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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
SIMONY JIN
O PAPEL DAS EMOÇÕES NO PROCESSO COGNITIVO
CUIABÁ-MT
2009
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
SIMONY JIN
O PAPEL DAS EMOÇÕES NO PROCESSO COGNITIVO
CUIABÁ-MT
2009
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SIMONY JIN
O PAPEL DAS EMOÇÕES NO PROCESSO COGNITIVO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade
Federal de Mato Grosso como requisito para a
obtenção do título de Mestre em Educação na
Área de Concentração Teorias e Práticas
Pedagógicas da Educação Escolar, Linha de
Pesquisa Formação de Professores e
Organização Escolar.
Orientador: Prof. Dr. Cleomar Ferreira Gomes
CUIABÁ-MT
2009
4
J61p
JIN, Simony.
O papel das emoções no processo cognitivo. / Simony Jin -
Cuiabá (MT): A Autora, 2009.
84 p.; 30 cm.
Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal de
Mato Grosso. Instituto de Educação. Programa de Pós-Graduação em
Educação.
Orientador: Profº. Dr. Cleomar Ferreira Gomes.
Inclui bibliografia.
1. Educação. 2. Cognição. 3. Emoção. I. Título.
CDU: 37:159.9
5
6
Para Itanei, meu companheiro desta
grande jornada chamada vida.
AGRADECIMENTOS
Esta dissertação é fruto de muitas discussões entre amigos e de algumas leituras
realizadas ao longo da minha vida acadêmica e pessoal. Em primeiro lugar, agradeço ao
meu mestre da vida Jehu Thíbaro da Silveira, que cumpriu ao meu lado o papel de pai,
irmão, companheiro e mestre. Depois dele, agradeço à minha mãe Bádhia Lemes da
Silva pelo exemplo de vida e de coragem. Agradeço também ao meu companheiro
Itanei Regis Sauder, que nas horas de ansiedade, de intuições e lampejos, sempre esteve
ao meu lado para apoiar e escutar. Devo também gratidão aos meus amigos, João
Manoel Pasqual Ferrari, Maria de Fátima Sauder, Marcus Jehu Jin Octaviano, Cláudia
Cunha Almeida, Janaina Castrillon Mendes e Viviane Donatoni, pelo apoio emocional e
intelectual. Enfim, agradeço também aos meus mestres acadêmicos José Carlos Leite,
por me deixar desenvolver uma escrita livre e sem medos e ao Cleomar Ferreira Gomes,
por tornar mais leve este processo de titulação.
RESUMO
Este trabalho tem por objetivo abordar o papel da emoção no processo cognitivo a partir
de uma pesquisa teórica acerca das concepções recorrentes sobre o tema. No entanto,
estabelecerá relações entre diversos temas, tendo como um subtema a relação mente-
corpo e três de suas variações segundo nosso entendimento relação emoção-razão,
conhecimento-vida e teoria-prática. Ao tentar traçar uma perspectiva do corpo no
processo cognitivo, acabamos por estabelecer relações intrínsecas entre emoção e razão,
sendo a cognição vista através do conceito espinosiano de afecções.
A partir de teóricos como Espinosa, Jung e Damásio, concluímos que o conhecimento
depende das emoções, ele é gerado a partir das afecções do corpo. O aspecto racional do
conhecimento é apenas uma parcela ínfima deste processo, que se ramifica de forma
subterrânea gerando várias perspectivas, o “eu” são muitos. Sendo assim, alguns
aspectos sempre ficam escondidos ou guardados no inconsciente, não temos acesso
direto a todas as formas como somos afetados pelo objeto.
Portanto, conhecer sempre implica em autoconhecimento. Assim como a aparente
racionalidade por trás de nossas predileções teóricas ou nossas conclusões ao final de
um encadeamento de idéias, nunca está isenta deste outro aspecto, o emotivo.
Emoção e razão não são contrários, mas complementares já que a razão parte da
emoção.
Palavras-chave: Cognição, emoção e educação.
ABSTRACT
This work has for objective to approach the paper of the emotion in the cognitive
process from a theoretical research concerning the recurrent conceptions on the subject.
However, it will establish relations between diverse subjects, having as one subject the
relation mind-body and three of its variations - according to our agreement - relation
emotion-reason, theory-practical knowledge-life and. When trying to trace a perspective
of the body in the cognitive process, we finish for establishing intrinsic relations
between emotion and reason, being the cognition seen on the espinosiano concept of
affection. From theoreticians as Espinosa, Jung and Damásio, we conclude that the
knowledge depends on the emotions; it is generated from the affection of this body. The
rational aspect of the knowledge is only one lowermost parcel of this process, it if it
ramifies of underground form generating some perspectives, I” are many. Being thus,
some aspects, always are hidden or kept, in the unconscious one, we do not have direct
access to all the forms as we are affected by the object. Therefore, to know always
implies in self-knowledge. As well as the apparent rationality for backwards of our
theoretical predilections or our conclusions to the end of a chaining of ideas, never she
is exempt of this another aspect, the emotion. Emotion and reason are not contrary, but
complementary, since the reason has left of the emotion.
Key-words: Cognition, emotion and education.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO -----------------------------------------------------------------
CAPÍTULO I: O Abstrato e O Sensível--------------------------------------
CAPÍTULO II: O Frankstein Cartesiano-------------------------------------
CAPÍTULO III: Afecções – Uma Leitura Espinosiana--------------------
CAPÍTULO IV: A Psicologia do Inconsciente------------------------------
CAPÍTULO V: Damásio e os Precursores Biológicos da Consciência--
CAPÍTULO VI: Outras Teorias Acerca da Cognição----------------------
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Compondo Idéias --------------------------
REFERÊNCIAS ----------------------------------------------------------------
10
19
29
38
50
60
68
75
82
10
INTRODUÇÃO
“No descomeço era o verbo. Só depois é que veio o
delírio do verbo. O delírio do verbo estava no começo, lá,
onde a criança diz: eu escuto a cor dos passarinhos. A
criança não sabe que o verbo escutar não funciona para
cor, mas para som. Então se a criança muda a função de
um verbo, ele delira. E pois. Em poesia que é voz de
poeta, que é a voz de fazer nascimentos - O verbo tem
que pegar delírio.” (Manoel de Barros, 1993)
ste trabalho tem por objetivo investigar o papel das emoções no
processo cognitivo a partir de uma pesquisa teórica acerca das
concepções recorrentes sobre o tema. No entanto, estabelecerá relações
entre diversos temas, tendo como um subtema a relação mente-corpo e três de suas
variações segundo nosso entendimento relação emoção-razão, conhecimento-vida
e teoria-prática.
Investigar o processo cognitivo implica em trabalhar o conceito de mente, sendo
a cognição um aspecto desta. Este trabalho relaciona-se com as questões do problema
mente e corpo pelo fato de dependendo do que considerarmos a mente, algo material,
imaterial ou ambos, é o que define o caminho que devemos traçar para entender a
cognição. Dentro da história do pensamento ocidental, a mente humana sempre foi
motivo de preocupação entre religiosos, filósofos e, mais tarde, entre cientistas.
E
11
Considerada por muito tempo apenas em seu aspecto racional e consciente, a
mente, em sua capacidade de pensar e julgar, ainda hoje é vista como algo que define o
ser humano.
A nossa pesquisa, tendo em vista o seu interesse de entender o aspecto cognitivo,
não se separa desta preocupação, mas tenta buscar, nas diversas resposta dadas a esta
questão, uma convergência que leve em conta as emoções e o corpo, pois até o presente
momento, em todas as teorias que serão trabalhadas no decorrer do texto, nada mostrou
incoerente aceitar que as emoções e a capacidade de senti-las são o que definem o
humano.
A questão de ressaltar a emoção e com ela o corpo surge pelo fato de que
atualmente as questões relacionadas à mente mudaram um pouco o seu percurso. As
ciências desenvolveram-se de tal forma que surgiram expectativas acerca da solução da
questão da mente humana. Ela deixou de habitar um domínio obscuro e sagrado para ser
pesquisada em todos seus aspectos, graças a novos recursos tecnológicos, pelas áreas da
Neurociência, Ciência Cognitiva, Psicologia, Biologia e até mesmo a nova área da
Filosofia da Mente.
Com toda esta dessacralização da mente, foi possível formular novas questões,
como: a possibilidade de replicação da mente em máquinas; desvendar como processos
cerebrais relacionam-se a processos mentais; como se desenvolve a própria consciência;
como lesões cerebrais provocam alterações nas manifestações da mente, dentre outras.
Entretanto, até o atual momento, nenhuma dessas áreas conseguiu de fato responder a
questão do que seja a mente humana, mas as tentativas nos revelam algumas pistas.
Na área da Ciência Cognitiva, por exemplo, a tentativa de comparação entre o
cérebro humano e a máquina fracassou por diversos motivos, entre eles porque, apesar
de a máquina simular o pensamento, ela se torna incompleta, pelo fato de atender
apenas ao aspecto de raciocínio lógico-matemático, como encontrar padrões, calcular,
selecionar informações por filtros, entre outras funções.
Um programa de computador pode até mesmo selecionar, através de padrões
programados, obras de arte, isso porque é possível encontrar padrões de estética e
repassá-los a um programa. No entanto, o fracasso disso tudo se deve ao fato de não
haver consciência ou sentimento em relação à beleza de uma obra de arte, como se um
computador pudesse sim, calcular ou jogar uma partida de xadrez melhor que um
humano, mas para reproduzir a mente humana é necessário mais que isso. É neste ponto
que entra o aspecto ou o papel das emoções.
12
Como se o fato de pintar uma obra de arte ou reconhecer uma bela música, não
dependesse apenas de reconhecer padrões, mas essencialmente de sentir, imaginar,
inventar, sentir-se tocado por uma coisa ao ponto de conhecê-la. Para tanto, parece que
até o momento a carne e as emoções demonstraram ser indispensáveis para a
reprodução da mente humana.
Apesar destas considerações, ainda é comum quando nos referimos à cognição,
separar em outra dimensão a esfera emotiva, assim como é comum, ao se falar em
mente ou seus aspectos, negar a participação ativa do corpo ou restringi-la apenas ao
cérebro.
Dentro da área da educação é possível perceber teorias, oriundas
principalmente do campo da psicologia, que levam em conta as emoções e que as
relaciona com a esfera cognitiva e afetiva, como é o caso do conceito de afetividade,
que é uma tentativa de aproximar esses dois domínios, a saber, o cognitivo e o afetivo.
Contudo, ainda podemos constatar, na esfera prática, dentro das salas de aula,
métodos cartesianos de ensino que separam a realidade em disciplinas, fragmentando
apenas teoricamente a experiência de mundo. Não é difícil entender o porquê de o
conhecimento transmitido em sala parecer, por vezes, tão distante da experiência
vivencial do dia-a-dia.
Além disso, ainda permanece a velha relação em que o professor fala e o aluno
escuta, como se a informação transmitida entrasse, através de um tubo, direto na cabeça
do aluno e a compreensão dependesse apenas da capacidade de armazenar esses
conteúdos.
Isso, pelo que podemos constatar, é uma herança da forma como o conhecimento
tem sido visto durante séculos e, mais recentemente, na forma exagerada da comparação
com o computador, como se a sala de aula fosse feita de muitas mentes e raciocínio,
com o custo progressivo da supressão do corpo e das emoções. Veremos no decorrer do
texto, que as emoções não estão em um domínio diferente que se relaciona com a
cognição, e sim, que a própria emoção provocada por um objeto pode ser considerada a
base sobre a qual a cognição se realiza.
A importância de discutir como ocorre o processo cognitivo é, de fato,
fundamental para educação, tanto na produção de didáticas, como para a discussão de
currículos, planos, entre outros. Ao perceber a atual dificuldade, tanto da educação
como de outras áreas, de se estabelecer uma relação entre conhecimento e vida, emoção
13
e razão e teoria e prática, faz-se necessário, antes de tudo, rever as concepções que
serviram de fundamento para este atual estado.
Por isso, este trabalho propõe, através de uma pesquisa bibliográfica, identificar
ao longo da história do pensamento ocidental alguns pontos que nos ajudarão a
esclarecer de que forma se estabeleceu uma dicotomia entre razão e emoção e,
consequentemente, entre mente e corpo. Além de expor alguns desses pontos, serão
apresentados, no decorrer do trabalho, algumas teorias que se chocam contra essas
dicotomias, como em um caminho inverso elas propõem outras formas de se pensar a
mente e seus correlatos. Referimo-nos à teoria de Damásio (2001), que vê nas emoções,
mais propriamente na capacidade de senti-las, o início da consciência. Também à teoria
de Espinosa (1991), que tem no conceito de afecções
1
a base do conhecimento, ou
ainda, na teoria de Jung (1964), a qual, com sua definição de inconsciente, o revela
como uma parcela da mente capaz de pensar e julgar de uma forma diferente do
consciente reproduzindo arquétipos
2
.
É importante ressaltar que reavaliar as estruturas teóricas que regem nossa
sociedade é reavaliá-la epistemologicamente, pois é a partir dessas concepções que
concebemos a realidade e travamos relações com ela, como uma lente que se coloca
tanto no macrocosmo (civilizações, sociedade), como no microcosmo (o homem e suas
relações).
Parece-nos que depois da tentativa do homem, através da ciência, de desvendar
os mistérios do mundo e do universo, depois da descoberta de que uma mente que
olha através desta lente que pretendia ser objetiva, voltamos a tentar conhecer a nós
mesmos e o próprio mistério passou a ser esta mente que indaga.
A dicotomia entre mente e corpo não se limita apenas a uma separação da mente
e do biológico, mas, ao se estabelecer esta separação, fez-se, concomitantemente, uma
separação das esferas do pensamento e da vida, assim como da emoção e da razão.
Sobre o corpo, restou uma visão de aprisionamento e ilusão, como veremos ao longo do
texto, é preciso afastar-se ao máximo das paixões e da ilusão dos sentidos para alcançar
um conhecimento seguro e objetivo.
1
Afecções: “as afecções são imagens ou marcas corporais e suas idéias englobam ao mesmo tempo a
natureza do corpo afetado e a do corpo exterior afetante.”. (DELEUZE, 2002, p. 55).
2
Arquétipos na concepção de Jung são tipos de esquemas com uma carga simbólica que podem se
manifestar através dos sonhos. Esses esquemas são produzidos pelo inconsciente e sempre revelam algo
que ele tem a nos dizer.
14
Voltando para uma das bases do pensamento ocidental, a Razão, percebemos
que além da dificuldade apresentada na relação entre conhecimento e vida, também a
atual dificuldade do conhecimento de si e do outro, resultado de uma visão que valoriza
demasiadamente a razão, expondo as pessoas a um estado de recalque das emoções, a
tal ponto, que hoje a maior parte das doenças ditas modernas é de origem psicológica, o
que fica evidenciado na freqüência que este tema aparece nas atuais pesquisas
vinculadas aos meios de comunicação: o desenvolvimento e classificação de doenças
como stress, transtornos obsessivos compulsivos (TOC), fobias, entre outros.
As neurociências também influenciam neste aspecto ao considerar uma equação
equivalente entre mente e cérebro ou ao tentar descrever a mente e seus aspectos em
termos objetivos, construindo assim, uma imagem do corpo como “máquina perfeita”.
Ao fazer isto, as neurociências tentam eliminar os aspectos subjetivos do pensamento,
assim como as questões psicológicas, ao ponto de acreditarem que um dia o manual da
psicologia será transcrito para o da neurociência.
Sobre este assunto, podemos averiguar no uso excessivo de remédios, como
pílulas da felicidade ou “reguladores” emocionais, um sintoma desta visão do corpo
como máquina, como se a questão fosse resolver um simples defeito de química
corporal. Para Luiz Felipe Ponde (2007 p. 61): As neurociências tendem a destruir o
mercado cognitivo das psicologias mais soft e especulativas, basta vermos a fúria dos
psicofármacos desenhando a felicidade bioquímica no horizonte de nossos
adolescentes.”.
Para Jung (1964) as consequências da repressão do inconsciente, assim como a
perda da capacidade do homem moderno de se deixar afetar por imagens ou símbolos
oníricos, atrofiaram sua comunicação com o inconsciente, causando, desta forma,
diversas reações, por estar a mercê de forças que desconhece.
A negação desta esfera corporal nos levou a um sintoma de estranhamento do
corpo, é avaliar que entre as mulheres o problema de câncer de mama poderia ser
minimizado com uma simples avaliação de toque. No entanto, desconhecemos nosso
próprio corpo. Apesar de não serem estas as questões que serão trabalhadas no texto,
elas se relacionam com nosso trabalho, porém, visto a amplitude das questões ligadas à
temática do corpo, resolvemos nos ater apenas àquelas que dizem respeito ao processo
cognitivo e como as teorias acerca do tema estão enxergando este processo.
As dificuldades expostas acima têm sua origem, a nosso ver, na dicotomia
lançada entre mente e corpo, que separou também razão e emoção, assim como a esfera
15
de vivência da esfera teórica. O ponto em que queremos chegar é abrir um leque de
novas propostas, elaboradas por diversas áreas, que quebrem esta dicotomia, lançando
sobre o homem e sua dimensão corporal e afetiva, uma atenção necessária para
recuperar os prejuízos de tantos séculos de negação.
