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Universidade Federal de Goiás
Faculdade de Artes Visuais
Mestrado em Cultura Visual
REPRESENTAÇÃO DO ELEMENTO NARRATIVO MULHER FATAL:
CONSTRUÇÃO DAS PERSONAGENS ZAHARA E JUAN NO FILME MÁ EDUCAÇÃO,
DO CINEASTA ESPANHOL PEDRO ALMODÓVAR
Naira Rosana Dias da Silva
Goiânia/ GO
2008
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Dados Internacionais de Catalogação-na-Fonte
S586r Silva, Naira Rosana Dias da.
Representação do elemento narrativo mulher fatal : construção das
personagens Zahara e Juan no filme Educação, do cineasta
espanhol Pedro Almodóvar / Naira Rosana Dias da Silva.
_
2008.
119 f. : il ; 30 cm.
Inclui bibliografia.
Orientação: Rosa Berardo.
Dissertação (mestrado) Faculdade de Artes Visuais,
Programa de Pós-Graduação em Cultura Visual, Universidade Federal
de Goiás, 2008.
1. Mulher fatal. 2. Pedro Almodóvar. 3. Gênero. I. Berardo, Rosa
(orient.) II. Título.
CDU 791-5(043)
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Universidade Federal de Goiás
Faculdade de Artes Visuais
Mestrado em Cultura Visual
REPRESENTAÇÃO DO ELEMENTO NARRATIVO MULHER FATAL:
CONSTRUÇÃO DAS PERSONAGENS ZAHARA E JUAN NO FILME MÁ EDUCAÇÃO,
DO CINEASTA ESPANHOL PEDRO ALMODÓVAR
Naira Rosana Dias da Silva
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Faculdade de Artes Visuais
da Universidade Federal de Goiás, como
exigência parcial para a obtenção do título
de Mestre em Cultura Visual, sob orientação
da Profa. Dra. Rosa Berardo.
Goiânia/ GO
2008
Universidade Federal de Goiás
Faculdade de Artes Visuais
Mestrado em Cultura Visual
REPRESENTAÇÃO DO ELEMENTO NARRATIVO MULHER FATAL:
CONSTRUÇÃO DAS PERSONAGENS ZAHARA E JUAN NO FILME MÁ EDUCAÇÃO,
DO CINEASTA ESPANHOL PEDRO ALMODÓVAR
Naira Rosana Dias da Silva
Dissertação defendida e aprovada em ____ de __________________ de _______
BANCA EXAMINADORA:
__________________________________________________________
Profa. Dra. Rosa Maria Berardo (FAV/ UFG)
Orientadora e Presidente da Banca
__________________________________________________________
Profa. Dra. Tânia Siqueira Montoro (FAC/ UNB)
Membro Externo
______________________________________________________
Prof. Dr. Raimundo Martins da Silva Filho (FAV/UFG)
Membro Interno
__________________________________________________________
Profa. Dra. Maria Luiza Martins de Mendonça (FACOMB/ UFG)
Suplente do Membro Externo
__________________________________________________________
Profa. Dra. Alice Fátima Martins (FAV/UFG)
Suplente do Membro Interno
A meus pais, por todo o incentivo a
meus estudos que sempre me apóiam.
AGRADECIMENTOS
Não foi nada fácil o primeiro ano do meu mestrado. Com um quadro de depressão
avançado que contribuía para noites insones e, conseqüentemente, numa grande dificuldade
de ir e concentrar nas aulas e leituras, pude voltar a ser a Naira de outrora, mas apoiada em
terapia, amigos, família, aulas de dança e natação, muita força de vontade e alguns
remedinhos homeopáticos.
Por isso, como disse minha amiga Suelaynne: “não consigo ver essa realização
como um ato isolado, nem solitário”, pois não teria conseguido chegar ao final se não fossem
meus guerreiros pais que sempre fizeram de tudo para me dar o melhor; se não fosse por
minha psicóloga, Lucinéia Vilela; se não fossem todos os meus amigos de Goiânia e os que
moram longe, especialmente, os que estiveram mais presentes: pelas visitas, ouvidos e
acalentos da Lívia; pelos passeios ou pelos encontros na casa da Najla, regados a
macarronadas, bolos de chocolate, pães de queijo e leituras de borra de café; ou dos encontros
na casa da Romenha e Suelaynne, com vinhos e petiscos; das intervenções da Sue sempre que
precisava de ajuda. Não teria conseguido se não fossem as viagens com a Halima e os
encontros em sua casa de Goiânia, nem se não tivesse feito tantos novos amigos por
intermédio dela.
Não teria conseguido sem as conversas de MSN, com vários outros amigos,
quando o cansaço se evidenciava e se faziam necessários instantes de distração. Nem se não
tivesse tido a amizade tão presente e tão constante do meu amigo-irmão, o Rabelo, pela ajuda
nas aulas de fotografia, suas idas à gráfica em meu lugar em Goiânia. Não teria conseguido
sem as palavras da Michelle, da Drica; e do convite da Ronísie para irmos ao cinema assistir
Educação; ou a dedicação da Roberta, pelas indicações e leituras feitas, pelos e-mails e
recados sempre tão divertidos no Orkut, nem a recepção dela nesses últimos tempos.
Não teria conseguido se não fosse pela paciência da professora Rosa Berardo,
minha orientadora, pela acolhida, pelos livros emprestados e pela educação que ela sempre
demonstrou comigo, até na hora de cobrar os atrasos, e por ter contribuído com tão deliciosa
idéia, indicando-me um caminho.
Aos docentes Alice e Raimundo, que estiveram presentes em minha Qualificação,
e, também, contribuíram com apontamentos importantes, especialmente com a indicação para
que eu pesquisasse a teoria queer. À Alzira pelos intermédios com a secretaria.
À bolsa da FUNAPE/ UFG; aos colegas do mestrado; às caronas do Gildesio e às
divertidas conversas entre as ‘caroneiras’: Adriana, Rosane e a Déborah sempre pronta a
ajudar e a intermediar. À Alana, que sempre aparecia com revista, artigo ou jornal pra me
oferecer. À Shirley pelo carinho; ao Adair pelos textos emprestados sobre teoria queer.
Ao tio Uriel, pelas palavras e constante incentivo em todos esses tempos,
especialmente nos de agora. A meus irmãos pelos intermédios através da internet; a meus
novos amigos de Campinas; aos ouvidos e palavras da Carol Cruz; pela acolhida da Ana
Carolina, da Yumi, e também da Roberta; às caronas da Maíra, do Júlio; aos auxílios do
Maurílio; também do Márcio; às risadas com a Beta; aos filmes e macarrões do Gustavo; aos
rocks ouvidos junto com o Omar; e em especial à Marinez, mãe da Halima; e ao Antônio, pelo
carinho, apoio e amparo nesses últimos tempos de renascidas gargalhadas ensolaradas e nova
vida.
RESUMO
Abordo neste estudo a representação do elemento narrativo mulher fatal no filme
Educação (2004) de Pedro Almodóvar. Tal elemento está constituído em duas personagens: a
travesti Zahara e o ator Juan. Essas personagens funcionam como pontos reflexivos no filme
porque possuem características transgressoras, que, remetem à mulher fatal, personagem
que foi introduzida nas narrativas das histórias de detetive da literatura de ficção criminal
americana, hard-boiled, e que influenciaram os filmes noirs americanos das décadas de 1940-
1950. Filmes que Almodóvar se inspira para compor seu neo-noir Educação e, também
para inserir o elemento narrativo mulher fatal, inovando. Meu estudo foca especialmente, a
personagem Zahara que não é uma mulher do ponto de vista biológico, mas, uma travesti que
está sendo encenada no filme dentro do filme por Juan, numa referência à metalinguagem do
cinema. Aponto o filme noir para contextualizar a pesquisa e o surgimento da mulher fatal no
universo noir, trato da construção de tais personagens do ponto de vista da linguagem
cinematográfica e de pesquisas feministas que arrolam gênero, identidade e teoria queer,
dialogando a respeito do corpo, da narrativa e da construção das personagens em cena como
pontos de reflexão que subvertem a narrativa.
PALAVRAS-CHAVE: Mulher fatal. Pedro Almodóvar. Gênero.
ABSTRACT
My study is about the representation of fatal woman narrative element in Pedro Almodóvar’s
movie Bad Education (2004). This element is composed by two characters: the transvestite
Zahara and the actor Juan. These characters act as reflective points in the movie because they
have transgression characteristics referring to the fatal woman, whose character was
introduced in the narratives of detective stories from the literature in the hard-boiled
American crime fiction that on the other hand influenced Americans noir films in the early of
1940s to 1950s. Almodóvar with inspired those movies to compose his neo-noir Bad
Education and also to introduce this narrative element, fatal woman, innovating. My study
focuses especially on the character Zahara, however, this is not a woman on the biological
point of view, but a transvestite who is being staged in the film within the film by Juan, a
reference to metalanguage movie. I refer the film noir context for the search and the
emergence of women in fatal noir universe, treatment of construction of such characters in
terms of language film and feminist research that connect gender, identity and queer theory,
talking about the body, narrative and construction of the characters on the scene as points of
discussion to subvert the narrative.
KEYWORDS: Fatal woman. Pedro Almodóvar. Genus.
ÍNDICE DE FIGURAS
Figura 1 A travesti na sacristia. Relação dicotômica na imagem: O sagrado’ (anjo) e o
‘profano’ (Zahara)....................................................................................................................47
Figura 2 O rosto do menino Ignacio escorrendo sangue e sendo repartido na tela. Rosto de
Padre Manolo lendo A Visita surgindo no centro.....................................................................63
Figura 3 – Zahara chantageia Padre Manolo............................................................................69
Figura 4 A ‘verdadeira’ pessoa travesti de Educação: Ignacio
Rodríguez..................................................................................................................................69
Figura 5 Juan/ Ignacio novamente reafirmando para Enrique que pode ‘transformar-
se’..............................................................................................................................................70
Figura 6 Cruzada de pernas de Barbara Stanwyck em Pacto de sangue (Double Indemnity,
1944, direção de Billy Wilder)..................................................................................................72
Figura 7 – Cruzada de pernas de Zahara...................................................................................72
Figura 8 Claudia Drake (detalhe do cigarro) e Tom Neal em Curva do destino (Detour,
1945, direção de Edgar G. Ulmer)............................................................................................73
Figura 9 – Jane Greer em Out of the past (Fuga do passado, 1947, direção de Jacques
Tourneur)..................................................................................................................................73
Figura 10 – Jeito de fumar de Zahara.......................................................................................73
Figura 11 Jeito sedutor de abraçar. Orson Welles e Rita Hayworth em A dama de Shangai
(The Lady from Shanghai, 1948, direção de Orson Welles)…………….……………………74
Figura 12 – Jeito sedutor de Zahara ao ‘se encostar’ em Enrique............................................74
Figura 13 Paródia: Juan imitando uma travesti que, por sua vez, imita Sara Montiel. A
caracterização de Juan pronta: Zahara......................................................................................75
Figura 14 – Juan pedindo ajuda à travesti do show para compor Zahara.................................75
Figura 15 – Fusão de imagens: garoto Ignacio transformando-se no homem fatal, Juan.........83
Figura 16 – Metalinguagem: Juan tirando o figurino de Zahara após a filmagem de A
Visita.........................................................................................................................................84
Figura 17 – Plano 61 ................................................................................................................85
Figura 18 Platéia de Noches en Casablanca aplaudindo a personagem Teresa cantar Quizás,
Quizás, Quizás..........................................................................................................................87
Figura 19 – Plano 62............................................................................................................87-88
Figura 20 – Figurino de Teresa (Sara Montiel): vestido brilhante colado ao corpo delineando
suas formas................................................................................................................................89
Figura 21 – Figurino de Sara Montiel.......................................................................................90
Figura 22 – Figurino de Sara Montiel.......................................................................................90
Figura 23 Sara Montiel e Zahara com cravo próximo ao
rosto...........................................................................................................................................91
Figura 24 – Foco de luz e Teresa (Montiel) deslizando uma flor vermelha pelo corpo...........92
Figura 25 – Teresa e Zahara – observar maquiagem, atenção especial para os olhos..............93
Figura 26 – Cabelo ondulado e loiro da heroína.......................................................................94
Figura 27 Cabelo da heroína loiro, ondulado, porém
curto..........................................................................................................................................94
Figura 28 Heroína da década de 2000: madeixas loiras, curtas e repicadas com ‘ar
rebelde.......................................................................................................................................95
Figura 29 – Penteado de Sara Montiel (inspiração para a peruca de Zahara)...........................95
Figura 30 – A personagem Teresa (Sara Montiel) olhando para a câmera...............................96
Figura 31 – Teresa atirando uma flor a uma personagem que a assistia na platéia..................96
Figura 32 – Plano 63 ................................................................................................................96
Figura 33 – Personagem de Noches en Casablanca pegando a flor lançada por Teresa..........97
Figura 34 – Plano 87 ................................................................................................................97
Figura 35 – Plano 88 ................................................................................................................98
Figura 36 – Plano 89 ................................................................................................................99
Figura 37 – Plano 90 ..............................................................................................................100
Figura 38 – Plano 357 ............................................................................................................103
Figura 39 – Plano 358.............................................................................................................105
Figura 40 – Plano 359.............................................................................................................106
Figura 41 – Plano 360.............................................................................................................107
Figura 42 – Plano 365.............................................................................................................108
Figura 43 Juan em meio às sombras de persianas e luzes que passam entre elas:
sensualidade e ambientação noir ............................................................................................112
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 15
1 UM DIÁLOGO ENTRE FILM NOIR, ALMODÓVAR E MÁ EDUCAÇÃO
1.1 Da literatura hard-boiled para as telas: o filme noir e a mulher
fatal............................................................................................................................................27
1.2 Definindo filme noir...........................................................................................................32
1.3 O cinema que inspirou o estilo visual dos noirs.................................................................35
1.4 O declínio do filme noir e o aparecimento do neo-noir......................................................38
1.5 Contextualizando Almodóvar com Má Educação, o franquismo e a Espanha...................40
2 DO FEMINISMO À TEORIA QUEER: QUESTÕES DE GÊNERO E IDENTIDADE
2.1 O feminismo e a mulher como centro do
discurso.....................................................................................................................................50
2.1.1 A mulher fatal sob a ótica de estudos
feministas
..............................................................................................................................................54
2.1.2 As questões de nero e
identidade..................................................................................................................................56
2.1.3 Novo olhar sobre a questão de gênero e identidade: a teoria
queer..........................................................................................................................................60
2.1.4 A construção do corpo: Zahara, travesti ou drag-
queen?.......................................................................................................................................66
2.1.5 A paródia do feminino como prática
discursiva..................................................................................................................................71
3 LINGUAGEM CINEMATOGRÁFICA
3.1 A linguagem cinematográfica e a análise fílmica.............................................................. 78
3.2 A não-linearidade da narração de Má Educação e a metalinguagem como parte da
construção das personagens fatais.............................................................................................80
3.3 Interpretando as imagens fílmicas.......................................................................................84
3.3.1 O canto da sereia: a construção da personagem em cena.................................................85
3.3.2 O Striptease de Zahara e Juan e a manifestação do erótico de ambos na tela.................97
CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................110
REFERÊNCIAS................................................................................................................... 114
ANEXO: DVD COM O FILME MÁ EDUCAÇÃO (EM ESPANHOL) E SARA
MONTIEL CANTANDO NO FILME NOCHES EN CASABLANCA.............................119
15
INTRODUÇÃO
“Minhas melhores recordações são do Cine
Olympo, que agora está em ruínas!” (Ignacio
Rodríguez nos escritos de A Visita em
Educação).
A primeira vez que me lembro de ter ido ao cinema foi aos quatro anos, no ano de
1984, quando fazia o Jardim de Infância numa escola particular de ensino fundamental muito
famosa na época em Goiânia, capital do estado de Goiás. Nessa escola, havia um cinema com
cadeiras de madeira bem antigas, uma tela de projeção que ficava acima de um palco onde,
também, aconteciam teatrinhos e, nessas ocasiões, suspendiam a tela que desaparecia acima
do palco. O cinema dessa escola não recebia um nome específico de nenhuma personalidade,
ao menos, não me lembro se recebia. Chamávamos ‘O Cinema’ – como se ‘cinema’ fosse seu
nome próprio. Era costume a escola exibir filmes educativos sobre: campanhas contra
tabagismo; a importância de se ter bons hábitos higiênicos para não se contrair verminoses e
outras doenças; como atravessar a rua sem sermos atropelados; local certo de jogar o lixo,
entre outros temas. No entanto, eu gostava mais quando exibiam filminhos com desenhos de
histórias de clássicos infantis: Branca de Neve e os sete anões etc. Geralmente, eram filmes
que iam passando quadro a quadro, sem movimento, enquanto ouvia-se uma narração, muitas
vezes, musicada.
Não esqueço o primeiro filme que vi nesse mesmo cinema: Chapeuzinho
Vermelho. Eu que já tinha medo do escuro, fiquei aterrorizada quando se apagaram as luzes e,
ao mesmo tempo, fascinada com aquela ‘televisão gigante’. Mas, uma coisa aterrorizava-me
mais do que o escuro: a figura do ‘Lobo Mau’: com dentes e garras gigantes e uma voz
horrenda que devorava a vovozinha e, em seguida, faria o mesmo com a menininha de capa
vermelha – se não fosse pelo heróico caçador.
16
Medo e encanto foram os primeiros sentimentos que senti, na sala escura de
projeção, e meu gosto por cinema. E essa é a resposta mais óbvia do porquê de eu ter
escolhido pesquisar um filme. Porque penso que é preciso empatia pelo trabalho que você
realiza para que ele nasça pleno de amores. A segunda resposta, menos subjetiva, é o fato de o
cinema exercer domínio social enquanto uma forma de transmitir o ‘pensamento’ daquele ou
daqueles que fizeram o filme. No caso, o filme Educação (2004)
1
do cineasta espanhol
Pedro Almodóvar.
Antes de continuar sobre Educação, volto a falar sobre o cinema da minha
primeira escola: além dos filminhos, tínhamos aulas de ‘educação sexual’ quando estávamos
na terceira e quarta séries do ensino fundamental, distribuídas assim: num dia, as meninas; no
outro, os meninos, de forma separada. Para nós, as meninas, a coordenadora dava uma
palestra com palavras não muito compreensivas sobre sexo, alterações hormonais que
aconteceriam logo com nossos corpos, higiene íntima e como uma ‘mocinha’ deveria se
comportar. A explicação era sobre: manter nossos mens intactos até o casamento; a
sensibilidade que sentiríamos quando aparecessem ‘pedrinhas nos peitinhos’; aparecimento de
pêlos pubianos; sentar com as pernas fechadas; a menstruação; e de como deveríamos enrolar
nossos absorventes íntimos usados no papel higiênico para jogá-los no lixo, “porque ninguém
precisava saber que estávamos menstruadas”.
Depois da palestra com a coordenadora, tínhamos outra com o diretor e
aprendíamos como deveríamos vivenciar nossa sexualidade e nosso desejo. Dessa vez, todos
juntos: meninos e meninas. Éramos instruídos que: “sexo deveria ser feito na hora certa e no
lugar certo”, que essa hora certa seria depois do casamento e o lugar certo, na frente, ou seja,
na vagina e que nunca, mas nunca mesmo, deveríamos fazer sexo ‘atrás’ (anal), porque isso
poderia causar danos aos nossos corpos. Assim, o diretor relatava sobre ex-alunos que haviam
‘se tornado’ gays “uma coisa horrível, porque homem tinha que ser homem e mulher tinha
que ser mulher”.
Além dessa escola, estudei durante a década de 1990 em dois colégios particulares
e católicos da congregação agostiniana também em Goiânia: durante um ano, num colégio
dirigido por freiras, e oito anos, numa instituição gerenciada por padres. Especificando as
aulas de Ensino Religioso do segundo colégio, pelo fato de eu ter estudado mais tempo nele,
recordo-me que no ano de 1996, num encontro de um grupo de jovens que era promovido de
ano em ano, em que se inscreviam alguns alunos como eu fizpara ser escolhida para ficar
1
O filme em língua espanhola pode ser assistido no DVD em anexo a esta pesquisa. Título original em espanhol:
La Mala Educación.
17
três ou quatro dias interna nas dependências do colégio, o então, padre diretor da época,
palestrou para nossa turma mista de adolescentes num grande salão, a respeito de s, as
meninas, “não nos comportarmos como ‘laranjas de feira’, que todo mundo (meninos) uma
‘pegadinha’, mas que ninguém quer levar para casa (casar)”. E assim, uma das professoras de
Ensino Religioso, durante as aulas do colégio, atestava em todas as turmas que havia se
casado virgem e que Deus assim nos cobrava, ou sobre não nos masturbarmos em demasia,
porque, depois, teríamos sérios problemas para obtermos prazer a dois, que estaríamos
acostumados a tê-lo sozinhos.
Embora tenha recebido essa ‘boa’ educação das instituições de ensino em que
estudei e dos meus pais, algumas vezes, era vista como ‘rebelde’, talvez não por ações
concretas, mas, por expressar pensamentos que iam de encontro a tais posturas.
Durante todos os meus anos como aluna na escola, nos colégios, na faculdade e
no mestrado (período de 1984 a 2008) tive colegas que manifestavam seu desejo direcionado
a pessoas do mesmo sexo biológico. Tais colegas eram discriminados e destratados por outros
alunos, porém eu costumava me posicionar ao lado deles, porque, a meu ver, eles podiam ser
quem e como quisessem e tinham que ser respeitados de forma igual.
Eu não sei exatamente por que desde criança me formei assim. Talvez, porque
nunca soube que meu pai tivesse destratado alguma pessoa que não fosse heterossexual, nem
nunca tenha presenciado, em todos esses tempos, ele zombar ou ir contra alguém que não o
fosse; ou porque minha mãe sempre me falava que deveria respeitar as pessoas que tivessem
vivência sexual diferente da minha, por serem seres humanos – já que diferentes todos somos;
ou porque além de colegas, tivesse convivido com um primo (já falecido) que assumia desejos
por pessoas do seu mesmo sexo biológico; quiçá pelo fato do meu tio, pai desse primo, ter
demonstrado grande respeito, aceitação e admiração pelo filho enquanto ele era vivo, e por eu
apreciar isso nele.
Vem da minha ‘boa’ educação meu interesse por Educação. A história do
filme que se passa num colégio católico de padres, como eu mesma passei a década de 1990,
estudando em dois. De igual forma, justifica-se meu interesse por estudar questões relativas
ao corpo: assuntos que vêm permeando minha mente, desde meus primeiros anos como
estudante, porque foi na escola que essas questões começaram a me incomodar.
Nesse espaço, fora do ambiente familiar, descobri as diversidades: tipos variados
de cabelos, cores de peles, formatos de narizes, de pés, estaturas, alunos com mais ou menos
gordura e mais tarde, já na adolescência, que moças se cobravam muito (inclusive eu), para se
adequarem aos padrões estéticos vigentes, na segunda metade dos anos de 1990, e, no
18
princípio da cada de 2000, no ambiente que eu freqüentava: serem magras, terem nádegas
grandes e seios pequenos. E um pouco mais tarde: serem ‘saradas’, terem nádegas grandes e
seios volumosos (com silicone). Tentando seguir o padrão e nunca chegando nele: o
incômodo da adolescência. E hoje, em fase adulta, continuo incomodada com tais assuntos,
não mais por não estar dentro do padrão, meu incômodo é contra essa imposição de padrões
estéticos sobre a forma do corpo a ser seguida como a ideal assunto que aqui comento, mas
que não abordarei nesta pesquisa.
Neste ponto, sinto necessidade de explicar como cheguei à idéia de pesquisar
Educação. Aconteceu em 2004: recebi um convite da minha amiga, a Ronísie, para irmos ao
cinema assistir um filme de Almodóvar. Ao ver Educação, minhas negras pupilas
deleitaram-se com as imagens e encantaram-se com a narrativa, as personagens e, ali, na sala
escura, sugando Coca-Cola pelo canudinho, decidi que aquela película seria o objeto da minha
pesquisa.
Para arquitetar Educação, Almodóvar inspirou-se no film noir um tipo de
filme que o cinema hollywoodiano consagrou, especificamente, nos anos de 1940-1950. Esse
grupo de filmes começou a aparecer e a receber atenção especial por se diferenciar dos demais
que haviam sido comercializados nos Estados Unidos, porque ao invés de apresentar um
aspecto otimista, os filmes mostravam histórias envoltas num jeito dark de se ver a vida. As
histórias giravam numa órbita em que aconteciam mudanças históricas, políticas, sociais,
culturais que remetiam ao final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e, conseqüente,
Guerra Fria, por exemplo: o largo ingresso de mulheres no mercado de trabalho, as políticas
de identidade como o feminismo. Por isso mesmo, film noir significa filme negro.
Toda narração seja ela literária ou fílmica possui seus elementos, dentre eles, as
personagens, dessa forma, um dos elementos mais recorrentes nos filmes noirs é a ‘mulher
fatal’ uma personagem representada com alto poder de sedução, que usa de seus encantos
para manipular as personagens homens da trama para conseguir o que almeja, na maioria das
vezes, dinheiro e poder. E assim, como uma aranha viúva negra, envolve os homens em suas
teias e os manipula a bel-prazer, e, depois, leva-os à morte ou à destruição moral.
Independentemente de serem maquiavélicas, as personagens que assim eram intituladas
demonstravam grande inteligência e poder sobre os homens que costumavam estar,
libidinosamente, interessados por elas, e acredito que, por isso mesmo, se deixavam controlar.
A personagem mulher fatal enquanto elemento narrativo apareceu primeiramente,
nas histórias de detetive da escola de literatura criminal americana hard-boiled, publicadas
entre os anos de 1920 a 1950. Foram essas mesmas histórias que, a partir dos anos de 1940,
19
motivaram os filmes noirs estadunidenses, embora o filme noir tenha sido inspirado,
especialmente, em romances policiais da literatura de ficção criminal americana e no cinema
expressionista alemão dos anos de 1920, recebendo, também, influências de outras fontes: do
filme de gângster, do realismo poético e do cinema neo-realista italiano. As histórias eram
ambientadas com personagens de caráter dúbio, no submundo de grandes cidades americanas
e num clima de pessimismo que os Estados Unidos estavam vivenciando, devido ao final da
Segunda Guerra Mundial e ao início da Guerra Fria.
Pedro Almodóvar, por sua vez, se inspirou nos filmes noirs e compôs
Educação como um neo-noir
2
, contextualizando-o não nos Estados Unidos, nem num clima
de pós-guerra, mas, na Espanha (país da Europa), nos anos de: 1964, 1977 e 1980. Ele inseriu
o elemento narrativo mulher fatal, no entanto, não o construiu no papel de uma única
personagem que fosse ‘mulher’ em relação ao sexo biológico, porém, no papel de uma
travesti
3
e também de um homem. Ou seja, o elemento narrativo mulher fatal de
Educação é construído em relação à inversão: um homem que ‘se traveste’ de mulher, todavia
não é uma mulher biológica e num homem que usa todos os artifícios subjetivos inerentes à
mulher fatal, enquanto personagem caracteristicamente noir.
Portanto, é nesse ponto que meu estudo se foca: na representação da mulher fatal,
enquanto elemento narrativo, construído em duas figuras dramáticas que as denomino de
‘personagens fatais’: a travesti Zahara e o ator Juan, que são os novelos responsáveis pelo
desenrolar da trama, ao mesmo tempo em que funcionam como fios que costuram as histórias
em recortes de Má Educação.
A travesti Zahara é uma personagem que está sendo encenada no filme dentro do
filme
4
numa forma de metalinguagem do cinema, apresenta-se em casas noturnas, vive às
margens do submundo dormindo em pensões ordinárias, entregue à prostituição, a pequenos
furtos e ao uso de drogas. Numa de suas composições, Zahara aparece construída em
homenagem à cantora e atriz espanhola, Sara Montiel,
5
e atua no filme de maneira mais
2
Filmes da atualidade que conservam características do universo próprio dos antigos noirs (WILLIAMS, 2005).
3
Usarei no decorrer do texto ‘a/uma travesti’; ‘a/uma drag-queen’, assim como, aparecerá mais adiante em
citações de autoras brasileiras que desenvolveram recentes pesquisas abordando gênero/ travestismo como
Pelúcio (2005) e Vencato (2005). Elas usam o termo sendo evidenciado no feminino porque ‘as travestis
(homens que vestem roupas de mulher e assumem uma identidade feminina), no cotidiano, tratam-se dessa
forma.
4
Um filme sendo produzido dentro de outro ficticiamente, como parte da narrativa. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/ra/v43n1/v43n1a12.pdf , (Acessado em 20 setembro 2006).
5
Pedro Almodóvar faz em Educação algumas intertextualidades com o filme Esa Mujer (Essa Mulher,
direção de Mario Camus, 1969), em que Sara Montiel aparece atuando como Madre Soledad e Noches en
Casablanca (Noites em Casablanca, direção de Henri Decoin, 1963), filme também por Montiel estrelado que
serviu como inspiração para a cena em que Zahara canta no palco do fictício Cine Olympo.
20
cômica. Já, Juan é um ator de teatro, também remetendo à metalinguagem e para conseguir
ser um astro de cinema e encenar o papel de Zahara, engana, seduz, usa do sexo e até mata.
Juan é o homem fatal e a personagem que realmente remete às características ‘psicológicas’ e
‘morais’ do elemento mulher fatal, como o assegura o próprio Almodóvar:
No noir pode não haver policiais, nem pistolas, nem sequer violência física,
mas deve haver mentiras e fatalidade, qualidades que normalmente
personifica uma mulher: a mulher fatal. A femme fatal (não é imprescindível
no gênero, mas é um de seus grandes ícones) é uma mulher consciente de
seu poder de sedução, fria, e por isso não se altera facilmente, que perdeu os
escrúpulos e não se interessa em recuperá-los. Para ela, o sexo não é fonte de
prazer, e sim de dor para os demais. Em Educação, a mulher fatal é uma
criança terrível, a personagem interpretada por Gael García Bernal, que
segue ao da letra os exemplos de Barbara Stanwyck, Jane Greer, Jean
Simmons (Angel Face), Joan Bennett (Scarlet Street), Ann Dvorak, Mary
Windsor, Lisabeth Scott, Veronica Lake e tantas outras maldições em forma
de mulher.
6
Faço esse comentário pelo fato de a personagem Zahara não ser uma mulher, mas,
uma travesti. Sendo uma travesti, Zahara a meu ver não representa uma mulher porque ela não
vivencia no filme os mesmos ‘dramas’ ou ‘venturas’ de uma mulher, e sim, de uma travesti
mesmo ela se portando de uma maneira considerada feminina. E é em Zahara mais
especificamente, que foco meu estudo, tendo Juan como ponto que figura em segunda
instância do meu debate, isso pelo fato de eu encarar Zahara como a personagem mais
transgressora e contestatória no filme do que Juan, justamente, por se tratar de uma travesti e
pelas falas por ela ditas no decorrer da história. Tenho também interesse em saber como
Almodóvar representou o elemento mulher fatal construído nessas personagens fatais do
ponto de vista imagético e como deu valoração de significados a elas sob a ótica da linguagem
cinematográfica.
