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MARIA ANGELICA ZAMORA XAVIER
A INSCRIÇÃO DO SUJEITO EM SEGUNDA LÍNGUA: UM
ESTUDO ENUNCIATIVO DE NARRATIVAS DE IMIGRANTES
PORTO ALEGRE
2008
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
ÁREA: ESTUDOS DA LINGUAGEM
ESPECIALIDADE: TEORIAS DO TEXTO E DO DISCURSO
LINHA DE PESQUISA: ANÁLISES TEXTUAIS E DISCURSIVAS
A INSCRIÇÃO DO SUJEITO EM SEGUNDA LÍNGUA: UM
ESTUDO ENUNCIATIVO DE NARRATIVAS DE IMIGRANTES
MARIA ANGELICA ZAMORA XAVIER
ORIENTADOR: PROF. DR. VALDIR DO NASCIMENTO FLORES
Tese de Doutorado em Teorias do Texto e do
Discurso, apresentada como requisito parcial
para a obtenção do título de Doutor pelo
Programa de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
PORTO ALEGRE
2008
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Tzu-lu disse: “Se o senhor de Wei encarregasse você da administração (cheng) do
reino, o que você faria primeiro?”.
O mestre disse: “se algo tem de ser feito primeiro, é, talvez, a retificação (cheng) dos
nomes”.
Tzu-lu disse: “É mesmo? Que caminho indireto o Mestre toma! Para que tratar da
retificação?”.
O Mestre disse: “Yu, como você é atrapalhado. Espera-se que um cavalheiro não
ofereça nenhuma opinião sobre aquilo que desconhece. Quando os nomes não são
corretos, o que é dito não soará razoável; quando o que é dito não soa razoável, os
negócios não culminarão em sucesso e ritos e sica o florescerão; quando ritos e
músicas o florescerem; a punição não encerrará os crimes; quando a punição não
encerrar os crimes, o povo ficadesanimado. Assim, quando o cavaleiro nomeia algo,
o nome com certeza terá uma função em seu discurso, e, quando ele dizer algo, com
certeza será algo passível de colocar em prática. Um cavaleiro é tudo menos casual
quando se trata de linguagem”. (XIII. 3)
Con
fúcio. Os Analectos. (p.181-82)
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho a meu querido pai Sergio Pascual Zamora Cubillos, que
faleceu poucos meses antes de vê-lo concluído. Pela força de vontade que mostrou até
seus últimos dias, pela sua amizade, pela cumplicidade que tivemos nos velhos tempos,
por me ensinar a olhar para o céu quando brincávamos de pandorga ou escalávamos
alguma montanha. Também foi ele um dos maiores inspiradores desta realização por
meio de seu exemplo como pessoa e como professor que sempre foi à procura do
conhecimento, atravessando paisagens e nguas, abrindo ao passar novos horizontes,
sem perder a convicção da relação com os outros, dedicando-se a entregar, a quem
interessasse, seu saber.
5
AGRADECIMENTOS
Agradeço, inicialmente ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, pela oportunidade que deu para ampliar minha formação
acadêmica.
A CAPES, pela bolsa, que favoreceu a conclusão deste estudo.
Agradeço ao estimado orientador e amigo Valdir Flores que acolheu este estudo
produzindo sempre espaços de interlocução e reflexão, valiosos para seu
amadurecimento. Ainda, a pesar da distância física que esteve no fim deste trabalho,
conseguiu se fazer presente de maneira especial, dialogando, corrigindo, e instigando
sempre a novas idéias.
Meus agradecimentos às professoras Simone Rickes e Sônia Lichtenberg que
participaram da banca de qualificação, oferecendo subsídios preciosos para organização
final desta tese.
À professora Denise Jardim da Antropologia da UFRGS e ao núcleo de pesquisa NACI
(Núcleo de Antropologia em Cidadania e Imigração), que abriram um diálogo
interessante com a minha produção intelectual.
Um especial agradecimento aos imigrantes que tão gentilmente se dispuseram a contar
suas histórias.
Com carinho agradeço a meu marido Eduardo, que não me acompanhou
afetivamente neste período, como também se mostrou um interlocutor atento e bem
humorado.
6
À minha filha Aurora que sempre me nutriu com seu carinho e paciência, sem os quais,
as coisas não teriam o mesmo sabor.
Um agradecimento especial à minha estimada amiga e colega Sônia Lichtenberg, que
me incentivou durante esta formação com suas opiniões sempre oportunas, pela sua
disposição e generosidade. Também pela paciência em corrigir este trabalho.
Agradeço aos colegas, que sempre aportaram ricas discussões Luiza, Carmen, Tanara,
Jéferson, João, Fabiana, Leandro, Thais.
Ao professor Ernesto Xavier pela tradução do Resumo e auxilio em língua francesa.
Agradeço ao carinho de meus familiares, minha mãe Angélica, meus irmãos Sergio e
Carlos, meus sobrinhos e cunhados.
7
RESUMO
O estudo aqui apresentado se propõe uma análise enunciativa de narrativas de
imigrantes no Brasil, as quais foram recolhidas em entrevistas, privilegiando a fala ou
construção oral. O objetivo principal foi de elucidar o tipo de relação que o imigrante
estabelece com a outra língua e cultura. Observamos tal relação como efeito de um
processo que requer a inscrição do sujeito em segunda língua e, consequentemente, sua
simbolização no campo social ao qual se dirige no contexto migratório. Para proceder
neste objetivo, utilizamos o referencial da Teoria da Enunciação de Émile Benveniste,
que organiza o eixo principal do nosso estudo para tratar do fundamento enunciativo
proposto. Acrescemos com as contribuições teóricas de Dany-Robet Dufour para
estabelecer a dimensão narrativa. Embora, mencionemos principalmente os aportes
destes dois autores, outras contribuições foram indispensáveis para a concepção final de
enunciação que interessava ao nosso estudo e, aqui, não podemos deixar de citar
Ferdinand de Saussure e Jean-Claude Milner. Com eles, consideramos o que faz Um na
língua e a ruptura do Um, que anuncia a presença do sujeito na língua, em sua
singularidade.
Por fim, reconhecemos a narrativa do imigrante como um mecanismo complexo
da enunciação, que ao mesmo tempo, mostra o tipo de relação do sujeito com a segunda
língua e, realiza o vínculo com o novo contexto enunciativo, por meio deste suporte na
linguagem.
8
RÉSUMÉ
Cette étude a pour but de réaliser une analyse énonciative de récits d’immigrés
au Brésil, recueillis lors d’entretiens dans lesquels l’on a privilégié le registre oral. Le
but principal a été de préciser le type de relation que l’immigré établit avec la langue
seconde et avec la culture d’accueil. Nous nous sommes intéressés à cette relation en
tant que résultante d’un processus impliquant l’inscription du sujet dans cette langue
seconde et par conséquent sa symbolisation sur le plan social qui est le sien après la
migration. Nous avons bâti l’axe principal de cette analyse sur la Théorie de
l’Énonciation d’Émile Benveniste pour traiter les fondements énonciatifs choisis. La
dimension narrative a été étudiée d’après les contributions théoriques de Dany-Robert
Dufour. Bien que ces deux auteurs soient les plus mentionnés dans ce travail, d’autres
contributions ont été indispensables pour la conception finale de l’énonciation
nécessaire à cette étude, telles celles de Ferdinand de Saussure et Jean-Claude Milner.
Comme ces auteurs, nous avons cherché à définir ce qui fait Un dans la langue, tout
comme la rupture de ce Un, et qui montre la présence du sujet dans la langue et sa
singularité. Finalement, nous considérons le récit de l’immigré comme un mécanisme
complexe de l’énonciation, permettant de comprendre le type de relation établi par le
sujet avec la langue seconde, en même temps qu’il réalise le lien avec le nouveau
contexte énonciatif par le biais de ce support dans le langage.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................12
1. O IMIGRANTE: UM ENCONTRO INUSITADO COM AS DIFERENÇAS .........21
1.1 A TERRITORIALIZAÇÃO E O IMIGRANTE........................................................23
1.2 O PARADIGMA RELIGIOSO E O LUGAR DO IMIGRANTE..............................31
1.2.1. Quebra da realidade do outro: o sujeito em questão...........................................38
1.2.2. Temporalidade do sujeito ...................................................................................39
1.3. O NACIONALISMO BRASILEIRO E O IMIGRANTE.........................................41
CONSIDERAÇÕES PARCIAIS......................................................................................46
2. DO PARADIGMA DA LÍNGUA À EXPRESSÃO ENUNCIATIVA .......................50
2.1 O CORPO DA LÍNGUA SAUSSUREANA.............................................................53
2.1.1 O valor na língua e o campo das articulações .....................................................61
2.2 A TEORIA DA ENUNCIAÇÃO E UMA LEITURA POSSÍVEL DAS MARCAS
DO SUJEITO NA/PELA LÍNGUA .................................................................................67
2.2.1. Da natureza da língua na Teoria da Enunciação.................................................68
2.2.2 No conceito de enunciação..................................................................................78
2.2.3 Considerações para uma perspectiva enunciativa do imigrante..........................85
2.3 O PRISMA DE UMA LÍNGUA AFETADA PELO NÃO-TODO...........................86
2.3.1 O imigrante no paradigma da língua não-toda ....................................................92
2.4. CONSIDERAÇÕES PARCIAIS...............................................................................94
3. A CONSTRUÇÃO NARRATIVA E SEUS DESDOBRAMENTOS PARA UMA
INSCRIÇÃO ENUNCIATIVA.........................................................................................97
3.1 A LÓGICA TRINITÁRIA E A LINGUAGEM.......................................................100
3.2 A TRINDADE NATURAL DA LÍNGUA: RECOLOCAÇÃO DA FORMA
ENUNCIATIVA.............................................................................................................106
3.2.1 Díade Eu-tu........................................................................................................107
3.2.2 Ele: a não-pessoa na pessoa...............................................................................109
3.2.3 Duas noções do “ele” na passagem do discurso à escrita..................................115
3.3 A CONSTRUÇÃO NARRATIVA E O PRINCÍPIO TRINITÁRIO......................118
10
3.3.1 A narrativa no entrecruzamento com a língua natural.......................................122
3.3.2 Sobre algumas considerações da narrativa no imigrante...................................123
3.4 CONSIDERAÇÕES PARCIAIS..............................................................................128
4. ANÁLISE DE NARRATIVAS DE IMIGRANTES: UMA PROPOSTA
METODOLÓGICA AMPARADA NA TEORIA DA ENUNCIAÇÃO ......................129
4.1 O FATO ENUNCIATIVO COMO UNIDADE DE ANÁLISE...............................131
4.2. COLETA E DESCRIÇÃO DO CORPUS DOS FATOS ENUNCIATIVOS .........132
4.3. PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE.......................................................................135
4.3.1 Os critérios de estabelecimento dos fatos enunciativos.....................................135
4.3.3 Sobre a análise propriamente dita......................................................................139
5. ANÁLISE DA ENUNCIAÇÃO CONTEMPLANDO UMA INSCRIÇÃO EM
SEGUNDA LÍNGUA........................................................................................................143
5. 1 Imigrante italiano: No meio da cena, uma transposição de língua........................147
5.1.1 Sobre o sujeito 1: imigrante italiano (S1)..........................................................148
5.1.2 Contexto enunciativo:........................................................................................148
5.1.3 Apresentação dos fatos enunciativos e respectivas análises..............................148
5.2 Imigrante uruguaia: Na fronteira entre uma capital e um interior: a construção de
um novo conceito de subjetividade na imigração...........................................................169
5.2.1 Sobre o sujeito 2: imigrante uruguaia (S2)........................................................169
5.2.2 Contexto enunciativo.........................................................................................169
5.2.3 Apresentação dos fatos enunciativos e respectivas análises..............................169
5.3. Imigrante russa: uma babel na língua e na vida.......................................................184
5.3.1 Sobre o sujeito 3: imigrante russa (S3)..............................................................184
5.3.2 Contexto enunciativo.........................................................................................184
5.3.3 Apresentação dos fatos enunciativos e respectivas análises.........................178
CONCLUSÕES PARCIAIS...........................................................................................197
6. PARA CONCLUIR: ENTRE OS DESLOCAMENTOS DE LÍNGUA: O
SUJEITO NA BARCA DA ENUNCIAÇÃO..................................................................199
6.1 Sobre a designação de imigrante..............................................................................200
6.2 Considerações sobre a língua e o imigrante .............................................................201
6.3 Considerações sobre a enunciação e o imigrante .....................................................205
6.4 A narrativa como mecanismo enunciativo complexo útil ao imigrante...................207
6.5 Sobre as análises.......................................................................................................209
6.5.1 Em relação à díade intersubjetiva eu/tu.............................................................211
11
6.5.2 Em relação à tríade eu-tu/ele.............................................................................213
6.5.3 Em relação ao conjunto eu-tu/ele/ele.................................................................216
6.6 Sobre o aporte da Psicanálise ...................................................................................218
TEMPO DE CONCLUIR...............................................................................................220
BIBLIOGRAFIA..............................................................................................................221
12
INTRODUÇÃO
O estudo que aqui apresentamos compreende uma análise da construção
enunciativa de imigrantes vindos ao Brasil, no qual destacamos a narrativa por eles
desenvolvida quando retratam a experiência migratória. Procuramos identificar, por
meio desta narrativa, de que maneira os imigrantes se deparam com os elementos
lingüísticos e sociais do país ao qual chegam. O objeto de interesse, assim considerado,
requer que o estimemos como uma composição fina, em um mecanismo lingüístico
peculiar, pelas condições em que se mostra, principalmente porque o narrado não se
dirige para o lugar de origem, mas ele toma corpo, contemplando o novo contexto em
que o sujeito se encontra. Como hipótese inicial, entendemos que a elaboração desta
narrativa serve como forma de estabelecer coordenadas para apreender-se no
sentido dessa experiência migratória. Consideramos, nestas condições, o papel
fundamental que a língua detém como mecanismo principal no estabelecimento da
ordem simbólica que sustenta os sujeitos em suas manifestações. Sendo assim,
escolhemos organizar nosso estudo no campo da Lingüística, que se ocupa da
organização na língua e, em particular, nos atemos à Teoria Enunciativa de Émile
Benveniste, a qual contempla, junto aos mecanismos da língua, a presença de quem a
utiliza, oferecendo coordenadas para os sentidos possíveis do dizer.
Somado ao referencial benvenistiano de análise da linguagem encontra-se a
leitura epistemológica da teoria lingüística feita por Jean-Claude Milner (1987) e Dany-
Robert Dufour (2000). Ambos, e cada um a seu modo, fazem uma leitura da lingüística
mediada pela psicanálise lacaniana. O primeiro concentra-se em fazer, deste prisma,
uma revisão da teoria saussuriana; o segundo dedica-se especialmente à teoria
benvenistiana. Isso posto, cabe dizer, então, que a proposta de análise aqui apresentada
não se configura, propriamente, em uma aplicação direta das idéias de Benveniste, mas,
sim, de uma ampliação de seu quadro teórico. Neste ponto, seguimos de perto as
indicações de Normand (2001) para quem le sujet de l’énonciation, loin de se limiter à
13
une catégorie d’unités linguistiques dont le rôle et la place seraient bien cernés (les
fameux shifters) peut se manifester et multiplier les significations n’importe où, là où on
l’attendrait le moins ; ce que pressentait, je crois, Benveniste quand il distinguait le
sémantique du sémiotique, mais sans accepter toutes les conséquences de cette
inquiétante découverte (Normand, 2001, p. 29)
1
.
Ao descrever a narrativa deste modo, a dotamos com a qualidade de funcionar
como cartografia do dizer, porque as cartografias se constituem como a arte de compor
cartas geográficas, apelando para o discernimento e a astúcia de quem organiza os
pontos geográficos em que o lugar se figura. Da mesma forma, entendemos que a
narrativa é relativa a uma arte em que o sujeito compõe cartas, mapeando os lugares em
que ele se capta em seu dizer. O lugar no mapa do qual falamos, está possibilitado no
terreno da linguagem. Como conseqüência deste ponto de vista, não tratamos o sujeito
como um dado a priori, mas como uma construção ao longo de uma arte de se encontrar
fazendo cartas. As cartas que aqui nos interessam, retratam o “desarranjo” que o sujeito
vivencia quando passa do sistema lingüístico-cultural de origem para um outro, tendo
que produzir novos “arranjos” em outro sistema lingüístico-cultural.
Na travessia tanto geográfica quanto subjetiva, observa-se a conjugação de
vários pontos de vista que o imigrante se convidado a considerar. Temos entre os
principais o precedente discursivo que encontrará, amparado em paradigmas locais a
respeito da figura do imigrante, determinado pelas relações históricas de cada país. Já
no plano individual, subjetivo, temos o olhar que ele mesmo irá construir, sob diversos
ângulos, a respeito do seu encontro pessoal com as diferenças e semelhanças que o
venham a afetar nessa experiência. Assim ao longo do nosso trabalho, trazemos uma
discussão constante sobre a maneira como estes elementos se apresentam na sua
narrativa.
Entendemos que a construção narrativa, que aqui nos preocupa, se integra a
um processo de inscrição de sujeito em outra língua, e reconhecemos nesse processo
uma nova configuração enunciativa que o representa neste outro lugar, diferente da
adquirida em língua materna. Essa configuração enunciativa possibilita o
1
O sujeito da enunciação, longe de limitar-se a uma categoria de unidades lingüísticas cujos papel e lugar
seriam facilmente definíveis (os famosos shifters) pode manifestar-se e multiplicar as significações em
qualquer lugar, onde menos se espera. É o que já pressentia, creio, Benveniste, quando distinguia o
semântico do semiótico, sem aceitar, entretanto, todas as conseqüências dessa inquietante descoberta
(Normand,. 2001, p.29). Tradução nossa.
14
estabelecimento dos nculos comunicativos necessários ao novo lugar social do qual
começa a participar.
Diante o exposto, entendemos que esse processo de inscrição compreende uma
dupla significação: por um lado, atemo-nos ao que se expressa como uma demanda,
quando se refere ao impulso de dimensionar o universo do outro e se integrar a ele; por
outro lado expressa, a conseqüência desta demanda quando esta se propõe como uma
relação, e aqui está um sentido matemático de operações notadas em termos de função,
como quando se diz um elemento em razão de outro elemento. Assim, demandar algo
desta nova estrutura social cria as condições para se relacionar ao contexto. Observamos
com isso o duplo aspecto que a narrativa implica para o sujeito imigrante, que tem de
desenvolver suas motivações em um espaço desconhecido, reinvestindo objetos em seu
dizer, conforme as circunstâncias e, para que isto seja possível, é urgente que ele
estabeleça uma nova dimensão, proporção, entre os objetos lingüístico-culturais com os
quais tem de conviver no novo país.
A hipótese assim exposta, resulta de uma reflexão aprofundada
2
sobre o sujeito
em pauta, que aqui assumimos como imigrante e não como estrangeiro. A distinção, que
fazemos, decorre da consideração de que o imigrante se compreende como um sujeito
que se precipita por uma possibilidade que ele mesmo introduz em sua vida, optando
por viver em outro lugar, diferente ao da sua terra natal e se assujeitando
3
a esse outro
lugar. O estrangeiro, ao contrario, não admite essa possibilidade, preferindo o lugar de
espectador, sem compromisso real com o outro espaço sociocultural.
Reconhecemos, nesta distinção, um trabalho específico que o imigrante realiza
para simbolizar seu lugar no outro contexto que escolhe, escolha que implica ser
também escolhido. Por isto, o solicitar sua inscrição na cultura, caracteriza-se como um
propósito complexo, pois, não basta simplesmente o fato de apresentar uma
documentação adequada, conforme a lei do Estado, é preciso também produzir um
2
Esta preocupação vem amadurecendo alguns anos quando no Mestrado nos indagávamos sobre o
imigrante hispano-americano e hoje o ampliamos nosso ponto de vista para observar o imigrante
considerando aspectos estruturais do sujeito que mergulha na experiência do deslocamento subjetivo
através da travessia de língua e lugar, ou seja, procuramos um fundamento maior que diga respeito a esta
posição de sujeito na língua. Ver: XAVIER, Maria Angélica Zamora. O imigrante hispano-americano no
Brasil: um lugar discursivo afetado pelos deslizes na língua e na história. Tese de Mestrado. Instituto de
Letras da UFRGS. Programa de Pós-Graduação em Letras Estudos da Linguagem. Porto Alegre. RS.
2002.
3
Embora esse termo assujeitamento venha de Althuser em que se trabalham os aparelhos ideológicos do
estado, aqui está reapropriado com as novas perspectivas dadas por Dufour, em que se exprime esse
assujeitamento ao Outro, ficção que cada cultura e em cada tempo se estabelece para o eixo que interroga
os sujeitos. Ver essa contribuição em A arte de reduzir cabeças (Dufour, 2005).
15
pacto, um diálogo com a lei da cultura, com a lei da língua do lugar, que circunscreve,
entre palavras e trânsitos preferenciais de significação, a lei do homem quotidiano,
situado em um modo de referências comuns, no campo social, e que exige uma
comunhão dos que nele participam. De início, o imigrante não tem como compartilhar
deste espaço, pois lhe faltam ferramentas, assim terá, de construir o sistema de
referência junto a esse outro falante nativo. Entretanto, na sua condição de sujeito, o
imigrante também não se dispoa despir-se de suas referências tão facilmente. Assim,
entendemos que ele trará para tal referência do comum, a participação que ele aporta, no
que diz respeito ao que vive enquanto alteridade em diálogo com o comum. Construir
uma narrativa oral ou escrita desta atitude compreende o próprio efeito de inscrição.
Primeiro, inscrição nele desta elaboração para o outro, procurando singularizar este
dizer e, em segundo lugar, inscrição para o outro no ato da palavra. É uma palavra
gestada, que desabrocha com matizes, que são enigmáticas ainda para quem as produz, e
que procuram ser reconhecidas em sua autenticidade.
É importante dizer que, quando nos referimos à noção de sujeito e de imigrante,
não estamos trabalhando com uma equivalência, que estes conceitos estão
delimitados teoricamente de maneira diferente quando reconhecemos que sujeito faz
parte da condição subjetiva de todo ser-de-fala
4
, e que imigrante se refere a uma
qualificação que o sujeito adquire diante da opção que faz de trazer, para sua condição
de subjetividade, a experiência do deslocamento de lugar e língua. Olhamos, então, para
uma reconfiguração na enunciação do sujeito que é afetado pela experiência migratória.
O empenho que esta proposta exige, antes de qualquer coisa, se exprime pelo
reconhecimento da alteridade. Digamos que isso nos leva a uma interpretação do
narcisismo, nada fácil, e ainda, a uma re-elaboração do lugar da lei.
Mapear este espaço de resolução com a alteridade, que o imigrante recria, toca
em pontos fundamentais na constituição das relações socioculturais que no Brasil agem,
principalmente se considerarmos que o Brasil é um país eminentemente formado por um
contingente de imigrantes bastante grande e, além disto ele pode ser contado por meio
de vários tipos de imigrações que se foram estabelecendo nos diversos períodos de sua
história.
4
Nos amparamos para esta suposição na noção psicanalítica lacaniana de sujeito que reconhece em sua
natureza, a condição do ser humano marcado desde o nascimento ou antes do nascimento, pela
linguagem, tornando existente esse sujeito para a cultura. Sem as marcas que a linguagem viabiliza na
inscrição desse ser humano na cultura, teremos impasses específicos na sua dimensão de sujeito (ver
LACAN, Função e Campo da palavra. Escritos I. Siglo Veintiuno, !989).
16
Permitindo-nos um panorama geral, somente para situar este marco no país,
veremos que desde o descobrimento temos o olhar do conquistador recobrindo uma
versão que o nativo vinha construindo em sua cultura. Desta maneira, o nativo torna-se
um primeiro imigrante em sua própria terra. Segue-se, nesta fundação ímpar, a vinda
dos escravos negros como imigrantes forçados e posteriormente, pelo início do século
XIX começam as migrações de europeus, que se inicia com os imigrantes alemães e se
aguça no início do século XX, com a Revolução Industrial, trazendo os italianos,
japoneses e poloneses entre os mais representativos. No fim do Século XX temos os
imigrantes hispano-americanos que migram devido às ditaduras militares na América
Latina e finalmente, na entrada do Século XXI traz a imigração oriental bastante
significativa, com os libaneses e coreanos, entre os que mais se destacam. Certamente
que através da influência desses imigrantes, existem movimentos dentro da estrutura
social e cultural que são afetadas pelas versões de sujeito que a cada imigração aparece.
Como podemos constatar, resolver um ponto de vista neste universo rico, pela
multiplicidade de eventos que congrega, requer cuidados e por isso é necessária uma
estimativa criteriosa sobre os elementos que nele pretendemos discernir, para o
inflacionar o assunto e deixá-lo sem efeito. Contudo, estaremos avisados de que iremos
ser provocados por vários referenciais que organizam esta discussão.
Para o propósito desse trabalho, escolhemos organizar nossa reflexão a partir da
Lingüística da Enunciação desenvolvida por Émile Benveniste, que nos fornece
elementos indispensáveis para tratar do enlace, que aqui nos instiga, entre língua,
cultura, sujeito e enunciação. Tendo em vista a construção enunciativa enquanto
resultado final, se realça a idéia de acontecimento na linguagem e a concretização de
relações que a este fato convergem. o sujeito, através de seu ato de fala, como
elemento organizador de tais relações. Também quando ocorre o fato enunciativo,
contamos com um atravessamento que toca a língua de maneira singular, produzindo
um estilo que suporta o sujeito em questão.
Esta concepção torna-se valiosa quando está em pauta o sujeito imigrante, à
medida que exatamente se absorvido por este acontecimento migratório no cerne da
língua, já que ele terá de se reintegrar na capacidade de estabelecer relações e de
comunicar-se a partir deste outro lugar.
Exposto nosso eixo de estudo, descrevemos a seguir, a maneira como será
abordado no trajeto dos capítulos que compõem esta tese.
17
No primeiro capítulo, organizamos a designação com as quais o imigrante é
reconhecido. Abarcamos, dentro de uma trajetória das idéias, organizada pelo
significante imigrante/estrangeiro, o lugar que se projeta, desde a Antiguidade Clássica,
na cultura grega, pela construção de mitos, até a elaboração do sujeito político nesta
sociedade. Esta preparação conta com as contribuições de Julia Kristeva. Segue-se a
análise dos paradigmas para o estrangeiro segundo o Estado como nasce no
Modernismo em que as delimitações territoriais e lingüísticas são uma marca indelével
para o sujeito, alterando, decorrentemente, a forma como o estrangeiro é abordado. Na
última parte deste capítulo, tratamos das significações com as quais o imigrante se
depara no Brasil. Nos interessamos, por meio desta contextualização, em recuperar os
efeitos de identidade em construção permanente com o imaginário social. Concedemos
um espaço para os efeitos de identificação pelos quais os sujeitos são marcados, levando
em consideração uma organização que coordena a imagem através da linguagem. Estes
referenciais cumprem a função de amplificar a alteração que parece sutil, porém é
radical, na mudança que o outro lugar provoca na imagem que este sujeito tem para si,
na essência de sua constituição.
Entregues às definições calcadas pelos efeitos da história desenvolvidos no
plano discursivo, nos transferimos para a preocupação com os mecanismos da
linguagem no qual estes elementos tomam corpo para o sujeito, ali onde eles se
singularizam na experiência individual, sendo atualizados por cada ser-de-fala. Levando
em consideração tal deslocamento, constatamos o fato de que todos os imigrantes são
absorvidos pelo trabalho específico com a língua, de modo a reatar esta produção de
identificações, capaz de viabilizar o sujeito. Assim, damos andamento ao segundo
capítulo, em que tratamos da natureza da língua e da sua formulação no princípio
enunciativo.
Trazendo este contato com a língua, é possível discernir o ponto pivô no qual se
resolve a inserção do imigrante. Como veremos, será desta língua que o aparecer as
ferramentas para a elaboração de novas representações que sustentem o sujeito em sua
alteridade. A narrativa que surge deste trabalho também a tomamos como um resultado
depurado desta incumbência. Nesta perspectiva surgem algumas questões: Como fica a
língua materna após este contato necessário com outra língua? O sujeito é o mesmo em
outra língua? Sua natureza nas formas de estar é a mesma em duas línguas? Que coisas
o sujeito imigrante interroga em cada língua? Que coisas ele se interroga em cada
18
língua? Finalmente, na perspectiva que contempla a trajetória histórica desse fato:
Como sua trajetória é contada e por que precisa ser contada no outro país?
Contempladas tais questões, nos damos à tarefa de estimar o que aceitamos por
língua, língua materna, linguagem e, a partir disso, chegar à expressão enunciativa.
Certamente este propósito exige uma revisão da teoria saussureana, em sua
definição de sistema de língua e sua diferença com a linguagem, da mesma forma, uma
reflexão minuciosa sobre as considerações do valor na língua, que permite assimilar a
“revolução molecular” que se desencadeia no contato entre dois sistemas de língua.
Como a preocupação deste contato se introduz pela figura do imigrante, ressaltamos que
se trata de um sujeito que mergulha em outra língua e, portanto, não ocorre uma
aquisição pausada, senão abrupta, retratando um tipo de contato singular, que põe frente
a frente dois sistemas, inicialmente com poucas mediações. Com este suporte teórico,
chegamos à preocupação com a expressão enunciativa que nos oferece ferramentas para
distinguir as qualidades da apropriação de um outro sistema de ngua, diferente ao da
língua materna, vertido para a realidade do discursivo
5
.
Para elaborar as condições da expressão enunciativa, contamos com as
contribuições de Émile Benveniste, que como um dos principais teóricos da Enunciação
coloca no centro de seu interesse teórico a forma como o homem está incumbido da
significância e como isso depende das estruturas organizadas na língua e das estruturas
enunciativas presentes no funcionamento da língua. Propõe-se aqui um diálogo intenso
entre a forma e o sentido na língua, levando-nos por um caminho destinado a refletir
este estar na língua. É nessa perspectiva que se ancora a base de nossas reflexões e
inquietações. É dessa proposta que retiramos o paradigma principal para nosso estudo,
pois a partir dele temos como apreender a dimensão dinâmica da língua.
Embora ela apele também para o dispositivo estrutural da língua, ela permite
incluir a participação do sujeito que vinha sendo excluído das preocupações no campo
da lingüística.
Acrescentamos a estes dois fortes referenciais os aportes articulados por Jean-
Claude Milner em Amor na Língua (1987), que se ocupa em distinguir, pelas marcas na
língua, algo que não se marca da mesma maneira, que está no atributo de um impossível
5
A acepção de discurso que aqui utilizamos é a proposta pela teoria benvenistiana, que procura discernir
a maneira como o sentido se transforma em palavras através da organização enunciativa.
19
na língua, conforme isso designa a presença da lalangue
6
. Este conceito é precioso para
observar os efeitos da língua materna que se inscreve como um outro sistema operando,
e trazendo a singularidade entre a língua e a enunciação.
Resulta deste encontro entre sistemas o que insistimos como expressão
enunciativa.
No terceiro capítulo, levamos a expressão enunciativa, seu paradigma, para
observar a construção narrativa. Nesta direção chegamos à constatação de que a
construção narrativa se organiza como uma expressão enunciativa complexa, pois nela
se formam as relações para o sujeito que lida com uma língua. Quando transferimos este
modelo para o que acontece com o sujeito que é imigrante, podemos consentir que se
adjunta um outro sistema de relações e, com isso, um novo paradigma para o trabalho
enunciativo, conforme ele se precipite em outro sistema de língua. Abre-se, nesse caso,
uma nascente que em seu encalço articula esse sujeito a uma nova inscrição
enunciativa.
Em uma nova proposta enunciativa, o imigrante permite a inclusão de outras
referencias lingüísticas e culturais, o que lhe traz condições de suportar um novo
paradigma também para o sujeito em que ele se transforma ao tornar-se imigrante. Ele
integra, por meio da nova proposta narrativa, a sua estrangeiridade, para abrir caminho à
simbolização do que emerge enquanto imigrante. A narrativa imigrante, nesta
perspectiva, assimila-se como um ato importante, de passagem. Ato em que se
atravessam vida e morte.
A expressão dessa proposta narrativa se fundamenta nas contribuições de Dany-
Robert Dufour, pensador contemporâneo que, com habilidade, tem sabido dialogar
sobre o acontecer do sujeito na entrada no Pós-Moderno, conforme o postulado das
diferentes ordens lógicas, em um contínuo jogo de forças, a dizer, as gicas unárias,
binárias e trinitárias. Cada uma destas gicas se expressa em gestos muito
determinantes no destino do homem, como o veremos no corpo de nosso trabalho.
Contudo é importante destacar que este autor convoca para um olhar especial,
considerando a ordem do trinitário, em que o sujeito se integra à sua história com o
mistério que lhe cabe e que lhe permite a designação de sujeito. Finalmente e contando
com o trinitário, vemos a possibilidade de chamar para um ponto de encontro o sujeito,
6
Deixamos essa designação no original em língua francesa, pois, a tradução para língua portuguesa como
alingua vem recebendo diversas críticas.
20
a língua e o proceder narrativo, que se tornam indispensáveis para ligar definitivamente
todos estes elementos com os quais nos ocupamos.
Deixaremos para o quarto capítulo a proposta metodológica que norteará nossas
análises e, no quinto capítulo apresentaremos o corpus de análise trazendo as narrativas
de imigrantes apresentadas em fatos enunciativos. Nelas exporemos os traços que
definem os efeitos da inscrição enunciativa que o sujeito promove diante o outro
sistema de língua e lugar. Tentaremos discernir as marcas que nos permitam identificar
esse novo curso dinamizado entre língua, sujeito e enunciação.
Para finalizar nosso trabalho, traremos, no sexto e último capítulo, as
considerações finais deste percurso teórico.
Com essa introdução, convidamos e abrimos para a leitura de nosso estudo.
21
1. O IMIGRANTE: UM ENCONTRO INUSITADO COM AS
DIFERENÇAS
O Mesmo pode-se definir em relação ao Outro, na
multiplicidade dos outros (Chnaiderman. 2001, p.52)
Iniciamos nosso estudo trabalhando algumas designações que se mostram
significativas para uma reflexão sobre o lugar do imigrante no campo social.
Entendemos que tais designações conflagram um campo semântico que mobiliza e
instiga a relação deste sujeito com o lugar novo ao qual se integra. Ao desenvolver esta
perspectiva, nos preocupamos tanto em observar a relação com a nova cultura e língua,
quanto em olhar para as condições em que a subjetividade do imigrante se organiza
neste contexto. Assim, temos duas dimensões de lugar que convivem e, que se mostram
por uma relação dinâmica, já que uma implica a outra.
Entendemos, também que, como em todo âmbito das simbolizações humanas, o
novo não encontra seu lugar se não reivindica o velho, assim como luz e sombra não
encontram designação, a não ser pelo que uma se define em oposição à outra. Então, o
novo está em trânsito com o que se conhece, criando, assim uma nova versão. Devido a
isto, certamente nos depararemos aqui com formas de representação do imigrante que
por vezes torna-se polêmica por tocar em limites entre o conhecido e não conhecido ou
entre o familiar e o que não é familiar, ou ainda entre o que era familiar e se torna não
familiar e o que não era familiar e se torna familiar. Dessa maneira, contemplamos
através da figura do imigrante, uma história forjada também, por uma história das idéias
que se manifestam na vida dos povos, de uma forma ou outra, sobre seu lugar. No
Brasil, certamente encontramos algumas particularidades para essa história, de acordo
com a sua realidade local.
Em primeiro lugar, vemos que, na experiência que este sujeito nos traz, existe
uma realidade singular quando assimilamos que ele faz uma opção de viver em outra
22
cultura e em outra língua. Disso, depreendemos a hipótese que norteia essa primeira
parte, acreditando que essa opção divide radicalmente duas posições: a do imigrante
e a do estrangeiro, uma vez que o imigrante realiza a escolha de viver em outra cultura
e língua, e o estrangeiro não a admite, relutando em uma função de espectador não
implicado na cena.
Feita esta precisão, confrontaremos diversas leituras que trazem referências, com
as quais se interpreta o imigrante. A importância de trazer este desenvolvimento, está
em que tais idéias afetarão as formas de diálogo com a nova cultura e, também na
maneira como o imigrante se assimila ao espaço das diferenças.
Contudo algumas perguntas insistem, entre elas: que tipo de deslocamento o
imigrante procura? Que tipo de encontro com o diverso é especulado?
A interrogação que aqui se manifesta permite admitir sutilezas sobre a decisão
que leva uma pessoa a assumir-se como imigrante. Se é certo verificar que o
deslocamento que alguém faz saindo de sua terra natal para uma outra terra, digamos,
adotiva, considera fatores até certo ponto objetivos como, por exemplo, uma situação
econômica pouco favorável, impasses familiares ou ainda uma saída para prosseguir
estudos; também se deflagra a consideração de que esta pessoa possa estar, por outro
lado, à procura de um outro posicionamento subjetivo frente a sua história individual.
De tal modo, ficamos na responsabilidade de derivar considerações pertinentes, para
observar este horizonte que se faz quase invisível entre o movimento que se expressa
pelo deslocamento físico e o andamento que o espírito se impõe. Parece que o imigrante
se compromete com a relação entre estes movimentos. Embora saibamos que, muitas
vezes, este espírito pode avançar estando em um mesmo ponto de referência geográfica,
às vezes, se faz diligente um deslocamento físico para descobrir novas oportunidades.
Dessa maneira, nos perguntamos: é o gesto de deslocamento físico que permite o
arejamento dessa alma ou é essa alma em fuga de uma estabilização que não se quer,
que impele ao deslocamento e ao movimento? Ou, o sucesso migratório torna-se
efetivamente uma solução possível para favorecer uma nova versão de sujeito? uma
dança quase imperceptível que acontece, da qual temos notícias através de algumas
manifestações, umas delas dadas pelos registros em narrativas, testemunhos do processo
migratório, os quais destacaremos em seu devido tempo. Mas, o que nos interessa, no
momento, é captar o cenário em que tais questões acometem. Este caminho nos levará a
contemplar antecedentes históricos e factuais os quais se revelam no decurso deste
capítulo.
23
São estes antecedentes, parte do acontecer enunciativo em sua dimensão ampla,
que afetam de uma maneira ou outra a estrutura singular da enunciação imigrante, que
acompanhamos até seu desabrochamento na forma narrativa.
Para trazer o plano discursivo que envolve nossa discussão, fazemos um trajeto,
abordando algumas considerações que se desenvolvem desde a Grécia Antiga até os
dias atuais, no Brasil. Aqui estudamos algumas hipóteses sobre a territorialização e,
com ela, um parecer sobre as noções de cidadão e de imigrante. Passamos pelas
vertentes do cosmopolitismo e pelas considerações da cidadania virtual, proposta pelo
paradigma religioso cristão. Na versão do Estado moderno, se o empenho unificador
que o inaugura, conforme a idéia de uma língua única e nivelamento cultural dentro do
território-país; decanta, deste modo, a proposta de um sujeito, também, nivelado. Na
parte final, encontramos algumas versões que se fizeram para o Continente Americano,
a partir do seu descobrimento, quando o conquistador destituiu o nativo de sua
cidadania, com a apropriação do território, invertendo os lugares, pois nessa situação o
colonizador fez do nativo um estrangeiro em sua própria terra. Após tais considerações,
finalizamos, situando a idéia do sujeito nacionalista por meio da constituição do Estado
Nação que influenciou o Estado Brasileiro de maneira exacerbada, por muito tempo,
encontrando seu ápice na época das ditaduras
7
no Continente e, que hoje perderam seu
vigor para propostas mais democráticas de convivência.
Finalmente, a partir deste desenvolvimento tecem-se considerações,
aprofundando-se as reflexões que articulam na ngua e na história, os pressupostos
entre o mesmo e o diferente, valorizado pelo paradigma do imigrante/estrangeiro.
Com este preâmbulo, iniciamos o desenvolvimento proposto.
1.1 A TERRITORIALIZAÇÃO E O IMIGRANTE
Para começar, podemos constatar que, desde o nascimento da humanidade, a
imigração está presente, pois, os homens sempre estiveram em deslocamentos,
procurando um lugar favorável para as condições de vida. O arquétipo de uma terra
prometida não é exclusividade do povo hebreu, pois muitos a procuram. povos que
continuam a se contemplar nesse imperativo móvel, como os ciganos ou ainda, citando
7
Neste período, em nosso trabalho de dissertação de Mestrado, vimos que houve a disposição de manter a
estrangeiridade dos que aqui vinham procurar asilo, dificilmente foi concedida a permanência de
estrangeiros no país.
24
um exemplo mais próximo, os índios guaranis que estão à procura da Terra Sem Males
8
.
Vemos a manifestação, ainda presente na história atual, do anseio do homem que pulsa
para o deslocamento à procura de algo novo, à procura de algo que lhe traga ganhos.
Cremos que, neste impulso, está a necessidade de saber, exercendo dessa maneira a
função do desconhecimento
9
(que Jackeline Authier-Revuz sopesa nas produções
enunciativas) de maneira primorosa. Assim, se manifesta um poderoso componente para
a procura de novos horizontes. O pressuposto que subjaz aqui diz das primeiras
qualidades presentes no ser humano: a procura e o deslocamento.
Nas sociedades mais organizadas, este imperativo se sublima no crescimento e
na construção de um ecossistema humano, advindo da elaboração de objetos e serviços
que lhe trazem conforto, sem o desgaste do deslocamento. A estabilização do lugar
geográfico permite, então, que o impulso da procura e do deslocamento tenha uma
resolução, cada vez mais na elaboração de novos objetos e conseqüentemente na
indagação de novos conhecimentos. O nascimento das ciências, com certeza, tem muito
a agradecer a tal estabilização. Entretanto, e aqui voltando a nossa inquietação, podemos
considerar que no momento de tal estabilização, o paradigma para aquele que se
desloca, recebe uma categorização no espaço social diferenciado e aparece em cena
propriamente o estrangeiro ou o imigrante. As designações que este personagem
receberá, a partir desse corte angular, estarão relativas aos períodos históricos e seus
contextos, como veremos.
A humanidade territorializada se sustenta fomentando vários paradigmas, um
deles é o imigrante e/ou estrangeiro. Julia Kristeva, em seu livro Estrangeiro para nós
mesmos (1994), reflete profundamente sobre o assunto e traça considerações valiosas
para contemporalizar este sujeito portador do estranhamento, principalmente no
contexto da cultura ocidental. Ela destaca, em sua lente, os crivos que a moral e a
religião promulgam direcionando as designações pelas quais o estrangeiro é debatido.
Convencida, disto, ela nos diz: A violência do problema hoje colocado pelo estrangeiro
provém, sem vidas, das crises das concepções religiosa e morais (1994, p.10), ou
seja, são o proceder religioso e sua moralidade que induzirem as condições de
significação, que chegam a criar, também, parâmetros de rejeição. Coloca-se, como
pano de fundo, a rejeição que o estrangeiro provoca enquanto diferente. As cenas de
8
A Terra sem males é um mito dos índios guaranis, naturais do Paraguai e Brasil. Nele se procura a idéia
de um lugar a chegar em que não existem males. Assimila-se à terra prometida do povo judeu.
9
J. Authier-Revuz destaca essa função de desconhecimento, precioso à constituição de um Eu (moi) que
se designa fonte dos sentidos desconhecendo a clivagem tanto do inconsciente quanto do interdiscurso.
25
violência quotidianas contra ele atendem àquilo que rompe com os princípios da
semelhança, sobre os quais descansam as formas de identidade compartilhada entre
sujeitos de um mesmo lugar.
Acompanhando esta autora, vemos que tais paradigmas estão presentes desde
a época antiga em que os gregos começam a sedimentar seu patrimônio cultural. Na
Grécia Antiga, a acolhida ao estrangeiro se assimila com a ajuda da mitologia, que se
encontra descrita em epopéias resgatadas por Ésquilo. Entre as principais que tematizam
este assunto, estão as histórias em que as Danaides aparecem. Elas são entidades
femininas guerreiras, descendentes de Io, ex sacerdotisa de Hera esposa de Zeus. O
mito conta que Io tornou-se amante de Zeu e, Hera, ao saber da traição, se vinga em Io,
convertendo-a em uma vaca atormentada por um moscardo. Com isto, Io se vê impelida
a fugir, chegando às longínquas terras do Egito, lugar em que Zeus a reencontra e a
conforta, restituindo-lhe sua figura inicial e, nesta região nascem os descendentes dessa
união. Assim, surgem as Danaides, que são as filhas, e os Argólidas, que são os filhos.
A tranqüilidade reina na primeira geração até o momento em que vida sexual se define,
e os Argólidas tentam possuir as Danaides, que reagem em um confronto mortífero,
vendo-se obrigadas a fugir, como tinha feito a progenitora um dia, somente que, desta
vez, o caminho foi o de volta para a Grécia. O destino, desta forma, fez com que elas
retornassem como estrangeiras. A recepção na Grécia não foi facilitada, considerando-
se a filiação patrilinear, pouco tolerante com os cidadãos de outros lugares, por isto,
quando uma Danaide pretendia se inserir na comunidade ou pólis, ela era amparada por
um mediador conhecido como próxeno. O próxeno deve estabelecer a justa distância
entre o respeito devido aos estrangeiros e a salvaguarda dos interesses de seu próprio
povo (Kristeva. 1994, p. 54). Entretanto, somente esta solicitação não era suficiente,
pois a aceitação destes estrangeiros dependia, também, de que eles chegassem em
posição de suplicantes, considerando que são eles os que solicitam estada aos anfitriões.
Conforme essa pressuposição, serão o respeito para com os gestos rituais e a modéstia
do comportamento que garantirão uma acolhida conveniente. Vemos que nesta versão
são assinalados os procedimentos, dentro dessa cultura, necessários para a aceitação do
estranho, e a construção mítica ajuda a observar também que aquele que vem de fora
pode ter nculos insuspeitados e familiares com o lugar ao qual se dirige, pois as
Danaides fazem o caminho de volta que a e não pôde fazer, contudo elas não podem
revelar sua origem. A construção mítica, assim realizada, permite advertir sua
justaposição para o enfoque dado no campo social.
26
Avançando neste texto, vemos que o próxeno tinha um papel fundamental, que é
essencialmente político, propiciando um apadrinhamento que não lhe trazia lucros
financeiros, a não ser prestígio outorgado pelos mesmos estrangeiros que o escolhiam e
reconhecimento dos mandatários gregos para esta função. Embora o papel representado
pelo próxeno não revertesse ganhos imediatos, posteriormente lhe renderá cargo
público. A partir deste personagem, podemos refletir sobre o lugar dos mediadores na
estrutura social, encarregados de estabelecer e viabilizar as relações entre os que vem de
fora e a cidade.
Um outro paradigma que nasce nesta época arcaica, se dá por meio dos muros de
proteção em torno da cidade, como medida contra as invasões. Assim sua construção
delimitava um dentro e fora para seus moradores e conseqüentemente alimentava a
desconfiança relativa àqueles que estavam de passagem pelo local
10
. Com o passar do
tempo, estas relações evoluíram, e os muros não se fizeram tão restritivos, abrindo as
portas com mais facilidade a estrangeiros que se estabeleceram para desenvolver o
comércio ou alguma atividade julgada útil para a cidade. Os estrangeiros que se
estabeleciam começaram a receber um outro estatuto na pólis: designado com o nome
de meteco, obtiveram o direito de tornar-se residentes domiciliados. Em muitas cidades,
esta permanência implicava uma taxação, mas em Atenas, segundo fosse a atividade
desenvolvida, poderia haver isenção. Vem à tona neste contexto, uma distinção que
começa a operar entre o estrangeiro que está de passagem e aquele que se estabelece na
nova pátria. Acreditamos que tal distinção continue vigente, embora hoje encontremos
outras características advindas das condições históricas atuais, propondo novas
condições para o estrangeiro. Contudo para nós é importante reforçar esta leitura
11
, pois
é dela que derivamos a diferenciação entre estrangeiro e imigrante, sendo este último
aquele que de fato fica e adota a nova terra e as novas condições enunciativas, assim
como o meteco, diferentemente do estrangeiro que, por estar de passagem, fica sem
expressão definida para o entorno social.
Aprofundando outros aspectos, da cultura grega, nos parecem transcendentais,
destacamos a idéia que Kristeva nos traz, quando da aparição marcante do termo
bárbaro, após as guerras médicas (490-478 a.c). Este termo bárbaro torna-se então
10
Na história universal moderna contamos com muitos exemplos sobre o significado que os muros o
adquirindo, entre os mais conhecidos estão o Muro de Berlin, o muro que os americano estão fazendo na
fronteira com o México, o muro que os israelenses pretendem fazer para demarcar limites com a
Palestina.
11
Aqui nos apoiamos também na nossa dissertação de Mestrado, em que gestamos essa diferenciação, ao
tratar dos imigrantes hispano-americanos no Brasil.
27
freqüente para designar os não gregos (ibidem, p.57) e, aqui se refere especificamente
aos da Ásia Menor que atacavam os gregos. Segundo a autora, esta designação encontra
uma origem singular quando se deriva a partir de onomatopéias imitativas: bla-bla,
bora-bora balbucios inarticulados e incompreensíveis (Kristeva.1994. p.57). Transfere-
se esta designação também para todos aqueles que apresentam uma pronúncia pesada e
empastada.
A distinção lingüística torna-se uma outra cautela com o exterior, concatenada à
idéia de incompreensão da língua do outro, que, pelo mesmo motivo, é entendido como
fazendo parte de uma outra natureza e, em grande medida, uma natureza faltosa. Com
esta consideração, podemos ver como os efeitos das diferenças lingüísticas contribuem
para compor a alteridade do sujeito. Desde este ponto de vista, notamos a sensibilidade
para tratar as sonoridades lingüísticas contrastantes, ou seja, a marca de uma língua que
contrasta com a língua natural de quem designa a barbárie.
Outro aspecto que retorna do conjunto das apreciações anteriores, depreende-se
do contraste que se estabelece entre a evolução social da vida cívica da cidade e o
estigma que se realça diante do diferente. Precedentes para esta concepção se afirmam
pelas palavras que a autora, que aqui acompanhamos, nos indica quando entende que a
discriminação para com os chamados bárbaros se acirra no mesmo instante em que
novas regras entravam em vigor para o estado democrático grego, expressivamente
quanto à coerência cívica Koinomia- que começa a ser implantada concebendo a
unidade dos cidadãos na base de sua participação na vida pública e não a partir de
critérios raciais ou sociais (Kristeva.1994, p. 56). Dessa maneira, nos perguntamos: por
que exatamente na mudança do estatuto cívico, se realçam as diferenças lingüísticas
destacadas na figura do bárbaro? Parece que a diferença lingüística vem suplantar as
diferenças de raça e sociais, aparentemente dissipadas por esse estatuto cívico. Assim,
notadamente vemos que o aprimoramento de uma organização define também o seu tipo
de desorganização ou aprimora seus contrastes.
Desde outra perspectiva, mas dentro da mesma questão, existe o indicativo de
que aquele que tem direito a participar na vida pública necessariamente precisa de uma
participação ativa na linguagem certa. Claramente a herança da cultura ocidental,
influenciada pelos gregos, é impar pelo cultivo do espaço democrático recriado no
exercício da palavra em espaços públicos, e ainda, no exercício da palavra sustentada
em paradigmas gicos e filosóficos. Cabe a pergunta, considerando-se nosso contexto
de país: quais são as bases que sustentam a palavra no espaço público?
28
Mas voltemos à palavra certa, à palavra bem produzida, à palavra como
distintivo de pertença a um lugar e como passaporte para o espaço social. O imigrante
esbarra suas limitações exatamente neste ponto, pois aqui alguma coisa perturba
profundamente. Por um lado, perturba pelo sotaque que sempre permite ao outro
perguntar sobre sua origem, como se fosse uma coisa fácil de responder, considerando a
polissemia de significações que ela carrega. Sabemos que não é a designação de
lugar físico que está em pauta, é o lugar de fundação subjetiva que se recoloca. Por
outro lado, o imigrante carrega o desconforto de sempre lidar com as não coincidências
do dizer
12
, de lidar com algo que sempre cai, é o sacrifício sempre posto em cena para o
outro deus. Cai aquele sentido proposto pela língua materna e, tem que ser adaptado. O
outro, o que acolhe o suplicante, por sua vez, nunca deixará no seu íntimo de sentir
maculada sua origem, pela perturbação na sonoridade de sua língua. Esta distinção pode
passar de um desconforto sutil a um ataque radical, segundo sejam as condições
propostas pelo contexto ou momento histórico. Este radicalismo pode ser observado no
clássico exemplo do Antigo Testamento
13
que conta como os gileaditas derrotaram os
efraimitas ocupando postos estratégicos nas passagens do rio Jordão. Os gileaditas
pediam para pronunciar a palavra shibboleth, e os efraimitas, que não conseguiam dizê-
lo corretamente, falando sibboleth eram mortos imediatamente. Era o distintivo
lingüístico que permitia identificar o inimigo. A margem do rio se expressa como uma
margem social que exige certos códigos para que possa ser transposta. Será que os
levantes provocados pelos descendentes de imigrantes africanos na França no ano de
2005 e ainda hoje, não são um produto do distintivo que não deixa transpor a margem?.
Que opções, quanto a seus códigos, uma sociedade está disposta a oferecer para um
imigrante?
O trânsito de imigrantes, desde outro ponto de vista, nunca deixou de ter
importância para as relações políticas e econômicas dos países, que os imigrantes se
tornaram muitas vezes o elo de comunicação entre comércio e cultura. Na Europa, isto
tem marcas mais antigas na cultura e se pode constatar no fato de que muitos países
deste continente contam com mais de uma língua oficial, tornando, desta maneira, seus
habitantes bilíngües, para facilitar precisamente os intercâmbios que destacamos.
Contudo deixemos isso pendente, para um outro momento. Por enquanto, tomemos este
12
A autora Jaqueline Authier (1998) é quem nos introduz na perspectiva das não coincidências do dizer,
em que se observa através das retomadas do dizer, a presença do discurso outro relacionado às formações
do inconsciente.
13
O autor Jacob Mey (2001) aproveita também este exemplo em sua análise lingüística.
29
dado como um indicativo importante para afirmar que: a base das trocas sempre foram
assumidas por aqueles que se deslocavam. Decorrente desse critério, também se estima
o desenvolvimento de uma tolerância pragmática, necessária a tal estratégia territorial.
Prosseguindo nossa discussão, nos reportamos às contribuições que algumas
idéias dos estóicos trazem para nossa linha de raciocinio. Acompanhemos um pouco do
nascimento o estoicismo e sua acolhida no universo helênico. Este tem sua fundação
marcada por Zenão de Cicio (365 – 264 a.C) e explicitada por Crisispo (281 205 a.C).
O estoicismo se fundamenta na idéia de oikeiósis, termo complexo, que é traduzido na
idéia de “conciliação”, que por sua vez, também se refere a uma apreensão constante
de si mesmo (Kristeva.1994. p. 63). Trata-se de uma proposta individualista que contém,
em seu paradoxo, o reconhecimento de universais, apontando expressamente para o
universalismo da natureza humana. De tal forma, encontramos sentenças que expressam
esta idéia, como a seguinte frase de Cícero, pinçada por Kristeva: sou homem, logo
nada do que é humano me é estranho (Kristeva. 1994, p. 64).
O estoicismo, segundo os historiadores, surge como uma escola que exige uma
elaboração profunda dos conceitos e pede para entrar em uma disciplina lógica que
contemple o homem segundo a promoção dos seus ímpetos, que o governam e que
pedem realização, com isto, se exige uma prática condizente com tais idéias.
Concretamente, como toda escola grega, a atitude que daqui se depreende não se realiza
como um simples princípio de aceitação de uma idéia, senão que ela tem de ser
defendida conforme defesa amparada pela razão que fundamenta este modus operandi.
Tal compromisso, verte-se em uma proposta utópica, que promove a reconsideração de
todas as fronteiras sociais com as quais se contam nesta estrutura social, sejam elas: os
diversos status entre senhor e escravo, gregos e bárbaros, mulheres e homens, e outras
diferenças como as de raça e sociais de toda espécie. Estamos diante do cosmopolitismo
que valoriza a megalópole, o multipalco da expressão humana. Entretanto existe uma
ressalva que Kristeva levanta:
[...] tem-se a impressão de que o cosmopolitismo surgiu no seio de um
movimento global que, fazendo tabula rasa das leis, das diferenças e dos interditos,
desafiando a cidade e a sua jurisdição, implicitamente desafia os interditos fundadores
da sociedade instalada e, talvez, da própria sociedade, que a abolição da fronteira
estatal implica, lógica e previamente, uma ultrapassagem dos interditos que garantem a
identidade sexual, individual, familiar. (Kristeva. 1994, p.67)
30
Certamente que este questionamento dos interditos, continua instigando na
atualidade, provocando a necessidade de novas versões que respondam à esta ruptura
com o estabelecido. Assim, vale a pena conferir se nesta mesma estrutura de
pensamento se integra aos dias de hoje, dando suporte ao conceito de globalização, que
nos coloca diante de um paradoxo, à medida que, ao romper com a noção de economias
locais, sustentadas por tipos de trânsito de valor de cada localidade; anula a
possibilidade de singularizar os espaços sociais criando uma homogeneização
assustadora. Por outro lado, identificamos neste conceito de cosmopolitismo, também as
idéias libertadoras que estariam na base de muitos movimentos históricos posteriores,
reclamando formas de igualdade. Entretanto, no contexto que aqui desenvolvemos, o
mesmo gesto que procura a realização humana derrubando limites sociais, também
funciona como anulação das diferenças e, assim, promove o desconhecimento das
singularidades pelas quais cada individuo trabalha em sua vida, diferenciando-se dos
outros. É um paradoxo que até hoje se tenta administrar.
Decorre dessa virada de perspectiva, uma outra maneira de considerar o
estrangeiro aparece, no momento em que surge a exigência de uma razão da igualdade
fundamentada, porque para romper os interditos o sujeito tem que fundamentar essa
ruptura. Desde esse ponto de vista, proclama-se estrangeiro, dessa vez, àquele que não
consegue acompanhar essa abertura para o mundo sem fronteiras, conseqüentemente
esse mundo de grandes cabeças e nobreza de espírito é para poucos, poucos são os que
cortejam essa cidadania legítima no mundo dos que pensam.
Realçando ainda mais o paradoxo, Kristeva acrescenta:
O cosmopolitismo estóico prefigura uma nova religião em que se
confundem o individualismo grego, a introspecção da piedade egípcia, os
banquetes das comunidades rias, a moralidade judaica... A partir dabre-se a
questão de saber se o cosmopolitismo é outra coisa além de uma realidade
religiosa, sem jamais poder se tornar uma realidade política.
(Kristeva. 1994,
p. 67)
Esta dúvida parece ser reforçada pelas condições históricas e, por entre as pistas
oferecidas por este guia da razão e das formas de co-existência, se abrem outras
possibilidades de leituras sobre o estatuto de cidadão. entrecruzamentos com outras
linhas de pensamento e ação: entre elas, a que ganha mais adesão se origina no
31
nascimento do cristianismo. Os ecos do universalismo se fazem sentir nos pressupostos
religiosos judaico-cristãos. Nesse leito, vão-se se juntando aqueles que, de alguma
forma, sentem o roçar das margens na participação com a pólis, sejam eles viúvas,
impossibilitados físicos, velhos, estrangeiros, etc., em geral marginais de alguma
espécie. O cristianismo nascente ganha fôlego inusitado quando definitivamente
substitui o conceito de cidade pelo conceito de comunidade única de Deus, Deus único,
pastor de um rebanho que não se restringe a um único espaço, pois ele está no mundo.
Aqui as fronteiras geográficas são descosturadas. Entendemos que se consolida uma
nova cidadania religiosa virtual. É no espaço virtual que sua essência é reconhecida. O
pacto local fica empobrecido em favor de algo maior.
Conferindo tal deslocamento, que passa de uma concepção territorial para uma
forma virtual de cidadania, nos deteremos no próximo item na discussão do paradigma
religioso dentro de uma nova perspectiva para a consideração do imigrante.
1.2 O PARADIGMA RELIGIOSO E O LUGAR DO IMIGRANTE
Como vínhamos desenvolvendo, a consolidação do imaginário cristão se revela
na história do mundo ocidental de maneira a desestabilizar uma forma da história
contada a partir da circunscrição da cidade. Estabelece-se a possibilidade de uma
cidadania virtual e digamos também ideal, trazendo um sentimento de comunhão plena,
do indivíduo contemplado em todos os seus direitos e realizados por meio do amor ao
próximo, tomado como um si mesmo. No espelho, a plena imagem integrada. Contudo
sabemos, desde Freud, os conflitos que temos com as nossas próprias referências,
sempre difratadas na nossa jornada. Por isto, os conflitos não deixariam de estar
presentes nesse novo paradigma que algo sempre escapa, até porque, é necessário
dizer, a realidade assim recriada é diferente da realidade política em que decide-se o
estatuto cidadão de fato e de direito. Pensamos que pode haver influência entre estes
pilares humanos: político e religioso, entretanto, os pontos de contatos se polarizam
sempre de tal maneira que eles se juntam como os Rio Negro e Solimões.
Tomemos essa difração e estimemos a participação da igreja católica no
descobrimento do Continente Americano. O seu papel foi fundamental para o apoio dos
reinados de Espanha e Portugal, mediando subsídios na empreitada marítima. Digamos
que a metáfora dos horizontes abertos cobra uma consistência benéfica a esta idéia de
lugar sem fronteiras ou lugar virtual. O apoio moral acompanhava as premissas de
32
promover um mundo novo cristão e constatar a perfeição da criação. Como se sabe,
neste período a ordem monárquica se compunha com a ordem religiosa e, devido a isso,
os interesses de ambas as instâncias sempre estavam postos na mesa de negociações e,
de maneira mais enaltecida, conforme fosse a expectativa de ganhos a alcançar. Em tal
contexto, novamente na história se recorre àqueles que estão no limite do laço social,
como alguns presidiários, desempregados e outros aventureiros que sonhavam em
mudar de posição social e, entre eles, o próprio Cristóvão Colombo. Do Puerto de Palos,
na Espanha, com as expedições de Cristóvão Colombo e seus posteriores relatos, abre-
se uma nova janela para o mundo ocidental. Como escreve Todorov (1993), Os homens
descobriram a totalidade de que fazem parte. Até então, formavam uma parte sem todo.
(Todorov. 1993, p. 6)
É a análise feita por Tzvetan Todorov que nos acompanha nesse momento,
especialmente o que recolhemos no seu livro A conquista da América: a questão do
outro, que parte do pressuposto de um encontro sem precedentes, que acontece na época
da conquista, com o outro, com o diferente. Sem dúvidas, estamos diante da
observância que se oferece sobre a questão da alteridade, amparada pelo encontro
datado entre o Velho Mundo e o Novo Mundo. Aqui é analisado principalmente o
contexto espanhol, mas acreditamos que encontramos um paralelo na empreitada
portuguesa. Certamente considerações a fazer a partir de alguns marcos na história
do Brasil, como os registros conhecidos do Pe. Vieira e outros defensores dos índios,
mas nos limitaremos ao autor aqui destacado por tratar fortemente sobre este paradigma
do diferente, do outro.
