seu trabalho.
Uma união de dois mundos: a entropia informacional
Ao falarmos de informação, no sentido que estamos aplicando aqui, vamos à base
da cibernética. É ela que vai possibilitar uma nova orientação para essa expressão, o que vai
possibilitar desde a existência de interações genéticas até o nascimento dos recentes
computadores. Informação, usualmente ligada apenas ao campo das trocas verbais e sociais,
agora será entendida como parte elementar da composição de um sistema, seja ele humano
ou não. O foco muda, pois é a intermediação que interessa. A famosíssima frase de
Marshall McLuhan, “o meio é a mensagem”, é símbolo desses novos tempos. Décio
Pignatari completa: “(...) não informação fora de um sistema qualquer de sinais e fora de
um veículo ou meio apto a transmitir esses sinais.” (PIGNATARI, 1970, p. 13). A
preocupação será o quanto uma estrutura por si mesma tem capacidade de fornecer
mensagens, signos. Por isso, as aplicações serão múltiplas. Em suas visualizações no
campo lógico, biológico, industrial ou lingüístico, deixamos de levar em conta as pesadas
verdades únicas e absolutas, caras ao discurso científico por muitos séculos, para introduzir
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a leveza dos relativismos, das validades locais e provisórias. A idéia de incerteza passou a
ser constituinte essencial da produção científica.
Passamos a lidar, como nas especulações do mercado financeiro, com uma nova
gama de conceitos: probabilidade, risco, variável estocástica (que, apoiada em novas
concepções matemáticas, se relaciona à introdução do acaso na musicalidade serial, o que
demonstra a extensão interdisciplinar dessas novas reflexões), valor estatístico,
criptografias etc. Quando lidamos com informação, não se trata de verdadeiro ou falso. O
foco está na eficácia, ou seja, em como podemos aumentar as chances de uma certa
mensagem ser compreendida. É por isso que é na medida em que se diminui o número
de alternativas que existe a chance de aumentar o nível informativo. Pois quanto mais
amplas forem as possibilidades, maior a entropia, ou seja, maior a desordem, a
imprevisibilidade e a desconstituição do conjunto com o passar do tempo. O aumento
entrópico significa uma maior dificuldade em controlar os eventos, que é o que queremos
evitar quando lidamos com o funcionamento de máquinas, por exemplo. É desse modo que
podemos afirmar que a informação é organizadora. Comunicar ou informar, portanto, no
sentido que Simondon intenciona, é resistir à desconstituição da segunda lei
termodinâmica. Especificamente aí, estão envolvidos os universos dos objetos e dos seres
vivos: “O organismo se opõe ao caos, à desintegração, à morte, como a mensagem ao
ruído.” (idem, p. 13). Ordem e desordem, compreensão e ruído se associam. Mas, como
dissemos, a manutenção da “juventude” dos objetos depende diretamente da intervenção
humana.
possibilidade de controle e comunicabilidade, portanto, se houver restrições,
limites. Conseguimos manter uma conversa com outra pessoa porque os meios de
expressão em uma língua são finitos. Se criássemos palavras a cada relação mantida com as
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coisas (lembremos de Borges e sua possibilidade de significados variáveis a cada ato
comunicativo, o que nos levaria a uma nova Babel), cairíamos em um caos lingüístico
completo e qualquer compreensão seria inviável. O significado dos termos é uma
constância necessária, mesmo considerando que tudo seja provisório. Como diz Umberto
Eco, em sua Obra aberta, falando sobre esse novo sentido de informação, criado por
Shannon e Weaver, engenheiros que visavam aprimorar a transmissão de ondas sonoras
para uma companhia telefônica: “Para a teoria da informação, conta o número de
alternativas necessárias para definir o evento sem ambigüidades.” (ECO, 1971, p. 101). Um
aspecto interessante é que essa teoria, que nasceu voltada para uma quantificação do nível
comunicacional adquirido, vai permitir múltiplas aplicações excêntricas. A da cibernética,
do mundo dos computadores, será uma. E, curiosamente, a da arte será outra. Se a
preocupação dos engenheiros era com a forma, com o canal comunicativo (onde o grau de
previsibilidade dos cabos telefônicos é fundamental), se transferirmos isso para o ambiente
da mensagem, a novidade passa também a ser fundamental: a arte. Para haver informação
contamos com os dois mundos: o regular e o irregular, ser e devir. Limitação e surpresa têm
que estar unidos em um ato cognitivo: “(...) quanto mais provável uma mensagem, menor a
informação que ela carrega” e, por outro lado, “as mensagens possuem alguma
informação quando é possível ao invés delas, a ocorrência de outras.” (BENNATON, 1985,
p. 126).
No plano da criação, que inclui logicamente o ambígüo, pode-se conceber um
caminho que interligue possíveis evoluções, sejam biológicas, técnicas ou lingüísticas
(inclusive a estética) por meio da noção informacional. Para que isso ocorra é necessário
que haja desorganização ao inserirmos elementos estranhos. Desarranjar a ordem anterior é
condição determinante para o surgimento de uma nova ordem. Uma recriação depende,
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portanto, de uma “desarrumação” e estranhamento produzido por novos elementos
incorporados ao sistema. Simondon nomeará esse processo, que aconteceria em todos os
diferentes níveis de individuação, de defasagem. Esse desordenamento temporário, que
enseja uma reconstrução, é o que define a chamada entropia informacional, um tipo de
entropia bastante distinto da entropia física. Entropia, que continua sendo evolução, agora é
crescimento informativo. No lugar do isolamento de sistemas fechados que, por sua
excessiva organização, tendem ao desgaste e à transposição de energia em mão única, a
entropia informacional lida com conjuntos abertos a intercâmbios com o meio externo. Ao
contrário daquela de tipo físico, essa nova entropia é o que reaquece e realimenta o sistema
e ela “é maior, quanto maior for o grau de liberdade franqueado ao emissor na composição
de suas mensagens.” (idem, p. 129). Pensamos que essa segunda aplicação da entropia, que
une termodinâmica, cibernética e teoria da informação, está perfeitamente adequada ao que
Simondon quer de cada uma dessas diferentes teorias. A energia e a irreversibilidade do
tempo da primeira, o feedback da segunda e o novo entendimento do que seja informação
da terceira. É assim que se torna despropositado falar de desordens. Troquemos por
reordenações. Existe uma saída para a condição inevitável de negatividade do futuro que a
termodinâmica nomeava como flecha do tempo. Essa teoria pode ser perfeitamente válida
para o mundo físico composto de sistemas isolados (que não recebe e emite informações
com o ambiente externo, que teria o tijolo após a modelagem como exemplo), mas .
Não são esses compostos solitários que nosso autor prioriza. Daí a sua urgência de
promover uma simbiose de conceitos. Ele quer associar-se a uma outra visão que combine
energia, fluxo temporal e criação, pois é a inserção de informações em estruturas abertas
que produzirá a possibilidade de conquistas evolutivas, que é o que Simondon quer pensar,
sem distinções, em um ser vivo ou em um objeto técnico.
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Temos uma analogia possível aqui com a imagem criada por Foucault (inspirado em
Nietzsche), na qual se pensa metaforicamente um instrumento que combine martelo e
cinzel, a destruição sendo acompanhada passo a passo por uma construção. Cada um não
pronunciado a uma ação ou a uma idéia, também é um sim que afirma outra ação e outra
idéia. A condição que deve ser desejada pelo homem do futuro, para Nietzsche, é construir
a sua vida à maneira de uma obra de arte. É que se a simultaneidade pensada entre
ética e estética, reunião que deveria acontecer em cada ato decisório. A pergunta que une
essas duas realidades remete à noção de eterno retorno, de Nietzsche: se o tempo fosse
cíclico e pudesse retornar eternamente a essa situação presente, você continuaria a fazer o
que está fazendo agora? Na reinterpretação de Foucault (o que o filósofo alemão pensa
como retorno do mesmo acontecimento, ele pensará como o da diferença), essa volta
temporal tem Heráclito, e não Parmênides, como inspiração. Não temos o círculo como
imagem geométrica, mas a espiral, que deixa exposta a abertura para novas entradas
(informações no sentido da individuação simondoniana). A passagem do tempo pode,
assim, criar possibilidades de existência com maior vitalidade, na medida em que nos
livramos de pensamentos menos potentes para outros mais libertadores. Uma idéia será
aqui compreendida como uma mistura de energia e informação. Pode ser concebida a partir
dessa visão uma individuação constante do próprio pensamento.
O que isso tem a nos dizer é que sempre que for possível a aquisição de novos dados
no campo biológico, da arte, da técnica, e, como vimos, da ética, teremos uma possibilidade
de superação do previsível, do necessário e do determinismo entrópico físico. Não uma
escolha entre estabilidade e mudança, entre o que é sólido e volátil. Temos a união de
ambos. Novas ocorrências são gestadas continuamente. A indeterminação é tão decisiva
quanto a determinação. O que Umberto Eco diz, no plano da arte, poderia valer
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perfeitamente para os diversos níveis de individuação em Simondon: entre “a proposição de
uma pluralidade de mundos e o caos indiferenciado, desprovido de qualquer possibilidade
de fruição estética, a distância é curta: somente uma dialética pendular pode salvar o
compositor de obras abertas.” (ECO, 1971, p. 129). Em Simondon, os seres vivos, a vida
psíquica, a ação política, os objetos técnicos e, até os indivíduos físicos - em momentos
anteriores à total solidificação - entram nessa dimensão de obras abertas. O que explica essa
abertura é a capacidade de absorção de dados externos, troca de informações e resolução de
problemas. A trinca informação, estranhamento e imprevisibilidade é um conjunto
interativo para a fuga do banal. É o momento em que aquilo que é normalmente percebido
como desorganização acaba trazendo maior amplitude comunicativa. O físico Ilya
Prigogine se ligará a essa noção de entropia informacional e assim criar o que ele nomeia
como “ordem por flutuações” ou “dinâmica do não-equilíbrio”. Passa a haver um privilégio
na física para o tempo, para a história e para a incerteza, ou seja, a ciência reincorpora a
cultura. Teria havido um pré-universo, chamado por ele de vazio quântico, que continha
partículas potenciais (que tem o mesmo sentido energético usado por Simondon) criadoras,
pelas suas flutuações, do universo em que estamos. Segundo Prigogine, esses mesmos
conceitos nos possibilitam refletir sobre as singularidades vitais. Vida e matéria perdem
qualquer distinção de natureza, pois o que se apresenta é um aumento de complexidade:
“No equilíbrio tudo é simples e estável. Longe do equilíbrio, o complexo e o instável
podem aparecer. A grande objeção era que a vida era complicada demais para ser explicada
pela física e pela química. Essa objeção cai a partir do momento em que, longe do
equilíbrio, você tem a possibilidade de estruturas complexas.” (PRIGOGINE, 2002, p. 36).
Em Prigogine, a flecha do tempo termodinâmica é criadora, produtiva.
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Podemos entender nessa via da teoria da informação uma possibilidade de otimismo
de Simondon em relação às novas máquinas, particularmente os computadores, pela sua
capacidade de acumular e processar informação, são capazes de corrigir seu próprio
comportamento por tentativa, erro e correção. Nosso autor nota antecipadamente (mesmo
com a incipiência das versões computacionais dos anos de 1950) que estamos lidando com
máquinas que são capazes de realizar certas operações lógicas e (indo nesse caso bem além
de McLuhan), que são muito mais do que extensões de nossos músculos e sentidos. Se o
abastecimento informativo humano dessas máquinas for bem conduzido, podemos ampliar
a liberdade para a realização de outras ões, mais inventivas. Temos precisamente nesse
contexto uma possibilidade de vislumbre humanista na técnica. Mas não se pode esconder
um risco sempre à espreita: a mesma máquina que tem potência de libertar, pode também
aprisionar e diminuir as capacidades humanas. Todo o problema da liberação ou do
encarceramento a ser produzido por objetos técnicos está definitivamente concentrado no
uso que os homens farão delas. O automatismo generalizado pode gerar delírios, como
acreditar que reverter a natureza seja perfeitamente possível. O chamado trans-humanismo,
corrente de pensamento contemporâneo que se anuncia como herdeira da cibernética,
argumenta que o homem, a exemplo de uma mercadoria, é um produto em obsolescência a
ser ultrapassado pelas conquistas digitais criadas pela própria humanidade. Mantendo uma
separação radical entre natureza e artifício, quer reviver, com as tecnologias disponíveis
hoje, a pretensão científica cartesiana de tornar o homem “mestre e possuidor da natureza”.
A síntese da proposta trans-humanista é usar meios tecnológicos para suprimir a dor, a
infelicidade e, sua grande ilusão, a morte.
Voltando aos cruzamentos possíveis entre a teoria estética contemporânea e as
idéias de Simondon, nos deparamos com a noção de informal. Sendo a inclusão de
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movimento e a quebra da forma e da figuração trazida pela arte moderna e contemporânea,
ocorrem associações possíveis com o rompimento do modelo aristotélico na arte e na
biologia. Em função das suas distintas camadas de leituras, a obra de arte do nosso tempo
se completa (ou seja, individua-se) em associação com quem a observa. Para
exemplificar isso, é lembrarmos que ao relermos ou revermos grandes obras de arte em
diferentes momentos de nossa vida teremos compreensões completamente distintas delas. É
isso inclusive que a define como aberta. A intertextualidade encaixa-se com a cibernética,
na medida em que as informações que trago de outros livros, realimentam e enriquecem a
segunda leitura com visões renovadas. Como a modernidade traz fortes rompimentos com a
tradição lógica de causa e efeito, não mais permissão para existência de
leitores/espectadores passivos. Dentro de cada obra múltiplos e paradoxais caminhos e
todos aqueles que entrarem em relação com ela serão obrigados a sair da zona de conforto e
forçados a escolher uma via interpretativa entre várias. Com isso, o espectador compõe sua
visão no contato que vai mantendo com o objeto artístico. Em certos cenários da arte
contemporânea, o espectador chega, inclusive, a ser parte integrante da obra.