Também no decorrer de nossas pesquisas, deparamo-nos com outras questões
relevantes sobre o tema mente e corpo, como por exemplo, qual seria a exata natureza
da relação mente-corpo. Assim entramos em um ramo aparentemente recente da
filosofia, a Filosofia da Mente, “aparentemente”, porque estas questões não são recentes
dentro da filosofia, sendo motivo de pesquisa e discórdia de renomados pensadores
talvez mais diretamente desde Descartes séc. XVII. Vale ainda destacar, que o motivo
de nossa pesquisa foi justamente o encontro com as teorias relacionadas à temática
mente e corpo, ao perceber a influência das questões levantadas por estas no modo
como percebemos o processo cognitivo.
Dentro destas questões levantadas, por exemplo, pelas ciências cognitivas,
uma que chama nossa atenção, que é a possibilidade da replicação do fenômeno da
mente ou consciência em máquinas (A.I.). Se não nada de imaterial no fenômeno da
mente, como uma essência ou alma imortal, é possível que um dia depois de evoluída a
neurociência se replique este fenômeno em peças de silício. Pois bem, depois de chegar
até altos degraus do materialismo, voltam-se alguns.
O problema está em ao analisar as pessoas e suas relações, assim como sua
intensa atividade interior (psíquica), algo sempre fazia soar falso esta afirmação.
Olhando para a capacidade humana de gerar sentimentos complexos e graças a eles,
atitudes igualmente complexas, algo faz pensar que a carne e propriamente este
conjunto que é o corpo tenha um papel fundamental para o desenvolvimento desta
capacidade, que é pensar. No entanto, algumas questões da filosofia da mente apesar de
parecerem materialistas, são na verdade um tipo de metafísica contemporânea que se
afasta igualmente de nossa realidade sentida e vivida.
Quando começamos a humanizar a máquina, não problema, talvez seja até
um movimento natural do ser humano, no entanto, quando o inverso acontece, quando
começamos a maquinizar o homem, talvez nisso, esteja um sintoma.
No momento em que visualizamos a história do pensamento ocidental, podemos
ver também nela uma parte, quase que excluída, mais ou menos indizível, que perpassa
o processo de aquisição do conhecimento. Podemos perceber que também nesta
história, uma busca de sentido, uma busca de adaptação através do pensamento, assim
16
como um processo também inconsciente, rico em mitos e arquétipos que guiaram e
ainda guiam nossas formas de conceber ou pensar a realidade. É justamente este o ponto
de encontro deste trabalho, é neste aspecto do processo cognitivo que pretendemos
alcançar e se isso não for possível, pelo menos apalpá-lo através da escrita.
Colocada essa possibilidade de replicação da mente humana em máquinas,
poderíamos nos atentar como essa comparação entre mente e máquinas ou computador
reflete no psicológico dos educadores. Se de fato a intenção é replicar operações de
raciocínio e se esse realmente fosse o ponto fundamental para a compreensão do
processo cognitivo, não estaríamos tão longe de alcançar esse objetivo que o
computador é capaz de muitas destas operações. Porém, se atentarmos para o que
consideramos razão irá constatar-se que ela se coloca mais como um conceito que se
forma em torno de privilegiar um aspecto da mente humana. E a nossa capacidade
imaginativa, nossas emoções, elas participam deste processo ou razões para
negligenciá-las?
Bem, se a emoção participa da aprendizagem, a pessoa precisa ser “afetada” pelo
conhecimento para compreendê-lo. Então, seria muito mais difícil o desafio de fazer
máquinas sentirem para depois atingirem consciência ou quem sabe, como vem
anunciando o cybercientista Kewin Warwick (Fantástico exibido em 12/08/2007), fazer
um chip que não “baixem dados” no nosso cérebro, mas que ainda o faça processar e
causar alguma emoção acerca da informação recebida.
A recorrente identificação do cérebro com o computador pode levar-nos a erros.
Em algumas vertentes que acreditam que para haver pensamento precisa linguagem,
segundo a crítica de James H. Fetzer (1999), sendo a linguagem um sistema de
símbolos, infere-se que se os computadores são capazes de manipular símbolos, logo
eles pensam.
“Essa concepção une as idéias de uma Máquina Turing, de um
sistema formal automatizado e de sistema simbólico físico com
a noção de que entender a língua natural envolve a habilidade de
manipular sistemas de símbolos e que o Teste de Turing pode
fornecer um teste da existência de coisas que pensam”.
(FETZER, 1992 p. 69-70).
O que consideramos neste caso como atributo do pensamento é a capacidade
de manipular símbolos, ou de linguagem. No entanto, apenas um aspecto do fenômeno
mental está sendo levado em conta. Posta nossa experiência subjetiva, ou a de crianças
17
que ainda não detêm essa capacidade de manipular esses símbolos, podemos concluir
duas coisas: ou que elas não pensam ou que para haver pensamento o precisamos
necessariamente da linguagem.
Neste caso, a noção de linguagem encontra-se reduzida à noção de língua
como uma manipulação de mbolos, no entanto, a linguagem vai além desta definição.
É pensarmos na plurilinguagem existente e que não somente a linguagem verbal
ou escrita, existem infinidades de outras formas de se comunicar como um simples
gesto, um olhar ou mesmo a música.
Não estamos neste caso, o destacado acima, privilegiando apenas um aspecto
da mente humana, ou seja, a nossa racionalidade. Em relação à capacidade de se
comunicar sem palavras, a linguagem corporal, estaria ela também contemplada nesta
reflexão. O caso que iremos apontar é justamente uma reflexão que não dependa
exclusivamente de racionalidade e que esta racionalidade é apenas um aspecto do
fenômeno mental, construída como conceito ao longo da história. Aliás, esta capacidade
modular da linguagem que em um momento da história é privilegiada como uma
linguagem matemática, capaz de ser objetiva, é apenas uma parte desta discussão.
Outro ponto de reflexão sobre o caso da máquina pensar, por manipular
símbolos, é a resposta dada a esta hipótese (a do “teste de Turing”), resposta esta
denominada teoria do “quarto chinês”, idealizada por John Searle (1996). Em seu
argumento, Searle nos convida a imaginar o caso de uma pessoa que se encontra dentro
de um quarto, ela não tem contato com nenhuma pessoa. Nesta hipótese, outra pessoa
do lado de fora entrega a ela uma espécie de instrução que a ajuda a manipular
caracteres da língua chinesa. Sendo assim, podemos formular perguntas em chinês e
verificar que a pessoa dentro do quarto se comunica em chinês. No entanto, nesta
hipótese, a pessoa dentro do quarto não fala chinês, ela apenas utiliza das instruções
para manipular os caracteres da língua, mas ela não compreende a língua.
Este é um ponto interessante para discutir, apesar de tudo ser fruto da
imaginação, podemos perceber nesta hipótese que a compreensão é um nível a mais do
pensamento. Posso passar uma lista de caracteres, formar palavras, mas se de alguma
forma esses caracteres não fizerem algum sentido para mim, não posso afirmar que
compreendo, que estou entendendo. Podemos remeter esta hipótese ao caso do processo
de alfabetização, no qual uma criança pode manipular as palavras sem que elas façam
algum sentido para ela e, neste caso, não podemos afirmar que ela sabe ler ou escrever
de fato ou podemos?
18
Por este motivo, insistimos que a própria história do pensamento ocidental
pode nos dar pistas de como ampliar nosso horizonte na identificação de outros aspectos
da cognição. Sendo assim, o primeiro capítulo deste trabalho intitulado “O Abstrato e o
Sensível” consiste em apresentar alguns pontos do contraste da passagem do mito à
razão, assim como apresentar a recorrência deste contraste, razão e emoção e
conhecimento e vida, presentes na Idade Média e depois no começo da Modernidade.
No segundo capítulo “O Frankstein Cartesiano”, como o próprio nome
sugere, será trabalhado uma parte dos fundamentos da dicotomia lançada por Descartes
entre mente e corpo ou corpo e alma, em seguida iremos ver como essa questão está
sendo re-elaborada nos dias de hoje.
No terceiro capítulo apresentaremos a teoria de Espinosa, contemporâneo de
Descartes, mas que, no entanto, põe o corpo como fundamento da alma.
O quarto capítulo “A Psicologia do Inconsciente” terá como objetivo
introduzir em nossa discussão os conceitos de inconsciente e arquétipo.
O quinto capítulo também tem como objetivo lançar a teoria de Damásio
enriquecendo a compreensão do desenvolvimento da consciência.
O sexto capítulo irá introduzir algumas associações com outras teorias, como
a de Maturana e Varela (2001), entre outros.
Enfim, o último capítulo é dedicado à conclusão, onde tentaremos relacionar
o ponto de convergência entre essas teorias e o nosso objetivo, que é entender no
processo cognitivo o papel das emoções.
19
CAPÍTULO PRIMEIRO:
O ABSTRATO E O SENSÍVEL
“O mundo é o caos. A gica do mundo está em
nós, não no mundo”. (SANTOS, 1999 p. 30)
20
Este capítulo tem por objetivo traçar alguns pontos dentro da história do
pensamento ocidental que contribuíram para a negação do aspecto emotivo do
pensamento, assim como a participação do corpo no mesmo. O Abstrato é usado aqui
para ilustrar essa construção, através do discurso, de uma abstração da realidade. Em
alguns momentos, podemos perceber que esta tentativa de abstrair da realidade
conceitos e idéias, acaba por construir um mundo paralelo à realidade concreta que, no
entanto, muda de direção, pois, ora este paralelo é considerado na sua integridade
simbólica e mágica, ora é considerado de forma racional e objetiva.
Sendo assim, o sensível coloca-se como a experiência dos sentidos e das
sensações provocadas pelo corpo, como um portal de acesso ao mundo mais verídico e,
por vezes, fruto de desconfiança, pelo fato de acreditar-se mais na idéia ou conceito de
uma coisa do que na própria coisa ou no modo como ela nos afeta. No entanto, não se
trata de um confronto entre a idéia e a experiência, mas de analisar a supressão do corpo
e das emoções ou, como já anunciado, sua negação.
Desde as primeiras civilizações, o homem sempre precisou de explicações
para poder entender, e sendo assim, trabalhar a realidade, como se o desenvolvimento
da consciência tivesse produzido uma nova forma de adaptação e com ela uma
necessidade, a necessidade de dar sentido. As primeiras formas de explicação, de
tentativa da compreensão humana, se revelam primeiramente num saber mitológico ou
religioso. Parece-nos que uma necessidade, quase adaptativa, de dar um sentido às
coisas, talvez um fator explicativo. O homem preso ao seu grande cérebro, produto de
uma evolução, se vê desde sempre ligado a uma vontade de entender.
Os primeiros grandes mestres na arte de fornecer essas explicações não têm
registros ao certo, mas podemos imaginar que talvez fosse quase um processo coletivo,
de histórias bem contadas, reforçadas e melhoradas pelo tempo. O fato é que para
conviver em um mundo dado, cheio de forças misteriosas e perigosas, este pequeno
grupo imaginário teve não de explicar sua existência, mas também dar um sentido a
ela e ao mundo a sua volta, talvez até mesmo numa necessidade de organização.
Grande parte dessas histórias surge da própria observação da natureza, que
juntamente com a observação dos astros, forneciam elementos explicativos, tanto na
compreensão da agricultura, da caça ou da pesca, como também, nas relações dos
homens entre si ou entre esse mundo dado. O conhecimento coloca-se desde sempre
21
como um conflito com essa realidade, através dele, o homem pretende dar sentido às
coisas, traçar leis e padrões, mas isso não significa que o mundo seja dotado deles.
Sendo a nossa cultura influenciada pelas origens do pensamento grego,
analisaremos neste começo a mudança dos mitos como formas de explicações para o
discurso racional.
É no período arcaico que temos a formação das cidades-estados, a Grécia
devido a sua geografia não se fundou na agricultura, mas sim, no comércio e na
expansão marítima, o que levou à introdução da moeda, a reinvenção da escrita, e com
ela, as leis. Neste contexto nasce a filosofia, entre o final do período arcaico e começo
do clássico, onde temos a expansão e o “auge” da cultura grega. Os mitos, assim como
as lendas retratadas em poemas, não servem mais como sustentáculo para esse novo
mundo que se abre, ao contrário, porque, prende o homem ao submetê-lo a deuses e
mestres da verdade. O pensamento racional não surge como um salto imaginário na
cultura grega, mas são frutos de algumas mudanças já citadas acima.
A escrita fixa a palavra para além de quem a profere, não se faz assim necessário
um dom divino para dominá-la. Com a expansão do comércio e a criação das cidades-
estados nasce a lei escrita, Drácon, Sólon e Clístenes são os primeiros legisladores. A
moeda simboliza tanto um artifício racional como uma convenção humana, uma noção
abstrata de valor.
Se antes havia a figura do poeta, inspirado pelas musas, como mestre de
verdade, agora a polis se faz pela autonomia da palavra, qualquer um torna-se apto para
proferi-la. No entanto, não é qualquer discurso que se fixa como verdade, mas um
discurso dotado de coerência e de racionalidade.
Em primeiro lugar, essa racionalidade deve se afastar do outro que representa
seu contrário, ou seja, da autoridade representada pelos mitos e para tanto, ele deve ser
passível de contestação. Neste sentido, os mitos fazem parte de uma realidade que é
apenas sentida, mas não pensada, a filosofia surge como problematização e discussão
dessa realidade. Assim também, uma nova concepção de virtude aparece, uma virtude
política, voltada para o ideal de democracia, não mais guiada pela figura do herói.
A razão não pretende apenas bem conduzir os cidadãos, mas também tem a
pretensão de alcançar uma universalidade através do discurso. Francis Wolff (1996 p.
81) aponta dois tipos de universalização, a universalidade objetiva (fundando o
principio da coerência na origem das demonstrações matemáticas) como com a
22
universalidade subjetiva (fundando o principio de isocrítica na origem dos
procedimentos da prova judiciária)”.
Na primeira temos a origem de uma cientificidade que se fundamenta no
principio de ser passível de demonstração e de comprovação, mas também segue o
principio do segundo, o de ser passível de contestação. O discurso racional, só o é
assim, se admitir outros discursos contrários e rivais.
No entanto, esta tentativa de universalização já se constitui como uma forma de
organizar, de impor uma ordem e uma harmonia no caos percebido pelos sentidos, esta é
uma das questões mais recorrentes entre os pré-socráticos, como conciliar o uno e o
múltiplo.
Como, então, construir um conhecimento seguro, se a todo o momento, nossos
sentidos nos contradizem, ou afastamos o perigo do corpo e das emoções causadas tanto
pelos sentidos como também pela vivência, ou mergulhamos nele e tentamos criar
padrões tanto para avaliá-los como também para organizá-los. A uns se dedica o mundo
das idéias a outros a realidade das coisas corpóreas e terrenas. Porém, nos dois casos
subordina-se o real ao pensamento racional.
Devemos aqui ressaltar, além da característica racional do discurso, a condição
de verdade dada à palavra em relação a uma realidade sensível. O próprio discurso
entendido como uma abstração, se respeitada todas as condições de racional, pode ser
mais verdadeiro do que a própria realidade sensível. Talvez esteja aqui a brecha para a
criação de um mundo “virtual”, possibilitado pela palavra e consentido pela noção de
razão.
Podemos verificar como foi possível teorias como a de Platão (1991) que na
realidade concreta um mundo de aparências, distinguindo assim duas realidades, uma
que ele denomina de Mundo Perfeito, a das idéias perfeitas, como o conhecimento
matemático e o Mundo das Aparências, como já mencionado, a realidade acessível
pelos sentidos, sem uma prévia reflexão. Nesta última estariam presentes as coisas
corruptíveis, ou seja, passiveis de mudanças, no Mundo perfeito encontraríamos as
essências ou as coisas que permanecem idênticas a si mesmas.
Podemos verificar nas idéias de Platão a tentativa de ordenar o real, uma busca
de equilíbrio onde as contradições se eliminem. Ora, o mundo é feito delas e a negação
da fluidez presente nas coisas é justamente o que faz acreditar que a transitoriedade do
corpo é um mal a ser eliminado. No aspecto epistemológico é como se houvesse uma
verdade a ser alcançada e que, no entanto, se contradiz o tempo todo. A realidade
23
humana é a única passível de se conhecer, que estamos sempre percebendo pelo
ponto de referência humano, não sendo possível afastar-se de si mesmo.
Antes de Platão, nos pré-socráticos, entre eles um pensador que podemos
considerar um filósofo da vida e do corpo, Heráclito (1991 p.56) que afirma: “O
combate é de todas as coisas pai, de todas rei, e uns ele revelou deuses, outros,
homens; de uns fez escravos, de outros livres”. A busca do equilíbrio desta luta não é
senão uma busca de paz em meio à guerra interior, pois é preciso perceber que a vida é
feita de combates. Dentre estes podemos afirmar que a idéia que prevaleceu, aquela que
falou mais alto no coração do homem neste respectivo momento histórico foi a de
Platão. A razão torna-se como uma lei que impõe aos sentidos a percepção de
homogeneidade e medida, medida esta bastante humana.
A esta medida devemos a realização de todo o avanço tecnológico e racional à
natureza, entidade a ser dominada, que tem o seu “ápice” na Revolução Industrial e que
nos dias de hoje nos impõe desafios perante o mundo da internet e outros meios de
comunicação que tornam ainda mais virtuais nossas formas de se relacionar com a
realidade propriamente dita.