Portanto, devido a essas representações do elemento mulher fatal numa travesti e
num homem, minha pesquisa possui o debate centrado em questões de gênero e identidade
sexual e como essas questões se dão com as manifestações dessas personagens na tela. Teço
6
En el “noir” puede no haber policías, ni pistolas, ni siquiera violencia física, pero debe haber mentiras y
fatalidad, cualidades que normalmente encarna una mujer: la mujer fatal. La femme fatal (no es imprescindible
en el género, pero sí es uno de sus grandes iconos) es una mujer consciente de su poder de seducción, hipotensa,
por lo cual no se altera fácilmente, que ha perdido los escrúpulos y no siente interés por recuperarlos. Para ella
el sexo no es fuente de placer, sino de dolor para los demás. En “La mala educación” le femme fatal es un
enfant terrible, el personaje interpretado por Gael García Bernal, que sigue al pie de la letra los ejemplos de
Barbara Stanwyck, Jane Greer, Jean Simmons (Angel Face), Joan Bennett (Scarlet Street), Ann Dvorak, Mary
Windsor, Lisabeth Scott, Veronica Lake y tantas otras maldiciones en forma de mujer. Disponível em:
http://www.clubcultura.com/clubcine/clubcineastas/almodovar/malaeducacion/comentarios_fundido.htm
,
(Acessado em 11 abril 2007).
21
essa discussão não só a partir da linguagem cinematográfica, mas também, de pesquisas
feministas e da teoria queer.
Durante as pesquisas para a laboração do meu estudo, não encontrei muitas
referências de cunho acadêmico produzidas, no Brasil, sobre film noir e neo-noir. Além do
que, percebi que é raro uma autora mulher escrever trabalhos deste tipo, visto de uma
perspectiva que tem como base a linguagem cinematográfica e questões de gênero. Em outros
países, tais pesquisas existem consideravelmente, especialmente, nos Estados Unidos da
América e na França, sendo que geralmente, essas pesquisas são redigidas por autores homens
e por uma minoria de mulheres. Por tais pretextos, acredito ser esta a relevância do meu
trabalho, que se constitui no fato de eu ser uma pesquisadora mulher e brasileira. Outro fato é
pesquisar questões de gênero e cinema em nosso país, que ainda é algo novo, especificamente,
em se tratando dessas representações de gênero em relação à linguagem cinematográfica
atrelada ao film noir.
Sendo Zahara uma travesti, pergunto o porquê de Almodóvar ter construído a
representação do elemento narrativo mulher fatal assim personificado e também na figura de
um homem. Tenho interesse em saber em quais posições Zahara e Juan se enquadram, ou
seja, como foram construídos, na tela, na condição de personagens? Chamam atenção? Mas,
com qual finalidade? Leva-se em conta o fato de Zahara aparecer como travesti no momento
underground de 1977, na Espanha, visto que a própria travesti é elemento da contracultura,
que promove discussões em torno de questões de gênero e identidade sexual e que afronta a
sociedade. Assim, o elemento mulher fatal, sendo uma travesti e um homem em
Educação, como os corpos de tais personagens fatais se comportam em cena? Como agem? E
como são? Quais adornos usam e quais comportamentos e discursos produzem e adotam para
construir suas identidades, que o corpo tem adquirido mais importância nos debates da
cultura atual? Dessa forma:
Filmes, músicas, revistas e livros, imagens, propagandas são também locais
pedagógicos que estão, o tempo todo, a dizer de nós, seja pelo que exibem
ou pelo que ocultam. Dizem também de nossos corpos e, por vezes, de forma
tão sutil que nem mesmo percebemos o quanto somos capturadas/os e
produzidas/os pelo que se diz. Falar do corpo é falar, também, de nossa
identidade dada a centralidade que este adquiriu na cultura contemporânea
(GOELLNER, 2005, p.29).
No primeiro capítulo, traço uma breve contextualização histórica a respeito das
histórias de detetive, justamente, por terem sido nelas que o elemento narrativo mulher fatal
foi inserido e definido como tal, chegando às telas de cinema nos filmes noirs e continuando a
22
aparecer nos novos noirs as versões da atualidade. No entanto, não explanarei,
detalhadamente, sobre as grandes questões do filme noir, e também, não é do meu interesse
debater a natureza desses filmes, nem explorá-los, mas, somente, realizar uma breve
contextualização em linhas gerais a respeito do ‘tipo’ de filme que Almodóvar se inspira,
situando as figuras dramáticas que ele chama como mulher fatal no âmbito noir e,
conseqüentemente, no neo-noir de Má Educação.
Para se definir filme noir uso, no primeiro capítulo, primordialmente a obra de
Mattos (2001), pelo fato dela estar atualizada, tendo ele feito um levantamento entre os
principais autores que debateram tal assunto ao redor do mundo, expondo as definições e as
marcas que cada um dava à sua época para o que seria considerado filme noir. A partir dessas
premissas e tendo assistido a quase 500 filmes, Mattos (ibid) traça suas próprias conclusões,
formula um conceito e propõe uma divisão por ele chamada de filmes noir puros (24 filmes) e
impuros (126 filmes) entre os quais poderiam ser, realmente, considerados como
pertencentes ao cinema noir americano. Outro ponto da obra desse autor é o fato de ele ter
verificado os tipos de personagens mulheres que aparecem nos filmes noirs americanos do
período de 1940-1950, classificado-as quanto suas atuações: i) se ‘verdadeiras’ mulheres
fatais; ii) se somente mulheres sedutoras; e iii) se mulheres sexuais etc. Assim, para ele, todas
possuem características semelhantes e a linha que as separa é tênue, tanto que é costume
generalizar e denominar todas essas personagens somente de ‘mulheres fatais’. O teórico
também busca, nas raízes das histórias de detetive, o surgimento desse elemento narrativo e o
estilo visual dos ‘cinemas’ que inspiraram a construção do universo noir nos filmes: mais
enfaticamente, o cinema expressionista alemão dos anos de 1920.
Abordo, também, os autores Borde e Chaumeton (1955) que traçam um panorama
do filme noir, até a data de publicação da importante obra por eles escrita, que serviu para
outras publicações a esse respeito, e que a utilizo em paralelo à obra de Mattos (ibid) para
justificar as características do universo noir. Ainda, no primeiro capítulo, estabeleço uma
relação entre Almodóvar e o cinema espanhol, pelo fato de Zahara ter sido focalizada em
1977 e Juan em 1980, no contexto de uma Espanha pós-franquista, já respirando ares de
liberdade do período de autoritarismo que se deu entre 1939 a 1975 e foi regido pelo ditador
General Franco.
Todavia, assim como explano em linhas gerais sobre filme noir, pratico o mesmo,
nesse primeiro capítulo, de forma a contextualizar Zahara e Juan como elementos neo-noirs,
relacionando-os à estética e ao universo referentes ao estilo almodovariano. Para tanto, uso a
coletânea organizada por Cañizal (1996), de ensaios produzidos por pesquisadores da
23
Universidade de São Paulo USP, sobre os longas-metragens de Almodóvar até a data da
publicação do livro. Outrossim, lanço mão dos pesquisadores brasileiros Bigarelli (2003) e
Santana (2007), com trabalhos mais recentes que, de igual forma, ressaltam Almodóvar
perante o cinema Espanhol.
As datas em que as personagens fatais são retratadas posicionam a
problematização, tanto do ponto de vista fílmico (relativo à linguagem cinematográfica por
Almodóvar utilizada no sentido de atribuir significados em torno de tais figuras dramáticas),
quanto em relação àquele momento vivido, na Espanha, pelo próprio Almodóvar, enquanto
cineasta – o que reflete na construção das personagens fatais e nas referências por ele
recuperadas daqueles anos, traçando representações sobre os mesmos em seu filme de 2004.
A respeito das datas, é importante frisar que: Educação teve estréia no ano de
2004, século XXI, recuperando as referências dos anos de 1964, 1977 e 1980, traçando
representações desses períodos. O discurso não é nas três datas acima, é de 2004, sendo que,
também, não é um filme de reconstituição histórica; é ambientado na Espanha, num outro
contexto, numa outra realidade e época. Dessa forma, vejo as personagens fatais,
especialmente Zahara semelhantes às paródias dos clássicos noirs americanos.
No segundo capítulo, procuro usar o parecer do feminismo como prática
metodológica em meu estudo. Para situar os leitores sobre o feminismo, recorro às leituras
feministas, a partir da década de 1960, quando o conceito de gênero ainda era tratado numa
noção de bipolaridade sexual entre homem-mulher, e que problematizava, teoricamente, essa
concepção. Faço esse parêntese pelo fato de eu tecer uma argumentação que enfoca a visão
das mulheres fatais dos antigos noirs americanos, a partir de estudos culturais feministas para
relatar a crítica que retratou a mulher nesses filmes surgidos num contexto de pós-guerra
estadunidense, evoluindo na década de 1970. Igualmente, utilizo para estudos que, também,
abarcam contextos culturais, sociais e psicanalíticos da ‘representação’ da mulher nas artes
clássicas, em geral, e nos entretenimentos de massa: o cinema. E, conseqüentemente, os
estudos feministas, abrangendo novas problemáticas nas décadas seguintes até a atualidade,
nesse princípio de século XXI.
Menciono o feminismo devido aos estudos de gênero e identidade e seu
desemboque na teoria queer que voz aos marginalizados, formulando um novo conceito
para tais assuntos. O debate ronda a questão central da “posição de sujeito”, fundada na
“identidade masculina, branca, heterossexual” que “deve ser, supostamente, uma identidade
sólida, permanente, uma referência confiável” numa forma de desestruturar essa centralização
com novas identidades de sujeitos (LOURO, 2005, p. 44). Cito as pesquisadoras brasileiras
24
Rago (2008) artigo publicado na Revista de Estudos Feministas e Biajoli (2007) sobre a
condição da mulher na Espanha, focando o grupo Mujeres Libres durante o período da
guerra civil nos anos de 1930, nesse país, que teve o general Franco com maior figuração para
entender melhor a construção do universo feminino naquele país e sobre a atuação de Zahara.
Tenho como referência a obra de Butler: Problemas de Gênero, que recapitulou
os estudos feministas anteriores para propor no início da década de 1990, uma nova reflexão
sobre as questões de gênero e sexualidade, servindo essa obra como uma das que delineou a
teoria queer que se formou com o intuito transgressor de desestabilizar e questionar as
epistemologias arcaicas que privilegiam as construções binárias heteronormativas excludentes
que delimitavam o feminismo patriarcalista. De igual forma, as obras de Louro (2003, 2004)
dessa forma explanam.
Assim, os teóricos queers debatem a posição do corpo ou do sujeito, na sociedade
e cultura que ocupam. Aquele que está fora desse centro ocupa a posição de ‘marginalizado
e recebe marcas da instabilidade, do descentramento, do diferente, do transgressor. Portanto, a
teoria queer permite que eu analise mais, especificamente, Zahara, o elemento fatal que
enfatizo nesse estudo na qualidade de uma personagem transgressora, e, também, como um
elemento que faz uma paródia do feminino que imita, mimetiza os atributos que as mulheres
dos filmes noirs americanos usam, mas, também, da mulher espanhola representada por Sara
Montiel.
Enquadro Almodóvar, traçando uma paródia do feminino. Isso pelo fato de que
gênero não é a mesma coisa que sexo biológico, nasce da identidade cultural, cujo indivíduo
pode aprender a se comportar, por exemplo, como mulher ou como homem. E é o que Zahara
faz enquanto travesti que copia o comportamento de mulheres, personagem reforçada pelo
ator Juan que, também, aprende o comportamento das travestis e que, por sua vez, se portam
de maneira feminina (não de mulheres biológicas). Obviamente, quando me refiro à
construção do universo do feminino, faço isso embasada na cultura e nos padrões que Zahara
está sendo encenada no filme dentro do filme.
Dessa forma, indago se Zahara pode ser considerada uma travesti ou uma drag-
queen, que, tanto Butler (2003) quanto Louro (2004) questionam sobre essas duas
categorias. Dialogo, portanto, com artigos de Vencato (2005) e Pelúcio (2005) produzidos
para os Cadernos Pagu importante fonte de pesquisas no campo de estudos feministas
brasileiros. Ainda, a respeito da teoria queer, além de Louro (2004), busco o amparo de
teóricos como Morris (2005) e Ribera (2006). Tais teóricos problematizam o gênero como
uma construção social e cultural apoiados na obra dos pós-estruturalistas Foucault e Derrida.
25
A respeito de como a mulher fatal era vista nos filmes noirs e para ilustrar como
os estudos culturais feministas do patriarcado se posicionavam sobre a atuação da mulher fatal
na tela, uso Kaplan (1995), representando o pensamento do final dos anos de 1970 e início
dos anos de 1980. Também, Lauretis (1994) e Toscano (1998) que representa o pensamento
de uma feminista do final dos anos de 1990, e trata sobre o imaginário do feminino e o
masculino ao longo de épocas. Relatando esses pontos de vista, abro caminho para traçar a
minha ótica atual, no que tange as personagens fatais de Almodóvar.
Entre os autores que se posicionam sobre a política de identidade, além de Butler
(2003), menciono, com mais ênfase, a coletânea organizada por Louro, Felipe e Goellner
(2005) que engloba autores que estudam corpo, gênero e identidade, a exemplo de Meyer e
que trabalham, a partir de uma perspectiva pós-estruturalista, as tais políticas.
Expressando-se de formas diversas, por vezes aparentemente independentes,
feministas e pós-estruturalistas compartilham das críticas aos sistemas
explicativos globais da sociedade; apontam limitações ou incompletudes nas
formas de organização e de compreensão do social abraçadas pelas
esquerdas; problematizam os modos convencionais de produção e
divulgação do que é admitido como ciência; questionam a concepção de um
poder central e unificado regendo o todo social, etc. (LOURO, 2003, p.29).
No terceiro capítulo, a linguagem cinematográfica uma forma de discurso
próprio que identifica as imagens do cinema enquanto uma linguagem entram em meu
estudo, como ponto de diálogo associado às teorizações propostas nos primeiro e segundo
capítulos, operando de modo a desenvolver e completar as reflexões sobre elementos noir,
questões de gênero e identidade e teoria queer. Para tanto, analiso fragmentos de
Educação que foram escolhidos por expressarem, segundo meu entendimento, os discursos
que aqui ressalto. Esse diálogo caracteriza a atuação imagética de Zahara e Juan. Exponho a
narrativa e a metalinguagem que caracterizam as personagens e essa obra de Almodóvar, além
de uma análise fílmica de partes de algumas seqüências. Realizei tais escolhas por tratarem da
questão do voyeurismo, do prazer das personagens de se exibirem como forma de sedução,
numa manifestação erótica como objetos de desejo, que o uso do corpo e do sexo, a partir
da atração e da sustentação do olhar para si, ajuda as personagens a conseguirem seus
objetivos, sendo essa uma das principais atitudes características do elemento narrativo mulher
fatal.
As imagens de Educação e de Noches en Casablanca aqui expostas foram
retiradas diretamente dos filmes, através de um programa de computador para edição e
captura de imagens. Autores como Andrew (2002), Aumont (2005), Martin (2007), Metz
26
(2004), Vanoye e Goliot-Lété (2005), Xavier (2003) tratam, dessa parte, no que diz respeito à
linguagem cinematográfica.
Como busco nestas análises interpretar alguns elementos simbólicos do universo
do erotismo, de maneira a explanar a construção de seus significados em termos de questões
de gênero, portanto, apelo para Williams (2005), Keesey e Duncan (2005) que, além de
explorarem a linguagem do cinema, ainda referem-se ao erotismo no mesmo. Botti (2007) e
Gregori (2003) para os Cadernos Pagu, também tratam das representações eróticas e do que
pode ou não ser considerado como obsceno. Assim, as representações do masculino e do
feminino manifestam-se de diferentes formas em vários âmbitos sociais ao longo dos tempos,
construindo e definindo imaginários culturais. Dessa forma, Oliveira (2004) sobre a
representação da masculinidade, bem como Jacobina e Kühner (1998, pp. 09-10) questionam:
Como ficam essas representações no momento em que a queda de
paradigmas leva à ruptura com os modelos convencionais? (...) o que é esse
masculino? O que é esse feminino? O que os define no imaginário...?
Manifesto-me como uma pesquisadora e espectadora-crítica. Assim sendo, esse
meu pensar está de acordo com o de Martin (2007, p. 19) que se posiciona como um
‘espectador-crítico’: “... sendo meu ponto de vista sempre aquele do espectador-crítico que
julga as obras a posteriori”. O autor ainda tem consciência da particularidade da interpretação
individual do espectador-crítico:
Quando o homem intervém, coloca-se, por menor que seja, o problema
daquilo que os estudiosos chamam de equação pessoal do observador, ou
seja, a visão particular de cada um, suas deformações e suas interpretações,
mesmo que inconscientes (MARTIN, 2007, p.24).
Nas páginas seguintes, estão minhas impressões sobre o filme. O complexo de
idéias da construção de sentidos foi por mim re-significado. Obviamente, outras significações
podem ser construídas, dependendo de quem as interpretar.
27
1 UM DIÁLOGO ENTRE: FILME NOIR, ALMODÓVAR E MÁ EDUCAÇÃO
Enrique Goded para Sr. Berenguer (que havia
invadido sua sala): “... Saia daqui! Não tenho
tempo para perder com você!”
Sr. Berenguer: “Nem sequer para saber como
morreu Ignacio? Nem quem lhe matou? Nem se
[o final] coincide com o do seu filme?”
Enrique: “Diga o que quiser e vá embora!”
Sr. Berenguer: “Foi idéia de Juan! Ou minha,
não sei! A única solução era nos desfazermos
dele. [...] Juan comprou heroína de pureza
assassina e me entregou, e eu fui à casa de
Ignacio sozinho.” (Diálogo de Má Educação).
Neste primeiro capítulo, tento tecer um diálogo entre a técnica de filme noir, o
cineasta Pedro Almodóvar (enquanto profissional) e o seu filme Má Educação. Para isso, faço
uma contextualização desde a literatura hard-boiled para as telas, para se chegar ao
entendimento do film noir e a mulher fatal; definindo, depois, filme noir; passando pela teoria
do cinema que inspirou o estilo visual dos noirs; discorrendo sobre o declínio do filme noir e
o aparecimento do neo-noir; relacionando, assim, Almodóvar com seu trabalho
cinematográfico de Educação, com franquismo (ditadura do general Franco) e a Espanha
(espaço da trama do filme).
1.1 Da literatura hard-boiled para as telas: o filme noir e a mulher fatal
As histórias dos filmes noirs se originaram da escola literária de ficção criminal
americana, hard-boiled,
7
embora fossem mais, comumente, associadas às famosas histórias de
7
Hard-boiled (of people) not showing much emotion (OXFORD ADVANCED DICTIONARY, 7
th
edition,
p.708).
28
detetives. Faziam, também, dela parte outros tipos, como as que seguiam o gênero western ou
histórias de caubóis, histórias fantásticas, de guerra etc. Essas histórias foram publicadas de
1920 a 1950, em revistas populares de ficção literária, as pulp magazines ou, simplesmente,
pulps e tinham esse nome devido ao papel empregado em sua confecção, o wood pulp, um
papel de baixo custo que tornava o preço de venda das revistas igual. No entanto, foi na Black
Mask, uma das principais pulps que começou a ser editada em 1920, que a hard-boiled
progrediu com as histórias de detetives e que foram chamadas pelo público francês de roman
noir (MATTOS, 2001).
Borde e Chaumeton (1955) enfatizam que os filmes noirs se originaram da
literatura dos romances policiais ingleses e americanos por Dashiell Hammett, que inovou o
estilo de se escrever romances policiais:
Dashiell Hammett é ao mesmo tempo o inventor desta nova corrente literária
americana [...] cujos primeiros escritos emergem ao redor de 1930. [...] o
primeiro grande filme noir [...] O Falcão Maltês, adaptado de um dos seus
melhores romances, marca a importância de Dashiell Hammett (p.17).
/Tradução minha/.
8
Dashiell Hammett começou a escrever de forma mais coloquial, ao contrário de
seus antecessores britânicos
9
, sua narração era mais ‘rápida’, as ações de suas histórias
costumavam ser interrompidas abruptamente. Ele inseriu também ação, violência e sexo,
enfatizando mais a atmosfera do que a intriga, ambientando o crime nas ruas de grandes
cidades com personagens que eram: policiais corruptos, assassinos de aluguel, meretrizes,
pequenos escroques, detetives particulares, chantagistas, traficantes. Em suas histórias, o herói
sempre é interrogado ou atacado para testar sua inteligência, perseverança e integridade; a
mulher apresenta sexualidade considerada transgressora e tudo contribui para um clima de
ambigüidade e de dissimulação. Com Hammett, as personagens ganharam aspectos de seres
comuns e o romance policial passou a ser denominado pelos franceses de: roman noir.
(MATTOS, 2001). Borde e Chaumeton (ibid) concordam que, na ambientação noir, ações
confusas com motivos incertos e concluem que:
a ambivalência moral, a violência criminosa e a complexidade contraditória
das situações e dos motivos concorrem para dar ao público um mesmo
8
Dashiell Hammett est à la fois le créateur de ce nouveau courant littéraire américain [...] et dont les premiers
écrits remontet aux environs de 1930. [...] le premier grand film noir [...] Le Faucon Maltais, adapté de l’un de
ses meilleurs récits, marque l’importance de Dashiell Hammett.
9
Edgar Alan Poe, em 1841, publicou a considerada primeira história de detetive: Murders in the Rue Morgue,
introduzindo à estrutura da narrativa policial: um crime, vários suspeitos, ao final, a revelação que teve a análise
magnífica, com dedução coerentemente impecável de um detetive excêntrico e de postura britânica, tendo esse
modelo de detetive dominado nessas histórias até os anos de 1930 (MATTOS, 2001).
29
sentimento de angústia ou de insegurança, que é a marca registrada do filme
noir à nossa época (1955, p.15). /Tradução minha/.
10
Demais escritores anglo-saxões endossaram o novo jeito de se escrever romance
policial de Hammett (The Maltese Falcon, etc.); Raymond Chandler (The Simple Art of
Murder etc.) requintou a narrativa com humor, gírias do submundo de forma poética,
colocando personagens transtornadas por dinheiro e poder, sentido figurado e profundidade
psicológica nas figuras dramáticas; Cornell Woolrich (The Lady in the Lake etc.) introduziu
relatos amargos; James M. Cain (Double Indemnity etc.) colocou o foco sobre o criminoso ao
invés do investigador, introduziu um herói sexualmente obcecado por uma mulher que o
levou a matar seu marido, sendo transtornado pelo medo de ser descoberto e pela culpa o
que promove uma atmosfera de inquietude e terror emocional (MATTOS, 2001). Percebo
aqui a introdução de um dos elementos que passaram a ser mais recorrentes à narrativa: a
personagem mulher fatal.
Tanto Mattos (2001) como Borde e Chaumeton (1955) afirmam que as mulheres
fatais são representadas como mulheres artificiosas que envolvem o protagonista num crime.
Outras vezes, elas não matam, mas induzem seus ‘seduzidos’ à morte, sendo estes vítimas de
seu próprio desejo. Elas também podem estar “na posse de outro homem. Ele pode ser um
marido rico, caso em que está implícito que ela o usou para obter dinheiro e segurança como
nos filmes baseados nos romances de James M. Cain, A dama de Shangai etc” (MATTOS,
2001, p.38).
Este novo tipo de mulher, cheia de artimanhas, que articula o crime, age
igual ao meio que a cerca, é especialista em chantagear – o que tem “efeito”
de arma de fogo e provavelmente o fingimento é sua marca de erotismo
noir que também é uma forma de erotização da violência. Ela se distancia
das heroínas românticas do velho Western ou do filme histórico (BORDE e
CHAUMETON, 1955, p.10). /Tradução minha/.
11
Williams (2005) que estudou os thrillers
12
eróticos em alguns filmes
contemporâneos, tendo começado seu estudo a partir dos noirs dos anos de 1940 até filmes
dos anos de 1990, ilustra que os thrillers englobam filmes de suspense, crime, horror e que
10
L’ambivalence morale, la violence criminelle et la complexité contradictoire des situations et des mobiles
concourent à donner au public un même sentiment d’angoisse ou d’insécurité, qui est la marque propre de cette
du film noir à notre époque.
11
Ce nouveau type de femme, côtovant et maniant le crime, dure à l’egal du milieu qui l’entoure, aussi experte
dans le chantage et le « vice » que dans les armes à feu et probablement frigide a donné sa marque à un
érotisme « noir » qui n’est parfois qu’une érotisation de la violence. On est loin des héroïnes chastes du vieux
Western ou du film historique.
12
Além de costumarem causar medo, mesmo quando não apresentam mistério, quando o thriller tem aliado a
investigação ou quando resolve um crime que era antes um enigma, transforma-se em sinônimo de história de
detetive (MATTOS, 2001).
30
causam uma tensão emocional como medo, nervosismo. Ela retrata que os thrillers eróticos da
atualidade são descendentes diretos dos antigos noirs, definindo esses genitores
cinematográficos como: “... histórias de intrigas sexuais que incorporam alguma forma de
criminalidade ou de desonestidade...” (p.01). /Tradução minha/.
13
Mattos (2001) observou, ainda, outros tipos de personagens mulheres que
coexistem nas narrativas, mas que, para ele, não podem ser chamadas de mulheres fatais. Ele
as identifica como: “mulheres domésticas”, representadas por namoradas ou esposas do herói,
que perdoam seu envolvimento com a mulher fatal, desejando apenas a sua volta para elas; há
a espécie de mulher que faz de tudo para ajudar o herói durante sua “provação”, se fazendo
até de “detetives” para salvá-lo; outra qualidade são as “mulheres sexuais”, que assim como
as “fatais”, usam de sexo para conseguirem o que almejam, entretanto, elas não possuem tanto
impacto sobre a vítima. A linha que separa as “sexuais” das “fatais” é tênue, mas, “nem todas
as mulheres sexuais são necessariamente mulheres fatais” (p.40). Uma variação é a da
“mulher sensual”, atraentes, elas fazem com que o herói entre em situações que o ameaça.
O personagem masculino geralmente é um masoquista com uma incrível
incapacidade para perceber a desonestidade da mulher traiçoeira que usa
sua paixão louca como uma forma luxuriosa de autopunição (MATTOS,
2001, p.40).
Borde e Chaumeton (1955) concordam com a citação acima de Mattos (ibid) ao
exporem que “a heroína é irresistível, mortífera, intoxicada ou alcoólica” (p. 14). E que os
heróis posicionam-se do lado considerado ruim e depois, punem-se. A existência da atração
sexual contribui para a mulher fatal manipular as demais personagens da história para
conseguir o que ambiciona.
Apesar de outros
14
romancistas de pulp fiction terem tido suas histórias retratadas
no cinema com a retórica noir, é especialmente a esse núcleo que se considera a introdução
dos elementos mais marcantes à temática do filme noir. Por isso, esses novos filmes
começaram a ser “comercializados e exibidos... como pertencentes ao gênero drama criminal”
(MATTOS, 2001, p.12).
É a presença do crime que ao filme noir sua marca mais constante.
“Dinamismo da morte violenta”, dizia Nino Frank, e a expressão parece
excelente. A chantagem, a delação, o tráfico de drogas tecem a trama [...] A
13
… stories of sexual intrigue incorporating some form of criminality or duplicity…
14
Carroll John Daly, também escritor da Black Mask, foi o criador do primeiro detetive hard-boiled, a
personagem Race Williams, embora Dashiell Hammett costume levar a fama (MATTOS, 2001).
31
todos os sentidos da palavra, o filme noir é um filme de morte. (BORDE e
CHAUMETON, 1955, pp.05-06). /Tradução minha/.
15
Comparando com o roman noir de Hammett ‘e seu núcleo’, exporei a seguir
alguns pontos mais marcantes, possíveis de serem identificados em Educação, a começar
pela história A Visita que foi escrita por Ignacio Rodríguez um relato amargo sobre sua
infância vivenciada num colégio interno de padres católicos no interior da Espanha, tendo
sido acossado pelo pedófilo diretor e professor de Literatura, Padre Manolo, que por ciúme,
afastou-o do seu amor de infância, Enrique. Interpreto este relato como uma alusão às
histórias que foram publicadas nas pulp magazines.
A personagem Enrique Goded, um cineasta, figura que faz referência ao próprio
Pedro Almodóvar, busca uma história para com ela produzir um filme assim como fizeram
os ‘cineastas noirsinspirando-se nas histórias das pulps um diálogo de Pedro Almodóvar
com a metalinguagem assunto que será tratado no terceiro capítulo. Embora, eu não
considere quanto à forma, o desenvolvimento da história muito objetivo devido sua narrativa
não-linear, entrecortada com histórias dentro de histórias (filme dentro do filme), os diálogos
em sua maioria do tempo desenvolvem-se breves e com palavras coloquiais, havendo humor
nas falas ‘dos’ travestis Paquito
16
e Zahara, além de muitas outras de baixo calão. Há presença
de ação, um pouco de violência e muitas cenas com erotismo e sexo.
personagens do submundo, marginalizadas: ‘os’ travestis não traficantes,
mas ‘os’ travestis usam cocaína; não meretrizes do sexo feminino, ‘do ponto de vista
biológico’, mas, vejo-as manifestadas ‘nos’ travestis que também se fazem de pequenos
escroques.
Padres corruptos que, segundo meu entendimento, ficam no lugar dos policiais
corruptos como representantes das instituições a que se atribuem, o emprego do ‘zelo’ e da
‘ordem’ de um mundo ‘secularizado’ e de uma ‘sociedade patriarcal’ espanhola remetendo
às feministas das décadas de 1960 e 1970, que exporei no segundo capítulo.
presença de chantagem: feita pelas personagens Zahara e Juan, a primeira
contra os padres corruptos; a segunda contra a personagem Enrique Goded. Já, Sr. Berenguer
seria uma espécie de matador de aluguel, que por sua vez, não usa arma de fogo, nem recebe
15
C’est la présence du crime qui donne au film noir sa marque la plus constante. « Dynamisme de la mort
violente », disait Nino Frank, et l’expression paraît excellente. Le chantage, la lation, le vol ou le trafic des
drogues tissent la trame [...] A tous les sens du mot, le film noir est un film de mort.
16
Nesse momento, faço a opção pelo uso de os travestis’ no masculino, para concordar com o nome ‘Paquito’
(travesti amigo de Zahara).
32
dinheiro para fazê-lo, ao invés disso, usa heroína para induzir à morte seu pagamento vem
na forma dos prazeres que recebe da personagem pela qual é ‘sexualmente obcecado’: Juan.
Quanto ao detetive, reconheço a aparição de seu traço investigatório em Enrique
Goded, que, a partir de um isqueiro, ou seja, uma pista esquecida em sua casa por Juan
(fingindo ser o próprio irmão, Ignacio), descobre todo mistério acerca dessa personagem.