Não são mais fornecidas todas as informações, como em um romance ou filme
policial de estilo clássico de caráter realista, mas permanecem reticências que serão
completadas por quem os ou lê. O fruidor, a partir desse momento, é um co-autor, um
intérprete diante de uma encruzilhada de direções, pois está agora diante de um conjunto de
alternativas sígnicas, uma tão válida quanto a outra. Passa a haver, desde a arte moderna,
uma intenção explícita de fazer com que a riqueza de sentidos nasça junto com a
ambigüidade da mensagem. Se na arte tradicional é fácil predizer a sucessão e a
superposição dos temas, isso não acontece mais na arte de vanguarda (denominação dada
por Umberto Eco) quando a imprevisibilidade é múltipla. Sim, múltipla, mas não infinita,
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pois nesse segundo caso cairíamos na cilada de ter todas as possibilidades de compreensão
e, por isso mesmo, não termos nenhuma, sendo o caos incompreensível de que falamos.
É nesse sentido que podemos associar tudo isso com a idéia simondoniana segundo a qual a
individuação é maior que o indivíduo. O texto a seguir é de Eco, tratando desse novo papel
hermenêutico na arte, mas poderia perfeitamente ser de Simondon, trazendo a individuação
técnica e o papel inventivo dos homens que produzem os objetos: “Daí a possibilidade (...)
de escolher as próprias direções e coligações, as perspectivas privilegiadas por eleição e de
entrever, no fundo da configuração individual, as outras individuações possíveis, que se
excluem, mas coexistem, em uma contínua exclusão-implicação recíproca.” (ECO, 1971, p.
154). Acaso e controle são, portanto, completamente interdependentes na criação artística
ou técnica, o que nos leva a concluir que determinismo e indeterminismo, ser e devir, mais
uma vez mostram suas interações e marcam a rejeição de Simondon aos dualismos.
Em termos de realimentação informativa, podemos interligar uma multiplicidade de
eventos: o aparecimento de novas espécies na natureza, um novo sentido conotativo para
velhas palavras dado por um poeta ou um novo objeto técnico que amplie a liberdade
humana. Umberto Eco e Gilbert Simondon estão unidos, mesmo em campos teóricos
particulares, pela teoria da informação.
Novos sentidos para as máquinas
Pensada como reunião de informações (sujeita a permanentes redimensionamentos)
de variados campos de saber, a máquina é concomitantemente técnica, social, estética,
econômica e - antevendo o que vivemos hoje, diz Simondon, - também ecológica. Algo que
nunca foi cogitado como maquínico, agora torna-se possível nesse redimensionamento:
casas, estradas, catedrais etc. Isso é motivado pelo fato de que agora todos esses são
- 150 -
indivíduos técnicos, cada um com uma história própria que acompanha a trajetória da
humanidade e frutos diretos de toda uma produção coletiva, cultural. É esse significado
renovado da individualidade, que torna impossível entender a criação técnica sem as
devidas conexões culturais e as inventividades humanas próprias a ela, que se constitui
como um dos pontos altos de reformulação promovida pela filosofia de Simondon. É que a
produção técnica se alia à própria natureza, desfazendo qualquer dualismo natural/artificial.
O natural que permanece em nós, e que permite aos objetos ter algo de humano, ganhará
também o nome de pré-individual. Isso significa que quanto mais um objeto incorpora a
natureza, mais aberto a alterações ele é. É um além do homem que pode gerar um além das
máquinas.
Essa é uma herança que o próprio autor, em uma entrevista de rádio em 1971,
atribui a Jacques Laffite, tido como precursor da linhagem de idéias que modifica
completamente o entendimento do que pode ser uma máquina ou as profundas distinções
que pode haver entre elas: Laffite detectou o fato de que as leis de funcionamento de um
regulador não são as mesmas que as de um motor. Ele conclui (...) que alguém pode tratar o
equilíbrio dos pontos ou equilíbrio das estradas como se isto fosse de um certo modo
articulado e que as máquinas estáticas são máquinas como as outras. Assim não é
necessário que as pessoas chamem um objeto de „máquina‟ para que ele seja realmente uma
máquina” (HART, apud SIMONDON, 1989, p. 183). É esse raciocínio que torna possível
uma classificação zoológica dos objetos técnicos, na qual, a exemplo da biologia,
teríamos linhagens parentais e acompanhamentos evolutivos. Provém dessa visão mais
ampla da criação de objetos e da inspiração cibernética a substituição, na obra de
Simondon, dos termos objeto ou máquina por sistema ou estrutura. Se os primeiros
remetem a um isolamento, os outros são sempre fruto de integrações de sub-conjuntos que
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mantêm, ao mesmo tempo, harmonia e diferenciação entre si. As máquinas, inclusive, são
percebidas à maneira de organismos. A própria troca de energia depende da junção de
elementos disparatados em um certo nível. Didier Debaise resume a idéia simondoniana de
sistema: “(...) relação entre elementos heterogêneos, produzindo uma organização
imanente, pela tensão dos elementos, um liame, e criando, por essa mesma
heterogeneidade, uma energia potencial.” (DEBAISE, apud CHABOT, 2002, p. 60).
Nesse ponto de vista integrador, em estado de tensão, percebemos como aflora a
idéia de um humanismo técnico. É a experimentação direta combinada com a imaginação
humana e a flexibilidade de cada material que constitui novos objetos e estes podem
colaborar para a melhoria das condições de existência do homem. Simondon, de modo
visionário, notou que esse caminhar das máquinas no sentido informático precisava de uma
nova orientação conceitual, que uma ampliação do automatismo poderia promover um
deslocamento do trabalho humano para atividades mais criativas. Diante dessa perspectiva,
toda invenção técnica é o estabelecimento de uma troca de informações, sem qualquer
hierarquia entre sujeito e objeto, que altera um e outro, além do meio que os abriga. Essas
reorientações generalizadas e permanentes, além de imprevisíveis, são também novas
individuações na ampla redifinição que Simondon propõe. Mas não é essa a visão
generalizada que a história da filosofia mantém em relação à técnica. A possibilidade de
unir humanismo e criação de objetos luta contra fortes radicalismos, tendo ninguém menos
que Platão como oponente.
O que se percebe como uma tendência que se mantém, mesmo que sutilmente hoje,
no pensamento ocidental desde a Grécia Clássica é que não é valorosa a reflexão sobre
objetos técnicos. Simondon compara o tratamento dado aos escravos com a consideração
filosófica sobre os objetos técnicos: “Do mesmo modo como o escravo era rejeitado para
- 152 -
fora da cidade, as ocupações servis e os objetos técnicos que lhe correspondiam eram
banidos do universo do discurso, do pensamento refletido, da cultura.” (SIMONDON,
1989, p. 86). Assim como esse preconceito endereçado à técnica está presente entre os
gregos, ele é perceptível, como vimos na primeira parte dessa tese, também no mundo
medieval. É no Renascimento que se torna perceptível uma mudança de visão, sendo
Leonardo da Vinci o personagem modelo do artesão-artista-cientista, já que ele é o símbolo
notório de uma aliança inédita de teoria e prática, apoiada na idéia, intrínseca à
modernidade, de que quem sabe faz por si mesmo. Os objetos ganham dignidade e
reincorporam-se assim às produções culturais humanas. Não basta mais projetar uma ponte
apenas no plano mental, mas é preciso sujar as mãos e erguê-la materialmente por conta
própria. O espaço que simboliza esse casamento no alvorecer da modernidade é o ateliê,
uma espécie de laboratório ao mesmo tempo científico, filosófico e artístico. Simondon
indica essa mudança de mentalidade e uma conseqüente nova consideração filosófica sobre
a técnica: “A Renascença consagrou as técnicas artesanais lhes fornecendo a luz da
racionalidade.” (idem, p. 87). O projeto renascentista é um primeiro momento que o
filósofo utiliza para mostrar uma valorização particular que as técnicas vão conquistar e que
faz parte do grande projeto de sua análise da técnica aliada integralmente à cultura. Pascal
Chabot diz sobre nosso autor: “Ele elabora uma teoria da gênese do objeto e de sua
influência sobre a civilização.” (CHABOT, 2002, p. 7). Isso nos leva a pensar que o
humanismo renascentista inclui também um humanismo técnico.
As criações técnicas sujeitas à evolução não são completamente individuadas, pois
isso sugeriria algo finalizado, isolado em si, o que, segundo Simondon, tem baixa carga
pré-individual, pouca energia potencial, para usar palavras do autor. É a participação
humana no processo criativo dos objetos que permite a integração deste com outros objetos.
- 153 -
Isso vale também para uma interligação entre os homens, pois qualquer descoberta técnica
remete a outras anteriores, o que demonstra que ela não vem do trabalho solitário de um
autor, mas é fundamentalmente coletiva. Um aspecto novo presente nessa teoria é que
existe uma passagem de vitalidade (que não deixa de ser energia) dos inventores para as
invenções e dos homens entre si, o que garantiria inclusive a duração, o uso variado e a
transformação ao longo do tempo de certos objetos. Esses aderem à sua materialidade uma
concentração de memória e de informação, ou seja, viram signos. Como diz Liliane da
Escóssia, a partir das idéias de Michel Serres e Simondon: A idéia tanto em um quanto em
outro é a de que os objetos técnicos são portadores de sentido que emitem, transportam e
veiculam informações.” (ESCÓSSIA, 1997, p. 31). Essa orientação reforça ainda mais a
inseparabilidade entre cultura e técnica que Simondon quer apontar.
Duas ilusões: o homem como escravizador ou escravo das máquinas
uma influência mútua nas fronteiras entre o vivo e o técnico. Mas duas ilusões,
que nascem de alianças forçadas, devem ser evitadas. Uma vem da modernidade filosófico-
científica, particularmente com a figura de Descartes, em que o homem aparece como
senhor absoluto da natureza (o humanismo de Galileu que apontamos na primeira parte da
tese está encaixado nesse movimento), onde temos uma inteligência viva se afirmando
sobre a matéria bruta e plenamente moldável aos seus desejos, especulações e
manipulações. O sujeito está aqui e o objeto está lá. A máquina, como um escravo, é coisa
morta que existe para servir. Ao falhar, causa ira. Ela não tem dignidade para ser
compreendida. Esse modelo revela-se como uma extensão da visão desprestigiada de Platão
em relação à matéria e às criações humanas. E isso persiste, de algum modo, ainda hoje.
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A outra tendência, sem dúvida mais delirante, leva em conta o medo da humanidade
vir a ser dominada por máquinas. O inorgânico ganharia vida, como o monstro de
Frankenstein, e abateria-se com grande revolta sobre toda a humanidade. Esse mito, que
apresenta a criatura eliminando o criador, muito peculiar à modernidade, que quer retirar o
poder de Deus e -lo ao homem, aparece também de modo explícito em O médico e o
monstro, de Robert Louis Stevenson. A mensagem incutida na obra é que o homem
elaborou cnicas que liberam forças, inclusive vitais, incapazes de ser controladas. A
orientação pessimista - e tremendamente explorada na ficção científica - é a de que o
homem possa em caráter literal ser um dia escravizado por suas criações técnicas. De todo
modo, uma humanidade escravizadora ou escravizada por máquinas são dois modelos
ligados a uma incompreensão de base, sendo dois pontos extremistas que Simondon deseja
rechaçar a todo custo.
É preciso realmente escolher entre dominação e pavor nessa relação com as
técnicas? Por que um vínculo hierarquizado, ditatorial, e não solidário? Por que uma
servidão de parte a parte e não a possibilidade de uma união, de philia? Uma relação de
parceria seria inclusive muito mais produtiva, pois haveria uma busca permanente de
aprimoramento de parte a parte e novos e surpreendentes usos para as máquinas com o
decorrer do tempo, além da chance, por que não?, de uma vida melhor para o homem. É
refletindo de modo isento sobre esses problemas que Simondon traz uma visão diferente da
qual se acostumou o senso comum. O ponto de partida restritivo é a idéia de que as
máquinas tendem à perfeição na medida em que ganham uma identidade única, destinando-
se terminantemente a uma função. De acordo com essa mentalidade, o bom objeto
técnico é aquele que está pronto a ser explorado e obedece a comandos a qualquer hora,
além de encontrar-se definitivamente pronto, acabado e definido, ou seja, fechado em si
- 155 -
mesmo. Seria, assim, a ultraespecialização, ou hipertelia nas palavras do autor, a melhor
direção possível. No interior desse modo de pensar, está um medo delirante. Para não
sermos dominados pelas máquinas, que as dominemos primeiro.
O que Simondon nos apresenta é uma caminho completamente inverso a esse. A
evolução técnica seria possível com máquinas de uso múltiplo, abertas, e com
capacidade de diferenciação das suas aplicabilidades no futuro. O processo de
aprimoramento de idéias, que pode atravessar séculos e resulta na elaboração de objetos,
é possível se houver uma união solidária dos homens entre si e deles com mundo material.
Esse caráter de versatilidade funcional dos objetos seria possível se esse mesmo vínculo
de camaradagem fizesse parte do interior dos objetos, promovendo uma divisão interna de
funções e especialização complementares e sempre abertas a novas possibilidades dos sub-
conjuntos, inclusive com partes fixas e fortes e outras que equivalem a um canteiro de obras
em construção. É isso que torna a sua ação integrada em teia e transfere uma importância
decisiva ao conhecimento e a criatividade humana no convívio com os objetos: “A
participação em rede é o porquê o objeto técnico permanece sempre contemporâneo a sua
utilização, sempre novo (...) é preciso que o objeto tenha limiares de funcionamento
reconhecidos, medidos, normalizados, para que ele possa ser dividido em partes
permanentes e em partes voluntariamente frágeis, submissas à substituição.” (SIMONDON,
Revue Philosophique, p. 356).