Mas quando falamos em razão, a que nos referimos? A um tipo de discurso que
nasce na Grécia? Ou a uma capacidade de julgar? Segundo Francis Wolff (1996) estes
dois tipos de razão nasce na Grécia, o primeiro como um conhecimento, uma nova
maneira de colocar a verdade, o segundo seria uma capacidade de julgar o verdadeiro
e o falso. No entanto, essa capacidade de julgar sempre se refere a tudo o que não
corresponde a este tipo de racionalidade exigida em um discurso. A verdade, assim
como a razão se desloca de uma realidade sentida e vivida para se fazer valer através do
discurso, através da palavra.
Não é de se admirar que então o conhecimento “válido” pareça fazer parte de
uma realidade acessível apenas a filósofos e pensadores, a própria razão criou essa
realidade, onde os pensamentos são feitos de abstrações oriundas de um exercício de
raciocínio complexo. As emoções que são propriamente o outro se situam no mundo
dos mortais, do corpo, dos prazeres, da vida cotidiana.
Do século V ao XV, na Idade Média, esta razão que busca a verdade se mistura à
cultura judaico-cristã. As releituras de Platão e Aristóteles, sob a ótica de pensadores
como Santo Anselmo, Tomás de Aquino, Santo Agostinho, transformam a ascese da
alma em um objetivo para além da vida, toda a vida seria apenas uma preparação para a
morte, assim como as tentações do corpo deveriam ser confessadas e eliminadas, cria-se
24
métodos cada vez mais refinados de purificação do corpo e o conhecimento é avaliado
pela Inquisição.
Esta época será denominada mais tarde pelo nome de Obscurantismo em
contraposição ao Século das Luzes, tentativa de iluminar através da razão a história do
homem. Pois bem, constatamos este movimento que ocorre no surgimento da filosofia,
a supressão da linguagem mitológica e mágica pela qual se dava sentido e respostas para
a vida para um novo sistema fornecido pela razão e que com Platão começa a explicar a
realidade dividindo-a em Mundo Perfeito e Mundo Aparente, assim temos entre os
gregos depois de Platão uma tentativa de se afastar deste sistema religioso (politeísta)
como forma de explicação e abrir ou desnudar a realidade através da razão.
Na Idade Média parece que o movimento repete-se, tudo está regido sob a ótica
da religião, o próprio estado se mistura ao poder da Igreja, tanto é que para expandirem-
se através dos oceanos no século XVI (século que ocorre uma expansão comercial e o
início de algumas idéias da modernidade) os primeiros navegadores tiveram que vencer
superstições das mais variadas, como de animais gigantes, bestas submarinas que
devoravam homens e embarcações, entre outros. Como em um movimento cíclico volta-
se a Idade da Razão séculos XVI (Renascimento da cultura grega).
Importante ressaltar uma parte interessante da história da Idade Média que é a
Cultura Popular destacada especialmente por Bakhtin (2008). Em seu trabalho sobre
este tema, tendo como contexto principalmente as obras de François Rabelais, o autor
ressalta que paralelo à cultura oficial, dada pela atmosfera séria e dogmática da Igreja,
contrastava a cultura popular, feita pelo princípio regenerador do riso. O riso é
considerado uma perspectiva, diferente da seriedade da razão, ele renova as coisas.
Contrapondo aos eventos e festas oficiais aconteciam paralelamente as festas populares,
uma espécie de versão cômica das mesmas. Além disto, o autor põe em evidência
alguns princípios característicos deste período, o princípio cômico que tinha em sua
essência uma espécie de regeneração dada pelo riso que diferente da ironia que é sua
descendente moderna, tinha como objetivo ridicularizar, mas não com o objetivo de
destruir, mas sim de reduzir as coisas ao baixo nível terreno ao ponto de fazê-las
renascer com um novo sentido. Dentre estes princípios temos também o conceito de
realismo grotesco, que pode ser entendido como parte desta inversão ao baixo material e
corporal.
O conceito de realismo grotesco pode ser observado pelas formas exageradas,
“hiperbolismo positivo” das figuras corporais, do comer e do beber, ou ainda pelo uso
25
de palavrões nas paródias escritas na época e nas reuniões que ocorriam nas praças que,
aliás, era o local de expressão do povo, com peças cômicas encenadas por anões entre
outros. Esta perspectiva fecunda sobre a realidade, segundo Bakhtin, que vai ser o cerne
para o Renascimento. No entanto, no pensamento moderno temos a redução destes
conceitos, o riso pueril transforma-se em ironia negativa e a fabulação do hiperbolismo
retrato nas obras de arte em realismo moderno. Assim como a noção fecunda do corpo
que a todo o momento transforma-se, vira uma noção estreita e estática de indivíduo:
“(...) e a ruptura desse laço conduziu fatalmente ao
abastardamento do realismo, à sua degeneração em empirismo
naturalista. A partir do século XVII, certas formas do grotesco
começam a degenerar em “caracterização” estática e estreita
pintura de costumes. (...). Na realidade, a nova concepção de
realismo traça outras fronteiras entre os corpos e as coisas.
Separa os corpos duplos e poda do realismo grotesco e
folclórico as coisas que brotaram junto com o corpo, procura
aperfeiçoar cada individualidade, isolando-a da totalidade final
que perdeu a antiga imagem, sem ter ainda encontrado uma
nova.” (BAKHTIN p. 45-46).
Como bem sabemos a imagem que irá simbolizar o corpo, a partir de Descartes,
é a imagem de máquina, de corpo-máquina, mecânico e sem mistérios.
Sendo assim, o que pretendemos apontar é que a Grécia do século V ao se
afastar dos mitos e de tudo que representava fabulação ou imaginação, para se apoiar
em uma nova forma de pensar acessível a todos, valorizou apenas um aspecto da vida
relegando as dimensões afetivas e simbólicas como fruto de uma mentira. Novamente
na Idade Média volta-se a uma mentalidade mítico-religiosa, no entanto, sob a máscara
da cultura judaico-cristã, porém o corpo e o campo rtil do politeísmo e do simbólico
são renegados, mas na cultura popular do período, como já mencionamos, o corpo é tido
como a essência da renovação.
Voltando à cultura oficial da Idade Média, apenas uma forma de religião é
admitida (pensamento linear e generalizante) e tudo o que fosse contra esta forma de
pensar e conceber a realidade eram enfrentados com agressão e violência, não é a toa
que os pensadores do século das Luzes quiseram se afastar ao máximo desta forma de
pensar e proclamaram a razão soberana, no entanto, com medo de tudo o que não fosse
racional, acabou excluindo aspectos fundamentais.
26
Com a expansão tecnológica da Inglaterra no século XVII (e antes com o
Renascimento da cultura grega na Itália século XVI) parece que a razão havia realmente
triunfado e que esta forma de pensar era a mais viável. Passamos a quantificar a
realidade transformado-a em números e com números podemos melhor avaliar e
manipular esta realidade sem riscos de subjetivação. Tudo o que não é racional é
considerado místico ou metafísico, como se o sono da razão produzisse monstros
3
,
assim novamente negamos a dimensão do corpo e do sujeito em sua capacidade
imaginativa e afetiva.
Corpos passam a ser disciplinados, dominados, treinados para deles se retirar o
máximo de proveito, trabalhos em fábricas, trabalhos repetitivos e quase mecânicos.
Aliás, desde que se conseguiu a técnica de domesticação de animais e plantas que o
homem tenta o mesmo com outros homens.
Além da maciça negação da esfera natural do homem enquanto animal, temos a
submissão da natureza e a valorização da razão como única guia segura do homem. Na
modernidade encontra-se aguçada a confiança de que a ciência é forma mais objetiva de
alcançar o conhecimento, como se a mesma não fosse uma perspectiva igualmente
humana. A relação sujeito-objeto era vista como instrutiva, sendo possível conhecer o
objeto se afastando da subjetividade do sujeito.
Voltando à idéia de ciclos da história, esse movimento de emoção-razão, fé-
ciência ou mítico-emotivo e razão, poder-se-ia indagar qual seria o próximo passo.
Segundo alguns autores como Daniel Dennett (1998), a teoria de Darwin serviu
como um ácido corrosivo a diluir todo o sentido e toda a busca por algo mais, pois para
este autor, a teoria darwiniana acaba por substituir qualquer intenção de dar um sentido
mais significativo à vida ou o que seja seu propósito, que na teoria da evolução
Darwin descreveu um processo ao qual deu o nome de seleção natural, processo este
irracional, sem propósito e mecânico” (DENNETT, 1998, p. 35). Vale ressaltar que ao
escrever isto, Dennet (1998) não pretende uma crítica à idéia de Darwin, ele apenas a
demonstra como “perigosa” por este motivo, ou seja, seu aspecto corrosivo de sentidos
e que por isto mesmo Darwin seja um autor pouco compreendido, já que aceitar suas
idéias é pagar o preço de ver a vida como um mero acaso da evolução, feita através de
tentativas e erros, guiados pela seleção natural e tudo o mais, cultura e pensamentos,
devem ser apenas distrações adaptativas. Claro que podemos pensar que apesar de a
3
Como retrata o quadro de Goya, Caprichos, prancha 43: El sueño de larazón produce monstruos
(primeira edição: 1799); água-tinta, 21,5 X 15 cm.
27
vida não ter nenhum sentido, significativo ao menos, nós podemos dar um sentido a ela.
Ou pensar como o poema de Fernando Pessoa (2006) em seu pseudônimo Alberto
Caeiro: Sim, eis o que meus sentidos aprenderam sozinho: - As coisas não tem
significado: tem existência. As coisas são o único sentido das coisas.(PESSOA, 2006
p.26).
Entretanto, atualmente as pessoas sofrem de falta de sentido, talvez esse seja o
motivo para tanto fanatismo ou para uma volta espiritual através das religiões orientais,
o fato é que se o terceiro movimento é previsto talvez ele encontre um meio termo
aceitando o corpo e sua capacidade não racional, mas também imaginativa e lúdica,
como formas igualmente importantes para a saúde e sobrevivência do organismo.
Ocorre também que trabalhamos num mar cada vez maior de informação (o que nos
remete à idéia de navegação), talvez a próxima geração crie uma imbricação ou
acoplamento tão grande com esse aparente caos cultural que não veja a necessidade de
um sentido único, mas de sentidos provisórios e se sinta muita a vontade em não haver
modelo-padrão de comportamento, família ou relações, mas mesmo assim haverá
necessidade de sentido, como uma necessidade de um eu, mesmo que provisório,
para aquisição do conhecimento, como uma referência necessária no mundo.
4
A desconstrução de grandes modelos é parte da nossa história, assim como a
construção de outros no lugar daqueles, mas visto as idéias no campo das ciências
naturais, a descoberta de tanto caos onde até então havia apenas ordem (ao invés de uma
descoberta, uma mudança de olhar), as noções de perspectivismo, relativismo, assim
como a impossibilidade de restringir o ser humano ou a cultura em grandes sistemas
filosóficos, nos faz duvidar da idéia de que surjam outros modelos deste tipo, a saber,
que dêem conta de explicar o mundo e o homem em uma única teoria.
Talvez a atual falta de sentido seja um resquício do sentimento de necessidade
desses grandes modelos de orientação, modelos ditadores de regras e comportamentos,
receitas prontas. A desconstrução talvez seja ainda muito recente e o sentimento
simplificador de única teoria que explique tudo, único pensamento ou religião, ainda
esteja muito recente. Quando expomos que as próximas gerações talvez não necessitem
ou não sofram desta falta de sentido, estamos querendo dizer que lidar com sentidos
provisórios ou com campos de vários pensamentos e teorias que explicam as coisas e o
mundo, mas sem fornecerem uma certeza absoluta e incontestável, seja daqui um
4
Veremos esse mesmo tema mais tarde na perspectiva de Damásio.
28
tempo, algo tão recorrente como uma navegação pela internet, um agenciamento
constante de conceitos e pensamentos.
Sendo assim, a pretensão também de nosso trabalho não é fornecer uma resposta
definitiva ou incontestável acerca do processo cognitivo, mas apenas competir com
outras teorias que levam em conta os aspectos aqui ressaltados como participantes deste
processo. Apontar caminhos prováveis, alternativas, ou composições mais adequadas
para o momento, talvez seja nossa pretensão.
Portanto, se o conhecimento começa como uma necessidade de dar sentido ou
uma explicação ao caos percebido na realidade, como exposto no começo deste
capítulo, percebe-se neste fato, um aspecto emotivo de expressar o modo como somos
afetados pela mesma. Também, sobre as diversas perspectivas de expressão desta
experiência, da transição do mito à razão e da transição da mentalidade medieval à
mentalidade moderna, nota-se os motivos dos elementos que deram origem à dicotomia
entre mente e corpo que veremos no próximo capítulo, assim como o cerne das atuais
dificuldades de se perceber ou incluir na produção do conhecimento seu aspecto afetivo.
Entre estes elementos podemos identificar que as emoções estão sempre
relacionadas ao corpo, como se as paixões fossem distrações oriundos da economia
corporal e por isso mesmo, um obstáculo a ser ultrapassado na ascese da alma ao
conhecimento verdadeiro, destituído de ilusões. O pensamento para ser respeitado tem
de ser sério e sensato, a esta seriedade chamaram razão.
29
CAPÍTULO SEGUNDO:
O FRANKSTEIN CARTESIANO
“Toda vez que pensamos (como Einstein pensou
um dia) que podemos entender a mente de Deus,
aparece, cedo ou tarde, um Frankenstein a nos
assombrar. Quando a mente começou a tentar
entender a mente, surgiram Frankensteins e
Einsteins. Símbolos da contradição que o ato de
tentar entender trás à tona. Monstros que nunca
mais nos abandonarão”. (NOBREGA 1998, p.14)
30
Como foi referida, a questão da relação conhecimento-emoção passa pela
problemática mente e corpo. Isso porque dentro da história do pensamento ocidental,
parte apresentada no capítulo anterior, as emoções foram relegadas a uma propriedade
oriunda do corpo, a mente, mas comumente identificada à alma, seria uma
propriedade que nos coloca além do terreno e do corpóreo. Este capítulo pretende
apresentar a entrada da modernidade com o pensamento cartesiano e suas consequências
contemporâneas.
A busca pela natureza da relação mente e corpo não é um fato recente, desde
os pré-socráticos que se questiona a existência de algo essencial, que define o ser
humano, algo como uma alma, ou um estado de ser imutável. Passando por questões
como o uno e o múltiplo, a essência e a aparência, a necessidade de uma identidade
permanente neste mundo de fluidez, de algo que permanece idêntico a si mesmo, isto é
uma busca por essência não só humana, mas também uma investigação da verdade.
Na coletânea de textos intitulada “Nietzsche e Deleuze: que pode o corpo”
Aurélio Guerra Neto (2002) em um dos artigos faz referência a Vernant e evidência que
a distinção entre alma e corpo nem sempre foi unânime na Grécia antiga. Na Grécia
arcaica, a noção de alma nem mesmo existia, portanto, a noção de corpo como
“receptáculo” da alma, também era impensável. Ao invés disso, os gregos tinham a
noção de um “corpo plural”, pois o corpo, além de ter várias denominações (soma,
demas, khros, todos como definições de corpo em sentido diferentes), era o lugar de
“pulsões” diversas.
“A palavra soma, por exemplo, designa o cadáver, a palavra
demas designa não o corpo, mas a estatura, o gabarito físico do
indivíduo. Khros também o é o corpo, mas o invólucro
externo, a pele, a superfície de contato, mas também a tez, etc...
Por tudo isso, Vernant dirá que, enquanto o homem é vivo, quer
dizer cheio de força e de energia, atravessado por pulsões que o
movem e comove, seu corpo é plural.” (NETO, 2002 p.20)
É propriamente com Platão que uma noção de alma passa a ser distinta do
corpo. Platão refere-se a esse termo para designar algo unitário, eterno, imortal, que
permanece idêntico a si mesmo, diferente do corpo, que se encontra no mundo das
aparências e corrupções.
Platão separa o mundo em duas partes, o mundo sensível, que seria o lugar
das sombras, das ilusões, assim como o da crença e opinião (doxa), e o mundo
31
inteligível, que seria o mundo das idéias perfeitas, dos conhecimentos matemáticos, da
ciência. A busca do filosofo seria uma ascese, como no mito da caverna, um sair das
sombras e ilusões para alcançar o mundo das idéias e finalmente conhecer a verdade.
Podemos perceber na alegoria da caverna uma primeira tentativa de conceber este
mundo sensível como simulacro, enganador, ilusão. Platão confere aos objetos sensíveis
a capacidade de enganar, os objetos matemáticos (entes de razão) são considerados
mais verdadeiros. Apesar destas colocações, não é com Platão que a distinção entre
corpo e alma ganha força e evidência, que para ele existem três almas, apenas uma
delas, a alma racional é responsável pela inteligência e considerada imortal e capaz de
movimentos circulares perfeitos, as outras duas, alma irascível e alma concupiscente
responsáveis pela vontade e pelos desejos respectivamente localizados no coração e no
ventre são mortais e imperfeitas.
