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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
MARLON MELLO DE ALMEIDA
ITINERÁRIO POÉTICO DE GUILHERMINO CESAR
Porto Alegre
2008
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MARLON MELLO DE ALMEIDA
ITINERÁRIO POÉTICO DE GUILHERMINO CESAR
Tese a ser apresentada à banca
examinadora como parte dos requisitos
para a obtenção do título de doutor em
Literatura Brasileira.
Orientadora: Prof. Dra. Maria do Carmo Campos
Co-orientadora: Prof. Dra Márcia Ivana Lima e Silva
Porto Alegre
2008
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APRESENTAÇÃO
Deve haver algo que faça valer a pena estudar, saborear a Literatura para além dos
manuais que pretendem organizá-la e empacotá-la para o consumo imediato.
Foi mais ou menos desse jeito que pensei, se não me falha a memória, ao apagar
das luzes do ano de 1983, sentado na sala de aula (de literatura) de uma turma do então
terceiro ano do segundo grau.
Eu já havia me inscrito para o vestibular em Letras na UFRGS, onde tive a
oportunidade ímpar de ter aulas, já nos meus primeiros semestres de curso, com professores
como Celso Pedro Luft, Maria da Glória Bordini e Tânia Franco Carvalhal. Eu começava a
entender que a Literatura tinha outras dimensões além da escola, que ela tinha cor, aroma,
sabor, textura, enfim, alma que se confirmava existir na intuição de um adolescente que
gostava de ler mas que até concluir seu segundo grau não gostava de estudar literatura.
Passei quatro anos na graduação e outros quatro no mestrado. Mas foi apenas no
ano de 1996, fora do âmbito universitário, que, confesso, comecei a tomar contato com a obra
de Guilhermino Cesar (na verdade, eu conhecia o que todos conheciam, sua História da
Literatura do Rio Grande do Sul) por intermédio da série publicada pelo IEL, Autores
Gaúchos, em fascículo, já em segunda edição, consagrado ao autor.
Quer dizer, em que pese a desinformação de, na época, um recém-mestre, era
surpreendente descobrir algo além de seu citado livro, era surpreendente que um ex-professor
do Instituto de Letras de tão significativa e variada contribuição intelectual fosse pouco
conhecido, pouco estudado.
Admirador confesso de Poesia sobre todas as demais artes literárias, foi preciso,
porém, para mim, contar com a sorte propiciada pelas Professoras Maria do Carmo Campos e
Márcia Ivana de Lima e Silva (que respectivamente seriam orientadora e co-orientadora deste
acadêmico) de, no ano de 2002, ser apresentado à poesia de Guilhermino...
Foi a partir daí e do contato com os bolsistas e pesquisadores do Núcleo
Guilhermino Cesar que nasceu o projeto.
Itinerário Poético de Guilhermino Cesar pareceu-me, pois, um título condizente
com o que aqui se pretende: dar guia ao estudo da poesia e do pensamento poético de
Guilhermino Cesar. Decompondo o título, entendi ajustado pensar em “itinerário” porque o
vocábulo remete imediatamente ao caráter itinerante, peregrino do próprio poeta (portanto, de
sua companheira poesia); e pensei em “poético” não como tributo a poietké aristotélica, mas
como identificação abrangente do lirismo e da lírica guilherminiana.
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Enfim, para seguir essa trilha, dividi a tarefa em dois momentos: uma de estudar,
em um primeiro volume, a poesia editada (em livro, jornal e revista) e os manuscritos à luz
da crítica genética de A mata e o nome (texto publicado em Cantos do canto chorado), e
outra de reunir, em um segundo volume, toda essa poesia, seguindo a ordem das publicações.
Quanto ao conteúdo de cada um dos capítulos, considerem-se, preliminarmente,
os seguintes objetivos:
No capítulo 1. Memória e Poesia, a prioridade é ressaltar alguns aspectos
biográficos do poeta até atingir um ponto de corte, que diz respeito às condições de pesquisa
na época em que este estudo começou a ser gestado.
A segunda parte do capítulo, Poesia, procura relacionar o perfil biográfico do
autor com o perfil de sua poesia e anunciar o principal objetivo da tese: apresentar um
itinerário poético marcado pela afeição como resistência à desistência, como diferença à
indiferença.
No capítulo 2. A Poesia de Guilhermino Cesar segundo a Crítica, conforme o
título sugere, procura-se identificar os principais estudos que compõem a fortuna crítica do
autor. A intenção é de reunir alguns dos mais representativos textos acerca de sua poesia.
No capítulo 3. A Poesia segundo Guilhermino Cesar, a intenção é apresentar (com
base em dois dos mais importantes textos críticos de Guilhermino Cesar) aspectos essenciais
do pensamento do autor acerca da poesia e (a partir de artigos e prefácios sobre alguns poetas
gaúchos) do fazer poético.
No capítulo 4. A Obra Poética de Guilhermino Cesar, proposta é fazer um breve
estudo crítico/descritivo de cada um dos seus livros publicados a partir de Cataguases,
passando por Coimbra e chegando a Porto Alegre, lugares onde o autor residiu, e aos
dispersos (inéditos em livro) que encontramos espalhados entre suas colaborações ao jornal
Correio do Povo, de Porto Alegre, entre os anos de e .
Os três itens deste capítulo ancoram-se na idéia de “experiência”, respectivamente
mineira, portuguesa e sulina, por nos permitir pensar a poesia em questão para além dela
mesma, isto é, para o âmbito da experiência do afeto.
Para concluir, ao se propor a partir dos originais de A Mata e o Nome um
cruzamento, no capítulo 5. Manuscritos, Datiloscritos e Escritos, entre a poesia feita
(manuscritos e datiloscritos) e a poesia publicada (escritos), também está se propondo uma
reflexão final comandada por três questionamentos que sutilmente perpassam todo este
trabalho.
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A respeito da poesia de Guilhermino Cesar:
Partindo de uma análise sócio-interpretativa, que traços da herança modernista são
mais visíveis no processo e no produto advindo da criação literária?
Em que medida forma e conteúdo confluem para o estabelecimento da voz
poética? Que voz é essa?
Considerando a totalidade de sua poesia, ela pode ser considerada como resultado
de um projeto? Que projeto, enfim, é esse?
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ITINERÁRIO POÉTICO DE GUILHERMINO CESAR
Vol. 1
SINOPSE
1. GUILHERMINO CESAR: MEMÓRIA E POESIA
1.1 Memória
1.2 Poesia
2. A POESIA DE GUILHERMINO CESAR SEGUNDO A CRÍTICA
2.1 No Caderno de Sábado do Jornal Correio do Povo
2.2 Em outros estudos críticos
3. A POESIA SEGUNDO GUILHERMINO CESAR
3.1 Em Poesia e Artes Poéticas
3.2 Em A Poesia Brasileira de 22 até hoje (1983)
3.3 Em outros escritos
4. A OBRA POÉTICA DE GUILHERMINO CESAR
4.1 A Experiência Mineira: Cataguases
4.1.1 A Revista Verde
4.1.2 Meia-Pataca
4.2 A Experiência Portuguesa: Coimbra
4.2.1 Ladrão de Cavalo
4.2.2 Lira Coimbrã e Portulano de Lisboa: Lira Coimbrã
4.2.3 Portulano de Lisboa
4.3 A Experiência Sulina: Porto Alegre
4.3.1 Arte de Matar
4.3.2 Sistema do Imperfeito e Outros Poemas
4.3.3 Banhados
4.3.4 Cantos do Canto Chorado
4.4 Poemas do Caderno de Sábado
5. MANUSCRITOS, DATILOSCRITOS E ESCRITOS
REFERÊNCIAS
Vol. 2
TODA A POESIA
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1. GUILHERMINO CESAR: MEMÓRIA E POESIA
Só a arte é um povoador
deslumbrado
G.C.
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1.1 Memória
Guilhermino Cesar nasce no município de Eugenópolis, Minas Gerais, em 15 de
maio de 1908 mas em 1910 está com “o na estrada”: muda-se para Leopoldina, onde
permanece até 1919, quando novamente se muda, dessa vez para Cataguases, lugar de suas
raízes intelectuais, onde assina, em 1927, o manifesto da Revista Verde juntamente com
Henrique de Resende, Ascanio Lopes, Rosario Fusco, Francisco Peixoto, Cristophoro Fonte-
Boa, Martins Mendes, Oswaldo Abritta e Camilo Soares. Ao publicar , ao longo de seis
edições da curta e barulhenta vida da revista, conto, poesia, crônica e crítica, Guilhermino
Cesar antecipa a tendência múltipla de sua atuação intelectual.
Em 1929, em Belo Horizonte, ajuda a fundar o tablóide Leite Criôlo, que se
transforma em uma espécie de página cultural do jornal Estado de Minas, onde dá início à sua
também movimentada carreira profissional: atua como jornalista, assume cargos políticos,
leciona na UFMG, até assumir, em 1943, o cargo de Chefe de Gabinete do Interventor Federal
do Rio Grande do Sul, Cel. Ernesto Dornelles, durante três anos.
Depois de outras experiências políticas, em Porto Alegre (como a do cargo de
Secretário da Fazenda do Estado do Rio Grande do Sul, durante o ano de 1953), Guilhermino
Cesar viaja, no ano de 1962, para Coimbra, em cuja universidade leciona Literatura Brasileira
até retornar, alguns anos mais tarde, a Porto Alegre para a então Faculdade de Filosofia da
UFRGS, universidade onde, como professor catedrático, se aposenta mas permanece: mesmo
depois de sua morte, em 1993, é homenageado com uma praça, em 1995 (em frente ao
Instituto de Letras), que leva o seu nome. Mais tarde, no ano de 1998, os professores de
Literatura Brasileira do Instituto de Letras idealizam e encaminham ao seu Conselho de
Unidade o projeto da fundação do Núcleo de Literatura Brasileira Guilhermino Cesar cujo
objetivo de partida é o de resgatar, pesquisar e organizar o acervo literário do autor.
O nosso trabalho acadêmico filiado a um projeto-matriz (com apoio do CNPQ,
entre os anos de 2002 e 2007, sob coordenação da Professora Maria do Carmo Campos,
intitulado Leituras de Guilhermino Cesar: Memória e Horizonte na Literatura Brasileira) do
qual provém um projeto pessoal de sua idealizadora (A Poesia de Guilhermino Cesar: o
singular e o plural) integra-se aos estudos de Poesia Brasileira do Programa de Pós-
Graduação em Letras da UFRGS e está imbuído, fundamentalmente, em auxiliar na
preservação da memória de sua razão de ser: o percurso do Homem e Poeta Guilhermino
Cesar.
13
1.2 Poesia
Comparando a atuação profissional com a atuação intelectual de Guilhermino,
percebe-se facilmente a sua têmpera inquieta, múltipla, peregrina, capaz de levá-lo a residir e
trabalhar em lugares tão distintos como Cataguases, Belo Horizonte, Coimbra e Porto Alegre
e capaz de fazê-lo poeta, cronista, ensaísta, romancista, tradutor... sujeito de alma cigana,
porém dotada de um fiel princípio: a afeição por meio da qual ele fez girar sua roda da fortuna
para todos nós. O depoimento foi dado assim a Léa Masina e Vera Regina Morganti, na
segunda edição (póstuma) sobre o poeta da série Autores Gaúchos do IEL, em 1996: “Então
eu sou um homem que tem vivido à margem do mundo para melhor integrar aquilo que é
essencial no mundo: o sentimento, a afeição.” (CESAR, 1996, p. 8).
Essa frase exemplar se pensarmos a Literatura essencialmente como depositária
fiel do afeto localiza, nas nossas palavras, o centro imaginário da ascese de Guilhermino: a
poesia, espaço de resistência; a poesia, negação da lógica mercantil que prostitui até mesmo a
beleza; a poesia, pela retomada das causas humanas. Jamais a poesia pela poesia, a linguagem
e o humor a serviço apenas do lúdico e da vaidade. Não, a poesia que se quer afeto usa a
palavra para provocar, afagar, afogar, afetar. A palavra é mistério, enigma, obstáculo ao
espetaculismo circense da mass-midia, jamais hermética, ensimesmada.
A poesia que pretendemos apresentar, em seu conjunto, conversa com o leitor,
leva-o aos perigos desse inferno pelas bordas como a perguntar-lhe se está vendo, o que está
vendo. Essa poesia cumpre a sua jornada pela guia de Virgílio, e este trabalho pretende expor
esse trajeto, apenas isso, e com isso confirmar: é poesia de projeto, poesia de ficar.
No mais completo estudo da poesia de Guilhermino Cesar, intitulado A Poética do
Escuro, de 1986, Maria Beatriz Weigert Behr, ao analisar o poema A falta, afirma:
Criam-se imagens aproximando elementos díspares “estrela”, “vaca” mesclados
como na natureza, e obtendo o efeito artístico. Signo grotesco, a desproporção
garante o impacto, reproduz o desequilíbrio da vida “angustiosa” do homem no
século XX. (BEHR, 1996, p. 154).
Bem antes desse poema (que se encontra em Sistema do Imperfeito), porém, a
poética de Guilhermino apresentaria essa conformação imagética do impacto, do inusitado,
da heterodoxia.
14
Interessado em demonstrar o insólito percurso poético através do qual o poeta
chega a tal conformação, o presente trabalho, apesar disso, não tem como objetivo principal
analisar detalhadamente as peças que compõem o mosaico; antes, pretende recuperar o
traçado que se inicia em Minas Gerais, desde a publicação de alguns poemas na Revista Verde
(1927), até as últimas contribuições do autor recolhidas em Cantos do Canto Chorado (1990),
obra posterior ao estudo de Maria Beatriz acima citado e ainda carente de análise.
Além da colaboração em diversos suplementos literários do país nos quais além
de poesia publicou ficção e artigos de temática variada – o autor marcou presença em ensaios
acadêmicos, traduções, contribuições para o teatro, prefácios, palestras, entrevistas, cartas e
depoimentos. Sem dúvida, trata-se de generosa produção intelectual da qual Guilhermino, de
acordo com seu próprio testemunho, na entrevista citada, concedida a Lea Masina e Vera
Regina Morganti (1996), destaca a poesia como gênero pelo qual gostaria de ser lembrado
pela posteridade.
As publicações em livro de sua poesia começam em Cataguases, Minas Gerais,
com Meia-Pataca (1928), em parceria com Francisco Peixoto, passam por Coimbra,
Portugal, com Ladrão de Cavalo (1964), Lira Coimbrã e Portulano de Lisboa (1965) e
desembarcam em Porto Alegre, Rio Grande do Sul (onde foi professor catedrático de
Literatura Brasileira da UFRGS), com Arte de Matar (1969), Sistema do Imperfeito e Outros
Poemas (1977), Banhados (1986) e, finalmente, chegam a Cantos do Canto Chorado (1990),
edição – organizada por Tânia Franco Carvalhal – que reúne parte da poesia édita e inédita do
autor.
A fim de apresentar um panorama geral de toda a poesia de Guilhermino –
publicada em jornal, revista e livro – descrevemos, conforme anunciado na apresentação desta
tese, o essencial da crítica acerca dessa poesia e, também, o pensamento crítico do autor a
respeito de poesia. Para cumprir a tarefa, é dado destaque, no capítulo 2, aos textos publicados
no Correio do Povo, em edição de 1978 comemorativa aos 70 anos do poeta; no capítulo 3,
destacamos dois de seus mais significativos textos: Poesia e Artes Poéticas, aula magna
publicada como separata da Revista ORGANON, da Faculdade de Filosofia da UFRGS, em
1967, e .A Poesia Brasileira de 22 até hoje, texto inserido em publicação intitulada O Livro
do Seminário e organizada por Domício Proença Filho para um Seminário patrocinado pela
Fundação Nestlé, em 1982.
No capítulo 4, apresentamos os nossos estudos críticos de cada um dos livros
publicados, incluindo alguns poemas dispersos em jornais, e, finalmente, como estudo
complementar dessa poética, propomos, no capítulo 5, um pequeno estudo, à luz da genética
15
de criação textual, de alguns dos manuscritos de A Mata e o Nome. A intenção é de descrever
e interpretar a gestação desse texto para melhor pensar o conjunto, ou seja, toda a poesia do
nosso autor.
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2. A POESIA DE GUILHERMINO CESAR SEGUNDO A CRÍTICA
Falo de uma vaga
Para outra vaga,
desta janelinha
para aquele vau,
do camelo arfante
para o Monte Nebo,
falo de um jardim
para o teu deserto,
da fonte selada
para o mar aberto,
falo como os touros
que não dizem chus
nem bus, falo aos gatos
dentro dos hiatos,
falo ao teu dentista
falo ao jangadeiro
falo ao curtidor
falo sem polícia
falo sem matéria
falo sem palavra
G.C.
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Apesar da iniciativa marcante de publicar uma edição especial homenageando os
70 anos de Guilhermino Cesar, em 1978, através de seu Caderno de Sábado, o jornal Correio
do Povo não foi, ao menos em curto prazo, a pedra fundamental para o que poderia ter sido
benfazeja e prolífera seqüência de estudos sobre a obra guilherminiana. Fora os três trabalhos
acadêmicos (em seguida comentados), realizados entre 1984 e 2005, e alguns estudos
isolados, como os de Maria da Glória Bordini na Revista Organon 17 (1991), e os de Maria
do Carmo Campos (publicados em jornal e livro), pouco encontramos na pesquisa
1
realizada.
Os esforços dos pesquisadores do Núcleo Guilhermino Cesar (anteriormente citado), porém,
dentre os quais me incluo, hão de mudar esse panorama...
Por enquanto, nos limitaremos, então, a coligir o que encontramos a fim de
compor uma idéia geral do que se pensa principalmente da poesia de Guilhermino Cesar.
Adiantamos que o havido, embora pouco, em quantidade, face a envergadura
intelectual de Guilhermino Cesar, é de pertinência e qualidade.
1
Recentemente, a fortuna crítica de Guilhermino César foi incluída no livro (no prelo) Guilhermino César,
memória e horizonte: 1908-2008, em edição comemorativa do centenário projetada e organizada pela Professora
Maria do Carmo Campos (Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2008).
18
2.1 No Caderno de Sábado do Jornal Correio do Povo
Em 20 de maio de 1978, o jornal Correio do Povo, em seu Caderno de Sábado,
publica um suplemento especial homenageando os 70 anos de Guilhermino César. A
colaboração é de muitos: Cyro dos Anjos, Mario Quintana, Carlos Drummond de Andrade,
José Hildebrando Dacanal, Sergio da Costa Franco, Maria Helena Martins, Maria da Gloria
Bordini, Moisés Vellinho, Henriqueta Lisboa, Armindo Trevisan, Tania Franco Carvalhal,
Newton Prates, Sergius Gonzaga, Flavio Loureiro Chaves, Antônio Candido e José Aderaldo
Castello. E a temática, que varia entre depoimentos de convivência com Guilhermino e
análise de sua atividade intelectual (como professor, crítico, historiador, jornalista, poeta...),
embora seja ampla, detém-se principalmente na sua poesia. Vejamos, pela ordem, o que é
dito, em síntese, sobre ela.
Cyro dos Anjos (p.2), em Convivência com Guilhermino, relembra a trajetória de
ambos desde os tempos da Faculdade de Medicina (profissão que nenhum deles seguiria) até
aquele momento em que habitam, nas palavras do amigo Cyro, a casa dos 70 que não é
casa, é pardieiro, conforme gemia o poeta Manuel Bandeira...”.
Carlos Drummond de Andrade (p.3), em A volta de Guilhermino, rende-lhe
bela homenagem, ao escrever um poema no qual planeja, com Cyro dos Anjos, um seqüestro
de Guilhermino para “livrarias que não existem mais,/ cinemas, bailes, piqueniques serranos
que não existem mais,/(...)na neblinosa companhia de Emílio Moura,/João Alphonsus)...”.
José Hildebrando Dacanal (p. 4), no artigo intitulado Do passado e do presente,
destaca o caráter documental da poesia guilherminiana, principalmente a de Sistema do
Imperfeito e outros poemas, livro de ligação, segundo Dacanal, entre o Brasil do passado e o
do presente: o azul no ar obsoleto de Minas, verso de O enterro, flagraria, como exemplo
“lapidar”, justamente a trilha entre os tempos “das francesas e dos manifestos(palavras do
articulista) e os “da farsa e das explorações político-sociais que se prenunciam”.
No estudo intitulado A Lira e o Alto-falante , Maria da Glória Bordini (p. 9)
agrupa os poemas de Lira Coimbrã em seis perspectivas distintas quanto à temática mas
unidas pelo mesmo “pensamento social e humanista” que ganha ampliada voz não por lira
mas por alto-falante através do qual “faz de sua voz, sem o apoio, usual na lírica, dos efeitos
de cor e som, um solo pungente em prol da dignidade humana, espezinhada constantemente
19
pelo próprio homem.”. Ou seja, para Maria da Glória, a voz do poeta é algo como o “ùltimo
reduto da mente para a preservação da sanidade”
para a poeta, também mineira e amiga do homenageado, Henriqueta Lisboa
(p. 9), nessa voz:
[. . .] Enquanto sofre os impactos do século, é flagrante sua vibratilidade anímica, da
qual retira o alento para recolher experiências, confrontá-las, subjugá-las. De
imediato ocorre o milagre, a reviravolta, o rapto nas asas da imaginação, com a
soberana presença do humor. É pelo humor, principalmente, que o poeta extravasa o
espírito, da lágrima ao sarcasmo, na sua crítica ao humano, ao social, ao mundo
moderno de que participa.
Não resta dúvida: estamos diante de autêntica poesia, marcada pelo olhar humano
– conforme Armindo Trevisan (p. 10), em Guilhermino Cesar, poetaainda que na direção
de sua condição mais primitiva, a de bicho. Essa poesia, para Trevisan, em especial em
Sistema do Imperfeito e outros poemas, é capaz de altos justamente ao confrontar opostos,
como “o amor entre as asas dos anjos e a fome da meretriz” a “ternura e a condição de
bicho”.
Tânia Franco Carvalhal, (p. 11) em A Consciência Poética, nos outro
destaque:
A poesia de Guilhermino Cesar, desde a estréia com Meia-Pataca (1928) até o
último livro, Sistema do Imperfeito (1977), é marcada por várias inquietações:
exploração do Eu e preocupação com o social, contenção de lirismo e entrega ao
coloquial, Minas e o mundo.
E acrescenta:
Mas ao longo da trajetória uma preocupação se acentua e se converte por vezes em
objeto poético: a reflexão acerca da própria poesia. Como se fora um projeto, a cada
nova obra, como autor e leitor de si mesmo, o poeta vai estabelecendo uma “ars
poetica” para uso particular. (CARVALHAL, 1978, p. 11)
Dessa forma, é possível, para a professora, perceber os livros anteriores como
etapas que se cristalizam em Sistema do Imperfeito e outros poemas.
Há, ainda, o artigo intitulado A Verde Herança de Cataguases, de Ligia
Averbuck (p.12), que rastreia as raízes mineiras da poesia de Guilhermino, na década de 20,
ao final da qual o poeta, em seu primeiro livro, “assume a consciência de que é preciso
participar, reformar o Brasil, melhorar o mundo” (p.12). Para Averbuck, está presente a
aguda consciência crítica do poeta, a qual se revela de forma concreta, por exemplo, em
poemas como Campeiro de Minas Gerais, que evoca a realidade do mineiro das minas gerais.
20
Entretanto, ainda que o poeta não abandone, ao longo de sua obra, a memória mineira, seus
textos encaminham-se “para uma forma mais reflexiva e essencial” (p.13), enclausurando-se,
em um certo sentido, mas para “desvendar os esconderijos da natureza humana” (p.13); não,
portanto, para ensimesmar-se.
Por fim, Flávio Loureiro Chaves (p. 15), em Poesia da resistência, destaca a
excelência intelectual de Guilhermino Cesar, cuja palavra poética “se traduz sobretudo na
interrogação e na dúvida”. Assim traduzida, essa poética é identificada como “(...)de fato a
poesia da resistência
2
. Nela se encontra o registro impiedoso e lúcido da falência do
humanismo que, em nossos dias, se viu colocado em artigo de morte.”
Partindo desse breve apanhado dos ilustres depoimentos acerca do homem e poeta
Guilhermino Cesar (cuja poesia, para Chaves, é o próprio poeta), é possível afirmar: essa
poesia para pensar além da simplificação equívoca (não errada!) que a rotula como
pessimista e cifrada sedimenta-se como projeto de restabelecimento do humano, condição
sine qua non para a subsistência de toda poesia, segundo Alfredo Bosi em seu O Ser e o
Tempo da Poesia (BOSI, 2004, p. 141):
A poesia, a partir do mercantilismo, mantém-se autêntica só quando trabalhada
desde o íntimo por um projeto, arriscado e custoso, de reaproximar-se do mundo-da-
vida, da natureza liberada dos clichês, do pathos humano que enforma corpo e alma.
Para subsistir, a poesia tem precisado superar, sempre e de cada vez, aquela direção
teimosa do sistema que faz de cada homem e, portanto, de cada escritor, o ser
egoísta e abstrato que Leopardi deplorava
.
Em outras palavras, como sugerem principalmente os depoimentos de Chaves e
Bordini, a voz do poeta é a voz dos que contestam com as armas de que dispõem: único
instrumento de combate a um mundo, digamos, sem lirismo, a lira é aquela arma (da
iconografia hippy) de cujo cano desponta uma imensa e amarela flor a aparvalhar os homens,
não pelo inpusitado contraste, mas também pelo seu desprendimento e autenticidade. Em
síntese, para fazer uma associação entre a forma e o conteúdo poéticos, a arma é a forma; a
flor, seu conteúdo. Ambos confluem para o mesmo alvo: o desumano.
2
Veremos, em 4.2.1, o que diz Alfredo Bosi sobre poesia e resistência.
21
2.2 Em outros estudos críticos
Em A máscara da terra, uma compreensão hermenêutica de Sistema do
imperfeito e outros poemas dissertação de mestrado apresentada ao então CPG-Letras da
UFRGS em 1984 Adayr M. Tesche procura assinalar o aspecto existencial da poesia de
Guilhermino. Para isso, Tesche orienta-se principalmente por Heidegger: Heidegger chama a
existência cotidiana do homem de ‘Dasein’ (Ser-aí).[. . .] O homem existe e a partir de então
define o que deverá ser.” (TESCHE, 1984, p. 17)
Tesche entende a poesia estudada como uma espécie de ato de reflexão para
captar a realidade, isto é, “o poeta [. . .] deve se expor a tudo o que pode encontrar um ser
realmente vivo a dúvida, a reelaboração de si mesmo, a combinação dos contrários e
perscrutar os horizontes das possibilidades [. . .].” (TESCHE, 1984, p. 18).
Em outras (e nossas palavras) a sugestão é a de que existindo, o homem se exila,
pois a existência precede sua própria essência. A “fuga”, nesse sentido, como peregrinação, é
ponto de chegada e de partida, é, enfim, o trajeto de si mesma para moderno ulisses tarefa
do poeta, o “doidulisses” (a quem Guilhermino voz a partir de Homero, Dante e Joyce),
que é, em última análise, “a retomada do antigo mito para a elaboração de um arquétipo do
homem moderno.” (TESCHE, 1984, p. 84).
Outra dissertação de mestrado acerca do autor é a mencionada de Maria Beatriz
W. Behr (1986), A poética do Escuro, cujo foco central é a obra Sistema do Imperfeito.
Entretanto, as reflexões finais desse trabalho acadêmico compreendem toda a poética
guilherminiana, sobre a qual, em síntese, assinala:
- a sintonia entre ela e os princípios do modernismo brasileiro da primeira fase,
principalmente o da tendência localista, isto é, de “descobrimento” do país
como uma espécie de pontificado estético: “o conteúdo ‘mineiro’ de seus
versos é exteriorizado na forma simples do vocabulário coloquial, na
regularidade da sintaxe e na liberdade do verso, conforme a proposta
modernista (BEHR, 1986, p. 148);
- a oralidade presente no poema dramático Ladrão de cavalo;
- a instauração de uma atmosfera mágica (mas sintonizada com o mundo real),
principalmente a partir de Lira Coimbrã, permeada por um certo
confessionalismo contundente, que usa a força da palavra insólita, impactante,
22
“linguagem cifrada” por meio da qual “Guilhermino Cesar exprime o seu
propósito, defendendo o espaço da poesia, instituído esse como laboratório de
criação e tribuna dos valores humanos [. . .], poesia de resistência, e não de
decadência.” (BEHR, 1986, p.159).
- a valorização da sonoridade dos versos;
- o uso do enjambement e da linha em branco como ruptura , rompimento,
surpresa, sublinhando angústias universais reforçadas pela peculiar toponímia
dessa poética;
- enfim, a presença subliminar de um projeto poético que ao traduzir a
“mundivivência do poeta” traduz também a condição humana, aliás, própria
da arte expressionista em que ele se situa. Nesse sentido, a estudiosa o está
distante da perspectiva existencialista que o citado estudo de Adayr
desenvolve:
Na arte expressionista, há insistência no conceito humano. E, para Guilhermino
Cesar, o fazer poético é uma operação intelectual que desdobra as circunstâncias da
existência, transmutando-as em expressão artística. Assim mergulha nas situações,
analisando as potências e impotências da alma, descrevendo, medindo,
confrontando, nomeando, à procura do senso de viver. (TESCHE, 1984, p. 156)
Na dissertação de mestrado intitulada Guilhermino Cesar e Sistema do Imperfeito
e outros poemas: sujeito e linguagem poética em tempos de caos e massificação, Vivian Ignes
Albertoni da Silva (2005) destaca a imagem do autor como intelectual atento à sua época,
cujas circunstâncias apontariam para o principal leitmotif de sua literatura. A autora, a partir
dessa reflexão, analisa Sistema do Imperfeito e Outros Poemas como obra de referência a fim
de entender o poeta mineiro e gaúcho:
Constatamos em Sistema do Imperfeito e Outros Poemas o privilégio de
determinadas temáticas relacionadas com a tecnologia, a velocidade, a
fragmentação, a sociedade massificada, o impacto (especialmente no que diz
respeito ao Brasil) do caos urbano. (SILVA, 2005, p. 96)
Se tomarmos o rumo do pensamento de Alfredo Bosi segundo o qual “O tempo
eterno da fala, cíclico, por isso antigo e novo, absorve, no seu código de imagens e
recorrências, os dados que lhe fornece o mundo de hoje, egoísta e abstrato.” (BOSI, 2004, p.
131), então esse “mundo de hoje”, de insulamento do homem paradoxalmente aterrado nas
23
cidades, é o concreto nas palavras de Bosi o concreto quer dizer precisamente o que
cresceu junto” (BOSI, 2004, p.134) sobre o qual se erguerá a poesia. Para essa tarefa de
construção poética, a memória, inobstante o presente, tem função e lugar: ela tanto pode ser
“como forma de pensamento concreto e unitivo, impulso primeiro e recorrente da atividade
poética” (BOSI, 2004, p.177), na visão bosiana sobre Jorge de Lima e Drummond, como
pode ser, simplesmente, referência de um mundo ideal.
Assim, ao cotidiano trespassado pelo desespero, opõe-se a esperança em atar as
duas pontas, entre passado e futuro, no meio do qual esse presente também é ponte para a
trajetória (não para o mergulho no rio da desistência...) rumo ao verdadeiramente humano.
Nesse sentido, a perspectiva em que a poesia de Guilhermino Cesar se situa é clara, “como
exercício próprio da empatia, das semelhanças, da proximidade” (BOSI, 2004, p.131).
Finalmente, é fundamental que se faça o registro do trabalho intitulado Lirismo de
e de : travessias poéticas em Guilhermino Cesar, na coletânea Brasil e Portugal: 500
anos de enlaces e desenlaces, de Maria do Carmo Campos. Nesse artigo, depois de rastrear a
herança portuguesa da poesia brasileira, Campos chega nas “travessias” de Guilhermino
Cesar, identificando, em Lira Coimbrã e Portulano de Lisboa, “movimentos
interessantíssimos entre lugares brasileiros, portugueses e outros, que constroem uma poética
abissal e movente.” (CAMPOS, 2001, p.243).
Assim:
Junto a um sabor inconteste do que se chamaria uma tradição luso-brasileira entre os
temas e traços predominantes, percebemos a oralidade, a paixão pelo natural, o
impacto pelas novas tecnologias, a desumanização, o extravio do sujeito
moderno(...). Os motivos da viagem conferem mobilidade ao que seria uma
experiência de exílio em terras lusitanas, incorporando aos poemas imagens de uma
riquíssima toponímia. (p.243)
O texto, ao tratar como mobilidade e não como exílio, isolamento a travessia,
relativiza o sentido compulsório intrínseco a “exílio”:
Para o poeta moderno, altera-se a condição do exílio e o retorno não é desejo
primeiro nem único, mas fica assegurado enquanto vontade última. (p.247)
Dessa forma, o poeta abre o leque de sua experiências, dialogando com a tradição
poética ao destacar ora a condição de “bicho” (ou menos, como no ácaro de Drummond) do
homem, a qual está presente de forma explícita em poemas de Drummond (O homem, as
24
viagens e O áporo) e Bandeira (O bicho), ora com a de inquieto viajante/retirante, presente
em Gonçalves Dias (Canção do exílio) e Camões. Desse último, é destacada a figura do
gigante Adamastor, que reaparece em um poema de Guilhermino Cesar em sentido alegórico:
(...)não mais o mitológico Adamastor, mas um redemoinho dos tempos a transtornar
novamente o espaço (p.249).
Em suma:
Recuando, Guilhermino Cesar recua diante da percepção de um imaginário mais
profundo e lança-se à recomposição tópica da melancolia e da saudade. Se a
topografia de Coimbra evoca a um olhar brasileiro algo da paisagem montanhosa de
Ouro Preto, os temas dessa Lira desenvolvem uma fecunda travessia, possibilitando
em novos arranjos os diálogos da poesia brasileira com Portugal. (p.250)
À fecunda travessia, soma-se profunda: não se trata aqui das possíveis relações
cosmopolitas de hoje, em estradas virtuais, onde o fluxo rápido e contínuo da viagem pouco
além permite ver; trata-se de outra jornada cujo ponto de partida está em algum ponto
indefinido entre a contribuição das vanguardas para a “desprovincianização e
cosmopolitização da poesia” (CÍCERO, 2005, p.23) e sua absorção pelos nossos modernistas.
Para o poeta e filósofo Antônio Cícero, de quem cotejamos as expressões acima,
em seu Finalidades sem fim, esse ponto de partida está no olhar a partir do qual chegará a
poesia, pelas mãos do poeta, ao seu destino: ser o que de fato é:
A poesia deve chegar a ser o que é. É para ser fiel à poesia em si que o verdadeiro
poeta se insubordina não somente contra a poesia convencional, mas contra o olhar
ou a apreensão convencional da poesia. Esse olhar, que é o olhar do falso poeta e do
filisteu, pretende ser natural e não convencional, assim como pretende serem
naturais as formas convencionais da poesia e naturais os lugares em que
convencionalmente espera encontrá-la, entre as amenidades da vida. Contra essa
concepção domesticada da poesia, o verdadeiro poeta se impõe uma tarefa dupla:
por um lado, revelar a poesia em estado essencial e selvagem e, por outro,
desmantelar as convenções que a elidem ou domesticam. (p.20)
Guilhermino Cesar, um daqueles moços dos primeiros tempos modernistas, soube
cumprir bem essa tarefa porque a sabia desde antes.
25
3. A POESIA SEGUNDO GUILHERMINO CESAR
Doente de poesia
não tem alívio nem cura
a menos que se interne
sozinho
no espaço incriado.
No diamante não serve; é
Demasiado claro.
Convém-lhe o resguardo
Dos recém-nascidos:
Olhos no escuro
Vômito contido.
O mais é deixá-lo
Gemer à vontade.
G.C.
26
O presente capítulo, a fim de apresentar uma idéia geral acerca do que Guilhermi-
no Cesar pensa sobre Poesia, divide-se em três partes. As duas primeiras se referem a
abordagens paradigmáticas de seu pensamento. Uma delas, intitulada Poesia e Artes Poéticas,
(3.1), é, conforme mencionado anteriormente, a publicação em separata da Revista
ORGANON da Faculdade de Filosofia da UFRGS de aula magna proferida em 1967. Apesar
do título genérico, o foco central do autor é a poesia brasileira e portuguesa desde o Barroco
até Mario Quintana. A outra abordagem, de 1983, também citada, é um texto apresentado à
Bienal Nestlé de Literatura, A Poesia brasileira de 22 até hoje, (3.2), o qual trata, de forma
sintética, das conquistas modernistas e sua herança.
O item seguinte, (3.3), ancora-se, primeiramente, na criteriosa seleção de textos da
Professora Tânia Franco Carvalhal em seu Notícia do Rio Grande, coletânea de 1994,
publicada pela Editora da UFRGS, baseada nas colaborações de Guilhermino Cesar para o
antigo Caderno de Sábado do antigo jornal Correio do Povo.
Por fim, incluímos dois textos do poeta selecionados nesta pesquisa a partir do
acervo encontrado no Núcleo Guilhermino Cesar da UFRGS: os prefácios a Lavra
Permanente, de José Eduardo Degrazia, em publicação de 1975 da Editora Movimento, e a
Poesias Reunidas, de Athos Damasceno Ferreira, em livro de 1979 publicado pela Editora
Globo.
Dessa forma, principiamos a tarefa de entender a essência do pensamento poético
de Guilhermino Cesar. Pensamento poético de que está revestido, cremos, não apenas o
cimento de seu principal legado, a poesia, como também as suas demais contribuições para a
Ensaística e para a Literatura .
27
3.1 Em Poesia e Artes Poéticas (1967)
Em Poesia e Artes Poéticas, aula magna proferida por Guilhermino Cesar, em
1966, na Faculdade de Filosofia da UFRGS, e publicada como separata da Revista
ORGANON (Faculdade de Filosofia da UFRGS, em 1967, n. 11), o autor defende desde o
início do texto a conjugação entre Poesia e Realidade, que esta é matéria daquela. É na
intersecção entre o artista e o outro, pelo sentimento, que se também o que ele chama de
atrito, colisão, de onde “[. . .] nasce o mistério da poesia, sua linguagem cifrada.” (p.3).
A partir desse raciocínio, o autor sustenta que “não é pela temática, mas pela
renovação da linguagem, que se denuncia em substância o advento de uma escola literária.”
(p.5).
Nesse sentido, embora o
3
Barroco não tenha legado ao Brasil nenhum gênio, é por
essa estética que, para ele, começa a Poesia Brasileira cujo ponto de renovação, graças à
“revolução das metáforas”, é o Romantismo. Ele reafirma a ilogicidade romântica como
superlativo dos românticos, que, na defesa da inspiração pessoal, preconiza o desejo de fuga à
imitação árcade, salvo-conduzindo Tomás Antônio Gonzaga, autor ainda preso aos preceitos
pastoris da Arcádia mas revelador de certa inquietação romântica, como no alvissareiro
verso nem canto letra que não seja minha, da lira 58, em que o poeta defende a originalidade,
portanto a autonomia artística.
Mais adiante, ao contrastar Parnasianismo, Simbolismo e Modernismo,
Guilhermino aponta o mérito modernista essencial: o de fazer da poesia não um objeto
encastelado mas de discussão, ainda que, entre os parnasianos, contemos com um Bilac,
grande poeta (segundo o Professor), cuja Profissão de reivindicaria a preeminência da
forma:
3
A respeito do Barroco, ver artigo escrito por GC em Coimbra, em 1965, intitulado O Barroco e a Crítica
Literária no Brasil, onde o autor destaca a precariedade da crítica sobre o tema até 1941, quando os estudos de
Lúcio Costa e, mais adiante, de Afrânio Coutinho resgatam o Barroco, incluindo-o no panorama das nossas
Letras. Nesse artigo, é interessante observar a posição de Guilhermino ao saudar a vibratilidade da prosa de um
Vieira e da poesia contrastiva de um Gregório de Matos e ao salientar o acerto de ambos na radiografia daquela
sociedade do nosso período colonial. Em vez de rejeitar o “gongorismo” pendular da dicção barroca,
Guilhermino o examina com os bons olhos do poeta e a boa mão do ensaísta: valoriza sobretudo o ritmo e os
recursos ornamentais de seus autores. Dessa forma, nos deixa pistas sobre o concreto sobre o qual se edificará a
poesia do próprio articulista. No mínimo, é possível prospectar os alicerces que sustentarão o corpo dessa poesia
também de malabarismo e vibração.
28
E isto salvou o lirismo brasileiro dos teóricos da Escola do Recife, que teimavam em
armar no campo da poesia sua inimiga mortal: a Idéia, com I grande, abstração do
cientificismo da época, a cousa mais genuinamente antipoética até então inventada
pela mente humana. (p.10)
Isso posto, Guilhermino exemplifica, por Mário de Andrade, a dimensão humana,
problematizadora da Arte, sem que o hermetismo se configure como índice de impotência
criadora. O hermetismo, aliás, embora possa mesmo ser despistamento, impotência, integra-
se, intrinsecamente, à natureza simbólica da Poesia. E outros exemplos que nos fazem
entender melhor a conta:
Luís de Góngora, fazendo a traslação da poesia clássica ao processo contemporâneo,
foi hermético – e nesse sentido de descobridor também o foram Eliot, Valéry,
Fernando Pessoa, para citar apenas três dos maiores. Poder-se-ia talvez dizer que o
hermetismo de tais autores representa o estágio de um renascimento fertilizador, que
não produziu ainda todas as suas conseqüências. (p.12)
Ao defender o hermetismo como, digamos, ciframento, o autor não estaria
justificando a sua própria poesia? Isto é, poesia que não abre mão do lúdico e do lírico desde
que libertaçãoconforme postulava Bandeira em seu célebre verso de Poética (publicado em
Libertinagem (“Não quero mais saber do lirismo que não é libertação”) cuja chave está,
enfim, na concepção metafísica da Poesia, linguagem das linguagens, no exemplo pessoano
de Autopsicografia:
A arte poética de Fernando Pessoa, expressa naquele poema (“O poeta é um
fingidor”), deslinda o enredo, que o faz criando outro enredo, este mais belo,
porque as suas malhas são a essência mesma da poesia. Mas, para prender a fugitiva,
precisamos da armadilha das palavras. (p.19)
É como a imagem de um espelho em frente ao outro. Multiplica-se ao infinito o
que se vê, sem que o visto seja de verdade o repetido: sempre um renovar nessa armadilha
que Drummond traduz em seu O lutador , poema de Sentimento do mundo que Guilhermino
Cesar transcreve para ratificar a versatilidade da palavra, inimiga de poder ilimitado e por isso
invencível.
Entretanto, para Guilhermino, a saída não é a desistência, a desliteralização da
poesia, ignorá-la. A não ser como engodo: eis a questão, o poeta finge que não sente e ao
fingir tão bem acredita ser a dor... fingida. Assim, ignorar pode ser, paradoxalmente, um dos
29
requintes da técnica mais evoluída, a desumanização para permanecer protesto, denúncia
como em João Cabral. Guilhermino explica melhor:
Ante a complexidade do pensamento moderno, o poeta se desumaniza, isto é,
envergonha-se da sua aristocracia mental, da sua dorzinha de cotovelo(...)logo, vê-se
o poeta tão comprometido com o social, com a multidão, - diante da qual (...)se julga
indigno sempre que fala em si, em vez de falar dos outros que penam, como ele, as
dores da Cidade. (p.26)
Daí a libertação do poeta, “Livre no ato de deixar fluir a escória dos dias.” (p.26).
Em seguida, ao analisar o fenômeno concretista, Guilhermino Cesar fulmina: “A
linguagem cifrada, despovoando-se de afetividade, cortou a ligação do leitor com o poema.”
(p.27).
Confirma-se, portanto, a sua idéia de afeto e enigma como condições inevitáveis
para a poesia, sob a mesma pena parnasiana de encastelá-la, encarcerá-la na torre de marfim.
Contudo, não confundir com a atividade cerebrina de João Cabral, poeta de exceção, que
ao seu discurso “pelo rigor da palavra, pela contenção do sentimento em benefício da emoção
plasmada esteticamente, uma penetração que teve igual, na poesia brasileira, em Carlos
Drummond de Andrade e, na portuguesa, em Fernando Pessoa.” (p. 27).
Ao finalizar a aula, o Professor, depois de comentar as contribuições da poesia-
práxis e da psicologia moderna para a poesia, destaca o reconhecimento universal de que a
poesia é a linguagem do mistério (em nome do qual, pondera, citando Adolfo Casais
Monteiro, muitos abusos têm se cometido), mas sobretudo é liberdade.
E a liberdade, para ser suporte, em sentido lato, não é a conquista romântica mais
cara, herdada pela turma modernista de que fez parte Guilhermino Cesar, em busca da
autonomia através do afeto? Se aceitarmos que sim, e que essa liberdade planifica-se no livre
trânsito temático e formal do poeta moderno, acataremos também a liberdade de fruição no
exercício de leitura dessa poesia. Ou seja, para além do debate acerca da assimilação e da
conceituação do gênero lírico, nos interessa acompanhar, reconstruir o caminho dos poetas a
fim de preservá-los. Da mesma forma, acompanhar as modulações da voz poética, em sua
trajetória, constitui-se em terreno fértil por meio do qual em assimilando a passagem da voz
do poeta/autor para a voz do sujeito/eu lírico (e vice-versa) como inexistente porque mesma
voz– colheremos os frutos da lição de Octavio Paz em seu livro A outra voz:
30
Todos os poetas (...) ouvem a voz outra. É sua e é alheia, é de ninguém e é de todos.
Nada distingue o poeta dos outros homens e mulheres em que, salvo esses
momentos, raros, embora freqüentes, sendo ele mesmo, é outro. (PAZ, 1993, p.140)
Pensamos que a conjugação entre poesia e realidade, postulada nessa Aula
Magna, e entre a voz do poeta e outra, reivindicada pelo poeta mexicano, parte do mesmo
princípio (embora para Paz a “poesia” seja anterior a qualquer conjugação...) que podemos
sintetizar assim: enquanto houver homens, haverá poesia. E havendo poesia haverá liberdade.
3.2 Em A Poesia Brasileira de 22 até hoje (1983)
Neste texto, o autor assinala a reinvenção, a reestruturação do lirismo pelo
Modernismo tanto na forma como no tema. uma espécie de democratização das matrizes
líricas, uma revelação do “grande mundo das pequenas coisas” (CESAR, 1983, p. 240)
embora permaneça, no caso brasileiro, o apego à cultura européia, marcando conforme
Maria do Carmo Campos, ao tratar desse mesmo texto no início do estudo Sob o signo da
impureza: a fatura do poema entre modernismo e modernidade “um movimento pendular”
(CAMPOS, 1999, p.67) entre a cópia do modelo europeu e o primitivismo brasileiro. No
rastro dessa oscilação, Campos lembra “na obra de Antonio Cândido, além das noções de
dependência e subdesenvolvimento do ponto de vista cultural e literário, o par localismo e
cosmopolitismo ao qual estaríamos condenados por uma espécie de destino irônico com as
literaturas européias.” (p.67)
Guilhermino Cesar não enxerga a influência européia exatamente como
“condenação”, porém diagnostica um paradoxo entre o bom desenvolvimento da nossa poesia
e o subdesenvolvimento do público e mercado editorial correspondentes:
A situação da poesia brasileira é difícil. Ao contrário do que sucede em muitos
países da Europa, nos quais se consome poesia em proporções razoáveis, o nosso
público parece tê-la proscrito de sua dieta mental. Os editores, conseqüentemente,
não se interessam pelo produto gravoso. Para fechar o círculo do obscurantismo, em
muitas livrarias desta nossa desvairada tropicalidade não se encontra, às vezes, um
poeta para virgilianamente apontar ao homem o caminho da aurora. (CESAR,
1983, p. 249)
31
Com efeito, de lá para cá, se pensarmos no caso das livrarias, o espaço dado
às artes poéticas, quando existe, é bem limitado e se perde em meio à profusão de bugigangas
(inclusive literárias!) para diversão ou enfeite e petrechos para escritório. Mas, como diria
Maria do Carmo Campos, certamente em consonância com o pensamento guilherminiano:
Antes de se lamentar uma desvalia essencial da poesia, pense-se nas profundas
mudanças históricas do século XX e no desvio de uma série de eixos ético-estéticos.
Matéria sempre às voltas com o novo, caminho mais curto para dizer o fragmento
(ou alcançar o todo), a poesia é também trabalho sobre a impureza e a
insignificância, lugar de revisão da sublimidade e até mesmo da brasilidade. Para
além do direito modernista à pesquisa estética e à atualização da inteligência
artística brasileira avatares do Modernismo de vinte a poesia brasileira, hoje
exportável, tece uma escuta à velocidade do século pela localização irremediável do
impuro. (CAMPOS, 1999, p. 86)
Ao final do texto de Guilhermino, um post-scriptum, de José Guilherme
Merquior, que identifica na leitura de sua poesia uma certa “visão cósmica da terra e do
homem”, traço da chamada tradição primitivista da literatura brasileira, fazendo da terra mais
do que matéria bruta para a arte.
As personas da poesia de Guilhermino Cesar cristalizadas seja nos retirantes de
Ladrão de Cavalo, de Gongo-Soco e de A Mata e o Nome, seja no sujeito-lírico cosmopolita
dos demais livros se alinham a outras nessa dimensão: ou (usando as palavras de José
Guilherme Merquior), “(...)tirando partido da dimensão telúrica de nossa tropicalidade
mestiça [. . .]. Macunaíma, Martim Cererê ou Cobra Norato ilustram eloqüentemente essa
tematização do primitivo.” (MERQUIOR, p.258).
32
3.3 EM OUTROS ESCRITOS
Nosso objetivo ao rastrear o pensamento poético de Guilhermino Cesar é não
apenas o de conservá-lo como patrimônio intelectual de nossas Letras mas também o de, a
partir dele, ter facilitada nossa tarefa de perscrutar sua poesia, confrontando, pois,
pensamento poético e poesia. Como a gama de textos sobre o assunto é bastante variada,
elegemos, em primeiro lugar, a compilação feita pela Professora Tânia Franco Carvalhal, em
1994, sob o título de Notícia do Rio Grande, que reúne várias colaborações de Guilhermino
Cesar nas páginas do Caderno de Sábado do Correio do Povo, entre 1967 e 1980, a respeito
de diversos temas relativos à cultura e à literatura, inclusive à poesia. Em segundo lugar,
selecionamos os prefácios aos livros Lavra Permanente, de José Eduardo Degrazia, de 1975,
publicado pela Movimento, e Poesias Reunidas, de Athos Damasceno Ferreira, volume
publicado em 1979 pela Livraria do Globo, ambos em Porto Alegre.