Simondon indica que a evolução dos objetos técnicos nunca viria da cabeça criativa
de um único indivíduo, mas, ao contrário, é uma produção coletiva, entre os homens e deles
com os objetos. A figura do gênio solitário, remanescente do pensamento cartesiano, não é
valorizada por nosso autor, revelando-se como mais um ícone da mitologia filosófica
moderna. Se temos personagens destacados que se eternizam, a razão disso é que estes
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souberam sintetizar os múltiplos saberes de uma época e combiná-los com a sua
inventividade peculiar. O que seria de Newton sem Nicolau de Cusa, Giordano Bruno,
Copérnico, Kepler, Huygens, Leibniz, Galileu e a incrível série de aventureiros anônimos
do pensamento que ajudaram a constituir a nova visão da física e do cosmos no século
XVII. Cada um deles é uma mistura de fases e defasagens. Não são estados, são etapas de
investigação. O mais decisivo não é a perpetuação do nome de indivíduos isolados ou
invenções que possam ser consideradas estritamente pessoais. Todo ídolo vira uma espécie
de instituição social, passa a ser referência para honrarias, cargos, ou seja, exterioridades
em relação ao seu trabalho. Sua vida particular passa a servir de modelo positivo ou
negativo para outras existências. Prioriza-se a vida pessoal e apagam-se as idéias.
Que interessa à humanidade saber que Lewis Carrol era pedófilo ou que Foucault
era homossexual? Biografias fazem parte de uma moda editorial que chegou tardiamente na
modernidade. Quase sem exceções, estão atrás do pequeno ou do grande deslize moral de
uma figura pública de destaque. O que parece acontecer é que o leitor busca, pelo menos
por alguns segundos, a obtenção de uma suposta igualdade ou superioridade em relação ao
biografado. Mas mesmo nas histórias pessoais elogiativas, que se revelam muitas vezes
menos comerciais que as depreciativas por conterem menos escândalos, a informação que
ganha importância continua sendo a mais íntima e demasiada humana possível. Ou seja, a
que mais revela dos hábitos sociais compartilhados e a que menos destaca a grandeza
daquele pensamento. Tira-se o foco da singularidade das invenções, que é o que ficará em
caráter definitivo para o restante da humanidade, concentrado-o nas peculiaridades de
bastidores. Idolatrias são agrados sociais, que existem para oferecer barreiras à criatividade
humana e a circulação de conceitos renovadoras. A tendência do pensador que se rende a
esse tipo de demanda é a paralisação do seu impulso criativo. Atender a essas
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recomendações exteriores significa, em grande parte das vezes, perder a singularidade do
próprio trabalho.
Simondon distingue produções culturais, que podem ter caráter universal, e
preocupações, sempre locais, provincianas e particulares. Contrariando esse tipo de
prestação de contas com o público e pensando no giro de informação que pode impulsionar
a ampliação da grandeza humana, ele abre a possibilidade de se falar de progresso citando o
tipo de conteúdo presente na Enciclopédia: (...) todo homem que possui a obra é capaz de
construir a máquina descrita ou de fazer avançar pela invenção o estado atingido pela
técnica nesse domínio e de fazer começar sua pesquisa do ponto onde chegaram os homens
que o antecederam”. (SIMONDON, 1989, p. 93). Separar as informações que nos
engrandecem das que nos denigrem, as que nos libertam em vez de aprisionar, em um
mundo cada vez mais infestado de lixos noticiosos, é um grande desafio ético
contemporâneo. A relação entre técnica e acesso universal à cultura foi uma conquista do
enciclopedismo e está na hora de detalhá-lo um pouco melhor.
Cultura, técnica e enciclopedismo
Simondon apresenta uma clara admiração pelo racionalismo do século XVIII, em
particular os enciclopedistas e suas idéias de cultura. Temos, segundo o filósofo francês,
pela primeira vez um acesso ao conhecimento que extrapola de modo definitivo as
corporações, que ultrapassa saberes fechados, reservados a uma pequena casta de homens,
ou seja, de algum modo esotéricos, iniciáticos. Todo saber encastelado, que ligamos
diretamente às tradições monásticas medievais, passa a ser condenado. Não é que os
mistérios da natureza deixem de existir, mas que, ao contrário, sejam revelados à luz do dia
para todo humano que quiser descobri-lo.
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no movimento enciclopedista curioso que o conjunto de livros ganhe o nome
do próprio movimento) muitas características valorizadas por Simondon: o incentivo à
transmissão ampla de informações, a difusão irrestrita do saber do passado e do presente a
todos os interessados, a perspectiva de um engrandecimento humano pela aquisição técnica,
a ligação íntima entre educação e liberdade e a integração dos mais diferentes saberes em
nome de um avanço da humanidade. Um outro aspecto, enaltecido por nosso autor, e talvez
não percebido claramente pelos próprios enciclopedistas, destaca-se mais que todos: a
Enciclopédia é uma obra aberta e o leitor que se depara com um verbete de determinado
objeto técnico, que revela todo o passado deste, deve estar preparado para dar continuidade
à evolução que foi conquistada até aquele momento por este objeto. A idéia é que cada
indivíduo reencontre, nesse conjunto de livros, com a diversidade do pensamento humano.
Ou seja, o leitor deve possuir um aspecto inventivo e o contato com a história tem que ser
inspirador de novas descobertas. Desse processo duplo de aquisição do conhecimento e sua
efetivação na prática virá uma expansão da liberdade humana. Uma necessidade que o
filósofo francês aponta é que os objetos técnicos passem a ser avaliados como artigos
plenamente integrados à cultura de um povo. Em outras palavras, alvos de reflexão. Eles
não vêm ao mundo apenas para ser usados, mas dão o que pensar. Esse movimento de
valoração técnica, que se iniciou entre os renascentistas, teve um momento decisivo nos
séculos XVII e XVIII. Apesar dos abismos que separam sujeito/objeto, mente/mundo
externo, a mecânica moderna realizou avanços nesse campo. Foi ela que deu um lugar para
os objetos no interior do pensamento matemático: “Descartes calculou as transformações
do movimento nas máquinas simples que os escravos da Antiguidade utilizavam. Este
esforço de racionalização, que significa integração à cultura, foi perseguido até o fim do
século XVIII.” (idem, p. 87).
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Assim como a ciência conquista precisão e leis gerais no século XVII, o
conhecimento e sua transmissão ganham um caráter inédito de universalidade no século
XVIII. Esse estado de ânimo de grande expressão comunicativa é fortemente devedor da
Enciclopédia. A própria união de muitos autores, em um conjunto de livros, simboliza,
ao mesmo tempo, a junção de toda a humanidade e um saber que possui validade em
qualquer época e lugar da Terra. O que os enciclopedistas esperam? Primeiro que a reunião
dos textos seja um sistema completo de educação e depois que todo e qualquer homem
entenda o conteúdo ali presente, ou seja, que a humanidade fique mais esclarecida. Ferrater
Mora, ele próprio um enciclopedista da filosofia, detalha as orientações de pensamento da
obra que, não podemos esquecer, ajudou a compor o espírito da Revolução Francesa: “(...)
tolerância religiosa, otimismo a respeito do futuro da Humanidade, confiança no poder da
razão livre, oposição à excessiva autoridade da Igreja, interesse pelos problemas sociais,
importância outorgada às técnicas e aos ofícios, respeito pela experiência, entusiasmo pelo
conhecimento e pelo progresso etc.” (FERRATER MORA, 2000, verbete Enciclopédia, p.
824).
A partir disso, podemos dizer que a Enciclopédia revelou-se como um canal de
divulgação do Iluminismo, movimento filosófico do século XVIII francês criador dessas
idéias que combinam multidisciplinarmente ciência, técnica e política. Precisamos lembrar
que seus editores são Diderot e DAllembert, filósofos iluministas de destaque e, ao mesmo
tempo, ideólogos da Revolução de 1789. Mas de que tipo é o saber enciclopedista?
Resumindo, é aquele adquirido pelo chamado homem de cultura, figura capaz de abarcar
com profundidade o essencial do que se conhece em diferentes áreas no seu tempo. A idéia
não é nova. Como vimos, sofistas como Protágoras a defenderam para o cidadão-orador na
Grécia Antiga e os renascentistas a alardearam como conteúdo fundamental do chamado
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uomo universale. O que podemos dizer é que um devir enciclopedista atravessa esses
momentos históricos e ganha sua amplitude máxima no século XVIII. Pela primeira vez é
sugerido um padrão educativo a ser alcançado por todos os homens.
A noção de especialização, que será tão cultuada no século seguinte, o XIX, é
contrária ao espírito enciclopedista. Simondon vai dizer que no enciclopedismo “é a
sociedade humana com suas forças e seus poderes obscuros que é colocada no círculo,
tornada imensa e capaz de tudo encerrar. O círculo é a realidade objetiva do livro que a
representa e a constitui.” (SIMONDON, 1989, pp. 94-5). Se o acesso à informação de alto
nível estava limitado à nobreza e ao clero no Antigo Regime, ao contrário, uma motivação
republicana, sem hierarquia de classes e ligada a uma democracia ampla e irrestrita paira
nas idéias enciclopedistas. É liberal na melhor expressão que esse conceito pode ter. Não é
por outra razão que Vincent Bontems diz que o enciclopedismo é a filosofia política
implícita de Simondon. Isso ficaria visível no próprio recurso simbólico a ser valorizado
pela Enciclopédia. A obra recorreu ao uso do simbolismo visual, mais adequado às
operações técnicas, segundo o filósofo francês, do que o oral ou escrito, na medida em que
aquele permite o acesso ao conhecimento até aos iletrados. Temos um cosmopolitismo
inerente ao espírito da época, onde todos os indivíduos interessados em saber mais terão
esse direito assegurado. A Enciclopédia, como obra, é um símbolo do próprio cosmos.
Obviamente, havia na postura libertária dos iluministas a intenção de que todos os
homens fossem alfabetizados, mas antes que esse processo se finalizasse seria preciso que
as informações fossem de antemão acessíveis a todos, algo que seria possível com o uso
de recursos imagéticos. Além disso, a linguagem escrita é restritiva a quem a conhece.
algo nela de seletivo e erudito. Já os esquemas visuais retratam melhor o espírito de
democracia ampla e irrestrita da época. Simondon chega a compor uma expressão
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paradoxal para indicar que as técnicas agora devem estar disponíveis a todos: “mistério
exotérico”. Outro problema é que a oralidade e a escrita, expressões típicas do humanismo
grego e renascentista, não têm capacidade de transmitir estruturas e operações materiais
com alto nível de precisão. O autor dirá que os humanismos têm em comum a promoção da
liberdade, mas cabe a cada época, a partir de suas próprias circunstâncias, fazer brotar o seu
próprio humanismo. Isso acontece porque é intrinsecamente humano criar artifícios que
liberam hoje e aprisionam amanhã.
Mas não podemos negar o Renascimento, apesar da sua tendência à erudição, como
uma grande fonte inspiradora da Enciclopédia. O momento histórico renascentista é de
tomada de consciência humanista inauguradora. No lugar de se contentar com o que a
tradição anunciava, o homem agora começa uma busca por comprovação autônoma do que
sempre foi teorizado. Uma participação humana ativa é estimulada. Um exemplo disso é o
cuidado na tradução, que não deixa de ser uma técnica, em um sentido amplo, dos textos
bíblicos e gregos clássicos: “Querer passar da Vulgata ao texto verdadeiro da Bíblia,
procurar os textos gregos no lugar de se contentar com as más traduções latinas, reencontrar
Platão para além da tradição escolástica cristalizada segundo um dogma fixo é recusar a
limitação arbitrária do pensamento e do saber.” (idem, p. 96). A construção coletiva do
conhecimento também é característica. A grande explosão artística da época não é resultado
direto da existência de ícones como Leonardo Da Vinci e Michelangelo etc, mas vem da
soma de esforços de uma diversidade enorme de pensadores, artesãos e artistas anônimos.
Os dois mestres são apenas tons mais pronunciados em um quadro pontilhado de cores e
gradações mais discretas, mas todas decisivas para a composição do quadro. Um outro
aspecto é que, pela primeira vez na história do Ocidente, ocorre uma valorização das
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técnicas artesãs. Pedreiros, mestres-de-obras, ferreiros, soldadores ganham voz. Seu modo
de atuar passa a ser inclusive etapa de aprendizado artístico.
Apesar do grande impulso renovador da Renascença, momento que poderíamos
classificar de pré-enciclopedista, é no século XVIII que uma idéia de universalização
científica pode ser mesclada com técnicas que trabalham em regime de colaboração (nível
politécnico). A passagem pela Revolução Industrial foi uma etapa necessária para essa nova
conquista. Foi só a partir desse segundo momento que se tornou possível um tipo de
comunicação entre diferentes máquinas e entre distintos domínios técnicos. Foi nesse
contexto do chamado século das Luzes que a produção de objetos passou do nível artesanal
para o industrial, que o conhecimento instintivo e isolado das manufaturas e corporações de
ofício deu lugar ao padrão geral e científico da indústria. Vamos pensar que os modelos de
tamanho e qualidade dos produtos, exigência absoluta de consumidores hoje, passou a
ser categorizável nessa época. Mas como temos muitos exemplos de objetos industriais de
ontem e hoje, avaliemos uma situação de tipo de saber anterior, pré-científica, trazida pelo
próprio Simondon: a relação entre o mineiro e a mina.
No exercício de uma função como essa acontece a conquista de uma enorme
intimidade do trabalhador com o local de trabalho e com as atividades desempenhadas. Ele
pode ser considerado até mesmo como parte integrante do lugar. Obviamente uma
sabedoria emana dessas relações. O problema todo é que ela é individualizada, ou seja,
pode ser adquirida por experiência própria e não pode ser transmitida a ninguém. Temos
em ações como essas a aquisição de uma seqüência de hábitos que, caso não aconteça na
infância, não acontece mais. E que depois de adquirido não pode ser modificado. O corpo
torna-se parte integrante do meio onde se atua, como uma segunda casa ou uma segunda
pele. Além disso, é preciso pertencer a uma comunidade que está impregnada daqueles
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esquemas de trabalho. A característica do aprendizado é de fechamento, pois é preciso
vivenciar as mesmas sensações, começar do estágio zero para que o processo de
aprendizagem aconteça. Ou seja, o ato de conhecer precisa tornar-se encarnado, pertencer
ao corpo e a um certo ambiente espacial.