Acompanhemos inicialmente as impressões que marcam o importante evento do
descobrimento, a partir do seguinte registro:
[...] não é unicamente por ser um encontro extremo, e exemplar, que a
descoberta de América é essencial para nós, hoje. Além deste valor paradigmático, ela
possui outro, de causalidade direta. A historia do globo é, claro, feita de conquistas e
derrotas, de colonizações e descoberta dos outros; mas, (...) é a conquista de América
que anuncia e funda nossa identidade presente. Apesar de toda data que permite separar
duas épocas ser arbitrária, nenhuma é mais indicada para marcar o início da era
moderna do que o ano de 1492, ano que Colombo atravessa o Oceano Atlântico.
(
Todorov. 1993
.
p. 6)
33
Foi este fato que marcou o homem moderno e ainda estamos sob o prisma da
história contada a partir de conquistas intelectuais européias. Se é certo, como diz
Todorov, que do encontro do homem europeu com o índio do Continente Americano
aconteceu algo de totalmente inusitado, colocando frente a frente duas concepções de
humanidade radicalmente diferentes, também é certo que encontramos como efeito disto
uma abertura para a memória a qual se estabelece em duas dimensões de tempo, uma
para os europeus e outra para os nativos. Contudo, sabemos que a que prevaleceu se
registra do ponto de vista do colonizador, por isso acreditamos, que existe sempre um
ponto de fuga na nossa história que se cimenta nas bases da nossa consciência como
uma grande incógnita, iconograficamente substancializada pelas igrejas construídas em
Machu Pichu, em cima dos templos Incas. Esta época moderna, a qual temos como uma
decorrência de outras épocas e, dentro de um certo sentido evolutivo, parece deixar
ainda muitas coisas a resolver.
Quando se tenta apreender o impacto deste encontro, adverte-se que nos relatos
dos espanhóis, propriamente de Cortez, que teve uma participação capital na conquista,
indícios de que eles, dentro do seu estranhamento, não viam a cultura indígena tão
distante da espanhola, como se constata no seguinte trecho:
Quando Cortez deve emitir um julgamento sobre os índios do
México, será sempre para aproximá-los dos espanhóis; há nisso mais do
que um procedimento estilístico ou narrativo
. (
Todorov 1993. p. 124)
E, citando o próprio Cortez, Todorov transcreve:
[...] os comportamentos e relacionamentos, essa gente tem
quase os mesmos modos de viver que na Espanha, e tanta ordem e
harmonia quanto lá; e, considerando que são bárbaros e o afastado do
conhecimento de Deus e da comunicação com outras nações racionais, é
uma coisa admirável ver a que ponto chegaram todas as coisas ( Cortez
154?, apud, Todorov 1993. p. 124)
Acrescenta-se a isso a admiração que existia na apreciação da arquitetura e
culinária astecas. Mas, então, por que o espírito aniquilador gritou mais alto? Aos
bárbaros se responde com a barbárie. Sabe-se, pelos registros de missionários e
34
aventureiros, dos requintes de crueldade com que os índios foram dizimados e
castigados, decepados de narizes, orelhas, órgãos sexuais e outras partes do corpo.
Ainda se fosse necessário, caso faltasse água, o sangue lhes era retirado e utilizado para
regar os jardins, assim como extraídas as gorduras para tratar doenças cutâneas dos
espanhóis. A escravidão impingida não poupara mulheres nem crianças. A pulsão de
morte se manifesta amplamente, numa carnificina também sem precedentes. A
contradição entre admiração e destruição permite discernir, segundo o autor, que
acompanhamos que o epicentro do estranhamento se localiza em uma dissociação
extravagante, em que os objetos da cultura não são associados a seus produtores, ou
seja, se elogiam os grandes templos como obras arquitetônicas, mas o fato de sua
existência não era atribuído diretamente aos que o construíram: os astecas. Aqui nos
perguntamos: será o efeito dessa ideologia universalista amparada, desta vez, no
cristianismo que se incumbe de um naturalismo extremado, relegando a autoria dos
homens em nome de Deus? Parece que o campo simbólico vigente na Espanha perde
suas dimensões ao entrar em relação com a exuberância que o Continente Americano
oferece. Mostra de tal fato se expressa em muitas leituras feitas sobre o “bom
selvagem”, que foram originadas a partir deste momento, inclusive os colonizadores
levavam indígenas para serem mostrados aos reis no Velho Mundo. Nus e sem
resguardos da moral prezada, os nativos foram interpretados como um espécime entre
outros, sejam macacos, araras ou ainda formigas, que eles construíam também. Por
outro lado, dentro de uma perspectiva totalmente idealizada, este bom selvagem virara o
ícone do homem no Éden, antes do pecado original, o que invertia mais uma vez a
temporalidade. Este seria um ponto de partida ou um ponto de chegada? Todorov
comenta, desta visão idealizada, as críticas que começaram a surgir dentro da
congregação religiosa, lideradas em algum momento por Las Casas, missionário que faz
um vasto registro dos sucessos da época, e começa a estabelecer parâmetros para
admitir a humanidade desses homens frente às atrocidades e massacres cometidos pelos
espanhóis, criando o que pode ser considerado uma antropologia religiosa
14
. Contudo, a
idéia de tal relativismo, segundo consta, pretende mais uma mudança no comando da
empreitada colonizadora, passando para domínio religioso as decisões arbitradas no
plano puramente militar e político.
14
Trata-se de um relativismo dos elementos religiosos, aceitando que um outro padrão religioso possa
estar falando também de Deus e prezando valores igualmente importantes.
35
Como pano de fundo, e em meio a tais leituras, o que acontecera propriamente
era uma diferença substancial na índole de considerar a relação do homem com o
mundo. Mais uma vez são as particularidades do evento que definem a situação. Para
observar as perspectivas postas em jogo, Todorov avalia os pontos de apoio nas formas
da comunicação que espelham tais relações. Do ponto de vista da recepção do
interlocutor, vemos que os espanhóis, priorizando em primeiro lugar uma comunicação
com o mundo, interessando-se mais pelos objetos com os quais se relacionam no
descobrimento, sejam eles contemplados dentro da pesquisa com a flora e fauna, do
qual existem vários registros, ou ainda com os minérios, principalmente o ouro e outros
também valiosos. Sabe-se que eles tinham o domínio na arte do metal, não se pode
esquecer a espada, arma sempre afiada para a conquista. Com esses ímpetos, a
observância do plano inter-humano não comportava grande preocupação.
contrariamente, os astecas participavam de uma sociedade essencialmente comunitária,
na qual o relacionamento com o outro era principal, apreciavam-se valores voltados
para o bom funcionamento da ordem social. Isto significa que o interesse individual
jamais se antepunha ao interesse coletivo, os mecanismos sociais garantiam que todos
os membros do laço social encontrassem um lugar na hierarquia estabelecida.
Certamente a interlocução entre as duas concepções compunham relações
objetais e intersubjetivas em campos diferenciados o que leva a lógicas e valores
também diferenciados, coisa que a antropologia apresenta muito bem hoje, contudo aqui
não podemos esquecer de que o impasse é contado (como sempre na história) pela boca
dos vencedores e ficam considerações por fazer.
Quando a análise tenta reconstituir esse outro lado calado dos nativos
americanos, se uma dimensão mais clara do relacionamento com a alteridade que ali
se inaugura. Aparecem interrogações sobre o sucesso da conquista, considerando-se a
desigualdade que havia entre o número de indígenas e o número muito inferior de
espanhóis: como estes últimos ganharam as batalhas diante desse contraste? Algumas
respostas são tematizadas dando a ponderar as várias maneiras como o relacionamento
com esse outro se manifesta. As respostas assim concebidas recriam-se a partir das
seguintes fontes: os relatórios feitos por Cortez, as crônicas espanholas e os relatos
indígenas (transcritos por espanhóis). Deles obtêm-se informações preciosas,
principalmente no discernimento do modo operativo na utilização do ato comunicativo,
o que nos permite um parâmetro sobre os procedimentos de transmissão. Estamos mais
uma vez na questão tempo.
36
Avaliando o sistema das comunicações que leva em conta a ordem do símbolo e
sua eficácia, se chega a algumas conclusões, principalmente quando se confronta esta
eficácia ao sucesso ou insucesso da guerra travada.
Os espanhóis, que tinham a apropriação do alfabeto silábico, conseguiram
uma maior agilidade na capacidade de se comunicar entre eles, assim como uma
concepção interpretativa mais ampla que a dos astecas, incas e maias. Estas três nações
indígenas contavam com um código lingüístico escrito nascente; os astecas trabalhavam
dentro de um código pictográfico, os incas utilizam a técnica do uso mnemotécnico de
cordões; e os maias por sua vez, evoluíam para uma escrita fonemática. Havia o que
pode ser considerado uma desproporção oferecida pelas diferenças frente à atividade
com o símbolo e seu sistema de troca no ecossistema humano. Isto não pertence a uma
categorização do que seria melhor ou pior, simplesmente atesta uma abertura diferente
da eficácia simbólica. Neste sentido, o que se refere à agilidade comunicativa precisa de
um discernimento pormenorizado.
O fato de que os astecas não tenham desenvolvido a linguagem escrita no
período histórico descrito, não retrata o desenvolvimento oral e propriamente discursivo
que possuíam, pois eram conhecidos como exímios discursadores. Entre as sociedades
indígenas eram chamados de Nahuatlaca que significa propriamente: gente que se
explica e fala claramente (Todorov. 1993. p. 74), a valorização do bem falar fazia com
que os filhos fossem enviados ao chamado Colmecac, que eram escolas de oratória,
retórica e hermenêutica. Eles estudavam livros sagrados, assim como textos apropriados
a diferentes tipos de rituais. Os textos eram extensos e requeriam uma grande
capacidade de memorização. Atendo-se a tais observações, Todorov reconstitui a forma
de interpretação que estaria em pauta nessa sociedade e considera o espírito
hermenêutico preponderante em todos os aspectos. Vejamos, o trabalho interpretativo
advém de uma adivinhação cíclica (astrologia), conseqüentemente tudo é
sobredeterminado pois nada acontece ao acaso. É desta maneira que o autor verifica um
mundo super determinado funcionando na gica do super interpretado. O destino dos
indivíduos é organizado desde o nascimento, e o mito que desta maneira se constrói
se realiza plenamente. Segundo documentos recolhidos, indicativo de que
dificilmente o resultado do destino previsto se modifica substancialmente e, quando
alguma eventualidade ocorre, desviando esta via interpretativa, o destino é mais uma
vez interpretado para, nesta “não adequação” ao que estava previsto, intuir um presságio
negativo, ou seja, não se pode transigir o texto oral. Esta forma de coexistir no campo
37
simbólico deixa expressar que a fala ritualizada era a maneira principal e valorizado,
que leva a deduzir a pouca intervenção que ao sujeito era permitida para, assim manter a
fidelidade aos textos e as formas. Esta situação marcará uma desvantagem frente aos
espanhóis, primeiro porque estes últimos não ficarão atrelados a um destino já traçado e
segundo porque a agilidade de improvisação e de manipulação individual dará margem
a um maior número de jogadas no campo das comunicações, como bem ficou registrado
das participações que Cortez ousadamente fez, intervindo nos modos de interpretação.
Foi ele quem definiu estratagemas para atingir os índios, recolhendo informações de
brigas e intrigas internas dos grupos indigenas, tomando partido em algumas situações
para conseguir, dessa maneira, alianças convenientes dentro da guerra. O mesmo
Cortez, observou as formas de religiosidade desses povos, o que lhe permitiu também
intervir, fazendo encenações estratégicas com o intuito de desacreditar o contato
religioso que os povos nativos cultivavam, fazendo crer no silêncio dos deuses. Foi
dessa maneira, com a chamada manipulação da informação, que se explicam os
desencontros que levaram ao sucesso dos espanhóis, constatando-se, antes de qualquer
coisa, a eficácia que possui aquele que maneja a informação com autonomia e ainda
com o domínio da escrita que permitiu uma comunicação mais expedita entre os
espanhóis. É importante destacar, que o texto escrito foi de suma importância na trama,
pois permite um outro nível de elaboração que ajuda acessar espaços discursivos e de
memória que o indivíduo não tem como atingir somente com o recurso à oralidade.
Através da possibilidade oferecida pela escrita se enriquece a leitura e a interpretação da
alteridade
15
. Por paradoxal que pareça este exemplo, a leitura que o colonizador
conseguiu fazer, com todos estes recursos, sobre a alteridade, serviu principalmente para
a subjugação do outro, vigorando a máxima foucoultiana de que o saber serve
essencialmente para o exercício do poder.
Entendemos que a referência que até aqui Todorov nos fornece é de extremo
valor, pois, além de pautar uma leitura sobre a alteridade, que é o que caracteriza o
estrangeiro, destaca um enfoque particular da fundação da América e de seus efeitos
sobre a temporalidade ocidental. Seria esta uma consideração sem igual de um processo
que aconteceu no qual se inverte o lugar de estrangeiro, ficando estrangeiro aquele que
era nativo e cidadão aquele que veio de fora. Torna-se a alteridade um mito fundador
que ronda fantasmaticamente a enunciação. Daqui travam-se determinantes cingidas em
15
Exatamente porque o texto por ter a capacidade de ser arquivado e poder ser acessado quando a vontade
o requerer se projeta assim um espaço virtual do texto sem correr o risco de perdê-lo.
38
nosso continente tanto para o sujeito quanto para o estrangeiro. Essencialmente o
paradigma que nomeia cada um destes sujeitos sempre os circunscreverá juntos
16
, pois
um é a medida do outro, e sua designação dependerá da clivagem que cada estrutura
social e lingüística permita, como o demonstram os exemplos que até aqui
acompanhamos.
Chegado este momento, retiramos algumas conseqüências para o
desenvolvimento de nossa visão, que se estima nos pontos que a seguir apresentamos.
1.2.1. Quebra da realidade do outro: o sujeito em questão
Como vimos, no momento da conquista os europeus entram na era moderna com
um forte afã de ultrapassar fronteiras, seus ganhos em técnicas e ciências são todos
voltados para o espírito da conquista, ou seja, principalmente para a assimilação do
outro, impondo-se com o uso da força como modelo para o outro. O outro é submetido à
sua forma identificatória.
Já para a maioria das nações nativas do Continente Americano, embora houvesse
também períodos de conquistas entre as nações indígenas e, consequentemente
submissão, estas guerras não se pautavam pelo desconhecimento do adversário,
conhecia-se o inimigo. Isto diferia com relação ao espanhol e ao português, pois estes
eram estrangeiros em um grau extremo, sem referência para aquele contexto. Existe, por
este motivo, uma guerra contra o sobrenatural, ou seja, uma guerra em que não se tem
parâmetros para tratar do outro que rompe com todos os ritos, principalmente com os
acordos fundados na palavra que era soberana em um lugar onde a escrita ainda não
ocupava seu espaço.
Temos assim, pelo lado do homem moderno europeu, uma guerra em que o
outro é subjugado e, por parte do índio americano, temos um impasse maior à medida
que se desfazem alguns mecanismos de representação, impondo o silêncio que
desestrutura identidades locais.
As conseqüências deste paradigma no mundo atual se fazem sentir na tentativa,
cada vez maior, de recuperar fatos da História que, por muito tempo, foram omitidos e
de resgatar a língua dos povos nativos, trazendo-a para a forma escrita. Com isso
acreditamos que uma outra maneira de acessar a História começa a se estruturar e da
16
A organização destes dois pólos se determina como o limite do conhecido tange o limite do
desconhecido.
39
mesma maneira se resgatam elos com certas representações de culturas ancestrais que
ficaram soltas ou perdidas.
1.2.2. Temporalidade do sujeito
O sujeito americano nascido durante e após o período da conquista teve de
construir sua temporalidade nos parâmetros do mundo ocidental, o que significou uma
magnitude temporal dentro de outros pressupostos, diferentes dos vividos por seus
ancestrais. Como vimos, a linguagem ritual e o diálogo com os deuses apelando, à
estrutura interpretativa da religiosidade e astrologia estabeleciam ciclos específicos, que
estão ausentes no universo europeu que, utiliza o tempo segundo outras medidas. A
religião do outro também ajudava a considerar o tempo de maneira diferente, na medida
em que os anos eram definidos de acordo ao nascimento de Cristo, enviado de Deus
único. A própria idéia de um único deus era inacessível aos nativos exigindo um nível
de abstração estranho para quem estava acostumado com a multiplicidade de deuses. O
monoteísmo mais uma vez debateu com o politeísmo, tentando abarcar em uma única
interpretação as diversas interpretações possíveis. Então, cabe conjeturar sobre que
medida de temporalidade foi atingida neste ato. Cremos que uma temporalidade que
reduz tanto o espaço com o outro, descaracterizando modos de interação humana, altera
incisivamente os modos de interpretar a alteridade, pois o eu e o outro se tornam um,
para, no mesmo instante, ter de conviver com a diferença quase aterradora que os
habita.
Parece estar nesta relação a explicação de que o homem do Continente
Americano tente reencontrar seu tempo, dialogando intensamente com o Continente
Europeu, no ímpeto de conciliar-se com uma enunciação que lhe devolva sua unidade.
A marca desta demanda pode ser observada em muitas manifestações, entre elas, na
maneira da escrita literária, principalmente nos romances, seguindo inicialmente
padrões europeus. Também está presente na própria dependência econômica como
marca da dependência identitária relativa ao primeiro momento da conquista. Lemos
estes eventos como organizações identitárias quebradas, que ainda solicitam o olhar do
outro que dita a medida de tempo e espaço. Acreditamos que, na entrada no século XXI,
este quadro esteja modificando, quando encontramos cada vez mais eleições
40
presidenciais nos países da América, em que são escolhidos presidentes que têm
programas condizentes com necessidades
17
locais.
Como conseqüência desta discussão, cremos que surge um sujeito americano
que se redimensiona na temporalidade, demandando reconhecimento que parte de outro
lugar, de outro mundo, diferente ao circunscrito em solo natal. Se, por um lado, tal
condição significa uma perda em termos de unidade, como vimos acima, por outro lado,
a mesma ao sujeito possibilidades de operar, em algum nível de sua estruturação,
com uma identificação mais “universalista”, devido à experiência de ter que lidar com o
extremamente diferente, com um outro radical. Por conta disto, observamos que os
matizes do pensamento estóico se aderem a seu olhar, todavia neste caso o ponto de
partida começa com a derrocada dos interditos e se desenvolve, tentando (re)significar a
vivência do heterogêneo e do múltiplo que se obrigado a considerar. A metáfora
religiosa, na figuração de uma cidadania virtual, neste caso, mostra-se valiosa para
resolver os descompassos que afetam a identidade. Assim, não é nem um aqui nem um
lá que interessa, mas o que transcende a estes lugares geográficos.
1.2.3 A unidade da letra e a unidade do sujeito.
Como conseqüência da relação com a escrita e, portanto, com a materialização
gráfica do discurso, vimos uma distinção profunda entre europeus e americanos na
época do descobrimento. A eficácia simbólica que resultou disto, como vimos, apóia-se
sob outras bases, contudo o dispositivo da memória se torna vantajoso para quem
trabalha com a língua escrita, pois permite o acesso e a elaboração da herança cultural
de maneira facilitada. Assim, contemplando os limites da memória, que se projeta no
âmbito social e que tem repercussão entre os indivíduos, podemos constatar que
também neste campo encontramos a determinação do estrangeiro a si mesmo, à medida
que a tradição oral fica em desvantagem com relação à escrita. O que mais radicalmente
fica afetado aqui é o pacto entre indivíduos ou pacto social. Com isto, o lugar da lei se
desloca, pois não é a palavra dada que tem valor de compromisso senão que é a
palavra escrita que determina o direito de cada um. O contrato escrito foi utilizado como
um bastão poderoso para a posse das terras. Todorov lembra que na chegada de cada
navio em terra firme, era lido para os aborígines um documento que oficializava a posse
17
Referimo-nos a programas de governos que desenvolvem propostas sociais e não somente econômicas.
41
das terras em nome da coroa espanhola, é claro, desconsiderando-se completamente o
fato de que os nativos não entendiam a língua e nem compreendiam o valor do papel
que era lido. Só posteriormente este evento seria reavaliado; de qualquer modo, o
artifício da conquista já estava consumado e a posse das terras também. Digamos que,
quando o sujeito encontra na unidade da escrita seu pilar, a escrita se oferece como um
suporte de afirmação superior ao oral, assim o sujeito da oralidade fica exilado.
1.3. O NACIONALISMO BRASILEIRO E O IMIGRANTE
O nacionalismo surgiu como uma tendência determinada na história do mundo
ocidental e teve seus efeitos consolidados na idéia de Estado/Nação, como hoje a
conhecemos. Ele se define marcadamente após a Revolução Francesa, quando o sistema
monárquico é derrocado e se impõe uma nova ordem social, contando com a
participação do povo nas decisões e nas escolhas políticas. A idéia de um Estado,
contudo, é uma estrutura que requer um crédito para seu funcionamento e este crédito
apóia-se fundamentalmente na idéia de unidade que se consiga instituir. Assim, a
concepção de uma unidade nacional que convoque de maneira específica a quem
participa dela, é imprescindível para esse objetivo. O objetivo é alcançado por meio de
mecanismos hoje bastante conhecidos e discutidos, que passam por desenvolver
projetos culturais e sociais que chamem para uma aliança que unifique interesses para
construir a nação. Esta unificação se ampara fundamentalmente na delimitação
territorial; com isso, o muro das cidades antigas é transferido para os limites do Estado.
Se o limite proposto em tal procedimento é físico, observa-se, contudo, que a
delimitação se elabora no plano discursivo, pois é no discurso que se compõem as
significações necessárias para dar consistência ao projeto. Um dos mecanismos
indispensáveis passa por propor também para seus cidadãos um conceito de unidade,
criando com isso uma proporção ou razão, ou seja, uma unidade de sujeito para uma
unidade de Nação. Isto resulta na realização de uma identidade nacional,com
qualidades definidas dentro de um empreendimento coletivo, indispensável para compor
sua soberania.
Na sucessão de períodos históricos e já com a idéia da consolidação dos países
das América do Sul, focalizaremos nosso olhar sobre o Brasil e o formato assumido
para o conceito de sujeito nacional brasileiro. Neste último recorte de análise, interessa-
nos dimensionar as marcas específicas com as quais também se define o modo de
42
circunscrever o lugar dado ao outro, fornecendo elementos para sopesar a participação
do estrangeiro/imigrante.
Desde o Descobrimento do Brasil, contam-se diversas raças fazendo parte do
desbravamento no novo território, o que implicou, então, desde o início, um trabalho
específico para a reunião dos diversos níveis de alteridades. Tentar encontrar uma
unificação identitária neste território tão vasto não foi e, continua não sendo uma tarefa
fácil.
Desde a colonização, em que o colonizador português desapropria o nativo,
contam-se vários processos migratórios, cada qual com características particulares,
oferecendo várias versões do estranhamento e do estranho. Vejamos; com a presença do
negro trazido como escravo, temos um imigrante forçado. Nessa relação de senhor e
escravo, podemos observar as antagonias oferecidas por essa alteridade, vivenciando
antigos fantasmas nessa relação intersubjetiva, quando o senhor tenta instituir o outro na
condição de objeto, anulando, assim, o valor subjetivo da alteridade. No caminho
inverso, o escravo tenta destituir o outro. Esse entrave renderá seus frutos na historia do
Brasil como veremos nessa parte da discussão.
Tendo presente as tensões, postas desde a inauguração da sociedade brasileira,
nos deslocaremos diretamente para o cenário que circunscreve o nascimento do sujeito
nacional brasileiro. Tal momento aparece com notoriedade, segundo historiadores, no
contexto do Estado Republicano, em que se reúnem condições para que isso comece a
ser proposto. Maria Onice Payer (1999) oferece um eixo de discussão para entender seu
surgimento, quando destaca para o nascimento de tal concepção de sujeito nacional, a
colaboração e a idealização dos intelectuais. Ela avalia esta contribuição pelo impulso
que eles deram a essa proposta, apoiados nos moldes da Revolução Francesa. Entretanto
a nobreza da empreitada se choca com o amadurecimento político e social
completamente diferente para as condições históricas que o Brasil vivenciava na época,
principalmente quando a escravatura ainda era presente e quem se interessava pelas
idéias revolucionárias eram jovens de posses, muitos filhos de fazendeiros que
dependiam do trabalho escravo para produção das fazendas. Isto resultou no que a
autora denomina de uma falha específica na significação desse sentimento de nação e
na própria recepção de uma representação viável para a idéia de unidade para o Estado.
Decorrente de tal sucesso, a idéia de sujeito nacional também fica sem uma unidade
convincente.
43
Mesmo com esta falha inaugural, medidas foram elaboradas para a apropriação
da qualidade do sujeito em questão, abrindo discussões sobre língua, território, etnias e
outros. Precipitaram-se, no cenário público, elaborações que resultaram no
desenvolvimento de legislações que ajudaram a moldar o estatuto desta nova concepção.
Antes de entrar nas considerações pertinentes sobre tais legislações, é importante
destacar que o inicio dos fluxos migratórios para o Brasil foi decorrente do interesse do
Estado por povoar o espaço territorial, em especial as regiões de fronteira; de tal modo
foram feito apelos e promessas que muitos imigrantes oriundos de diversos países
europeus se entusiasmaram na empreitada. Um exemplo sempre presente no sul do
Brasil foram as famílias de açorianos trazidas para a ocupação das terras limítrofes.
Também os primeiros imigrantes alemães estiveram presentes. Mas avancemos.
A legislação qualifica tal propósito quando começa por criar a federalização,
dividindo os estados brasileiros para melhor abarcar os domínios da Nação, ou ainda
configurar uma idéia de nação que permitisse abarcar as múltiplas realidades sociais
presentes no território nacional. Payer (1999) destaca, entre outras medidas, novos
planos educacionais que prevêem a instrução para todo cidadão, no ensino primário,
aprimorando-se com isto a valorização de aspectos vinculados à identidade nacional.
Com todas estas medidas se busca uma homogeneização do brasileiro.
Com o fim da escravatura, acontecida em 1888, um novo paradigma social e
econômico se desenha no Brasil e começa a haver a necessidade de contratação de
trabalhadores assalariados para dar sustentabilidade ao funcionamento das fazendas de
café em São Paulo, que, naquele momento era o motor econômico do país, sustentado
até então pela mão de obra escrava. Esta situação cria condições favoráveis para
estimular a acolhida de imigrantes, principalmente os vindos da Itália e do Japão, que
chegavam em navios fugidos da crise econômica provocada nesses países decorrente da
Revolução Industrial. Os conhecimentos e cnicas que eles traziam, junto aos seus
pertences, foi de grande valia, pois ainda o Brasil se amparava economicamente da
agricultura. Neste recorte o imigrante, esse diferente é plenamente aceito e ainda
convidado a compor a idéia de cidadão brasileiro.
Certamente as circunstâncias se modificam profundamente quando começam
aparecer as convicções políticas dos imigrantes, produzindo uma consciência social
diferente. Aguçam-se os atritos quando uma pauta reivindicações trabalhistas se
organiza e, mais ainda, quando os sindicatos e agremiações tomam corpo sob estas
diretrizes políticas. Em 1917, os movimentos políticos operários intensificaram-se com
44
as organizações anarquistas, socialistas e comunistas. Foi a partir deste contexto que a
classe industrial, que também estava em ascensão, providenciou mecanismos junto ao
governo, iniciando políticas de interdições para o imigrante agitador e subversivo da
ordem social. O princípio de unidade choca-se com este outro compasso que o sujeito
vindo de fora imprime, por isso a exterioridade, indicada a ele, aguça-se. Payer em sua
análise discursiva constata:
[...]o estabelecimento de uma reação anti-operária por parte
das elites, impressionadas com o pronunciamento político desses
imigrantes nas lutas operárias
E, ainda observando as conseqüências disso, acrescenta:
[...]é nesse momento que a legislação brasileira se volta para
barrar a presença do estrangeiro: em 1921 é formulada a lei dos
indesejáveis, regulando a proibição de imigração e a expulsão de
estrangeiros; em 1930, a “legislação dos dois terços, estabelecia que
dois terços da população empregada na indústria deveria ser
compostas por trabalhadores nacionais. (Payer 1999, p.57)
Uma outra medida ainda está por dar uma guinada no âmago da questão e se
realiza no governo de Getúlio Vargas, em 1930, com a lei que interdita a língua
estrangeira. Como resultado desta operação é sentida uma retaliação que afetou
profundamente o espírito dos imigrantes que ainda sentiam o amparo da terra natal pela
presença da língua materna nas colônias. As condições da memória cultural
modificaram-se. Transferir significações de uma língua a uma outra sempre traz uma
quota de perda, e nós acreditamos que também resultou em ganho, pois, como veremos
com mais atenção ao longo do nosso trabalho, a construção de uma memória conta em
grande medida com os valores que uma língua faz circular. Podemos acrescentar que tal
ruptura tem registro na memória escrita que os imigrantes posteriormente organizaram.
Encontramos alguns desses registros em instituições preocupadas com a história do
imigrante, que recolhem depoimentos ou narrativas de imigrantes
18
.
18
Duas instituições, em São Paulo, preocupam-se com esse tipo de arquivo, que são o Memorial do
Imigrante e o Museu da Pessoa
.
45
Voltando o nosso olhar sobre as significações que afetam o imigrante, vemos
configurar-se a expressão de um sujeito que se opõe ao sujeito nacional, àquele que se
entende em todas as dimensões como brasileiro, inimigo porque não permite
principalmente o fechamento da unidade sujeito, que se vincula a uma unidade maior
que é a Nação.
Nos períodos das ditaduras militares na América Latina, entre as décadas de
1960 a 1990, ocorre no Brasil o segundo grande fluxo migratório, dessa vez, com os
imigrante oriundos dos países vizinhos. Neste momento, a desavença com o imigrante
piorou, porque o nacionalismo tomou proporções mais extremas. Como é
amplamente conhecido, os mecanismos do Estado, estavam voltados para uma eventual
guerra e, portanto, o indicativo seria a eliminação do outro portador de insígnias
ideológicas contraproducentes ao projeto nacional. Acreditamos que, naquela época,
não era o imigrante que estava em pauta senão o estrangeiro, pois não se admitia a
possibilidade da imigração para homens e mulheres vindos dos paises vizinhos. O
interessante, neste segundo recorte migratório, é que o núcleo narrativo que os novos
imigrantes trazem reflete uma superposição de lugares porque a alteridade combatida na
figura do imigrante refletia a exterioridade dada aos mesmos brasileiros que não se
assujeitassem à ideologia nacionalista vigente neste marco histórico. Consequentemente
a censura foi maior porque escondia um artifício mórbido em seu propósito, já que uns
poucos decidiam a cidadania de todos, como nas ditaduras costuma acontecer.
Testemunho desta atitude radical notamos quando se observa a escassa memória
coletiva sobre este imigrante, pois não é um imigrante falado, ele é pouco conhecido e
valorizado.
Atualmente após a queda, em todos os países da América Latina, das ditaduras
militares, existe uma reconsideração sobre os períodos de extremismos ideológicos,
convocando uma volta para o caráter heterogêneo do sujeito. Hoje a nacionalidade e a
subjetividade retornam vinculadas a outras bases e, acreditamos, cada vez mais
amparada em produções democráticas e culturais. Contudo, estamos avisados de que a
história e o movimento dos discursos não param de retornar sob antigos parâmetros,
ainda que acrescentem elementos novos à sua leitura, por isso, não podemos dizer que
os paradigmas com os quais nos defrontamos, nesta primeira parte da discussão, já estão
superados totalmente. Acreditamos que os paradigmas serão sempre remanejados no
transcurso da história e, recolocarão a forma com a qual o imigrante irá debater. Só para
lançar algumas idéias sobre as articulações que se avistam em um futuro próximo ou
46
talvez já estejam presente, vemos reações fortes contra o imigrante em diversos países a
conseqüência de maciços deslocamentos de pessoas principalmente para Europa e os
Estados Unidos. No cenário do Pós-Moderno, em que a vitalidade do Estado não é a
mesma e o conceito de globalização abarca idéias de homogenização econômica e
cultural, derrubando as fronteiras entre os países, as determinantes para tais reações não
são as mesmas com as quais tratamos até aqui. Entretanto, não temos nesse momento
como ponderar tais conseqüências e sobre tudo, neste estudo, dar um arrazoado sobre o
imigrante nesse panorama. Somente temos indicadores que mostram algumas
manifestações xenofobicas acentuadas pelo mundo. Assim, esta parte fica em aberto
para futuras considerações, somente mostramos esses efeitos para afirmar que a re-
colocação do mesmo e do estranho estão sempre se anunciando e, que o imigrante é
uma peça fundamental para entender essa medida, sempre polêmica.
CONSIDERAÇÕES PARCIAIS
Neste capítulo, tentamos observar as propriedades significantes que o imigrante
carrega, enquanto suporte específico do construto da instância social que lida com a
alteridade. Partindo deste pressuposto, fizemos um percurso teórico que nos orientou na
maneira de observar os paradigmas com os quais o imigrante dialoga como
representante do diferente, do estranho. Para realizar essa elaboração contamos com a
ajuda de três principais autores, sendo eles Julia Kristeva (1994), Todorov (1993) e
Maria Onice Payer (1999).
Por meio do referencial teórico aportado por Julia Kristeva, tentamos conceber a
noção de territorialidade que incide sobre a distinção em que trabalhamos. Vimos que a
este conceito se ligam delimitações, que primeiro respondem por circunscrever as
cidades dentro de seus muros, na Grécia antiga, o que margem para considerar um
externo e um interno à cidade. Se inicialmente se trata de limites físicos, posteriormente,
vemos que os limites se transpõem para o espaço cívico em que a pólis arbitra seus
interesses. Dessa maneira o muro se metaforiza como um limite onde o arbitrário das
decisões sociais determinam seus critérios de aceitabilidade ou não. O estrangeiro, com
isto, ganha estatuto de suplicante, pois solicita para o estatuto cívico o direito de fazer
parte da cidade. Assim, vimos que, após a mediação com a cidade, o estrangeiro pode
ascender à categoria de meteco, que se refere ao sujeito que decide ficar de maneira
definitiva na cidade, oferecendo um serviço que a ela interesse. Nesta diferença de
47
estatuto, nos amparamos para conceber a distinção entre estrangeiro e imigrante, sendo
que o imigrante, à semelhança do meteco, é aquele que realiza a opção de ficar
estabelecendo um vínculo com a cidade, o estrangeiro não realiza este compromisso.
Configurada tal distinção, a utilizaremos como operador importante para nosso estudo.
Prosseguindo, observamos também os limites impingidos pela ngua. Vimos
como a qualificação de bárbaro responde pela designação da não aceitabilidade da
língua do outro, que também traz conseqüências consideráveis para a composição do
diferente.
Posteriormente, chegamos, por meio dos estóicos, no paradoxo da noção de
território, quando estes ao se empenhar na construção de uma visão cosmopolita,
pregam a ruptura com os interditos sociais, base do funcionamento da cidade fechada.
Acompanhamos também o modo como esta abertura foi absorvida pela religião judaico-
cristã para pregar uma cidadania virtual, do povo único de Deus, abstraída da concepção
territorial. Na troca de lugares entre o territorializado e o virtual, verificamos um outro
paradoxo quando conferimos que dessa vez o estrangeiro passa a ser aquele que não
participa do espaço virtual fundamentado na ruptura do interdito.
Com Todorov nos atemos a idéia do inusitado das diferenças, a noção do
estranhamento extremo que o diferente pode representar. Para abordá-lo, o autor usa o
cenário do descobrimento do Continente Americano. Junto a esta idéia inicial,
acompanhamos a importância da eficácia simbólica da palavra. Constatamos na
contenda travada entre dois universos sociais, o espanhol e o dos índios americanos, as
distorções promovidas por este encontro. Daqui vimos que o domínio da linguagem
escrita foi definidora para que os espanhóis tomassem a dianteira na guerra, oferecendo
vantagens para os mecanismos de comunicação, diferentemente dos nativos, que
praticavam essencialmente a linguagem oral restrita a certos moldes. Neste impasse,
também contou a dimensão do tempo, pois a tradição oral exigia dos nativos,
procedimentos mais demorados na comunicação devido aos ritos a observar, decorrente
da visão religiosa; os espanhóis contavam com uma agilidade e flexibilidade maior,
resultado da abertura da cultura e ciência no continente Europeu. Essencialmente o que
nos interessou aqui foi a dimensão do desencontro e da temporalidade. No desencontro
vimos que o domínio dos europeus fez com que uma outra ordem se instalasse, exilando
aquela que existia anteriormente. O domínio dos europeus, que se sentou
definitivamente quando sua língua foi imposta, fez com que acontecesse uma inversão
de lugares, que o estranho, ao se apossar do lugar, fez dos nativos estrangeiros.
48
Assim, o estrangeiro se tornou nativo e o nativo estrangeiro. Quanto à dimensão de
temporalidade, consideramos que a enunciação do sujeito se viu afetada pelas choque
entre as concepções de tempo, principalmente quando a memória do nativo ficou
apagada neste processo, fazendo com que o sujeito demande sempre “algo” dessa parte
da História que fica inconclusa.
Finalmente chegamos à contribuição de Maria Onice Payer, procurando as
determinantes circunscritas no Brasil para o imigrante. Consideramos aqui a construção
do sujeito nacional, definido dentro do processo do Estado Brasileiro e dos eventos
históricos que acirraram suas qualidades. Nessa perspectiva, identificamos os atributos
ponderados para o imigrante, que se posicionou no desenvolvimento deste contexto,
primeiramente como colaborador do empreendimento de país e, posteriormente como
elemento desestabilizador da ordem social.
Nesse trajeto tentamos circunscrevermos as designações com as quais o
imigrante convive, dependendo do contexto no qual esteja inserido. Evidenciamos que
as designações são decorrentes do discurso desenvolvido no campo social e das
circunstâncias históricas. Entretanto duas condições nos pareceram fundamentais para a
abordagem do sujeito que suporta a imigração. Em primeiro lugar, é necessário observar
que a decisão de se tornar imigrante é uma opção singular que faz com que o sujeito
dialogue com as circunstância do contexto do país ao qual chega. Isso faz com que esta
opção transcenda às circunstâncias impostas pelo meio. Em segundo lugar, referido à
dimensão de alteridade com a qual se depara na consideração de sua pessoa, encontra-se
às vezes com uma leitura que o acolhe, às vezes com uma leitura que o distancia.
Conforme os diversos enfoques que o imaginário discursivo mobiliza, somos levados a
admitir que o imigrante pode conviver, no transcurso de sua vida, com praticamente
todas essas possibilidades, pois não partimos do pressupostos que cada época trate de
forma tão homogênea suas designações, senão que elas são prenhes de diversos pontos
de chegadas e partidas. Assim, praticamente neste capítulo nos interessamos, antes de
qualquer coisa, em identificar os paradigmas pelos quais o imigrante é nomeado e a
partir do qual ele se posiciona em diálogo com o lugar ao qual chega. Portanto não nos
interessamos aqui em vislumbrar exatamente como ele é visto hoje, que isso
precisaria um trabalho específico do discurso atual, mas aqui trouxemos elementos da
ordem das significações que nos pareceram importantes para conceber o lugar de
alteridade que este sujeito traz.
49
Com esse percurso fomos de um panorama mais universal a um panorama mais
local sobre nosso assunto.
Finalmente, ao longo de nosso desenvolvimento pudemos discernir como a
figura do imigrante congrega significações em torno à alteridade, ao estranho, ao
próprio, enfim ao externo e ao interno com que o sujeito se depara em cada situação e
contexto. Disto deduzimos a base que o funcionamento da linguagem oferece para a
eficácia dos significantes, que entram em jogos de diversas maneiras. Isto ficou evidente
quando tratamos das designações do bárbaro, da linguagem oral e escrita, do
reconhecimento ou desconhecimento da língua do outro, etc. Com a preocupação de
aprofundar os aspectos que situam esta organização que a língua suporta para fornecer
elementos ao discurso e sua eficácia, daremos curso ao seguinte capítulo.
50
2. DO PARADIGMA DANGUA À EXPRESSÃO
ENUNCIATIVA
A língua provê os falantes de um mesmo sistema de referências pessoais de
que cada um se apropria pelo ato de linguagem e que, em cada instância de
seu emprego , assim que é assumido por seu enunciador, se torna único e sem
igual, não podendo realizar-se duas vezes da mesma maneira. ( Émile
Benveniste. Problemas de Lingüística Geral II, 1989, p.69)
No capítulo anterior, ao transitar pelos dispositivos que levam um sujeito a
estabelecer uma relação com a alteridade, vimos quão determinante era sua organização
junto à língua, para que ele, em definitivo, entre na apropriação de si e do outro. É
inevitável constatar, olhando para a consideração da eficácia simbólica, o papel que o
corpo da língua adquire no comando das representações e ainda mais quando a própria
representação do Eu encontra substancialidade através da linguagem. Com isso, nos
interessamos, neste capítulo, em aprofundar a concepção de língua e de seus
mecanismos, para situarmos-nos em uma perspectiva dinâmica com a qual, mais adiante
pretendemos dar conta da enunciação que os imigrantes constroem junto à outra língua
que lhes toca viver. Por meio deste percurso, em definitivo procuramos captar o ponto
de movimento da/na língua, que conduz pelos caminhos dos sentidos possíveis. Assim,
somos levados a conferir as concepções de língua com os quais tratamos.
Para isso, este segundo capítulo constitui um norteamento maior dentro de toda a
estrutura do nosso estudo. Com isso, propomos a hipótese organizadora de que a língua
na perspectiva de valor que ela contém, se vê afetada pelo ato enunciativo que a
toca, revelando a inscrição das marcas do sujeito.
Contando com esta primeira hipótese, derivamos uma subseqüente, na qual
reconhecemos que, quando está em pauta a enunciação realizada pelo imigrante, o
ato enunciativo é definido pelas marcas de um sujeito que advém em segunda
língua trazendo marcas de uma ruptura em língua materna. Assim, procura, em
51
primeiro termo, reconhecer a unidade em segunda língua para, em seguida,
promover sua inscrição de sujeito, por meio de marcas específicas desta mudança
de língua. Aqui é reconsiderada a capacidade de estabelecer relações significantes
em um outro sistema de valor. A relação do sujeito com a língua-outra se define por
singulares mecanismos de apropriação, os quais queremos discernir no andamento do
nosso estudo. Para chegar a tal resultado, nos deteremos, agora, na natureza da língua
que ampara esses pressupostos.
O norteamento para este capítulo passa pela discussão do que vamos estabelecer
sobre a língua e o atributo de valor que dela emana. Posteriormente pretendemos
localizar suas bases dentro do plano enunciativo quando o sujeito se precipita através da
linguagem. Nessa parte, contaremos com as elaborações teóricas de Émile Benveniste.
Finalmente traremos um acréscimo para este plano enunciativo, aportando as
contribuições de Jean-Claude Milner que trata da língua não-toda.
Para traçar um pequeno panorama dos pontos a tratar, convidamos a um pequeno
preâmbulo. Começaremos com Ferdinand de Saussure, inspirador do Curso de
Lingüística Geral (CLG
19
), que em 1916 deu o primeiro e mais importante impulso ao
conceito de língua. A articulação proposta por ele, sem dúvida, continua vigorosa,
embora sob alguns aspectos polêmica, pelas dicotomias que ela institui, especialmente a
principal delas, a dicotomia língua/fala. Contudo, da nossa perspectiva, consideramos
que este autor não deixa de observar, ao longo de toda sua obra, que língua e fala não
têm uma separação real, senão que isso responde a um discernimento teórico para
circunscrever a forma da língua. Podemos comprovar isto, uma vez que o autor não
deixa de observar em inúmeras oportunidades, a importância do uso da ngua para a
instituição da própria língua
20
, como veremos ao longo deste texto.
No empenho por definir a língua como objeto de estudo, Saussure a formula
junto à construção de um método, que se resolve pelo que irá designar de recorte
sincrônico. Desta maneira, se perpetua o modo de concebê-la dentro dos estudos da
linguagem. Este recorte é, antes de tudo, uma suspensão de uma forma, semelhante ao
que alguns pesquisadores das ciências biológicas fazem ao separar algumas células e a
partir delas deduzir a composição e funcionamento de um organismo maior. Assim, o
19
A partir desse momento nos utilizaremos a sigla CLG, para referir a este texto no corpo de nosso
trabalho.
20
Lembramos aqui o sentido por vezes hipotético das intenções teóricas que o autor Ferdinand de
Saussure ganha no Curso de Lingüística geral, a medida que encontra-se suficientemente esclarecida por
Simon Bouquet,(1997) as peculiaridades que esta obra tem ao contar com a recopilação do material
transcrito por alunos do mestre e ainda pela organização arbitrada pelos editores.
52
corte sincrônico, ao expressar um estado de língua, tende a projetar o sistema da língua
como um todo. Entretanto, no caso da língua, sua natureza é apreendida como um corpo
virtual, que ganha consistência na vida dos indivíduos e na sociedade. Podemos ainda
dizer que toda realidade humana é realidade, na medida em que é possível intermediá-la
pela língua.
Após tratarmos da natureza da língua passaremos, nos ocuparemos com a
natureza da enunciação, circunscrita à linguagem. Neste segundo ponto, convocamos
Émile Benveniste, que nos ilumina, acrescentando para esse funcionamento da língua
um outro funcionamento de acesso à língua, o aparelho formal da enunciação. Por meio
dele, pela dinâmica da utilização do sistema pronominal, o homem se engaja no sistema
simbólico que este autor reconhece no campo da semântica. Neste caso, uma semântica
enunciativa, que se preocupa com a maneira que a significância se integra na vida do
homem junto à língua. Esta integração está na linearidade concatenada na sintaxe, que
organiza as expressões de cada sujeito. Constata-se, também, que neste tipo de sintaxe
se mostra uma qualidade de conversão, pois se manifesta a maneira como as idéias se
transformam em palavras. O modo de fazer esta conversão, sem dúvida, explicita o
estilo de cada sujeito quando converte suas palavras para o espaço discursivo. Revela-se
uma forma de sujeito.
Em resumo, estamos por este desenvolvimento, focalizando o contato da língua
com o sujeito. A enunciação comporta, então, este espaço de resolução.
Finalmente, acrescentamos a este recorte enunciativo as contribuições de Jean-
Claude Milner, que nos brinda com um elemento que participa também deste aceso à
língua. Falamos do que este autor indica como um impossível específico, que cada ser-
de-fala carrega para o contato com a língua. O impossível representa um ponto cego,
que faz o sujeito funcionar em torno à língua conforme o que se expressa como uma
falta, uma falta que nunca se sutura e que, por isso, impinge ao sujeito retomar sempre a
palavra para seu recobrimento. Este exercício com a língua certamente fala de zonas
investidas, por isso também um impossível que não deixa de se dizer.
Chegamos, por esse caminho, às maneiras como a língua se alterada em seu
domínio, no domínio do Um.
Acrescentamos em todos estes momentos, algumas reflexões sobre a situação do
imigrante na lida com as formas da língua, que nos ajudam a dialogar sobre essa relação
na qual o imigrante se envolvido com dois sistemas idiomáticos. Nisto intuímos uma
construção triádica entre sujeito, língua materna e segunda língua, que sopesam em sua
53
construção enunciativa e definem um tipo de vínculo particular com esta instância de
simbolização.
Após apresentar este percurso, em que introduzimos as três linhas teóricas do
campo da Lingüística que escolhemos como suporte, resta-nos afirmar que não as
aproximamos para realizar contrapontos teóricos, já que, as consideramos em uma
relação de encadeamento, que permite identificar o caminho que vai da língua à
expressão enunciativa, em que o sujeito provoca marcas pela sua condição de não-todo.
Distinguimos aqui o movimento, que observamos sempre constante, de um pêndulo que
tem sua trajetória entre o efeito de unidade e a quebra da unidade. Ou efeitos que vão do
todo para efeitos de não-todo. Reconhecemos essa formulação como indispensável para
poder representar as operações com quais o sujeito imigrante elabora seu lugar
enunciativo ou sua existência na língua ou ainda língua-outra.
Dando um fechamento a este espaço preliminar, acompanhamos Flores, que
nos adverte a respeito dos dois níveis em que a ciência da Lingüística se apresenta, por
um lado circunscrevendo os domínios do próprio objeto língua, a partir do ensino de
Saussure, em que se exclui a partir da dicotomia ngua/fala toda essa região da fala e
seu exterior e, por outro lado, temos o encontro com uma outra lingüística que toca
neste retorno do excluído da forma, recolocando em cena o sujeito. Assim, o autor
entende que o sujeito é um elemento que, embora excluído da lingüística , a ela retorna
porque está constitutivamente presente em seu objeto (Flores.1999, p.14). É nesse
sentido que orientamos o desenvolvimento do nosso trabalho, procurando este retorno
do sujeito ao funcionamento da língua, porém considerando que o diálogo com a forma
também é necessário ao sujeito.
2.1 O CORPO DA LÍNGUA SAUSSUREANA
O paradoxo está posto, o corpo da língua parece ter forma desde os
ensinamentos do mestre genebrino Ferdinand de Saussure na entrada do século XX
21
;
21
Desde reconhecemos que nessa discussão tomamos com exclusividade a leitura estruturalista
oferecida pelo Curso, devido à qualidade do Um que nos interessa chegar. Isso não significa a nossa
desconsideração das elaborações de Saussure dos Anagramas analisados a partir dos poemas saturninos
(Starobinsky. 1974), nos quais ele reconhece determinações que ultrapassam a capacidade do sistema no
qual certamente se insere determinações de sujeito, pelas rupturas da regularidade que nelas se
expressam.
54
corpo esse que não foi escrito, mas elucidado, e resultou capturado e formatado a partir
dos cadernos dos discípulos do pai da Lingüística. Muitas especulações, a partir deste
evento, continuam acontecendo a respeito dessa senhora língua, principalmente porque
ela sempre instiga ao estar no cerne da natureza humana e tece fios onde o corpo
parece já não consistir enquanto tal.
Como fomos antecipando, é no Curso de Lingüística Geral (1916) que se
expressa o paradigma da Línguística, criando e determinando o que hoje se entende por
língua. Nasce uma nova tradição que fundamenta uma unidade antes inexistente, que
aqui iremos descrever e discutir.
Saussure, ao abrir uma nova dimensão nos estudos da linguagem, propõe um
objeto que, até então, não havia sido definido enquanto tal. A língua não encontrou sua
especificidade em nenhum estudo anterior; nem na gramática, nem na filologia , nem
ainda nos estudos comparativos, aparecendo sempre em um foco tangenciado, pois
escapava dentro da sua “obviedade”. Sob tais circunstâncias, o autor procura o quadro
que define a língua, ou melhor, define sua natureza, chegando à concepção de que ela
comporta, antes de tudo, um sistema estabelecido que concebe sua própria evolução.
Assim, a língua se determina como uma parte essencial da linguagem, sem, contudo, se
confundir com a linguagem (CLG. 2000, p.17). Nesta primeira precisão, a língua ganha
relevo e é dada a largada para trabalhar, também, outras dicotomias que indicarão a
composição do sistema.
Voltando-nos para a primeira distinção, constatamos que língua e linguagem
tangem a olhares diferenciados, uma, comportando um sistema e, a outra, comportando
uma capacidade dentro do grupo social humano.
A primeira distinção leva a outra, que delimita mais ainda, o recorte que se
procura e, é dessa maneira que surge a famosa dicotomia língua/fala, que radicalmente
termina por definir o objeto proposto. Aqui o efeito da barra, que diferencia língua de
fala, indica a noção de uma condição interna da língua contrastada com uma condição
em que o exterior influi sobre ela, que seria, então, a fala. As condições externas que a
linguagem refere, correspondem às diversas formas de expressão que o quotidiano
estipula quando as pessoas de uma maneira corriqueira fazem uso da língua e é por esse
motivo que ela se diferencia como um ato individual, entendendo-se dentro de um
princípio heterogêneo. a língua, ao se compreender enquanto sistema com leis
próprias e, digamos aqui constituindo um corpo, obedece a características de
55
homogeneidade, e homogêneo na medida em que responde essencialmente ao equilíbrio
interno do sistema.
Entretanto esta grande unidade que a língua passa a representar não desconhece
as interferências que lhe chegam do exterior, e os elementos passam a ser considerado
somente após a ação de assimilação por parte da língua, o que vai permitir uma
existência dentro do sistema. Assim, o corpo interno da língua é tomado por um
considerável empenho, uma vez que, são vários os elementos a distinguir e,
principalmente, vasto o número de relações que se arrogam ao seu funcionamento, para
a manutenção de tal estabelecido.
A magnitude que a língua alcança, por sua vez , não pode ser abarcada por um
único sujeito falante, ela comporta um patrimônio amplo que Saussure destaca como um
grande tesouro depositado no cérebro de todos os seres falantes de uma comunidade
que pratica uma ngua. Estando ela nesta interação entre sujeitos que compartilham
uma língua, existe a premissa de um princípio solidário, como mostra a seguinte citação
no Curso:
A ngua é necessária para que a fala seja inteligível e produza todos os seus
efeitos, mas esta é necessária para que a língua se estabeleça
. (CLG, 2000 p.27)
Ou seja, sinais de que a subsistência de tal organização implica também a
relação entre língua e linguagem, cada uma servindo-se de canais necessários à
legibilidade e a consistência do corpo. Considerando-se esta dupla via, vemos a
dificuldade que Saussure enfrenta para produzir esta distinção tão necessária para isolar
o funcionamento de uma máquina que está na vida humana de maneira tão integrada, e
que por isso se torna difícil abstrair sua natureza, que ela, como invenção humana,
confunde-se com a própria natureza que o homem inventou para si. Enfrentando estas
dificuldades, a Lingüística abre caminho para olhar o “invento”, constatando sua
autonomia enquanto sistema, que ao ser utilizado pelos falantes mantém sua
constituição.
Desta forma, tal corpo não existe definido por um espaço delimitado senão que
ele se configura em um espaço virtual. O ingresso dos elementos a este espaço,
enquanto corpo virtual, é permitido pelo uso dos seus atributos, implicados enquanto
56
formas, unidades que se reconhecem por condições de oposição, ou seja, um elemento é
o que outro não é
22
, e se projetam em um princípio classificatório.
Vejamos com mais atenção e sigamos estes preceitos, o sistema composto por
elementos que se ordenam num princípio classificatório requer que apresentemos o que
se entende por estes elementos. Na procura por definir a unidade básica que sustenta o
modelo do sistema, Saussure chega ao signo lingüístico que é simbolizado da seguinte
maneira:
Signo=Significado (conceito)
Significante (imagem acústica)
O signo
23
aparece no Curso como o resultado da união entre um significado, que
representa a idéia ou conceito do que se quer representar, e, o significante que se
manifesta como uma imagem acústica. A imagem acústica é explicada, não puramente
como um som material, senão que como a impressão psíquica desse som que
testemunho de nossos sentidos; tal imagem é sensorial (CLG, 2000, p.80). Tanto o
conceito quanto a imagem acústica resultam de operações psíquicas e ambos os
elementos estão intimamente unidos e um reclama o outro (CLG. 2000, p. 80). A
procedência de tal vínculo cria uma materialidade que faz com que trabalhemos não
com abstrações mas com objetos reais ou entidades concretas (CLG. 2000, p. 119) de
natureza psíquica. Um dos reflexos desta realidade encontramos na representação da
língua pela escrita.
Este desenvolvimento é de suma importância, pois a dimensão de realidade aqui
descrita, ainda tem muito a aportar para o campo das ciências observando as diversas
particularidades do tangível. Tal idéia certamente contrasta com os modos de
observação das ciências exatas que encontram seu objeto concreto na vida da natureza;
a Lingüística, que se atém à consideração dos signos lingüísticos, lida com uma parte
expressiva da natureza psíquica e, portanto, com uma materialidade que demonstra sua
consistência nas relações para a circulação da fala e dos discursos no quotidiano -
indispensáveis para o afazer dos sujeitos e da construção de suas realidades no campo
das trocas sociais - estamos na consideração do fato social. Pode-se dizer que isso não é
22
Lembramos que o autor destaca para esta disposição a comparação com o abecedário em que cada letra
retira seu valor por ser exatamente o que as outras não são.
23
destacamos que o avanço desta explicação está, também, em descartar a idéia de que o signo lingüístico
une uma coisa a uma palavra.
57
tangível? Funda-se, neste momento, um outro estatuto para a consideração do objeto nas
ciências.
Contudo é o fato social língua que é buscado, e a trilha passa pelas regularidades
que a determinam.
Neste recorte, as unidades tangíveis de língua cobram um interesse particular,
pois o olhar que permitirá que elas sejam vistas dependerá de um desdobramento
específico. Saussure dirá que existem dois modos de abordar o estudo em questão: por
um lado, ele exige uma observação na qual a língua é observada em sua evolução, que
ele designa como lingüística diacrônica e, por outro lado, a abordagem recai na
tentativa de captar um estado de língua, e a atenção está na organização do sistema
que se tenta diferenciar; fala-se, netse sentido, em lingüística sincrônica. Temos na
Lingüística sincrônica, uma suspensão da consideração do tempo, para determinar um
estado de língua. Embora, haja uma suspensão do tempo, anatomicamente falando,
existe um recorte de tempo. É a lingüística sincrônica que o autor escolhe para construir
seu dispositivo de observação e com isso escolhe também uma forma específica de
recortar o objeto que ele quer definir em sua dimensão concreta.
Seguimos, por aqui, o que Saussure propõe desde o inicio do Curso, quando
estipula que: bem longe de dizer que o objeto precede o ponto de vista, diríamos que é o
ponto de vista que cria o objeto. (CLG. 2000, p. 15)
Como o ponto de vista escolhido é o sincrônico, o qual indica elementos que
compõem o sistema ou estado de língua, e observa os tipos de relações que nela se
realizam, será por ele que poderemos chegar à realidade a ser distinguida. Nessa direção
reintegra-se o conceito de signo lingüístico e se desenvolvem as categorias de valor e
identidade da língua. Vemos que, por esta escolha, o signo que vinha sendo
dimensionado em sua natureza, encontra toda sua tradução.
O signo enquanto entidade concreta, como vínhamos tratando, manifesta sua
existência pela associação do significado com um significante, e a presença de um
dos elementos comportaria uma pura abstração, desfazendo o signo enquanto tal. Daqui,
registra-se, no CLG, que na língua um conceito é uma qualidade da substância fônica,
assim como uma sonoridade determinada é uma qualidade do conceito (CLG. 2000,
p.119)
A metáfora que melhor representa esta constituição do signo é apresentada por
Saussure ao comparar a união do significado com o significante com a união
58
constitutiva da molécula de água que se compõe pelo hidrogênio e oxigênio (CLG.
2000, p, 120). Ao se desfazer esta união não temos mais o elemento água.
Não obstante, além do arbitrário da composição deste signo lingüístico, o autor
avança em sua elaboração ao considerar que tal signo não se apresenta enquanto tal, a
não ser em um sistema que lhe defina seu lugar, e mais, que lhe defina seu lugar
segundo as relações que nele se organizem. E é nesta condição de delimitado que o
signo se opõe na língua, ou seja, se opõe quando um signo diferencia-se de outro. É
interessante, que tentando esclarecer o efeito de delimitação, aparece um exemplo
relativo à língua estrangeira, trazendo a idéia de alguém que se depara com uma outra
língua e vive a experiência ímpar quando não alcançar o significado das palavras. Isto
ocorre porque, num primeiro momento somos incapazes de dizer como a seqüência de
sons deve ser analisada (CLG. 2000, p. 120); entendemos que a situação, corresponde a
um primeiro contato com outra língua, assim, uma seqüência de sons, que representaria
uma massa amorfa de sons, ao não contar com uma delimitação dentro do sistema no
qual é escutado, perde efeito de legibilidade. Aqui se destaca o signo que perde em
consistência, pois a falta de significado que se juntaria para responder pelo recorte
dentro da seqüência de sons desfaz a eficácia de significar dentro do domínio da língua.
Consideramos este um belo exemplo que toca em cheio na nossa preocupação
com o imigrante que exatamente se depara com a experiência das precárias condições
da delimitação que lhe impinge a nova experiência de língua. Acreditamos que a costura
que se promove dentro destas novas unidades de língua, representadas pelo signo
lingüístico implica uma certa disposição para organizar uma alquimia que permita então
juntar hidrogênio com oxigênio para que a água do movimento de um sistema possa
fluir. Mas deixemos em suspenso por enquanto estas elucubrações, para analisá-las, a
seu devido modo, adiante.
Voltando à consideração da delimitação, vemos que para Saussure o signo, as
entidades concretas da ngua e ainda as unidades da língua encontram características
semelhantes e parecem referir a mesma condição enquanto relativas exatamente a esta
delimitação dentro do sistema ngua. O raciocínio, aqui, nos leva na direção de supor
que não é propriamente uma unidade palavra que permite dar conta do signo, e isso se
formula no CLG, quando se observa que: os caracteres da unidade se confundem com a
própria unidade. Na língua, como em todo sistema semiológico, o que distingue um
signo é tudo que o constitui. (CLG, 2000, p. 140-141). Assim signo e sistema tratam de
59
realidades plásticas que encontram unidades eficazes, dependendo do momento em que
se recorta a língua.
Observa-se, assim, que se utilizará o termo palavra, muitas vezes para abarcar,
dentro do sistema, a unidade significante concreta.
Toda delimitação, então, dentro do sistema se torna indispensável, e as
elaborações acabam recaindo sobre a dimensão de relações e valores. O sistema
enquanto sistema de relações é observado conforme o exemplo do jogo de xadrez (CLG.
2000, p. 104) em que cada elemento tem seu lugar definido dentro do tabuleiro
conforme os movimento das peças e principalmente porque este procedimento
considera, antes de tudo, a relação de oposição das peças. Entretanto tais oposições
movimentam-se de acordo a leis internas, do mesmo modo que o xadrez, o que
determina o movimento das peças é a lei do jogo e, assim, o suporte material de cada
peça não define nenhuma diferença. Por exemplo: se entre as peças do jogo de xadrez, o
cavalo é feito de material distinto, isto não afeta o jogo, porque está definido o
movimento dele pela regra, independente do suporte material; da mesma maneira
Saussure explica que uma letra pode ser escrita de maneiras diversas, e não modifica
sua utilização já que o principal é preservado o fato de ela não ser confundida com outra
letra.
Quando o autor trata da lei que rege o sistema língua, ele estima que a lei
sincrônica é geral, mas não é imperativa (CLG, 2000, p. 108), assim, o sistema língua
se diferencia dos outros sistemas sociais humanos que se determinam por leis, elas sim,
imperativas, porque surgem de um consenso de pessoas que deliberam. Totalmente
diferente do fato social humano, a língua encontra seu consenso no uso da própria, sem
deliberação, e assume elementos não de decisões conscientes, mas pela força do uso, da
prática da língua. A lógica da língua se estabelece em si. Esta condição da lei mais
adiante é reforçada quando se destaca:
[...] na língua, força alguma garante a manutenção da regularidade
quando ela reina em algum ponto. Simples expressão de uma ordem vigente, a
lei sincrônica comprova um estado [...] E a ordem que ela define é precária,
precisamente porque não é imperativa. ( CLG,
2000,
p. 109)
Aqui temos mais uma consideração a fazer, quando observamos esta ordem que
se circunscreve a determinado momento, que não encontra garantias de que venha a se
60
manter, ficando no mistério do movimento e organização desta essência psíquica e
humana, que, mais do que instituída se institui, por este motivo, sem uma lógica que
possa ser acessível rapidamente ao observador da ciência lingüística. Contudo, quando
elementos são assimilados ao sistema, o que se sabe é que o conjunto dos falantes
comuns os absorvem sem dificuldades, porque internamente nosso aparelho psíquico
permite e aceita as coordenadas da língua que se conjugam a cada vez.