Notícia do Rio Grande
Sobretudo, o que caracteriza esses escritos do autor estudado, segundo Tânia
Franco, é o próprio “espírito de atualidade e universalidade” do Caderno de Sábado,
“guardando o tom coloquial” sem, contudo, fazer concessões ao leitor:
Com efeito, ao comunicar-se com a maior facilidade, filtrando os assuntos para
expô-los ao leitor de forma agradável e com desenvolvimento lógico, Guilhermino
não subestimava o seu leitor. Ao contrário, julgava-o capaz de acompanhá-lo no
interesse por vários assuntos, literários, históricos, acadêmicos e atuais. Não se
furtava, então, à densidade reflexiva nem à abundância de referências; nas ginas
de jornal, dispersava fontes e exemplos, sempre com originalidades de pontos de
vista. Desse modo, apostava não no efêmero mas no permanente. (CARVALHAL,
1994, p. 12)
Entre os estudos que vão da gauchesca aos de autores contemporâneos de seu
tempo, escolhemos dois desses artigos que ampliam o que Guilhermino Cesar pensa (sobre os
respectivos temas abordados) na direção de sua experiência como poeta.
33
O primeiro deles, publicado na edição de 26/05/1973, sob o título de Poesia sem
data, é sobre o
4
SONETO XXXVII de rio Quintana . Depois de exaltar a qualidade dos
versos de Quintana, Guilhermino faz uma pausa para a reflexão. Vale a pena reproduzi-la:
A verdade é que os teoristas de todas as latitudes perdem o seu tempo, e nos fazem
perder o nosso, quando buscam definir a poesia. É a velha questão de sempre:
pretenderem encontrar por meio da psicanálise
os pontos e os nós onde eles não
existem no inconsútil. Se ao químico é lícito dizer: numa gota d’água tenho o
resumo da fonte, o poeta não pode afirmar que esteja num verso; o poeta deixa
isso para o mundo físico, onde as coisas se autolimitam, pois no mundo físico
são as definições e as fórmulas de ácido mais base é igual a sal mais água. No
reino da poesia, que é o do menino impossível, conforme se viu em Jorge de Lima, o
fluxo verbal é um enigma que se contenta com o fato de o ser. Cada verso nasce de
sua própria emissão, isto é, da conjunção de palavras, sem nenhuma regra fixa.
(CESAR, 1973, p. 146)
.
Isso posto, Guilhermino avança para defender seu ponto de vista, o de que o
poema de Quintana é um dos que “acontecem”, não um do tipo “fabricado” com pausas
prescritas pela velha lei poética. No soneto citado, “o ritmo de cada verso criou sua própria
realidade sonora”. Ou seja, trata-se de um poeta defendendo outro poeta que mesmo ao
utilizar uma forma clássica como o soneto mantém-se em alta conta literária, guardando
feição própria a partir do controle hábil de um ritmo a que chama de “vicário” e de um outro,
“indefinível, que é um segredo do grande poeta seu autor”. Dois ritmos, portanto. Sendo que o
“outro” conducente ao “mistério do existencial”, marca do poeta de Alegrete segundo o seu
resenhista.
Ora, ao revelar, assim, o que pensa sobre boa poesia, Guilhermino Cesar não nos
estará dando a chave para entendê-lo como poeta para quem o ritmo e o mistério da palavra
funcionam como centelha, combustível para o motor da poesia?
No outro artigo, consagrado a um livro de Heitor Saldanha, intitulado Viver
Poesia, Guilhermino Cesar começa, ao citar alguns versos do livro, pela afirmação da busca
pela poesia como o “ofício mais importante que existe” (CESAR, 1973, p.205), como se
escrever e viver fossem faces da mesma moeda, sinônimos de criar. Para ele, o caráter
inventivo da poesia de Heitor Saldanha haure na fonte de Valéry, poeta da “resistência ao
fácil”, da “poesia entendida como festim do intelecto”; para ele, Heitor é poeta de preencher o
4
“Este quarto de enfermo, o deserto/de tudo, pois nem livros eu leio/e a própria vida eu a deixei no
meio/como um romance que ficasse aberto...//que me importa este quarto, em que desperto/como se despertasse
em quarto alheio?/Eu olho é o céu! imensamente perto,/o céu que me descansa como um seio.//Pois o u é
que está perto sim, tão perto e tão amigo que parece/um grande altar azul pousado em mim.//A morte deveria
sem assim:/um céu que pouco a pouco anoitecesse/e a gente nem soubesse que era fim”.
34
que ele chama de distância universal que vai de um vazio para o outro”, expressão que nos
lembra a melhor metafísica pessoana partilhada com seu amigo Mário de Carneiro, cujos
versos seguintes, bastante conhecidos (e inclusive musicados por Adriana Calcanhoto),
encerram este item do capítulo à guisa de indagação para o debruçar-se ao universo da poesia
de Guilhermino Cesar:
Sou qualquer coisa de intermédio
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o outro.
O intermédio é esse vazio?
Nos prefácios a Lavra Permanente e Poesias Reunidas
Poesia em três dimensões é o título do prefácio ao primeiro livro do poeta gaúcho
José Eduardo Degrazia, Lavra Permanente. Apontando a poesia de Degrazia como além da
boa promessa literária, Guilhermino Cesar sintetiza: “Degrazia atingiu o alvo: comover.”
(p.12)
Esse caráter sensível de Degrazia, porém, não obnubila sua essencialidade. Para
Guilhermino, a obra é marcada por uma fluidez que não escorrega no palavrório, nas
demasias. Assim, antecipa-se o que de fato houve: a afirmação do nome de Degrazia como
expressivo poeta da Literatura Brasileira. Na poesia de seu prefaciador, por outro lado, alinha-
se a admiração por uma qualidade compartilhada por ambos: a fluidez a serviço da poesia
como deve ser, humanista.
Na introdução a Poesias Reunidas, Guilhermino Cesar situa Athos Damasceno
entre o Simbolismo e o Modernismo, assim se pronunciando quanto a seus versos:
Por um lado, transpiram tristeza, desencanto, amargura; e, por outro,
extravazam ironia e humour. (p.14)
Em seguida, acentua-se o virtuosismo plástico e o tratamento humano do tema em
Athos Damasceno. Com isso, está resumido o que de fundamental nessa poesia que se
confunde, conforme Guilhermino Cesar nos diz, com o próprio homem: Athos era também
35
um ser sensível e fraterno. Assim, se nos lembrarmos da lição de um Maturana, cuja teoria
autopoietica preconiza sermos, mundo e humanidade, apenas “um” integrado em redes sejam
elas orgânicas, lingüísticas ou comunitárias, então será facilitada nossa tarefa de compreender
a relação entre quem e escreve poesia; entre o Guilhermino Cesar leitor de poesia e o
Guilhermino Cesar autor de poesia. Na verdade, o que um (leitor crítico) observa é que o
outro é (autor). Assim, os traços nessa esteira poética que vem de Gregório de Matos Guerra
a José Eduardo Degrazia, são os traços que se incorporam na sua poesia: fluidez, virtuosismo
plástico, malabarismo (e não palavrório) verbal, ironia e humour a serviço do grau humanista
de que se deveria revestir toda forma de arte; toda forma de vida humana.
É como nos diz novamente o múltiplo Octavio Paz, no ensaio A tradição da
ruptura da obra Os filhos do barro:
Para os românticos, a voz do poeta era a voz de todos; para nós, é rigorosamente a
de ninguém. O poeta não é um pequeno deus, como queria Huidobro. O poeta
desaparece atrás de sua voz, uma voz que é sua porque é a voz da linguagem, a voz
de ninguém e de todos. Qualquer que seja o nome que demos a essa voz
inspiração, insconsciente, acaso, acidente, revelação é sempre a voz da outridade.
(PAZ, 1984, p.200)
Guilhermino Cesar, ao destacar o mistério existencial como uma das marcas da
poesia de Quintana e o caráter inventivo da poesia de Heitor Saldanha como uma das
qualidades que o aproxima de Valéry, nos pistas de que compartilha dessa visão de Paz,
para quem o poeta é outra voz. Por isso, mistério e criação fazem parte da aura de um poeta,
como em Athos Damasceno, a serviço da humanidade. Para não ser surpreendido em carne e
osso, o poeta deve saber “fluir” em acertado ritmo cujo descompasso revelará o homem em
sua miséria. Lembremos a lição: o poeta é a própria poesia para deleite da sensibilidade
humana.
Ao destacar a obra poética do escritor mineiro/gaúcho, veremos o quanto a sua
poesia está vocacionada para o “humano” ainda que, às vezes, escondida pelo verniz da
imensa erudição de seu autor.
36
4. A OBRA POÉTICA DE GUILHERMINO CESAR
37
4.1 A Experiência Mineira: Cataguases
4.1.1 A Revista Verde (1927-1929)
Publicada na cidade mineira de Cataguases entre setembro de 1927 e maio de
1929, a Revista Verde foi um dos ícones da fase iconoclasta do movimento modernista
brasileiro. Durou apenas 6 números, mas marcou época, como nos diz Luiz Ruffato em seu
Os ases de Cataguases:
A grande importância do movimento Verde foi a de ter demonstrado a
força de penetração do Modernismo e de ter contribuído,
definitivamente, para a instalação dos postulados estéticos de
vanguarda, reafirmando as duas vertentes do grupo paulista: a
liberdade de expressão e a temática nacionalista. (RUFFATO, 2002,
p.63)
Chancelados por nomes do porte de um Drummond e de um Mário de Andrade,
os então meninos do interior mineiro cometeram as mais diversas travessuras literárias:
publicaram poemas, contos, crônicas, críticas e depoimentos sob a égide dos comerciantes
locais, cujos anúncios publicitários ajudaram a manter a revista. Explique-se: a maioria dos
signatários da revista eram gente de famílias conhecidas da cidade que ainda respirava os
bons ventos da economia cafeeira da época. Bom para seus editores (Guilhermino Cesar,
Ascânio Lopes, Rosário Fusco, Enrique de Resende, Martins Mendes, Camillo Soares,
Christophoro Fonte-Boa, Oswaldo Brita, Francisco Inácio Peixoto) cuja contribuição para as
nossas Letras, mesmo depois de encerrada a revista, seguiu, para mais ou para menos,
permanecendo ou não, mas seguiu.
Situado entre os nomes de maior destaque “pós-verde”, Guilhermino Cesar em
em depoimento publicado em separata (Porto Alegre, Curso de Férias do IEB, novembro de
1978), sobre a trajetória de Verde –, sintetiza assim uma das principais motivações de seu
grupo:
(...)E um dia começamos a perceber que a Europa nos cansava.
Fizemos o tratamento adequado: começamos a negá-la. Da negação
patrioticamente exaltada chegamos ao radicalismo total. Que fossem
também para o inferno os nossos passadistas. Contudo, salvamos do
fogo aquilo que achávamos mais nosso (p.3).
38
Com efeito, se, como diz o também mineiro Maurício Salles de Vasconcelos, em
seu interessante artigo Mundo-arte: o rastro do novo, o dado do fim, é verdade que “a luz
deixou de ser metáfora para o poeta, para o artista, tornando-se um eixo de cognição e
conexão ao alcance dos novos sentidos do habitar, do trafegar as virtualidades territoriais”
(VASCONCELOS, 1999, p. 207), então aquele grupo de moços de Cataguases, isolados das
cidades, em uma época pré-comunicação instantânea, soube, mais do que “Ter” a luz, dar a e
à luz a seus projetos – no caminho entre o Primitivismo e a Antropofagia – nacionalistas.
Iluminada desde o início, a poesia de Guilhermino Cesar começa a se tornar
conhecida do público justamente a partir do primeiro número de Verde. Abaixo,
reproduziremos/comentaremos dois de seus três poemas publicados na revista, nos números 1
e 4, respectivamente. Desse modo, pretendemos dar início à apresentação de um itinerário
poético que, se verá, de fato, mais do que aventura é caminhada. Trata-se, pois, não de
apresentar a caminhada da aventura, mas a aventura da caminhada. Vamos a ela.
A Henrique de Resende
NOTURNO
Noite de maio.
Noite fina de gaze e de legenda.
As árvores têm recortes macabros
na tela escura da treva.
Anda no espaço um cheiro bom de angélica.
Um cheiro forte de cravos e glycíneas
E nessas noites de maio enquanto a gente reza baixinho,
o silêncio conta muita história,
muita coisa linda para adormecer...
É quando a gente fecha os olhos.
E quando a gente sorri e fecha os olhos a sonhar...
39
BALADA DO ARCO-ÍRIS DA GENTE
Para Rosário Fusco
Sempre que vejo o arco-íris
me vêm à lembrança muitas coisas passadas
-muitas coisas lindas e muitas coisas tristes
que eu tenho gravadas dentro de mim.
Vermelho da minha ira
Anilado da minha infantilidade
Roxa do meu pesar
Laranja do meu ideal
Amarelo da minha desesperança.
Fica faltando a cor verde
no meu arco-íris interior.
Eu quisera ter o meu arco-íris completo
mas você me tirou a cor verde
e eu fiquei com as outras cores todas
dançando confusas
dentro de mim.
Tomemos o primeiro poema como observação ao que se segue:
1. O tom expressionista projetado na tela dos primeiros versos amplia-se por meio
de uma certa religiosidade mórbida, impregnada na tessitura do poema, que escapa, por
associações sinestésicas, na seqüência dos versos.
2. O contraste entre o fechar dos olhos, à guisa de morte (aliás, precedido pela
ambientação fúnebre das estrofes anteriores), e o sorriso sonhador do sujeito lírico, define o
quadro onírico do cinzel do artista.
Passemos ao segundo:
1. Permanece a relação contrastiva algo entre a paz e o distúrbio, o claro e o
escuro, reafirmando a essência plástica do poema.
2. O tom confessional nesse texto, se comparado com o anterior, é direto ao
“outro” como interlocutor. E é essa irrupção do outro que subtrai a cor verde (verso 13),
referencial da esperança-natureza, confundindo o sujeito lírico.
40
Não há, então, a limitação ao lirismo de envergadura mais tradicional (seja no
modelo clássico ou no modelo romântico), de elevação do amor e da pátria: a cena externa,
pintada em quadros constrastivos em fundo preto (como no primeiro poema), e a interna, em
fundo branco (como no segundo), para o matiz colorido, delineiam o mesmo estado anímico
(e íntimo) do sujeito lírico. A ele não resta sequer o consolo da musa. Ao contrário do que
representaria no escopo romântico, é ela quem personifica a subtração da esperança,
impedindo a afirmação do arco-íris sem o qual nada de bom, nada de ouro há. Ou melhor, se
temos arco-íris, este se apresenta evanescente, incompleto, obnubilado pela lente melancólica
do poeta.
Esse encontro epifânico dos elementos de trabalho do artista, incluindo ele
mesmo, é constelação, sem dúvida, de um universo outro que não aquele das antigas musas de
pastores e poetas loucos. Também não estamos tratando, apesar das marcas do “local”, de
tendência regionalista. Não, o universo que começa a formar contorno, ao recuperar as cores
de nossa tropicalidade multiétnica, está, no rastro do primitivismo modernista, a serviço de
distinta concepção poética centrada, digamos assim, na reivindicação da humanidade do
bicho-homem, esse “animal do tarde” conforme veremos.
Reafirme-se: a poesia de Guilhermino Cesar alinha-se à melhor tradição
primitivista/antropofágica de Macunaíma, Martim Cererê e Cobra Norato.
4.1.2 Meia-Pataca (1928)
O livro é uma publicação em parceria com Francisco Peixoto: ambos poetas
apresentam a mesma dicção, a mesma verve entre a graça e a ironia, em versos livres e
brancos, que se alinham na denúncia da ambição estrangeira pelas riquezas do país
(considerando, principalmente, as riquezas em ouro de outrora e que havia em
Cataguases...) sem, porém, perder o lirismo.
Analisemos o que na parte assinada por Guilhermino Cesar, composta por 15
poemas.
MEIA-PATACA
O conquistador chegou cansado
41
e batizou com o ouro da cobiça
a terra que lhe prometia
um punhado de coisas tentadoras
MEIA-PATACA!
Vieram mais gentes
porém não havia mais ouro
no rio de águas feias.
Vieram outras gentes.
Cataguazes... a cidade cresceu.
O Pomba tem barcos de nome estrangeiro
brincando no dorso barrento.
O Meia-Pataca ficou desdeixado
pobre riozinho que se esconde
e passa de longe medroso.
– Olhando o rio esquecido
eu penso no ouro que sumiu
e no ouro que ficou pra sempre
no coração da gente. (p.6)
Nesse primeiro texto, que nome ao livro, o andamento narrativo retoma a
exploração colonialista que chegou a Cataguases, onde o rio, sugestivamente alusivo ao pouco
valor que lhe foi atribuído pelo estrangeiro, “ficou desdeixado” (p.9). Rio, talvez, de pouco
valor diante da expectativa de quem lhe explorou, mas de “ouro” para o poeta, “ouro que
ficou pra sempre/no coração da minha gente” (p.9), como representação simbólica da força
indevassável do afeto.
Nos dois poemas seguintes, dedicados a Ascanio Lopes, predomina um tom mais
intimista que deságua no “deslumbramento” pela “morena batuta”, em versos de ritmo
musical, que reivindicam naturalidade análoga ao quadro morena-fruta encontrado nesse
texto.
Sabará, próximo poema, propõe entre ruas desaparecidas, rios, meninos e
mocinha maculados pelos “visitantes” uma reflexão acerca do progresso atribuído a
42
“turcos”, “sírios” e “japoneses” (figurações abrangentes do estrangeiro, qualquer que seja a
sua natureza...) seguida da dúvida crucial:
Segunda-feira... erva ruim nos roçados.
E a gente sonha na rede que ela vem vindo.
Agora... agora... mas que beijo amargo!
É você mesmo, civilização? (p.19)
Pelos textos seguintes, Fazenda Monte-Alegre e Curandeiros, perpassa um clima
de nostalgia, saudosismo, que permanece em Feitiçaria mas com um tom irônico a partir da
cantoria de um pássaro comparado a “outros peraltas”, alusão a estrangeiros “que não usam
nem gravatas caras/nem casimiras inglesas,/mas souberam fazer do algodão de São Paulo, das
Alagoas/das Minas e do Maranhão/a mais colorida vestimenta.”. (p.25)
A fim de apresentar espécie de antídoto contra a contaminação estrangeira, o
poeta, em Noite de todos os poemas, evoca o “samba que explode fora” (p.28), poemas “da
raça”, alinhando-se à perspectiva primitivista do grupo da Verde, e evoca o “primitivismo da
paisagem” no tempo do “ar de família da rua Rio de Janeiro”(p.31), em Poema da tarde fria,
que contrasta com o tempo presente da “correria dos soldados/gritaria no pique e na carniça”
(p.30). Entretanto, parece inútil a estratégia diante do desolado questionamento do poeta:
Eu mesmo construí esta inutilidade amarga:
Onde a ingenuidade de outros dias?
Onde a naturalidade fresca do meu sorriso? (p.32)
Parece mas não o é:
Porém o meu coração se conserva bem forte
pra suportar a angústia do tempo
e dar pra os que me cercam de olhos inquietos
a doçura boa do meu consolo enorme. (p.33)
Coração, lembremos, que preserva o ouro cuja essência é mesmo o afeto “pra
suportar a angústia do tempo”. É como naquela Confidência do Itabirano (poema do também
43
mineiro e amigo Drummond: “Alguns anos nasci em Itabira./Principalmente nasci em
Itabira./Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro./Noventa por cento de ferro nas
calçadas./Oitenta por cento de ferro nas almas.”) (DRUMMOND, 2000, p.78), cidade na
época conhecida pela produção de ferro em escala industrial: ouro e ferro são componentes da
terra (ou seja, das Minas Gerais) que metaforizam a condição humana desses poetas.
Ora, eles não estão a propor, nesses textos, a partir dos motivos primitivos da
terra e da gente, justamente a resistência ao sentimento de inutilidade o qual vergasta e corrói
a matéria mais dura? Ao conclamar o mineiro campeiro, em Campeiro de Minas Gerais, para
que ouça “o ruído dos pilões na baixada/triturando a pedra que vem do fundo/nos vagonetes
ligeiros”(p.35) ruído protagonizado pelos “mineiros-mineiros enterrados na mina/ouvindo
os patrões em fala estrangeira” , Guilhermino Cesar nos a resposta: é preciso que o
campeiro “que dormiu/sem medo de bruxos, sacis-pererês/botando a cabeça fervendo de
amores” (p.34) acorde, tome consciência das exploração estrangeira
5
de sua terra e de sua
gente:
Campeiro queimado de sol
vai ver o trabalho dos seus companheiros
nas galerias de ar frio
na noite constante!
Mineiro das minhas Gerais
você não acorda?
Vai ver o trabalho dos outros mineiros
dos mineiros-mineiros enterrados na mina
ouvindo os patrões em fala estrangeira.(p.34)
Esse traço “nacional-primitivista” na poesia de Guilhermino Cesar, como se vê,
está fortemente entranhado na poesia de Meia-Pataca; é, naquele momento do nosso
modernismo, também um dos caminhos da poesia da resistência.
5
O “estrangeiro” desse Campeiro de Minas Gerais reaparecerá em outras peles, não necessariamente como
alguém de fora do Brasil: veremos como isso se dará em Ladrão de Cavalo e em A mata e o nome.
44
4.2 A Experiência Portuguesa: Coimbra
4.2.1 Ladrão de Cavalo (1964)
Trata-se de um curto poema dramático (12 páginas) publicado na Revista de Arte
e Cultura Vértice, em 1964, Coimbra. A estrutura do texto valoriza o ritmo marcado pela
variação entre versos de métrica regular (expediente utilizado para balizar a fala quando
calma ou cadenciada das personagens, em particular as principais: a avó e o neto) e irregular
(que assinala a passagem para um ritmo mais intenso na segunda metade do poema) . Dessa
forma, o autor firma os momentos de maior tensão dramática com bom êxito na costura que
se inicia com o discurso de despedida do neto, passa pela participação de “personas”
inusitadas – como as árvores, o rancho, a serra e o córrego, este último funcionando à guisa de
coro e se fecha com a bênção enfim resignada da avó seguida do último aviso do córrego:
“olha o ladrão de cavalo.” (P. 607).
O tema do poema, então, é, em última análise, a partida: o neto pretende correr
mundo (ainda que este mundo seja a Zona da Mata) e anuncia-se, por isso, partindo do Alto
Sereno (topônimo que sugere a vida de paz na iminência de ser deixada pelo personagem)
enquanto a avó (que é quem mais dialoga com ele), o avô e a irmã tentam dissuadi-lo da
viagem, da travessia ao final da qual o menino topará com o novo. “Novo” que assusta os
velhos por pressupor o abandono à velha forma de viver, mas que não assusta o nosso herói,
que não entende a mudança como perda; entende-a como ganho de uma nova vida. Por isso
ele, ao contrário de temer pela perda do que foi, anseia pela conquista do que será; por isso ele
está irredutível:
Tenho um sonho na cabeça
Deixa o meu sonho viver.
São terras no fim do mundo
Chão novo, e nunca pisado
Antes de mim [. . .] (p.603)
Curioso observar que a razão pela qual a avó se amedronta é a roubalheira (de
cavalos...) acobertada por políticos na Zona da Mata mineira. A reação do neto:
Mando chumbo, meto bala
45
No bucho desses patifes (p.598)
O menino quer ganhar mundo, está decidido a ir além porque, em última
instância, o perigo é o desafio a partir do qual se instaurará o outro que ele busca ser longe de
casa, a velha casa que ele, entretanto, não renega:
Podem ficar sossegados
Prezo o leite que bebi
Daqui não saio devendo
Nem um ceitil a ninguém.
Vou abrir o meu caminho
Por esses matos, além.
Mas o investimento é de mão dupla: a avó investe contra a partida do neto por
investir na manutenção de quem ele ainda é, na tranqüilidade de um futuro igual; ele investe
no mundo e contra o mundo, sabe que precisa ir para buscar algo que ele ainda não bem sabe
mas com que se possa identificar. E ela tentará dissuadi-lo pela variação de apelos,
chamando-o de meu neto insistentemente, falando-lhe dos perigos, dos vizinhos que se deram
mal, dos ladrões... até desistir e dar-lhe a bênção, crente na sabedoria outra, a de Deus, em
nome de quem parece, enfim, resignar-se ao lado do companheiro, avô do menino:
A avó
Deus te abençoe, meu neto,
Te dê coragem, te dê afeto,
Te dê ouro e consideração.
O avô
Nos sacolejos do mundo
Deus te segure, meu neto.
46
Em suma, o que temos é, de certa forma, a narração de duas resistências
6
: a da
avó, determinada em seu propósito de reivindicar a permanência do neto, para protegê-lo do
mundo de (dos estranhos/estrangeiros), e a do próprio neto, determinado em não ficar, em
mudar para ser justamente outro.
“Resistência”, em última análise, como papel social do intelectual, sintetizada
assim por Edward Said: “A consciência da possibilidade de resistência pode residir na
vontade individual.” (SAID, 2001, p. 300).
As personagens de Ladrão de Cavalo resistem pela ação avisar (personagens
conselheiros) dos perigos da ambição pelo novo (pelo estranho, pelo “estrangeiro”), partir
(personagem aconselhado) em direção ao novo –, que não deixa de ser a consecução do ato de
pensar, por trás do qual encontramos o autor em sua missão, talvez, de “contaminar” suas
personagens (e, quem sabe, o seu leitor) dessa perseverança sem a qual nos mantemos
estagnados.
Porém essa, digamos, “contaminação da resistência” não parece restrita ao veio
subliminar da ação tipífica. Se por um lado, a renovação da linguagem é uma das verdadeiras
razões da poesia, como sugere Guilhermino Cesar, (p. 4) (Separata da Revista Organon,
1967), por outro lado é preciso observar que essa renovação pode se dar tanto pelo uso de
metáforas, neologismos etc. como pela recuperação das formas tradicionais da poesia. Isto é, a
redondilha, como recurso formal, a personificação e o refrão, como retórica para citar
alguns dos recursos utilizados no texto em análise contribuem para o dinamismo da ação
dramática, conferindo-lhe cor, movimento, em um cenário local (a ação se passa no interior
de Minas Gerais), em um tempo atual (identificado pela crise da região agro-pastoril desse
interior e pela nostalgia dos áureos tempos da mineração). Ora, é justamente na combinação
dos elementos citados que, enfim, temos não o mas um texto: curto, sem grandes peripécias,
mas correto e envolvente.
Se para Alfredo Bosi “Resistir é subsistir no eixo negativo que corre do passado
para o presente;” considerando negação como espera movente para o campo da
possibilidade “e é persistir no eixo instável que do presente se abre para o futuro.” (BOSI,
2004, p.226), para as personagens de Ladrão de cavalo, resistir significa algo que podemos
aproximar daquilo que Edward Said, em seu Reflexões sobre o exílio, caracterizou como
6
“Resistência”, aqui, empregada (nesse caso para aludir ao comportamento das personagens) no sentido literal,
como “(...)luta em defesa, força que nos permite sofrer a fadiga, a fome etc.”, conforme, por exemplo, a
definição da 43ª edição do Dicionário Brasileiro Globo (org. de Francisco Fernandes, Celso Pedro Luft e
F.Marques Guimarães).
47
“vontade individual” (SAID, 2001, p.300). Na verdade, o que estamos propondo é uma
espécie de convergência das ações resistentes que confluem para a missão de gêneros
distintos: a do mundo real, por meio do autor que projeta, segundo Bosi, através do poema
“na consciência do leitor imagens do mundo e do homem muito mais vivas e reais do que as
forjadas pelas ideologias”, acendendo, assim, “o desejo de uma outra existência, mais livre e
mais bela” (p.227); a da comunidade, em seu apego ao passado-presente, entre a realidade e a
ficção por meio do coro representado pelas personas (avô, avó, córrego, serra etc) de Ladrão
de cavalo, que resistem a deixar o moço ir; e a da ficção, pela própria voz desse menino (na
sua insistência pelo futuro), que resiste em ceder à permanência do que pra ele se trata de
“passado”.
Alicerçado no tripé itinerante entre a nostalgia do passado, a urgência do agora,
e a esperança no futuro, este texto, por sua perspectiva, digamos, de resistência e movimento,
nos faz pensar na intrigante aporia adorniana: se depois de um certo ponto a que chegou a
humanidade (Auschwitz), não mais espaço para a poesia (não como ela dizer o
indizível, o horror), de que forma é possível, enfim, mantermo-nos inconformados, infensos
ao mal senão justamente pela arte, pela capacidade de transfiguração da poesia?
Ora, a poesia nunca deixará de cumprir seu papel de intervenção no real,
(con)fundindo-se com ele enquanto espaço combinatório de linguagens ou enquanto luz no
vale de sombras em que o futuro se tornou ao poeta-sujeito, como o é o perseverante
personagem central de Ladrão de cavalo.
É do instigante insight de Maurício Salles Vasconcelos, em artigo acerca do
mundo-arte, de que nos valemos para caracterizar um dos novos territórios do poeta: “A luz
deixou de ser metáfora para o poeta, para o artista, tornando-se um eixo de cognição e
conexão ao alcance dos novos sentidos do habitar, do trafegar as virtualidades
territoriais.”(VASCONCELOS, 1999, p. 207).
Mas se a cidade é espaço de luzes (ainda que luzes de outra natureza), e tantas
cintilações, por onde se faz perceber do poeta a sua constelação antes de luminosidade que
de luz, talvez?
Seguindo a trilha do mesmo tema, em artigo intitulado Textos da cidade, Luiz
Alberto Brandão Santos diz:
As nuances das transformações que ocorrem no espaço urbano tendem a se perder e
a se fundir em uma percepção vertiginosa mas genérica de mutabilidade contínua,
em um poder de identificação que é capaz de distinguir a sensação desfocada de
metamorfose incessante. O espaço da cidade tende a ser um lugar nenhum, quase um
vazio de percepção, nulidade de referências que, pelo alto grau de saturação, tornam
48
impossível qualquer enraizamento, qualquer identificação. Espaço intangível que
produz um estado de suspensão do vínculo entre o indivíduo e o que está a seu
redor, que gera a experiência da própria dissolução dos limites da individualidade.
Espaços de formas excessivas e oscilantes que torna recíprocas as tendências de
irreconhecer o mundo e de irreconhecer-se. (SANTOS, 1999, p. 132)
Pois justamente por ser a cidade, qualquer cidade, o não–lugar de todos, que o
nosso protagonista nela, simbolicamente, imagina-se outro até porque do lugar de onde vem
ele era um que não se reconhecia Note-se: os exemplos dados pelos avós a respeito das
gentes da terra que de partiram pouco lhe dizem, interessado em outro lugar, outra cidade,
menos porque esta representa outra cidade (que lhe é, de resto, indiferente) e mais porque
representa novas oportunidades de trabalhar, viver, ser alguém, qualquer alguém que o futuro
lhe reserve.
Guilhermino Cesar sabe a alma dessa persona-peregrina, obnubilada por outras
luzes; sabe a alma do sujeito, cercada pela cidade-metáfora, cidade-metamorfose, e é nela,
então, que o poeta lança sua luz para demarcar o caminho sem retorno e saída pelo qual
compulsoriamente se transitará e fora do qual apenas sombras sem, contudo, garantia
alguma... Ou seja, a aporia é clara: se ficar o bicho pega, se correr o bicho come, como diz o
ditado. Na dúvida, automaticamente seguimos com nossas armas para a prevenção: nunca se
sabe onde o próximo ladrão de cavalos estará de tocaia...
Seja como for, quando o protagonista citado responde ao apelo da avó sobre os
perigos do novo, dos lugares desconhecidos, que
Podia ser e não ser
Ora esta, o mundo é largo.
Tanto seria de Tebas,
Angustura, Barbacena,
Palmira ou Coelho Bastos
ele, concomitantemente, a chave a que se refere Drummond (em seu poema
Procura da Poesia) ao leitor para entender o princípio caleidoscópico da toponímia
guilherminiana: o perigo está na esquina, em qualquer esquina, está inclusive na casa, no
bairro, na cidade da gente, está em viver, como dizia o Riobaldo de Rosa
7
.
7
Em crônica sobre Guimarães Rosa publicada no Correio do Povo de 21/06/1975, compilada no livro Caderno
de bado, páginas escolhidas, organizado por Maria do Carmo Campos, Guilhermino César sintetiza assim o
49
.
4.2.2 Lira Coimbrã e Portulano de Lisboa: Lira Coimbrã (1965)
Lira Coimbrã e Portulano de Lisboa, de 1965 é, na verdade, obra dupla de único
fio: uma pode ser considerada o desdobramento da outra, embora a primeira esteja centrada
menos na epifania errante do sujeito lírico (como o é em Portulano de Lisboa), na cidade de
Coimbra, e mais nos múltiplos caminhos urbanos, de qualquer cidade, orquestrados por um
tom confessional que se deslinda desde o primeiro poema Bilhete para Cataguases até o
último, A viagem, sua estratégica retirada de cena.
Ainda que a obra possa ser entendida como única (mas dividida em duas), nos
deteremos primeiramente em Lira Coimbrã.
Segundo Santos:
O espaço da cidade tende a ser um “lugar nenhum”, quase um vazio de percepção,
nulidade de referências que, pelo alto grau de saturação, tornam impossível qualquer
enraizamento, qualquer identificação. Espaço intangível que produz um estado de
suspensão do nculo entre o indivíduo e o que está a seu redor, que gera a
experiência da própria dissolução dos limites da individualidade. Espaços de formas
excessivas e oscilantes que tornam recíprocas as tendências de irreconhecer o
mundo e de irreconhecer-se. (SANTOS, 1992, p.132).
Se é verdade que o homem faz a cidade, também o é que a cidade faz o homem,
condicionando-o a errância a passo cego cuja casa é, no Bilhete referido, a própria poesia
para o sujeito lírico. Reiteradamente, como um mantra que o convence disso:
A Sé Velha bate que bate:
a poesia chegará.(...)
Se é possível aspirar,
eis a minha aspiração:
Pelo sino da Sé Velha
achado no temporal,
por aquele som lavado,
gosto de Guimarães Rosa pela enumeração de nomes geográficos em Grande Sertão: Veredas: “Sente-se nessa
enumeração o gosto da palavra na sua gratuidade sonora, pois não interessa propriamente à ação em curso esse
rol de topônimos. Mas interessa à memória do leitor, pelo prisma da evocação ou pela expectativa que estabeleça
em sua imaginação.” (CAMPOS, 2008, p.175). Dessa forma, Guilhermino nos dá luzes ao caminho para
50
medir vida, medir passo,
versos, soluços, abraços.
E a poesia chegará. (p. 11).
Mas o cenário para a poesia é mesmo a cidade movediça, sem o engodo da
religião (a qual se rematerializa em reafirmação de decadência nos poemas na Couraça dos
apóstolos, p.24, na Torre do Anto, p.25, Mondegovia, p.33, e no Alto da Conchada, p.57) e
das luzes: é nela que o poeta, “bicho da terra tão pequeno”, haure a sua poção e dela que,
paradoxalmente, quer fugir:
(...)
A solução é esta: fugir.
Para onde?Fechadas desde sempre,
as portas não me dão passagem.
O mesmo ar – de facas e espetos, arames e cordas
cercado –
omite, severo, a rosa dos ventos. (p.14).
E a fuga se dá pela poção combinando elementos drummondianos, como o nojo
e o pasmo – que se bebe como fuga ao menos íntima, ínfima:
Aqui estou para misturar, misturo.
Combino duzentas gramas de pasmo
quinhentas de nojo
agito, agito, poção dos infernos,
e bebo. (p.14).
Anuncia-se, então, já no poema seguinte, Bicho da terra, p.29, o trapeiro, o
noctívago evanescente cuja morte mais que óbvio destino é desejo que se firma em À boca da
noite (p.29):
entender o uso de rica toponímia ao longo de sua obra poética. Em síntese, pela sonoridade (ritmo) e, digamos
assim, capacidade evocativa.
51
Evaporei-me. Forma perdida
À boca da noite.
(...)
À boca da noite irei morrer
Se Deus quiser. (p.30).
Claro, permite-se pensar no dualismo que o último verso encerra no que tem de
fado a morte, no que ela tem de divino desígnio. Morte de não esperar porque viva,
amalgamada no poema de evocação a Fernando Pessoa, intitulado Das alternativas, sem
floreio, na intenção de Fernando Pessoa:
Estamos todos mortos
no acre, no sal,
no ácido sulfúrico, para sermos mais exatos
(...)
Tudo foi visto antes de mim
por outrem de mim, que não era razão ainda, ou
antes – só o instinto me ilustrava nisto
de vir o simples a ser o misto. (p.37).
Trata-se aqui , se o quisermos, do caos no interior da poiesis: o homem, “bicho da
terra tão pequeno” é também “o animal do tarde”, aquele que veio depois dos demais, mas
aquele que, dotado de juízo, tarde percebe que, como o áporo de Drummond, cava sua própria
morte e sua cova. Seja como for, a, digamos, “bricolagem” de nuanças do mundo – por meio
da qual Guilhermino Cesar vai costurando o seu tecido poético nos aponta para novas
significações da palavra, compondo uma espécie de trânsito entre o significado e o
significante. É como nos diz Vera Casa Nova
O verso escapa a si mesmo. As linguagens se precipitam umas nas outras. As
imagens são devoradas e devoram-se umas às outras. Os sentidos se perdem. Vão e
voltam refazendo percursos da letra. Os sentidos deixam o território do significado,
aderem às multiplicidades, criam e recriam significâncias. O imaginário solta suas
amarras do real, que passa a ser somente cintilação, e possibilita voyages de verso a
re-verso. (CASA NOVA, 1999, p. 15)
52
No rastro dessa capitulação ao imaginário, justamente para captar/capturar das
teias do real a matéria poética, o poeta traveste-se do expedicionário capitão para partir na
asa do vento (p.39) e retornar a terra em reiterativa (e desesperada) exortação nesta Canção
do exílio (p.41):
Vamos jubilar (é pouco)
vamos depor (já serve)
vamos triturar (melhor)
o mundo(...)
Volte a terra a ser o neutro(...)
Vamos depor o futuro
o verbo e sua expressão
matar a própria linguagem(...)
e depois de tudo feito
não permita Deus que eu morra
sem que volte para lá;
quero ver os Coronéis
quero ver os carajás
na terra das frustrações
onde canta o sabiá. (p.43).
Mantém-se então o tema da partida na mesma velocidade rítmica a anunciar o
amanhã:
Amanhã, como de rigor,
abre-se a camisa às incertezas;
e o peito seco, sem amor,
à espera do fado (p.52).
O tom feérico e inusitado mantém-se em O hóspede (p.53), no pessoano Estrada
de Sintra (p.55) e ainda no indagativo Alto da Conchada (p.58), poema cujos derradeiros
versos marcam uma espécie de divisória no texto: onde termina o périplo do poeta errante,
com sua verve conclamatória, começa, em tom ameno, a memória do sujeito lírico; então o
53
caos súbito se suspende. Bebe-se de novo, e em parceria, para ordenar-se. Vão-se as penas e o
desejo de ir:
É fácil. Eu bebo,
tu bebes e, ainda uma vez,
bebemos tranqüilos.
sorvemos o mundo em gotas,
cada um com seu estilo.
As penas que me matavam
dissolveram-se. Por quê?
Agora não sinto nada.
É melhor viver. (p.59).
E vem, a miúdo, mas vem a esperança:
Onde sou o que sou
em Condeixa ou Paris
senão a esperança
do escasso nariz? (p.64).
Entre o questionamento existencialista acerca de quem ele é e onde ele é, impõe-
se o que ele vê – no poema seguinte, S.Martinho de Anta:
(...)
Em S.Martinho de Anta
eu vi bichos e caminhos
encontrei Torga
8
nos montes
sofrimentos peregrinos
andei no giro das nuvens
8
Torga: provável referência ao escritor português Miguel Torga, autor de Os bichos, livro de contos
protagonizados e narrados por fauna a mais diversa...Na leitura do livro, percebe-se nitidamente o caráter
54
matei barões e vizires
fui conde, chantre, menino,
e morri pelos Brasis
sem achar o meu destino. (p.66)
O eu rico reafirma em Fadário o seu “fadário menino”: ele é o out-sider que
“jogou a vida pela janela” que se perdeu “en las cumbres de Toledo.”; paradoxalmente,
porém, “en las cumbres de Toledo me encontré.”
Ou seja, perder-se é uma forma de reencontrar-se, morrer é uma forma de reviver,
novo, de novo, como se O último homem:
Nasce amanhã.
Contudo, já vê.
Sábio, dirige
a ordem no caos.
Do liso vidro
que o gerou
salta sem complexos,
e não tem segredos
e não tem passado. (p.73)
O destino desse homem é de se prever: “toma da lira,/canta, suspira/ e expira.”
(p.76).
Não obstante, o rumo, mesmo o da memória, é de bom alvitre observar,
permanece atravancado de matéria vária: “vidro rugoso, matéria plástica, borracha parda,
frascos e cactos, crianças mortas” espalham-se no caminho ao inventário do poeta neste
Contraponto:
Fui pesar minha façanha
dez sentimentos de fuga
seis venturas desgraçadas
alegórico presente: a condição animal é do homem, indispensável; a condição humana dos bichos, visível no que
“humano” pode representar de melhor.
55
tiros no oco do mundo
arrotos de moribundo. (p.88).
Em suma (voltando para algumas páginas anteriores, no poema ), a
desesperança, o vazio, ou seja, a morte, volta a ser vista, objeto de desejo, mas não vê; e é
uma morte personificada, pagã, distante, portanto, da morte celeste, reabilitadora:
Virgens soluçam na capela,
morrem crianças no caminho
que frio.
A simples, prática amargura
de ser – procuro. Encontro apenas
a morte em cada instante.
E ela que passa perto, não me vê,
deixado amante. (p.83).
Para além de uma relação de parceria, estabelece-se um processo de identificação
entre o poeta e a morte. Com efeito, intimidade entre ambos, diálogo e entendimento,
como se o poeta percebesse a morte como ela é: desfecho de um ciclo em razão do qual o
novo se revela, a vida se renova. Então, a morte é o vazio, desenlace para reenlace, o não-
lugar inerente ao retorno, o desvão entre a pulsão interna e o mundo fora, o devir, extremo
como este muro que aparece no poema Minas Velhas, em que o sujeito lírico se coloca na voz
do narrador a um outro evocado à Riobaldo:
Cave, compadre, de dia
e de noite, sem parar,
como quem busca o outro lado
desse muro desgraçado
que existe dentro de mim. (p.92).
56
O outro aqui está convocado a cavar até encontrar a Minas Velha (que está
morrendo) no fundo da qual um morto, enfim, espelho se achará: o próprio sujeito, quer dizer,
quem de fato representa o passadiço, o arcaico sem lugar na urbe, o velho à espera do tempo
de pescá-lo pra morrer em Cataguases, como aparece no antepenúltimo poema do livro,
Morrer aqui:
Morrer aqui
nesta mesma casa
neste mesmo leito(...)
olhos pregados neste rio que me leva
a um largo em Cataguases.
Morrer aqui
sem mais aquela.
O sino a bater
o rio a vazar o tempo à espera
de me pescar. (p.97).
“Mas se você achar que eu estou derrotado saiba que ainda estão rolando os
dados”, diria Cazuza, às vésperas da morte, na canção intitulada “O Tempo não pára”. Pois
rastreando Adorno, em seu Reflexões sobre o Exílio, Edward Said nos bem o tom da luta
ao discorrer, em última análise, sobre o papel do intelectual em tempos modernos:
Adorno postula como uma alternativa à capitulação resignada da causa perdida a
intransigência do pensador individual cuja capacidade de expressão é um poder que
deflagra um movimento de vitalidade, um gesto de desafio, uma declaração de
esperança em que a infelicidade e a escassa sobrevivência são melhores do que o
silêncio ou a entrada do coro dos ativistas derrotados: “Em contraste, o pensador
crítico intransigente, que o sobrescrita sua consciência nem se permite ser
aterrorizado para entrar em ação, é, na verdade, alguém que não desiste. Além disso,
pensar não é a reprodução espiritual daquilo que existe. Enquanto não é
interrompido, o pensamento mantém um controle firme da possibilidade. Sua
qualidade insaciável, a resistência contra a saciedade trivial, rejeita a sabedoria tola
da resignação.” (SAID, p. 299)
Então, embora permaneça, nos últimos dois poemas do livro, instando a morte, o
poeta, pelo avesso, admitindo a ansiedade de voltar pra Cataguases (O destino?
Cataguases./Quero depressa chegar)p.103, onde quer ser enterrado, admite, ao mesmo
57
tempo, dar termo ao ciclo. Ora, não seria a própria contribuição artística seu maior espólio?
Não é ela uma forma de perpetuar-se na condição de resistente – e não de desistente?
Guilhermino Cesar, não nos enganemos, é um guerreiro ardiloso; guerreiro cujo corpo,
entregue à moda Getúlio Vargas, ferido de morte para banquete alheio, insinua-se como
avatar, estandarte de sua causa, a poesia. Prestemos atenção na última estrofe do último
poema desta Lira Coimbrã:
Depois, me larguem, me olvidem,
Que eu seja bem digerido
Pelo chão de Cataguases,
Reino de Minas, Brasil. (p.105).
À aparente intenção de olvido, opõe-se o oferecimento sacrificial explicitado no
antepenúltimo verso. Sirvamo-nos.
4.2.3 Portulano de Lisboa (1965)
Publicado como uma espécie de desdobramento antilírico de Lira Coimbrã
antilirismo comprovado pela forma narrativa e aguda com que o texto se projeta Portulano
de Lisboa é um único poema de time tão heterogêneo como vário. E de misturas: gentes da
ficção e da vida real (ou das duas) em lugares da vida real e da ficção, Pessoa, Cesário Verde,
D.Sebastião e D.Dinis, Garret, Herculano, João de Deus, Padre Amaro e Amélia, Conselheiro
Acácio, Camões, Antônio José, entre outros nomes que desfilam por topônimos como
Córdova, Macau, Minas, Ribeira das Naus, Serra do Ribatejo, Algarve, Lisboa, o Mar da
China e o Tejo etc.
Para introduzir a leitura, a conclusão, o que o poeta quer neste Portulano de
Lisboa:
É isto. Quero Lisboa e seus arredores,
jardins, castelos e terremotos,
e os seus capitães de navio
no calmo Tejo ou mar bravio:
Henriques, Gamas, Cabrais
58
(sem faltar o Cojacém
De tantos juncos inimigos
no solerte Mar da China).
Lisboa e seus arredores,
a partir de Minas Novas,
Goa, Diu e nomes maiores,
passando pela Colônia
do Santíssimo Sacramento
nos gorgomilhos do Prata;
Uma Lisboa dispersa
no ar, no rio, na grama,
cada manhã traduzida
em vário estilo de vida
na humana rosa dos ventos,
e que morre de saudade(...)
E vai aonde este poeta andarilho, enfim?
Vou nas asas do pampeiro,
vou correndo ao Promontório:
- Vou à cata de coragem
para os que estamos sós,
parados aqui no Rossio,
a roer nossa vaidade.
para todos nós
que não nos movemos
nem nos matamos (ainda)
diante do mar aberto.
Diante deste mar aberto. (p. 123)
Isto é, esse sujeito que antes revelava “querer” deixa-se agora a uma “cata” não
pela coragem de antanho, de desbravamento e exploração ultramarina; trata-se de outro
59
mister, que é o de romper o imobilismo de quem apenas anda e e nada faz além de “roer
nossa vaidade”. O objeto de busca é a contest(ação) que parte da palavra em tom próximo do
exortativo, denunciando a preocupação do poeta com os problemas de seu tempo; tempo de
partida para o qual, em última análise, pouco importa o lugar e os convivas. Nesse sentido,
Fernando Pessoa, citado duas vezes no poema, e sua Lisboa revisitada soam como norte ao
Portulano de Lisboa. Está lá no início:
Em dois ou cinco de março
(não importa o dia)
era de 1964
ácido me encontrei
ao cair da tarde
fora do Rossio.
Ia só, como convinha
à rua estreita, calçada dos ais
de Mil Quinhentos e Oitenta
- se não me engano, data exata
do vagido, melhor dito: do estouro
do poeta-menino Fernando Pessoa,
mil quinhentas e oitenta pessoas,
em verdade,
espalhadas nesta urbe- cosmos,
entre o Pacífico e o Algarve. (p.109)
As “mil quinhentas e oitenta pessoas”, entre O Pacífico e o Algarve, ratificam o
tom de mobilização presente no poema. E o início de Lisbon revisited remete-nos à mesma
atmosfera de anseio presente no final de Portulano de Lisboa. Vamos ao texto de Pessoa na
dicção de Álvaro de Campos:
Nada me prende a nada.
Quero cinqüenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com angústia de fome de carne
O que não sei que não seja –
60
Definidamente pelo indefinido...
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar. (p.126)
Não nos enganemos: a aparente ganância do sujeito lírico tem algo de estratégia
para seduzir o leitor, que aos poucos percebe pelos paradoxos “definidamente pelo
indefinido” e repetições “durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto de quem dorme
irrequieto” – ambição outra, a de manter-se alerta, alma aberta para o “mar aberto”.
Lembrando que o tema do texto em questão de Pessoa é o retorno do engenheiro-
poeta a Lisboa, Anamaria Filizola (ao estabelecer um paralelo entre a Lisboa revisitada e a
Curitiba revisitada por meio de um poema de Dalton Trevisan) diz algo sobre Álvaro de
Campos que em seguida nos interessará:
De volta à Lisboa, depois da estada na Escócia, o duplo estranhamento: de si
mesmo, da cidade. Mas o estranhamento de si mesmo é maior, muitas vezes mais
pungente que o estranhamento da cidade. Antes de se referir à cidade (seu nome, o
céu, o Tejo, nada mais), um longo percurso revelador da inexorabilidade do não
se reconhecer, do isolamento com relação às pessoas, às idéias, ao estabelecido, uma
irritação para com os que não conseguem perceber este insulamento (FILIZOLA,
2003, p.127)
Na seqüência, ela volta a citar o texto de Pessoa:
Outra vez te revejo,
Cidade de minha infância pavorosamente perdida
Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui...
Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi e aqui voltei,
E aqui de novo tornei a voltar?
Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram,
Uma série de contas-entes ligadas por um fio-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém fora de mim?
Outra vez te revejo – Lisboa e Tejo e tudo –
Transeunte de ti e de mim.