René Descartes foi o primeiro a propor uma clara distinção entre mente e
corpo. A partir de uma dúvida metodológica, o filósofo do século XVII chega à
conclusão de que podemos duvidar de tudo, menos duvidar que exista algo duvidando,
sendo assim a primeira coisa a que chegamos ao duvidar de tudo é a existência de
pensamentos e de um espírito pensante, consequentemente a proposição: “Penso, logo
existo”. As premissas essenciais das quais ele parte para dividir a realidade em
substância pensante e substância extensa é de que a mente é mais fácil de ser conhecida,
ela é acessível de imediato, já a substância material além de não proceder da mesma
maneira, possui extensão, portanto, pode ser dividida, a mente não. Devido a essas
assimetrias a mente e o corpo devem ser substâncias distintas.
Toda essa argumentação pode ser encontrada em meditações, onde Descartes
(1991) lança uma dúvida inquietante e um cenário que até hoje seduz:
Imagine se tudo o que acreditamos que existe fosse uma mera ilusão, criada
talvez por um ser extremamente maligno e poderoso, no que poderíamos acreditar? Não
poderíamos acreditar nos sentidos, já que eles nos dão acesso a uma ilusão, muito
menos no que pressuponho que exista através da imaginação. Ao chegar neste ponto, o
que nos resta? No que posso acreditar inicialmente e com certeza?
O cenário imaginado por Descartes nos assombra até hoje, reformulado de
diversas formas e adaptado ao ambiente atual, em filmes de ficção científica como
32
Matrix (1999), ou em teorias modernas como a de se somos cérebros em barris de
vidro
2
.
É interessante ressaltar que Descartes parte de uma abstração, a suposição de
um Deus enganador, para chegar a uma conclusão ou certeza ainda mais abstrata: penso,
logo existo. A existência é fundamenta-se e afirma-se através do pensamento. Veremos
mais a frente como que um filósofo da mesma época de Descartes faz o movimento
contrário, Espinosa.
No entanto, não é a questão epistemológica levantada por Descartes que nos
interessa no momento, e sim a conclusão a que ele chega com seu questionamento, ou
seja, a distinção de duas substâncias presentes na realidade, a substância pensante (o
espírito) e a substância extensa (o corpo). Porém, se essas duas propriedades são tão
distintas, como elas se relacionam? Para Descartes existiria uma glândula responsável
por fazer essa ligação; no entanto, para que a glândula pudesse fazer a “tradução” da
substância imaterial para a substância material, não teria ela mesma de conter essas duas
propriedades? Descartes não deu nenhuma pista sobre o que seria essa glândula, que ele
chamou de glândula pineal.
O fato é que o problema criado por Descartes permanece sem solução até
hoje e o que é pior, tornou-se um monstro para alguns que tentam pensar esta questão.
Muitos avanços tecnológicos ocorreram desde então, desenvolvemos máquinas e
dispositivos artificiais que parecem reproduzir algumas de nossas capacidades
cognitivas (raciocínio matemático-lógico); descobriu-se muito sobre o funcionamento
do cérebro (ressonância magnética etc.); controlamos quimicamente e até reproduzimos
algumas de nossas emoções (antidepressivos e drogas sintéticas). Enfim, alguém
poderia perguntar: como com o tanto que a ciência desenvolveu-se, um problema como
este ainda permanece sem solução?
Bem, vários tipos de soluções, das mais exóticas às mais simples foram
fornecidos a esta problemática, porém nenhuma que resolvesse definitivamente o
problema sobre o tipo de relação entre mente e corpo.
Essas soluções dividem-se entre tipos variados de dualismo, que separa
mente e corpo, na medida em que considera como Descartes a mente como de outra
natureza que não física e tipos mais diversos ainda de monismo que considera a mente
um tipo especial de fenômeno físico. também uma terceira linha que não nenhum
2
Teoria bastante discutida no campo da Filosofia da Mente e que questiona se talvez não fôssemos
apenas cérebros em barris de vidro, talvez estimulados por algum cientista maluco.
33
problema na relação mente e corpo, esta terceira linha considera o fato de que devido a
nossa linguagem, criamos noções como um Eu ou consciência e passamos a acreditar
que elas existem de verdade, mas não passam de enganações da própria linguagem. A
esta terceira linha que prega a dissolução do conceito de mente é chamado materialismo
eliminativo
5
. Um representante da teoria do materialismo eliminativo segundo Teixeira
(2003) é o filósofo americano Wilfrid Sellars que para especificar a problemática cria
uma alegoria que ele resume assim:
“Segundo a alegoria de Sellars, a noção de mente foi
engendrada pela expansão da linguagem que propiciou o triunfo
dos relatos introspectivos sobre o comportamento e sobre a
percepção. Palavras e relatos introspectivos tornaram-se, ao
longo desse treinamento, mais reais do que o mundo
observável.” (TEXEIRA, 2003 p.110).
Sendo assim, através da linguagem da psicologia popular (folk psychology),
que representa este vocabulário usado para expressar o comportamento dos outros seres
humanos recorrendo a conceitos como desejos, crenças e intenções, também chamado
de vocabulário mentalista, formou-se o que chamamos de consciência e mente. Outro
representante desta linha é Gilbert Ryle
6
que também afirma que a mente é apenas um
conceito que usamos para designar este conjunto de comportamentos e disposições que
identificamos. Podemos fazer esta mesma avaliação com o conceito razão, pois a razão
não é senão um conceito que utilizamos para designar um determinado aspecto do
pensamento, no entanto, nem por isso podemos afirmar que razão é algo que não existe
de fato. Assim também, podemos afirmar que luz é um conceito oriundo da física para
designar um determinado tipo de fenômeno físico, ela dispõe de um conjunto de
propriedades que a define, sendo assim, poder-se-ia dizer que luz é um conceito que uso
para designar um determinado fenômeno físico que possui determinadas características,
mas nem por isso digo que a luz é algo que não existe.
Pode-se retrucar que desejos, crenças e intenções são conceitos que não
posso tocar, ou, como no exemplo usado por Teixeira (2003), que não podemos borrifar
5
Todas essas classificações e algumas das questões levantadas mais adiante podem ser localizadas em
TEIXEIRA, João Fernandes. Mente, Cérebro e Cognição. Petrópolis, R.J.: Vozes, 2000.
6
Referência encontrada também em Teixeira (2003) que disponibiliza outros representantes do
materialismo eliminativo como, Paul e Patrícia Churchland, Feyerabend e Richard Rorty.
34
tinta em um pensamento, pois bem, também não posso borrifar tinta num feixe de luz, e
nem por isso digo que é um fenômeno imaterial ou inexistente.
Voltando para o próprio problema da relação mente e corpo, o que chama a
atenção neste problema é a natureza da relação mente-corpo, infere-se até certo ponto
que há uma relação entre o corpo e a mente, já que se ingiro alguma substância
entorpecente, provoco alterações em minhas faculdades mentais, ou se ocorre uma lesão
cerebral prejudica-se a manifestação da mesma. No entanto, a dúvida de alguns
cientistas é qual a natureza desta relação, produzimos pensamento como qualquer outro
órgão produz substâncias químicas? Ou ainda, o porquê que no momento em que
investigo o rebro, vejo apenas sinapses, conexões, como correntes elétricas e, no
entanto, não consigo traduzir essas correntes em um pensamento (problema da
tradução). Será necessariamente que o cérebro é o único responsável pelo pensamento?
Essas e outras questões compõem a pesquisa na área da filosofia da mente.
Para o nosso respectivo trabalho é importante esclarecermos que o corpo
participa do pensamento e quando colocamos o corpo, não estamos apenas nos referindo
ao cérebro. Quanto aos outros problemas expostos acima, diríamos que apoiados em
alguns cientistas, como Antônio Damásio (2000), a mente desenvolve-se a partir do
corpo e a serviço do corpo.
Filosoficamente não temos problemas em considerar este fenômeno (a
mente) como uma produção natural do corpo, como qualquer outro órgão do corpo
como o estômago produzquidos digestivos. Aliás, sobre a equiparação do pensamento
com o estômago existe um filósofo bastante acostumado a isso, Nietzsche (1997)
7
faz
uma importante citação a este respeito que vale a pena acrescentar neste momento:
“(...) não nos fatigamos de nos maravilhar com a idéia de que o
corpo humano tornou-se possível (...). Neste “milagre dos
milagres”, a consciência é apenas um instrumento nada mais
no sentido em que o estômago é um “instrumento” do mesmo
milagre”.
Alguns pensadores o consideram isto possível, por achar complexo
demais a mente humana ao ponto de começar a desenvolver-se como uma simples
conseqüência natural ou como uma qualidade a mais que emergisse por acaso, no
7
Esta citação encontra-se no artigo de Daniel Lins “A metafísica da carne: que pode o corpo” presente
na coletânea: Nietsche e Deleuze – o que pode o corpo. (2002) Cuja referência completa pode ser
encontrada na bibliografia.
35
entanto, se enxergarmos sob uma ótica de processo evolutivo, notar-se-ia um processo
lento de formação biológica e concomitante com a formação cultural. Não podemos
tratar a mente como um dispositivo recentemente instalado no ser humano é o que nos
mostra Damásio (2000).
Levamos também em consideração que a maior parte do que entendemos
sobre mente vêm da cultura e com ela, a linguagem que utilizamos. A linguagem neste
caso auxilia na expressão desses sentimentos, apesar de, às vezes, ela não dar conta,
pois coisas que são para serem apenas sentidas e este sentimento é uma reflexão,
como no caso da teoria de Espinosa (1991), em que o pensamento é um desdobramento
de um sentimento provocado por outro corpo. A terceira linha, que prega a dissolução
do conceito de mente, não está totalmente errada ao afirmar que a linguagem falsifica
alguns conceitos, como por exemplo, o de algo unitário, dizemos que existe um Eu, mas
esta sensação de unidade é uma “ilusão necessária”, como uma peça pregada pela
consciência para poder ter uma referência em relação ao mundo e assim ser capaz de
conhecê-lo. Entretanto, somos um campo de batalha interior, onde forças ou potências
confrontam-se o tempo todo como afirma Espinosa (1991).
Pode-se também acrescentar que a mente desenvolve-se primeiramente como
um dispositivo de sobrevivência, inicialmente ela tem a função de tornar amplo o
repertório de ações pré-programadas em nosso sistema nervoso, ela (a mente) vem
como um ingrediente a mais para dar ao homem uma capacidade maior de escolhas,
analise e planejamento. Juntamente com a linguagem ampliamos esta primeira
possibilidade, ou melhor, com ela também alteramos o cérebro num processo circular de
retro alimentação.
Além desses pontos, se até hoje a ciência, ou neurociência, não conseguiu
decifrar o mistério da mente humana, talvez porque suas ferramentas se tornam um
pouco limitadas para trabalhar uma questão tão transdisciplinar como esta. Por exemplo,
para entendermos o que consideramos consciência, este “eu” e esta suposta vida interior
que possuímos, estamos em um campo subjetivo, a ciência se utiliza de ferramentas
objetivas, a pergunta que fica é: como objetivar algo subjetivo? Outro ponto é que este
aspecto subjetivo parece fazer parte da própria fisiologia do corpo, a forma como somos
afetados pelas coisas e pessoas, e como estruturamos isto em linguagem. Se não
conseguimos localizar isto no cérebro humano, talvez seja porque é um processo que
envolva o corpo inteiro e processos exteriores como a cultura. Parece que a fronteira
dentro e fora é quebrada quando tratamos da mente humana.
36
Vemos pesquisas que a todo o momento nos mostram a possibilidade de
braços mecânicos conectados ao corpo ou somente ao cérebro e capazes de obedecer a
movimentos. Pois bem, se no cérebro humano há sinapses que são responsáveis por
mensagens que percorrem todo o corpo humano, não seria o caso de desviar estas
mensagens para um dispositivo de silício. Ainda assim não vemos nisto uma
possibilidade de inteligência artificial (A.I.) ou que estamos perto de descobrir o
funcionamento da mente humana. Aliás, sobre a possibilidade de replicação do
fenômeno da consciência em peças de silício, como já foi ressaltado, por se tratar de
uma fisiologia do corpo, não bastaria criar apenas algo que imite o cérebro humano, mas
também algo que replique todo o conjunto do corpo, com sua capacidade e sensibilidade
de sentir e ser afetado. Como simular estas emoções sem parecer apenas simulações.
Este é um ponto para a ciência descobrir.
O que podemos concluir até agora das linhas que respondem ao que seja a
relação mente-corpo é que o dualismo, em suas diversas formas, dualismo de
propriedade e dualismo de substância, torna-se uma teoria difícil de ser defendida em
um meio atual, onde existem ciências como a neurociência ou mesmo a física, que nos
revelam a relação intrínseca entre mente e corpo, assim também, a dúvida da existência
de algo imaterial é difícil de ser sustentada. Sobre este aspecto é mais fácil aceitar o
mistério da matéria, ou seja, que não a conhecemos ainda em sua totalidade, mas apenas
na perspectiva humana.
Em relação ao monismo, que é linha adotada neste trabalho, há ainda
algumas dificuldades para abordar o problema mente-corpo, por exemplo, o
identificacionismo mente e cérebro não tem ajudado muito no avanço das pesquisas, a
maior parte dos cientistas que pretendem falar sobre o assunto exclui a subjetividade da
discussão ou prefere acreditar que é possível ter acesso a ela apenas observando os
comportamentos. Além disso, a questão da mente humana é ainda mais complexa, pois
envolve muitas áreas do conhecimento, sendo desta forma, necessária um esforço
transdisciplinar para compreendê-la.
Assim como as dificuldades do monismo, adotar o materialismo eliminatório
implica em negar características essenciais que definem o ser humano, como crenças,
idéias e intenções.
Sendo assim, o que podemos concluir destas discussões é que o racionalismo
exagerado tem nos levado a aceitar teorias absurdas em nome de uma objetividade e de
um materialismo pobre, pois exclui os sentimentos e outras qualidades consideradas
37
irracionais, ao ponto de afirmarmos que, se um computador realiza cálculos, inferências
lógicas ou dedutivas, logo, ele pensa. Como se a mente humana se resumisse a estas
poucas qualidades racionais. Podemos perceber que apesar de algumas destas teorias
tentarem eliminar o dualismo cartesiano, incorrem no mesmo erro, suprimindo desta vez
não o corpo ou o biológico, mas a tudo o que exala a entidades que eles não podem
explicar ou medir como, por exemplo, o sentimento. Posso afirmar, através da
fisiologia, que é um processo químico que ocorre em meu corpo o fato de estar ao lado
da pessoa amada, dessa forma também posso descrever o sentimento que me ocorre
dizendo-o uma liberação química, causada pela sensação boa que tenho toda vez que
vejo a pessoa amada, reforçada por experiências boas junto a ela e que no momento em
que meu corpo prevê a possibilidade de obter este mesmo prazer, libera tais químicas.
No entanto, descrever ou localizar como é para eu sentir o que estou sentindo, a
poesia às vezes consegue, isso é o que chamamos de subjetividade e é a isto que não
queremos abrir mão.
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CAPÍTULO TERCEIRO:
AFECÇÕES – UMA LEITURA ESPINOSIANA
“A carne é uma espécie de escrita viva onde as
forças imprimem “vibrações” e cavam “caminhos”;
o sentido nela se desdobra e nela se perde como em
um labirinto onde ele mesmo traça suas próprias
vias”. (LINS, 2008 p. 71)
39
Dentro das questões levantadas no capítulo anterior, percebe-se que o
problema relação mente e corpo tem seu desdobramento atual a partir da teoria de
Descartes. Sabemos que alguns absurdos afirmados pelas linhas, partidárias ou não, das
idéias deste autor, têm sua origem no fato de se considerar a mente um atributo que se
fundamenta apenas no cérebro ou, para os partidários de Descartes (dualistas), que os
pensamentos são produtos de um aspecto imaterial.
No entanto, estas considerações nem sempre foram unânimes no decorrer da
história, como no primeiro capítulo que tratamos dos mitos e da cultura popular da
Idade Média, assim também na entrada da Modernidade, existe um filósofo
importantíssimo para a fundamentação das emoções no processo cognitivo, Espinosa. È
importante deixar claro que quando falamos de outras teorias contrárias às que
prevaleceram e nortearam nossa cultura, não pretendemos com isto pensar que elas
poderiam ter triunfado ao invés daquelas. Mas, como foi exposto diversas vezes,
atualmente podemos rever estas teorias, seja porque o tempo nos impõe isto ou para
repensar algumas estruturas epistemológicas.
Como nosso trabalho tem por objetivo as emoções no processo cognitivo,
Espinosa foi um autor que “esbarramos” durante as pesquisas, porque, desde o início
pretendíamos dizer que é preciso ser “afetado” pelo conhecimento. A esta afetação não
queríamos nos referir ao conceito de afeto recorrente na pedagogia, ou seja, no sentido
de afetividade na relação professor-aluno ou a importância do domínio afetivo do aluno
para desenvolver-se melhor cognitivamente ou outras coisas do gênero.
A afetação era usada como um conceito que remetia à emoção provocada por
uma teoria, por exemplo, que no momento em que se experimenta a mesma sensação
expressa em um texto de outra pessoa, compreende-se facilmente o sentido daquelas
palavras, ou o fato de uma idéia causar tanto o estado de euforia ou de melancolia,
enfim, logo encontramos em Espinosa um apoio teórico para diferenciar a idéia de
afetação e não ser confundido por afetividade quando referíssemos à mesma.