Além disso, Enrique é colocado à prova por esse chantagista. Essa prova não é para testar sua
‘astúcia ou honestidade’, mas, porque quer a todo custo atuar no filme que Enrique está
produzindo em cima de A Visita. Juan diz que se ele não fizer o papel principal, não o deixará
filmar essa história. Em contrapartida, mesmo sabendo da ‘verdade de Juan’, Enrique
envolve-se sexualmente com ele, propondo-lhe também, ‘uma prova’ para ver aonde o vilão
chegaria para atuar em seu filme.
A existência da atração sexual é importante fator para que um dos elementos
‘mulher fatal’, no caso, Juan (homem fatal), que também é ‘o protagonista cínico’, consiga
manipular as demais personagens da trama.
1.2 Definindo film noir
O termo film noir apareceu pela primeira vez escrito num artigo de Nino Frank em
1946, L’Écrans Français, que tecia críticas a respeito dos filmes Faucon Maltais (1941,
direção de Huston); Assurance sur la mort (1944, direção de Wilder); Laura (1944, direção de
Preminger) e Adieu, ma Belle (1945, direção de Dmytryk) (MOINE, 2003).
Mattos (2001) versando sobre as principais características que influenciaram os
filmes noirs, esclarece que cada crítico ou historiador apresenta suas próprias definições para
justificar o filme noir como tal. Segundo ele, há
controvérsias não a respeito de sua natureza [movimento, ciclo, gênero,
estilo, tom e atmosfera, tipo de estrutura narrativa, fenômeno, inflexão ou
tendência?] como também do seu período de vigência [anos 40, dos 40 aos
60, até os dias de hoje?] Somente com relação à origem do termo é que os
autores concordam (p.11).
Desde que tal debate começou nos anos de 1940 até a atualidade, rios estudos
foram produzidos nessa tentativa e ainda não se chegou a um consenso sobre a categoria a que
pertencem, muito menos, sobre o período em que realmente surgiram ou que podem ser
‘legitimamente’ intitulados de film noir. Críticos concordaram ou discordaram entre si:
privilegiando a narrativa e/ou a temática, a atmosfera e/ou um contexto de elementos etc.
33
“Embora críticos e historiadores venham se familiarizando cada vez mais com o termo
inventado pelos franceses, o filme noir continua sendo uma área de grande discussão”
(MATTOS, 2001, p.21).
Tendo conhecimento dessas querelas, todavia, não vejo os esforços dessas
discussões como pontos negativos. Esses discursos, talvez, devido às controvérsias, fazem
com que o filme noir permaneça em nossas memórias ainda hoje, e acredito que um dos
fatores seja, justamente, pela valoração conferida pelos teóricos/ críticos. Embora, não
desconheça a importância desse debate, não explanarei de maneira aprofundada sobre isso.
Durante a Segunda Guerra Mundial, em 1940, “os alemães invadiram a França e
ocuparam Paris...” (COTRIM, 1998, p. 401). Por isso, esses filmes não podiam ser assistidos
e os franceses chegaram a conhecer os primeiros noirs quando houve a desocupação.
Apenas depois de exibidos nas telas parisienses, quatro anos após os filmes terem sido
lançados pelos estúdios hollywoodianos é que o film noir foi assim denominado. E não foi
mérito dos estadunidenses, mas sim, de críticos franceses que passaram a usar o termo em
revistas e a popularizá-lo. Eles usaram o vocábulo noir, tendo como base uma série de textos
publicados em 1945 na Série Noir, criada por Marcel Duhamel para a editora Gallimard, já
que os filmes assemelhavam-se muito com os romances policiais publicados nessa editora.
“Esses romances eram, na sua maioria, traduções de histórias escritas por Dashiell Hammett,
Raymond Chandler, James M. Cain, Cornell Woolrich e outros especialistas anglo-saxões”
(MATTOS, 2001, p.11).
Em seu sítio oficial na internet, Almodóvar elucida:
Negros os destinos das personagens e noir o gênero a que pertence a história
que se conta em Educação. Negro, em francês, para fazer justiça ao país
que resgatou o gênero, definiu seus sinais de identidade e estimulou seu
desenvolvimento como gênero maior. /Tradução minha/.
17
Para o cineasta, noir é definido como o gênero que a história de Educação
pertence. Além do mais, sua afirmação abre espaço para a interpretação de que foram os
críticos franceses com suas reflexões em cima dos filmes noirs americanos, que começaram a
defini-lo como noir a partir de suas visões pessoais e percepções em outras fontes literárias e
fílmicas, produzidas antes dos filmes noirs americanos dos anos de 1940, sendo que essas
reflexões engrandeceram a áurea dos mesmos, mas também, de obras suas.
17
Negros los destinos de los personajes y noir el género al que pertenece la historia que se cuenta en LME [La
Mala Educación]. Negro, en francés, para hacer justicia al país que rescató el género, definió sus señas de
identidad, y estimuló su desarrollo como género mayor. Disponível em:
http://www.clubcultura.com/clubcine/clubcineastas/almodovar/malaeducacion/comentarios_fundido.htm
,
(Acessado em 11 abril 2007).
34
Essa explicação de Almodóvar cabe à crítica de Nuremore por Mattos relatada. Ele
descreve que Nuremore foca “uma história cultural do filme noir, relacionando-a com
Hollywood, política de 1940, estratégia de markentig, estilo em evolução, cinemas sobre raças
e nacionalidades e idéia que circula em todas as tecnologias da informação” (2001, pp.19-20).
E segue explanando que de acordo com Nuremore, foram as condições locais que levaram os
franceses a verem Hollywood de certa maneira e que foram eles quem inventaram o filme noir
e que após a liberação dos filmes naquele país, houve o renascimento do americanismo por
parte dos diretores e críticos franceses, sendo que vários deles, tentaram colocar seu ‘cinema
de arte’ como as linhas dos filmes de gênero de Hollywood.
Uma nouvelle vague nasceria eventualmente dessa dialética entre América e
Europa, e o chamado filme noir que muito deveu ao modernismo europeu
tornou-se a categoria mais importante na crítica francesa. Aqueles críticos
também estavam predispostos a inventar o noir americano, porque este
evocava uma época de ouro do seu próprio cinema. Notaram logo que os
novos thrillers de Hollywood se pareciam com filmes como O demônio da
Algéria/ Pépé le Moko/ 1936 [Dir.: Julien Duvivier] ou Trágico amanhecer/
Le Jour se Léve/ 1939 [Dir.: Marcel Carné], melodramas sombrios, passados
num meio criminal urbano, com protagonistas condenados pelo destino, que
se comportavam com sangue frio sob pressão. A expressão noir de fato,
havia sido usada pelos comentaristas franceses do final dos anos 30 em
discussões sobre esses filmes (MATTOS, 2001, p.20).
Com o decorrer do tempo, a crítica francesa se diversificava adotando outros
termos para se referir ao filme noir, dependendo das características que apresentavam, sendo
os filmes também por eles chamados de hard-boiled, thrillers, séries.
Black Cinema foi a expressão que, inicialmente, foi usada por críticos anglo-
saxões, na década de 1960. Assim como os franceses, havia preocupação em enquadrar o
filme noir. Muitas foram as opiniões dos críticos que assistiram àqueles filmes que, logo
também, sentiram a necessidade de rotulá-los quanto à natureza: se gênero, thrillers, série,
estilo, ciclo, movimento... Uma vez que não adentrarei, nesse debate dos críticos, sobre a
natureza e época vigente do filme noir, adotarei a linha de raciocínio de Mattos (2001, p. 23):
O filme noir é um desvio ou evolução dentro do vasto campo de
gênero drama criminal, que teve o seu apogeu durante os anos 40 até
meados dos anos 50 e foi uma resposta às condições sociais,
históricas, culturais reinantes na América durante a Segunda Guerra
Mundial e no imediato pós-guerra. Nele combinariam basicamente,
as formas de ficção criminal americana produzidas por escritores
como Dashiell Hammett, Raymond Chandler, James M. Cain,
Cornell Woolrich e seus descendentes ou semelhantes literários, com
35
um estilo visual inspirado nos filmes expressionistas alemães dos
anos 20.
Considerando que os cenários têm como pano de fundo uma grande cidade
estadunidense, apresentando, quase sempre: becos, ruas escuras e/ou molhadas pela chuva,
neblina, onde acontecem violência e morte a cidade pode ter ambientações expressionistas
ou realistas. Há, também, boates, restaurantes ordinários ou de primeira classe, quartos de
hotéis vagabundos ou luxuosos, prédios de residências ou de escritórios, delegacias, ou pode
conter cenários exóticos como aquário, teatro chinês, parque de diversões, entre outros. Em se
tratando de decorações, o mais comum são venezianas, luzes de neônio, arte moderna. Sobre a
trilha musical, o estilo mais apreciado são as trilhas orquestrais e melodias tristes de jazz.
os figurinos são notórios pelos chapéus com abas viradas para baixo, capas de chuva,
ombreiras. E os acessórios são: cigarros, aperitivos, revólveres (MATTOS, 2001).
Assim, Almodóvar retrata em seu sítio oficial na internet: “O noir (como quase
todos os gêneros nobres), e admite bem a mistura com outros gêneros”. /Tradução minha/.
18
São notórios em Educação os elementos citados: os contrates entre claro e
escuro; luz e sombra; luz de néon; cigarros; câmera subjetiva; melodias tristes; iluminação
com chave baixa ou escura; persianas; boates; hotel vagabundo; arte moderna, que no filme,
aparece com referências à pop art
19
nos quadros, cenários, figurinos e caracterização das
personagens, objetos de cena, ilustrações e que compõem o estilo visual da filmografia
almodovariana e ajudam a estipular o estilo e as interpretações exageradas e vezes grotescas
das personagens. Noto que a pop art entra como um dos elementos que pode reafirmar a idéia
neo-noir de Educação, observo também que a forte inspiração na pop art é devida às
freqüentes alusões às pin ups
20
, às cores berrantes, aos figurinos extravagantes.
1.3 O cinema que inspirou o estilo visual dos noirs
18
El noir (como casi todos los géneros nobles) admite bien el mestizaje con otros géneros… Disponível em:
http://www.clubcultura.com/clubcine/clubcineastas/almodovar/malaeducacion/comentarios_fundido.htm ,
(Acessado em 11 abril 2007).
19
Arte que era “identificada com signos, consumismo e comunicação de massa” (MCCARTHY, 2002, p. 06).
Celebra o hedonismo, o prazer físico. A pop art tornou-se elemento da linguagem visual da filmografia
almodovariana. Em 1960, ela repercutia pelos Estados Unidos e Europa e sua temática ironizava a sociedade
capitalista e consumista que se deleitava com os prazeres oferecidos pelos produtos eletrodomésticos e por
demais bens de consumo de massa. As obras apresentavam imagens de produtos, pessoas usando esses produtos
na comodidade do lar e especialmente, mulheres com decotes e pernas de fora em poses chamativas e sensuais –
as chamadas pin ups (MCCARTHY, 2002).
20
Imagens sensuais de mulheres, geralmente, personalidades consideradas como símbolos sexuais. Pin up, do
inglês, quer dizer: para ser pendurado, já que as imagens eram colocadas em cartazes, como pôsteres, para serem
pendurados.
36
Quanto ao estilo visual, Mattos (2001) lista que é inspirado principalmente, no
cinema expressionista alemão dos anos de 1920 que foi a mais importante fonte
cinematográfica para o filme noir, que herdou a forma de representar dramas carregados de
morbidez e fatalismo, simbolizados através da abstração, deformação, estilização assim
como pregava o movimento expressionista que se firmou na Alemanha nas primeiras décadas
do século XX, manifestando-se no cinema, teatro, literatura, música, pintura.
Dessa forma, igualmente ao cinema expressionista alemão dos anos de 1920, o
filme noir apresenta iluminação com chave baixa ou escura que resulta num ambiente escuro
com contrastes de luz e sombras difusas, opondo-se à iluminação alta ou brilhante com
ambiente muito claro com poucos contrastes. O enquadramento se com a câmera subjetiva
que enfatiza o ponto de vista. Assim, também nesse cinema expressionista germânico
encontram-se:
ângulos exagerados; primeiríssimos planos; câmera oblíqua; linhas
horizontais cruzadas com verticais aumentando a impressão de clausura
psicológica e física; variações no posicionamento da luz chave (key light),
atenuante (fill light) ou contraluz (backlight) para produzir esquemas
inusitados de luz e sombras adequados à criação do clima de paranóia,
delírio e ameaça; corpos delineados em silhuetas dramáticas contra um
fundo iluminado; filmagem de cenas noturnas realmente de noite (night-for-
night) tornando o céu mais negro e ameaçador; reflexos no espelho
sugerindo “o outro lado” do personagem ou sublinhando os temas
recorrentes de perda ou confusão de identidade; estranhos pontos luminosos
sobre os rostos do herói para injetar-lhe uma aparência sinistra ou de
demência; heroínas fotografadas de maneira sedutora e outras estratégias
visuais aparecem com obsessiva repetição (MATTOS, 2001, p.46).
A iluminação expressionista retrata o pessimismo do cinema americano e nos
filmes noirs “leva-os a escolher circunstâncias e cenários de tonalidade trágica, por exemplo:
as cenas à noite que, além de seu simbolismo, deixam ao operador uma inteira liberdade de
composição luminosa” (MARTIN, 2007, p. 58). Outro fator que o filme noir herdou do
cinema expressionista dos anos de 1920 foi a utilização de sombras, que agem de maneira
teatral nos filmes, acentuando valores simbólicos.
Os cenários expressionistas apresentam-se, geralmente, com formas distorcidas.
Eis a manifestação da iconografia certeira para a ‘visão dark’ dos dramas criminais e thrillers
dos anos 1940: personagens neuróticas e agoniadas, num clima de escuridão e insânia.
Almodóvar também é um diretor que se inspira no expressionismo em sua
filmografia, para compor o estilo visual, as interpretações das personagens e Educação,
segue a mesma linha.
37
A fotografia noir cria toda essa ambientação de enquadramentos. Mattos (2001)
retrata: “a maior profundidade de campo, deixando tanto a frente do quadro como o meio e o
fundo em foco nítido, para que a interação entre o homem e as forças representadas pelo
ambiente noir fiquem sempre claramente visíveis(p.46). Sobre a forma de se conseguir esse
foco nítido, Mattos (ibid) explica que é preciso aumentar a quantidade de luz que entra na
lente ou usar lentes que possuam maior distância focal; quando as filmagens são feitas à noite,
com a iluminação em chave baixa (com pouca luz), usam-se lentes grandes angulares que,
além de terem efeito sobre a profundidade de campo... possuem certas características de
distorção, que começaram a ser usadas expressivamente” além de atraírem “o espectador para
dentro do mundo do filme, tornando os acontecimentos emocionais ou dramáticos mais
imediatos” (2001, p.47).
Em relação ao estilo fotográfico noir, Mattos (ibid) ainda sugere que a direção
busca “desnortear o espectador para que ele sinta uma desorientação idêntica à do
protagonista, rompendo o equilíbrio composicional” (p.47). Sobre a organização do espaço
dentro do quadro, esse autor completa que esta é irregular, tanto pelos atores, quanto pelos
objetos, como pela largura e profundidade de campo.
Esta “decomposição” pode ser acentuada: pelo uso das câmeras alta (high
angle) e baixa (low angle), pela eliminação do plano de referência
(establishing shot) e do close-up personalizante, pela colocação de objetos
na frente do quadro obscurecendo a nossa visão da cena, por
enquadramentos confinando os personagens em composições
claustrofóbicas. E finalmente, em exemplos dados por Place e Peterson, a
montagem opõe mudanças de planos radicais, como o corte muito usado de
um primeiríssimo plano para o plano em câmera alta da vítima sendo
perseguida pelas ruas escuras da cidade ou um travelling para a frente diante
de um fugitivo, que envolvem a platéia no movimento e excitação da caçada
humana (ibid, p. 47).
Sobre o cenário expressionista, Martin (2007) descreve que este é sempre criado
artificialmente sugerindo uma “impressão plástica que coincida com a dominante psicológica
da ação”, pois “o Expressionismo funda-se numa visão subjetiva do mundo, manifestada por
uma deformação e uma estilização simbólicas” (p.65). Assim, ainda o cinema expressionista
alemão dos anos de 1920 revela duas tendências principais: primeiro um “expressionismo
pictórico ou teatral” com o cenário artificial, sem regras de perspectiva, “cuja obra prima é O
gabinete do Dr. Caligari (Wiene)” (ibid, p. 65). A outra tendência também de acordo com
Martin é o expressionismo arquitetural” com cenários de grandeza magistral que
engrandecem as ações épicas. Exemplos: Metropolis (Lang) e Nosferatu (Murnau), com
38
“cenários sinistros, onde o horror e o assombro transparecem com toda a naturalidade” (ibid,
p.65).
Entre os filmes de gângsteres e os noirs, alguns dos pontos que possuem ou não
semelhanças são: o crime, a violência, a ambientação urbana numa grande cidade
estadunidense, no entanto, a cidade no filme de gângster não passa de um cenário que fica em
segundo plano, sem clima expressionista ao contrário da cidade noir que é de suma
importância. Além disso, o gângster é uma personagem que conquista dinheiro, poder e fama
advindo do submundo, já o herói noir, geralmente, se apresenta desesperado, perdido, sempre
fadado ao fracasso devido às suas ações impensadas. Já, o realismo poético caracteriza um
grupo de filmes franceses realizados entre 1934 e 1939, que possuía um realismo com estilo
lírico, poético, com impressão de verdadeiro. Há sentimento de amargura e fatalismo, a
atmosfera sombria e melancólica eram essenciais na ação, e influenciaram, dessa forma, os
noirs (MATTOS, 2001).
Contudo, o cinema neo-realista italiano refletia a nova realidade de pós-guerra da
Itália, nele “passaram a predominar as imagens cinza e granuladas, os cenários reais das ruas e
das ruínas, tipos humanos autênticos muitas vezes, interpretados por populares anônimos”
(MATTOS, 2001, p. 33). Assim, influenciou semidocumentários americanos em filmes dos
anos de 1930 a 1950, também com histórias permeadas por investigação e detetives.
1.4 O declínio do filme noir e o aparecimento do neo-noir
Como explanado, o filme noir tal como ficou conhecido em preto e branco,
primava por composições com gradações cheias de luz e sombra que melhor expressavam a
ambientação gubre própria desse tipo de filme. Assim, o aparecimento de filmes coloridos
foi um dos principais fatores que contribuiu para o declínio do filme noir. Esse fato pode ser
constatado a partir de refilmagens de antigos noirs em versões coloridas. Como exemplo, o
filme Assassinos (1946), em preto e branco com direção de Robert Siodmak e a versão
colorida de Don Siegel (1964): “... ficou evidente que era preciso uma paleta de cores mais
escuras pra dar densidade aos temas opressivos” (MATTOS, 2001, p.48). Além do mais, o
advento da tela larga e da televisão contribuíram, também, para o declínio dos filmes noirs
que, geralmente, eram de baixo orçamento
mesmo as produções classe “A”, motivo pelo qual os estúdios estavam
sempre ansiosos para realizá-los. Porém as histórias noires não podiam ser
transformadas em superespetáculos para atenderem às exigências comerciais
39
dos novos tempos; suas descrições claustrofóbicas do mal-estar urbano
simplesmente não eram apropriadas para o CinemaScope ou formatos
semelhantes. O telefilme, introduzido na programação americana da
temporada de 1964-1965, apoderou-se do filme “B”, que vinha sendo, desde
os anos 50, a província exclusiva do filme noir. A televisão, com sua
exigência de iluminação total e close-ups, foi cortando a influência
germânica. Além disso, com exceção da Guerra Fria, os fatores sócio-
culturais que abasteciam o filme noir foram se dissipando a tal ponto que, no
início dos anos 60, a sensibilidade noire havia praticamente desaparecido
do cinema americano, tendo havido pouquíssimas tentativas de conservá-la
(MATTOS, 2001, p.48).
Na década de 1970, os cinemas de arte e os canais a cabo fizeram retrospectivas de
clássicos noirs, o que despertou a curiosidade de acadêmicos e cineastas produzindo escritos
sobre o tema e tentativas de recapitular o clima em refilmagens modernas de alguns antigos
noirs. Nos anos de 1980 e 1990, avanços técnicos na fabricação de filmes coloridos mais
velozes, que podiam dar altos contrastes como na iluminação expressionista em preto e
branco, deram novo ar aos novos filmes inspirados nos antigos. Portanto, elementos noirs
invadiram variantes do drama criminal e outros gêneros: thriller político, thriller criminal
psicológico, filme de ficção científica, filme fantástico, entre outros (MATTOS, 2001).
Houve, então, um aumento da platéia dessas décadas por esse tipo de filme. O teórico acima
acredita que isso tenha acontecido
devido às novas influências sócio-culturais como
a desilusão com a guerra do Vietnam, o movimento feminista, o aumento do
terrorismo internacional, as incertezas econômicas, o risco da poluição
ambiental, a crescente fascinação do público pelas histórias de crimes
sensacionalistas, a crise da AIDS houve um maior ressurgimento do
interesse pelos temas e protagonistas que tipificavam o filme noir
(MATTOS, 2001, p.49).
Atualmente, esses noirs ‘repaginados’ mantêm muitos dos elementos, outros,
apenas alguns. São agora chamados de neo-noir, pós-noir ou noir moderno, consoante
MATTOS, (2001, p. 49):
Refletindo uma nova realidade, esses filmes constituem um novo tipo de
filme noir, que incorpora as convenções narrativas e estilísticas de seus
genitores, interpretando-as e projetando-as em um quadro cinematográfico
contemporâneo. A influência da estética noire estendeu-se também para [...]
as histórias em quadrinhos e programas de mistério no rádio e na televisão.
No presente, em vídeos musicais, graphic novels e anúncios de propaganda,
atingindo uma significação cultural.
Diferentemente dos noirs clássicos, em que a anti-heroína era a pérfida, podem
aparecer mulheres ou homens fatais que seduzem e exploram seus ‘pares românticos’. Nos
anos de 1970 e início dos anos 1980, os relacionamentos entre os casais dos filmes com
40
ambientação noir ficaram mais dinâmicos no sentido de não mostrar sexo velado. Ainda
aparecem a mulher ou o homem fatal em algumas variedades dos chamados thrillers
eróticos’ (WILLIAMS, 2005).
A câmera passa a ter potencial sexual’ e funciona como arma de sedução ao
mostrar cenas de mulheres vestidas em lingeries, beijos lésbicos, stripteases
21
. A influência
dos antigos noirs se dá, principalmente, em relação à mistura de sexo com crime e perigo que
demonstram novas formas de relacionamentos entre mulher-homem. Nos anos de 1990,
alguns desses novos noirs se misturaram com os chamados thrillers eróticos e nos neo-noirs
podem aparecer algumas cenas envolvendo pornografia e, por isso, serem confundidos com
filmes pornôs. Outras vezes, os diretores colocam uma narrativa complexa, psicológica,
justamente, para dar uma ‘aura’ de grande produção, associando as histórias com as pulp
fictions. Ainda, a figura do investigador pode ser uma mulher que averigua a mulher fatal
(WILLIAMS, 2005).
Nos thrillers eróticos, as armas começaram a ser usadas de maneira fetichista, o
prazer visual passou a ser enfatizado com o uso da arma de fogo e a violência passou a ser
encarada de uma forma ‘afrodisíaca’: “Em Body of Influence
22
, Lana (Shanon Whirry) ordena
uma dominatrix praticar sexo com um homem sob a mira de uma arma” (WILLIAMS, 2005,
p.18). /Tradução minha/.
23
Ainda nos anos de 1980 a 1990, como também concorda Mattos
(2001) o sucesso dos thrillers eróticos se devido à crise da AIDS que retrata o perigo do
sexo sem segurança nesse período, assim como os clássicos noirs dos anos de 1940 que
traziam histórias que giravam num contexto de pós-guerra, nos novos noirs, o ‘trauma’ refere-
se a uma catástrofe sexual (WILLIAMS, 2005).
1.5 Contextualizando Almodóvar com Má Educação, o franquismo e a Espanha
Educação tem um ‘quê’ de filme autobiográfico, embora não o seja, segundo
Almodóvar:
Educação é uma película muito íntima, mas não exatamente
autobiográfica, quero dizer que não conto minha vida no colégio, nem minha
aprendizagem durante os primeiros trinta anos da Movida, embora estas
21
A form of entertainment, for example, in a bar or club, when a performer removes his or her clothes in a
sexually exciting way, usually to music, in front of an audience (OXFORD ADVANCED DICTIONARY, 7
th
edition, p.1522).
22
Direção de Gregory Dark, 1993.
23
In Body of Influence Lana (Shannon Whirry) orders a dominatrix to have sex with a man at gunpoint.
41
sejam as duas épocas em que se desenvolvem a trama (o ano de 64 e 80, com
um intervalo em 77).
24
Ele se inspirou em fatos ocorridos em sua infância e na de colegas seus quando
eram estudantes em um colégio interno de padres católicos, na Espanha época em que foi
morar em Madri, capital deste país. Sabendo disso, ainda para contextualizar meu paralelo
com as datas, rios movimentos tiveram início nos anos de 1960, como os que eram a favor
dos direitos humanos, dos que faziam parte das minorias, do feminismo, da ecologia, da
liberdade de expressão e também sexual, do consumo intenso de drogas por parte da
juventude que militava e contestava as imposições sociais arcaicas e seculares. Melo (1996) a
respeito dos filmes de Pedro Almodóvar, entre 1980 e 1995 discorre que:
os acontecimentos do maio francês de 68 provocam uma mudança na
mentalidade das gerações subseqüentes, Almodóvar, ao chegar à capital
espanhola, torna-se inicialmente hippie [...] Após os beatniks dos anos 50 e
os hippies dos anos 60, o movimento punk define a estética dos anos 70. É
também a época do estabelecimento do movimento feminista e da
conseqüente discussão dos papéis desempenhados por homens e mulheres
dentro do patriarcado social (ibid, p. 227).
No filme, o ano de 1964 mostra a vida da personagem que corresponderia ao
verdadeiro travesti da história, Ignacio Rodríguez, enquanto criança, ou seja, o garoto Ignacio
descobrindo sua sexualidade, enamorado por seu colega de colégio, Enrique, e sendo também,
acossado pelo Padre Manolo. Mas, a questão da pedofilia abordada no filme é assunto para
outro estudo que não esse agora.
Em janeiro do ano de 1970, na Espanha, a ditadura franquista havia decretado o
Estado de Excepción em todo o território nacional, onde se proibia toda liberdade de
expressão, de residência, de reunião e associação e se legalizava a detenção indefinida de
qualquer espanhol, sem explicação [suspensão do art. 18 da Constituição Espanhola]”
(BIGARELLI, 2003, p.80).
A ditadura do General Franco (1892-1975) reinou absoluta por um longo
período da história Espanhola. Militar, político e chefe de Estado (1936-
1975), ele foi responsável por um regime autoritário que se iniciou durante a
Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e que terminou somente com a sua
morte, em 1975 (ibid, p. 80).
24
La Mala Educación es una película muy íntima, pero no exactamente autobiográfica, quiero decir que no
cuento mi vida en el colegio ni mi aprendizaje durante los primeros años de la Movida, aunque éstas sean las
dos épocas en que se desarrolla la trama (el 64 y el 80, con un intervalo en el 77).
Disponível em: http://www.clubcultura.com/clubcine/clubcineastas/almodovar/malaeducacion/comentarios.htm
,
(Acessado em 11 abril 2007).
42
Instaurou o general Franco uma “ditadura totalitária, sustentada por uma
organização política denominada Falange” que passou a controlar a educação, os meios de
comunicação, os órgãos de segurança, o sindicalismo (BIGARELLI, ibid).
O levante militar de 1936 acabou também por dar o empurrão que faltava
para que milhares de trabalhadores se levantassem para fazer uma tão
esperada revolução. [...] práticas revolucionárias tomaram conta de todas as
atividades e setores das pequenas vilas e das grandes cidades: fábricas,
terras, transportes públicos, tudo foi coletivizado, passando a ser
administrado pelos próprios trabalhadores. O cotidiano das pessoas
simplesmente foi mudado da noite para o dia (BIAJOLI, 2007, p.04).
Conforme as leituras de Bigarelli (2003), em sua dissertação a respeito da
construção das mulheres dos longas-metragens de Almodóvar, até o ano de 2002, discorre
sobre o início da carreira de tal cineasta:
Na Espanha, no final dos anos 70, um clima de liberdade se instala no ar,
após o final da ditadura de Franco. O cinema do país de encontra em fase de
transição, possibilitando a produção de filmes que discursam sobre temas e
questões anteriormente censuradas. Nesse cenário surge Almodóvar, jovem
cineasta que adota Madri como sua cidade referência. Com poucos recursos
e de forma autodidata iniciou sua trajetória realizando curtas em Super-8 [...]
Adjetivos como polêmico, escandaloso, ousado, kitsch, autor de cinema gay,
ou um diretor de mulheres, fazem parte dos rótulos direcionados ao diretor
(BIGARELLI, ibid, p.16).
Segundo Santana (2007, p. 15), em sua tese a respeito de Almodóvar, foi nesse
contexto que a obra desse diretor se delimitou: “num panorama de mudanças circunscrito
naquilo que politicamente se denominou ‘transição democrática’ espanhola. Período
compreendido entre a morte do ditador General Francisco Franco e a redemocratização do
país”.
Em 1977, as personagens infantis adultas se reencontram sendo narradas na
história A Visita. O menino Ignacio havia se transformado numa travesti, o menino Enrique
havia se tornado cineasta. Zahara procura Padre Manolo para chantageá-lo devido ao abuso
por ela sofrido na infância. No entanto, o ano de 1977 era pós-franquista, antes, o franquismo
contava com apoio e defesa da Igreja Católica, ou seja, a igreja franquista era apoiada pelo
Estado Espanhol que no filme, representa todo o período de obscurantismo e a repressão
sofrida pela Espanha nesse regime ditatorial.
Em junho de 1977, quarenta anos após a ditadura, houve as eleições livres e o
cinema na Espanha foi agraciado com a onda democrática. Desde 1941, Franco havia imposto
que todos os filmes estrangeiros fossem dublados em espanhol, o público preferia assistir
filmes estadunidenses dublados a verem as produções nacionais o que acarretou na ruína das
43
produções locais. Ir ao cinema era o lazer preferido do público espanhol frente às touradas e
ao futebol porque era o governo quem controlava o preço das entradas. Com o fim da censura
em 1977, começaram a ser importados filmes antes proibidos na Espanha aumentando o
número de espectadores nas salas de exibição para assistirem os filmes estrangeiros,
especialmente, os norte-americanos. Filmes como O último tango em Paris e Emanuelle que
puderam então, entrar na Espanha, motivaram a produção nacional de filmes eróticos e os
cineastas que não se enquadravam nesse fazer, começaram a rodar filmes mais baratos
trabalhando com co-produções voltando-se para o mercado interior e criando filmes de cunho
regionalista (SANTANA, 2007).