Estrangeiro aqui e em toda a parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
61
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
No castelo maldito de ter que viver. (p.128)
Ora, a cidade como metáfora do eu é o lugar exato onde
“[. . .] se configura o viajante cosmopolita, o judeu errante, o estrangeiro onde quer
que esteja: nenhum lugar a evocar o pertencimento, todas as cidades sendo iguais
(ou invisíveis), seja pelo que possam parecer em sua realidade sem traços distintivo,
seja pela indiferença por aquilo quer possa ser marcante ou peculiar[. . .].”
(FILIZOLA, 2003, p.128).
Ou seja, em uma espécie de mise em scène do eu, o leitor está apto a recolher os
mesmos elementos de parecença entre os poetas entre si e os poetas e a(s) cidade(s). Nomes e
topônimos, homônimos e heterônimos, realidade e a ficção entrecruzam-se, errantes,
tripulantes da mesma nau insana (que é a vida) diante da qual estende-se o mar aberto a que
Guilhermino Cesar se refere ao final de seu poema. O sujeito lírico se reforça ao negar
pastores (em alusão a um estado lírico de contemplação ou perspectiva poética(?) – que não
interessa ao flâneur, ao navegante) e ao evocar piratas:
Chego à Ribeira das Naus.
Ó pastores sem cajado
lançai nas ondas do Tejo
vossas gaitas importadas
que ninguém vos quer ouvir.
(...)
Não!
Caravelas e piratas
quero. E versos
possuídos do epos. (112,113)
(...)
Quero a Lisboa das naus perdidas no inferno de Tanger
das porcelanas sangrando em Macau,
dos contratos do ouro (e seu desdouro)
nos garimpos de Minas (p.115)
(etc.)
62
O poeta, ele mesmo um peregrino, identifica na cidade o seu estado anímico; para
ele, a cidade é mar de estar, seu horizonte; ela é um lugar e ao mesmo tempo é lugar qualquer,
lugar nenhum, entrelugar, pois há clara relação de identidade entre esses cosmos de cimento e
sangue, pedra e carne.
Aliás, terreno árido, múltiplo e movediço, o tema da identidade remete a tantos
ângulos quantas forem as visadas sobre eles. Por isso e para clarear de que sentido de
identidade pretendo me valer cito a boa síntese de João Luiz Medeiros no intuito de limitá-
la na perspectiva psicanalítica:
A identidade não caracteriza um estado, portanto ela não é imanente
nem imutável, mas sim uma construção cujas fundações e evolução
são determinadas em grande parte pela existência do outro. O discurso
identitário é tanto uma evocação da figura do outro (ou dos outros)
quanto uma proclamação do eu. É um processo interno ao indivíduo
indissociável às interações que o mesmo desenvolverá junto aos
sujeitos que o cercam e às estruturas sociais dentro das quais o
indivíduo se movimentará. (MEDEIROS, p. 112) .
Em Portulano de Lisboa, Guilhermino Cesar, para além de estabelecer o espaço-
tempo no qual o sujeito imergirá e do qual emergirá, reafirma a sensação de exílio e
estranhamento que já se encontra desde Meia-Pataca. E não se acanha de pagar o preço pela
intenção liberta.
63
4.3 A Experiência Sulina: Porto Alegre
4.3.1 Arte de Matar (1969)
A obra, de 1969, é composta por treze partes precedidas de uma “tônica” que
assinala justamente o tom, a essência do texto:
Tônica
Poema-grito
a doer comigo
na caverna.
(...)
Não quero música.(p.9)
Está o que o poeta quer (grito) e o que não quer (música). Isto é, ele busca as
“razões de homem concreto” que ele cita no poema seguinte, Jerarquia, depois do qual se
aponta a queda original, na referência bíblica a Caim, cujas conseqüências, ou “frutos”,
recaem sobre nós:
Fruto intemporal(...)
cai no vazio
em que somos todos
um vago destino
preso a Caim.
A ninguém perdoa:
cai em ti e em mim. (p.13)
O vazio: entre cada poema, chama a atenção o espaço em branco, vazio, da página
em branco, em edição de 41 páginas, como a convidar o leitor à pausa e à reflexão a respeito
64
da arte da morte cuja vítima mais ilustre (podemos pensar) talvez seja a própria arte, isto é, a
morte da arte, no poema Ofício:
Escravos do nosso risco,
matamos.
Matar (sem amor)
e toda a nossa arte
a arte bruta
que não se exalta
mas nos explica. (p.19)
A “confissão” que se segue (poema seguinte) é em primeira pessoa, em uma
espécie de mea culpa reiterativo. Mas não é qualquer primeira pessoa, pois ela mata em
diversos lugares (Betel, Carmelo, Larache etc), por várias figuras (pelo negro, pelo branco,
pelo Cristo...). Em curioso cenário pantomímico, o poeta dispara sua metralhadora giratória
contra os entes que lhe aparecem:
Matei o riso que nascia
em meu neto (para minha filha)
matei o lorde
matei o burro
matei com o raio a pandorga do menino
matei com soda cáustica a fome do desnudo. (p.22)
Para essa execução em massa, a “metralhadora”, entenda-se, pode ser qualquer
objeto de ferir:
Mato com a nota-de-banco
mato com o acordo secreto
mato com a foice e o charuto. (p.22)
O método de matar é tão vário quanto implacável:
Cortar, dividir, secar?
65
É comigo: corto, divido, seco. (p.23)
O espírito peregrino do poeta “moro em diversos lugares” (p.24) e sua capacidade
mimética “divido-me confortavelmente em polias, anéis, chaves eletrônicas/botões, visores...”
(p.24) permitem-lhe esconderijo e camuflagem ideais, permitem-lhe maior chance de acerto
em seu alvo, ele mesmo porque homem, ele mesmo, na floresta-metáfora em que se devora
por “anões de pés forcados”.
Seja como for, o périplo é marcado por versos de ritmo intenso, caleidoscópico,
por personificações da morte, por paradoxos que representam a contradição humana, por
topônimos que representam, metonimicamente, a geografia dos homens, antíteses e
sinestesias como a que revela o poeta sem forma que tem “cheiro áspero que envolve o
berço” (p.25), o poeta da forma de todos os homens, alvo revelado no poema seguinte,
intitulado alvo, que só tem jeito na morte:
Matei o menino.
O menino
tinha crescido, crescido(...)
Matei o menino do País Sem Nome(...)
Menino do País Sem Nome
só tem jeito de morrer(...) (p.27)
Morta e enterrada a vítima, o livro recomeça com uma reflexão sobre o destino,
fado, passa pelo país do sujeito lírico, Galaad (pátria-metáfora revelada no poema O irado),
nome do selo com que o autor publica o livro e com que remete à binomia riqueza-miséria
(dois lados da mesma moeda), o nosso fado-destino.
Em Os escorpiões o sujeito lírico reafirma o seu caráter dual de vítima-algoz dos
homens, portanto de si mesmo. O clima é de canibalismo e autofagia:
Como os escorpiões; os escorpiões me comem;
Sou um escorpião, um dos escorpiões
de Roboão
neto de Davi
filho de Salomão. (p.33)
66
Enfim, o sujeito lírico sabe de sua duplicidade, de sua condição, entre a pureza e a
impureza, de outro e mesmo, identificando-se com o mal justamente por não poder evitar ser
filho, parte dele como ser humano, como intelectual itinerante, transitando por lugares,
sentimentos, vicissitudes, lírios do céu e almas danadas:
Reparto-me entre os puros e os impuros
entre lírios do céu e almas danadas
Eu sou um escorpião presente
no veneno dos escorpiões de Roboão. (p.34)
No poema seguinte, Dinastia, a confirmação da igualdade, herdada
incondicionalmente, contra a qual é inútil lutar; ela está, como o escorpião de Reboão,
grudada na sua pele. Então, resta, tal qual ocorre na República, matar/expulsar figuradamente
o poeta em si para começar outra história, a do poeta “fora de si”, o errante:
A minha história começa
com a morte dos meus escribas.
Afinal para que vivo
nestes paços irreais
senão para ser quem sou
a todos os homens igual?
(...)
Sem paixão e sem remorso,
ah! Matei os meus escribas,
que a minha história começa
aqui, onde termina a vida. (p.35)
Mortos os mortos (como se anuncia no poema Os mortos), morto o poeta em si,
morta a arte, ao menos a arte “em si”, o rescaldo é a confirmação do fim dessas vidas para um
recomeçar que se lê nas entrelinhas da repetição do “fim”. Agora como contraponto a encerrar
o próprio livro:
67
Perfeito anti-herói
de um mundo técnico
morro (sem tardes fagueiras)
(...)
E vejo-me, afinal,
preso aos meus escravos,
eu mesmo – alvo
do tiro que lhes dou. (p.41)
Se por um lado acompanhar, na condição de leitor, essas mortes nos faz partícipes
em comunhão do assassínio, entendendo-as imprescindíveis no processo de renovação do
poeta, por outro lado tem razão Ferreira Gullar ao discorrer, no artigo intitulado Poesia: uma
luz no chão, em sua obra Sobre arte Sobre poesia, a respeito do impasse da poesia e do
homem:
Sei que para o impasse da poesia e do homem não soluções
definitivas: pretendo que a poesia tenha a virtude de, em meio ao
sofrimento e ao desampara, acender uma luz qualquer. Uma luz que
não nos é dada, que não desce dos us, mas que nasce das mãos e do
espírito dos homens. (GULLAR, 2006, p.147)
Isto é, cremos que a morte pode ser entendida, a partir de sua dolorosa verdade
que revela a índole assassina do Homem, como metáfora por meio da qual se faz a luz vinda
não de um ente acima de nós, mas do próprio homem, das mãos do homem. Guilhermino
Cesar não resolve o impasse da poesia, óbvio, mas ao praticar a morte, nos limites da arte,
assume a condição de sua espécie, como “bicho da terra”, mas ao mesmo tempo se redime
pela porção poeta a para utilizar uma expressão do interior mineiro lumiar o mundo de
fora .
O “contraponto” que encerra esse Arte de matar é o limite entre o homem e o
poeta.
4.3.2 Sistema do Imperfeito e Outros Poemas (1977)
68
Poesia da maturidade intelectual de Guilhermino Cesar, Sistema do Imperfeito e
Outros Poemas, publicado em 1977 pela Editora Globo, é um livro de 184 páginas divididas
em 9 partes.
A obra foi base para a já citada dissertação de mestrado de Vivian Ignes Albertoni
da Silva, Guilhermino Cesar e Sistema do Imperfeito e Outros Poemas: sujeito e linguagem
poética em tempos de caos e massificação.
O estudo, que investiga “o sistema” em torno do qual orbitam suas constelações
poéticas, é nossa referência escolhida para não nos perdermos na viagem que começa com
Animal do Tarde e termina nos Sonetos da Pergunta, respectivamente primeira e nona (e
derradeira) partes desse sistema.
Assim, nossa pretensão aqui é apenas a de apresentar a leitura do livro com um
acréscimo: o de pensar o sistema composto por círculos que não se hierarquizam mas que se
auto-alimentam, em uma espécie de circuito, sem propriamente um início ou final, ou seja,
que propõe no fim o recomeço que leva ao fim que é, enfim, o começo de novo, conforme se
viu na leitura de Arte de Matar (ao menos no nosso modo de ler) apresentada nesta tese.
Trata-se de pensar nos velhos antagonismos aparentes (vida/morte,
esperança/desesperança etc) na condição, a rigor, de faces da mesma moeda.
Vejamos no seguinte exercício de imaginação, a partir do qual se repensam os
títulos da cada uma das partes do livro, os pontos de ancoragem do texto. A idéia é justificar
esses títulos pela própria restrição do poeta a adjetivos no poema. Para ele, adjetivo no corpo
do poema deve ser usado apenas em situações especiais, que a matéria do fazer poético é,
em essência, o substantivo.
Entretanto, a nomeação das partes aponta justamente para a qualidade de seu
objeto, ao menos a qualidade intrínseca, quando não diretamente (não em Pressão
Subliminar, parte VI, mas também no curioso caso de justaposição que se vê em Doidulisses,
parte IV, e de aglutinação em Ultraparticular, parte V), indiretamente, por meio de locuções
adjetivas (como em Animal do Tarde, parte I, Sistema do Imperfeito, parte III, Circuito da
Febre, parte VI, e Sonetos da Pergunta, parte IX) e sintaxes polissêmicas (como também já o
é o nosso Animal do Tarde mas sobretudo a Brasa na mão, parte II, e o Milenar, parte VII).
Dessa forma, Guilhermino Cesar ratifica sua crença no poder de nomeação do
substantivo, isto é, o substantivo, quando acertado, anuncia os tributos e atributos com os
quais nós, seus leitores, nos veremos. Em nossa livre leitura, nos permitiremos renomear,
então, o nomeado em suas partes. Assim:
69
Parte
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
Nome
Animal do Tarde
A Brasa na Mão
Sistema do Imperfeito
Doidulisses
Ultraparticular
Circuito da Febre
Pressão Subliminar
Milenar
Sonetos da pergunta
Renome
Animal (o homem) Tardio
A mão Incandescente
Sistema Imperfeito
Ulisses Doido
Ultra-íntimo
Circuito Febril
Pressão Subliminar
Milenar
Sonetos Indagativos
A partir desse circuito substantivo-adjetivo desmontado, sigamos o rumo: temos o
homem do tarde o que sempre quer mais (ganância) e por isso está sempre atrasado em
relação ao que pode ter, possuir –, o homem que busca o poder pelo poder e quando o tem já
não lhe basta, aporia que remete ao áporo (desencavado por Drummond em A Rosa do Povo),
inseto que cava, cava e não chega a lugar algum que não seja a própria destruição,
Cauteloso, explora as fraquezas
da terra, por dentro e na superfície;
câncer, oculta-se
para melhor ficar no seu ruim
serviço.
É o algoz de si mesmo
no mais caseiro abismo. (p.6)
e que remete ao ganancioso que
(...)
tem o mosquito do Acre
e o guano do Chile, tem o provável
fosfato de Vênus para os miolos,
quando as aporias do último Platão se fritarem (p.9);
70
temos, também, o homem da brasa na mão, homem-se-esfarelando pois “viver no
ácido é o meu sistema” (p.15), pertencente ao “país na sombra”, homem de “ombros pesados”
em um “mundo chagado” a flanar nas imperfeições de um sistema onde, entre os precários, há
o desprezível, por sobre cujo perfume francês o poeta bafeja o arroto de onde brotam as
pétalas:
Poema é arroto; do podre
vingam as pétalas, Hafiz.
Transigir não transijo.
Desprezo o poema
de ares distintos, de luvas, gravata
e perfume francês. (p.55);
temos um Doidulisses que “Saiu de casa farto de si mesmo” (p.63) sem pátria
certa para retornar, mas que no caminho topa com Nerudas e Maikovskis, Drummonds e
Bandeiras para admitir que
O que é do homem
o bicho não come.
O homem consome
o bicho na fome. (p.82)
e admitir, enfim, o seu chão, como no Drummond de As Impurezas do Branco
(1973):
As formas impuras
são o meu caminho (p.87)
Nesse riplo solitário, de longos vazios testando a sensibilidade do poeta, seu
bramido é de angústia e socorro a ratificar a experiência de andar mar a esmo:
Passou por aqui um vento gelado. Falta-me um guia
nestes vazios. (p.91).
71
O viandante, Ulisses sem Ítaca, não tem onde desembarcar:
Quanto a mim, só sei
que amanheceu;
sumiu-se o porto onde eu devia
desembarcar além. (p.93).
Temos, portanto, o sujeito que se confirma perdido em circuito febril em cujo
centro está o redemoinho (aliás, o poema tem esse título) no qual ele mergulha:
Onde o celeste? – pergunto.
Ninguém responde, de medo.
No encoberto/abstrato
mergulho como as enguias,
não levo as patas. (p.132)
Seguindo o caminho entre antíteses, chegamos à síntese em Subliminar, poema
que abre Pressão Subliminar, sétima parte do livro:
A falta de senso é o prumo do mundo
somos bilhões de insensatos concretos:
com cara de gente e rabo de gato.
O senso / medida da própria loucura. (p.141)
A síntese, em última análise, remete mesmo à aporia:
A falta de senso é o senso do mundo
em qualquer falta de sentido:
homem sem versos
o umbigo do nada
o poema
podrido. (p.142)
72
O diálogo com outros poetas permanece, agora com Fernando Pessoa, em forma
de eco se considerarmos o aspecto metafísico do poeta português, em suma, com quem o
poeta mineiro-gaúcho partilha o pão da paranóia existencialista que o homem moderno
mendiga-mitiga-mastiga. O título do poema é indicial:
Retrato fingido
Esse poeta é um fingidor
finge tão safadamente
que chega a se furta-cor
para ficar coerente.
e como a roda da vida
não desenrola ninguém
o poeta continua ausente
da vida que ele não tem. (p.147).
Temos, então, neste círculo oitavo, intitulado Milenar, a voz dos descendentes,
metáfora da renovação da esperança que se vale do mesmo poder da voracidade para renascer,
como a velha figura da Fênix sugere. Ou não é a esperança que abre a porta, faz entrar o dia, e
acolhe os que sofrem?
(...)
Abres a porta, mandas entrar o dia,
a perfeição, o não-fim, a transcendência.
(...)
E somos o sofrimento desfeito no calor
de teu ventre
de escrava,
remida escrava, feliz escrava
de ti mesma. (p.167)
No último poema desta oitava parte, intitulado Inominado, temos o poeta a
desbastar esse fio de Ariadne, fio de esperança antes da morte brutal, antes da curva de
73
emaranhado labirinto onde o homem-animal nos espera; o poeta embora sabendo-se senhor
e escravo de seus próprios desejos, para o bem ou para o mal – mantém a esperança de não se
jogar no mar sem fim:
Algum dia, em algum lugar inominado,
onde nunca homem algum pôs o escarro
ou os miliários pés de fera,
ali, entre nós dois, como num fruto,
explodirá de novo a urgência do sol.
e sairemos para o vago, além
do inominado.
Por dentro, amanhecentes
senhores / escravos. (p.176)
Ao cabo, resta ao poeta-andarilho afirmar, “entre o ganir da luxúria / e os
remorsos opacos” (p.184), o mistério diante do qual se pergunta:
No mistério pergunto. Para que
se o mistério é que vem cobrir a minha
malograda nudez? Mas, não: pergunto;
perguntarei até não mais haver
senão o fim a perguntar – por quê? (p.184)
Enfim, “perguntar por que e por que perguntar” nos exatamente o governo a
que o sujeito lírico se submete, isto é, o mistério que gera a angústia existencial diante do
vazio da resposta.
Ao finalizar esse capítulo, a partir dessa “questão da pergunta”, retomemos dois
dos aspectos estudados como ante-sala para o próximo capítulo. O primeiro deles é a questão
do antagonismo que embasa a lírica guilherminiana. Para nos ajudar a refletir, destaquemos
uma passagem de O Arco e a Lira, de Octavio Paz:
(...)não há poesia sem sociedade, mas a maneira de ser social da
poesia é contraditória: afirma e nega simultaneamente a fala, que é
74
palavra social; não sociedade sem poesia, mas a sociedade nunca
pode se realizar como poesia, nunca é poética. (PAZ, 1972, p.310)
O poeta mexicano está, nesse artigo, pensando a partir de uma utopia: a de uma
“comunidade criadora” na qual as relações entre os homens fossem como um “tecido vivo” .
Nesse tecido, não haveria lugar para a desigualdade e a opressão. Seria preciso, então,
“poetizar a vida social e socializar a palavra poética”, quer dizer, o movimento pendular entre
afirmação e negação não existiria, pois a sociedade, convertida em comunidade, seria um
tecido “feito da fatalidade de cada um ao se enlaçar com a liberdade de todos”. Entretanto,
para Paz, o que há, na realidade, é um distanciamento desse ideal por um processo circular:
A pluralidade se resolve em uniformidade, sem suprimir as discórdias
entre as nações, nem a cisão nas consciências; a vida pessoal, exaltada
pela publicidade, dissolve-se em vida anônima; a novidade diária
acaba por ser repetição e a agitação desemboca na imobilidade.
Vamos de nenhum lado para lugar nenhum. (PAZ, 1972, p.312)
Esse processo circular (segundo aspecto que retomamos, a circularidade), que
aniquila as utopias, não será também o mesmo processo “subliminar” que nos sugere a poesia
de Guilhermino Cesar? Acreditamos que sim e mais: o vazio decorrente da angústia
existencial, personificada na imagem do áporo, é também o mesmo de uma poesia que (sem
utopia mas com esperança), porém, vive a sua angústia não no niilismo; vive na “resistência”,
imbuída da missão que Paz pensou para o poeta moderno, a de, fora das utopias, perguntar:
A separação do poeta terminou: sua palavra brota de uma situação
comum a todos. Não
é a
palavra de uma comunidade mas de uma
dispersão; e não funda ou estabelece nada, salvo sua interrogação.
Ontem, talvez, sua missão tenha sido a de dar um sentido mais puro às
palavras da tribo; hoje é uma pergunta sobre esse sentido. Essa
pergunta não é uma dúvida, é uma busca. (...)O poeta escuta o que o
tempo diz ainda que ele diga: nada. (...) (PAZ, 1972, p.347)
Paz propõe: pergunta como busca. Se como Maria da Glória Bordini afirma em
seu artigo A Poesia do Tarde,– é verdade que “Os poemas de Sistema do Imperfeito...
predominantemente versam sobre o descontentamento, com o sem-remédio das coisas e das
relações na vida contemporânea.” (p.39), também é verdade que a poesia de Guilhermino é
busca, mergulho, como diz o poema que bem poderia ter encerrado o livro:
75
Mergulho
Mergulhar? Mergulho
onde quer que surja
uma nesga de gente.
Na paisagem? Não,
mergulho nas tripas
de Luzia, Cássia, Andréia, Joel,
tripas ainda quentes.
No livro? No livro
é mergulho opaco;
as letras de esmeralda
perderam o antigo fulgor. A opressão em que morro
a falta do claro são brinquedos enterrados
na areia do Egito desde que a Técnica chegou.
No lábio? Sim, no lábio
mergulho no escuro
do verso não dito
no escuro-e-alvo
do mito. (CESAR, 1977, p.156)
O mergulho nas tripas, no escuro, como busca, pressupõe retorno: morto em
opressão, “desde que a técnica chegou”, o poeta emergirá, fênix renascida, para voltar ao
mergulho. Fique claro: trata-se de insistir, resistir e não de repetir ou desistir; trata-se sim
conforme sugere Maria da Glória Bordini em A poesia do tarde, artigo escrito para a Revista
do Instituto de Letras da UFRGS, Organon 17 de “fazer poemas com forma do podre,
impuras. Incongruentes eo chocantes quanto o mundo que a poesia quer transformar”
(BORDINI, p.49), mas o resultado é notável:
O resultado é que, dos versos desse poeta, projeta-se um universo de
representações caóticas que, por se oporem à inteligibilidade
cotidianamente praticada, obrigam à decisão tanto do texto quanto de
seu objeto de interesse, o mundo contemporâneo e estilhaçado.
(BORDINI p, 50)
76
Justamente nesse estilhaçamento em que o poeta se vê, aos pedaços, habita um
outro mundo possível de se fazer, onde o homem, lobo do homem, admite um seu outro, não
o cordeiro sacrificial que se dá à faina devoradora do animal, mas o cordeiro que nele,
homem-animal, vive. A poesia constitui-se em um dos meios através dos quais se chega no
“outro” melhor.
4.3.3 Banhados (1986)
Banhados é o resultado de uma iniciativa, em 1986, da empresa Riocell, aqui do
Rio Grande do Sul, a qual convida Guilhermino Cesar para, ao lado das fotografias de Luiz
Cláudio Marigo, capturar imagens essenciais do Banhado do Taim. Dsurge o mais singular
texto de poesia do autor. São 28 poemas que dialogam com belíssimas fotos da região. São
textos curtos, vivazes, que, no entanto, mantêm-se fiéis ao pontificado poético do autor: o
amargo humour ao retratar a vida que insiste em resistir.
As personas que se apresentam são tão inusitadas quanto várias: sapos, figueiras,
dunas, bosques, gaviões e bromélias, entre outros habitantes – temporários ou não do
santuário ecológico ganham no livro a permanência improvável de vidas majestosas porém
frágeis.
Diz o poeta mexicano Octavio Paz que “a intensidade de um poema de três ou quatro
linhas perfura com freqüência o muro do tempo.” (PAZ,1990, p. 8). As Criaturas do Banhado,
sem dúvida, alçam vôo pela poesia do autor e perfuram o muro do tempo. De fato, para dizer
essas vidas, quatro ou cinco enxutos mas intensos versos bastam.
O primeiro poema, ao lado do texto explicativo do zoólogo Francisco Widholze
(terceiro autor da empreitada), remete à fotografia da capa: sobre o banhado, o sol nascente
cujo destino é mesmo o poente fotografado para o encerramento do livro, ciclo que se encerra
para renascer em breve.
O primeiro poema então:
O Sol, pontual galo vermelho,
Cedo esporeia a vida nos Banhados.
O sangue e a seiva se agitam.
O próprio lodo
Responde febril à urgência do Deus. (p. 12)
77
Note-se que o Deus aqui é o Sol, fazendo, agitando a vida, que é tudo, mesmo a
rasteira, a de cogumelos, fungos e algas:
À entrada do bosque, isto:
A imponência nanica dos cogumelos.
O chão, viveiro de tudo, regurgita.
Fungos e algas se fundem vorazes.
Quem sabe do vivo se enleia na lida. (p. 28)
Neste império do cíclico, não o imprestável: regurgita o chão? Fungos e algas
se fundem, enleados na lida, na vida, apontam para a antiga lição bíblica: tudo tem seu tempo,
não nada de novo sob o sol (justamente porque tudo se renova). Aqui, tamanho é menor
que grandeza, o menos é mais. Ser, apenas ser, também é moderna lição ancorada na gica
platônica e no pensamento existencialista vista e revista em Pessoa, Drummond, Bandeira,
Vinícius, Quintana. Nesse sentido, aqui, a representação alegórica, que se pela
personificação, não raro se vale de sua condição bipolar para afirmar a natureza:
Os charcos, o mar, as dunas, a lagoa,
Ora dizem sim, ora dizem não.
Na embriaguez de existir
São aquilo que são. (p. 30)
Então, como explica Flávio Kothe, apesar de a alegoria ser “utilizada para que os
principais chavões da ideologia da classe dominante sejam reiterados como logotipos de
amplo espectro comunicativo” (KOTHE,1992,p. 67), nestes textos de Guilhermino César ela
se presta a outra função (logo acima citada), em última análise, de fundo ontológico:
A alegoria é a própria ontologia da obra literária. À medida que o
leitor a si mesmo através do texto, ele não lê propriamente o texto
do autor nem o autor no texto, mas apenas o autor que ele mesmo se
torna por meio do texto do autor. O texto do leitor e o texto do autor
não são absolutamente idênticos, um é a alegoria do outro. (KOTHE,
p. 66).
Se pensarmos no que acima diz Kothe, em Banhados o que há é uma espécie de
rede de interesses na experiência da leitura que subjaz ao próprio texto: o da empresa de
78
celulose que quer dar visibilidade ao seu compromisso de abater e poluir com consciência e
remédio –; o dos autores da poesia, da introdução e da fotografia do livro imbuídos de
propósito artístico-documental –; o suposto interesse do próprio leitor de fruição e de auto-
reconhecimento no papel coadjuvante de também ler a relação homem-natureza – e mesmo o
da natureza, protagonista da comunhão de esforços de todas as figuras envolvidas.
Assim, neste emaranhado jogo/bailado da vida, até as poças d’água entram na
dança, comendo, batalhando, divertindo-se com a noite:
Poças d’água, um presente
Desviado do rio. Comem areia para sobreviver.
Batalham caladas. A noite as diverte
Com o giro manhoso dos astros. (p. 32)
A peleja continua, às vezes entre seus próprios actantes. Agora, sobrevivendo ao
vento e às dunas fotografadas, são as figueiras e corticeiras as sub-protagonistas da cena:
O Taim é assim. O vento desinibido
Embirra com as árvores de porte. Figueiras
E corticeiras, no entanto, resistem.
A peleja se vê nas raízes,
Retorcidos tentáculos de polvo. (p. 34)
Intruso nesse habitat é o homem, animal do tarde, bicho:
Amanheceu nos bosques do Taim. Orquídeas
Na flor da idade, pasmadas
Consigo mesmas, não vêem o êxtase
Nos olhos dos bichos. O homem! (p. 42)
Mais adiante, o contraste da bromélia (a base é o gravatá), “feia e agreste por
fora”, belíssima quando floresce, é a base para um poema de muito boa sonoridade e ritmo. O
poema, em um tom epigramático, nos faz pensar também na condição humana, antagônica,
contraditória por essência. O áspero como ante-sala do Paraíso é um “achado”, sem dúvida:
79
Feio e agreste, por fora o gravatá
Faz honra ao nome. Florido,
Sorri, e o azul do dia o compreende.
Os insetos descobrem no áspero
A véspera do Paraíso. (p. 48)
Isto é, a feiúra pode ser uma forma de proteção para afastar o homem. O poema,
carregando na dicção casual, prosaica, é singelo, quase infantil, no sentido quintanesco se
lembrarmos a definição de Manuel Bandeira ao se lembrar da singularidade lírica do poeta
gaúcho...
Essa feiúra toda é
O que mais ao jacaré convém
Para afastar o homem. Ele não quer
Ser bolsa e sapatos de ninguém. (p. 50)
Na esteira dessa visão da literatura como ludus, é possível reafirmar a cosmologia
poética de Guilhermino nesse âmbito, ou seja, o do jogo para cujo alvo uma certeira seta,
lapidar, que nos causa espanto e ao mesmo tempo encantamento. Observem-se
particularmente os dois últimos versos:
Chupins-do-brejo, gregários,
Em bandos dormem, em bandos trabalham.
E comem: vermes, insetos, crustáceos.
São vidrados por um brinquedo: no ar
Tornam-se arabescos. (p. 52)
Mais uma vez a fauna local é revelada, pelo virtuosismo plástico do autor, em
sua plena luta pela sobrevivência, entremeada pela diversão no céu, onde os gregários bichos
se parecem na faina de dormir, trabalhar e comer, ações ordinárias subitamente elevadas, pela
fotografia do autor, a um céu que também não é o mesmo: é o cenário por meio do qual nos
redescobrimos iguais, homens e bichos, pela condição de ser vivo, e também diferentes, pela
respectiva capacidade de fruir e de usufruir.
80
Ainda nessa linha lúdica, o poeta nos apresenta a capivara, também refugiada da mão
humana e ao mesmo tempo humana, macunaimicamente humanizada :
A capivara, o boa-vida dos bichos,
Leva a coisa na flauta. Evita contendas,
Foge do sol e de encrencas,
Do tiro e da faca. (p. 64)
Para finalizar, nos dois últimos textos o poeta opta primeiro pela verve
melancólica, reconhecendo-se bicho da terra porque homem, homem porque bicho da terra.
Ou seja, ainda que deslocado da cidade, junto à natureza, o homem permanece sem entendê-
la, e assim sua interferência é malfazeja. Não está, decididamente, em seu lugar: não há,
enfim, reciprocidade entre os consortes. As lições, se o homem as pudesse aprendê-las, são da
natureza, são das aves, que prescindem de dizer pois, talvez, sejam elas em si a própria
linguagem e advertência da fragilidade por trás da imponência do belo.
Ai, somos bichos da terra, e isso do Poeta
Seria consolo se imitássemos as aves.
Entre pobreza e beleza
Dão lições de humildade. Depois,
Erros de linguagem não lhes pesam no bico. (p. 72)
Em seguida, fechando o livro com uma belíssima foto dos últimos raios solares, o
tom é de aconselhamento, aviso:
A hora é calma, talvez de luto
Pela natureza roubada e ofendida
Nos banhados. Os juncos advertem:
“Homem velho de guerra, curva-te ao vento,
Não ao mau pensamento.” (p. 76)
“Natureza roubada e ofendida”: a poesia agressiva e seca contrasta com o
ambiente idílico das fotos, em um jogo de claro-escuro que se gendra a partir da figura da
personificação: são terras regurgitantes, ventos adoidados e maus, árvores retorcidas, damas
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impuras, jacarés ressabiados, capivaras espertas, gourmet casca-grossa emoldurados por
juncos que falam pelo poeta.
Com o pôr-do-sol da fotografia e o luto do poema, fecha-se o ciclo, cai o pano
sobre o junco e o banhado.
4.3.4 Cantos do Canto Chorado (1990)
Cantos do Canto Chorado, publicação de 1990, coordenada pela Professora Tânia
Franco Carvalhal para a extinta Fundação Paulo do Couto e Silva, consiste em uma
compilação de parte da poesia édita e da poesia inédita do autor.
Como, no nosso trabalho, foi analisada a poesia de Lira Coimbrã, Portulano de
Lisboa e Arte de Matar (textos fiel e integralmente reeditados nestes Cantos), nos deteremos
na poesia até então inédita de Guilhermino Cesar.
Gongo-Soco
9
Gongo-Soco, volume que abre a segunda parte de Cantos do Canto Chorado,
remete o leitor ao tempo da mineração, em Minas Gerais. São 22 poemas cujo ponto de
partida é a sina do Negro Libório, o Gongo-Soco, escravo que descobre ouro em razão do
qual sua alma se confunde com a de quem lhe explora, confundindo a trama para o leitor, que
se vê na pele outra, amo e escravo, já uma só (poema Gongo-Soco):
Quem descobre o ouro descobre-se no outro
que todos somos, quando nos descobre
a morte.
Quem descobre o ouro
perde o seu tesouro. (p.118)
9
As minas do Gongo-Soco, na região montanhosa de Minas Gerais, eram conhecidas, na primeira metade do
século XIX, pela abundância de ouro. É nessa época em que se passa o romance homônimo, de 1966, de Agripa
Vasconcelos, inspirado na vida do primeiro barão de Catas Altas, João Batista Ferreira de Sousa Coutinho. A
região era povoada por muitos negros africanos vindos do “Congo”. No romance histórico citado, consta que a
denominação “Gongo-soco” se deve a um desses negros que, flagrado, nas terras de um rico fazendeiro de Catas
Altas, de cócoras sobre pepitas de ouro que ele havia achado na região, tentando escondê-las dos escravos da
82
O mote é claro: o vil metal, no poema seguinte, Distrito do ouro, corrói as almas,
“conduz, no infuso, o império para o Diabo que o carregue” (p.119). Mas mais, ou seja, o
ouro no luxo, no sexo, na lei, na luxúria, em suma, o ouro na condição de artefato vário e
mesmo vil:
Ouro branco, ouro preto, ouro maciço,
Ouro da fraude, ouro do coito escondido,
Ouro do esquartejado e do enforcado,
Ouro dos contratos mal cumpridos,
Ouro das alergias (sic) do rico. (p.120)
À voz do negro somam-se outras vozes, como a do “fanado” de quem tudo foi
levado, a dos ratos do campo” em congresso reunidos para discutir o desaparecimento do
ouro, a do ex-rico, entre outras vozes que se fundem no mesmo lamentoso tom de quem
perdeu e se perdeu. E embora ouçamos muitas vozes, a que emerge e sobre as outras paira é a
do eu lírico a evocar a Minas daquele tempo, a Minas desses ricos, a Minas dos escravos, a
Minas de Marília e Tiradentes, a Mina das pastoras e poetas, em uma espécie de fabulário,
título do décimo-segundo poema da série, chave para o entendimento do conjunto de poemas:
De ouro se fez a nossa fábula.
O ouro sacia o nosso lúbrico.
De ouro cobri as tuas tranças.
O ouro no Banco furta ao pobre.
Inda não vi o ouro do Tesouro.
No mais áureo do ouro brota o estrume.
Entre nós este ouro não se explica.
Do outro (e não ouro) faz-se a morte.
Onde canta esse ouro que não ouço? (p.131)
fazenda, fugiu. Um dos escravos que o flagrou teria dito a outro: “O congo tá no choco!”. E o outro: “O congo
chôcu?”
83
A Mata e o Nome
A zona da mata mineira, cenário do poema dramático Ladrão de Cavalo,
reaparece neste A Mata e o Nome. Porém, dessa vez, ressurge nomeada e nomeando (já que
em Ladrão de Cavalo as personagens são reconhecidas, alegoricamente, apenas pela sua
condição de pai, mãe, avô, filho etc , e não pelo nome): nomeada no décimo-oitavo e
penúltimo poema (“Zona da Mata te chamaram,/o nome de leve para explicar tuas águas”)
(p.178) antes do qual, no décimo-segundo, nomeia (estabelecendo a identidade homem-
bicho):
(...)
Juca macaco
Teodoro Macuco
Lau Garnizé
Mané Pato
José Boi, manso que nem
o cujo (animal),
Pedro Mutuca
Nicolau cabrito...
A Mata nomeia os homens
pela razão dos bichos. (p.169)
Trata-se de um conjunto, então, de dezenove poemas, de andamento narrativo,
através dos quais acompanhamos a saga da personagem central, Geraldino, evadindo-se das
minas de ouro
Vou caçar um jeito (diz o mineiro
arruinado)
de fugir.
Me perco na mata; nas minhas botas
de sete léguas
ninguém me pega. (p.148)
e adentrando-se na mata
84
Geraldino entrou na Mata
a mãe pegou a chorar:
“Geraldino, Geraldino,
quero aqui o meu menino
criado nos peitos meus.
Volta, volta, Geraldino”.
Geraldino não voltou. (p.151)
A arte agora é de morrer, não de matar:
Anda ligeiro
(corre, rapaz,
se és capaz)
e morre de tiro
e morre de voto
e morre de bócio
e morre de moço
e morre de velho
sem se acabar. (p.152)
Mas é no poema seguinte, o quinto, que sabemos que tocaieiro te pegou/o tiro te
derrubou. (p.153), ou seja, a sina pressentida pela mãe do menino de saída, em Ladrão de
Cavalo, se confirma aqui, neste A Mata e o Nome.
A Mata e o Nome foi escrito em dois tempos (a observação consta ao cabo do
último poema, na página 180): Coimbra, 1962/1964, portanto ao tempo da publicação, em
Coimbra, de Ladrão de Cavalo (1964), e Porto Alegre, 1970/1975.
No presente contexto, o destino da mata (de todos os nomes que a tomaram e que
portanto a mataram) é implacável:
A Mata que amei morreu de velha
para o fino gosto dos trabuqueiros da Volta Fria,
a Mata do Coronel João do Calhau (Se Vossa Excelência quiser
85
chegaremos as divisas até Vitória),
a Mata dos ossos corados, pataxós, puris,
a Mata dos poaieiros
dos lobisomens
das mulheres sem cabeça,
a Mata dos mineradores arruinados (p.168)
Em contraste, enquanto os novos donos da mata, representados, no poder, pelo
“coronel”, fazem da exploração dela sua forma de viver, ela, em contrapartida, mata as
crianças que fazem dela sua forma de morrer:
Na Mata capricha o tino infalível
do coronel-chefe-político: (...)
Amanhã, dinheiro na mão,
vou visitar o Barão; compro-lhe a fazenda.
Em setembro, bato por aí afora,
Com a senhora Porcina,
Pro jubileu de Congonhas do Campo.
Na Mata as crianças em rama
morrem tudo de diarréia.(p.172)
Observe-se: ao contrastar as duas figuras (a do Coronel e a das crianças), o eu
lírico faz uma espécie de corte, seco, acentuando as diferenças entre quem pode e quem não
pode, enfim, entre ricos, nobres esnobes e pobres pateticamente subservientes:
Vai chegar o Senhor Bispo
corre Maria da Glória
corre Teresa e Francisco
matem galinhas e patos
matem frangos e franguinhas (...)
para a bênção de Seu Bispo. (...)
Chega gente chega gente
86
cheguem de todo lugar
que o Bispo já vai chegar. (p.175)
Mais adiante, enfim, retoma-se o paralelismo identitário entre homem e bicho,
habitantes da mesma mata, irmanados em seu destino animal:
Na mata vivemos (amém) como vivem os bichos
e seremos depois apodrecidos sujeitos
no corpo, na fala, no jeito
- de onde? (p.177)
Se, como quer Zygmunt Bauman, em Comunidade, um de seus livros acerca das
aflições contemporâneas no terreno da identidade/alteridade, a construção da identidade é
um processo sem fim e para sempre incompleto” (BAUMAN, 2001, p.61), então a ansiedade
decorrente da sensação de “incompletude” encontra alívio, para o homem comum, no
“ansiolítico” que representa a idéia de pertencimento a um grupo de religiosos ou de
torcedores de um time de futebol, enfim, a alguma “tribo” urbana. Esse alívio é gerado pela
convivência e pela afinidade por meio das quais se constroem os alicerces da identidade, é
gerado justamente pela costura contínua e conjunta do tecido social.
Sim, mas em se tratando não do sujeito comum e sim do sujeito lírico... como
interpretar o envolvimento entre ele e os bichos supracitados? Se é verdade que na Literatura
Brasileira a tradição modernista, desde personagens híbridos como Macunaíma, Martim
Cererê e Cobra Norato, evidencia essa atração incondicional entre homem e bicho (atração
que magistralmente Manuel Bandeira registrará em seu conhecido poema O bicho), também é
verdade que, a partir da geração de 30, a condição animal do homem passará pelo
envolvimento telúrico com o meio: é, por exemplo, o caso do Fabiano de Vidas Secas, vítima
do poder dos homens, vítima do poder da natureza, vítima até mesmo da vítima (como o
Soldado Amarelo, refém de sua miserável condição de polícia)...Isso posto, cabe perguntar:
qual é o caso, então, do sujeito lírico de A Mata e o Nome?
Combinemos: nosso sujeito lírico, ora contando o que se no meio (a Zona da
Mata mineira), ora pensando o que é o meio, habilmente, a partir de movimentos de
aproximação (identificando-se com a voz de Geraldino em primeira pessoa) e deslocamento
(bancando o “narrador onisciente”) constrói um enredo movediço, sedutor, trazendo, assim, o
seu leitor à mesma barca para afirmar ao final do último poema:
87
Ninguém responde.
Ninguém responda.
A mata, explicada, não nos explica
no tempo. Volte ao que foi, ao vazio na véspera
do homem,
Ao silêncio vegetal em que dormia
O escuro/absurdo
dos bichos que somos. (p.178)
Na verdade, esse meio – lugar de habitar – também funciona como habitus: lugar
onde cultivamos nossos hábitos e que está em nós, no nosso escuro/obscuro eu, lugar onde
habita o lobo e sua fome voraz de se/aniquilar.
Assim, como bom anfitrião, o lobo nos acolhe, nos envolve e se recolhe nos
deixando a festa ou aquilo que dela sobrar.
Novembro Paulistano
Diante da leitura de Novembro Paulistano, dedicado ao amigo Mario de Andrade,
na seqüência de A Mata e o Nome, cabe perguntar: de que São Paulo é esta que o poeta trata
em 20 poemas? A cidade cinza desde a Paulicéia Desvairada já descrita por Mário? A cidade
cosmopolita e diversa como outra não no Brasil? Ou, para lembrar Homi Bhabha, em O
Local da Cultura, a cidade como “espaço indeterminado do sujeito na enunciação” (BHABA,
1997, p.67), uma espécie de terceiro espaço?
Comecemos a tatear as respostas pela Aurora de São Paulo, primeiro desses 20
poemas que cumprem uma espécie de trajetória, justamente do amanhecer (da aurora) ao
anoitecer assinalado pelo último poema, intitulado Não-sono:
A aurora, ainda não cantada
nos labirintos (todos)
que a poesia há milênios ensaia;(...)
A aurora indiscretamente aberta
sobre esta cidade suja,
cidade preta,
88
a cidade de São Paulo, Sudeste do Brasil,
às quatro da manhã, esta cidade suando
pez,
esta cidade-guela, esta cidade-selva
não te incorpora,
aurora. (p.183)
Ora, a cidade “suja” e “preta”, a selva de pedra, enfim, que o poeta canta é, com
efeito, a cidade cujo cinza esmaece a aurora literal e metafórica (isto é, além do dia, a
esperança, o renascimento...).
O poeta-peregrino segue, então, no terceiro poema, a procura procuro no Brás a
flor amarela / do samba, talvez” (p.185) e breca no quarto poema para revelar, sob a égide do
guarda-chuva paradoxal marioandradiano, o que ele de fato não consegue ver:
Não sei onde param tuas avenidas
de frase e farsa.
Vão por aí
além, são a abertura
numa selva de farpas; (...)
Tuas avenidas de ser
e de esconder,
teu futuro oculto no barro,
tuas pupilas de estranho
animal
Onde param tuas aventuras
de senhor e de escravo? (p.186)
Não obstante o obnubilado cenário, ele vê, sim, nem que seja o mínimo abismo na
precisa definição da pena do poeta:
Que é um poço? Ora,
Um poço é o abismo
Escasso. (p.188)
89
Dessa forma, segue o vate com cuidado, passa por nirvanas (p.192), parnasianos
(p.193), costureiros (p.194), sanguinários generais (p.195) e, entre narizes (p.196) e outros
fusos (p.197), chega ao sumo pela (re)nomeação do homem, o homem-bicho:
(...)
O homem? Que bicho sofreria o peso
de ser ao mesmo tempo
Antônio
José
Astério
Juvenal, Arquimedes? (p.198)
O destino é a sarjeta que dá título ao poema antepenúltimo, dividido em três
partes/estrofes:
Aqui tem o senhor, na sarjeta,
muito dinheiro. Notas, veja bem,
não falsas. Notas de banco,
sagazes como os espectros de Hitchcok
notas tão caras como as nádegas
das sereias eslavas. As sereias
que rodopiam no alto daquele
arranha-céu.
As sereias costumam morrer, sufocadas,
no lixo da sotéia, mas o lixo passa. Renascem
na Rua Augusta com algumas rugas,
é verdade, mas para o caso
existem cremes e pós
puas
motos
arrotos caros
maremotos.
90
Aqui tem o senhor, na sarjeta,
o que plantou no Banco. (p.200)
Analisemos o poema: observamos que o sujeito lírico dirige-se diretamente a seu
interlocutor, adotando um tom amistoso por trás do qual percebemos claramente a ironia do
discurso seja pelo estabelecimento antitético de, digamos, lixo (sarjeta) versus luxo (dinheiro),
seja pelo contraste entre a imagem idílica evocada pelas sereias e a imagem crua das nádegas.
Essas sereias, na segunda parte do poema, morrem, mas, à guisa de “Fênix Renascidas”,
“renascem na Rua Augusta” luxo(lixo)osa artéria viária de São Paulo com “algumas
rugas” corrigidas com “cremes e pós” para o desfile no caos.
Finalmente, ainda uma terceira estrofe que reafirma a sarjeta (moral) onde está
esse mefistotélico “senhor” que plantou no “banco” o que sua alma colherá, ou seja, o poeta,
ao sentenciar seu interlocutor à danação, rebaixa-o à condição inferior dos bichos irracionais,
porque ele, bicho-homem, é consciente de seu livre arbítrio.
Algoz do homem, o poeta-sujeito revela, no último e breve poema do conjunto,
que é um bicho sem sono a protestar no som do silêncio. Não se trata de emudecer, mas de
mudo mudar, pois somos também o que não falamos, se levarmos em conta a lição de Octavio
Paz, em O Arco e a Lira, para quem a “a poesia nasce no silêncio e no balbucio, no não
poder dizer” (PAZ, 1972, p.344).
No território urbano onde se passa esse novembro, Guilhermino refaz a presença
do mal, tão constante nos outros livros seus, contudo agora na singular perspectiva do íntimo,
isto é, na interiorização do Mal que corrói, por dentro, o bicho-homem: não aquele flagrado
por Manuel Bandeira a revirar a lata de lixo, mas um outro, o que encontra e revira em si
mesmo outro e pior lixo. Que lugar é esse, então, para retomar, resumidamente, a pergunta do
início deste artigo? Se a poesia desse flanêur temporariamente paulistano assume a forma da
interrogação, não há resposta; há busca.
Paris-Expresso
Paris-Expresso é um único poema, de sete páginas, que investe forte contra a
civilização capitalista personificada pela figura de uma “senhora velha”:
Ici Paris! Paris
91
Uma senhora velha, com muitos achaques.
Tem a idade (somada) dos seus gatos
tosse pela escada acima e pela escada abaixo
usa um preto chapéu.
Fede.
Insensível ao sarcasmo e ao louvor
embala a vaidade gorda dentro de si mesma
nas suas vísceras de Camembert
Alho e cebola.
A civilização é uma coisa de mau cheiro. (p.205)
É a cidade onde as gentes se acabam, onde o Mal, entre argelinos, ardósias, atores
e artistas, asfaltos, maltêses, cafés, tetas, ancas e cabelos, enfim, onde o Mal circula para ficar,
vicioso:
(...)
aqui jaz o rabo do Diabo
(a gente acaba no enxofre
mesmo sem vontade). (p.207)
Passam todos no circo urbano:
Passam cães perfumados, estudantes do “bac”
senhoras copadas
Olé
do México
de Abbeville
Carcassonne e Larache. (p.209)
Passam os passantes , e o sujeito lírico, subitamente, guina o olhar a si mesmo e se
vê e nos diz:
Vejo-me nu
92
desprovido de
meus nervos mineiros (...).
E agora
vos digo:
a última aurora enterrou-se ali mesmo
nos casarões bolorentos do Marais
a dois passos da Bastilha e dos floreios
de Madame de Sévigné. (p.209)
Essa internalização do olhar assume um caráter de reconhecimento literalmente
“acerca” de si, de quem está, nos dois sentidos, fora de si mas, ao mesmo tempo, bem lúcido
para enxergar (mesmo sem o olhar de Montaigne):
Paciência.
Mesmo sem o olhar de Montaigne
a gente vê.
A vida é um repetido isso-mesmo, bocejado
da Igreja de Notre Dame
à Igreja de Madeleine (...) (p.211)
Reafirma-se o uso de topônimos como forma de ver o que está onde quer que se
vá, onde quer que se esteja. Sobra para Paris:
É madrugada, e Paris
vende-se. A velha dama não dorme. (p.211)
A velha não dorme como não dorme também a São Paulo de Novembro
Paulistano e o insone poeta que ao final admite:
A vida não deve ser isso que se vê.
Ora bem, a vida tem um segredo
além e fora de nós.
Irá ouvi-lo
a mulher deitada que na floresta
93
dos tempos futuros
de novo receba o homem suado e feliz.
Aqui, não; esta velha não deixa.
Seus peitos são frios
o nariz é de gesso
tem cabelos postiços
e a placenta vazia.
Paris. (p.212)
Lê-se: além e fora de nós algo dos tempos futuros talvez nos renove, mas longe do
caos das cidades, perto, é provável, do início (a floresta, a mata?) para o qual a derradeira
poesia de Guilhermino Cesar parece apontar: a mítica Minas de Cataguases, uma Minas
antiga, ancestral, matricial, feita daquele “silêncio vegetal”, estado que o poeta evoca, em A
Mata e o Nome, para o renascimento.