Não que afetividade não remeta à idéia de sentimentos ou emoções, mas a
forma como emoção ou sentimento é entendida neste trabalho, como produtora do
conhecimento, não corresponde com ter o afeto como um domínio que se relaciona com
o cognitivo e muito menos com o domínio afetivo das relações sociais, mas sim com o
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modo como somos afetados por idéias, pessoas ou fatos e o que isto tem haver com o
conhecimento.
Em um posterior desdobramento, pode ser que o conceito de afetividade
como prática pedagógica, tenha relação com o conceito de afecções, mas por motivos
teóricos, preferimos deixar claro que sentimentos e emoções tratados aqui, não se
reduzem à discussão de afetividade.
Na teoria de Espinosa, podemos dizer que, por ser contemporâneo a
Descartes, tem uma proposta parecida com a dele no sentido de corrigir o intelecto, de
buscar uma forma ou, no caso de Espinosa, uma composição adequada para o
conhecimento do homem em relação à natureza. Como alguns de seus contemporâneos,
a intenção é iluminar, através da razão, o caminho a ser seguido e orientá-la da melhor
forma é uma preocupação moderna.
Descartes faz uso de um método no qual põe em dúvida todas as coisas,
partindo de uma abstração, um Deus enganador talvez, e chega a uma verdade para a
qual constrói o fundamento do seu pensamento, verdade esta mais abstrata ainda:
“Penso, logo existo”.
Espinosa, no livro Tratado da Correção do Intelecto, em movimento
contrário, não e totalmente em dúvida os sentidos, mas nos primeiros parágrafos ele
tenta demonstrar que a partir de um conhecimento sobre o modo de funcionar dos
sentidos é possível afastar as ilusões e basear-se neles para eleger, não um método, mas
uma composição, ou, como interpreta Deleuze (2002), um plano de composição entre
relações que aumentam nossa potência de agir, tornando-nos mais perfeitos, ou seja,
mais fortes.
É por isso que Espinosa, com base em um estudo sobre os aspectos destas
afecções, parte do próprio dado sensível, e não de uma abstração, para chegar a um
fundamento ainda mais corpóreo: a alma como idéia do corpo.
Na primeira parte de seu Tratado, ao invés de negar a Natureza ou desconfiar
de sua realidade, propõe-nos a aprofundar tanto quanto possível o conhecimento sobre
ela, ao ponto de adquirir semelhante natureza. A parte do Tratado é uma obra inacabada.
No entanto, no livro Ética ele seguimento a algumas das idéias do Tratado de forma
mais “clara e distinta”, que, a nosso ver, é precisamente na Ética que está exposto a sua
epistemologia.
Retornando à relação entre Descartes e Espinosa, apesar deste ser
influenciado por algumas idéias daquele, afasta-se profundamente da filosofia
41
cartesiana. Descartes, para realizar seu trabalho de edificar um conhecimento seguro,
nega a realidade e desconfia dos sentidos utilizando-se da dúvida, para chegar à sua
abstração, a qual se funda no pensar.
A filosofia cartesiana estabelece uma relação entre alma e corpo, mas funda
a diferença entre os dois criando duas substâncias, mencionadas em nossa pesquisa:
uma substância extensa e uma substância pensante. Essa divisão traz muitas
complicações. A primeira é dividir o mundo em duas substâncias. A segunda, colocar a
possibilidade de relação entre elas, quando se diferem essencialmente.
Para tanto, seria necessário algo composto pelas duas substâncias para
realizar a conexão entre ambas, o que seria um absurdo, embora Descartes tenha
deixado a pista da glândula pineal, a qual, no fim das contas, os neurocientistas
descobriram ter outra função.
Aliás, para Espinosa, a dúvida está para a imaginação assim como a
flutuação de nossas afecções está para a alma. A flutuação deriva de afecções
simultâneas e contrárias que causam, ao mesmo tempo, sentimentos contrários, sendo
causa da confusão na alma. A dúvida gera-se na imaginação, motivo pelo qual se pode
dizer que a dúvida cartesiana no conceito de Espinosa seria fruto de uma flutuação de
afecções na qual a alma se confunde de tal forma, que acaba por não ter uma idéia
adequada, clara e distinta, caindo em erros de abstrações.
Para esta primeira parte Espinosa deixa claro que nossos erros de concepção
se dão no momento em que o homem toma os efeitos pelas causas, sendo assim, como
desconhecemos nossa natureza e a natureza das coisas, temos a tendência de buscar uma
finalidade para as coisas. Este autor inova de tal forma o pensamento que exclui a idéia
que tanto tempo perseguiu e até hoje a alguns persegue, a idéia de finalidade. Mas para
entender o porquê da exclusão da finalidade temos antes que esclarecer alguns pontos
da filosofia de Espinosa.
Antes disso, temos que apontar outros erros epistemológicos apontados por
Espinosa. O homem funciona dado a sua natureza de forma a associar as coisas pelas
suas semelhanças, pois desta forma, ele as fixa melhor na memória, criando gêneros e
classes, classificando os seres pela suas semelhanças ou diferenças. No entanto,
esquecemos que isto é uma forma de facilitar a retenção na memória e excluímos as
singularidades presentes nos seres. Para Espinosa o erro são abstrações que derivam de
um conhecimento parcial e mutilado de tal forma que as geramos com a ajuda da
imaginação e pretendemos eleger universais.
42
É fácil entender Espinosa neste ponto. Para ele, cada corpo nos afeta de
diversas formas e poucas dessas afecções chegam a serem assimiladas pela alma. Então,
dada a singularidade dos corpos e dada a variedade dos modos de sermos afetados,
nenhuma afecção se assemelha a de outra pessoa, porque depende da natureza de cada
um, sendo assim, generalizar é um processo de abstração.
Outro erro apontado por Espinosa e que deriva da finalidade é considerarmos
que a natureza tem sempre um fim: ou a de servir ao homem e seus caprichos ou de
afrontá-lo. Unindo esta observação com o erro da finalidade, somos levados a acreditar
que existe um fim, sendo apenas real o movimento de repouso e ação, apetites e desejos,
afecções que geram agrado ou desagrado em relação aos objetos, assim como a
imaginação, baseamos nos nossos sentidos e achamos que são universais, mas cada qual
é afetado de diferentes formas e não é para agradar ou desagradar os sentidos humanos
que as coisas existem na Natureza.
Para Espinosa, a maioria dos autores, até sua época, consideraram de forma
errada tanto a natureza como também as afecções, de modo a torná-las distantes e
monstros a ser controlado, este ponto nossa pesquisa já salientou.
Esse desconhecimento faz com que o homem sinta a alma como superior ao
corpo e capaz de controlá-lo assim como se acham capazes de controlar a própria
natureza. Para demonstrar a outra via que Espinosa segue em primeiro lugar temos que
quebrar a visão dicotômica.
No pensamento espinosiano existe uma única substância, daí deriva que,
primeiramente, não pode haver uma separação entre alma e corpo. Essa substância tem
a propriedade de ser a causa de si, segue uma autoprodução. A idéia de autoprodução
em Espinosa está em tudo na natureza, pois tudo o que no mundo, sendo derivado
desta substância, também tem esta mesma natureza.
Para descomplicar, vamos tentar abstrair desta idéia o que nos interessa: se
apenas uma substância, alma e corpo seguem a mesma natureza, ou nas palavras de
Espinosa (1991, p.152): “(...) a alma e o corpo são um indivíduo, concebido ora sob
o atributo do pensamento, ora sob o atributo da extensão.”.
Dentro das nossas questões sobre relação mente e corpo, postas no início, o
pensamento de Espinosa estaria dentro do monismo, que não diferenças substanciais
entre mente e corpo. O corpo seria um atributo, assim como é em Deus (Deus possui
atributos de extensão e de pensamento também), de extensão, no entanto, como veremos
43
a dinâmica que se estabelece entre mente e corpo faz com que o pensamento seja gerado
pelo corpo ou através do corpo.
Atributos são como uma forma de expressão determinada da essência de
Deus, no caso do corpo, enquanto esta é considerada como coisa extensa. Porém, a
essência do homem não se confunde com a de Deus, sendo assim, a essência do homem
é constituída por certos modos dos atributos de Deus.
Por essência Espinosa entende aquilo sem a qual uma coisa não pode existir
e nem ser concebida e a partir do momento em que é suprimida cessa tanto de existir
como de ser concebida.
A alma seria também um atributo, o de pensar, sendo assim a idéia é a
primeira instância que constitui o ser atual da alma, no entanto, a idéia de uma coisa
singular em ato. O objeto da alma, aquilo que a alma percebe mais facilmente é o corpo,
desse modo, diferente de traçar agora uma dicotomia na forma de atributos Espinosa
inicia uma teoria acerca da cognição: “A alma humana, com efeito, é a própria idéia ou
conhecimento do corpo humano” (ESPINOSA, 1991 p. 151).
Para conhecer a alma é preciso voltar-se para o corpo, sendo assim
necessária uma descrição sobre os modos de operar deste. Espinosa inicia assim uma
física dos corpos tentando traçar sua natureza, a primeira lei que ele enxerga é a de
movimento e repouso, lentidão e rapidez. Este estado é o que diferencia os corpos,
segundo seus movimentos provocados.
Seguindo esta mecânica dos movimentos, um corpo está em repouso ou
movimento em determinação de outro corpo e assim sucessivamente, é neste ponto que
surge o conceito de afecções, usamos conceito, porque para Espinosa o conceito sugere
uma ação diferente da percepção que dá a impressão de passividade.
Um corpo é afetado por outro segundo a sua natureza e a natureza do corpo
que afeta, sendo assim, diferentes corpos são afetados de diferentes formas pelo mesmo
corpo. O modo como somos afetados pelos corpos é o conhecimento que podemos ter
destes.
Os corpos são compostos de diferentes partes e segundo a natureza das
relações destas partes temos um corpo, sendo possível mudar as partes, se não mudar a
relação entre elas a natureza continua a mesma, pois ela se estabelece nas relações das
partes e não nas partes em si.
Também é necessário diferenciar a diversidade de corpos, existem corpos
singulares, mas compostos por partes, corpos compostos, compostos por corpos que
44
formam um indivíduo e corpos compostos por indivíduos que é o caso do corpo
humano.
Alguns dos corpos que compõe o indivíduo podem ser duras, moles ou
fluidas, o indivíduo é a união de corpos. Um exemplo de indivíduo é a Natureza.
Interessante perceber que para Espinosa enquanto a Natureza pode ser
definida como indivíduo, composto por vários corpos, o homem é definido como
composto por vários indivíduos sendo cada um deles diferente por natureza e seguindo a
mesma classificação, moles, duros e fluidos.
No caso da Natureza, os corpos que a compõe variam de diferentes maneiras,
seguindo os movimentos de repouso ou lentidão, mas sem alteração do indivíduo. O
corpo humano composto por diferentes indivíduos composto por diferentes corpos
muda segundo a natureza dos indivíduos que compõem seu corpo.
Alguns corpos imprimem em nós vestígios, que são tidos por Espinosa como
imagens, a alma percebe o que acontece ao corpo, nesse sentido a alma percebe apenas
o que ocorre ao corpo, suas afecções que são dadas tanto pela natureza deste corpo
como pela natureza do corpo que a afeta, a alma conhece as coisas segundo essas
relações. As idéias se desenvolvem a partir das afecções e somos tomados pelas idéias
que surgem destas relações. Como expressa Espinosa (Proposição XXI) “A alma
humana percebe não apenas as afecções do corpo, mas também as idéias dessas
afecções.”.
Percebe-se uma semelhança da teoria de Espinosa e a de Damásio (2000) se
colocar as afecções corporais como os processos de regulação que tem uma central que
sinaliza o estado atual deste corpo que está sempre em relação com o mundo e se
juntarmos a idéia de que a consciência desenvolve-se primeiramente como esta
capacidade de sentir estes sentimentos, podemos então relacionar a idéia que surge da
afecção percebida pela alma como um mesmo movimento em ambas as teorias.
Voltando às afecções, além de seguirem a natureza dos corpos (duros, moles,
fluidos) e de provocarem movimentos ou repouso (lentidão e rapidez), devido às
afecções, certos corpos e certas idéias podem compor ou descompor conosco.
Explicando, certos corpos ou idéias podem ser tidos como alimentos, no
sentido que eles compõem com a nossa natureza, provocando sentimento de alegria e
aumentando assim nossa potência de agir. Outras, no entanto, agem como veneno,
decompondo segundo nossa natureza, causando sentimentos de tristeza a tal ponto que
diminuem nossa potência de agir.
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Nos casos em que somos ativos, que em nós é aumentado a potência de agir,
somos afetados, nos casos em que nossa potência de agir é diminuída, podemos dizer
que sofremos, na medida em que somos passivos, neste caso trata-se de uma paixão. A
impressão que nesta parte da teoria espinosiana é que enquanto somos passivos, que
apenas estamos sofrendo uma ação, no caso todas elas causam paixões diversas, mas
enquanto elas são confusas, elas são parciais e mutiladas e por isso mesmo, considerada
inadequadas. No entanto, se uma ação, se conseguir tornar claro a idéia produzida
por uma afecção poderá dizê-la adequada. Porém, pode por vezes parecer que a alma
tem controle sobre essas afecções, o que não é o caso.
A flutuação entre os estados do corpo é considerada afetos e o próprio estado
do corpo é dado pela afecção.
As afecções referem-se diretamente ao corpo, e envolve a afecção (affectio)
do corpo e a idéia do corpo exterior, ou seja, a afecção é a primeira fase do
conhecimento e presume-se a presença do corpo exterior, ela é a impressão causada. Os
afetos (affectus) referem-se ao espírito, ele implica “tanto para o corpo como para o
espírito um aumento ou uma diminuição da potência de agir” (DELEUZE, 2002 p. 56).
Os afetos são transições entre estados corporais, entre diminuição e aumento
de potência, por isso mesmo eles podem ser considerados tipos de afecções. “Um afeto,
que chamamos paixão da alma, é uma idéia confusa pela qual a alma afirma uma força
de existir de seu corpo maior ou menor que antes”. (ESPINOSA, II def. geral dos
Afetos.). O afeto seria um segundo movimento, mas simultâneo, de sentimentos e
variações de potência.
A relação que Espinosa estabelece entre alma e corpo é de paralelismo, cada
afecção produz um pensamento. Para Deleuze (2002), é também um paralelismo
epistemológico, pois quanto mais afecções é capaz um corpo, mais conhecimento a
alma é capaz. Sendo assim, a abertura do ser ao mundo é de extrema importância,
porque, quanto maior a capacidade do corpo de afetação, quanto mais relações traçadas,
mais ele produz conhecimento.
Quanto maior as afecções geradas em um corpo, mais ele conhece. Porque é
a partir dessas afecções que é gerada a idéia.
Porém, a alma não tem controle sobre as determinações do corpo, porque ela
é a idéia do corpo, sendo apenas possível ao homem consciente de sua natureza e
daquilo que o afeta, compor relações que sejam favoráveis à sua potência. É aqui que se
encontra a liberdade humana, não em uma relação de livre arbítrio, oriundo de um
46
desejo, mas no conhecimento daquilo que gera este desejo, podendo se afastar ou não
deste. Mas aqui nos interessa no momento esclarecer a parte epistemológica da teoria
espinosiana.
O processo cognitivo estabelecido por Espinosa não é dessa forma passivo, o
objeto não imprime ou determina completamente o que se conhece dele, mas uma
relação entre ambos, ao mesmo tempo em que a afecção produzida da relação sujeito-
objeto é determinada segundo a natureza deste objeto, é também determinada segundo a
composição deste corpo. Não uma determinação, deste modo, nem totalmente
exterior, nem totalmente interior, o que é uma determinação oriunda de uma relação,
ela é relacional. Segundo Deleuze (2002, p. 63) “O conhecimento não é a operação de
um sujeito, mas a afirmação da idéia na alma.”. Não somos nós que afirmamos ou
negamos alguma coisa e sim a coisa que em nós afirma ou nega algo de si. Por isto as
afecções revelam tanto algo da nossa natureza como de sua própria natureza.
Outro ponto a ser destacado é que ao colocar o corpo humano composto por
diversos indivíduos diferentes entre si, Espinosa abre um leque de relações possíveis,
sendo impossível conhecer todas, por isso mesmo que é possível haver afecções
contrárias oriundas da relação com um mesmo objeto, porque ele afeta todo o conjunto
do corpo humano e assim, vários indivíduos deste mesmo corpo. Além disto, cada corpo
humano difere entre si, cada qual estabelece relação entre esses indivíduos de formas
diferentes sendo possível tanto uma semelhança de afecções ou dessemelhança.
Diferente de Descartes a alma não reina sobre o corpo, assim como o corpo
não reina sobre a alma, o que é uma união entre os dois. Assim também ele não é
esta “máquina” manipulável (dirigida talvez por um homúnculo), mas antes um
conjunto de indivíduos.
Então as estruturas propostas por Espinosa não são fixas, elas dependem
sempre do estado atual deste corpo, muito parecido com o que Damásio propõe, mas
com um acerto impressionante que faz este primeiro autor afirmar:
“Ninguém, na verdade, até o presente, determinou o que pode o
corpo, isto é, a experiência não ensinou a ninguém, até o
presente, o que, considerado apenas como corporal pelas leis da
Natureza, o que pode o corpo fazer e o que não pode fazer, a não
ser que seja determinado pela alma.” (ESPINOSA, 1991 p.178).