Entretanto, no final dos anos de 1970, instalou-se uma crise cinematográfica
espanhola devido ao protecionismo entre multinacionais, às baixas verbas de patrocínio
cultural que o governo espanhol destinava à produção de cinema no país e outras medidas de
cotas que obrigavam os exibidores a destinar parte da porcentagem arrecadada nas bilheterias
ao governo, fazendo com que esses sonegassem os valores reais obtidos, prejudicando os
produtores nacionais. Tentou-se uma aliança entre as multinacionais e os empresários
independentes nacionais, ambos querendo expandir seus mercados: o cinema estrangeiro,
principalmente, o norte-americano, teria a garantia da Espanha de que poderia exibir seus
filmes naquele país a altos valores, enquanto os o cinema espanhol produziria filmes nos
padrões europeus, ou seja, ‘exportáveis’ (SANTANA, ibid).
Por conseguinte, devido às fraudes nas bilheterias, essa aliança não aconteceu e
distribuidores, exibidores e produtores continuaram em ‘batalha’. O cinema espanhol para
sobreviver teve que se render à linguagem técnica e narrativa de Hollywood, para atrair o
público acostumado com os filmes de tal indústria. Vejamos o que enuncia Santana (2007,
pp. 22-23):
O cinema de gênero significou a alternativa de maior êxito para os cineastas
espanhóis. [...] Opinava-se que o período final dos anos 70 poderia ser
representado com mais eficácia caso seguisse fórmulas derivadas dos filmes
western ou noir norte-americanos. [...] A falta de uma escola de cinema
fechada em Madrid nos anos 70 pelo regime de Franco e a ausência de
instalações cinematográficas na Faculdade de Ciências da Informação levou
os novos diretores [...] a utilizarem como material para sua formação apenas
o ato de assistirem a filmes, em geral películas de gênero norte-americano.
Não por acaso, a produção inicial desses diretores e de outros da mesma
geração, quando trata da vida urbana e de seus costumes cotidianos,
demonstra inspiração estética e filiação narrativa norte-americanas. Pedro
Almodóvar seguiu o mesmo caminho em seu autodidatismo.
44
Santana (2007) trata que também muitos filmes espanhóis dos anos de 1980,
seguiram essa prática de aproximar ou de misturar a linguagem do seu cinema com a do
cinema norte-americano. Ainda segundo esse autor, essa era uma forma de se “levantar de
maneira inovadora a questão social no país. Era assim, por exemplo, que a experiência do
filme noir na época pós-franquista favorecia a crítica à corrupção dos altos círculos sociais”
(p.24). No entanto, a falta de recursos e da técnica insuficiente fez com que o filme noir não
decolasse, na Espanha, aporque de acordo com Hopewell (apud SANTANA, 2007, p. 25)
havia uma diferença cultural em relação à
personagem feminina que dificultava o desenvolvimento e a compreensão
dessa narrativa para os espanhóis. A mulher no gênero noir norte-americano
aparece como sedutora e falsa. Já, para a construção espanhola, esses
atributos o podem ser admitidos na imagem feminina. Assim, as películas
não adquiriam a consistência necessária para o conjunto dos resultados
pretendidos. A ação dramática e a composição geral das imagens
mostravam-se inadequadas diante de uma estrutura narrativa estabelecida
e os filmes acabavam repercutindo negativamente na recepção do público.
Dessa forma, o conjunto de elementos desfavoráveis impediu a expansão do
gênero no país.
Embora Hopewell tenha feito tal consideração, percebo no filme espanhol Noches
en Casablanca de 1963, a cantora e atriz também espanhola, Sara Montiel, em sua encenação
como a personagem Teresa: uma mulher dotada de sensualidade que se exibe cantando e
dançando em uma casa noturna; não obstante, nesse filme, Montiel não seja uma mulher fatal,
não seduza com intenção de trair, nem o filme seja com ambientação noir e tenha sido
produzido durante o governo de Franco.
Sobre a imagem da mulher e o porquê de o filme noir não ter se fixado na
Espanha, esse fato pode ser compreendido, através do estudo de Nash (1983), que discorre a
respeito da mulher, da família e do trabalho, na Espanha de 1875 a 1936. A autora retrata que
ao final do século XIX, a mulher espanhola tinha como função primordial a maternidade e o
matrimônio. Depois do casamento, a mulher ficava subordinada ao marido, perdia direito de
livre arbítrio, ao seu dote e de administrá-lo. O marido passava a representá-la nas questões
legais e a conduzir os bens materiais da família. A Igreja Católica era uma das principais
responsáveis pela maioria das mulheres optarem pelo matrimônio, justamente, pelo fato de
sua doutrina ser ligada ao casamento e à família, o que fazia que a instituição familiar fosse a
célula básica da sociedade. Além disso, o casamento para a mulher era realizado não por amor
ou para ter filhos, mas, como um modo de segurança econômica, já que o trabalho assalariado
da mulher era mal visto em todas as classes sociais. Caso uma mulher tivesse que trabalhar
45
por dinheiro, seria devido à miséria e essa deveria ser uma condição transitória até que ela
conseguisse um marido.
Os papéis e as opções concedidas às mulheres e o papel desempenhado por
elas na sociedade, não são devidos à diferenciação biológica entre os sexos,
mas socialmente condicionados. [...] Esta atribuição de ascensão social de
opções sociais, políticas, sindicais e culturais, como veremos, se refletirá
tanto na legislação familiar e matrimonial como na laboral. O estatuto social
e político, e a configuração psicológica e de temperamento atribuídos às
mulheres, influíram, logicamente, questões como a família, o divórcio, a
prostituição e o trabalho (NASH, 1983, p.11). /Tradução minha/.
25
No entanto, ainda no final do século XIX na Espanha, o casamento para o
homem também era uma forma de fortalecer sua posição econômica que receberia um dote
e o casamento por conveniência era costume em todas as classes sociais e deveria estar de
acordo com a estipulação das famílias envolvidas. Se uma mulher almejasse se casar com um
homem, cuja família estipulasse determinado valor de dote e a família dessa mulher não
dispusesse da quantia estipulada, o casório não poderia ser realizado de acordo com Nash
(1983, p. 23).
Além disso, o casamento por conveniência precisa ser considerado não só da
ótica dos noivos, mas desde a perspectiva das famílias envolvidas. É
conhecida a grande importância dos laços matrimoniais sobre uma política
de consolidação familiar. /Tradução minha/.
26
Já, no início do século XX, nos primeiros anos da década de 30,
pode-se observar uma ligeira mudança de atitude das mulheres jovens frente
ao matrimônio. Nessa época, começam a surgir núcleos, ainda muito
reduzidos, de mulheres com carreiras e profissões, que não consideram o
casamento como única meta na vida [...] em particular das procedentes da
classe média, que possuindo uma carreira, demonstram preocupações
intelectuais e profissionais que não são sempre dirigidas para o casamento,
mas, muitas vezes, entram em conflito com ele (NASH, 1983, p.23).
/Tradução minha/.
27
25
Los roles y opciones atribuidas al sexo femenino y el papel desempeñado por ellas en la sociedad, no se deben
a la diferenciación biológica entre los sexos, sino al condicionamiento social. […] Esta asignación social de
opciones sociales, políticas, laborales y culturales, como veremos, se reflejará tanto en la legislación familiar e
matrimonial como en la laboral. El estatus social y político, y la configuración psicológica y temperamental
atribuidos a la mujer influirán lógicamente en cuestiones como la familia, el divorcio, la prostitución y el
trabajo.
26
Además, el matrimonio por conveniencia tiene que considerarse no sólo desde la óptica de los contrayentes,
sino desde la perspectiva de las familias implicadas. Es conocida la gran importancia de los lazos
matrimoniales en una política de consolidación familiar.
27
se puede apreciar un ligero cambio de actitud de las mujeres jóvenes frente al matrimonio. Por esta época
empiezan a surgir núcleos, aún muy reducidos, de mujeres con carreras y profesiones que no consideran el
matrimonio como única meta en la vida […] en particular de las procedentes de la clase media, que dotadas de
46
Também, nos primeiros anos de 1930, os casamentos antes indissolúveis perante o
Estado, puderam ser desfeitos com o divórcio, mesmo a Igreja Católica e alguns grupos de
mulheres sendo contra.
Apesar que, no final do século XIX, na Espanha, fosse cobrado da mulher ser
esposa submissa, mãe zelosa e subserviente ao lar, que deveria casar virgem, manter a
fidelidade e ter um comportamento pouco libidinoso, voltado para o lado espiritual, religioso
e etéreo, prostitutas se apresentavam no outro extremo. Pensadores conservadores diziam que
a opção da mulher pela prostituição se justificava por sua imoralidade, perversidade e por um
insaciável desejo sexual de mulheres que queriam ter “luxos impróprios para sua classe, e
portanto, sua escolha pela prostituição como modo de vida ao invés de uma vida honrada e
laboriosa, mas, própria de sua classe social” (ibid, p. 34). /Tradução minha/.
28
De acordo com
esse pensamento conservador, o homem tinha impulso sexual maior do que o da mulher e por
isso, procurava prostitutas para se satisfazer, enquanto a mulher do lar deveria ter o impulso à
maternidade e não ao ato sexual.
De alguma forma, percebemos de novo presente a dicotomia entre a mulher
como imagem de bondade, espiritualidade e generosidade, sublimada por
excelência na imagem da mãe, e da prostituta – imagem da perversidade e da
maldade, sedutora e tentadora do homem. (NASH, 1983, p.34). /Tradução
minha/.
29
No tocante à Igreja Católica, embora Almodóvar diga que é fascinado pela
iconografia da mesma e costume usar essa iconografia na imagética de seus filmes e associá-
la ao submundo, reafirmo com o que emite Melo (op. cit.):
Desde suas colaborações para revistas underground, Almodóvar aborda com
naturalidade assuntos e comportamentos apontados pela sociedade como
marginais (incesto, homossexualismo, estupro, assassinato, consumo de
drogas). Além disso, o diretor funde a livre e irreverente imagética, dos anos
60 e 70, aos dogmas morais e ícones religiosos absorvidos pelo mundo
ocidental ao longo de quase dois milênios de Cristianismo. [...] Não é à toa
que o diretor escolheu momentos chaves da história cristã, cuja temática gira
em torno da desobediência às leis divinas, do pecado, da maldade e da
sedução (p. 230).
un carrera, demuestran preocupaciones intelectuales e profesionales que no siempre las encaminan hacia el
matrimonio, sino que a menudo entran en conflicto con él.
28
Lujos impropios de su clase, y por lo tanto su elección de la seducción moral como modo de vida en lugar de
una vida honrada e laboriosa más propia de su clase social.
29
De alguna manera, ahí vemos de nuevo presente la dicotomía entre la mujer imagen de bondad, espiritualidad
y generosidad, sublimada por excelencia en la imagen de la madre, y la prostituta, imagen de la perversidad y
de la maldad, seductora y tentadora del hombre.
47
Zahara que não é uma mulher biológica, mas uma travesti é encenada dentro da
Igreja Católica em vários momentos no filme. E como assume para si o feminino e traçando
uma relação com a mulher espanhola que não era ‘de família’, Zahara que é esse ser do
submundo que seduziu o jovem Enrique para seu quarto de hotel e ofereceu-lhe prazeres
carnais para roubá-lo, pode ser colocada no lugar da mundana. No filme, quando vista no
ambiente do ‘sagrado’ transmite uma sensação dicotômica entre os antigos valores
conservadores da Igreja Católica espanhola e a nova onda de liberdade pregada pela Movida
Madrileña na Espanha.
Figura 1 – A travesti na sacristia. Relação dicotômica na imagem: O ‘sagrado’ (anjo) e o ‘profano’ (Zahara).
Seguindo com Melo (op.cit.):
Ainda em 1977, são lançados alguns filmes estrangeiros interditados pela
censura franquista... Em novembro, o desaparecimento da censura
cinematográfica é oficializado por um decreto-lei. Explode a Movida
Madrileña movimento de contracultura inspirado na estética pop e punk
norte-americana e européia cuja proposta era promover uma mudança na
mentalidade da sociedade espanhola em processo de transição política rumo
à democracia. A longa repressão sexual franquista é confrontada com
comportamentos inesperados e atitudes socioculturais provocantes. O
ecletismo na maneira de vestir, a liberdade sexual, o consumo de drogas e o
culto à frivolidade chocam-se com a moral arcaica, a senilidade política e a
tradição reúnem-se e modernizam a Espanha na virada da década
30
(p.229).
A Movida Madrileña iniciou-se em torno do ano de 1976, com um grupo de
jovens em rios lugares de Madri, e manifestou-se, no âmbito cultural da vida noturna, desta
capital, de forma clandestina e teve seu auge nos anos 1980, numa Espanha moderna que
estava em “transição política escancarando seu grito de liberdade através de tudo o que era
antes considerado reprimido: a sexualidade, o uso de drogas, a censura e às artes”
(BIGARELLI, 2003, p. 143). Aconteceu tendo como carro-chefe a área musical, envolvendo
30
Segundo Melo: “nesse sentido, Almodóvar é considerado o rei da Movida, ou seja, o melhor representante da
Espanha nos anos 80” (1996, p.229).
48
também outros setores artísticos: cinema, moda, teatro, fotografia, quadrinhos. “Era a
expressão de um dado grupo de artistas grande, mas fechado que buscava viver e curtir a
liberdade que acabava de ser recuperada no país, demonstrando-a nos comportamentos e na
arte” (SANTANA, 2007, p. 31).
Em 1977 e em 1980, além da característica pop art enquanto elemento imagético
da linguagem visual almodovariana, percebo uma pitada do movimento punk (o que não quer
dizer que o filme incorpora elementos da estética punk). Em 1977, em A Visita, o jovem
Enrique usa jaqueta de couro preta, dirige uma moto. Em 1980, vemos o Enrique adulto com
Juan na noite madrileña, no quadro, vários punks com seus cabelos espetados, a trilha sonora
que ecoa ao fundo outra alusão à vida de Pedro Almodóvar, e também, referência de
intertextualidade com os primeiros longas-metragens do diretor:
O compromisso tribal dos meios hippie e punk favorece o entrosamento de
vários campos artísticos na Espanha. Indivíduos, com atitudes e
comportamentos revolucionários, misturam-se nas ruas, bares, danceterias,
nos curtas-metragens e nos primeiros longas de Almodóvar (MELO, 1996,
p.227).
Observo que esses elementos ajudam a situar as personagens no submundo, e
remete à Movida. Em 1980, há o encontro das personagens adultas no ‘tempo real’ do filme. É
o ano em que Pedro Almodóvar, como autodidata, estréia com seu primeiro longa-metragem:
Pepi, Luci, Bom y Otras Chicas del Montón. Sobre o primeiro longa de Almodóvar, Santana
(2007, p. 15) explana que
o filme questionou comportamentos, descondicionou olhares tradicionais da
vida e da cinematografia do país e trouxe a público os modos cotidianos de
viver uma transição que transcorria em vários níveis da sociabilidade
espanhola, não apenas no político.
No ano de 1980, a Espanha já vivenciava o período de liberdade pós-franquista e o
cinema espanhol dava novos passos, diferentemente dos filmes que ficaram conhecidos como
‘espanholada’
31
e Almodóvar fazia parte dos que abalavam os costumes.
Suas abordagens provocaram escândalo e admiração de amplos setores
sociais da Espanha durante e depois de sua data de estréia. Uma trajetória,
porém, que não começou ali. O diretor já vinha percorrendo seu próprio
circuito cinematográfico desde meados dos anos 70. Entre 1974 e 1977
31
Cañizal em seu ensaio citando García de León e Maldonado sobre a ‘espanholada’ expõe que esse termo havia
se transformado em sinônimo de ‘breguisse’. Nos anos franquistas, a ‘espanholada’ se delineava por um
“subgênero de cinema populista cultivado não durante o franquismo, mas também durante a transição e a
democracia” (CAÑIZAL, 1996, p. 15 apud LEÓN e MALDONADO). Eram filmes para diversão, que não
causavam grandes reflexões no público.
49
realizou, com sua câmera de super-8 mm, onze curtas-metragens, e em 1978,
um longa-metragem também em super-8 mm e um curta-metragem de 16
mm – películas em sua maioria perdidas pelo cineasta. Eram em geral filmes
pornográficos resultantes da influência underground madrilenho, do qual
Almodóvar participava com amigos que desenvolviam atividades artísticas
no campo da música, quadrinhos, artes plásticas, teatro e fotografia
(SANTANA, 2007, p.15).
Em Educação, 1980 é o ano em que o cineasta Enrique Goded roda o filme: A
Visita, embora Enrique seja nessa data um diretor já aclamado, ao contrário do que era
Almodóvar no verdadeiro ano de 1980. Em A Visita, Zahara aparece no universo pop/ punk
contextualizada no ano de 1977, tal personagem reflete o pensamento da sociedade da Movida
Madrileña na Espanha de 1977, uma sociedade cambiante, como relata o próprio Almodóvar:
O filme tampouco supõe uma reflexão sobre a movida madrileña do início
dos anos oitenta, mesmo que grande parte ocorra em Madri dessa época. O
que me interessa desse momento histórico é o momento de liberdade que
vivia a Espanha, em oposição ao obscurantismo e a repressão dos anos 60.
Os primeiros oitenta são, por eles, o marco ideal para que os protagonistas,
já adultos, sejam donos de seus destinos, de seus corpos e de seus desejos.
32
Dessa forma, também Santana (2007, pp. 31-32) expõe que:
O ano de 1980 vivia a busca pela democratização política. Mas, para a
grande maioria que não estava na militância, também chegava a
reverberação da liberdade no nível comportamental. Assim, as manifestações
culturais que começaram a ocorrer por toda Madrid incidiam diretamente
sobre as novas idéias e em sua absorção por parte de um público disposto a
viver livre e a fazer tudo aquilo que lhe desse vontade.
Portanto, vejo Zahara como a personagem que sintetiza todos esses aspectos
colocados até agora, ela confronta a sociedade sexualmente por ser uma travesti, e, por isso
mesmo, provoca, consome drogas (cocaína), choca por sua atitude frívola de chantagear Padre
Manolo, ao invés de denunciá-lo às autoridades, (a denúncia é feita para nós, os espectadores,
que assistimos ao filme), choca por suas atitudes que burlam a ordem imposta.
32
La película tampoco supone una reflexión sobre la movida madrileña de principios de los ochenta, aunque
gran parte transcurra en el Madrid de esa época. Lo que me interesa de ese momento histórico es la borrachera
de libertad que vivía España, en oposición al oscurantismo y la represión de los años 60. Los primeros ochenta
son, por ello, el marco ideal para que los protagonistas, ya adultos, sean dueños de sus destinos, de sus cuerpos
y de sus deseos. Disponível em:
http://www.clubcultura.com/clubcine/clubcineastas/almodovar/malaeducacion/comentarios.htm
, (Acessado em
11 abril 2007).
50
2 DO FEMINISMO À TEORIA QUEER: QUESTÕES DE GÊNERO E
IDENTIDADE
“Ela define a si mesma como uma mistura de
deserto, casualidade e cafeteria! É uma grande
artista e uma grande, grande... amiga minha!
Com todos vocês a continuação e o mistério e a
fascinação de Zahara!”. (Paquito para a platéia
no Cine Olympo em Má Educação, durante o
show La Bomba).
2.1 O feminismo e a mulher como centro do discurso
Desde o final do século XVIII e XIX, autores feministas homens: J. Stuart Mill e
F. Engels e mulheres como E. Candy Stanton, M. Wollstonecraff, Flora Tristan abriram
espaço para que o feminismo e os movimentos de mulheres fossem tratados através de pontos
de vistas variados. O direito de voto às mulheres, à educação, às melhores condições de
trabalho, de decidir sobre o próprio corpo e sexualidade foi sendo conquistado, e isso se deu
por vários vieses políticos que fizeram do feminismo um movimento pluralista e
multifacetado. No entanto, ressalto Beauvoir
33
que, no século XX, ao final dos anos de
1940, contextualiza os primeiros progressos de seus antecessores:
No século XIX, a querela do feminismo torna-se novamente uma querela de
sectários; uma das conseqüências da revolução industrial é a participação da
mulher no trabalho produtor [...] os homens tentaram frear essa libertação,
porque as mulheres são encaradas como perigosas concorrentes, habituadas
que estavam a trabalhar por salários mais baixos. A fim de provar a
inferioridade da mulher, os antifeministas apelaram não somente para a
33
A publicação original data de 1949.
51
religião, a filosofia e a teologia, como no passado, mas ainda para a ciência:
biologia, psicologia experimental, etc. Quanto muito se consentia em
conceder ao outro sexo “a igualdade dentro da diferença” (2000, p. 17).
Louro (2003) completa que na virada do culo, o movimento sufragista que se
voltava para dar também direito de voto às mulheres fez com que as manifestações contra a
discriminação feminina adquirissem visibilidade e que isso acarretou para que o movimento
se espalhasse por vários países ocidentais, mesmo que, de maneiras diferenciadas. Depois, o
movimento sufragista passou a ser reconhecido como a ‘primeira onda’ do feminismo, tendo
como objetivos mais imediatos:
(eventualmente acrescidos de reivindicações ligadas à organização da
família, oportunidade de estudo ou acesso a determinadas profissões)
estavam, sem dúvida, ligados ao interesse das mulheres brancas de classe
média, e o alcance dessas metas (embora circunscrito a alguns países) foi
seguido de uma certa acomodação no movimento (LOURO, 2003, p.14).
Ainda na década de 1960, num contexto social e político que remetia às
transformações de cunho contestatório, especialmente, no ano de 1968, que se tornou ‘um
marco de rebeldia e contestação’, notadamente, na França, Estados Unidos, Alemanha e
Inglaterra onde mulheres, jovens, negros, intelectuais e demais grupos que refutavam os
arranjos tradicionais, a discriminação e segregação, o formalismo acadêmico etc. (LOURO,
2003). Dessa maneira,
o movimento feminista contemporâneo ressurge, expressando-se não apenas
através de grupos de conscientização, marchas e protestos públicos, mas
também através de livros, jornais e revistas. Algumas obras hoje clássicas —
como, por exemplo, Le deuxième sexe, de Simone Beauvoir (1949)
marcaram esse novo momento. Militantes feministas participantes do mundo
acadêmico vão trazer para o interior das universidades e escolas questões
que as mobilizavam, impregnando e “contaminando” o seu fazer intelectual
como estudiosas, docentes, pesquisadoras com a paixão política.
Surgem os estudos da mulher (LOURO, p.16, 2003).
O objetivo das estudiosas feministas era dar visibilidade às mulheres que haviam
sido ‘ocultadas’ na História e como sujeitos na Ciência. Entretanto, como nota Louro (2003)
essa invisibilidade que restringia a mulher ao universo do privado, ou seja, do lar como sendo
o verdadeiro mundo da mulher, vinha sendo rompida gradualmente por algumas mulheres que
já exerciam atividades fora da vida doméstica e que trabalhavam no campo, fábricas, e depois
em escolas, escritórios, hospitais, embora, tais atividades fossem controladas por homens e
tidas como secundárias. Dessa forma, “as estudiosas feministas iriam também demonstrar e
denunciar a ausência feminina nas ciências, nas letras, nas artes” (ibid, p.17).
52
Louro (2003) continua explicando que os primeiros estudos feministas tratavam a
respeito das condições de vida e de trabalho das mulheres em diferentes locais e espaços de
tempo. Revistas, núcleos de estudos, grupos, foram nessa época fundados por mulheres, no
entanto, ficaram comuns as questões sobre a mulher serem tratadas somente nesses espaços.
Portanto, temas que as feministas de então propunham como: integrar o universo feminino à
sociedade ou subverter paradigmas teóricos em vigência, enfrentaram muitas barreiras para
serem impostos.
Estudos das áreas da Antropologia, Sociologia, Educação, Literatura, etc.
apontam ou comentam as desigualdades sociais, políticas, econômicas,
jurídicas, denunciando a opressão e submetimento feminino. Contam,
criticam e, algumas vezes, celebram as “características” tidas como
femininas (LOURO, 2003, p.18).
Louro (ibid) afirma, ainda, que a importância desses estudos além de levantarem
informações sobre as mulheres, foi o caráter político de as colocarem como tema central
tratando de construções estatísticas, da ausência de estudos da mulher em espaços
acadêmicos, da família, da sexualidade, de sentimentos, do dia-a-dia, de histórias de vida,
muitas vezes, escritas em primeira pessoa, “de trabalho, corpo, prazer, afetos, escolarização,
oportunidades de expressão e de manifestação artística, profissional e política, modos de
inserção na economia e no campo jurídico” (2003, p.20). Algumas estudiosas caminharam ao
lado das teorizações marxistas, algumas pelas da Psicanálise, outras produziram teorias
propriamente feministas contra uma lógica ‘androcêntrica’ compondo o ‘feminismo radical’.
Houve também, “aqueles/as que justificam as desigualdades sociais entre homens e mulheres,
remetendo-as, geralmente, às características biológicas” da distinção sexual para justificar a
desigualdade social (LOURO, 2003, p.21). Desse modo, a autora conclui que se fez
necessário contrapor-se a tais argumentos para se
demonstrar que não são propriamente as características sexuais, mas é a
forma como essas características são representadas ou valorizadas, aquilo
que se diz ou se pensa sobre elas que vai constituir, efetivamente, o que é
feminino ou masculino em uma dada sociedade e em um dado momento
histórico. Para que se compreenda o lugar e as relações de homens e
mulheres numa sociedade importa observar não exatamente seus sexos, mas
sim tudo o que socialmente se construiu sobre os sexos. O debate vai se
constituir, então, através de uma nova linguagem, na qual gênero será um
conceito fundamental. É através das feministas anglo-saxãs que gender passa
a ser usado como distinto de sex (LOURO, 2003, p.21).
Consoante Rago (2008) foi, na Espanha, que um grupo de mulheres se destacou
durante a guerra civil por um movimento feminino que surgiu durante a Revolução
53
Espanhola, nos anos de 1930, como comentou: “num país altamente conservador, religioso e
machista”
34
(p. 187). O grupo Mujeres Libres, formado
em abril de 1936, poucos meses antes da eclosão tanto da guerra civil,
deflagrada pelas tropas do general Francisco Franco contra as forças
populares, como da revolução social, que explode concomitantemente, a
organização Mujeres Libres propôs-se lutar pela emancipação das mulheres
espanholas, vítimas da ignorância, da opressão do Estado e da igreja e, não
raro, de suas próprias famílias (RAGO, 2008, p. 192).
Biajoli (2007) que pesquisou em sua dissertação o grupo Mujeres Libres, assim
como Rago (2008), trata que tal grupo teve duração de quase três anos: Agrupación Mujeres
Libres de mulheres anarcofeministas “que queriam abrir espaço para a discussão e solução
dos problemas femininos, conseguiu reunir mais de 20 mil afiliadas (este é um número
mínimo, existem historiadoras falando até em 40 mil)” (p.04). Ela retrata que:
Seu objetivo principal era libertar as mulheres de sua ignorância e da sua
escravidão do lar através de educação, profissionalização e constituição de
redes de solidariedade. Desta forma, o ML [Mujeres Libres] concentrou suas
energias em criar escolas, creches e cursos profissionalizantes, e divulgar sua
revista, também chamada “Mujeres Libres”, para alcançar o maior número
de mulheres possível. Com seu trabalho, o ML ofereceu uma oportunidade
para as mulheres espanholas, especialmente as operárias, modificarem a
situação em que viviam, oportunidade que não era muito possível de ser
encontrada antes. Junto com a guerra contra os fascistas, o grupo
desenvolveu seu objetivo de dar impulso à conquista da liberdade feminina,
unindo um olhar político anarquista a outro olhar extremamente crítico das
relações de gênero (BIAJOLI, 2007, pp. 04-05).
Para Rago (2008), um grande interesse é a questão da construção das
subjetividades de tais mulheres: como se construíram e estabeleceram relações com a/o
outra/o “olhando-se independente do olhar masculino projetado sobre elas”, “num momento
de profunda transformação socioeconômica e política” durante a Revolução Espanhola, como
“contribuíram e contribuem para a construção de novos valores e códigos éticos ajudando a
atualizar o imaginário político e cultural de seu tempo” (p.188).
Mujeres Libres lutou ativamente para que as mulheres se autonomizassem,
não apenas economicamente, mas também psiquicamente, [...] Compreendeu
nitidamente que, muitas vezes, o pior inimigo se encontrava em casa, na
figura do pai, irmão ou marido, o que tornava a luta pela emancipação
feminina muito mais difícil e complexa (RAGO, 2008, p.195).
34
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
026X2008000100019&lng=en&nrm=iso&tlng=en , (Acessado em 08 setembro 2008).
54
2.1.1 A mulher fatal sob a ótica de estudos feministas
Toscano (1998) indaga-se sobre a ausência da mulher na história do cinema, ao
mesmo tempo em que, ao tentar responder a essa dúvida, refaz a trajetória da mulher no
mesmo. Ela traça uma análise de uma visão feminista que investiga a forma com que a mulher
veio sendo representada ao longo de cem anos no cinema. Assim, ela aborda como a mulher
era mostrada na tela:
As primeiras criações no campo da arte cinematográfica reservavam à
mulher os mesmos papéis que ela sempre desempenhou nas manifestações
artísticas que precederam o cinema. [...] Mais do que nunca, o “eterno
feminino” era mostrado com toda a intensidade e eloqüência, quase não
deixando espaço para interpretações que fugissem aos estereótipos
tradicionais. De início, do lado da produção, da direção e das equipes
técnicas, alinhavam-se os homens, a quem cabiam todas as iniciativas no
campo da criação. Às mulheres cabia representar, isto é, aparecer nas telas,
sob as múltiplas faces que a divisão tradicional de papéis sexuais sempre
lhes reservou: objeto de paixão e, não raro, de perdição (pp. 101-102).
Kaplan (1995), nos primeiros anos da década de 1980, assim como Toscano
(ibid), expõe estudos feministas de autoras estadunidenses sobre a representação da
sexualidade das mulheres nas artes em geral, inclusive, no cinema. Depois, essa mesma autora
ressalta que a crítica feminista como forma de interpretar textos passou também a reavaliar a
cultura na qual as mulheres haviam sido criadas e educadas.
A primeira safra de críticas feministas adotou uma abordagem amplamente
sociológica, examinando, em diversos trabalhos imaginativos, os papéis
sexuais ocupados pela mulher tanto nas artes clássicas quanto nos
entretenimentos de massa. Avaliaram os papéis como positivos e negativos,
de acordo com critérios construídos externamente que descreviam uma
mulher completamente autônoma e independente. [...] As críticas de cinema
feministas, influenciadas pelos progressos alcançados pela teoria do cinema
no início dos anos 70, foram as primeiras a identificar suas limitações.
Influenciadas primeiro pela semiologia, as teóricas feministas acentuaram o
papel crucial desempenhado pela forma artística como meio de expressão;
depois, influenciadas pelos psicanalistas, defenderam que os processos
edipianos eram fundamentais para a produção de arte (KAPLAN, 1995, pp.
43-44).
Segundo feministas que se centravam numa visão patriarcal, no modelo de
relacionamento homem-mulher, a mulher passou a ser estereotipada nos filmes noirs pela
cultura machista vigente da época. Como exemplo de estudos feministas publicados ao final
dos anos de 1970, sobre o papel que a mulher desempenhava no filme noir:
55
...a coletânea de crítica feminista Women in Film Noir (1978) editada por E.