Anepígrafo
Sem dedicatória, subtítulo ou epígrafe, Anepígrafo é a última reunião de poemas
do livro e é, assim, a reafirmação de algumas características e temas encontrados nos demais
textos de poesia de Guilhermino Cesar.
Em primeiro lugar, repete-se o “caminho” de dizer, ou seja, temos um poema
inicial, Soneto Larvar, que se configura como ponto de partida ao evocar a poesia, na
condição de interlocutora, até chegar à Conversa noturna com Reinaldo Moura, ponto final da
jornada anunciado desde o “conversa noturna” do título.
Em segundo lugar, temos novamente a utilização de rica toponímia a emoldurar a
paisagem urbana que corre, caleidoscopicamente, aos olhos do leitor que, à moda Virgílio, se
deixa levar floresta poética adentro.
Em terceiro lugar, percebemos a presença da crítica aos males da civilização,
sobretudo ao dinheiro e à ânsia pelo poder que embrutecem as cidades e animalizam o
homem. Assim, sendo homem também, o poeta reconhece a si mesmo no outro: estamos,
enfim, todos no mesmo barco furado, e a única tábua de salvação é a palavra.
Mas vamos por partes. O poeta começa “pesado” no Soneto larvar:
94
E deixo-me sumir, cuspir e matar
pelo teu nome, poesia malferida
na lâmina do artefato.
Inquieto, pergunto: quando serás chama,
de novo, convertida em ato?
Ah, não respondes. Continuas a existir
sem o teu escravo, inconclusa essência
de lágrima e pergunta. (p.215)
Há nitidamente um tom angustiado que perpassa o poema e atravessa o próprio
poeta, porque a lâmina que fere a poesia fere, está claro, o poeta, um escravo do autoflagelo
que se refugia na solidão, onde ele pensa suas penas.
É o que temos no primeiro dos Três sonetos malditos:
(...)
Sozinho é que me sinto. A solidão,
cadeia sempre, é o único prêmio talvez
consentido ao bicho, na jaula imensa em que
se mata. A solidão! Estou gritando aos cafres,
aos letões de Paris, aos lêmures de sempre,
ao castor em sua casa, perdido como eu. (p.216)
No segundo poema, o tom niilista, dividido com o leitor, cristaliza-se:
Já repararam? Isto é um lugar vazio em que
brincamos de esperar que o encha alguma cousa.
(...)
Um lugar vazio, com efeito,
este em que estamos à espera do nada que do nada
saiu. (p.217)
95
Em seguida, o sujeito rico considera alguma possível esperança em Deus mas
apenas com o intuito de, ao final do poema, destruí-la ao deslocar a responsabilidade, em
forma de pergunta, para a fuga do Deus-esperança:
(...) Mas, então, por quem espera
esse Deus que fugiu ao encontro de si mesmo?! (p.217)
No último dos três sonetos da série, retoma-se o questionamento sem esperança. A
solução é o escapismo, a evasão:
Já sei. Precisamos do ópio obtido na estrela não feita,
de um licor que só os cometas da catástrofe podem deitar
em nossa boca. E provaremos, adeus! O derradeiro abismo. (p.218)
E entre caminhos do Minho, poços ao luar, sorriso de mulher nova, noites de
chuva e de barro, o sujeito rico pára para pausa. A interlocutora é, neste intervalo, “nesta
pausa de treva” (p.224), a mítica Jezabel (sic), em bem ritmado poema cuja segunda parte,
abaixo transcrita, é lapidar:
Se eu te dissesse: “Vem!”
E viesses por um momento
recriada no olhar que foi gemido;
se o pasmo de te rever
fosse o sonhado
e o há muito perdido;
se viesses assim, eu não mais fugiria,
oh Jezabel, para o país do Olvido. (p.224)
O poema seguinte, Urgentemente, ratifica, em tom súplice, o desejo de remanso
que possa servir ao poeta: ele agora se livra da ironia anunciada nos sonetos malditos para,
enfim, assumir o que quer:
Um bocado de amor, um só bocado,
que venha urgentemente. Eu quero
96
receber e gastar o meu presente
agora, e só agora, nesta vida.
(...)
Um bocado de amor, que não me falte,
um bocado que peço e que se nega,
um bocado de amor, funebremente. (p.225)
Observemos. O poeta consagra ao tema um detalhe gráfico quase imperceptível
mas significativo: as iniciais do soneto em maiúsculas atomizam o cerne dramático da peça
poética. Ademais, reitera-se a expressão “um bocado” a partir de uma escala descendente: o
poeta parte, no último terceto, do apelo, passa pela negação e por fim esmorece,
“funebremente”. Assim, entendemos que estamos diante de um apelo maiúsculo, diante de
algo maiúsculo como o Amor/Esperança. Entretanto, parece não haver saída, e o poeta
derrapa de novo no abismo da noite, mote do último poema, intitulado Conversa noturna com
Reinaldo Moura:
Procuras no ar o que ninguém achou,
uma forma de vida no molde
cristalizada. Vagueias, aturdido
de tanta vida pensada. Queres a discrição,
o extrato, inutilmente; acharás
sempre
a borra do dia.
- Sei disso, mas procuro
(Reinaldo Moura respondia). (p.226)
Nesse diálogo com Reinaldo Moura, o poeta encontra um seu espelho: está
aturdido, mas segue a busca até nos levar ao definitivo silêncio instalado na boca do amigo:
Mas onde, Reinaldo, o teu riso-suplício,
onde os teus passos de sonâmbulo
(passos de quem voava), onde e como
selaram na tua boca a última palavra?
97
A palavra te vinga. (p.227)
Se a poesia é mesmo (re)união do que foi separado, se, na figura do outro, com
quem me identifico, me enxergo, negando Narciso, a poesia de Guilhermino Cesar cumpre
neste contínuo abismo a que se permite, lucidamente a tarefa, infinda tarefa, da busca.
Somos, os mestres diziam, transcendência, e o poema é o signo mais puro desse contínuo
transcender-se. Tem razão Octavio paz: todo poema é apetite de negar a sucessão e fundar
um reino perdurável.” (PAZ, 1972, p.347)
A poesia de Guilhermino Cesar busca, ao resistir à impermanência, perdurar.
98
4.4 Poemas do Caderno de Sábado
Em nossa pesquisa, foi possível encontrar, entre as contribuições de Guilhermino
Cesar para o Caderno de Sábado do Correio do Povo, os seguintes textos de estrutura poética:
a Antologia do Cheiro e a Nova Antologia do Cheiro, publicados, respectivamente, em 11 de
maio e 7 de setembro de 1974; os Três poemas identificados com a temática natalina, da
edição de 25 de dezembro de 1976; traduções apresentadas no formato de crônica nas edições
de 4 de março de 1972, 18 de janeiro de 1975, 10 de setembro de 1977, e 8 de abril de 1978.
Finalmente, ainda há, de 17 de agosto de 1974, um poema (“O Duque de Espadas”) disperso
de sua lavra na crônica Polivalente. No momento, analisaremos o que há, desse material, de
mais representativo em termos de poesia: a Antologia do Cheiro e os Poemas de Natal.
Iniciemos com a Antologia: a primeira coletânea é constituída por 16 excertos
assim enunciados:
Para comemorar a volta à atividade industrial de conhecida empresa
multifedente, compilei em noite de insônia a modesta antologia que se vai ler.
Imitando a verve poética dos mais variados autores, a maioria de Língua
Portuguesa, Guilhermino satiriza, pela paródia, desde o título (Antologia do Cheiro) a então
Borregaard, empresa de celulose cuja atividade fabril emitia peculiar mau cheiro pela cidade
de Guaíba, sua sede, e entorno, alguns bairros da zona sul da cidade de Porto Alegre.
Vamos ao primeiro texto, assinado por “Castro Alves” em seus...Cheiros
Flutuantes:
No centro ou nos subúrbios esquecidos,
É a mesma coisa: somos perseguidos
Por um cheiro ruim,
Um cheiro que alucina esta cidade
Impondo a lei do lucro à Humanidade,
Nova lei de Caim!
Passando por Machado de Assis e Cícero, chegamos a Camões:
Os cheiros e maus cheiros desgarrados,
Que, da ocidental praia guaibã,
99
Por lagos nunca de antes mal cheirados,
Passaram ainda além de Itapuã,
Em esterco do Demo arquitetados,
Mais do que federia Urubuã,
E entre gente pacóvia divulgaram
Novos cheiros, que tanto mal causaram(...)
Observe-se , além do agudo humor negro do autor, a sua habilidade em reproduzir
a oitava camoniana (inclusive com as rimas intercaladas até o sexto verso) a serviço de
assunto local. Não é diferente o acerto na imitação do ritmo de Cecília em Música, seis
excertos adiante (depois de Shakeaspeare, de Silveira Martins, de Lenine, de folclore e autor
anônimos e da própria Borregaard):
Noite perdida,
Não te lamento:
Embarco a vida
No pensamento,
Busco a alvorada
Do sonho isento,
Puro e sem nada(...)
A lua no ar
Gelado, se esconde:
É o cheiro (onde?)
Da Borregaard...
E, em se tratando dos poetas modernistas, não poderiam ficar de fora Drummond
e sua pedra No meio do caminho tinha uma Borregaard / tinha a Borregaard no meio do
caminho(...) e pelo menos o verde-amarelismo de Cassiano Ricardo Por se tratar de um
cheiro internacional / deram-lhe o nome de Borregaard / cheiro de miséria e de desgraça (...)
/ em que havia milhões de lagartixas mortas / anhangás a sonhar com o cocô do saci / e
cheiros bárbaros de pajés em porocés / batendo os pés.
O encerramento, retornando a Shakeaspeare, é apoteótico:
100
Feder or not feder, that is the question.
Já a Nova Antologia do Cheiro apresenta-se em forma de mini-esquetes, por meio
de diálogos dramáticos, e também inclui uma paródia quintiliana, versando a respeito do
nome “Borregaard”, e um poema intitulado O nariz. Vale a pena reproduzi-lo:
O ouro e suas mazelas
vão dilatando a sentença
que um dia virá na certa.
Virá? E o cheiro, o crime
dentro da noite?
A pasta branquinha
- tanta inocência perdida –
ajuda a fraude. Lá longe,
cento e cinqüenta de lucro
são perfumes do negócio.
E a mim, no tempo dos trouxas,
só me sobra este nariz
para cheirar a impudência
(já longe, na Noruega)
para cheirar a fartura
que não fica no país.
No país... em que país
alguém vive sem nariz?
Pois bem. O que temos aí é, por certo, uma crítica mordaz à corrupção, à ganância
e à impunidade. O poeta, “no tempo dos trouxas”, ao nariz outra função além da orgânica.
Agora, o que o nariz captura é o mau cheiro, digamos, moral que o circunda. Assim,
reivindicando um duplo caráter ao “cheiro”, o poeta encerra a antologia com uma de suas
técnicas mais sarcásticas: a pergunta de tom capcioso por meio da qual somos convidados, em
arreglo, a pensar onde estamos, a pensar que país, afinal, é este.
101
Nos Três poemas de Natal, Guilhermino satiriza, por ensejo da data natalina, na
figura de Nicolau Laluna, o monopólio de poder e comércio na “vila”, ou seja, na cidade:
Vermelhaço,
Esguichando energia pelas ventas,
Nicolau Laluna
É o homem forte da Vila.
Tão forte que possui o monopólio
Da pólvora.
Nicolau para os íntimos porque ele é, na verdade, qualquer figura que represente o
poder:
Nicolau Laluna fabrica doce de manga,
Tira leite de vaca, faz queijo;
Conserta relógio, revólver, carabina.
Nicolau Laluna, só para os íntimos
(o fiscal da câmara, o delegado,
o farmacêutico) (...)
Mas Nicolau não se desprende de sua “motivação religiosa” de anunciar o
nascimento do menino: usa, para isso, seus fogos e surpreende a toda gente na véspera de
natal e
(...)manda os seus foguetes-de-lágrimas
à Via-Láctea
com a notícia recente:
- Nasceu o Menino.
A essa bizarra figura sucede o poema Trégua de Natal, que focaliza uma ceia
farta, com iguarias de todo lugar, seguida da Missa do Galo onde Deus tão bom, pelo jeito /
fala uma língua também de fora: ninguém / o entende.
102
O poeta celebra, então, com Marocas, com quem troca rancores a respeito de
Antenores, Odilas e Josés, o “espírito natalino”, configurando, assim, o título do poema,
Trégua de Natal, como ironia de fato:
Hoje é natal, que as boas coisas da estranja
Nos consolem. Amanhã cedo, com a graça de Deus,
Voltaremos ao que é nosso.
Finalmente, no poema O Trigo, o sujeito lírico se coloca no lugar do trigo e seu
permanente estado contemplativo em total integração com as coisas simples:
(...)
Amo as coisas simples. Só os pássaros
E os bichinhos do campo
Só eles merecem meu sangue.
É o homem, contudo, que intervém mais uma vez. E mal:
Mas o homem é que me busca,
Me tritura, me ensaca, me vende.
Em outras palavras, o homem , lobo do homem, animal do tarde, macula o divino,
tritura o que a terra lhe dá, poluindo-a . Com a poluição, vem o mau cheiro como restolho da
produção artificial de “riquezas” pelas quais o homem, enfim (é o que o sujeito lírico nos quer
dizer), mata, morre e apodrece.
103
5. MANUSCRITOS, DATILOSCRITOS E ESCRITOS
Este mesmo escrito: aparência,
não a realidade que se refere.
104
Nossa intenção, no presente capítulo, é, a partir de um dos últimos textos de
poesia de Guilhermino Cesar, A Mata e o Nome, reconstituir os principais aspectos do
processo de criação do autor até seu resultado final. Ao discutir os traços e vestígios que
compõem a gênese desse texto, estaremos contribuindo para refletir, ainda que precariamente,
sobre os questionamentos que permeiam a presente tese.
A respeito de seus textos:
Partindo de uma análise sócio-interpretativa, que traços da herança modernista são
mais visíveis no processo e no produto advindo da criação literária?
Em que medida forma e conteúdo confluem para o estabelecimento da voz
poética? Que voz é essa?
Considerando a totalidade de sua poesia, ela pode ser considerada como resultado
de um projeto? Que projeto, enfim, é esse?
A reflexão a partir de tais perguntas, em uma perspectiva de confronto, entre
“escritos e manuscritos/datiloscritos” do material pesquisado, é também forma de estabelecer
algumas convicções sobre a obra poética de Guilhermino Cesar.
Vale ressalvar que, como o presente capítulo justifica-se mais como “fechamento”
desta tese, o foco imediato será a análise dos datiloscritos. Assim, limitaremos as definições
terminológicas relativas à Crítica Genética ao essencial.
105
A crítica genética
No concernente ao ponto de partida da Crítica Genética, diz Márcia Ivana Lima e
Silva, em seu A gênese de Incidente em Antares:
O ponto de partida da Crítica Genética reside numa
constatação: o texto definitivo de uma obra literária é,
excetuando-se raríssimos casos, o resultado de um
trabalho, ou melhor, de uma elaboração progressiva, de
uma transformação que é traduzida por um período
produtivo, durante o qual um autor se lança, por
exemplo, à pesquisa de documentos ou de informações,
à preparação e, posteriormente, à redação de seu texto, a
diversas operações de correção. (LIMA E SILVA, 2000,
p.32)
Assim,
A genética textual tem por objeto essa dimensão
temporal do texto em formação e parte da hipótese de
que a obra, dentro de sua eventual perfeição formal, não
guarde menos o efeito de sua gênese (p.32).
Com efeito, se admitirmos que uma obra de arte, por mais “acabada” que esteja,
sempre guardará, por nima que seja, uma fração por meio da qual a obra, de um jeito ou de
outro, continua ou poderia continuar (na imaginação do leitor, na interpretação do crítico, por
exemplo...), então cabe à Crítica Genética
perscrutar os passos da fabricação da obra como se
esta fosse um “devir”; cabe, então, navegar à deriva pelas entranhas desse oceano que é a obra
106
de arte, descobrir-lhe as hesitações e os êxitos, as inflexões e as marolas, o sal, os vestígios do
que foi e os vestígios do que ainda será.
A propósito também do objeto e da contribuição da crítica genética – e sobre esse
caráter permeável de um texto marcado por traços, rascunhos no capítulo intitulado Para
uma estética da produção literária, de seu Elementos da Crítica Genética, Almuth Grésillon
nos ensina:
Os manuscritos de trabalho dos escritores são o lugar
em que se depositou forte, porém frágil, multiforme e sempre
ameaçada, poderosa e precária, a língua em ato, com suas audácias de
invenção, com suas marcas de retomada e de domínio, com seus
impasses e seus êxitos. Se a Crítica Genética pertence à estética da
produção, é porque os manuscritos são o suporte sobre o qual a beleza
de um texto foi progressivamente promovida à existência. (...) Se a
Crítica Genética conseguir (...) mostrar que a produção literária não é
o Dom dos deuses e das musas, nem mesmo o resultado da aplicação
automatizada de um simples savoir-faire poético (mito da fabricação),
mas uma dinâmica permanente entre trabalho do desejo e trabalho
sobre a língua, então contribuirá verdadeiramente para uma estética da
produção literária. (p.269)
Cabe destacar: não apenas à “teoria” cabe o papel de legitimar esse tipo de
análise. Artistas a chancelam. Vejamos, para retomar um crítico/poeta citado aqui, o que
diz Antônio Cícero sobre seu processo de criação de poesia:
(...)há alguns anos comecei a escrever poemas direto no computador. Escrevo um
primeiro rascunho e imediatamente começo a avaliá-lo e corrigi-lo. Logo sinto
necessidade de ler no papel o que estou escrevendo. É estranho: parece que o papel
me revela erros e possibilidades que, por alguma razão, eu não conseguia perceber
na tela. Assim que leio o esboço, faço várias correções, supressões e adições à
caneta e, em seguida, passo essas correções para o computador. se reinicia o
processo: mudo mais algumas coisas, quero ver como ficam no papel etc. Até dar
por pronto um poema, gastei dez, vinte, trinta folhas de papel. (CÍCERO, 2005,
p.112)
E arremata, salientando o caráter evolutivo do texto:
107
Posso considerar os rascunhos de um poema como as transformações pelas quais ele
passou antes de ficar pronto. Se fotografássemos cada uma dessas transformações,
fizéssemos slides dos programas, colocássemos uns nos outros como numa fita de
cinema e puséssemos essa fita num projetor, creio que veríamos o poema a se mexer
como se fosse um desenho animado. (p.113)
Em outras (e nossas) palavras, não é o resultado que conta para a Crítica Genética,
e sim o processo, isto é, conta o caminho da navegação, não seu porto de chegada. Partindo
dessa premissa, o presente capítulo se ocupará com as pegadas, com a transformação da
poesia de A Mata e o Nome.
Manuscritos/datiloscritos de A Mata e o Nome
Os originais de A Mata e o Nome obra escrita, conforme apontamentos do autor,
em Coimbra, entre 1962 e 1964, e retomada em Porto Alegre, no ano de 1970, para ser
concluída apenas em 1975 encontram-se no Núcleo de Literatura Brasileiro Guilhermino
Cesar do Instituto de Letras da UFRGS. Estão dentro de uma pasta identificada pelo título de
“Minerária”, projeto de publicação que compreende o poema narrativo Gongo Soco e o
próprio texto em questão, o qual é apresentado em duas versões datilografadas com dezenove
poemas cada.
Cabe, inicialmente, dizer que há poucas rasuras na segunda versão, praticamente
a definitiva, já que, na publicação em Cantos do canto chorado, as mínimas modificações que
existem dizem respeito à paginação e algumas poucas substituições de escolha lexical.
Entretanto, a primeira versão apresenta uma série de rasuras, anotações e recortes sobrepostos
ao texto original.
Entre as rasuras, encontramos acréscimos, substituições e supressões, com mais
ênfase para as duas últimas, demonstrando, de imediato, a preocupação do autor com a
concisão. Ressalve-se, porém, que o autor não modifica o essencial do conteúdo dos
rascunhos; as maiores modificações acontecem na substituição, em algumas passagens, do
discurso direto (diálogo entre as personagens) pelo discurso indireto, garantindo maior fluidez
à leitura. A dinâmica do texto também se conserva nos dois rascunhos: o andamento narrativo
108
mantém-se bastante ágil e ritmado, numa espécie de prosa poética sublinhada pela crítica de
costumes.
Essa crítica parte de uma curiosa estratégia: dando continuidade à saga do mineiro
que abandona sua terra natal na peça dramática ladrão de Cavalo, escrita em 1962 em
Coimbra –, para se aventurar nos limites das terras do Gongo-Soco e de Catas Altas, na zona
da mata mineira, Guilhermino Cesar, por meio de um narrador onisciente, descreve a
derrocada de tudo (das terras, da mata, das minas, das instituições...) e de todos (ricos e
pobres).
Geraldino, nome da personagem central, é o “mineiro arruinado” que busca na
Mata apesar dos apelos da mãe (semelhantes aos da mãe do menino em Ladrão de Cavalo,
nos dando, assim, mais um indício de que estamos tratando de uma continuação natural desse
poema dramático) para que ele volte – outra vida e acaba encontrando a morte em tocaia.
Para dar mais objetividade ao presente estudo, passaremos a listar e comentar
algumas das principais modificações operadas no processo de escritura de A Mata e o Nome.
Posteriormente, serão alinhavadas algumas conclusões a que chegamos ao analisar tal
processo.
- O título da obra funciona também como indicação de um dos propósitos do
texto: assinalar a antinomia presente entre mata e nome, lugar e homem, em
uma relação tão simbiótica quanto contrastiva, que a riqueza que o homem
busca na mata não é a riqueza que a mata lhe pode dar. Curioso notar que essa
índole antinômica do texto permanece ao longo dos capítulos: de um lado a
descrição da mata depauperada, de outro, muitas vezes no mesmo capítulo, a
ação predadora do homem.
- “Homem”, por sinal, é palavra repetida com freqüência na obra. O homem,
lobo do homem, é o causador e a síntese do mal. Tanto que, no capítulo 6,
uma colagem que substitui “(...)criança, ainda, não conhecia o dente por
dente, senhor capitão” por “(...)desconhecia os errados do homem.”
- No primeiro capítulo, o autor substitui o verbo “tomar” por “dar” e o utiliza
para dizer da mina que “dava”, sugerindo, com essa escolha lexical, algo mais
amplo que a ganância: a concupiscência beirando o tom promíscuo que se
apresenta no capítulo 2 , quando O sol(...)/aquece para o pecado/Deus
109
louvado/mulher de peitos moentes/em cada moita. (p.149) . Também a “brisa”
do capítulo 1 é substituída por “fogo”, de forma a contribuir para o
estabelecimento desse clima pecaminoso...
- Ainda sobre pecado: ao final do capítulo 7, o eu lírico lembra de um antigo
mestre de Prima que lhe “explica”, substituindo “ilumina”, os pensamentos de
pecado antes da missa. Essa substituição justifica-se pelo caráter mais,
digamos, terreno do verbo explicar: iluminar, com efeito, é um verbo que
sugere transcendência, iluminação, enfim, algo que não se ajustaria ao quadro
de decadência que o poeta, com o pincel da ironia, nos pinta para perguntar
pela Nise, a musa, que não porque... o rato do campo(...)/rói as botas de
F. Dias.”.
- A fim de preservar o caráter cifrado do texto como parte de seu projeto de
“resistência poética” (não esqueçamos da lição de Bosi: o poema deve resistir
à leitura mais fácil, não apenas, portanto, ser resistência aos desmantelos do
mundo. Essa outra dimensão de resistência pode ser compreendida nos limites
da retórica que propõe obstáculos, enigmas ao leitor...), o autor faz sucessivas
escolhas lexicais que ora amenizam certas passagens mais peremptórias do
discurso, ora ampliam as possibilidades semânticas desse discurso, isto é,
ampliam a gama interpretativa da leitura. Como exemplo, podemos citar, além
da substituição do verbo explicar por iluminar, no capítulo VII, a substituição
de a freira da igreja (que associava ambas ao clima geral de pecado) por do
inacabado padre nosso; no capítulo VIII, o chão transpirava, fervia, chegava
do inferno da corte foi substituído por o chão transpirava, chegava da corte,
do inferno? que passa de uma afirmação “o inferno da corte” a um
questionamento “do inferno?”. Como fervia também foi suprimido, então fica
nítida a intenção do autor naquele sentido sobre o qual discorríamos, de
amenizar o tom categórico do discurso e ao mesmo tempo reforçar o tempero
enigmático da poesia. Um pouco mais adiante, nesse mesmo capítulo, lenço
de seda na missa é substituído por lenço vermelho na missa, ampliando,
assim, o campo semântico da locução adjetiva transformada em adjetivo:
vermelho pode ser luxo, sangue, pecado... enquanto seda é restritivo de luxo;
em XIII, crimes brutais é substituído por crimes deliciosos
que é, por sua vez,
110
substituído por crimes fenomenais: a idéia de fenômeno é mais sugestiva, mais
irônica pela própria polissemia desse adjetivo. Há uma espécie de escolha pela
ponderação na progressão semântica entre a denúncia implícita em brutais, a
ironia deslavada de deliciosos e a ironia mais fina de fenomenais; finalmente,
no capítulo XIX, em “ninguém responde./Ninguém responda./A Mata,
explicada, sangue seria outra vez” é substituída por não nos explica no
tempo”. A opção pela ênfase no “estranho” é clara: sangue é mais definitivo
que a reiteração do âmbito inconcluso, inextricável e inexplicável da ação
predatória do homem sobre a Mata.
- A propósito da mata: no capítulo XVIII, depois de sucessivas modificações,
em vertiginosas e caleidoscópicas imagens, temos... “Tudo se explica um
pesadelo/da mata; desculpem./No seu desejo de ver gente/a Mata delira.”.
Ou seja, o autor personifica a mata que, em estado de gente, percebe o Mal
das gentes. Assim, a dimensão coloquial de “desculpem”, na voz do eu lírico,
também redime o eu rico na sua posição de observador desse triste cenário:
que pode esse “eu” fazer além de poetar, denunciar, apelando para o tom
intimista como forma de negociação de seu hipotético leitor?
- Finalmente, no capítulo XIX, na folha 28, última estrofe do poema, onde
temos “Ninguém responde./Ninguém responda./A Mata, explicada,/Sangue
seria outra vez” a substituição por “não nos explica no tempo”. Quer
dizer, a mata não nos explica porque não nos nomeia, porque não nos
identificamos com sua dimensão telúrica, porque a exploramos e aquela mata
de antanho não existe. Daí a preliminar constatação do eu lírico , para
quem a mata, enfim, em uma questão de tempo, “sangue seria outra vez”
àquele que nela se embrenhar com o intuito de explorá-la. Essa mata que ora
fala, ora se cala, faz lembrar aquela mata-cenário-persona-que-fala de Raul
Bopp em Cobra Norato, poema de feição épica (onde se narram as peripécias
de um jovem que, na selva amazônica, estrangula a mítica cobra norato com
cuja pele se veste para salvar estranha princesa aprisionada na mata...)
resgatado por Bosi em sua História Concisa da Literatura Brasileira, para
quem os diálogos do protagonista com os seres espantados da floresta e do
rio formam o coro cósmico desse poema original e ainda vivo como
111
documento limite do primitivismo”(BOSI, 1997, p.418). Lembrança não
gratuita: é no reencontro entre o real e a paródia proposto no mito redivivo da
cobra, ou da figura do saci-pererê em Martim-Cererê, ou do não-mito-sem-
caráter de Macunaíma, que podemos situar essa “zona da mata mineira”
presente no presente poema épico-dramático de Guilhermino Cesar.
Considerações Finais
Isto posto, recuperemos as perguntas na apresentação do capítulo para nortear
nossas considerações finais.
Partindo de uma análise sócio-interpretativa, que traços da herança modernista são
mais visíveis no processo e no produto advindo da criação literária?
Em que medida forma e conteúdo confluem para o estabelecimento da voz
poética? Que voz é essa?
Considerando a totalidade de sua poesia, ela pode ser considerada como resultado
de um projeto? Que projeto, enfim, é esse?
Em Música popular e moderna poesia brasileira, Afonso Romano de Sant’Anna
estabelece, de forma sintética e seqüencial, um “solo lingüístico comum” para o Modernismo
Brasileiro. Ele parte da linguagem modernista como tentativa de preenchimento de um vazio
provocado entre duas ordens de linguagem, a interna e a externa cujo resultado seria um
“aglomerado heterogêneo” tripartido em três linguagens: a linguagem da mímese, da
paráfrase e da paródia” e que “se desdobram em novas articulações que possibilitam o
conhecimento de duas poéticas centralizadoras da produção modernista: a poética do
centramento e do descentramento.” (SANT’ANNA, 1980, p.14)
Sant’Anna, então, seguindo sua orientação metodológica, relembra a república
platônica, voltada para as coisas úteis, de onde o poeta, por não ter função, é expulso e para a
qual volta se afinado com a ideologia da comunidade. Ou seja, afim com uma única
linguagem, a da instituição. Ora, a tarefa de Sant’Anna será a de justamente mostrar as
diversas linguagens ocultas sob o disfarce de um nome: Modernismo.” (p.19). Esse caráter
babélico da linguagem modernista é, ao contrário da ruína que o mito da Torre de Babel
sugere, alicerce e norte, elmo e capacete: sua resistência e permanência. A partir daí, essas
112
linguagens convergiriam para duas poéticas: a do centramento, envolvida com a transcrição
do real e com a ideologia, e a do descentramento, representada pela paródia, como
“antiideologia”. Em resumo, tendo como base a idéia do “outro”, presente na teoria
foucautniana sobre o discurso, o autor assim caracteriza a poética do descentramento:
Tomam a tradição escrita e dela se afastam procurando uma nova
sintaxe e ordenando de modo diferente a realidade. Em termos gerais,
a linguagem presente é a do outro, daquilo que para uma cultura é a
um tempo interior e estranho. É uma linguagem de exclusão e de
excluídos. (p.21)
Opondo, à guisa de explificação, Cobra Norato e Martim Cererê (poética do
centramento, endosso do discurso histórico, ideologia) a Macunaíma (poética do
descentramento, autocrítica histórica, antiideologia), Afonso Romano de Sant’Anna assinala
que (...)na paródia o texto histórico deslocado soa estranhamente. E é exatamente o efeito
de ‘estranhamento’ que se consegue fazendo a palavra aparecer fora de seu lugar
natural.”(p.28)
Analisando os datiloscritos de A Mata e o Nome, percebe-se claramente, nas
rasuras, a procura pela palavra ou sentença de significado mais amplo, mais estranho, como
forma de referendo ao princípio modernista da paródia e do enigma. Nesse sentido, A Mata e
o Nome perfila-se mais com os princípios aqui chamados da “poética do descentramento”, na
concepção de uma personagem, como Geraldino, ao mesmo tempo corajosa e ambiciosa,
visionária e cega: é o nosso mineiro sem nenhum caráter vagando pela mata, em um poema de
forma igualmente estranha, com suas “bricolagens” e fragmentações – na concepção da forma
poética que lembram os primeiros modernistas; em um poema, enfim, que assume a nova
roupagem épico-dramática inerente à referida escola, como propõe Graham Hough, em seu
artigo A Lírica Modernista, no Guia Geral do Modernismo:
De fato, o poema longo quase desaparece: as obras poéticas em grande
escala dos tempos modernos são compostas, em sua maioria, por
seqüências de poemas curtos(...) (HOUGH, 1976, p.260)
E cita o poema The Waste Land de Eliot para arrematar:
113
O poema consiste numa série de fragmentos líricos, alguns de tipo
nostálgico tradicional, alguns como canções oníricas surrealistas,
entremeados com passagens de sátira e realismo dramático. Nesse tipo
de poesia, as unidades maiores não são visíveis à superfície, nem se
apresentam em qualquer estrutura prontamente analisável. Elas são
dadas por um lento processo subterrâneo de desenvolvimento
psíquico, muitas vezes só perceptível retrospectivamente (p.260)
Ora, ao tratar do conhecido poema de Eliot, Hough não parece estar tratando de A
Mata e o Nome, em que oscilação entre o onírico e o nostálgico, a sátira e o realismo
dramático?
A versão publicada de A Mata e o Nome mantém, como se viu, a forma, a idéia e
o conteúdo presentes no prototexto analisado. Guilhermino Cesar, assim, demonstra
convicção em algo maior que o próprio texto como poesia: demonstra manter (até pela
manutenção relativamente bem ordenada de todos os seus documentos de rascunho) a verve
de seus primeiros movimentos como poeta modernista; por cantar a sua aldeia de forma
visionária mas enraizada em uma poética de dicção (voz) tributária estética modernista)
sem deixar de ser própria, é que podemos reafirmar o itinerário do poeta como parte de um
planejamento anterior (onde até a deriva é bem pensada), como um projeto. E, se pensarmos
em um projeto modernista de “consciência crítica”, postulado nos termos de Laís Correa de
Araújo, no artigo A poesia modernista de Minas, – na coletânea de Affonso Ávila intitulada O
Modernismo – segundo o qual seriam
(...)
o mimético, a paráfrase, a paródia o caricato e o grotesco as
primeiras formas de expressão encontradas pelos modernistas para o
desmascaramento de uma situação poética falsa e artificiosa
(ARAÚJO, 1975, p.190)
então esse é um projeto do qual, com efeito, a poesia de Guilhermino faz parte.
Não se trata, pois, de um projeto exclusivo mas “parceiro” na construção dessa poética
10
que
mantém a caricatura, a paráfrase e a paródia, o lúdico, enfim, a serviço de uma poesia
“humana” conforme a mesma autora reivindica para os mineiros de 30 porquanto eivada
10
Na página anterior ao citado texto de ÁVILA, há uma oportuna observação de José Guilherme Merquior sobre
a relação forma/conteúdo na estética modernista. Para ele, o esteticismo mágico vigente é substituído pela
estética lúdica que o modernismo reivindica “(...)Esse ludismo da estética moderna é a um tempo jogo quanto
ao conteúdo quanto à forma. Jogo quanto ao conteúdo porque a literatura passou a brincar com os seus temas,
cultivando o ânimo da paródia e substituindo o pathos trágico pelas ambivalências da visão grotesca da vida,
onde o problemático e o risível se dão as mãos.(...)Jogo quanto à forma porque a literatura moderna,
resolutamente experimental, dessacraliza a forma e desfetichiza a obra, convidando o leitor a participar
ativamente, maliciosamente, de seus ritos simbólicos. (MERQUIOR, Jo Guilherme. Em busca de uma
definição para o estilo modernista. Supl. Lit. de O Estado de S. Paulo, 14-5-1972, p.4)
114
por uma “constante perplexidade do poeta frente ao real” (p.186); dimensão humana que se
percebe justamente nessa extensão do lúdico ao metafísico em um “time de grandes”
(Drummond, Emílio Moura, Henriqueta Lisboa, Murilo Mendes, se ficarmos nos mineiros) do
qual também faz parte Guilhermino Cesar.
Para ele (desde a sua longínqua e jovem contribuição à sessão das semanas de
ação social no Brasil, publicada em 1944 pela Imprensa Oficial do Estado do Rio Grande do
Sul, sob o título de Transformações sociais e econômicas do presente)
(...)sobre as ruínas do tempo perdido deve ser instaurada uma “cidade
fraternal”.(...). A sua construção, para a qual devemos colaborar com
todas as nossas forças, de nascer do bem-comum, esvaziando-se
essa locução de seu conteúdo retórico e extraindo-se dela uma
substância a um tempo social e metafísica, cidade a que o mundo terá
que chegar e para onde, apesar de tudo, caminha, porque não será
perdido o esforço que desde o Cristo faz a humanidade para
resguardar e valorizar os direitos da pessoas humana. (p.9)
A dimensão humana a que nos referimos, portanto, parte de aguda consciência
crítica acerca da tarefa de todos, mas, em particular, do intelectual, a quem
cumpre ser honesto, isto é, deixar de lado o prazer capcioso dos
truques fáceis, dos jogos florais da idéia pela idéia. realidades
reclamando por intérpretes, e os homens de cultura poderão pôr um
pouco de ordem nesse caos ambiente.(...) Escrever, hoje em dia,
parece ser uma função social. O homem de letras que se isole estará
traindo. (p.20, 21)
O projeto da poesia de Guilhermino Cesar, em suma, é partindo de uma
concepção missionária (e por isso mesmo social) –, desde o longínquo Meia-Pataca, de
resistência e permanência. Então, a herança modernista (de nossa pergunta acima) está, na sua
poesia antes da construção dos elementos formais com que se dará a forma poética –, sobre
o alicerce do pensamento visionário-vanguardista segundo o qual a arte deve estar
comprometida com a mudança, com o novo. Ou seja, a arte vem depois: não é o homem que
deve servir a arte e à arte; é a arte que deve servir o homem e ao homem.
A voz do poeta Guilhermino Cesar é a voz de todos os demais Guilherminos
ecoando entre Erechim e Gilbratar, Cataguases e Lisboa, entre a Mata e Nome, não importa:
ecoando por lugares que vão da dimensão topológica à humana. Cabe a nós, os seus leitores,
experimentá-las.
115
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125
VOLUME 2
O presente volume é o resultado da reunião da poesia de Guilhermino Cesar
publicada em livro, jornal e revista. Trata-se de pesquisa ainda não definitiva, que a
produção do poeta é bastante variada e, aos poucos, ainda vamos recebendo contribuições
que, no futuro, se somarão ao que ora temos.
A digitação do material procurou obedecer à forma como está nos originais.
Entretanto, com a finalidade de otimizar o espaço disponível para esta tese, os poemas foram
condensados muitas vezes em uma mesma página formato que se poderá corrigir em caso
de publicação da poesia completa de Guilhermino Cesar.
Cantos do canto chorado não está reproduzido na íntegra por se tratar de edição
cuja primeira parte é constituída por obras que haviam sido publicadas (Lira
Coimbrã/Portulano de Lisboa e Arte de Matar).
Segue sinopse simplificada a partir do primeiro livro publicado pelo autor até a
reunião dos “dispersos”.
Meia-Pataca p. 126
Ladrão de Cavalo p. 134
Lira Coimbrã p. 142
Portulano de Lisboa p. 163
Arte de Matar p. 168
Sistema do Imperfeito e outros poemas p. 177
Banhados p. 228
Cantos do canto chorado p. 232
Dispersos p. 275
126
MEIA-PATACA (1928)
O conquistador chegou cansado
e batizou com o ouro da cobiça
a terra que lhe prometia
um punhado de coisas tentadoras
MEIA-PATACA!
Vieram mais gentes
porém não havia mais ouro
no rio de águas feias.
Vieram outras gentes.
Cataguases... a cidade cresceu.
O Pomba tem barcos de nome estrangeiro
brincando no dorso barrento.
O Meia-Pataca ficou desdeixado
pobre riozinho que se esconde
e passa de longe medroso.
Olhando o rio esquecido
eu penso que ficou pra sempre
no coração da minha gente.
BALADA DAS TUAS MÃOS
a Ascanio Lopes
Eu não tenho necessidade não das tuas mãos
mas sinto um bocadinho a falta que elas me fazem
- esse desejo egoísta de vê-las segurando os meus versos
para a carícia dos teus olhos.
Não quero mais olhar as tuas mãos
127
mas daqui eu as vejo levantadas pra Vigem Maria
implorando felicidade pra gente
- esse desejo egoísta de ser feliz.
Tuas mãos de dedos grossos
- não tenho necessidade delas não
nem da carícia que elas me faziam.
Não quero mais também as tuas mãos
porque sei que elas hoje ficariam trêmulas
se pegassem nos meus versos tristes.
POEMA PRO MEU POETA
Agora eu te compreendo, meu poeta,
e sei por que andaste dizendo aquelas coisas
que eu sempre achei desajeitadas.
Compreendo agora a doçura
das vozes clarinhas do sol lá de fora
de fora da floresta
falando pra gente que está dentro da mataria assim
entre um poder de trilhos pra seguir.
A tua voz põe fogaréus no meu peito
põe desejos bons na minha garganta
e uma velocidade quase icrível
na minha pena sempre tão emperrada e medrosa.
Agora eu te compreendo, meu poeta,
e sei por que andaste gritando
a esperança de nós tdos.
DESLUMBRAMENTO
a Mario de Andrade
Morena batuta de seios de fruta
novinha que dói.
Morena batut
segura essas frutas
segura que caem.
Meus olhos cobiçam
delícias assim
que a fome chegou.
Meus olhos cobiçam.
E doidos nem vêm
que são temporãs.
Morena batuta
de seios de fruta
novinha que dói.
SABARÁ
a Franciso I. Peixoto
Ruas que desaparecem bruscas...
outras existem nas placas
mas não há meios de achar.
128
O frade abre o guarda-sol na sombra
e vai pra igreja do Carmo.
Maravilhas do Aleijadinho maravilham verdadeiros artistas.
A novena tem freqüência obrigatória
das histórias vivas do lugar.
Ócio...
O rio das Velhas se alarga no leito de areia:
a terra é nossa.
Verdade que os portugueses tentaram
mas foram cinzados ali no sufragante.
Música.
Latim.
Igrejas e mais igrejas...
A ponte é nova? Mas só pode passar um automóvel só.
Sabará...
O menino de oitos anos se esforça na explicação
porque os tostões caem na certa.
Mocinhas desconfiadas não gostam de sorrir pros visitantes.
Gargalhadas e discussões andando em outra parte.
-Segue às sete e quarenta?
Não desce outro mais cedo?
Agora Sabará ficou pra trás
cercada de igrejas e de lendas...
Já se pode falar em Nobile
Ribeiro de Barros vai comprar aparelho
estudantes japoneses vêm visitar o Brasil...
A estação de Arrudas
acorda a memória do pesadelo das tradições.
DÚVIDA DE NÓS TODOS
O piau da THE LEOPOLDINA RAILWAY
entra vagaroso em Rio-Novo.
Um turco capitalista de palm-beach
reverencia a senhora irmã de caridade
e lhe pede a guarda do filho até Juiz-de-Fora.
-Não saltasse do trem andando
tivesse cuidado muito cuidado
não chupasse frutas verdes,
toda a ternura brasileira nas recomendações...
O moço de mãos calosas
aplaudiu a idéia do turco educar o menino
e disse em voz alta que é bom pros sírios
-devem aprender a civilização do Brasil.
Da casa escorada um mulato sambudo
espia o tremzinho passar.
Segunda-feira... erva ruim nos roçados.
129
E a gente sonha na rede que ela vem vindo.
Agora...agora...mas que beijo amargo!
É você mesmo, civilização?
FAZENDA DO MONTE-ALEGRE
Sinto arrepios gostosos
ao ver a fazenda igualzinha.
Da volta do morro avisto contente
o terreiro limpo pro feijão das águas.
Galinhas de pano vermelho no
ciscando pros lados do paiol:
nenhuma se perde com a marca da casa.
No casarão de varanda grande
o aniversário de vovó
fez renascer a alegria de outros tempos
quando as filhas não moravam longe
e os pretendentes visitavam demoradamente.
Goiabeiras em festa à beira da cerca.
-Rasgou! –Crianças gulosas!
Passa corada pachola
com a trouxa branca branquinha
a filha do curraleiro...
se atrapalha... e não me vê.
Tarde pachorrenta...
a porteira escancarada
pro forde do patrão voltar de noite.
Depois o sono vem depressa
e o sonho põe um sorriso de tristeza
nos lábios que beijaram o travesseiro.
CURANDEIROS
Passando o morrinho de Carlos Prates
O bonde desce... desce um tempão
Mais parecendo
Que vai dar no Calafate.
Curas do Padre Faustino
Muletas
Raízes
Garrafas
Romeiros de Minas Gerais
Goiaz e Baía?
Não! Apenas noticiários de jornal
Que a mocinha soletra.
Passa numa revoada o professor Mozart
Também o preto Rafael das minhas bandas
Também Santa Dica de cabelos compridos
E Maria do Cruzeiro de Armando Soares
- um poder de curandeiros e santinhas.
130
Curandeiros dos problemas nacionais
Pegando boladas assim...
Na tabuleta pintada de vermelho
A mão vacilou ao traçar letras goradas de necessidade
Anunciando a casa de quatro cômodos.
O velhinho de óculos de ouro
Que vem no reboque com o neto
Mostra amolado o erro gramatical
VENDE-SE LOTES
Os olhos do pequeno nem vêm
Porque jagunço e Chiquinho
Ficaram dançando neles.
Nossa Senhora da Piedade!
Apesar do Caraça e dos outros
O lusismo pegou maleita no Brasil
Vai zunindo pra cova...
E em todo canto curandeiros de tudo!
Mas a arrogância dos curandeiros que eu falo...
Cadê simpatia e verdade pra vencer?
FEITIÇARIA
A cantoria desse pássaro me incomoda
E me faz pensar os pios de macuco
Do conto que acabei de ler.
Gosto de fruta brasileira
Da fruta mais brasileira.
Estou bem.
Necessidade de ir lá dentro estudar
Abrir livros empoeirados de sobre-casaca
- porém eu pego nos outros peraltas
que não usam nem gravatas caras
nem casimiras inglesas
mas souberam fazer do algodão de S.Paulo, das Alagoas
das Minas e do Maranhão
a mais colorida vestimenta.
Por quê será que a alegria deles
Atrapalha até as minhas horas de estudo?
TIO SANTANA
A Rosario Fusco
No fim do espigão abanquei-me cansado.
A roça mofina
Com medo do sol
Estava amarela da gente ter dó.
Ouvi vozerio pros lados da grota.
“Anda, nego, pra riba.
Diabo! Você não comeu?
Olha o mato ficando pra trás!
131
Anda, nego! Que falta de força.”
Tio Santana falava sozinho no eito.
Se assutando ao me ver de repente
Explicou na linguagem cabinda
Que a perna vergava
O braço pedia descanso...
Então tio velho espantava a fraqueza
Lembrando direito
A fala do antigo feitor.
NOITE DE TODOS OS POEMAS
A Oswaldo Abritta
No samba que explode lá fora
Em voltas de gira
Em gíros de amor
Em cantos e risos
Puseram os poemas da raça cafusa.
Poemas vermelhos
Poemas roxinhos de fazer pena
Poemas brancos e inofensivos
Todas as cores e todos os sentimentos
Nas cabrochas repenicando,
Sambando suadas.
Poemas da raça
Poemas da terra
Poemas de tudo!
No samba que explode lá fora
Em voltas de gira
Em giros de amor
Em cantos e risos
Falta porém um poema maior...
Não se pode escrevêlo somente:
É preciso sentir
É preciso viver
Solidário com a gente morena
Pra escrever o poema melhor
-o poema maior e mais fundo
que a raça exige de nós.
POEMA DA TARDE FRIA
A Martins Mendes
Bangalôs invasores de cores vivas
Se alastram no primitivismo da paisagem...
Malhas de pedra
Crianças afogueadas
Correrias dos soldados
Gritaria no pique e na carniça.
Volto de novo ao meu cigarro
Só pelo prazer de entrar na vendinha
-o dono sentado à soleira
132
e a filha sem meias
mexendo morosa
no cesto de mangas.
O guarda não traz uniforme
Mas tem um capote pesado
Nos braços quase inúteis.
Ar de família da rua Rio de Janeiro
Dentro da tarde...
Olhares desconfiados da meninada
E a tristeza mansa de recordar
-sem desejos impuros na alma da gente.
INUTILIDADES
A Achilles Vivacqua
Fico sentindo a inutilidade da minha vida...
Fico sentindo que os minutos caminham emperrados
Temendo chegar ao limite primário das horas.
Eu mesmo construí esta inutilidade amarga:
-onde a ingenuidade de outros dias?
-onde a naturalidade fresca do meu sorriso?
Eu mesmo principiei a trabalhar nesta inutilidade:
Procurei alcançar o significado de tantas outras
Inutilidades
E agora principio a sentir amargura...
Porém o meu coração se conserva bem forte
Pra suportar a angústia do tempo
E dar pra os que me cercam de olhos inquietos
A doçura boa do meu consolo enorme.
CAMPEIRO DE MINAS GERAIS
Campeiro mulato de sol
Você que dormiu
Sem medo de bruxos, sacis-pererês
Botando a cabeça fervendo de amores
No couro estendido...
Você não ouve ali perto
De dia de noite
A barulheira da boca da minha?
São filhos da nossa terra também.
Largaram a boiada no morro
Serenatas nas ruas familiares
E foram pra noite de ferros tinindo
Procurar a lua de metal
Escondida nas montanhas duras
Saltando depois dos cadinhos...
133
Você não está ouvindo o ruído dos pilões na baixada
Triturando a pedra que vem do fundo
Nos vagonetes ligeiros?
E aquele suor que os companheiros estão suando...
A gente pensa que é sangue
Mineiro campeiro!
Eles deixaram a casa sonhando riqueza
E agora estão magros e feios.
Como você dorme bem
Cansado das lidas campeiras.
Eles nem podem dormir sossegados:
A mina não fica sozinha um momento.
Mineiros que saem
Mineiros que vêm
As máquinas sempre rodando.
Campeiro queimado de sol
Vai ver o trabalho dos seus companheiros
Nas galerias de ar frio
Na noite constante!
Mineiro das minhas Gerais
Você não acorda?
Vai ver o trabalho dos outros mineiros
Dos mineiros-mineiros enterrados na mina
Ouvindo os patrões em fala estrangeira.
RECEIO DE FILHO ÚNICO
Vejo um sorriso de longa delícia
Nos lábios dos outros
Quando me dizem que a vida
É cheia de peripécias
Pros que não podem ouvir
A doce fala de irmão.
-Alisamentos perdidos
desperdício de esperança...
tudo termina em fracasso.
Conheço uma criatura bem criada:
Nada de estragos assim perigosos
Nem esperança perder.
Os papéis temendo na certa
Pelo futuro do filho.
Ele esperando demais...
Porém quando pensa que a vida
É cheia de peripécias
Pros que não podem ouvir
A doce fala de irmão,
Sempre vacila um pouquinho.
134
LADRÃO DE CAVALO (1964)
A avó
Menino, você é doido.
Você é doido, meu neto.
Fique no sítio, aqui perto,
Não vá para a Zona da Mata,
Não vá para a Zona da Mata.
Lá tem ladrão de cavalo.
O neto
Obrigado, minha vó,
Mas preciso me virar.
A vida não é diamante,
Não é ouro, não é prata,
Se arranja em qualquer lugar.
O córrego
Lá tem ladrão de cavalo
Lá tem ladrão de cavalo.
A avó
Meu neto, ouça o que digo.
Não se atreva, não se estrague.