A unidade compreendida nas combinações e oposições de elementos, nos
desloca para um mundo virtual que, exige inquirir sobre as condições de identidade e
valor de seus elementos no sistema. vínhamos trazendo o exemplo do jogo de xadrez
e é nele mesmo que nos apoiamos para esclarecer a identidade dos elementos da língua,
que, como vimos é no jogo que cada peça encontra seu lugar e desempenho e, por
conseguinte, seu valor no sistema. É devido a isto, que se especula, em diversos níveis,
as relações de identidade, porque, por um lado, temos a identidade do signo que se
compõe enquanto unidade básica do sistema e, por outro lado, temos a identidade
contemplando movimento do signo no sistema.
Detenhamo-nos nas relações na língua. Aqui se delimitam certas
particularidades relativas a observações de certas palavras que podem ser reconhecidas,
em algumas frases, com a mesma significação e, em outras situações podem expressar
diversas significações. É o caso do exemplo da palavra senhor que pode indicar, num
discurso, várias significações. Desta maneira, chama atenção que o termo identidade na
língua é relativo à significação, porém não só. Saussure entende que a significação
sozinha não é suficiente quando se volta ao exemplo senhor, termo utilizado em um
discurso, diversas vezes, com diversas acepções, de maneira que se poderia constatar
que, a cada vez, se trata de palavras diferentes. Devido a isto, então, não existe
identidade.
Depreende-se deste ponto de vista, um salto para a perspectiva definida pelas
relações no sistema e não do signo isoladamente. É neste sentido que o autor insiste:
O mecanismo lingüístico gira todo ele sobre identidades e
diferenças, não sendo estas mais que a contraparte daquelas (CLG,
2000,
p. 126).
A preocupação com a identidade é, então, preponderante para uma visão do
mecanismo lingüístico conforme a performance que o signo adquire pelo movimento
61
junto aos outros signos, na língua. Pondera-se para isto, que existe uma identidade que
funda-se em certas condições a que é estranha sua matéria ocasional
(CLG,
2000,
p.
126)
. Daqui, efetivamente o signo lingüístico se independiza do suporte material que o
representa. Fica mais claro quando Saussure recorre ao exemplo dos expressos Genebra-
Paris das 8 hs 45 da noite, que partem com 24 horas de intervalo; o trem pode ser
diferente, assim como as pessoas que o ocupam, etc, porém o expresso é o mesmo. Da
mesma forma, ao considerar o fato de uma rua arrasada e reconstruída, as casas vão ser
diferentes, porém continuará sendo a mesma rua. Um outro exemplo, que é contrário
aos dois primeiros, é do vestido roubado e reencontrado em uma loja, a situação
comporta objetos diferentes em sua significação, ainda que o suporte material (vestido)
seja idêntico. O objeto aqui perde seu valor no campo das relações.
2.1.1 O valor na língua e o campo das articulações
uma perspectiva maior que o autor vem preparando ao longo de toda a
discussão e que se dispõe em definitivo no conceito de valor na língua. Avalia-se que a
noção de valor recobre as de unidade, de entidade concreta e de realidade (CLG. 2000,
p. 128). Este é um conceito que ganha características complexas, pois aqui estão
presentes aspectos dinâmicos da língua. Este campo se torna um pouco difícil de
precisar porque, neste momento, o mestre genebrino retorna à delimitação, mas
circunscrevendo aspectos de relações no movimento da língua, desencadeando por
mecanismos mais amplos no sistema e, assim, ele descreve:
O papel característico da língua frente ao pensamento não é criar um
meio fônico material para a expressão das idéias, mas servir de intermediário
entre o pensamento e o som, em condições tais que uma união conduza
necessariamente a delimitações recíprocas de unidades. (
CLG
2000,
p. 131)
E acrescenta:
Poder-se-ia chamar a língua o domínio das articulações
(CLG. 2000, p.131)
No domínio das articulações se realiza a delimitação necessária para que o valor
do signo se manifeste. Este princípio, nos mostra que o efeito de significação depende,
62
não só do que une um conceito ao som, mas também da relação que este signo
delimitado, tem com o sistema lingüístico como um todo. Por conta disto, o valor do
signo se define de acordo à articulação que a língua propõe para as unidades existentes.
Deste princípio misterioso, que promove a articulação, podemos intuir a influência que
o sistema recebe do exterior social, do uso da língua. Consequentemente, a língua, pode
ser vista como uma espécie de catalisador, que materializa novas possibilidades para
suas unidades. Certamente que se expressa através desta propriedade a particularidade
do arbitrário na língua, que faz com que o signo deixe de ser hipotético, para estabelecer
seu traço.
O exemplo desta materialidade ou arbitrário, aparece no Curso quando se
compara o signo com a folha de papel em que não existe verso sem anverso, sendo
impossível sua separação, acreditamos que, embora faça menção estrita ao signo
isolado, após a consideração de valor desta unidade na ngua, temos uma
reconsideração da consistência do enlace entre verso e anverso, quando observamos que
isto é um efeito material das relações que a língua veicula. Volta-se, assim, à
consideração da forma dos elementos da língua, porém, desta vez, uma forma cogitada
pela estrutura que a acolhe, porque:
[..] não se pode definir um termo fora do sistema, pois o valor não se
realiza pela somatória dos termos do sistema. (CLG,
2000,
p. 132).
Com toda ênfase dada à estrutura da língua, pelo recorte sincrônico, o autor
genebrino não deixa de lançar tarefas para o pensamento do lingüista quando menciona:
A coletividade é necessária para estabelecer os valores cuja única razão
de ser está no uso
24
e no consenso geral (CLG.
2000,
p. 132)
Retoma-se o efeito do uso das unidades sobre o sistema, afirmando uma lógica
do uso que permite o ingresso de valores no mecanismo da língua.
A partir de tal ponderação, trataremos da distinção que observa o conceito de
valor, contemplada, desta vez, entre as relações e as diferenças que tais termos
lingüísticos acabam encontrando.
24
A ênfase é nossa.
63
Como vimos, o valor se confunde muitas vezes com o próprio conceito de
unidade, identidade, realidade e significação. Por isto, cabe precisá-lo. Conforme esse
reino flutuante (CLG. P. 130) vemos que nem a massa amorfa das idéias nem a
substância fônica contêm uma delimitação preestabelecida. Ela vai acontecendo à
medida que a língua rege articulações, unindo elementos do estrato das idéias aos
recortes fônicos. É disso que resultam as unidades. Saussure sentencia:
Esta combinação produz uma forma, não uma substância
(CLG.
2000,
p.131)
Este mecanismo resulta em tratar dos valores enquanto valores relativos, pois,
são relativos ao movimento que faz recair o arbitrário sobre uma combinação x ou y,
que se une em um ponto x ou y, realizando uma forma. Além disto, o valor relativo
exige mais uma precisão: os valores relativos se dispõem enquanto tal, relativos ao
sistema que os delimita. Conclua-se, por tal proposta, que se torna a tentativa de
isolar a capacidade de um signo sem apresentá-lo no sistema, que o vincula junto às
outras unidades lingüísticas. É preciso partir de uma totalidade solidária (CLG. 2000, p.
132) que o sistema engendra.
Quando se explana desta maneira a totalidade que interessa, derivam-se dois
tipos de valores que, no decorrer da elaboração, se absorverão novamente à totalidade
do valor. Observa-se o valor lingüístico, primeiro, sob seu aspecto conceitual e, depois,
sob seu aspecto material. Para analisar tais aspectos, seguiremos o roteiro que se propõe
no Curso.
O que tange ao aspecto conceitual parte da constatação de que se instaura uma
confusão entre o valor conceitual e a capacidade de produzir significação. Eles em certa
medida se sobrepõem. Fazendo a distinção desse ponto, fica melhor compreendido o
valor conceitual. Saussure entende que:
O valor, tomado em seu aspecto conceitual, constitui sem dúvida, um
elemento da significação, e é dificílimo saber como esta se distingue dele,
apesar de estar sob sua dependência. (CLG.
2000,
p. 133)
Para elucidar tal diferenciação, vale entender que a significação cobra sua parte
enquanto contraparte da imagem acústica, ou seja, associada ao significado, que é uma
64
delimitação, porém condicionada a uma ênfase. Disso se define um tipo de ênfase na
verticalidade do signo lingüístico.
Todavia o autor avança sobre essa proposta, avistando um outro valor que se
articula pela relação entre os signos no sistema, e uma ênfase na estrutura horizontal das
relações. Isto institui um paradoxo entre as particularidades que governam o efeito de
valor da unidade da língua, que aparece com significação e valor.
O valor se destaca nesta segunda orientação horizontal, porém com a devida
assimilação da articulação dos signos em sua orientação vertical. Em seu conjunto, a
delimitação na consideração do valor se regula pelo estabelecido pelas outras unidades
que estão junto à unidade em evidência, é da relação entre unidades significantes que se
dá a contraparte no valor conceitual. A relação entre os signos se estima em um
princípio solidário.
O valor conceitual contempla a significação porque ele se alça sobre esse
paradoxo que aqui apresentamos.
Aprofundando este paradigma que o valor traz, o mestre genebrino insiste em
que ele tem de ser testado em dois sentidos, para que efetivamente esse princípio seja
verdadeiro. Primeiro é importante que ele se meça por uma coisa dessemelhante,
susceptível de ser trocada por outra cujo valor resta determinar; por outro lado,
também é necessário que se meça por uma coisa semelhante com a qual se possa
comparar com aquela cujo valor está em causa. O valor se determina testando-se estes
dois fatores de comparação. Por exemplo, temos, no sistema de moedas, um parâmetro
quando uma moeda pode ser trocada por algo dessemelhante, como alguma roupa,
comida etc., ou por algo semelhante, dentro do mesmo sistema de valores, por uma
outra moeda (dólar, peso, euro, etc.)
No sistema língua, isto se expressa pela maneira como a palavra
25
apura suas
conversões, na medida em que ela possa ser trocada por uma coisa dessemelhante,
como, por exemplo, uma idéia, ou seja, dando ênfase a uma parte do sistema do signo
lingüístico, ou por algo semelhante, que seria outra palavra.
Com isto, o valor se compõe não somente pelo que resulta do conceito e do que
se possa trocar por outro conceito, senão que advém articulado pelas formas de relações
subjacentes entre as partes do signo e também pelas relações estabelecidas entre os
outros signos na cadeia do sistema lingüístico como um todo. Temos, desta forma, o
25
Lembremos que a utilização do termo palavra engloba a concepção de uma unidade significante e não
uma palavra propriamente dita.
65
valor processado como resultado que se deriva das várias direções de força que nele
confluem. A partir de tal constatação, veremos que o valor emana do sistema, mas não
está pré-fixado no sistema lingüístico que o determina, principalmente porque ele está
proposto nesse sistema de trocas
26
.
Sistematizando este achado, Saussure alguns exemplos que nos deixam
surpresos particularmente porque destaca os contrastes discernidos entre os diversos
idiomas como representantes de diferentes sistemas de valores. Vejamos, um primeiro
exemplo vem da palavra carneiro (mouton em francês) que se diferencia em sua
conotação de valor, quando comparada com a palavra sheep em inglês. Não é possível
conceber um mesmo valor porque para determinar o valor de uma palavra ela tem de ser
relacionada aos outros elementos adjacentes em sua composição. Assim, temos que em
inglês a palavra sheep refere ao carneiro enquanto tal, mas quando ele é servido à mesa
torna-se mutton, relação que não existe para o português. Isso denota as
particularidades atribuídas entre as relações de elementos em cada idioma, segundo seu
sistema de ngua. Cada língua encontra formações que têm sentido dentro do seu
sistema e que não encontra equivalente em outro sistema. Muitos outros exemplos são
pertinentes sendo observadas as categorias gramaticais, mas aqui nos contentaremos
com este único exemplo.
Finalmente, o autor destaca que quando diz que os valores correspondem a
conceitos (CLG. 2000, p. 136),é necessário reconhecer tal proposição em seu sentido
puramente diferencial, pois não está implicada aqui uma relação positiva, em que o
conteúdo esteja em pauta. Disto sua característica mais exata é ser o que os outros o
são (CLG. 2000, p. 136). Sem valores diferenciais que emanam do sistema, a
significação não existiria.
Quanto ao valor lingüístico considerado em seu aspecto material, temos a ênfase
sobre as diferenças fônicas que permitem distinguir essa palavra de todas as outras
(CLG. 2000, p. 137). Estas diferenças são as que carregam a significação, pois depende
26
É interessante constatar que a qualidade dos sistemas de toda natureza humana se instituem nesse
princípio de trocas. A antropologia estrutural de Lévi-Strauss muito bem estudou e aprofundou este
quesito.
66
do meio fônico a realização desta. Mais uma vez é sobre o arbitrário e as diferenças que
se imprime o valor
27
.
Não obstante, o mestre não deixa de observar que o meio fônico que representa a
imagem acústica não pertence em si à língua, senão que ele é um elemento tangível que
lhe serve de suporte (CLG.2000, p.137). Situa-se, assim, a língua com sua materialidade
incorpórea. Da mesma maneira em que foi designado o significado, o significante
lingüístico é concebido constituído, não por sua substância material, mas unicamente
pelas diferenças que separam sua imagem acústica de todas as outras. (Op. Cit. p.138)
Podemos conferir que os exemplos escolhidos para dar consistência a este ponto
de vista mais uma vez recaem sobre a idéia de idioma, em que as distinções sonoras que
cada língua estabelece implicam esta capacidade que o usuário deve ter para manipular
essas distinções e organizar os sistemas de valores embutidos no significante.
Cada língua exige valores invariáveis, reconhecidos por ela. Um exemplo que
respalda este fato se encontra na língua francesa que exige uma distinção dos diferentes
r”. Ainda o autor apresenta outros exemplos quando diz que em francês é possível
reconhecer o r como ch alemão (Bach, doch), mas o alemão, diferentemente, não teria
como empregar o ch como r porque esta língua reconhece ali dois elementos que têm de
ser diferenciados.
Reunidos os valores, considerando-se o signo em sua totalidade, temos que a
expressão na língua deriva efetivamente da capacidade em produzir distinções, as quais
designam relações sob a insígnia do negativo, porque nela se inscrevem as diferenças
em cada porção necessária ao signo, ou seja, definem-se elementos não coincidentes.
Porém essa verificação é adequada, sopesando em separado significado e significante.
Uma contrapartida a estas distinções se cumpre quando a língua, por meio da
ordem das articulações que ela promove, imprime o signo lingüístico enquanto unidade
significante. Lembremos que o signo como um todo, assim provido, se constitui pelo
arbitrário que opera, incidindo sobre a massa amorfa das idéias e sobre a imagem
acústica, tendo-se como resultado um valor positivo, porque a combinação é um fato
positivo ( CLG. 2000, p. 140). Quando este efeito se manifesta, não estamos mais na
ordem das distinções mas na ordem das oposições entre unidades significantes.
Conseqüentemente, este aspecto se volta para o funcionamento do sistema semiótico
27
Muitos são os exemplos destas diferenças fônicas em seu paradigma de valor, considerando derivações
verbais que não obedecem a uma lógica de transcurso, a partir de formas anteriormente estáveis, senão
que se impõem como forma de pura distinção com relação a estas.
67
que se manifesta na linguagem, quando há movimento das unidades articuladas pela
língua.
O que retiramos de surpreendente é que se explicita por esta consideração que
cada língua, enquanto sistema com leis próprias e valores próprios, recorta modos de
estar na língua, específicos para os sujeitos que nela participam. Partindo deste
pressuposto, é possível entender alguns mecanismos com os quais o imigrante se
depara, quando muda para um outro sistema lingüístico. Parece que ele tem de se
inteirar de uma outra forma de estabelecer trocas, que o fará girar no inusitado da
palavra. A apropriação de valor que o outro sistema lhe exige trará a proposta de se
desligar de um valor anterior no qual tinha sido iniciado, em ngua materna.
Desarranjar isto mantém intacta sua proposta de sujeito? Acreditamos que não.
Outro aspecto importante por destacar é que o sujeito decifra os valores contidos
na língua exclusivamente por meio do uso da língua. É no uso que se vive o paradoxo,
as trocas e as significações. Como vemos, são vivências que o portador de uma língua
resolve quotidianamente. Também o imigrante atingirá os efeitos da outra língua pelo
uso que ele se permita fazer.
Chegamos ao fim do trajeto teórico com Saussure, podendo elucidar aspectos
essenciais desta álgebra complexa chamada língua. Nela reconhecemos um corpo uma
vez que manifesta um equilíbrio interno como em um organismo. A partir disto
concluímos uma unidade, o Um com o qual lidaremos no decorrer de todo nosso
trabalho.
Com as hipóteses iniciais, acima expostas, avançaremos considerando as
rupturas que esse Um encontrará, justamente pelos efeitos do uso da língua,
contemplando a participação dos sujeitos que se expressam no campo discursivo,
propondo sua enunciação. A enunciação como ponto de encontro entre língua e homem
será o eixo para verificar as condições da significância, que aporta elementos para a
língua e para o sujeito que a imanta. Trazemos para essa perspectiva as contribuições de
Émile Benveniste em sua Teoria da Enunciação.
2.2 A TEORIA DA ENUNCIAÇÃO E UMA LEITURA POSSÍVEL
DAS MARCAS DO SUJEITO NA/PELA LÍNGUA
68
2.2.1. Da natureza da língua na Teoria da Enunciação
Como vimos no item anterior quando discutimos o corpo da língua, existem
diversos sinais que fazem reconsiderar a unidade da língua, quando se olha para os
aspectos dinâmicos que o sistema contempla. Junto a isso, ficamos diante da barra que
separa língua de fala, em uma situação controversa, já que temos rios aspectos que
refletem a relação com o exterior da ngua. Deflagram-se, assim, brechas que levam a
especular para além do princípio de unidade, e que se mostram no Curso de
Lingüística Geral (CLG) quando se descobrem algumas tendências que fazem com que
o signo lingüístico seja considerado de maneira mais complexa, apontando para
considerações com a significação. Isto se manifesta, por exemplo, de maneira explícita
quando Saussure entende que o signo é tudo o que o constitui (CLG, p.140-141). Esta
premissa faz com que intuamos uma forma composta para o signo, seja ela considerada
segundo o conceito de valor, como um lugar definido segundo um princípio de
solidariedade entre os signos, que lhe determinam um valor específico, ou também é
possível entender que o modo de agrupamento do todo que o constitui, advém do
reflexo de uma idéia (ou conceito) que procura uma definição entre os outros signos.
Assim, podemos inferir que isto representa, a seu modo, a manifestação de uma prática
de língua que tende a acrescentar novos elementos para estabelecer sentidos novos e
que, assim sendo, procuram uma regularidade no sistema. Estamos diante dos limites
impostos pela dicotomia língua/fala e da pulsão que faz com que se tente ultrapassar a
barra, se deflagra um espaço transitivo entre o corpo da língua e o uso da língua.
Quando falamos em uso da língua, determinantes exteriores ao sistema entram em jogo,
configurando um espaço imprevisível porque aqui estaremos no campo da linguagem
multiforme e heteróclita; a cavaleiro de diferentes domínios (CLG, p. 17) ela serve. Se
admitirmos que este espaço multiforme e heteróclito exerce influência no sistema
língua, entendemos que a língua é também, a partir de sua regularidade, articuladora
deste exterior e é de tal movimento que ocorre a emergência das significações,
necessárias para a vida dos homens em sociedade. Digamos que é no espaço das
diversas possibilidades da língua, que as significações vão sendo gestadas.
Vislumbrando esse horizonte, Émile Benveniste produz uma leitura renovadora
para as teorias da linguagem, desenvolvendo o que hoje se denomina Teoria da
Enunciação. Se dela que iremos tirar conseqüências para refletir a respeito da
produção dos sentidos possíveis na/pela língua, que esse autor reconhece enquanto
69
capacidade de significar. Daqui, refletiremos sobre os elementos que participam da
construção em que o sentido se expressa e, aqui também encontraremos a dimensão do
sujeito que marca sua presença na organização dos elementos lingüísticos, nos
processos comunicacionais reconhecidos no discurso.
A utilização dos elementos lingüísticos conjuntamente às marcas da
singularidade do sujeito, destacadas no uso da ngua, é um dos pontos articuladores do
nosso estudo, pois nos possibilitará traçar o movimento do imigrante perante outra
língua e cultura.
No texto Semiologia da Língua (Benveniste, PLG II, 2006)
28
, encontramos, de
maneira especial, o paradigma lingüístico com o qual Benveniste se ocupa. Nele, o autor
observa uma natureza dupla da língua, que se estima pela condição privilegiada que ela
tem perante os outros sistemas semióticos. O caráter semiológico, que se quer destacar,
advém justamente do suporte que a língua oferece para que se estabeleçam relações
entre os diversos sistemas semióticos presentes na ordem dos fatos humanos, que
podem ser constatados quando examinamos a relação da língua com a música, a arte, os
sinais de trânsitos, regras sociais, etc.
Quando este tipo de alcance é destacado, estamos diante de uma terceira via que
teria sido tangenciada, tanto por Saussure, que trata da língua como um sistema isolado,
quanto por Pirce, que trata dos sistemas semióticos de maneira indiferenciada, pois não
se propõe um lugar para refletir, de maneira particular, sobre a língua em relação a
outros sistemas. Devido a isto, Benveniste retoma do CLG, a proposta que Saussure
teria feito para a posteridade: a configuração de uma ciência que estude a vida dos
signos no seio da vida sócia. Esta proposta corresponde à semiologia aqui apresentada.
Benveniste entende que compete à Lingüística avançar, contemplando dois aspectos: o
de unidade da língua e o de relação entre sistemas.
A dupla natureza da língua no referencial proposto, avança sobre estes pontos, a
dizer, na forma de significar dentro do sistema língua e na esfera da realização da
língua, na mediação dos fatos humanos, na medida em que, estes fatos congregam
diversos sistemas de expressão. Para nós, esta característica promove nova consideração
sobre o que Saussure pré-anuncia quando diz que poder-se-ia chamar a língua o
domínio das articulações (CLG. p.131).
28
Todas as citações de Benveniste são retiradas de seus textos compilados em dois livros editados, sendo
eles Problemas de Lingüística Geral I e Problemas de Lingüística Geral II, assim a partir desse momento
usaremos as seguintes siglas para caracterizar esses livros PLG I para o primeiro livro e PLG II para o
segundo.
70
Mas vejamos com atenção esta dupla natureza. Benveniste toma como ponto
articulador a competência de produzir significância. A significância representa, antes de
tudo, a capacidade do signo em não se anular numa indiferenciação. É assim que o autor
reflete, sobre este ponto, o seguinte:
Para que a noção de signo não se anule nesta multiplicação ao
infinito, é necessário que em alguma parte o universo admita uma
diferença entre o signo e o significado. É necessário então que todo
signo seja tomado e compreendido em um sistema de signos. Esta é a
condição de significância. (Benveniste, PLG II, p. 45) (o grifo é nosso).
Há nesta proposta uma convergência entre o conceito de valor na língua, como o
vínhamos tratando e a condição de significância, a ponto de se poder afirmar que um
signo, em determinado sistema, possui valor porque ele significa neste universo.
Contudo aqui surge uma questão instigante quando nos perguntamos a respeito da
significância quando não estamos mais diante da pura configuração do sistema, mas
quando estamos diante da articulação ou da comunicação entre os diversos sistemas.
Parece que para Benveniste neste espaço em que as relações se organizam para
constituir um sentido, também é necessária uma forma, exatamente para que a
indiferenciação não se imponha, deixando a significância se esvair. Para propor este
último postulado, em que uma estrutura do uso
29
que organize a significância no
discurso pode ser considerada, o autor começa por olhar modos em que se apreciam as
possibilidades das relações entre os sistemas semióticos e situa nisso o lugar da ngua.
Deparamo-nos, então, com três tipos de relações, que discriminamos a seguir:
1. Relação de engendramento: implica em que um sistema pode engendrar um
outro sistema (Benveniste.PLG II, 2006, p. 61), sendo ambos da mesma
natureza e contemporâneos, por exemplo, o alfabeto normal engendra o
alfabeto Braile. uma diferença entre engendramento e derivação, pois
este último caso acontece pela evolução.
2. Relação de homologia: que estabelece uma correlação entre as partes de
dois sistemas semióticos (Benveniste. 2006, p. 62). Derivam-se conexões que
29
Adiante aprofundaremos nessa estrutura do uso da língua, que encontra uma formulação mais precisa
no texto Aparelho formal da enunciação, entretanto, aqui nos interessa introduzir o conceito e
principalmente destacar como ele está inserido numa concepção de língua.
71
não advém de uma constatação mas sim de um recorte que alguém produz. A
homologia pode acontecer segundo as mais variadas posturas, racional,
intuitivo, poético, etc. O autor cita como exemplo, a homologia entre a
escrita e o gesto ritual na China (PLG II, 2006, p. 62). Este recurso serve
para um princípio unificador, encontrando um papel funcional ou ainda
pode-se criar uma nova espécie de valores semióticos.
3. Relação de interpretância: acontece quando se institui uma relação entre
um sistema interpretante e um sistema interpretado. É neste ponto que a
língua qualifica-se sobremaneira, dando a dimensão de seu domínio, pois,
efetivamente, ela retorna por esta qualidade semiótica que a institui, como o
meio fundamental de interpretar todos os outros sistemas semióticos com os
quais se relaciona. Nunca acontece o contrário como seria, por exemplo, com
a música; a língua oferece recursos para falar da música no entanto o sistema
musical não teria condições de fazer o contrário. Da mesma maneira,
observa-se o fato sociológico: as instituições sociais, sistema semiótico, só se
tornam possíveis pela mediação da língua, assim somente a língua torna
possível a sociedade (Op. cit. p.63).
Destes postulados, podemos derivar que a significância que se apresenta através
do uso da língua se extrai dos modos de relações que a língua permite, em diálogo com
outros sistemas. Observemos que os três pontos tratados retratam especificamente
modos de relações.
Embora sejam considerados aqui todos os sistemas semióticos, a língua ocupa
um lugar relevante, como se explicita no último item, que engloba, em grande medida,
os dois anteriores, pois permite enfim constatar que para toda dimensão dos fatos
humanos, é a língua que possibilita a representação na vida dos homens. Podemos,
então, derivar como premissa que toda realidade humana depende do enlace com a
língua, sem isto a indiferenciação se impõe, tocando no limite do inexistente.
Benveniste consolida tal perspectiva quando realça a semiologia perante as outras
maneiras de abordar o social, como no caso da sociologia, quando ela, ao estabelecer
relação entre língua e sociedade, acredita que a língua é mais um dos fatos humanos,
tangendo somente a uma parte do social. A isto, o autor se contrapõe veementemente
quando afirma:
72
Somente a língua torna possível a sociedade. A língua constitui
o que mantém junto os homens, o fundamento de todas as relações que
por seu turno fundamentam a sociedade. (Benveniste. 2006, p.63)
Aqui, inverte-se a relação que a sociologia propõe, pois do ponto de vista
semiológico, em verdade, é a língua que dá substrato a toda manifestação do social e
não o contrário.
Concretamente, quando as coisas se definem desta maneira, estamos falando do
que está no cerne da capacidade de simbolizar
30
na/para estrutura social humana.
Benveniste fundamenta este paradigma ao constatar que a língua conta com uma dupla
natureza, quando se concebe como único modelo de um sistema que seja semiótico
simultaneamente na sua estrutura formal e no seu funcionamento (Benveniste. PLG II,
2006, p. 63). Concomitantemente, chega ao fato de que esta dupla natureza se deriva da
competência que encontra em promover uma dupla significância ou dois modos de
elaboração do significar, sejam eles: o modo semiótico e o modo semântico.
O modo semiótico deriva do sistema ou corpo da língua, como aqui o tratamos,
exige para os parâmetros da significância, a capacidade de ser reconhecido. Desta
maneira, ele consiste em discriminar unidades básicas de sentido na organização do
sistema, ou seja, cada unidade encontra sua distintividade dentro do sistema de signos.
Tais unidades, ao serem reconhecidos pelos falantes de determinada língua, funcionam
como matéria prima para o uso da linguagem.
O modo semântico encontra seu modo de significar no que é engendrado pelo
discurso (Benveniste.PLG II, 2006 p.65). Aqui estamos no plano do uso da língua ou
funcionamento da linguagem, enquanto se venha a refletir sobre o que ampara a
comunicação. Quanto a outra forma de estar na língua, existe, então, também uma outra
consideração com o signo. Neste estado, a língua se figura enquanto produtora de
mensagens (PLG II, p. 65), e o signo, decorrentemente, não pode ser contemplado na
mensagem simplesmente como um somatório de unidades, senão que aqui se transfere o
papel fundamental à composição do sentido que se quer expressar, ao qual Benveniste
também chama de intencionado. Desta maneira, existe uma demanda que articula a
organização entre os signos, a qual provoca divisão entre os elementos da mensagem.
Nesse estágio, segundo o autor, o signo ganha status de palavra. Por sua vez, esta
30
O processo de simbolização é de suma importância para os estudos das ciências humanas e, cobra
impulso quando o estruturalismo se fortalece desde o campo da lingüística com Saussure, afetando outros
campos de do conhecimento como a antropologia, psicanálise e outros.
73
organização, conforme a expressão da idéia, sai do âmbito da pura possibilidade na
língua quando também põe a seu encargo o conjunto de referentes (Benveniste. 2006.
p.65), que torna legível uma experiência comunicativa, ou seja, aquilo que é
compartilhado entre interlocutores como referência. Está posto, o contexto que enlaça o
sentido que se quer na enunciação. Especificado desta maneira, o autor entende que o
modo de considerar a significância, desta vez, exige que o signo seja compreendido e
não unicamente reconhecido como no sistema semiótico. Segundo o desenvolvimento
dado, concluímos que o status de palavra requer compreensão.
Formulando desta maneira, chegamos a uma composição melhor acabada sobre
a natureza da língua sob o prisma da Teoria da Enunciação, o que torna legível a
definição com que o próprio autor nos brinda pelas seguintes palavras:
A natureza da língua, sua função representativa, seu poder dinâmico,
seu papel na vida de relação fazem dela uma grande matriz semiótica, a
estrutura modelante da qual as outras estruturas reproduzem os traços e o modo
de ação.
(Benveniste. PLG II, 2006.
p.64)
Entendemos que os traços e o modelo de ação que a língua suporta se
comportam como uma qualidade semiológica e é isso que propicia que ela esteja em
relação com outros sistemas como um sistema interpretante, enquanto os outros se
apresentam como sistemas interpretados. A proposição definida nestes termos se
debruça sobre um segundo nível de enunciação, em que se torna possível sustentar
propósitos significantes sobre a significância (Benveniste. 2006.p. 66). Existe aqui uma
faculdade metalingüística em pauta.
Para olhar melhor a noção de língua aqui descrita, trazemos aqui uma pequena
análise sobre a significância que contemple a vida das palavras que atravessam diversos
sistemas lingüísticos, ou seja, palavras que estão presentes em duas línguas e que
apresentam valores diferenciados em cada uma delas. Veremos que a diferença que elas
carregam deriva do uso, pois, cada língua permite reconhecê-las e compreendê-las,
considerando a noção de sistema. Apoiados, então, nas considerações sobre a
significância no plano semiológico, observamos algumas conseqüência que a seguir
apresentamos.
74
Comecemos por reconhecer que este referencial que sai do plano estrito do
sistema da língua para o deslocamento no discursivo permite uma expansão, digamos,
necessária para nossa preocupação, distinguindo os diversos trajetos que uma palavra
pode fazer quando participa de um acúmulo de designações, conforme seja o meio em
que se desenvolva. Daqui, podemos resgatar o exemplo precioso de palavras que têm a
mesma configuração morfológica em duas línguas e que adquirem designações
diferentes ou um status semântico diferente. Trata-se dos heterossemânticos
31
que se
estabelecem entre a língua portuguesa e a espanhola. Reconhecemos nisto a ordem
semiológica das relações sobre as manifestações projetadas no contexto lingüístico e
cultural dos países que reconhecem processos discursivos distintivos, segundo seja a
ordem simbólica que os venha a caracterizar
32
. Há, neste sentido, vias preferenciais
entre conexões, que levam para vias enunciativas significativas em cada lugar, que aqui
remetemos hipoteticamente a um país.
Aqui, então, podemos exemplificar, com o uso de heterossemânticos presentes
em línguas portuguesa e espanhola o alcance desta noção. É bom lembrar que existe
uma variedade bastante grande destes exemplos, entretanto escolheremos dois para
resolver nossa questão. Aparece no vocabulário de ambas as línguas a palavra esquisito
(português) e exquisito (espanhol), que é um adjetivo de origem latina esquisitu.
Podemos encontrar em dicionário de língua portuguesa a seguinte qualificação
33
:
esquisito: achado com dificuldade ou raramente, precioso, excelente, primoroso:
manjares esquisitos. Elegante: na sala adorna com gosto esquisito. Que não é vulgar:
tem sabor esquisito de vinho. Excêntrico, maníaco, estrambótico. Podemos observar que
esta palavra comporta duas posições quase opostas quanto à significação: expressa uma
acolhida extrema porque trata-se de um qualificativo positivo, e ao mesmo tempo, pode
comportar a sobrecarga do positivo que se troca por algo nocivo que produz
estranhamento. Agora passemos este termo para cada meio lingüístico que aqui
observamos, sendo eles o universo português do Brasil e o universo espanhol
34
dos
31
Designados por alguns de falsos amigos.
32
Acreditamos que ao falar sobre um país, não é possível se aventurar a fechar uma organização
semiótica que diga de sua circunscrição como um todo, mas pensamos em conexões específicas que
mantém o diálogo entre os diversos níveis de sistemas semióticos e que atuam para produzir um efeito de
identidade em um plano mais global.
33
Trabalhamos aqui com uma edição de dicionário de 1957, que nos ajuda a perceber algumas
informações que se perdem em edições mais atualizadas. Dicionário Prático Ilustrado. Lello & Irmãos
editores. Porto.
34
Temos em particular essa vivencia lingüística no Chile, de onde a autora é natural, que nos permite
trazer essa afirmação de maneira mais precisa.
75
países da América do Sul. A vida desse termo toma proporções diferentes porque
exatamente no Brasil esquisito designa particularmente a esse estranho: alguém é
esquisito, ou alguma coisa é esquisita, isso comporta a categoria do deslocado. No
universo espanhol a asserção que passa a valer se expressa pela conotação positiva, em
que se reconhecem qualidades especiais, assim, por exemplo: uma comida es exquisita,
que no uso indica que ela é muito boa. Entretanto o emprego desta palavra torna-se um
pouco inadequada em relação a um sujeito, a não ser que implique uma metáfora do
sexual um tanto vulgar.
No exemplo podemos observar o valor enunciativo de uma palavra que, tendo a
mesma matriz e sendo no dicionário descrita de maneira a dar sustentação para os dois
tipos de interpretação, acaba se impondo para o meio, segundo as qualidades que o uso
lhe assinala. Vemos como uma descrição semelhante, relacionando uma significância
completamente diferente, compromete toda a rede de relações dentro do sistema. O uso
a levou por caminhos diferentes. Por sua vez, a mesma forma entoa diferentes sentidos
de uso.
O mesmo encontramos na palavra hediondo, também de origem latina, derivado
de foetibun-du, que significa horrível, disforme, repugnante: cara hedionda fig. Que
provoca repulsão: crime hediondo. Nesta descrição já podemos observar que aparece na
origem latina a estrutura que deriva para a palavra em português de fétido, que indicaria
algo que cheira mal. Mais uma vez vamos à contextualização do uso; vimos que no
português trata-se de uma conotação que passa por qualificar negativamente uma figura
e seria atribuída mais à designação de uma pessoa, principalmente ao que refere, por
exemplo, a uma ação cometida, um crime cometido. Talvez também possa ser atribuída
à ação de algum animal. No espanhol da América Espanhola, ela traz uma conotação
completamente diferente, pois, ela toma a seu cargo o efeito de fétido, do estragado e
em decomposição: la basura está hedionda, refere-se a que o lixo está cheirando mal.
Quando relativa especificamente a pessoa: tu estás hediondo indica que a pessoa está
fedorenta. Ou seja, essa palavra indica uma qualidade quase que exclusivamente
olfativa.
Finalmente, no quesito das relações semióticas, não podemos deixar de ressaltar
que é exatamente pela plasticidade que observa a língua ao produzir significância tanto
na forma como no sentido, que se nutre o espírito humano para aventuras como a que o
imigrante se propõe, colocando à prova, sem vida, este instrumento que interpreta o
76
mundo ou ainda cria o mundo? É a criação que está em questão nesse deslocamento
humano?
Por enquanto ficaremos neste ponto, em que o conceito de língua se abre para
esta teoria e, retomaremos seus diversos efeitos nos próximos itens que a seguir
explanamos.
2.2.1.1 Reconsiderando a relação de homologia
Levando adiante as relações entre sistemas, comentaremos as relações de
homologia. Trataremos dois sistemas de língua que se reúnem no imigrante, como dois
sistemas semióticos. Acreditamos que assim considerado, levamos em conta exatamente
que diálogo entre sistemas, sem quebrar o equilíbrio de cada um. Mas, como isso
acontece? Há uma terceira instância, uma metalíngua que fale deste encontro entre
línguas? Pensamos que não, pois estaríamos sempre num trabalho homérico de criar
línguas todo o tempo e por esse motivo, enveredamos destacando a capacidade de
homologia entre sistemas, e insistimos que nela se contempla um instrumento
primoroso para o imigrante, na medida em que é por este mecanismo que ele traça
aproximações e adequações de significâncias para o outro sistema lingüístico que lhe
toca praticar. É partindo da referência no primeiro sistema, da língua materna, que se
recorta o outro de maneira singular, ali o sujeito estabelece relações e se orienta por
elas.
A relação de homologia, que está contemplada como modo de relação entre
sistemas semiológicos, do qual a língua participa, apresenta separadamente um recurso
de entendimento importante para o nosso estudo, principalmente no que diz respeito ao
modo de relação que aqui nos interessa contemplar, que seria a relação que um sujeito
estabelece entre dois sistemas de língua, considerandos dois idiomas. Assim, a relação
concebida pela homologia se particulariza para nós na experiência de quem se torna
imigrante, quando este sujeito se no trabalho particular de produzir comunicação em
segunda língua, tendo como ponto de partida sua referência em língua materna.
Digamos que, deste ponto de vista, temos duas estruturas de língua que se regem por
uma constante comunicação, seja ela de maneira consciente ou inconsciente.
Vejamos, a descrição do mecanismo de homologia discrimina uma correlação
entre dois sistemas semióticos; entende-se, ainda, que a natureza da homologia pode
variar segundo se escolham os sistemas que irão se correlacionar. Segundo Benveniste,
77
eles podem ter uma natureza mais intuitiva ou racional, substancial ou estrutural,
conceptual ou poética, tudo dependerá das relações que o indivíduo queira pôr em
prática. Acreditamos que nesta possibilidade, está a presença do sujeito e suas marcas
subjetivas que o fazem escolher formas de relações. Digamos que tal trabalho permite
identificar um intencionado que origina este gesto e também diz do estilo de quem
relaciona.
Além disto, a homologia é um mecanismo que está no contexto do quotidiano,
pois a interpretação de cada dia, que depende da utilização da língua, exige
sistematicamente este tipo de relação entre os diversos ambientes semióticos.
Para o imigrante este mecanismo torna-se de extremo valor quando tal recurso
lhe permite uma aproximação mais ágil com a outra língua, pois, como vimos acima, o
encontro com o outro paradigma de língua e cultura não se por uma espécie de
evolução, senão por um tipo de dispositivo que lhe permite a transferência de um
sistema de valor para um outro sistema de valor. A homologia, neste caso, se faz sentir
como um suporte eficaz para esse dispositivo. A hipótese que disto se decanta é que o
imigrante, fazendo uso do mecanismo de homologia, se ampara no sistema de
referências em língua materna para se relacionar com o sistema de referências que lhe
vem de outra língua, recortando sentidos possíveis para a enunciação. Cremos que o
mecanismo vai com o tempo adquirindo uma organização própria, a ponto de, em
determinado momento, promover uma transição de um sistema de valor para outro,
agilmente. Talvez possamos dizer que a ponte, em um momento posterior, fica por
conta da experiência que o sujeito vai acrescendo à sua natureza, no caso do imigrante,
passa pela experiência da mudança de língua e de referências, que entra como um
organizador para as interpretações.
Atendo-nos a outro ponto, ainda no exercício com a homologia entre dois
sistemas lingüísticos, existe uma consideração a fazer quando entendemos que língua
materna e segunda língua não se encontram em um mesmo nível para o sujeito. Sobre
isso, percebemos, pelo que até aqui desenvolvemos, que a dimensão de corpo da língua
ou unidade que ela oferece, se torna possível somente para quem está concernido das
significâncias em língua materna
35
. Isso porque o sujeito se inscreve na cultura através
35
Sobre o processo de inscrição do sujeito na língua existem diversos trabalhos no campo psicanalítico
que confirmam tal hipótese, chegando a constituir um eixo essencial para a consideração das patologias
psíquicas. Dentro dos estudos lingüísticas sobre o assunto, encontramos em Keller (1989) uma elaboração
esclarecedora a respeito quando nos diz: a relação com a linguagem, e antes de tudo com a língua
78
de uma comunidade de língua que o acolhe e, assim, se identifica como nativo desta
língua. A segunda língua não oferece este suporte inicial para o falante, portanto o
contato com a outra língua, em um primeiro momento, não se realiza pela idéia de uma
unidade organizada (porque com sentido), senão que se vivencia como uma relação com
partes estilhaçadas do corpo (fragmentos de sentido). Ainda que se intua, no contato
com a outra língua, que nela existe uma referencia de unidade, não é possível recolher
essa experiência a não ser de maneira idealizada. Entendemos que devido a isso, a ponte
que a homologia tende a fazer de início, pode obedecer a uma tentativa de refletir de
alguma maneira uma possível unidade para a segunda língua
36
. Então, temos que a idéia
que se quer expressar em língua materna e passa para segunda ngua, é formulada
considerando uma abertura na unidade de sentido
37
. a idéia em segunda língua é
vivenciada por uma noção de estilhaço no significante, à procura de uma unidade.
Compreendemos que será na superação desta oscilação, quando a segunda língua venha
a adquirir uma unidade própria, que poderá haver a possibilidade de transitar por outras
aventuras do sentido em segunda língua, sem depender deste trânsito entre línguas. Não
desconhecemos nisto que a noção de unidade em segunda língua, acaba se organizando,
também, por meio do uso da língua, segundo os referenciais pertinentes a cada situação
enunciativa. Quando o sujeito se dispõe na prática da outra língua se recoloca a
interpretância, quando é a segunda língua exerce este direito, pois, é ela quem
interpreta. Vemos, portanto, que nessa experiência se atravessam duas tendências ou
dois níveis da experiência em língua. Certamente, que este recurso vai adquirindo
diversos matizes, até encontrar o domínio do sujeito sobre sua fala
38
.
Por enquanto, deixaremos nossa reflexão sobre a homologia neste ponto, para
retomá-la no decurso de nosso trabalho.
2.2.2 No conceito de enunciação
2.2.2.1 O ato de enunciar
materna, pode se qualificar como sendo uma relação de inscrição e não simplesmente uma relação de
aquisição. (p. 248)
36
Assim como um órgão amputado se faz sentir, dando a sensação psíquica de que tal parte do corpo
permanece ainda com toda sensibilidade. Algumas pessoas chegam a sentir coceira em extremidades
amputadas.
37
Nessa perspectiva o equívoco e o deslize em segunda língua têm outras características que ao do
equívoco em língua materna.
38
Falamos em domínio de fala e não em domínio de sentido, pois, levamos em consideração, sob a
influência da psicanálise, que se diz para além do que se quer dizer. Ou seja, o domínio do inconsciente
permeia o efeito de sentido em direções não dominadas totalmente pela consciência.
79
Após termos percorrido a noção de natureza da língua na teoria benvenistiana,
nos ateremos ao conceito de enunciação, que representa o ponto nodal para
compreender e desenvolver a idéia da ordem semântica da língua, da qual continuamos
a tratar
39
.
Lembrando que a preocupação com a significância no espaço semântico resulta
em uma relação de sentido que se anuncia no discurso, é importante que nos
detenhamos sobre o funcionamento da enunciação. Nele, encontramos a expressão de
uma ação que vem compor a situação enunciativa que organiza a significância. Desta
maneira, temos que o gesto de enunciar é exercício de linguagem. Benveniste traduz
isso da seguinte maneira:
A enunciação é este colocar em funcionamento a língua por um ato individual
de utilização. (Benveniste, 2006, p. 82)
O gesto, assim, assume a denotação de um ato de utilização da língua por parte
de um indivíduo, de tal modo que pactua disto uma relação do falante com a língua.
Destaca-se este momento como um processo de apropriação (PLG II, p.84) da língua.
A realidade que circunscreve esse ato é singular porque cada vez que se organize uma
frase, por este meio, nunca será igual à outra, já que não contará com as mesmas
circunstâncias Por meio desta relação, um ato mesmo de produzir um enunciado, e
não o texto do enunciado (Benveniste, PLG II,2006. p. 82). Observamos aqui a decisão
(o intencionado) de um sujeito em mobilizar os elementos lingüísticos necessários para
a construção da significação. Por conseguinte, a significância terá propriedades internas
a este processo, e carregará sentidos circunscritos a ele.
A construção da enunciação enquanto acontecimento leva em conta, segundo
Benveniste, também aspectos da realização vocal da língua, em que sempre o som que
rompe o ar para trazer a palavra é variado, não é o mesmo, e, por outro lado, contempla-
se na linearidade que caracteriza a fala, um processo que implica a conversão individual
da língua em discurso (Benveniste, PLG II,2006. p. 83). Vemos, então, que a operação,
que o autor identifica como semântização, exige todo um trabalho com o espírito e o
39
É importante esclarecer que as conceitualizações retiradas da obra de Benveniste e que interessam a
nosso estudo, não pretendem uma idéia acabada de sua utilização, como é de esperar, considerando-se
que a obra de um autor tende a um equilíbrio específico para cada etapa de seu desenvolvimento reflete
diversos momentos de elaboração.
80
corpo de quem enuncia. Contudo, estes pontos não serão propriamente desenvolvidos,
pois, o autor se orientará na elucidação do que venha ser o quadro formal que permite a
realização da enunciação, e do qual trataremos adiante. Entretanto não queremos deixar
passar a participação, no processo de conversão de língua em discurso, da expressão de
desejo de quem colhe da língua sua realização. Ou seja, a realização da língua é também
a realização de um sujeito, ainda que nisto tenhamos a dimensão do sujeito lingüístico
40
,
porque sujeitado às formas da língua.
Retomaremos as considerações relativas a sujeito na parte final do trabalho, por
enquanto nos interessa definir a realidade no evento enunciativo. Seguindo nossa trilha,
passaremos no próximo item a tratar da estrutura formal que permite a enunciação.
2.2.2.2 O aparelho necessário à enunciação.
No seu texto Aparelho Formal da Enunciação (PLG II, 2006) Benveniste se
dedica a precisar a estrutura que permite o emprego da língua contemplado na
enunciação. Compreende-se, que a enunciação se diferencia da simples fala, porque
aqui não está em pauta o retorno ao paradigma saussureano, da dicotomia língua/fala,
senão que se indica uma estrutura do funcionamento da língua, aludindo para um outro
suporte dos mecanismos lingüísticos.
Vejamos: o autor entende o emprego da língua como:
Um mecanismo total e constante que de uma maneira ou de outra afeta
a língua inteira (Benveniste. 2006.
p.82
)
Temos, então, que cada indivíduo, ao enunciar, afeta todo o equilíbrio do
sistema língua com o qual trabalha, incorporando novas possibilidades para as palavras,
que este exercício com a língua permite. Ao mesmo tempo, estamos diante da realização
da língua que ela deixa de ser pura possibilidade
41
, num espaço virtual, para se
incorporar à vida humana.
Seguindo o impulso de realização da língua, Benveniste procura elucidar o
mecanismo que conduz ao discurso e, assim, não se atém ao conteúdo do texto que
40
Tratamos de sujeito lingüístico porque não o queremos confundir com o sujeito gramatical, que estaria
definido dentro das teorias da gramática e circunscrito à frase, sem contexto enunciativo.
41
Embora se tenha o ato individual, considerando o indivíduo um ente geral, consideramos que aqui se
representa o sujeito, porque a enunciação vai falar em sua significação, de uma produção singular.
81
ocorre por esse intermédio, senão, olha para a estrutura que permite a utilização da
língua. O resultado desta indagação leva à formulação do aparelho de língua que
acesso à língua
42
. É nele que se centra todo o dispositivo enunciativo.
A estrutura, que dessa vez somos levados a considerar comporta uma
organização a partir do sujeito que se enuncia como locutor. Aqui quem enuncia torna-
se um índice de referência que organiza a enunciação, imprimindo um modo de relação
entre as palavras, estabelecendo sentido ao que é dito. É por via deste índice, que é
possível efetuar o ato de tomar a ngua e convertê-la para o discurso. A apropriação
desta referência acontece quando o locutor se apresenta como “eu” no discurso. Porém,
o “eu” não ganha seu verdadeiro alcance, se não se concebe junto ao “tu” e ao “ele”.
Desta forma, a instituição dos lugares “eu”, “tu” e “ele”, determinam um sistema de
relações que orientam a língua em seu uso e, que permite a constituição de enunciados.
O estabelecimento de tais lugares, reconhece uma estrutura pronominal, que é o próprio
aparelho formal da enunciação. O locutor, assim, não se apropria da língua, mas
também do aparelho que permite seu movimento e atualização. Trata-se de um outro
trabalho com a língua.
Essa instituição de lugares, a partir dos indicadores pronominais eu-tu-ele ,
reconhecidos como categorias dêiticas da linguagem
43
, se estabelecerão como o tripé
que dá consistência a uma dinâmica que desenvolveremos em linhas principais a seguir.
O sistema de relações pronominais, que aparece com esta expressão final,
enquanto aparelho, em um momento avançado da teoria benvenistiana, é no entanto,
abordado ao longo de todo o estudo deste teórico sob diversos aspectos. Deste modo,
vale a pena trazer para nossa discussão, algumas destas abordagens, para entender com
mais propriedade o sistema de linguagem proposto. De início é importante destacar que
os três elementos pronominais são identificados segundo uma constância, vista a
presença de tais categorias em todas as línguas. Referimos com isso a que toda ngua
contempla o sistema pronominal; mesmo que algumas não tenham uma palavra para
designar alguns desses elementos, eles estruturalmente estão presentes através de outros
elementos lingüísticos que lhe venham conferir lugar. Junto a isto, é discriminado o fato
de que essa relação se manifesta, antes de tudo, como uma instância de linguagem,
42
Este dispositivo de língua dentro da língua, terá uma designação, nesse formato, pelas considerações de
Dufour, quando trata do fundamento trinitário, e que elaboraremos no próximo capítulo.
43
Será justamente essa possibilidade que o dêitico oferece de não remeter a nenhuma pessoa ou objeto, ou
seja, de não ser referencial, que será utilizado e validado pelo locutor somente no contexto discursivo,
onde cobra valor e significação.
82
efetivamente porque ela é necessária à enunciação. Benveniste, por sua vez, refere uma
especificidade a este exercício de linguagem, no que ele denomina de instância do
discurso que define como:
Atos discretos e cada vez únicos pelos quais a língua é atualizada em
palavras por um locutor. (Benveniste, 1995. p.277)
Atentos a esta disposição, podemos ver a importância que adquire aquele que
toma a palavra, introduzindo esta referência única, que pode ser apreciada na instância
do discurso, a partir da qual cada elemento será introduzido nesta constelação dinâmica
da língua. Graças a isso, o discurso é apreendido enquanto ato que instala significações.
O veículo pelo qual o locutor se a conhecer é pelo “eu” representado no
enunciado, e será, a partir dele, que se apresentará o “tu” e o “ele”. Vemos, com essa
orientação, que estes lugares demarcados pelo “eu”, “tu” e “ele”, são definidos no
decurso do próprio acontecer discursivo. Em um texto anterior, a este que define o
aparelho formal da enunciação, intitulado: Estrutura das relações de pessoa no verbo
(Benveniste, Problemas de lingüística Geral I ) se vislumbra a estrutura de uso da
língua, e se dão as bases do que se entende por condições de subjetividade para a
enunciação. Adiante veremos como a subjetividade é considerada, por enquanto, nos
limitaremos a conferir as atribuições presentes em cada termo pronominal, de acordo
com as condições de uso, no discurso.
Segundo o teórico que aqui acompanhamos, as designações pronominais são
reconhecidas pelos gramáticos árabes, que se preocupavam com as funções de cada
pronome; indicando que o “eu” determina aquele que fala, o “tu”, aquele a quem nos
dirigimos e o “ele” aquele que está ausente. Assim, são apresentados o “eu” e o “tu”
como categorias de pessoa e o “ele” como categoria de não-pessoa. Benveniste se
interessa em resgatar esta acepção, na medida em que, confere em tais traços uma
constelação necessária a qualquer ato comunicativo. Ao mesmo tempo que isso entra
em evidência, se chega a conclusão que esse conjunto pronominal também funciona
enquanto sistema de oposições que viabiliza a utilização da língua. Esta estrutura
pronominal, termina por se afirmar quando se adverte a impossibilidade de produzir
qualquer tipo de discurso, quando não se conta com algum destes elementos.
83
A condição de subjetividade que é adjudicada às instâncias de discurso se deve,
a que elas indicam efetivamente a presença do sujeito no deslocamento da linguagem,
como afirma o autor na seguinte reflexão:
É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui
como sujeito; porque; porque a linguagem fundamenta na realidade,
na sua realidade que é a do ser, o conceito de “ego”. (Benveniste, PLG
I, 1995 p.286)
Ou ainda, indicam posições subjetivas, à medida que, locutores
representados na/pela enunciação. Daqui se acrescenta:
[...] essa subjetividade”, quer a apresentemos em
fenomenologia ou em psicologia, como quisermos, não é mais que a
emergência no ser de uma propriedade fundamental da linguagem. É
“ego” que diz ego. (Benveniste, PLG I, 1995. p.286)
Algumas das características principais, consideradas na relação de subjetividade
encontram-se organizadas no texto Estrutura das relações de pessoa no verbo
(Benveniste, Problemas de Lingüística Geral I, p.253), que aqui reproduzimos para
melhor focalizar este funcionamento:
1. O “eu” que enuncia o “tu” ao qual o eu se dirige, são cada vez únicos.
O “ele” porém pode ser uma infinidade de sujeitos ou nenhum.
2. O “eue o “tu” são inversíveis : o que “eu” define como “tu” se pensa
e pode inverter-se em “eu”, e “eu” se toma como “tu”.
3. O “ele” é o único que predica alguma coisa.
Seguindo o esquema aqui exposto, podemos ver com maior clareza o modo
como “eu” introduz a referência para o discurso, assim como a maneira em que se
organizam os outros elementos pronominais por meio dele. Conferimos que “eu” tem
transcendência sobre os outros termos, contudo, como dizemos, no plano do discurso
nenhum dos elementos do trinômio pode ser dispensado para que haja enunciação. A
explicação para tal retiramos do esquema recém citado, quando o autor explica que “eu”
pode ser contemplado junto a “tu”, que também funciona como categoria de pessoa,
84
porque só na presença de um outro é que “eu” se manifesta, sempre é para alguém que
se fala. Então, temos com isto uma unidade eu-tu que se caracteriza pela qualidade da
inversibilidade, em que os falantes, à medida que vão tomando a palavra, alternam o
lugar do “eu” e do “tu”. Isto faz parte da gica que determina o diálogo no discurso.
Reconhece-se nisso uma lógica dialética, dos lugares. Sendo assim, o eu-tu se
configuram conforme uma unidade subjetiva que tem realidade na instância do discurso.
Confirmamos tal afirmação quando Benveniste nos diz:
Eu pode ser identificado pela instância do discurso que o
contém e somente por aí. Não tem valor a não ser na instância na qual é
produzido ( Benveniste. Problemas de Lingüística Geral I, p. 278-79)
A outra unidade, que se representa “ele”, aparece como um elemento que
participa do discurso mas não apresenta marcas de sujeito, exatamente porque traz o
“externo” a eu-tu, que pode-se referir a sujeitos ou nenhum e, passando por esse
exterior, retorna para a enunciação a relação subjetiva inicial, que organiza o discurso.
“Ele”, entretanto, não se limita ao enquadramento que formato a eu-tu”,
“ele” contém uma consideração especial quando nos deixamos sensibilizar pela
dimensão da relação desta unidade subjetiva com o pacto social. O ponto que instiga
esta reflexão é encontrado na seguinte citação:
Na enunciação, a língua se acha empregada para a expressão de
uma certa relação com o mundo. (Benveniste. 2006, p. 84)
Essa certa relação, à qual o autor se refere, é entendida por nós como um
terceiro elemento deste aparelho, que pode estar representado por “ele”, dimensionando
o tipo de vínculo que o sujeito estabelece com seu meio, com o mundo. Assim, o outro,
o que não é “eu” se dimensiona. Este outro em jogo, aquele ou aquilo fora da relação
subjetiva “eu-tu”, parece contemplar a relação que se tem com o mundo, pois “eu-tu
demandam uma presença no mundo. “Eu-tu” se enunciam para estar no mundo e
portanto em relação a “ele”.
“Ele” é, então, esta dimensão da relação com o mundo? Cremos que um conceito
de mundo, que englobe uma noção de muitas realidades e entre elas muitas
inconciliáveis, não seria possível neste caso, mas aqui entendemos que tratamos de uma
85
relação com o mundo que se manifesta a cada vez, quando uma enunciação é realizada.
Assim, cada evento enunciativo se constitui como uma realidade de mundo. Daqui,
também podemos entender que a instância “eu-tu” se mostra única a cada vez que
ocorre um dizer.
A dinâmica pronominal comportará um dos eixos mais importantes, senão o
mais importante, para abordagem da nossa análise na enunciação dos imigrantes.
Tendo tocado nas considerações teóricas principais da teoria benvenistiana,
especificamente as que interessam para o desenvolvimento do nosso trabalho,
finalizamos esta parte.
Daremos curso ao próximo item, com a leitura de Milner, que tomamos como
acréscimos importante para uma concepção enunciativa da linguagem que leve em
conta a expressão do não-todo da língua que esse autor desenvolve.
2.2.3 Considerações para uma perspectiva enunciativa do imigrante
O que interessa para nosso assunto é destacar, antes de tudo, que a organização
do sujeito passa por níveis de identidade nas formas da língua e, da mesma maneira, por
vias das marcas da subjetividade, que se situam pelo funcionamento enunciativo.
Estamos na perspectiva dos tipos de funcionamento que se determinam na linguagem e,
por decorrência na ordem discursiva. Sem estes pressupostos, o homem não consegue
mediar o seu lugar entre os outros sujeitos e os objetos, pois, se não fosse por estes
mecanismos, não haveria possibilidade da articulação do espaço subjetivo no universo
dos outros espaços. Estamos nos entrelugares, paradigma do imigrante.
A relação particular do locutor com a língua lança, ainda, um questionamento
sobre o nível de intervenção que promove tanto na estrutura da língua quanto no nível
do funcionamento da língua. Mesmo que aqui se constatem formas regulares a todas as
línguas e, portanto, não estariam, neste plano, interesses subjetivos de cada falante,
conferimos que, ao haver uma tendência de um sujeito a se precipitar por esses
mecanismos para a dimensão discursiva, não podemos deixar de reconhecer nesse gesto
do sujeito uma tentativa de identificar, por essas formas, reformulações para ela. Traçar
uma aposta junto a ela, por essa via, é interrogar o uso, enquanto reconhecemos que é
ali que se expressa o ponto limite de produzir novos elementos para a própria língua,
como ficou demonstrado no exemplo de xadrez que Saussure mostra, referindo-se às
86
leis que governam a língua. Ele indica as leis estabelecidas entre os elementos que estão
em jogo que, no caso da língua, se torna diferente do jogo de xadrez, quando não existe
a participação de dois jogadores, o que permite uma certa lógica aberta, porque
elementos vão se anexando e sendo geridos pelo sistema. Contudo não um a priori
que determine o elemento que entra em uso, simplesmente ingressa pelo uso. Assim,
neste limite observamos uma ingerência do sujeito nas estruturas, uma ingerência que
não é da ordem da consciência. Podemos falar de um inconsciente na cultura do uso da
língua, que responde pela introdução do sujeito para além das regularidades dos
sistemas.
Conforme nosso assunto, este é um ponto que nos interessa porque nele se
expressa o paradigma do encontro desnivelado, em duas instâncias, na forma da língua e
no funcionamento enunciativo, e, a partir desse desnivelamento inicial, é possível
deparar-se com a decisão de sujeito frente a uma outra língua. Não podemos esquecer
que lidar com uma ngua é lidar com um corpo organizado. Lembramos que aqui está
implicado um ato, porque a ele se pode renunciar.
Esta dimensão do sujeito falante que afeta a língua trata de um descompasso
específico que se expressa para tal encontro. Levando em conta esta problemática,
convidaremos Jean-Claude Milner, autor que trata do amor na língua e, nesse
sentimento sublime, trata do que falha, aquilo que, faltando, Do paradigma da língua à
expressão enunciativa permite a escuta de uma língua particular.
2.3 O PRISMA DE UMA LÍNGUA AFETADA PELO NÃO-TODO
Jean-Claude Milner é um autor que como lingüista preocupado com a
psicanálise, recolhe as conseqüências do amadurecimento destas duas ciências, para nos
oferecer reflexões que entrecruzam tais campos de saber, indicando-nos perspectivas
para o campo da enunciação que aqui nos interessa. Acreditamos, que tal contribuição
traz um aporte consistente para um ponto sobre o qual as teorias da linguagem têm-se
questionado incessantemente nas últimas décadas e que diz respeito à consideração do
estatuto da ngua enquanto determinada também por manifestações que não se
enquadram simplesmente nas regularidades que podem ser elucidadas. Quando este
propósito toma seu impulso, reconsidera-se o lugar do sujeito em funcionamento com a
língua, que, como observamos acima, torna-se um giro necessário para avaliar formas
87
de expressões que abrem conseqüências ricas para o que, num momento inicial, foi
recalcado, mas com pressuposições de que disso a Lingüística deveria se ocupar em
outro momento. Optamos, por meio deste aporte que Milner nos permite introduzir um
acréscimo às reflexões sobre a enunciação que, em definitivo, é tomada como nosso
eixo teórico. O autor convidado assume esta tarefa junto ao referencial psicanalítico
44
,
porque nele aparecem razões do sujeito que é agente de/na linguagem como veremos no
desenvolvimento que propomos.
no início de seu livro O Amor da Língua (1987), Milner fala sobre a
dimensão das várias línguas que confluem no que a linguagem abarca. Criam-se, por
esse pressuposto, impasses quando considerados os paradigmas da lingüística
tradicional, pois línguas não existem, há no purismo a Língua. Só poderia ser, se se trata
de vários sistemas lingüísticos, como se fossem vários idiomas, mas não é isto que é
posto no desenvolvimento, como veremos. A provocação não é à toa, o que nos leva a
considerar, nesta asserção, um desenvolvimento interessante, que tentaremos dar conta
para o propósito que nos interessa.