Ann Kaplan. Os ensaios destacam o tratamento específico que o filme noir
às mulheres, mostrando como, no mundo noir, sua sexualidade é
consideradamente apresentada como uma ameaça ao sistema patriarcal. Os
trabalhos mais interessantes são Woman’s Place: The Absent Family of Film
Noir de Sylvia Harvey e Women in Film Noir de Janey Place (MATTOS,
2001, p.16).
As mulheres no filme noir eram encenadas com forte poder sexual, e essa
sexualidade aguçada era considerada uma afronta ao poder patriarcal. Kaplan (1995) afirma
que “os signos do cinema hollywoodiano estão carregados de uma ideologia patriarcal que
sustenta nossas estruturas sociais e que constrói a mulher de maneira específica” (p.45).
O que diferencia o filme noir dos outros gêneros é que a mulher, enquanto
enigma, enquanto mistério, é trazida para o primeiro plano. [...] efeito
inconsciente dos medos e fantasias masculinos sobre a mulher [...] o
desconhecimento da mulher ímpeto à narrativa; a tarefa do herói é
descobrir a verdade sobre a mulher, uma verdade que constantemente lhe
escapa, assim como escapa ao espectador que está posicionado em sua
perspectiva (KAPLAN, 1995, p.96).
Entretanto, sabendo que, com o final da Segunda Guerra Mundial, o advento do
feminismo impulsionou a conseqüente mudança nos papéis da mulher dentro da sociedade,
que vinha se inserindo no campo do trabalho,
como Sylvia Harvey constatou, a visão de mundo apresentada em filmes
noirs reflete “uma série de mudanças profundas” [...] que é “a estranha e
constrangedora ausência de relações familiares normais nos filmes noirs
que registra a modificação da situação que a mulher ocupava na sociedade
americana. Uma dessas modificações, de acordo com Harvey, foi a ampla
introdução de mulheres na força de trabalho na Segunda Guerra Mundial...
(KAPLAN, 1995, p. 93).
Nos filmes noirs, autores debatiam sobre as mulheres fatais com o seguinte
pensamento:
A desconfiança dos homens com relação às mulheres, que foram encorajadas
a cumprir seu “dever patriótico”, prestando serviço nas fábricas, em vez de
se devotarem ao lar e à família, bem como o receio da sua concorrência no
mercado de trabalho, seriam responsáveis pela misoginia, percebida no
tratamento das personagens femininas. [...] Neste tipo de enredo, as
personagens femininas são criaturas agressivas e sensuais, que levam os
homens à destruição moral, e algumas vezes à morte, mas acabam punidas,
vítimas de suas próprias ciladas. São mulheres de posse de sua sexualidade,
que fogem dos papéis tradicionais do sistema patriarcal e, em conseqüência,
devem ser castigadas por esta tentativa de independência, para que seja
restaurada aquela ordem inviolável (MATTOS, 2001, pp.36-38).
56
De acordo com a citação acima de Mattos, as mulheres fatais geralmente eram
punidas com a morte e como concordam Borde e Chaumeton (1955, p. 10), a mulher fatal “cai
vítima de suas próprias armadilhas”.
... na maioria dos filmes noirs, o sucesso do herói depende de ele conseguir
desvencilhar-se das manipulações da mulher. Enquanto, às vezes, o homem é
destruído por não poder resistir à sedução da mulher, nesse caso o
desenvolvimento do filme restaura a ordem através da exposição e
conseqüente destruição da mulher sexual e manipuladora (KAPLAN, 1995,
p.95).
Williams (2005) descreve que o herói masoquista e decadente dos clássicos noirs
dos anos de 1940 são ‘objetos sexuais’ para as mulheres fatais e que nos novos noirs dos anos
de 1990, a mulher fatal oscila entre boa e malvada, entre agressiva e competitiva. Pode
acontecer das mulheres fatais dos 1980-1990 terem até outras mulheres como amigas. Nesses
noirs, algumas vezes, as mulheres fatais são encenadas como psicopatas ou com algum tipo
de instabilidade emocional e isso vem de um trauma que elas sofreram na infância, além do
que, elas ‘são de alta classe social’, ambiciosas, com carreiras brilhantes, e algumas, mantêm
relações com outras mulheres.
2.1.2 As questões de gênero e identidade
Assim, nas décadas de 1960 e 1970, a diferença sexual era entendida somente
como a diferença entre homem e mulher, como pólos opostos que, inclusive, deveriam se
atrair sexualmente mutuamente. Esse binômio para o conceito de gênero que se tinha, explica-
se pelo fato de que o feminismo tinha como principal retórica o patriarcado.
[...] no final da década de 1960 que o feminismo, além das preocupações
sociais e políticas, irá se voltar para as construções propriamente teóricas.
No âmbito do debate que a partir de então se trava, entre estudiosas e
militantes, de um lado, e seus críticos ou suas críticas, de outro, será
engendrado e problematizado o conceito de gênero (LOURO, 2003, p.15).
Lauretis (1994), ao final dos anos 1980, tecendo uma análise sobre os estudos
feministas, menciona que nas duas décadas anteriores, as feministas com essa noção da
diferença sexual centrada na bipolaridade homem/ mulher discutiam práticas culturais do
ponto de vista “da representação, da releitura de imagens e narrativas culturais, do
questionamento de teorias de subjetividade e textualidade, de leitura, escrita e audiência” (p.
206).
E que
o conceito de gênero como diferença sexual, juntamente com conhecimentos
específicos de outros campos como das ciências humanas, sociais, físicas, por exemplo:
57
elaboraram-se discursos específicos e criaram-se espaços sociais (espaços
gendrados, ou seja, marcados por especificidades de gênero, como... os
grupos de conscientização, os núcleos de estudos de mulheres dentro das
disciplinas...) nos quais a própria diferença sexual pudesse ser afirmada,
tratada, analisada... Mas o conceito de gênero como diferença sexual e seus
conceitos derivados a cultura da mulher, a maternidade, a escrita feminina,
a feminilidade etc. acabaram por se tornar uma limitação, como que uma
deficiência do pensamento feminista (ibid, p.206).
Concordando com Lauretis (ibid), Meyer (2005) relata que, nos anos de 1970, o
termo gênero’ o qual passou a ser utilizado por estudiosas anglo-saxãs foi incorporado nas
causas feministas e houve debates em torno de seu conceito, para que não se limitasse à
anatomia sexual, mas também,
para argumentar que as diferenças e as igualdades entre mulheres e homens
eram social e culturalmente construídas e não biologicamente
determinadas... um conceito que se opunha a ou complementava a noção
de sexo e pretendia referir-se aos comportamentos, atitudes ou traços de
personalidade que a cultura inscrevia sobre o corpo sexuado (p.15).
Segundo Lauretis (1994), passou-se dessa forma, já na década de 1980, a se
idealizar o sujeito social baseado em suas relações de subjetividade:
um sujeito constituído no gênero, sem dúvida, não apenas pela diferença
sexual, e sim por meio de códigos lingüísticos e representações culturais; um
sujeito “engendrado” não na experiência de relações de sexo, mas
também nas de raça e classe: um sujeito, portanto, múltiplo em vez de único,
e contraditório em vez de simplesmente dividido (p.208).
Por isso, Lauretis (ibid) prossegue que seria necessário outro tipo de sujeito para
que fosse possível estabelecer suas relações em meio a um campo social heterogêneo. Para
isso, precisaria desconstruir o conceito de gênero ligado à diferença sexual binária, visando
outro conceito de gênero que pudesse ser incluso a essa diferença sexual como “linguagem ou
puro imaginário” (1994, p.208). Ela propôs, também, que se começasse a pensar nesse novo
conceito de gênero a partir do ponto de vista foucaultiano, o qual percebe a sexualidade
análoga a uma ‘tecnologia sexual’ e, assim, o gênero seria tido como
representação e como auto-representação, é produto de diferentes
tecnologias sociais, como o cinema, por exemplo, e de discursos,
epistemologias e práticas críticas institucionalizadas, bem como das práticas
da vida cotidiana. Poderíamos dizer que, assim como a sexualidade, o gênero
não é uma propriedade de corpos nem algo existente a priori nos seres
humanos, mas, nas palavras de Foucault, “o conjunto de efeitos produzidos
em corpos, comportamentos e relações sociais”, por meios de
desdobramentos de “uma complexa tecnologia política” (LAURETIS, 1994,
p. 208).
58
Entretanto, a pesquisadora deixa claro que problematizar o gênero como fruto e
processo de aparatos biomédicos e tecnologias sociais é ir além de Foucault,
cuja compreensão crítica de tecnologia sexual não levou em consideração os
apelos diferenciados de sujeitos masculinos e femininos, e cuja teoria, ao
ignorar os investimentos de homens e mulheres nos discursos e nas práticas
da sexualidade, de fato exclui, embora não inviabilize, a consideração sobre
gênero (LAURETIS, 1994, pp. 208-209).
Dessa forma, a proposta acima explana que gênero foi relacionado à representação
de um indivíduo por meio de uma classe (do ponto de vista do marxismo) numa construção
ideológica da posição desse indivíduo dentro dessa mesma classe e de atribuição de
identidade. Os dois sexos biológicos e o gênero que cada indivíduo representa, dentro da
relação social, passaram a ser designados como: ‘sistema sexo-gênero’ numa construção
sociocultural. Foram traçadas concepções de masculino e feminino como categorias que
complementassem os sexos biológicos, levando-se em conta a cultura, o sistema simbólico ou
de significações que cada indivíduo está inserido para se relacionar o sexo a esses conteúdos
de acordo com valores e hierarquias sociais. Sendo assim, uma nova noção de gênero foi
atribuída: a de desigualdade social (LAURETIS, 1994).
Butler (2003) pergunta:
“Quando teóricas feministas afirmam que o gênero é uma
interpretação cultural do sexo, ou que o gênero é construído culturalmente, qual é o modo ou
mecanismo dessa construção?” (p.26).
Se o gênero é construído, poderia sê-lo diferentemente, ou sua característica
de construção implica alguma forma de determinismo social que exclui a
possibilidade de agência ou transformação? [...] a idéia de que o gênero é
construído sugere um certo determinismo de significados do gênero, inscrito
em corpos anatomicamente diferenciados, sendo esses corpos
compreendidos como recipientes de uma lei cultural inexorável. Quando a
“cultura” relevante que “constrói” o gênero é compreendida nos termos
dessa lei ou conjunto de leis, tem-se a impressão de que o gênero é tão
determinado e tão fixo quanto na formulação de que a biologia é o destino.
Nesse caso, não a biologia, mas a cultura se torna o destino (ibid, p.26).
Já, Meyer (2005) analisa como a questão do gênero e educação pode refletir na
mudança de pensamento de uma sociedade embora ainda digam que o “lugar natural da
mulher é o lar e sua função natural é cuidar da casa e da família” (p.10). Depois, a autora
enumera dois argumentos para discutir idéias que ainda consideram a mulher com a função
natural ‘do lar’:
1) Primeiro: que gênero continua sendo uma ferramenta conceitual, política e
pedagógica central quando se pretende elaborar e implementar projetos que
59
coloquem em xeque tanto algumas das formas de organização social
vigentes quanto às hierarquias e desigualdade delas decorrentes.
2) Segundo: que nada é natural, nada está dado de antemão, toda verdade
mesmo aquela rotulada de científica é parcial e provisória e resulta de
disputas travadas em diversos âmbitos do social e da cultura e pode, por isso,
ser questionada (ibid, pp. 10-11).
E, a autora, ao enunciar sua segunda enumeração, se coloca como uma feminista
pós-estruturalista, tratando de desdobramentos políticos e teóricos do ponto de vista de
Foucault e Derrida, sobre os debates de gênero que relacionam a cultura com o corpo, sujeito,
conhecimento e poder e que vão de encontro às vertentes que tratam o corpo como uma
identidade biológica universal, que produz diferenciações entre homens e mulheres na cultura
desencadeando desigualdades sociais.
No campo feminista, o conceito de gênero não pega as condições de vida das
mulheres como objeto de análise. Meyer (ibid) considera as relações de poder entre mulheres
e homens, as diversas “formas sociais e culturais que os constituem como sujeitos de gênero”
e propõe um “afastamento de análises sobre uma idéia reduzida de papéis/ funções de mulher
e de homem” e se aproxima da abordagem mais ampla “que considera as instituições sociais,
os símbolos, as normas, os conhecimentos, as leis, as doutrinas e as políticas de uma
sociedade” (p.18).
De acordo com a teoria feminista pós-estruturalista que Meyer (ibid) descreve, o
conceito de gênero indica a noção que as instituições e práticas sociais constroem; como seres
humanos se constituem enquanto mulheres e homens; e como aprendem a se reconhecerem,
como no cinema, de acordo com o grupo ou com a sociedade a que pertencem. Esse conceito
de gênero, nessa perspectiva, também retrata que várias formas de se definir e viver a
feminilidade e a masculinidade. A cultura na qual o sujeito está submerso faz com que o
conceito de gênero evidencie a “pluralidade e conflitualidade dos processos pelos quais a
cultura constrói e distingue corpos e sujeitos femininos e masculinos”, sendo que isso
expressa que se deve articular “gênero com outras ‘marcas’ sociais, tais como classe, raça/
etnia, sexualidade, geração, religião, nacionalidade” e que essas articulações produzem
modificações nas formas como as “feminilidades ou as masculinidades são, ou podem ser
vividas e experienciadas por grupos diversos” ou pelos indivíduos “em diferentes momentos
de sua vida” (MEYER, 2005, p.17).
Sobre as identidades nas sociedades pós-modernas e o descentramento conceitual
do sujeito cartesiano e sociológico, Hall (2005) elucida que o movimento feminista contribuiu
para a ‘política de identidade’, que esse movimento apelava às mulheres, assim como, a
60
política sexual aos gays e lésbicas etc. e que se expandiu para a formação das identidades
sexuais e de gênero, questionando a noção de que as mulheres e os homens eram parte da
mesma identidade, a ‘Humaninadade’.
Butler (2003), problematizando a construção de gênero e identidade, reflete sobre
a representação jurídica do sujeito do feminismo: as mulheres. Sendo elas sujeitos que
constituem uma identidade representando-a, então, o discurso feminista é excludente, que
supõe que os interesses políticos dessa categoria representada, se voltam para ela e remete
ao que seria tido como verdadeiro ou distorcido sobre a categoria das mulheres. Dessa forma,
a teórica concorda com Foucault que os sistemas jurídicos de poder são responsáveis por
produzir os sujeitos que passam a representar. Assim, essa problemática política advém,
justamente, dessa noção de identidade comum por parte do feminismo que afirmava no
passado a existência de um patriarcado universal e também, a noção de uma concepção
genericamente compartilhada das mulheres, que não mais pode ser compreendida como
sujeitos estáticos, que não mudam.
Se alguém “é” uma mulher ... não é tudo o que esse alguém é ... não porque
os traços predefinidos de gênero da “pessoa” transcendam a parafernália
específica de seu gênero, mas porque o gênero nem sempre se constitui de
maneira coerente ou consistente nos diferentes contextos históricos, e porque
o gênero estabelece interseções com modalidades raciais, classistas, étnicas,
sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas. [...]
A noção binária do masculino/ feminino constitui não a estrutura
exclusiva em que essa especificidade pode ser reconhecida, mas de todo
modo a “especificidade” do feminino é mais uma vez totalmente
descontextualizada, analítica e politicamente separada da constituição de
classe, raça, etnia e outros eixos de relações de poder, os quais tanto
constituem a “identidade” como tornam equívoca a noção singular de
identidade (BUTLER, 2003, pp.20-21).
Seria necessária uma reformulação às categorias de identidade postuladas pelo
poder jurídico, refletindo sobre a estrutura político-cultural atual, (do ponto de vista marxista,
o presente histórico), pós-feminista, para se propor a construção do sujeito e sua política de
representação e o feminismo pensando em várias posições de identidade ou de anti-identidade
(BUTLER, 2003).
2.1.3 Novo olhar sobre a questão de gênero e identidade: a teoria queer
O que é queer? Para Louro (2004),
61
queer é estranho, raro, esquisito. Queer é, também, o sujeito de sexualidade
desviante homossexuais, bissexuais, transexuais, travestis, drags. É o
excêntrico que não deseja ser “integrado” e muito menos “tolerado”. Queer é
um jeito de pensar e de ser que não aspira o centro nem o quer como
referência; um jeito de pensar e de ser que desafia as normas regulatórias da
sociedade, que assume o desconforto da ambigüidade, do “entre lugares”, do
indecidível. Queer é um corpo estranho, que incomoda, perturba, provoca e
fascina (p.08).
A teoria queer analisa a construção discursiva do corpo como objeto de estudo, o
exercício de poder sobre os corpos, os desejos, as relações das temáticas sexuais. Ribera
(2006) afirma que Butler foi uma das autoras que impulsionou uma nova forma de se refletir e
teorizar sobre as questões de gênero e sexualidade:
é certo que a publicação do trabalho de Butler (1989) Gender Trouble serviu
de ponto de partida para reflexionar e pensar de outra forma a pedagogia do
gênero e da sexualidade. O livro tem sido uma verdadeira revolução na
teoria de gênero e da sexualidade (p.216).
A teoria queer começou a ganhar força como uma forma de ativismo político
frente ao crescimento da AIDS, contra “as mortes de gays, lésbicas, e outras pessoas
marginalizadas que nem sequer contavam com a preocupação das instituições sanitárias nem
do governo” (MORRIS, 2005, p. 36). /Tradução minha/.
35
No entanto, Ribera (2006) explana
que o advento da teoria queer não se deu somente devido à publicação da obra de Butler, mas
também, como uma reação a uma tendência neoconservadora norte-americana que crescia
“liderada pela Sentença do Tribunal Supremo (1986) de condenar as práticas sodomitas” (p.
216). /Tradução minha/.
36
Descendente do pensamento de autores pós-estruturalistas como Foucault e
Derrida essenciais para a análise de identidade e política, e que vêm sendo usados por
muitos autores queers, a política queer manifesta-se entre sexo e gênero, sendo que, seus
teóricos e ativistas combatem a homofobia, os crimes de ódio, a norma heterossexual. O
termo surgiu em 1990, quando Teresa de Lauretis o designou em virtude da obra de Derrida e
Foucault. Assim, Morris (2005, p. 36) relata que “as pessoas queer se rebelam e atuam contra
a homofobia, o que [ele chama] de queerfobia, mediante atuações lúdicas, grosseiras,
descaradas e sem dissimulação”. / Tradução minha/.
37
35
... las muertes de gays, lesbianas y otras personas marginadas no lograban concitar la preocupación de las
instituciones sanitarias ni del gobierno.
36
... liderada por la Sentencia del Tribunal Supremo (1986) de condenar las prácticas “sodomitas”…
37
Las personas “queer”se rebelan y actúan contra la homofobia, o lo que yo denomino “queerfobia”, mediante
actuaciones lúdicas, groseras, descaradas y sin tapujos.
62
Para a teoria queer, a identidade é construída em meio à cultura em que o
indivíduo está inserido, ou seja, ela é uma construção cultural. Destarte, como os autores
queers baseiam-se nos pós-estruturalistas Derrida e Foucault, alegando que os sujeitos mesmo
antes de nascerem sempre fazem parte de uma determinada cultura e se formam juntamente
com um processo histórico (MORRIS, 2005).
Louro (2004, p. 75) considera que os corpos carregam marcas e se pergunta onde
elas se inscrevem nos corpos, se “na pele, nos pêlos, nas formas, nos traços, nos gestos? O
que elas ‘dizem’ dos corpos? Que significam? [...] Há corpos ‘não-marcados’? Elas, as
marcas, existem, de fato? Ou são uma invenção do olhar do outro?”. Para Louro (ibid),
atualmente, é o corpo que posiciona os sujeitos dentro de seus grupos e das sociedades, isso
porque: “os sujeitos vêm sendo indiciados, classificados, ordenados, hierarquizados e
definidos pela aparência de seus corpos; a partir de padrões e referências, das normas, valores
e ideais da cultura” (LOURO, ibid). Então,
os corpos são o que são na cultura. A cor da pele ou dos cabelos; o formato
dos olhos, do nariz ou da boca; a presença da vagina ou do pênis; o tamanho
das mãos; a redondeza das ancas e dos seios são, sempre, significados
culturalmente e é assim que se tornam (ou não) marcas de raça, de gênero,
de etnia, até mesmo de classe e nacionalidade. [...] Características dos corpos
significadas como marcas pela cultura distinguem sujeitos e se constituem
como marcas de poder. Entre tantas marcas, ao longo dos séculos, a maioria
das sociedades vem estabelecendo a divisão masculino/feminino como uma
divisão primordial. Uma divisão usualmente compreendida como primeira,
originária ou essencial e, quase sempre, relacionada ao corpo. [...] os corpos
vêm sendo “lidos” ou compreendidos de formas distintas em diferentes
culturas, de que o modo como a distinção masculino/feminino vem sendo
entendida diverge e modifica histórica e culturalmente (LOURO, 2004,
p.76).
Assim como Louro (2004), Goellner (2005) compartilha de suas afirmações sobre
as marcas que os corpos carregam:
(...) o corpo é uma construção sobre a qual são conferidas diferentes marcas
em diferentes tempos, espaços, conjunturas econômicas, grupos sociais,
étnicos, etc. o é portanto algo dado a priori nem mesmo é universal: o
corpo é provisório, mutável e mutante, suscetível a inúmeras intervenções
consoante o desenvolvimento científico e tecnológico da cada cultura bem
como suas leis, seus códigos morais, as representações que cria sobre os
corpos, os discursos que sobre ele se produz e reproduz. Um corpo não é
apenas um corpo. É também o seu entorno. Mais do que um conjunto de
músculos, ossos, vísceras, reflexos e sensações, o corpo é também a roupa e
os acessórios que o adornam, as intervenções que nele se operam, a imagem
que dele se reproduz, as máquinas que nele se acoplam, os sentidos que nele
se incorporam [...] a educação de seus gestos... (GOELLNER, 2005, p.28).
63
Louro (2004) esclarece que é costume se impor como regra, como norma, que o
corpo identificado como macho ou fêmea tenha seu gênero constituído binariamente:
masculino/feminino, sendo que, costumam-se cobrar que o desejo para esse modelo, ‘deve’
ser dirigido ao sexo/gênero oposto como um padrão da sexualidade. Dessa forma, os corpos
que transgridem e subvertem a norma da tríade: sexo-gênero-sexualidade são marcados como
patológicos, ilegítimos, imorais, no entanto, os corpos metamorfoseiam sua aparência, seu
funcionamento se modifica ao longo do tempo.
As marcas de gênero e sexualidade, significadas e nomeadas no contexto de
uma cultura, são também cambiantes e provisórias, e estão,
indubitavelmente, envolvidas em relações de poder. [...] é no corpo e através
do corpo que os processos de afirmação ou transgressão das normas
regulatórias se realizam e se expressam. Assim, os corpos são marcados
social, simbólica e materialmente pelo sujeito e pelos outros [...] Uma
multiplicidade de sinais, códigos e atitudes produz referências que fazem
sentido no interior da cultura e que definem (pelo menos momentaneamente)
quem é o sujeito (LOURO, 2004, p.82).
Essa marcação simbólica em Educação feita ‘pelos outros’, esses sinais
variados, essas atitudes podem ser percebidas quando Padre Manolo pratica uma investida
sexual contra o garoto Ignacio de A Visita e ele cai no chão de terra, batendo a cabeça na
ponta de uma cerâmica ou pedra quebrada. Do alto de sua cabeça o sangue aponta e escorre-
lhe pela testa, simultaneamente, ao ato de escorrer, a imagem do rosto do garoto abre-se ao
meio e aparece uma montagem em ‘cortina’, em que várias imagens são vistas ao mesmo
tempo na tela correndo pelo quadro, como cortinas que são abertas: o lado esquerdo do rosto
do menino vai para o canto esquerdo da tela, o direito para a direita, abrindo espaço para o
sombrio rosto de Padre Manolo que surge, aparecendo gradativamente de um fundo negro, no
centro, que o relato de Ignacio adulto. Enquanto acontece isso na tela, ouve-se a voz-off do
garoto: “O sangue escorreu e dividiu a minha testa em duas e pressenti que com a minha vida
iria acontecer o mesmo, que sempre seria dividida e que eu não poderia fazer nada para
evitar”.
Figura 2O rosto do menino Ignacio escorrendo sangue e sendo repartido na tela. Rosto de Padre Manolo lendo
A Visita surgindo no centro.
64
Analiso isso como uma marcação metafórica, ‘psicológica’, como que a identidade
do garoto estivesse dividida, embora, não possa afirmar que Ignacio tenha se transformado
numa pessoa travesti devido ao crime de pedofilia, trato que esse fato de Zahara ser um duplo,
pode remeter à fala pelo menino expressa.
Morris (2005) elucida que a teoria queer propõe desestabilizar as construções
binárias no âmbito da sexualidade, rompendo com as rígidas categorias de identidade,
questionando a heterossexualidade normativa a partir de uma releitura do discurso feminista,
com a intenção de desconstruir e reconstruir epistemologias arcaicas, movendo propostas
transgressoras baseadas na exclusão. Assim, a teoria queer pretende desmistificar as marcas
que o grupo homossexual, por exemplo, costuma levar: anormal.
Dessa forma, a questão de Juan ter planejado a morte do irmão Ignacio foi o fato
de ele ser travesti, de ser ‘diferente’ e por ele se envergonhar da ‘aparência’ do mesmo.
Entendo que Juan decidiu assassinar Ignacio porque sua ‘diferença’ poderia prejudicar sua
carreira como ator, como se afirma em sua fala para Enrique ao final da película: “Você não
sabe o que é ter um irmão como Ignacio e viver sendo criticado! Você não pode imaginar!”.
Também Zahara quando vai ao encontro de Padre Manolo, ouve dele: “Diga-me o
que você quer, não quero que os alunos a vejam”, e com essa fala, ele expressa que Zahara
por ser uma travesti não é bem-vinda.
Louro (2004) explana que os transgressores de gênero ou de sexualidade são
marcados como ‘diferentes e desviantes’. Desse modo, eles são tratados como infratores e
sofrem punições. Poderão ser desprezados, isolados, rotulados como ‘minorias’, talvez sejam
aceitos em pequenos grupos de seus semelhantes. Poderão ser considerados doentes e
sofrerem estratégias de ‘cura’ ou salvos por “estarem em pecado [...] padecerem de
‘desordem’ psicológica ou por pertencerem a famílias desestruturadas; reabilitando-os em
espaços que mantenham a salvo das ‘más companhias’” (p.88).
Em Stonewall
38
(1995), o travesti Guillermo Diaz recusa ser “curado” da sua
doença, vangloriando-se ao seu psiquiatra que vive “num estado entre a
masculinidade e a feminilidade”, enquanto que em Car Wash
39
(1976), o
homossexual Antonio Fargas desarma um dos torturadores com uma
devastadora: Querido, sou mais homem do que alguma vez irás ser, e mais
mulher do que alguma vez irás ter” (KEESEY e DUNCAN, 2005, p.71).
Assim, também, acontece com Zahara. Ela é morta ao final da rodagem de A
Visita, tendo seu pescoço destroncado por Padre José, comparsa de Padre Manolo fazendo
38
Stonewall, 1995, direção de Nigel Finch.
39
Car Wash, 1976, direção de Michael Schultz.
65
com que Educação tenha sua ‘parcela’ de morte noir: a destruição de um dos elementos
fatais do filme. No caso, a ‘punição’ do sujeito transgressor vem dos padres vilões.
Morris (2005) explica que, para Derrida, somos feitos de “um sistema de relações
em vibração ou ressonância” (apud DERRIDA, 1978, p.137). /Tradução minha/.
40
Também é
dessa forma que Derrida os sujeitos na cultura e na linguagem, se essas relações são
possíveis, não mais uma única subjetividade, que o indivíduo pode se fazer em pedaços,
se dispersar e mudar sua imagem, sua aparência etc. Entretanto, Morris (ibid) ressalta que o
ser não é completamente livre, pois como o próprio Derrida afirma que a identidade do sujeito
liga-se a um determinado sistema textual e que esse mesmo sujeito carrega em seu corpo a
cultura na qual está inserido. De igual forma, para Foucault, as subjetividades se constroem
em meio às práticas discursivas: “a prisão, a escola, a Igreja, a linguagem, a cultura, a
história...” (apud MORRIS, 2005, p.40). /Tradução minha/.
41
Tanto Foucault como Derrida têm mantido que os sujeitos sempre se criam
através da linguagem e da cultura. Quando nascemos, chegamos a um
cenário previamente inventado. E aqueles que não se encaixam nas
categorias estabelecidas são demonizados ou tratados medicamente. Os
teóricos queer, seguindo com o trabalho de Foucault, intencionam questionar
essa demonização, normalização e tratamento. [...] Historicamente, o termo
tem tido conotações negativas; tem sido usado para se referir a homens
efeminados (“viado”), às mulheres masculinas (sapatão) ou às pessoas não
convencionais. A reutilização e apropriação dessa palavra negativa não
satisfeito igualmente a todos os membros da comunidade gay e lésbica. Mas
quem refira que, hoje em dia, queer é sinônimo de orgulho [...] O termo
queer comunica mais que lésbica, gay ou bissexual. Queer é toda aquela
pessoa marginalizada pela sexualidade convencional (MORRIS, 2005, p.41).
/Tradução minha/.
42
Como para esses teóricos, as identidades queer admitem a ambigüidade, eles
afirmam que a mulher e o homem heterossexual costumam projetar imagens negativas e
indecentes a respeito dos queer. Embora, isso também aconteça partindo de alguns queers: “...
muitas drag-queens imitam mulheres, que por sua vez, projetam ódio contra elas. Muitas
40
“Un sistema de relaciones y vibración o resonancia”.
41
La cárcel, la escuela, la Iglesia, el lenguaje, la cultura y la historia…”
42
Tanto Foucault como Derrida han mantenido que los sujetos siempre se han creado a través del lenguaje y de
la cultura. Cuando nacemos, llegamos a un escenario inventado previamente. Y aquéllos que no encajamos en
las categorías establecidas somos demonizados o tratados médicamente. Los teóricos “queer”, siguiendo con el
trabajo de Foucault, intentan cuestionar esta demonización, normalización y tratamiento. […] Históricamente,
el término ha tenido connotaciones negativas; se ha usado para referirse a los hombres afeminados (maricas), a
las mujeres masculinas (camioneras) o a las personas raras. La reutilización y apropiación de esta palabra
negativa no ha complacido por igual a todos miembros de la comunidad gay y lesbiana. Pero hay quienes
aducen que, hoy día, “queer”es sinómino de orgullo. […] El término “queer” comunica más que lesbiana, gay
o bisexual. “Queer” es toda aquella persona marginada por la sexualidad convencional.
66
butch queer que são mulheres, embora imitem homens, projetam ódio contra eles” (ibid, p.
45). /Tradução minha/.