João Manuel, inda mocinho,
Quis ver a Zona da Mata:
Na tenção de abrir comércio,
135
Foi um dia a esse lugar.
Pois que pastos, que lavouras,
Gadaria nos currais,
Montanhas de arroz em casca,
Boas aguada e mais:
Derrubadas de café,
Galinha, pato, peru.
João Manuel gostou de tudo,
Até queria ficar,
Mas não ficou não senhor.
Nesse lugar de abastança
Tinha montes de ladrão.
O neto
Minha avó, vos agradeço
Se fala é me quer bem
Mas hoje não é assim:
Ladrão ali já não tem.
O córrego
Olha o ladrão de cavalo
Olha o ladrão de cavalo.
A avó
Aqui está seu Custódio
Que não me deixa mentir.
Venâncio trouxe uma eguinha,
Cabos brancos, testa fina,
Pôs no campo pra criar.
Vieram gentes da Mata
Numa noite muito escura
Lá se foi a pobrezinha
Nos seus dias de parir.
Aqui está seu Custódio
Que não me deixa mentir.
A égua
Mês de maio vem aí
O leite fica cheiroso
O leite fica gostoso.
O neto
Podia ser e não ser,
Ora esta, o mundo é largo.
Tanto seria de Tebas,
Angustura, Barbacena,
Palmira ou Coelho Bastos.
A avó
Tenho a certeza, meu neto,
Eram da Zona da Mata,
Desse maldito lugar.
Não passam de malfeitores
Que só vivem de roubar.
136
O neto
Louvado seja o Senhor
Não posso voltar atrás
Tenho um sonho na cabeça
Minha avó que me perdoe
Para lá me vou mudar.
As árvores
Estamos cansadas de ser árvores de sombra
Para os sonhos moles do Neto,
Do neto que voga fácil no azul,
Perdido neto:
Serenatas, cachaçadas,
Mulher-dama de Congonhas,
Latomias com ciganas,
Violão nos botequins
Com esses tropeiros da Mata.
Perdido, perdido, perdido.
A avó
Dedo mindinho me conta
Você vai se arrepender.
Lá tem ladrão de cavalo
Tem política medonha
Deputado que acoberta
O roubo desses ladrões.
Que é que você vai fazer?
O neto
Mando chumbo, meto bala
No bucho desses patifes
No lombo de algum velhaco
Que proteger os ladrões.
A avó
Neto, meu neto, cuidado!
Você vai se arrepender.
A manhã
Aqui é o Alto Sereno
Antiga mineração
Sítio do Alto Sereno
De seu Coronel Feitosa
milho e batata
doce
A cinco povos em volta.
Um menino
137
Na vargem grande do rio
Que a dita vargem corta
Toma-se banho no poço
Come-se ingá madurinho
Tudo, porém, no escondido
Longe do Coronel Feitosa.
O violeiro
És a fruta mais cheirosa,
Ai!
A fruta mais cheirosa
Das terras do Coronel
Feitosa.
O avô
Olha, meu neto, não vá.
Sua avó quer o seu bem.
Não deixe o Alto Sereno
Pela busca duvidosa
De uma fortuna de vento.
O neto
Meu avô e minha avó
vós tereis de me escutar
já não agüento meu fado
quero outra vida tentar.
O violeiro
És a fruta mais cheirosa.
O rancho
Que é isto?
O luar
na telha vã; somente o luar.
(Preciso criar juízo
preciso me consertar).
Mas que é isto, companheiro,
que não paras de chorar?
O Córrego
Olha o ladrão de cavalo.
Olha o ladrão de cavalo.
A Avó
Tenha cuidado, meu neto.
Fuja de homem rixento
De roubar e de beber
Ponha tento na cabeça
E não maltrate mulher.
A Noite
Da mantiqueira venho eu
138
do silêncio da pedra
do segredo da pedra
dos bofes da pedra.
Sou no tmpo presente,
no tempo ausente, no tempo
sem tempo, o meu próprio espaço,
minha inserção no Eterno.
Zeus, Buda, Cristo, Maomé,
Franciso de Assis, o monge Lutero,
a rosa vermelha, os cães lazarentos,
comigo vieram, comigo,
do oco da História, da madre do tempo.
A serra da Mantiqueira
Raça condenada
não vos estimo
nem vos abomino
menos voz invejo.
O preto me assusta.
Não é branco o eterno?
O Neto
Meti coisas na cabeça
(minha avó terá razão?)
Dei a palavra que ia
pego o cavalo alazão
saio de marcha batida
chego depois de amanhã.
O Córrego
Olha o ladrão de cavalo
olha o ladrão de cavalo.
A irmã
Agora, vamos ser francos,
falemos como dois irmãos.
Não te mudes para longe
a madrinha está nas últimas
nosso avô perdeu o siso.
Irmão, vamos ser francos,
temos a herança.
Fiquemos.
O Boi
No pasto rumino sozinho
pesado de infelicidades.
Por um jantar me caparam
engordo que é barbaridade.
O Neto não é carreiro
deixa o Brinquinho puxar à vontade.
Tenho o cangote lanhado
é um doer fino sem caridade.
Neto que vá para o inferno
com a sua propriedade.
139
Já não agüento ser boi
antes queria ser bode
solto na libertinagem.
O Bode
Não me arrelio pelo capim.
Como o que topo
e o que não topo
comi.
Neto me mata
neste chiqueiro
(sebo pra ele)
o dia inteiro
longe do cheiro
do meu quindim.
Não me arrelio
não sou cavalo
não sou carneiro
cá me defendo
não me arrelio
pelo capim.
Sofro por outra
bem outra coisa
brasa ou demônio
fogo berrando
dentro de mim.
Dizem que é fei
dizem que é cio
cio será.
Neto, não vá
atrás de mulher.
Em todo lugar
é mesmo assim
a gente cheira
a gente gosta
-em todo lugar
se encontra capim.
O Neto
Tenho um sonho na cabeça
deixa o meu sonho viver.
São terras no fim do mundo
chão novo, e nunca pisado
antes de mim
fazenda na mata virgem
café para três engenhos
olaria para o gasto
serra de fita
esporas de prata
chapéu de chile
(ora bem, Senhor Coronel,
ganhamos ou não ganhamos as eleições?)
Nenhum parente, nenhum passado,
na Zona da Mata
livre e leve como um luva-Deus.
O Córrego
140
Olha o ladrão de cavalo
olha o ladrão de cavalo
O Morro da Paciência
Aqui te esmago, miserável,
com todas as tuas precisões:
precisão de horizonte vasto
precisão de fugir à prisão
-este vale, este córrego,
faisqueiras sem fruto,
e a vidinha – raquítica:
cobra na moita
banho no açude
mulher no eito
fugir ao bicho de pé, ao carrapicho,
ao azinhavre do tempo,
ao mundo dos carrapatos.
A Avó
Veja, meu neto, que bem pode ser o fim de tudo.
Nosso Senhor Jesus Cristo, tenha pena de mim,
de seu filho, Ave Maria, Nossa Senhora, São José,
por tudo que há de mais sagrado, pelo figo da
figueira, pelos ovos da galinha, pelas estrelas da tarde,
pelo caldo da garapa, pelo leite derramado,
pela geração de garimpeiros que
gerei.
Fique, meu neto, que Deus voz alumie, me
entregue vosso coração, meu neto, limpo pelo amor
da sua Graça.
O Córrego
Olha o ladrão de cavalo.
olha o ladrão de cavalo.
O Neto
Contra a maldade do mundo
boto a maldade do mundo.
Se me roubam, me perseguem,
chamo um bom advogado
compro o juiz e a balança
acabo com esses ladrões.
Ponho capanga ao meu lado,
se a Justiça me abandona
- capanga de carabina
pistola, faca, e coragem.
Contra a maldade do mundo
boto a maldade do mundo.
O Violeiro
És a fruta mais cheirosa.
A Avó
Isto é fácil dizer
quem rouba foge – é ladrão.
141
E nesses matos de lá
na lonjura dos grotões
um claro sempre haverá
para esconder os cavalos
roubados pelo caminho.
Falam que em Campo Bonito
além de Cataguarino
bem no meio da floresta
derrubaram muito mato
onde fazer um curral
para cavalo roubado
guardar.
Meu neto,
se te roubam, tás roubado.
Como é que vais fazer
para o roubado encontrar?
O Córrego
Olha o ladrão de cavalo
olha o ladrão de cavalo.
O Neto
Que me importa? Vou partir.
Adeus, meu povo. Me vou
saudoso de todos vós.
A minha sina é deixar
minha terra, meus avós.
Ai que o ouro se acabou
o diamante sumiu
tudo morreu nas Gerais.
Mergulho nos feios matos
vou correr o meu destino
plantar arroz e café
furar a casca do mundo
ser gente ou não ser ninguém.
Que meus santos me resguardem
de cair em tentação.
A Avó
Amém, amém, amém.
O Violeiro
És a fruta mais cheirosa.
O Neto
Adeus, tragam meu cavalo.
Meu avô, firme com ela,
A minha pernambucana,
Em caminho arranjo outra.
Vou armado até os dentes,
Medo é que não tenho não.
Contra a maldade do mundo
Boto a maldade do mundo.
142
O córrego
Olha o ladrão de cavalo
Olha o ladrão de cavalo.
A avó
Deus te abençoe, meu neto,
Te dê coragem, te dê afeto,
Te dê ouro e consideração.
O avô
Nos sacolejos do mundo
Deus te segure, meu neto.
O córrego
Olha o ladrão de cavalo.
LIRA COIMBRÃ E PORTULANO DE LISBOA (1965)
LIRA COIMBRÃ
BILHETE PARA CATAGUASES
A Sé Velha bate que bate:
A poesia chegará.
Pousei na quinta, na uva,
Tenho a marca dos meus pés
Desenhada no areal.
A poesia chegará.
Mas, então, por que sonhar
Outra ordem tolerável
- caminhos de Aracati
E nas flores, desfolhado,
O riso deste menino?
A Sé velha bate no abismo:
A poesia chegará.
Peço a linguagem cifrada,
Azul fervendo no mel,
A linguagem de Hölderlin
Para dar ao meu irmão
Recém-nascido no espaço
Entre Mercúrio e Saigão.
Só isto. Reformar mundo
Não quero. E muito menos
Reviver o fantasmal,
143
Ser Barão de Penacova
Ou jardineiro em Lorvão.
A poesia chegará.
Se é possível aspirar,
Eis a minha aspiração:
Pelo sino da Sé Velha
Achado no temporal,
Por aquele som lavado
Medir vida, medir passo,
Versos, soluços, abraços.
E a poesia chegará.
A POÇÃO
Combino frustrações: duas pitadas
De pejo: um bocado só de mágoa,
Nascida ontem, quase ao anoitecer;
Adiciono a goma verde dos dias de nojo,
E bebo.
Bebo esta mistura cinqüenta vezes ao dia
Nela não encontro jamais o gosto das brancuras
Idealizadas (de que tanto necessito)
Mas apenas carinhos nonatos
Frustrações de um e outro continente,
E o mais que omito por pudor.
A solução é esta: fugir.
Para onde? Fechadas desde sempre,
As portas não me dão passagem.
O mesmo ar – de facas e espetos, arames e cordas
Cercado-
Omite, severo, a rosa dos ventos.
Que farei deste carinho – melhor: da aurora
Embutida na treva,
Diamante de Coromandel no umbigo do tempo?
Deixemos de histórias.
Aqui estou para misturar, misturo.
Combino duzentas gramas de pasmo
Quinhentas de nojo
Agito, agito, poção dos infernos
E bebo.
BICHO DA TERRA
Exato de boca
O outro já disse
- bicho da terra
Tão pequeno.
É mesmo, Francisco;
Nisto vivemos:
Caminhos de mais
O chegar de menos.
Virtudes não faltam
Mas vence a ferrugem
144
Ns dobras do tempo
- na praça trocamos
Na praça compramos
E até nos vendemos.
O outro já disse
- bicho da terra
Tão pequeno.
Contudo nos vimos
Homens nos vemos
Tomamos cerveja
(às vezes veneno)
Buscamos Sião
Pegu e Sofala
Sonhamos o eterno
Não damos por menos.
Queremos o sumo
Ao fruto corremos
Fugimos do bispo
E dos sarracenos
Buscamos juízo
Juízo não vemos.
E bichos que somos
Lutamos
Ferimos
Morremos
Não damos por menos.
NA COURAÇA DOS APÓSTOLOS
Que peso nos ombros carrego
De eras não minhas
- soluços manuéis ou da era joanina?
Quebrados barões, na terra sofrida,
Me aguardam na rua, me espreitam na escada
Sem terra de crúzio ou de índio
Por descobrir e comer.
Debruço olhar. Da casa de azulejos
Uma alma de mil anos me pergunta
“Onde o caminho, filho, onde o caminho?”
Em peitos de hoje, crianças de ontem
Mamam dores filipinas;
São palidez e miséria
Nas luras de Sobre Ripas
Onde ribas não florescem
Onde a pedra se esfarinha.
Gemidos e só gemidos
Marcam subida e descida,
E o berço desses petizes
Dançam suspensos do abismo.
Um pombo negro e faminto
No casto azul se vislumbra.
A mão de Antero nos chama
Das brumas de Santa Clara.
Ninguém percebe a tragédia
Oculta naquelas barbas.
145
Os sapos perseveram, sapos,
No lodo da igreja enterrada.
Que peso nos ombros carrego
De eras passadas, de eras presentes,
Ou eras futuras? Nenhuma solidão jamais
Pesou tamanha
- são quilos, arrobas, montanhas
De pó – herança dos anos da peste
(os Condes na caça, os mares – vazios)
E agora a tormenta espanhola, o golfo de Ofir
Rasgado ao esperto
E seu olfato certo
De sândalo e pimenta.
Que peso nos ombros
Me pesaria tanto como esta carga de um nada
Que não fiz, de um suspiro que não dei
- ou alguém vive por mim e não reparei?
Sinto apenas que me pesa e que me leva
Ao cativeiro desta imagem espetada
Na areia, no chão, no galo de ferro da igreja,
No Caramulo, distante, - o que resta
De azul e doce
Na total aridez.
EMIGRANTE
Esta ansiedade vou pernoitá-la
Em Cabul. Onde? No espanto
Da bruma
No ovo da tartaruga do Nilo.
Aqui não vale nada minha fome de azul,
Estou perdido. Deveria então emigrar para o Leste
Morrer de peste ou de enfarte do miocárdio
Em Tebas, Lurdes ou Cairo?
Está decidido> Vou para Cabul,
Cidade dos meus achados
Terciários, trabalhada por alguém que antecipou
Meu pensamento.
Levo o estricto – sem demasias
Viajo:
Olhos sujos, amargo na boca,
Mais cinco ou seis amaritudes centenárias,
E nenhuma virtude que por fora se veja.
Na mala, fechada,
Uma ode para dizer ao pé do ouvido
Da primeira sombra velada
- uma gota, em Cabul, uma gota, só,
Do mar.
A TORRE DE ANTO
A Torre de Anto
Tão magrinha
Nesta colina fantasmal
A Torre de Anto
Tão fininha.
146
É a solidão que lhe faz mal.
A ladeira sobe tanto
Nesta canto de infelizes.
A igreja de Santa Clara
Tem santa que faz milagres.
A torre já não tem nada
Não recebe vassalagem.
A torre de Anto se enregela
Perde o perfil nesta paisagem.
Fui ver a torre de Anto
E dos poetas sensíveis:
Achei-a cinzenta e fria
Coberta de cicatrizes.
A ladeira sobe tanto
Neste canto de infelizes.
Por estas ruas medievas
Mal se ouve a voz dos sinos.
Se alguém sobe
São os pobres
Os gatos e os passarinhos.
A torre de Antônio Nobre
não aponta caminhos.
A torre de Anto se encolhe
A torre de Anto já tosse
A torre de Anto agoniza
A torre de Anto já morre.
À BOCA DA NOITE
À boca da noite nascem as fontes
À boca da noite morrem crianças
De fome perdidas.
Nascem poetas de antigamente
À boca da noite
- a urgente fome da rima
Para elidir a podridão.
À boca da noite começa em Algés
Este acabar sem aurora
No frio chão.
À boca da noite entro em vigília
(a tarde? A noite – por onde quer
Que vá a rima, vai o bordão).
Soluço, bico calado
À boca da noite.
Evaporei-me. Forma perdida
À boca da noite
A noite sem cores vãs
Cor de esquecer que somos neutra
Matéria baça
À boca da noite.
147
À boca da noite nascem as fontes.
E o dia perdido, o que se quer achado
Na aurora, no sono tranqüilo
De pão sem o pão?
À boca da noite me fazem falta
Tuas aflições.
À boca da noite irei morrer
Se Deus quiser.
A TÍTULO OFICIOSO
Olá, que me despojei.
Minha instante fantasia
Que não dorme nem descansa
Levou-me a doze montanhas
Na pista das nuvens brancas.
Antes da nuvem primeira
Quando da nuvem segunda-feira ao vir a nuvem terceira
Que eu me falava, indeciso
(e a quarta nuvem passou).
Agora, pois que na terra
Não há nuvem, nem há pão
(e as nuvens todas passaram),
Fui contratado de pouco
Para ser, impunemente,
Degolador encartado
Das crianças que nasceram
Subtraídas à bomba
Em França, Oropa e Bahia
E Terras de Preste João.
MONDEGOVIA
Areias, crianças,
Pernas crespas
De lavadeiras.
Santa inocência
Da paisagem.
Que roupas claras
Que verdes choupos!
Terra de duques
Vinhas do pranto
Sonhos de frades
E mouras tortas.
Por estas couraças
Por estas portas
Por estes sinos
Por estas sardinhas
Por estas escadas
Por estas águas
Por estas batinas
Vou à Portagem
Comprar notícia.
Notícia de quê?
148
Da Idade Média
Me vem um grito
Ouço o lamento
- obra do vento?
Ninguém não ouve.
Estou na Portagem
Paguei ao Conde
Real e meio.
Meus pensamentos
De contrabando
Portam bagagem
De Helicarnasso,
Bagé e Fez.
Entro na igreja
Rezo três ave
Mato um chinês
E beijo o manto
Bendito
De São Francisco.
Areias finas
Pernas grossas
Águas esfregadas.
Paisagem granulada.
DAS ALTERNATIVAS, SEM FLOREIO,
NA INTENÇÃO DE FERNANDO PESSOA
Estamos todos mortos
No Acre, no sal,
No ácido sulfúrico, para sermos mais exatos;
A menos que do exato e do nítido
Já não se cuide neste chão que foge,
Melhor: que me foge daqui ao Pacífico,
Quer dizer: no espaço estendido
Como os substantivos simples: dor, amor,
Visto
Se nutrir do tempo todo imprevisto,
Ou seja, tudo foi visto antes de mim,
Por outrem, de mim, que não era razão ainda, ou
Antes – só o instinto me ilustrava nisto
De vir o simples a ser o misto.
Águas de Siloé são águas, ou são moças
De branco, debaixo de um galho – sonhemos –
Florido? Ou podem ser também, o que não sonho,
Curva de água do Mondego,
Ou antes, de um Rio da Pomba e Peixe inexistente,
Se, existente, o deponho da memória antiga
De 1927?
Estamos, melhor seria dizer: jazemos
Na terra ímpia, à espera do enxofre,
De um hiato fosco, não, de um rubro
Estouro definidor do homem-abismo,
149
Metido sem perfume nesta cova, neste ar, nesta luz
De doidos, antes, do cegos.
E mais não digo, não sei, quer dizer, não
Saberia dizer a boca,
Berço onde nasce e morre este gemido.
O CAPITÃO PARTIU DE MANHÃ
O capitão partiu de manhã
Ninguém lhe atacou a partida
Era o sem-fim seu destino
Em terras de Mouraria.
Montado em camelo azul
Levava burros e anjos,
Fazenda, cachaça, pão,
E atrás da estrela boieira
Na lonjura se sumiu.
O capitão partiu de manhã
Não tinha para onde ir
A não ser no pensamento
Sem-fim era o seu destino
O mistério seu alimento.
Partiu nuinho como nascera,
Ligeiro, na asa do vento.
Onde está seu capitão?
Pergunta a voz do jumento
E a voz do camelo azul
Perdido além do deserto.
O capitão está melhor,
Lhes responde o céu de Minas
Bebe o mel das madrugadas
Nos lábios de uma menina.
O capitão partiu de manhã
Por esse mundo de Cristo
Mas a história verdadeira
Que omito para ser crido
É que perdeu o juízo
No sertão do Rio Doce
E faleceu, faz três anos,
De paixão e de icterícia.
CANÇÃO DO EXÍLIO
Vamos jubilar (é pouco)
Vamos depor (já serve)
Vamos triturar (melhor)
O mundo – este que aí está
Na razão de dividir,
Capar ensandecer.
Vamos depressa,
Reduzi-lo à condição
De pedra, somente pedra
Sem riso ou vegetação.
Volte a terra a ser o neutro
150
Livre do boi e da vaca
Do Paraíso e das maçãs.
E no azul, se houver lugar,
Plantemos a bandeira da
Total desesperação.
Vamos refazer o berço
Em que Aurora mal nasceu
Pôr uma pedra de gelo
Nos beicinhos de Lolô
Resfriar o sol do México
Beber as águas do Azof
E do Etna o vapor
Tornar a manhã em noite
Da rosa tirar couve-flor.
Vamos depor o futuro
O verbo e sua expressão
Matar a própria linguagem
Que causa tais aflições
- coisas da idade remota,
do tempo dos Carajás.
E depois de tudo feito
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá;
Quero ver os Coronéis
Quero ver os Carajás
Na terra das frustrações
Onde canta o sabiá.
EM FAMÍLIA
Já que estamos em família
Vou contar os meus segredos.
Fiquei doente, fininho, uma pena;
Hoje estou louco.
Sou nebulosa fabricada na retorta
De sutis combinações do capital com a fome de guerra.
Atravessei o peito de um negro
Com seis balas
Na floresta de Manhattan.
Na Calábria repousei
Deitado aos pés de Vulcano.
De roxo viajei no Caos,
Com ordem de Murilo Mendes,
Domando mula de padre
Numa alegre Sexta-feira.
Em pleno Bulevard Clichy,
Eram quatro da manhã,
Perdi o dedo mindinho
E perdi Rosário Fusco
No ventre de um jacaré.
Sou quase inocência da boca de Maria Pardinha,
E ninguém me crê.
Está bem. Eu é que não acredito
No que vejo: um homem estendido ao comprido
151
Na rua central de Marraquexe.
Quem o matou? Ninguém. Eu, vosso primo,
É que estou morto, morto pelo punhal oculto
Num charuto.
Ai, não ser senão o peixe que se há de comer no Palheiros
De Mira,
O pão que se há de suar nas curelas desta vida
Por todos os séculos de um tempo que vai
Do berço em Rio Comprido ao túmulo na sífilis
Ou ser – mais doce –
Vapor de cachaça no samba por cima por baixo
Por cima da minha janela
Numa tarde com ela, ai, com ela
Em Capacabana.
Mas bem podia ser outra coisa sedativa
- aquela chuvinha em Cataguases,
fruta-pão-pão-pão
pejada de sono
no busto de uniforme cáqui
(tenho violetas no bolso, violeta nos olhos,
Maria para te ofertar). Mas agora não posso:
Sou o homem mecânico injuriado pelo avô Augusto
Sou um monstro
Anunciado, aliás, na Folhinha de Mariana para quando o mundo
Este reverendo mundo acabar.
Se já não acabou, hem? Emílio Moura,
Enquanto chupavas um cigarro de palha
Na comprida noite
Na distante aurora
De Minas.
AS SETE PARTIDAS
Desculpem, sou um homem rude,
Das Sete Partidas; navego
Com mar liso ou tempestade,
Haja clama ou haja vento.
Contei, contarei nos dedos:
Três-vezes-sete me embebedei
Com água de chuva,
Maus poemas e bons pensamentos.
Da casa de Booz, se não minto,
Furtei uma estriga,
Uma pá,
Azeite, vinho de Nelas,
Alperches, um manto, um jumento.
Sozinho, por quatro condados
(mais três que não digo),
lavrei montes e charnecas
e tive (ganhei no jogo) um castelo
com sete mulheres e sete ciumentos.
O resto, silêncio.
As sete partidas, que eu tanto buscava
No Ceira, no Ave, ao Sul de Trancoso,
152
Achei-as aqui, na tumba fechada,
Na urna lacrada
Do meu sofrimento.
VIELA DA BAIXA
Ou
FADINHO DE COIMBRA
Se a corda o prego arranca,
Sem asas, a camisa
Abafa o peito e o fado.
Não vejo o condenado,
Entretanto pressinto:
Vai morrer amanhã.
Ninguém acerta
No alvo,
A boca e o xingamento.
Estamos sós, inquietos
Sapos do asfalto,
Nossa voz não chega
Às ruas da Alta.
Amanhã, como de rigor,
Abre-se a camisa às incertezas;
E o peito seco, sem amor,
À espera do falo.
O HÓSPEDE
Tenho visita
Veio de repente:
Hospedo um poema.
Aflige-me; contudo
É um poema limpo
Sem os odores toantes
E sem a capa das rimas;
Quase não usa adjetivos
(só aos domingos).
Não lhe faço caso,
Vou sair.
Para quê conversá-lo?
É melhor que se enfade,
Que se vá embora.
Não quero poema com perguntas,
Mãos, soluços,
E pés.
Para quê nos gritarmos: seremos?
Estou, estás, estamos. Isto
É mais que suficiente
Para nos dobrar, nos enojar, nos definir
A todos, conhecidos e desconhecidos,
Rajás e mamelucos
No (explico?)
Momento de morrer.
153
ESTRADA DE SINTRA
Não é crível, não é possível,
Ainda vejo flores!
O vale, domesticado,
Manda bons pensamentos
Ao azul atomizado.
E os homens passam,
Perpassam, ultrapassam,
Sem ver, coitados.
Usura, bombas, feridas,
Fome (dor) em abraços condensada,
O voto, o jato, o faquir,
O sono, o biombo,
As flores ignoradas.
ALTO DA CONCHADA
Que mistério esclarecer?
Ninguém me veja aqui,
Mais próximo de perder
O amor, o ódio, o cio
- capital anônimo do pó.
Ora, não vejo ninguém.
As cruzes, vazias.
Positivamente, continuo sozinho
Garroteado em mim.
É limpo, ágil, o último sol
Visível. Onde vive? Aqui jaz
Na mão do primo, no olho do gato, do padre, do bispo,
De sua Excelência o Senhor Juiz de Santo Tirso.
Rematada loucura saber,
Digo, querer saber por que arde
A tarde.
DO BÊBADO
É fácil. Eu bebo,
Tu bebes e, ainda uma vez,
Bebemos tranqüilos.
Sorvemos o mundo em gotas,
Cada um com o seu estilo.
As penas que me matavam
Dissolveram-me. Por quê?
Agora não sinto nada.
É melhor viver.
PRAIA DA ROCHA
Cheguei de Sagres
Não quis viajar até cá.
Saiu para o Mar de Espanha
154
Refugiou-se em Damão
Faz loucuras na Oceânia
E retiro em São Tomé.
E estes penedos, rubros e frívolos,
Que fazem?
Morrem de medo
À espera do Infante.
O infante saiu de Sagres
Mas não veio para cá;
Corre Oriente e Ocidente
Como um demente.
Neste recanto,
Casas e ervas, brisas suaves, praias, turistas,
Penedos,
Tudo tem medo
Que esse demente,
Trazendo o mundo
Preso ao velame
Da caravela,
Possa voltar.
SETECENTISTA
O fino nariz
Sem pé nem cabeça
O escasso aparelho
Me traz a manhã,
A flor, o oceano,
Versos de Shelley.
Esse arfar que é sono
Vigília aerizada
Nas duas ventanas
Do escasso nariz.
Onde sou o que sou
Em Condeixa ou Paris
Senão a esperança
Do escasso nariz?
EM S. MARTINHO DE ANTA
E à noite, nas tabas, se alguém duvidava
Do que ele contava,
Dizia prudente: - Meninos, eu vi!
Gonçalves Dias, I-Juca-Pirama
Em S. Martinho de Anta
Eu o vi o que bem queria
Eu vi pedras eu vi tojo
Céu azul e serranias.
E vi nos longes da Serra
De S. Martinho de Anta
Caçadores à porfia
155
Se matarem por um tiro
Nas entranhas da poesia.
Em S. Martinho de Anta
Eu vi bichos e caminhos
Encontrei Torga nos montes
Sofrimentos peregrinos
Andei no giro das nuvens
Matei barões e vizires
Fui conde, chantre, menino,
E morri pelos Brasis
Sem achar o meu destino.
Mas não vi (nem haveria
Em S. Martinho de Anta)
Foi o homem conformado
Com a sua gordura em dia.
Em S. Martinho de Anta
Comi pedras comi tojo
Comi cardo e nuvem branca
Céu azul e serranias.
E vi, meninos, eu vi
Em S. Martinho de Anta
Aquela cabeça rija
Aquela cabeça fria
- ou era a angústia dos montes
que me falava em poesia?
SOLIDÃO
Entre a volta e o passo dado
Ninguém me encontrará.
Subi às nebulosas
Virei passo no ar.
No ar, o passo certo,
Onde só é certo o ar
Que nesse passo, deserto,
Não se pode explicar.
FADÁRIO
En las cumbres de Toledo me perdí
En las cumbres de Toledo me encontré.
Um, dois, três,
Joguei a bola.
Um, dois três,
A bola se desfez.
Manhãs de sede e desperdício.
Ai! Meu fadário menino.
Ai! Minha lúcida timidez.
Joguei a vida pela janela.
Um, dois, três.
En las cumbres de Toledo me perdí
156
En las cumbres de Toledo me encontré.
O ÚLTIMO HOMEM
Nasce amanhã.
Contudo, já se vê.
Sábio, dirige
A ordem no caos.
Do liso vidro
Que o gerou
Salta sem complexos,
E não tem segredos
E não tem passado.
É
Um senhor asséptico,
Alourado, discreto.
Cinge-lhe a cabeça
Uma enorme coroa
(de louros?) se
bem observei.
Na boca, gemidos
Em lugar de dentes;
No peito, um carme.
Nasce amanhã
Tão tarde.
Alguém, no ar,
Gizou-o sem dor:
A forma de um homem
A sede de um homem
Que isto será
- aqui a cabeça
(vidro rugoso)
ali os ombros
(matéria plástica)
sempre, o ventre
(borracha parda)
aqui os braços
(de barbatana).
E assim por diante.
Perde-se no bojo
De um frasco azul
Seu tímido gemido
Ao nascer.
Apenas nado,
Inquieto passeia.
Olha o vidro ao lado,
Digo, a vizinha,
E quer vê-la
E quer fruí-la.
Não pode.
Está fechado
Não há saída.
Lido e corrido um dia se rebela:
157
Irrompe da plascenta,
Ou seja: do frasco,
Toma da lira,
Canta, suspira,
E expira.
O último homem.
VIGÍLIA
A manhã não vem.
O verso me socorre
O hálito da estrela
Me apaga na cama,
Só o corpo dorme.
No mais, estou desperto
A campear o sono
Perdido dormir perdidamente
De outros anos.
De quando era, antigamente,
O alvorecer na fome
De outro sono.
DISCURSO À ESFINGE DE GIZET
Deixa a morte para amanhã.
Por enquanto, não. Vivamos.
Há rosas, abraços por apanhar,
Brisas não acarinhadas,
Intratáveis caminhos na terra e no sonho.
Não hoje; nem amanhã, talvez.
Espera que passe a hora das maresias,
Esse olor picante
Que ensina o barco a lutar.
Aguarda o rugido da fera
No sertão. Há Mato Grosso
No encoberto, ilhado no mistério
Vegetal.
Estou sem fala. Não sei dizer
Ao teu gasto sorriso,
Entre um felá e um bugre do Rio Doce,
O que desejo. Saberás, por acaso?
Venho do ruído, do instinto sem doma;
O teu silêncio, a tua imobilidade
Me esvazia.
Não te entendo.
Se queres morrer de tédio, morre.
Mas espera que todos os séculos atravessem
O filtro, e que só reste
O sarro, a cinza, o último verso.
Deixa para morrer quando for impossível cuspir
[No rosto dos faraós
ou falte carne tenra de mulher para morder.
158
OBSESSO
Tanta infância perdida não se explica.
Ninguém a infância achada ou esquecida
Envilecida ou suicida explicará.
Sinos, capelas, astros, cornos de boi,
O que não foi ou não veio antes do orvalho
Será beatitude, talvez a impudência
Que se esvai, como no orvalho se consome
A noite e os meus fantasmas.
Quero estar só, quero o bálsamo equívoco
Deste provado abismo:
Cacto num cesto para te oferecer..
Quem foi aqui, na noite, aquela,
O guardião do teu carinho?
Virgens soluçam na capela,
Morrem crianças no caminho
Que frio.
A simples, prática amargura
De ser – procuro. Encontro apenas
A morte em cada instante.
E ela que passa perto, não me vê,
Deixado amante.
AMBIVALÊNCIA
Penso o luar em dois sentidos
A luz e o avesso em que se perde
O que não foi e nem será.
Acha na pedra o seu mistério
A flor, grávida de anseios
- marfim de carne intumescida,
anêmona, crisálida, que sei?
Penso o luar em dois sentidos
O meu e o teu.
CONTRAPONTO
A velha água dormida
Fria água estagnada
Nela afogo meu gemido
De criatura murada.
Nenhum choro, nenhum sorrir
Nenhuma idéia legada.
Me afogo com meus sentidos
Nesta água estagnada.
Andei pelo campo, à caça,
Levando a arma escorvada,
Matei sombras na floresta
Com uma fúria danada.
Fui pesar minha façanha:
159
Dez sentimentos de fuga
Seis venturas desgraçadas
Tiros no oco do mundo
Arrotos de moribundo.
Mas nada disso liberta
A verde água pejada
Roxa nas suas cadeias
Onde afogo o meu gemido
De criatura murada.
VOLUPTUOSA
Perdi no espaço, perdi
no longo dia do baço
o sexo infeliz.
Quimera que foi sombra
sem o saber.
No espaço de muitos laços
armados ao meu passo
perdi a lágrima e o olfato.
Não vejo, não sinto, não quero
ser o feliz
outrora infeliz.
MINAS VELHAS
sou eu, ai! sou eu,
sou eu, eponina, sou eu!
modinha da infância
É isto mesmo, compadre.
vá entrando de vagar
pise com todo o cuidado
que é terra de mineração.
do lado esquerdo, por baixo
de velhos achaques, no muro
em que há um portão azul,
pare.
Olhando para a direita,
vê-se a mangueira; e em cima
da sacada de treliça,
na pedra negra, no liso
frio da pedra, nós, vossos netos,
madrinha do monte alegre.
mas alegres não somos não.
Quebre, no lado direito,
para um monte de cascalho
que verá do patamar;
ali se topa de tudo,
desde o verso inacabado
(confundido com soluço)
à verrina do jornal.
Eis o caminho, compadre;
vá entrando de vagar.
Se vir a mulher de branco
sentada sobre o caixão,
lhe garanto, não é nada
160
que pareça assombração.
Vá no certo, cave fundo,
E Minas de tristes ais
à flor do tempo achará.
Cave, compadre, de dia
e de noite sem parar,
como quem busca o outro lado
desse muro desgraçado
que existe dentro de mim.
Cave, sozinho, o ar cheiroso
e deverá de encontrar
uma tarde em penha longa
meia-noite em Cambuquira
e as manhãs de Aracati.
Depois, siga na linha
de uma porteira que range
na grota. escute o som,
compadre. Se for um puro
lamento de quem no fogo
está morrendo, pare. e
cave fundo, que no fundo
Minas velhas achará.
Minas Velhas , país largo,
ar de chuva, com penhascos,
serras, matos e vargedos
onde dorme o que não sei.
tenho ali os meus guardados,
tenho ali os meus (segredo!).
Descanse um pouco, compadre,
que tem muito o que cavar.
por cima, o céu, que risonho;
por baixo, esse preto véu
que maria me rasgou;
force de um lado e de outro
- é pedra, compadre. já viu
pedra gemer? não se importe,
vá cavando, por favor,
até a cova encontrar
até o morro ceder
até o fundo se abrir
- o ventre das Minas Velhas
onde um homem desbotado,
morto, na certa achará.
Sou eu, compadre, sou eu.
DEVIR
Onde, por onde, em que onde
Se oculta o ser pequenino,
Frágil molusco marinho
Que fui em outra jornada?
Sonho, me atiro, me esfalfo,
Tenho nariz e relógio,
161
Tenho manhã, tenho noite.
Serei idéia formada?
Inferninhos, já os tive;
Hoje não tenho mais nada.
Perdi a orquídea na rua,
Só vejo terra queimada;
Em Vila Franca de Xira,
Nos campos, longe, de Fladres,
Onde, por onde, em que onde
te encontrar de madrugada?
Se o mundo me deu à vida,
E a vida não vale nada,
Amanhã que serei eu,
Onde, por onde, em que onde
Afinal repousarei
Quando for noite fechada?
MORRER AQUI
Morrer aqui
nesta mesma casa
neste mesmo leito
a este mesmo sol
morrer sem vigarice
gosto de coco na boca
olhos pregados neste rio que me leva
a um lago (e suas árvores)
em Cataguases.
Morrer aqui
sem mais aquela.
o sino a bater
o rio a vazar
o tempo à espera
de me pescar.
Sim, o tempo, avisado,
à minha espera,
à espera do logro:
matéria fétida
matéria opaca
sem nenhum segredo.
Morrer aqui
como um peixe
morre e sobe
à flor das águas
velhas do Mondego.
ESPÓLIO
Item, dois canários de fogo comidos pelo gato
um não cantava (era fêmea)
item, goiabas maduras no bolso das calças
piano de cauda desfeito no ouvido
item certas paixões inconfessáveis
- terno xadrez do Altamiro
a clarineta do Pierre
162
um mergulho aceito nos olhos pretos de Clotilde
item, sim, digo, no sempre
o olhar de Dona Isaura (que teve) e suas lágrimas
item, dinheiro pouco
salvo os milhões da Loteria de Espanha
guardados para umas férias no Beluchistão
item, versos de Rilke e Bocage
que na lista esvaíram
como dama de pensão
item, canastra de roupa suja, dos filhos, da parentela
barroca, de guerreiros cafres, de monges excomungados,
de mulheres cancerosas, dos ditadores suicidas
tudo, em parte, esmaecido no riso que foi lágrima
ao romper a manhã
item, desejos ocultos
secretíssimos até
de Ter sido sacristão
item, sexo que o matou
nas terras de Coja Acém,
Bruges, Rodeiro e Ruão
Item, amigos nas Canárias
E colegas no Afeganistão
Item, o mais que é preciso
À total sujeição
O terno bem escovado
Para a hora de dormir
(tem na mente um cemitério
onde espera ser feliz
- caveiras nada patéticas
com seu postiço nariz)
item, promissórias rotas
conta corrente no sonho
pouca fé, nenhuma ciência
item, certeza do incerto
- e o que não tem – paciência.
VIAGEM
O destino? Cataguases.
Quero depressa chegar.
O motivo da viagem
não é segredo nenhum,
virá nas folhas de cá:
- embarco pra Cataguases,
que lá me vão enterrar.
Por favor, façam depressa
o transporte para o chão
do meu corpo e seu fedor,
não deixem pelo caminho
mazelas que foram minhas,
heróis de infeliz amor.
Me arquivem logo no chão,
no frio barro vermelho
do outro lado do rio,
um pouco depois da ponte
(com licença do Ouvidor).
Cubram, idem, o monturo
163
com pedra, areia e cimento,
mas não deixem nenhum brilho,
nenhum sinal exterior
que inda aos pássaros engane,
que a visitas e coveiros,
jornalistas e parentes
recorde o silêncio escuro
em que dormindo me fique.
Depois me larguem, me olvidem.
que eu seja bem digerido
pelo chão de Cataguases,
reino de Minas, Brasil.
LIRA COIMBRÃ:
PORTULANO DE LISBOA
Em dois ou cinco de Março
(não importa o dia)
Era de 1964
Ácido me encontrei
Ao cair da tarde fora do Rossio.
Ia só como convinha
Á rua estreita, calçada dos ais
De Mil Quinhentos e Oitenta
- se não me engano, data exata
Do vagido, melhor dito: do estouro
Do poeta-menino Fernando Pessoa,
Mil quinhentas e oitenta pessoas,
Em verdade,
Espalhadas nesta urbe-cosmos,
Entre o Pacífico e o Algarve.
Chego à Ribeira das Naus.
Ó pastores sem cajado
(falo aos zagais eruditos
Reunidos no lugar)
Lançai nas ondas do Tejo
Vossas gaitas importadas
Que ninguém vos quer ouvir.
Da serra do Ribatejo
Que da Arrábida é chamada
Vem o som que nos faz bem:
Terno Crisfal a gemer
Na sua flauta encantada.
Ando tonto (ó Mestre de Avis)
No compáscuo de uns olhos pretos.
164
Salvai-me de uns olhos perversos.
Não!
Caravelas e piratas
Quero. E versos
Possuídos do epos.
Aqui Lisboa e arredores:
Mangericos do meu bem,
De Santo Antônio os milagres,
Banho azul em Águas Livres;
A viola de Lereno
A pontear em Bemposta
Para outros claros ares,
Para os cabelos de Márcia
Para os suspiros de Elfina.
Aqui, Lisboa e arredores
Desde a Bica do Sapato
Ao Campo Grande Burguês
E faldas da Mouraria,
Desde o cavalo de bronze
Montado por Dom José
A São Vicente de Fora,
Isto é: uma torrente
Que vai da astúcia do mouro
Ao ressonar dos Braganças.
Aqui, Lisboa e arredores
Nas guitarradas da Alfama
(no velho xaile escondida,
Tirita a Feira da Ladra).
Não! Não é isto.
Quero a Lisboa das naus perdidas no inferno de Tanger
Das porcelanas sangrando em Macau,
Dos contratos do ouro (e seu desdouro)
Nos garimpos de Minas; dos chins no aprisco
De São Francisco;
Do medo em Bojador, na crina da tempestade;
E, para cantar o trágico-marítimo,
Poetas aptos a assumir a herança – e as responsabilidades.
Oh! Não impeçam, por favor, que o Trinca-Fortes
Em Ceuta se desventre. É do estilo. Perde um olho,
Placenta amorosa, mas no outro vingam infantas, rosas, o Mondego,
E vinga também:
Horizonte para combater
Fome para curtir
O neutro para engolir
E gemer, na solidão pasmada de Guardafui.
Por Maomé, estas histórias não se usam mais.
O neutro, agora, é
O preto na chícara
- caloria para os barões pouco marciais
Que lêem, nesta Baixa de assomos, cambistas,
Automóveis e pombos,
165
Os suplementos dos jornais,
Na digestiva exaltação do trivial
(longe da Praça do Marquês de Pombal).
No Rossio, em desvario,
É Gomes Leal quem fala:
- Sentados, que bem sentados!
Com o pensamento em pijama,
Barões da era do jato
Tomam café com bagaço.
Nas portas de Santo Antão
Procuro o moço Bocage
Mas a surpresa que tenho
É ver Fernando Pessoa
Vivo (só de passagem)
Disfarçando na figura
Deste velho do Restelo
Pelas ladeiras gemendo
A sua heteronomia.
Não tenho para onde ir
Já não sei o que hei de ver:
Nas lojas de Calhariz
Vestir-me para morrer?
Escorregar da montanha,
Cair no Tejo e na lama?
Mas é tarde. O fado erra
Pelas vielas da Alfama.
Nas ruas do Bairro Alto
É somente o que se diz
- queimaram o Antônio José,
Sua fala e seu nariz.
Foi ao pé de São Domingos
A fogueira do infeliz.
Queimaram o Antônio José
E as graças que ele deitava
Naquelas palavras, poucas,
Bem temperadas na boca.
Queimaram o Antônio José
(que foi? Que não foi? Que fez?)
E os encantos de Medeia
E as manias do pateta
Fidalgo, aquele, da Mancha;
Certo, queimaram também
O rosto de Dulcinéia,
E Anfitrião, e Proteu,
No Labirinto de Creta.
Queimaram o Antônio José
que nas guerras foi poeta
do Alecrim e Manjerona
pela razão que se explica:
Diabinho da Mão Furada
por ele ressuscitado
das profundezas do inferno
166
fazia rir em Lisboa,
recém vindo do Brasil.
Além do Sancho e do burro
quem ficou para depor
sobre aquilo que se fez?
Ninguém me quis responder.
Nas ruas do Bairro Alto
é somente o que se diz:
Queimaram o Antônio José,
sua fala e seu nariz.
Sentado, no Largo Camões,
Cesário Verde, cordial,
esconde a timidez debaixo do fraque ,
nunca jamais não teve não,
mas poderia pedir, afável, ao vizinho:
Então, meu velho,
sempre te demoras
para m'oemprestar?
Vamos, João de Deus, não me deixe,
quero Lisboa com outros ss:
os Soares de passos espectrais
no colo da Bruxa de Monte Córdova;
o cônsul dispéptico do Jasmineiro
dizendo a Garret: Meu caro!
(e o divino, preso em Santarém pelas cheias liberais,
come Barões por uma perna e passa à posteridade),
enquanto Herculano, grave, digere a linhagem
das Monarquias.
E Afonsos, e Sanchos, e Pedros,
na cavalgada real,
com flores de Barbacena
coroam musas prestantes,
responsáveis, com certeza,
pelo quebranto de Inês
a tosse de Antônio Nobre
os mouros de Sebasdtião
as paixões de D.Dinis.
No Chiado, terra de ninguém, alguém:
Maria Moisés, o Conde de Abranhos,
o Senhor Morgado de Agra de Freimas,
Padre Amaro e a menina Amélia,
a brasileira de Prazins, o Conselho Acácio.
Mas, a correr, passa um homem de Évora
(-Senhor André de Rezende,
com que então, pelo nosso Alentejo
sempre se esvai a peste espanhola?)
É isto. Quero Lisboa e seus arredores,
jardins, castelos e terremotos,
e os seus capitães de navio
no calmo Tejo ou mar bravio:
167
Henriques, Gamas, Cabrais
(sem faltar o Cojacém
de tantos juncos imigos
no solerte Mar da China).
Lisboa e seus arredores,
a partir de Minas Novas,
Goa, Dio e nomes maiores,
passando pela Colônia
do Santíssimo Sacramento
nos gorgomilhos do Prata;
uma Lisboa dispersa
no ar, no rio, na grama,
cada manhã traduzida
em vário estilo de vida
na humana Rosa dos Ventos,
e que morre de saudade
no fado coitado
da Rua Nova.
O luar arrefece. O dia vem.
Antes que o sol de Ourique
ou de Alcácer Quibir
acorde Lisboa e o Tejo,
a cúpula da Estrela e a Rua Brasil,
ou a moça do Algés sorria ao mendigo
do Arco do Cego;
antes que os brilhantes do brasileiro
queimem a Rua da Prata,
vou nas asas do Pampeiro,
vou correndo ao Promontório:
Vou à cata de coragem
para os que estamos sós,
parados, aqui no Rossio,
a roer nossa vaidade.
Para todos nós
que não nos movemos
nem nos matamos (ainda)
diante do mar aberto.
Diante deste mar aberto.
168
ARTE DE MATAR (1969)
TÔNICA
Poema-grito
A doer comigo
Na caverna.
Não me bastaria
Adoçar-lhe o som;
Vou deixa-lo impuro
Vou deixa-lo bruto.
Quero é gritar
Todo o meu pasmo
Hoje e no futuro.
Sem arte ou polícia
Gritar.
Não quero música.
I. JERARQUIA
Ponho todos os possíveis
numa floresta de mitos:
ponho a raiva, ponho o amor;
ponho o ódio, ponho o sonho
que morre na sobretarde
e ressuscita amanhã.
Ponho, afinal, em mim mesmo
razões de homem-concreto:
169
ponho a última certeza
nos vermes de Aldebarã.
ponho dor nas Nebulosas
ponho a bomba junto ao berço
ponho no Reino de Sardes
um casal de rouxinóis
e a luxúria de Satã.
Estou sozinho, portanto,
numa floresta de mitos
onde sou duque de copas,
anão e filho de anão.
II. QUEDA
Fruto intemporal
De muitos cansaços
Tomba o remorso
Sobre nossos pasmos.
Fruto do olvido
No crime lavado
Na luta comido
Cai no espanto
Da primeira manhã.
a nuvem das lendas
cobre-o de véus.
Da ação extinta
cai podre e sozinho.
cai no vazio
em que somos todos
um vago destino
preso a Caim.
A ninguém perdoa:
cai em ti e em mim.
III. RETRATO
Na sua incerteza
ninguém o doma:
é áspero.
Da própria incerteza
tira o caminho,
a razão, a mortalha.
Incerto quando sonha,
fala, briga, trabalha;
No querer, na fome,
no afirmar-se alguém,
e ainda no jogo
do mais puro amor
(origem da incerteza
em outro ser).
Fora da incerteza
não se deixa ver:
É ninguém.
170
IV. OFÍCIO
O ofício de viver,
ruim ofício.
Por isso matamos
sem pena (e sem dor)
o guerreiro e o pacífico.
A razão da fera
temperou a nossa
instintiva couraça.
Em janeiro, antes do parto, matamos
as crianças de maio.
Em fevereiro, matamos sem saber
quem é nossa vítima.
No resto do ano, adestrados, matamos
pelo mesmo (sem) motivo.
Engenhos mecânicos
imitam nossa arte
de extirpar a vida
e o amor.
(a pomba da paz se come
com batatas e arroz.)
tudo previsto.
Em nossa casa
Preparou-se o espetáculo:
Bombas no berço
E vísceras de homem
Penduradas à porta.
A noite, isenta de magia,
Colabora:
a noite já não é
doçura reservada
nos amantes extáticos;
traz a surpresa do átomo e a secura
da faca.
Em Delfos, alguém comenta:
Amor é camisa
que não protege
a minha lança; odeio o abstrato.
Matamos porque matamos. Por necessidade
quase nunca; pela vaidade, pelos bens
inúteis.
Pelo cio que não quer filhos
pela loucura que habita
a cidade – casas fechadas
ao mendigo, ao leproso, ao menino.
O monstro é sócio do monstro.
Não há ninguém para receber
o grito dos que morrem
na terra povoada
de feras.
Matamos de dia (para ver melhor
a cara das vítimas)
171
Matamos de noite (para guardar
todo o prazer no abismo).
As vítimas, não as temos por culpadas,
senão por necessárias
à exatidão do nosso ofício.
Escravos do nosso risco,
Matamos.
Matar (sem amor)
é toda a nossa arte
a arte bruta
que não se exalta
mas nos explica.