A relação do mineiro com a mina é comparável ao que Bergson comenta sobre o
instinto, característica biológica típica dos insetos. O saber instintivo é desempenhado de
modo tão perfeito, pré-programado e sem hesitação que não abre espaço para qualquer
variação ou criação. Existe, em virtude da própria habilidade incomparável, uma
impossibilidade por parte desse conhecimento instintivo em adquirir novos hábitos. É
também o que pode acontecer conosco, quando adquirimos uma destreza muito grande na
realização de uma certa atividade. Sabemos tão bem realizar algo que aquilo se torna
mecânico e, ao mesmo tempo, imutável. Nesse momento presenciamos um adormecimento
da consciência. Quando Simondon fala do mineiro e da mina, levando em conta
obviamente a diferença de que os insetos nascem hereditariamente sabendo o que fazer e
o homem assimila as informações empiricamente, uma real proximidade com a
inclinação instintiva nos dois casos, no aspecto de fechamento às inventividades nas ações
desempenhadas.
Na linguagem bergsoniana, por mais que a tendência biológica humana seja
prioritariamente a inteligência, haveria momentos em nossa existência em que essa
capacidade majoritária dá lugar a outras tendências de nosso passado vital. Existe, de
acordo com o filósofo, uma memória que é própria à vida inteira e que une todas as formas
vivas. Todo ser vivo vem de um mesmo ponto originário: “Arrastamos atrás de nós, sem
disso nos apercebermos, a totalidade de nosso passado (...) o conhecimento instintivo que
uma espécie possui de outra espécie (...) possui sua raiz na própria unidade da vida.”
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(BERGSON, 1979, p. 151). Ou seja, podemos ter comportamentos típicos de vegetais ou de
insetos. Esses primeiros foram os seres vivos que se contentaram com a retirada da
alimentação diretamente do solo. Esse caminho de acomodação, digamos assim, os levou a
um enclausuramento na imobilidade e na inconsciência dos seus troncos, caules ou galhos.
Os animais, ao contrário, optaram pelo risco da caça. Isso dividiu a linha originária da vida
em uma tendência passiva, o torpor dos vegetais, e ativa, dos animais, que levou, por
exemplo, entre outros caminhos vitais divergentes, a uma conquista de consciência no nível
humano. Mas todo esse passado está vivo em nós. Quando nos propomos enraizamentos,
uma orientação vegetal pode nos dominar provisoriamente. Diante da inexistência de
desafios que renovariam uma ação determinada, somos levados a gestos automáticos,
instintivos. O mineiro de Simondon parece estar localizado nesse segundo caso. Em função
da repetição mecânica dos gestos, das impossibilidades de transmissão, do conhecimento
adquirido na infância e do aspecto desnecessário de reinvenção de suas funções, o autor diz
que existe, em todas essas tarefas, uma minoridade técnica. O domínio nessa situação é dos
elementos externos em relação ao homem. Isso torna o personagem do mineiro alguém
muito distanciado da proposta enciclopedista.
Isso é completamente distinto do conhecimento de caráter científico, que vai
estabelecer um conjunto de regras gerais para os eventos integralmente passíveis de
comunicação a todos, inclusive com a utilização de esquemas visuais. O saber, em aspecto
amplo para o nosso autor, envolve também a expansividade e compreensão desse saber.
Um aspecto solidário é inerente a ele. Esse espírito fica claro nas palavras de um dos
idealizadores da Enciclopédia, Diderot, em uma das introduções do livro: “(...) a perfeição
da obra e a utilidade do gênero humano fizeram nascer o sentimento generoso de que
estamos animados.” (DIDEROT, apud POMBO, 12/10/2008). A missão geral da
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Enciclopédia é a instrução geral e permanente do gênero humano. Está o sentido de
amplitude comunicativa que Simondon percebe na obra. O conhecimento que combina
regras gerais e comunicabilidade universal, ao referir-se à produção de objetos, ganhará o
nome de maioridade técnica. Segundo o autor, a Revolução científica do século XVII teve
um papel importante nesse sentido libertário: “Foi o século XVII que trouxe os meios de
universalização das técnicas que a Enciclopédia colocou em operação.” (SIMONDON,
1989, p. 96). Não podemos esquecer que a própria idéia geral de maioridade é de caráter
iluminista, no sentido que combina acesso fácil ao conhecimento, auto-didatismo,
intervenção criativa e autonomia nas ações. O filósofo dirá: “As técnicas mecânicas
podem tornar-se verdadeiramente majoritárias tornando-se técnicas pensadas pelo
engenheiro, no lugar de permanecer técnicas do artesão.” (idem, p. 87)
Mas a proposta de Simondon para o técnico (ou filósofo da técnica) não passa
exatamente pela opção da minoridade nem pela da maioridade técnica. A escolha radical
por uma ou outra o enfraqueceria. A arte menor, a do artesão, nos coloca exageradamente
ligados ao sensível, em uma relação de inferioridade com os objetos. a habilidade maior,
a do cientista, nos afastaria demais da concretude, colocando-nos, ao contrário, em um
nível de abstração excessivamente distante da matéria e concentrado demais no sujeito. O
técnico (que ele também chama de engenheiro), para o autor, não está em nenhum dos
pólos, mas encontra-se na via média entre a condição artesanal e científica. O técnico
precisa vivenciar um pouco desses dois mundos e é assim com um pouco dos dois talentos
que reincorporaremos os objetos à cultura. Ele ocupa o mesmo nível e vê-se como parceiro
dos objetos, que são, ao mesmo tempo, signos a ser decifrados e conjuntos operativos que
precisam funcionar. Este profissional reúne, portanto, talentos históricos e práticos. É
alguém que utiliza a máquina, mas também a compreende.
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No enciclopedismo, teríamos um exemplo claro de interação entre técnica e cultura.
Temos nessa corrente de pensamento a possibilidade de pensar um outro tipo de
humanismo, que leva em conta não individualidades geniais, mas coletividades criativas.
Simondon enunciará a junção entre a Enciclopédia e a elevação do homem. O sentido
enciclopedista combina cultura e humanismo. Combate também a alienação na medida em
que coloca o homem na posição central do sistema de produção. Como diz Simondon:
“Todo enciclopedismo é um humanismo, se entendermos por humanismo a vontade de
reconduzir a um estatuto de liberdade que do ser humano foi alienado, para que nada de
humano seja estrangeiro ao homem.” (idem, p. 101). Segundo ele, são esses ventos
libertadores da informação técnica que devem nos servir de guia para a criação urgente do
nosso próprio humanismo.
O técnico como filósofo da técnica
Na perspectiva de Simondon, as tradições, o pensamento de uma época e suas
perspectivas futuras se expressam em suas criações técnicas. É a partir desse panorama que
podemos começar a falar do entendimento singular que Simondon tem do técnico.
Haverá, com isso, uma ressignificação completa do seu papel. A atribuição de mero
operador a esse profissional será considerada restritiva e viciada. A simples utilização e
convivência empírica com os utensílios do trabalho não é mais suficiente. Uma ampla
formação enciclopédica, principalmente ligada ao universo técnico, será uma primeira
exigência. Sua atividade envolverá também uma complexa gama de habilidades referentes
ao funcionamento, manutenção, regulagem e melhoramento da máquina. Esse novo
profissional, também nomeado pelo autor como engenheiro, terá que ser capaz de aliar
talentos operativos, intelectuais e criativos. Além disso, uma constituição ética, mesmo que
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isso não esteja claramente exposto por Simondon, fará parte da sua formação: ele deverá
ser capacitado para visualizar o que de humano por trás das produções técnicas e para
refletir sobre as repercussões daquilo que cria, tendo sempre como alvo a expansão da
liberdade humana. O pressuposto, portanto, é que filosofia e técnica permaneçam
indissociáveis.
Falemos um pouco mais do técnico de acordo com esse novo enfoque. Seu campo
de atuação é aberto: pode ser uma máquina industrial, uma placa-mãe de computador ou a
construção de uma ponte. Pode ainda ser uma estrada de rodagem, o que vai muito além do
que se entende usualmente como objeto técnico. Questões econômicas e sociais escapam
por completo aos interesses técnicos. O preço de uma impressora ou as admirações públicas
ou publicitárias de um automóvel serão características que Simondon chamará de
inessenciais. O design, por exemplo, se não estiver a serviço de um aprimoramento
funcional, é visto como desnecessário. Isso não quer dizer absolutamente que o aspecto
estético deva ser menosprezado, mas a beleza deve estar a serviço de um melhor
funcionamento, pois não se pode pensar esses dois itens como separados. Os pontos
centrais de atenção do técnico concentrar-se-ão no processo de constituição de uma
máquina, qual o nível de integração das partes que a compõem e o que é possível fazer para
ampliar suas potencialidades atuais. Ele também não realiza distinções hierárquicas entre
construção e utilização, entre aspectos manuais e intelectuais.
As funções inventiva e operativa também não estarão dissociadas. A idéia é
conhecer para criar. O técnico não vai se impor ou se submeter à máquina, como um patrão
ou um empregado, mas estabelecerá uma relação de companheirismo, interdependência e
colaboração mútua. Sem ser senhor ou escravo, coloca-se no meio delas, aprende com elas,
promove comunicações entre elas e, porque não?, oferece possibilidades para que elas
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continuem sendo aperfeiçoadas, como obras que podem continuar a ser criadas (os prédios
que têm crescimento estimado de Le Corbusier são demonstrações disso). Em Simondon, a
missão técnica é a de regência. A correspondência analógica do engenheiro é com o
maestro, a quem cabe dois papéis: pôr em contato harmonioso os objetos técnicos de ontem
e de hoje e pensar quais deverão ser incorporados à orquestra em um futuro próximo.
A vinculação trabalho/técnica é outra grande preocupação desse autor. O
utilitarismo, um hábito cada vez mais disseminado no mundo contemporâneo, tende a
condicionar a tecnicidade a resultados produtivos, pois tudo precisa ter uma finalidade
prática e alcançar objetivos previsíveis e palpáveis. Por sua valorização do processo,
Simondon sempre criticou esse princípio utilitarista. Uma criação técnica não poderá ter
seu valor medido por seu grau de pronta aplicabilidade ou rentabilidade. Podemos imaginar
Leonardo da Vinci em um auto-questionamento se o seu protótipo do helicóptero poderia
ser construído imediatamente, quantas pessoas seria apto a transportar, quanto seria
cobrado de cada passageiro pelo vôo? Uma inovação tem um valor próprio, seja utilizável
ou não em dado momento histórico. Ela não não tem preço, sendo um bem intangível,
como não está submetida ao tempo físico. Esses posicionamentos provocam a necessidade
de inverter a vinculação comum que se faz entre trabalho/técnica, que coloca esta como
serviçal daquele: “É o trabalho que deve ser conhecido como fase da tecnicidade, não a
tecnicidade como fase do trabalho, porque a tecnicidade é o conjunto, cujo trabalho é uma
parte, não o inverso.” (idem, p. 241).
No empenho realizado para a confecção de um objeto pré-programado, o
trabalhador é o mediador físico muitas vezes quem substitui o instrumento ou a
máquina), aquele que vai promover a união entre uma determinada matéria e uma forma
definida. O esquema hilemórfico de Aristóteles, criticado por Simondon no campo
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biológico, volta a ser reproduzido no campo técnico. A atenção será dada a uma ou a outra,
ambas prontas ou, pelo menos, concebidas por alguém que não está presente no ato de
fabricação. Criação e execução viram pontos distantes no tempo e no espaço. O interesse,
nesse caso, nunca se posiciona na operação propriamente dita, mas nos seus resultados
anteriormente planejados. São os princípios e as finalidades, ambos imóveis, os objetos de
interesse. O meio, móvel, permanece na obscuridade. É esse distanciamento em relação ao
que se produz e como se produz, que seria motivado por ausência de educação técnica, que
promove a alienação, segundo Simondon. O operador não participa da operação técnica
mesmo quando comanda ou serve a máquina. Ele está presente com seus braços e pernas,
mas está alheio mentalmente. . Falaremos mais sobre isso em um próximo subitem. Nosso
autor resume o que no processo técnico e que falta na prática produtiva: “O
funcionamento operatório supõe na base, como condição de possibilidade, um ato de
invenção. A invenção não é trabalho.” (idem, p. 247).
A própria palavra execução, sempre ligada à realização de um trabalho, já traz em
si um sentido fechado de ordenamento externo que não incentiva intervenções ao longo da
realização. Nesse esforço, o que é mobilizado e requerido no homem é apenas seu saber
motor. A tecnicidade está contida por um padrão, uma finalidade preestabelecida. Essa
situação estável não deve ser abalada por modificações, sempre conjuradas como
instabilidades perigosas. Como existe um objetivo definido a ser atingido, as múltiplas
vertentes futuras da relação homem/máquina serão encobertas. O simples trabalho reduz,
assim, as possibilidades de a operação técnica realizar tudo o que pode. O homem torna-se
nessas circunstâncias o que Simondon chama de mero portador de ferramentas. É a
humanidade, assim, que tem diminuídas as suas plenas potencialidades, já que a vida
mental e as resoluções criativas, características singularmente humanas, são diluídas por
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uma esquematização sensório-motora que exige apenas repetições. Seríamos, então, menos
humanos quando somos trabalhadores. Contrariamente à idéia positivista de Comte de
que o trabalho sempre dignifica o homem, Simondon diria que trabalhos que claramente
tornam a vida humana indigna.
Ao contrário, efetivamente nos humanizamos no momento em que saímos da
simples atualidade aplicadora e penetramos nas virtualidades inventivas. o estamos
dizendo, por outro lado, que o técnico deve se colocar distante da materialidade do que faz,
como é representado pelos executivos de muitas empresas hoje. Engenheiros que muitas
vezes começaram suas carreiras aplicando idéias na produção efetiva de objetos, na medida
em que ascendem na carreira perdem esse convívio, tornando-se homens de negócios (para
os quais a intenção final lucrativa é a mesma do dono do negócio), o que é fatal em termos
de criatividade técnica e um caminho para o segundo tipo de alienação que apontamos, a
dos proprietários, os que exercem comandos sem ligação afetiva e vital com o que está
sendo feito. Em suma, o técnico não está na condição de blue collar dos operários nem da
white collar dos administradores, mas entre ambos.
Simondon não vai nos falar de um domínio ou de uma submissão do homem ao
ambiente. Não sombra de determinismos, em que um impera sobre o outro, mas união.