43
Morris (2005) segue relatando que as pessoas queer, por sua vez, interiorizam
essas imagens que as fazem sentirem-se envergonhadas, humilhadas. Sendo a política queer
de oposição e seus sujeitos considerados politicamente radicais, para eles, não é fácil admitir
publicamente a condição queer. Morris concorda com Eve Sedgwick alegando que é preciso
tornar pública a vivência queer, mostrando-se. Tais autores usam das palavras de Morris
afirmando que ‘mostrar-se’ é uma forma de atuar e quem prefira atuações (performances)
mais exageradas. Assim, Morris (2005) expõe sobre os membros da Queer Nation, que têm
sedes pelos Estados Unidos e Canadá. Tais membros beijam-se em público em vários lugares,
em centros comerciais, bares heterossexuais e que durante a terça-feira de carnaval em Nova
Orleans, essas exibições são mais exageradas, como se fossem um teatro queer porque imitam
como uma paródia os desfiles de moda heterossexuais numa forma de manifestação política
para tentar acabar com a queerfobia.
2.1.4 A construção do corpo: Zahara, travesti ou drag-queen?
No entanto, como enquadrar Zahara? Como uma travesti ou como uma drag-
queen? Tratando que o corpo pode ser ‘fabricado’, transformado, Vencato (2005), em estudo
sobre as drag-queens, afirma que “o fato de o quererem ficar parecidas com mulheres,
inclusive, é apontado por elas como um aspecto que as distingue das travestis” (p.232). Em
seus estudos, a pesquisadora esclarece que diferenciações entre os ‘graus’ de identificação
entre ‘pessoa e personagem drag’:
1) rapaz que se identifica muito com sua personagem drag, chegando a
assumir em sua vida cotidiana a personagem; 2) rapaz diferente de sua
personagem drag, mas que não se preocupa com o fato de por vezes
identificar-se ou ser identificado com ela; 3) rapaz diferente de sua
personagem drag, que evita (chegando mesmo a excluir a possibilidade de
qualquer identificação. A maior parte das drags pertence ao segundo grupo.
[...] Certamente, o fato de esses sujeitos serem usualmente confundidos com
travestis e transexuais também pode ter alguma influência nessa escolha de
não tornar público o fato de se montar (VENCATO, 2005, p.234).
Vencato (ibid) concorda com Butler (2003, p. 196) quando esta diz que a
“performance da drag brinca com a distinção entre a anatomia do performista e o gênero que
43
…muchas “drag queenimitan a las mujeres a la vez que proyectan odio hacia ellas. Muchas “butch queer”
que son mujeres, aunque imitan a los hombres, proyectan odio hacia los hombres…
67
está sendo performado”. Entretanto, Butler (ibid) assegura que três variantes da
‘corporeidade significante’, uma relativa ao ‘sexo anatônimo’; outra à ‘identidade de gênero’
e a terceira à ‘performance de gênero’. Por isso, para Morris (2005), as identidades queer
também são performances (atuações) e, por conseguinte, variáveis porque
ser queer não supõe nenhuma vinculação a nenhum rótulo nem desejo
concreto. [...] As performances (atuações) de gênero são mutáveis,
dinâmicas e fluidas. Os teóricos queer insistem em que não existe um gênero
básico, porque o gênero é uma construção social (MORRIS, 2005, p.41).
/Tradução minha/.
44
Sendo assim, Butler (2003) completa que se a anatomia do performista é diferente
do seu gênero verdadeiro e se esses dois se diferenciam por vez, do gênero da ‘performance’,
esse fato sugere um desacordo entre sexo e ‘performance’, de igual forma, entre sexo e
gênero, e entre gênero e ‘performance’.
Por mais que se crie uma imagem unificada da “mulher” (ao que críticos se
opõem freqüentemente), o travesti também revela sua distinção dos aspectos
da experiência do gênero que são falsamente naturalizados como uma
unidade através da ficção reguladora da coerência heterossexual. Ao imitar o
gênero o drag revela implicitamente a estrutura imitativa do próprio gênero
(BUTLER, 2003, p.196).
Para Pelúcio (2005), ‘ser travesti’ faz parte de um processo que não se encerra,
que, ‘as travestis’ sempre estão transformando seus corpos para ficar o mais parecido possível
com os de ‘mulheres’.
Construir um corpo e cuidá-lo é uma das maiores preocupações das travestis.
Elas estão sempre buscando a “perfeição”, o que significa passar por
mulher”, uma mulher bonita e desejável, geralmente “branca” e burguesa.
Em busca dessa imagem afinam seus traços, bronzeiam seus corpos,
adornam-se com roupas de remetem a mulheres glamourosas, escolhem
nomes de atrizes e musas hollywoodianas ou cantoras pops, submetendo-se
às normas estabelecidas (PELÚCIO, 2005, p. 225).
Pelúcio (ibid) alega que a primeira etapa que ‘um futuro’ travesti passa é a de ser
chamado de ‘gayzinho’, quando se assumiu a orientação sexual para familiares e para certo
número de pessoas, “mas ainda não se vestem com roupas femininas ou ingerem hormônios”
(p.225); a segunda fase é quando vestir-se com roupas de mulheres e maquiar-se é algo ainda
eventual, a terceira é quando a ‘transformação’ progride para uma fase mais avançada, em que
44
ser “queer” no supone ninguna vinculación a ninguna etiqueta ni deseo concreto [...] Las “performances”
(actuaciones) de género son cambiantes, mutables, dinámicas y fluidas. Los teóricos “queer” insten en que no
existe um género básico, porque el género es una construcción social.
68
se depila o corpo e começa a se vestir de ‘mulher’ com mais freqüência, depois, a quarta etapa
acontece quando:
começa a ingestão de hormônios femininos (pílulas e injeções
anticoncepcionais e/ou de reposição hormonal), passando por aplicações de
silicone líquido nos quadris e, posteriormente, nos seios, até chegar (e nem
todas podem fazê-lo por absoluta falta de dinheiro) a intervenções cirúrgicas
mais radicais plástica do nariz, eliminação do pomo-de-adão, redução da
testa, preenchimento das maçãs do rosto e colocação de prótese de silicone
(ibid, p.225).
Louro (2004, p. 85) relata que “a drag assume, explicitamente, que fabrica seu
corpo; ela intervém, esconde, agrega, expõe. Deliberadamente, realiza todos esses atos não
porque pretenda se fazer passar por uma mulher. Seu propósito não é esse”. Portanto, para
Louro (ibid) a drag não quer que a confundam com uma mulher, porque a drag exagera nos
traços, nas marcas, comportamentos e vestimentas que são identificadas como femininas pela
cultura, intencionalmente.
A marcação pode ser simbólica ou física, pode ser indicada por uma aliança
de ouro, por um véu, pela colocação de um piercing, por uma tatuagem, por
uma musculação “trabalhada”, pela implantação de uma prótese... O que
importa é que ela terá efeitos simbólicos, expressão social e material. Ela
poderá permitir que o sujeito seja reconhecido como pertencente a
determinada identidade; que seja incluído ou excluído de determinados
espaços; que seja acolhido ou recusado por um grupo; que possa (ou não)
usufruir de direitos (LOURO, 2004, p.83).
Analisando a figura de Zahara, do ponto de vista da narrativa de A Visita, pelo
fato dela sempre aparecer vestida, agir e falar mimetizando ‘uma mulher’, a considerarei uma
travesti, mesmo que ela faça um show num ‘momento’ drag-queen já que, munida da teoria
queer, os indivíduos podem transitar e moverem-se com liberdade assumindo a identidade que
quiserem.
Como Zahara corresponde ao que ‘se tornou’ Ignacio em A Visita e o Ignacio do
tempo real da história se transformou numa ‘verdadeira’ pessoa travesti, como atesta a fala de
Zahara para Padre Manolo ao promover sua chantagem contra ele:
69
Figura 3 – Zahara chantageia Padre Manolo.
Padre Manolo: O que você quer?
Zahara: Uma vida melhor e um corpo melhor!
Padre Manolo: E o que tenho eu com essas melhoras?
Zahara: Você poderia me ajudar a financiá-las, padre!
Ignacio tem silicone nos seios, um corpo que imita o de uma mulher e pretende
conseguir dinheiro do Sr. Berenguer para se internar numa clínica e tentar se curar de sua
dependência química, porque quer estar ‘limpo’ para transformar o seu corpo de vez,
operando-o, e por isso, Zahara que interpreta o papel que alude a Ignacio, responde ao Padre
Manolo quando ele pergunta o que ela quer: “Uma vida melhor e um corpo melhor!”.
Figura 4 – A ‘verdadeira’ pessoa travesti de Má Educação: Ignacio Rodríguez.
Dessa forma, assegura Goellner (2005) que, é a linguagem que classifica, institui
e nomeia as qualidades que definem e representam o corpo como normal ou anormal:
“representações estas que não são universais nem mesmo fixas. São sempre temporárias,
efêmeras, inconstantes e variam conforme o lugar/ tempo onde o corpo circula, vive, se
expressa, se produz e é produzido” (p.28).
Em se tratando da construção do corpo, em Educação, Juan com seu corpo
forte e músculos ‘trabalhados’ sempre são exibidos pela câmera. Portanto, para encenar
70
Zahara, ele diz a Enrique Goded que pode ‘emagrecer’ e se ‘caracterizar’ para tal finalidade,
ou seja, aprender a linguagem dos discursos gestuais que uma travesti produz:
(Enrique Goded e Juan/Ignacio conversam no escritório do primeiro a
respeito do papel que Juan encenará em A Visita)
Enrique: Eu te vejo como Enrique Serano, nu na cama com a carta de
Zahara!
Juan: Enrique Serano? Eu pensei que preferia o papel de Zahara!
Enrique (zombando): Você de Zahara? Está louco?
Juan (contrariado): Por quê?
Enrique: Ora, pois! Porque está demasiadamente forte! Não faz o tipo!
(Gritando para o funcionário): Martin, já temos a história!
Juan (insistindo): Mas, posso emagrecer! Posso me caracterizar! Eu venho
do teatro e estou acostumado!
Figura 5 – Juan/ Ignacio novamente reafirmando para Enrique que pode ‘transformar-se’.
Juan: Falando de corpos... Se lhe parece que estou muito forte, posso
emagrecer, sou muito flexível! Posso fazer o que quiser! (...) Sou ator! (...)
Esta é a primeira oportunidade que tenho de fazer o papel da protagonista e
não penso deixá-la escapar!
Enrique: Zahara não lhe cabe!
Juan: Não, à primeira vista, não! (...) Você é um bom diretor! E eu estou
disposto a tudo!
Interpreto a fala de Juan, ao dizer que está ‘disposto a tudo’ com ambigüidade:
primeiro, que ele pode transformar seu corpo, segundo, como uma afirmação da sua condição
de homem fatal – que de tudo faz para conseguir o que almeja. Até mesmo a interpretação de
Juan ‘sofre’ mudanças no decorrer do filme, nas variadas histórias entrecortadas que se
sucedem. Em cada um desses momentos, Juan expressa-se de uma forma. No início do filme,
ele é visto com uma aparência desleixada, cabelos mais compridos, barba. Ainda é conhecido
como ‘Ignacio’ e usa o nome artístico de ‘Ángel’, lembrando ‘inocência’ e ‘anjo’ como se
fosse um bom garoto sem nada a esconder, sem deixar a duvidar. Apresenta-se sorridente,
servil (quer ajudar Enrique a selecionar os recortes de jornais quando o visita pela primeira
vez em sua produtora).
71
No segundo momento, aparece sem barba, entretanto, começa a revelar seu lado
explosivo e ambíguo quando fala gravemente com Enrique que, se ele não interpretar o papel
de Zahara, não haverá filme. No entanto, num terceiro momento, quando se tem
consciência de que Ignacio/ Ángel se trata de Juan (numa aspiração que vejo remetendo a Don
Juan
45
, o sedutor), depois de ter encenado o papel de Zahara e sido desmascarado pelo Sr.
Berenguer, ele aparece com sobrancelhas feitas pela interpretação da travesti, cabelos mais
curtos, sombrio.
2.1.5 A paródia do feminino como prática discursiva
Como Butler (2003) propõe que a verdade interna do gênero é fabricada, que o
gênero verdadeiro é uma “fantasia instituída e inscrita na superfície dos corpos”, ela afirma
que “parece que os gêneros não podem ser nem verdadeiros, nem falsos, mas somente
produzidos como efeitos da verdade de um discurso sobre a identidade primária e estável”
(p.195). A identidade primária seria o ‘significado original’ que se atribui ao gênero. Assim,
tanto para Butler (ibid), como também para Louro (2004), a travesti subverte e zomba do
modelo de gênero e da idéia de uma verdadeira identidade de gênero. Dessa forma, continua
Butller (ibid): “a noção de uma identidade original ou primária do gênero é freqüentemente
parodiada nas práticas culturais do travestismo” (p.196). Fazendo uma paródia do universo
feminino.
Na teoria feminista, essas identidades parodísticas têm sido entendidas seja
como degradantes das mulheres, no caso do drag e do travestismo, seja
como uma apropriação acrítica duma estereotipia dos papéis sexuais da
prática heterossexual (BUTLER, 2005, p. 196).
É a matriz heterossexual, segundo Louro (2004, p. 17), que
fornece a pauta para as transgressões. É em referência a ela que se fazem não
apenas os corpos que se conformam às regras de gênero e sexuais, mas
também os corpos que as subvertem. Eventualmente, em vez de serem
repetidas, as normas são deslocadas, desestabilizadas, derivadas,
proliferadas.
45
Personagem fictícia, que teve sua história contada por vários autores. Geralmente, seu nome é usado como
sinônimo de ‘sedutor’ pelo fato de que ele conquistava muitas mulheres deixando-as depois com o ‘coração
partido’. Faz parte das lendas espanholas, seu mito vem de El burlador de Sevilla. Disponível em:
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8145/tde-31012008-103723/ , (Acessado em: 22 abril 2008).
72
A esse respeito, seguem algumas imagens de mulheres fatais de noirs, que servem
para ilustrar o ‘comportamento’ que Zahara apresenta na tela, fazendo uma paródia do
feminino:
Figura 6 Cruzada de pernas de Barbara Stanwyck em Pacto de sangue (Double Indemnity, 1944, direção de
Billy Wilder). Fonte: http://www.thefilmjournal.com/images/di1.jpg
Figura 7 – Cruzada de pernas de Zahara.
As cruzadas de pernas femininas são vistas como expressão da linguagem erótica
corporal aos olhos da platéia masculina: “tradicionalmente, a mulher mostrada funciona em
dois níveis: como objeto erótico para as personagens na tela e para o espectador no auditório,
havendo uma interação entre essas duas séries de olhares” (MULVEY, 2003, pp.444-445).
Dessa forma, Zahara imita um comportamento considerado feminino ao cruzar as pernas e
levar o cigarro à boca.
73
Figura 8Claudia Drake (detalhe do cigarro) e Tom Neal em Curva do destino (Detour, 1945, direção de Edgar
G. Ulmer). Fonte: http://pullquote.typepad.com/pullquote/images/detour.jpg
Figura 9 – Jane Greer em Out of the past (Fuga do passado, 1947, direção de Jacques Tourneur). Fonte:
http://www.sfgate.com/blogs/images/sfgate/mlasalle/2007/07/25/film_noir1.jpg
Figura 10 – Jeito de fumar de Zahara.
74
Figura 11 – Jeito sedutor de abraçar. Orson Welles e Rita Hayworth em A dama de Shangai (The Lady from
Shanghai, 1948, direção de Orson Welles). Fonte: http://www.filmreference.com/images/sjff_01_img0276.jpg
Figura 12 – Jeito sedutor de Zahara ao ‘se encostar’ em Enrique.
A respeito da paródia, Butler (2003) esclarece que ela não precisa ser feita com
relação a alguém, o ponto interessante é o fato de que a paródia ‘se faz’como própria idéia
de um original. Assim, a ‘paródia de gênero’ abertura para uma ‘re-significação e à re-
contextualização’. É uma imitação que muda o significado do original, que imita o próprio
‘mito da originalidade’, construindo a “ilusão de um gênero primário e interno, marcado pelo
gênero, ou parodiam o mecanismo dessa construção” (BUTLER, 2003, p.197).
Para Butler (ibid), as paródias se dão por forma de repetições que acabam como
elementos da hegemonia cultural. A travesti exerce uma paródia da feminilidade, assim, como
Louro expressa: “talvez nos leve a reconhecer o quanto todas as representações de gênero ou
de sexo se fazem através de sinais e códigos culturais” (2005, p.50). A travesti é o ser
excêntrico e quando digo essa palavra, quero remeter ao que está fora do centro como
referência, isso pelo fato de nesse centro estar o homem, branco, heterossexual. Louro, afirma
que “para alguns grupos culturais, ser excêntrico significa abandonar qualquer referência à
posição central” e que “esses sujeitos não buscam ser integrados, aceitos ou enquadrados; o
que desejam é romper com uma lógica que, a favor ou contra, continua se remetendo, sempre,
à identidade central” (ibid, p. 49).
75
Considerando a personagem de figurino rosa, na figura 13 abaixo, como sendo
uma travesti
46
, exemplifico a ‘imitação da imitação’, uma vez que Juan não se inspira
diretamente em Sara Montiel, assistindo a filmes por ela estrelados, mas estuda a
caracterização de Montiel, através de outra travesti, que, por sua vez, imita Sarita
47
.
Figura 13 Paródia: Juan imitando uma travesti que, por sua vez, imita Sara Montiel. A caracterização de Juan
pronta: Zahara.
Figura 14 – Juan pedindo ajuda à travesti do show para compor Zahara.
Juan: (...) Sou ator e gostaria que me ajudasse a preparar uma personagem!
Travesti: E que personagem?
Juan: Uma travesti que imita Sara Montiel, entre outras...
Travesti: Essa sou eu! E por que não dão o papel a mim?
Juan (zombando): Ora, porque você não é um ator! Você só é um
‘travecão’!
Travesti (contrariada): Tudo o que você tem a aprender, é a ter bons modos!
Porque isso não é jeito de se tratar uma garota!
Juan: Tá certo! Desculpe-me! Então, você me ensina?
Sobre as discrepâncias entre sexo e gênero, “o sexo figura como ‘real’ e o ‘fatual’,
a base material ou corporal em que o gênero pratica um ato de inscrição cultural. Todavia, o
gênero não é escrito no corpo” (BUTLER, 2003, p.210). Dessa forma, Zahara é um homem,
do ponto de vista biológico, entretanto, porta-se de maneira feminina e se identifica como
uma ‘mulher’ mesmo sabendo que não o é (identidade de gênero de Zahara). Já, Juan também
46
Considerarei a personagem como ‘travesti’ e não como drag-queen pelo fato das falas das personagens no
filme serem direcionadas dessa forma. Observar o diálogo adiante no texto (Figura 14).
47
Sara Montiel também era conhecida como Sarita. Disponível em:
http://members.tripod.com/infomontiel/id59.htm , (Acessado em 05 agosto 2007).
76
é um homem no sentido biológico, embora, mantenha relações sexuais também com homens e
case com uma mulher no desfecho, que pela fama, ele está ‘disposto a tudo’, ele se porta e
tem aparência masculina, se identifica e se mostra como ‘homem’. Por isso, Butler (2003, p.
212) afirma:
A partir de uma análise política da heterossexualidade compulsória, tornou-
se necessário questionar a construção do sexo como binário, como um
binário hierárquico. Do ponto de vista do gênero como imposto, surgiram
questões sobre a fixidez da identidade de gênero como uma profundeza
interior pretensamente externalizada sob várias formas de “expressão”.
Butler (2003) se pergunta se a política feminista funcionaria sem um ‘sujeito’ na
classe de mulheres e se ainda essa questão possui sentido. Sendo assim, ela trata que o
feminismo exclui parte dos que visa representar, por isso, para incluir na política feminista as
demais classes exclusas é preciso haver, de acordo com a política de identidade, uma
identidade para que os interesses políticos sejam formados e, conseqüentemente, empreendida
a ação política, entendendo quem é o ‘sujeito’ para que essa ação se articula. Embora o debate
trate de compreender o sujeito dentro do campo cultural a que está inserido, Butler tem em
vista que essa cultura na qual o sujeito se inscreve não é o único fator determinante para que
ele seja formado, a cultura não é o único determinante para a construção do sujeito porque
este tem a possibilidade da ação. O sujeito pode se transformar e assumir posturas diferentes
de identidades:
se o sujeito é culturalmente construído, mesmo assim ele é dotado de ação,
usualmente representada como a capacidade de mediação reflexiva, a qual se
preserva intacta, independentemente de sua inserção cultural. Nesse modelo,
“cultura” e “discurso” enredam o sujeito, mas não o constituem. Assim, esse
movimento de restringir e desenredar o sujeito preexistente pareceu
necessário para deixar claro um ponto de ação que não é completamente
determinado pela cultura e pelo discurso (BUTLER, 2003, p.206).
Entretanto, esse raciocínio presume que a ação pode ser desenvolvida quando
se tem de antemão um sujeito previamente discursivo, ou seja, “mesmo que esse sujeito se
encontre no centro de uma convergência discursiva”. Ou “que ser constituído pelo discurso
significa ser determinado por ele, com a determinação excluindo a possibilidade de ação”
(BUTLER, 2003, p.206). Esclarecendo mais ainda:
O sujeito culturalmente enredado negocia suas construções, mesmo quando
estas constituem os próprios atributos de sua própria identidade. Em
Beauvoir, por exemplo, há um “eu” que constrói seu gênero, que se torna seu
gênero, mas esse “eu”, invariavelmente associado a seu gênero, é, todavia
um ponto de ação nunca plenamente identificável com seu gênero. Esse
77
cogito nunca é completamente do mundo cultural que ele negocia [...] As
teorias da identidade feminista que elaboram os atributos de cor,
sexualidade, etnia, classe e saúde corporal concluem invariavelmente sua
lista com um envergonhado “etc”[...] essas posições se esforçam por
abranger um sujeito situado, mas invariavelmente o logram ser completas
(BUTLER, 2003, p.206).
Por conseguinte, a identidade se afirma por um processo de significação em
diversos discursos interligados, por normas que delimitam, incluem ou excluem, legitimam ou
não as significações das identidades, ou seja, o eu’ e um ‘outro’, que através da linguagem,
de termos estabelecidos por ela que, geralmente, são colocados em posições opostas como
estratégia de dominação por parte do ‘eu’ que costuma levar vantagem. São as relações de
poder proferidas por Foucault:
Nos últimos anos, a leitura de Michel Foucault por estudiosas/os das
relações de gênero resultou em novos debates e, de um modo especial,
trouxe contribuições para as discussões sobre as relações de poder.
Aquelas/es que se aproximam de Foucault provavelmente concordam que o
poder tem um lugar significativo em seus estudos e que sua “analítica do
poder” é inovadora e instigante. Foucault desorganiza as concepções
convencionais — que usualmente remetem à centralidade e à posse do poder
e propõe que observemos o poder sendo exercido em muitas e variadas
direções, como se fosse uma rede que, “capilarmente”, se constitui por toda a
sociedade. Para ele, o poder deveria ser concebido mais como “uma
estratégia”; ele não seria, portanto, um privilégio que alguém possui (e
transmite) ou do qual alguém se “apropria” (apud LOURO, 2003, p.38).
Percebe-se, portanto, que as ações da personagem principal do filme
Educação se mesclam muito com o universo feminino tanto pela máscara que usa (papel da
travesti) quanto pela postura de suas atitudes (enquanto Zahara), atribuindo ao gênero efeitos
da verdade de um discurso sobre a identidade original, e produzindo, destarte, estratégias de
dominação de poder do ‘eu’ sobre o ‘outro’.
78
3 LINGUAGEM CINEMATOGRÁFICA
“Rodei A Visita como homenagem a Ignacio.
Em sua carta me dizia que lhe encantaria -la
como filme. E para descobrir o enigma de Juan...
Juan me permitiu que lhe penetrasse com
freqüência, mas, fisicamente! Estávamos a
ponto de terminar as filmagens e o mistério
prosseguia... Até que, no último dia, recebemos
uma visita”. (Voz-off do cineasta Enrique
Goded, personagem de Má Educação).
Aqui, neste terceiro capítulo, abordarei a linguagem cinematográfica, objetivando
apontar uma análise fílmica; depois, a não-linearidade da narração de Educação e a
metalinguagem como parte da construção das personagens fatais; para, em seguida, interpretar
as imagens fílmicas, que, por sua vez, serão divididas em duas partes: i) o canto da sereia: a
construção da personagem em cena, e ii) o Striptease de Zahara e Juan: a manifestação do
erótico de ambos na tela, uma vez que a linguagem (de modo geral) é vista como ação,
interação, construção e intenção. Daí a necessidade de descrever sobre a linguagem
cinematográfica, pois ela, também, não foge desses critérios.
3.1 A linguagem cinematográfica e a análise fílmica
Andrew (2002, p.13), em obra que trata a respeito da evolução das teorias do
cinema, afirma que “os teóricos de cinema fazem e verificam proposições sobre cinema ou
algum aspecto do cinema”. Dessa forma, a linguagem cinematográfica surgiu da necessidade
que esses teóricos tinham em fomentar um termo próprio para designar os atributos que o
cinema usava como meio de expressão: “trata-se de saber como o cinema funciona como
79
meio de significação com relação às outras linguagens e sistemas expressivos...” (AUMONT,
2005, p.158).
Aumont (2005) expõe que esse termo ‘linguagem cinematográfica’ surgiu em
textos de Ricciotto Canudo e Louis Delluc e, também, nos de teóricos formalistas russos. Os
franceses viram a necessidade de diferenciar a linguagem do cinema da linguagem verbal, já
que ambas funcionam de maneiras diferentes. Assim, embora o cinema seja também uma
indústria, ele é considerado uma arte devido às obras-primas que produziu, “conquistou
seus meios de expressão específicos e libertou-se plenamente da influência de outras artes (em
particular do teatro) para fazer desabrochar suas possibilidades próprias com toda a
autonomia” (MARTIN, 2007, p. 15).
Como afirma Martin (2007), o cinema tornou-se uma linguagem, um meio de
transmitir idéias, sendo que, Griffith e Eisenstein foram os principais nomes desse progresso,
através da descoberta de procedimentos lmicos que foram sendo aperfeiçoados,
especialmente, pelo apuramento da montagem.
Convertido em linguagem graças a uma escrita própria que se encarna em
cada realizador sob a forma de um estilo, o cinema tornou-se por isso mesmo
um meio de comunicação, informação e propaganda, o que não contradiz,
absolutamente, sua qualidade de arte (p.16).
Para o semiólogo Metz (apud, MARTIN, 2007, p. 17), o cinema é tratado como
uma linguagem mais recente que se define como um “sistema de signos destinados à
comunicação”. Entretanto, Martin segue expondo que o próprio Metz certifica que essa
definição não é capaz de abarcar a riqueza da linguagem cinematográfica, que não um
aspecto sistemático que possa diferenciá-la da língua. A linguagem cinematográfica para
Metz está à disposição das inovações da arte e rios diferentes objetos que são
representados de diferentes formas (MARTIN, 2007).
Ainda Martin (2007) explana que a câmera possui um papel criador, “enquanto
agente ativo de registro da realidade material e de criação da realidade fílmica” (p.30). Esse
fato se deu devido à emancipação da câmera que nos primórdios do cinema “durante muito
tempo permaneceu fixa” (p.30). Quando os diretores tiveram a idéia de deslocá-la no decorrer
de uma mesma cena, houve as mudanças de planos e os movimentos de câmera contribuíram
para a invenção da montagem (ibid, 2007). Continua Martin:
Muito cedo, portanto, a câmera deixou apenas de ser a testemunha passiva, o
registro objetivo dos acontecimentos, para tornar-se ativa e atriz. Será
preciso aguardar, porém, A dama do lago/ Lady in the lake (Montgomery)
para se ver nas telas um filme que utiliza de ponta a ponta a câmera
80
“subjetiva”, isto é, cujo olho se identifica com o do espectador por
intermédio do olhar do herói. Mas aqui o diretor apenas sistematizou um
efeito psicológico empregado há bastante tempo (p. 32).
O comportamento da câmera ou a extensão do que Almodóvar nos mostra possui
importância em relação a determinado personagem e, sendo assim, a própria câmera é
construtora de significados, através de sua narração específica, com seu conjunto de
elementos que vão das imagens estáticas às dinâmicas, numa construção de enquadramentos,
planos, ângulos de filmagem, movimentos de câmera.
Assim, sobre a análise fílmica Vanoye e Goliot-Lété (2005) expõem que ela
compreende a atividade de analisar em si e também, pode significar o que dessa análise
resultar. Para esses autores, é preciso decompor os elementos que foram usados para constituir
o filme, sendo que,
essa desconstrução pode naturalmente ser mais ou menos aprofundada, mais
ou menos seletiva segundo os desígnios da análise. Uma segunda fase
consiste, em seguida, em estabelecer elos entre esses elementos isolados, em
compreender como eles se associam e se tornam cúmplices para fazer surgir
um todo significante: reconstruir o filme ou o fragmento [...] Nem é preciso
dizer que o texto, resultado final da atividade analítica, não tem de explicar
linearmente, cronologicamente, os processos de sua produção (pp.15-16).
Então, para tecer a análise fílmica que farei mais adiante, levarei em conta: os
enquadramentos; os planos; os ângulos de filmagem; os movimentos de câmera; a iluminação;
o vestuário; o cenário; as cores; a atuação; a música. A narração e a metalinguagem são
elementos que compartilham, para que as duas personagens fatais sejam vistas durante parte
do filme como discursos que se completam e se fundam, assemelhando-se a um único
elemento narrativo.
3.2 A não-linearidade da narração de Educação e a metalinguagem como parte da
construção das personagens fatais
Sobre a narração, esclarece Metz (2004, p. 30) que ela “tem um início e um
fim...”. Segue o autor elucidando que vários tipos de narrações nos filmes, que deixam
“conclusões suspensas ou evasivas”, que mostram, claramente, as “construções em abismo”
no final, que apresentam “desenlaces em forma de parafuso-sem-fim” que caminham para
um “fechamento” mesmo com “finais truncados projetados no infinito” (p.31). Desse modo, o
teórico explica que se o filme apresenta início e final, trata-se de uma seqüência temporal e
que, quando a narração possui distorções temporais, isto é, quando há, por exemplo, “três
81
anos da vida do protagonista em duas frases de um romance, ou em alguns planos de uma
montagem... no cinema...” (METZ, 2004, p.32), constata-se que:
uma das funções da narração é transpor um tempo para um outro tempo e é
isso que diferencia a narração da descrição (que transpõe um espaço para um
tempo), bem como da imagem (que transpõe um espaço para outro espaço)
[...] O exemplo da narração cinematográfica ilustra facilmente estas três
possibilidades: o ‘plano’ isolado e imóvel de uma extensão desértica é uma
imagem (significado-espaço significante-espaço); vários “planos” parciais
e sucessivos desta extensão desértica constituem uma descrição (significado-
espaço significante-tempo); vários “planos” sucessivos de uma caravana
andando nesta extensão desértica formam uma narração (significado-tempo
significante-tempo) (ibid, p.32).
Dessa forma, para Metz (2004), o espaço está sempre presente na narração
cinematográfica, inclusive nas imagens que compõem a narração fílmica. Por isso, a narração
é um sistema em que acontecem ‘transformações temporais’. Geralmente, atribui-se a
“Griffith o mérito de ter elaborado a forma da narração cinematográfica que vai servir de
modelo a todo o classicismo hollywoodiano e europeu a partir dos anos de 1915” (VANOYE
e GOLIOT-LÉTÉ, 2005, p.25).