V. CONFISSÃO
Matei em Betel
Matei em Gazer
Matei no Carmelo
Matei em Larache
Matei em Saigão
Matei pelo negro
Matei pelo branco
Matei pelo chim
Matei pelo Cristo
E pelo Alcorão.
Qualifico-me no erro, e o erro
me nutre. Na ponta de um silogismo
Alexandrino esperei, muito esperei,
Cercado de computadores,
Que alguém dissesse: Amor.
Enguli o silêncio, estou perdido.
E não me vêem, garanto, não me vêem
fisgado no anzol de um pescador
do Mar das Antilhas.
Morro de sede; as águas de Sil
arrastam metralhadoras para o Oeste.
Não me prendem e atiro bombas;
desarmado, quero a morte.
Matei pelo Cristo
matei no ventre
da mendiga nua
matei no lodo e no ar.
Matei o riso que nascia
em meu neto (para minha filha)
matei o Lorde
matei o burro
matei com o raio a pandorga do menino
matei com soda cáustica a fome do desnudo.
Não me descobriram na fome que mata.
Sou a Negativa, e os peregrinos
me procuram. Comando oculto
na fome do leão (isso de noite)
de dia comando as iras
da servidão.
Comando a peste e o vendaval.
172
Mato nas batalhas ocultas
(sem grandeza e sem fedor)
mato com a nota-de-banco
mato com o acordo secreto
mato com a foice e o charuto.
Sei amar, porém.
Amo coisas várias:
navios artilhados
tetos caídos
homens mutilados
livros rasgados
trigo queimado
fomes hindus.
Se me deixassem, eliminaria
a simplicidade para recriar as feiticeiras de Magog
no largo umbigo das dançarinas de Tunis.
Nenhuma tarde de maio em Algeciras
cobrirá minha nudez
de milênios.
Quero o mundo sem nexo
longe do certo – e do perfeito
bocejo de prosperidade.
ACXZQRTF. A inércia?
Não a conheço. Tenho duzentas mãos.
Trabalho com a perícia do jardineiro de Praga,
fechado do seu jardim: se vejo o repolho, ponho rosas,
onde o escasso, ponho tufos;
em lugar do gordo, o magro. Não tenho nenhuma ordem certa.
Cortar, dividir, secar?
É comigo: corto, divido, seco.
Moro em diversos lugares
tenho fraquezas e vícios:
criei os mitos de outrora,
antes do mundo afundar-se
nesta pechincha que é.
Bisneto de profeta
discípulo de mim mesmo
primo de califa
gerado numa chaminé,
divido-me confortavelmente em polias, anéis, chaves
eletrônicas, botões, visores, motores, pedais, elevadores,
barbitúricos,.e principalmente imensas pílulas de Vênus,
que a fome é certa e o homem um velho animal
prolífico.
A consciência me assusta? Faço o possível
por enterra-la numa caixa de vidro
asséptica, e escrevo por fora: PERIGO.
173
Entrei na floresta
só vi anões
procurei florinhas
procurei vagalumes
numa cattleya alba
procurei lianas
só vi anões.
Múltiplos anões
de pés forcados
me comeram.
Agora, com licença, sou excremento de ave de presa;
não tenho forma, não tenho sexo, não tenho dor;
só tenho cheiro,
um cheiro áspero que envolve o berço
infecta o mundo e seus dejetos.
VI. ALVO
Matei o menino.
O menino
tinha crescido, crescido:
tinha seis anos.
Não tinha sapatos
não tinha brinquedos
não tinha comida
para arrotar
não tinha boca
para chorar
tinha piolhos
tinha feridas
tinha dois olhos
tinha seis anos.
Matei um rato
matei um cão
matei a barata
que tinha fome?
Matei o menino do País sem nome.
Menino do País sem nome
bebe o fogo derramado
pelas asas do avião.
Menino do País sem nome
só tem jeito de morrer
- de chorar, não.
Menino do País sem nome
agüenta tiro no peito
(no peito ninguém vacila).
Sedento do próprio sangue
antes do recém-nascido
tem posto de General,
e morre antes das calças
de homem, antes do buço
chegar,
antes do nome.
E fede (anjinho) fede
nas nuvens do País sem nome.
174
VII FADO
No meu laboratório
assumo a intimidade
das combinações.
Cuspo na flor, esmago a abelha e o favo,
monto os cavalos da Aurora para entrar no escuro
do túnel. O túnel abre em Saigão,
Piancó, Londres, Kiev,
mil bocas de fogo, entre cacos de vidro
e escorpiões.
Deixem-me. Sozinho, estudo melhor
o veneno certo para o necessitado
de matar amanhã.
Busco, chorando, o aço forjado nas profundas
vísceras de Belzebu.
Filtro o veneno sincopado
- ninguém o veja nas rosas do agro de Tebas
nos jasmins (ainda?) do Convento de Lorvão.
Crio, metódico e só,
a arte gratuita, a suprema forma
da baixeza, oculta nos lyrios (com y).
mas, a um tempo, longe de mim,
desmancho no ar os pássaros, o pólen, a casa,
A fome, a comida, a pele, a amada.
VIII O IRADO
Meu país é Galaad
Sou de distante país
onde há pedras
onde há cardos
Sou de Galaad,
e paro
em cada desvão do mundo
para ver o que não fiz.
Venho da mirra e do nardo
das oliveiras quebradas
do Jordão sem suas águas.
Galaad é minha sede
Galaad é minha ermida
Galaad é meu tesouro
Galaad é minha sina.
Venho ativar a guerra
Venho perseguir a vida
Venho torturar escravos
Venho matar em mim mesmo
O rei que no outro havia.
IX OS ESCORPIÕES
Nasceu no deserto – Roboão.
Roboão queria ser rei.
Roboão açoita com escorpiões
O povo de Israel, o povo de Moisés, o povo de Davi.
Roboão abre caminho com os escorpiões
Na carne das doze tribos,
175
Das mil tribos açoitadas com os escorpiões
De roboão.
Sofro o meu ódio com o veneno dos escorpiões
De Roboão. Vejam:
Grudou-se na minha pele
No meu grito de fera.
Como os escorpiões; os escorpiões me comem;
Sou um escorpião, um dos escorpiões
De Roboão
Neto de Davi
Filho de Salomão.
Reparto-me entre os puros e os impuros
Entre lírios do céu e almas danadas
Eu sou um escorpião presente
No veneno dos escorpiões de Roboão.
X DINASTIA
A minha história começa
Com a morte dos meus escribas.
Afinal para que vivo
Nestes paços irreais
Senão para ser quem sou
- a todos os homens igual?
Meus escribas inventavam
Meus escribas não sabiam
Desta certeza que sei;
Versavam coisas aéreas
De um tempo em que havia reis
E magnólias
E amor.
De um tempo à margem do fado
Em que adulavam a morte
Pensando enganar a vida.
Sem paixão e sem remorso,
Ah! Matei os meus escribas,
Que a minha história começa
Aqui, onde termina a vida.
XI ARTESÃO
Pediram-me uma rosa azul, fabrico uma rosa
Azul; pediram-me uma anêmona e seu parceiro,
Faço uma e outro. Depois armo um parêntese
Para dormir. Anêmona é bicho matreiro, dá muito
Trabalho: Pulsatila actinia ou que outro nome
Tenha, é uma cousa desgraçada. Nem bem a fabrico,
Põe-se a brilhar no salão, digo, no mar alto.
Pediram-me que fizesse um piolho no Biafra, uma coruja
Um nenúfar abexim, um cacto. Pronto, risco, projeto no ar
A forma desejada, a espécie vista antes de mim por Platão e outros
Sujeitos de Atenas e seus arredores, do Mar de Azof a Santa
Luzia do Carangola.
176
Pedem-me um homem perfeito, nada parecido
Com o próprio homem, e não sei o que responder.
Procuro a fêmea num hiato da tarde, na hora de entre-lobo-e-cão,
Quando todos os amores se (in)completam
no espasmo. Ela não quer trazer ao mundo o homem
que esperamos, o ser cristalizado na sua mesma imperfeição,
como uma estátua de cera, um prato de Sèvares
na mão do troglodita, o camelo da miragem dos cegos
montado na Torre Eiffel.
Proponho à mulher a morte. Ela recusa.
Arre! Tenho as mãos sujas, os olhos vazados,
E estou sozinho.
XII OS MORTOS
Os mortos esperam gelados
Esperam a sua alvorada
(a carne acabada)
para despertar.
Os mortos esperam
Largados na terra
(a vida aplainada)
abrir-se o caminho
que os há de levar.
Os mortos esperam
Pousados no barro
O aviso do tempo
Para voar.
Os mortos esperam
Primeiro que tudo
Achar a leveza de cal.
XIII CONTRAPONTO
Perfeito anti-herói
De um mundo técnico
Morro (sem tardes fagueiras)
Na redoma em que
Explode o sexo.
De tanto ser lúcido
Já não sei fazer versos.
Escrevo nas paredes
(como os Faraós)
para ninguém ler.
E vejo-me, afinal,
Preso aos meus escravos,
Eu mesmo – alvo
Do tiro que lhes dou.
177
SISTEMA DO IMPERFEITO (1977)
I. ANIMAL DO TARDE
1
Animal do tarde,
veio depois das estrelas mais novas
depois da baleia e do orvalho.
Animal, sabe
que o não saber é o seu álib/informe
o seu capote contra a chuva
o seu grito de alarma.
Não podia vir antes das vacas
antes dos hipopótamos e dos ofídios.
Precisava mostrar aos bichos
seu vaidoso umbigo.
Não é planta, não é diorito,
nem ave; é
um animal do tarde.
Alojou-se, para ocultar os mamilos,
num fraque. Bicho encruado,
se me permitem,
depois de ter sido feito – o tronco, a cabeça,
a fome de mulher, o furor homicida, o ganho oblíquo –
depois de pronto,
é isto.
2
Quer o poder
não para o sustento:
para o brilho.
178
Para o sustento, o mel
roubado/engolido
às ocultas.
Não se importa
de ser odiado; quer
o poder para fruir o alto,
para comprar um casal de patos-
de-pequim
ou – simplesmente – para poder a mais
não poder.
No poder se exalta, se dana, se acha;
no poder aquece o primeiro assombro
de si mesmo; e se dorme no sonho
mais poder escava para poder
reinar.
A última estrela, a que há de
espiar, no fim, o seu régio cadáver,
haverá tal estrela?
3
Bicho, amanheceu difícil.
Quer os planetas (quantos?)
na palma da mão;
quer a galinha pondo o ovo
pelo bico; mas – ainda –
não quer o rio livre
entre florinhas correndo, senão amarrado ao poste,
obediente animal de circo.
Quer o mundo sob sua fronha, como
se fosse possível dormir em cima
do átomo.
Amanheceu no porre?
Embriagou-se com o próprio orgulho?
Acuado por si mesmo,
com os abutres do horror (uma imagem possível)
penetrou no exorcismo,
mas esqueceu de levar o seu não-senso
passado a limpo.
Tudo-quanto, negaça, enguia, palmeira, quisto.
4
Ou antes:
uma flor venenosa? Um corisco?
A tempestade sozinha
nos jardins de Hitler?
Cauteloso, explora as fraquezas
da terra, por dentro e na superfície;
câncer, oculta-se
para melhor ficar no seu ruim
serviço.
É o algoz de si mesmo
no mais caseiro abismo.
5
179
Perdeu-se diante do muito espaço;
já não sabe medir a distância
da garganta ao umbigo.
Mas tem o poder da fala. E fala,
menos com os outros
do que consigo.
O que lhe coube de herança
é triste:
foi-lhe impresso na testa
- a sua praga.
Nunca esperou que alguém o quisesse
embrulhado e sem nome. Era inocente
na sua cara de bicho.
Não sonhava as entranhas abertas,
a sede,
a ternura frustrada
no Oceano Pacífico,
a faca no peito do amigo;
não sonhava nada disso.
E agora, aqui o temos, vazio
para sempre na paróquia de seus achados
e perdidos.
É o homem: fala e despreza a resposta;
seu tempo se esvai no prazer
de comer o trigo
e ruminar a guerra.
6
Nasceu sem uma explicação formal
que se ajeite à clareza do teorema.
Enigma? Só se for o enigma do rato
dentro do queijo.
Sabe que não pode ir além de uma gueixa,
o seu mais remoto mistério em germe;
poderia talvez decifra-la
mas para isto precisaria comprar bilhete
de ida-e-volta
(passando por São Francisco),
e depois de um cochilo, aquém do Oceano Índico,
chegaria ao zebu, ao ex-mandarim,
ao quimono de Tóquio
Simples? Façamos a prova
aqui mesmo
na praça maior de Uberaba.
E mais barato.
7
A dois por três se complica,
não é filantropo?
Quer o Cáucaso no bolso e não espera
que a águia de Prometeu caia morta de sono.
Bem visto, é também aquele rapaz,
o herói das pedrinhas
levadas pelo morro arriba
(tem o hábito, hippy,
de cultivar heterônimos).
Mas –
terá morrido?
180
Pergunto porque,
com o último arranque de Maiakovski,
todos os mitos bateram a bota.
Não! vive. Tem
a máquina e a máscara
a perna do saci – a que
lhe foi roubada, ao saci,
por um preto velho, em noites do Valongo. E tem
a mesma noite por esmola.
Tem o mosquito do Acre
e o guano do Chile, tem o provável
fosfato de Vênus para os miolos,
quando as aporias do último Platão se fritarem
na soja, para o repasto, tranqüilo, do meu caro
Major.
E então, Zebedeu, que é do teu?
Vamos a Paris ou a Bariloche?
Ao paraíso estomacal de Cambuquira
ou ao mármore funéreo de Mar de Espanha?
Depressa! vamos de jato a Marselha, atrás do rabo
da gata.
Com o poder se empanturra de pílulas,
computadores, atores unissex, visões oníricas
(Hollywood debaixo das pernas), o azul de Astorga,
louras de Erexim, o cabaré senil de Larache...
Com o poder passa pelo filtro das nebulosas
sem que lhe vejam as fezes.
Já não cultiva o latim, nem mesmo
tomates. Estuda – numa ampola de vidro
a neurose das rosas.
8
Serviria, o que serve, para o servente?
O uniforme de ferro se forja para o sargento?
A flor de Angustura se põe no ventre?
A xícara de pez se toma como sorete?
Onde puseste a manhã, ó sábio de Catuípe
enrolado na folha da bandeira?
Pensa em Calígula, pensa em Anaximandro,
no guerreiro-poeta comendo tâmaras
e matando pulgas; pensa no elixir em que não se pensa
para o estômago azedo do infalível computador.
Um estouro.
9
Fecha o caixão, o hiato, a porta. Volta
a fingir que vive.
Espraia-se nos largos celestes.
Come sete ovos de codorna e bebe vodca
ao lado de Villon, o bêbado mais triste,
mais triste que Françoise, modista
de um senhora apelidada Flor Triste.
181
Assim como existe
o Cavaleiro da Triste Figura,
um feto existe, de espada `cinta,
que se exibe, e não chora, no côncavo
do chiste.
Animal do tarde,
não larga o poder nem para dormir;
o poder na mão é o seu
existir.
O poder é o seu mais ébrio
uísque.
II. A BRASA NA MÃO
Viver no ácido
Viver no ácido é o meu sistema.
Não que o tenha construído
eu.
Recebi de presente, não sei como.
É um modo de morrer se esfarelando.
As vísceras
As vísceras me transportam
sou mesmo sangue
o urgente da sede
na véspera
do estrume.
As vísceras madrugam
ao menor sinal de marha.
As vísceras são triste
(veja o amor em ato).
As vísceras em mim, as vísceras
na estriaa, na fibra de um nome.
Das vísceras, o abismo
em que não me descubro.
Uai!
Uai! é o que se diz, se o tempo vai
ou fica preso em nós, e lastimável.
182
Uai! para a manhã, o outono, o espasmo,
para os muros da infância e o amor sumido.
Dizer uai! uai! agora, e nunca
dizer senão uai! aos que fugiram,
tempos do mesmo uai! desirmanados.
Agora
Amanhã será tarde. Venha hoje,
agora.
O amanhã não existe na rosa
ou nesta vaga.
Amanhã será tarde. Venha, mas
agora. Não estaremos lá, eu e minha espera,
no amanhã – tão tarde.
Odelouca
Eu queria ser hoje como os outros,
comer, dançar, ir para o trabalho,
mas não posso.
Achei Odelouca, não dá para sair.
Odelouca, nome de indefesa cidade,
barco de papiro,
borboleta das matas de Coromandel.
Odelouca talvez o fim,
menina polaca nascida no gueto.
Onde respira, onde trafega
Odelouca, mulher que não procurei?
Morava outrora num país ortográfico
nua sozinha
e agora não me deixa sair
viver como os outros
dar aulas
tomar sorvete
comprar um par de sapatos e uma escova de dentes
no Largo do Calhariz.
Já sei: podia ser a forma incorrupta,
mas Odelouca se demite; sereia de plástico,
suspiro de gueixa nas Baleares,
oh como ficaria bem no cio da gata.
Gume
Nas asperezas do i
construo a minha ciência:
pouco dormir, vaga sabença.
Nos enredos do esperto
no olhar devasso
de ciência rara me embebedo.
Espinhos de cacto
arranham a vista. O sono
dorme no grito extático.
Eu disse: no gume do i,
abismo expectorado
pelo soturno,
183
não durmo.
Tasca
Ora bolas, rapaz. De que tonel
beberemos agora? Já não quero ser rei.
Fui milionário três vezes por uma semana só.
O olhar de meu avô descobriu a cantina
valeu-e uma ânfora de barro
mas na garganta o vinho se encolheu.
Ora bolas, rapaz. Tudo se acaba um dia,
aqui ou no Arco-de-Val-de-Vez.
O Czar soube disso. A rosa é que não sabe ainda;
nasce cada manhã num verso que o poeta estragou.
Ora bolas, rapaz. Não me diga o que pensa
ou não pensou fazer.
Deixe-me afogar em coisa alguma,
e acabou-se.
Tudo é nutrição
Em nossa condição
tudo é nutrição.
Este apenas se nutre
de raças finas, de cores
sem mistura.
Aquele, de religião.
O escuro se nutre de alvas
o claro de escuridões.
É sinfonia dispersa
a nossa mastigação.
Lívia se nutre de Antônio
o boi se nutre de Azul
o crivo nas mãos da fome
se nutre da própria fome.
A nota-de-banco se nutre
do veneno que suamos.
Tudo é o ão da nutrição
o amor se nutre de sexo
e até de sonhos se nutre.
Fora desta nutrição
vive o poema, que morre
se não lhe damos Ofir.
Poemas, de que se nutrem?
De poesia algumas vezes
como o Diabo se nutre
de Deus, quando Deus existe.
Elegia de hospital
Os ossos sob o lençol,
digo,
as lâminas da morte
cortam as últimas amarras.
184
Mas o navio não larga
resiste o navio
o navio que ficar no cais
o navio que não partiu na quinzena primeira
o navio que deixou paradas as hélices na última hipótese.
Já não há mais sangue
não existe o que antes
a carne movia.
Debaixo do gesso,
rainha (pálida) de outra aurora,
Maria resiste à carícia
da morte.
Soledade
Cem parelhas de bois; cem mercadores núbios;
cem prostitutas do Mangue, há muito enterradas
na areia de Copacabana; cem lagartos de língua
pensa; donzelas (cem) com os seu véus e a sua
gula de mais vida; cem velhas de Erexim nas pirâ-
mides do Egito; cem loucos furiosos e cento e
dez besouros num só quarto. Cem magnólias ao luar
de algum lugar; um são, um sapo, um sapo.
E o homem?
Multiplicação
Imagino com que lâmina cortar o impossível
no diamante.
Em quantos discursos dividir o lameto
para cobrar a resposta
infixa no ato de viver.
Imagino quantas romãs na mesma boca
quantos gemidos no Cáucaso
oh quantas tardes
no teu desmaio.
E quantas asas partidas
num só orgasmo.
Fruto podre
É o que digo: a luz se acabou
na minha mão. O barco não chega nunca
ao tempo-será.
Os ódios sobem do chão para o conforto dos arranha-céus.
Desligado dos meus olhos
o girassol flutua.
Mas tenho horrores para dar e vender,
principalmente vender; ao milionário de Zurique
vendo o herói que mataria a sede
da mulher de Urias no leito do Rei;
vendo o fim do mundo
ao repórter da guerra futura que sobreviver
para contar
embrulhado no seu jornal
(o fruto podre).
185
Ao escravo
Caminho desde a aurora, conviva
insciente do necessitado e do aflito.
Estou seco, álgido, positivamente
acabado.
Se me sobrar tempo
vou para o convento.
Agora, não. Ainda possuo de meu
três estampas de Santa Cecília
um par de lunetas antigas
o ontem que se desmancha
num velho urinol de barro.
Não tenho a vista, o gosto, o olfato
de um chim da dinastia Ming.
Tenho o bocejo e o escarro
para depois do teu almoço,
ó meu prudente escravo.
O país
Por entre ribas o país dos gansos
subsiste. Vem da incerteza
aberta às promessas de um som,
Um som (será) na leve
imaginação do insólito guri
entre bois, carrapichos, gansos de bico
ao sol, no terreiro. Os cafezais
suportavam a luxúria,
o vagido, o pavor das tocaias,
o caminho da senzala às branquitudes
deitadas na espaçosa liberdade onde o sexo
apertava a garganta.
Era o mesmo soluço,
este que esparramo pelas estradas em branco.
Um soluço, a força dos brutos,
e esse país na sombra.
Navegação costeira
Não é lagoa, nem nuvm,
areias, não são. Ah,
são montes de cacos de vidro.
Deito meu coro na paina:
é um caco de vidro.
No sôo, tenros gamados
do País Bsco; em vigília,
montes e nuvens
de cacos de vidro.
O dia já vem estou perdido.
Cortei-me por dentro, por fora,
na pele, na língua,
Caco!
Depois
186
sigo o traçado, ora essa:
navego no mar
dos cacos de vidro.
O defunto
O pijama suado
esconde no armário
o trabalho da morte.
Deixou nome, deixou filhos,
deixou casaco de couro
e pote na brilhantina.
Deixou pátria, deixou cheques
(serão pagos, não se assustem),
deixou bermuda vermelha.
Deixou ainda:
sabão (escasso) na pia
máquina de barbear enferrujada
livro aberto
boca fechada.
E ainda: cuecas
sapatos de rua e de festa
um colete azul-ferrete
a caspa
o cheiro
os pés inertes.
Na conta corrente encerrada
(veja briga da família)
um corpo lavado
que tarda.
Não chegaremos
Cansado de esperar
que isso aconteça
os ombros me pesam
voa-me a cabeça
estou sem apoio
de chão ou de nuvem
queria chegar
mas não chegarei.
Não chegaremos, não.
Multinacional
Depressa o fato.
Depreco ao forte
liberte o cão
e mate o gato.
O pato que pague
a sanha da águia.
Bebo uísque escocês
no sangue dos mártires.
Deponho no oco
do lucro
o meu engulho,
fraco.
187
Valsa de São João del-Rei
O choro de manhã cedo
a mocinha no caixão
a pavana da marquesa
a mina de ouro que nem sempre
vem.
O homem no ouro se enterra
a fruta no galho me aquece
a noite me traz a prece
comprei a roca e o vestido
comprei a mão para o anel,
roubei um planeta louro
à poesia do ouvidor,
comprei bengala de ego
não contei o meu segredo.
E a vidinha que se foi.
Fora de mim
O que fora de mim
não se exalta, mas aterra,
é pouco:
um punhado de terra.
Com essa avelhantada
coisa
rimo o abstrato
em que me ab-sinto.
O que fora de mim
persiste
é o limite
que não fiz.
O fim que não pretendo
ter, mas tenho preso
ao meu umbigo.
Implícito
Corpo fora, corpo dentro,
qual o meu ofício?
Este de absorver
os mortos
nossos e alheios,
encher de nada a aterra
e ainda este:
assumir o espaço
entre blocos de argila
demarcado.
E não viver
o que (vivido)
há de ser mais desejado.
188
III - SISTEMA DO IMPERFEITO
Ode à comunicação
Tu, João, e tu ainda sem nome
no ventre da peixeira de Olinda
e eu próprio
estamos condenados ao resto.
Secaram-se os jardins; em compensação,
temos a sombra da flor, o que baste
para a ilusão;
e a roupa no varal faz a ginástica
do corpo morto;
e o ser inquietante da letra de câmbio
nos trai em mil portos
(arame farpado).
Buscamos a carne,
eis o esqueleto.
Não, João, homem pequeno,
homem ninguém da silva,
não adianta fugir, se nos prendem
laços de infâmia em fórmulas de plástico,
o invisível no centro desse jardim
onde não cabe a inocência da árvore.
Quere que façamos, abaixo dos sãos,
o discurso sem solda, sem ímpeto, sem lume,
querem que sejamos o computador da neutralidade,
túmulo de sons inarticulados que ninguém penetre
189
completamente; que ninguém possa entender,
aquele entender solidário com o mito,
a única, talvez,
paixão limpa do homem.
Foges? Eu fico.
Não desistirei da tua, da minha explicação,
agora e no fim do entrudo,
enquanto houver a fonte, o fogo, a sorte,
enquanto o último homem
tiver aberta a sua chaga.
O doente
Doente de poesia
não tem alívio nem cura
a menos que se interne
sozinho
no espaço incriado.
No diamante não serve; é
demasiado claro.
Convém-lhe o resguardo
dos recém-nascidos:
olhos no escuro
vômito contido.
O mais é deixá-lo
gemer à vontade.
Saia o poeta
O poeta canta ora com os beiços ora com o nariz
canta a semente abstrata
canta o nome no colorido da fome
o poeta canta os seios, não canta o amor,
canta o cadáver, o grão de areia.
Na montanha, palácios, ternuras
de comprido nariz, corredores abertos ao pavor,
e lá vive, oculto o cantor.
O cantor da matéria envergonhada
o cantor das formas enlatadas
o cantor da flor que secou
o cantor de terra nenhuma.
O poeta, que saia o poeta
da casca de noz.
O poeta que cante as traças de Elvira
o poeta que cante a manhã
o poeta que cante os cães, os telhados de Burgos
na revolução, os mágicos fora do circo, os puris,
os melodramáticos com anéis de brilhante,
aviões particulares e fins-de-semana em
Samoa.
O poeta que cante a mulher e a pílula
o poeta que cante os pulgões da couve
o poeta que cante o sifilítico
o poeta que cante o átomo, a retina do aviador
o poeta que não cante o poeta opaco.
190
O Logos
É difícil.
O Logos se constrói na minha cegueira,
punhal do caledônio
de Esmirna;
constrói-se na montanha-russa de um impossível
constrói-se como se destrói;
tanto faz
tanto faz não fazer o necessário
como o impossível.
O Logos se constrói? Antes se construísse
a ponte das Aleutas
para alguma parte não prevista
do mesmo Logos.
O Logos se recria em mim
(a camélia
o dervixe
o centauro,
a donzela
do mar do norte).
O Logos do ritual em que me afogo.
A falta
Por isso não serve
por isso não acerta.
Falta uma nuvem
na claridade molesta. Sobra
a música do anapesto. Falta o verso
de Homero, de Drummond e de Horácio?
Falta um verso
por ninguém decifrado.
Pois é claro: só o miserável do verso
nos daria o impresso
na face do escuro.
Fora com os lógicos e os compassos
de medir poesia. Chega
de intenções floridas. Isto precisa
de um verso mandado pelo enigma.
O raio que Mallarmé gostaria de decifrar,
antes, gostaria particulièrement de ser. Um clarão
além de Kafka e dos cafres,
o mago que desvendasse
os curdos e o Acre,
a estrela no poço, a vaca no muro
de Berlim berrando dores revessas,
antes de Nietzsche e de Eva.
Um clarão sulfúreo
nas barbas do enfado.
Venha, ó poesia por quem os bichos esperam,
fogo perene, segredo da besta,
mistério sem face, o simples que aterra.
Lirismo de computador
191
Nos paralelos os nexos,
anões nos meridianos.
Somos muitos, andamos
o mapa-múndi.
Tê-la em mim, ausente,
não é milagre nenhum
que se comemore em Paris
entre o Péricles da Silva
e o Platão, digo, o Barão
de Espera Feliz.
Vivo em desgraça, entre os motores
de trezentos autos na Place de Voges...
E a Teoria de Euclides, Belkiss?
Embrulho o passado em papel carbono;
Aranha, subo pelos meridianos.
E os nexos, complexos?
É evidente que me desiludo.
Prosaico-voltaico
De mitos, claro, se ordena o mundo.
Na sua garupa resistimos ao prosaico.
Ao que no insosso da vida nos separa
e modela. Pois, na ordem dos anfíbios a que fugimos
(de tudo um pouco), somente nos permitem
o frágil na razão duríssima.
Prosaico fui, pretendendo
reduzir pelo amor. O prosaico do sexo
que amor se chama, aparece na fome em que imerge o delírio
da cama – dois travesseiros arquejantes.
Fechemos a boca, fechemos o poema
Prosaico, no ar revolto
em que despede chispas.
Vou trancá-lo no escuro.
Prosaico?
Tenho pena.
Melhor seria
deitá-lo sobre navalhas abertas;
o poema se quebra
nos enleios e painas
da facilidade.
Poema é arroto; do podre
vingam as pétalas, Hafiz.
Transigir não transijo.
Desprezo o poema
De ares distintos, de luvas, gravata
e perfume francês. Quero-o
macho, de chapéu de couro
e boxe inglês.
Do muito vivido
no prosaico
hei de construí-lo com o barro e o sarro,
vidente sem futuro
(o olhar de vidro da ausente
Maria do Carmo),
192
mas hoje e sempre
poema sem pano de boca
nem árias de arrocho.
Poema voltaico
soluço de louco.
Profecia
Fecharei tudo, menos tua boca;
já não sinto o teu grito,
que há milênios repetes
o mesmo lamento.
Deixarei, é claro,
à margem do balanço
o teu malogro de animal do tarde:
não teres soprado
sequer uma folha
no oásis.
Fecharei o armazém dos teus remorsos
(lavaste o negro?)
para avaliar o alcaide.
Do verbo apodrecido
jogo para o Demo:
os enfeites do estilo
entrados no cofre
com rima prolífica,
ou, pior, a falta de lima
no teu milésimo poema.
Decidido. Fecharei portas e tretas
fecharei janelas e frases.
Palavras pejadas de azinhavre
não servem ao homem
(aos ratos, às moscas).
Fecharei teus negócios e teus sonetos
a fraude no coito
a casa de El Grego
o ersatz do bronze
a idéia bipartida: um olho no papel
e outro na Lei.
Fecharei a escrita de partidas-dobradas;
depois mando para as profundas
tua língua de trapo.
Guardo para mim
a esperança que arde:
o poeta já vem.
Ouço o seu choro
na placenta de vidro.
VAI-TE
Vai-te, vespa do enfado,
pousa na orelha daquele faquir de opereta,
se não vieste de lá.
Põe, depressa, os ovos da náusea
na rendida cabeça
do último rei.
Vai assistir, com os derradeiros
Micróbios de Koch,
193
ao festim de Musset; hoje o poeta
dá um festival de soluços
nas Ilhas Malvinas; espero
encontrar-te por lá.
Vai, vespa do enfado,
contempla no espelho de Oz
o caixão que já foi berço.
(Se não fores, com esta matéria
farei um soneto.)
Camoniana, 2
Amor feito de tudo, amor, que ama
Amor que é onda , amor, e pede o mar
Amor que faz do turvo, amor, a estrela
Amor que toda a noite, amor, clareia,
Amor que não se peja, amor, de amar,
Amor que prende a flor, amor, ao fruto
Amor que embora muito, amor, é pouco
Amor que é teu senhor, amor, e escravo
Amor que sem amor, amor, não vive
Amor que te suplica, amor, o amor.
Ferida
Abram a porta,
ela precisa entrar
para ser tratada.
Sim, parece nada,
mas, na linguagem, toda ferida
é grave.
Nos olhos? Na espinha? No sangue?
Não descubro onde; mas parece
Grave. Pode ser mortal.
Cuidado. Pode virar
câncer. Não será, de nascença,
um mal incurável?
Vejam bem. Feriu-se de noite,
na ultrapassagem do som?
Oi foi, no claro, sem ver
o perigo? O muito claro
não lhe serve nunca,
se a linguagem pretende
chegar à poesia.
Cuidem bem dela;
tenham paciência.
A linguagem se aviva
Com poucas palavras.
As precisas.
194
IV. DOIDULISSES
Doidulisses
Saiu de casa farto de si mesmo
viu-se diminuir
empobrecer na calçada. Um velho de óculos
agitava campainhas; foi conferir,
era o sal daquele caminhar autômato.
No corredor, de novo as campanhias,
no banheiro, na máquina de escrever,
no elevador, até na garganta da moça
(copiava, aérea, um extrato de balanço).
Campanhias públicas, campanhias secretas
como as mulheres de Ogum e de Rilke, mulheres
debruadas de gela nas intactas cidades do gozo.
Saiu de casa para tudo isto. E a ninguém pergunta
para que tudo isto.
De volta
Ancora o pasmo no miar do gato
junto ao muro. Mergulha para achar o ácido
na campanhia do submarino. O fundo mar o cospe,
e ele insiste em viver no teu guizo. Mas não pergunta
para que tudo isto.
Contabilista
Mal o dia me aparece
acerto as contas com o dia
vergo as cadeias da aurora
195
conto a avareza e o suspiro
somo caudas de vestido
e seios de manequim:
faço prova, invento um metro,
um astro, conto as vias do desejo,
engulo um bisturi.
O dia, animal cansado,
cheio de feridas (que conto) e de pasmo,
apodrece em mim. Mas faço contas,
não paro. Meço o tapete inconcluso,
o raro nas tranças de antiga fazenda de café,
à beira dos rios
(de Abre Campo ao amor finito).
Conto as espigas na tulha, o peixe no lodo
do açude, o berro dos bois, a areia, os piolhos.
Contando me liberto
me disperso
me escravizo.
Enquanto
Enquanto escrevo o poema
o homem trucida o homem
o gato persegue o rato
as cidades se esfarinham
enquanto rastreio a imagem
na roupagem do remorso
Madonna Laura concebe
do vizir de Carangola.
enquanto Lívia solfeja
o governo se depõe
recompõe e descompõe
enquanto fisgo a metáfora
Baudelaire, morto de câncer,
renega o tango argentino.
Enquanto busco a poesia
fora do sonho concreto
minhas estrelas do mundo
viram harpias do dólar
e vendem refrigerantes
enquanto procuro um nome
Otália fica banguela
de tanto beijar os santos
na fiúza de casar
com Delvaux (ou Serafim).
E enquanto assopro a paixão
no peito
sempre sujeito
nossa vida se esboroa.
Fica o tacape do bugre
e o saber dos mandarins.
Fases de abril
Estou em abril. Nas minhas fases
de abril. E os críticos
196
dirão: “Em setembro...” Ora,
opiniões não importam nada. Eu sei
por Jove e Lancelote, por Maria Barkstsef
e João Batista da Silva Leitão de Almeida Garrett,
senhor de Vênus e Patagônia, Reino de Aracati
e domínios da Farsália;
sei pelos anjos moídos na Guerra do Vietnã
pelas janelas fechadas de Miraflores
sei que abril chegou (nesse ar, nesse cheiro, nesses
cabelos outrora na praça, a um suspiro da boca
fechada).
Explicarei ao menino suicida
ao galo firme no poleiro
aos faraós de Convent Garden
ao cachorro estirado na mesa 32 do Laboratório Minerva,
ao último Senador, ao primeiro Árcade e seu apelido latino
- a todos direi: Estou em abril,
perdidamente nos arrepios de abril.
O boi de março e sua baba
o girassol de maio e sua estrada,
o cacto – bem, este me segue de janeiro a dezembro.
Mas estou em abril, não confio nas coisas
de agosto, nem de janeiro, o incerto
pendente da sétima corda (a última) do sol.
Estou nas incertezas de abril, envolto no tênue.
Matemático do antialgarismo,
subtraio agosto e maio de uma janela,
dois sorrisos infantes,
a moça no trapézio, o tigre de Bengala.
Se fosse em outubro eu nada faria
mas estou em abril, tempo haja
para se construir.
Construo pontes de prata no Mar de Espanha
refaço o largo das acácias em Tebas (de Leopoldina)
projeto um fauno chinês na pia da igreja de Santa Maria Maior
construo a desgovernada
metáfora que não me exponha.
Mas então, se estou em abril é mesmo para valer,
não acham? É a estação em que desfalecem
as petúnias, não as vergonhas
da Rainha; os Rajás vão à caça
nos cafundós de Goiás; o Senhor Bispo
pede uma Ave-Maria e cimento Purus
para o seu jazigo.
Estou em abril. Nas minhas fases
de abril. Não sei o que faça,
eu sozinho, na semente da árvore em que me enforco
por bastante procuração de Rimbaud e Villon.
Em abril tenho a coragem, que lhes faltou,
de morrer para sempre.
À espera
Coleciono perdidos. Tudo serve
197
aos meus achaques. O uniforme azul,
o beijo partido, a luxúria sem asas,
a menininha de tranças,
o amor / suspiro na fonte, o punhal turco,
os pombos degolados no fundo do sono,
o tempo repartido em dois:
ontem, Chimène a caminho do pranto,
agora, os netos de Chimène,
a não apagada
pelo mata-borrão (havia lágrimas).
Tudo serve.
A esfinge na febre,
quero decifrá-la; tenho dois corações
num saco de plástico, à discrição do amor,
para o nosso próximo encontro.
Espero-vos, senhora, de preto,
numa rua de Fez.
Discurso comemorativo
Tudo se deu fora de portas.
Foi proibido, mas venho dizer:
fora de portas, entre mangueiras, perto
das fontes do medo,
muito aquém da ponte; ali floresceu
a carne.
Gelada carne, lua de agosto,
baladas não ditas (antigamente). Sim,
tudo se deu fora de portas.
As ruas eram terríveis.
Negras, de piche, as ruas da noite
não davam passagem. Cães de vario tamanho
e dentes certos ladravam. Ladravam, humanos,
pregados no ventre da morte.
Aconteceu fora de portas, mas
não me compete dizer exatamente como se deu.
Aos cegos de todo, esclareço:
fora de portas, não muito
distante, ah muito perto das praias
da morte.
Canção alvar
Sem pernas busquei a fé
desperto busquei o olvido
estou preso pelo umbi-
go ao próximo finito,
andei bazares e aldeias
(desfrutável peregrino)
refiz meu canto à passagem
da mulher e do menino
bati o duque de espadas
na calada do destino
à razão não fiz perguntas
no sonho cavei possíveis,
mas não sei por onde vou
ou se existe outro caminho.
198
O pior é que me foge
esta terra e este vinho.
O pior é ser o eu vivo
Em que morto não me explico.
Tríptico da solidão
1.
A solidão, velada,
Por três lados diferentes
se deixa ver e pegar:
a face da pedra
a sombra da flor
e o nada
no ar.
A pedra esmaga
a flor embriaga
o ar nos deixa passar.
Passamos para o mar alto
para os equívocos não ditos
muito para além
da fome insaciada.
Se atingimos o outro lado
(que ficou por mencionar),
a solidão se desfaz.
Mas olha, cuidado,
a face da Alba
fica muito além do mar.
2.
Anjo de barcarola
não tem copo nem voz.
Se digo ao peixe: “Pára!”
e ele deixa de nadar
é que mergulho por inteiro
nas águas do adivinhar.
3.
Não me convém prosseguir
com os pés de outro vivente.
Com os meus caminho difícil
- é muito mais provocante.
O gosto de vida é pouco
para dele se abrir mão
Amanhã pretendo dormir
no ar, no peixe, na paz
do Mar de Azof.
Sozinho, na solidão
velada.
Falação
Falo de uma vaga
para outra vaga,
desta janelinha
199
para aquele vau,
do camelo arfante
para o Monte Nebo,
falo de um jardim
para ao teu deserto,
da fonte selada
para o mar aberto,
falo como os touros
que não dizem chus
nem bus, falo aos gatos
dentro dos hiatos,
falo ao teu dentista
falo ao jangadeiro
falo ao curtidor
falo sem polícia
falo sem matéria
falo sem palavra.
Bojarda
Digo – Bojarda, e me satisfaço,
que é fruto, sombra
de muito arder.
Nasceu ontem, das pisadas da hidra
na rocha de Gobbi, ou da flor esquecida
nos confins da Anatólia
- não sei. Apenas digo:
Bojarda, desponta a vida,
O fogo destrói o feio, o torto, o aborto
barcos em flor, na lama,
ficam brancos.
É isso. Bojarda, sangue e mel
dos dezesseis anos, nasceu para eu dizer
seu nome. Bojarda comigo,
palavra ou fome de aurora, náusea talvez
de mim mesmo, signo do que não se fez
para eu beber, morder ou repelir.
Bom dia!
Visco
O gigante nas suas botas de Sete Fôlegos
apenas um gigante
não tem grandeza nenhuma.
Grande é o pigmeu que mata o gigante
e morre de medo.
Grande – o pobre que morre de fome
no seu segredo.
Grande – o noviço que esconde da brasa
a alquimia do sexo;
a flor que cheira no ar
e bebe no esterco.
O gigante nas suas botas de Sete Fôlegos
ignora do deserto do não.
O gigante ilude apenas a morte.
Enquanto
o avesso das botas de Sete Fôlegos
200
quer o sim, o decisivo sim
que omita o milagre, extraindo do amor
a doçura possível.
O avesso que ver
além do alfa, além das nuvens,
o que não sabe.
Nos olhos de Plotino ou de Doña Carmen
nos dias muito aquém do mago
dentro da rosa
sem o átomo, sem o sabre.
De-comer
Fora do banquete
onde comem fartos
é duro comer:
chia nos dentes
a carne abstraída.
É duro comer
a pedra de sal;
o vento, no olfato,
tem forma de bife.
Triste de-comer
fora do banquete.
Os fartos se dão
As mãos, e comem
(as selvas da fome,
no bolso, perdidas).
E comem. Comem
de noite e de dia
na infância do mito
nas teias da bomba.
Comem presentes,
comem ausentes,
comem pelos que não comem,
do lado de dentro
dos fartos que comem.
Poema que emprestei
O que é do homem
o bicho não come.
O homem consome
o bicho, na fome.
O mar cobriu as angústias.
Na casa de vidro
um grito: O que é do homem
o bicho não come.
O bicho tem cama
não tem vícios,
tem cio, não isso
de nas palavras sofrer o não visto.
201
É bicho, e não come
a ilusão do homem
o bicho.
O que é do abismo
a ponte não doma.
Balbeque
Sobre minha cabeça um arco se desvela.
Solto no ar, o prisma não conhece
a servidão em que mergulho.
O horizonte, fulvo, está contigo
em alguma corola por nascer.
O fado não transige com as adulações,
As róseas espumas em que deitamos o mito.
Nosso destino está naquele prisma
naquele ar sem matéria em que se pegue.
Vamos, cegos, agora. Inviolavelmente cegos
como esta areia, esta pedra cativa da coluna de Balbeque.
Cabul, Dabul
Cabul, Dabul, Dabul, Cabul.
Repito para mim mesmo, da lágrima ao sarcasmo.
Repito de Carcassonne a Trouxemil.
Repito aos meninos presenteados com pulmões de plástico,
às lagostas do próximo restaurante lunar,
repito a magnólia não florida
no Golfo de Zuiderzé, onde um rei caduco
devora as entranhas do Bispo de Sedliz.
Com estes nomes, Maria, tua ciência de afagos
cria a fonte, a peste, a caverna
dos bichos lúbricos, o telefone em Marte,
a virgem de Sagunto (sem pernas, sem olhos, sem sexo,
polia desgovernada numa tarde de chuva. Havia mui-
tos turistas ingleses, a polaca de olhos roxos,
o sábio de Iço, as inscrições fenícias,
três perus nadando no vinho).
Ah fogo no Recife, em Tóquio, na Birmânia.
Chuva de iras, de leite não.
Bombas e raios, na sinagoga de cafarnaum,
purificam as mesmas pedras que negaram ao Mestre
a ocasião do sorriso.
Cabul, Dabul. Dabul, Cabul.
Repito para ser ouvido no irrefreável do vômito.
Sem resposta, interno-me na floresta de Londres:
vou caçar no barbitúrico a mulher que fugiu da rosa,
do afago,
da amiga.
Aqui jaz em Cabul, Dabul.
E ninguém para lhe dizer: Rainha!
A velha donzela
A velha donzela, por ninguém chamada,
desce da montanha para se vingar.
202
Electra sem pai
Electra decifrada
Electra em duas partes
Diminuta.
Electra baixou das nuvens
montando um cavalo de asas
Electra vai ao mar alto
no segredo da espuma.
Electra, ó velha donzela,
em que onda maldita
tua ira se espraia?
Electra não responde.
Electra baralha os astros
Electra não deixa a infância
Electra não ouve o canto
Electra não quer as fontes
Electra se basta.
Do amor ao ódio
a velha donzela
espera.
Cantar de picardia
Não me importa nada
que você não saiba
onde mora a bruxa.
O verso, goliardo,
não se faz assim.
A noite o sabia,
as cabras no monte
sabiam também.
As formas impuras
São o meu caminho.
Empestei as almas;
nessas doidas águas
lavarei ao menos
o delírio?
Gente da cidade
deixam suas casas
vão para o deserto
querem ver a sombra
de um cadáver triste
vão buscar a lepra
vão morrer além.
Não me diga nada
não em conte o negro,
o verde, o seráfico.
Venha o fim de tudo,
Venha.
Agora
já não sinto nada.
No lombo do boi ápis
203
O vértice do orgulho
minhas fogueiras acesas
o descaminho que somos
o carinho dos tímidos
o descamisado sem caminhos
os cegos de camisa
as fronteiras com divisa
a meretriz com o juiz.
Ofélia, a malferida.
O ápice do entulho
a tortuga na poesia de Neruda
faço que não faço um prefácio
o prepúcio do medo
a solidão da crápula
o nariz da polícia
a boneca no banho
o luxo, a azia, o camelo.
Truncado
Perfeito: o mar sem peixe
a roda sem o eixo
a espera ao relento.
É triste. Faltam-se a crença
para dizer o certo,
a boca direita para contar
o resto.
Morro num deserto
habito o inexato
move-me o braço
do bugre no mato
dentro.
Carência
Ah os longos vazios, onde nem as palavras
me ferem. Os vazios como os próprios túneis
do neutro. Que flores, tão longe, poderão renascer
de modo que eu as veja? Passou
por aqui um vento gelado. Falta-me uma guia
nestes vazios. Falta-me a sevícia do amor,
o tato experto, a carícia da seda e da pele.
Ah os longos vazios
polpa sem corpo num fruto de sonho.
O Fastio
O fastio de não sei onde
o fastio no embuste da vida adiada.
Aqui são os quintais; lá dentro
na sala de recepção fulgura um esqueleto de prata,
e um leque de plumas de pavão abana
velhas barbas, sem parar.
O fastio que enterro nesta caixa de ébano;
examino, é uma pequena concha que esqueci no fundo
de um mar de piche. Nada semelhante
204
ao que dançava no azul do Bojador
para o poeta eqüestre.
O fastio de te fastio de tudo que foi meu
E teu, um fastio como esta luz,
dinossauro imemorial – e a baba violácea
na brancura.
Ciência
Procurei lá fora,
estava aqui mesmo.
Moeda para o outro lado,
Reluz. O orgulho da obra acabada.
O veneno.
Levei decênios a imaginá-lo
a combinar asperezas e gritos.
Afinal, achei a substância.
Achei-a! aqui está, neste grão
funesto.
É só engolir e esperar:
tudo não passa de uma vaga de cio
a bater na rocha: o escravo
que se dilacera.
A ciência dos antípodas
um dia virá explicar o enigma.
Quanto a mim, só sei
que amanheceu;
sumiu-se o porto onde eu devia
desembarcar além.
V. ULTRAPARTICULAR
O Lingüista
Bem, vieram os filhoses, ou as filhoses,
que não tenho posses
para tantas nozes (são passas)
neste pacote, nesse pacoz de passas
onde dormem os filhos e netos
das filhoses.
Tenho filhos de posses e de tosses
filhos ases na paz dos bares e nas
pedras dos lares onde os nenúfares
são arcaicos sujeitos estelares perdidos nos Sete Mares.
Vieram. Venham os filhoses e as filhoses
ao banquete dos melhores e dos piores.
Comeremos condores e depois filhoses.
Comeremos estrelas que não pesam nada,
na treva são cores. Comeremos terra,
alimento e segredo
da dinastia dos filhoses.
Sic. Loco citato. Ponto final.
205
Lírio e Pranto
I
Lirismeu
O dia, lirismaninho
nenhum verso me quer dar.
Onde está o lirisminho
do velho lirismizar?
Lirismelzinho recusa
O fel na vida de breu.
Onde ponho o lirisminho,
Ó lirismeu?
O mar, tão lirismarinho,
o mar, vaidoso, o escondeu.
Vou cantar lirismiudinho
à falra de um lirismeu.
II
Mãos sujas
Mia, obra,
mana, obra,
no Absoluto.
Não me abra,
Minhobra.
Quero o escuro
impoluto.
III
Amorema
O amorema é a tua arma
na arena do amor ermo.
IV
Oração
Jesus além
de
Jerusalém
Amém.
V
Minuano
Sensação de fino
frião de fio
afiadíssimo.
O gelo passa
206
o passo trapaça.
Esfiro-me no espaço.
VI
O Biafra
Biofalando abiafrei
a banana e o frango.
Do Biafra orféico
orangotango
argentino de Manuel
Bandeira.
VII
Camilo
Ontem fera
era ontem
luz no fonte
anteontem
choro infante
doido amante
no romance.
Trás-os-Montes.
VIII
Diálogo
Não te falo, e tu me matas,
não me falas, e eu te mato.
Chegaremos juntos, depressa!
à humanidade abstrata.
Viagem do som
I
Cincerro
Cavalo do Havre
cego de Peniche
uva de Erexim
pombo de Genebra
saibro de Lorvão.
Noivo de Ermesinde
sais de Galaad
lesma de Astorga
anu de Caitité
goivo de Algeciras
estrela de Ur.
Lírio de Guarda
enxofre de Kiev
beiju de Cataguases
anêmona do Chile
207
corvo de Osasco
alfange de Larache.
A vida em Corinto
A morte em Benim.
II
Tópos
Do sonho de Clara (a triste)
nascem suspiros e cravos.
O olhar de Luísa é um nicho
a espada de Ciro um rito
Dores do Indaí no olvido
é país, Emílio?
O mate do Paraná
e uma varanda de Nice.