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Continuando este raciocínio, Espinosa o exemplo de sonâmbulos que em
um estado no qual a alma está “menos consciente” as pessoas são capazes de atitudes
das quais não fazem idéia de que podiam. Assim também este autor antecipa Freud ao
mostrar como que até mesmo atitudes que consideramos livres ou atos de pura vontade
consciente, como o falar e o calar, provém de afecções íntimas desconhecidas por nós.
Espinosa ao explicar a origem e a natureza das afecções, traça uma
psicologia e ao mesmo tempo uma fisiologia. Demonstra a partir de afecções primárias,
das quais derivam os outros tipos de sentimentos, sendo primeiramente a alegria e a
tristeza, mas quando referidas simultaneamente à alma e ao corpo elas são deleite ou
hilaridade (no caso da alegria) e dor ou melancolia (no caso da tristeza).
Assim, o corpo segue um ímpeto de sobrevivência, compondo relações,
evitando lembrar ou reviver afecções tristes ou buscando e reforçando aquelas que
despertam sua potência de agir. Também, ao lembrar-se de um objeto ou ao encontrar
outro semelhante ao que se lembra, o corpo faz uma espécie de associação e então, as
afecções despertadas pelo primeiro, mesmo que flutue entre duas contrárias (tristeza e
alegria ao mesmo tempo), são associadas ao segundo, pela semelhança, causando as
mesmas afecções geradas pelo primeiro, assim amamos ou odiamos, ou as duas coisas
ao mesmo tempo, esses objetos.
A tristeza não é gerada por aquilo que, dado o corpo, se assemelha à nossa
natureza, mas ao contrário, a parte que nos é contrária é que causa afecção triste. O
homem enquanto passível em relação a uma afecção, enquanto esta afecção diminui sua
potência, não é livre, mas é livre a partir do momento em que conhece sua natureza e
quanto mais conhece outras coisas e sendo impossível para a alma refrear uma afecção,
ela pode sobrepor a ela uma afecção mais forte e benéfica.
Antes da conclusão das idéias de Espinosa é importante ter claro que quando
falamos em conhecimento em Espinosa, estamos nos referindo diretamente ao corpo e à
alma, sua capacidade de ser afetado e as reflexões destas afecções na alma.
O conhecimento não é tratado como uma ação da alma e sim como uma
ação e reação dos corpos, que geram no cognoscente afecções que se definem segundo a
natureza do objeto e segundo a própria natureza do corpo de quem conhece. Sendo
assim, as afecções são como o conhecimento do corpo que a alma expressa.
Conhecer implica dois movimentos simultâneos: a afecção ou estado do
corpo, e os afetos, a variação destes estados sentidos na alma.
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O conhecimento divide-se em três gêneros que são modos de existência. O
primeiro gênero define-se pelas idéias inadequadas que temos, “(...) é constituído pelo
encadeamento destas e dos afetos-paixões que delas decorrem” (DELEUZE, 2002
p.64), ou seja, no primeiro gênero as idéias são confusas, oriundas de afecções
contrárias.
O segundo gênero são as noções comuns, que é dado pelo esforço da razão
“(...) no intuito de organizar os encontros entre os modos existentes sob relações que se
compõem, e ora o desdobramento, ora a substituição dos afetos passivos por afetos
ativos decorrentes das próprias noções-comuns.” (Idem, 2002 p.64). No terceiro gênero
fazemos abstrações, incorremos em erros de generalizações, como o exemplo apontado
por Espinosa que mencionamos no início do capítulo, a saber, não levar em conta as
singularidades.
O terceiro gênero é dado pela relação entre idéias adequadas. É no terceiro
gênero que admitimos as singularidades, mas traçamos relações entre nossa essência, a
de Deus e das coisas. As idéias adequadas para Espinosa, assim o são, quando
conseguem chegar a aquela verdade afirmada no começo da explicação de sua teoria, a
de que todas as coisas derivam de Deus, sendo assim, há uma única substância.
Sendo assim, o que podemos perceber das idéias espinosianas é que o corpo
tem um papel central, a tal ponto que desconhecemos todas as relações de que ele é
capaz. O conhecimento desenvolve-se como um acontecimento corporal, através de
afecções, afetos, movimentos da alma e duplicação de idéias. A este respeito, a
consciência é tida por ele como essa duplicação, quando a idéia volta-se para si mesma.
Dentro das questões do início do capítulo, a escolha de Espinosa se expressa
pelo fato de sua teoria compreender a participação do corpo e demonstrar um
fundamento para a idéia de que as emoções participam do cognitivo, sendo como
matéria prima, fornecendo idéias-imagens ou dizendo algo a respeito da nossa natureza
e da natureza das coisas. Mostrando que a razão é apenas um “instrumento” do corpo,
mas não o único. Os pensamentos são expressões deste corpo, sendo impossível replicar
a mente sem replicar seu conjunto.
O conhecimento baseia-se nas afecções e afetos. Os sentimentos podem ser
considerados uma perspectiva do corpo, uma produção de afecção-idéia sobre a qual a
consciência se volta e sente seu objeto. Dentro do que pretendemos defender é este
aspecto do conhecimento que se desvela quando voltamos para o nosso interior.
49
A defesa de idéias e teorias, até mesmo nossa compreensão e concordância,
não tem origem apenas em uma reflexão racional que fazemos delas. Antes de tudo, esta
reflexão também se desenvolve com base em emoções, como mostra Espinosa, as
afecções desdobram-se de diversas formas e tomamos consciência apenas de alguma
parte delas. Conhecer as coisas implica em autoconhecimento, que devemos estar
atentos ao que compõe conosco e o que não compõe. Ao que serve de alimento e ao que
diminui nossa potência.
50
CAPÍTULO QUARTO:
A PSICOLOGIA DO INCONSCIENTE
“Vosso coração conhece em silêncio os segredos dos
dias e das noites; Mas vossos ouvidos anseiam por
ouvir o que vosso coração sabe. Desejais conhecer em
palavras aquilo que sempre conhecestes em
pensamento. Quereis tocar com os dedos o corpo nu
de vossos sonhos. E é bom que o desejeis.”
(GIBRAN, 1992 p.51).
51
Este capítulo tem o objetivo de introduzir o conceito de inconsciente em
nossa discussão. Para tanto, busca em dois autores referencias para tratar do assunto:
Freud e Jung.
Passando pelo pensamento moderno, em suas dualidades de perspectivas,
assistimos a um retorno do homem na busca de si mesmo. A nosso ver, esse retorno às
“profundezas” da psique deve-se principalmente a dois motivos.
O início do século XX assistiu a duas guerras mundiais, a Primeira Guerra
Mundial ocorrida entre 1914 a 1918 e a Segunda Guerra Mundial de 1939 a 1945. Estes
dois grandes conflitos beneficiaram-se das tecnologias desenvolvidas durante este
período, o conhecimento e a informação transformaram-se em armas letais. O avião,
que em sua origem teve como intenção de seu inventor ser um meio de transporte, como
hoje em dia, fora usado como uma grande vantagem para fins bélicos entre outros.
Na segunda guerra temos, então, o ápice, com os avanços cada vez mais
freqüentes na física foi possível a invenção de uma poderosa arma de destruição em
massa, a bomba atômica. Considerada um grande erro a ser apagado na história, foi
causa de constrangimentos para grandes cientistas como Einstein, entre outros. Enfim, a
humanidade se assustou diante de tanto poder.
Em meio a tudo isso, questionamentos foram lançados sobre os fundamentos
culturais que permitiram tamanha barbaridade. Na leitura de Jung (1964) podemos
perceber o impacto desses acontecimentos em sua teoria. No livro “O homem e seus
símbolos”, Jung faz referencia diversas vezes a estes acontecimentos, seja para analisar
a estruturas mentais que nos fazem ver o outro como um inimigo, ou como no caso,
uma nação inteira, seja para avaliar a presença de arquétipos coletivos.
O segundo motivo considerado neste trabalho são as descobertas científicas
da época. A descoberta das estruturas internas do átomo possibilitou tanto o
conhecimento da potência da sua liberação de energia, como também mudanças no
modo de perceber o conhecimento científico. Entre as descobertas, podemos destacar a
de Werner Heisenberg que em 1927 formulou o Princípio da Incerteza, considerada uma
das premissas da mecânica quântica. Na observação da partícula subatômica,
Heisenberg, a partir de cálculos estatísticos, percebeu que para determinar a posição de
um elétron é necessário fazê-lo interagir com algum instrumento de medida, sendo que,
mesmo dessa forma não é possível determinar com precisão sua posição. Tanto o plano
experimental como o mecanismo de avaliação adotado pelo observador, devem ser
52
levados em conta. O que interessa nesta teoria é o seu impacto na teoria do
conhecimento.
Observou-se que por mais que a ciência pretendesse ter um conhecimento
seguro e objetivo, não é possível separar o sujeito da observação. Por este fato, pode-se
dizer que o olhar de quem observa é a chave de compreensão da realidade com a qual
interagimos. A mente humana passa a ser o enigma.
Ainda no século XX temos mais uma virada. Segundo alguns pensadores
três teorias foram fruto do deslocamento do homem, a primeira de que a terra não era o
centro do universo (Revolução Copernicana), a segunda de que o homem não era tão
diferente dos outros animais (Teoria de Darwin) e a terceira a de que o éramos tão
cônscios dos nossos atos (Teoria Freudiana).
Pois bem, ainda na teoria de Copérnico podemos avaliar que foi uma vitória
científica, através de suas observações esse cientista chegou à conclusão de que os
movimentos dos astros não eram como realmente aparentava ser. Nossos sentidos
davam a impressão de que era o sol que se movimentava em torno da terra e não o
contrário.
A teoria evolucionista de Darwin nos colocou no mesmo patamar dos outros
animais, nos unindo novamente à história natural do universo, produto da seleção
natural, o homem estava à mercê de forças que ele não podia controlar.
Mas é com Freud que temos uma descoberta relevante para nossa pesquisa,
ao colocar que a maior parte de nossos sentimentos e comportamentos não é
conscientes, Freud abriu um caminho extraordinário de interpretação da mente humana.
Ao analisar a patologia recorrente de sua época, a histeria, cuja incidência era
em sua maior parte entre mulheres, Freud inovou ao correlacionar com a doença, fatores
psíquicos incidindo sobre o corpo. Influenciado pelas aulas de Charcot, que se baseava
no uso da hipnose, Freud enfrentou o campo da medicina ao afirmar que a doença, que
tinha dentre diversos sintomas paralisia e afasia, era oriunda de traumas psicológicos
cujos efeitos manifestavam-se no corpo. Para alguns médicos da época a histeria era até
mesmo considerada fingimento por partes dos pacientes, a paralisia temporária sem
causas aparentemente intrigava os cientistas.
O inconsciente é a esfera subjetiva onde ficam guardadas informações que, por
terem uma carga simbólica muito forte ou por estarmos desatentos a elas, não são
conscientes, todavia, elas podem a qualquer momento se manifestar.
53
Primeiramente, Freud encontrou na hipnose um método eficaz de acessar os
conteúdos inconscientes reprimidos pelo trauma, mais tarde encontrou nos sonhos e na
própria fala um instrumento de acesso mais eficaz. Mostrando que através de uma
linguagem simbólica era possível desvendar as possíveis causas de uma repressão.
Como sonhar com uma torre poderia remeter ao falo, ou ainda trocar palavras (ato
falho) durante a fala, livre associação, poderia indicar níveis inconscientes de alguma
repressão.
Ao pensar a mente como um produto evolutivo, quase no final de sua
carreira Freud tentou fazer correlações frustradas entre partes do cérebro e as divisão
conceituais que ele traçou para a mente. Ele divide a mente em três instâncias: o
consciente, o pré-consciente e o inconsciente. Além desta divisão do modelo
topológico, temos no modelo os conceitos de Id, responsável pelos nossos impulsos
mais primários, o Ego, responsável pela noção de um eu que se relaciona com o mundo
exterior e o Superego, parte responsável por uma espécie de força contrária ao Id, onde
agem mais fortemente os pensamentos éticos e morais internalizados, como uma
representação da sociedade dentro de nós.
Tomamos principal atenção em relação ao Id, esta parte responsável por
pulsões diversas e que tem extrema relação com o corpo. O conceito de pulsão remete
ao de sexualidade, que a pulsão é tida como um representante psíquico de fontes
internas e externas de excitação. Nas palavras de Freud: “Por pulsão deve-se entender
provisoriamente o representante psíquico de uma fonte endossomática e contínua de
excitação, em contraste comum “estímulo”, que é estabelecido por excitações simples,
vindas de fora”. (FREUD, 1995 p.100)
8
.
Os “estímulos” vindos de fora são aqueles recebidos pelos sentidos do corpo,
considerados zonas erógenas nas quais ocorre excitação “simples” que mais tarde
empresta à pulsão seu caráter sexual. As pulsões, no primeiro esquema, são sexuais ou
do EU (auto-conservação), no segundo esquema, as pulsões sexuais (libido) são do EU
(narcísica), e do objeto (objetal)
9
.
Precisa-se traçar neste ponto uma diferenciação entre a proposta freudiana
com relação ao corpo e a escolhida neste trabalho, a saber, a proposta espinosiana.
8
Esta citação foi retirada do livro de Luciano Elia “Corpo e Sexualidade em Freud e Lacan”, as
referências encontram-se na bibliografia.
9
As pulsões separadas em esquemas e expostas dessa forma foram baseadas em: “Corpo e Sexualidade
em Freud e Lacan” de Luciano Elia, as referências podem ser encontradas na bibliografia.
54
Quando Freud refere-se ao corpo e o relaciona às pulsões e instintos, ele o
faz diversamente do proposto aqui. O corpo em Freud, quando ele o relaciona à psique,
não é o corpo biológico. Na teoria freudiana não temos acesso direto ao corpo, que o
sujeito se constitui depois de um corpo dado. Sendo assim, é necessário ao sujeito
realizar uma reapropriação desta massa de carne como sua. Tomando como exemplo a
referência que fizemos sobre o estudo da histeria, neste caso, não é uma ação
propriamente do corpo a paralisia de algum membro, mas uma complacência
somática”.
Na constituição do ego corporal, o sujeito realiza esta apropriação do corpo
como seu, ao realizar esta ação psíquica, na qual ele toma o corpo, não mais como
biológico, mas em uma ordem simbólica, o acesso ao corpo como algo vivo, constituído
de órgãos não é possível, aliás, o acesso ao corpo só é possível nesse segundo
momento de apropriação simbólica. Então, para Freud, quando ele identifica a paralisia
como uma expressão psíquica, ele relaciona a este um ato de defesa de ordem psíquica
sobre este corpo simbólico ao qual o corpo biológico se submete produzindo um
sintoma.
O que podemos perceber é que o movimento proposto por Freud é contrário
ao de Espinosa, porque, apesar de ele se referir às pulsões, estas não são diretas ao
corpo, o corpo pode sim receber estímulos, mas é a alma que realiza a operação de
produzir imagens ou afecções acerca destes, ela toma-os “emprestados”. E o corpo
como realidade física nada mais é do que algo perdido para este sujeito que realiza
sobre ele uma significação, diz: eu ou meu.
As idéias de Espinosa assemelham-se mais às de Niezstche, que sendo um
leitor de Espinosa, vê no corpo um “si mesmo” ao ponto de afirmar:
“O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um
sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e seu pastor.
Instrumento do teu corpo é também a tua pequena razão, meu
irmão, a que tu chamas “espírito”, um pequeno instrumento e
um brinquedo da tua grande razão. “Eu”, dizes tu e orgulhas-te
dessa palavra. Todavia, a maior é aquilo em que queres
acreditar: o teu corpo e a sua grande razão, não diz Eu, mas faz
Eu.” (NIEZSCHE, 1998, p. 38)
55
O corpo nesta perspectiva é o produtor da razão e a tem como instrumento, o
Eu da mente é que é uma construção corporal e não o contrário.
Mas a referência a Freud serve apenas para introduzir o conceito de
inconsciente, pois a forma como iremos abordá-lo terá como base Jung.
Com a noção de inconsciente junguiano estamos mais próximos de traçar
uma perspectiva que tem não só na razão sua confluência, mas também nas emoções um
aspecto valioso.
Tendo como base o corpo não mais separado da mente, e o conhecer
implicando em um processo corpóreo, envolvendo afecções, mais subterrâneo, em que
operam desejos, prazeres e desprazeres com certas idéias, aumento e diminuição de
potência.
Também na esfera dos sonhos, aparece-nos uma linguagem totalmente
diversa do discurso racional, que ela aproxima-se mais dos mitos, com um profundo
simbolismo. E é com Jung que veremos a noção de arquétipos como um rico modo de
operar da mente humana.
Jung e os arquétipos
Apesar de ter sido discípulo de Freud, Jung rompe com muitos pontos da
psicanálise. Segundo Jung a noção de inconsciente apresentada por Freud não faz jus a
importância do mesmo.
Na concepção de Jung a visão que Freud tinha do inconsciente se
assemelhava mais a um porão, onde escondemos as coisas que não queríamos mais.
