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ironia predominante nas narrativas históricas, na ficção, torna-se uma sofisticada estratégia
criativa.
A cômoda posição da literatura deve-se à convicção quanto à impossibilidade de
conhecer a natureza última das coisas, ou seja, a grande parte da literatura consciente
desde a década de 40 do século passado é essencialmente agnóstica. Essa condição deve-
se primeiro à relativização das convicções científicas e, posteriormente, à fragilização das
convicções ideológicas decorrentes dos conflitos políticos e econômicos mundiais. Afinal,
assim como o romancista, o historiador também é submetido às pressões do seu agora. A
partir daí, abre-se um infinito número de combinações possíveis para uma mínima tipologia
das influências que concorrem no ato da escrita histórica. Sobretudo, deixa evidente a razão
geral das polêmicas como o risco da subjetividade.
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A observação dos usos que a ficção faz de elementos do campo histórico com
estratégias irônicas é uma das bases deste estudo. O que se considera é que as lacunas, o
não-dito, os silêncios intrínsecos da ironia tornam-se altamente eficazes para a interpretação
histórica na ficção, pois permitem ou mesmo exigem a interação do leitor no deciframento
característico da ressonância como efeito estético. A idéia é a de que o silêncio sobre temas
históricos que, em princípio, seriam óbvios se torna provocante às inteligências
minimamente cultivadas no assunto. Isso cria uma zona de vácuo que, aparentemente,
liberta de imposições ideológicas,
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suga o leitor para o jogo. O jogo da leitura e o trânsito
pelos três tempos são fundamentais para a ficção que não existe sem o leitor.
Essa maneira de existir do silêncio
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, conseqüentemente, introduz um novo tempo na
escritura, isto é, potência derivante portadora de História (BARTHES, 1971, p. 92).
Frustrada a pretensão a uma totalidade narrativa de um tempo igualmente abrangente,
resta ao narrador, seja de que ordem for, atuar no particular, no parcial. Parcialidade do
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No âmbito da História, uma das conseqüências possíveis seria o surgimento de uma corrente dedicada à micro-
história, corrente historiográfica que renuncia ao estatuto científico de disciplina, invadindo o território da literatura,
rompendo de vez as fronteiras da narrativa histórica com a ficcional. O método opera com escala de observação
reduzida, exploração exaustiva de fontes, descrição etnográfica e preocupação com a narrativa literária. A mesma
contempla, sobretudo, temáticas ligadas ao cotidiano de comunidades específicas, referidas geográfica ou
sociologicamente, às situações-limite e às biografias ligadas à reconstituição de microcontextos ou dedicadas a
personagens extremos, geralmente vultos anônimos, figuras que por certo passariam despercebidas na multidão.
Jacques Revel é um dos defensores da corrente. É ex-presidente da École des Hautes Études en Sciences
Sociales (EHESS), que mantém vários acordos de cooperação com instituições de ensino superior do Brasil.
Disponível no site: http://www.uerj.br/modulos/kernel/index.php?pagina=708&cod_noticia=1246. Acesso em: 27
out. 2007.
Carlo Ginzburg é um dos pioneiros da micro-história. Segundo ele, o gênero lhe permite combinar a atenção
microscópica para o detalhe revelador e o olhar telescópico, que descobre as raízes perdidas e as engendrações
futuras. Um marco na História das Mentalidades e na fixação dos métodos da micro-história, em que se vai do
pequeno acontecimento ao panorama de época. Entrevista concedida à ZH, Caderno de Cultura, 25/08/2007.
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Salvaguardadas as proporções, seria algo semelhante à escritura branca de que falou Barthes. Porém em nível
temático. Escritura indicativa, amodal ou inocente, que propõe não a opacidade da forma, mas sim do pano de
fundo histórico. BARTHES, Roland. A escritura e o silêncio. In: O grau zero da escritura. Trad. Anne Arnichand e
Álvaro Lorencini. São Paulo: Cultrix, 1971, p. 89-93.
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A afirmação de Foucualt sobre a qual White se apóia é que em todo esforço para encerrar a ordem das coisas na
linguagem, condenamos à obscuridade um certo aspecto dessa ordem. Visto que a linguagem é uma coisa, como
qualquer outra, ela é opaca por sua própria natureza. Atribuir, portanto, à linguagem a tarefa de representar o
mundo das coisas é um erro crasso (WHITE, 2001, p. 262).