A conjugação será chamada de meio associado. Visto desse modo, o objeto técnico é um
misto harmônico e conversível entre homem e natureza e ele se aprimora na medida em que
se aproxima do natural. Isso faz com que uma flor modificada em laboratório possa ser
mais artificial que uma ponte perfeitamente integrada ao ambiente onde foi construída.
Existe uma falsa imagem, inclusive originária de um certo humanismo de caráter
moderno, de que é do homem o comando da constituição dos objetos. Na realidade, se o
papel humano for bem desempenhado, serão viabilizados os meios para que a tomada de
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forma aconteça, mas ela se dará por si mesma. Qualquer esquema técnico é maior do que a
mera soma de componentes envolvidos na operação. A tese do filósofo escocês do século
XVIII, David Hume, de que as relações são exteriores aos seus termos é plenamente
assimilada pelo pensador francês. Não coisas, mas relações que ultrapassam e mesclam
essas coisas em composições qualitativamente novas. O que Hume conceitua como relação,
Simondon vai nomear de operação ou sistema. Isso vale até para a composição de um
tijolo: “(...) é o sistema constituído pelo molde e pela argila prensada que é a condição da
tomada de forma.” (idem, p. 243).
Mas trabalho e técnica não se eliminam. Uma máquina obviamente deve realizar a
função a que se presta, mas, para além dessa superficialidade, ela é fundamentalmente
portadora de informações que precisam ser decodificadas. É por isso que o simples uso ou a
mera visão produtiva e econômica dos objetos técnicos é tida como insuficiente. Esse papel
de decodificador cabe ao homem que domina os saberes técnicos. O portador de utensílio
fica para trás e surge o portador de informação. Para que uma real troca de informações
aconteça entre homens e máquinas é preciso um encontro entre a forma externa do objeto e
as articulações mentais internas presentes a um sujeito. Combina-se estrutura material e
energia imaterial, pondo em contato pólos heterogêneos. Quando isso ocorre, a gênese
criadora é permanente.
Os objetos técnicos possuem dimensões genealógicas, sendo obras coletivas e
abertas. São transmissores interumanos de informação. É o que Simondon chamará de
transindividualidade. Com isso, a estrita separação sujeito/objeto nos moldes cartesianos,
com o império do primeiro sobre o segundo não faz mais sentido, pois o conhecimento
técnico depende de uma aliança de saberes que vem de ambas as partes: “(...) para que um
objeto técnico seja recebido como técnico e o somente como útil, para que ele seja
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julgado como resultado de invenção, portador de informação, não como utensílio, é preciso
que o sujeito que o receba possua em si formas técnicas.” (idem, pp. 247-8). Os objetos não
são forjados apenas com matéria, alma neles, pois existem enigmas e virtualidades de
uma série de criações presente neles. Cada um tem seu modo de existência, sendo
literalmente indivíduos com “história” e “código genético” próprios. Por isso, a necessidade
de decifradores. Para aqueles que são capazes de enxergar, a humanidade toda está presente
em um invento.
A operação de decodificação envolve a retomada do processo inventivo. Será
preciso remontar o problema que foi resolvido no momento da criação do objeto técnico.
Lembremos que não invenção sem problematização. Esse é um aspecto integralmente
filosófico, visto que se faz necessário para a compreensão de uma filosofia o esforço de
refazer o processo de pensamento que levou à elaboração de um conceito. É o que o
filósofo francês da primeira metade do século XX, Henri Bergson, uma forte referência nas
reflexões de Simondon, nomeou como intuição. É a intuição do feito que leva à intuição
do ainda não feito. A junção dessas duas qualidades, intelectual e criativa, é que faz o
técnico penetrar no interior das coisas técnicas para compreender e experimentar suas
tendências evolutivas. É isso que lhe assegura a nova condição de filósofo da técnica.
Técnica e alienação
Alienação é um conceito trabalhado de modo original por Simondon em sua
filosofia da técnica. Mas antes de tratar da sua abordagem específica, sentimos necessidade
de recorrer às fontes históricas do conceito. De acordo com a etimologia, alienar-se está
permanentemente ligado a uma perda de humanidade: é pertencer a um outro, é não possuir
o domínio de si, é estar alheio. Duas grandes acepções decorrem daí em épocas distintas:
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uma individual e outra social. A primeira, mais antiga, começa a ser utilizada no século
XIV e diz respeito ao processo de enlouquecimento que os indivíduos sofrem. A segunda,
do século XIX, ganha um sentido renovado, principalmente com Marx. É essa última que
revela-se como fonte fundamental das reflexões de Simondon sobre essa questão. Iremos
expor agora em linhas gerais a visão de Marx e, junto a isso, a crítica simondoniana.
Qual foi a perda específica que o pensador alemão percebeu com a ascensão do
modo capitalista de produção? A primeira constatação é que o mundo da mercadoria
transformou o caráter do trabalho, retirando do homem a seleção afetiva que se realizava
entre ele e sua atividade. O trabalhador simplesmente deixa de escolher o que produz.
Durante o processo inevitável de divisão e especialização de funções que acompanha os
processos inerentes ao sistema capitalista de produção, o operário passa a compor artefatos
exteriores às suas próprias inclinações: “A alienação começa quando (...) o objeto que o
trabalho produz enfrenta o seu produtor como um ser estranho, uma força independente.
(SANTOS, 1985, p. 35). O trabalho passa a ser hostil ao trabalhador e deixa de refletir suas
aspirações e talentos. Além disso, ele passa a ter uma atuação mínima na elaboração de um
produto industrial. O que Marx conclui é que, ao longo dessa nova ordem de
acontecimentos, a sua própria humanidade é retirada. Com o processo de alienação
(exteriorização de si), a essência humana é retirada, na medida em que deixa de ser o que é,
uma mistura de produção e criação, e torna-se apenas meio de existência. A vida material é
fim e a sua atividade é apenas meio. A divisão do trabalho transforma o operário em
máquina. Ele não existe como ser humano, mas como trabalhador. Quando suas forças
vitais são cedidas a outro, ele perde a sua humanidade.
Um aspecto paradoxal, que Marx anuncia de modo visionário, é que o avanço da
maquinaria, que supostamente teria a missão de poupar os homens de grandes esforços,
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faz com que eles trabalhem, ou sejam “escravizados”, tanto bem quanto mal pagos, mais e
mais horas. Se o capitalismo fosse racional isso aconteceria, porém ele não é
contraditório, mas se alimenta disso para seguir existindo. Marx traz o exemplo disso: “Mas
esse [o tempo de trabalho] elevou-se para o trabalhador inglês nas manufaturas de algodão,
a 12 até 16 horas diárias desde 25 anos para cá, em virtude da avidez do empresário,
portanto precisamente após a introdução das máquinas poupadoras de trabalho” (MARX,
2004, p. 31). Um aspecto assustador dessa realidade é que facilmente encontramos pessoas
muito orgulhosas dessa sua condição, como se sua dignidade pessoal pudesse ser medida
pelo número de horas trabalhadas. Essa tendência de jornadas de trabalho exaustivas
continua crescentemente visível hoje. Podemos inclusive perceber que os aparatos
tecnológicos são muitas vezes ofertados para fazer com que trabalhar continue acontecendo
em casa, inclusive nos finais de semana. O que se mascara como liberação e bem-estar para
o trabalhador significaria, para Marx, trabalho ininterrupto, ou seja, completa escravização.
Mais uma vez seriam confirmadas as contradições intrínsecas ao capitalismo, as mesmas
que fazem, por exemplo, com que nas metrópoles superpopulosas tenhamos carros cada vez
mais potentes que rodam cada vez mais de modo mais lento.
Marx uma nítida perspectiva anti-humanista, não obviamente na criação técnica
em si ou no convívio com as máquinas, mas na fabricação industrial de objetos.
Lembremos que a tomada de consciência para a necessidade de transformar a realidade
vem com o contato direto com a materialidade do mundo. Só uma efetiva atuação produtiva
(práxis), uma visível exploração de um homem pelo outro e uma clara divisão de classe
social podem revelar a violência e o aviltamento a que o trabalhador se submete no modo
de produção capitalista. O trabalho não é mais uma confirmação da nossa humanidade, uma
manifestação de si, mas uma fonte de lucro, algo sempre exterior ao homem. A simples
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manutenção da própria sobrevivência é o objetivo final. A vida material, sem espírito e
meramente orgânica, é fim, enquanto trabalhar é meio. Assim, no regime inerente ao
capitalismo, é um modo negativo de auto-expressão. Essas ponderações são importantes,
pois ele, assim como Simondon de outra maneira, é um pensador que vai além da dicotomia
otimismo/pessimismo em relação à técnica. O que deve ser avaliado para ambos é como a
elaboração de objetos está sendo conduzida e se há ou não participação criativa no processo
fabricador. Isso determina se uma certa produção humana é alienante ou não. Para Marx, é
uma certa conjugação de fatores no modo capitalista de elaboração de objetos que o torna
produtor de alienação e, conseqüentemente, aprisionador, entediante e desumano. O ponto
de vista dominante, o acúmulo permanente de capital, gera um aumento da valoração do
mundo das coisas diretamente proporcional ao desprestígio cada vez maior da realidade
humana. O trabalho, que originalmente é uma atividade vital, potencializadora, torna-se
mortificação. O trabalhador torna-se apenas uma referência numérica, pois é depreciado e
tratado como mercadoria na mesma medida em que mais cria mercadorias. Um indivíduo
deixa de ser uma singularidade humana para se transformar em algo que consegue realizar
funções x em um tempo y.
Em função de ações restritas, repetitivas e ordenadas exteriormente, o homem fica
submetido à condição de meio de produção, de máquina, de coisa. Essa atividade, que Marx
nomeia como “incessantemente uniforme”, prejudica ao mesmo tempo o corpo e o espírito.
O operário perde a identidade com aquilo que faz, podendo assim atuar em linhas de
montagem de qualquer produto. Ele nunca o realiza por completo, não tem qualquer
domínio sobre o objeto que está sendo produzido nem com seu modo de produção. Ele
encaixa um farol em um carro, insere um rebite em uma bolsa, aperta uma porca, inclui
uma sola em um sapato etc. Essa ação é completamente desprovida de qualidade e de
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satisfação. A que ele desempenha naquele objeto poderia ser qualquer outra em qualquer
objeto. É a atividade realizada, que deveria ser decisiva, que deixa de importar. Esse é o
trabalho considerado externo ou abstrato, no qual o trabalhador não desenvolve qualquer
tipo de energia física ou espiritual livres, nenhuma composição de si. Não só o seu trabalho,
como ele próprio, pertencem ao patrão. Está o centro nervoso da alienação nomeado por
Marx como estranhamento.
A ação profissional vira um tipo de castigo e foge-se dele como uma peste assim
que as coerções ligadas à sua rotina deixam de existir. Sobre esse tipo de atuação não
sem afeição e fruição, mas com tristeza, aponta-se uma distinção: “O trabalho aparece, na
economia nacional, sob a forma de emprego.”
(idem, p. 30). O trabalho seria, portanto,
ligado a uma escolha íntima do indivíduo, enquanto o emprego seria para a mera
subsistência. Nesse segundo caso, todos os esforços são empregados única e
exclusivamente a serviço do salário, que serve para atender necessidades alheias ao desejo e
prazer do trabalho em si. Nesse segundo caso, todos os esforços são empregados única e
exclusivamente a serviço do salário, que serve para atender necessidades alheias ao desejo e
prazer da atividade em si. Com isso, o próprio fruto do trabalho torna-se indiferente.
Também não é considerado por si, mas apenas como medida de intercâmbio, como
determinação exterior econômica. Um produto vale uma certa quantia quando
comparado a outro. Tudo isso de modo completamente indiferente aos seus vínculos
exteriores com a natureza e com sua própria utilidade. Está sendo feita a famosa passagem
realizada, de acordo com Marx, pelo capitalismo entre valor de uso e valor de troca. Entre
um e outro, o que se perde é a singularidade que o objeto possuía, sendo ele agora
comparável a qualquer outro pela medida igual e geral do dinheiro. Seguimos na trilha da
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abstração: “(...) enquanto valores de troca, as mercadorias café e cigarros são
completamente indiferentes ao seu modo de existência natural.” (SANTOS, 1985, p. 60).
O trabalhador, nesse caso, pode até se aperfeiçoar, mas a degradação como homem
é inevitável. Aliás, o filósofo argumenta que conforme o operário produza mais, ele, ao
mesmo tempo, se desvaloriza. É também por isso que o capitalismo está em franca
contradição com a visão humanista de Marx. Como o nível de realização das tarefas está
limitado ao mecânico e ao simples, as funções humanas podem ser substituídas por
máquinas, o que significa que você emprega homens como peças que, quando envelhecidas
ou ultrapassadas, são repostas, sendo mercadorias, como quaisquer outras.
Simondon discorda dessa visão marxista. Ele considera que essa troca de uma
atividade humana por uma máquina não tem nada de negativo, muito pelo contrário. A
própria substituição é um sinal de que um homem não deveria estar fazendo aquilo e sim
exercendo sua energia em atividades mais livres e inventivas. O processo de evolução das
máquinas, ao ser bem conduzido, leva a isso. O que Marx como parte do processo de
coisificação do trabalhador, Simondon vê como possível liberação e como tendência natural
de máquinas evoluídas. É absolutamente legítimo esperar que um dos resultados possíveis
do aprimoramento das máquinas, que segue a linha do automatismo, é a liberação do
trabalhador do papel de operador de máquinas. É que ele deixa a condição de portador
de ferramentas (as máquinas mecânicas são apenas suas versões mais velozes) para assumir
a de portador de informações.
Marx talvez pense que haja uma perversidade a longo prazo. Primeiro se retira do
artesão sua potencialidade inventiva e o amor pelo trabalho para transformá-lo em mero
simulacro da máquina. Em seguida, fechando o ciclo, o que ele realiza torna-se dispensável
que uma máquina não faz exatamente o que ele faz, como também mais rápido. De
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uma vez, o operário é alheio aos resultados e aos atos de produção dos objetos. O
capitalista é alguém que apenas usufrui do trabalho alheio, mas não se envolve diretamente
com ele, ou seja, é estranho a ele. O domínio será sempre do capital sobre o trabalho, sendo
que o primeiro equivale ao segundo na condição de armazenamento, de repouso.