Como uma caixa escondida para onde vão todos os nossos sentimentos e fatos
reprimidos cuja carga emocional é muito forte para suportar.
Jung renova o conceito de inconsciente ao tratá-lo como uma força geradora,
onde não se camuflam sentimentos e lembranças, mas onde se geram muitas outras
coisas, como por exemplo, símbolos e arquétipos que remetem não a algum trauma
em especial, mas revela uma estrutura, uma forma de pensar mais antiga.
A consciência para Jung é produto de uma “vagarosa” evolução, sendo
considerada recente e ainda em estado “experimental”. o inconsciente pode ser
considerado como uma sedimentação mais antiga.
Voltando à definição de inconsciente anunciada acima, as experiências
individuais que fazem parte da memória perceptiva, que por algum motivo, tornam-se
56
subliminares. Esses acontecimentos psíquicos fazem parte do inconsciente pessoal.
Além desta esfera individual do inconsciente, existe o inconsciente coletivo.
Para Jung o inconsciente coletivo seria a sedimentação coletiva da psique,
assim como o corpo, a psique também evoluiu, e para Jung esta parte antiga
corresponde a uma espécie de herança biológica, que remetem às respostas dadas pelos
nossos antepassados às exigências da vida. Explicando de uma forma melhor, o
inconsciente coletivo seria uma memória coletiva que trazemos como herança.
"Ao lado desses conteúdos inconscientes pessoais, outros
conteúdos que não provém das aquisições pessoais, mas da
possibilidade hereditária do funcionamento psíquico em geral,
ou seja, da estrutura cerebral herdada. São as conexões
mitológicas, os motivos e imagens que podem nascer de novo, a
qualquer tempo e lugar, sem tradição ou migração históricas.
Denomino esses conteúdos de inconsciente coletivo."
(JUNG,
1991 Vol. VI)
A respeito disto, do inconsciente, é necessário deixar claro dois aspectos.
Primeiro, a divisão do inconsciente em coletivo e pessoal pode ser considerada como
conceitual, pois seus elementos transitam entre si. Segundo, a psique, para Jung, é
produto de uma evolução biológica, ou seja, sedimentada no corpo, sendo seus
elementos também biológicos.
Por ser mais antigo e por conter elementos arcaicos da psique da
humanidade, o inconsciente possui uma linguagem diferente do pensamento racional,
seus pensamentos são expressos por imagens simbólicas. Para as imagens simbólicas
antigas, cujos esquemas remetiam a uma mentalidade, Jung denominou arquétipos.
Grande estudioso das religiões antigas, de mitos e de símbolos primitivos,
Jung toma emprestada a idéia de Freud de “resíduos arcaicos” para criar a noção de
arquétipos.
Freud cria o conceito de resíduos arcaicos para explicar a ocorrência, nos
sonhos, de símbolos que remetiam a esquemas mitológicos antigos, para ele a presença
desses elementos eram resquícios de uma mentalidade primitiva.
Para Jung estes esquemas representam formas antigas de pensamentos
geradas por esforços adaptativos de convivência ou relação homem-mundo, como
57
indicados no início do primeiro capítulo deste trabalho. Este conjunto de esquemas está
sedimentado no cérebro como uma predisposição.
"(...) naturalmente não se trata de idéias hereditárias, e sim de
uma predisposição inata para a criação de fantasias paralelas, de
estruturas idênticas, universais, da psique, que mais tarde
chamei de inconsciente coletivo. Dei a essas estruturas o nome
de arquétipos. Elas correspondem ao conceito biológico do
'pattern of behavior'" (JUNG, 1991 Vol. V).
O arquétipo pode ser considerado esquemas do comportamento mental e
emocional do homem. Ele tem uma tendência instintiva e primitiva, manifestando-se
através de fantasias, e mais recorrentemente, através de imagens simbólicas: “Se os
arquétipos fossem representações originadas em nossa consciência (ou adquiridas por
ela) nós certamente os compreenderíamos.” (JUNG, 1964, p. 67).
Os arquétipos se repetem em diferentes épocas ou lugares (inconsciente
coletivo). Um exemplo claro é a o mito de uma Idade de ouro” onde não haveria
desigualdades, nem falta de alimentos ou recursos naturais e o homem viveria em
harmonia com tudo e todos. Ora, revivemos esse arquétipo de paraíso com algumas
vertentes do comunismo e mais antigamente em mitos como de Adão e Eva, Atlântida
na Grécia, ou o homem natural dos filósofos contractualistas, sendo depois de algum
erro, desfeito por algum tipo de punição.
Para Jung a psique do homem é fruto de uma evolução e alguns conteúdos do
inconsciente se assemelham aos mitos e imagens produzidas pelo homem primitivo.
Como uma herança cultural e genética, esses esquemas se repetem sob diversas formas
arraigadas no inconsciente e que em diversos momentos, dependendo da história
pessoal do indivíduo, manifestam-se através dos sonhos.
Jung vê nos símbolos algo que vai além de uma forma de expressão, para ele, os
símbolos podem remeter a algum termo ou imagem cotidiana, mas suas conotações vão
além do seu significado manifesto e imediato. Tem um aspecto inconsciente mais
amplo, que quando explorado ultrapassa o alcance da razão. Os símbolos podem ser
naturais ou culturais. Nas palavras de Jung:
“(...) dos símbolos naturais, distintos dos símbolos culturais. Os
primeiros são derivados dos conteúdos inconscientes da psique,
portanto, representam um número imenso de variações das
imagens arquetípicas essenciais. (...) Os símbolos culturais, por
58
outro lado, são aqueles que foram empregados para expressar
“verdades eternas” e que ainda são utilizados em muitas
religiões.” (JUNG, 1964, p. 93).
Os símbolos naturais remetem a imagens arquetípicas essenciais cujo
conteúdo tem origens antigas, ancestrais. os símbolos culturais podem sofrer
transformações, tornando-se “imagens coletivas” aceitas pela sociedade.
Há arquétipos como, por exemplo, o arquétipo do herói, que em algum
momento da vida relaciona-se com o nosso desenvolvimento psíquico. O mito do herói
aparece em diversas culturas, na análise feita por Joseph Campbell (1995) que traça
paralelos entre estes mitos, mostram como a aventura do herói pode ser analisada por
fases, ciclos que se repetem a cada jornada.
Os arquétipos são esquemas que fornecem em uma rica linguagem
simbólica, a própria aventura do homem no processo de tornar-se indivíduo, a este
processo ele chama de individuação.
O que tomamos de Jung é a idéia de ver na linguagem mítica uma
racionalidade, uma forma de pensar da psique humana. Ligamo-nos ao mundo e nos
relacionamos com ele também através de uma linguagem que vai além da racionalidade,
que tem também uma razão, mas diferente da razão que nasce na Grécia e que é
exaltada na modernidade.
“O homem moderno não entende o quanto seu “racionalismo” (que destruiu
a capacidade de reagir a idéias e símbolos numinosos) o deixou a mercê do “submundo”
psíquico” (JUNG, 1964 pg. 94).
Visto esta dinâmica psíquica, para Jung, os símbolos e sonhos são como um
segundo pensamento, dada à autonomia do inconsciente que tem também a capacidade
de examinar e concluir.
A forma como Jung concebe o inconsciente está relacionada ao nosso
trabalho, justamente por este fato, de considerar o inconsciente como capaz de pensar
julgar e avaliar. Por isso, ele envia mensagens para nosso consciente através dos sonhos,
no entanto, sua linguagem é diferente da habitual. Marie Louise Von Franz (1964),
discípula de Jung, relata casos de pensadores que desenvolveram suas idéias a partir de
intuições, como lampejos. Franz identifica nestes casos a conexão com o inconsciente,
pensamentos que “surgem” por acaso, como idéias fixas, tem de ser avaliados como
mensagens do inconsciente.
59
Fatos que passam aparentemente despercebidos, como cheiros, gostos, sensações
entre outros, no momento em que a atenção consciente está ocupada com outras coisas,
são registradas pelo inconsciente e podem ser manifestadas a qualquer momento, a
nosso ver, fazendo parte como uma lembrança corporal.
Se existem processos internos, não conscientes, que podem pensar e avaliar,
através de uma linguagem simbólica, como a dos sonhos, deve ser porque o
conhecimento nem sempre tem seu fundamento na razão.
Além da carga emotiva presente nos arquétipos, vemos na concepção de
Jung, uma relação diferente com os mitos, eles constituem uma forma de processo
mental-corporal, cheia de aspectos emocionais e orgânicos excluídos das outras ciências
que pretendem desvendar o mistério da mente humana. Isto faz lembrar o filme de
ficção científica de Steven Spielberg (2001) “Inteligência Artificial”, que retrata a
história de um robô que adquire capacidade de sentir emoções e que com isso se
assemelha ao ser humano. O que chama a atenção no filme é a capacidade que ele
adquire de sonhar, de fabular e ir atrás de um sonho. O cientista que o cria, no filme, diz
ao robô que o que ele fez, o torna especial, o torna humano.
Bem, é justamente nos sentimentos que se encontra a dificuldade de replicar
a mente humana em máquinas, veremos como os sentimentos são responsáveis pelo
desenvolvimento da consciência na teoria de António Damásio.
Pra nosso trabalho interessa saber, além dos correlatos mentais expressos na
teoria de Jung, como este percebe o processo cognitivo. A pista está no fato de Jung
(1964) considerar que aquilo que a consciência não retém, torna-se inconsciente, mas
pode vir a emergir, a qualquer momento. Mas o caminho inverso também é valido.
Conteúdos que nunca foram conscientes, “pensamentos inteiramente novos e idéias
criadoras”, podem se desenvolver no inconsciente. A este respeito mencionamos o
comentário de Marie Louise Von Franz.
Sobre o “esquecimento” Jung revela: “O inconsciente, no entanto, toma nota de
tudo, e estas percepções sensoriais subliminares ocupam importante lugar no nosso
cotidiano. Sem o percebemos, influenciam a maneira por que vamos reagir a pessoas e
fatos” (JUNG, 1964 p.34).
Portanto, o fato de Jung colocar o inconsciente como produtor de idéias e
pensamentos, nos ajuda a perceber o processo cognitivo, como uma operação que não
envolve apenas pensamentos racionais conscientes, mas também pensamentos
simbólicos inconscientes.
60
CAPÍTULO QUINTO:
DAMÁSIO E OS PRECURSORES BIOLÓGICOS DA CONSCIÊNCIA
“Consciência, em resumo, é uma característica biológica
de cérebros de seres humanos e determinados animais. É
causada por processos neurobiológicos, e é tanto uma
parte da ordem biológica natural quanto quaisquer outras
características biológicas, como a fotossíntese, a digestão
ou a mitose.” (SEARLE, 1997 p. 133)
61
Este capítulo tem como objetivo continuar as discussões a respeito da
participação do corpo e das emoções no processo de aquisição do conhecimento, no
entanto, insere neste “campo de batalhas” a perspectiva da neurociência na teoria de
Damásio.
Na maioria das vezes, pensadores que se ocupam do problema da relação
corpo-mente ou mente-cérebro tratam a mente e seus aspectos como um dispositivo
complexo recentemente instalado ou adicionado nos seres humanos. Ao procurar as
bases biológicas que dão origem à consciência, Damásio nos mostra a necessidade de
termos uma visão darwiniana do processo, ou seja, buscar os precedentes biológicos ou
não, daquilo que pode ter originado, em um processo evolutivo, aquilo que chamamos
de mente ou consciência. Não podemos simplesmente tratar a mente como algo dado
nesta manifestação complexa que temos hoje.
Se adotarmos esse procedimento, poderemos chegar às bases biológicas que
precederam ao desenvolvimento da mente e dessa forma evidenciar de que maneira o
corpo contribui para sua constituição e de certa forma compreender os motivos do
desenvolvimento de uma capacidade tão complexa como esta, ou seja, a capacidade de
pensar.
Em seu livro “O Mistério da Consciência: do corpo e das emoções ao
conhecimento de si”, Damásio tem como objetivo específico analisar as circunstâncias
biológicas que permitem o desenvolvimento da consciência. Sua tese é a de que, ao
sujeito se relacionar com o objeto, as mudanças desencadeadas pelo mesmo são
processadas e representadas no proto-self, que é uma espécie de precursor biológico do
self.
O self é o sentimento de si, como exemplo Damásio refere-se que por mais
que nossa atenção esteja voltada para algo, sempre, a qualquer momento, um
sentimento de si, ou seja, um sentimento que diz que é você, esse self para ele pode ser
autobiográfico, ou apenas referencial. Este self está alicerçado “em um conjunto de
padrões neurais inconscientes que representam aparte do organismo que chamamos de
corpo propriamente dito.” (DAMÁSIO, 2002 p. 176).
O proto-self é a parte do organismo responsável por sinalizar através de
mapas neurais a todo o momento o estado geral do organismo; ao fazer isso, no
momento em que o organismo está empenhado em se relacionar com o objeto, as
alterações (emocionais também) desencadeadas em seu meio interno são representadas
62
no proto-self e depois contadas de maneira não verbal ao self central. E assim em um
nível mais complexo o organismo tem consciência do que ocorre com ele graças a
esta história contada, é no momento em que o organismo passa a ter algum sentimento
em relação ao que ocorre com ele é que se desenvolve a consciência.
Para Damásio a consciência começa como um sentimento de um
sentimento, o que a torna não uma coisa, e sim, um sentimento acerca daquilo que afeta
o organismo. Neste ponto é necessário deixar claro que, para o autor, o conhecimento
e aqui podemos acrescentar conhecimento reflexivo é possível com o
desenvolvimento da consciência. Por isso, Damásio afirma que desde seus primórdios,
consciência é conhecimento e conhecimento é consciência”.
Depois de demonstrar sua tese, especificando através de exemplos
patológicos ou análises do funcionamento cerebral as áreas possivelmente responsáveis
desse processo, o autor demonstra de maneira lógica a importância que teve na escala
evolutiva o organismo conhecer o que ocorre com ele e ter consciência de si enquanto
ser singular. Assim, poderemos constatar que o corpo não somente dá as condições para
que a consciência surja como também ela, a consciência, está a serviço do corpo.
Segundo Damásio, a exemplo de Maturana e Varela (2001), a chave da
compreensão do organismo vivo está na fronteira que separa o que está dentro dele e o
que está fora. A sobrevivência do organismo depende tanto desta fronteira como
também da regulação de estados internos que ocorrem dentro dela, além, é claro, do que
o autor chama de ímpeto de preservar a vida. De acordo com este conhecimento o autor
deriva que o desenvolvimento da mente e da consciência se associa com este “ímpeto da
vida dentro de uma fronteira”.
Temos aqui, primeiro uma necessidade de fronteira para que se defina um
organismo, em um nível mais complexo podemos associar a um self, e em segundo, um
ímpeto de preservar a vida, os motivos que levam um organismo a desenvolver
consciência, considerando-a como um mecanismo que amplia as possibilidades de
adaptação do organismo. Para que um animal garanta sua sobrevivência são necessárias
duas ações: incorporar fontes de energia e prevenir a integridade de seu corpo.
Organismos simples, em um meio simples, necessitam de poucos
mecanismos para executar essas funções. Normalmente esses mecanismos são ativados
automaticamente segundo a situação e não necessitam serem conscientes para o
organismo. Já organismos complexos (dotados de sistema nervoso) precisam, para agir,
de imagens; e é, através delas, que ele poderá optar, dentro de um repertório de ações
63
disponíveis, por um tipo de ação necessária no momento e realizá-la. Precisam, além
disso, que a situação de seu meio interno seja, a cada momento, representada. Isso se faz
necessário para que se possa regular os estados corporais e mantê-los constante.
O proto-self é “um conjunto coerente de padrões neurais que mapeiam, a
cada momento, o estado da estrutura física do organismo nas suas numerosas
dimensões” (DAMÁSIO, 2000 p.225). É importante ressaltar que essas estruturas estão
empenhadas no processo de regulação do estado do organismo.
Apesar de o proto-self ser um precursor biológico do self, não somos
conscientes dele. Podemos considerá-lo muito mais como um mecanismo que se realiza
através da interação de vários sinais neurais e químicos provenientes de diversas
regiões; é importante entender que não uma localização exata dessa função, como de
nenhuma outra.
Considerando sua visão darwiniana do desenvolvimento da consciência, o
autor divide a consciência em dois tipos: consciência central e consciência ampliada. Da
consciência central, que por ser uma estrutura mais antiga pode ser identificada em
outros animais com sistema nervoso, surge o self central.
A consciência ampliada, que é uma manifestação mais complexa da
consciência, está alicerçada na consciência central de modo que é possível consciência
central sem consciência ampliada, mas não consciência ampliada sem consciência
central. Isso fica claro em pacientes com lesões cerebrais. A consciência central,
juntamente com o self central, é mais antiga e deve ter aparecido muito mais tempo,
sendo possível identificá-la em outros animais com sistema nervoso.
Com o acréscimo da consciência central temos um aumento no estado de
vigília e um aumento da atenção em relação ao objeto; isso ocorre porque temos aqui
uma identidade transitória incessantemente recriada para cada objeto com o qual o
cérebro interage, esta identidade é fornecida pelo self central. Porém, o tipo de
conhecimento possível somente com a consciência central é geral e corresponde
somente ao momento vivido pelo organismo; esse fato ocorre devido a não-dependência
da memória convencional, da memória operacional, do raciocínio ou da linguagem. A
consciência central é estabelecida pelo genoma, com uma pequena ajuda do meio; a
cultura pouco pode modificá-la.