Se por um lado, pode-se dizer que as línguas se reúnem em um conjunto
consistente- diz o autor- porque sem contradição em sua forma, ocorre que, no uso, em
que uma língua se singulariza, aparece sempre um elemento que se dispõe entre os
outros, um elemento que se toma como um incomensurável. Assim, temos, como
exemplo deste paradigma, a designação de uma língua materna, que, segundo podemos
considerar, determina na língua um indeterminado específico que predispõe um sujeito
sintonizado, pelo seu dizer, à sua singularidade.
Entretanto, o aparecimento do inconmesurável na língua que se expande ao
conjunto de línguas, figurando assim várias formas de estar na língua
45
, faz com que se
pense que em cada ser falante existe uma língua particular e que, então, cada um carrega
a sua língua materna, que o implica em determinada forma de estar na língua. Neste
panorama é que Milner vai considerar as seguintes questões:
Que pensar dos diferentes tipos de sintaxe entre os quais um mesmo
sujeito poderá ocasionalmente escolher segundo o humor ou as circunstâncias?
Que pensar de dois sujeitos, convencidos de falar a mesma língua, e dos quais
pode-se testemunhar que seus julgamentos de gramaticalidade divergem
44
É importante dizer que o referencial psicanalítico é requisitado nos estudos discursivos com bastante
freqüência, principalmente na Análise de Discurso Francesa.
45
Milner destaca que se trata de um conjunto de realidades (Milner. 1987 p.11).
88
constantemente? Que pensar dos dialetos dos “níveis de língua”? ( Milner.1987,
p.12)
Descrevem-se, por estas questões, as múltiplas maneiras de se relacionar com a
forma de assumir a organização que sustenta o dizer, circunscrevendo a língua, assim,
entre os estados em que o incomensurável aparece. Então é o incomensurável que
permite cada organização de língua? É ele que trabalha nesses microcosmos,
propiciando uma organização de língua? Parece que é este o dispositivo que está em
pauta. Avancemos mais.
Se por sua vez, temos o encontro de língua em línguas, ou seja, o conjunto de
línguas expressando estas organizações, que são múltiplas, é uma verdade também que
o sem sentido não é o que reina nem o que se procura. Por esse motivo o autor propõe:
[..]que se nomeie língua a este núcleo que, em cada uma das línguas,
suporta sua unicidade e sua distinção; ela não poderá apresentar-se do lado da
substância, indefinidamente sobrecarregada de acidentes diversos, mas somente
como uma forma, invariante através de suas atualizações, visto que ela é
definida em termos de relações. (Milner. 1987 p.
12)
Temos indícios de um paradoxo, de que o incomensurável trata de um acidente
específico, uma marca, a partir da qual se estabelece uma organização de língua.
Quando uma organização é formulada como princípio no sistema, é possível reconhecer
a “legitimidade” que a governa. Procura-se, também, por este caminho contemplar a
identidade e não-identidade do encontro entre ngua e sujeito. Para nós esta é uma
relação que, desde o início deste capítulo, nos instiga. Lembremos a identidade que
achamos na língua como sistema, ela não contempla o sujeito, pois remete estritamente
para o lugar dos seus elementos, produzindo unidades de valor no sistema. Como vimos
em Saussure, é na unidade do signo e da identidade na língua que se reconhece o
tesouro, define-se, assim, um sistema de câmbio inscrito nele e por si. Contemplando-se
este fato, de que maneira podemos pensar a singularidade na língua que olhe para o
sujeito, se o valor e a significância passam por tais unidades? Bem, algo aqui incita.
Mesmo que no Curso haja espaço para pensar dentro do conceito de linguagem as falas
de sujeitos, porque heterogênea, disposta a integrar novos elementos de significância -
89
porque linguagem, antes de tudo, é filha do uso da língua
46
- o tipo de vínculo do
homem com a língua não é significativo. Quando Milner designa a perspectiva da
linguagem pela ordem da generalidade, quando diz as línguas confluem na linguagem,
linguagem é tomada como um ponto de encontro, certamente observando um
heterogêneo, contudo de diferente natureza porque neste contexto é circunscrito o
reconhecimento da singularidade de cada língua que nela conflui. Certamente estamos
diante da construção de um outro ponto de vista. Linguagem e língua aparecem, desta
vez, atribuindo condições de coletividade e de distribuição
47
, o que, acreditamos,
integra o sujeito e lhe designa uma posição, pois torna-se agente nas operações,
principalmente quando considerada a função de reconhecimento e de distribuição. Ele
se apresenta assimilando uma língua como um particular, conforme a óptica do
incomensurável. Desta maneira, cada sujeito toma para si um particular de
língua.Vejamos como se retrata no texto que acompanhamos:
[...] a operação da língua e da linguagem são semelhantes. A
única diferença que as separa é aquela do coletivo ao distributivo: o
ponto de vista da linguagem acede de bom grado ao universal por
extensão e a posição das propriedades comuns às diversas línguas,
reunidas coletivamente em um todo; a língua ao contrário, supõe o
universal distribuído sobre cada uma, de sorte que as proposições
universalizantes sejam possíveis para uma língua entre outras, como se
ela fosse sozinha no mundo. (Milner. 1987, p.45)
duas vias, dois pontos de chegada e dois pontos de partida, um que vem do
particular para o universal e outro do universal para o particular. É neste movimento que
a enunciação deriva suas respectivas expressões. avaliamos que, quando o particular se
expande para o universal, a essência do particular tende à desarticulação, da mesma
maneira que quando o universal tende a se particularizar, sua eficácia em contemplar a
forma como um todo desestrutura-se.
Tais considerações revelam também o objeto do lingüista, objeto protegido na
idealização (do amor) daquilo que se completa como um Todo, por abstração, e para sua
sustentação, quando da emergência de fissuras, recorre-se a um esforço para que as
46
Lembramos que linguagem definida por Saussure comporta a língua mais seu uso.
47
Quando Saussure fala da relação língua e linguagem aborda, legibilidade e instauração, como vimos
quando tratamos do corpo da língua.
90
fissuras sejam apagadas. Como diz Milner, o esforço se materializa na construção de
palavras mestras que pretendem restaurar esse Todo
48
. Trata-se de um amor que, como
amor, toma-se pelo sentimento do totalitário. Amor certamente, mas como todo amor, é
posto à prova, porque exatamente tão consistente quanto o impulso à completude, as
manifestações na linguagem não deixam de apresentar outro tipo de consistência, a
consistência da falha, daquilo que manca e que se expressa pelos atos falhos, chistes,
sonhos, duplo sentido, homofonias, etc. Falhas com as quais a psicanálise se predispõe.
A psicanálise observa o que brota da falha porque deduz que algo ali fala e se algo fala é
porque é relativo à língua, trata-se de uma expressão que passa pela língua. É para uma
outra “legibilidade” que trabalha a falta
49
e, portanto, estamos assinalando uma fala
dirigida em outras condições, em outro “lugar”, e que fala de uma língua trabalhada por
um sujeito em (diz)curso. No curso da palavra um sujeito faz ato. A enunciação que
aqui se assimila, reconsidera e se expressa, contemplando este paradigma entre o Todo e
o não-todo.
Milner se indaga sobre a maneira como a Lingüística se afetada pela leitura
psicanalítica e, acreditamos, também como a psicanálise se desdobra com este objeto
apreciado, virtual e, por isso, também amado em seu atributo imponderável de
possibilitar a comunicação e a criação da realidade humana. Como discípulo de Lacan,
Milner se debruça sobre o particular língua/sujeito
Falar no Todo e não-todo que circunscreve efeitos enunciativos de um sujeito, é
considerar pontos de refração em que um real é apresentado porque simplesmente ele
não pode ser explicado. Nisto a língua envolve o sujeito, o provoca e coloca em curso.
Trata-se de uma constatação: a língua não se realiza no tudo dizer, ela só se completa no
paradigma teórico. A completude é quebrada pelo não-todo para que possa haver fala,
senão nada precisaria ser dito. Aqui aparece um real particular do sistema. Entendemos
que a forma de conviver com o real é que o sujeito pela distribuição que lhe cabe, se
incumba de trabalhar para a distinção que o faz falar, que, como vimos na língua, trata-
se de um universal que incide qualificando uma língua.
É o que encontramos na seguinte afirmação:
48
São por exemplo, em Saussure a estrutura, o signo, em Chomsky a competência lingüística da qual o
lingüista dá testemunho, etc.
49
expressão do incomensurável.
91
Falar de língua e de partição é colocar que tudo não se pode dizer. Em
outros termos, o puro conceito de língua é aquele de um não-todo marcando a
alíngua; ou a língua é o que suporta a alíngua enquanto ela é não-toda. (Milner,
1987, p.19)
Reconhece-se no conceito de alíngua aquilo que provoca a língua, rompendo o
puro sistema, o Um, e atende a uma dimensão de relação de língua. Alíngua se atém à
manifestação de um algo que corrompe de maneira a se manifestar, sob o formato de
uma língua que se debruça em torno de uma falha específica. Por esta consideração,
Milner determina o que ele chama de cisão da língua com a palavra, em que a palavra,
exatamente, situa-se no equívoco e em tudo que o promove (Milner. 1987 p. 13).
Respectivamente, como é o ser falante que promove a palavra, é o lugar do não-idêntico
ao Um que se revela. De tal avaliação Milner condensa: a língua suporta o real da
alíngua. (Milner. 1987, p.19). A pauta insere um texto, o que antes está invisível. É um
texto que se desdobra no limite da refração entre a unidade e a falha.
Abre-se com tal desenvolvimento, algo que em Saussure e Benveniste, na
perspectiva dos mecanismos a organização da língua e os mecanismos enunciativos, não
são tratados. Pondera-se neste novo recorte, em que a língua é afetada respectivamente
por uma proposição de sujeito com marcas de língua, uma forma enunciativa que
considera como constitucional ao contexto enunciativo o não-todo.
O subsídio que a Psicanálise pode dar é na dimensão da ética da palavra, na
medida em que um sujeito empenha a palavra precisamente para revelar algo da sua
verdade, que, inconsciente, desliza por espaços fugidios em que a língua não é Toda, ela
também conta com o tropeço na linguagem. Contudo não se desconhece que é pela
substancialidade no formato de língua que o sujeito consegue parar para interpretar o
que lhe diz respeito. A verdade também não se pode dizer toda, de uma vez. Ela se
representa por referências que aparecem para aquele sujeito que realiza um ato de fala.
Não podemos deixar Benveniste de lado, na medida em que, em suas considerações
com a enunciação insistentemente ele afirma que a existência do sujeito se dá na
linguagem, é aí que ele encontra sua fala, seu tempo e seu espaço, não nenhum outro
recurso para ele se encontrar. A realidade é a realidade da enunciação.
92
Vemos que onde conflui a linguagem, retorna algo na forma de uma língua, de
uma organização que o sujeito tenta capturar, porque, lembrando, trata-se de como a
língua foi distribuída. Acreditamos que estamos na dimensão da cultura, em que o
recorte simbólico determina lugares, lugares mediados entre a língua e a palavra.
Lembremos do sistema interpretante, e todas as conseqüências dos investimentos
imaginários que recriam o corpo do sujeito. Corpo enquanto espaço que o “eu” (índice
de subjetividade) precisa para marcar uma referência.
Neste terceiro tempo de análise dos conceitos que escolhemos dentre as teorias
da linguagem, podemos estimar que a linguagem circula no mundo humano e a
enunciação recorta a linguagem numa língua particular.
2.3.1 O imigrante no paradigma da língua não-toda
A possibilidade de considerar o não-todo na língua oferece propriedades
importantes para considerar o discurso do imigrante, como aquele discurso afetado
pelos efeitos de uma outra língua.
Se, como vimos, cada sujeito toma para si uma língua, no lugar em que a alíngua
se suporta, podemos refletir sobre a maneira como isto pesa para o sujeito imigrante,
uma vez que ele em sua inscrição de língua materna organiza sua enunciação de uma
maneira e, conseqüentemente, na passagem para a outra língua deveria haver a
transposição de algum operador que assimilasse este organizador. Senão teríamos o
simples sem sentido e não a procura do sentido na outra língua, como os imigrantes o
procuram. Como podemos olhar para isto? Avancemos entre questões e a organização
de possíveis respostas.
Se partirmos do pressuposto de que a língua materna é única, temos algo do
intraduzível nesta apropriação, e teríamos de admitir que a relação com uma segunda
língua trata de uma outra experiência. Não podemos deixar de admitir que é uma
experiência de língua, mas que os efeitos enunciativos se expressam diferentemente,
como mostra Milner quando lança as questões que acima ressaltamos, observando o
julgamento sintático das situações e a maneira de organizar a semantização. Isto leva a
diferentes maneiras de se mostrar, na linguagem, tipos diferenciados de relações que se
estabelecem entre a palavra e o sentido. Aqui lembremos a Benveniste, que anuncia esta
propriedade no texto Aparelho Formal da Enunciação, quando se volta para a maneira
de como as palavras derivam na semantização, considerando inclusive a entoação e
93
outras posturas fonéticas, tem um efeito completamente distinto em cada emissão do
enunciado. Estes elementos sutis, porém, enfáticos ao mesmo tempo, são determinantes
nos efeitos de sentidos. Sabemos que a enunciação traz a atualização da língua a cada
vez como única, não repetível. No não repetível podemos encontrar manifestações
daquela instância do incomensurável que insiste na relação com a língua. Podemos
afirmar que o trajeto que contorna a maneira de estar na língua desenha um trajeto
específico no julgamento semântico? Se isto é o que define um tipo de relação de língua
com a chamada língua materna; como podemos pensar o julgamento semântico na
passagem para a outra língua?
Questões como estas acabam nos envolvendo cada vez mais com relação ao
estatuto do todo com o não-todo. Mas a experiência do engajamento com as
propriedades discursivas responde a outros eixos, ainda que uma matriz seja referência.
Podemos entender que, neste aspecto, existe uma implicação entre uma experiência de
língua e uma outra e o uma conseqüência. Assim, também podemos entender que a
maneira que um sistema idiomático toca em outro detona efeitos de impossíveis,
específicos, como podemos pensar, por exemplo, que do espanhol para o português
um incremento de mais de cinqüenta sonoridades
50
, que não têm como ser lidas a partir
do sistema da ngua espanhola. Como o sujeito administra tais impossíveis nesta
passagem de língua? Estas considerações, sem dúvida, norteiam nosso olhar sobre a
expressão enunciativa do imigrante e nos permitem supor as seguintes considerações.
A experiência de imigração implica um corte na cadeia de significância que o
sujeito traz dos processos simbólicos e imaginários de seu lugar natal, que como temos
analisado até o momento, encontram sua manifestação nas formas da língua e da
linguagem, mostradas nas expressões enunciativas. A relação que tende a se inaugurar
na relação com a outra língua, tende a retomar estas propriedades de significância e,
portanto, tende a um restabelecimento das qualidades enunciativas. Não obstante, aqui
há uma diferença. Como vimos, a relação que se inaugura com a língua materna
responde ao efeito de um incomensurável que se estabelece na inscrição do sujeito na
língua; no caso da outra língua, por analogia, podemos discernir que esse
incomensurável se impõe pelo efeito da própria experiência que se impõe ao sujeito, ele
a outra língua a partir desta experiência e realiza sua inscrição em decorrência deste
engate de sujeito em outra língua, ou seja, o sujeito vem de uma língua e se relaciona
50
Considerando desde as vogais abertas às sonoridades nasais, distinções fonéticas de consoantes b/v,
s/ç/z/ss, etc.
94
a outra língua. O que queremos diferenciar aí é o fundamento do estar em língua
materna e o de se deparar em outra língua. Intuímos que cada uma das condições
responde a princípios diferentes, a razões diferentes.
Indícios desta diferença os vemos nos próprios efeitos do desconhecimento da
outra língua e, com isso, a prova do non-sense incomensurável. Aqui distinguimos
também o que Saussure trata sobre a identidade na língua, já mencionado acima, em que
o significado recorta o significante e vice-versa. Acontece que a sonoridade com a qual
o imigrante se depara é vivenciada por um real de não conceber ainda uma forma de
recortar a significação. Digamos aqui que a experiência do não-todo da língua está em
radical diferença.
Uma outra medida observamos num segundo tempo, que trata de um não-todo
da experiência quando se tenta interpretar, traduzir a outra língua. Recorrer à percepção
da outra língua enquanto uma unidade compacta que se tende cifrar, como se ela fosse
em sua forma a garantia por si da volta do sujeito ao lugar enunciativo. Aqui a
abordagem é racional e se convive com um real que poderíamos denominar de real
arquitetônico de língua. Uma semelhança desta atitude talvez seja encontrada na
lingüística comparada. Contudo não é preciso muito tempo para que se descubra que o
ser na língua flui de um outro ponto de partida, ou a enunciação se apresenta a partir de
outra composição que não da simples tradução do código. A enunciação resulta da
conversão da palavra em discurso, e o discurso é apreendido por processos de
significação operados na cultura, na maneira de decantar as palavras. Quando o tempo
de compreender uma cultura pela linguagem exige do imigrante outro ponto de partida,
ele pode assumir, na sua experiência enunciativa, a sua experiência de imigrante como
um real que fundamenta uma nova razão enunciativa, razão que tomamos nas duas
acepções que a ngua portuguesa permite, razão no sentido de motivação e razão no
sentido matemático algo em razão daquilo, ou seja, na capacidade de operar na outra
língua.
2.4. CONSIDERAÇÕES PARCIAIS
Chegamos ao final deste capítulo, reconhecendo o ponto central que a língua
ocupa em sua dupla determinação: semiótica e semântica. Constata-se sua influência
como instância mediadora entre o sujeito e o mundo. Realçamos, mais ainda, esta
mediação quando o sujeito imigrante requer sua inscrição no outro sistema lingüístico-
95
cultural, em que estão implicadas noções de valores que este sujeito precisa trocar, no
amplo sentido da palavra.
Podemos ainda considerar a necessidade de que se revejam, nestas precisões, o
movimento pendular que imanta a possibilidade do sujeito entre a construção de
unidade, do Um, que o corpo da língua outorga em sua dimensão de sistema, conforme
a elucidação saussureana, e a expressão da língua que se abre para a exterioridade pelo
funcionamento da enunciação, rompendo o Um. Observamos neste aspecto, a natureza
semântica que a língua possibilita, destacada por Benveniste ao longo da sua obra. A
este último, devemos ainda, a consideração da barca que carrega nosso dizer, pelas
águas da língua que, como se sabe, não são pacíficas. Esta barca figurada é o aparelho
formal da enunciação que permite este trânsito ao sujeito. Sem este recurso, ocorreria
uma falha profunda, impossibilitando a sustentação do sujeito na linguagem e na vida
51
.
Jean-Claude Milner trouxe para nosso referencial, as marcas com que o sujeito
se manifesta nesta travessia pela língua. Vimos o que singulariza o sujeito a partir de um
impossível específico, que põe o sujeito em funcionamento, permitindo que faça rastro
de sua relação com a língua e não seja um mero repetidor das formas na ngua. Por sua
vez, é este recurso voltado para aquilo que não se fecha, um não-todo, que impulsiona a
procura na palavra, pois é nela que está a natureza do homem.
Fechando este percurso, acreditamos que conseguimos concatenar o lugar da
língua enquanto corpo organizado, que suporta o funcionamento da enunciação e do
funcionamento do sujeito na enunciação.
Finalmente, com estas considerações, podemos explicitar nosso ponto de
interesse, que passa por considerar as manifestações da enunciação do imigrante e, para
tal, escolheremos os relatos que eles produzem neste contexto de apropriação de uma
segunda língua e da apropriação da referência do sujeito em outra cultura. Digamos, do
contexto enunciativo e da razão que o faz falar.
Procuraremos estas expressões nos relatos que recolhemos para nosso estudo, os
quais relatos diversos, vindos de variados grupos de imigrantes radicados no Brasil.
Estas expressões são agrupadas no que chamaremos de narrativas surgidas na
experiência e no uso de uma língua não materna.
51
Deste efeito temos trabalhos importantes como o de Jacobson que analisa a importância da aquisição do
eu para o recurso subjetivo da comunicação e também o atestam os inúmeros trabalhos com a psicanálise
das psicoses em que é determinante nos pacientes a ausência da designação em primeira pessoa.
96
A dimensão da narrativa será abordada no próximo capítulo. Buscaremos, então,
fundamentar uma construção que leve em consideração a participação da estrutura da
língua, da enunciação e do sujeito, conforme a realização de uma proposta referencial
para o movimento do sujeito neste outro lugar.
97
3. A CONSTRUÇÃO NARRATIVA E SEUS
DESDOBRAMENTOS PARA UMA INSCRIÇÃO
ENUNCIATIVA
El desplazamiento del significante determina a
los hombres en sus actos, en sus destinos...(Lacan. La
Carta robada)
Neste capítulo integramos as conclusões do capítulo anterior quando
determinamos que nos efeitos da linguagem, conforme o olhar de uma lingüística
enunciativa
52
e que contempla o valor do sistema lingüístico, podemos acompanhar o
imigrante em uma recolocação de sua enunciação em um outro sistema de valor
lingüístico, determinando, desta maneira, uma nova inscrição enunciativa.
Conforme tal pressuposto, entendemos que no proceder de uma construção
narrativa, encontramos uns dos efeitos desta inscrição e existe por meio dela um
passo fundamental, no qual o sujeito efetivamente realiza uma apropriação
singular da outra ngua, tornando-se sujeito imigrante em curso enunciativo
53
. A
narrativa, assim, se expressa como uma construção na qual o sujeito organiza as
referências que participarão da nova proposta enunciativa.
O formato que esta narrativa adquire é de extrema importância, se levarmos em
consideração a dificuldade que compreende o ato da construção histórica de um
sujeito
54
e os efeitos que isto adquire retroativamente quando apresentado a um conjunto
de co-enunciadores. Como isto se resolve na maneira de contar a história? Não temos
uma resposta, no entanto sabemos que o espelho que o co-enunciador oferece está
presente nesta organização. Avancemos.
52
Esta lingüística enunciativa que aqui expressamos nos mostra marcas do sujeito no uso da língua.
53
Neste sentido destacamos a capacidade que aqui ocorre de estabelecer uma leitura dos sistemas de
valores que se determinam em dois sistemas lingüísticos, no sistema da língua materna e sistema da outra
língua que adota uma não identidade entre eles. Concretamente trata-se da capacidade de lidar com
diferenças.
54
Podemos ver um paralelo na dificuldade do ser que nasce para a fala em adquirir o recurso operatório
do pronome EU em sua vinculação com o mundo.
98
A narrativa pode ser vista sob diversos ângulos, mas adotaremos aqui o que é
proposto por Dany-Robert Dufour, em Os mistérios da trindade (2000). O texto nos
adverte sobre uma maneira original de conceber a narrativa, conforme uma organização
trina, articulada segundo o modelo de um superaxioma, determinado na linguagem. Esse
superaxioma é traduzido a partir das considerações enunciativas benvenistianas que
estipulam, conforme o aparelho formal da enunciação, o funcionamento de uma relação
dinâmica entre os três pronomes “eu”, tu” e “ele”. Veremos com atenção essa
prospectiva no desenvolvimento desse capítulo.
Junto a tal diretriz, perseveramos também nos pontos que tocamos durante o
percurso desse trabalho, os quais não podemos deixar de mencionar aqui, pois neles se
depositam as bases para a consideração da enunciação imigrante, que é nosso eixo de
estudo.
O imigrante, como vimos, advém do processo que se desencadeia no novo lugar
que adota para viver, junto a outro contexto e a outra língua. Assim, transita através de
uma outra consideração de valores. Deste modo, observamos que as contingências que
definiram a imigração inicialmente trocam de significância quando efetivamente
despertam a opção de se aperceber enquanto sujeito imigrante. É, à medida que aparece
essa “decisão”
55
, que o diálogo com o novo universo ao qual o imigrante chega começa
a se desenvolver. Lembremos que o estrangeiro representa a contrapartida desta
posição, pois ele se toma somente como espectador em relação a essa diferença. Esta
distinção torna-se necessária quando pensamos que a narrativa é uma prova consistente
do divisor de águas, pois ela entra como ferramenta na apropriação do ser imigrante,
permitindo ao olhos dos “da cidade” desvinculá-lo do efeito de estranhamento que o
estrangeiro suscita. O narrar também pode ser abordado como o resultado do tipo de
inscrição no novo vínculo.
Quando a narrativa é organizada por parte do imigrante, ela tem um endereço,
ela é dirigida ao diferente específico que se representa na imago do contexto imigrante,
que observa o novo país que o acolhe. Falamos aqui em um diferente específico porque,
55
A decisão com a qual lidamos não é áquela da consciência, soberana nos seus propósitos, mas aqui
lidamos com uma opção que advém do sujeito descrito pela psicanálise, que contempla efeitos advindos
do inconsciente, que se manifestam em formações de linguagem.
99
temos de convir, que não é uma diferença homogênea
56
e porque não é qualquer
diferente; é um que engloba algo específico para aquele que fala.
Produzir uma narrativa, uma história, enquanto ato enunciativo, em tais
condições é realçar o tipo de diálogo que relaciona a pessoa a ambientes representativos
de alguma forma
57
. Esta relação desperta ainda mais nosso interesse, considerando que
se manifesta nisto, a gica de um mecanismo pelo qual um sujeito se coloca na ordem
da significância.
Também retomando o desenvolvimento final do capítulo anterior, olhamos para
a dimensão da ruptura que a presença da marca subjetiva impinge ao efeito de totalidade
e, da mesma maneira, a tentativa de retorno ao equilíbrio que o sujeito procura na
totalidade, movimento que, a partir da elaboração oferecida por Milner e, que
acolhemos para nosso estudo, tomamos como movimento constitutivo à capacidade de
enunciar. Assim, queremos indagar sobre o efeito nesta construção narrativa. Olhamos
para a enunciação do imigrante contemplando seu movimento, por meio da
particularidade que essa ruptura incita.
Para o imigrante ocorre uma ruptura redobrada quando ele rompe com um
equilíbrio inaugural na ngua materna, incidindo sobre ela uma outra língua. Também
a ruptura com a maneira de estar no discurso, pois onde a alíngua retorna como
uma falha suportada na língua, a falha na imigração retorna como um real que precisa
ser interpretado. Cremos que a narrativa do imigrante, nesta perspectiva, também joga
um papel fundamental na tentativa de apaziguar a falta que retorna de uma outra
instância do indizível e que pretende ser recuperada para a enunciação.
Organizadas, nesta pequena retomada, as idéias que nos impulsionam para o
desenvolvimento desse capítulo, passaremos propriamente a desenvolver o que vamos
abordar como narrativa. Para tal, contemplaremos quatro pontos: no primeiro veremos
as contribuições de Dany-Robert Dufour (2000), tratando da dimensão trinitária
presente na linguagem e das lógicas que ali se cruzam; depois abordaremos a maneira
como que a ordem trinitária, na narrativa, dispõe o sujeito dentro dos ciclos de
transmissão; posteriormente trataremos da narrativa e suas conseqüências para o laço
56
Na medida em que existem migrações vindas de diferentes países, as diferenças postas em pauta são
lidas conforme cada lugar, sem falar que para cada sujeito existem versões diferentes do evento
imigratório.
57
Avaliados não somente na conotação positiva, como também pelo que se impõe como propriedades
negativas. Tratamos da ambivalência em termos freudianos.
100
social atual. Finalmente, traremos as conseqüências desta leitura para pensar as
narrativas acontecidas no contexto migratório para o Brasil.
3.1 A LÓGICA TRINITÁRIA E A LINGUAGEM
Para contextualizar a contribuição de Dany-Robert Dufour, é necessário
compreender alguns aspectos do seu desenvolvimento até chegar ao que ele propõe
como narrativa e, digamos, narrativa formulada em uma atualidade em que se postula a
queda dos grandes relatos e em que se fala no fim da história.
Quando este autor é tomado pelo ímpeto de escrever Os mistérios da trindade,
ele incorpora uma conseqüência teórico-filosófica esclarecedora para a consciência de
história e cultura que nos domina. Compreende, neste contexto, o funcionamento de três
tipos de lógicas que se imbricam nas organizações sociais humanas e que perpassam
processos históricos nos quais nos inscrevemos como efeitos entre tais acomodações.
Tais lógicas compreendem o funcionamento do dito unário, o binário e o trinitário. E é
sobre o estabelecimento da natureza trina que se estimam as possibilidades das
produções enunciativas. Decorre disto nosso interesse em aprofundar esta leitura, que na
abertura para a narrativa, preserva nosso eixo temático.
Acima observamos o funcionamento da língua e da enunciação, aqui refletimos
sobre as condições em que se o aparecimento dessa enunciação junto à consideração
das marcas subjetivas.
Para iniciar, podemos considerar que esses dispositivos lógicos tocam
profundamente nos mecanismos que a linguagem possui para recolocar, a cada vez, as
essências e significâncias que norteiam as produções do pensamento humano. Dufour ao
situar nesta perspectiva as coisas, se atém com meticulosidade aos mecanismos
lingüísticos e destaca de maneira incisiva o fato enunciativo traçado por Benveniste,
mas por meio de um estilo de implicação nos processos que tornam tanto o laço social
quanto o laço individual viáveis.
Mas o que se entende por trindade? Que cartografias relevantes se abrem aqui?
Veremos a seguir aspectos deste panorama.
Quando perscrutamos os mistérios da trindade, podemos ver que, embora denote
os efeitos do pensamento cristão, não é este o viés. Não é no sentido de santíssima nem
adjudicada uma orientação superior, consignada a um Deus, que é posto em causa,
embora os efeitos do mistério se sobreponham. Há, acima de tudo, um resguardo de
101
humanidade neste recorte, na medida em que o homem, com suas irregularidades pode
ser visto e se ver. A trindade se caracteriza por um tipo de lógica que marca uma
propriedade diferenciada com relação a outras duas, que são a lógica unária e a lógica
binária, das quais nos tocará falar ao longo deste desenvolvimento. Mas, antes de tudo,
gostaríamos de trazer uma definição inicial que o autor nos sobre a coisa trinitária
que aqui se nos mostra:
Por trinitário, entendo uma definição da palavra, do Verbo, implicando
um conjunto de três termos, irredutível às relações habituais de dois termos
utilizados pela razão para abrir seus caminhos: sob qualquer luz que se examine,
num momento ou noutro, a palavra revela possuir a propriedade “três em um”,
ou propriedade trina. (Dufour, 2000. p.16)
Conforme o exposto, esse três em um acusa uma sucessão que se expressa na
palavra, que não é uma palavra isolada, porque três. Dufour realiza uma descoberta, da
qual se permite dizer, descoberta feita ao acaso, porque ela não advém como uma
conseqüência a uma elaboração que lhe trouxe tal resultado, mas trata-se do fruto de
uma constatação que já estava e ainda não havia sido colhida. Trata-se de revelar a
constituição do que ele designara por linguagem natural, aquela ao alcance de todo ser
falante e que eficazmente passa despercebida nas comunicações, embora condicione-se
a sua boa utilização o efeito de comunicação. Ela contém a forma do três, quando o
autor reconhece a maneira natural e espontânea em que ela se manifesta pela forma do
“eu, tu, ele”. Está aqui o Verbo implicado no três.
A trindade da língua natural (Dufour, 2000. p.19), como antecipamos, se
expande no quotidiano de todo ser falante e, por este motivo, substrato a outras
manifestações ou representações que implicam três em um e que insistem em se
atualizar enquanto criação humana. Além de encontrar nesta genealogia um aporte
teórico para as ciências humanas, acreditamos que procura também um chamado às
considerações éticas que os tempos atuais convocam. Destina-se assim porque se
identifica por este intermédio pelo trinitário que os homens se formam como sujeitos
falantes e formam sociedade (Dufour, op. cit, p.19). Concretamente é a capacidade de
simbolização que está em pauta. Esperamos também que o trabalho, que aqui
desenvolvemos, contribua dentro das suas limitações, com essa reflexão.
102
Define-se a temporalidade nisto, ainda que o tempo seja contado considerando
uma resolução, que como explicitamos, designa um tempo diferente ao da razão.
Sobre isto não deixa de ecoar o tempo lógico
58
que Lacan preza na compreensão do
sujeito na cena enunciativa.
A preocupação com o trinitário também não advém como uma simples
constatação da forma, mas com o desgaste da forma, principalmente na medida em que
uma outra forma se impõe, conforme a forma binária, àquela da razão. A razão que aqui
anunciamos se baliza na lógica que vem tomando espaço cada vez maior no afazer
humano e que se consolida principalmente com o nascimento das ciências que
trabalham na interface de dois tempos. Dois tempos auxiliados pela maneira de
ponderar alguns paradigmas que se impuseram para as ciências exatas, para as ciências
psicológicas do comportamento e que foram levadas às últimas conseqüências pelo
estruturalismo, que oferece suporte às ciências sociais e humanas. Tais expressões as
encontramos no dualismo, na dialética, na causalidade. Enfim, em tudo que se resolve
em dois tempos ou proporções. Dentro dos estudos da linguagem, podemos conferir que
a maioria dos estudiosos que trabalham no reflexo da epistemologia das ciências
concorda na influência da epistemologia galileana das ciências, porquanto seu prestigio
resulta das formalizações e literalizações dos conceitos
59
, notações em que o objeto é
posto em estudo com todas as resoluções binárias que permitem a aproximação da
descrição. Assim, nos deparamos com este modelo na lingüística quando vemos as
oposições língua/fala, no signo significante/significado e a oposição entre os signos que
organizam o sistema no princípio classificatório
60
.
Consequentemente, a binariedade oferece ferramentas definidoras para o método
estruturalista que permitiu às ciências humanas precisar seus objetos, falamos
notadamente da inauguração da lingüística, da nova antropologia de Lévi-Strauss e
outras áreas do saber apoiadas neste suporte
61
. Tal determinante termina por consolidar
a forma em todos os âmbitos do pensamento, e ocorre, por irônico que possa parecer,
58
Lacan trata no tempo do sujeito psíquico, esta temporalidade do tempo lógico expresso em três:
momento de ver, momento de entender e finalmente momento de compreender. Nesse último
efetivamente se integram os dois momentos iniciais em três.
59
Aqui trazemos especificamente as considerações de Simon Bouquet em Introdução à leitura de
Saussure.
60
Vemos nisso algo de uma redução considerando o que vimos no CLG, do imprevisível que introduz
novos elementos no sistema, aqui testemunhamos uma outra determinação.
61
Acontece por esta perspectiva uma reviravolta com relação ao objeto de estudo, pois lembrando
Saussure do Curso vimos que o objeto não mais se em uma referência externa, mas ele determina sua
natureza no sistema que o referência.
103
com justificativa teórica, a exclusão do sujeito com seus enigmas. Fica de fora a
expressão da incompletude que induz o homem a fortalecer sua procura no
conhecimento. Certamente existe, como pano de fundo desta abordagem, as
preocupações com o objeto. É a captação do objeto que se quer atingir e é através dele
que o sujeito se perde.
Dufour circunscreve o incremento da forma binária, quando do nascimento da
história do Ocidente e entende que ela figura, cada vez mais, como uma declaração na
interdição da forma trinitária. Desta constatação, o autor declara haver uma luta de
prestígio e enfatiza: a história do ocidente é a história da concorrência entre a ordem
do Dois e a ordem do Três (
Dufour, 2000.
p. 21). Radica nisto um mal estar específico
dos nossos tempos. Não podemos deixar de registrar que a padronização se faz sentir
em muitos âmbitos de coisas e, olhando para nosso assunto, vemos na imigração um
termômetro de tal situação, quando ocorre em massa
62
. Isto ganha realidade, porque as
pessoas não conseguem se “formatar” dentro das condições impostas por critérios de
aceitação em alguma instância e, de forma explicita, em critérios de mercado que
definem a qualificação do ser humano por duas categorias: se adapta ou não se adapta,
serve ou não serve para a função requerida. Acontece uma ditadura do utilitarismo. Sem
dúvida conseqüências do taylorismo e fordismo, que marcaram os fundamentos de
uma psicologia institucional, nascente na era industrial e que se ampara fortemente nas
teorias psicológicas comportamentais e adaptativas (behavioristas, pavlovianas, etc.)
Este fato manifesta a evidência de sintoma social, que se materializa confrontando
duas lógicas e que retorna sobre o próprio homem, no seu modo de vida e condição de
humanidade.
Avançando por estas apreciações, o autor, contudo, reconhece que é por meio
desta manifestação do binário que se infiltra o trinitário. Na extremidade de sua
representação é que se extrai o elemento trinitário. Assim, lança um olhar sobre o
aparecimento de um texto produzido por Deleuze em pleno apogeu do estruturalismo.
Tal texto estabelece critérios para reconhecer o estruturalismo, sendo que entre eles se
definem cinco critérios que tratam do binarismo e propõe na contigüidade, um sexto
critério que batiza de Casa Vazia, o qual em nada refere ao binário, senão se contempla
nele um elemento que se estabelece como irredutível ao sistema, presente em uma ou
62
As grandes migrações coincidem com a consolidação da revolução industrial. Início do séc XX.
104
mais séries (
Dufour, 2000,
p. 30)
63
. O elemento irredutível é perceptível quando se
mostra abruptamente por entre as redes, mas não deixa a explicação comparecer porque
ele não tem como ser captado pelo binário. Ele se implica por faltar a seu lugar.
A implicação entre os sistemas, em que este elemento transcende, é possível
através de uma visão diagonal, a qual nos convoca sobre o que vínhamos indagando
acima, a saber, a maneira em que o irrepresentável, o incomesurável da alíngua se faz
suportar pela língua. Adiante nos deteremos neste particular.
Aprofundando as conseqüências do sexto elemento no campo de conflito entre a
lógica trinitária e binária, Dufour resolve que no vazio da casa em verdade existe um
“cheio”, pois nele se aglutinam os enunciados que a binariedade, pelo seu imperativo de
legibilidade, expulsa. Olhar a casa cheia representa uma maneira de retornar sobre o
mistério. Nela, além dos enunciados trinitários, se apresentam o que se define por
enunciados unários, muitas vezes imperceptíveis, embora estejam eles nos próprios
axiomas que sustentam os operadores binários.
Chegamos, por esta via, a uma terceira posição no campo das lógicas: a lógica
unária. Esta última resolução gica consideramos importantíssima para nosso
desenvolvimento, pois trata-se de uma contribuição especial, na medida em que não
temos muitas referências a respeito dela e a consideramos fundamental para entender os
dispositivos de auto-referência, assim como, com este aporte, podemos constatar melhor
a ação das outras duas lógicas, binária e trinitária. Desta maneira, constatamos a
diferença que faz a presença do terceiro elemento, que efetivamente possibilita a
distinção e a organização no mundo das percepções.
Como dizemos, embora o unário sustente por seus axiomas os operadores da
lógica binária; a lógica do unário se contrapõe a este binário, principalmente porque
substitui a explicação pela implicação, sendo que, pela implicação se veicula uma
reversibilidade em si, o que o autor define como uma dobra sobre si.
Em mais uma precisão dos paradigmas lógicos, Dufour define: é unário o
predicado que retoma exatamente o sujeito da frase (Dufour. 2000, p.35), fazendo outra
distinção com o binário já que, neste, a frase se desenvolve na predicação. Tal efeito, o
autor explica em três exemplos significativos: 1) no enunciado bíblico, quando nas
escrituras surge na designação de Deus “Eu sou aquele que Sou” (sou....sou...); 2) na
teoria enunciativa, na designação do indicador Eu, “Eu quem diz eu” (eu....eu...); na
63
Trata-se de referencia dada em nota de rodapé, do qual não se desenvolve sobremaneira sobre tais
critérios e se atem ao desenvolvimento do sexto critério que o ajudará no prosseguimento de seu enfoque.
105
psicanálise, quando um significante representa um sujeito para outro significante
(significante.....significante)
Os termos, assim, internamente se dobram, provocando o que o autor denomina
de gageira, enunciados que se dobram dentro de sistemas teóricos que marcam limites
aos estilos de transmissão. Nestes limites, para além do que possa imperar enquanto
impossibilidade nestes quadros teóricos, repousa o fundamento de uma loucura
necessária, a loucura unária que faz com que irrompa pela fala a pura potência. Ali, no
lugar de eu quem diz eu, surge aquele que no índice não necessita de nada que
garantias para a sua existência; é na criação do dito que é possível ser, que é possível a
presença. Entendemos que é por arriscar na loucura que se toma também a linguagem
na sua materialidade, ela é por aceitabilidade fora de qualquer constatação ou prova. A
conseqüência da toda potência deste primeiro instante, no recorte unário da loucura, se
segue um segundo momento: no aparecimento da absoluta impotência. Este trajeto
permite apreciar a problemática que se instala, a partir da manifestação limite, em que a
potência e impotência se confrontam. Será no decurso deste limite, que se sustentarão as
lógicas binárias e trinitárias, tentando resoluções. É, também, contemplando este
enquadre que elas absorvem o princípio unário em seus axiomas.
Na arquitetura da tal enlace gico, reconhecemos o aporte que a psicanálise
lacaniana provê quanto à construção dos tópicos em questão. Lembremos que ela
trabalha na dimensão do três nos pilares
64
do seu entendimento sobre a dinâmica no
aparelho psíquico, que, como se sabe, se desenvolve, contemplando uma reflexão
depurada a respeito da relação do sujeito com uma verdade inconsciente que seu
sintoma dá testemunho. Este recorte quebra o princípio de binariedade porque, ao
conceber, assim, o psíquico, trata do sintoma
65
, enquanto constitucional ao sujeito e não
como algo estranho a ele, embora haja estranhamento no seu aparecimento. Com isso, a
dicotomia normal/anormal sai de cena, porque a adaptação não é mais o foco de
interesse. O três que permite a aproximação da verdade do sujeito precisa se localizar no
paradigma da triangulação edipiana e nas elaborações trazidas por Lacan sobre o Real,
Simbólico e Imaginário, matematizadas no famoso nó borromeano. Embora Dufour
traga os efeitos desta triangulação em meio a outras propostas de pensamento através
64
Essa expressão o próprio Dufour levanta quando aborda o laço individual, contudo o que aqui
queremos mostrar que essa dinâmica do Real, Simbólico e Imaginário perpassa todo o assunto proposto e
ajuda a precisar tais fundamentos lógicos.
65
Compreende-se nesse aporte o sintoma como algo que não é abordado com uma simples explicação, se
trata no método psicanalítico de assinala-lo ao sujeito para que ele mesmo trabalhe sua interpretações.
Então, o sintoma nesse contexto não requer explicação.
106
dos tempos, entendemos que a explicitação deste efeito, do três em um, do
borromeano fornecido pela leitura da psicanálise lacaniana, é imprescindível para
considerar o que esse autor propõe, uma vez que se tem o três porque os elementos
que dele participam estão enlaçados um ao outro e, sem este enlace, nâo se torna
possível nem o um, nem o dois, nem o três da relação. A inscrição do na capa no
livro do autor nos avisa disto. Por fim, pensar os trajetos da lógicas unária, binária e
trinitária permite eqüalizar, em proporção, as argolas unidas pelo nó, que unem a ordem
do real, do simbólico e do imaginário.
Acompanhemos, a seguir, como o três se propõe na enunciação.
3.2 A TRINDADE NATURAL DA LÍNGUA: RECOLOCAÇÃO DA
FORMA ENUNCIATIVA
dispondo da discussão prévia a respeito das lógicas em curso no dispositivo
enunciativo, nesta parte do nosso desenvolvimento avançamos com Dufour, trazendo
para nosso ponto de vista as três aberturas que são possíveis distinguir em cima do
dispositivo enunciativo, em que os pronomes eu, tu e ele estão dispostos. Sabemos que a
princípio é pela mão de Benveniste que eles são trazidos, o que permanece na base das
elaborações que veremos, entretanto aqui acrescentam-se os aportes feitos pelo autor
que acompanhamos. As duas aberturas às quais nos referimos dizem respeito à díade eu-
tu, e, em segunda instância, desenvolve-se a referência a ele e, finalmente, trata-se da
nomenclatura eu-tu/ele. Lembramos que eu-tu são relativos aos índices de pessoa e ele
está comprometido pelo indicador de não-pessoa. Observaremos aqui que a natureza
destas implicações e disjunções são importantes para retomar posteriormente operações
dentro do que aqui pretendemos como enunciação imigrante em sua nova razão.
Como vínhamos anunciando, a língua natural se engaja pelo funcionamento
dos pronomes enquanto sistema específico e, assim, quando um sujeito fala, ele diz
“eu” a um “tu”, a propósito d’ “ele” (Dufour, 2000. p. 69). Trata-se de uma seqüência
que permite a designação de lugares. Neste sentido, se segue a prescrição enunciativa
em que são introduzidos os indicadores de referência que se mobilizam, permitindo a
chegada ao discursivo. Porém Dufour reconsidera este formato, apresentando-o como
um dispositivo no interior da língua, que inscreve sempre em seus lugares os
alocutários ( Dufour, 2000 p. 69). Ou seja, não acontece a tomada da palavra, o ato de
107
fala, sem que tal dispositivo seja acionado. Finalmente, o autor conclui: configura-se
uma língua de acesso à língua. (Dufour, op. cit., p.69). No acesso à língua, está
implicado um acesso ao simbólico. Quando, assim, se circunscreve a verdade
benvenistiana, se levanta uma base para reconhecer os efeitos que são acarretados por
este funcionamento em alguns processos de significância no campo social. Na base da
experiência humana, situam-se algumas conexões preferenciais, as quais o autor debate.
3.2.1 Díade Eu-tu
No dispositivo anunciado pela díade eu-tu se manifestam os tipos de realidades
enunciativas contornadas pelos lugares subjetivos “eu-tu”, as consequências que se
depreendem disto não são poucas. Vejamos o que se realça levando em consideração o
funcionamento das lógicas.
Para iniciar, com a díade se realiza diretamente o gesto de apropriação da
palavra e, com isto, a direção para qual se dirige o dizer. É na direção a um outro que se
pondera a relação com a língua. “Eu” e “tu” põem em relação, por um lado, a
diferenciação, porque eu precisa de outro para pôr em curso sua imagem reconhecida e,
por outro lado,o encontro com o si mesmo, na medida em que eu retorna pelo outro.
Disso se trata quando da reversibilidade que Benveniste desenvolve revelando a
alternância necessária entre os índices. Advertimos que a comunicação é estabelecida
por esta organização dinâmica.
A díade “eu-tu”, ao contemplar a reversibilidade, trabalha sobre uma realidade
que se concretiza no fio do discurso. Assim, no fio de discurso, em que “eu-tu” operam,
estão juntos os índices de tempo e espaço que completam a referência para a
enunciação. Por estes aspectos também encontramos o fundamento de algumas
premissas que permitem entender a aceitabilidade que os sujeitos praticam com relação
ao uso da palavra. É sem atrito que, no ato enunciativo em que “eu” e “tu” alternam, e
este princípio se estabelece a partir do disposição para o ato de falar. Cria-se com isto, a
dimensão de temporalidade, que coloca os sujeitos no presente
66
. Contudo Dufour diz
que não são somente indicadores de tempo que são aceitos nesta díade, mas também
índices dêiticos e reflexivos de tempo, espaço e pessoa.
66
Lembramos que Benveniste observa que, na dimensão enunciativa existe tempo presente. Falar em
passado ou futuro se organiza a partir do momento em que o julgamento enunciativo é proferido, no
agora.
108
Conseqüentemente, quando a aceitação sem atrito, com base na alternância, é
estabelecida, o que ocorre é uma espécie de autenticação e de atualização de nossa
capacidade de simbolização ( Dufour, 2000. p. 74). A simbolização, assim, precisa de
uma afirmação constante a partir dos mecanismos da própria língua na qual estão
contidos os tesouros da cultura, então, as insígnias das quais os sujeitos são portadores
compelem a uma manifestação e ao reconhecimento. Quando tratamos da língua
materna, vimos que ela se instala no sujeito quando ele se “deixa” marcar por uma
inscrição
67
, tomamos também esta simbolização como a maneira pela qual o sujeito faz
reconhecer a sua inscrição na cultura. É falando para um outro do pacto na língua, que o
contrato com ela se renova.
Se o fio do discurso passa por esta corrente, em que o reconhecimento da
alteridade se manifesta, é verdade também que no mesmo trajeto se dispõem os
fundamentos da rivalidade constitucional no laço individual que, sem dúvida, tem sua
expressão no laço social. Tal mecanismo o autor reconhece, utilizando os argumentos
psicanalíticos que tratam da rivalidade, tematizada dentro dos processos de identificação
que formam o sujeito.
68
Conseqüentemente, se remete a este mecanismo a capacidade
de identificar-se, que nada mais é do que trabalhar na gangorra da co-presença.
Confere-se, por meio disto, que é pela disputa pela utilização do índice “eu” que
a querela ganha consistência. Uma questão se levanta sobre este funcionamento: o que
faz com que o desdobramento eu-tu não se caia na loucura unária?
Certamente “eu” se propõe como uma forma unária, o que conduziria a uma fala
caótica se não houvesse uma mediação. Como veremos mais adiante “ele” se revela um
mediador fundamental, contudo cabe ainda um outro sustento para a mediação, trata-se
do gozo que se instaura quando da utilização do índice “eu”. O termo gozo não é
gratuito, ele se localiza definindo a relação fantasmática
69
do sujeito com seu sintoma.
Acreditamos que existe neste dado, uma reflexão sobre o referente na língua, pois o
objeto está implicado nisso, na medida em que, quando se toma a palavra é de algo que
se fala e esse algo se rebusca nas retomadas do dizer
70
. Se o objeto se anuncia na díade
eu-tu, “tu” é chamado para dar sustentação a esta escolha, que, como se sabe, é uma
67
E aqui algumas tendências teóricas o chamam de assujeitamento.
68
Estão aqui também os fundamentos que tratam do estádio do espelho, trazido por Lacan no Seminário
II, em que se focalizam com maior precisão os mecanismos do imaginário.
69
O fantasma dentro da teoria psicanalítica refere a essa relação que vincula, num imperativo de gozo, o
sujeito ao seu objeto de desejo, portanto é um conceito complexo.
70
Lembramos aqui das retomadas do dizer em Jaqueline Authier e nas adequações que ali se buscan entre
varias instâncias que representam o objeto, as coincidência entre as palavras e as coisas....(ver)
109
escolha sempre revista e na qual o objeto se transmuta sucessivamente. Então, sempre o
objeto é e não é. É conforme esta realidade fugidia que se mantêm a força enunciativa e
a reivindicação para a utilização do índice eu. Não existe um sustentáculo maior para
esta atividade, é fugidia e por isso Dufour insiste em que se versa sobre um simulacro.
A força enunciativa está no simulacro e sem ele nada interviria. A loucura unária
está presente na força e, a força que o gozo do uso do índice “eu” realiza, indica uma
direção que não deixa o caótico se impor. Gozar de algo gera uma vida. A dívida de
que aqui falamos se paga falando, renovando o pacto. Entendemos que na alternância
“eu-tu” se dilui, num primeiro momento, a loucura unária. A primeira saída da loucura
unaria Dufour denomina de alteridade fraca, na medida em que se sustenta pela
primeira instância de alteridade entre os índices subjetivos.
Agora toca ver como “ele”, não-pessoa, está disposto pela dinâmica aqui
introduzida.
3.2.2 Ele: a não-pessoa na pessoa
Na decomposição das díades propostas pelos pronomes, se gera uma segunda
relação em que se ligam a díade “eu-tu” com “ele”. Particularmente, é ele” que está
em pauta. Dufour sintetiza: “eu” e “tu”, copresentes falam d’ “ele” (Dufour, 2000. p.
84)
Conseqüentemente, por esta disposição, “ele” se constitui no ausente, aquele que
está fora das relações de co-presença.
Se segue a prescrição enunciativa em que por meio de “ele” são introduzidos
indicadores que compõem o enunciado, pois em “ele” cabem muitas possibilidades, se
trate de sujeitos, objetos, situações, sentimentos, etc. Os indicadores que assim se
mobilizam permitem informar sobre a relação do locutor com o contexto enunciativo e
as motivações que ali se explanam. Assim, sentido lidamos com um ausente presente.
Entretanto é a função do ausente que Dufour prioriza. Por quê? Mais uma vez
estamos nos dos processos de simbolização e subjetivação que promovem um recorte de
mundo para o ser de fala. Já que, “ele” não participa desta presença, trazendo um
exterior, “ele” torna-se responsável por posicionar o marco que circunscreve as duas
entidades da presença “eu-tu”. Indubitavelmente, é por estar fora que “ele” é
“convidado” para o fato enunciativo e é dessa maneira que ele” introduz “eu-tu” no
campo social pelo qual cobram singularidade e existência. Estamos falando de uma
110
dupla via, que esse ausente pode providenciar, porque senão a loucura unária se
reproduziria ad infinitum, simplesmente tratando da afirmação dos co-enunciadores.
Por este motivo, quando este autor percebe que o dispositivo com o qual ele se
preocupa é um dispositivo no interior da língua, que inscreve sempre em seus lugares
os alocutários (Dufour, op. cit, p. 69), ele se preocupa também em localizar o modo
pelo qual “ele” participa dessa inscrição de “eu-tu”, e entende que o terceiro pronome,
embora, na determinação de não-pessoa, é fundamental para que os outros dois termos
se organizem na díade da co-presença.
Sem dúvida que a direção que toma este paradigma ajuda a perscrutar traços
significantes, aderidos a cada elemento destas relações (“eu-tu”, “ele”),
conseqüentemente pode-se ver o modo como estes elementos dispostos acarretam certas
disposições enunciativas e não outras. Dependendo da forma com os esses indicadores
ganham ênfase, a enunciação se instaura provocando conseqüências diferentes. É desta
maneira que, quando na díade “eu-tu”, encontramos a prevalência do unário e binário,
“ele” faz surgir um terceiro tempo, em que podemos encontrar o trinitário, que entra
modificando a significação dos fatos enunciativos. Embora esta proposta se assemelhe à
de Benveniste, dela difere, quando concebe trânsitos lógicos, que articulam o três em
um, por implicação. Vejamos: Benveniste preocupa-se, antes de qualquer coisa, em
definir as características e funções que cada elemento pronominal aporta para o
funcionamento do Aparelho Formal da Enunciação, conforme um modo de apropriação
que acesso à ngua. Para isto recorta a frase como unidade de análise. Aqui se
contemplam as condições do significar, no que se manifesta a ascensão de certa classe
de signos que ela (a enunciação) promove literalmente à existência (Benveniste, 1989.
p.86), ou seja, é a expressão da língua que interessa. Já Dufour expande esta unidade
quando expande o sistema de relações, pois assinala a maneira como a forma do três se
engaja nesta estrutura maior, que assinala o lugar do sujeito no campo social, pela
simbolização da relação do sujeito com o mundo, de acordo ao tempo trinitário e, para
isso conta com a língua. Através desta idéia, de certa maneira, se incumbe do tipo de
comunicação entre os sistemas semióticos do qual Benveniste falava em Semiologia da
língua, do qual tratamos no capítulo anterior. Aqui contemplam-se o modo de relação
entre os sistemas e de como o sujeito se torna agente neste trânsito, lidando com as
formas gicas que os determina. Sobre tais consideração Dufour autor reconhece que
não são todos os sujeitos que conseguem atingir o tempo terceiro, e as patologias falam
amplamente disso, quando observados os mecanismos de fala ou não-fala, trazidos
111
respectivamente pelas psicoses e autismo. Seguramente as significações certificam
mudanças, dependendo do pêndulo sobre o qual oscila o mistério.
Para tratar destas relações, o autor reconhece no aparelho benvenistiano uma
língua de acesso à ngua (Dufour, 2000. p.69), o que permite abrir caminho também
por outros sistemas porque neles também está implicado a estrutura do três, embora, em
ocasiões não seja fácil identificar devido à arte que o trinitário tem de se camuflar. É o
caso da narrativa que veremos adiante, igualmente se projeta no trinitário.
Diferenciando este novo contexto, no qual “ele” tem participação na articulação
da co-presença, o autor adianta que é graças ao ternário que se reciclam esses elementos
residuais e estabilizam as incertezas geradas (Dufour.2000.p.89)- pela primeira díade.
Certamente a reciclagem que “ele” promove depende de uma ação diferenciada,
quando não é relativo a uma referência de co-presença, mas sim a uma referência fora
dela. Facilitado por esta característica, no lugar em que “eu-tu” definem uma relação de
inclusão indicado pelo traço (-), o “eleestabelece uma relação de disjunção indicada
pela barra (/). É interessante que, quando a disjunção se concretiza, este operador
transforma-se em um fabuloso operador cinestésico e cada falante o utiliza do modo
mais banal possível. (Dufour. 2000. p.90).
Com esta característica, “ele” permite transitar por fora das condições impostas
na estrutura da co-presença, que se ampara no tempo plenamente intersubjetivo e que se
define pelo presente, o aqui e o agora. “Ele” permite criar a oportunidade de transitar
por fora, de tal maneira que, a partir disso, é possível falar dos fatos acontecidos ou
por acontecer, em lugares que não os estritamente situados no encontro entre duas
pessoas em diálogo. Ou seja, se abrem os vínculos e se vai para além das considerações
intersubjetivas. É pela qualidade de trazer o que não está presente que a comunicação se
enriquece. Do mesmo modo, os mesmos indicadores de subjetividade ganham projeção,
ampliando trajetos.
Aqui temos uma noção de mobilidade no trânsito com a língua e também, de
fato, o mecanismo de atualização se instaura em plenitude, pois é através do movimento
que aqui se consegue, que se pode tratar da existência das diversas versões e sentidos
que se podem apresentar. Digamos a loucura unária é absorvida e substituída por um
princípio de cultura.
Dufour identifica nisto não apenas um processo de expansão, também acrescenta
a ele o movimento de retorno que “ele” empreende. Nesta outra trajetória, acontece uma
fórmula de enquadramento necessária aos co-enunciadores. Exatamente no instante em
112
que se apreende e se nomeia o ausente, produzindo uma consistência com esta
nomeação, se faz com que o elemento, então identificado, possa ser expulso. Somente
com a expulsão é que a afirmação de “eu-tu” se concretiza para quem faz uso da fala.
Há, portanto, uma afirmação pela expulsão do terceiro. Ao afirmar a expulsão, a
afirmação recai, conseqüentemente, sobre o estado de presença dos co-enunciadores;
assim, resulta um tipo de autenticação dos lugares. A partir desta elaboração, o autor
postula para esta relação a denominação de alteridade forte. As conseqüências que se
deriva para o campo enunciativo são interessantíssimas, pois é permitido lidar com a
diferença e com o radical da diferença.
Para o sujeito imigrante em situação de enunciação, a autenticação pela expulsão
pode-se representar quando ele propõe uma desconsideração do lugar de origem, para
solicitar, no retorno deste excluído um título de cidadão “universal”. Um paradigma
disto é analisado quando Julia Kristeva trata do cosmopolitismo, que propõe no
contorno da abolição dos limites a desarticulação dos lugares. Daqui uma provocação.
Para exemplificar tal oscilação, em que “ele” retorna sobre o “eu”, tomaremos
uma entrevista recolhida em 2001
71
com um imigrante argentino no Brasil, em que ele
se empenha por descrever sua realidade quotidiana como imigrante. Vejamos:
[...] es muy confuso ver el idioma sin ver la cuestión de la
nacionalidad, sin ver la cuestión de la história personal, entonces lo que
yo siento siempre es una revisión constante, es como si estuviera
escribiendo todos los dias y a veces impulsionado por la idea de la
denuncia del estrangero, o sea, siempre voy a ser estrangero, no quiero
convencerme de eso... pero siempre alguien
72
me dice eso.
Parece que nesse sentimento de escrever diariamente, ele tenta retomar sua
condição de não ser do lugar, deixando, assim, em suspenso sua língua e sua historia
pessoal, dentro do discurso e, ao mesmo tempo, ele tenta apagar a identidade
estrangeira. um choque de sentidos. Observamos que o “ele” retorna aqui nessa
figura do alguém, indefinido, pode ser nenhum ou todos, que lhe lembra do seu ser
estrangeiro, na medida em que não história daqui que possa ser contada (a origem),
71
Esses dados recolhidos em entrevista, os coletamos em 2001 para o desenvolvimento da dissertação de
mestrado e hoje os relemos a luz dessas novas reflexões.
72
Ênfase nossa.
113
sua origem não encontra versão. Estamos falando de uma impossibilidade da posição de
sujeito na enunciação, assim, acusa, não estou como sujeito, estou como estrangeiro.
Esse estrangeiro toma um sentido de limite entre o sujeito e o não-sujeito. Esse alguém
que retorna, falando da diferença, no mesmo instante, o expulsa do lugar. É como se o
“eu” se invertesse a intervalos com o “ele”. “Euse destitui da co-presença e se faz
ventríloquo do “ele”.
Por fim, Dufour faz uma última consideração ao modo como “ele” intervém na
díade “eu-tu”. Quando as partes eu-tu se apresentam juntas, existe, nesta união a
experiência do amor, sentimento que ultrapassa a vivência da distinção. Sendo, assim, é
o prazer que se anuncia, o prazer de estar junto. Com isto, a fusão é o matiz que toma
conta do vínculo. Porém este estado se torna possível, mais uma vez, quando um
terceiro termo intervém, pois pela ausência se afirmam as outras partes (eu-tu) quando
as partes se reúnem para falar d’ “ele”, num horizonte em que é possível se unir. Desta
maneira, “ele” advém como aquele que permite a união. A união retrata uma maneira de
perder-se de si e, com isto procede a uma despersonalização ou um “desvanecimento”
do “eu”. Trata-se de um limite em que os operadores intersubjetivos perdem o uso de
suas funções. aqui a aposta no gozo, na dilatação da consistência, na quase
inconsistência. Dufour descreve tal processo da seguinte maneira:
Gozando, renunciando à forma “eu” agregando-me por um
tempo dado ao Outro, à ausência, ao “ele”, a todos os sujeitos eu
compreendo isso ao qual “eu” está prometido....através dessa pequena
morte, antecipo a outra morte, a grande, que é minha única certeza e
cuja experiência jamais poderei fazer. (Dufour, 2000. p. 95)
Vemos que “ele” promove um horizonte da experiência, ocupando, varias
versões do diferente, até a expressão do fim último, na morte. Como o autor refere, há,
no ensaio desta pequena morte, um preparo para a grande morte. Neste intervalo
encontramos as modalidades deste ensaio, que está sempre se renovando. O ensaio da
fala, o mais simples de todos, já traz consigo a experiência da pequena morte no
momento em que paramos de falar para que outro assuma a palavra. Entre os outros
muitos ensaios, se anuncia o relato, que passa pelos processos da narrativa, que para
nós se mostrará importante, que neste trajeto tentaremos captar as representações da
114
nova voz enunciativa que o imigrante organiza no “outro lugar”. Narra-se para um outro
e também com o intuito de que o próprio relato se mantenha no campo da herança
social, no Outro. Nesta medida, quando se termina de falar, ao finalizar o relato, ele
deixa de pertencer aquém relata, deixando a outro a tarefa da transmissão, assim,
vivencia-se um tipo de morte menor, quando essa palavra é entregue a outro, que
assume a tarefa de levá-la adiante. Com certeza nisso está implicado o Outro, aquele
que exige um pagamento para ofertar o pertencimento à cultura.
Quando morte herança e quando herança também dívidas para com
aquele que passou ou transmitiu algo. A herança é simbólica, é aquilo que determina
lugares dentro do sistema de trocas sociais.
O traço que vincula ele” com a morte não é original, isto foi tratado em
diversas abordagens teóricas, como o próprio autor reconhece, entretanto o que se realça
é, mais uma vez, a maneira como os preceitos, articulados no trinitário, pelos diversos
contextos.