Por haver um estímulo permanente à disputa ou, em outras palavras, ao egoísmo, temos o
privilégio dos interesses individuais, o que nunca acompanha o interesse geral da
sociedade. É o próprio movimento de estranhamento e exteriorização do trabalho que
permite a existência da propriedade privada, que é “o produto, o resultado, a conseqüência
necessária do trabalho exteriorizado, da relação externa da matéria com a natureza e
consigo mesmo.” (MARX, 2004, p. 87). Um aspecto interessante apontado por Simondon,
que não é cogitado por Marx, é que a alienação pode ser estendida ao industrial. Ele, tal
como o operário, também não tem controle sobre a produção, mas apenas sobre os
resultados. É também um exilado de si: “Ao homem dos elementos, que é o operário, e ao
dos conjuntos que é o patrão industrial faltam a verdadeira relação com o objeto técnico
individualizado sob a forma de máquina. (SIMONDON, 1995, p. 118). Isso significa que
tanto o capital quanto o trabalho estão em uma relação de atraso no que se refere aos
indivíduos técnicos. Simondon vai indicar que falta ao trabalhador e ao patrão a cultura
técnica - o conhecimento profundo do passado e do presente dos sistemas técnicas que os
rodeiam - e só ela desaliena.
Outro aspecto das teses de Marx próximo a Simondon é que ambos não associam o
processo de alienação como resultado constante da objetivação (relação do homem com as
coisas e com os outros homens), pois não é uma condição definitiva para o homem se
coisificar com a confecção técnica. Essa coisificação, defendida por Hegel como resultado
inevitável da relação homem/objeto, marcará profundamente o pessimismo em relação à
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técnica manifestado em algumas linhas de pensamento no culo XX, sendo Heidegger um
exemplo destacado. Marx contemporiza isso. Produzir objetos pode libertar ou aprisionar,
dependendo decisivamente do envolvimento humano nessa produção. O problema é a
tendência alienante inerente ao modo capitalista de produção. Segundo ele, a transformação
do homem em coisa acontece quando ele se sente junto de si mesmo no momento em
que não está trabalhando. Vida e trabalho estão dissociados. A situação do operário é a de
escravo, ao mesmo tempo da máquina, da produção e do capitalista: “O trabalho exterior, o
trabalho em que o homem se aliena, é um trabalho de sacrifício de si mesmo, de
mortificação.” (MARX, apud ABBAGNANO, 1998, pp. 26-7). Esta é a negação de si.
Quando existe amor naquilo que se produz, não peso nas horas que passam, mas
prazer no processo e no fim do que se realiza. É desse ponto, que vem de Marx e está
diretamente ligado à escolha autônoma do que se faz e ao aspecto de intimidade com o
local de trabalho, que Simondon parte. nessas operações, não-alienadas para Marx e
Simondon, uma paixão manifesta em relação à matéria. O vínculo do mineiro com a mina
de que falamos parece ser este. O trabalhador está absolutamente integrado, em corpo e
espírito, em suas funções. Mal conseguimos distinguir onde começa um e onde termina o
outro, tal a co-naturalidade do mineiro com o seu ambiente. Sua percepção da mina nunca
poderá ser igualada por quem não a freqüente desde muito jovem, o que faz com que o
ambiente rejeite os recém-chegados. Para o filósofo francês, sem a presença de desafios e
sem um saber que se compartilha, que pode ser transmitido, o encaminhamento
problemático desse processo é o resultado sempre igual. Se não há problema, não
invenção. É essa a razão para ele classificar esse tipo de saber técnico, artesanal por
excelência, em um nível primitivo, pois é tradicional, fechado e local. Esse tipo de saber
pertenceria, por isso, a um estágio infantil: (...) fica certo que uma semelhante formação
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técnica, consistindo em intuições e esquemas operatórios puramente concretos, muito
dificilmente formuláveis e transmissíveis por um simbolismo qualquer, oral ou figurado,
pertence à infância.” (SIMONDON, 1989, p. 90). Nessa ordem operativa não renovação
constante de informações, mas apenas a reiteração permanente das mesmas atividades, o
que conduz a um embotamento. Em Simondon, esse momento será chamado de
automatismo. Ele considera que o automatismo e a alienação (unificados em um
movimento nas atividades dos operários em Marx) são perigos distintos que estão sempre
rondando. Agora é hora de tratarmos da abertura e fechamento dos objetos e técnicos e
como a cultura técnica precisa estar, de uma vez, nas baixas altitudes materiais e nos altos
picos da teoria científica.
Objetos concretos e abstratos
Para começar, indo de encontro ao senso comum, para Simondon concretização
não é finalização ou atualização de um processo, como se pensaria à primeira vista, mas,
pelo contrário, continuidade, abertura. No momento de verificar a condição evolutiva de
um objeto, não podemos levar em conta apenas a sua individualidade, sua denominação,
sua aplicação atual ou a sua aparência externa. É a função, o desempenho que é
determinante. E não existe forma fixa que corresponda a um uso definido: “Um mesmo
resultado pode ser atingido por estruturas muito diferentes.” (idem, p. 19). O critério não
deve ser classificatório (baseado em identidades exteriores) ou por denominação, mas por
ações desenvolvidas: os primeiros computadores provavelmente estavam mais próximos
das calculadoras do que dos computadores contemporâneos. Esse argumento que separa
função de forma se aproxima, a nosso ver, do que Spinoza menciona sobre a importância
decisiva dos modos de existência na avaliação de um ser. Ele vai dizer que, nesse sentido,
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os cavalos de carga estão mais próximos dos bois de carga do que de cavalos de corrida. Ao
se deparar com um indivíduo, a pergunta será o que ele pode?(sua potência), não o que
ele é? Qual é a sua identidade?” (sua essência).
O mesmo raciocínio é aplicado por Simondon no campo técnico. Não é o
pertencimento a uma certa espécie ou uma finalidade que define um objeto, mas a sua
gênese e desenvolvimento temporal. Sua utilização, por exemplo, pautada apenas pelo
presente, revela-se um mau parâmetro para avaliar as potencialidades que ele abriga. Não
se sabe, a partir de um indivíduo isolado, que caminho futuro ele pode ter, pois renovações
surpreendentes não cessam de acontecer. O critério de avaliação deve ser arqueológico, não
simplesmente utilitário, pois é possível compreender capacidades evolutivas se as
criações técnicas tiverem sua história desvendada, sua árvore genealógica descrita e
compreendida. Sua memória orientará seu devir próprio e revelará a íntima ligação com os
diferentes grupamentos humanos aos quais ela está ligada. O presente é pouco, pois é uma
ficção que aspira a uma falsa estabilidade, que é visível. O passado é feito de degraus
invisíveis, etapas anteriores de uma escada, também invisível, que continua. O aqui e agora
é apenas um dos degraus. Os indivíduos, inclusive no plano técnico, são fases para outros
indivíduos.
A memória une o mundo físico, o técnico, o mental e o vivo. É interessante perceber
que, tal como na evolução dos seres vivos, no crescimento dos cristais, na composição de
uma idéia ou na constituição de um novo objeto, o momento anterior serve de escalada para
o posterior. Saímos então da casualidade evolutiva, na qual o futuro é inteiramente
indeterminado. Nada é gratuito. Há um fio contínuo de integração entre o antes e o durante
na construção do depois. O que temos são platôs cumulativos e o presente está intimamente
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ligado ao passado, sendo uma das suas realizações. O atual, nessas diferentes ordens, é
constantemente abastecido da virtualidade da memória.
Simondon vai marcar as distintas visões sobre os objetos, indicando que saber
técnico, somente aplicativo, não é cultura técnica, pois, nesse último caso, é imprescindível
um conhecimento que leva em conta o antes e o agora, ou seja, a memória. Esse tipo de
conhecimento é um dos fatores que possibilita o aprimoramento funcional. O outro é que as
peças constituintes se troquem internamente energia e informação, harmonizando-se. Isso
não é o mesmo que adaptação, pelo menos não na noção defendida por Darwin. Esta era
entendida como uma simples acomodação às pressões ambientais. Seu sentido é negativo,
passivo, pois é o ser amoldando-se a uma situação prévia. O intercâmbio dentro/fora não
ocorre efetivamente. O indivíduo perde algo e o meio externo não ganha nada. Mas a
situação de uma adaptação a si, que envolve necessariamente uma reorganização criativa.
Isso acontece no plano biológico, social, mental e técnico.
Nesse último aspecto, isso se com um melhor ajuste e colaboração dos
componentes internos (ou elementos técnicos). É daí que novas individualidades técnicas
surgem. Mas, para que isso aconteça, é imprescindível que haja homens que possuam
cultura técnica. Esse entendimento de adaptação, de ordem interna e não externa, vai
ganhar em Simondon a conceituação de ressonância interna, cuja ampliação seria
exatamente o mesmo que evoluir ou, pelo menos, uma das maneiras de evoluir. Esse tipo de
interação consigo mesmo pode levar à realização de novas e inusitadas ações por parte dele.
O que se torna fundamental aí é que as partes interiores entrem em regime de solidariedade
umas com as outras, o que nosso autor chamará de causalidade recíproca. Nenhum
elemento pode ser gratuito e nenhum é superior aos demais. Na visão simondoniana,
podemos falar em coerência no que diz respeito a essa realidade interior.
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É dessa convergência interna de relações e capacidades, propiciadora de novas
individuações, que advém o caráter concreto de um objeto na visão de Simondon.
Concretização, portanto, tem uma íntima ligação com virtualidade, algo que mantém um
caráter imprevisível no que se refere aos usos futuros daquele indivíduo técnico. Todo o
problema técnico é fazer convergir harmoniosamente funções em uma mesma unidade
estrutural. É desse modo que constituímos objetos concretos. A matéria, usualmente
chamada de bruta, não tem, em Simondon, a passividade que o pensamento filosófico
tradicional atribui a ela. Sua abertura relativamente indeterminada (pois um misto de
participação humana criativa com as características materiais específicas do objeto, ou seja,
também determinação) para o futuro é condizente com uma feição ativa da própria
materialidade, um passado próprio, vivo e aberto a novas relações. Em outra via, a
coletividade humana, inclusive de períodos históricos distintos, que participou de uma
elaboração técnica injeta algo de sua vitalidade nessas produções. No limite, podemos
pensar que a humanidade está integralmente presente nos objetos que realiza.
no processo evolutivo, em todo e qualquer nível, um movimento de
convergência de forças. a divergência ou ultra-especialização (Simondon chama também
de hipertelia) levaria ao aparecimento de subconjuntos isolados, completos e autônomos, o
que indica um cada por si não colaborativo, não solidário, ou seja, não evolutivo. Essa
situação de alta individualização, por ser contrária ao movimento de concretização, é
entendida como abstração. É feita inclusive uma analogia com os vínculos humanos: “(...)
as peças (...) são como pessoas que trabalhariam cada uma por si, mas não se conheceriam
entre si. (idem, p. 21). Por isso os objetos chamados de primitivos, que têm características
artesanais, tendem a uma especialização muito acentuada, à realização de funções únicas,
onde “cada unidade teórica e material é tratada como um absoluto, atingida em uma
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perfeição intrínseca que necessitando, para seu funcionamento, ser constituída em sistema
fechado. (idem, p. 21).
A característica que impera nessa situação não é a virtualidade, mas a atualidade. O
futuro do objeto está todo condicionado na função já exercida. Ele está no plano do já feito.
É em um sentido contrário a esse que Simondon fala de plurifuncionalidade, em que cada
elemento estrutural realiza várias funções em lugar de uma, e em sinergia, cujo sentido
etimológico vem do grego e se liga à cooperação, ação coordenada e simultânea,
participação de várias partes para um fim comum. Os diferentes itens que compõem os
objetos técnicos devem, ao mesmo tempo, colaborar entre si para a constituição de um
sistema integrado de conjunto e também para realizar atividades múltiplas. É seguindo esse
raciocínio que ele argumenta que o aumento do número de elementos não é absolutamente
garantia de evolução: “O acréscimo de uma estrutura suplementar só é um verdadeiro
progresso para o objeto técnico se esta estrutura se incorpora concretamente ao conjunto de
esquemas dinâmicos de funcionamento. (idem, p. 30). A inclusão de peças adicionais pode
até ser prejudicial, quando a sinergia não acontece e a abstração aumenta. Um item que
serve apenas para um embelezamento exterior, que tem muitas vezes fins publicitários e
comerciais, pode trazer graves comprometimentos de desempenho.
Pode acontecer também de o inimigo estar dentro. Os elementos constituintes, nesse
caso, ultraespecializados, entram em conflito e provocam o que Simondon chama de
antagonismo funcional. Mais decisivo então que o número de peças é como elas se
relacionam. Quanto às dimensões físicas, a tendência no mundo contemporâneo em relação
aos objetos, principalmente no universo das altas tecnologias, se dá na direção da
miniaturização. Já é possível aliar muita potência a estruturas muito pequenas. A vanguarda
atual, aliás, é a nanotecnologia, área de conhecimento que pesquisa e produz itens tão
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pequenos que muitas vezes chegam a ser invisíveis a olho nu. O que se verifica em muitos
deles é que o tamanho é inversamente proporcional às capacidades potenciais. O porte
físico e o número de peças, portanto, não é critério para definir estágio de avanço. a
solidariedade interna entre os componentes é decisiva no nível dos indivíduos técnicos
(reunião de elementos), mas principalmente no dos sistemas técnicos (reunião de
indivíduos). Uma colaboração mais importante dos técnicos para a humanidade será a que
promove uma maior interação entre as várias máquinas. É nesse caso que caberá ao homem
o papel de regente, de conector e companheiro delas. Isso gera uma ciência de acordo com
Simondon: a mecanologia. O autor resume dois tipos de aperfeiçoamento possíveis: “(...) o
que modifica a repartição das funções, aumentando de maneira essencial a sinergia de
funcionamento e o que, sem modificar esta repartição, diminui as conseqüências nefastas
dos antagonismos residuais. (idem, p. 38).