Assim, a continuidade da narração clássica hollywoodiana, que
homogeneizasse o filme num todo, foi sendo agrupada num significante
visual composto por cenários, iluminação; o significado da narração relativo
a legendas/ imagens, atuação; as unidades de roteiro como histórias, perfil
dramático, tonalidade de conjunto; o significante audiovisual: sincronismo
da imagem e dos sons palavras, ruídos, música. Dessa forma, essa
continuidade da narração contribuiu para a linearidade do cinema clássico,
que segue um plano a outro, tendo conexão com o movimento (de
personagens ou objetos), vínculo entre nosso olhar com o olhar do que uma
personagem enxerga, do que se ouve, das vozes-off, diálogos, música (ibid,
2005).
Educação não segue uma narração linear (ou clássica, como as dos romances
do século XIX ou do teatro clássico com início, meio e fim), justamente, pelo fato de ser um
filme com ambientação noir. Kaplan (1995, p. 94) explana que “os filmes noirs comumente
começam com um assassinato que é a razão ostensiva para a subseqüente estrutura
investigativa...”. A existência de um assassinato apenas é revelada a caminho do final. A
narração não-linear de Educação com histórias interpostas, com filme dentro do filme,
histórias essas que se completam em torno de uma única narrativa, aparece associada ao
constante uso de flashbacks quando as personagens rememoram coisas antes por elas
vivenciadas; o uso demasiado de voz-off uma voz ‘suspensa’, permitindo ao espectador
conhecer o que as personagens lêem, escrevem ou pensam e, também, invocam
‘autonarrações’, no caso da personagem que recorda suas lembranças no instante de suas
82
evocações. Sobre a voz-off, Xavier (2003) observa discrepância entre outro termo também
usado voz-over. No Brasil e na França, usa-se, geralmente, a expressão voz-off, para
designar qualquer situação a qual não se a origem da fala. Portanto, procuro usar, neste
trabalho, a forma mais empregada em nosso país:
(1) voz-off, usada especificamente para a voz de uma personagem de ficção
que fala sem ser vista mas está presente no espaço da cena; (2) voz-over,
usada para aquela situação onde existe uma descontinuidade entre o espaço
da imagem e o espaço de onde emana a voz, como acontece, por exemplo, na
narração de muitos documentários (voz autoral que fala do estúdio) ou
mesmo em filmes de ficção quando a imagem corresponde a um flashback,
ou outra situação, onde a voz de quem fala vem de um espaço que não
corresponde ao da cena imediatamente vista (XAVIER, 2003, p.459).
Quando aparecem os flashbacks e as vozes-off em Educação, a narrativa
geralmente é realizada em primeira pessoa. Os flashbacks e as vozes-off ajudam no
intercâmbio e no trânsito entre uma história e outra, entre uma personagem e outra,
especialmente, sobre o elemento mulher fatal Zahara e Juan, sendo que todas as outras
personagens que da história participam, contam coisas relacionadas a esse elemento ‘binário
para desvendar o mistério que sua figura ronda. Esses determinantes contextuais, nas palavras
de Doane (2003, p.462), “afirmam a ‘presença’ da personagem no espaço da cena, na diegese.
Ele/ ela está ‘logo ali’, logo além do limite do quadro’, em um espaço que ‘existe’, mas o
qual a câmera não escolhe mostrar”.
A narração não-linear e as histórias dentro de histórias ajudam a compor a
atmosfera negra do filme e o destino das personagens. Dessa maneira, Doane relata que “a
função da voz-off (como também da voz-over) vem a ser extremamente importante no filme
noir.” Como as histórias de Educação se cruzam, apontam para o filme dentro do filme
que remete à função metalinguagem do cinema.
Com as personagens, a metalinguagem funciona da seguinte maneira: Zahara é
interpretada pelo ator mexicano, Gael García Bernal. Bernal faz o papel de Juan. A
personagem Juan, por sua vez, também é um ator e encena, no filme, dentro do filme o papel
de uma travesti, Zahara, ou seja, se visualiza, aqui, o cinema se auto-explicando: um filme
dentro do filme com todas as suas variantes a pesquisa de uma história para se filmar; o
feitio de um roteiro; a escolha do elenco; a preparação do ator para se chegar à personagem; o
figurino; a maquiagem; a iluminação; o cenário; os objetos de cena; a presença de um diretor
e sua equipe técnica; fotogramas; filmadoras e todo aparato cinematográfico pode se
percebido na película.
83
Ao assistir Educação, pela primeira vez, pensei que se tratasse das memórias
do ‘verdadeiro’ travesti da história, Ignacio Rodríguez e que Zahara encarnasse de fato sua
‘outra face’. Isso pelo fato de que enquanto Enrique lia a história entregue a ele por Juan,
visualizava a leitura, ouvia vozes-off, e deparava-me com a fusão de imagens. Cabe aqui
ressaltar que essa forma de passar do filme do tempo real para o filme dentro do filme, se
repete em Educação quando Almodóvar quer transitar de uma história à outra, ele usa o
recurso da fusão de imagens: quando uma das imagens se sobrepõe à outra, até uma delas
ficar mais nítida e a outra desaparecer, codificando este recurso técnico nesta narração
imagética para uma significação de mudança de espaço filmico e diegético junto ao
espectador.
A fusão de imagens remete à temporalidade, à projeção e identificação de uma
personagem com a outra, de um tempo do filme com o outro, numa forma de ‘revisão’ do que
a narrativa colocou até aquele ponto; do flashback; da lembrança e memória e é recurso
imagético que, no desenrolar da trama, em princípio, também ajuda a fazer o espectador
acreditar que a história mostrada se trata somente de lembranças ou reforçar idéias, a exemplo
da cena em que os rostos das personagens infantis se transformam nas personagens já adultas.
Figura 15 – Fusão de imagens: garoto Ignacio transformando-se no homem fatal, Juan.
Geralmente, quando acontecem essas fusões no trânsito de um enredo ao outro,
Almodóvar ainda usa os recursos de uma música melodiosa ao fundo e da voz-off, como ele
mesmo narra em seu sítio oficial na internet:
A voz em off serve para explicar o que não se e acelerar o ritmo da
narração... As vozes em off me dão resultados imprescindíveis para transitar
de uma história a outra, de uma época a outra.
48
Já, a ocasião em que é revelada ao público a existência de um filme dentro do
48
La voz en off sirve para explicar lo que no se ve y acelerar el ritmo de la narración.... Las voces en off me han
resultado imprescindibles para transitar de una historia a otra, de una época a otra. Disponível em:
http://clubcultura.com/clubcine/clubcineastas/almodovar/malaeducacion/comentarios.htm, (Acessado em 11
abril 2007).
84
filme, é a parte que mais se percebe a imagem auto-explicativa. Esse momento ocorre quando
é mostrado o funcionamento do maquinário da câmera e, em seguida, a claquete cobrindo
Zahara e, no plano seguinte, o diretor Enrique e toda sua equipe por trás da câmera
observando-a encenar. As filmagens se encerram e percebe-se o cenário e Juan sendo ajudado
a tirar o figurino que compõe Zahara, reafirmando que se trata de uma interpretação. Nesse
ponto, considero o momento que mais demonstra o ‘binarismo’ do elemento narrativo mulher
fatal, estar contido em duas ‘personagens fatais’: Zahara e Juan.
Figura 16 – Metalinguagem: Juan tirando o figurino de Zahara após a filmagem de A Visita.
3.3 Interpretando as imagens fílmicas
A seguir, uma análise fílmica, interpretando com aspectos da linguagem
cinematográfica e da teoria queer, a forma como Almodóvar trata a construção imagética que
reflete a identidade feminina e masculina das personagens fatais, a relação de seus corpos
como objetos eróticos de desejo e sedução o que remete ao voyeurismo no cinema. Para
demonstração, as seqüências foram divididas em planos imagens paradas de cada
decupagem ou corte da câmera. As imagens foram capturadas diretamente dos filmes. Escolhi
a seqüência em que Zahara apresenta-se no fictício Cine Olympo o show La Bomba, depois,
selecionei alguns planos para a análise. Fiz essa escolha pelo fato desta seqüência ter sido
construída e inspirada numa cena semelhante do filme Noches en Casablanca
49
(Noites em
Casablanca), 1963, direção de Henri Decoin, na qual Sara Montiel, igualmente à Teresa,
também canta a música Quizás, Quizás, Quizás, cuja letra é de Oswaldo Farrés, 1947, e lança
uma flor a uma personagem que a assistia na platéia.
49
Essa cena pode ser assistida no DVD em anexo a esta pesquisa.
85
Assim, sobre a forma em que a composição de Zahara foi inspirada em seu
momento drag-queen ao apresentar o show, remeto-me às palavras de Louro (2004, pp. 20-
21):
Em sua “imitação” do feminino, uma drag-queen pode ser revolucionária.
Como uma personagem estranha e desordeira, uma personagem fora da
ordem e da norma, ela provoca desconforto, curiosidade e fascínio. De que
material, traços, restos e vestígios ela se faz? Como se faz? Como fabrica seu
corpo? Onde busca as referências para seus gestos, seu modo de ser e de
estar? A quem imita? Que princípios ou normas “cita” e repete? Onde os
aprendeu? A drag escancara a construtividade dos gêneros. [...] Ela assume a
transitoriedade, ela se satisfaz com as justaposições inesperadas e com as
misturas. A drag é mais de um. Mais de uma identidade, mais de um gênero,
propositalmente ambígua em sua sexualidade e em seus afetos. Feita
deliberadamente de excessos, ela encarna a proliferação e vive à deriva,
como um viajante pós-moderno.
3.3.1 O canto da sereia: a construção da personagem em cena
Figura 17 – plano 61.
Duração Campo Visual Campo sonoro
00:00:03,68 Enquadramento: plano geral
50
.
Câmera fixa
51
.
Figurantes: platéia de maioria masculina
(dois militares, um senhor e um jovem,
um cabeludo e um careca).
Cenário: mesas pequenas e redondas
Aplausos do público
Entrada de um solo de
saxofone.
50
Enquadra a cena em sua totalidade. É aberto e procura registrar o espaço onde as personagens estão.
Disponível em: http://www.fafich.ufmg.br/~labor/cursocinema/paginasemordem/02planogeral.html , (Acessado
em 17 janeiro 2008).
51
Câmera parada, fixa num ponto, sem exercer nenhum tipo de movimento na imagem.
52
Quadro ou campo (de visão) – o que está sendo visualizado na tela.
53
Uma imagem muda para outra repentinamente sem efeitos.
86
com forros vermelhos, cada uma com
apenas duas pessoas sentadas. Abajures
acesos nas mesas que possuem pessoas.
Abajures apagados nas mesas vazias.
Copos com bebidas.
Ação: Enrique no centro do quadro
52
.
Sobre sua mesa - um copo de bebida,
um maço de cigarros, um isqueiro, um
cinzeiro.
Figurino de Enrique: jaqueta de couro
preta, camisa branca, calça jeans.
Iluminação: penumbra, luzes dos
abajures acesas.
Corte seco
53
.
Um saxofone inicia a introdução da música enquanto Enrique entra pela direita do
quadro até sentar-se à mesa e acender um abajur que está sobre ela. Com essa ação ele
sinaliza sua presença ali e compartilha do momento como se ‘acendesse’ o seu desejo pelo o
que está vendo. Atrás de Enrique, uma platéia de maioria masculina assistindo ao espetáculo.
No plano 61, a imagem foi construída para quem olha para Zahara, ou seja, para a
platéia masculina ali presente no quadro, no entanto, essa platéia também é o espectador que
assiste ao filme. A platéia é mostrada pela câmera fixa, como se fosse a visão do palco para a
platéia, num enquadramento de plano geral que exibe o cenário e deixa Enrique ao centro do
quadro e os figurantes da platéia ao seu redor, ao fundo. Essa disposição faz com que
percebamos que Enrique será o representante masculino de maior destaque no decorrer dos
planos que se seguirão na cena. Observo, também, uma forma de humor e ironia, na platéia ali
presente: um cabeludo e um careca, um senhor e um jovem, dois militares além do que,
duas pessoas em cada mesa (com exceção de Enrique que é o destaque) sentadas paralelas
numa composição simétrica, até nos espaços entre as mesas.
Em Noches en Casablanca, ao contrário das cores quentes, dos forros vermelhos e
da iluminação amarelada dos abajures, ao gosto de Almodóvar, as cores mais frias são
constantes. Ambiente bem iluminado. A platéia é mostrada, em plano geral, várias vezes.
87
Figura 18 – Platéia de Noches en Casablanca, aplaudindo a personagem Teresa cantar Quizás, Quizás, Quizás.
88
Figura 19 – Plano 62.
Duração Campo Visual Campo sonoro
00:00:39,60 Movimento de câmera – Travelling
54
vertical ascendente.
Enquadramento: close-up.
Cenário: palco do Cine Olympo,
paisagem atrás de Zahara com ênfase no
mundo aquático (praia).
Figurino: vestido com cauda e com os
caracteres sexuais secundários
55
femininos costurados “por fora” da
roupa, com paetês, grande lenço
vermelho pendendo dos ombros, peruca
loiríssima, com cabelos presos ao alto,
maquiagem característica dos anos 60.
Saxofone, instrumentos
de corda como violinos.
Voz de Sara Montiel:
Siempre que te
pregunto
Que, cuándo, cómo y
dónde
Tú siempre me
respondes
Quizás, quizás, quizás
54
A câmera é movida sobre um carrinho (ou qualquer suporte móvel) num eixo horizontal e paralelo ao
movimento do objeto filmado. Este acompanhamento pode ser lateral ou frontal, neste último caso podendo ser
de aproximação ou de afastamento. Disponível em :
http://www.fafich.ufmg.br/~labor/cursocinema/paginasemordem/11travelling.html
, (Acessado em 17 janeiro
2008).
55
No caso, refere-se à imitação dos seios e à zona pubiana feminina, feitos por fora do figurino.
89
Adereço: cravo vermelho.
Iluminação: luz baixa; foco de luz
dirigida por um canhão de luz.
Ação: Zahara se apresenta dublando
Sara Montiel.
Corte seco.
O palco está na penumbra. A câmera mostra tecidos maleáveis de tonalidade
pérola-cintilante que resplandecem pontos de luz, enfatizando o brilho da ‘estrela’ e o
glamour da personagem como ‘diva’ no palco. Um longo tecido vermelho também é visto
pendendo pelo corpo de Zahara “idealizada ao nível do Divino, sua beleza evoca desejo e
anseios ininterruptos, entretanto ela permanece inatingível” (KAPLAN, 1995, p. 99). Assim
também, observo tal analogia com o nome Cine Olympo remetendo ao Monte Olimpo que
na mitologia grega é a morada dos deuses.
Teresa em Noches en Casablanca também usa um vestido de tecido brilhante
resplandecente colado ao corpo, revelando suas formas. Por cima, uma túnica negra
transparente.
Figura 20 – Figurino de Teresa (Sara Montiel): vestido brilhante colado ao corpo, delineando suas formas.
Observo que relação entre o vestido de Zahara também, com os de Montiel em
cartazes dos filmes: El Ultimo Cuplé, 1957, de Juan de Orduña e L’espionne de Madrid, 1962,
de Rafael Gil.
90
Figura 21 – Figurino de Sara Montiel. Fonte: http://members.tripod.com/infomontiel/id38.htm
Figura 22 – Figurino de Sara Montiel. Fonte: http://members.tripod.com/infomontiel/id38.htm
Embora se apresente numa casa noturna, Zahara é uma estrela. Juan, a
personagem/ ator que interpreta Zahara no filme dentro do filme, também quer ser uma. Ora,
se Zahara está sendo encenada no filme dentro do filme, então, penso que de fato, ao vel da
narrativa do filme, ela é uma estrela por apresentar-se bela como destaca Mori (1989, p.
27): “a estrela não é idealizada em função de seu papel: ela é, pelo menos potencialmente,
idealmente bela. Não é somente glorificada por sua personagem, ela também a glorifica”.
Comparando Zahara com as mulheres fatais dos noirs, Kaplan tomando para si as
palavras de Gledhill a respeito dessas personagens, relata que a mulher independente tinha
como opção, geralmente, trabalhar como artista de night-club ou viver custeada por um
homem (1995, p. 94). O figurino de Zahara é creditado ao estilista de moda francês, Jean-Paul
Gaultier, e é uma peça inteira, colada ao corpo do travesti.
A câmera vai subindo lentamente em travelling vertical ascendente, que como
movimento de câmera, se quando a mesma essobre um suporte móvel qualquer, como
um carrinho, ou na mão de quem está filmando. O travelling acompanha o objeto que está
sendo filmado, esse movimento pode se dar horizontalmente, (da direita para a esquerda e
vice e versa), verticalmente (ascendente ou descendente) e frontal (de aproximação ou
91
afastamento) (MARTIN, 2007). Junto com o travelling, um grande foco de luz que direciona
o passeio do olhar do espectador pelos caminhos curvilíneos de ‘enchimentos’ do corpo de
Zahara.
O travelling vertical nesse plano possui função descritiva, acompanhando o
movimentar de Zahara, primeiramente, a câmera vai revelando uma cauda cheia de
barbatanas, que lembra um rabo-de-peixe (sereia). Como afirma Almodóvar em seu sítio na
internet:
É um vestido cor carne, costurado até o pescoço como uma segunda pele,
que a impressão de nudez total. As nádegas, os seios e a púbis foram
feitos com paetês de diferentes tons e miçangas marrons e rosados. O traje
em si mesmo representa a feminilidade falsa e desnuda. Também se
encarregou de dar-lhe um toque às camisetas gabardinas e shorts de Ignacio/
Ángel.
56
Então, câmera e foco se fixam nas ancas da travesti desvendando por sua vez,
arredondados glúteos, depois, continuam fixos nesse ponto por alguns segundos, no prazo de
Zahara que está de costa virar-se e revelar-nos sua ‘felpuda natura’ negra, costurada por fora
do figurino. Segurando um cravo vermelho ao lado de sua natura, com suas unhas postiças
igualmente vermelhas. O cravo também pode ser entendido como a representação de um falo
que está escondido sob o figurino, remetendo ao corpo de homem que ali se oculta naquela
forma andrógena, ambígua de uma paródia. É uma travesti percebemos. O cravo vermelho
outrossim é uma referência a Montiel.
Figura 23 Sara Montiel e Zahara com cravo próximo ao rosto. Fonte:
http://members.tripod.com/infomontiel/id36.htm
56
Es un vestido color carne, ceñido hasta el cuello como una segunda piel, que da la impresión de desnudez
total. El culo, las tetas y el pubis están hechos con paillettes de diferentes tonos y abalorios marrones y rosados.
El traje en mismo representa la feminidad falsa y desnuda. También se encargó de darle un toque a las
gabardinas y shorts de Ignacio/Ángel. Disponível em:
http://www.clubcultura.com/clubcine/clubcineastas/almodovar/malaeducacion/comentarios_fundido.htm
,
(Acessado em 11 abril 2007).
92
No tocante aos enquadramentos, temos closes de partes do corpo de Zahara que,
simultaneamente ao movimento ascendente da câmera e ao foco de luz, revelam as partes
antes escondidas pela ausência de luz, numa brincadeira bem ao gosto do voyeur, aquele que
observa, geralmente, estranhos, na busca de obter prazer sexual, a partir de um deleite visual
de outros praticando sexo, nus ou em trajes que sejam excitantes ao seu gosto. O voyeur, por
sua vez, costuma estar oculto e pode utilizar de artifícios para visualizar o outro, como
câmeras escondidas, binóculos, entre outros elementos. Geralmente, quem é por um voyeur
observado, não o sabe, sendo esse um dos fatores que estimula os adeptos dessa forma de
prazer.
Junto com a câmera, para deleite desse olhar, o foco de luz funciona fazendo um
recorte no corpo da ‘diva’, como se fosse uma imensa lanterna afoita na mão do espectador
que a espia. Luz da lanterna que toca de fato o corpo e as partes que o espectador não pode
tocar, como se fosse as mãos deste.
Depois, a câmera continua sua trajetória ascendente e, enquanto Zahara desliza o
cravo em si, mostrando seu baixo ventre, seu umbigo, e seus seios que, assim como sua
‘natura felpuda’ saltam aos olhos como se aquele vestido não fosse um vestido, mas a
extensão do seu corpo nu. A personagem Teresa também é vista dessa forma ao início de sua
apresentação, com um pequeno foco de luz na flor que ela desliza pelo corpo, até o ambiente
ir iluminando gradativamente. O movimento de câmera também é um travelling vertical
ascendente, no entanto, esse travelling não atenta para partes libidinosas do corpo de Teresa, e
sim, cria uma ‘expectativa’ no espectador que a assiste. Quando o ambiente vai sendo
iluminado, o rosto de Teresa surge num primeiro plano (busto) como uma aparição divina.
Figura 24 – Foco de luz e Teresa (Montiel) deslizando uma flor vermelha pelo corpo.
93
A respeito dessa manifestação ‘erótica’ na tela, Mulvey (2003, p. 445) aponta que:
as canções... os close-ups
57
de pernas... ou de um rosto..., inscrevem uma
forma diferente de erotismo na narrativa. O pedaço de um corpo
fragmentado destrói o espaço da Renascença, a ilusão de profundidade
exigida pela narrativa. Ao invés da verossimilhança com a tela, cria-se um
achatamento característico de um recorte, ou de um ícone.
Referindo às mulheres fotografadas sensualmente para revistas masculinas, apoio-
me no ponto de vista de Botti (2003) para associá-las à travesti:
A escolha por vestir a modelo ao invés de representá-la nua é, em certo
sentido, uma escolha fetichista: “aos olhos masculinos, a mulher vestida está
distante, protegida. A roupa e a maquiagem têm sempre um duplo
significado: de convite e obstáculo”. Assim, estas imagens incorporam o uso
de alguma vestimenta, pois “quando um homem vê uma mulher nua, parece-
lhe ter visto tudo”, se o imaginário do espectador que deverá despi-la
(p.125).
Zahara termina o trajeto do cravo, parando o braço com ele ao lado de seu rosto.
Ela usa uma peruca de um loiro muito claro, com um penteado chamado ‘bolo de noiva’,
como era moda entre os anos de 1950 a 1960, assim como, sua maquiagem de olhos bem
marcados e destacados com delineador preto na pálpebra superior, com um traço que finda
num risco puxado para cima, como também era moda naquela época. A maquiagem está de tal
maneira associada à estrela de cinema que a sua função é expressiva, destaca os movimentos
da boca e dos olhos, “eleva a beleza quotidiana ao nível de uma beleza superior, radiosa,
imutável” (MORI, 1989, p. 30).
Figura 25 – Teresa e Zahara – observar maquiagem, atenção especial para os olhos.
57
Quando a câmera foca um detalhe de um objeto, ou corpo e o deixa ‘giganteem toda a extensão do campo
visual.
94
Em se tratando das perucas loiras que Zahara usa, no decorrer do filme, vejo esse
fato como um elemento que reforça a idéia de ‘paródia’, de imitação que Almodóvar faz de
outras femme fatales de filmes com ambientação noir (sejam eles antigos ou atuais) – que são
em maioria loiras. Williams (2005) trata que semelhanças dos atributos físicos entre as
mulheres fatais tanto dos clássicos noirs, quanto dos novos noirs: são brancas e possuem
cabelos loiros. De exemplos, os cartazes dos noirs: Double Indemnity (Pacto de Sangue,
1944, direção de Wilder); The Lady from Shanghai (A dama de Shangai, 1947, direção de
Welles); Femme Fatale (Mulher Fatal, 2002, direção de Brian De Palma) heroínas com
cabelos ondulados e loiras.
Figura 26 Cabelo ondulado e loiro da heroína. Fonte:
http://img171.imageshack.us/img171/2012/0610220729071cq0.jpg
Figura 27 Cabelo da heroína loiro, ondulado, porém curto. Fonte:
http://img1.nnm.ru/imagez/gallery/f/4/9/7/2/f4972ba9faae298c4d88807a185312ec_full.jpg
95
Figura 28 Heroína da década de 2000: madeixas loiras, curtas e repicadas com “ar” rebelde. Fonte:
http://www.impawards.com/2002/posters/femme_fatale.jpg
Entretanto, é notória a semelhança da peruca de Zahara com o penteado de Sara
Montiel, na imagem abaixo:
Figura 29 Penteado de Sara Montiel (inspiração para a peruca de Zahara). Fonte:
http://www.geocities.com/cinecyu/SaraMo36.jpg
Atrás de Zahara, vemos parte do cenário que possui relação com o mar. Sugere-se
que Zahara com seu vestido/ segunda-pele/ rabo-de-peixe fosse uma sereia que saísse das
águas para cantar, seduzindo a platéia com seu canto, fazendo, também, uma analogia a uma
deusa Vênus, “pela qual todos os homens se apaixonam” (MORI, 1989, p.153). Ela canta
delicadamente, utilizando expressões singelas no rosto que são mais expressivas na forma
dela olhar, suspirar, piscar, abrir e fechar a boca, fazendo ‘biquinhos’ sedutores (imitando a
boca de peixe).
A meu ver, os suspiros e piscares de Zahara o atribuições ao gozo. Toda ela
goza. Ela tem prazer por ser olhada, desejada, admirada e porque ela se posiciona como
objeto do olhar do público que ali foi para assisti-la, sendo, também, objeto do olhar da
câmera voyeurista, tanto do público masculino ali presente na cena quanto do espectador que
assiste ao filme.
96
Sobre o voyeurismo no cinema, Metz (1980, p. 98) retrata que “o exibido sabe que
é olhado, deseja que seja assim, identifica-se com o voyeur de quem é objeto (mas que
constitui também como sujeito)”. Do palco, o olhar de Zahara é direcionado ao jovem
Enrique, mas, às vezes, é vista olhando em direção à câmera ou para o voyeur; da mesma
forma que faz Teresa.
Figura 30 – A personagem Teresa (Sara Montiel) olhando para a câmera.
Na época primitiva, os atores desempenham face à câmera como se
estivessem diante do espectador de teatro [...] Mais tarde, quando o cinema
se liberta completamente da influência do teatro, o fato de o ator dirigir-se
diretamente ao espectador (por intermédio da câmera) irá adquirir um efeito
dramático inesperado, porque o espectador se sente diretamente atingido.
(MARTIN, 2007, p.34).
Então, Zahara lança o cravo para Enrique sentado à mesa em frente ao palco. Veja
a semelhança com a cena de Teresa abaixo:
Figura 31 – Teresa atirando uma flor a uma personagem que a assistia na platéia.
Figura 32– Plano 63.
97
Duração Campo Visual Campo sonoro
00:00:06,08 Câmera fixa.
Enquadramento: primeiro plano.
Cenário, iluminação, figurino: os
mesmos do plano 61.
Ação: Enrique no centro do quadro pega
a flor lançada por Zahara.
Corte seco.
Sons de violino.
Enrique pega a flor e devolve um olhar provocante para Zahara. Ele, de certa
forma, também goza o fato de Zahara tê-lo escolhido e demonstra isso pelo seu próprio olhar,
que deseja Zahara e está fascinado por sua beleza. Nessa posição, Zahara de travesti-peixe,
pesca. É a sereia que lança sua isca ao pescador e este a pega: uma isca lasciva, vermelha,
quente, sensual, assim como é a própria cor do cravo: “normalmente denominamos de cores
quentes as que derivam do vermelho-alaranjado” (FARINA, 2005, p. 92).
Figura 33 – Personagem de Noches en Casablanca pegando a flor lançada por Teresa.
3.3.2 O Striptease de Zahara e Juan e a manifestação do erótico de ambos na tela
Figura 34 – Plano 87.
Duração Campo Visual Campo sonoro
98
00:00:11,21 Câmera fixa.
Enquadramento: plano americano.
Iluminação: chave baixa, luz amarelo-
dourada dissipada.
Cenário: cama, travesseiro, lençóis,
tecido vermelho sobre a cama, abajures
acesos, quadros nas paredes, bolsa
pendurada na parede, porta, papéis de
parede em tons pastéis com motivos
abstratos, suporte com peruca.
Figurinos: Zahara – roupão florido em
tons verde, preto branco e vermelho,
peruca loira; jovem Enrique – nu com
lençol cobrindo-lhe a cintura.
Ação: Zahara caminha sensualmente em
direção ao moço que está ébrio e
dormente na cama e vai desamarrando e
abrindo o roupão (sensualidade,
excitação, feminilidade).
Corte seco.
Entrada de um
saxofone; tecido do
roupão sendo
desamarrado.
Figura 35 – Plano 88.
Duração Campo Visual Campo sonoro
00:00:37,44 Câmera fixa.
Enquadramento: primeiro plano.
Iluminação: chave baixa.
Cenário: parede com papel de parede;
parte da porta; espelho redondo
pendurado na parede atrás de Zahara e
sobre uma penteadeira com frascos;
parte de tecido vermelho jogado sobre
encosto de cadeira.
Figurino de Zahara: o mesmo roupão do
Primeiro plano sonoro –
saxofone, instrumentos
de cordas ao fundo:
violoncelo; gemidos e
suspiros de Zahara e
entrada de violino,
depois, esses
instrumentos passam
para o segundo plano
sonoro e em primeiro
99
plano anterior e peruca loira.
Ação: Zahara entra no campo pela
direita, acomoda-se sobre o jovem
Enrique que está no extra-campo, ela se
situa mais à direita do quadro, enquanto
que, à esquerda, sua imagem de costa é
vista sendo refletida num espelho
pendurado na parede atrás dela.
Corte seco.
plano, ouve-se a voz-off
de Zahara: “Querido
Enrique, sou eu,
Ignacio! Quantas vezes
sonhei com esse
momento! Mesmo que
tenham...”
Figura 36 – Plano 89.
Duração Campo Visual Campo sonoro
00:00:06,24 Câmera fixa.
Enquadramento: primeiro plano.
Iluminação: chave baixa.
Cenário: pequeníssima parte da
cabeceira da cama, travesseiro com
fronha rota e lençol.
Ação: Jovem Enrique nu dormindo,
sendo balançado pelo cavalgar do corpo
de Zahara.
Figurino de Zahara: o mesmo roupão do
plano anterior e peruca loira.
Corte seco.
Em primeiro plano
sonoro – voz-off de
Zahara: “... passados
muitos anos, eu nunca
lhe esqueci. Precisamos
nos ver de novo, você
menos bêbado, claro!
Quero contar-lhe...”;
em segundo plano
sonoro – violino e
violoncelo; respiração
ofegante de Zahara,
barulho dos corpos
balançando na cama.
100
Figura 37 – Plano 90.
Duração Campo Visual Campo sonoro
00:00:06,30 Câmera fixa.
Enquadramento: plano médio.
Iluminação: chave baixa. Luz amarelo-
dourada dissipada.
Cenário: parte da cama com
travesseiros, abajur aceso e garrafa de
bebida alcoólica vazia sobre criado-
mudo, pequena parte dos quadros nas
paredes, parte da porta.
Ação: Zahara é vista em êxtase sexual.
Figurino Zahara e peruca loira; jovem
Enrique: peito nu.
Corte seco.