Para concluir esta parte, gostaríamos fazer uma pausa, olhando para o que pode
concernir ao imigrante. Podemos entender aqui que o imigrante, quando faz contato
com a outra língua e cultura, se depara com mecanismos de ampliação e de expulsão do
“ele” de maneira singular, que têm conseqüências nos parâmetros de conjuntura, nas
categorias de pessoa e não-pessoa.
No índice “ele”, o imigrante encontra de saída o ausente personificado,
principalmente porque nele reconhece o que não está mais junto ao sujeito; que são a
sua língua e a forma de relacionar os elementos do campo social, além de algumas
experiência do campo sensorial que unem o corpo à experiência, tais como a
alimentação. Por outro lado, o “ele” da cultura na qual o imigrante se insere não está
integrado totalmente à experiência, digamos que está ainda sendo adivinhado. O valor
da função do “ele”, que intervém nos processos de significação e que situam o tipo de
morte, está em aberto. Porque, se é certo que em todos os lugares se morre igual, os
rituais que confrontam a vida com a morte são diferentes. Existem vários modos de
morrer.
Para o imigrante a cinestesia redobra-se porque, por um lado, nos operadores eu-
tu, quando o imigrante toma a palavra, ele está numa dessimetria, pois o “tu”
instaurado está na disposição de quem tem as ferramentas da interpretação,
considerando-se que “tu” tem a dimensão e o sentido de valor na língua, o que para o
sujeito imigrante fica, em muitos aspectos intraduzível porque ele é inquirido pelo
115
sistema de valores integrados em língua materna. Daqui a conversão para o sistema de
valores está diretamente ligada à presença do “tu”. “Tu” que me traduz e indica o valor
das coisas. A interdependência, por isto, fica truncada. Assim, ao mesmo tempo em que
“tu” é convidado para essa tradução, ele é repelido por não ter como compactuar com
este operador, pelos dispositivos focados em sua língua de origem. Por isto, também
“tu” é meio cego, ele não devolve o índice de maneira íntegra, ele reflete uma falta no
“eu”. Quando o imigrante toma o índice “eu” na enunciação, então ele entra como um
índice deficitário, ele não dá totalmente conta de seu “eu”. Aqui, não podemos esquecer,
que quando Benveniste trata do universal dos pronomes nas diversas línguas, ele diz que
muitas vezes estes operadores não se dão exatamente por tais unidades, conhecidas em
línguas de origem latinas, senão que estão presentes através de outros recursos da
língua. Mesmo que os operadores ofereçam o mesmo recurso, este recurso tem uma
expressão para esse tipo de vínculo idiomático e, quando ele precisa ser transferido,
necessariamente será afetado por permutações, a forma e o sentido determinam modos,
mesmo que eles sejam operadores nas mesmas funções para toda língua.
O mecanismo enunciativo em ngua materna sofre sensivelmente na mudança
de língua porque o sistema como um todo é afetado no seu equilíbrio.
Até aqui tratamos de “ele” que se expressa representado no discurso. Embora
excluído, ele está, como vimos, incluído de variadas maneiras na díade “eu-tu”,
costurando possibilidades do Simbólico. Contudo Dufour abre mais uma direção, e nos
apresenta o “ele” que é barrado, “ele”
73
; em uma última díade “ele- ele”. Esta díade põe
em curso o último limite dentre os mecanismos de simbolização e, conseqüentemente,
dos processos enunciativos. Acompanhemos.
3.2.3 Duas noções do “ele” na passagem do discurso à escrita
Como se anunciou no desenvolvimento anterior, o ele essencialmente se faz
representante do ausente que de muitas maneiras, é introduzido pela relação da co-
presença. A sua operacionalidade é indispensável para formular a dimensão simbólica,
que inscreve sujeitos na malha social. Por este mesmo motivo e à custa de todos estes
movimentos que o tornam assimilável, ele carrega o peso de definir limites ou talvez de
fechar ciclos, pois, como vimos - e como será melhor abordado adiante, quando
trataremos da narrativa- é nele que se faz e refaz a dimensão da morte. O leque do
73
Trata aqui do ele barrado que daqui em diante figuraremos por “ele”.
116
trinitário se revela neste limite. Entretanto Dufour nos lança mais um enigma quando
sugere que, para além desse limite, nos deparamos com um último indexador atribuído
ao “ele”, em que a representação não procede mais, e é ali que se apresenta um “ele” da
ausência radical (Dufour. 2000, p. 110).
O “ele” da ausência radical aparece como um último recurso, nos tempos atuais,
tentando corrigir o erro unário desencadeado pelo “eu”. A “correção” se determina num
para além do limite exposto pelo “ele”, representante da ausência representada.
Promovem-se, assim, dois limites: um interno extremo, deste desencadeamento, e um
outro limite externo, também extremo.
Posto desta forma, o externo extremo efetivamente foge à estrutura trinitária, e o
autor que aqui acompanhamos sentencia: isso se recria num fora do campo. É um
silêncio sem recurso. Uma opção última. Torna-se opção quando cobre a necessidade do
nada; um nada que está na língua e que em si designa um limite da representação,
principalmente porque, quando aparece, mais do que um dizer, o nada se mostra.
De alguma maneira isso nomeia o não-representável (Dufour, 2000, p. 112),
então, se infiltra como um simulacro que se expressa em uma contradição, pois ele”
porta em si uma negação que não pode assumir totalmente (Dufour, op.cit., p. 112). É a
partir desta construção que o autor uma contribuição significativa, constatando que
nesta passagem entre o ausente representado e o ausente irrepresentado (impregnado no
simulacro), “ele” pode ser mostrado e barrado, ou seja, uma figuração da ausência.
Esta operação se escreve “ele .” Na oralidade, a expressão disto é quase imperceptível:
no entanto, na escrita, pode ser calcado. Intuímos um exemplo da barra na fala, quando
identificamos nas retomadas do dizer a tentativa de reconstituir o sentido, destituindo
um sentido anterior, contudo, não traz a mesma consistência como na escrita, em que a
barra se expressa pelo risco executado encima da letra, simplesmente aparece impresso,
se mostra destituindo o sentido que antes apareceu.
A partir de tal distinção, Dufour outorga à última ade, ele/ele”, a passagem
entre as duas formas de simbolização de nossa cultura humana, a dizer, a fala e a escrita.
Essa chave de conversão nos interessa sobremaneira, pois, como nhamos
discutindo, é do dizer que se apresenta em narrativa
74
, daquilo que vai do oral ao escrito,
que podemos observar os diversos níveis com que o sujeito se entrelaça com a língua
atribuindo-se estilos de estar na língua, estilos de produzir enunciação e, relativamente
74
Narrativa, que adiante veremos, na função de transmitir para o outro.
117
ao imigrante, estilos de se apropriar de valores diferenciados de língua. Certamente,
aproveitando o aporte psicanalítico, podemos assumir que há diversas maneiras de
produzir sintoma na língua. Aqui cabe a questão: mudança de sintoma quando
mudança de língua?
Voltando à narrativa, vemos que ela joga um papel fundamental quando
tentamos identificar, então, o modo de o sujeito estar na língua e como se regula nisto o
laço social, fundamento da simbolização, porque trino e misterioso pela continuidade de
sua existência, driblando as fórmulas do binário da razão.
Entretanto vemos que a tomada da palavra na escrita, sugere, pela elaboração
acima descrita, uma adesão do sujeito à proposta radical, que, ao definir um não
representado, faz com que ele se projete junto à sombra entre as palavras expostas, que
as provoca, as amarra, as trunca, etc. Desta maneira, quando o sujeito imigrante se
expressa em narrativa, que é apresentada neste outro lugar de enunciação, em outra
língua, ele convoca aquele não-dito, sempre atual no sentimento do imigrante
75
, que o
induz e joga nas mais diversas brincadeiras e ciladas da palavra. Isto não é
propriamente dito, mas é mostrado, e o outro lê esta situação quando dos tropeços entre
as significações, entoações diferentes e outras manifestações.
Por esta chave de conversão, também podemos olhar para o imigrante, no
paradigma de uma nova inscrição enunciativa, na medida em que o novo quando o
ritual da morte ali se realiza, dando alcance ao que vem depois da morte, um novo
pacto, um nascimento. E, como conseqüência, vemos que a ordem do símbolo
76
se
altera, produzindo e provocando uma proposição distinta à anterior.
O nada está no intervalo da morte, que define o fim e o início de algo, pois,
precisamente nada se justifica. Também nenhuma lógica explica o nascimento, ele
acontece. A lógica unária irrompe deste irreal, com toda potência, para levantar a
possibilidade de sujeito. A narrativa ali socorre entre as malhas dos ditos, com uma
organização para o outro, aquele que procura sentido., aquele que devolve um “eu” na
encenação da co-presença, que novamente se integra para falar d’ele, do Outro que
determina lugares de trocas.
Atingindo o ponto em que o trinitário se recicla na língua natural, passaremos à
próxima elaboração, tratando de definir o conceito de narrativa que nos interessa
75
Entendemos com isso o estranhamento de não ser plenamente do lugar em que se enuncia na outra
língua.
76
Sejam eles da ordem da língua ou de outra índole.
118
estabelecer, integrando a ela a dimensão enunciativa e os pressupostos lógicos
implicados na significância.
3.3 A CONSTRUÇÃO NARRATIVA E O PRINCÍPIO TRINITÁRIO
A narrativa da qual tratamos está prenhe do mistério no trinitário e observa o
movimento das lógicas unária e binária, das quais vimos os tipos de funcionamento e a
maneira como elas desembocam nos recursos do trinitário e, em última instância, é daí
que encontram sua verdadeira condição de ser. Claro está que somos levados a
considerar os paradoxos que ali se depositam, todavia, se não forem considerados tais
paradoxos, é porque a natureza do humano, transposta para os relatos, se extraviou.
A narrativa acontece e se produz dentro de um grupo social humano. Ela é
considerada um dos pilares, senão o pilar, da cultura porque permite transmissões de
histórias, pensamentos, ensinamentos, lugares, etc. As transmissões, tomadas na
particular tarefa de movimentar, de girar o mundo, exigem certos modos de acontecer.
A narrativa pode ser apreendida tanto pela oralidade quanto pela escrita e em
ambos os casos, o que ocorre é a construção de um texto
77
que vai sendo passado, ao
mesmo tempo em que, no passar, se o reelabora. Na reelaboração necessária ao relato,
se apreciam, como dizemos, as qualidades da oralidade e da escrita, no que elas, em
suas particularidades, têm de circunscrever, aparando as arestas que vão ficando,
produto do erro unário. Através deste movimento, também se trabalha nos
desdobramentos necessários para tentar sair do enquadramento binário. A narrativa
mostra seu mecanismo pelo princípio trinitário.
Além de repousar nosso olhar sobre esse efeito, tentaremos discutir, a partir das
contribuições de Dufour, a chave de conversão entre o oral e o escrito.
Dufour, quando vem balizar a narrativa, acolhe fundamentos tratados em um
livro elaborado anterior a este que utilizamos aqui
78
, onde afirma que a narrativa
comporta um dos “extremos” da língua (Dufour. 2000. p.139); e, no outro extremo se
posiciona o “eu”. Localiza os dois modos da gagueira que prendem estes extremos, um
na teoria benvenistiana, quando se expressa: “eu”sendo quem diz “eu”, e, o outro na
narrativa, e escolhe a definição tratada por Lévi-Strauss em que o relato “se constitui a
77
Pensamos o texto principalmente na dimensão enunciativa como um ato individual de atualização na
língua, que toma um contexto mais amplo, mas que não deixa de envolver a procura da significância no
grupo humano. Cremos que é essa a disposição do autor que aqui nos acompanha.
78
Trata-se do seu livro intitulado A Gageira dos Mestres.
119
si mesmo como contexto”. Deste modo entende que o “eu” nesse aspecto se redobra
sobre si mesmo e o relato se desdobra sem cessar sobre si mesmo (Dufour. 2000,
p.139). Ao acompanhar o efeito gagueira o autor deriva uma crítica fundamental, a qual
lhe permite dar andamento à ótica que escolhe para tratar da narrativa e da qual aqui nos
apropriamos, pois condiz com nossa preocupação.
Quando observa o limite deste desdobramento, Dufour estabelece uma mudança
de prisma, opondo-se ao estruturalismo que Lévi-Strauss propõe, principalmente porque
o olhar sobre a estrutura do mito, que o faz limitar-se a si mesmo, deixa de lado o
fundamento essencial para que ele exista e que é o dispositivo de transmissão do relato.
O autor se questiona: omissão estranha ou cilada do binarismo? Saber da resposta talvez
não resolva muita coisa, mas a questão é que o resultado para Dufour se precipita a
partir do descaso com a transmissão e anuncia a tentativa de reatar com o mistério que
nos joga na linguagem.
Quando a capacidade da transmissão passa a primeiro plano, é possível resolver
a maneira pela qual o sujeito se posiciona no ato de sustentar o relato e na capacidade de
viabilizar o campo das resoluções simbólicas. Esta postura, que aqui está contingente
aos campos lógicos que recortam o humano, posteriormente, Dufour a tomará com
maior ênfase em seu livro: A arte de reduzir cabeças (2005), quando entra em jogo a
capacidade de produzir um Outro para a cultura, ainda que isto se organize pela ficção
ou essencialmente pela ficção. Nesta leitura, reconsidera-se a produção ficcional
enquanto ato dentro de uma postura ética quando na contemporaneidade, os dispositivos
se inclinam a processos de desimbolização, desencadeando uma nova forma de
subjetividade. Não daremos seguimento a esse ponto, somente o apresentamos para ter a
dimensão do extremo que a narrativa pode alcançar.
Dando continuidade à reflexão sobre a transmissão do relato, vemos que nele se
deposita um imperativo que perpassa todo seu processo. Trata-se, como vimos, do texto
que tem de ser passado de um para outro, incessantemente. Embora aqui se observe um
mecanismo que se responsabiliza por manter um princípio de realidade e, portanto, de
materialidade desse fato entre homens, isso não se cria por um simples mecanicismo,
pois depende de gestos significativos que produzam significância
79
, na medida em que,
a cada vez que alguém oferece uma narrativa para um outro ouvir, nela deixa sua
interpretação. Ou seja, ela é acrescida com novos elementos a cada vez. Estes
79
Estamos acentuando o modo de conceber significância por Benveniste em Semiologia da Língua
(Benveniste, Problemas de Lingüística Geral II)
120
acréscimos vão compondo um texto que assume formas dentro de um patrimônio
cultural, que se manifesta para um Outro. O texto narrativo, desta forma, é um corpo
sempre em construção, que se articula entre fendas interpretativas e se assume por
falhas ou faltas, solicitando acréscimos. “Eu” e “tu” se implicam no texto, visando o
preenchimento na tentativa de apreender o relato em sua totalidade, dessa maneira
tentando dar consistência a “ele”. Por ventura, este terceiro nunca se completa, e o fluxo
da palavra empenhada na falta, prossegue.
O dispositivo da transmissão do relato, é definido pelo autor, então, como uma
forma de:
[...] interpelação dos sujeitos respondendo à intimação
[sommation] do Outro: o relato é a soma [somme] de duas versões e,
como totalidade “descompletada”, ele intima [somme] o sujeito
interpelado a produzir a última versão. (Dufour. 2000, p. 140)
Vemos que o sujeito é interpelado enquanto autor, do que lhe cabe, no relato.
Assim, quando da narrativa, somos levados a conferir a dinâmica interposta entre os
mecanismos da enunciação e os mecanismos da transmissão. O três emerge em um
paralelo novamente simples e complexo. Simples, na medida em que se trata mais do
que de um descobrimento, de uma constatação. Complexo, porque a matriz do trinitário
se movimenta povoando sentidos variados, conforme as relações que disso se destaque.
Na enunciação, temos um eu, tu, aqui, agora que define uma seqüência mínima ternária.
na narrativa, o ternário se expande e se conta à maneira de três gerações. A
implicação de tempo, espaço e sujeito, se resolvem por uma interdependência e
intervalos maiores entre os agentes e as condições enunciativas.
Para entender a resolução de tempo, espaço e sujeito na narrativa, se apela,
então, para chamada pragmática do relato. A expressão deriva dos aportes que Dufour
recolhe em J.- F. Lyotard, que analisa o processo pragmático de transmissão do relato, o
que, em definitivo, Dufour trata como triângulo pragmático (Dufour. 2000, p.141).
O movimento que se imprime através desse triangulo pragmático tem como alma
o chamado saber narrativo, que diz respeito à capacidade de narrar. Esta capacidade
tem as cores da vida quotidiana, no que ela expressa um saber-fazer, saber-dizer, saber-
viver, saber-escutar (Dufour. Op. cit., p.141) e de tudo que exprime uma competência
que excede à determinação e à aplicação do simples critério de verdade. (Dufour. 2000,
p.142). Ou seja, aqui se indica especificamente aquilo que excede à filosofia e às
121
ciências, nas quais prima o critério de verdade. Compreende-se em definitivo que a
binariedade se deixa de fora na competência narrativa.
No trinitário do processo narrativo, se desdobram instruções pragmáticas
(Dufour. 2000, p. 143) que dão curso às atualizações do relato. Identificam-se, neste
esquema, três tempos necessários para o desenrolar do processo, sendo eles: um tempo
presente, um tempo anterior e um tempo posterior. Embora, eles estejam divididos
compreende-se que também se definem interligados. A esses tempos, o autor em pauta,
atrela o constituído conforme a seguinte seqüência: narrado/narratário/narrador (
Dufour, 2000, p. 144) .
Sem muita dificuldade, se tecem algumas relações que terminam por definir tais
vínculos junto à seqüência dos pronomes eu,tu/ele ou princípio da língua natural. O
autor reconhece no tempo atual um “eu” que conta, conforme o tempo do narratário.
Lembrando que “ele” recebeu do que era “eu”, na atual condição de “tu”, a informação.
Na contigüidade quando “eu” conta a “tu”, se institui o narrador, em que o relato
termina por ser transmitido e onde acontece o ponto de reversibilidade entre os índices
“eu” e “tu”. Então, “eu” passa a ser “tu” e “tu” passa a ser “eu”. Finalmente o narrado
se assimila ao terceiro momento em que o relato se fixa no campo de “ele”. Assim, o
contado sobre “ele” se integra no relato, que, pela natureza das construções humanas na
língua, demanda completude, mas, pela mesma natureza humana também nunca
acontece de tal maneira, cedo ou tarde se acusam falhas que não permitem a completude
demandada, e, assim, o triângulo pragmático inicia mais um ciclo. No novo ciclo, novos
elementos serão agregados ao relato.
Conforme tal funcionamento, o autor utiliza mais uma vez o modelo de Lyotard
para mostrar estes três momentos, configurando-os de acordo com três alocuções
realizadas: A1, A2 e A3; assim, se conta em A2 a locução atual, em A1 a locução
anterior e em A3 a locução posterior. Conclui-se disto que:
A unidade de medida, na pragmática narrativa, é pois,
constituída de uma seqüência de três alocuções. Também aqui Um é
igual a Três. ( Dufour. 2000, p. 147)
Referido isto, se destaca que a compreensão de história, contemplando o
esquema trinitário, pode ser assumida conforme dois tipos de valores, que o autor toma
como inversos. Por um lado, se tem o valor restrito ao tempo da alocução, que é de curta
122
duração ou melhor, sua validade se expressa pelo tempo em que se enuncia, para, em
um segundo momento, conferir outros valores em uma próxima alocução. Por outro
lado, a história, ao compreender três alocuções, pode ser assumida admitindo uma
temporalidade maior, aqui explicitamente referida a três gerações. Em cada um destes
modos, ao ser considerada uma relação de tempo diferente, também se observam
algumas diferenças quando se relaciona o terceiro termo “ele”. Quando vimos a relação
do terceiro termo na língua natural, já observamos algumas conseqüências daquele
representante da ausência que reposiciona ‘eu’ e “tu” na enunciação. Entretanto, na
narrativa, é acentuada a especulação relativa ao Outro, da cultura, que se proclama
analogamente a este “ele”da enunciação.
3.3.1 A narrativa no entrecruzamento com a língua natural
Concordando com esse primeiro desenvolvimento, acrescentamos mais ponto
sobre a narrativa, para destacar o entrecruzamento do funcionamento enunciativo,
eu,tu/ele com o triângulo pragmático narrado/narratário/narrador. Entendemos,
acompanhando o autor, que os dois modos de realização na linguagem, se relacionam
como operadores de espaço e tempo. Conseqüentemente, sem deixar de reconhecer o
tempero saussuriano, se constata que à primeira disposição trinitária se atribui a
dimensão sincrônica e à segunda disposição ternária se atribui a dimensão diacrônica.
A regulação que disso resulta permite o funcionamento de uma estrutura fundamental
da simbolização. (Dufour, 2000. p. 146). Torna-se este o modelo para diversos sistemas
de simbolização.
Entendemos que o funcionamento deste paradigma, permite que um imigrante se
sinta amparado porque, mesmo vindo de um outro lugar, pode reconhecer este
funcionamento como universal e, assim, se dispôr a apostar em uma maneira de
simbolizar sua posição perante o novo circuito do narrar.
Expressamos tal dinâmica da seguinte maneira: assim como o ato de apropriação
do discursivo se precipita no ato de enunciar, e o indivíduo introduz para tal efeito
índices de referência, instituídos em eu-tu/ele, aqui e agora, na construção narrativa,
dimensiona-se um ato enunciativo complexo, na medida em que, quando um relato é
construído juntamente ao seu efeito de significância, isto situa um sujeito portador de
um texto, de tal maneira que no contexto deste gesto de enunciação, se constitui este
portador como ponto ou índice de referência na esfera do laço social. O sujeito que se
123
introduz por meio do índice “eu” no presente do relato situa também aquele que veio
antes e o que virá depois. Ou seja, o pacto com o simbólico, enquanto espaço das trocas
sociais e de valores que disto se gera, é atualizado no ternário.
Contando com esta sistemática, reconhecemos que a implicação que resulta
disto, por um lado, permite que o relato pelo seu funcionamento, conte com o sujeito,
com a criação que ele fará, diversificando, induzindo a heterogeneidade necessária às
diversas maneiras que são possíveis na atualização do relato. E, por outro lado, o
estatuto do sujeito será formulado de acordo com as formas com que o sujeito é
convocado no narrar. Isto expressa algumas exigências do texto ou determinações do
texto. A inscrição do sujeito pode ser abordada segundo estas duas ações,
contextualizando as maneiras de contar a história e organizando a relevância de algumas
coisas e não de outras.
O modo de construir referência, na instância do laço social, é relativa
efetivamente a um saber narrar e aos domínios que o sujeito se permite ler, conforme o
andar do relato.
3.3.2 Sobre algumas considerações da narrativa no imigrante
Segundo o que se explanou sobre a natureza da narrativa, gostaríamos de tecer
algumas considerações sobre o engajamento do sujeito imigrante no processo narrativo.
Iniciaremos com uma questão: observando a dinâmica de transmissão do relato,
como essa dinâmica se dinamiza no relato do imigrante?
Primeiro entendemos que, para que haja narrativa, não se fugirá ao procedimento
que situa os três tempos. Contudo cabe resguardar que, no desenvolvimento “natural” da
narrativa, teoricamente tudo se passa na inscrição de um sistema de valor na língua, o
que faz com que para o imigrante o processo natural da narrativa tenha de ser
reorganizado devido à mudança no sistema de valores na língua. Desta maneira,
tomamos como hipótese inicial o seguinte: Pela mudança de sistema lingüístico e pela
mudança de vínculo com a cultura
80
, o sujeito cria neste outro contexto, certas
alterações no ciclo narrativo que derivam em alterações no modo de significar o
narrado.
80
O estatuto do sujeito modifica-se quando esta solicitante, porque estrangeiro no outro país. Isso é dado
nitidamente pelo estatuto jurídico em que os sujeitos são diferenciados. Todos os paises são regidos por
leis específicas para estrangeiros.
124
Em primeiro lugar, uma necessidade de falar da experiência de mudança de
registro lingüístico-cultural, para poder retomar a coerência do sujeito frente ao texto
narrado. Acreditamos, também, que a possibilidade de resolver esta coerência para o
ciclo, permite a afirmação do processo enunciativo. Uma segunda hipótese: digamos
que é graças a esta resolução pela via narrativa que é possível retomar o bom
funcionamento do aparelho formal da enunciação. Exatamente no instante em que um
texto é criado, dando conta do ponto de referência para o sujeito, é que o sujeito acha a
via de ingresso à sua fala nesse outro lugar. Assim, o imigrante se permite estar na outra
língua, com o equilíbrio pertinente, entre os elementos da seqüência enunciativa (eu-
tu/ele), reconhecida pelo outro sistema lingüístico. Isto permite estipular o lugar a partir
do qual se fala, e da mesma maneira, pelo contexto realizado, se estabelece o co-
referente nessa tarefa.
Restituir o funcionamento enunciativo no outro lugar passa, então, por restituir o
processo narrativo. Estamos na nova inscrição enunciativa. Desdobra-se como o tempo
lógico lacaniano que imprime na seqüência: instante de ver, um tempo de compreender
e momento de concluir. No último momento, o de concluir, é que se integram os outros
tempos em sua plenitude. Similarmente, quando a capacidade de narrar se precipita para
o sujeito imigrante, é o momento em que ele integra seu lugar no lugar. Quando a
narrativa aparece organizada, ela é algo elaborado intimamente pelo sujeito como
uma verdade interna a sua forma de estar no outro vínculo, na outra língua. Ela é uma
verdade válida para a experiência, em nada parecido aos moldes da verdade científica.
Atendo-nos, por uma outra perspectiva, à seqüência propriamente dita do
triângulo pragmático, temos de considerar que entre o tempo do narratário e o narrador
acontece uma quebra na estrutura do ciclo iniciado no lugar de origem. A história em
questão não tem as mesmas condições para ser transmitida. Desta forma “eu” me
incumbo de um relato no meu lugar de origem que diz respeito ao laço social que ali se
circunscreve, digamos, aos tipos de mitos que nele circulam. Quando ocorre o evento
migratório, esta incumbência perde algo de sua eficácia de significação, então o saber
narrativo pode ficar atrelado a outros fatores. Percebemos que o que se perde tem de ser
“traduzido” para este outro lugar. Vemos que nisto se é impelido a acrescentar a
experiência imigrante, que remete à narrativa imigrante da qual acima nos referimos,
comportando ela o elo que incumbe a coerência do que se quer transmitido. Em tal
passagem, “tu” é reconsiderado na cadeia de transmissão. Também a alteridade de
“ele”, ao qual vai se juntar a última versão, também é recomposta. Certamente que é por
125
este motivo que as comunidades de imigrantes se reúnem para contar a façanha da
imigração. Hoje se tem no Brasil várias entidades que organizam estas narrativas
81
.
Atemos-nos, assim, ao tempo da narrativa que se estende entre gerações.
A imigração antecipa uma forma de morrer, porque deixar de ser o que se foi em
língua materna, tira algo de interno em cada um. A representação da ausência na
pequena morte no eixo sincrônico e da grande morte no eixo diacrônico chama para
uma consideração a respeito de “ele” do limite externo, aquele que está quase na
absoluta irrepresentabilidade. Por isto a conversão para a palavra escrita se faz
necessária para o imigrante, pois ali está registrada, de alguma maneira, a experiência
do irreal. Como vimos acima, é no registro da escrita que se pode mostrar e barrar. O
abjeto se manifesta, o abjeto do que sobra da experiência do que fica indizível pois, ele
não é dirigido propriamente a ninguém, permanece intraduzido.
Aludindo à morte que no gesto de imigração se representa, integraremos sobre
este aspecto mais uma contribuição teórica de Dufour, quando ele trata do laço social
reatado no sacrifício ou na expressão do sacrifício.
Lembramos que é na representação da ausência do terceiro que “eu” e “tu” se
instalam. E, como acompanhamos até aqui, a morte está derivada nesta ausência.
Dufour entende que é no sacrifício que se encaminha a representação da morte no laço
social. Esclarecendo esta concepção, o autor nos diz:
Fundamento da simbolicidade e do laço social: para que dois estejam
juntos, é preciso que um terceiro tenha tomado a morte para si. Por bem ou por
mal, realmente, imaginariamente ou simbolicamente. O sacrifício é a origem de
todo laço social e de toda representação.
O “ele” mais simples, o “ele” quotidianamente utilizado, é o traço, o
traço sublimado do sacrifício, o significante da morte na vida. (Dufour. 2000, p.
156)
Tendo por encargo o fundamento de atar o laço social, o sacrifício resulta uma
operação indispensável para pensar os modos de subjetividades propostas nas
sociedades porque nele se resolvem também os diversos modos de sacrifícios e
81
Vemos que os imigrantes mais antigos como alemães e italianos, contam com associações preocupadas
em reconstituir os roteiros e as experiências dos primeiros a chegar, e também uma preocupação em
estabelecer as árvores genealógicas. Numa preocupação por oficializar os dados, também existe o
Memorial do Imigrante em São Paulo.
126
conseqüentemente as diversas maneiras de dialogar com o Outro de cada cultura ou de
cada grupo social. Os aspectos da figura do Outro serão tratados no último ponto,
encerrando este capítulo, porém aqui damos andamento a algumas considerações
sobre o sacrifício para o Outro.
Fundamentalmente, quando aparece a cerimônia do sacrifício, que se inclui
desde o inicio da humanidade até os dias atuais ainda, no gesto da fala porquanto
alguém assume esta ausência no plano discursivo estamos avisados de que
concretamente isto reúne e envolve toda a comunidade de língua. Sendo o sacrifício um
processo constante e dispositivo simbólico, porque envolve o tempo ternário, observam-
se no percurso histórico, várias maneiras de como ele foi posto a funcionar. Dufour
distingue essencialmente dois modos como ele se realizou. Primeiro quando se
apresentam as culturas politeístas em que várias divindades são veneradas, e então se
põem em cena várias versões do sacrifício. Contrapõe-se a esta variedade a versão
judaico-cristã, que se entende portadora da palavra única e do pacto único com Deus. O
deus é Um, pai de todos. De forma que cerimônia da eucaristia unifica o sacrifício em
Um, reconhecido e representado. Esta passagem não é simples porque se observa o
caminho do oral predominante no pensamento politeísta, para a versão escrita no
cristianismo, sufocando o heterogêneo. As escrituras são a versão oficial do pacto com
Deus
82
.
Quando se relacionam, por este intermédio do sacrifício, o processo de
simbolização do laço social e o ao tipo de narrativa, se compreende que o sacrifício
cobra efeito porque ele é recoberto pela narrativa, pela versão promovida pela
contingência do horror frente à morte, fim último dos homens e destino comum.
Detenhamo-nos um pouco sobre este aspecto do sacrifício e do que ele põe em
funcionamento do Real, Simbólico e Imaginário, neste atar do laço com o social.
Vejamos algumas manifestações presentes no sujeito imigrante.
O ritual do sacrifício que o imigrante realiza, como vimos, de maneira íntima,
por meio do qual abdica da língua materna, mata uma parte de representação do corpo,
pois se atingem esquemas pouco evidentes, porém fundamentais, de modulações
adquiridas na sua língua de inscrição. Sem nos estender muito sobre isso, podemos ver a
este respeito, por exemplo, o modo de conceber a dicção e a emissão de sons na língua.
82
Na pós-modernidade, Dufour entende que novas formas do sacrifício, decorrentes de processos de
dessimbolização, que observamos, de alguma maneira, em algumas situações da imigração no mundo
contemporâneo.
127
O modo pelo qual uma pessoa se emitindo seus sons familiares, estabelecidos em
língua materna, traz um efeito sobre a dimensão do corpo específico. Este efeito de sons
recortados de modo diferente pelo aparelho fonador e pela própria postura corporal
como um todo, reflete outra imagem para aquele que fala em outra língua. Isto para
representar a parte do corpo que ali é sacrificada, que diz respeito a um real específico.
Considerando-se o sacrifício no nível do imaginário, temos o imigrante como
sujeito todo, dado ao sacrifício, auto-sacrificio?,quando ele se exclui do curso “natural”,
no âmago de seu compromisso com a versão que ele deve ao ser social do seu lugar de
pertença. Saindo, ele “morre” tanto na expressão física (da presença) quanto enunciativa
(no dizer, não responde). Ele torna-se o ausente, embora ele possa aparecer, mas já nada
é esperado dele no lugar de origem, nada se pode pedir porque ele está impossibilitado.
Trata-se de um tipo de luto. No lugar de origem “eu” e “tu” falam da saída d´”ele”.
Pode aqui abrir uma versão com a sua retirada.
Em outro aspecto, paradoxalmente, ele não morre porque a cerimônia não se
completa totalmente, que o horror não é definitivo, talvez se exponha aqui a fantasia
de uma ressurreição, de um novo pacto com a forma de vida. Lembremos que, antes de
a Páscoa ser comemorada pela ressurreição de Cristo, ela é comemorada pelos judeus
pela saída do seu povo do Egito onde eram escravizados.
A questão é que uma versão é interrompida e outra versão se organiza. Mais uma
vez insistimos para que uma nova versão apareça, ela tem de propor uma construção, e
essa versão construída no novo pacto ofertado com o sacrifício da saída tem de se
amparar naquilo que deixou e nisso também se realiza o luto daquilo que não é mais.
Ela advém em vez do nada.
Destacamos mais uma qualidade: Dufour, ao anunciar que se morre em dois
tempos, explica que primeiro a morte do outro me deixa diante um morto vivo, que, em
um segundo tempo tenho de matar: mata-se, aí, os mortos sem ódio (Dufour. 2000, p.
153). Ele compara estes dois tempos aos dois tempos no chiste, segundo Freud, pois,
para rir do chiste, é necessário esperar a reação do outro, se ri depois do outro; assim,
primeiro o evento da morte, depois a morte sem ódio, que é a definitiva. Os dois
tempos dependem de três movimentos. Assim, o imigrante suporta sua morte, contando
com o esquecimento do outro. Ao mesmo tempo, o evento se desdobra porque a versão
que é oferecida é para o outro do lugar da imigração, no caso, aqui, para o sujeito de
língua portuguesa, brasileiro, assim a reação esperada é deste outro que legitimará, em
um segundo tempo, a versão dada. Desta maneira temos o sacrifício manifesto na
128
imigração, temos a versão proposta e finalmente o consentimento desse outro ao qual o
imigrante se dirige com sua versão. Três tempos.
No novo lugar, a nova versão cria uma nova janela por onde um olhar se senta.
Simbolicamente, o sacrifício situa-se na ruptura do relato, na ordem que dele se
espera, e o imigrante é tomado como carta fora, carta fora do baralho. Aqui certamente,
como no modelo do valor na língua, outro elemento ocupa seu lugar, porém isto
implicará que todo o sistema será alterado. Em contrapartida, na medida em que ele se
introduz como um novo elemento na outra cultura, ele também estará alterando todo o
sistema. Isto pode ser constatado quando elementos lingüísticos “estrangeiros” se
aderem ao falar local e ainda alguns preparados de comidas são naturalizadas com
ingredientes considerados exóticos até um tempo anterior.
3.4 CONSIDERAÇÕES PARCIAIS
A falta que o imigrante induz é uma divida que ele contrai da qual ele tem de dar
conta, mas o pagamento terá que ser proposto na porta de entrada do lugar para o qual
se está imigrando. Ele é pago com as palavras. Está aqui a dimensão simbólica da
narrativa do imigrante como dádiva para o Outro da outra cultura que o acolhe,
reintegra-se a isto a possibilidade de morrer, ou seja, transmitir a história para um outro
que a fará transitar. Consequentemente, se reata o triângulo pragmático, possibilitando-
se novas inscrições de sujeitos nesta cadeia.
Para não parecermos ingênuos otimistas na questão, vale lembrar, assim como
Dufour, de Laing, na Política da Família, em que se constata que são necessárias três
gerações para aparecer um psicótico. Sem dúvida esta tentativa de construção narrativa
e da constituição do aparelho enunciador muitas vezes desanda, e os sujeitos deslizam
para posições incompatíveis para o sujeito no lugar da imigração. Quantas mães
imigrantes se ausentaram enunciativamente no período da primeira infância de seus
filhos, o que impediu a constituição do terceiro para a formulação do laço individual?
O que até aqui nos impulsionou foi a tentativa de mostrar como a construção e o
funcionamento da narrativa opera em relação ao imigrante, criando condições efetivas
de enunciação.
No capítulo seguinte, determinaremos os procedimentos metodológicos que
pautarão a análise dos recortes enunciativos que escolheremos para fazer parte de nosso
estudo sobre a nova inscrição enunciativa que o imigrante nos mostra.
129
4. ANÁLISE DE NARRATIVAS DE IMIGRANTES: UMA
PROPOSTA METODOLÓGICA AMPARADA NA TEORIA
DA ENUNCIAÇÃO
Ao longo do desenvolvimento de nosso estudo dissertativo, optamos pela
referência teórica dos estudos enunciativos organizados por Benveniste. Sendo assim, o
método utilizado para as nossas análises estará condizente com esta proposta. Para que
isso seja possível, assumiremos nossa cota de responsabilidade na escolha dos fatos
enunciativos que recolhemos para corpus de análise, sendo ele constituído por
entrevistas realizadas com imigrantes. A responsabilidade em questão torna-se
indispensável, na medida em que a Teoria da Enunciação não fornece a priori nenhum
sistema ou procedimento de análise, a não ser aquele que discernimos nos modos de
relações dadas na sintagmatização do enunciado, através dos quais a significância
aparece na ordem do discurso. Lembramos que aqui está implicada a orientação que os
índices de referência, fornecidos pela língua, oferecem para dar sustentação ao sentido.
Por isto, aqui é necessário observar a operação que acompanha a determinação de
elementos constituídos pela língua e vertidos para uma prática de linguagem.
Utilizaremos, deste modo, a sensibilidade do lingüista que temos forjado ao longo
destes anos
83
, para organizar os recortes de análise que fundamentam nosso trabalho.
Para a Teoria da Enunciação, cada evento enunciativo é único e irrepetível, de
forma que nesta análise se considerará tal disposição para os fatos que apresentamos,
indicando a singularidade que cada evento abarca. Esta observação também responde
por firmar que a metodologia requerida, sem sombra de dúvida, se organiza no campo
das ciências humanas e na lingüística em particular, que já têm amadurecidas
ferramentas próprias para seu método de observação, distanciando-se do purismo e
neutralidade requeridos pelas ciências exatas. A partir isto, a quantidade de dados
83
Esclarecemos que a inclinação para observar as marcas da língua na fala do imigrante data desde o
nosso estudo dissertativo no Mestrado, em que analisamos o discurso do imigrante hispano-americano.
Isto deu início e expansão à reflexão sobre os mecanismos da língua e da representação que o sujeito
utiliza na fala e como isso determina lugares.
130
necessários a uma analise estatística dos eventos não será priorizada, e, sim, entraremos
nos pormenores, que caracterizam uma análise em profundidade do evento que se quer
estudado. Tratamos, portanto, de uma análise qualitativa. Ainda, nesta consideração,
observamos que o evento destacado por conta do mesmo modo de análise, nunca
pretenderá esgotar todas suas possibilidades de existência e explicação, simplesmente
porque entendemos que inevitavelmente, o pesquisador proporá o ponto de vista que
instaurará e organizará o objeto a ser definido
84
, e os pontos de vistas podem partir de
diferentes campos de saber que darão luz conforme a perspectiva que se olha o objeto.
Assim, não procuramos o fundamento único do evento mas as peculiaridades que o
definem conforme essa teoria enunciativa e sua concepção de linguagem.
Confiantes neste propósito, é preciso que nos incumbamos, então, da nossa
posição na coleta dos dados que comporão o corpus, pois, levando em consideração o
caráter dialético que a enunciação configura, estamos, como pesquisadores-sujeitos,
mergulhados no contexto enunciativo de duas maneiras significativas. A primeira
maneira de participação e interferência reside no fato de que, ao fazer uma entrevista,
nos posicionamos no lugar do interlocutor que convoca a narrativa que será
desenvolvida, contudo tomamos os cuidados de que esse lugar de interlocução sirva,
antes de tudo, como facilitador para o desenvolvimento da composição enunciativa. A
segunda maneira de participação exige o gesto interpretativo que faz com que
escolhamos recortes enunciativos que, mesmo que justificados, faz com que a
enunciação se estabeleça, em um segundo momento, com características determinadas
por este gesto. Temos, assim, a confluência de considerações a fazer a partir de nosso
lugar de escuta, presente nos dados que iremos apresentar. Adiante se explanará melhor
esta participação.
Finalmente, é necessário destacar que esta proposta metodológica vi
acompanhada pelos diversos aportes, forjados a partir do diálogo com as contribuições
desenvolvidas ao longo deste estudo
85
, de alguns teóricos que contribuem de maneira
especial com a proposta que aqui enfatizamos a respeito da enunciação do imigrante,
principalmente Dany-Robert Dufour (2000), que leva adiante o formato trino da
84
Certamente que esta afirmação é amparada como Saussure concebe o método em lingüística e o que lhe
permitiu arbitrar sobre o objeto Língua, que sabidamente abriu o caminho para o estruturalismo e instituiu
a lingüística que chegou a ser considerada a ciência piloto das ciências humanas.
85
Esta possibilidade de diálogo com outras áreas de estudos está contemplada pela teoria enunciativa,
como bem o reconhece Flores (2004) ao observar que esta teoria contempla no seu arcabouço três focos,
sendo eles: o epistemológico, o interdisciplinar e o metafísico. E eles sempre se realizam em sua
intersecção permanente, sendo que um não se empreende sem os outros. Sobre esta possibilidade é que
neste estudo também se torna possível o diálogo que propomos.
131
enunciação e da narrativa. Isto, nos ajudará a tratar com propriedade a dimensão de
inscrição do sujeito no espaço simbólico do lugar outro.
Passamos, então, a tratar dos aspectos considerados nesta proposta
metodológica.
4.1 O FATO ENUNCIATIVO COMO UNIDADE DE ANÁLISE
Como explicitamos, a Teoria da Enunciação não estabelece entre seus
procedimentos, nenhuma condição a priori para categorizar eventos enunciativos, senão
que seu interesse repousa em observar a organização que o sentido de um enunciado
organiza, levando em consideração os elementos lingüísticos que nele participam, assim
se observa a composição de forma e sentido presentes na enunciação. Conforme esta
concepção, o evento enunciativo se compõe em um a posteriori, contando com uma
reflexão e um retorno sobre ele, em que é possível discriminá-lo. Quando Benveniste
define que a enunciação é um irrepetivel porque depende de um ato individual em que
se introduz o locutor na fala, criando assim, um sistema de referência válido somente
para aquele evento, também está implícito que o retorno sobre esta enunciação será
único e irrepetivel porque indicará o aparecimento de uma outra enunciação e, portanto,
de um sistema de referência específico para o retorno sobre o evento. Assim, o gesto
interpretativo contemplado pela análise dos eventos enunciativos, não foge a esta lógica,
o que faz com que, no desenvolvimento de análises não escapemos ao ato individual de
interpretação. Desta maneira, temos um modo diferenciado de ter acesso ao dado
mostrado, que esta determinado por estas peculiaridades. Atendo-nos a isto,
procuramos orientação em Flores e Kuhn (2006)
86
que, como estudiosos em teorias da
enunciação e na procura de estabelecer critérios metodológicos para organizar os
recortes enunciativos, nos esclarecem que a maneira de se chegar a este dado, passa por
indagar sua natureza, instituindo dois pontos para sua abordagem:
1. Contemplando a observação: entende que uma observação não é teoricamente neutra,
pois é um início de descrição, e o sujeito que fala uma língua não está ausente no que
86
FLORES E KUHN. Sobre a forma e o sentido na linguagem: enunciação e aspectos metodológicos de
estudo da fala sintomática. VII ENAL Encontro Nacional de Aquisição da Linguagem, outubro
de 2006, Porto Alegre, PUCRS, Mimeografado. Notamos que no caso específico dessa proposta
metodológica Flores e Kuhn oferecem subsídios valiosos para a observação de fatos enunciativos
definidos dentro do estudo vinculado à prática de fonoaudióloga que atende distúrbios da linguagem.
Daqui o relevo em discriminar as marcas do sujeito na linguagem, que para nós é primoroso, ao constatar
também as marcas do sujeito imigrante como um efeito de distúrbios produzidos no nível de linguagem,
sob outro prisma, mas que atestam igualmente as produções da representação do sujeito.
132
diz. Com isso, o irrepetível se impõe. Seguindo esta constatação, os autores chegam à
seguinte hipótese metodológica em teoria da enunciação: o dado, o observáve, é uma
maneira pela qual o sujeito se marca naquilo que diz.
2. Contemplando a descrição: refere-se nesse ponto ao nível de construção de
mecanismos internos de tratamento do dado. Aqui se integra o visto no primeiro ponto,
em que a observação recai sobre este sujeito que se imprime na enunciação. A esta
qualidade da observação integrada, estes autores denominarão de fato. E insistirão:
Constitui um fato enunciativo de linguagem todo fenômeno que servir para explicitar a
maneira pela qual o sujeito se marca naquilo que diz (2006).
Daqui todo procedimento da análise enunciativa, ao colocar em relevo a
presença do sujeito naquilo que diz, comportará, antes do que um simples dado
classificatório, um fato enunciativo. Esta modalidade é totalmente apropriada para nosso
trabalho, na medida em que será exatamente pela consideração sobre as marcas do
sujeito na/pela enunciação, que daremos norte às nossas análises e conclusões. É por
isso que trataremos o recorte enunciativo, de agora em diante, como fato enunciativo.
Antes de entrar nas categorias de análise escolhidas para esse estudo,
descreveremos a seguir as características do nosso corpus.
4.2. COLETA E DESCRIÇÃO DO CORPUS DOS FATOS
ENUNCIATIVOS
Os fatos enunciativos que aqui apresentaremos, foram recolhidos por meio de
entrevistas realizadas pela pesquisadora com imigrantes residentes em Porto Alegre e
gravadas em gravador cassete Panasonic, modelo RQ-L11. Contamos para este corpus
com três entrevistas realizadas entre abril e agosto de 2007. Respectivamente, os
sujeitos propostos são três imigrantes, um de origem italiana, outra de origem uruguaia
e outra de origem russa. Os nomes dos participantes serão resguardados para
preservarem suas privacidades, somente faremos menção a algumas características que
nos ajudam na análise. Indicaremos cada sujeito pela letra maiúscula S de sujeito,
acompanhado pelo número que demos a cada entrevista, assim, o S1 se refere ao sujeito
da primeira entrevista, o S2, ao sujeito da segunda entrevista e S3, ao sujeito da terceira
entrevista.
Na nossa apresentação, o sujeito imigrante italiano será o primeiro a aparecer
com o indicativo de S1, ele é um senhor que atualmente tem aproximadamente
133
cinqüenta e sete anos de idade, veio para o Brasil ainda criança. Está uns cinqüenta
anos morando no Brasil, especificamente em Porto Alegre. Nunca mudou de cidade. É
aposentado e ainda mantém suas atividades profissionais na medida do possível. Em
idade adulta, formou-se no curso de Letras, porém não exerceu atividade na área.
Casou-se com brasileira. Mora com a esposa e tem filhos e netos. Ainda conserva sua
mãe e irmãos, seu pai é falecido. A entrevista propriamente aconteceu na sua
residência, em um bairro central de Porto Alegre.
A segunda entrevistada é com uma imigrante uruguaia que designamos como
S2. Trata-se de uma mulher que conta com mais de cinqüenta anos de vida. Veio para o
Brasil contando com aproximadamente vinte e poucos anos. Faz mais de trinta anos que
mora no país. Veio direto para a cidade de Porto Alegre e nunca se mudou. É formada
em fisioterapia e sempre trabalhou na área, até os dias atuais. Casou-se com brasileiro e
fez sua família aqui. Atualmente é viúva e tem uma filha maior de idade. A entrevista
foi recolhida em seu consultório de fisioterapia, em um bairro central da capital.
A terceira e última entrevista foi realizada com uma imigrante russa que
designaremos como S3, trata-se de uma mulher com aproximadamente 48 anos.
Formou-se em Música em Moscou, atualmente está fazendo uma segunda faculdade, no
curso de Letras. Chegou no Brasil há aproximadamente dez anos, acompanhando seu
marido que é empresário. Já havia morado em outros países como Kuwait, Bulgária e
Espanha. Mora com o marido e o filho. A entrevista aconteceu na casa de uma amiga
em comum da entrevistada e entrevistadora, em um bairro central de Porto Alegre.
Observa-se que os entrevistados são imigrantes de origem variada e foram
selecionados de acordo a disponibilidade dos sujeitos em relatar sua experiência
migratória. Para tal entrevista foi elaborado um roteiro contendo questões, que abaixo
reproduziremos. As perguntas se estabelecem com o intuito de servir de apoio no que
respeita ao desenvolvimento da narrativa que nos interessa sobre o processo migratório.
Sendo assim, a entrevista cobra um caráter semidirigido, pois nos preocupa, antes de
tudo, a concatenação da própria narrativa. As questões formuladas com orientação do
roteiro de entrevista são principalmente um suporte que auxiliam o desenvolvimento da
narrativa posta em cena, com o que, nos atemos ao caminho que própria narrativa
impõe.
A seguir apresentamos as questões elaboradas para essa entrevista.
134
1. Em que circunstâncias aconteceu sua imigração para o Brasil?
2. Veio sozinho (a) ou acompanhado?
3. Em que época aconteceu?
4. Como foram os primeiros anos?
5. O que esperava encontrar?
6. Que coisas chamaram sua atenção por aqui?
7. Que acontecimento marcou sua opção mais definitiva para fixar residência aqui?
8. Passado esse tempo de imigração, como vê hoje sua vida no Brasil?
9. Como foi sua adaptação com a língua portuguesa do Brasil?
10. Existem palavras que ainda lhe são estranhas?
11. Que histórias você conta para seus filhos e netos?
12. Reúne-se com seus patrícios?
13. Que histórias vocês partilham?
Figura I: Roteiro para entrevista semidirigida com imigrantes
Observando-se este roteiro, as entrevistas sempre se iniciam trazendo a primeira
questão e, o desenvolvimento posterior se segue, acrescentando as outras questões, de
acordo com o ordenamento que o sujeito entrevistado a seu relato. Outras perguntas,
fora do roteiro, surgiram com o objetivo de algum esclarecimento sobre o assunto
tratado. Também, reforçamos a atenção sobre algumas palavras que nos pareceram
conter uma carga de significação particular para esse imigrante. Isso se acrescenta ao
caráter semidirigido da entrevista.
A escolha das questões obedece a objetivos da pesquisadora, os quais aqui
explicitamos: as questões de 1 a 3 pretendem resgatar o contexto dessa imigração, as
motivações que levaram escolher o Brasil como lugar privilegiado para imigrar, e, a
maneira como o imigrante viu realizando esse primeiro passo. As questões de 4- a 8 têm
o interesse de traçar um olhar sobre o momento de “adaptação”
87
ao novo lugar, o início
do laço social com o Brasil e especificamente com o sul do país, de como isso se reflete
na opção de ficar aqui, ou seja, preocupamo-nos com o processo de inscrição do sujeito.
87
A adaptação que aqui destacamos não se refere a uma simples adequação comportamental aos costumes
impostos pelo meio social ao qual se chega, mas principalmente a maneira como se dialoga com este
novo meio, produzindo um engajamento possível para o sujeito.
135
As questões de 9-13 já indagam especificamente as formas de vivência na outra língua e
do trânsito que a língua permite na construção o processo narrativo que se inaugura.
Embora todas as questões se identifiquem com alguma divisão a respeito dos
diversos momentos da experiência migratória do sujeito em pauta, em verdade elas
encontram sua verdadeira expressão inter-relacionadas, pois elas estão contidas na
experiência como um todo. Isto se deve a que a experiência não se entende
propriamente como uma soma de etapas, senão que sempre se representam em um
eterno retorno sobre os diversos aspectos que cada momento fornece, sejam eles
articulados sobre pontos dados por uma vivência tida como inicial ou posterior. Assim,
entendemos que não estamos resgatando propriamente o que se viveu nos estágios
iniciais ou posteriores, mas o efeito dessa experiência atualizada na linguagem pelo
sujeito. Seguimos com isto a compreensão de tempo na enunciação, em que a referência
sempre será no tempo presente que organiza o passado e o futuro.
Esclarecidos a descrição do nosso corpus e modo de coleta-los, passaremos a
trabalhar as características gerais.
4.3. PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE
4.3.1 Os critérios de estabelecimento dos fatos enunciativos
Como vimos nas considerações sobre o fato enunciativo, traremos para nossas
análises recortes enunciativos que retratam uma realidade única, dada no momento da
enunciação, pois o universo que traça a referência para o evento enunciativo, não se
repetirá. Assim, então, considerando-se esta especificidade junto aos recursos
lingüísticos presentes no evento, tiraremos as conseqüências necessárias a nosso estudo.
Ao tratarmos do fato enunciativo, visamos destacar exatamente a presença do sujeito
naquilo que diz, ou seja, o modo como ele está implicado na maneira como ele se
apresenta pela linguagem. Este modo de ancorar um ponto organizativo, para olhar a
enunciação, é acrescido por consideração à relação que, por meio da enunciação, se
realiza entre sujeito imigrante e outra possibilidade de laço lingüístico e social (diferente
136
à língua materna). Tratamos do laço do sujeito conforme uma concepção de alteridade
derivada da imigração
88
.
Os fatos enunciativos serão escolhidos e retirados das entrevistas realizadas com
imigrantes, assim contaremos propriamente com recortes. O critério para realizar estes
recortes se sentará sob o interesse de vislumbrar o tipo de relação que o sujeito realiza,
atendo-nos primeiro à dinâmica pronominal que, na dimensão de subjetividade, traz
dois modos de oposições: a oposição regulada pelos co-enunciadores eu-tu e, a oposição
entre as categorias de pessoa e não-pessoas, dadas no par “eu-tu” diante de “ele”.
Na inversibilidade de “eu-tu”, nesta dialética, visamos considerar tanto o “eu”
imigrante como referência (como ele se propõe), quanto o lugar do interlocutor (tu) em
sua dimensão de alteridade com relação o eu. A esta alteridade denominaremos de
alteridade fraca aproveitando as designações estabelecidas por Dufour (2000). Na
segunda oposição, procuraremos observar no tipo de operação “eu-tu” enquanto unidade
diante do “ele”, o modo de abordagem de “ele”, indagando sobre as significações que
confluem neste termo terceiro e, concomitantemente, compreender os diversos limites
de “eu-tu” dentro do quadro enunciativo como um todo. A este resultado enunciativo
creditamos as qualidades que a predicação compõe, organizando no enunciado o valor
das palavras e, portanto, a significação produzida nesta organização. Nesta operação a
representação se evidencia. Chamamos a essa segunda operação de alteridade forte.
1. eu tu Aqui visamos à representação de “eu” que
se introduz na fala e de “tu” enquanto
outro, a quem se dirige o imigrante.
Designamos aqui a alteridade fraca.
2. (eu-tu) ele Aqui visamos à significação conferida a
“ele” na enunciação imigrante, trazendo o
contexto enunciativo e os limites da
unidade “eu-tu”. Designa-se aqui a
88
Especificamos esta forma da alteridade na imigração, pois, consideramos, baseados no referencial
psicanalítico, que a alteridade decorrente do estranhamento que o sujeito encontre, se manifesta em
diversas situações da experiência humana e ainda em diversos níveis. Ou seja, existem diversos encontros
com a alteridade. (ver: O Estranho, Obras completas de Freud)
137
alteridade forte.
Figura 2. Síntese da dinâmica pronominal
4.3.2 Sobre a transcrição do fato enunciativo
Lembramos que a perspectiva enunciativa que nos interessa contemplar, acolhe
seu objeto junto à pesquisa, seu formato se revela pela maneira como o pesquisador
posiciona seu olhar, ou seja, como leva em conta este olhar. Deve-se a isto a apreciação
justa que Flores (2001) promove ao distinguir a unidade de estudo enunciativa como um
fato e não um dado, efetivamente porque olhar para o fato, complementa Endruweit
(2006) é somar ao objeto de estudo o viés do observador, enquanto olhar para o dado
é encontrar uma evidência anterior à participação desse pesquisado. (Endruweit, 2006,
p.133).
Devido a esta precisão, é importante que se considere o nível de participação do
entrevistador na pesquisa.
Perscrutando, então, o viés do pesquisador, observamos uma qualidade
fundamental na análise das narrativas, quando contamos com um nível de interferência
que nelas se acumula, também no momento de transcrever os fatos enunciativos. Sendo
assim, é importante que situemos este efeito de transcrição que se incluirá no fato
enunciativo que aqui destacamos.
Olhando para esses fatos enunciativos que escolhemos, podemos identificar o
papel particular que a transcrição desse material comporta. Nessa transcrição deparamo-
nos com um duplo gesto que ela retrata, o primeiro de quem produz a enunciação e o
segundo de quem transcreve essa enunciação de acordo com seu próprio gesto de
escuta, produzindo nisso uma outra enunciação. Refazemos essa consideração para o
nosso estudo que deve ponderar as transcrições das narrativas, que ainda implica em
transferir para a referência de língua portuguesa elementos lingüísticos “enganchados”
em outros sistemas de valores.
A transcrição do ponto de vista da Teoria da Enunciação precisa ser
referenciada em alguns trabalhos que fazem consideração ao seu papel, entre eles está a
contribuição de Surreaux (2006), que se ocupa desta pertinência, presente em seu objeto
138
de pesquisa. Neste sentido, ela nos avisa: analisar uma fala transcrita levando em conta
pressupostos benvenistianos significa, [...] recuperar a enunciação que cai” no
processo higienizante que muitas vezes se faz ao tomar uma transcrição de fala
(Surreaux. 2006,p.138)
Recuperar esta enunciação é efetivamente trazê-la para o movimento da língua.
Mas quando isto ocorre é, indispensável dizer que a primeira enunciação está de
qualquer modo perdida quando transferida para uma situação de análise, pois ela advém
como uma segunda enunciação, já que segundo a máxima enunciativa, observada acima,
a enunciação é sempre um irrepetível. Neste irrepetível a interpretação que a transcrição
promove produz um novo irrepetível, então o gesto interpretativo entra como qualidade
na emergência do novo fato enunciativo.
Tentando precisar melhor este efeito de transcrição exigido em seu objeto de
estudo, Surreaux (2006) apoiada em Allouch (1995), se impelida a realizar uma
distinção pertinente entre transcrever, traduzir e transliterar. Esta distinção serve
também para o interesse de nossa pesquisa e, portanto, repararemos nela para conferir a
extensão que damos ao nosso procedimento.
Diferenciam-se em Allouch três modos diferentes de entender a transferência do
oral para o escrito que aqui se expressa no modo de apresentar o material para análise.
Na forma de transcrever, ele indica um impossível, pois efetivamente não como
trazer de maneira íntegra uma fala para o escrito, algo sempre se perde, é um “real” para
a transcrição. A constituição do sentido não está em pauta, devido a que se dá prioridade
ao apoio oferecido pela sonoridade e, por decorrência, é uma escrita baseada na escrita
fonética.
Em traduzir se procura o sentido, contudo Surreaux estima que não é aquele do
sentido corriqueiro da tradução, que costuma dar-nos o sentido com a noção de sentido
único (Surreaux. 2006, p.141) , senão que no sentido de “farejar o sentido”. Daqui é
imprescindível não traduzir para transportar sentido, mas traduzir para ler significante
sobre o qual assentar apoio homofônico da transliteração (Surreaux. 2006, p.141). E
será a transliteração que virá como recurso privilegiado para considerar este ponto,
que nela efetivamente se o escrito, se o relaciona com o escrito e, por isso trata-se de
uma operação
89
(Surreaux. 2006, p141).
89
Grifo nosso
139
A transliteração, enquanto operação, funciona como deciframento. No
deciframento se integra a proposta enunciativa, considerando-se a leitura dos pontos
nodais que o pesquisador traz à luz para mostrá-los, nesta operação significante que esse
gesto de transferir resgata.
4.3.3 Sobre a análise propriamente dita
À medida que definimos nosso interesse por dimensionar as marcas do sujeito
imigrante nas tramas da linguagem, escolhemos subsidiarmo-nos no método de análise
que a Teoria da Enunciação benvenistiana nos possibilita e a ela acrescentamos os
aportes teóricos localizados em Dufour, para complementar nossa reflexão sobre as
condições da significância, conforme ela apareça relativa a um sistema de referência
determinada pela e na enunciação.
De início, concordamos em estabelecer nosso ponto de partida na constituição
das oposições relacionadas no aparelho formal da enunciação que Benveniste revela, a
dizer o sistema pronominal baseado nos critérios de subjetividade que neles se organiza.
Constituem-se, assim, o par de oposições, acima mencionados, da seguinte maneira:
1.“eu-tu” unidade intersubjetiva
1. “(eu-tu) / “ele” tríade enunciativa/aparelho formal da enunciação
Figura 3. Quadro benvenistiano do aparelho formal da enunciação
Estamos aqui no plano das realizações na linguagem, em que a enunciação se
incumbe de aparecer como um sistema de relações. Certamente que aqui aportam
também o tempo e o espaço em que a enunciação aparece, configurando assim sua
expressão única no contexto enunciativo como um todo.
O sistema que distingue estes três termos pronominais, os tem como uma
participação imprescindível para que haja comunicação, porque sem eles tal
comunicação torna-se inverossímil.
Lembrando a dinâmica que este par de oposições projeta, temos que no “eu-tu”,
estão presentes o nível de transcendência que o “eu” tem perante o “tu”, ou seja, a
transcendência daquele que fala perante aquele que assiste, contudo, “tu” não é um
140
elemento prescindível porque “eu” precisa do “tu” para se constituir, que “eu” se
realiza na medida em que se dirige a alguém. Estamos aqui no campo do imaginário.
No segundo par apresentado, temos a expressão “eu-tu”, enquanto unidade
intersubjetiva, frente a “ele”, que, como Benveniste identifica, é o que não entra como
categoria de pessoa, podendo ser alguém ou ninguém. Desta maneira, temos um exterior
ao que lhes devolve a noção daquilo que os vincula. Conseqüentemente “ele” diz desta
certa relação com o mundo, que a enunciação materializa. Podemos dizer que aqui
estamos cindindo o plano simbólico das relações.
Da expressão de oposições, resgatamos num, primeiro momento, a dimensão da
forma presente na consideração aos sistemas que aqui operam como alicerces no
processo de significação
90
, e imediatamente nos dirigimos às condições do valor da
significação ou valor semântico onde o sentido se impõe. Estamos, portanto, no
paradigma teórico sobre a consideração da forma e do sentido que Benveniste nos lega
para resolvermos o valor semiótico e o valor semântico que a linguagem exige para a
constituição do sentido na enunciação, os quais são viabilizados por “eu” que se marca
naquilo que diz. Daqui a noção de que a enunciação se expressa enquanto ato individual
de utilização da língua.
Tomaremos, a partir deste esquema, as derivações que aparecerão quando
levamos em consideração a enunciação do imigrante, que certamente funcionará de
acordo com a forma prevista pela estrutura do aparelho, que dá acesso à linguagem, mas
que portará qualidades específicas quando vertidas para o discurso, principalmente
quando se adjudicam a este movimento natural na língua operações redobradas com as
quais o imigrante lida, pois elas se projetam em língua materna e em segunda língua,
conforme a noção de valor de cada lugar.