Elzira, a morte virgem,
no palácio do dervixe.
Zaratustra e Quincas Borba
no ventre da Moby Dick
atravessam sossegados
o Estreito de Magalhães.
Em Ferros e Santa Bárbara
tudo é velho, mineral:
geme Vovó, nasce Enock,
Justiniano e Maria
Guilhermina, nasce Sebastião Seth,
nasce Amanda, nasce
Mamãe.
Ubá, Tonquim, Tobosa,
cidades ou petas?
Nu, descansar na Trofa.
Em lima comprar um touro
em Córdoba dançar como Cristo.
Ao luar de Antuérpia, ver
em Mato Grosso os índios.
Deixar a gueixa em Pelotas
tomar o trem em Berlim
vomitar o mundo em Palos
vender a alma em pegu.
III
Sino
Ambaca Fiães Lourosa
Manila Sires Gironda
Gemude Arnóia Folgosa
Fésulas moca Monsanto.
Olhão Minorca Milhazes
Celorico Messagães
Java Leça Não-me-toque
Carrazeda de Ansiães.
Francônia Cusco Almourol
Benguela Cairo Nepal
208
Orense Vigo Monróvia
Numídia Odessa Breslau.
Mississipi Calhandriz
Guadalupe Joanesburgo
Goa Calpe Carregosa
Iço Sião Montemuro.
IV
Prontuário ortográfico
Perseu
Pessanha
Pessegueiro
Petrarca
Petrolina
Petrônio
Picardo
Piçarra
Pigmalião
Pílades
Pilatos
Píndaro
Pio
Píramo
Pisandro
Pisístrato
Pitágoras
Plácido
Platão
Plauto
Plínio
Plutão
Plutarco.
Súplica
não-senso da palavra
dou-te a palavra e o senso dá-se
à palavra doce com o agro
que nos damos
foi-se o equilíbrio
na cibernética impassível
estamos
acorrentados ao possível
oh moscas de Sartre
que arte
em Paris ou cofins
da Escandinávia
nos faria iberos - quero dizer
nos faria fidalgos no império onde nascemos
de tanga?
traga, Chomsky,
a Praga – Roman Jakobson
no ápice da palavra.
Doação
209
Ao pombo na flecha
à lama do sangue
à mulher de vidro
ao guerreiro no a-
prisco.
Ao diamante indócil.
ao amorzinho fácil
ao discurso (faço)
ao meu próprio enfar-
te.
À tua morada,
Teresa de Ávila,
ao suor no barro
ao perônio e ao me-
nisco.
Dou-lhes o que tive
e o que não veio,
o odor e o mistério
que sei.
Bucólica
A vaca imemorial
na escuridão perfeita.
Onde ponho o avestruz
inútil comigo?
A vaca imemorial
dignamente rumina
o nutrido de estrume
a beleza da rima.
A vaca no abstrato
pasta o inexato;
é uma vaca, um touro,
ou um gato?
Convite às estátuas
A forma infalível é a veste do nada
no império ultra-medo-persa:
a mulher de fraque
os cabelos de Sansão em molho pardo
a pimenta tão tarde
o som que se retarda na flauta
o amigo que se enfurnou em casa
de um Serafim; a cinza
do charuto de Havana,
a pavana, a chicana, a tricana, o tolete
de cana.
Nos trópicos o heliotrópio; a arte em Marte
compreende-se,
só não compreendo a necessidade do veneno
na bala de mais e no pão de menos.
210
Irmãos pequenos, sócios do pranto e da negativa
façamos agora o canto possível. Enquanto.
Balanço da insônia
O minuto de pasmo
o baile nos Alpes
a flor numa nuvem
a brasa na mão.
O minuto de pasmo.
Carunchos na estrela
O Minotauro correndo
o dormir no balde.
Três relógios pretos
fazem tique-taque.
Dois bigodes roxos
o sêmen vermelho
na proveta azul.
Cinco senadores
no amém de Minas
um poeta sem os cáctilos
férias em Leixões.
O trilho que se apaga
A carne que se nega.
O bispo de tanga
o sapo no cálice
a égua no ourives
diamante no vento
a pulga na Fênix.
De noite , no claro,
O dia me exventra.
Abra-monte
Três vezes sete, doze,
quatro vezes seis são dez
- a lógica do mistério
tem seu próprio nexo.
Nos trilhos do gigante
marcham pigmeus:
multiplico e divido,
são apenas três.
Trinta vezes zero
sinto que não rima:
Inês é irmã de Abisag,
a viúva?
Por isso vou ao Cáspio
lavar minhas trevas:
em águas peregrinas
tudo muda.
Treze vezes cinco
é a fórmula do chiste, ou
antes, do elixir asiático.
(Em águas do longe
o diamante se acha
no charco.)
O sangue no plástico
211
Ora bem, o plástico
tem o império da geometria,
tem sua própria ciência do raro.
Quer tempo, outro,
no impassível do espaço.
Quieto, sem nervos, sem cheiro, domado.
Não adianta pedir-lhe
a seiva, o aroma;
despreza o pão,
não se enternece nunca,
repele aqueles lábios.
Não adianta injetar-lhe
o sangue do homem.
O Limite
É um cão na forma – do rabo
aos caninos. Um cão policial,
presente de um filósofo cínico.
É um cão nas garras, no sentido.
Um cão contra todos os fatos
na rua indistinta.
O espanto de vê-lo, escravo
Submisso, a bola no circo,
o mundo girando, o osso no prato,
o prato quebrado...
É cão, e daí?
Passa um vento ríspido
passa o vento e corta.
Sob suas patas, onírico,
O mundo morde.
Alfabetar
alfabetar a cidade e o distrito
alfabetar o alfabeto ao inverso
alfabetar a máquina e o técnico
alfabetar a ordem e o regresso
alfabetar o alfinete indiscreto
alfabetar as pulgas e os pingos de chuva
alfabetar os cadáveres despidos
alfabetar os elefantes e os suicidas
alfabetar o sábio analfabeto
alfabetar o horror, as areias do nosso
protesto
Barragem contida
Os espantos bailarinos / a manhã sem ponto fixo
crocodilos de Antuérpia / o arranha-céu do Egito
a flor no rio de pez / a tília dentro da xícara
o sabiá na garganta / de um velho carrasco austríaco
a terra a todos comeu / o mar engoliu o bispo
o ouro de velhas harpas / a borboleta, o corisco,
tudo são visões honestas / não peço perdão por isso.
212
Natureza morta
O pote em cima da mesa
sobre a toalha de linho;
ao lado, uma jarra de flores.
A jarra
e o seu momento de enleio:
como ocultar do pote vazio
tamanha opulência azul-celeste.
O pote na mesa
entre caras vermelhas,
o doce de coco, o prato de queijo,
as solteironas de óculos
- o pote
não vê a gente ilustre.
Olha, incrédulo, para dentro da própria argila.
Perplexo
A face perdida no asfalto
a onda da raiva indomada
a noite pendura as bruxas
numa esquina sifilítica
as bruxas que somam tudo
o múltiplo que vale nada
tenho a certeza do não
e meio curva fechada
troco a paixão pelo abraço
em Maria, a desdeixada,
firo a palavra sem força
fica a poesia adiada.
Alvorada em Bangkok
O poder abrir-te como quem abre uma lata
de sardinhas, um olho podre, um baú de sedas velhas,
ou como quem abrisse um vidro de perfume, ou abrisse
(abro) um segredo à polícia política de Bangkok.
Isso não vem de mim, de ti, de ninguém conhecido
que se possa chamar Irmão.
Vem da fereza precisa do cão danado
não morto em Babel.
Vem da natureza ali fechada
no ventre universal
de Buda.
Barafunda
Antes que chegue
antes que se aconchegue
antes que me achaque
antes que divirja
antes que se divirta
antes que não chegue o que sempre chega
irei competir com os sapos
irei desvendar o abstrato no fosso
213
dos olhos de Dona Urraca.
Vaca!
Entre Nós
Do absurdo a poesia
vem
se a lógica não lhe tira as asas
- ou Vossa Mercê espera a poesia enterrada
no abismo
de uma cartola?
Só o absurdo pode explicar o que
a poesia jamais acabou de escolher
o que ela não quer achar
para continuar a ser.
VI. CIRCUITO DA FEBRE
Muito antes da manhã
Muito antes da manhã, o poeta,
animal astuto,
pula da placenta para ver o mundo.
As abelhas lhe oferecem
Prazeres hindus no abdômen de uma
Rosa. O poeta se maravilha.
Depois, no leito de cimento, um cavalo no cio
esmaga a distância, muito naturalmente,
com as patas. O poeta quase desmaia
de espanto.
E grita: - Onde os pró-anjos?
Mas como não existem pró-anjos, em seu auxílio
salta a cozinheira ostrogoda,
toda besuntada de óleo de baleia.
O poeta, coitado, foge para Pequim,
mas no caminho encontra o absinto
sob a forma ogival de uma polaca
vesga.
Ora bem. Toma o primeiro jato
para a Tasmânia – diziam-na tranqüila.
Ali desembarca, cheio de bugigangas,
num avião de plástico.
Animal astuto, o poeta.
Oculta no espaço
a ignorância de si mesmo.
214
Plano
Todas as músicas iguais
o sorriso pré-moldado
amores núbios no algodão em rama
um peixe seco no canil vermelho
um partido único, muito chique,
uma só casa para a humana inépcia,
no centro do mercado um só herói na praça,
um capacete, a mesma chaga,
o derradeiro impacto.
Fuso
No escuro a face
na lápide o vigário
no paço a tarântula
na garganta o anzol
no amarelo o Eterno
e depois do enterro
a música em segredo.
Redemoinho
Se me perguntassem – onde?
responderia – por quê?
Não me perguntam nada,
nem respondo a mim mesmo.
Vamos devagar. O andor
leva cem quilos de graças:
as mãos da santa são de nuvem
as asas do arcanjo pesam nada.
Onde o celeste? – pergunto.
Ninguém responde, de medo.
No encoberto / abstrato
mergulho com as enguias,
não levo as patas.
Claro
Claro:
um tapete estenido entre o não e o possível.
No atoleiro, digo,
no mel-rosado, sobre um tapete azul,
o anjo morre de sífilis
(o hospital fica no Cairo).
O boi e a lebre, calados,
papam o verde imaterial do desenho animado.
Não mais que os peixes do aquário, o espaço
elidido por uma lâmpada elétrica.
Morrer em paz na areia reduzida
na poeira microscópica,
ser apenas a cabeça
do alfinete
no espasmo do besouro.
O Ruim
Eis o que te digo
215
o não achado vértice
eis o que é ruim
o ruim zinzim
o não estar em trevas
o não ficar em mim
o não ser assim
o raro e prestan-
te cidadão de olin-
da.
Eis o que não vês:
o meu sonho escuro
o gato no chapéu
de um poeta culto
os lábios de Jacira
o ventre, o ruim
dentro do homem
o perdido assomo
eis o que não digo
(e é ruim).
Fomento
Importar a Lua areias monazíticas
tossir poemas para Rilke
fazer amores num planeta oblíquo
caminhar com o petróleo nas veias
do general pacífico
ser o herói da última gincana
e o primeiro faraó do Egito;
de noite aspirar uma rosa (infinita),
no Pólo Norte ensinar à cigana de Mênfis
uma canção fenícia.
Bem, não é possível?
Lixe-se.
Pergunta
Por aqui não passou Maiakovski
(a pele do ouriço
e a toada
mais doce).
Ou não era poesia o que ele sangrava
no ziguezague da tróica
ao embalo do Volga
na surdina da neve?
Onde está Maiakovski?
Em que ceifa de angústias
se velou sua face à vergonha dos pósteros?
Onde está Maiakovski?
Quadrangular
Somos quatro no Levante
unidos no mesmo vômito
do espaçoso jato persa.
Vamos ao fim do mundo
num pijama de seda.
216
De quebra, o pirata que cospe fogo dentro da garrafa
(em Argel).
Somos quatro prisioneiros e muitas penas
por cumprir. Qual mais longa,
há tempo de sobra para gemer.
Casos miúdos se resolvem com esta lagosta
e um vinho francês. Os casos
de consciência se resolvem depois,
isto é ,
no vômito.
Ou quem sabe, Godot,
não existe o Levante?
VII. PRESSÃO SUBLIMINAR
Subliminar
A falta de senso é o prumo do mundo
somos bilhões de insensatos concretos:
com cara de gente e rabo de gato.
O senso / medida da própria loucura.
A poesia, ave pernalta, no brejo
voa. Avoa. E descobre, com o bico,
que a falta de senso é o senso que serve.
Para que saber de trezentas mulheres
mortas debaixo desse edifício
se o câncer no seio direito já fez o serviço?
Para que saber, ó incerteza do meu patrício
Antônio dos Santos, baiano de ofício,
que a frase em cadência não tira a gente do hospício?
Para que sairmos do quarto,
para que ouvidos abertos,
se o melhor ouvido
é o cano da arma? Desata o vivido
aqui e no exílio.
A falta de senso é o senso do mundo
em qualquer falta de sentido:
homem sem versos
o umbigo do nada
o poema
podrido.
Precisão
Preciso de um livro de versos
217
Absurdo, virginal, ambíguo / umbigo,
Mulher, flor de cacto
romanticamente posta aos pés de Madame
Bovary. Longe de seu marido
Homais.
Preciso de um amor tão velho como o lenitivo
que nos sonetos se levava – toante – ao mendigo.
Preciso de um cachorro com bons dentes e um menino
sem dentes nenhuns (um anjo, pelo visto)
para um filtro de amor em projeto
no planeta Mercúrio.
Preciso de uma fonte onde se bebam rimas
preciso da rosa de Gertrud, a fantástica,
inquieta mater em seus abúlicos ofícios
de pitonisa dos gênios.
Preciso depois da pá dos cemitérios
Do vesperal dos necrotérios
(a banana que não se come
e o bisturi do Dr. Francisco).
Preciso de um sono impessoal, sem sonhos,
sem boca para o suspiro,
sem isto.
Dançarina de Torres Bermejás
Pecas com os seios e os pés
as nádegas e a boca
pecas com o corpo da escrava
e o olhar da imperatriz;
pecas na língua, no ventre,
nas orelhas, no nariz;
pecas em Ormuz, Viçosa,
Iço, VIamão, Paris;
pecas por cima e por baixo
do manchego, do dervixe,
agora e em qualquer país;
pecas com as asas do anjo
e a fome da meretriz.
Bucólica
A vaca – suas tetas –
na escuridão perfeita.
Onde fica o avestruz,
inimigo comingo?
Somos dois e um caixão;
quem viaja no estribo?
vaca em suas tetas
dignamente rumina
o nutrido do estrume
a impureza da rima.
A vaca no anteparto
chifra o inexato.
218
Existindo
Existindo no canto eu me consumo
existindo no estrume eu me desvalo
existindo na estrela eu me constelo
existindo sem voz eu me comando
existindo sem olhos eu me vejo
existindo amanhã eu me deslembro
existindo no dentro eu me divido
existindo sem ser eu me encareço
existindo no amor me estabeleço
existindo sem corpo eu me deslindo.
O bom
A mulher na grama se doma?
A mulher no capim se possui assim?
A mulher estendida está decifrada?
A mulher perfeita se quer deitada?
A mulher mais fina é a mais perfumada?
A mulher noturna vive fechada?
A mulher diurna é bicho apressado?
A mulher na mulher é mesmo a figura
do Diabo.
Mergulho
Mergulhar? Mergulho
onde quer que surja
uma nesga de gente
- gente é que me tenta.
Na paisagem? Não,
mergulho nas tripas
de Luzia, Cássia, Andréia, Joel
- tripas ainda quentes;
é o que me tenta.
No livro? No livro
é mergulho opaco;
as letras de esmeralda
perderam o antigo
fulgor. A opressão em que morro
a falta do claro
são brinquedos enterrados
na areia do Egito
desde que a técnica chegou.
No lábio? Sim, no lábio
mergulho no escuro
do verso não dito
no escuro-e-alvo
do mito.
As franjas
As franjas são possíveis
ou apenas invisíveis aos senhores?
O furriel, o doutor, o inventor de abismos,
todos precisam
de sua certidão de idade
para a saúde, a fraude, o coito, o fisco.
Em dias mais felizes, entre cerejas
219
que não tive,
contava-se o tempo pelas estrelas
e os ovos dos avestruzes.
As franjas são painas que trago
no terno escuro; painas de uma viagem
ao extremo azul do céu escocês
(a bala na testa, as cruzes quebradas).
Prometo. Na hora em que o céu escocês
for exatamente o frigorífico inglês
(minhas carnes, lúdicas, vacilam),
esse dia será o fim de tudo. De mim,
do Major Anfilóquio Fagundes de Teles e Melo,
pajé de Alfié.
Psiu
A vida, uma vez ao menos,
deve ter sido bela: ao nascer
da primeira névoa. Ela nos explica,
o turvo que somos, sem mais nada
para iludir a terra.
A névoa de uma longa espera
nos confins do mistério. O subliminar austero
dos cemitérios sob a chuva.
Não quero ver esse fêmur, pode ser
do Diabo, que há milênios me segue:
essa falange é de Cristo, no ato de perdoar
o lado insano
do homem.
Fora com essa tíbia, perdida
pela donzela descansada:
deixou a virgindade para os ratos
no necrotério.
O verde dos cemitérios deslumbra
nossa podridão total. E o resto – caluda.
Debaixo da redoma
Primeiro tempo
Leôncia, Maria, Rosa, Floripes,
mulheres de manha, de olhos tão sonhos
como o Demo não disse; havia de tudo
sob a redoma.
Sob a redoma carpia o escasso suspiro;
nenhum sorriso
de Rosa, Leôncia,
Maria, Floripes.
Sob a redoma havia princesas, donas de paços
(imensos)
e pajens (pequenos) castrados.
Tantas mulheres juntas, que fazem?
Do lado de fora da redoma,
suplicávamos, não nos ouviam.
Mulheres ou sílfides,
onde estão nesta hora
Leôncia, Maria, Rosa, Floripes?
220
Segundo tempo
Leôncia, Rosa, Maria, Floripes
morreram. E Janes, Jeannettes, Glendas e
Fannys (assim mesmo, com y)
perseguem o mito do macho
no bar, na moto, no uísque.
Debaixo do seu parceiro,
redomas não usam. Esplendem na glória
da sífilis.
Seiscentos urubus e uma asa branca
Seiscentos urubus, ora essa, um espetáculo
real. Os reis amam a tragédia.
Seiscentos urubus e uma asa branca,
corrijo a tempo. Asa branca é contraste
num tamanho cortejo de negrume ideal. Os reis
o difícil, naturalmente, não é para nós outros,
peões, salário-mínimo, lixo, estrume dos edifícios.
Seiscentos urubus, uma carga de horrores
a exigir um panfleto.
Mas aparece uma asa, apenas uma
asa branca, e o negrume acabou-se.
VIII. MILENAR
Ao menos isto
Em ti, ventre, refaço o inacabado
multiplico-me
no espanto.
Sou tua voz, teu néctar
na sebe de um pomar invisível.
Em nós, penetrado um no outro,
amanhece a razão, a polaridade do instinto
anoitece. Sim, povoamos o silêncio e sua medida
abstrata, o que nós ambos
levamos, isto é o que pretendemos alcançar.
Somos dois estranhos,
contudo solidários;
tu, a fêmea cabisbaixa,
eu murado no espaço.
Só te posso dar, perempto,
o reflexo do que gostaríamos de ser.
Somos no ocaso
a nossa máscara da terra.
A expectação
Fechas os olhos. A paina se fez
para o gemido e o gozo.
Estás rubra, febril,
e ainda não te conheci. É apenas
uma fraude do tempo, a manhã,
estendida diante de nós, tapete mágico.
Voas? Vôo contigo, sou tua carne constelada
em luxúria. Sou o teu combate
o teu suor nos pêlos enviesados
221
a tua respiração
o teu orgulho (esvaído) de animal.
Queres dominar, e eu te domino.
Mas a tua alquimia não pára:
tens a pulsação, o germe, a quietude, o calor;
transformas em bicho a pedra de Cós,
habitas, em sonho,
o grão de areia que cegou o gigante
em Pamir.
Multiplicas a essência, o hálito, o metal
do desejo. Fazes da manhã
uma ampola de Cristal, e nela te mostras.
A manhã é o teu ventre, ó mulher vazia,
ó mulher à espera
entre as próprias pernas.
A voz dos descendentes
Deste lado estamos nós,
os míopes, os coxos, os maninhos,
peregrinos da promessa cujas praias
não alcançamos. Queremos nascer de ti,
descer em ti – a voracidade nunca saciada
da vulva milenar a pedir,
a gemer, a chamar.
Trazemos a dúvida ao escuro em que reelaboras
a ti mesma na combinação dos contrários
jamais explicados. Temos precisão de existir
para traduzir-te.
O desejo que te consome,
nós, os nascituros,
lhe damos destino, nome, função.
Abres a porta, mandas entrar o dia,
a perfeição, o não-fim, a transcendência.
Nós é que estamos em tudo que penosamente nasce e
morre.
Como a essência, o pólen,
vamos a ti, rosa noturna, e nos multiplicamos
em ti, mansidão entre guerras
e somos o sofrimento desfeito no calor
de teu ventre
de escrava,
remida escrava, feliz escrava
de ti mesma.
Seres tutelados
Dar, tirar, nascer, fenecer,
morar, fornicar, ficar sair,
crer, descrer, afundar-se no lodo
- isto é conosco, os seres tutelados
em que se resolve a outra face
da máscara.
Dar, tirar, nascer, fenecer,
dos atos centrados no acabamento
tiramos o sabor do simples.
Com as mãos do morto e do vivo,
mãos de neve, mãos de fogo,
mãos cheias de calos,
222
as mãos de Rute e de Leonor,
de Gengiscã e de Poe,
com as mãos dos semeadores e dos
assassinos,
damos, tiramos, nascemos, fenecemos.
Antes de sermos o podre fazemos o esterco
a cinza fazemos antes do fogo.
Toda a nossa construção acaba no fermento do pão.
A urna
Nada ultrapassar.
Nada possuir para despir
no amanhã absoluto.
O desejo é urna lacrada
no leito frio
do rio.
As águas passam? Passaram.
O fundo não varia.
O certo é certo: no lodo
das águas andadas
a urna desvairada.
Insaciáveis
Pedes à aurora uma roupagem, o colorido
à rosa, a maciez ao pássaro,
pedes um sol à perola.
Tens, afinal, o emblema que desejas.
Na solidão protetora do barro, entre flores,
adormeces.
Junto de ti, à espreita do tempo,
espero que amanheças.
O movimento da vida
é a rede que te embala;
posssuída do delírio de viver,
vives. Vivemos.
Tens a doçura,
tenho a aspereza que te há de vencer.
Rivais, medimo-nos: a luz e o monte.
Juntos
suados
um ao lado do outro
entardecemos.
Amanhã, mais pobres,
as vestes rasgadas,
nova sede na boca.
Nenhuma essência
Subi a montanha desesperado
sozinho revolvi no escuro
as cinzas de um velho
ardor.
Jazias petrificada à beira do lago
mas o teu sorriso adormecido planava ainda
223
sobre as águas.
Eu é que, cego,
nos vapores da tarde em que éramos
um só vazio
não te percebi.
Nenhuma essência nos redime.
O limite
Sempre nos entendemos,
solidários: tens um limite,
o mesmo espaço em que recrio
o protesto de cada manhã.
De noite, ah, de noite estou cansado
de protestar. Sei que o meu limite
lutaria por mim. Mas não posso.
Vencido, invento os demônios, espalho
o azul de maio no escremento,
sacrifico à verdade a tua nudez.
E na pausa do ato final,
entre goivos e anêmonas raras,
grito.
Sou o último a gritar.
Desejo
Por ti e por mim consagro o impossível
navego nu
mas a onda de lacre me interdita
os movimentos. Perdi meus braços, meus pêlos,
minha voz.
Vejo-te presa
no fundo do lago. Súbito,
flutuas de novo, entre lírios
e espuma. O fundo do lago é feio demais
para o teu renascer.
À superfície, no azul, construo em ti
(por outros séculos)
a pureza do instinto.
Geração
Fizemos a casa
cobrimos o berço
lavramos a terra
matamos a ovelha
deitamos o peixe no azeite
curtimos a pele
bebemos o vinho,
e a luxúria que nos esmaga
não dorme.
Polimos o sonho
limpamos a noite
sujamos a manhã.
E então?
Somos dois oleiros, somos duas ânforas,
224
somos dois ferreiros, somos dois canis.
Somos a alegria, somos a beleza
do múltiplo e do singular.
Somos um fim que faz princípio
somos o retrato do nenhum
e de ninguém.
A noite desceu tardia
estamos de novo ilhados e nus.
Calendário
Cada dia tem seu sumo
em todo fruto somos ácidos
em cada cego brilha a estrela
em cada estrela somos baços.
Inominado
Algum dia, em lugar inominado,
onde nunca homem algum pôs o escarro
ou os miliários pés de fera,
ali, entre nós dois, como num fruto,
explodirá de novo a urgência do sol.
E sairemos para o vago, além do inominado.
Por dentro, amanhecentes
senhores / escravos.
Ou por outra, estaremos tão sérios
tão concentrados que não veremos
a própria cegueira.
Não precisaremos senão de nós.
A certeza dos santos e dos parvos
a embriaguez da andorinha sozinha no Verão...
O que sentiremos sempre no lugar
inominado
onde pudermos esconder de nossos pêlos
a inteira nudez.
225
IX. SONETOS DA PERGUNTA
Sonetos da Pergunta
...mas quem sabe?
Quem sabe se depois dessa existência
Renascerei p’ra duvivdar ainda?!
Bernardo Guimarães, Poesias
I
Memória é servidão desinibida,
posta a sorrir ao não e ao sim, ao mesmo
e ao talvez; é uma corrente esquiva:
tira do escuro o claro que se vê.
Sem pecúlio de amor, perdidos muitos
e muitos remos, sinto-me afogar
numa fluidez de treva e de incerteza,
joguete fatigado do possível.
Sozinho, na procura esvai-se o rumo,
a firmeza que sonho, ao me acabar
em cada gesto, em cada pensamento,
e só assim consigo ser eu mesmo,
e só assim me basto ao meu sustento:
morto, a sonhar o renascer da vida.
II
Não há palavra em que me esgote todo,
226
em que se alberguem fruições danadas
com o branco que apeteço, para dar
uma fuga, no eterno, ao leito frio.
É noite. Ou é manhã? Certo, de certo,
homem que saberei? Onde me encontro
existe furta-cor, o que não sei,
o inexplorado, o simples não vivido.
E dizem que vivi, como viveram
tantos homens, na aurora, antes de mim,
e como viverão outros, no pez.
Mas quando fecho o olhar ao sentimento,
desce de algum lugar esta incerteza,
e aumenta a escuridão aqui por dentro.
III
Aqui dentro se passam cousas várias,
que não vou referir. Sei que são tristes,
deixam memória, e a indecisão me fica
pendurada no ar, como um suspiro
ou cacto florindo. No exterior
sou como os outros homens; as velhinhas
e as crianças não reparam ainda em mim
(sou bem normal para passar por doido).
Mas aqui dentro – com que então? – sou todos
e não chego a ser um, nem vagamente
sou o amanhã com que sonhava o cauto
poeta não nado. Aqui dentro acontece
o espetáculo. É aqui dentro o moinho
em que vivo a moer o meu carvão.
IV
Por três gotas de azeite e três pedras de sal
disseram-me onde estaria o que há de ser.
Numa concha encontrei o que sou, no meu feitio
exato; da outra concha nem sequer me aproximei.
Perdi o rosto. Agora, ao cair da noite,
venho contar o que em ambas as conchas, ausente,
acumulei. Numa, entre névoas, um faquir
me aponta a outra, onde vazio estou.
Que mistério sem graça! Não era necessário
um jogo tão absurdo e desumano ao mesmo
tempo. Bastava que dissessem: dorme.
227
E eu dormiria sem outros horrores e outros
frios. Eu dormiria como dormem as pedras,
e não haveria um soneto disforme.
V
Um soneto? Escrevo um, dois, três, escrevo
quantos sonetos puder. É no soneto
que se soma o que é ao que não foi,
numa alquimia de sujeitos hábeis,
de sujeitos que não sendo loucos, nem
sábios, perguntam ao sol o que está
na ostra, e ao micróbio de Washington
o que simplesmente ainda não nasceu
em Fez. Ora, assim já não é mesmo possível
encontrar-se um recanto onde se possa ser
discretamente pequenino e sério.
Faço sonetos por não ser el-Rei,
faço sonetos porque existe um som,
mensageiro do fim e do mistério.
VI
No mistério termino. Aqui me fico
entre uma cousa e outra, entre o ganir
da luxúria e os remorsos opacos,
nesta planície, neste monte, neste
mar onde homens e peixes, de mistura
com o amor e os nitratos, e as baleias,
exibem, nus, uma ambição qualquer,
uma ambição a mais no espaço, cheio
de velhas incertezas desdentadas.
No mistério pergunto. Para que,
se o mistério é que vem cobrir a minha
malograda nudez? Mas, não: pergunto;
perguntarei até não mais haver
senão o fim a perguntar – por quê?
228
BANHADOS (1986)
1
À entrada do bosque, isto:
A imponência nanica dos cogumelos.
O chão, viveiro de tudo, regurgita.
Fungos e algas se fundem vorazes.
Quem sabe do vivo se enleia na lida.
2
Os charcos, o mar, as dunas, a lagoa,
Ora dizem sim, ora dizem não.
Na embriaguez de existir
São aquilo que são.
3
Poças d’água, um presente
Desviado do rio. Comem areia para sobreviver.
Batalham caladas. A noite as diverte
Com o giro manhoso dos astros.
4
O Taim é assim. O vento desinibido
Embirra com as árvores de porte. Figueiras
E corticeiras, no entanto, resistem.
A peleja se vê nas raízes,
Retorcidos tentáculos de polvo.
229
5
...e os ventos insones esculpem
na oficina mutante. Criam coisas impensadas,
delirantes. Os ventos adoidados
buscam a forma além do efêmero.
6
É de fora. Veio do Banhado para as dunas
A passeio. Duque? Príncipe? Rei?
Deixa ver. Pela gravidade estudada
Deve ser o regente da orquestra dos sapos.
7
Maltratada pelo devasso do vento,
Perdeu a harmonia da copa e do talhe.
As raízes mirraram, desnudas.
À figueira das dunas sobram as nuvens
E um naco de paisagem.
8
Amanheceu nos bosques do Taim. Orquídeas
Na flor da idade, pasmadas
Consigo mesmas, não vêem o êxtase
Nos olhos do bicho. O homem!
9
A espessura dos bosques do Taim
Não atemoriza.
Isso é antes um jardim, onde deslizam
Animais de pena e de pêlo.
E não falta um vilão: o morcego.
10
Espanto. Avisto a colcha enorme.
O manto caseiro em que águas dormentes
Se envolvem. Venham depressa,
Nomes latinos da fauna e da flora,
Garimpar na riqueza dos pobres.
11
Feio e agreste, por fora o gravatá
Faz honra ao nome. Florido,
Sorri,e o azul do dia o compreende.
Os insetos descobrem no áspero
A véspera do paraíso.
12
Essa feiúra toda é
O que mais ao jacaré convém
230
Para afastar o homem. Ele não quer
Ser bolsa e sapatos de inguém.
13
Chupins-do-brejo, gregários,
Em bandos dormem, em bandos trabalham.
E comem: vermes, insetos, crustáceos.
São vidrados por um brinquedo: no ar
Tornam-se arabescos.
14
Corujinha-buraqueira, a boa senhora,
O dia todo labuta. À boca da noite
Vai curtir o ninho debaixo da terra,
Galeria sombria. As corujas noturnas
São para ela demais impuras.
15
Dois planos – o céu, talvez vazio,
E o banhado. Os juncos
Acompanham o nascer e o fenecer de tudo.
São milhões de seres, na ilusão do minuto
Corpóreo, balançando as águas paralíticas.
16
Morar é fogo, a casa da gente
Pela hora da morte.
O Carão contorna o problema
Em termos anfíbios. De beiço,
Morando n’água, mora no seco.
17
Corda bamba, arame estendido, estaca de cerca,
Tudo comporta as mesmas perguntas
E as mesmas respostas. O bom que dói
É voar. O resto importa?
18
O casal de ratões se espalha pelos Banhados.
(Evidentemente a roer, com maior prazer,
a roupa do rei.) meritório serviço
não previsto em artigo de lei.
19
A capivara, o boa-vida dos bichos,
Leva a coisa na flauta. Evita contendas,
231
Foge do sol e de encrencas,
Do tiro e da faca. (O horóscopo anuncia
Dias azuis para esse filhote de capivara.)
20
Gancho no bico – enquanto nós o escondemos
No egoísmo -, o gavião-caramujeiro
Dá uma de gourmet casca-grossa.
Comido o banquete,
Deita-se em cima dos pratos.
21
Um quadro para comprazer ao Menino
Nos braços de Maria. Ainda serviria
Para limpar a lepra do caçador,
Distrair a bala, romper as redes,
Entorpecer armadilhas, calar a dinamite.
22
Por necessidade, está visto,
Executa duas tarefas. No vôo
Dá lições de perícia. E no canto
Não enjeita parada. Em casa, modesto,
Dorme nas palhas.
23
Bailarinas? Cisnes imensos num sonho branco?
A leveza sonâmbula das Capororocas
Sugere histórias do outro mundo.
Filhas do abstrato e primas irmãs
Do ato gratuito.
24
Ai, somos bichos da terra, e isso do Poeta
Seria consolo se imitássemos as aves.
Entre pobreza e beleza
Dão lições de humildade. Depois,
Erros de linguagem não lhes pesam no bico.
25
A hora é calma, talvez de luto
Pela natureza roubada e ofendida
Nos banhados. Os juncos advertem:
“Homem velho de guerra, curva-te ao vento,
Não ao mau pensamento.”
232
CANTOS DO CANTO CHORADO (1990)
GONGO-SOCO
O sereno, à margem do rio,
tomou-lhe o corpo,
cobriu-o antes que as pálpebras do claro se abrissem,
o corpo ergueu-se entre as bateias,
junto ao poço.
O rio gorgolejava, pedindo chuva.
sapos novos
faziam borbulha, pretos sobre o cascalho.
O homem firmou no barro da margem,
com os pés, o seu querer, levou as mãos peludas
e recolheu na polpa do ingá
o frescor da manhã.
Vamos, negro congo, nós e nosso corpo,
nossos andrajos e nosso espaço
limitado.
Não disse assim, mas apenas triste:
Gongo-Soco, Gongo-Soco, Gongo-Soco.
Três vezes girou a palavra, atrás do seu
sentido.
Vamos, negro congo.
Um ar de engano
insiste no fundo das bateias.
A manhã, nova demais, não faz caso
do seu esforço (do homem).
Ela tem outras províncias mais ricas
- um cafezal, uma horta, espigas
além, nas grotas da Mata. A manhã
233
tem mais onde se mostrar; despreza
aquelas mãos peludas, esquece
no frio do rio a pepita.
De tanto andar escoteiro daqui para ali,
o sol, montado na experiência,
não tem medo de gente. Ilumina
as mãos negras que na piçarra
(como tenazes)
aprisionam o brilho oculto
do Gongo-Soco.
Agora. O ouro chocalha naquele deserto
futuras delícias – mulheres,
panos, comidas, festas, missa cantada.
O ouro delira no peito.
Um fogo, de dentro, atiça o braço à frente.
É o ouro. Nas mãos escravas
o ouro sente-se mais rico
que a própria manha do Gongo-Soco.
Parece nada mas achei
a mais rica das minas; fica no meio
do meu prazer. Com o pé direito,
achei. À margem do esquecido,
peito de uma sorte torta.
Quem me ensinou o caminho?
Meu padrinho São Francisco.
Noites vieram
noites passaram,
ali deixei, fechada, a mais rica das minas,
a mina que não minerei, de só.
Não tinha força para chegar ao sumo do meu tesouro.
Mina de minerar nunca pode ser a mina do pobre.
Quem descobre o ouro
é o congo Libório
No Gongo-Soco
descobre ainda
o atalho para chegar à minha,
o amor, a garrucha, o mando,
só não descobre o navio para voltar a Angola.
Quem descobre o ouro bem que se multiplica:
O ouro esparrama os impulsos,
dita suas normas.
Quem descobre o ouro
no Gongo-Soco
descobre tudo,
menos o incerto para fugir ao fisco.
Quem descobre o ouro descobre-se no outro
que todos somos, quando nos descobre
a morte.
Quem descobre o ouro
perde o seu tesouro.
234
2. Ouro e Palha
O ouro é transporte completo:
carrega a fome, o orgulho, o sexo,
o tiro, a noiva, o navio.
Conduz, no infuso, o Império
para o Diabo que o carregue.
Contudo, fora da mina, o ouro
é flor para o poeta corcunda
(de tanto carregar a rima
na cocunda).
O ouro nas orelhas
O ouro nos requebros do luxo
O ouro que se consome com o garfo
de prata, à mesa dos ricos.
O ouro de Minas, pelos cantos
mais sombrios; no perdido
de uma perambeira, entre os entulhos
de muita ambição aflita.
Onde o ouro se engana
Onde se complica
É na Lei.
A Lei o disciplina, mas
Não para o pobre,
Para o já pobre,
Para o já pobre
de rico.
3. Distrito do Ouro
As gentes deste distrito
o distrito do Ouro,
viviam como ricos, como bispos.
Tinham ouro, à boca da noite,
para divertir os seus pesadelos;
lambuzavam-se de ouro,
no ouro faziam o caminho, a torre, os desvios.
ninguém não morria por falta de uma palheta
de ouro neste distrito.
Os cavalos pisavam, no garbo, com ferraduras
de ouro;
relinchavam em estrebarias de ouro fosco.
E as amadas dos cavaleiros
banhavam suas partes mais caras
num lago de ouro.
Tudo dourado. E até se rezava,
adulando a morte,
com dentes de ouro.
Ouro branco, ouro preto, ouro maciço,
Ouro da fraude, ouro do coito escondido,
Ouro do esquartejado e do enforcado,
Ouro dos contratos mal cumpridos,
Ouro das alegrias do rico.
235
Fora do abismo, onde o Ouro
vigia,
sobrou o ouro das igrejas
o ouro das corujas
o ouro da carochinha.
4. Fanado
Levei o capote, levei a minha
enxada, só não levei o que não tinha,
que eu não tinha quase nada.
Minerar era o meu fim, no fim do mundo
se fosse preciso.
A faisqueira dormia
no meio de uns matos. Ali
me abanquei com o meu instinto
e os pensamentos
Pensamentos de pobre
mal se agüentam.
Comi o que tinha
no bornal; não deu o que eu queria,
atirei ao vento
a má sorte.
Voltei. Já não tinha os bois,
a vaca barrosa, a roça de milho.
O galo
cantava na barriga dos meus meninos.
5. O que ficou
Muito coche real, nestas calçadas,
jamais rodou, poeta Raimundo
da Mota Azevedo Correia.
O ouro
daqui
não ficou em casa; foi para as pantomimas da Corte.
O que sobrou, sob o incenso,
jaz
no frio dos ratos e dos cupins,
na casula poída (sem o Latim) dos vigários.
Ficou do ouro o seu avesso:
os curtidos do escravo
a curva daquela canelura
em madeira de lei;
o vago daquele espaço
barroco
que os beiços do anjo sopram no azul com a sua
trompa.
Ficou do ouro o seu parente
pobre – o brilho falso da malacacheta
ao cair da tarde
no cabeço dos montes.
Ficou do ouro a friagem das almas
e a Casa dos Contos.
6. Pranto de ex-rico
236
Quero de volta o meu ouro
espalhado não sei por onde.
Em Lisboa, na mesma Rua do Ouro
com o ourives oblíquo de Cingapura.
Na torre de Londres, e um pouco em todas as burras
da Europa. Em Moscou, sob a foice.
nas orelhas de uma huri.
No umbigo da turca. No dente de ouro
do carrasco nazista. Na Wall Street.
Em partes (nubívagas) do céu e do inferno
flutua o meu ouro, o ouro que apurei no morro,
na pedra, no rio;
O meu ouro.
O ouro fino
O ouro quente
O ouro preto
O ouro frio
O ouro branco
O ouro demente
O meu ouro
Morto.
7. Dos ratos
À boca da mina, seca,
do padre Faria, comarca
de Ouro Preto,
reúnem-se os ratos do campo
em congresso.
Discutem, chiando, o desaparecimento
do ouro.
Este, ancião de fama,
criou família nas botas de Fernão Dias;
aquele, de Borba Gato roeu num mês
o barrete amarelo. E outros
inúmeros bichos contam, ilustres,
o resto das fábulas.
Um rato de fina estirpe
relata:
naquele buraco havia ouro;
nesta arca, pão e queijo,
no Rio da Velhas, peixes de vária escama.
Hoje tudo são lembranças
do ouro, do pão, do queijo, dos peixes;
Mas lembranças, senhores,
o dente não rói.
O congresso dos ratos,
sem maior objeto,
aprova contudo um voto de protesto
contra o primeiro gato
que mais alto miou nas Minas.
E depois, dissolve-se.
No vazio dos pobres,
cada rato o próprio rabo
morde.
237
8. Conspiração
Esse falou demais, foi tolo.
Aquele não falou, morre de susto.
Este falou para ganhar dinheiro.
Aquele desfalou o que falou ao compadre.
Quem mais falou não se sabe.
O sabe-tudo sumiu num pé-de-vento.
O padre jurou falso, conspirou no duro.
O governador sabe de tudo
- onde já se viu governador
que não sabe?
No canto da cela
o Alferes espera.
9. O Alferes
Quem vive não é coronel,
não é major, não é capitão.
É o Alferes.
O Alferes somente
é presente.
Sua espada
não é espada
de matar gente:
sua espada é alva
no horizonte.
O alferes
de antigamente
aqui presente.
10. Viagem do Ouro
O ouro saiu do fogo
O ouro brinca no sexo
O ouro caiu na vida
O ouro não tem juízo
O ouro come de esguela
O ouro come e dejeta
O ouro dos reis e forca
O ouro dos meus escravos
O ouro dos teus vestidos
O ouro ausente na boca
Do carvoeiro menino
O ouro no riso frouxo
Do cego e da prostituta
O ouro daquele dia
Ausente como se fosse
O ouro de outro ouro
O ouro de Gongo-Soco
O ouro de outra vida.
11. O mal do ouro
O mal do ouro
238
rói os alicerces do sobrado,
de todos os sobrados
em todas as ruas,
paróquias e potocas.
O mal do ouro
come braços, torncos, pernas; roendo
os ossos de qualquer filosofia,
enterra-se no podre
do intestino grosso.
O mal do ouro
só não come o sopro
além do corpo.
12. Fabulário
De ouro se fez a nossa fábula.
O ouro sacia o nosso lúbrico.
De ouro cobri as tuas tranças.
O ouro no Banco furta ao pobre.
Inda não vi o ouro do Tesouro.
No mais áureo do ouro brota o estrume.
Entre nós este ouro não se explica.
Do ouro (e não ouro) faz-se a morte.
Onde canta esse ouro que não ouço?
13. Na sobretarde mineira
Na sobretarde mineira
o sol não arde; deixa o brilho
por conta do ouro, que nas igrejas,
com a reza,
exibe seus últimos raios
louros.
(Os raios louros cantados pelo Ouvidor,
ouvinte da voz – de ouro? – de Marília,
o seu desdeixado tesouro.
O ouvidor finou-se no exílio,
mas gordo).
Na sobretarde mineira
ardem círios. Vagalumes impunes,
sem pagar direitos ao fisco,
vão do capim à portada
de uma igreja. São tantos
que ninguém dá por isso.
Na sobretarde mineira
o vento sopra mansinho.
de onde?
Do acaba-mundo.
Na sobretarde mineira
a manhã começa
cedo
com a promessa
das primeiras rezas.
239
14. Sino e Céu
Em terra de ouro
o sino não é
de ouro.
Em terra de ouro o sino de bronze
atemoriza o povo.
O sino chamando à explosão dos pecados
leva o desgraçado
ao fanhoso do enxofre.
O sino que bate em São Francisco
não é o mesmo sino do Carmo.
O sino do Carmo é o sino
do Carmo, pelo visto,
com os seus andrajos,
os seus abafados,
o São Benedito.
O sino dos pobres
e dos aflitos
é o sino que um dia,
Marília,
há de ser tangido
neste azul
de mito.
15. As pastoras desta aldeia
As pastoras desta aldeia
se perderam pelos montes,
não me fazem companhia.
As pastoras desta aldeia
são pastoras inconstantes,
não me fazem companhia.
Como poderei viver,
Como poderei viver
Sem a sua companhia?
As pastoras desta aldeia
se ausentaram para sempre,
não me fazem companhia.
Lá se foi minha pastora,
minha pastora da aldeia,
aquela que eu mais queria.
Como poderei viver,
Como poderei viver
Sem a sua companhia?
16. Coreto da penitência
A todos os poetas que suspiram
Nas Minas
Faço, faço companhia.
(Os poetas aqui tomam rapé
mas tiram o espirro das ventas
de Polifemo.
240
Os poetas desta comarca
Inventam florinhas no vale do pátrio rio
E nunca se dizem cansados
Do ritmo.
Os poetas, na bruma do Itacolomi,
Conspiram o que ninguém não vê,
Iluminam-se por dentro, e o brilho
Do seu lamento é diamante, e ouro
No Terreiro do Paço, em Lisboa.
Os poetas cavucam no papel, tiram gemas,
Liras,
Tirolá,
Quadras, sonetos, pedras
No meio do caminho.)
Compreendo os poetas; por eles faço
esta penitência.
Minha penitência por todos os poetas
Concretos
A quem não faço companhia.
17. Mato dentro
do mato dentro puxei suspiros
do mato dentro diz-se que herdei os meus viveiros
de escorpião e de cobra.
Do manto dentro, onde não me acho,
Vem o sol, delíriros em tropel
Contando versos.
Antes, contando prosa, que
No mato dentro me dão pouco
Fruto.
E os dias
Que no mato dentro,
Abstrato,
Não vivi, contudo?
18. a terra de todo dia
Quero a terra de todo dia,
aquela que todos os dias me afaga os hábitos antigos.
O todo dia do sono leve,
Com medo da aurora, de novo
A chaga aberta.
O todo dia
cristão da mina extinta,
do pão branco sobre a mesa,
a pergunta indiscreta que não se faz
(haveria resposta?).
Quero a terra de todo dia,
aquela que todos os dias me afaga
os hábitos antigos.
O todo dia do sono leve,
com medo da aurora, de novo
a chaga aberta
o todo dia
cristão da mina extinta,
do pão branco sobre a mesa,
a pergunta indiscreta que não se faz
241
(haveria resposta?).
Quero a terra de todo dia,
com mil pupilas centradas
em pudores ocultos. Quero
uma terra azul cheia de andorinhas,
de nuvens baixas para cavalgar, de atalhos
aonde ir, envergonhado, buscar
o lume.
(Amanhã te explico).
19. O explorador Inglês
Chegou o explorador inglês.
O explorador inglês viaja de trem
como viaja em Glasgow um milionário inglês,
mas viaja também a cavalo, em lombo de burro, em canoa.
O explorador inglês usa boné
para carregar o ouro,
para passear, para ir ao comércio, para fazer
pipi atrás da bananeira.
O explorador inglês não se deixa enterrar
Depois de gasto, que
O explorador inglês não morre
Neste país de lombrigas, maleita e bócio.
O explorador inglês tem as ações da mina de ouro
(jamais vistas).
O explorador inglês bebe cachaça de Pirapora
e é louro, louro como o nosso mais importado
uísque.
20. No sertão da farinha podre
Ai, minha vida.
No Sertão da Farinha Podre achei larguezas,
meu agrado masculino dobrou as índias, e minhas
botas abriram picadas ao voto,
ao Senador
ao Juiz.
No Sertão da Farinha Podre,
vida minha,
meu pênis cresceu, virou gente formada
na Europa.
Em Ruão, se não minto, já se fala de mim,
das orelhas do meu gado zebu. Em Praga,
em Londres, nas docas
de Marselha, vendem-se línguas
do Sertão, outrora vazio, da Farinha Podre.
na rive gauche, com alguma Sífilis,
heróis da ficção científica
desgastam o dinheiro das fazendas
e esquecem os berros gordos
do Sertão da Farinha Podre.
O prurido das minas
danou minha alma,
vida minha.
242
21. Mantiqueira
Deixo de lado o ouro para te ver.
Até quando serás a crista aflita
por cima dos vales
empecilho ao carinho sinuoso
das águas?
E as flores, que buscamos,
No teu espinhaço
Não acho.
A manhã primeira era contigo,
mas a noite chegou. Agora, no opaco
deste futuro, o teu corpo
áspero, o teu friúme ao entardecer,
o que na tua carne é o corpóreo alimento
do abismo, vejo que te reduzem
a uma planície. Por sobre tua crista
o cogumelo absurdo de Hiroxima
te levará também à ruína.
E os teus cimos, dilacerados,
encherão os vales, soterrando o riso,
o vestido de chita, a criança, o estampido
do último champanhe.
Deixo de olhar o mundo
para ver o sem-mundo
além do vértice
do teu abismo.
22. Catrapus
Penhas que foram penas por todos estes roteiros
rios brejos atalhos trilhos de índio
chão de malacacheta, diamante, ouro e pedra sabão
lagoas sonhando navios e periquitos
bocainas furnas grotas e o mais que em liberdade
Deus plantou.
Penhas que foram matéria plástica na poesia
árcade, despotismos redivivos,
penhas que em Penha longa não experimentaram
o caviloso existir na cuca do prefeito
para dar aos amigos o gosto de votar no Governo.
Penhas que foram a pátria de Maria da Penha
de Maria Penido
de Maria Penedo
de Maria Penina
de Maria, a persistente,
de Maria Pentagramática,
onde estais, penhas-penhascos, penalvas
e morenas?
Vai a seta, venha o pisco, troco a seta
pela pena de avestruz,
catrambico, xurumbambos, catrapus.
243
A MATA E O NOME
Ao Chico
What’s in a name?
Shakeaspeare, Romeo and Juliet
Ato II, Cena II
A mina dava e tirava
Dava/tirava/dava/tirava
Dava para o sobrado
Para a senzala
Para as igrejas;
Dava o poder ao podre
Tirava o dormir dos fracos;
Dava o diamante no dedo
E amásias no claro;
Dava a caleça vermelha
(em luxo que se tinha
à porta da matriz).
A própria reza,
O Bispo e o resto,
A mina é que dava.
Tinha-se a moça franjada
Nos seus perjuros cabelos
No seu colo, no seu púbis
Inteiro.