É por isso que evoluções que são apontadas como essenciais, convergentes ou
simétricas e que colaboram para um melhor arranjo interno, e outras inessenciais, que
seguem o caminho inverso. Mas os reais e estimulantes conflitos internos dos objetos
podem ser encobertos por aparentes desenvolvimentos. Esses últimos atendem muito mais
às necessidades comerciais de renovação incessante das aparências exigidas pelo público e
pela mídia vivemos socialmente uma corrida incansável atrás da última novidade, o valor
de algo sendo equivalente ao que ele apresenta de alterações em nível externo , que a um
critério técnico. Simondon vai dizer que esses avanços acessórios “podem mascarar as
verdadeiras imperfeições de um objeto técnico, compensando por artifícios inessenciais,
incompletamente integrados ao funcionamento do conjunto, os verdadeiros antagonismos.
(idem, p. 39).
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Assim, distinguir as verdadeiras discordâncias é etapa fundamental da progressão
técnica. A continuidade evolutiva depende da identificação de um preciso grau de abstração
presente no objeto, o que é inevitável, pois nenhum é inteiramente conhecido, totalmente
previsível quanto ao que pode ser ou está definitivamente pronto. É da tensão inerente à
união das partes que se abre o caminho para os avanços, formados por seqüências coerentes
que conduzem a maiores concretudes. É preciso transformar o que é fraqueza em
fortalecimento, o nocivo em saudável. A idéia é encontrar um problema para em seguida
resolvê-lo. Esse é o trabalho do mecanólogo: “O objeto técnico existe então como tipo
específico obtido ao termo de uma série convergente. Esta série vai do modo abstrato ao
modo concreto: ela tende a um estado que faria do ser cnico um sistema inteiramente
concordante consigo mesmo, inteiramente unificado. (idem, p. 23). Simondon fala
também em linhagens e filogenias técnicas, aproximando-se nesse caso do modo de
pensamento biológico, como se, ao verificarmos o passado de uma espécie, fosse possível
descortinar algo de seu futuro. O criador de um objeto será responsável por uma evolução
essencial ou inessencial, na medida em que tiver ou não capacidade de perceber esse
aspecto histórico, ou melhor, genealógico e genético em sua avaliação, além, é claro, do
conhecimento operativo. Agora vamos avaliar os critérios evolutivos utilizados por
Simondon e tentar demonstrar como eles estão intimamente ligados a uma associação
natural.
Concretização técnica e aproximação com a natureza
A vizinhança com a natureza é condição para um objeto seguir evoluindo.
Obviamente, nosso autor não está se remetendo aqui ao plano das semelhanças físicas com
seres naturais, mas a proximidade funcional que os objetos podem manter em relação ao
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vivo. A concretização é co-extensiva do natural. O artificialismo é a via contrária e, visão
interessante de Simondon, pode acometer também os seres vivos na medida em que eles se
afastem das suas inclinações naturais. Isso nos leva a pensar que a idéia de abstração, além
do seu uso no meio técnico, pode ser estendida ao âmbito do que é vivo. Um
enfraquecimento inegável vem daí. Simondon vai ligar essa degradação dos seres técnicos a
uma dependência humana, laboratorial, e a uma conseqüente perda de autonomia e das
capacidades inatas. Isso significa que a relação com os indivíduos, vivos ou técnicos, vai
definir se algo é natural ou artificial, o que mais uma vez destrona esse antigo dualismo. Os
seres vivos são naturalmente concretos, mas o homem pode injetar artificialismos neles. No
lugar de estimular o que existe neles de potencial intrínseco a ser ampliado, o artificialismo
os domestica, tornando-os servos da humanidade, retirando seu desenvolvimento,
poderíamos dizer, genético, próprio. O exemplo fornecido pelo autor é o de uma flor
plantada fora do seu habitat sem qualquer tipo de consideração com a sua singularidade.
Esse procedimento fez com que ela deixasse de dar frutos, além de passar a resistir menos
ao frio e à insolação ao mesmo tempo. Essa flor artificializou-se, perdendo atributos
constituintes fundamentais.
Em contrapartida, o movimento contrário também será possível. Também podemos
ter uma naturalização do que é humanamente elaborado. Se é inevitável que a origem do
objeto seja artificial, o ponto a ser superado é exatamente esse. Isso quer dizer que uma
ponte pode ser mais natural que a flor que mencionamos antes. Ela orna a paisagem e é
ornada por ela. O natural e o artificial não têm ligação com essência ou com origem, mas se
dão na experiência. É a produção espontânea própria da natureza que deve ser buscada
como um espelho, uma analogia, uma inspiração. Essa é a trilha de ampliação da
concretude. Esse aspecto da coerência interior do vivo deve ser referência importante para a
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elaboração dos objetos técnicos, pois em ambos os casos teremos o que Simondon chama
de meio associado. Tal como o organismo de um tigre do Ártico está perfeitamente
preparado para sobreviver às árduas condições climáticas existentes, o objeto técnico, fruto
de uma cultura, deve possuir uma completa integração consigo mesmo e com o ambiente
com o qual interage. A diferença é que, se os seres vivos conseguem isso espontaneamente,
os seres técnicos dependem de uma interferência humana. Eliminando as distinções
radicais, Simondon dirá que uma espécie de vivacidade contagia o universo dos objetos. Os
objetos técnicos, a exemplo do vivo, apenas em uma escala menor, também devem ser
entendidos como teatro de individuação.
Isso contraria nossas idéias iniciais e habituais sobre o mundo técnico. Tendemos a
ver positivamente objetos fechados e absolutos na realização de suas funções. Isso é o que
usualmente se chama de precisão nessa área, pois é desse modo que fica nítido o domínio
que detemos sobre eles. Cada ser cnico deveria ser composto por peças acabadas e
completas, como um indivíduo que atingiu a Forma no sentido aristotélico. Devemos
sempre saber o que esperar deles. O que se extrai daí, de acordo com Simondon, é um todo
invariável e de funcionalidade previsível. Esse encerramento em si causaria uma
paralisação, uma manutenção das conquistas feitas, nunca um avanço. Mais uma vez nos
deparamos com a abstração. Na forma abstrata “cada unidade teórica e material é tratada
como um absoluto, concluída em uma percepção intrínseca, necessitando para seu
funcionamento, de ser constituída em sistema fechado.” (idem, p. 21). As partes autônomas,
analíticas nas palavras de nosso filósofo (as sintéticas entram em processo de
aprimoramento do conjunto, ou seja, cooperação e sinergia), tendem a gerar dificuldades na
própria instrumentalização, na própria funcionalidade. Essa independência funcional das
partes, em que cada uma desempenha a sua função única, independente do conjunto,
- 189 -
gera instabilidade. Estas, também nomeadas de elementos técnicos, seriam tão completas
em relação ao que cada uma realiza que se tornam incompatíveis entre si. Simondon, ao
contrário, indica que mais importantes que as funções específicas são as unidades
compatíveis: “É o grupo sinérgico de funções e não a função única que constitui o
verdadeiro subconjunto no objeto técnico.
(idem, p. 34).
Não existe um ponto final predeterminado para um objeto ou conjunto de objetos
técnicos. Ele mesmo levanta os problemas e colabora para a sua própria trajetória evolutiva.
A questão é que esses problemas têm que ser percebidos. A cultura, a educação técnica,
seria necessária para que isso pudesse ser descoberto. Nesse sentido, o processo de
concretização não ocorre aleatoriamente, mas intenções muito bem definidas, pois tudo
o que é incluído em um objeto em nome de um melhor funcionamento deve ser
determinado. Isso é que será chamado por nosso autor de sobredeterminismo funcional. A
existência de pontos críticos nas máquinas justifica a presença humana. Os objetos
industriais, por exemplo, são mais concretos que os artesanais por não terem nenhum
componente fora do lugar. Tudo o que existe neles é da ordem do necessário. Esse é o
motivo dos sistemas de segurança não serem incluídos, por Simondon, no interior das
tendências mais fortes de concretização, mas são vistos como paliativos, acessórios,
aperfeiçoamentos menores. A segurança é adaptação externa a uma situação prévia, é
restritiva, não ampliadora. Essa trilha é a da conservação e não a da criação, que se dará
sempre com saltos, com rigor reflexivo e intenções muito claras. É assim que vai se dar um
aperfeiçoamento maior, como o que foi conseguido na evolução dos motores até chegarmos
às turbinas aéreas.
A concretização também tem uma forte ligação com a cientificidade. Assim, existe
uma exigência de que a técnica se una à ciência. A técnica não científica tende ao local, ao
- 190 -
particular, ao artesanal, que Simondon associa também à abstração. O artesanato se
contenta com um tecnicismo apenas prático, empírico, o que gera elaborações com alto
índice de aleatoriedade, enquanto a junção de técnica e ciência, prática e teoria, gera
objetos muito precisos, mas receptivos a novas aquisições funcionais. Paradoxalmente, são
abertos ao futuro, mas naquele momento não possuem um elemento sobrando ou faltando.
O conceito de concretização parece também apontar para as conseqüências que a
humanidade pode extrair da elaboração de objetos. Está mais uma vez o papel humano
no processo: as máquinas não fornecem sentido a si mesmas, nós é que o fazemos, pois só o
vivo pode resolver problemas e abastecer a si mesmo de informações. Existe um tipo de
concretização despreocupada com essas conseqüências humanas do progresso técnico.
Nosso autor a nomeará objetiva: “(...) pouco a pouco é a concretização objetiva que é só um
sistema; o homem se excentra, a concretização se mecaniza e se automatiza (...)”
(SIMONDON, apud CHATELÊT, p. 271). Há, portanto, avanços que envolvem um
engrandecimento humano e outros, que não não fazem isso, como podem inclusive
produzir uma fase de decadência, de involução. Esses são aqueles momentos em que
passamos, segundo Simondon, da abertura religiosa aos dogmatismos teológicos, da
grandeza da linguagem à pura e simples concentração na gramática. um necessário
alheamento do homem no processo de elaboração técnica. A concretização objetiva abstrai
o homem de si.
É desse modo que podemos definir, de acordo com Simondon, se um período
histórico é humanista ou não, o que não significa absolutamente o homem ocupar um papel
essencialista, de referência única em relação ao universo. O que tem de ser analisado é a
participação vital, o quanto aquele que executa o trabalho está ali presente ou quanto do que
ele faz depende diretamente dele. Deve-se avaliar também se ele intenciona ou não algo
- 191 -
com aquilo que faz, que intenção é essa e se sua participação inventiva é requisitada ou não
nessas atividades. Não há em relação aos inventos um papel de centralidade ou de pleno
controle humanos diante do todo em volta. Novos objetos são criados pelo homem em
conjugação com os outros objetos. O homem também se individua, biológica e
mentalmente, individuando seres técnicos. O objeto e seus inventores estarem
reincoporados à cultura, também na reflexão sobre a técnica, é outro objetivo a ser
perseguido, a nosso ver, pela filosofia simondoniana. O que parece é que a educação
técnica fornece esses requisitos.
Uma imagem de que Simondon quer se afastar, por mais que certas filosofias de
linha idealista colaborem para manter, é a homem teórico, isolado, no alto do seu saber, da
vida social e da materialidade do mundo. Esse não é o tecnólogo, mas o tecnocrata. Esses
rótulos que posicionam o filósofo como um despreparado para a vida cotidiana não vêm de
hoje. Foram, por exemplo, atribuídos a Tales de Mileto, que segundo uma anedota, por ser
um puro contemplador, de tanto olhar para o céu, tropeçou em uma pedra e acabou no
fundo de um poço. Mas o curioso é que, na mesma história, ele virou o jogo. Para
demonstrar que a reflexão teórica, no caso envolvendo astronomia, agricultura e
meteorologia, pode auxiliar a prática, em um certo ano, ao prever uma grande colheita de
azeitonas, Tales arrendou todas as prensas de produção de azeite da região a baixo custo.
Após a colheita, em função da superprodução, os agricultores foram obrigados, pela grande
procura, a pagar caro a ele pelo uso dos equipamentos. Isso, segundo a mesma lenda,
tornou o filósofo pré-socrático um homem rico. Ele estaria afirmando aí nessas ações, como
uma espécie de moral da história, que um pensador pode conquistar riquezas materiais, se
desejar, mas a questão é que, em geral, ele não canaliza esforços na direção de uma vida
luxuosa, o que os faz optar por uma existência na simplicidade. Não é inabilidade para a
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vida prática, mas uma atenção especial à vida mental. Podemos pensar que uma figura
como Tales se coloca em de igualdade com Arquimedes, no sentido de matriz dos
engenheiros de hoje, na medida em que tinham um na matemática e outro na realização
de obras.
Na perspectiva desses teóricos práticos, não hierarquia em caráter definitivo
entre homens e coisas, mas exploração recíproca de possibilidades. Não é o homem que
molda a matéria. A recíproca é verdadeira, que novos corpos surgem a partir de novas
técnicas. Mas, para além disso, uma grandeza histórica, uma cultura técnica que
impregna os objetos e à qual os homens só teriam acesso educando-se. Não existe nenhuma
garantia de evolução unidirecional, que uma técnica pode humanizar ou desumanizar,
tudo dependendo diretamente do sentido ou falta de sentido que o homem a ela. A
concretização é completa se unir evolução dos objetos e resultados benéficos para a
humanidade. Sobre a relação de franca associação entre humanismo e liberdade, Simondon
vai dizer: “O humanismo não pode jamais ser uma doutrina, nem mesmo uma atitude que
poderia se definir de uma vez por todas; cada época deve definir seu humanismo
orientando-o contra o perigo principal da alienação. (SIMONDON, 1989, p. 102). A luta
humanista, portanto, em cada momento da história é contra o alheamento do homem do
processo e tem que ser permanentemente reinventada, pois a possibilidade de libertação do
homem pela técnica é distinta em cada época.