Neste ponto, apelamos para as contribuições de Dufour que acrescenta, a este
âmbito do funcionamento da língua natural, elementos de uma lógica constitutiva das
relações humanas resignificando permanentemente o espaço de produção humana, que
envolvem os registros do simbólico, real e imaginário. Temos aqui, na forma trina da
enunciação uma projeção para a invenção do sujeito no campo social e as significações
que disto deriva quando a língua remaneja as marcas que o sujeito imprime. Com isto
temos uma nova consideração das marcas do sujeito na/pela enunciação. Contudo existe
um ponto em especial que acrescentamos e desenvolvemos a partir de Dufour, quando
90
Lembramos que são eles o sistema da língua e o sistema contemplado na linguagem pelo aparelho
formal da enunciação.
141
se trata da relação na enunciação com a instância do irrepresentável, em que uma outra
forma se contempla no paradigma enunciativo. É escrito da seguinte maneira:
Eu-tu/ele/ele aparelho enunciativo que contempla os limites da representação.
Figura 4. Tríade enunciativa acrescida do ele
Aqui se reintegra um elemento que vínhamos tratando em Milner, quando ele
nos fala em um impossível específico que cada portador de fala encontra e que
justamente o instiga a se enunciar. Vimos que para Milner isto representa um elemento
constitutivo para a presença do sujeito na língua. Sem esta âncora de um não dito que se
renova entre as palavras, a participação do sujeito ficaria dissolvida por “algum”
movimento autônomo da língua. Ou melhor, não poderíamos falar em sujeito. Em
Dufour, o indizível que transita na enunciação, é assimilado segundo um outro
paradigma que se expressa por “ele” do limite da representação, do irrepresentado ou do
que toma o lugar do nada. E aqui nos apropriamos também desta marca constitutiva da
enunciação para pensar o diálogo redobrado com o campo do irrepresentado para o
imigrante, quando sabemos que este está em enunciação em segunda língua,
considerando regiões intraduzíveis quando passa de um registro lingüístico-cultural para
outro, e ainda quando levamos em conta que, pelas leis da semiologia, seria a outra
língua, neste caso o português, que interpretaria a estada deste sujeito no meio em que
se desenvolve. A ngua materna, com as marcas do impossível específico que ela
carrega, fica em outro plano quando o sujeito imigrante se enuncia na outra ngua.
Concretamente vemos se erguer um outro paradigma do impossível para o sujeito na
linguagem. Contemplamos aqui a relação com um Real que o imigrante traduz
91
.
Chegado este ponto, estabelecemos que nossa análise contará, então, com a
observância das três operações que aqui destacamos para olhar a enunciação imigrante,
sendo elas:
1.Díade
eu-tu
Veremos nela como o imigrante introduz “eu” e “tu na proposta
enunciativa. Trataremos da alteridade fraca.
91
Especificamos não estamos tratando de uma das formas do Real, pois, guiando-nos pela noção de Real
em Lacan entendemos que o Real é a experiência em si, do que está fora do suporte do imaginário, então
não existem vários reais mas o Real. Somente aqui damos curso a esta expressão quando o imigrante se
depara com esta experiência. Lembramos que existem diversos trabalhos psicanalíticos que sugerem a
presença de estados psicóticos em imigrantes (ver Manonni).
142
2.Tríade
(eu-tu)
/ele
Veremos como em “ele” se organiza a relação com o mundo que o
imigrante estabelece no contexto que o cerca, tendo em consideração o
novo campo lingüístico-social. Trataremos da alteridade forte.
3.Triade
(eu-
tu)/ele/ele
Veremos aqui, na consideração a “ele” como a formação de um elemento
trino na enunciação, em que um irrepresentado se define e marca para o
imigrante, sob o signo de um limite que retorna na enunciação de acordo
com as significações que projeta de seu contexto migratório. Trataremos
neste modo de relação o que chamaremos de alteridade radical.
Figura 5. Quadro enunciativo para análise.
Com essa última observação completamos o quadro que guiará nossas análises.
No próximo capítulo apreciaremos as análises.
143
5. ANÁLISE DA ENUNCIAÇÃO CONTEMPLANDO UMA
INSCRIÇÃO EM SEGUNDA LÍNGUA
A proposta de análise que aqui apresentamos retoma o quadro elaborado no
capítulo anterior, que como dizemos, contém a síntese de toda a articulação teórica
detalhada ao longo de nossa tese. Assim sendo, nosso quadro reflete um modo de
mostrar a maneira como o sujeito tocado pela experiência da imigração se marca como
sujeito no outro espaço lingüístico-cultural, na medida em que ele se põe a narrar,
considerando o lugar da ngua nesse contexto. Ainda, aprofundamos este enfoque
quando nesta proposição se acrescenta a dimensão da alteridade que a ngua traz de
maneira particular. Vemos nisso o modo como uma nova estrutura de língua se impõe
para um sujeito que, sendo imigrante, tem de remanejar sua inscrição subjetiva e
comunicacional, dirigindo-se a um outro universo lingüístico e cultural, mediado por
um outro modo de estar na linguagem. Então, de que maneira se organiza este sujeito
que se traduz para um outro e um Outro?. Certamente aqui não encontraremos todas as
repostas para tal odisséia subjetiva, ou melhor, intersubjetiva, junto a todas as
elaborações transcendentais de tal processo, contudo aqui a abordamos com os as
ferramentas teóricas e os fatos enunciativos que conseguimos recolher, sondando esta
questão conforme ela possa mostrar-se, ou seja, da única maneira possível, pelas bordas
que tal experiência cinge pela/na palavra.
Para tal feito, aqui nos ateremos à análise de três entrevistas realizadas com
imigrantes de diversas nacionalidades, sendo um imigrante italiano (sujeito 1), uma
imigrante uruguaia (sujeito 2) e uma imigrante russa (sujeito 3).
Para proceder a análise, organizamos três níveis de elaboração que se resume
nesses pontos:
Quadro 1- Relações pronominais contempladas na metodologia proposta
144
1. Díade intersubjetiva eu/tu
2. Tríade (eu-tu)/ele
3. Conjunto eu-tu/ele/ele
É importante destacar que este quadro definido para a análise dos fatos
enunciativos, acompanha os traços registrados quanto à consideração de alteridade que
se forma conforme as correlações de oposição nele dispostos. Isto não vem considerar
um novo modelo para requerer o aparelho enunciativo, senão que nele fazemos um
relevo para identificar as alterações que se estabelecem na apropriação dos mecanismos
enunciativos dimensionados dentro do sistema de valores lingüísticos que dão acesso à
fala no contexto de imigração, no qual o sujeito se estabelece.
Por outro lado, o quadro formulado por estas três formas de oposições
enunciativas, representam três escolhas entre tantas que seriam possíveis para definir
categorias de análise
92
. Por isto, entendemos que a separação que resulta desta
organização, vale expressamente para o objetivo desta análise, pois sabemos que a
trindade do aparelho formal da enunciação não comporta fragmentação porque a
enunciação se realiza somente quando os três elementos pronominais estão presentes. A
falta de um deles desestabiliza a compreensão do enunciado. Dessa maneira deixamos
claro que é somente para o propósito de construção analítica que separamos tais
mecanismos.
Avisados, então, desta escolha, destacamos aqui as operações que nos interessam
para o andamento da nossa reflexão.
Quando abordamos a primeira ade “eu-tu”, procuramos principalmente a
maneira com que eu” se define diante de “tu” e, dentro da mesma operação, pelas
condições de inversibilidade, procuramos a natureza de “tu” ao qual “eu” se dirige no
fio do discurso. Chamaremos esta dimensão de alteridade fraca, seguindo o
desenvolvimento de Dufour (2000) que posiciona nesta díade explicitamente a
dimensão de alteridade inicial em que “eu” emerge no discurso amparado, para isso em
“tu”, o que os posiciona no “set” discursivo, a partir do qual as referências se instituem
fazendo com que se entre na linguagem e nela se adquira o movimento para algum
sentido possível.
92
Lembramos aqui que o próprio Dufour identifica outras possibilidades que não chega a desenvolver,
porém as nomeia; por exemplo as díades eu-ele, tu-ele.
145
Na segunda operação que aqui escolhemos, tratamos da tríade “eu-tu/ele”. Neste
espaço, vemos se acrescentar o elemento “ele” à díade antes disposta pelo “eu-tu”. Este
elemento, como vimos, se revela como um elemento não subjetivo à dimensão
enunciativa e que, por ter tal exterioridade à natureza subjetiva do enunciado, convida a
olhar o exterior que posiciona a primera díade em uma concepção de tempo e espaço,
que lhe indica o contexto em que o “eu-tu” se relacionam no momento da enunciação.
Por meio deste terceiro elemento também se integra todo o aparelho formal da
enunciação que Benveniste reclama como sistema imprescindível para que haja
enunciação. Desta providência, aparecem as possibilidades de sentidos convidados para
o enunciado, pois a predicação promovida por esse terceiro elemento implica a ordem
simbólica que se organiza fora do “eu”, porém é pela enunciação que o “eu” produz, e
por ela encontra sua atualização e, digamos, seu sentido de existir. A barra que separa
“eu-tu” de “ele” representa exatamente a disjunção necessária entre as unidades
subjetivas e a não subjetiva, que permite a inscrição na ordem simbólica que a própria
linguagem promove e pela qual a representação cobra consistência. Aqui o relato surge,
integrando “eu” a esta dimensão histórica e existencial. Esta operação traz o que
denominamos de alteridade forte, tratada por Dufour, conforme vimos no capítulo III,
que vislumbra a presença do Outro, Outro da cultura, dos vínculos exteriores que
sobrepassam a existência do sujeito, porém que dependem dele quanto à sua validação
na linguagem.
Na última tríade que apresentamos para nossa análise, temos “eu-tu/ele/ele”.
Com esta operação, trazemos o elemento “ele”, também numa gica de disjunção,
contudo apresentamos nele uma disjunção radical, àquela que Dufour trata como o
limite da representação, que se mostra como um elemento, que no mesmo instante que
emerge se barra porque escapa às providências do sentido. Ele indica uma ausência
radical. Queremos olhar por meio deste construto para o espaço nebuloso em que o
silêncio na linguagem se impõe, permitindo desconstruir elementos representados em
uma língua e dando nascimento a outros elementos representados em outra língua.
Entendemos que, para a concepção de enunciação do imigrante, esta consideração é
fundamental para tratar dos limites radicais com os quais o imigrante se depara ao ter de
trazer, para o universo lingüístico-cultural, elementos da sua língua e lugar de origem,
que como vínhamos discutindo, têm seus valores específicos no sistema em que tem
pertença e dificilmente trarão um valor igual para um outro sistema. Assim sendo,
compreendemos que, nesta passagem existe sempre algo de um irrepresentado que se
146
manifesta na enunciação. Tal contribuição certamente dimensiona elementos que nos
levam para além dos estritamente lingüísticos, abrindo para algumas considerações
sobre cultura e história, entretanto não é este o ponto de chegada do nosso trabalho
porque não procuramos um sentido geral nem acabado do diálogo com o exterior da
língua, senão procuramos os canais pelos quais os elementos se aderem aos mecanismos
da linguagem, trazendo o ponto de contato em que o sujeito se constitui pela língua e
vice-versa. Sendo assim, observamos a cada lance de enunciação como o sujeito tece
este vinculo em que rupturas específicas se mostram, à medida que, essa relação não é
regular mas singular.
Por fim, apresentado nosso dispositivo de análise, resta dizer que estes níveis
estão implicados junto à idéia de tempo e espaço definidos na enunciação, assim define-
se o aqui e o agora que determinam os índices de referência que operam junto à
organização pronominal. No caso dos fatos discursivos que aqui recolhemos junto aos
imigrantes a temporalidade ainda que seja da atualização do enunciado, dialoga com a
dimensão histórica que os imigrantes vão recriar. Trata-se de uma história individual
que reata, no fio do discurso, a especificidade da experiência de ser sujeito em outra
língua. Existe nisto uma dialética interna ao enunciado a partir da dimensão de tempo e
espaço. Benveniste sobre a dimensão histórica no enunciado, nos sugere, no seu texto
As relações do tempo no verbo francês (Benveniste, PLG I, 1995. p.260), a
possibilidade do encontro de dois sistemas distintos e complenmentares, quando
considerados dois planos de enunciação: o da história e o do discursivo (PLG I, p.262).
A princípio cada um desses planos encontraria modos diferentes de expressão, sendo
que o histórico estaria reservado à escrita, definindo um tempo passado, de uma ação
acabada, diferente do plano enunciativo em que se atualiza a posição do sujeito no
presente. Contudo, o autor admite um terceiro tipo de enunciação
93
no qual o discurso é
referido em termos de acontecimento e transposto para o plano histórico; é o que
comumente se chama discurso indireto (Op cit, p. 267). Nesta forma de fala, na qual é
possível o encontro na enunciação da dimensão histórica, Benveniste entende que nela
93
Destacamos aqui que Benveniste não chega a desenvolver mais este nível enunciativo, nem chega a
abordar posteriormente esta elaboração. Nesse texto é concebida como uma terceira via enunciativa na
análise do passado composto utilizado na sintaxe, contemplando a ambigüidade que isto cria, a qual
pode ser resolvida pelas próprias condições que a sintaxe traz no momento da enunciação. Precisaríamos
dessa maneira, talvez, de mais elementos teóricos para resolver de melhor maneira o que seria uma teoria
da terceira via enunciativa, mas por enquanto arriscamos em utilizar esta ferramenta teórica para, em uma
outra oportunidade, poder refletir melhor sobre o assunto.
147
se retrata a idéia de uma anterioridade, no qual o passado subjetivo se apresenta e não
se perde como no caso do plano histórico, assim se objetiviza o acontecimento
destacando-o no presente (Benveniste, PLG I, p. 275) da enunciação. Apoiando-nos
nesta elaboração, é que consideraremos, em diversas ocasiões de nossa análise
exatamente a dimensão de anterioridade no discurso, que os imigrantes, para falar de
sua trajetória, trazem para a enunciação.
Com essa introdução às formas como estas oposições são concebidas para o
presente trabalho, damos início a nossa análise, a seguir apresentadas por meio dos fatos
enunciativos escolhidos.
Nesta apresentação, organizaremos as análises tratando individualmente cada
sujeito entrevistado. Assim, em cada entrevista, articularemos as maneiras como cada
uma das oposições, acima descritas, irão aparecer. Esclarecemos que o modo de
apresentação das análises considera as seguintes coordenadas: primeiro situaremos o
contexto enunciativo, trazendo as particularidades que permeiam cada situação de
entrevista e alguns dados importantes para considerar a posição do enunciador; após
situar o contexto enunciativo, exporemos o fato enunciativo escolhido para análise. Nele
destacaremos em negrito frases e palavras que se tornam significativas para análise. Por
último, realizaremos a análise propriamente dita, considerando o quadro formulado na
nossa metodologia acima explicitada, para orientar nossas interpretações. Neste trabalho
final, mais uma vez, é importante ressaltar que, por ser considerando um quadro de
oposições para os níveis de análises, em essência eles não são diferenciados conforme
algum tipo de princípio de seqüencialidade, senão que eles se estabelecem conforme o
efeito da simultaneidade entre tais níveis. A separação estabelecida somente é válida
para realização da análise
5. 1 Imigrante italiano: No meio da cena, uma transposição de língua
[...] e, eu me lembro..., interessante! Em maio havia sido
preparada uma peça infantil...., eu era um dos três porquinhos (ri)...e
minha tia me tirou no meio da apresentação porque eu tinha que pegar o
trem pra viajar pra Gênova para vir para o Brasil” (W. falando de sua
vinda)
148
5.1.1 Sobre o sujeito 1: imigrante italiano (S1)
O primeiro sujeito entrevistado é de sexo masculino, conta com uns cinqüenta e
sete anos, veio ao Brasil com seis ou sete anos, portanto sua imigração computa
aproximadamente uns cinqüenta anos de estada no Brasil. Ainda conserva sua mãe viva
e irmãos. O pai faleceu há algum tempo. Sempre morou em Porto Alegre e nunca voltou
para Itália depois da sua vinda ainda criança. Não participa de nenhuma comunidade
italiana aqui no Brasil. Comunica-se na língua italiana eventualmente e somente com
parentes também imigrantes. Aprecia sua vida em família, tem esposa, filhos e netos.
5.1.2 Contexto enunciativo:
Realizamos a entrevista na casa do sujeito entrevistado, na cozinha. A entrevista
que fizemos durou aproximadamente duas horas, ocorrida no dia 21 de abril de 2007. O
tom da fala se pauta pela informalidade, assim como pela boa disposição em ofertar a
entrevista. Quanto a alguma característica que caiba destacar, relativa ao modo como o
entrevistado se manifesta pela fala, identificamos a existência de uma inclinação a
aumentar o volume da voz nas finalizações das frases.
5.1.3 Apresentação dos fatos enunciativos e respectivas análises
5.1.3.1 Fato enunciativo 1
Fato enunciativo 1
A: Como foi sua vinda para o Brasil?
S1: A minha vinda foi compulsória porque eu tinha sete anos incompletos...,
cheguei aqui em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, de modo definitivo quase aos sete
anos de idade, vim eu, meu irmão e minha mãe.
A: Só os três?
S1: os três,...o pai estava, meu pai veio para o Brasil dois anos antes, trabalhou
um ano em São Paulo e depois, que..., por motivos que não convém declarar, veio
149
trabalhar no RS. No RS ele começou trabalhar na UFRGS e no Instituto Tecnológico do
RS atual SINTEC. No RS veio a Porto Alegre direto, entendeu que aqui havia
condições de manter a família, mandou vir minha mãe, eu e meu irmão.
Análise:
Encontramos neste trecho três composições enunciativas que destacamos em
negrito, as quais anunciam três tempos da cena enunciativa: primeiro minha vinda foi
compulsória que avisa o ouvinte do lugar do “euna imigração; no segundo momento
quando diz: meu pai veio para o Brasil dois anos antes, identificamos na enunciação o
lugar daquilo que decide a imigração, de maneira a colocar a figura do pai como lugar
tenente do “ele” , na medida em que, a narrativa desenvolve esta opção que o pai
concretiza ao vir e ficar no Brasil. No terceiro momento, vemos o desfecho de tal opção
quando acrescenta: entendeu que aqui havia condições de manter a família, trazendo
o motivo manifesto de tal decisão. Ainda reconhecemos dois planos enunciativos
dimensionados na consideração ao tempo em que o “eu” se reconhece quando se
desdobra um eixo na temporalidade em que o sujeito se conta, assim existe um “eu”
criança falado por um “eu” atual, presente na enunciação.
O “ele” da enunciação recai sobre a ação e decisão de um pai que os leva a
imigrar, ou seja, se equacionam as relações do acontecimento migratório com as
decisões que ele”, enquanto voz inserida na figura do pai, sustenta uma aposta na
palavra de que no Brasil haveria condições de uma vida melhor para a família. Este
evento remetido a “ele” na enunciação engloba o sentido que permite posicionar
legivelmente os outros dois referenciais subjetivos articulados na forma “eu” e “tu”. A
seguir desenvolvemos melhor estes termos.
Neste fato enunciativo demarcamos a posição com que o sujeito se apresenta
para esse outro lugar. Aqui a forma se dá por “eu” digo a “tu” que é “ele”, na palavra do
pai, quem realizou o ato interpretativo que me conduziu para/na imigração. Desta
maneira, o ato enunciativo que carrega as marcas da relação da língua com o sujeito
neste país é mediado por uma palavra que retorna por “ele”, como um exterior à minha
própria decisão, que, como criança na época, não teria como realizar.
150
Assim, da primeira díade “eu-tu”, temos que o sujeito se toma na enunciação de
maneira constatativa, ele registra, mas não se inclui no ato enunciativo que o conduziu à
imigração. O convite que o “eu”, em sua alteridade fraca, propõe ao “tu” diz deste
acompanhar o ato enunciativo fundante, traçado pela escolha desenvolvida, conforme o
“ele” do enunciado, quando da migração. Aqui, entretanto temos um desdobramento,
como anunciamos acima, na linha do tempo porque, embora o “eu” da enunciação
esteja presente, atualizando um juízo a respeito do primeiro momento da imigração,
dizendo que foi compulsória
94
, por outro lado, ele produz um olhar, um espelho sobre
aquele “eu” criança retratado neste cenário. Vemos nisso as qualidades do relato, que
trazem a dimensão histórica do sujeito, e é essa perspectiva histórica que se impõe como
um duplo nível da situação enunciativa, pois o sujeito está falando para um “tu” sobre
um “eu” de um momento anterior ao atual. Neste sentido, como referimos acima,
trataremos este tipo de enunciação em que a dimensão histórica pede licença, como
recurso à anterioridade na enunciação. Então, podemos ler esta justaposição do “eu” (do
“eu” quando criança e do “eu” atual, operando no enunciado) como um efeito do sujeito
que lida com sua história, na enunciação.
Na dimensão, dada pela tríade eu-tu/ele, propõe a significação produzida pelo
ato enunciativo contemplado no ele”, em que “eu-tu” se posicionam perante a
imigração acatando uma resolução definida pelo contexto naquele momento passado.
Aqui a representação que se expressa no enunciado advém do olhar sobre uma situação
em que o “eu” se vê criança, sem condições de estar implicado na decisão da imigração,
a não ser pela justificativa que encontra através da palavra do pai, que organiza o “ele”
da situação, que supõe um saber que diz respeito ao entendimento e à interpretação do
contexto que levou a família a imigrar, justificado quando diz entendeu que aqui havia
condições de manter a família. O lugar escolhido para sustentar a família, fora da
Itália, foi o Brasil porque, conforme o enunciado, o pai veio dois anos antes para o país
para, supostamente, mapear as oportunidades que resultariam desta vinda.
Na tríade eu-tu/ele/ele deparamo-nos com uma maneira particular do enunciado
quando o sujeito, ao se referir à vinda compulsória, manifesta um movimento em que o
“ele” da palavra do pai, fica em uma exterioridade radical com relação à capacidade
enunciativa do “eu” criança do momento da imigração. Desta maneira, se barra a
94
Não é a criança imigrante que diz que a vinda foi compulsória, é o imigrante amadurecido na
experiência imigrante que reflete sobre isto na enunciação.
151
“opção”
95
que o “eu” poderia aportar à imigração, ou seja, o “eu” se exterioriza à
imigração sendo imigrante, de maneira que ele está e, ao mesmo tempo, não está na
imigração. Podemos entender isto como uma presença de corpo na imigração, porém
com uma ausência enunciativa sobre o acontecimento, sem dúvida derivada de sua
pouca idade, mas definida por um desencontro entre a capacidade da presença corporal
e da presença enunciativa. Disto entendemos que o “ele”, neste enunciado retorna como
aquele não dito do “eu” criança, mostrado pelo “eu” da enunciação atual.
5.1.3.2 Fato enunciativo 2
Fato enunciativo 2
[...] nesse meio tempo despediram meu pai porque o truste pagava muito bem para
meu pai, mas para fazer que espécie de serviço não operário?, é que meu pai tinha
conhecimento tal da tecnologia de ponta de vidraçaria para laboratório que botava
meu pai numa mesa junto com dez pessoas e..., obrigaram meu pai, por falar, ensinar
os outros. Meu pai que ingenuamente ensinou, que são os grandes empresários de
hoje em São Paulo, os descendentes dos alunos de meu pai [...]
Análise:
Neste recorte enunciativo, encontramos as marcas do sujeito na linguagem de
acordo com o que Dufour (2000) vai designar como inteligência da transmissão, em
suas considerações sobre a natureza do relato. Certamente aqui assinalamos, por meio
das marcas enunciativas, destacadas, os efeitos de uma transmissão e de como isto
implica a definição dos traços do sujeito na nova cultura que o posiciona quanto a um
lugar de referência.
A relação que se estabelece entre os enunciados, meu pai tinha conhecimento
tal da tecnologia e por falar, ensinar os outros e, ainda, Meu pai que ingenuamente
ensinou, remete a um eixo de significação importante na relação do sujeito com a
inserção ao lugar de imigração, principalmente porque ele é particularmente implicado
em uma relação que se viabiliza pela palavra, na condição de conhecedor de uma
95
Trata-se aqui de uma opção inconclusa, que se insinua no enunciado que, entretanto, não se declara
totalmente.
152
tecnologia e, por conseguinte, na posição de professor ou mestre deste saber que
propicia àqueles outros que não partilhavam do mesmo referencial lingüístico-cultural.
O sujeito se faz aqui ponte entre dois mundos e ocupa o lugar de tradutor de um saber
técnico para aqueles que não teriam ferramentas culturais para tê-lo. Precisamente é
pela falta identificada no outro que este sujeito se enuncia. Nisto ele define sua relação
na linguagem com o Outro, que então, o demanda. Contudo, se existe inicialmente esta
demanda, aparece, no mesmo gesto de reconhecimento, o desconhecimento, que se
concretiza pela demissão, pela exclusão do sujeito do lugar de enunciação. Aqui mostra-
se nitidamente o efeito que recai sobre o ele, alertando as insígnias que o próprio
Benveniste descreve quando trata da condição não subjetiva do “ele” que pode ser
utilizado tanto numa relação de exaltação quando realizado nas formas da reverência,
quanto na situação da injúria quando o “ele” é utilizado pelo “eu-tu”, na presença de
uma terceira pessoa, como se ela não estivesse presente. Aqui o “eu” denuncia aquilo
que aconteceu, predicado pelo “ele”, desenvolvendo a situação do pai como transmissor
de conhecimentos, que quando reconhecido (pelo conhecimento que possui em lentes),
passa a ser imediatamente deslocado de seu lugar enunciativo. Ou seja, acontece aqui
um efeito de barrado quando o “ele” transmissor se barra na presença da cultura. Fica
dessa maneira, para os efeitos de significação, a condição de um não dito que retorna
pelos efeitos da inauguração de uma tradição em técnicas de vidraçaria no Brasil.
Podemos, a partir desta elaboração geral, observar os passos que orientam nossa
análise:
Na primeira díade “eu-tu”, da alteridade fraca, vemos que o “eu” que posiciona o
“tu” na escuta do enunciado, mais uma vez se suspende para tratar do relato. Aqui
temos a situação particular em que o plano enunciativo convive com o plano histórico.
Estes dois planos são tratados por Benveniste em seu artigo As relações do tempo no
verbo francês (PLG I,1995. p.260). Nesse artigo, embora o autor diga que o plano
histórico é reservado à língua escrita porque descreve os fatos advindos do passado
como uma ação acabada e sem participação direta do narrador, existem situações
ambíguas em que estes dois planos convivem no discurso. Aqui, comparamos tal
fenômeno à dimensão narrativa quando o autor observa que o passado o se constitui
como propriamente distante da instância subjetiva, senão que ele é próximo em uma
relação de anterioridade. É desta maneira que acontece neste relato, quando a dimensão
de anterioridade está posta de maneira que se formula uma retomada do passado, que se
atualiza pelo enunciador, no contexto atual. Para realizar esta operação, “eu” se
153
suspende para se olhar. “Tu” também se posiciona como espectador desta
anterioridade.
Na segunda forma, na tríade eu-tu/ele, “ele” retorna sobre o “eu-tu”, de maneira
a observar o lugar de quem enuncia no efeito de transmissão, ou seja, ali onde o lugar da
enunciação acontece para ensinar, para dar a conhecer o universo de um saber que está
consolidado a partir de um outro universo lingüístico cultural e que é traduzido para o
outro lugar da imigração. A barra acontece aqui demarcando essa passagem. Como
dissemos, é o “ele” do tradutor que está em pauta e, ao mesmo tempo, o “ele” fundador
de um saber aqui no Brasil que ampararia o sujeito, neste outro universo lingüístico
cultural, para se enunciar.
Na terceira tríade, eu-tu/ele/ele, encontramos os efeitos mais significativos deste fato
enunciativo, pois, como retratamos acima, o saber que é inaugurado na sustentação do
lugar enunciativo, é reconhecido pelas necessidades a nova cultura, porém,
imediatamente após o saber ser apreendido, o lugar que enuncia, o “ele” da palavra do
pai que suporta este lugar, é destituído, “ele” é barrado. Desta maneira, o ciclo da
transmissão se fecha, trazendo o que Dufour (2000) explicita como lugar de morte do
terceiro que assume para si o sacrifício. Paradoxalmente, os efeitos da transmissão não
ficam anulados de nenhuma maneira, que inaugura-se por esta passagem, um novo
vínculo de saber no Brasil. O retorno do “ele” sobre o “eu-tu/ele” destaca
principalmente a ponte construída para validação do lugar enunciativo que o sujeito se
suporta nesse Outro do imigrante.
Sob o ângulo desta tríade, tratando da forma e sentido na língua, também
constatamos, um outro elemento que toca o sentido afetado, quando o imigrante trata do
truste. Aqui ele fornece para esta palavra a qualidade de um sustantivo, como se
tratasse de um personagem, no entanto em língua portuguesa truste refere a sindicato de
especuladores, constituído com o fin de determinar a alta do preço de um valor ou uma
mercadoria. Vemos que uma apropriação de sentido singular, barrando a conotação
estabelecida na ordem da língua. Assim fica deslocado o sentido do que referiria a um
litígio travado entre um personagem com interesses particulares em demitir o pai do
imigrante e a possibilidade de ser esta a decisão de interesses corporativos.
5.1.3.3 Fato enunciativo 3
Fato enunciativo 3
154
A: E sua mãe era de Milão também?
S1: Minha mãe foi gestada em Milão, nascida ao sul da Itália e depois viveu toda sua
vida em Milão. Foi apenas nascer em outro lugar, assim como se, minha avó
nordestina morasse em Porto Alegre, grávida da minha mãe, foi em Fortaleza no Ceará,
ai minha mãe nasceu em Fortaleza no Ceará, no mês seguinte veio para Porto Alegre,
ela é uma gaúcha nascida no Ceará.
A: certo.
S1: então, minha mãe é uma milanesa nascida em Fordia, na Pula ao Sul da Itália,
são coisas da vida nê?!...Para ver, o local de nascimento, na letra fria do papel, local
de nascimento, independentemente que seja por exemplo local de nascimento Tóquio,
Japão, eu poderia ter nascido em Tóquio, Japão, mas eu tenho cultura italiana e
vontades brasileiras. Não sou japonês por ter nascido em Tóquio, Japão, não me faz
japonês. Eu ter nascido em Milão na Itália o me faz italiano, eu sou cinco anos
italiano, sou trinta e......(gestos com as mãos), me vi no meio de um pai, uma mãe
de cultura italiana, querendo me impor a disciplina que eles receberam por sua vez na
Itália, uma cultura teoricamente ditatorial, tipo um nazi-facismo eu me sujeitei a esse
tipo de criação desde pequeno, eu sinto, mas eu tinha que sentir a diferença!,.. de
uma educação que recebi em casa, a da educação que eu recebia fora de casa, no
colégio dos padres, irmãos lassalistas, maristas, jesuítas, no Brasil, então isso, eu sofri
um choque..., choque de diversas culturas simultâneas, que graças a Deus, me
permitiu, no meu juízo particular, nê?! (risos), de colher aqui, acolá, o melhor e
conviver com essas diferenças.
Análise:
Este fato enunciativo é extremamente importante na constituição da atualização
do relato, porque é aqui que o eu” surge com toda força para dizer de seu lugar de
referência no relato. Ou, digamos aqui o “eu” assume para si o vínculo do sujeito com a
língua e o tipo de relação que governa este vínculo.
Existem, nesta construção dois momentos que se superpõem. Primeiro temos a
relação de nascimento da mãe, ela nasce por acidente ao sul da Itália, porém ela é criada
em Milão ao Norte da Itália, portanto ela, segundo o entrevistado, é de fato milanesa,
155
isto o constatamos quando ele diz minha mãe é uma milanesa nascida em Fordia, na
Pula ao Sul da Itália, são coisas da vida nê?!.. Este tipo de acidente se repete no relato
quando o próprio sujeito vive isto mais tarde, na condição de imigrante, que ele é
nascido em Milão na Itália mas é de fato criado em Porto Alegre, Brasil. aqui uma
superposição e temos, com isto, no enunciado, um efeito de espelho porque Porto
Alegre ocupa o lugar de Milão, e Milão fica como se fosse Fordia (Sul da Itália), o lugar
que fica sem significação, desinvestido, desimbolizado na decorrência da narrativa.
A partir desta primeira constatação sobre o deslocamento feito do lugar de
nascimento, o sujeito confirma que sobre a letra fria do papel, se referindo à lei que
obriga o registro de nascimento, não se ancoram as garantias de ser daquele lugar, assim
não se é do lugar em que se nasce, senão que do lugar em que se fica. Nisto se precipita
em dizer eu tenho cultura italiana e vontades brasileiras. Assim, traça dois espaços
para o universo lingüístico-cultural no qual vive. Se por um lado, ele se tem na cultura
italiana mediante um registro na letra fria do papel, ele contrapõe a isto uma “letra em
movimento”, o que o move, na cultura brasileira, pela vontade que encontra em ser e
estar, no Brasil. Daqui, responde como sujeito com inscrição, mas, antes de tudo, com
inscrição na cultura porquanto considera, nestas duas instâncias algo que se institui
como uma letra do lugar de origem, Itália, e uma outra letra que o movimenta no Brasil.
A letra se deposita aqui enquanto marca que carrega o sujeito entre trânsitos de uma
língua restrita ao universo familiar, da cultura italiana, a uma língua que lhe imprime
movimento no social, no Brasil, esta da vontade.
Finalmente o imigrante conclui, eu sofri um choque..., choque de diversas
culturas simultâneas, o que me permitiu, no meu juízo particular, conviver com
essas diferenças. Entendemos por esta conclusão que o lugar que o sujeito registra
junto a sua vivência de língua, passa necessariamente por considerar as diferenças que
possa encontrar, e, digamos aqui, entre os veis de alteridade que possa identificar,
suportados na letra.
Considerando este fato enunciativo conforme o quadro de análise proposto,
temos que na díade “eu-tu”, da alteridade fraca, existe a inauguração no campo
discursivo do “eu” que toma para si a palavra, indicando seu lugar de referência no
enunciado, neste sentido, acontece um deslocamento no andamento da entrevista, pois,
o “ele” da narrativa
96
cede espaço ao “eu” da enunciação. Neste paradigma, “tu”
96
Distinguimos na narrativa que aqui apresentamos um tipo de enunciação influenciada pelo retrato
histórico que se quer dar a conhecer.
156
também ganha outra vitalidade quando é convidado a observar o julgamento que o “eu”
promove sobre a língua e cultura que lhe diz respeito, como se o “eu”, no caso, está
enunciando em língua portuguesa, “tu” o acompanha exatamente na língua da vontade
do movimento. Assim sendo, é para esse “tu” brasileiro ao qual o “eu” se dirige, e esse
“tu” se posiciona como aquele que o identifica enquanto imigrante dividido no trânsito
da linguagem, aquele que conta em definitivo com a diferença, aquele que sempre será
lido na condição de alteridade, ainda mais porque este “tu” não se integrará totalmente
àquilo que diz respeito à origem que o sujeito carrega, na letra fria.
Na tríade eu-tu/ele, vemos que o ele” se instaura delimitando o lugar da língua-
cultura, trazendo seus contornos em relação ao campo do “eu-tu”. Quando o sujeito traz
a consideração à letra, origem e educação, temos um elo que une estes termos em uma
conseqüência necessária, porque a letra aqui se refere ao lugar no qual um sujeito é
registrado enquanto nascido, a origem remete à cultura que os pais lhe apresentam como
representantes de um país, e a educação indica o lugar de intervenção através do qual se
integra ao mundo que começa a viver como imigrante, no Brasil. Estas três instâncias
representam espaços diferenciados aos quais o sujeito se obrigado a responder na
estrita relação com a língua, para definir o que é o lugar do nascimento, da primeira
inscrição, o que é o lugar da cultura e o que é o lugar da enunciação na adquisição da
língua e valores do país em que o habita através do processo de educação que o acolhe e
projeta. Temos, com isto, um “ele” que se desdobra em três. Observamos, então, o “ele”
que fala de uma inscrição burocrática quando o sujeito designa a letra fria, aquela letra
determinada por uma lei, neste caso, quase “acidental”, que define um pertencimento, e,
por ser burocrática, ela não compartilha de uma designação privilegiada (voltaremos
isto no eleb). o “ele” que delimita a idéia de cultura para o sujeito, define bem um
campo de transmissão em que se representado: a cultura na qual o sujeito ganha
significância, na medida em que, se expressa pelo que faz sentido, o qual é relativo a um
saber que reúne a família em torno de considerações que se têm do país do qual são
oriundos. No último desdobramento do “ele” referente ao lugar da educação, aqui se
define, para o âmbito da predicação, exatamente o lugar de inserção na alteridade forte,
que se impõe pelo exterior que ele se impelido a considerar na cultura à qual chega.
A dimensão da educação ganha uma participação especial porque principalmente caberá
a ela fornecer as ferramentas que este sujeito necessita para articular o sentido e o
diálogo com esse outro lugar, diferente do familiar-cultural. Por este retorno dos
157
desdobramentos do “ele”, o sujeito integra na instância do eu” um juízo particular que
diz para “tu” a respeito de um conviver com as diferenças.
Na última tríade da análise eu-tu/ele/ele, se manifesta no “ele” a instância da
letra fria, aquela que não tem como ser falada porque fica perdida exatamente no
movimento da linguagem, a letra da origem que demarca o nascimento do sujeito, que
fica no interstício entre o lugar de origem e o país que adota, Brasil. Isto se mostra
quando o sujeito diz eu sou cinco anos italiano, sou trinta e......(gestos com as mãos).
Aqui o sujeito deixa inconcluso o quanto ele é do outro lugar, porém ele ainda não se
diz brasileiro. Isto retorna em um inconcluso pelos efeito do dividido pelas diferenças.
Aqui podemos dizer imigrante? A cidadania que o representa em questão ainda não o
define como brasileiro, torna-se pelo não dito no imigrante que se diz mas não se
nomeia, se mostra pela barra.
Com relação à língua, temos neste fato enunciativo, um deslocamento de
significação contido na palavra gestada. Quando o imigrante nos diz que sua mãe foi
gestada em Milão, nos deparamos com uma apropriação do sentido particular, pois este
qualificativo refere a que a mãe foi concebida em Milão. Parece que, nesta frase, foi
escolhida por aproximação, no plano paradigmático, uma palavra próxima ao sentido
requerido na língua portuguesa, passando assim a palavra gestada para o plano
sintagmático. Gestada é utilizada para falar de um elemento abstrato, como, por
exemplo, gestar uma idéia. Daqui entendemos que existe um atravessamento lingüístico
que incide sobre a forma e utilização da palavra, recaindo a barra sobre a escolha da
palavra.
5.1.3.4 Fato enunciativo 4
Fato enunciativo 4
Não gostaria de privilegiar nem o mundo ocidental, nem o mundo oriental, nenhum
mundo que tenha uma espécie de poder. É uma falácia nacionalidade, patriotismo,
no mundo de hoje isso, para quem quiser enxergar um pouquinho mais à frente, não
existe italiano, chileno, brasileiro, costarriquenho, americano, inglês, isso não
existe, é apenas uma separação política econômica ou é uma separação mas
inexistente. Claro existem aqueles que viajam numa nave espacial e olha: O não
existem diferenças, e tudo é uma coisa !” a gente até sabe que é uma coisa só, mas
158
existem limites, porque a ignorância humana somada à ganância humana faz com
que abusos exi..., ocorram de todas as partes, com o fraco com o mais forte, porque
o forte o deixou mais fraco ou porque o fraco o deixou mais forte, eu me..., então, são...,
são ignorâncias de todos os lados, então, por isso minha empolgação nas letras, eu
venci dois mundos, venci o mundo, a Itália na minha pequenês porque eu lia
tudo em italiano, venci o mundo da língua portuguesa brasileira porque fui o
primeiro aluno de língua portuguesa, sempre..., inclusive era o que irritava meus
coleguinhas: como é que um cara com sotaque italiano tira 10 em ditado, tira 10 em
português, tira 10 em gramática, faz as melhores redações, eu digo: mas é claro!, eu
conheço a raiz da língua, eu conheço o italiano que é latim, o que para vocês é
estranho, que vocês estão aprendendo em português que se escreve diferente do que
se fala [...]
Análise:
Com este fato enunciativo, temos uma observação muito forte do sujeito da
enunciação na voz do “eu”, quando estabelece uma relação entre nacionalidade, limites
e língua. Primeiro o enunciador nos diz: é uma falácia nacionalidade depois confirma
não existe italiano, chileno, brasileiro, costarriquenho, americano, inglês, isso não
existe, é apenas uma separação política econômica. Contudo, no trajeto da fala, na
procura de precisão para aquilo que fica indefinido com relação às diferenças postas em
cena porque italiano, chileno, brasileiro, etc. não diz das diferenças ele tende a
definir a noção de limites quando conclui: mas existem limites, porque a ignorância
humana somada à ganância humana faz com que abusos exi..., ocorram de todas as
partes. Nesta primeira concatenação, o sujeito diz que a nacionalidade não é um real
operador para estabelecer diferenças. As diferenças são impostas pelos limites que estão
nos abusos que os homens cometem, assim, são os abusos atribuídos à ignorância e a
ganância que estabelecem as diferenças. Em resposta a este impasse no qual as
diferenças se impõem como vala comum a todo lugar e situação e onde o sentido da
distinção, então, não se processa totalmente, o sujeito produz um terceiro termo na
concepção das letras, indicando aqui um conceito de língua, de natureza da língua que
o levaria a transitar tanto em terra italiana quanto em terra brasileira, sem contrariedade,
vencendo os limites. A idéia das letras cobra um valor particular porquanto ela se
159
introduz, neste trecho enunciativo, como um elemento imutável entre o trânsito destes
dois ambientes lingüísticos, é como se a condição de valor na língua fosse somente uma,
de uma língua única que permitiria passar de um lugar lingüístico a outro, sem alteração
de valor. Parece que aqui se superpõe a negação das nacionalidades com a negação dos
valores lingüísticos de cada comunidade lingüística. Se ergue, desta maneira, uma
possibilidade de negação das diferenças por meio de uma letra plena, única, que diga de
tudo. Uma língua única? É o latim que é convocado a se posicionar neste lugar quando
o sujeito diz eu conheço a raiz da língua, eu conheço o italiano que é latim. No
último trecho escolhido, vemos que a raiz da língua retorna sobre todo o enunciado
como aquele elemento que permite ao sujeito vencer os obstáculos que a condição de
imigrante poder-lhe-ia impor enquanto um diferente.
Vejamos estes elementos relacionados na nossa proposta de análise.
Na díade “eu-tu”, temos o “eu” que convida o “tu” a observar a falácia das ditas
nacionalidades e a observar os limites impostos nas relações humanas pelas disputas
que colocam em pauta a ganância e a ignorância. Assim, o “eu” convida o “tu” para
uma indistinção de lugares relativos à nacionalidade de cada um. Posto desta maneira,
podemos entender que é a condição de imigrante que advém perante o outro, propondo
que esta diferença não se valide na enunciação para o outro, pois, trata-se de uma
falácia. Desta maneira, enquanto falácia, o critério de nacionalidade não conta do
lugar de sujeito que interessa. Como a nacionalidade não valida uma marca para falar
das diferenças entre os homens, este traço distintivo que diz do sujeito é transferido para
a consideração de limite, operada, neste enunciado, enquanto lugar da verdadeira
distinção a fazer sobre a natureza dos homens e é sobre isto que recai o dilema das
diferenças. Aqui a diferença que poderia se apresentar para a alteridade fraca se delega
para a alteridade forte, uma vez que se sai do plano pessoal para uma consideração de
políticas das relações humanas, ou seja, se vai para um plano macro social
97
.
Na tríade “eu-tu/ele”, desenrola-se precisamente o efeito da alteridade forte
sobre o enunciado, para tal, na predicação posta em pauta, é convocada a instância da
língua para organizar o espaço que precisa ser delimitado, representado, simbolizado
para esse sujeito de enunciação. Vejamos, quando o sujeito diz: por isso minha
empolgação nas letras, eu venci dois mundos, venci o mundo, a Itália na minha
pequenês porque eu já lia tudo em italiano, venci o mundo da língua portuguesa, as
97
Esse plano macro social se insere numa tentativa de síntese da problemática posta em causa porque
principalmente fala de uma constante em todo tipo de situação na qual exista sociedade humana.
160
letras vêm como aquele terceiro termo que medeia as relações de diferenças
estabelecidas no campo social aquelas que produzem categorias de valor no campo
social diferenciando os homens. Para esse sujeito as letras retratam aquele elemento que
lhe permite passar inalterado de um campo de valores para um outro campo de valores.
As letras aqui remetem à dimensão da língua, constatamos isso quando ele repara eu
conheço a raiz da língua, entretanto esta língua no enunciado tem uma condição
particular porque ela parece não distinguir diferenças no trânsito entre os diversos
ambientes lingüístico-culturais. Temos, então, no terceiro termo o enunciado que denota
a realização de uma língua plena que permite ao sujeito portar uma poderosa arma que
garante o trânsito entre esses dois ambientes lingüístico-culturais (Itália e Brasil), sem
ter de resolver a equação das diferenciações de lugar e de valor
98
. As coordenadas deste
terceiro termo, que define o efeito da língua sobre os lugares eu-tu, estabelece dois
movimentos de significação contraditórios, pois, se por um lado, vemos a proposta do
“eu” que diz para “tu” que não existe diferenças entre eles, porque ambos partilham da
mesma humanidade, que é desigual, por outro lado, no mesmo contexto, temos “eu” que
diz para “tu” que, por ele ter resolvido o terceiro termo, o “ele” na língua plena que
em última instância seria o latim, porque é uma língua não contaminada este “eu”
seria radicalmente diferente do “tu” que o escuta, porque este trabalharia com uma
língua extraviada de sua pureza
99
. Ou seja, na consideração ao “ele”, o “eu” e o “tu” se
constituiriam diferenciados radicalmente, sendo o “eu” avantajado perante o “tu”.
Assim, o que era a falácia das nacionalidades como uma distinção inexistente, retorna
como uma radical diferença pelas letras que cada um carrega. Certamente que o lugar
do “eu” e “tu” se redimensionam neste terceiro termo da predicação do enunciado.
Na terceira tríade que compõe nosso quadro de análise, eu-tu/ele/ele, temos o
“ele” retornando na tentativa de desfazer as diferenças, pois, quando o “eu” do
enunciado fala da falácia das nacionalidades, dos limites impostos pela ganância e
ignorância humana, estes qualificativos de distinção entre homens são trazidos, para em
seguida, barrá-los no conceito de letras. Seria aqui a letra que efetivamente permitiria
transpor os limites que o pacto social impõe. Entretanto, no mesmo gesto em que a letra
tornar-se-ia capaz de desfazer o distintivo, ela mesma comportaria um distintivo para
quem a dimensiona: quem “possuia letra pode se diferenciar verdadeiramente e, quem
98
Sem vida esta concepção resulta na negação da consideração de valor que desenvolvemos no nosso
trabalho, contudo exatamente o retorno sobre esta negação é que comprova a propriedade da consideração
de valor na língua, como veremos no desenvolver da análise.
99
Pois não é o latim.
161
não a “possui” está fadado se deslocar entre a falácia e os limites da ganância e a
ignorância. Aqui entra o próprio do limite da representação quando nos perguntamos:
em que medida podemos distinguir quem possui a letra e quem não a possui? Que letra
é esta? Qual sua dimensão? Trata-se de um saber lingüístico? E seria ele capaz de se
sobrepor entre outros critérios de alteridade?
5.1.3.5 Fato enunciativo 5
Fato enunciativo 5:
S1: [...] exatamente por essa criação..., por esses..., por essas não dificuldades que eu
tive, tenho a língua italiana como língua mãe, língua materna tá?! Mas
compulsoriamente eu tenho uma segunda língua materna que não é materna, que é
a língua portuguesa.
A: Ela fica como uma língua materna? O Sr. Sente assim?
S1: Tecnicamente sim, eu me sinto um português brasileiro porque eu brinco com a
língua, quando a gente brinca..., eu consigo brincar com a língua portuguesa o que
eu não consigo brincar com a língua italiana, isso que a língua italiana, ainda mais de
onde eu venho, do vêneto, o pessoal gosta muito de fazer rimas e etc. tanto que é um
dialeto, que quem escreve com aquele dialeto está sujeito a rodar na hora da prova
gramatical italiana, que seriam rodados em provas gramaticais todos os italianos
vindos ao Brasil, porque como a maioria eram não alfabetizados, eles falavam dialeto
e escrevem sim o dialeto,... até hoje.
Análise:
Aqui a forma que organiza o enunciado se dá por “eu” conta para “tu” sobre
“ela” minha língua. Observa-se, então, um tipo de vínculo que o sujeito estabelece com
a instância língua, a partir da sua vivência imigrante. Deste modo, reflete quatro
dimensões da língua com a qual convive, sendo elas a língua portuguesa ou português-
162
brasileiro, a língua italiana, o dialeto vêneto e a língua gramatical. o aqui quatro
elementos que se comunicam no enunciado. Disto se entende que a natureza da língua
com a qual o sujeito se relaciona passa a dialogar com estas instâncias que a
representam para ele. Acontece, conforme isto, um desdobramento marcado
especificamente pela experiência migratória que o sujeito se impelido a atualizar no
discurso, assegurando o endereçamento e a legibilidade de sua posição perante a língua.
Também identificamos um impulso que persegue o registro da forma na língua que lhe
de um verdadeiro suporte, no intuito de efetivar a significância requerida para o
interlocutor no enunciado.
Vejamos de que maneira estas quatro instâncias da língua são situadas pelo
sujeito neste enunciado. A língua italiana aparece nomeada como língua materna e se
atribui a isto as não dificuldades que o sujeito teve no trânsito com as línguas, ou seja,
a língua materna aparece essencialmente como aquela que lhe garante uma não
resistência entre os diversos universos lingüísticos. A língua portuguesa ganha a
conotação de uma segunda língua que se torna materna quando se apresenta
compulsoriamente pela imigração. A esta afirmação se segue uma consideração
significante quando ele diz eu me sinto um português brasileiro porque eu brinco
com a língua, e depois diz eu consigo brincar com a língua portuguesa. Aqui temos
uma expressão que indica uma natureza de língua que lhe permite movimento no
brincar. Sem dúvida que brincar com a língua pressupõe, antes de tudo, que o sujeito
domina os elementos simbólicos que estão em jogo na enunciação, pois, para produzir a
brincadeira, ele entende que o outro que escuta, o ouvinte, partilha dos efeitos
implicados na palavra e relacionada à cultura, que os situa no contexto, ou seja,
partilham de referenciais conhecidos a ambos. A essa conotação de segunda língua
materna que imprime movimento, se contrapõe a língua materna italiana na qual o
sujeito não encontra esta capacidade, na medida em que, não consegue brincar com o
italiano, e assim sendo, se expressa nisto uma certa rigidez que ao sujeito não permite
algo de lúdico, próprio a quem está inserido em uma língua. Com relação ao dialeto
vêneto, que diria daquele lugar originário na Itália, do qual veio, observa-se um
desencontro estranho porque as pessoas que partilham deste dialeto costumam fazer
rimas, ou seja, costumam brincar com a língua, coisa que ele não consegue trazer para o
italiano. Existe, neste ponto, uma questão implícita nessa dimensão da língua materna à
qual o sujeito não acede, embora ele esteja inscrito na língua que remete à identidade do
italiano. Se “eu” tenho uma herança lingüístico-cultural inscrita na língua italiana e,
163
ainda tenho conhecimento sobre estas qualidades, porque não brinco nesta língua? Isto
ecoa como um impasse no enunciado e se tenta uma resolução pela via da língua culta,
com o italiano gramatical, quando o sujeito resolve que o vêneto é um dialeto que se
utiliza para rimar, para brincar, e quem o utiliza na escrita está fadado à exclusão, pois
seria rodado na prova de língua gramatical. Desta maneira, temos uma bifurcação no
espectro da língua materna italiana quando observamos dois registros, um a língua
italiana em sua manifestação formal pela gramática e, por outro lado, encontramos o
dialeto vêneto como a língua italiana informal, aquela que, por ser popular, permite a
rima portanto, a brincadeira. Aqui estamos no efeito de uma língua que barra a outra.
Temos a língua italiana gramatical barrando o efeito lúdico que o dialeto vêneto, como
representante da língua italiana vulgar, traz.
Após a identificação das quatro instâncias de língua mobilizadas neste fato
enunciativo, passaremos à construção enunciativa conforme as três instâncias
destacadas para nossa análise.
Na díade “eu-tu”, encontramos o convite especial para observar a instância da
língua do enunciador. Nesta alteridade fraca o “eu” convida o “tu” à fala da língua,
desta maneira, a língua enquanto entidade metalingüística é refletida. Aqui temos um
“eu” que diz lidar com quatro dimensões da língua, a dizer, a língua materna italiana, a
língua portuguesa, o dialeto veneto e a ngua gramatical, como acima o expusemos. A
partir disso, a posição do “tu” se confirma na distinção a fazer: quem enuncia é
imigrante italiano. Consequentemente quem o escuta, compreende que é tido como um
receptor que representa o nativo da língua portuguesa, pois a conversa se estabelece em
língua portuguesa e a significação resulta nestes termos. Precisamente, temos aqui o
efeito do “tu” que está na posição de admitir ou não o “eu” perante as consignas de uma
língua portuguesa que admite ou não significações. As expressões compulsoriamente
eu tenho uma segunda ngua materna, e , eu me sinto um português brasileiro
porque eu brinco com a língua, dizem da pertinência relativa a uma língua em comum
portuguesa que os situa num mesmo espaço lingüístico-cultural barsileiro-português.
Ainda temos a considerar que é por meio deste recorte lingüístico cultural que a
realidade imigrante do sujeito ganha espaço.
A tríade eu-tu/ele se reflete na consideração à língua como instância ancorada
nestas quatro posições que a língua ocupa, conforme o sujeito retrata as dimensões de
língua materna, segunda língua materna, dialeto vêneto e ngua gramatical. Retorna
dessa maneira a alteridade forte quando é posto em cena o vínculo que estas instâncias
164
da língua compõem para a dimensão do sujeito que se torna imigrante. Assim, temos um
conjunto de oposições e superposições que são refletidas, sendo que a língua materna
italiana se opõe à segunda língua materna brasileira quando uma não permite o brincar e
a outra permite o brincar; temos o dialeto oposto à dimensão da língua gramatical, ou
seja a língua falada com a língua escrita. Por outro lado, o dialeto vêneto permite a rima
(brincadeira), a língua italiana não preocupasse com esse efeito. Às vezes a língua
italiana converge com a dimensão de língua gramatical.
No jogo dos lugares, a língua portuguesa converge com o vêneto porque estas
duas línguas possibilitam o brincar. Temos, assim, o sujeito constituído na consideração
a estes universos lingüísticos que o habitam, determinando impasses próprios à
convivência de dois universos lingüísticos com seus sistemas de valores. É este circuito
de oposições e superposições com a instância da língua que retorna para o enunciado,
conforme a alteridade forte, que convoca “eu-tu” a uma posição perante isto.
Na última tríade eu-tu/ele/ele, encontramos um lugar peculiar da língua que se
mostra e que se barra ao mesmo tempo e que diz respeito à língua de uso, italiana, na
roupagem do dialeto. Ela representa um elemento não representável para o sujeito na
medida em que ele não pode fazer uso de uma qualidade da língua que é o brincar, ele
sabe que no vêneto existe esta possibilidade porque no vêneto é possível fazer rimas,
porém ele não tem acesso a tal qualidade, ele acede a isto em língua portuguesa, mais
tarde. Então, a barra se realiza sobre uma capacidade do sujeito na língua de origem.
5.1.3.6 Fato enunciativo 6
Fato enunciativo 6
S1: [...] eu tenho uma certa resistência em ir à Itália, eu tive, digamos, duas ou três
oportunidades de ir à Itália e eu preferi não ir, tá!? Eu tenho uma certa resistência, um
conflito interno que eu tenho,...problemas de família,... que a minha mãe queria voltar
pra Itália, não voltou pra Itália porque eu, de algum modo, dei a entender que
eu não voltaria à Itália. Que eu em tendo vindo ao Brasil, por teimosia ou por
sentimento, eu permaneceria no Brasil.... eu sonho,...eu idealizo em ir à Itália, mas
eu quero ir à Itália como brasileiro, como brasileiro bem formado, que até digo
brincando, para ir ensinar italiano para os italianos...., provavelmente eu quero ir
para a Itália ensinar italiano para os italianos, mas eu serei um brasileiro ensinando
165
italiano para os italianos..., o italiano gramatical é claro, que isso qualquer um pode
ensinar, porque a letra fria está escrita....
Análise:
Neste fato enunciativo, entramos no cerne do dilema do imigrante quando ele se
interroga sobre as condições de voltar à terra natal. Quando o imigrante diz eu tenho
uma certa resistência em ir à Itália , e, minha mãe queria voltar pra Itália, não
voltou pra Itália porque eu, de algum modo, dei a entender que eu não voltaria à
Itália, a consideração da idéia de voltar à Itália aparece como um interesse da mãe por
voltar, ao qual o sujeito responde com uma escolha de permanecer aqui no Brasil,
fazendo resistência à possibilidade de sair. Quando, ainda, o sujeito diz eu em tendo
vindo ao Brasil, por teimosia ou por sentimento, eu permaneceria no Brasil,
reafirma uma decisão de permanecer compactuando definitivamente com seu status de
imigrante, que por meio do gesto de querer ficar, não se condiciona à forma
compulsória de estar imigrante no Brasil, senão que indica uma escolha, escolha de um
sujeito que tornou-se sujeito pela imigração e que se mostra no fato enunciativo.
nisto um pacto com a imigração em que se reúnem teimosia e sentimentos acumulados
ao longo desta trajetória que o inscreve aqui, no Brasil. Em questão, está o patrimônio
subjetivo desta experiência que lhe consistência no lugar de subjetivação
100
. É
interessante que, nesse enunciado, o sujeito coloca também a figuração de uma possível
volta, existe nisto uma hipóteses ou ainda uma aposta singular, pois destaca eu idealizo
em ir à Itália, mas eu quero ir à Itália como brasileiro, como brasileiro bem
formado, que até digo brincando, para ir ensinar italiano para os italianos.
Nessa idealização se articula um lugar de supressão da origem italiana porque ele se
pensa indo `a Itália como brasileiro, hipoteticamente, em condições de superar um
nativo italiano na língua. Aqui, se projeta também uma permanência da condição
imigrante, na medida em que, ele, sendo brasileiro na Itália, continuaria imigrante na
Itália. Contudo a língua que ele especifica, que seria aquela que ensinaria aos italianos,
é a língua gramatical italiana, que é a língua com a qual foi possível ter contato ao longo
100
A subjetivação da qual falamos está contemplada dentro da teoria benevenistiana que reconhece
índices de subjetivação, como vimos, nos indicadores pronominais, criando referencias para o enunciado,
configurando dessa forma condições para a significação.
166
dos seus anos no Brasil com a sua identidade italiana, a qual marcadamente não se
constitui para o sujeito como uma língua de uso plenamente socializado.
Na primeira díade eu-tu, da alteridade fraca, encontramos um “eu” que posiciona
o “tu” na escuta de uma resistência relativa a possibilidade de sair do campo de
interlocução no Brasil. No início do fato discursivo, fica marcada o dilema desta
interlocução, que pode se perder quando o sujeito repara eu tenho uma certa
resistência em ir à Itália, e posteriormente afirma: eu preferi não ir, tá!? Na primeira
frase, temos uma informação sobre a resistência que enfrenta diante da idéia de voltar à
Itália e em seguida, na próxima frase afirma que preferiu não ir, concatenando a
exclamação Tá?!. Esta expressão se posiciona na frase notadamente em direção a “tu”
que está posicionado na escuta do relato, e, retrata tanto uma afirmação para esse “tu”
quanto a solicitação de um consentimento daquilo que está sendo afirmando. Aqui a
presença do interlocutor se torna muito mais relevante diante da perspectiva de poder
deixar acontecer ou não essa interlocução, esse chamado contido no ta?!, que destaca a
presença do “tu” diante do “eu” que está com a palavra. Digamos, que neste enunciado,
“tu” se materializa. O “tu” se faz suporte também da representação do brasileiro que
está aqui, o falante nativo que decodifica o espaço simbólico, que tem as ferramentas
lingüísticas para admitir ou não o “eu que se diz eu”.
A força enunciativa que o “eu” encontra para sua permanência diante de “tu” se
realiza pela argumentação no enunciado, quando diz que ele fica no Brasil por teimosia
ou sentimento, retratando um vínculo consolidado neste lugar. Por outro lado, ele se
indo como brasileiro, ou seja, definido nos termos de uma cultura lingüístico-cultural
dialogada simbolicamente com um “tu” que é brasileiro, para quem isto é significativo.
Assim a forma se estabelece em um “eu” sou como se fosse “tu” indo para a Itália.
Na tríade eu-tu/ ele, observamos um movimento que traz a alteridade forte,
quando se idealiza um novo evento migratório. É o evento migratório que retorna como
um todo sob a consideração de uma possível volta à Itália. Aqui temos o evento
migratório predicado na possibilidade de uma volta à terra natal e aqui a língua ocupa
um papel importante, pois, seria ela a condição de poder voltar, que o imigrante
voltaria se fosse ensinando italiano para os italianos, assim ser mais italiano que os
italianos? Saber da língua gramatical italiana parece significar neste enunciado um tipo
de garantia para o que possa “faltar” à identidade italiana, porque a expressão, mesmo
brincalhona, revela um certo resguardo diante das “vozes” daqueles que na Itália
poderiam lhe indagar sobre sua ausência, por isso, antes ensinar do que ouvir e ter de
167
responder algo que não está ainda integrado para o sujeito sobre sua identidade italiana
aqui, no Brasil. Assim, ele se sabe estrangeiro na Itália quando diz que ele voltaria à
Itália como brasileiro. Reconhece aqui que muito provavelmente seria considerado
brasileiro na terra natal e não italiano de fato. O “ele” do enunciado, como dizemos,
reflete o ser imigrante no qual o sujeito não se apreende nem totalmente italiano nem
totalmente brasileiro, pois sempre teria de entrar no mérito de estar sujeito a dois
universos lingüístico-culturais, sempre em diálogo.
Na tríade eu-tu/ele/ ele, encontramos a sutilidade do “ele” retornando sobre a
tríade eu-tu/ele quando derivamos este impasse do imigrante, acima desenvolvido, no
qual o “ele” se coloca por meio de uma reflexão sobre a relação que o sujeito imigrante
desenvolve quando se depara com a hipótese de retornar ao lugar de origem. Nisto
observam-se dois caminhos, um em que escolhe ficar no Brasil, sabendo que é italiano
de origem, e outro em que iria à Itália como brasileiro. Neste cruzamento,
identificamos, por um não dito que insiste no enunciado, alguma coisa que sempre
ficará em aberto relativo à identidade no lugar no qual se encontra. Aqui podemos
recorrer à observação de valor na língua, pois, como vimos em Saussure, os elementos
de cada sistema lingüístico comporta um valor próprio que ganha coerência e
significância no próprio sistema. Assim sabemos que a tradução de um sistema para
outro sempre é aproximativa e recorrente da estrutura semântica das línguas que
permitem aproximação. Neste caso, vemos o sujeito palpando essa não tradução
subjacente ao fato de ter de responder a cada sistema de língua sobre sua condição de
falante, suportando aquilo que não tem como ser transferido de um universo a outro,
sem comportar uma perda. Por conta disto, nunca ele é totalmente italiano e nem
totalmente brasileiro, ele se em uma báscula entre estes paradigmas lingüístico-
culturais. Dessa maneira, quando ele está no Brasil, ele não é totalmente brasileiro e
quando, mesmo que hipoteticamente, está na Itália, ele não é totalmente italiano. O
“eleb” conseqüentemente se deixa sentir nesta difração que o sujeito mostra em sua
enunciação. Assim, podemos reparar que, quando o sujeito diz que seria um brasileiro
na Itália, produz-se ali uma barra sobre sua identidade italiana.