Primeiro plano sonoro –
(voz-off de Zahara
lendo uma carta que ela
está escrevendo) “...da
minha vida e quero que
me conte a sua,
enquanto comemos um
doce na pastelaria
Malliol, como quando
saíamos do colégio nos
fins-de-semana...”
segundo plano sonoro –
ao fundo, segue a
melodia musical e
barulhos do balançar
dos corpos na cama.
Nos planos 87, 88, 89 e 90 a música um clima de romantismo e sensualidade à
ação e também de memória, já que Zahara relembra de seu amor, e de confissão, por ela dizer
que sabe da vida atual de Enrique. A pequena dose de romantismo misturada com o amor
apaixonado que Zahara sente por Enrique desde a infância, que contém esses planos, colabora
para a construção de um ambiente feminizado. Oliveira (2004) sobre a oposição do
masculino/feminino expõe que esta é:
reforçada através de outras dicotomias paralelas, tais como forte/fraco,
grande/pequeno, pesado/leve, quente/frio, claro/ obscuro,
dominante/dominado, ativo-penetrante/passivo-penetrado, etc. [...] as
avaliações positivas recaem sobre o primeiro pólo da díade, associado ao
101
masculino, enquanto as avaliações negativas se vinculam ao segundo,
geralmente relacionado ao feminino. Essas associações automáticas
alicerçam o impensado que habita o nosso pensamento e são continuamente
reiteradas pela cultura (p.275).
Zahara está vestida num roupão e enquanto caminha sensualmente com passos
lentos em direção ao seu amado que dorme em sua cama, vai abrindo o roupão, depois,
posiciona-se sobre Enrique na cama, retira o roupão. Keesey e Duncan tratando sobre
erotismo no cinema alegam que “muitas vezes a sensualidade de um striptease é
acompanhada pela sedução de uma dança ou pelo canto da sereia de uma canção” (2005,
p.90). Eles também afirmam que:
Os amantes do cinema reconheceram muito a potencialidade voyeurística
dos filmes, com as estrelas a despirem-se em grandes planos intimistas
diante de audiências que observam, sem serem vistas, na escuridão de uma
sala, envolvidas em fantasias que lhes alimentam a imaginação (ibid, p.89).
Desse modo, sobre o que pode ser considerado erótico no cinema, Williams
(2005) expõe que, comumente, o filme está associado ao melodrama, que de acordo com a
etimologia da palavra significa a conjunção do termo ‘melos’ e ‘drama’, significando para o
cinema sexo com amor. No entanto, ela relata que o erotismo possui significações culturais,
associado com materiais sexuais e que uma distinção entre erotismo e pornografia.
Entretanto, essa classificação depende de quem classifica o filme propriamente e da maneira
que o espectador a interpreta.
Zahara tira o roupão, mas não tira sua peruca loira de cabelos compridos e realiza
encontro carnal com o jovem, enquanto ele dorme. Sendo que, nesse caso, Zahara retira sua
roupa para o espectador que assiste ao filme. Quanto ao ato de se desnudar perante
espectadores e mostrar sua lingerie ou ficar nu, Botti (2003) concordando com Perrot (2003)
afirma:
Conforme Michelle Perrot, a lingerie popularizou-se no final do século XIX,
e, teve grande importância na história do erotismo e do fetichismo. Desde
então, o ato de cobrir e mostrar o corpo tornou-se uma acumulação erótica.
O uso da lingerie é cúmplice para estimular o apetite sexual, e a sofisticação
da vestimenta invisível, simultaneamente revelando e escondendo o corpo,
valoriza a nudez, dando-lhe maior profundidade... O ato de atribuir à roupa
um aspecto sexual foi, e vem sendo, cada vez mais incorporado à moda e à
indústria cultural. Vestir-se e despir-se tornou-se prática tão banalmente
erotizada, que transformou-se em espetáculo: o striptease, rompeu com os
limites das casas noturnas e da apresentação ao vivo, translocando-se para a
privacidade do lar, onde é veiculado a programas televisivos softcore, e em
fitas de vídeo pornô-eróticas (BOTTI, 2003, p.126).
102
Quando Zahara retira o roupão e transparece seu corpo nu, vemos seu torso
musculoso e sua ausência de seios, seus braços fortes e ela a suspirar com sua peruca loira, ou
quando a vemos da cintura para cima a fazer movimentos sexuais sobre Enrique segurando o
próprio falo, sugerido pelo extra-campo, estamos diante de um balé proposto por Zahara. A
relação sexual de Zahara assemelha-se a uma coreografia, pela forma elegante, e até
‘ensaiada’ dela jogar a cabeça e sacudir a cabeleira de um lado para o outro. É uma
encenação, que a personagem está sendo ‘filmada’ no filme dentro do filme e tal relação
sexual é como se consistisse na visão do cineasta Enrique Goded, que filma. No entanto, não
vemos a equipe de filmagem sendo refletida pelo espelho, mas sim, podemos acompanhar o
movimentar de Zahara, de costa, ao se posicionar sobre Enrique na cama e ao retirar o roupão.
O espelho pode aí, ser um objeto de cena que funciona para chamar atenção ao fato da própria
imagem de Zahara ser uma travesti. Ao mesmo tempo, a costa nua de Zahara com a cabeleira
caindo sobre os ombros, sem o busto à mostra,
é feminina e sensual.
Em relação ao feminismo, no caso, sobre a ‘objetificação’ da mulher, fazendo
associação para a travesti, Gregori (2003, p.87) discorre que o feminismo caminha por dois
vieses de debates teóricos, sendo que ela pondera sobre “a questão do desejo na linha da teoria
da objetificação do corpo feminino vertente que tem como exemplo as campanhas contra
pornografia” e a que aborda “as questões da violência, de gênero e do erotismo”, que mais
tolerância ao “livre exercício de escolhas sexuais alternativas”. No que tange as relações entre
gêneros, a autora segue ponderando que:
...corpos femininos (ou feminizados quando o suporte corporal é o do
homem) são adornados para configurar o locus da penetração; corpos
masculinos (e não correspondência ou alternativa para a masculinização
dos corpos de mulheres) são adornados para configurar o locus do corpo que
penetra. O exercício da sexualidade entre corpos do mesmo sexo tem
preponderância entre mulheres e seu sentido ainda corresponde a uma
mesma lógica: torna-se prática aceita e estimulante de um certo desejo
voyeur masculino (GREGORI, 2003, pp. 108-109).
Ainda descrevendo sobre o corpo como objeto de desejo e sobre posições de
dominação e submissão, Gregori (ibid) observa que quando um corpo masculino toma a
postura como se fosse um corpo feminino, ele se posiciona como objeto de desejo através de
sinais que delimitam o feminino simbolicamente, visto que o corpo assume diferentes
representações de acordo com o contexto cultural, ao qual está inserido. Para Botti (2003), a
objetificação do corpo é devido à cultura de consumo do mesmo, sendo isso evidenciado
pelos estudos que exploram o corpo fragmentado pela medicina, por exemplo.
103
A relação sexual de Zahara com Enrique poderia ser enquadrada como
pornográfica, mas isso depende do contexto cultural e de posicionamentos subjetivos daquele
que assiste ou expõe seu ponto de vista. Gregori (2003) esclarece que tem havido um
deslocamento do sentido da pornografia, perdendo sua conotação de
obscenidade. De fato, noto uma substituição de significados. O obsceno,
caro às expressões eróticas que se desenham em materiais desde o século
XVI, está perdendo lugar para a noção de prática sexual como técnica
corporal que visa o fortalecimento da auto-estima individual. No entanto
existe uma grande discussão sobre o que se considera erótico ou
pornográfico. (p.120).
Botti (2003) complementa que:
De acordo com Lúcia Castello Branco, é quase impossível estabelecer traços
distintivos entre o erotismo e a pornografia, pois ambos o conceitos
flexíveis que variam em determinados contextos e períodos históricos. Mas
dentro desta impossibilidade, a autora acaba por definir que um material
pornográfico é o que hoje está exclusivamente associado ao consumo e ao
lucro (p.129).
Figura 38 – Plano 357.
Duração Campo Visual Campo sonoro
00:00:11,50 Enquadramento: plano americano
58
em
Juan.
Movimento de câmera: Raccord
59
de
Tons graves,
“nervosos” e
“misteriosos” de
58
É o plano que enquadra a figura humana do joelho para cima.
http://www.fafich.ufmg.br/~labor/cursocinema/paginasemordem/03planoamericano.html , (Acessado em 17
janeiro 2008).
104
movimento de Juan a Enrique em
contra-plano dentro da piscina, de costa.
Iluminação: luz natural.
Cenário: cadeira vermelha, toalha verde,
flores, mesa com forro colorido,
regador, piscina, máscaras de mergulho,
bola colorida.
Ação: Juan tira a roupa para banhar-se
na piscina. Enrique observa-o da água.
Figurino: Juan de cueca. Enrique nu.
Corte seco.
instrumentos de corda.
Assim, igualmente a Zahara, Juan também se coloca como objeto do olhar e de
desejo do cineasta Enrique Goded, que, na condição de homem fatal, anseia por seduzir e,
conseqüentemente, manipular para conseguir o papel de Zahara. Entretanto, enquanto Zahara
demonstra que tem a sapiência que está sendo olhada, Juan finge não saber que está sendo
olhado por Enrique, esse fingimento funciona como sua estratégia de sedução, porque Juan é
um jogador e faz parte de seu jogo de sedução adiar a revelação de seu corpo.
Seguindo as leituras de Santana (2007) a respeito dos filmes do pós-franquismo
que traziam enredos banais com cenas de sexo explícito e sobre os filmes com cenas eróticas
e sexo, mas havendo uma história, e visando causar uma reflexão no espectador referente à
repressão, o autor trata que no segundo grupo:
as temáticas recaem sobre esta mescla envolvendo política, sexualidade,
comportamentos e relações sociais. [...] interessante] observar a questão
da própria sexualidade tratada no campo artístico na Espanha. Ela se revela
na pintura de Velásquez, de Rubens, de Miró e de Picasso. Está no teatro, no
cinema dramático, na paródia, na comédia. Talvez pela enorme repressão
que a religião ao lado da política sempre exerceu sobre os espanhóis,
haja na arte este contraponto que responde sutilmente como reação a tantas
privações. Mesmo no cinema metafórico isto aparece de maneira velada. [...]
quero dizer que a sensualidade faz parte da cultura espanhola muito mais do
que se observa objetivamente. É parte integrante das relações e isso se torna
público nas imagens, no estereótipo da virilidade masculina, no tom de voz,
nas danças flamencas, nas touradas. Os filmes do pós-franquismo não
fizeram nada mais do que colocar de vez esse sentimento nas telas, nas ruas.
Um fator que contribuiu de sobremaneira para que os espanhóis começassem
a se reconhecer neles (SANTANA, 2007, pp. 30-31).
59
Raccords ou passagens de um plano a outro: olhares, movimentos, cortes, fusões ou escurecimentos, outros
efeitos (VANOYE e GOLIOT-LÉTÉ, 2005, p.70).
105
Figura 39 – Plano 358.
Duração Campo Visual Campo sonoro
00:00:04,34 Enquadramento: Close-up na cintura de
em Juan.
Movimento de câmera: panorâmica
vertical
60
ascendente bem rápida até o
rosto de Juan.
Novo enquadramento: primeiro plano.
Angulação: contra-plongée
61
.
Iluminação: luz natural.
Cenário: idem plano 357.
Ação: Juan começa a tirar a cueca, mas,
olha para Enrique fora do quadro.
Figurino: Juan de cueca.
Corte seco.
Tons graves,
“nervosos” e
“misteriosos” de
instrumentos de corda.
Juan e Zahara são vistos em seqüências que possuem semelhança: tiram a roupa,
ficam nus. Nessa seqüência, Juan também sustenta o olhar para si e, nesse caso, a platéia se
reduz a Enrique que, de dentro da piscina (plano 357), nu, o olha, ininterruptamente, enquanto
ele (Juan) vai retirando toda a sua roupa bruscamente, mas, com naturalidade (ao contrário de
60
Movimento de mera a partir de uma posição fixa. O que se movimenta é a câmera que imita o movimentar
de uma ‘cabeça’ virando para ver algo em cima. Disponível em: http://www.proteve.net/movimentos.html ,
(Acessado em 16 janeiro 2008).
61
A câmera filma o objeto de baixo para cima, ficando a objetiva abaixo do nível normal do olhar. Geralmente,
uma impressão de superioridade, exaltação, triunfo, pois faz ‘crescer’ o/a ator/atriz. Disponível em:
http://www.fafich.ufmg.br/~labor/cursocinema/paginasemordem/08contraplongee.html , (Acessado em 17
janeiro 2008).
106
Zahara que se despe com delicadeza), ficando apenas vestido com sua cueca branca. Sobre o
striptease masculino, Keesey e Duncan explanam:
Ao contrário das strippers femininas, as exibições masculinas são menos
comuns nos filmes e, quando aparecem, é normalmente num contexto
cômico que exagera as suas imperfeições ou a extensão de suas proezas. [...]
Como Peter Lehman escreve em Running Sacared: “a representação sexual
do corpo masculino em geral, e do pênis em particular, permanece um forte
tabu cultural, especialmente em qualquer contexto que envolva
homossexualidade ou mulheres olhando, objetivando, avaliando, falando ou
desejando”. Há, contudo, algumas instâncias assinaláveis de encanto natural
e descarado na auto-exposição masculina. Talvez porque ninguém (exceto
nós) está a olhar (2005, p. 97).
Figura 40 – Plano 359.
Duração Campo Visual Campo sonoro
00:00:04,41 Enquadramento: Primeiro plano.
Angulação de câmera: plongée
62
.
Iluminação: luz natural. Reflexos de luz
da água em Enrique.
Cenário: piscina.
Ação: Enrique olhando para Juan do
quadro.
Corte seco.
Barulho da água.
62
A mera filma a pessoa ou o objeto de cima para baixo, geralmente, dando a sensação de ‘diminuição’ de
quem ou do que está sendo filmado. Disponível em:
http://www.fafich.ufmg.br/~labor/cursocinema/paginasemordem/07plongee.html , (Acessado em 17 janeiro
2008).
107
Figura 41 – Plano 360.
Duração Campo Visual Campo sonoro
00:00:02,79 Enquadramento: plano americano.
Câmera fixa.
Iluminação,cenário, figurino: idem
plano 357.
Ação: Juan caminha para a esquerda do
quadro, fingindo não ver Enrique mirá-
lo fora do campo.
Corte seco.
Tons graves,
“nervosos” e
“misteriosos” de
instrumentos de corda.
Enrique e nós (os espectadores do filme) esperávamos que Juan tirasse a cueca
para imergir na água, que faz insinuação para isso. No entanto, quando Juan no plano 358
percebe Enrique olhando-o, lascivamente, como um ‘jacaré’ à espreita da presa (plano 359),
finge não ter percebido o olhar cobiçoso de Enrique e decide não tirar a peça íntima, vestindo-
a, novamente, e saindo ‘desfilando’ como se o cineasta não o estivesse vendo (plano 360).
O corpo de Juan (plano 358) é mostrado como na cena em que Zahara dubla Sara
Montiel, em partes. Entretanto, ao invés do travelling vertical ascendente lento, uma
panorâmica vertical ascendente bem rápida. Assim, toda seqüência de sedução entre Juan e
Enrique se de forma abrupta, visceral. A sensualidade do homem fatal é cheia de ação que
parece enfatizar os músculos trabalhados das personagens, o vigor físico, as atitudes
‘masculinas’. O fato de se mostrar cenas sensuais com água é relatado por Keesey e Duncan
(2005) como algo comum em filmes com ‘mocinhas’ em balneários tomando banho,
iluminadas de forma brilhante e também com homens que aparecem lavando o carro –
atribuição ao masculino.
É notório o jogo de olhares entre as personagens. Todavia, ao contrário de Zahara
cantando, em nenhum momento Juan dirige seu olhar para a câmera, mas diretamente para
Enrique, dessa vez, assumindo um ‘exibicionismo’.
108
Figura 42 – Plano 365.
Duração Campo Visual Campo sonoro
00:00:02,24
Enquadramento: primeiro plano
closes.
Câmera fixa apontada para o céu.
Câmera lenta.
Cenário: céu aberto.
Ação: Juan “voando” pelo quadro
enquanto pula.
Corte seco.
Barulho da água.
Tons graves,
“nervosos” e
“misteriosos” de
instrumentos de corda.
O corpo do homem fatal continua sendo exaltado em partes, como se ele fosse o
‘Super Homem’. A câmera lenta é usada para valorizar o ato de Juan pulando na piscina,
numa posição de câmera inusitada, apontada para o céu realmente transmitindo a noção de
que Juan está voando como um super herói. É Juan quem está em movimento e não a câmera,
é ele quem passa se exibindo pela lente, como se nossos olhos estivessem paralisados em sua
figura. É Juan a personagem ativa, que comanda a ação e articula o desenrolar da trama.
A respeito do homem fatal, Williams (2005) expõe que quanto mais musculoso o
corpo, mais atenção recebe a ‘masculinidade’ do ator, por isso, os músculos para a tela de
cinema são construídos para serem exibidos, demonstrando ‘poder’. Sobre essas figuras
masculinas, Williams continua que eles são assim representados para reforçar sua importância
como homens e de poder sexual para a narrativa erótica, enquanto objetos de desejo.
Em alusão à construção da masculinidade, Oliveira (2004, p. 281) relata que:
109
O ideal moderno de masculinidade representou durante os séculos XVIII,
XIX e parte do XX a imagem mais positiva que a civilização ocidental fez
de si própria. Características como potência, poder, domínio, força, coragem,
atividade, ousadia, valentia, vigor, eficácia, sagacidade, robustez, probidade,
lealdade, firmeza, segurança, solidez, imponência, inteligência, resistência,
[...] além de muitas outras, estiveram freqüentemente associadas ao ser
masculino e foram pensadas como qualidades em si, positivas, desejáveis,
dignas de constarem como aquelas nas quais a própria sociedade moderna
gostava de se (auto) projetar. No pólo oposto as características não eram
nada lisonjeiras; fraqueza, apatia, [...] timidez, comedimento, recato [...]
submissão, ao lado de tantas outras, apareciam, muitas vezes, como
associações automáticas do feminino.
Vê-se, portanto, que a linguagem cinematográfica da película Educação
interage com outras linguagens (fotografia, teatro...), construindo novas linguagens
(linguagem de filme noir), que, por sua vez, sempre uma ação determinada (cenas
realizadas com muita coragem e determinação). E, também, há intenção, pois o autor do filme
não escreveu esse texto aleatoriamente, resultando, deste modo, numa linguagem cujas
normas são destinadas à comunicação.
110
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Só sei que nada sei!” Sócrates. (Citado por
Platão em Apologia de Sócrates).
Desde que assisti Educação no cinema, passei dias relembrando a história. Eu
sempre ouvia falar sobre esse famoso cineasta espanhol, mas pensava que nunca tivesse
assistido a nenhum de seus filmes e, também, naquela época, ainda não me importava em
memorizar qual diretor havia feito o filme tal, nem que tinha um estilo próprio ou uma
trajetória determinada.
Precisava entender o porquê que o filme tanto me intrigava. Talvez pela escola e
colégios onde estudei como relatei no início deste texto dissertativo. Ou, por aquela narração
fora de ordem, as personagens, o final surpreendente... Parti em busca de conhecer a
filmografia almodovariana, dessa vez, em casa, usando outros aparatos tecnológicos: a TV, o
aparelho de DVD, o computador e a internet. Em minha busca, descobri que Almodóvar não
era um estranho e que eu havia assistido vários de seus longas-metragens, sem saber que
dele eram.
Comecei, então, a ler ‘tudo sobre Almodóvar’ em sites, revistas, jornais, cartazes
de filmes, contracapas de DVDs e a conversar com todo tipo de ‘conhecedor de Almodóvar’:
cinéfilos, professores teóricos em cinema, atendentes de balcão de locadora, críticos de arte e
teatro, jornalistas, tietes e até ‘odiadores’ de Almodóvar. Cada um acrescentava algum tipo de
informação, mesmo que, empiricamente.
Namorando Almodóvar, especialmente Educação, concluí que se
intencionasse estudar um filme, traçando uma reflexão de cunho acadêmico, seria necessário
conhecer mais sobre cinema e sua linguagem. Comprei livros que me esclareceram sobre isso,
111
assisti Educação repetidamente e realizei anotações, sempre levantando possíveis
assuntos a serem estudados.
No primeiro momento, assisti ao filme como uma espectadora comum, tendo um
olhar mais superficial, que o filme, naquele primeiro contato, dentro da sala escura para
mim, era uma forma de lazer. Depois, em segunda ordem, fui transpondo, gradativamente, as
barreiras de uma espectadora comum para uma espectadora, com visão de análise.
Tendo optado por focar a análise nas personagens fatais especialmente na figura
de Zahara, e tendo recebido dicas da minha orientadora e da banca de qualificação, fui ao
encontro dos estudos feministas, onde pude conhecer o debate sobre as questões de gênero e
identidade, buscando subsídios da teoria queer. Participando de eventos, congressos e
seminários voltados para os estudos da imagem e de gênero, e tendo ido estudar como aluna
especial na Unicamp em Campinas-SP, estive em contato com pesquisadores da área e com
trabalhos que ampliaram muito meus conhecimentos e enriqueceram esta pesquisa.
Compreendi uma nova dimensão para meu trabalho: o estudo do comportamento
de Zahara e Juan, personagens que subvertem a forma de se visualizar o elemento da narrativa
mulher fatal e refletem o fato de Almodóvar criar tais figuras como pontos reflexivos no
filme.
Zahara não é somente uma travesti que faz uma paródia do feminino, uma
imitação simplesmente, ela é uma personagem contestatória, uma personagem descentralizada
que aparece no ano de 1977 no filme, representando a liberdade do período pós-franquista
vivido pela Espanha naquela época, um momento de mudança, de confronto contra o ‘falso’
conservadorismo da Igreja Católica forte aliada do franquismo na Espanha visto na figura
dos padres corruptos. Uma personagem que representa o espírito de liberdade da Movida
Madrileña, embora Educação não seja um filme sobre esse movimento, mas que possui
tal tema como pano de fundo em vários filmes de Almodóvar. Um espírito de liberdade
sexual, de uso de drogas, de diversão, ao mesmo tempo em que evidencia o falso moralismo
da Igreja Católica espanhola. Por isso, explica-se a exibição da cena em que Zahara comporta-
se de maneira debochada contra o Padre Manolo.
Vejo Zahara também como forma de contestação atual, já que o filme é uma visão
de 2004 e a figura do travesti ainda causa impacto nos dias atuais. No entanto, embora
‘descentralizada’ pelo fato de ser uma travesti, Zahara toma a posição central no filme
enquanto protagonista, já que é o ponto que chama atenção para que se dê a reflexão sobre sua
figura, sobre suas falas. A paródia do feminino que Zahara faz enquanto personagem é em
cima dos clássicos filmes noirs estadunidenses, embora, Almodóvar tenha se inspirado
112
também na mulher espanhola representada por Sara Montiel, a peruca loira de Zahara de
cabelos ondulados e, especialmente, a que ela usa na cena em que canta no palco do Cine
Olympo, Zahara exacerba a questão da paródia, da ‘brincadeira’ em relação às mulheres fatais
dos noirs americanos, tendo em vista que Sara Montiel possui uma cabeleira negra.
Ao parodiar os clássicos noirs, ao contextualizar Zahara em 1977, ano pós-
franquista e em início da Movida, Almodóvar remete aos cineastas espanhóis que faziam
filmes nos anos de 1980 seguindo os padrões de Hollywood, “aproximando e misturando a
linguagem norte-americana com o cinema espanhol” talvez, uma ironia do próprio
Almodóvar que foi sendo conhecido e aceito pelo público estadunidense ao longo dos tempos.
Dessa forma, nos anos de 1980 na Espanha, “... produzir ou assistir a filmes nos moldes
hollywoodianos provocava um efeito imaginário de conexão com um universo de liberdade
política e comportamental” (SANTANA, 2007, p. 23).
Diante do exposto, percebe-se, nitidamente, que a identidade do homem fatal é
noir. Visto em meio às sombras de persianas contrastadas com luzes que passam entre elas e
que relatam que ele tem algo a esconder, ao mesmo tempo em que conferem a Juan um ar de
sensualidade, de ‘fatal’, ou seja, de ser um homem ‘sexy’ – conotação que o termo adquiriu.
Figura 43 Juan em meio às sombras de persianas e luzes que passam entre elas: sensualidade e ambientação
noir.
Na qualidade de mulher, brasileira, heterossexual, vivendo no século XXI, não me
identifico com essa ‘mulher fatal’ representada por Almodóvar que é uma travesti e um
homem. Aliás, acredito que de uma maneira geral aqui de onde escrevo no Brasil, ano de
2008, nós, mulheres, não nos identificamos mais com essa mulher fatal criada pelo olhar
masculino, e não pelo feminino. Nem com as dos clássicos noirs, fruto do imaginário e do
olhar dos escritores de pulp fiction e dos cineastas ‘homens’ da época. Identifico-me com a
questão de Almodóvar ter estudado em colégio católico, assim como suas personagens
113
infantis do filme, colégios que pregavam um ‘conservadorismo’ e um ‘moralismo’ em relação
ao corpo e à imposição do desejo ou de como se vivenciar a sexualidade.
Zahara lembra minha adolescência, quando discordava de tais imposições. Talvez,
daí meu encanto por Zahara e pela fala por ela proferida voltada ao Padre Manolo: “Estamos
em 1977 padre, essa sociedade valoriza mais a minha liberdade do que a sua hipocrisia!”. Esta
fala é como se fosse eu mesma dizendo às freiras e aos padres da minha época de colégio:
“Estamos em 1990, freiras e padres, nossa sociedade tem valorizado mais a liberdade que
temos para sermos donas dos nossos corpos!”.
Aqui, no Brasil, em Goiânia (capital do Estado de Goiás), na sala do cinema do
shopping Bougainville onde assisti Educação, presenciei comentários de espanto ou de
galhofa dos outros espectadores, inclusive, alguns que se levantaram da sala e foram embora
antes do filme acabar, quando presenciaram cenas de sexo entre homens. Além de Zahara,
Juan como homem fatal subverte quando ‘tira’ do elemento mulher fatal o ‘peso’ de ser a
malvada. Nesse caso, não é a mulher a destruidora de corações, a sedutora manipuladora. É
um homem a ‘verdadeira mulher fatal’ da história, que possui as características
‘psicológicas’ mais marcantes de tal elemento narrativo. É o que articula o crime, mente e
seduz, para conseguir êxito em sua meta: ser um grande astro de cinema. “Obviamente
também existem homens perigosamente sedutores hommes fataux para contracenar com as
mulheres” (KEESEY e DUNCAN, 2005, p.49). O exemplo de Educação, em se tratando
de Juan, para contracenar com outros homens sendo que a construção de seu corpo
musculoso importa para intensificar sua força, virilidade e potência.
Da mesma forma que Mattos (2001) relatou diferentes tipos de mulheres que
aparecem nas películas noirs, de acordo com seu parecer, enquadro Zahara como uma travesti
sedutora e sensual, embora tenha chamado essa personagem de ‘fatal’, e tenha ‘merecido’ o
final mais comum e punitivo contra as mulheres fatais: a morte. Portanto, analiso a morte de
Zahara como se ela fosse uma vítima dos padres que a fizeram ‘calar’, numa metáfora que
remete ao tempo da ditadura franquista e que Almodóvar participou como ativista na Movida
Madrileña e continua sendo-o em seus filmes, usando a linguagem cinematográfica, re-
criando discursos através de seu olhar, de sua câmera.
Assim, tudo em Educação ‘fala’: o olhar das personagens, seus nomes, o
cenário, o figurino, a fotografia... Até a forma de se representar as personagens com uma
imagem sexualmente evocativa, para seduzir as outras personagens e nós, os espectadores. E,
aliás, Zahara e Juan conseguiram: seduziram-me!
114
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Produzido por Finanziaria Cinematografica Italiana.
FILMOGRAFIA RECOMENDADA
A FLOR do meu segredo. Direção de Pedro Almodóvar. Espanha, 1995. Intérpretes: Chus
Lampreave; Gloria Muñoz; Imanol Arias e outros. c1995. 1 DVD (102 min), widescreen,
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ATA-me! Direção de Pedro Almodóvar. Espanha, 1989. Intérpretes: Victoria Abril; Antonio
Banderas; Loles Leon e outros. c1989. 1 DVD (97 min), widescreen, color. Produzido por El
Deseo.
CARNE trêmula. Direção de Pedro Almodóvar. Espanha, 1998. Intérpretes: Francesca Néri,
Liberto Rabal, Penélope Cruz e outros. c1998. 1 DVD (114 min), widescreen, color.
Produzido por El Deseo.
DE SALTO alto. Direção de Pedro Almodóvar. Espanha, 1991. Intérpretes: Victoria Abril;
Marisa Paredes; Miguel Bose e outros. c1991. 1 DVD (113 min), widescreen, color.
Produzido por El Deseo.
FALE com ela. Direção de Pedro Almodóvar. Espanha, 2002. Intérpretes: Javier Câmara;
Leonor Watling; Rosario Flores, Geraldine Chaplin e outros. c2002. 1 DVD (112 min),
widescreen, color. Produzido por El Deseo.
KIKA. Direção de Pedro Almodóvar. Espanha, 1993. Intérpretes: Victoria Abril; Peter
Coyote; Rossy de Palma e outros. c1993. 1 DVD (112 min), widescreen, color. Produzido por
El Deseo.
MATADOR. Direção de Pedro Almodóvar. Espanha, 1986. Intérpretes: Antonio Banderas;
Assumpta Serna; Nacho Martinez e outros. c1986. 1 DVD (90 min), widescreen, color.
Produzido por El Deseo.
MULHERES à beira de um ataque de nervos. Direção de Pedro Almodóvar. Espanha, 1987.
Intérpretes: Guillermo M. e outros;. c1987. 1 DVD (95 min), wid., color. Prod. por El Deseo.
QUE fiz para merecer isto? Direção de Pedro Almodóvar. Espanha, 1984. Intérpretes:
Carmem Maura; Angel de Andrés Lopes; Chus Lampreave; Verónica Forqué; Kiti e outros.
c1984. 1 DVD (102 min), widescreen, color. Produzido por El Deseo.
TUDO sobre minha mãe. Direção de Pedro Almodóvar. Espanha, 1999. Intérpretes: Augustín
Almodóvar, Cecília Roth, Eloy Azorín e outros. c1999. 1 DVD (106 min), widescreen, color.
Produzido por El Deseo.
VOLVER. Direção de Pedro Almodóvar. Espanha, 2006. Intérpretes: Penélope Cruz, Carmen
Maura, Lola Dueñas, Blanca Portillo, Yohana Cobo e outros. c2006. 1 DVD (121 min),
widescreen, color. Produzido por: Canal+ España, El Deseo S.A., TVE, Ministerio de Cultura.
119
ANEXO
1 DVD, contendo o filme Educação (versão em espanhol) e Sara Montiel cantando no
filme Noches en Casablanca.
Livros Grátis
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Milhares de Livros para Download:
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