Evolução genética dos objetos técnicos × demandas psicossociais
Temos visto neste trabalho que os objetos não são mais compreendidos como meras
massas passivas e inertes inventadas unilateralmente por inteligências humanas, mas são
co-participantes, junto com seus “antepassados”, da sua própria criação. Eles, tal como os
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seres vivos, ajudam a construir seu próprio futuro, sendo portadores de uma tecnicidade e
um dinamismo próprios. Eles possuiriam cargas genéticas a ser desvendadas. Haveria
portanto um genoma técnico, pesquisa que se revelaria tão importante quanto a que se faz
hoje do genoma humano. É nesse desvelamento que se localiza um importante papel
humano. É claro que máquinas fechadas que dispensariam essa avaliação técnica e que
se prestam a uma única função, mas elas são, de acordo com Simondon, desvios da
tendência evolutiva e tendem, como na biologia, à extinção ou a uma utilização muito local
e restrita. Uma característica comum a todas elas é um forte automatismo, o que anuncia
pouca versatilidade e poucas possibilidades de desenvolvimento posterior, ou seja, um
baixo nível técnico.
Qualquer processo de evolução técnica se dá, portanto, por meio de um vínculo
relacional, que implica, ou melhor, co-implica homem e objeto. Os inventos técnicos não
sairiam prontos da mente prodigiosa de um gênio, mas de uma experimentação em
igualdade de condições entre a humanidade e seus inventos. Como aponta Bernard Stiegler,
os indivíduos técnicos são seres inorgânicos, mas que se organizam. É por isso que se fala
de uma emergência e de um modo de existência deles. As máquinas normalmente têm mais
a nos oferecer do que imaginamos ou esperamos delas. É inerente a grande parte delas uma
margem de indeterminação e uma metaestabilidade que devem, primeiro, ser descobertas e,
em seguida, preenchidas de novas informações pelo homem. Possibilidade de humanismo
sim, mas antropocentrismo não, pois, sendo a proposta genética, não se poderia oferecer
nenhuma atuação central para o homem. Ele é um conector e um criador: “O indivíduo
humano aparece então como tendo que converter em informação as formas depostas nas
máquinas.” (idem, p. 37). É essa informação nova que pode gerar novos regimes para as
máquinas. Toda invenção é na verdade uma exumação, pois o desempenho que se espera do
- 194 -
homem é descobrir os indicadores latentes de avanço que os objetos anunciam no momento
do seu desempenho. Por isso a necessidade de experimentá-los, conhecê-los intimamente e
de promover ligações, sínteses entre eles. É aí que se revela a imprevisibilidade: “O próprio
do objeto técnico industrial é uma tendência à unificação das partes sob um todo que não é
o feito de um homem que fabrica o objeto raciocinando por funções, mas de uma
necessidade sinergética a maior parte do tempo imprevista por ele, que se afirma no seio do
objeto durante o seu funcionamento, onde o objeto inventa o seu funcionamento
independentemente da „intenção fabricadora‟.” (STIEGLER, apud CHATELÊT, p. 252).
Que parâmetro usamos para definir o grau de evolução técnica dos objetos? Ele
pode ser interno, pois a estrutura externa ou as aplicações práticas não dizem tudo que
aquele objeto pode fazer nesse momento ou no futuro: “A indeterminação que é a virtude
conquistada pela máquina moderna, mas que constitui, por tendência, a essência de todo
objeto técnico, proíbe uma classificação a partir dos usos. A classificação dos objetos
técnicos não deve ser construída sobre critérios exógenos que são os usos que se faz deles.
(idem, p. 246). Assim como Cuvier descobriu na biologia que um ser deve ser classificado
segundo uma interrelação orgânica interna isso que faz uma baleia ser um mamífero e
não um peixe ou a união entre garras, dentes e estômago que um tigre deve ter), o mesmo
procedimento precisa ser aplicado para o mundo dos indivíduos técnicos. A forma externa
não pode servir de fator classificatório. Diz o próprio Simondon sobre as distorções
proporcionadas por uma classificação apoiada na exterioridade: “(...) mais analogia real
entre um motor de corda e um arco ou uma besta que entre esse mesmo motor e um motor a
vapor. (SIMONDON, 1989, p. 19).
O que se dá com os carros é um exemplo disso. Por atender a uma série de
demandas psicossociais, acabam acrescentando itens não-evolutivos, ou inessenciais,
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relacionados apenas a essa aparência externa e com um fim publicitário de chamar a
atenção dos consumidores. A demanda por mudanças, nesse caso, é um clamor que vem de
fora e feita por pessoas que desconhecem o funcionamento próprio dos veículos. É por isso
que a evolução dos carros tem outra origem: “Os progressos do automóvel vêm de
domínios vizinhos, a aviação, a navegação, caminhões transportadores. (idem, p. 27). Um
pequeno agrado elétrico e surgem problemas de funcionamento que não existiam. O que
isso significa claramente é que as necessidades econômicas muitas vezes entram em choque
com as necessidades técnicas. Ao comparar carros e aviação, diz ele: “(...) enquanto o
automóvel pode se permitir conservar resíduos de abstração (resfriamento à água, ligação
por bateria e transformador de impulsões), a aviação é obrigada a produzir objetos técnicos
mais concretos a fim de aumentar a segurança de funcionamento e diminuir o peso morto.
(idem, p. 26). Quanto à aviação, isso aconteceria na medida em que são causas internas que
condicionariam de modo determinante o regime de funcionamento das aeronaves. Não
podemos esquecer que além da questão urgente de garantir maior segurança de vôo, existe
uma baixíssima interferência de passageiros não só na fabricação das aeronaves como
também nos sistemas de operação das companhias aéreas. Em suma, a aviação é uma área
de alta tecnicidade e especialização e não dá abertura para intervenções de usuários.
Isso nos leva a perguntar como fica a relação entre técnica e estética. A questão que
fica no ar é como um objeto técnico pode ser belo? A beleza, o design pode colaborar na
tecnicidade? Quando a beleza não é um mero acessório que tem fins comerciais? O autor
argumenta que beleza em um objeto técnico no momento em que ele está em ação e,
ao mesmo tempo, cumprindo a ação a que se presta. Mas o ponto mais importante está
relacionado ao envolvimento humano existente nesses objetos e o quanto a humanidade
ganha com essas atuações. É um para-além da matéria, uma inclusão possível de
- 196 -
qualidades, uma transcendência que faz um objeto técnico ser estético, o que nos faz pensar
que a virtualidade presente em um objeto técnico também é estética. A busca de uma
perfeição própria ao campo da magia é repassada ao universo da técnica no sentido de
aquisição de beleza e prestígio. Simondon obviamente concorda que nem todo objeto
estético é técnico, mas, por outro lado, afirma que todo objeto técnico tem um valor
estético, que, de modo mais geral, todo gesto humano envolve algo artístico e também
sagrado, sendo uma intervenção entre a totalidade da vida e o mundo. É a beleza cnica
que estetiza a tecnicidade. O objeto técnico é perfeitamente realizado quando consegue
fundir técnica e estética. Isso também seria para ele um motivador evolutivo.
Qualquer tomada de posição taxinômica no campo das máquinas deverá levar em
conta, portanto, o caráter experimental e uma avaliação que se faz por dentro de cada objeto
e, principalmente, o que ele pode ser daqui para a frente. Assim, tal como os indivíduos
vivos evoluem a partir de uma reorganização interna, o mesmo deve acontecer com os seres
técnicos. A distinção é que esse segundo modelo evolutivo depende de uma participação
humana. É a figura do técnico (filósofo da técnica), homem de cultura e companheiro fiel
das máquinas, que surge aí, oferecendo uma real possibilidade de pensarmos avanços
técnicos favoráveis à humanidade. Ou seja, humanamente técnicos.
- 197 -
CONCLUSÃO
Gilbert Simondon é um filósofo raro. Une de um modo muito singular reflexão
consistente e intensa vinculação com a materialidade do mundo e seus devires. Isso faz dele
um pensador absolutamente contemporâneo. A humanidade está em vias de modificação
profunda em relação a si mesma e a divisão estrita de áreas de saber é desprovida de
qualquer sentido. Pensemos na genética, área privilegiada para percebermos que um novo
ser humano está surgindo. Hoje temos aí, no mínimo, o cruzamento de nove setores de
pensamento distintos: política, informática, direito, economia, estatística, medicina,
biologia, filosofia e sociologia.
Um problema surge nesse cenário: tecnicamente, em breve, talvez tenhamos
condição de clonar integralmente seres humanos. Uma pergunta que não vemos ser feita
com freqüência nos meios científicos e na sociedade é com que objetivo se faz esse tipo de
experiência. É exatamente nessa lacuna que o questionamento filosófico se insere. As
terapias genéticas, a partir de células-tronco, oferecem, pelo menos, uma dupla
possibilidade futura que exige uma escolha nossa: recriar órgãos que foram danificados e
praticar medicina regenerativa ou produzir reproduções de seres humanos existentes. O
caminho a tomar e que nunca foi tomado antes é uma das encruzilhadas éticas
contemporâneas.
O que parece é que vivemos uma disparidade entre os avanços assombrosos
conquistados no plano material pelas ciências e a escassa reflexão crítica, principalmente
dos filósofos, sobre esses mesmos avanços. Parte da filosofia contemporânea parece ainda
ter fortes ranços preconceituosos contra a produção material e técnica. A impressão que
temos é que esses pensadores não estão vivendo em nosso tempo. Ou estão distraídos (o
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que seria imperdoável) ou consideram problemas como esses desprezíveis. Diz
Dominique Lecourt sobre a filosofia e o pensamento sobre a técnica: “(...) Com algumas
exceções raras e notáveis, (...) os filósofos não aceitaram se interrogar de maneira
aprofundada sobre essa dimensão maior da existência humana, sobre o imemorável valor
humano que ela representa.” (LECOURT, 2005, p. 41).
O que esses filósofos não notam é que seres humanos sempre produziram objetos e
foram produzidos por eles, o que significa que novas humanidades sempre surgiram.
Vamos pensar, por exemplo, que novos corpos foram esculpidos, no plano físico e mental,
com o uso de telefones celulares. O que a genética, combinada aos meios computacionais,
está fazendo é acelerar o processo de novas modelagens humanas. Com isso, fica mais e
mais difícil defender a visão filosófica tradicional de uma natureza humana.
Mas os resultados desses processos são imprevisíveis. Podem ser benéficos ou
maléficos ao futuro humano. Essa incerteza nos leva a pensar que talvez nunca tenhamos
precisado tanto de filosofia como agora. Mas ela precisa ser interdisciplinar, voltando-se
para suas origens gregas. Sua problematização tem que envolver, ao mesmo tempo, o ato de
criar objetos e os seus efeitos para a humanidade. Será preciso associar epistemologia,
capacidade operativa e criação de valores. Estes últimos, que milenarmente foram tidos
como universais e absolutos, não se adéquam mais ao nosso mundo. As extremas e velozes
novidades contemporâneas exigem a renovação constante de padrões comportamentais
estabelecidos. Soluções dadas não nos ajudarão a resolver nossas espinhosas situações
atuais. Não será possível uma resposta alheia ao campo da ação. Valor e automatismo não
podem ser relacionados. Simondon entende que o universo dos valores não é rígido, mas
varia de acordo com os acontecimentos. Afinal o indivíduo em trânsito é “um ponto
singular de uma infinidade aberta de relações.” (SIMONDON, 2005b, p. 506). Para estar à
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altura de nossos tempos, lembrando a expressão de Nietzsche, não se pode separar o
biológico, o técnico e o ético.
Torna-se, portanto, urgente retraçar o percurso que o próprio Simondon indica em
sua filosofia. A individuação dos objetos deve ser acompanhada da individuação psíquico-
coletiva. Com isso, dois pensamentos se unem: o técnico e o ético. E ética em Simondon é
uma compatibilidade consigo, uma harmonia interior. O que fica claro para nós em vários
momentos é que a figura do engenheiro ou do técnico deve ter consciência permanente das
conseqüências da sua atuação. Ter educação técnica sem complementar isso com raciocínio
filosófico é não ser integralmente um técnico em Simondon. É justamente por isso que ele
vai propor a inclusão de elementos de história, filosofia e história das cnicas na formação
educativa do técnico. Sem reflexão sobre o seu modo de agir e produzir, a humanidade cai
em tecnicismos puros ou em fundamentalismos religiosos. Uma tendência forte que Lecourt
percebe em vários setores da intelectualidade contemporânea é a do pessimismo combinado
com a irreflexão: “(...) é lamentável (...) que se designe a „manipulação genética das
plantas‟ como uma coisa essencialmente diabólica.” (LECOURT, 2005, p. 28). A restrição
e a proibição não podem ser anteriores ao pensamento.
É óbvio que Simondon tem noção de que a tendência humanista no campo técnico
não é de modo algum majoritária. Nosso filósofo não é um iludido ou um otimista gratuito.
Ele reconhece que uma tendência aprisionadora e alienante que ronda a produção de
objetos. Mas, na via contrária, há uma possibilidade, pouco explorada devemos reconhecer,
de ampliação de liberdade humana. O humanismo e o anti-humanismo são duas
possibilidades quando lidamos com questões técnicas. Podemos pensar que é exatamente
em função dessa duplicidade de trilhas que o pensamento humanista e técnico revela-se
essencial em nossas vidas. Fica, portanto, uma porta aberta e esperançosa na constituição
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educativa de certos técnicos que aliem habilidade produtiva e inventiva a conhecimentos
históricos e éticos. São esses componentes, aliados no pensamento de Simondon, que
podem, em meio ao plano material hiperdesenvolvido que temos, tornar a humanidade mais
humana.
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WIENER, N. O uso humano dos seres humanos. São Paulo: Cultrix, 1990. (Trad. port.:
José Paulo Paes)
WOORTMAN, K. Religião e ciência no Renascimento. Brasília: UNB, 1997.
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REVISTAS, DISSERTAÇÕES E TESES
Revue Philosophique de la France et l’etranger, 3, julho de 2006 (revista toda
dedicada à obra de Gilbert Simondon) Paris: PUF, 2006
Revista do Departamento de Psicologia UFF, nº10.2.3, pp. 41-46 artigo de Rodrigo
FONSECA, intitulado Gilbert Simondon: vestígios de autopoiese
A relação homem/técnica como processo de individuação do coletivo dissertação de
mestrado de Liliane da ESCÓSSIA apresentada na PUC-SP, em 1997.
SITES
POMBO, Olga. www.educ.fc.ul.pt/hyper/enciclopedia/
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( http://www.livrosgratis.com.br )
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