Considerações parciais da análise
Quando, no início desta análise, indicamos a transposição de cena que o sujeito
italiano encontrou na sua vida, no momento exato em que era trazido para o Brasil ainda
168
criança, nos encontramos com o impacto que esta travessia significa para qualquer
pessoa. Especialmente esta análise nos provoca quando consideramos a experiência
advinda de uma visão que se inaugurou na infância para a constituição do olhar adulto,
retratado na enunciação atual sobre a experiência. Trabalhamos nos limites que uma
entrevista nos pode fornecer e, neste sentido, podemos dizer que tratamos com lampejos
identificados por meio da enunciação, contudo de alguma forma, assim como o lampejo
no escuro da noite nos oferece, por um fragmento de segundos, a imagem da paisagem
que se esconde na escuridão e nos faz intuir nosso lugar no meio da paisagem, também
estes fatos enunciativos nos permitem intuir o localização do sujeito em sua experiência
imigrante.
Este relato, por compreender a experiência migratória em um trajeto maior de
vida, nos mostra certas considerações sobre a dimensão histórica no plano enunciativo.
Vemos que isto se reflete na ordem das relações, organizada na fala, trazendo impasses
específicos quando nos deparamos com os dois primeiros fatos enunciativos nos mostra
sua vinda ao Brasil, considerada compulsória. Aqui observamos as superposições das
diversas instâncias enunciativas, em particular a figura do “eu”, em que um “eu” atual
mostrava o lugar enunciativo de um “eu” criança. Estabelecemos neste ponto, a
perspectiva da anterioridade como uma terceira via na enunciação. Também
consideração da história paterna retratada na consideração do “ele” da enunciação. Nisto
também observamos uma superposição de lugares, na anterioridade, em que a figura do
pai se descreve em sua façanha particular, organizando a imigração e, por outro lado, na
dimensão subjetiva, acompanhamos a construção de uma versão em que o pai, ao trazer
um conhecimento específico (saber sobre técnica em vidraçaria) e ao ser deslocado do
lugar enunciativo, funda uma linha de trabalho no Brasil. Disto, se abre toda uma
perspectiva de fundação do sujeito que se inscreve neste outro lugar, de maneira
específica. Adiante, também aparece a consideração à inscrição do lugar de nascimento
e lugar da cultura, quando lembra que sua mãe nasce ao Sul da Itália, mas que se cria
em Milão. Do mesmo modo ele nasce em Itália mas é criado no Brasil. Novamente
identificamos que a partir da história da mãe, o sujeito projeta sua história subjetiva,
operando com elementos que o ajudam a operar sua cidadania imigrante. A
superposição, neste momento, recai sobre a instância do ele” que, por um lado, retrata
a história familiar e por outro, constrói a versão subjetiva de uma história que o define
como sujeito que se inscreve na outra cultura.
169
Finalmente nos resta considerar que, na instância do “ele”, nos encontramos com
o pêndulo que se marca pelos silêncios, irrepresentados, não-ditos, que neste imigrante
se integra, ao tentar considerar, em última instância, o lugar de pertencimento entre a
letra fria (do registro burocrático) e a cultura. Aqui vemos que, diante da idéia de voltar
algum dia para a Itália, ele voltaria como brasileiro, e nós a lemos neste enunciado que
voltaria como imigrante, estabelecendo-se um irrepresentado, uma alteridade radical a
qual não se consegue resolver, porque sempre estará outro para o lugar onde for.
A seguir, apresentaremos a análise da imigrante uruguaia.
5.2 Imigrante uruguaia: Na fronteira entre uma capital e um interior:
a construção de um novo conceito de subjetividade na imigração
Aqui tinha todo o milagre brasileiro, tinha toda uma euforia, digamos...,
que si bem que não foi a face de ouro, digamos o ápice, digamos da promessa,
entonces..., mas tinha a idéia de que era o país do futuro ( imigrante uruguaia)
5.2.1 Sobre o sujeito 2: imigrante uruguaia (S2)
A imigrante que aqui apresentamos é de origem uruguaia, conta com mais de
cinqüenta anos e ela está no Brasil desde 1974, aproximadamente 33 anos. Sempre
morou em Porto Alegre. Depois que veio para o Brasil, nunca mais voltou para o
Uruguai. Exerce a profissão de fisioterapeuta, também tem atividades na área de artes.
Atualmente é viúva e tem uma filha brasileira que mora com ela.
5.2.2 Contexto enunciativo
A entrevista que aqui apresentamos foi realizada no local de trabalho da
imigrante uruguaia (S2), ela nos recebeu amigavelmente e se mostrou receptiva à
entrevista durante todo o seu desenvolvimento. A entrevista durou aproximadamente
uma hora, no dia 4 de agosto de 2007.
5.2.3 Apresentação dos fatos enunciativos e respectivas análises
5.2.3.1 Fato enunciativo 1
170
Fato enunciativo 1
A; Como você veio para o Brasil?
S2: Bom, eu vim a Porto Alegre em 1974, o que me levou basicamente a procurar
outro lugar para morar, para trabalhar, foi que eu me formei em minha profissão,
me formei em Montevidéu na capital do Uruguai e fui trabalhar no interior na
Rivera, na fronteira e nessa fronteira eu era a primeira profissional do ramo, em
Fisioterapia, eu não tinha um campo de trabalho, digamos trilhado, eu era a primeira
como se diz e encontrei dificuldades para me comunicar, ter um trabalho
interessante [...]
A; que idade tinhas? (quando viestes ao Brasil)
S2: eu tinha mais ou menos dezenove anos, eu queria ter a minha casa, minha
carreira, minha profissão, minhas condições... feitas por mim, e, no interior, era
distante,... porque era complicado sair de casa dessa forma. Então procurei dois
palcos..., duas cidades grandes que pensei, ou Montevidéu ou Porto Alegre.
Montevidéu acabou não sendo possível porque era muito complexa a situação
nesse momento no Uruguai e eu não iria morar sozinha, como eu queria. Porto
Alegre se mostrou aí mais interessante. Aqui também não existia a carreira em
Fisioterapia, embora existiam fisioterapeutas em Porto Alegre, ainda não tinha, só em
Rio de Janeiro e acho São Paulo. Existia sim uma pessoa trabalhando em fisioterapia
de origem alemã, a Bárbara, foi a primeira a trabalhar.
Análise:
A primeira análise que apresentamos, do fato enunciativo da sujeito
imigrante uruguaia, retrata os motivos da sua vinda ao Brasil, indicando-nos que veio na
perspectiva de novos horizontes para sua profissão e para sua vida. Entretanto, aparece
171
aqui um dado curioso quando relacionamos a construção de lugares geográficos no
enunciado, que o observamos quando ela diz eu vim a Porto Alegre em 1974, o que
me levou básicamente a procurar outro lugar para morar, para trabalhar, foi que
eu me formei em minha profissão, me formei em Montevidéu, na capital do
Uruguai e fui trabalhar no interior na Riviera, na fronteira e nessa fronteira eu era
a primeira profissional do ramo e encontrei dificuldades para me comunicar, ter
um trabalho interessante. Vemos, nesta costura enunciativa, uma equação que
manifesta uma contraposição entre dois espaços, um que está associado à capital e um
outro associado ao interior. Nesta primeira parte, temos que a formação profissional se
deu na capital, Montevidéu, trazendo uma experiência qualificada para o sujeito e
quando esta prática profissional tenta ser aplicada no interior, encontra impasses que
refletem um lugar que oferece menores perspectivas. Tal idéia se realça quando diz
encontrei dificuldades em me comunicar, indicando nisto uma fronteira enunciativa, na
qual os sentidos propostos para sua profissão, que conquistou na capital, não encontram
as mesmas condições no interior. Com isso, a palavra fronteira que identifica a cidade
de Rivera, ganha uma significação particular, pois localiza um lugar físico se que
coaduna com um lugar subjetivo no qual ela se encontrava, em dificuldades de se
comunicar, de trabalhar, de se realizar no campo social como sujeito de enunciação.
Trata-se, por meio desta consideração de uma fronteira enunciativa.
A segunda parte do enunciado que destacamos, aprofunda ainda mais a
dicotomia entre lugares que chamaremos de geográfico-enunciativos, entre interior e
capital. Aqui se aprofunda a experiência subjetiva na procura de um lugar que lhe
permita melhores horizontes profissionais e, ao mesmo tempo, que lhe assegure uma
independência que não encontra no interior. Temos, tomando este ponto de partida, que,
junto com qualidade comunicativa, ela procura uma independência, que mais uma vez,
se vê possível na capital e não no interior, contrastando novamente estes lugares.
Finalmente, no último trecho, nos deparamos com uma consideração importante
quando a imigrante emite a seguinte consideração: Então procurei dois palcos..., duas
cidades grandes que pensei, ou Montevidéu ou Porto Alegre. Montevidéu acabou
não sendo possível porque era muito complexa a situação nesse momento no
Uruguai e eu não iria morar sozinha, como eu queria. Porto Alegre se mostrou
mais interessante. Nela vemos que o estatuto da capital que ela procura se relaciona a
duas capitais, sendo elas Montevidéu e Porto Alegre, que figuram como dois palcos,
exatamente onde ela se atuando, e acaba escolhendo Porto Alegre, dentro do
172
contexto da época. A princípio, não existe nada de estranho nesta comparação e escolha
por Porto Alegre, contudo é palpável que na cogitação entre as capitais (Montevidéu e
Porto Alegre), é o significante capital que opera neste enunciado, contrapondo-se ao
significante interior. Daqui, vemos que não se trata de uma escolha entre países, e sim
entre capitais.
Após este contexto inicial, analisaremos esse fato enunciativo `a luz de nossa
proposta de análise. Refletindo a primeira ade eu-tu, da alteridade fraca, observamos
que o “eu” conta para “tu” sobre os motivos da imigração. Nisto está implicada uma
expectativa mostrada para o “tu” em que se leva a reconhecer o ímpeto da realização
profissional e da independência procuradas. À medida que o “eu” dirige-se a um “tu”
que se contextualiza em Porto Alegre, ele explicita que estas exigência puderam ser
atingidas nessa capital e não no interior Rivera, cidade natal uruguaia. Como vimos
acima, está em jogo, por meio da oposição de lugares capital/interior, toda uma
consideração enunciativa, pois, se indica pelo enunciado analisado que foi na capital
que ela pôde se comunicar e não no interior, onde tentou achar recursos e não
encontrou. Disto podemos considerar que o “tu” ao qual o “eu” se dirige é interrogado
sobre a capacidade que possui para escutá-la. Neste sentido é expressivo que esse “tu”,
no contexto que ela escolhe, em tendo optado por Porto Alegre, é um “tu” de um outro
lugar da fronteira, de uma outra língua, é um tu de um palco diferente, que, mesmo
comportando essas insígnias da diferença, se torna mais apto para a comunicação do que
aquele que fica em terra natal e que partilha da mesma língua. Assim a língua não
representa a marca da diferença, o que faz a diferença é a capacidade de produzir um
sentido e um reconhecimento do que se faz, neste caso, como profissional.
Configurando esse reconhecimento solicitado à instância do tu, podemos dizer que o
enunciado traz duas fases do tu, um “tu” que está em posição de escutar o relato aqui,
agora, que é aquele do contexto brasileiro no qual se expressa pela forma eu” conto
para tu” sobre a imigração, e um outro momento em que eu” conto para “tu”,
sobre aquele “tu” que não se comunica, do lugar de origem.
Na segunda tríade eu-tu/ele, temos exatamente o efeito da dicotomia
capital/interior que retorna sobre as instâncias subjetivas. O “ele” diz de uma escolha
que o sujeito teve de fazer entre duas capitais, e que escolhe Porto Alegre. Trata-se
essencialmente do ele como palco que lhe permite as condições enunciativas exigidas.
Assim, como vimos, representa-se no ele” essencialmente um lugar que possa
interpretar melhor seu trabalho.
173
Na terceira tríade de nossa análise eu-tu/ele/ ele , vemos um “ele” por um não
dito que permeia o enunciado. Diz respeito a esta escolha que comporta faze opção, uma
escolha entre capitais, e não considera a diferença entre países, que está subjacente no
enunciado.
5.2.3.2 Fato enunciativo 2
Fato enunciativo 2
A: E, como foi o desafio do idioma?
S2: Em relação à língua portuguesa em si, eu não tinha maior dificuldade de
língua, sempre falei com sotaque, que nem até hoje, trinta anos
depois,...evidentemente que me confundem com gente de outro lugar ou pensam que
sou italiana ou argentina ou uruguaia ne?!..., então, sotaque nunca perdi, ...mas a língua
como nasci na fronteira, falar a língua para mim não era difícil, então difícil era
falar-la bem, falar-la com..., fonicamente bem, mas justamente pelo fato do lugar
que eu nasci a gente se comunicava, os brasileiros em português e eu em espanhol e
nos entediamos perfeitamente, então, nunca fui forçada lá a falar a língua... e, o outro
componente, que eu acho mais singular em relação à minha família é que minha
mãe é professora de idioma espanhol e é dessas professoras que ama a língua,
acima de tudo, então, até hoje ela não se conforma..., por eu ter uma filha brasileira,
ela gostaria que essa minha filha falasse o espanhol com ela.
Análise:
No fato enunciativo apresentado, deparamo-nos explicitamente com a
problemática da língua trazida pela imigrante. Vemos que aqui se aprofundam as
considerações sobre ter nascido num lugar de fronteira, fato que lhe faz presumir não ter
dificuldade em entender o português e, por sua vez, ser compreendida, na sua fala em
espanhol, pelo falante nativo português. Vejamos como as considerações se
desenvolvem a partir da nossa proposta de análise.
Na primeira díade “eu-tu”, vemos que o “eu” introduz o “tu” em uma dupla
implicação, primeiro temos o “tu” da capital portoalegrense nas disposições de um aqui
174
agora atualizado na enunciação quando nos diz sempre falei com sotaque, e continua
evidentemente que me confundem com gente de outro lugar. Aqui nos informa que,
na evidência do sotaque que carrega, o interlocutor daqui intui facilmente que ela é de
um outro lugar que não o Brasil e esta referência se reafirma no né?!, solicitando uma
confirmação do interlocutor “tu”, que coincide com quem realiza a entrevista naquele
momento. A partir deste quadro um deslocamento da cena em que um outro “tu” se
deixa mostrar, que é aquele que faz parte de uma relação de anterioridade ao enunciado,
quando, nas suas palavras, lembra que o lugar que eu nasci a gente se comunicava, os
brasileiros em português e eu em espanhol e nos entedíamos perfeitamente. Nessa
segunda consideração, reconstitui um “tu” que remete a este lugar de fronteira no qual
se convive com as duas línguas a ngua, portuguesa e espanhola, sem entrar em atrito
porque ali se tolera a diferença idiomática sem ninguém precisar abdicar da sua língua
para que o outro, da outra língua, o entenda. Ela diz que para esse “tu” a diferença de
língua não interfere na comunicação.
Na triáde eu-tu/ele, é exatamente a língua que é predicada, contudo é adjudicado
a isto o efeito de comunicação e aqui vemos um retorno singular para o efeito de sujeito
dessa imigração, pois, entendemos, por meio do que ela traz neste enunciado, que para
ela existe uma dificuldade com a língua portuguesa porque ela não perde o sotaque e
observa que isto faz com que as pessoas percebam que ela é originária de um outro
lugar, contudo reflete que quanto à questão da comunicação, de se fazer entender,
consegue um resultado favorável, pois lida com o universo bilíngüe espanhol-português
desde o lugar de origem. Assim sendo, a problemática se deposita na língua bem falada,
fonicamente bem falada que ela não consegue produzir. Aqui observamos um pouco da
distinção que Benveniste faz sobre a natureza semiótica e a natureza semântica da
língua, lembrando que no semiótico está em questão o reconhecimento do signo
lingüístico e no semântico é a compreensão das significâncias operadas a partir dos
signos. Contando com este efeito, o autor entende que é na perspectiva semântica que a
tradução entre idiomas se realiza, e aqui voltando à nossa análise, vemos que a
imigrante em questão estabelece, de certa maneira, esta mesma relação quando diz que
encontra dificuldades na pronúncia, que identifica o âmbito da semiótica da língua,
que a diferenciação significante do signo em português se quebra de alguma forma
quando, na fala, não se reproduz esta discriminação adequadamente (sotaque);
entretanto, abaliza justamente o âmbito semântico em que a compreensão é posta em
primeiro lugar, propiciando encontrar um desenvolvimento adequado para que os
175
implicados na interlocução, mesmo tendo línguas diferentes, possam se entender
perfeitamente. Digamos que esta língua que a imigrante convoca requer um certo
acordo de cavalheiros em relação às diferenças.
Na última tríade de nossa proposta de análise eu-tu/ele/ ele, notamos que o “ele”
se configura através da seguinte construção que se acrescenta como um dado
significativo quando ela entende existir um componente singular, relativo a essa ngua
que não se fala totalmente bem e que se expressa pela seguinte frase o outro
componente, que eu acho mais singular em relação à minha família é que minha
mãe é professora de idioma espanhol e é dessas professoras que ama a língua,
acima de tudo. Aqui temos a figura da mãe que emerge como uma guardiã da língua
espanhola, pois é professora de língua espanhola e daquelas que ama a língua. Sob essa
perspectiva, notamos que este acréscimo vem como uma justificativa ao fato de não
admitir ainda se apropriar totalmente da língua portuguesa. uma questão de amor à
língua e aqui literalmente à língua materna e deixar o sotaque significaria apagar os
vestígios da morada da língua espanhola, levando a um corte nesta outra cena
comunicativa que se realiza em língua materna. Deste ponto de vista, vemos que a idéia
da comunicação se apresenta como uma instância maior que permite a negociação entre
os dois sistemas de língua com os quais a imigrante lida, sem ter de escolher entre as
duas línguas.
Nesta construção, o “eleretorna, neste intervalo, como uma língua portuguesa
que não é totalmente admitida devido a esta negociação com a língua materna
espanhola, e na manifestação do sotaque se evidencia essa língua portuguesa alterada.
Conforme este movimento na língua, entendemos que nisso opera uma condição do
irrepresentado para o sujeito na língua, na medida em que, manifesta considerar as
condições da língua portuguesa bem falada, entretanto este objetivo se perde, é barrado
por uma outra construção que a altera foneticamente, interferindo, de alguma maneira,
na concepção da significância semiótica. Temos, assim, os efeitos de uma língua
mostrada e barrada em sua expressão.
5.2.3.3 Fato enunciativo 3
Fato enunciativo 3
176
A: A tua referência antes de vir realmente era Porto Alegre?
S2: É mais Porto Alegre por questões culturais também né?!, por se ligar a coisas
no Uruguai, mas na realidade por exemplo, de coisas que eu percebi aqui e não em
Uruguai é que a maior parte dos uruguaios é uma população pequena, as raízes
nossas é fundamentalmente espanhola, de muitos vascos do norte da Espanha,
diferentes dos da Argentina por exemplo, diferente de vocês...dos chilenos..., então,
aqui no Brasil eu fiz contato com pessoas de descendência alemã, descendência
italiana, árabe, japonês, orientais, coisa que em Uruguai eu nunca tive. Trabalhava
no interior, com pouca diferença porque não tem colônia lá...., é muito homogêneo,
então para mim isso sim é uma descoberta, isso é até hoje é uma grande diferença,
porque, claro, o mundo se tornou muito mais apto às diferentes culturas...eu
comecei a me dar conta dos diferentes tipos culturais e hábitos..., dependendo do
contexto brasileiro, mas a descendência deles não era de pais brasileiros, era pai
brasileiro mãe alemã, que yo, japonês..., francês ou outra coisa, aí a gente começa a
sentir pelas diferenças enraizadas com aqueles...(gestos com as mãos indicando
aqueles anteriores, os que vieram antes), tu reconheces diferentes raças aqui...,
mais semelhantes ao Uruguai ou Argentina mais riograndense, quando não, se
por esses outros idiomas de outras etnias.
Análise:
Olhando para esse fato enunciativo, temos que a imigrante realiza comparações
entre o Uruguai e o Brasil, conforme o ponto de vista cultural. Observa algumas
semelhanças e algumas diferenças radicais que lhe fazem transitar entre lugares
familiares e lugares estrangeiros na mesma cidade de Porto alegre. Do lado das
semelhanças, encontramos a seguinte frase respondendo à questão sobre ter escolhido
Porto Alegre para morar: É mais Porto Alegre por questões culturais também né?!,
por se ligar a coisas no Uruguai. Aqui observa que existem pontos de contatos
culturais semelhantes entre Porto Alegre e Uruguai, e, nos deparamos com a extensão
desta idéia quando ela também nos diz: mais semelhantes ao Uruguai ou Argentina
mais riograndense, ou seja realiza nesta apreciação uma proporção em que identifica
177
que quanto mais as pessoas em, Porto Alegre, se assemelham a argentinos e uruguaios,
mais elas são riograndense. Assim, chama esta identidade riograndense para uma
condição de cidadania que ultrapassa as fronteiras oficiais e idiomáticas entre os países
em questão. Transparece, por meio dessa ótica, a idéia daqueles que seriam os naturais
desta terra, diferenciando-se assim os estrangeiros pertencentes a outra etnias.
Do lado das diferenças aparece um outro paradigma que a imigrante salienta ao
vincular duas idéias no enunciado, primeiro quando refere de coisas que eu percebi
aqui e não em Uruguai é que a maior parte dos uruguaios lá é uma população
pequena, as raízes nossas é fundamentalmente espanhola, e depois conecta-se uma
segunda idéia quando se acrescenta aqui no Brasil eu fiz contato com pessoas de
descendência alemã, descendência italiana, árabe, japonês, orientais, coisa que em
Uruguai eu nunca tive, e ,ainda, então para mim isso sim é uma descoberta, isso é
até hoje é uma grande diferença, porque, claro, o mundo se tornou muito mais
apto às diferentes cultura. Nesta seqüência, vemos que ela diferencia a vivência
culturalista que privilegia a cultura que traz do Uruguai para uma vivencia
multiculturalista, propriciada aqui, no Brasil, quando observa que no Uruguai se conta
com uma cidadania muito homogênea, determinada essencialmente pela influência
espanhola, diferentemente ao que ocorre no Brasil que permite um encontro ímpar com
diferentes pessoas pertencentes a diferentes origens, a diferentes países.
Na díade eu-tu”, da alteridade fraca, o “eu” conta para o “tu” sobre as
características culturais que os une e que os diferencia em Porto Alegre, Brasil. Assim
temos, em um primeiro momento da enunciação, uma distinção sobre o espanhol vasco
que está presente no Uruguai, diferentemente dos outros colonizadores espanhóis
presentes nos países vizinhos. Aqui o “eu” marca uma singularidade dentro do universo
espanhol, e uma das características disso é que o universo cultural que predomina em
sua terra natal é bastante homogêneo, configurando um “eu” muito semelhante ao “tu”.
Este ponto de partida lhe permite descobrir que em Porto Alegre encontra uma diferença
radical a este respeito, pois as pessoas têm diversas origens, não só origem espanhola,
senão que de diversos lugares do mundo. Digamos que a imigrante se depara com um
universo bastante heterogêneo. Temos com isto um “eu” que se distancia do tu. Por esta
via, ela trabalha com as possibilidades de um “eu” simétrico com relação ao “tu” em
terra natal, e de um “eu” dessimétrico no Brasil. Entretanto uma terceira possibilidade é
sugerida a para o “tu”, pois o “eu” e o “tu” compartilham de uma identidade
riograndense que desfaz a consideração sobre a fundação do universo espanhol ou
178
português, trabalhando com uma identidade geopolítica que situa uma cultura
riograndense que está presente nessa região da América do Sul e que ultrapassa a
consideração de fronteira. Aqui o “eu” novamente se assemelha ao “tu” pelas
características culturais que articulam três fronteiras Uruguai, Argentina e Brasil.
Conforme este movimento com a díade “eu-tu” podemos dizer que se estabelecem três
tempos, um primeiro em que o “eu” é igual ao “tu”, quando o Uruguai comporta um
povo homogêneo; em um segundo momento o “eu” é diferente do “tu” quando em Porto
Alegre a imigrante encontra pessoas de diversas origens e, em um terceiro momento, o
“eu” se assemelha ao “tu” por uma identidade cultural riograndense diferente das outras
etnias culturais presentes no Estado ou capital, Porto Alegre.
Na tríade eu-tu/ele, o “ele” da alteridade forte retorna sobre o pólo da referência
subjetiva, trazendo para o relato a experiência do encontro com as diferenças, marcada
na seguinte frase: então para mim isso sim é uma descoberta, isso é até hoje é uma
grande diferença, porque claro o mundo se tornou muito mais apto às diferentes
culturas....Identificamos aqui a abertura que o sujeito realiza, nesta experiência
imigrante, tornando-se sensível às diferenças entre os sujeitos. Acreditamos que,
conseqüentemente, também no reflexo em espelho, se deixa apreender a própria
diferença entre os diferentes. O “ele” então vem como aquela terceira instância que lhe
ajuda a simbolizar as dessimetrias presentes no campo da cultura e da língua
101
.
Na configuração da terceira tríade eu-tu/ele/ ele, observamos uma formulação
que margem a uma terceira via deste enunciado, que recai sobre o efeito de
significância que se deposita entre a constituição do igual e a constituição do
dessimétrico das identidades culturais-linguísticas, que esse sujeito imigrante nos
reproduz. Falamos especificamente do paradoxo que ecoa quando temos um igual que,
por ser tão igual, se torna totalmente diferente e de um diferente sendo tão diferente
torna-se um igual. É isso que se processa quando nos deparamos com a constatação da
imigrante, quando refere a que os uruguaios são um povo tão homogêneo, descendente
de uma mesma raiz espanhola, que definem um tipo de traço cultural muito diferente do
resto. Por sua vez, outra via se desenha quando o diferente das diversas etnias presentes
no Brasil, comporta uma heterogeneidade tal que se agrupa no conjunto dos diferentes
como um todo. Por serem todos diferentes, são iguais em sua diferença e isto se
contrapõe a uma identidade riograndense que seria o traço originário dessa região, os
101
Está aqui configurada a relação com esse Outro da cultura que demanda sua interpretação por parte do
sujeito.
179
“verdadeiros” desta terra. Então temos aqui que o igual se mostra para em seguida ser
barrado e o diferente se mostra para em seguida ser barrado também.
5.2.3.4 fato enunciativo 4
Fato enunciativo 4
A: E o humor do qual tu estavas falando?
S2: Olha, eu levei anos sem rir (ri)....verdad!... me dava conta que quando eu chegava
eu ria, gargalhava, eu gosto de rir..., aqui eu não ria naquela época...uma das
coisas que percebi é que aqui não batia o sentido do humor com....aqui! porque eu
também não tinha amigos...mas de verdad...pelas relações de trabalho, acho que isso
é uma coisa que eu analiso hoje em dia vendo como a minha filha se desenvolve,
vendo outras pessoas, que o fato de estudar em um lugar, de ter...., se relacionar desde
pequenas, pessoas desde estudantes....e, que vivem na mesma cidade e crescem...e te
uma rede de relações totalmente diferente do estrangeiro que chega pra plantar
com 25 anos, sem nada dessa rede significante de relações...para mim pelo menos
levou muito tempo...anos! O fato de falar com uma amiga mais ou menos semelhante
para mim não foi fácil,...não absolutamente, então eu tenho no dia a dia uma relação
com colegas de trabalho....não era uma relação de amizade, não era uma relação
de achar uma identidade, uma identidade real, real de hábitos em comuns, de
sonhos comuns, era totalmente diferente,...bem diferente, então, ... essa curiosidade
veio depois ao longo dos anos, veio por pessoas da parte artística na verdade...
Claro que comecei desenho artístico, sempre quis fazer uma coisa relacionada com
artes, comecei trabalhando a full time terapia e pelas tantas senti a necessidade de
fazer uma coisa diferente e consegui ....poder trabalhar e conciliar com os estudos
também de artes, né?! E através disso...., desse outro grupo também, digamos, que
entrou na minha vida, dessa forma é que eu comecei a me sentir mais entrosada,
realmente mais...à vontade, digamos estudando melhor, ficando ligada..., acho que
a coisa tem uma forma diferente quando tu é uma prestadora de serviços, é
estrangeira ou quando tu é uma pessoa que se movimenta no mundo da arte, que
não é um ser humano trocando uma coisa por outra, por dinheiro digamos e, onde
então todas as coisas ficam mais harmônicas.
180
Análise:
Na seguinte análise, nos defrontamos com a avaliação que a imigrante faz da
condição de estrangeiro em sua experiência de vida. Está em jogo o efeito de identidade
que consegue reconstituir no trajeto imigrante. A forma que se destaca é “eu” conto ao
“tu” sobre o mundo significante das trocas em que me situo. É interessante considerar
aqui que toda a digressão sobre o assunto desenvolvido desencadeia-se a partir da
consideração sobre humor, assim, a imigrante nos conta que ela ri no Uruguai e o
conseguia rir no Brasil, e isto se deve a que não encontra de imediato um semelhante
que lhe permita situar um sentido adequado ao que diz. Esta experiência se reflete
primeiro na capacidade de rir porque, segundo ela, não batia o sentido do humor. Ela
conclui que isso acontece porque não tinha amigos verdadeiros por aqui. Deste modo, o
outro que se lhe apresenta na imigração não apreende a mesma referência que ela
organiza para rir de alguma coisa
102
. Observamos que a imigrante, ao identificar este
desencontro com o outro, se permite elaborar a trajetória dos sentidos possíveis na sua
experiência, desde o primeiro momento da sua imigração e discorre sobre esta
particularidade a partir do que assiste na criação da filha. Vislumbra nisto uma diferença
na qualidade de convivência entre quem faz um percurso na mesma cidade,
estabelecendo uma rede significante de relações e quem chega com mais idade, para
plantar, em outras circunstâncias, as condições para que um vínculo de relações venha a
acontecer. Temos com isso um segundo tipo de desencontro.
Uma última elaboração vislumbramos quando a imigrante avalia a sua condição
de prestadora de serviços em que se vê dentro de um sistema básico de trocas em que o
que interessa é o serviço feito e o dinheiro adquirido. A este tipo de vínculo ela
contrapõe um outro sistema de trocas em que os sujeitos intercambiam valores de ordem
subjetiva, o que, nesse caso, se refere ao grupo de pessoas que se reúnem por interesse
no campo das artes. A particularidade significante que ela associa a estes dois modos de
trocas é que no primeiro, como prestadora de serviços, ela se torna uma estrangeira e, no
segundo modo, no universo de troca com seu grupo de artes, ela se numa outra
102
Seria necessário discutir as particularidades do chiste como uma função enunciativa específica, porém
aqui, apoiando-nos no paradigma freudiano que trata do assunto diremos que confirma-se que o efeito
necessário do chiste se processa somente na presença de um terceiro identificado a si mesmo, que permite
o sentido ou ainda o contrasentido que essa troca enunciativa comporta. Na situação de estrangeiro o
sujeito só se depara com um não sentido para o outro que não deixa acontecer o efeito natural do chiste.
181
situação, pois está entre iguais, em um mesmo nível de participação comunicativa, onde
não é um ser humano trocando uma coisa por outra.
A partir deste preâmbulo, vejamos como estas considerações se organizam
conforme nosso quadro de análise.
Como preanunciamos os efeitos estabelecidos na ade “eu-tu” são a tona
deste fato enunciativo, de acordo com a maneira como o “euintroduz o “tu”. Se, por
um lado, temos o tu ao qual o eu se dirige para contar-lhe sua história, atualizando assim
o enunciado num aqui e agora, por outro lado, temos a apreciação de um tu que se
apresenta no relato por uma situação de anterioridade no discurso, de tal modo que se
oferecem alguns desdobramentos do lugar do tu que aqui destacamos. O “tu”, que
denominaremos de originário, assinala o “tu” representante da identidade uruguaia, um
segundo “tu” se relaciona ao lugar do estrangeiro, e, por último, focalizamos o tu que se
reconhece na realidade intersubjetiva da atualidade. Vejamos melhor cada um desses
vínculos. Para o “tu” do enunciado atualizado o eu mostra um tu do lugar de origem
com o qual pode compartilhar uma experiência significante referente ao humor que
retrata o compartilhar de um universo simbólico próprio a suas vivências e, por isto,
passível de alteração de sentidos ou que lhe permite suportar o contra sentido de uma
proposta chistosa. Esse “tu” originário, se atualiza na entrevista quando se expressa a
seguinte frase: Olha, eu levei anos sem rir (ri)....verdad! Esta expressão denuncia o
interlocutor do espanhol que se reflete na pessoa que a entrevista, também de origem
espanhola, pois a afirmação verdad! é dita em espanhol e ela está na frase como uma
afirmação consentida por este outro que a escuta, aproxima-se ao né?! proferido em
português para essa função de consentimento solicitado.
O “tu do estrangeiro se apresenta quando a imigrante refere acho que a coisa
tem uma forma diferente quando tu é uma prestadora de serviços, é estrangeira.
Neste trecho, temos a nítida percepção de que este tu” é um “tu” alienado a uma pura
função, em que a relação intersubjetiva é mediada por coisa, uma coisa em troca de
outra. Desta maneira se trata com valores rígidos que, sem dúvida, estão sustentados
também por elementos significantes rígidos, ou seja, os sentidos estão, de alguma
maneira, preestabelecidos.
Finalmente nos deparamos com o que denominamos o “tu” de uma troca
intersubjetiva, nela vemos que se realiza uma rede de relações significantes, tal como a
entrevistada refere no início desse fato enunciativo. Nesta relação, o par intersubjetivo
ganha movimento, podendo chegar a um tipo de encontro que produza significância
182
compartilhada e não programática. Entendemos que o harmônico que aparece no
enunciado se refere a essa condescendência intersubjetiva.
Na tríade eu-tu/ele, da alteridade forte, o “ele”, se posiciona no enunciado
quando contempla a capacidade de produzir significância, observando a condição do
sujeito imigrante. Realça-se, nesse modo, a capacidade enunciativa que a imigrante diz
encontrar em diversos contextos. Como dizemos, no início do trecho enunciativo
escolhido ela manifesta a dificuldade de desenvolver o sentido do humor aqui no Brasil,
e diz aqui não batia o sentido do humor com....aqui!, ela sente que a concepção de
humor que ela tinha desenvolvido não se formatava no aqui (Brasil). Tal afirmação lhe
permite deslocar, no enunciado, a qualidade do contexto enunciativo, criando
possibilidades de significância, assim observa que, quando ela se estabelece em um
vínculo de trabalho, a qualidade da comunicação se precipita em um efeito de troca
quase que expressamente comercial, na qual o padrão não se centra na fala. Com isso,
sugere que, em tais condições, se apercebe estrangeira, porque existe no contexto, um
tipo de vínculo em que não sujeito, o sujeito se apaga. Entendemos que estamos
diante uma reflexão que traça diferenças sobre a qualidade do imigrante, porque
justamente dialoga com a conotação de estrangeiro
103
. Podemos observar isto quando,
por um lado, a entrevistada se olha no imigrante segundo o determinado pela
nacionalidade uruguaia, que define um tipo de identidade da qual participa (que lhe
permite rir), e, por outro lado, se depara estrangeira quando não encontra condições
enunciativas no pragmático sistema de trocas comerciais (no trabalho). Assim, a
construção enunciativa traz o seguinte paradigma: é estrangeiro quem não define sua
marca subjetiva nos tipos de relações intersubjetiva. A marca subjetiva, a imigrante
redimensiona em um novo grupo de pessoas com o qual encontra compatibilidade no
estudo das artes, ali parece encontrar um novo conceito de pertencimento e de
cidadania, ampliando novamente a possibilidade de promover sua marca enunciativa.
Finalmente na tríade eu-tu/ele/ele, destacamos os efeitos de uma sintaxe
portuguesa alterada pela entrada de construções enunciativas ou palavras vindas do
espanhol. Notadamente temos verdad!; eu também não tinha amigos...mas de
verdad ; também temos a expressão sentido do humor. Elas remetem a formas
sintáticas provenientes da língua espanhola em que a primeira expressão verdad! é
organizada pela língua falada quando o interlocutor está posicionado para aceitar a frase
103
Conceito classificatório encontrado nos dicionários.
183
que vem junto, somente que a interpelação vem do universo espanhol. Barra-se, por esta
escolha, a palavra que viria em português, que poderia por exemplo ser a expressão:
sério! Na segunda expressão que destacamos eu também não tinha amigos...mas de
verdad, observamos que nesse mas de verdad, no espanhol, utiliza-se também como
uma afirmação diante do outro, que atesta uma condição de sinceridade mais do que de
veracidade. Uma possível tradução da expressão em português, que se adequaria melhor
à situação, seria com efeito eu não tinha amigos ou de fato eu não tinha amigos.
Finalmente, na construção enunciativa aqui não batia o sentido do humor,
dimensionamos uma organização do enunciado que é trazido literalmente de uma
expressão recorrente em língua espanhola, em que se diz de uma pessoa que tiene
sentido del humor, ou seja, que a pessoa é sensível à percepção do dizer ditoso. A
tradução possível para o português seria senso de humor. Em todos estes exemplos,
observamos que a barra recai sobre a construção sintática da frase, impondo-se uma
estrutura lingüística da língua espanhola diante da outra língua. A dimensão do
irrepresentado para o sujeito que enuncia está exatamente no desconhecimento do efeito
de sentido que a língua portuguesa demanda para operar plenamente seu sentido de
valor dentro do sistema. Daqui um impasse real do sujeito perante a outra língua.
Considerações parciais da análise da imigrante uruguaia.
Essa análise nos trouxe considerações importantes sobre a dimensão enunciativa
do imigrante, quando esta imigrante nos conduz, por meio de suas exposição, à
dicotomia que estabelece entre a capital e o interior. Nela se recriam dois pólos de
significações que envolvem idéias opostas, assim, o interior traz a idéia de um lugar no
qual viveu, em que as oportunidades de crescimento pessoal ficam restritas, então, sua
profissão não encontra o espaço que procura, e seus projetos ficam limitados. Se agrega
a esta idéia a consideração de que as pessoas lhe exigem muita atenção, na medida em
que todas são conhecidos, desta maneira não existe espaço para o silêncio, a desatenção,
a ausência, coisa que ela procura dentro de seu estilo de vida. Ao mesmo tempo, vemos
que se queixa da falta de comunicação, que nós intuímos como uma falta de
comunicação qualificada para aquilo que procura. a capital lhe oferece este outro
percurso subjetivo, quando nela encontra sua realização profissional, sua independência
184
econômica e autonomia diante dos outros que não lhe demandam atenção exagerada. O
certo é que este estabelecido apaga a dimensão da diferenças entre países − digamos que
isso não é questão deslocando-se a preocupação para a trama da diferença existencial
diante de lugares discursivos diferentes, pois, entendemos que o que ela analisa como
problemas com a comunicação, se localiza dentro das disposições enunciativas que se
definem entre os lugares em que ela transita. Desta forma, quando ela se no trabalho,
cumprindo uma função e, no círculo de interesse com as artes, se cumprindo outra
função, mais uma vez, nos sensibiliza para uma consideração sobre o valor posto na
enunciação, em que é possível o sujeito se inscrever ou não.
Principalmente, com esta elaboração pudemos constatar que, para esta imigrante,
ser estrangeira ou não depende desse trânsito na linguagem, que dialoga com tipos de
identidades ou pertencimentos.
A seguir apresentamos a imigrante russa.
5.3. Sujeito imigrante russa: uma babel na língua e na vida.
5.3.1 Sobre o sujeito 3: imigrante russa (S3)
A imigrante russa que entrevistamos conta com mais de quarenta anos. Mora
com o marido e o filho mais de dez anos no Brasil. Seu marido é espanhol-argentino
e seu filho é nascido na Bulgária. Com o marido, comunica-se em espanhol e português
e, com o filho, comunica-se em búlgaro e português. Ela é nascida na Rússia e saiu de lá
jovem após ter se formado em Música, em Moscou. Casou três vezes e lhe tocou
transitar por alguns países, acompanhando seu cônjuge. Alguns dos países em que viveu
foram Kuwait, Bulgária e Espanha, antes de vir definitivamente para o Brasil. Diz ter
escolhido o Brasil para morar e atualmente estuda em uma faculdade particular,
cursando Letras.
5.3.2 Contexto enunciativo
A entrevista acontece na casa de uma amiga. Mostra-se bem disposta para esta
atividade. Com relação sobre sua fala, salientamos que ela é pausada.
185
5.3.3 Apresentação dos fatos enunciativos e respectivas análises
5.3.3.1 Fato enunciativo 1
Fato enunciativo 1
A: O que fez com que vocês decidissem morar aqui?
S3: Tudo, tudo, por enquanto sabes?!.. porque tinha negócios mais ou menos
estável economicamente e como eu não consegui permanência no país tive que
estudar, estou estudando na universidade, quase estou formando , ...esse que... me
dá permanência.
Análise:
No primeiro fato enunciativo que destacamos da entrevista, observamos que a
maneira de responder às perguntas não é muito extensa, a entrevistada resume a
informação e, isto parece indicar um esforço para ser o mais clara possível dentro do
repertório lingüístico com o qual conta.
Neste recorte enunciativo conferimos que os motivos considerados para ficar no
Brasil vão de uma motivação genérica até uma formulação pessoal. Assim temos um
evento que se desenvolve do geral para o particular. O geral se confirma na seguinte
frase: tudo, tudo, por enquanto sabes?!.., depois temos uma especificidade que remete
a uma atividade profissional quando diz tinha negócios mais ou menos estável
economicamente; e finalmente chega a seu lugar quando fala sobre a sua permanência
destacando eu não consegui permanência, no país tive que estudar. Assim o
enunciado se organiza por “eu” que conta para “tu” da escolha em morar neste lugar que
lhe impõe condições para permanência.
Este fato enunciativo também nos mostra algumas dificuldades específicas no
que diz respeito à organização da sintaxe, quanto à distinção e conjugação, que
analisaremos adiante.
Observemos estes indicadores à luz do nosso quadro de análise. Considerando-
se a díade “eu-tu”, vemos que o eu se marca explicitamente no enunciado quando diz eu
não consegui permanência no país, tive que estudar. Aqui reconhecemos um “eu”
que informa sobre o lugar que escolheu para morar no qual encontra empecilhos para
186
obter uma confirmação legal dessa permanência pelas leis que regem o Estado
Brasileiro. Se trava, nesta questão, um litígio pessoal no qual ela reconhece que aqui
existe tudo para ficar, mas há uma instância da lei que tem de ser abordada. Há algo que
se situa fora da pura vontade do sujeito quanto a estar no Brasil, de maneira que não se
trata somente de adotar um lugar, mas também de ser adotado pelo lugar. Nisto se pré-
anuncia a importância do outro na imigração. O “tu”, no enunciado, se estabelece no seu
ponto de partida, que, quando a imigrante, indagada sobre os motivos para ficar no
Brasil, responde: tudo, tudo, por enquanto sabes?!.., de maneira que esse tudo, tudo é
dirigido a um “tu” que supostamente sabe deste ”tudo”; e o “eu” intensifica esta
confirmação quando aparece sabes?!, imprimindo uma ênfase, um pedido de
concordância, mais do que a demonstração de alguma dúvida que o outro possa lhe
apresentar.
Na tríade eu-tu/ele, a predicação que o “ele” configura, retorna sobre o
enunciado tematizando o escolher e permanecer no país. Observamos uma dicotomia
própria à condição do imigrante que, no instante da escolha de permanecer no outro
país, se defronta com uma instância mediadora aportada nas condições impostas pela lei
do lugar. Como dizemos, existe a via dupla que a escolha contempla quando, no
momento de escolher ficar no lugar, também tem de ser escolhido pelo lugar. A isto a
imigrante responde que opta por estudar para justificar sua permanência e, é isto que
sustenta, por enquanto, sua imigração. Então é a alteridade mostrada pela polêmica
travada entre a lei e a vontade do sujeito que o terceiro termo situa no enunciado.
Na última tríade para análise, eu-tu/ele/ele, observamos, como preanunciamos
acima, os efeitos na sintaxe da língua portuguesa, pois fica evidente, neste recorte
enunciativo, a dificuldade que a imigrante encontra em se expressar em língua
portuguesa. um irrepresentado na língua que se manifesta pela construção sintática
que podemos identificar na seguinte frase quase estou formando , ...esse que... me
permanência. Aqui vemos se desenhar uma outra sintaxe da fala que indica uma
alteração na lógica convencional da língua portuguesa. Neste recorte, vemos que ela
quer demonstrar que ela está estudando e está quase se formando e é isso e não esse,
que permite manter sua permanência no país. A barra nesse caso se localiza na
organização da frase e na adequação do pronome demonstrativo “esse” inadequado à
situação, pois não se trata de uma pessoa indicado nesse pronome de gênero masculino,
senão de uma situação ( estar se formando), sendo adequado, portanto, o isso, devido a
isso, um pronome demonstrativo invariável que indica um pronome substantivado.
187
Estas estruturas que a sintaxe acaba definindo resulta do movimento constante no eixo
paradigmático onde os valores de cada sistema se resolvem, trazendo para a sintaxe um
resultado final daquilo que, em deterninado ponto, se barra em um sistema de língua,
para poder trabalhar na língua vigente nesse caso a língua portuguesa. Então, aquilo que
não se diz naquela outra língua não tem como ser dito, mais uma vez estamos no limite
da representação. Não se diz, mas se mostra pela barra que o inadequado denuncia.
5.3.3.2 Fato enunciativo 2
fato enunciativo 2
A: Que te surpreendeu no Brasil?
S3: Não, não surpreendeu nada porque a mi compatibilismo, não..compatibilizei
muito com o Brasil e exatamente me senti muito bem, eu aceitei com facilidade a
cultura brasileira, não senti nenhuma dificuldade além da língua sim, que foi a
primeira obstáculo que já passei isso...tive dificuldade em comunicação sim.
A: Demorou muito essa adaptação?
S3: Adaptação à língua sim, mas tinha que me esforçar bastante....estudar, prestar
atenção, comunicar com as pessoas, esse que é o principal do meu processo, nesse
aspecto não tenho dificuldade....eu tenho meu sotaque, obviamente nunca vou
perde-lo, cientificamente explicado isso até....mas dificuldades no aspecto
lingüístico não tenho, só, só..muito longe..., eu escrevo já tranqüila, eu tenho alguns
erros mas quem não tem erros, até os brasileiros tem erros na escrita.
Análise:
Neste fato enunciativo, se destaca a maneira como a imigrante avalia sua
inserção na cultura brasileira, disto se destacam o papel do ambiente social que a
envolve e também da língua. Assim temos a forma “eu” conto para “tu” sobre minha
aceitabilidade nesta outra cultura. É interessante que aqui podemos observar que, no
enunciado, o sujeito toma como ponto de referência a sua capacidade de tolerar a
diferença que aparece vinda da alteridade oferecida pela cultura brasileira como um
todo, de tal maneira se imprime visivelmente um processo que provém da dimensão
188
subjetiva e que avalia o exterior de acordo com seus imperativos. Daqui, entendemos
que o enunciado parte da pressuposição de que o exterior se estabelece dentro de uma
reciprocidade imaginária, que não lhe cobra nada relativo à sua condição de estrangeira,
assim como ela também não teria nenhum porém com a alteridade que o Brasil poderia
representar.
Discutamos melhor este desenvolvimento considerando nossa proposta
metodológica. Na primeira díade eu-tu”, conferimos que o “eu” estabelece sua
referência no enunciado, definindo para um “tu” que sua adaptação à cultura brasileira é
positiva na medida em que encontra uma compatibilidade com a cultura. As
dificuldades com a língua parecem ser consideradas secundárias, pois em primeiro lugar
está a experiência diante deste outro que não lhe mostra dificuldades. O “tu” se
posiciona como receptor desta informação, porém ocorre um desencontro com o “tu” no
início do enunciado. quando a imigrante produz uma compreensão um tanto
desencontrada da questão formulada: Que te surpreendeu no Brasil? e, ela responde
não, não surpreendeu nada porque a mi compatibilismo, não,..compatibilizei muito
com o Brasil e exatamente me sentí muito bem, eu aceitei com facilidade a cultura
brasileira. A questão remete à possibilidade da surpresa enquanto qualificativo do que
venha a ser tomado inesperadamente por algo, tendo tanto uma conotação positiva
quanto negativa. No desenvolvimento do enunciado, observamos que a acepção dada ao
termo surpreender é arbitrada segundo uma idéia de desencontro, do aspecto negativo,
da surpresa. O “tu” do enunciado que, nesta situação, conflui com aquele que dirige
a questão para o sujeito, se manifesta como aquele que lhe interroga sobre a sua
compatibilidade com o universo social da imigração. Seguindo esta mesma linha vemos
no final desse enunciado a imigrante dizendo: eu escrevo já tranqüila, eu tenho
alguns erros mas quem não têm erros, até os brasileiros tem erros na escrita. Com
isto mostra-se em condições de igualdade enunciativa diante de um “tu” que pode estar
indagando sobre seu erro, sobre sua discordância com o ambiente, e, assim o “eu” do
enunciado insiste para o “tu” que também pode errar como um brasileiro.
Na segunda tríade eu-tu/ele, podemos apreciar a alteridade forte trazendo
indicadores relativos à compatibilidade e adaptabilidade ao novo contexto cultural que a
imigrante identifica. No enunciado, estas duas considerações derivam trajetos
diferentes: por um lado, a imigrante diz que nada a surpreende aqui porque ela se sente
compatível com a cultura brasileira, com isso, podemos pensar que ela traz uma
significação particular do que seja surpreender, como se tratando de algo desagradável
189
que pudesse encontrar nesse país, ao que responde, insistindo, que nada lhe foi negativo,
pois sua predisposição é positiva, faz um julgamento positivo sobre a cultura brasileira a
partir da sua condição subjetiva. Por outro lado, podemos pensar também que não
encontrar surpresas pode implicar não esperar nada, a não ser um lugar diferente como
outros que ela conheceu. Desta maneira, uma ambigüidade permeia o enunciado.
Quanto à adaptabilidade, a imigrante se considera adaptada e somente deparou-se com a
dificuldade da língua como o demonstra este trecho: não senti nenhuma dificuldade
além da língua sim, que foi a primeira obstáculo que já passei isso...tive dificuldade
em comunicação sim, contudo a dificuldade é apreciada como uma dificuldade menor,
que a faria incorrer em erros como qualquer nativo. Entretanto a esse empecilho se
sobrepõe à compatibilidade que ela alega diante da outra cultura, superado pelo que ela
identifica como um processo que chega a sua superação por meio da comunicação com
as pessoas. Como o apreciamos, quando indagada sobre sua dificuldade de adaptação à
língua portuguesa: adaptação à língua sim, mas tinha que me esforçar
bastante....estudar, prestar atenção, comunicar com as pessoas, esse que é o
principal do meu processo, nesse aspecto não tenho dificuldade. Com isto podemos
ver que o “ele” se posiciona no enunciado, salientando a dimensão enunciativa,
comunicacional que lhe permite debruçar-se sobre a outra língua, contornando
problemas estruturais que a forma da outra língua lhe exige que, de alguma maneira,
redargüe, dizendo eu tenho meu sotaque, obviamente nunca vou perdê-lo,
cientificamente explicado isso até....mas dificuldades no aspecto lingüístico não
tenho, só, só..muito longe... Ao entender que a dificuldade com a qual lida na língua,
demostrada no sotaque, está cientificamente explicada. Assim, conclui que não tem
dificuldades no aspecto lingüístico
104
.
Finalmente, na tríade eu-tu/ele/ ele, vemos a alteridade radical retornar sobre o
enunciado exatamente pelas marcas que se mostram na linguagem, e aqui temos dois
modos pelos quais captamos os irrepresentados, os silêncios. Primeiro, como
identificamos acima na nossa análise, existe um certo descompasso na compreensão de
alguns significados postos no plano enunciativo, o mais explícito se mostra com a
palavra surpresa, a imigrante aborda esta palavra com uma significação própria, pois,
como dissemos, a entende segundo seu aspecto negativo. Por outro lado, encontramos
104
Ficou difícil na entrevista precisar a que exatamente se refere este aspecto lingüístico, mas devido aos
indicadores do enunciado, nos inclinamos a entender que se trata da capacidade de compreender e
identificar o sentido das palavras.
190
marcas que se imprimem, na sintaxe do enunciado, quando observamos as seguintes
expressões; não surpreendeu nada porque a mi compatibilismo,
não,...compatibilizei muito com o Brasil; foi a primeira obstáculo que passei
isso; comunicar com as pessoas, esse que é o principal do meu processo. Nestes três
recortes vemos, no primeiro dificuldades de concordância entre o pronome mi e a
palavra compatibilismo/compatibilizei, no segundo exemplo, observamos também
problemas de concordância de gênero quando diz primeira obstáculo
5.3.3.3 Fato enunciativo 3
Fato enunciativo 3
A: Que coisas te chamaram a atenção aqui no Brasil?
S3: O povo, o povo, assim no sentido, a estrutura mental do povo, soa a...qual
palavra essa? Que aceita qualquer estrangeiro, quero dizer...soa uma palavra?...
recepção!, a recepção do estrangeiro com o coração aberto, gigante,...porque o
brasileiro gosta muito de estrangeiro...e me senti aqui muito bem...por exemplo às
vezes na Europa eu senti na Espanha, eu senti um pouquinho discriminação do
estrangeiro, aqui no Brasil não...a minha auto-estima subiu bastante que é
essencial na vida humana, a auto-estima te leva para uma vida melhor, isso que é
bom.
A: Como é que tu notavas isso na Espanha?
S3: A discriminação, sim...não porque sou russo, qualquer estrangeiro , sim
nos lugares comuns como no Shopping Center, assim, assim , asa , tudo isso, um pouco
menosprezo, um pouco olhar de cima pra baixo com o estrangeiro, porque eu falo
castelhano com sotaque, óbvio e eu senti isso...eles te olham com outro olhar
Análise:
Neste fato enunciativo escolhido para análise, se tematiza o olhar sobre o
estrangeiro, seu desenvolvimento traz os efeitos da experiência imigrante em outros
países, que lhe permite enfatizar sua escolha pelo Brasil. A oposição que põe em
evidência este olhar se forma da comparação que a imigrante realiza entre o Brasil e a
191
Espanha, o que consideramos significativo para esse enunciado, pois a Espanha poderia
lhe oferecer um ambiente mais conhecido, melhor cifrado do que o Brasil. Vemos que
não advêm de algum tipo de conhecimento sobre o lugar de imigração, as garantias de
que possa efetivamente encontrar condições socioculturais que permitam a inscrição no
outro lugar, senão que depende da realização de um olhar que se venha encontrar e se
reconhecer nele um lugar possível para o sujeito em questão. Com isto, a forma
enunciativa que aqui identificamos é “eu” conto para “tu” sobre o valor deste olhar que
veste ao estrangeiro.
No nosso quadro de análise, na primeira díade “eu-tu” nos deparamos com que
as marcas do “eu” aparecem nos seguintes recortes: brasileiro gosta muito de
estrangeiro...e me senti aqui muito bem, e mais adiante na Europa eu senti na
Espanha, eu senti um pouquinho discriminação do estrangeiro, aqui no Brasil
não...a minha auto-estima subiu bastante que é essencial na vida humana, a auto-
estima te leva para uma vida melhor, isso que é bom. Aqui o “eu” se introduz na
alteridade fraca constituindo um lugar de referência no qual realiza uma apreciação
subjetiva sobre como se sente estrangeira aqui no Brasil e como viu esta condição na
Europa, na Espanha. Realiza por meio disto um termo de comparação que resolve na
consideração do olhar. No Brasil ela entende que as pessoas gostam de estrangeiros,
coisa que é diferente na Europa, na Espanha, na medida em que lá reconhece o olhar da
discriminação, que trata o imigrante com menosprezo. Assim o “tu”, implicado no
enunciado está em uma relação de reciprocidade, porquanto ele é representante dos
brasileiros que o diálogo é estabelecido em português. Digamos que é o “tu”
atualizado no enunciado. Relativo à dimensão de anterioridade no enunciado, podemos
diferenciar um “tu” que surge daquele outro lugar de imigração na Espanha e nisto
trabalhamos mais uma vez com o atravessamento da organização histórica que o
imigrante mobiliza. Este “tu” traz um olhar de discriminação. É interessante que o “tu”,
ao ser lembrado, deixa no rasto algo do olhar que pode emergir em qualquer
oportunidade, pois existe, nesta apreciação, uma questão de ângulo por onde se situa o
imigrante, e o olhar pode pender tanto para uma consideração positiva quanto para uma
consideração negativa de sua posição.
Na tríade eu-tu/ele, a alteridade forte do “ele” retorna sobre os índices de
subjetividade, desenvolvendo a construção do olhar do imigrante. Vejamos como isto se
constrói. Quando indagada sobre as coisas que chamam a sua atenção no Brasil, ela
responde: o povo, assim no sentido, a estrutura mental do povo, soa a...qual palavra
192
essa? Que aceita qualquer estrangeiro, quero dizer...soa uma palavra?... recepção!,
e acrescenta brasileiro gosta muito de estrangeiro...e me senti aqui muito bem. Na
primeira parte do enunciado, a imigrante acha singular que no Brasil se receba o
imigrante abertamente, sem precausões. Atribui isto a uma estrutura mental, resume tal
qualidade na condição de receptividade que as pessoas apresentam culturalmente, o que
faz ela se sentir bem aqui. A partir deste ponto, cria-se um contraponto a esta
receptividade quando lembra da Espanha, onde viveu uma experiência oposta, pois
sentiu-se discriminada, como aparece no seguinte trecho na Espanha, eu senti um
pouquinho discriminação do estrangeiro. No final deste trecho, temos a conclusão:
eles te olham com outro olhar. O desenvolvimento do enunciado como um todo leva
na direção de trabalhar as condições do olhar que recai sobre o imigrante, assim o “eu”
assume as diversas maneiras de ser visto enquanto imigrante e que podem ser
encontradas no percurso da escolha imigrante, que aqui tratamos como aquela escolha
que permite transcender da condição de estrangeiro. Podemos advertir nessa passagem
enunciativa o ponto em que isso ocorre, com o que se retrata no retorno deste olhar que
se estabelece no campo social e que permite ou não o sujeito se propor naquele lugar. Se
propor, neste caso, significa sair do lugar de estrangeiro e poder assumir o lugar de
imigrante que entra no nível das trocas humanas e certamente no campo enunciativo,
mesmo com erros identificados.
Na tríade eu-tu/ele/eleb, que trata da alteridade radical, nos deparamos com o
que foi definido como um olhar que retorna para o imigrante, no qual pode encontrar ou
não sua imagem. É neste ponto do limite que o “eleb” se mostra, sempre no interstício
em que a imagem se mostra e se perde, em que a palavra emerge e se barra.
5.3.3.4 Fato enunciativo 4
Fato enunciativo 4
S3: [...] porque um dos fatores mais importantes é gostar da cultura, compreende?
Se tu não pode gostar..., meu marido por exemplo argentino-espanhol, parece que
ele não está muito compatível com a cultura brasileira porque ele não consegue
falar! Ele não fala , ele não português, ele o mesmo tempo como eu, não fala português,
absolutamente! Por quê? A explicação ta gostar ou não da cultura, ah! Eu adorei
cultura brasileira, a língua, no língua portuguesa, eu não gosto de língua
193
portuguesa, gosto de língua brasileira e essa..., essa é um qualidade da linguagem que
me atraiu muito. Tem palavras que eu adoro por exemplo palavra telúrico, ah! Essa
palavra telúrico me faz....., é verdade, e muitas outras palavras.
A: Quais palavras?
S3: Agora não quero te dizer.. eu não quero dizer qual palavra (pigarro) porque é
palavrão (ri)..., mas telúrico é um bom exemplo, é uma palavra que mexe.
A: Mexe?
S3: mexe a musicalidade, o som..
A: Qual a diferença entre o português brasileiro e o português de Portugal?
S3: Ah! Enorme, enorme!
A: Tu sente isso?
S3: Claro que sente, eu detesto língua portuguesa de Portugal, não gosto não
compreendo!?
A: E achas que...
S3: Ah! Outro som, outra música!
A: Tu és formada em música?
S3: Por isso, eu aprendo a linguagem, uma língua através da música, musicalidade,
sonoro, tudo isso que me ajuda.
Análise:
No fato enunciativo apresentado, recorta-se uma outra face da concepção de
língua que organiza o enunciado, aparece a importância de uma empatia cultural que o
imigrante pode ter ou não, o qual determinaria sobremaneira o impulso de falar a língua
do outro lugar. A esta hipótese se segue uma premissa sobre as condições individuais
que conduzem a imigrante no trabalho de aquisição da língua portuguesa-brasileira,
como ela enfatiza. A percepção despertada diante da concepção de língua, que toca a
imigrante, se realiza através da musicalidade da língua, assim observamos outros
contornos que levam ao vínculo com a língua. Diante deste desenvolvimento, somos
convidados a nos cativar pela consideração da forma e do sentido da língua. Podemos
notar que a imigrante se, por um lado, estabelece sentidos possíveis no encontro com a
outra língua ou a língua do outro, ajudada pela empatia cultural que a faz superar
obstáculos lingüísticos. Por outro lado, nesta outra parte da entrevista, se refere à forma
194
da língua de acordo com a sonoridade que ela apresenta, assim, a imigrante se apóia em
unidades de significância fônica, conhecidas, para fazer contato com a outra língua.
Claramente, temos nisto, a propriedade da homologia
105
com o qual trabalha para
encontrar uma chave que lhe permita ler e tratar do som, das unidades de sentido
mínimo na forma da língua portuguesa brasileira, a qual singulariza quando a diferencia
da língua portuguesa de Portugal. Trata-se efetivamente de dois ambientes sonoros,
entre os quais se arbitra na procura da estrutura e do sentido na língua adotada, aquela
que se escolheu para viver. Assim, a forma que identificamos neste enunciado é “eu”
conto para “tu” a relação que o sujeito faz entre a cultura e a fala na imigração.
Contando com esta primeira formulação passamos a considerar nosso quadro
para análise. Na primeira díade “eu-tu”, da alteridade fraca, o “eu” se introduz, no
enunciado nas seguintes frases: Eu adorei cultura brasileira, a língua, no língua
portuguesa, eu não gosto de língua portuguesa, gosto de língua brasileira; Tem
palavras que eu adoro por exemplo palavra telúrico; e eu aprendo a linguagem,
uma língua através da música, musicalidade, sonoro, tudo isso que me ajuda. Aqui
o “eu” se introduz, indicando algumas peculiaridades do seu aprendizado em língua
portuguesa-brasileira. Tal distinção é essencial para marcar a posição subjetiva que
expressa a referência desse enunciado, pois nela se localiza a escolha em aprender
português pertencente ao Brasil, país em que ela gosta para morar, diferente do
português de Portugal. O “eu” estabelece assim uma condição que se formula nos
seguintes termos: na medida em que se gosta de uma cultura, se criam as condições de
aprender sua língua. Assim, não é o português que lhe parece musical, é o português
pertencente ao Brasil. Com isto, o “tu” se posiciona nesta relação com a língua do país,
no lugar daquele personificado pela idéia de cultura, é a um “tu” da cultura que o “eu
se dirige. Os desdobramentos do “tu” se fazem sentir quando ela fala das palavras de
que gosta nesta língua, entre elas telúrico, e brinca sobre aquelas palavras que não
podem ser ditas porque são palavrões. Assim um apelo para o universo dos
implícitos compartilhados, dos não ditos que só quem está submerso e incluído na
cultura pode referir e compartilhar. Assim o “tu” está no lugar daquele que reconhece o
contexto cultural enunciativo.