Tinha-se a nau para o Reino,
E quando não saía
244
Viagem nenhuma,
O lorde se tinha
Dentro de casa\:
Veludo, jóias, leitão,
O terno de brim engomado
Jogo de cartas
O vinho importado
Fichu de seda para a comadre
Louça-da-china
Escravas bem-vindas.
O ouro abria, porém,
Muitas portas tortas:
Mijava no pobre
Batia no escravo;
Fugia, invisível, da oficina do ourives;
Sufocava na forca
O grito grosso
Do povo. E sempre
Engordava o rei.
No ar, os sofridos
Arrancos do fisco;
No abafado segredo das vilas,
Os ais,
De Minas Gerais.
O ouro enricava? O ouro dava e tirava
Presente/ausente/presente/ausente.
De todada não mudava
O ouro nas suas lavras.
Vou caçar um jeito (diz o mineiro arruinado)
De fugir.
Me perco na mata; nas minhas botas
De sete léguas
Ninguém me pega.
II
Vem correndo, homem de fé,
Mas vê primeiro, na curva do rio,
O fio do teu facão,
E vê na barra sinal de chuva (se tem).
No seco, melhor.
Pelos gatos (sete)
No barril de piche,
Pela graça da moça
Recém-parida,
Pela chaga do leproso
Pelo anel do Bispo,
No temor de Cristo,
Vem.
O sol, exato no seu trato,
Aquece a água do banho
No poço do ribeirão;
Aquece para o pecado,
Deus louvado,
Mulher de peitos moentes
Em cada moita;
245
Aquece, em tardes de fogo,
Vozes meninas chamando as estrelas:
- “Pique, senhora princesa?”
- “Pique será.”
Homem de fé,
A Mata te espera.
III
A raiz, o bicho, o perigo
Ainda dormem.
A noite
Sequer acabou de cozinhar o sol,
E Geraldino de pé
Para o que der e vier.
Geraldino conhece
As entranhas, molhadas de muitos rios,
Da Mata; as ofertas, o imprevisto
Da Mata.
Possui em silêncio
Aqueles vazios
Preso ali
Como o caroço do cajá-manga,
Eriçado no fruto.
É múltiplo adivinho
Na direção do vento; percebe as borbulhas
Do mal, e a fábula das árvores
Não lhe oculta o ruim
Pretexto dos homens.
Bicho do mato, nos matos nunca se perde
(sete léguas em redor
estrondam os passos de suas botas de couro
sovado).
E medo?
Não tem, salvante Deus e o mártir
São Sebastião,
De ninguém.
As guaximas, o brejal,
Os penedos se apequenam
Para Geraldino passar.
E ele não pára
Lá vai
Rompe o vargedo, corta espigões,
Mexe daqui,
Vigia dali,
Pressente o bote da cobra, pulo de onça, paca, tatu;
Cotia, não.
O mais do mais
Geraldino guarda segredo:
O rumo da caça,
P enleio da estrada,
O jeito da foice para cortar
O mal nos olhos de fogo
De M’boitatá.
Geraldino entrou na Mata
246
A mãe pegou a chorar:
“Geraldino, Geraldino,
quero aqui o meu menino
criado nos peitos meus.
Volta, volta, Geraldino”.
Geraldino não voltou.
IV
No crespo deserto
Daquele chão
Tem febre e tocaia
Para qualquer um.
Não tem donzela
Não tem igreja
Não tem soldado
Não tem anel.
O homem (primeiro)
Traz um machado
Traz uma faca
Traz uma pá
Traz um serrote
Traz uma enxada.
Planta nos flancos
Da terra quente
Casa, chiqueiro,
Tulhas, moinhos,
Curral, capela,
Sonhos e asas.
Anda ligeiro
(corre, rapaz,
se és capaz)
e morre de tiro
e morre de voto
e morre de bócio
e morre de moço
e morre de velho
sem se acabar.
V
Tocaieiro de pegou
O tiro te derrubou.
Ficaste no teu grito.
De onde o perigo
Que os olhos de gato não viram?
Morreste de tiro, Geraldino, do tiro
Que esperto não atiraste, tu que atiravas
Certo – à colmeia a sua abelh.
Coberta de formigas
Tua boca inda suspira. A boca
E o prazer de contar doidices da Mata
Aos parentes
Em dia de missa;
Às damas, fartas de sífilies,
Na pensão chique.
A mata que abafou o eco da bala,
247
O estampido em que a demanda perdeste
(um homem peitudo é caça leve).
Morto. É deveras. Mas agora,
No chão,
Aceitas, Geraldino, o inerte.
Não mais cairás morticrivado de balas,
Deus silvestre de Tombos do Carangola.
VI
Antes de tua chegada, Geraldino,
a Mata dormia o sono deserto
dos faraós.
Desconhecia os errados
do homem.
O bicho reinava com gosto
nas dobras do vento.
Criado no seu canto,
o silêncio explica em cor e perfume.
A mata germinava abraços, sem a presença
do homem.
No ar, campeiro,
havia convites; mas o homem, ausente,
não passava para repetir
maldades antigas:
tangolomango
senhor capitão
olho por olho
dente por dente
pelo figo da figueira
quem roubou meu coração?
Não se via rastro de gente
Cara de homem
A doidice dos filhos e netos
Do homem.
Não havia o homem.
VII
Galhos enlaçados
barram a entrada.
mas o devasso
olhar do homem
levanta o cerco. Decifra
os quatis, a filoxera, as patas
do caranguejo, o pulo
da onça pintada,
só não decifra aquele ipê
fora de Catas Altas
(a mania do ouro).
À volta das imbaúbas
brotam florinhas não cantadas
por nenhum poeta de fraque
- ou são pitangas?
A natureza capricha
em honra de futuros barões.
Veja bem, mas com amor, Dona Celuta,
248
como aquela folha se agita; parece
a criação de um frade epilético,
do tal que virou esterco,
perdão, do santo enterrado no incenso
da capela curada de Santo Antônio do Aventureiro
(se bem me lembro,
chamava-se Ismael).
Uma folha, eu dizia,
de vaporoso recorte,
o corpo sem corpo
das maluquices da gente:
torre de igreja?
Nave partida?
anjo de Antônio Francisco Lisboa
no cangote do porco?
(Tais coisas pensadas
antes da missa,
que coisas serão?
um mestre antigo de Prima,
cidadão de Mariana,
me explica: “Pecado, filho,
bestgem de mente enferma,
enxofre de solidão”).
Corta, corisco,
corta a neblina
corta o remorso
do inacabado padre-nosso
corta, novinha, aquela pomba
no sino da torre;
corta, corisco, o cisco
do sexo.
Puxada pelo signo, decompõe-se em seiva
a paz dos verdes
refletidos no olhar de Nise.
Onde estamos? Onde a vossa ninfa,
Cláudio Manuel da Costa, que não vejo?
As águas de cem cachoeiras retumbam
na goela do roncador. E o rato
do campo,
sobrante do ouro barroco,
rói as botas de Fernão Dias
o brabo latim dos Profetas
e a cara, menos o visgo,
do Demo.
VIII
E a Mata, à espera. O chão, farto,
engordava as moitas para o sangue distraído
das tocaias.
Águas corriam
entre minhocas centradas no ofício
de adubar o futuro.
A Mata sabia das proezas do mal
em outras instâncias. A Mata,
no escuro, adivinhava o homem,
a astúcia, o crime, os urubus.
249
E o homem chegou. Veio com as tretas
na cacunda, a mão desabotoando brigas,
a empáfia do mando
espetada na faca.
Que mal pergunte, de onde
chegou seu Joaquim?
Da corte, do Minho, do Inferno?
Veio de mais perto. Das cidades velhas,
sozinhas no frio das minas mortas;
perdeu no jogo o vapor dos diamantes,
viu o ouro do atrito fanar sob as espadas
do fisco.
Chegou, ó gente, chegou
o homem no lombo do primeiro macho
que estes pastos comeu.
Trouxe a mulher
o truco
panela de pedra e de ferro
o pecado geral de não ter ficado rico;
trouxe, porém, seu último tesouro:
a tropa de mulas
a fome
o terçado;
para o bem de todos, presentes e ausentes,
trouxe também a estampa
do milagroso Senhor Morto
de Bom Jesus de Matosinhos.
Ai, Deus, que fazer de espaço tão vasto
dessa lonjura no escuro,
que fazer do verde-negro
mato de Manhuaçu?
Era homem reforçado
viu-se que podia gastar:
o sangue deu ao mosquito
os braços pôs na capina
(o escravo, seguro
em São Benedito).
Tinha fôlego
tinha pernas
(minto: pernas não tinha, aliás,
pequenas demais para tanto espaço).
E o tino, que também tinha,
com ele se enraizou
naquele chão.
Chegou homem de bem, chegou tralha,
chegou peste; de todas
as bandas chegou.
Olhou, farejou, sofreu o espinho,
o brejo, comeu preá, comeu narceja,
comeu rato,
comeu fogo, onça, paca, tatu;
cotia, não.
E o bicho sem dentes
comeu-o também.
Vossemecê não sabia, senhor capitão?
250
A Mata é largueza muita para um bafo só
- rios, currais, cafezal, abobra-menina,
vacas de leite, arroz, mulher-dama, fumo,
garrote, burro de carga, pipote de aguardente,
pinguelas, papagaios, gado de cria na fazenda,
gado solteiro no sítio; lenço vermelho na missa,
pomar, política, oh chão bendito.
Me diga o menino:
- Quem nasceu primeiro,
a galinha ou o ovo?
O capitão, carcomido
pela estranheza da Mata,
treme de frio
fora do banho de bica;
o capitão
geme no chão
no meio das cobras e dos lagartos.
Ai, meu senhor de Matosinhos,
que terra demente
terra maldita/bendita
tem febre, tem onça, tem paca, tatu;
cotia, não.
Morre em janeiro, renasce em março.
Ninguém não pode com essa raça.
Levanta a casa, fecha o curral,
planta de tudo. Acaba Major
(na sala)
da Guarda Nacional.
Vagalumes
sapos
corujas
pios escuros como a própria noite.
Ninguém se admira de nada.
Foi-se a onça
veio a fraude
veio a espada
veio o escravo
veio o enfado.
E o mato?
O mato já não temos
para o nosso bem.
Tudo se mudou-se
o que era brabo
e o que era doce.
Mesmo o papagaio
papagaio real
de Portugal
faz o currupaco
num quarto vermelho
(dizem que francesa)
da pensão chique.
A Mata, farta de si,
não se mexe para ver.
Passa tropa, passa gente, passa chuva,
251
passam rios de café.
Na ponte de ferro
(lembranças de Londres)
passa o piano de cauda,
passa a espoleta e o remédio,
passa a mazurca, a espanhola
de meias rendadas,
passa o Barão de Espera Feliz,
neto de índio puri.
XI
A noite na Mata, piche nos olhos;
troncos, calhaus, rios se somem.
Para esconder
mazelas da gente
a noite aperta nas grotas
o crivo de seus carvãos.
No rezar de um Credo,
a manhã,
mas o nambu recolhe os seus pios,
que vultos se mexem
por cima das águas.
São eles, na vargem. Vozes
de homens. Pernas, trabucos do Tijuco,
rosário de Sabará, cana caiana de Ponte Nova,
batas, ardências do sexo, suor de Antônio e de João,
cabelos de Rosa, andar de Floripes. Arroto
de gente.
Os jacarandás, firmes,
paramentados de grande gala.
No mais discreto
da Mata,
ao sol do meio-dia,
a renda de bilro se estende
no chão da capoeira,
fora de comércio.
(A idéia que fazemos da alma
no Seminário de Mariana
deve ser isto:
um coalho de brancuras.)
Tudo se explica – um pesadelo
da Mata; desculpem.
No seu desejo de ver gente
a Mata delira.
Agora, agora vem vindo.
De serra abaixo,
vem.
É berro de vaca, tiroteio, roubo de cavalos,
revolução, vida que não finge.
Folhas desgarradas amarelam a serra;
as lagoas, as narcejas, as cachoeiras
se concentram à espera de mais gente.
Ninguém compete com o verde,
nem o azul; ninguém não pode
com o degas.
Dentro do verde, na carne
252
do verde, mais verde, vultos se aprumam.
Não minto.
Chega o magrinho,
chega o aflito, o corcunda, o torto
de alma, o reto, o incerto;
chegam brancos
chegam os pretos
(morrem os coroados e os puris).
Para a derrota, para o poder,
para a cachaça do desordeiro
para a demanda de ciqüenta anos
do compadre João José Tupi Tupinambá
Lopes Clemente Pereira de Sá.
Trazem a chaga e o lume,
a voz, o estrume. (Morrem os coroados
e os puris).
Chegam em grupo, chegam atirando, chegam gemendo,
chegam morrendo, chegam nascendo,
chegam impossíveis sujeitos
de olhar alerta
e coração vendado
como é próprio do homem.
X
- Cadê o índio que estava aqui?
- O branco matou.
- Cadê o branco?
- Está com a índia no mato.
- Cadê o mato?
- Queimei no cano do meu trabuco.
-E o poeta que vier?
- O poeta que pateta
um dia a Mata parir
não vai cantar iracemas
e peris;
seus dedos morenos, fugindo
do mais que fluminense alexandrino,
contarão contos-de-réis
em notas de branco
nos muriaés.
XI
Geraldino explica:
Morri na Mata, por obra do vento.
Não vi o vulto
atrás do toco.
Morri na Mata,
como cumpria,
no meu chão.
Mau olhado, tocaia, veneno,
não seiu de homem que me espante.
Morri,
Conte você, mandarim
do império chinfrim, o enredo
da Tabela Price, o assomo da fome
nas cinco partidas do Banco,
253
o poder dos foguetes astrais.
Examine, Padre-Doutor, o tema do Mal
e o complexo de Édipo, a vingança do Conde de Monte
Cristo,
a contestação do Anão.
Fico comigo, sem livros,
fechando no meu perigo.
Morto.
A Mata que amei morreu de velha
para o fino gosto dos trabuqueiros da Volta Fria,
a Mata do Coronel
João do Calhau (Se Vossa Excelência quiser,
chegaremos as divisas até Viutória),
a Mata dos ossos coroados, pataxós, puris,
a Mata dos poaieiros
dos lobisomens
das mulheres sem cabeça,
a Mata dos mineradores arruinados
dos portugas de tamanco
dos carapinas sarados (seu João Coelho,
seresteiro de boa voz,
morreu na faca, de muito amor escondido
com Dona Paula),
a Mata das derrubadas de homem (na hora
da tocaia Manuel Caboclo não falha),
a Mata das fábricas de muitos fusos
e ralo comer
a Mata dos trens ingleses
à margem do Rio-da-Pomba-e-Peixe,
a Mata dos insetos molestos,
dos anjinhos conspurcados no berço
pelas mutucas.
A Mata onde o céu se abisma
(reparem) no olhar de esguela
de certa Maria
do Adro.
XII
Na grota o bote
no trote a sorte
do meu trabuco.
Ó raio de turco
me vende a seda
para o meu fraco:
Sá Mariquinhas,
mulher de trato.
José Preá corre como azougue
Antônio Bode não pode
ver mulher
Juca Macaco
Teodoro Macuco
Lau Garnizé
Mane Pato
José Boi, manso que nem
o cjo (animal),
Pedro Mutuca
254
Nicolau Cabrito...
a Mata nomeia os homens
pela razão dos bichos.
XIII
Região, pedaço, partícula
(titica)
do grande mundo,
falas também em nome dele.
Por esse abismo em que o Demo
assopra a violência.
Pelo sangue do reinol e do puri
o sangue da Costa e de Zanzibar
o sangue dos guetos
o sangue dos velhos
o sangue do menino.
Por onde quer que a gente
ande – dos sapotis de Abre Campo
aos farmacêuticos de Ubá –
é isto:
o bicho-homem
mamando sangue...
XIV
O Demo, o Cujo, o Capeta/carrapicho
pega de galho.
A vastidão do mal
cresce, sufoca.
Os cupins de Mirai
os pistoleiros republicanos de Viçosa
o mofo imperial do museu de Juiz
de Fora, uai;
as brevidades febris de Manhuaçu
a cana falida de Ponte Nova;
em mutum, os moedeiros falsos
retratados em notícias perversas;
os tombos (que assombro)
de Tombos do Carangola,
as mangas de qualquer lugar
os ingás de Além Paraíba
a Serra do Pangarito,
os rochedos fazendeiros
no mato sem cachorro,
a crise do café em Tebas
a farmácia sem vidro
o bicho de pé, uai;
os coronéis fiéis, os banquetes, os chefetes
espetados nos jardins e jornais
da cidade;
a lombriga, sem urinol, nos distritos.
Na Mata capricha o tino infalível
do corone-chefe-político:
o cafezinho da noite
a flro da varanda,
bala no papo do negro,
255
sihazinha no seu piano;
meu filho, graças a Deus, só veste camisa
de seda.
Amanhã, dinheiro na mão,
vou visita om Barão; compro-lhe a fazenda.
Em setembro, bato por aí afora,
com a senhora Porcina,
pro Jubileu de Congonhas do Campo.
Na Mata as criança em rama
morre tudo de diarréia;
o conselho municipal de 1910
em 1964 agüenta bem a dispnéia;
o poeta lírico se evapora adolescente
no ar titânico
(será possível cantar neste forno?)
Na Mata temos (de graça) o próprio mato;
agora, pagando,
temos o ronco da pólvora
no peito inimigo.
Mas como o progresso é preceito
da Câmara,
às quatro da tarde ronca a pedreira
do Município.
Na praça, com repuxo e banda
aos domingos,
ouvimos descabelados a voz holanda
do missionário anual de Cristo.
Cruz, credo! Eu disse isto.
Pela carne e pelo espírito;
na coletoria e no cartório;
pelos bois, os cavalos, o arado de pau,
o sítio, a vós vos peço
morte na cama e inventário pacífico.
Trabalho enquanto posso
como o que planto
não peço emprestado nem um pires;
sou ou não sou um bicho?
Das 7 às 9 rodo café,
às 10 em ponto, às duas da tarde tomo café;
no sonho embarco o meu comprido café,
no café se atrapalha
meu alfabeto; minhas promissórias
bracejam, protestam
na xícara;
no café meus votos de conselheiro e vereador
no café meu sangue Caraça se faz doutor
- remorso em rubi do meu remisso
latim.
XV
Filho, meu filho,
onde puseste a fazenda de porteira fechada
que te dei?
Pai, meu pai,
metade se foi com as putas,
uai.
256
Filho, filho, e a outra metade?
Faz tanto tempo, meu pai,
que não sei.
XVI
Vai chegar o Senhor Bispo
corre Maria da Glória
corre Teresa e Francisco
matem galinhas e patos
matem frangos e franguinhas
quero a banha dos petiscos
tirada com muito jeito
para o banquete do Bispo
corre gente acende o fogo
esquenta forno e panela
vigia a calda e os suspiros
quero limão quero cidra
para os doces da receita
para a boca para o riso
para a bênção de seu Bispo.
Vai chegar o grande bispo
corre gente varre a escada
varre as ruas bem varridas
varre os pecados, Eunice,
traga as flores
traga as fitas
põe o cáliz a brilhar
corre Maria da Glória
traga o feijão e o fubá
ponha as coxas de galinha
na banha que não faz mal
(banha de galinha gorda)
para o manjar do meu Bispo.
Chega gente chega gente
cheguem de todo lugar
que o Bispo vai chegar.
XVII
A Mata não teve floral expedido
pelos poderes do rei. Ficava onde?
A Mata, comprida, é terra inconclusa
como o próprio homem. Não tinha fonte?
A Mata tem mata de matos brabos
de mulas-sem-cabeça e de lobisomens.
Na Mata vivemos (amém) como vivem os bichos
e seremos depois apodrecidos sujeitos
no corpo, na fala, no jeito
- de onde?
XVIII
Zona da Mata te chamaram,
257
o nome de leve para explicar tuas águas,
teus viciosos, secretos
bacuparis,
teu cheiro de fêmea derrubada na grama
as borboletas de Casimiro
tiro de rifle dentro e fora do serviço
a rola no terreiro, a anta na mira, o cavalo
rosilho de Penha longa.
E o tapir? E a perjura
The Vision of Mirza?
E os elefantes do circo?
Zona – o azinhavre te encobre
no armazém, no utilitário protesto
do Banco,
no deserto moral da fatura.
Mas se digo
Zona da Mata, renasce o feitiço.
Tuas parasitas no ar,
por que não se guardam
(apenas)
para o túmulo de Isaura?
E o arfar do signo, que não consigo
pegar – o vento que estufa o peito de Minas...
Não, não tenho visgo
para prender no papel
teu inteiro segredo.
Desisto.
XIX
No claro onde foi a Mata
liquidam-se os mitos. Resiste
o colo astral de Pina Menichelli.
Escondia-se nele
a calça curta, a asa do curiango à boca da noite,
a chaga dos pretos (no olhar),
a borboleta,
o corisco.
É deveras. O ontem sumiu no asfalto:
as vacas leiteiras
da família Junquilho
só viajam de avião;
os filhos dos coronéis,
em Nice,
vacilam no mais-que-perfeito.
A lua tem medo dos russos,
o ladrão se entrega à polícia?
As coronárias, firmes, sustentam o prestígio
do coronel-vereador.
A Mata tinha segredos?
Tinha o incenso para o padre,
o mês-de-maria para Eunice.
A flor no cabelo não sabia botânica; hoje
é perfume paulista – e fala inglês
nos vidros do toucador.
No lixo, o latim não mais socorre as beatas;
258
os sinos murcharam; o pecado, com esta crise,
não tem futuro.
Hippies na Praça. Que foi?
Serão os delegados possessos?
Os computadores, de sacola, atrás dos eleitores?
Os coletores de várias cores? Onde
a roça de milho, os sargentos eleitorais,
o sal no bornal,
os tropeiros da Estrela,
o Barão, a maleita? Onde puseram os meus
jornais? (Crimes fenomenais,
no Rio).
Que gato comeu
o queijo-do-reino despontado, vermelho, na estação de Barbacena?
E a flauta
infausta do Patápio Silva?
Ninguém responde.
Ninguém responda.
A Mata, explicada, não nos explica
no tempo. Volte ao que foi, ao vazio na véspera
do homem,
ao silêncio vegetal em que dormia
o escuro/absurdo
dos bichos que somos.
Coimbra, 1962/1964.
Porto Alegre, 1970/1975.
NOVEMBRO PAULISTANO
À memória de Mário de Andrade
AURORA DE SÃO PAULO
A aurora, ainda não cantada
nos labirintos (todos)
que a poesia há milênios ensaia;
a aurora, coisa tão simples
no seu véu;
a aurora que homeros-bardos, tardos,
não viram nos teus cabelos;
a aurora indiscretamente aberta
sobre esta cidade suja,
cidade preta,
a cidade de São Paulo, Sudeste do Brasil,
às quatro da manhã, esta cidade suando
pez,
esta cidade-guela, esta cidade-selva
não te incorpora,
aurora.
NONSENSE
Pergunto primeiro aos sapos
pergunto depois aos primatas.
259
Pergunto; perguntar (sem motivo)
é o braço direito do meu giro.
Ontem, sem nariz, Milcíades
na Grécia nascia;
e Horácio, no Helesponto,
plácido oferecia
a um mandarim latino
dois hexâmetros gregos.
Pois não me importa a danação
tamanha
de André Gide.
Entre o verdor da parra
e a pevide de abóbora,
escolho – se escolher não é crime –
os prêmios dos tolos:
uma banana nanica
fazendo as vezes
de cinco cargas
de dinamite.
O ÁTOMO NO BRÁS
No Brás (onde fica mesmo a frente
do Brás?) procuro o átomo
que Mário de Andrade não quis.
Procuro o átomo como quem
adivinha
a flor de uma loucura debruçada
sobre o cálice da flor-de-lis.
Procuro a palmeira do Conde
e os pômulos
de Beatriz.
Procuro no Brás a flor amarela
do samba, talvez.
Procuro o som para solver a bomba.
O FALSOS HEROÍSMOS
Não sei onde pararam tuas avenidas
de frase e farsa.
Vão por aí
além, são a abertura
numa selva de farpas;
o fim jamais rebenta
no claro.
A noite monta um leito
de rosas no octaedro,
mas a rosa maior não chega
a perfumá-lo, frágil
coisa.
Tuas avenidas de ser
e de esconder,
teu futuro oculto no barro,
tuas pupilas de estranho
animal
260
- onde param tuas aventuras
de senhor e de escravo?
VERTENTE
Afaste o escárnio do meu caminho,
do meu preceito faça uma jarra
para as camélias,
com o chapéu-de-chuva adule as nuvens,
à Censura diga o que possa, e o que pode
não diga ao sargento; da intriga
do amor não faça caso.
E agora,
para fechar a história com que me aflijo,
com licença,
calo-me.
OVIDIANA
Vejamos como se pode,
amiga,
duvidar dos neurônios
postos no olhar. No amar
a curva e seu presente.
No antigo se amava o mito
de onde nascia o cardo.
Vejamos como se pode,
amiga.
Houve um tempo esperto
para o ato de amar; finou-se.
Mas se houvesse de novo o turvo
que não se viu, onde estaríamos,
amiga?
Minha fome é alva como um pensamento
sem ponto fixo. Alimenta-se da flor
no deserto, no abstrato amor,
amiga, morto.
O POÇO
Que é um poço? Ora,
um poço é o abismo
escasso.
Antes fosse o homem um animal
anfíbio. E a ternura seria
um detrito achado no Mar da China,
digo, na carapaça
de um caramujo (ou de um sentimento
ficto).
O poço é o abismo
do meu arcaico.
261
PALAVRA
Amaranto – palavra
ou cais, diáspora
do medo, ou mero
desconchavo da boca?
Ah, seria bom dormir
com os seixos
na longa via
do Rio Doce.
Dormir
como se fosse
o átomo sem o clique!
E após a noite transitória,
a aurora, a mouramente
trança de Monchique.
ACALANTO DE AURÉLIO BUARQUE DE HOLANDA FERREIRA
chalo
chalota
chalrar
chalrreta
chalrote
chaluta
chama
chamalé
chama-maré
chamar
chamarada
chamaralda
chamareda
chamarisco
chamariz
chamarra
chá-mate
chambalé
chambão
chamboril
chamboíce
cham-
bor-
dis-
ta.
NIRVANA
Alguém dormia na corredeira
a corredeira alguém esperava
na corredeira onde não havia
água
alguém pescava o sono. O brando
da corredeira ajudava. Era um corrupio
macio. A corredeira corria,
no inverno e no estio, corria
a corredeira na cio, no burborinho
262
a corredeira corria
para nenhum rio.
NÃO NEGO
O poeta parnasiano, um senhor sem sono,
o poeta oblíquo pelo hábito de achar a rima
na curva do verso, no cavalgamento esperto,
o poeta parnasiano, quando o fôlego ajudava,
rimava. Não havendo rima disponível, o infeliz,
afundava-se no Chernoviz à procura da fórmula.
Digo, da receita milagrosa. Sempre achava.
Achar uma rima rica, escrava de outra rima
rica, dava lucros. Bilac não fazia por menos.
Não nego que vos amei, bardos ilustres,
a ponta do dedo, medrosa, a percorrer as páginas,
com bastante cuspe,
que para outras fruições também se prestava.
Poetas do raro, do lídimo, do elegante, do chique,
se fostes mortais, bem mais mortais do que a praxis,
maldosa, propala, é que vos faltou uma pistola
para matar na floresta
do dicionário
a fada caolha.
Não nego que vos amei de amor divino,
poetas.
SEM TÍTULO
A incontinência
o continente asiático na parede do grupo
a maneta
o pedestre (no dicionário se diz)
o vizinho doente.
Entre as mangas
do quintal, Antônio
costura as vestes
do passageiro na Estação da Luz.
Antônio, sem-mestre,
dispensa o molde
do costureiro inscrito.
Antônio retalha
a casemira –
e o terno se faz para vivo,
se faz para morto,
a roupa do abade (que não havia
na Rua José Paulino),
a roupa do resto.
A incontinência bivalve, um figurino
aberto.
CALAMARES
Absorvo calamares, editas calamares.
O édito, ou edito, dos calamares
263
já se baixou no sangue da Espanha?
Onde está o Franco?
Onde dorme o duque ?
Onde mora o eunuco?
Absorvo calamares com vinho tinto
e vinho branco.
Onde está o franco?
Absorvo calamares in-8°, gravata
de seda, lombada de porco.
Para os ricos tenho charneira
de ouro palha trazdida do Saara,
onde os calamares se comem como tâmaras.
Onde está o Franco?
Vomito calamares para os anjos,
que não falam basco,
para os guerreiros que bebem as ondas
dos Sete Mares.
Absorvo os calamares do rei da Prússia.
E o resto vai para o cão de Montalvo; fundo
uma fábrica de calamares na estrela mais clara,
no topo do Monte Branco.
Onde está Franco?
NARIZ
Não quero aqui
o teu nariz.
Quero a omissão
do nariz.
Do meu nariz;
florescência de bordas
e túneis,
vincos e caves.
Como seria bom ter um nariz
de esmalte
um nariz tão discreto e tão convicto
que por ele só se respirasse o azul
do canal de Corinto.
OS FUSOS
Os fusos têm fala fina, fiam de manso
para não despertar o degas
aquele poderoso xumbregas
dono de tudo isto.
Tudo isto que daqui
o senhor percebe se tem
olfato, se tem nariz.
Esta fábrica se faz poderosa
pela reação que provoca nas narinas alheias,
derrotando
os inofensivos que passam cheirando rosas,
como se rosas possíveis com todo este imenso
progresso.
Nós aqui estamos possessos de energia, de audácia,
queremos a humanidade perdida de amores
por nossos fusos
264
fusos infusos
fusos com muitos furos
para a entrada, naturalmente das notas
de banco,
das faturas, das viagens futuras, dos perfumes
apanhados no estrume
de tantos fusos perfuro-
-contusos.
OUTRO SEM TÍTULO
Coisa vária
coisa séria
coisa embora
histérica
onde puseste, Manuela,
os meus chinelos?
Ando tonto como os camelos
no Ártico;
à luz da bomba
me interiorizo.
Ando branco, breve,
como as garças.
Se me perguntassem com que penas,
diria que com as ocultas
carências do homem.
O homem? Que bicho sofreria o peso
de ser ao mesmo tempo
Antônio
José
Astério
Juvenal, Arquimedes?
O ESPIÃO
O espião espia se há mulheres parindo na fossa
o espião espia o robô enferrujando o poeta
o espião espia a si mesmo derretido
o espião espia os que espiam o espião espiar a vida
o espião não espia por ordem do cabo, do furriel e do sargento
o espião espia para dar notícia aos lordes
pelo fio invisível que o espião não tem
o espião espia como se faz um aleijado, um suspiro, um poema.
O espião espia a estufa, onde por um engano
da chave-mestra, em lugar de flores, vegetam
homens.
NA SARJETA
Aqui tem o senhor, na sarjeta,
muito dinheiro. Notas, veja bem,
não falsas. Notas de banco,
sagazes como os espectros de Hitchcock
notas tão caras como as nádegas
das sereias eslavas. As sereias
que rodopiam no alto daquele
265
arranha-céu.
As sereias costumam morrer, sufocadas,
no lixo da sotéia, mas o lixo passa. Renascem
na Rua Augusta com algumas rugas,
é verdade, mas para o caso
existem cremes e pós
puas
motos
arrotos caros
maremotos.
Aqui tem o senhor, na sarjeta,
o que plantou no banco.
O CLARIM
Retine o clarim, no meio do medo
o clarim retine, Retine o clarim
sem medo para avisar que chegou o dono do medo.
Retine o fácil clarim
retine o clarim difícil
retine o clarim em ti, no Prfírio, no rato, n bispo,
em mim:
retine o clarim do princípio
retine o clarim do sem-fim
retine o clarim
retine
o
clarim.
O BICHO SEM SONO
Já não podemos dormir.
Dormir é morrer no som,
e a voz não se cala.
O homem (mesmo que não fale)
fala.
Grita o seu processo
nos olhos abertos.
266
PARIS-EXPRESSO
Ao Mino
PARIS-EXPRSSO
Ici Paris! Paris –
uma senhora velha, com muitos achaques.
Tem a idade somada dos seus gatos
tosse pela escada acima e pela escada abaixo
usa um preto chapéu.
Fede.
Insensível ao sarcasmo e ao louvor
embala a vaidade goda dentro de si mesma
nas suas vísceras de Camembert
alho e cebola.
A civilização é uma coisa de mau cheiro
orgulhosa de seus pudores mecânicos,
de sua baba erudita, de seus crimes
polidamente bem arrotados na Bolsa.
Vejam a Place Pigalle, ou antes,
contemplem da Torre Eiffel
as excelências mascaradas
no boulevard, à mesa dos cafés.
Cinco horas.
O comércio de bocejos
arde no pano raro, no pote de ungüento onde se oculta
o sim da primeira conquista de rua,
o lenço de seda com que se há de enforcar
o último rajá de Utah.
267
Tiros. São argelinos longe da areia, ou simplesmente
o senhor prefeito do Havre que matou a mulher,
ou é, festivo, o palco do Lido que explode
- antigas rivalidades ente um general de Tunis e o
milionário maltês?
Debaixo das ardósias entorpecidas
a erudição vigia.
Ali, na Sorbonne,
morcegos insones
chupam de Homero a Racine o sangue das metáforas
(desculpem).
E o Sena, alexandrino de barro,
leva a última escória do amor
às sereias do Báltico,
saudoso de Victor Hugo, talvez.
Entre bouquinistes e pernas
de lânguido querer
escorrem descobrimentos de sujeitos
sábios. Este aqui decifrou a titica
de um primata do Lago de Como,
Marion Delorme fugiu com Rodolfo Valentino
para explicar ao Papa a histeria
recém-desvendada na Salpetrière;
aqui jaz o rabo do diabo
(a gente acaba no enxofre
mesmo sem vontade). Ici, num canto
agoniza um sapo (já foi Platão).
Enfim um Paris/Elzevir tudo se descobre,
inclusive a febre de descobrir.
O trivial nos sufoca. Midinettes sem Balzac
pescam nos cafés. Intermináveis joelhos
ossudos joelhos de belles-de-jours em conserva
vogam nos detritos de luxúria
sobre a tília do chá e o copo de cerveja
da Alsácia.
Da Alsácia.
Da Alsácia – nas gargantas
e nos affiches.
Gemidos no asfalto, roubos no asfalto, cartazes,
tecidos idílicos no asfalto.
Peitos se oferecem
à luz da boutique. Nos passeios
os mictórios secretam cheiros
compridos, ao lado dos plátanos de maio.
Gatas da perversão sobem o boulevard Saint-Michel
nos olhos de Baudelaire
e de outros sujeitos pávidos.
Barbas de profetas flamejam nos cafés:
a goma de mascar e o 007
anunciam o triste jogo.
É isso, mon amour.
O mundo anoitece pré-enforcado pela sílfide
nascida do olho abstrato
de Jean-Paul Sartre
seca e fria como um camarão
(fui ver, era um homem)
de cabelos longos e sujos
(um homem da última safra).
Costureiros dubitativos
268
Pingam alfinetes e pasmos
no sexo embotado
de senhoras de Oslo e de Java,
Cortina d’Ampezzo (e até de Paris).
Mas o que vejo nos véus
de tanta nostalgia madura,
são pernas de fogo abertas à sombra
dos meus cafezais
de là-bas
prontas para aceitar
prontas para doar
prontas para conceber
prontas para o excitante
da vida.
Tetas e cabelos se misturam
pendurados na insônia medieva
de Saint-Germain-des-Prés.
Não, aquelas ancas não servem
para o ato imemorial de procriar.
As lojas transbordam
de pestanas plásticas
e dentes de galalite.
Passam cães perfumados, estudantes do “bac”,
senhoras copadas
olé
do México
de Abbeville
Carcassonne e Larache.
Só não passa o anjo
por quem Musset morreria
se aqui estivesse, no Café de Flore, e não no limo
florido de Père Lachaise.
Vejo-me nu
Desprovido de
meus nervos mineiros
no centro de boulevard Raspail.
Escutem. Vim do Montparnasse
daquela farmácia de esquina onde um caolho vendia
barbitúricos peruanos a Verlaine e Rimbaud.
Entro no Procope de guarda-chuva,
imploro a Voltaire
que me explique esta velhice toda.
Será preciso guilhotiná-la de novo,
Em nome da Manhã?
E agora
vos digo:
a última aurora enterrou-se ali mesmo
nos casarões bolorentos do Marais
a dois passos da Bastilha e dos floreios
de Madame de Sévigné.
Garçon! Garçon:
Nesta mesa não se tem fome, a fome da besta
na hora do desumano.
Come-se croissant (com a ponta dos dedos)
de um lado a outro da calçada
e vem-nos, oui, o álcool degenerado em sorrisos.
269
Tenhamos paciência.
Desbotadas glórias
insistem nas placas
de ruas encardidas.
Ostras de mares normandos
(na rue Bonaparte)
esperam caladas
o vinho e o pão
no tédio uniforme. Paris. Paris. Paris.
Os bouquinistes se queixam:
ninguém já percebe
o mel que destilam
suas caixas pretas
- beócios da Grécia,
patetas de Roma.
Caixas de livros flutuam num mar de basbaques, enreda-
dos nos próprios cabelos, Chegados de Rennes, Tóquio,
Conceição do Açu, de Nice, Uberaba, , Chapéu d’Uvas, de
Oslo, Londres, Washington, seus cabelos pululam. E a go-
ma de mascar o Eterno, importada de jato, Paris inunda-
da, paris submersa, nesse verão ianque.
Paciência.
Mesmo sem o olhar de Montaigne
a gente vê.
A vida é um repetido isso-mesmo, bocejado
da Igreja de Notre Dame
à Igreja de Madeleine,
uma história em quadrinhos
contada ao Arcebispo de Paris
(desmemoriado)
por um sacristão basco.
A vida que no Luxembourg
na Étoile
no palácio de Rambouillet
em toda a parte
não pede senão m copo de absinto
para em delírio explicar-se.
É madrugada, e Paris
vende-se. A velha dama não dorme.
Veste-se, despe-se, mas não dorme.
Todas as línguas lhe pedem
sedas fitas botões idéias
prazeres secretos.
C’est Paris.
Bocejos endinheirados, num coro de neurose,
cantam-lhe a nênia, a balada, a ode.
E Paris não dorme.
Bolsas universais enchem de francos e de carícia
suas mãos e seus rins.
A vida não deve ser isso que se vê.
Ora bem, a vida tem um segredo
além e fora de nós.
Irá ouvi-lo
a mulher deitada que na floresta
dos tempos futuros
270
de novo receba o homem suado e feliz.
Aqui, não; esta velha não deixa.
Seus peitos são frios
o nariz e de gesso
tem cabelos postiços
e a placenta vazia.
Paris.
ANEPÍGRAFO
SONETO LARVAR
E deixo-me sumir cuspir e matar
pelo teu nome, poesia malferida
na lâmina do artefato.
Inquieto, pergunto: Quando serás chama,
de novo, convertida em ato?
Ah, não respondes. Continuas a existir
sem o teu escravo, inconclusa essência
de lágrima e pergunta.
Não é perfeita que te cofiguro.
Vejo-te melhor no incorpóreo do sopro,
distanciada do frio, do perfeito, do puro.
Vejo-te limpa no barro do logro,
carícia selvagem do bugre,
grito de gozo do cego no escuro.
TRÊS SONETOS MALDITOS
I
Ser como o homem foi (e é agora)
sempre, em outras eras que não conto
na minha fábula... Pois não sou senão menino
num mundo como este em que me aterra
o feito, o vivido, o já pensado em outra
cidade, sob outros vexames da Lei. Ah os meus
são vexames de uma hora, e não percebo,
271
atrás de mim, o que me ampara – nevoeiro.
Sozinho é que me sinto. A solidão,
cadeia sempre, é o único prêmio talvez
consentido ao bicho, na jaula imensa em que
se mata. A solidão! estou gritando aos cafres,
aos letões de Paris, aos lêmures de sempre,
ao castor em sua casa, perdido como eu,
II
Já repararam? Isto é um lugar vazio em que
brincamos de esperar que o encha alguma coisa.
Alguma coisa muito para além do provável, do possível,
mesmo do desejável. Porque o povoamos de um enredo
de melodrama, com castigos de barba e tremendos
disparates morais. Um lugar vazio, com efeito,
este em que estamos à espera do nada que do nada
saiu. Ou não é assim? Ou existe esperança,
uma possibilidade, ainda que remota, de enchermos
isto – o horizonte em que se arqueia a tarde e com ela
me arqueio – de um Deus presente e fecundo,
criador de uma nova geração de seres, nem tão vulgares,
nem tão pequenos como somos? Mas, então, por quem espera
esse Deus que fugiu ao encontro de si mesmo?!
III
Veneramos a cera, em nós, no mais secreto de nós
mesmos, a cera em vão amassada pela abelha no ar,
pelo vazio deste azul, na tão vazio, certamente,
que os homens já andam nele como em segunda terra.
Andam no azul. Para que outro horizonte, se este
mesmo em eu pousamos à tarde os olhos degradados
não explica senão que tudo é um nó apenas,
uma rodilha de maus, com alguma ansiedade e covardia
no meio? Para que outros céus, outros guetos,
outros jardins perdidos, outros becos de sal
rasgados na carne, e outras nebulosas?
Já sei. Precisamos do ópio obtido na estrela não feita,
de um licor que só os cometas da catástrofe podem deitar
em nossa boca. E provaremos, adeus! o derradeiro abismo.
SONETO DO ÓBVIO
O frio desejar em que a vida se resolve
para os que vão ficando vazios na estrada,
Goethe, velho o sentiu. Byron, não, recusou-se,
e morreu antes da tarde, antes de chegar o nada
que todas as ilusões, gregas ou persas,
acabam por levar ao Pólo, com os últimos ardores
272
do Gulf Stream. Mas há seres que não se consomem
por isso; fecham simplesmente os olhos à treta
da clepsidra, invenção de algum grego de Delfos
no tempo da decadência. A hedionda clepsidra
em que os ímpetos da carne, afinal se descobrem
gelados. A clepsidra que nos mede a ternura,
a lágrima, o olfato. A clepsidra que os amores sacode
na Primavera, e no Inverno reconta os esqueletos.
AMANHECI GALEGO
Amanheci galego, duro vai ser.
A chuva na vaca, o tojo no monte,
a pedra no sino, moinho a moer.
Amanheci deste jeito, que hei de fazer?
O mar de Coruña não quis (e pedi)
me lavar,
as albas de Vigo não me viram passar.
Ó majas de Orense, garanto: Perdi-me,
sem paz, no fundo imundo de certo ventre
ao entardecer.
Galego, se me dais licença,
galego para na lágrima dizer
Orillas del Sar, e nascer.
Galego como os rouxinóis na ramada,
o suspiro no mar, o sino de sempre
nas almas penadas.
Galego no tempo da flor,
só para cantar as rías dormidas,
de Padrón ao meu coração.
Numa noite (destas) de chuva e de barro
irei, penitente, ao portal de Santiago,
mas agora não posso: sou galego sem lei,
principalmente para cantar no vago
esse mundo verde,
galego a mais não poder.
CANÇÃOZINHA DO MINHO
Encontro nos teus caminhos
Minho
Um verde sem remissão.
Federico Verde, digo, Lorca
Não viu o verde do minho; mas então
Por que caminhos andou Federico
García Lorca e seu cantar de arminho?
Encontro os teus caminhos
Minho
Cheios de verde; no ar, na pedra,
No som,
Nos olhos das raparigas,
273
No pecado e nas espigas.
Em tudo o verde minhoto,
Um verde sem remissão.
Ai! nos teus caminhos
Minho
Tenho verde o coração.
CAVADOR MINHOTO
Gerifalte, lua clara,
pedregulhos no caminho,
sorriso de mulher nova
(é o destino).
Romeiro das sete fragas
subo montes para ver
minha teimosa esperança
na mais completa nudez.
Cavo poços ao luar,
de dia acho minha cova.
Só a loucura me entende
nas noites de lua nova.
DUAS ESTÂNCIAS INGLESAS
I
Não é flor que te dou.
Dou-te apenas o orvalho
nascido de uma chama
nesta pausa de treva.
O mar dele não participou.
Nasceu da indecisão dos montes e das pedras,
pequenino e acanhado.
É o meu presente
na flor desabrochado.
II
Se eu te dissesse: “Vem!”
e viesses por um momento
recriada no olhar que foi gemido;
se o pasmo de te rever
fosse o sonhado
e o há muito perdido;
se viesses assim, eu não mais fugiria,
oh Jezabel, para o país do olvido.
URGENTEMENTE
Um bocado de amor, um só bocado,
Que venha urgentemente. Eu quero
Receber e gastar o meu presente
Agora, e só agora, nesta vida.
274
Nunca depois, ainda que dobrada
A delícia do amor. Somente agora
Me serve esse bocado que desejo
Receber e gastar longe da treva.
Urgente, o meu pedido. A minha pena
É não saber onde se encontra agora
Um bocado de amor. Urgentemente,
Um bocado de amor, que não me falte,
Um bocado que peço e que se nega,
Um bocado de amor, funebremente.
CONVERSA NOTURNA COM REINALDO MOURA
- Procuras no ar o que ninguém achou,
uma forma de vida no molde
cristalizada. Vagueias, aturdido
de tanta vida pensada. Queres a discrição,
o extrato, inutilmente; acharás
sempre
a borra do dia.
- Sei disso, mas procuro
(Reinaldo Moura respondia).
Reinaldo, de óculos escuros,
fitava a mulher de outrora na Place Pigalle,
cheirava-lhe a forma nascente; corria atrás dela
como um tapir nos campos de Flandres.
Reinaldo saqueava Paris, e Paris lhe bastava.
Reinaldo amassava palavras e sustos,
Sorrindo; fabricava pílulas e anapestos.
Não lhe importava o amargor.
À falta de clientes, ele próprio engolia
as tisanas que macerava.
A bruma dos dias iguais (de casa
para a Biblioteca) lhe dava
diamantes no fundo da cuia:
Proust tossia, e o ouro brilhava.
No campo aberto, com os óculos escuros,
Vacilava.
Que buscava? Um cavalo
de penas,
um rosto noturno, um anjo sensual,
uma espiga de trigo na planície normanda
de Santa Maria da Boca do Monte?
Buscava.
Sua boca, um dia, no imprevisto
da náusea, fechou-se.
- Cuidado, Major; não digo mais nada.
Silêncio, Major. No último nicho de pedra
é como aqui fora:
só existe a forma estagnada.
Mas onde, Reinaldo, o teu riso suplício,
onde os teus passos de sonâmbulo
(passos de quem voava), onde e como
selaram na tua boca a última palavra?
275
A palavra te vinga.
DISPERSOS
Caderno de Sábado, 25/12/76
TRÊS POEMAS
Nicolau Laluna
Vermelhaço,
Esguichando energia pelas ventas,
Nicolau laluna é o homem forte da vila.
Tão forte que possui o monopólio da pólvora.
Nicolau laluna fabrica doce de manga,
Tira leite de vaca, faz queijo;
Conserta relógio, revólver, carabina.
Nicolau Laluna, só para os íntimos
(o fiscal da Câmara, o delegado,
o farmacêutico),
prepara no fundo da loja
divina massa de macarrão (com ovos).
O que subima, porém,
Tanta energia, e seu nome propaga,
São os fogos.
Na véspera do Natal, enquanto toda a gente espera
A missa do galo,
Nicolau enlouquece:
Traz um tição para o meio da rua.
E lá manda os seus foguetes de lágrimas
À Via Láctea com a notícia recente:
- nasceu o menino.
276
Trégua de Natal
Noite de Natal. Fazemos nossa devoção.
A estrela de Belém brilha desmaiada
No presépio da sala.
A família, reunida, festeja o Menino.
O conhaque é francês; da Itália,
O vinho tinto; da Grécia, as passas
Sem as quais gente de trato não vive;
De Portugal, com as castanhas,
Procedem as anedotas.
Na missa do galo,
A palavra vem de Cristo, por intermédio
Do Padre Calleja, espanhol de Vigo.
São Sebastião, outro estrangeiro,
Naquela estampa
Por nós se esgota em seu precioso sangue.
E Deus, tão bom, pelo jeito
Fala uma língua também de fora: ninguém
O entende.
Por isso, Marocas, festejamos tão próximos,
E tão desunidos, esta noite.
Manuel pensa que vai me prejudicar na contagem
Do gado; muito se engana. O Antenor,
Aquele patife, em janeiro me paga a promissória, ou protesto.
Odila e José avançam calados no dinheiro da minha legítima;
Pensam que não sei.
Hoje é Natal, que as coisas boas da estranja
Nos consolem. Amanhão cedo, com a graça de Deus,
Voltaremos ao que é nosso.
O Trigo
Todos falam de mim. Dizem bobagens, inventam histórias.
(não digo palavra.)
absorvidos pelos negócios
não chegam a imaginar, coitados,
como dói germinar, crescer, formar
espigas.
(por isso não digo palavra.)
pintores e poetas não me entendem
(detesto Van Gogh e Francis Jammes).
Os pastores, sim, e os velhos cães
Me compreendem
Na mansidão em que vivo.
Com o mar, distante, não me envolvo:
Sou filho da terra firme, do chão arejado
E paciente. É para mim que o sol canta
E se multiplica em tiras de ouro.
Amo as coisas simples. Só os pássaros
E os bichinhos do campo
-só eles merecem o meu sangue.
Mas o homem é que me busca,
Me tritura, me ensaca, me vende.
No campo, sou livre: converso as nuvens e o vento.
277
À mesa, corado, não digo palavra:
Alimento.
O soneto que segue é inédito no Brasil e foi localizado em Lisboa pelo Prof. Dr. Ernesto
Rodrigues. Está incluído no livro Guilhermino Cesar, memória e horizonte: 1908-2008.
Edição comemorativa do centenário. Organização, apresentação e seleção de textos por
Maria do Carmo Campos. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul/Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, 2008. (no prelo)
Mestres da linguagem: Machado de Assis
Ó Machado de Assis, ainda, te lembras
De Capitu e Dona Carmo? Em que
Figura de paxá ou de vizir
Tens hoje o prémio de não mais pensar?
Não legaste a ninguém tua miséria,
És pura essência, crispação sonora
Do pensamento que resume a vida
Na majestade de uma forma rara.
Ó fabuloso jardineiro, o Rio
Já não te vê semear. Tudo é silêncio,
Tudo passou, morreu, no Cosme Velho.
Só não morreu a tua prosa, eterna
Como a quiseste, flor que sempre dura
Nesse vaso de ouro em que a deitaste.
278
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