105
Lembramos aqui do capitulo II no qual Benveniste nos retrata algumas das possibilidades de
relacionamento entre dois sistemas semióticos. A homologia comporta aquela possibilidade de relacionar
dois sistemas conforme algum recorte específico que alguém venha a produzir, colocando em contato
elementos particulares a cada sistemas.
195
Na segunda tríade “eu-tu/ele”, encontramos predicada a relação da cultura com a
língua. Como se preanunciava no recorte anterior, o “ele” retorna sobre o enunciado,
estabelecendo o “eu-tu” diante da apropriação da fala em língua portuguesa-brasileira, a
qual é condicionada a empatia com a cultura, como vimos acima. Entretanto, quando a
imigrante introduz a questão da musicalidade na língua, ocorre um movimento
interessante no momento em que ela separa a ngua portuguesa de Portugal e a língua
portuguesa do Brasil. Vejamos: ela diz eu detesto língua portuguesa de Portugal, não
gosto não compreendo!?, e Ah! Outro som, outra música! Neste ponto aparece um
questionamento sobre a significação, pois, quanto ao movimento musical, entendemos
que no simples fluir da música não está o problema, mas na capacidade de entender o
que é dito dentro dessa musicalidade. Então, é na possibilidade de realizar o recorte no
som que a palavra toma formato e pela segmentação que é possível encontrar a
significação, consequentemente temos que o som também é escutado com o significado,
sem ele o entendimento do outro sistema se torna inacessível. Recorremos aqui à
insinuação da constituição do desejo do sujeito diante da outra língua, estamos diante de
um impulso que nasce das condições de subjetividade, que toma a palavra em outra
língua, aquela instância que constitui o objeto, a palavra e a significação no mesmo fio.
Anuncia-se nisto nossa terceira tríade.
Na instância eu-tu/ele/ele, captamos os efeitos do “ele” que transpassam as
seguintes frases: é uma palavra que mexe; um dos fatores mais importantes é gostar
da cultura; meu marido por exemplo argentino-espanhol, parece que ele não está
muito compatível com a cultura brasileira porque ele não consegue falar. Por isso,
eu aprendo a linguagem, uma língua através da música, musicalidade, sonoro, tudo
isso que me ajuda. Em todas as frases identificamos “algo” que não se completa, que
tenta apreender alguma coisa que escapa à natureza do sentido como acabado.
Observamos que a palavra mexe parece indicar que toca o sujeito de maneira a tirá-lo de
uma situação estável, mexe, algo que o faz reagir. Um exemplo desta situação a
imigrante reconhece na palavra telúrico, que no contexto do enunciado se torna
extremamente significativo, quando consideramos seu significado no dicionário, com a
seguinte descrição; Telúrico: relativo a telurismo, relativo à terra. Telurismo significa:
s.m. influência do solo de um país sobre os costumes e o caráter dos seus habitantes.
Isto indica que, no enunciado, se desenvolve um texto paralelo, já que, ao mesmo tempo
em que a imigrante trata do efeito de sonoridade na língua, traz com a palavra telúrico
outra direção de sentido, uma significação importante aparece para a consideração do
196
vínculo entre o imigrante e a nova terra. Temos na palavra telúrico quase uma metáfora
de enraizamento. Então o que “mexe” com a imigrante? Que influência sobre seus
costumes e caráter, o que ela mostra, mas não consegue dizer? Sabe que mexe, mas
como isto incide sobre sua estrutura subjetiva? Existe um silêncio que se mostra na
consideração ao som, mas volta como um efeito da própria língua brasileira, por meio
de uma idéia telúrica que não é refletida conscientemente.
Por outro lado, podemos intuir o irrepresentado também naquilo que se conjuga
na temática que esta imigrante desenvolve a respeito do que a faz gostar da cultura
brasileira, atrelando a isto o impulso de falar a língua do lugar. Como vimos,
anteriormente, simplesmente a capacidade de identificar uma musicalidade na língua
que traduz o gostar que ela enfatiza, não é suficiente para definir o efeito de inscrição
nesta outra língua e cultura, portanto o gostar parece ultrapassar as “simples” condições
objetivas de aquisição de uma língua, algo que se inscreve para além das aparências,
que permite ao sujeito operar em outro sistema e demandar as condições de
subjetividade neste outro sistema. Este “para além” cremos encontrá-lo na possibilidade
de desejar estar em uma outra cultura, desejo que, inconsciente, sobrepassa as
determinantes que o sujeito consegue ver de imediato. Aqui não abordaremos o conceito
de desejo, que não desenvolvemos para esse trabalho, contudo estamos aqui diante do
mistério, daquela casa vazia, que está preenchida, mas que não podemos captar por
meio de uma lógica binária de causa e efeito.
Considerações parciais da análise da imigrante russa
Nestas análises dos fatos enunciativos destacados da entrevista com a imigrante
russa, conferimos dificuldades maiores com relação à construção da sintaxe adequada à
boa forma da língua portuguesa, disto observamos impasses específicos com relação aos
processos de significação. Entretanto notamos nesta construção enunciativa, modos de
apropriação da língua nos quais, de maneira singular, a imigrante utiliza os sentidos
musicais para trabalhar seu enlace na língua. Podemos observar de perto os processos
que operam no sistema língua recortados na fala, na medida em que, a imigrante
primeiramente trabalha com o som para, em seguida, incidir sobre o recorte no som para
seccionar o sentido. Entendemos que nesta operação, em uma figuração saussuriana,
corresponde ao significado junto significante se organizando, para operar a barra que os
arbitra. Por outro lado, podemos acompanhar a relação entre língua e cultura que se
197
imbricam para dar conta da experiência imigrante, criando as condições que irão se
posicionar na enunciação. Nisto, vemos a interpretação sobre a cultura brasileira que faz
com que a imigrante realize a opção de ser imigrante aqui e não em outro lugar. A
imigrante entende que o brasileiro conta com uma estrutura mental, com uma disposição
de aceitar o estrangeiro de modo geral e com isso oferece uma receptividade para lidar
com as diferenças, não discrimina os diversos sujeito. Tal suposição, opera como mito
da existência do espírito cosmopolita consolidado nesse país. Verdadeiro ou não, é este
o ponto que ela estrutura para definir sua posição de sujeito, que opera como referência
nesta enunciação.
Como em todas as análises apresentadas, encontramos o trabalho com a língua
que o imigrante trava, ao mesmo tempo que organiza o mito individual que a leva a
amparar sua posição subjetiva diante da alteridade encontrada neste lugar de alteridade
que representa o país adotado.
CONCLUSÕES PARCIAIS
Com as três análises que aqui apresentamos, pudemos percorrer alguns dos
efeitos da aventura individual que estes imigrantes generosamente nos mostraram. O
caminho que o trabalho percorreu, nos permitiu precisar os mecanismos lingüísticos
acessados na tarefa, sempre renovada, dos imigrantes, de definir seu lugar de sujeitos
nesta travessia particular na outra cultura que escolhem viver.
Na escolha das entrevistas aqui apresentadas, optamos por estas três que
mostram diversos ângulos de tal experiência. Com a entrevista do imigrante italiano,
pudemos nos defrontar com a perspectiva de quem define sua imigração na terna
infância; por meio da entrevista com a imigrante uruguaia, pudemos acompanhar o
impacto de quem realiza sua imigração em idade jovem adulta e finalmente, por meio
da imigrante russa, pudemos tomar um certo ponto de vista impressionista em que os
diversos sentidos abordam a linguagem do lugar de imigração, contornando uma babel
lingüística e cultural e, com isto, enfatizando a força enunciativa necessária a tal tarefa.
Temos pontos de partidas diferentes; pois, cada imigrante estabelece coordenadas
específicas para organizar a enunciação. Vemos que, na imigração realizada na infância,
existe uma superposição da enunciação atual, fazendo com que se reflita, com maior
intensidade, o contexto de anterioridade no relato, desta maneira, a dimensão histórica
198
se dilata para o sujeito. Já nas imigrantes que retratam uma imigração em idade jovem e
adulta, observam-se transposições enunciativas muito mais marcadas pela influência da
língua materna ou outras línguas, trazendo atravessamentos na sintaxe da língua
portuguesa, tornando-se mais sensível a consideração de valor da língua refletido na
enunciação.
Sabemos que cada experiência enunciativa dos imigrantes de um modo geral,
traz particularidades e, se fossemos tratar com uma quantidade maior de relatos,
acreditamos que as constataríamos e talvez tal constatação gerasse alguma tipologia,
mas perderíamos nosso objetivo e certamente tal procedimento também não apaziguaria
todas as respostas que procuramos
106
, contudo, dentro dos limites deste pequeno
universo que aqui recortamos, encontramos uma reflexão e projeção pertinentes às
nossas considerações sobre a gica da língua e a gica do sujeito que se tocam de
maneira ímpar, criando as condições de propiciar uma inscrição de sujeito em um novo
campo lingüístico-cultural.
No capítulo seguinte e final de nosso estudo, derivamos as reflexões últimas.
106
Certamente o nosso estudo também não esgota todas as perguntas que o próprio estudo gerou.
199
6. PARA CONCLUIR: ENTRE OS DESLOCAMENTOS DE
LÍNGUA: O SUJEITO NA BARCA DA ENUNCIAÇÃO
Às vezes, (...), é mais fácil descobrir uma verdade do
que lhe assinalar o lugar que lhe cabe. (Saussure. F. Curso de
Lingüística Geral, p. 82)
Esse é o último capítulo do nosso estudo, que finaliza de alguma maneira algo
relativo a uma trajetória que iniciamos desde que começamos a definir nosso campo de
interesse dentro dos Estudos da Linguagem. Como todo resultado que se pretende final,
deixa a sensação de abarcar menos do que gostaríamos, diante das muitas questões que
foram aparecendo, entretanto o próprio modo de abordar nosso objeto nos ensinou a
razão desta delimitação necessária. Identificamos isso quando compreendemos que o
aparecimento do sentido é o resultado de uma operação que não é qualquer operação,
mas uma operação certeira e sutil, em que elementos da linguagem são escolhidos e
delimitados, compondo a relação entre eles, o que dará sentido ao enunciado. Quando
isso ocorre, ficam muitos elementos à deriva, ainda muitos expulsos ou
desconsiderados, que, contudo, estão latentes e participam, de algum modo, deste
conjunto significante. Da mesma forma, nosso estudo, ao ser realizado um recorte
específico, delimita alguns sentidos que se impõem para o resultado final, que também
conta com este universo que o bordeia, à espreita de encontrar o seu tempo.
Com isto, nosso trabalho se aborda como efeito de delimitação que organiza
alguns sentidos. Traremos para este capítulo as conseqüências que retiramos da relação
de formas e sentidos que decantaram do trajeto teórico junto à proposta de pesquisa que
se desenvolveu sobre a enunciação do imigrante no Brasil.
Para começar, compete dizer que as análises que trouxemos para o estudo
vieram com o objetivo principal de olhar para a fala dos imigrantes que escolheram
morar no Brasil, em Porto Alegre, especificamente. A fala é elemento privilegiado,
200
porque a construção da narrativa em ato e enquanto ato enunciativo, nos permitiu
observar a apropriação da língua portuguesa-brasileira de maneira mais abrangente,
captando a relação entre sonoridade, gestos, conceitos, posições pessoais, etc. e, de
modo principal, os efeitos desta organização como um todo, na expressão viva do
sujeito que a produz. Procuramos, por meio da marca, os indicadores de uma relação
instigante do sujeito que se mobiliza no trânsito entre línguas e representações de
culturas que carrega.
Para chegar a este diálogo que o imigrante realiza com a outra língua e cultura,
percorremos alguns caminhos teóricos e de campo, que, nesta parte final do nosso
trabalho, retomamos, para retirar as conclusões finais, dessa vez, contando com a
textura do todo, do conjunto de nossas elaborações.
6.1 Sobre a designação de imigrante
Lembremos que, no primeiro capítulo do nosso estudo, trabalhamos com o
campo semântico que inclui as designações com as quais o imigrante se convocado.
Destacamos a relação do interno/externo representados pelos muros da cidade da Grécia
Antiga e as conseqüências da territorialização. Vimos, neste contexto, que o imigrante
se figurou na exterioridade, como pessoa de fora dos muros que pede inclusão na
cidade, assim, ganha o status de meteco, pois trata-se daquele que quer contribuir com
alguma função na cidade. Contamos com essa distinção para nomear o sujeito deste
estudo, reconhecendo-o semelhante ao meteco da cidade grega, na medida em que, é um
sujeito que procura a inclusão em outro lugar. Também o diferenciamos do estrangeiro,
para definir ainda mais a opção subjetiva que o sujeito em questão opera, pois ele
poderia permanecer estrangeiro, se mantendo alheio ao cenário social. Contando com
este ponto de partida, trouxemos também outros paradigmas que foram se aderindo a
esta leitura, primeiro ao contemplar o pensamento cosmopolita dos estóicos que
propunha uma cidadania virtual na qual se aglutinam aqueles que contestam os
interditos da cidade. Disto, vimos uma inversão de lugares, na medida em que, cidadãos
seriam os que por sua qualidade e preparo intelectual, pudessem se apropriar de tais
ideais e não mais os que simplesmente pertenciam a um lugar. Assim, posteriormente,
chegamos a mesma transposição de lugares no contexto da conquista da América onde o
colonizador se fez natural da terra e o colonizado, que era nativo, transformou-se em
estrangeiro. Por fim chegamos às relações no Brasil em que o imigrante foi chamado
201
para fundar a nação brasileira e, na construção do sujeito nacional, foi colocado na
exterioridade. Com estas elaborações, nosso propósito não foi o de vislumbrar o
conceito atual do imigrante, o que significaria realizar um trabalho discursivo específico
para tal objetivo, senão que procuramos identificar, nestas designações, o trabalho que
por este conceito se opera sobre a função das diferenças que o homem regula a partir do
que não é semelhante. Por sua vez, no jogo de alternância entre lugares, onde em
momentos o imigrante é convidado a fazer parte do grupo e em outras ele é deslocado,
nos pareceu significativo demonstrar como este movimento é constante e
conseqüentemente o sujeito, no decorrer de sua vida como imigrante, terá de encontrar
esta oscilação, pois, acreditamos que o contexto social não lida com versões
homogêneas a este respeito. Assim, a opção que move o imigrante, sem dúvida, passará
por este diálogo permanente entre pertencimento e não pertencimento.
Quando tratamos no campo semântico, as designações que envolvem o sujeito,
nos ativemos ao funcionamento da linguagem, por considerar, que dela emana uma série
de desdobramentos fundamentais para observar a problemática na qual o imigrante se
envolve, assim como se mostra o mecanismo pivô na resolução do seu diálogo com a
outra cultura. Para discutir este ponto, trabalhamos, no segundo capítulo, a concepção
de língua e enunciação, por meio do qual recolhemos as ferramentas para considerar o
funcionamento da linguagem que aqui nos interessa. Da elaboração que este capítulo
nos permitiu, trazemos para esta parte as conseqüências que dele tiramos junto às
análises, o que a seguir expomos.
6.2 Considerações sobre a língua e o imigrante
Fazemos aqui um reconhecimento do que pode ser avaliado sobre a unidade da
língua que o sujeito imigrante é levado a sopesar na formulação do corpo- língua, que
em língua materna parece em equilíbrio e em segunda língua resulta sem a mesma
consistência. podemos pressentir pontos de partida distintos, pois, quando, na língua
materna, se parte da idéia de uma organização que suporta a desorganização que o
sujeito introduz, vemos que a segunda ngua não respaldo a uma unidade coerente,
senão que ela é ainda desarticulada. Devido a isto, se parte em segunda língua, não da
unidade, mas da desarticulação da unidade e, consequentemente, entendemos que o
sujeito tende a trabalhar para essa organização em seu status de sujeito imigrante. De
202
alguma maneira, a falha que se atribui à condição de sujeito, nesse caso se reflete
enquanto falha da língua-outra.
Tendo isto presente, passaremos a olhar este desdobramento na língua para o
imigrante.
Começamos por reconhecer as contribuições que Saussure oferece para o
entendimento da língua abrindo um novo campo, que renderá diversos frutos entre as
possibilidades que o homem abriga em seu pensamento. Assim, se concretiza no cenário
das ciências a emergência da lingüística, ciência que passará a estudar a vida dos signos
lingüísticos abarcados na língua como um sistema. A partir deste momento, a língua
será conceitualizada e, nunca mais passará indiferente às produções das ciências
humanas. A lingüística, como se sabe, chegou a se constituir por muito tempo na ciência
piloto de todas as ciências, neste sentido estamos diante de uma autoridade que fala por
si, e de uma autoridade que quase como a língua não é do reino do imperativo, mas da
ordem que, a cada vez, se apresenta delimitando lugares, pois não interessa marcar
encontro com uma língua, mas com a língua, admitindo todos os enigmas que ela
instiga.
Gostaríamos também de lembrar que o trabalho do mestre genebrino é inspirado
em tendências da gramática comparada, muito influente na época da sua formação
107
, o
que lhe permitiu avançar em idéias que levavam em conta as generalidades encontradas
em diversas língua e, assim, se criou o suporte para este passo gigantesco, no
entendimento da língua como sistema, em que generalidades são reconhecidas em todas
as línguas, desmistificando idéias de línguas superiores a outras ou ainda mais legítimas
do que outras. Isto nos inspira e nos deixa à vontade para falar do encontro entre dois
sistemas de línguas, aninhado na experiência do sujeito imigrante.
As conseqüências que acolhemos após este pequeno percurso pelos fundamentos
da Lingüística do Curso são expressadas a seguir.
A língua pelo paradigma saussureano é antes de tudo a capacidade de produzir a
unidade necessária para que haja condições para a emergência dos signos lingüísticos.
A unidade da qual se fala está no equilíbrio de um sistema. Tal equilíbrio tem de ser
reconhecido por uma sede localizada na psique dos falantes, para que a partir disto,
sejam manipulados os signos e a capacidade de produzir significância. Levando em
107
Simon Bouquet levanta dados importantes sobre a trajetória de Saussure e seus antecedentes históricos
dentro das ciências da linguagem e neles reconhece a influência de uma epistemologia da gramática
comparada como suporte importante para postular a noção de sistema, exatamente pela comparação que
vinha fazendo do uso lingüístico em diversas línguas.
203
consideração tal pressuposto, podemos deduzir que cada sujeito que é banhado pela
ordem da língua tem condições de reconhecer esta unidade ampla e complexa, para
assim se desenvolver na linguagem. Se o reconhecimento da unidade está dado, pode-se
também dizer que, quando acontece o evento para um sujeito de fala se transferir para
um outro sistema de língua, como acontece com o imigrante, tal sujeito procura uma
acomodação, de modo que os termos da língua implicados procurem um equilíbrio na
tentativa de recriar novamente o efeito de unidade. É nesta tentativa que se integra a
organização da outra língua.
Entendemos que, ao mesmo tempo em que a experiência de uma nova língua
traçando novas possibilidades de unidades significantes e, lembremos, concretas, temos
a experiência da delimitação na língua, confiada também a outros parâmetros que
advêm da interferência do modelo inicial de língua. Assim, até o momento da
diferenciação qualificada da organização de cada sistema, haverá interferências no
recorte tanto de unidades acústicas como de significados produzindo ambigüidades do
sentido. Digamos aqui que a qualificação do signo como unidade total sofre um efeito
de alteração. Vemos tal interferência, tanto no sotaque, facilmente identificado pelos
falantes nativos, como também confusões provocadas pelos falsos cognatos, que nas
línguas de origem latina encontramos, isso sem falar o que acontece com outras línguas
que não tem a mesma raiz lingüística. Um exemplo disto vemos em algumas palavras
heterossemânticas do espanhol e do português como esquisito,
embarazada/embaraçada, etc. que se prestam a confusões de sentido, provocadas
nitidamente pelos quadrantes que cada sistema recorta de maneira específica, levado por
valores diferentes para cada equilíbrio de língua. Nas análises que trabalhamos, vimos
este fenômeno, por exemplo, quando o imigrante italiano fez utilização de algumas
designações de maneira deslocada, ao utilizar as palavras truste e gestada. Na fala da
imigrante uruguaia, inúmeras vezes se atravessam palavras do espanhol na sintaxe e na
da imigrante russa observamos na utilização de artigos formas deslocadas. Aqui tais
exemplos os apresentamos sucintamente para trazer a noção de atravessamento de
sistemas lingüísticos.
A distinção que o imigrante de maneira absoluta efetua entre os dois sistemas de
língua, na verdade a apontamos como uma situação ideal, na maioria das vezes difícil de
atingir. Digamos que a distinção da dimensão de valor é adquirida na prática (uso) do
outro sistema, já o sentimento da diferença entre os sistemas é inicial, é um ponto de
partida.
204
Quanto à abordagem sobre identidade que se desdobra na língua, entendemos
que, quando Saussure propõe que cada sistema comporta seu próprio equilíbrio e,
portanto, seu próprio efeito de identidade dos termos, não existiriam comparações a
fazer entre um sistema e outro, mas, quando se considera que, como no jogo de xadrez,
é a lei que coordena o jogo de identidades entre os termos, vemos que o sujeito
imigrante aqui tem de produzir um reconhecimento da lei outra, assim como uma
adesão a seu funcionamento, vivenciando o arbitrário do sistema como o real de uma lei
e não da norma, como seria o do falante nativo. De alguma maneira, a língua se
corporifica nesta instância. Por sua vez, os litígios desta identidade utilizam os
mecanismos das trocas entre elementos da mesma natureza, como seria a troca de
moeda para moeda, e também o sistema de troca entre elementos de diversas naturezas,
como seria a troca de moedas por objetos (sal, açúcar, pão,etc.). Com isto, entendemos
que, entre a utilização das categorias gramaticais organizadas pela língua, ocorrem
ajustes de elementos de uma língua para outra, na construção de unidades de
significância. De alguma forma, o imigrante torna-se um lingüista em potencial, na
medida em que procura generalidades que em conta destas língua, ainda que isso
possa levá-lo a restringir desenvolvimentos mais amplos. Acreditamos que tal situação
encontra um desfecho importante se, em determinado momento, se integra a constatação
da radical diferença entre sistemas e não se cai mais nas miragens que o mecanismo de
identidade na língua prega. Neste ponto acompanhamos a elaboração da lingüística
sincrônica em que é o recorte na língua que indica o valor dos elementos, reflexos do
uso, e não corresponde à dimensão histórica, na constelação evolutiva da língua com a
qual o sujeito imigrante tende a se confundir porque ele entende que ele está em um
evoluir com relação a outra língua e não que ele está em um trabalho de interpretação
em que o outro sistema o coloca para trabalhar.
Com estas hipóteses, iniciamos a constatação de rupturas que o Um encontrará.
Daqui, fomos adiante, observando os fundamentos da enunciação que diz justamente
dos efeitos do uso da língua e destas rupturas. Pela enunciação, podemos ver as marcas
do sujeito que em sua singularidade, define sua forma de relação com o Um. Nos
acompanhamos, nesta parte, do trabalho de Émile Benveniste, que veio fundamentar o
eixo organizador deste estudo. Para observar melhor seu resultado, situemos novamente
algumas considerações.
205
6.3 Considerações sobre a enunciação e o imigrante
Dentro da primeira abordagem da teoria benvenistiana, quando tratamos da
natureza da língua, observamos o lugar principal que a língua porta dentro do universo
dos sistemas semióticos que governam as sociedades humanas. Deve-se isto a qualidade
que ela tem de ser significativa, tanto na forma quanto no seu funcionamento. Assim, é
um sistema que produz significância em dois níveis simultâneos; no plano semiótico e
no plano semântico. Lembremos que a natureza semiótica trata do sistema lingüístico de
acordo com a proposta sincrônica, na qual a unidade básica é o signo lingüístico dentro
de seu sistema e ele, antes de tudo, pede reconhecimento. no plano semântico, a
unidade se constitui na frase e nela a significância depende da composição dos seus
elementos, ou seja, aqui observamos o efeito de significância de seus elementos no a
posteriori, na medida em que, a enunciação precisa ser formulada toda para ser
apreendida no seu total valor. A unidade maior do nível semântico, Benveniste nos
avisa, demanda compreensão. Desta maneira, estes dois planos são interdependentes
porque, se não existe reconhecimento do signo, a compreensão não se torna possível.
A natureza da língua assim descrita, torna-se um sistema privilegiado no meio
aos outros sistemas semióticos e, por portar tais características, Benveniste entende que
é pelo seu intermédio que outros sistemas podem se comunicar, mais uma vez, criando
uma rede de relações pelas quais fazem o sujeito humano transitar. A preocupação com
a comunicação entre os sistemas levou este autor a contemplar alguns princípios que
regem esta tarefa. Lembremos que no horizonte desta proposta existe a procura dos
fundamentos de uma ciência que se preocuparia com a vida dos signos no seio da
sociedade, sendo ela a semiologia
108
. A comunicação entre os diversos sistemas
semióticos, como vimos no capítulo II, é possível pelas características que eles possuem
de produzir engendramento, homologia e interpretância.
Esta natureza da língua e as características acima citadas nos pareceram de suma
importância para nosso trabalho, porquanto observamos que o imigrante é um sujeito
que efetivamente tem de desenvolver mecanismos de comunicação entre os diversos
sistemas semióticos com os quais se depara no contexto ao qual chega, sendo o
principal a nova língua. Estimamos que o primeiro ponto de elaboração passa por
estabelecer uma relação entre a língua materna e a segunda língua. No item anterior,
108
Esta semiologia fora a proposta com a qual o próprio Saussure se interessou no Curso e que ficou
como tarefa que futuramente poderia ser realizada. Digamos que se trata uma aposta científica no campo
das ciências humanas.
206
quando vimos a consideração de valor na língua, percebemos que o imigrante teria de
desenvolver a interpretação necessária sobre o outro sistema de língua enquanto sistema
de valor diferente à língua materna, para poder se desenvolver nele. Avançamos sobre
este quesito, quando observando os pontos de contatos entre os sistemas, podemos
afirmar que o recurso à homologia provê o sujeito de uma ferramenta importantíssima
na vivência da imigração. Contemplando a tarefa de estabelecer o contato entre os dois
sistemas lingüísticos em pauta, compete exclusivamente ao sujeito pô-los em contato, e
o modelo de relação vai depender dos vínculos e interpretações que ele consiga fazer
entre sistemas, ou seja a apropriação do outro sistema lingüístico estará sujeito a
qualidade subjetiva de quem utiliza a língua. O traço do nculo que nisto se desenha
podemos entender como um ato enunciativo que comporta as marcas do sujeito. A
partir disto, nos permitimos afirmar que a língua materna enquanto Um se oferece como
modelo de unidade para poder atingir a outra língua no fantasma de uma unidade, pois
lembremos que a outra língua está inicialmente fragmentada para o imigrante. Então, a
relação de homologia, neste caso, serve ao estabelecimento do diálogo entre um modelo
de língua e outro que se quer assimilar para produzir significância, em outro meio. Será
através dessa porta que o imigrante começará seu vínculo com a língua que não é
materna e provavelmente será a ferramenta que utilize ao longo de toda sua vivência
imigrante.
Sobre o atributo da interpretância que a língua tem diante os outros sistemas, no
caso dos imigrantes, podemos considerar que quem exerce tal atributo é a segunda
língua, neste contexto a língua portuguesa brasileira. Depende da língua portuguesa a
organização dos sentidos que o sujeito requer para sua organização com o meio. Assim,
se impõe para o imigrante o Um da outra língua, que se estrutura paulatinamente, à
medida que se exercita no seu uso, pela fala. Entendemos a negociação complexa que
sustenta esta enunciação, a qual tentamos elucidar neste estudo.
Levando adiante o trabalho com os mecanismos de comunicação entre sistemas,
escolhemos observá-lo por meio da prática narrativa que o imigrante tende a
desenvolver. Disso nasceu nosso terceiro capítulo no qual tratamos da narrativa como
um mecanismo privilegiado para observar a apropriação em segunda língua e, por outro
lado, a distinguimos como um mecanismo enunciativo necessário para a efetiva
inscrição do sujeito nesse outro lugar, pois nele se impregnam as elaborações e
interpretações, conforme os níveis de significância que o imigrante consegue construir.
Sem dúvida que aqui contamos com a dupla significância tanto no nível semiótico
207
quanto no nível semântico que se incumbem das relações entre forma e sentido na
língua, expressados no campo discursivo.
6.4 A narrativa como mecanismo enunciativo complexo útil ao
imigrante
Foi deste mecanismo complexo que tratamos a partir do referencial teórico de
Dany-Robert Dufour (2000). Aqui nos preocupamos essencialmente com o modo como
a transmissão do relato acontece, por meio do mecanismo enunciativo, em dois níveis
de temporalidade, por um lado no formato enunciativo do aqui, agora, naquilo que este
autor denominou de língua natural e, por outro lado, no que considera a extensão de
tempo dentro de uma proporção maior, entre três gerações. Nisto observamos a
dimensão de três tempos na língua natural quando se conta o “eu-tu/ele”. O modelo
utilizado para dimensionar este formato é o fornecido por Benveniste na organização do
aparelho formal da enunciação, ao qual Dufour acresce a consideração de ser este uma
língua que dá aceso à língua. Ainda, quando Dufour considera a função do “ele”, avalia
um desdobramento que tal operador mobiliza quando, aponta para o âmbito do
representado e, também para o limite do representado, ou um certo irrepresentado. A
expressão do limite do representado fica por conta do “ele”.
O trino da narrativa, se define seguindo o modelo do chamado triangulo
pragmático (Dufour, 2000, p.141). Nele está articulada a seqüência
narrado/narratário/narrador, estabelecendo uma lógica da transmissão. A seqüência
trina, de lugares na transmissão, Dufour as relaciona aos lugares propostos para a língua
natural, como vimos no nosso capítulo terceiro. Quando tratamos destes operadores,
consideramos especialmente o efeito da transmissão entre os sujeitos implicados, daqui
tentamos contemplar a simbolização dos lugares enunciativos e a problemática da
inscrição dos sujeitos na cultura em que vivem. Em suma, situamos neste movimento a
eficácia simbólica da palavra. Vimos, que a eficácia dos operadores de lugares
enunciativos, funciona na dependência da ordem lógica, contemplada no campo das
trocas sociais. Evocamos com isto as três lógicas implicadas nesse trabalho: unária,
binária e trinitária. Retiramos do que foi desenvolvido para nosso estudo, a lógica da
implicação que se aninha no efeito de transmissão, na medida em que para ser um
(sujeito), é preciso ser dois, mas quando se é dois, já se é três.Um é igual a dois, mas
dois é igual a três. (Dufour, 2000, p. 92). Assim, contando com este referencial,
208
construímos o conjunto de oposições que escolhemos para nosso trabalho de análise, do
qual falaremos adiante, retirando algumas conclusões finais. Contudo, antes de
debruçarmo-nos sobre isto, queremos indicar o porquê da nossa preferência por esta
proposta teórica para tratarmos da temática do imigrante, ou melhor, da narrativa do
imigrante.
Entendemos que Dufour, ao acrescentar, na tríade da língua natural, a função do
“ele”, nos dá margem para tratarmos dos limites da representação com os quais o
imigrante se depara quando muda de língua e cultura. Durante as análises, observamos
em várias oportunidades este limite, tanto na apropriação da palavra quanto na
apropriação de algumas idéias que regem a cultura brasileira na qual o imigrante se
insere. No nível da palavra, observamos os deslocamentos de significados com os quais,
por exemplo, a imigrante russa se debatia quando perguntamos o que a surpreendia aqui
no Brasil. Ela entendeu isto como um elemento-surpresa negativo, limitando a
abrangência desta palavra. Também vimos, na narrativa da imigrante uruguaia, o
atravessamento da língua espanhola junto à sintaxe, quando trouxe a expressão sentido
do humor. Ainda, o imigrante italiano nos fala da letra fria, em que referência a uma
letra que não produz movimento. Estes exemplos aqui são trazidos para rapidamente
falar neste efeito na palavra, o que está desenvolvido nas análises. Da mesma maneira,
pudemos identificar o trabalho de inscrição na outra cultura quando aparece, de uma
maneira ou outra, a noção de cultura nas narrativas analisadas. Assim, nos encontramos
com a dificuldade que a imigrante uruguaia encontrou em sua inserção social, ao
estabelecer uma dicotomia entre sua função profissional, como prestadora de serviços, e
sua inserção no grupo de artes, do qual nos relata encontrar condições de enunciação.
Daqui, nos encontramos com a concepção de estrangeiro que se precipita quando a
imigrante se apercebe prestadora de serviços, alienada na pura função, que toca nos
limites da representação do lugar subjetivo. Observando este tipo limites, podemos
relacionar os traços que definem o sujeito, na negociação estreita, entre inscrição na
outra cultura e o desenvolvimento da enunciação em segunda língua. Outros exemplos
encontramos quando a imigrante russa idealiza a capacidade de o brasileiro aceitar o
estrangeiro e chega a falar de uma estrutura mental que proporcionaria isto. O imigrante
italiano, da mesma forma, se sempre às voltas do que chega a postular como uma
apropriação particular de conviver com as diferentes culturas, e, ao mesmo tempo, se
embaraça quando nos diz que ele tem uma cultura italiana com vontades brasileiras, e
nós nos perguntamos: como se concilia a cultura com a vontade?
209
Além disto, a noção do irrepresentado na enunciação, também se mostrou útil
para ponderar a dimensão do sujeito, na temporalidade do relato, principalmente no
imigrante que é um sujeito que provoca uma ruptura no seu relato em terra natal e
inaugura outro relato no país adotado. Está em jogo na re-elaboração do relato em
segunda língua, a construção simbólica, o pacto, que permite ao imigrante efetivar sua
participação. Nesta passagem observamos que se representa um tipo de sacrifício, um
tipo de morte. Digamos aqui que o imigrante rompe com um tipo de narrativa e isto tem
seu custo, o custo de reconstruir as condições de enunciação no novo lugar de vida.
Neste outro lugar, ele se abre para outras possibilidades enunciativas, contudo
apresentamos um acréscimo que se abre na medida em que se estabelece um diálogo
com o espaço de alteridade com o qual ele tem de lidar na língua e na cultura e,
podemos dizer, também com a sua própria imagem de sujeito que fica alterada. Nos
apoiando na psicanálise, podemos falar na consideração ao sintoma em segunda língua.
Usando a metáfora da lua, podemos figurar que a segunda língua pode trazer luz sobre
algumas regiões que a língua materna não contempla no seu movimento e que não se vê
a olho nu. Assim o sintoma individual ganha outra textura.
Com esta exposição, passamos às últimas considerações, retiradas, dessa vez,
dos fatos enunciativos à luz das oposições que estabelecemos para nossas análises.
6.5 Sobre as análises
Com a ajuda dos imigrantes entrevistados, pudemos constatar os diversos tipos
de vínculos entre língua, cultura e sujeito que se sustenta pela/na enunciação. Embora
para todo ser falante estes elementos estão igualmente presentes, aqui contamos com a
dimensão da alteridade que se adere a tais circunstâncias enunciativas, na medida em
que se trata de sujeitos que passaram e passam ainda por uma adaptação e diálogo
constantes sobre seu descentramento com relação a estes lugares, em sua vida.
Conseqüentemente, devemos contemplar, neste repertório, a transposição da vivência
em língua materna para uma outra língua; também a transposição de uma primeira
inscrição no campo social para uma outra consideração do social, assim como, a
maneira de apreender-se sujeito em cada lugar, o que a noção de tal descentramento.
Por conta disto, observamos que o imigrante encontra na linguagem, uma intervenção
complexa para alinhar na sintaxe a condição de alteridade. Podemos dizer que se
articula, nesse sentido, um campo paralelo na enunciação do imigrante, que se torna
210
constitutivo para sua comunicação. Contemplando este aspecto, os indicadores de tempo
na enunciação, mostraram-se importantes para formular esse plano paralelo, pois, por
meio das dificuldades que encontramos nas análises, quando fomos situar os sistemas de
relações que escolhemos, deparamo-nos constantemente com a perturbação ao
encontrar, em muitas ocasiões, dois planos enunciativos que se justapunham. Foi neste
ponto que fomos conduzidos para a consideração do tempo de uma enunciação que nos
parecia redobrado. Encontramos uma saída para este impasse analítico, mais uma vez,
junto ao referencial benvenistiano quando o seu texto As relações de tempo no verbo
francês (PLG I. 1995) nos subsidia ao tratar de dois planos enunciativos; o histórico e o
discursivo, sendo que, a partir de uma intersecção possível entre esses dois planos,
pode-se considerar uma terceira via enunciativa, dimensionada no efeito de
anterioridade no enunciado, no qual é possível depreender o desenvolvimento da
história subjetiva.
Tal concepção de uma anterioridade no enunciado, para as análises em questão,
se mostrou uma ferramenta indispensável, considerando-se o movimento organizado
pela narrativa que os imigrantes traziam. Desta maneira, eles contam suas historias,
olhando para o acontecimento migratório em retrospectiva, em um acontecido, que,
contudo, se mostra em um contexto atual. Ou seja, os efeitos de uma história trazidos
para a superfície enunciativa no aqui e agora. A dimensão da história pessoal, desse
modo, se integra à atualidade, criando a realidade da narrativa, na qual não temos o
sujeito que se retrata como se estivesse no passado, mas um sujeito que se olha naquela
experiência e acresce um modo de pensar atual, integrado-o à sua vivência. Esta visão
conflui com a leitura feita anteriormente sobre a narrativa que também se articula a dois
tempos: um, na enunciação atual e outro com relação ao lugar ocupado pelo sujeito na
história que lhe toca passar adiante.
Quando Benveniste diz que a enunciação sempre se realiza com referência ao
tempo presente de quem profere sua fala, este preceito não se invalida para nosso
exemplo, senão que aqui, insistimos em que se amplia o espaço de alteridade,
concatenando um espaço dialético entre aquilo que aconteceu com o sujeito e como o
relê hoje, correlativo à situação com a qual quotidianamente lida. Esta retomada da
história imigrante na enunciação, na atualidade, sempre será demandada de uma
maneira ou outra, já que será visível para qualquer interlocutor nativo que está diante de
alguém que não partilha totalmente do mundo lingüístico-cultural local, deixando
211
transparecer a referência de um outro lugar, por meio do sotaque ou de uma idéia de
cultura e costumes que fogem à compreensão direta.
Tendo esta elaboração presente, tiramos algumas conseqüências para nosso
trabalho e as organizaremos de acordo com conjunto de relações que escolhemos para
análise.
6.5.1 Em relação à díade intersubjetiva eu/tu
Na primeira ade, a questão principal se estabelece na maneira como o “eu” se
manifesta perante o “tu”. Consideramos este par eu-tu” a alteridade fundante para toda
concepção de enunciação. Aqui se representa a relação intersubjetiva, que define a
presença de dois sujeitos para que haja enunciação, porque, antes de tudo, a palavra tem
de ser dirigida a alguém, nem que seja enquanto possibilidade imaginária, como no caso
de um monólogo, como bem explica Benveniste. Dirigimos-nos a uma pessoa e não a
um objeto.
Desta díade Benveniste retrata duas características principais: a primeira é
compreendida na perspectiva da unidade, que um termo não se institui sem o outro.
Sobre isso Benveniste escreve: De fato, uma característica das pessoas “eu” e “tu” é
sua unicidade específica “eu que enuncia o tu” ao qual “eu” se dirige são cada vez
únicos. (BENVENISTE, PLG I. p. 253). Certamente isto também converge com a
concepção de tempo na enunciação, que é o tempo do proferimento em que cada
enunciado se realiza. Então, a validade desta unidade se estabelece a cada vez que uma
enunciação acontece, quando esses dois índices (eu-tu), a princípio vazios, são
preenchidos pelos sujeitos que tomam a palavra.
A segunda característica repousa sobre o fato de que a unidade subjetiva envolve
uma dinâmica própria, compreendida na inversibilidade. Ela se explica pela alternância
que os índices têm, quando se trocam a cada lance enunciativo, ou seja, o eu passa a se
instituir quando um sujeito toma a palavra e no mesmo movimento, se institui o “tu”, a
quem se dirige a palavra, contudo, quando o “eu” passa a palavra ao “tu”, invertem-se
os lugares, então, o que era “tu” se torna “eu” e o “eu” toma o lugar do “tu”. Esta
dinâmica se dá tacitamente na enunciação (como vimos no capítulo II deste trabalho)
Dufour, por sua vez, preocupado com a inteligência da transmissão,
reconhecendo estas qualidades da díade eu-tu”, estabelece para ela uma lógica que se
212
identifica como uma alteridade fraca e que atenta principalmente para o caráter de
conjunção que ela determina. Neste estágio, precisamente se posiciona pela narrativa o
lugar desse outro, em relação direta com “eu”, que se inverte no diálogo, assegurando a
unidade como vimos acima. Esta operação é indispensável também porque dela decorre
a linearidade necessária à frase, pela relação sintagmática. Lembremos que a
legibilidade na linguagem depende de tal concatenação.
Para nós, esta estrutura básica ganha um vigor particular no momento em que o
imigrante ao se constituir em sujeito que se enuncia em outra língua, na medida em que,
quando se realiza formulando-se como um eu” que toma a palavra no outro sistema de
língua, se vê deslocado para um trajeto diferente, no objetivo de chegar a uma resolução
no plano sintagmático, na linearidade da enunciação. Para o imigrante, a resolução
travada no plano paradigmático da escolha da palavra dirigida a “tu”, passa por recorrer
primeiro à instância do valor posto pelo outro sistema de língua, interpelando primeiro o
outro sistema semiótico para poder instituir o “tu” e, em um segundo momento, solicita
de “tu” uma aceitabilidade e concordância a “mais” daquela que se realiza tacitamente,
para suportar exatamente o tropeço que venha a encontrar na forma da língua, para que,
aí sim, venha a se realizar como sujeito no plano semântico.
Assim, o “tu” opera uma clivagem específica para o imigrante, uma vez que é
esta instância que suporta o lugar de mediador entre o sujeito que se propõe e a língua
não materna que o institui. Entendemos que, por tal razão, ali onde temos um tempo
único da enunciação em que o “eu” e o “tu” se posicionam, existe um desdobramento do
tempo. Por sua vez, o “tu” é convidado a vivenciar a heterogeneidade na palavra, o que
o faz suportar um nível de consciência da língua que, muitas vezes, pode não ser
confortável. Neste sentido a instância da ngua ganha um tipo de realidade ou
materialidade que geralmente se matem em um nível inconsciente para o falante natural.
Sob outro ângulo, em termos de lógica, como vimos no capítulo IV do nosso
trabalho, Dufour identifica, na alteridade fraca “eu-tu”, uma das pontas que estabelecem
a correção da lógica unária ou loucura unária, aquela do “eu” que entra no mundo sem
nenhum amparo, a não ser aquele de sustentar toda potência daquele que quer garantir
sua presença na linguagem. Esta primeira alteridade garante o aqui e agora, o da
sustentação do “eu-tu”. O lá, definindo o exterior, o “ele” ainda não se estabelece,
porém já se anuncia. Poderíamos dizer que este é o tempo que permite sair do tempo um
da enunciação demarcado somente por aquele “eu que se diz eu”. Quanto a isto o aqui e
agora para o imigrante cinge uma relação de estranhamento próprio à instauração do
213
“eu-tu” quanto à temporalidade e territorialidade do sujeito, pois ele projeta-se sobre
outra cena, aquela da aquisição dos mecanismos da linguagem em língua materna
109
. Se
me digo eu, por que o eu se veste diferente neste lugar? Que sentido adquire o este
“outro” tempo e espaço?
Toda esta estimativa decorre do fato de que a entrada no outro universo
lingüístico-cultural depende não de que o sujeito dimensione o sistema que
compreende a outra língua, senão que também precisa da apropriação do mecanismo
que acesso à fala, para acessar o tempo e espaço na outra língua. Digamos que ele
realiza por este gesto um pacto com a língua outra. depois da atualização do pacto
ele vive a outra língua.
Poderíamos entender que, em relação ao imigrante, este momento de instauração
do “eu-tu” requer de partida a instância da língua e, portanto, demanda um terceiro
termo, sendo a língua esse terceiro termo, mas vemos que esta apelação primeira, se
realiza principalmente com o objetivo da instauração do primeiro mecanismo
enunciativo perante o consentimento do outro “tu” que se inclui neste pacto com o
universo lingüístico-cultural.
Aqui, como preanuncia este terceiro termo, na linguagem estamos diante das
condições em que o “ele” aparece em cena para estabelecer o mecanismo enunciativo
como um todo. Neste momento, o “ele”, como representante do externo, do ausente, da
não-pessoa, ele traz a medida da relação que o sujeito opera pela linguagem. A partir
disto, entramos no nosso segundo construto analítico, sendo ele a tríade eu-tu/ele.
6.5.2 Em relação à tríade eu-tu/ele
No eu-tu/ele, é a trindade natural da língua que está descrita em seu
funcionamento, no entanto para nós o que é determinante nesta relação trina é a relação
que o “eu-tu” estabelecem com o “ele”, aquele da representação
110
.
109
Acompanhamos aqui os trabalhos de Benveniste que afirma que a presença dos três elementos
pronominais quanto aparelho formal da enunciação está presente em todas as línguas porém o modo de
conceber esses lugares apresenta diferenças, em algumas línguas afirmando-se a referencia ao tu por
predicações específicas, identificada pelos falantes de cada lugar.
110
Aqui nos amparamos na forma como Dufour e Benveniste tratam este termo, tal como o vimos no
desenvolvimento do nosso estudo. Principalmente na representação consideramos o elemento que se
apreende fora da instância subjetiva mas que encontra uma interpretação por parte desta mesma instância,
porquanto o sujeito, como suporte desta instância, conta com o amparo da língua e da linguagem para
estabelecer a relação entre os elementos em jogo no contexto enunciativo podendo, assim, produzir
sentido. Deste modo, entendemos a representação como a capacidade de produzir um sentido para além
do “eu-tu”.
214
Acordamos, nos capítulos II e IV, sobre o lugar que este elemento, sob a égide
do “ele”, designa; vimos que, tanto na consideração do aparelho formal da enunciação
em Benveniste, quanto na consideração da matriz trinitária em Dufour; o “ele” está
como termo imprescindível para o mecanismo enunciativo e, como condição para a
simbolização. Desta maneira, aqui nos indagamos sobre o tipo de relação que se
formula por parte do imigrante, contemplando esse terceiro termo. Deparamos-nos,
neste ponto, com o quanto a Língua muitas vezes se apresenta nesse índice externo. Ela
ganha esta caracterização de maneira particular para o imigrante ao ter de refletir sobre
sua habilidade em segunda língua, pois, ele tem que pensá-la, colocando-a em uma certa
objetivação, e dimensionar sua forma e funcionamento. Assim, ela se apresenta com
uma materialidade para este sujeito que lhe exige um reconhecimento e um
deciframento que vai se construindo no seu uso. Em relação à língua materna, embora
também tenha sua incorporação pelo seu uso, o sujeito já está incumbido de seus
mecanismos, dentro de uma estrutura de valor, desde o nascimento
111
.
Avançando na idéia deste índice externo, lembremos que a não-pessoa, a
instância em que não cabe um lugar subjetivo porque está fora da relação de co-
presença que o “eu-tu” exige, recoloca para o conjunto um modo privilegiado no
mecanismo lingüístico, pois realiza a predicação, assim estipula propriamente as
significâncias desencadeadas a partir dos índices de referência que as categorias
subjetivas centralizam. É pela instauração do “ele” que o movimento na linguagem
ocorre. Isto constatamos nas seguintes linhas em que Benveniste expressa:
[...] a não pessoa é o único modo de enunciação possível para as
instâncias de discurso que o devam remeter a elas mesmas, mas que
predicam
112
o processo de não importa quem ou não importa que,
exceto a própria instância, podendo sempre esse não importa quem ou
não importa que ser munido de uma referência objetiva.
(BENVENISTE. 1995, PLG I, p. 282)
Desta maneira, “ele” recoloca no contexto as relações que os índices subjetivos
propõem. Não se trata mais da afirmação da transcendência de quem toma a palavra,
mas do processo desencadeado a partir disto, concatenado, desta forma, a uma
111
Certamente que nessa consideração se deposita uma concepção diferenciada da aquisição da
linguagem, estipulando diferenças para a aquisição da língua materna e uma segunda língua.
112
O grifo é nosso.
215
referência objetiva em oposição à referência subjetiva. Destacamos que a objetividade
em questão é a do que aparece no enunciado, e não um possível critério de verdade
encontrada no mundo exterior dos fatos observados. Digamos que, na objetividade
referida, se estimam critérios para uma constatação que fala de uma relação que o
sujeito define com o mundo.
O “ele” que assim se define, resolve o terceiro termo necessário à enunciação e,
desta maneira, a lógica trinitária se apresenta para produzir efeitos significantes e
sobretudo não previstos, porque somente no ato da enunciação ganham valor, sendo
únicos a cada vez. Seu valor se resolve no a posteriori.
Dufour, como vimos, confere a esta alteridade o nome de alteridade forte que
indica a relação com o Outro (com maiúscula), e aqui entendemos que a preocupação
passa por um efeito de interpretação que o sujeito produz e não principalmente de
diferenciação com o outro-igual, posto no “tu”. Desta operação deriva a característica de
disjunção, conferida pela barra (/).
Vejamos que, no nosso estudo, a predicação da qual fala Benveniste e que
Dufour dispõe nessa alteridade forte, se afirmou como o enfoque organizador para olhar
a relação que o imigrante estabelece junto à língua e cultura brasileira. Em primeiro
lugar, na consideração da língua nesta exterioridade, que corporifica esta demanda do
sistema de valor e troca no qual se insere. Nas entrevistas, conferimos para cada
imigrante um tipo de relação com esta instância, como deve ser na singularidade de
qualquer imigrante, contudo, aqui temos uma amostra valiosa quando olhamos que,
mesmo para quem leva um tempo maior de imigração, a língua representa uma instância
privilegiada para saber da alteridade, como ocorria com o imigrante italiano o qual, em
muitos momentos, debate sobre as duas línguas com as quais lida sobre as instâncias
na forma gramáticas, na forma falada, contando com a língua italiana na hipótese de
uma volta à terra natal, etc. Também, vimos outra fase da questão quando a imigrante
uruguaia olhava para as considerações de língua no prisma da fronteira em que se
observam as diferenças de línguas (espanhola e portuguesa) e se convive com isso na
comunicação quotidiana sem desconsiderações das partes. E, por fim a imigrante russa
que vivencia uma dificuldade maior com a língua, tanto na forma, na construção das
palavras, quanto na sintaxe, na organização da frase ou expressão. Ela vivencia esta
dificuldade nos tropeços constantes, na economia das frases e palavras e, nas retomadas
do dizer.
216
A língua, deste modo, se torna a terceira instância necessária na contingência
imigrante.
Em segundo lugar, o terceiro termo do qual tratamos, também o observamos na
maneira de conceber a cultura e costumes do outro lugar. Nisto termina por se definir o
tipo de relação do sujeito com o contexto imigrante. A predicação, por este viés, recai
sobre as considerações do que se busca no outro lugar, aquilo que se ergue como “algo”
que não se torna possível em terra natal. Na entrevista da imigrante uruguaia, vimos
melhor dimensionada essa questão enquanto escolha pessoal, na procura de
oportunidades profissional, de independência e redimensionamento das condições
enunciativas, na medida em que, a imigração pode romper com esquemas muito
homogêneos no seu país. Já a fundação desta instância para o imigrante italiano parte de
um outro lugar, quando ele revela que sua imigração foi compulsória, sendo assim, ele
se insere acompanhando a epopéia do patriarca no percurso imigrante, até o momento
em que ele se vê, elaborando nesta narrativa, o seu lugar na opção de ficar no Brasil,
abdicando de uma possível volta à Itália. Reconhece que ele poderia ir para como
imigrante. Na imigrante russa, vemos a dimensão cultural se apresentar nas condições
de acolhimento que ela percebe no Brasil, e esta distinção se dá nos termos de uma
babel da vivência pessoal, quando ela reconhece ter morado em diversos países
anteriormente. Com isto, a fundação desta imigração se realiza considerando o tipo de
traço cultural do povo brasileiro comparado a outros lugares.
Por fim, resta dizer, em relação a este sistema de oposições, que é por intermédio
dele que a dimensão da narrativa se torna possível, pois a história subjetiva se formula
pelos meios da predicação que, em última instância, é dirigido a este Outro que se
inaugura no contexto imigrante.
6.5.3 Em relação ao conjunto eu-tu/ele/ele
Finalmente tratamos da terceira parte de nossa proposta de análise, com a tríade
eu-tu/ele/ele, na perspectiva de uma disjunção radical que se opera pela consideração
daquilo que vem do exterior de maneira limite. Observamos que esta tríade é formulada
a partir das considerações teóricas aportadas por Dufour (2000), sendo que Benveniste
não chegou a abordá-la propriamente em seus estudos, entretanto Dufour de alguma
maneira a lê no referencial benvenistiano quando se manifestam as maneiras radicais da
217
terceira pessoa
113
. O que está posto em pauta aqui são os limites da representação.
Nisto, se indica uma das formas para simbolizar que se desliza para a escrita, que aqui
tomamos como a possibilidade à escrita que se abre para o imigrante, pois, será no
limite das representações em língua materna que ele incidirá no campo da outra língua,
ali ele abrirá outras possibilidades de representação que lhe exigirão algum tipo de
marca, que a letra pode suportar. Contudo a escrita aqui a concernimos como pré-
anunciada, quando observamos os limites nas interpretações possíveis no outro sistema
de valores que o outro universo lingüístico cultural pressupõe, daqui então a
observância nos tropeços, na falta de apropriação de certos conceitos, nos silêncios e
ainda na não implicação do “eu” que podem ocorrer nos relatos, na oralidade,
desenvolvidos pelos imigrantes. Lembremos que a língua portuguesa se manifesta como
este Outro interpretante, pelo qual o crivo da interpretação tem de passar para sentar as
marcas do sujeito que se toma na/pela linguagem. Isto define um limite radical para a
língua materna do imigrante em questão.
Conseqüentes com essa reflexão teórica, entendemos que este terceiro momento,
permeia certo não-dito, algo que se interpõe para o sujeito na palavra, de tal maneira
aponta para a alteridade radical que principalmente se mostra e não se diz.
Esta leitura do não-dito, no nosso trabalho, se nutre ainda dos aportes de Jean-
Claude Milner, porquanto entendemos que a falta que remete ao não-dito é particular e
por isto cada imigrante conserva traços específicos com um tipo de falta que diz respeito
a sua inscrição em segunda língua. Então, temos um não-dito particular da relação de
cada sujeito com a língua outra.
Assim, pudemos conferir seus efeitos quando, nos fatos discursivos,
encontramos impasses específicos que o sujeito manifesta na constituição dos sentidos
na palavra, quando escapa em segunda língua elementos significantes. Um exemplo
privilegiado disto está no chiste que a imigrante uruguaia referiu, pois o sentido não
bate da mesma forma na segunda ngua e aqui tem de ser contemplada a entrada do
sujeito na outra cultura permitindo-lhe compartilhar significantes próprios a ela na
comunidade de fala. Também testemunhamos tal situação na apreensão da relação ao
outro ao qual o imigrante se dirige, principalmente ao tratarmos do outro da cultura, da
113
Ele observa as derivações projetadas nas formas do “ele”, organizadas quando no trato se faz uso deste
termo na maneira da injúria, quando alguém que toma a palavra, fala na presença deste terceiro, sobre ele
pejorativamente, sem lhe dirigir a palavra. Aqui, na maneira de designar a ausência, se marca outra
ausência. Se estabelece, por meio de tal mecanismo, uma distância radical, na qual se traz o “ele” na
presença dos co-enunciadores para, em seguida, barrá-lo.
218
alteridade forte ao qual o sujeito deve uma versão para se estabelecer na inteligência da
transmissão, como o constatamos nas análises. Nesta parte condiz, enfatizar as falhas
específicas que se incrementam à enunciação do sujeito quando arrisca conviver com as
lacunas e com a pequena morte que vivencia neste deslocamento de lugares
enunciativos.
Cremos que o impulso à escrita que isto promove, do qual Dufour (2000) fala,
podemos palpar na tentativa de o imigrante escrever a sua história e hoje temos vários
exemplos desta expressão no Brasil pois existem entidades dispostas a recolher as
histórias de imigrantes de diversas origens
114
. Na literatura ainda encontramos muitos
textos que nos mostram a trajetória de imigrantes
115
. Também o vemos no texto
cientifico no campo das ciências humanas, incluindo nele o estudo que aqui
apresentamos.
6.6 Sobre o aporte da Psicanálise
O prisma da psicanálise se incorporou no nosso estudo de maneira sutil porém
decisiva, para as considerações que se desenvolveram, principalmente quando
contemplamos o referencial lacaniano, pois nele encontramos as bases para a reflexão
do sujeito com a língua, essencialmente quando observamos o deslocamento do
significante que cada sujeito mobiliza na prática da linguagem. Daqui a célebre frase de
Lacan: o sujeito representa um significante para outro significante. Essa que para
alguns pode significar uma radical expressão, responde pelos acontecimentos que o
sujeito mobiliza no seu passar como realidade na linguagem ou ainda dentro na
capacidade que tem de se simbolizar e representar. Acreditamos que neste ponto se está
em plena concordância com Benveniste que não realidade fora da linguagem.
Contudo, quando na Psicanálise se trabalha também na constelação de um Real que
escapa à palavra, como “algo” que não consegue participar do simbolizado ou
representado, estamos diante de uma contribuição que estimamos necessária à leitura
enunciativa. A partir disto, o desenvolvimento dado por Jean-Claude Milner e Robert-
114
Algumas destas entidades são o Museu do Imigrante em São Paulo, também o Museu da Pessoa;
ambas recolhem depoimentos de imigrantes, resguardando a memória da imigração. Além destas
instituições, existem inúmeras em cada região do Brasil que tratam da imigração em cada lugar.
115
Para citar dois exemplos temos Josué Guimarães, que, em seu livro A Ferro e Fogo, conta a saga dos
imigrantes alemães no RS e também em um exemplo atual contamos com Milton Hatoum que no seu
livro Relatos de um certo Oriente, nos relata particularidades da imigração libanesa no Amazonas.
Certamente que existem ainda muitas mais referências a esse respeito.
219
Dany Dufour foram indispensáveis para encontrar esta medida. Eles, como autores que
contam com o aporte psicanalítico, nos ajudaram a pensar o não-todo da língua e a
pertinência do trinitário como efeito de implicação, contemplando precisamente os
elementos que fogem à palavra. Estas questões se fizeram ainda mais necessárias
quando nos incumbimos de tratar da enunciação do imigrante que se debate fortemente
com aquilo que lhe escapa ao dizer.
Contando com este aporte, pudemos postular melhor o estatuto do sujeito com o
qual trabalhamos que se desloca entre palavras e acontecimentos radicalmente
descentrado.
A porta de inclusão deste paradigma nos fez, por sua vez, refletir a incumbência
com o não-todo que a enunciação deve considerar como constitutiva, na medida em que
é por este não-acabado que sempre se reinicia um dizer, o impulso ao dizer se renova a
cada vez porque “algo” sempre falta, e o mesmo movimento está posto na implicação,
da qual Dufour fala, do três em um , que “ele”, tanto da temporalidade enunciativa
quanto da temporalidade da narrativa, se estima como referência daquilo que nunca
termina por se fechar e que mobiliza os elementos na língua do sujeito na
transversalidade do seu movimento, re-posicionando permanentemente aquela posta em
jogo no tempo de enunciar.
De outra maneira também a implicação do três em um, que Dufour destaca do
referencial psicanalítico passa pelas considerações enunciativas, quando diz sobre o que
não pode ser considerado por separado. Nos mostra a maneira com que a lógica do
movimento enunciativo se resolve quando se compreende seu funcionamento como uma
inteligência que se torna possível com seus elementos integrados, e, a partir de uma
marca que o sujeito consegue articular se fazendo portador de uma história, quando algo
significa nesta história. Com este sopro o sistema de referência providenciado pelo
aparelho formal da enunciação cobra valor, vitalizando os índices pronominais. Senão,
talvez contaríamos somente com um esqueleto do aparelho que serviria ad infinitum na
reprodução de algum automatismo circunstancial que o sistema língua pode oferecer.
Com a falta de algum destes elementos, o sentido não se torna viável. É desta forma que
a psicanálise concebe também os registros vinculados pela linguagem, para a
constituição do sujeito, entre Real, simbólico e imaginário. Aqui é necessário distinguir
que, se é certo que em Benveniste esse três em um é desenvolvido pelo aparelho formal
da enunciação, ele é articulado explicitamente para uma realidade de língua. com o
aporte exposto aqui, o foco se transfere para à condição do sujeito como eixo na
220
organização de uma realidade de língua e do tipo de relação que disto deriva. Daqui,
então, um funcionamento que mostra singularidades. Temos o funcionamento da língua
focalizando a constituição do sujeito que fala.
Por meio deste trajeto, cremos ter ampliado a reflexão sobre a relação língua e
sujeito sob o ponto de vista do funcionamento enunciativo.
TEMPO DE CONCLUIR
Após as elaborações finais de nosso estudo, confiamos ter elucidado alguns
pontos importantes para o entendimento enunciativo do que está na base de uma
estrutura lingüística que o imigrante constrói na travessia subjetiva que lhe toca viver e,
por meio da qual, se inscreve como sujeito para outra cultura. Vemos, ainda, que esta é
uma disposição que também lhe permite recolher as ferramentas necessárias para
construir a barca que acesso a este outro lugar do inesperado que a outra língua e
lugar representam, e, por conta disso, as novas roupagens que o “eu” terá de vestir.
Para finalizar, gostaríamos de deixar este trabalho como uma contribuição para
os estudos da linguagem, provocando um olhar, nos limites que ele mesmo presume,
sobre o mecanismo enunciativo e a complexidade que ganha quando se trata de
considerá-lo na enunciação do imigrante.
Por fim, atendo-nos à posição de sujeito propriamente dito, cabe refletir que o
limite dos espaços que o irrepresentado tange, no qual o imigrante está sempre a reparar
e (re)elaborar, serve como modelo pertinente a toda experiência humana, na medida em
que todo ser humano encontra, em alguns momentos de sua vida, situações em que é
estrangeiro dentro do próprio país em que mora. Se é estrangeiro diante de um sistema
de pensamento que não se conhece, se é estrangeiro diante de uma atividade que não se
conhece, se é estrangeiro diante de uma realidade social “que não se convive” e, ainda,
se é estrangeiro diante de si mesmo quando nos deparamos com um comportamento que
nasce inesperado. Frente a isso, um sujeito pode permanecer estrangeiro, mas se deseja
tornar dialética esta diferença, pode tornar-se imigrante e assumir os riscos de perscrutar
essas unidades “cimentadas”.
221
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