A grande novidade da consciência ampliada é a memória para os fatos, o que
capacita o organismo a aprender e reativar esses registros. Aliás, Espinosa no século
XVII, essa pista ao ressaltar a importância da memória para o aprendizado. O self
64
que emerge da consciência ampliada é mais complexo e situa o organismo no tempo,
fornecendo um registro de seu passado, presente e futuro antevisto.
Isto se torna uma vantagem porque, ao interagir com o objeto, o organismo
pode situá-lo no tempo e fazer associações com experiências anteriores, dando-lhe
assim uma maior possibilidade de reações a situações inesperadas. Apesar de a
consciência ampliada também ser estabelecida pelo genoma, a cultura pode influenciar
significativamente seu desenvolvimento em cada indivíduo, além das experiências
vividas.
Nesse ponto temos também a conexão das esferas da vida e do
conhecimento, o que se vive modifica tanto nossa estrutura interna como também nossa
experiência cognitiva.
Damásio também diferencia emoção de sentimento. Existem pelo menos três
fenômenos apontados pelo autor: um estado de emoção, que pode ser desencadeado e
executado inconscientemente; um estado de sentimento, que pode ser representado
inconscientemente; e um estado de sentimento tornado consciente, que é conhecido pelo
organismo.
As emoções antecedem o sentimento, aliás, o sentimento é uma
conseqüência de uma emoção. As emoções são conjuntos complexos de reações
químicas e neurais, e estão intimamente ligadas à sobrevivência do organismo, além de
cumprirem um papel regulador, elas previnem o organismo contra ameaças do meio.
O autor supõe que assim como a emoção está relacionada à sobrevivência do
organismo, a consciência também e que ambas estão alicerçadas na representação do
corpo. Tanto é assim, que quando uma está ausente, a outra também está. Diferente das
emoções que são reações muitas vezes observáveis, os sentimentos são reservados, são
privados e não temos acesso direto a eles.
Com a presença da consciência, o organismo tem a oportunidade de
conhecer seus sentimentos, aumentando sua capacidade de reagir de maneira adaptativa.
Realmente, como coloca Damásio, saber o que está ocorrendo consigo, amplia no
organismo a qualidade de agente. O mais interessante, no que diz respeito a esses três
fenômenos, emoção, sentimento e consciência, é a sua relação com o corpo.
“Começamos com um organismo composto do corpo
propriamente dito e do cérebro, equipado com certas formas de
reação cerebral a determinados estímulos e com capacidade de
representar os estados internos causados pela reação a estímulos
65
e pelo acionamento de repertórios de reações pré-ajustadas. À
medida que as representações do corpo adquirem mais
complexidade e coordenação, passam a constituir uma
representação integrada do organismo, um proto-self. Assim que
isso acontece, torna-se possível engendrar representações do
proto-self conforme ele é afetado por interações com
determinado meio. É então que tem início a consciência, e é
depois que um organismo que está reagindo primorosamente
a seu meio começa a descobrir que está reagindo
primorosamente a seu meio. Mas todos esses processos
emoção, sentimento e consciência dependem, para sua
execução, de representações do organismo. Sua essência comum
é o corpo”. (Damásio, 2000 p. 359).
A consciência desenvolve-se no momento em que o organismo é capaz de
representar internamente as mudanças geradas no estado corporal em sua relação com o
objeto, e ao fazer isso, criar um relato não verbal do que ocorre e em quem está
ocorrendo a alteração, ao mesmo tempo em que realça o objeto.
O proto-self e o objeto são representados no cérebro por mapas de primeira
ordem, a relação entre organismo e objeto, necessita de mapas de segunda ordem. A
consciência central ocorre quando o cérebro fornece esse mapa de segunda ordem que
se baseia em relatos imagéticos. A partir disso, temos um sentimento em relação a um
sentimento, que é fornecido por esse relato imagético da consciência central.
A consciência ampliada situa a experiência juntamente com um self
autobiográfico, fornecendo ao organismo como pano de fundo sua história particular
importante ressaltar que não importa o que estamos fazendo, sempre um sentido do
self por trás informando a todo o momento quem somos, por mais que nossa atenção
esteja voltada para outro objeto) que pode ser acessada quando for solicitada. Além
disso, ele associa esta nova experiência a outras anteriores, aprendendo assim qualquer
novo fato.
Este ponto Espinosa havida ressaltado, ao mostrar a forma como opera a
cognição humana, colocando que ao conhecermos algo novo, sempre buscamos
semelhanças a outra coisa conhecida, sendo desta forma mais fácil reter este dado novo.
No entanto, ele aponta que este modo de operar, por associação, nos faz cair
em erros, já que acabamos generalizando as coisas ou as retendo por suas semelhanças e
não prestando atenção às suas singularidades.
Assim como o corpo renova a cada instante alguns de seus componentes
seguindo um plano, a cada momento o cérebro reconstrói o sentido do self. A aparente
66
estabilidade do self é necessária para a sobrevivência do organismo, pois necessitamos
de um referencial no mundo e esse referencial é fornecido pelo corpo e sua
representação interna. O self sempre em mudança é o self central, que se reconstrói a
cada experiência; o self mais estável e que sentimos mais permanente é o self
autobiográfico que, como foi exposto, fornece ao individuo informações sobre sua
vida, as mudanças nesse tipo de self, são remodelações do passado ou do futuro
antevisto.
É interessante perceber que Damásio a entender que essa experiência de
um “eu” é necessária como uma referência do organismo no mundo, sem ela seria
impossível travar conhecimento deste mundo. Isso não quer dizer que exista um eu
constante que define quem somos, mas uma disposição que cria esse eu com uma
espécie de autobiografia, ou seja, falar em identidade permanente e constante é uma
ilusão, assim como querer associá-la a algo eterno e imaterial.
O fato de a consciência produzir esse “eu no ato de conhecer”, gera o auto-
interesse, que é uma grande arma para o organismo no sentido da auto-preservação, o
autor coloca, que esse talvez seja o segredo por trás da eficácia da consciência. O “eu”
aqui é produzido pelo corpo.
O que fica bastante claro no livro de Damásio é que a consciência é muito mais
um sentimento do que uma coisa. Sendo assim, o corpo, como foi dito, não as
condições para que surja a consciência como também a põe ao seu serviço.
Para Damásio a A.I. (Inteligência Artificial) que trata da possibilidade de
reproduzirmos o fenômeno da mente em maquinas, não parece estar tão distante de
alcançar seu objetivo, se não fosse, é claro, a existência de sentimentos. Damásio coloca
que a emoção é a grande barreira a ser transposta. Podemos até certo ponto simular a
“aparência” de uma emoção. Porém, “os sentimentos não podem ser reduzidos em
silício, a menos que a carne e as ações do cérebro sobre ela sejam copiadas, a menos
que copie a percepção que o cérebro tem da carne depois de ter agido sobre ela”.
(DAMASIO, 2000, p.397).
O que podemos concluir de Damásio é que ao traçar os precursores da
consciência, ele desenvolve conceitos que podemos utilizar em nossa pesquisa.
Comparando sua teoria com as revistas aqui, podemos traçar um paralelo
com Espinosa e Jung.
Em relação ao Espinosa, quando Damásio coloca o proto-self, como uma
central que fornece, a cada momento, o estado do corpo, através de imagens, podemos
67
recordar das afecções em Espinosa, que também são produzidas pelo contato com o
objeto e que causam modificações no corpo, essas afecções são o próprio estado gerado
deste corpo. Também em Espinosa, estes estados criam imagens, tanto que podemos
falar em afecções-imagens, ou pensamentos-afecções.
No momento em que o proto-self relata esta modificação de estado corporal
ao self central, temos um sentimento do organismo em relação ao que ocorre, para
Damásio, isto é o inicio da consciência.
Em Espinosa podemos dizer que os afetos-sentimentos se equiparam a este
momento, porque existe um estado corporal, uma afecção, logo existe um sentimento
em relação a isto, a variação, ressaltada por Espinosa.
Por isso, a consciência está tão atrelada ao conhecimento para Damásio, pois
ela se inicia a partir do momento em que o organismo passa a ter um sentimento em
relação ao que ocorre com ele, ao que sente em seu corpo.
A consciência é considerada a última etapa de um processo que tem sua
origem no corpo e em um sentimento, quando Damásio fala em auto-interesse e em um
referencial que possibilita a relação com o objeto, ele coincide com a idéia de que o
corpo faz este “Eu”.
Ao traçar uma consciência central e uma ampliada, assim como um self
central e um self autobiográfico, Damásio aproxima-se também de Jung, pois a
consciência desenvolve-se a partir de relações internas do corpo e tem como precursor
uma consciência mais antiga. Poderíamos equiparar a consciência central com o
inconsciente de Jung, com algumas refinadas da parte de Jung.
Em um nível mais profundo e antigo, como proto-self e self central, esta pré-
consciência trabalha com relatos imagéticos. Lembrando que, para Damásio, o
desenvolvimento da consciência amplia o repertório de ações pré-programadas neste
organismo, podemos fazer uma associação com o inconsciente coletivo de Jung.
Concluindo este capítulo, levando em consideração que Damásio pretende
responder a pergunta: que processo se esconde no ato de conhecer e como neste ato o
organismo percebe a si mesmo e o objeto. Sua resposta parece ser simples e direta, o
conhecer envolve emoção, consciência (em suas variadas formas) e o corpo.
68
CAPÍTULO SEXTO:
OUTRAS TEORIAS ACERCA DA COGNIÇÃO
Um rizoma não começa nem conclui, ele se
encontra sempre no meio, entre as coisas,
inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas
rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore
impõe o verbo “ser”, mas o rizoma tem como
tecido a conjunção “e...e...e...”. (DELEUZE,
1995 p. 37)
69
Este capítulo pretende discutir e inserir nas discussões do nosso trabalho,
outras teorias que se relacionam com as apresentadas.
Humberto Maturana e Francisco Varela (2001) na obra “A árvore do
conhecimento”, propõem uma teoria na qual o conhecimento e a vida estão atrelados de
tal forma que não podem ser concebidos separadamente. Como as questões da obra são
muitas, vamos nos concentrar em dois conceitos, que são centrais na obra, que estão
relacionados ao nosso foco, o conceito de autopoiésis e acoplamento estrutural.
A tese central desses dois autores é a busca pela definição do que é a vida e o
que a diferencia de um ente não vivo. Ao invés de se fixarem a uma lista de
características que se repete em todo ser vivo, os autores buscaram a configuração de
relações entre os componentes do sistema que determinam as características essenciais
desse sistema. Juntamente com o estudo da estrutura, que é a incorporação física do
padrão de organização, Maturana e Varela formulam uma teoria complexa acerca dos
seres vivos.
Autopoiésis
Poiésis, palavra grega que significa “produção”. Auto, que se traduz por si
mesmo”. Conceito criado pelos autores para designar a organização de todo ser vivo
cuja característica passa por sua constante autoprodução ou autocriação.
É a partir da observação no nível celular que, em seu livro mencionado,
os autores demonstram, pelo dinamismo metabólico da célula, que todos seus
componentes são ao mesmo tempo produto e produtor. Essa organização circular pode
ser exemplificada pela descrição de um dos processos em uma célula vegetal. O ADN
no núcleo da célula produz moléculas de ARN, que contêm instruções para a produção
de proteínas e enzimas. Dentre estas, um grupo de enzimas que podem reconhecer,
remover ou substituir seções danificadas do ADN. Então, o ADN produz o ARN que
por sua vez especifica enzimas que reparam o ADN.
Este é um exemplo de como cada componente de uma rede autopoiética
ajuda a produzir e transformar outros componentes da rede. Acrescenta-se que devido
ao fato deste processo ocorrer dentro de uma clausura operacional, demarcada pela
membrana celular, pode-se afirmar que a célula é organizacionalmente fechada, o que
significa que ela é autônoma, ao mesmo tempo em que é estruturalmente determinada,
já que ela seleciona a entrada e saída de elementos.
70
Passando para qualquer nível mais complexo de vida, que é o caso dos seres
pluricelulares, é possível observar o mesmo dinamismo, que quase todos eles, além
de terem passado por uma fase unicelular, são compostos pela integração das células.
Através da análise do fenômeno da reprodução, eles demonstram que o
aparecimento de seres mais complexos, nada mais é que uma variação sobre o mesmo
tema: a autopoiésis celular.
Para os autores, o surgimento dos seres multicelulares introduz uma
novidade que é uma maior possibilidade de diferentes classes de indivíduos. A partir
disto, fica claro que com a junção das células, o dinamismo metabólico continua em um
nível macro.
Acoplamento Estrutural
Estar acoplado estruturalmente ao meio significa estar em contínua interação
com ele, não com ele, mas também com outros elementos inseridos nele, como, por
exemplo, outros seres-vivos ou até mesmos elementos não vivos, como é o caso de
ambientes aos quais estamos em contato permanente. Essa interação consiste em
perturbações recíprocas (organismo e meio sofrem transformações) e recorrentes. A
interação ocorre como resultado natural da dinâmica do organismo. O caráter dessas
interações pode se tornar “saudável”, na medida em que ser-vivo mantém sua
organização, ou pode se tornar destrutível, quando ele não consegue conservar sua
autopoiésis. Isso vai depender do tipo de interação que se estabelece e isso sempre
depende da deriva natural ao qual estamos submetidos.
Pois bem, o conceito de autopoiésis se assemelha à idéia de autoprodução
em Espinosa, com algumas diferenças. Em um primeiro ponto, esta forma de ser não é
restrita aos seres vivos, sendo Deus a causa de si (autoprodutor) e, sendo todas as coisas
derivadas dele através de alguns de seus atributos, todas as coisas obedecem a sua
natureza, segundo a sua própria necessidade. Porém, dependendo das afecções do corpo
o homem pode ser passível e, sendo assim, diminui sua potência de ação, a própria
liberdade se associa a esta idéia de ser causa de si, o homem padece na medida em que
algo se produz nele em que ele é apenas causa parcial, na medida em que não pode ser
deduzido de sua própria natureza. Neste caso, o conhecimento para Espinosa também
71
está associado à vida, pois ele pode ser tido como alimento ou veneno, pode processar
uma destruição ou um aumento de potência.
Além disto, a idéia de autopoiésis acompanha uma espécie de autonomia em
relação ao meio, o organismo é determinado estruturalmente, ou seja, em seu processo
cognitivo o meio pode influenciar esse organismo, mas as conseqüências desta
perturbação são determinadas segundo a estrutura do mesmo. uma correlação neste
caso também com as idéias de Espinosa, porque, segundo ele, as afecções são geradas
segundo a natureza do corpo externo e segundo a natureza do corpo que conhece. O
conhecimento tem um sentido relacional, mas podemos perceber que em Espinosa a
natureza do corpo externo não é ignorada, sendo assim, a determinação não é somente
dada pela estrutura interna.
Ao considerar o processo cognitivo como um sistema fechado, por mais que
esses autores pretendam afirmar uma relação íntima com o meio (acoplamento
estrutural), a impressão de que não é possível uma relação de fato com um sistema
que se fecha em si mesmo, ele teria que conter uma abertura voltada para fora para
estabelecer uma relação com este meio, o processo cognitivo parece, desta forma que é
exposta, na autopoiéis, como uma atitude esquizofrênica por parte do cognoscente. Por
mais que caia por terra o solipsismo ou o conceito de representações, ainda permanece
uma espécie de esquizofrenia, por estarmos fechados em nós mesmos.
O conceito de determinação estrutural leva a uma idéia interessante, pois os
corpos podem apenas nos perturbar, influenciar e, na medida em que somos
perturbados, as conseqüências desta perturbação são determinadas pela nossa estrutura.
Sendo assim, nossa estrutura é dada, além de ser organizada de forma autopoiética,
segundo nossa ontogenia (a história pessoal de cada ser) e segundo nossa filogenia
(história da própria espécie). Nesse ponto, podemos atentar que o ser conhece aquilo
que sua estrutura permite, destarte, o conhecimento tido enquanto representação, uma
ação do intelecto sobre a informação que provêm de fora, cai por terra.
Não fazemos representação do mundo fora, mas construímos essa
informação a partir da nossa estrutura. Até esse ponto podemos dizer que a teoria de
Espinosa se assemelha a de Maturana e Varela, pois, se as afecções dependem tanto de
nossa natureza, como também da natureza do objeto, não podemos dizer que se constrói
uma representação pelo intelecto, com informações vindas do exterior. Esclarecendo,
72
enquanto a alma só percebe as coisas exteriores, enquanto é determinada pelo exterior, a
alma não percebe a si mesma, nem ao seu corpo, sendo tomada por conhecimentos
mutilados. Vale deixar claro que esta determinação exterior ocorre quando se é levado
em conta somente as afecções causadas pelos corpos e a alma se volta para o exterior
em busca da compreensão.
“(...) todas as vezes que é determinada do exterior, pelo choque
acidental das coisas, a considerar isto ou aquilo, e não todas as vezes
que é determinada interiormente, a saber, porque considera ao mesmo
tempo várias coisas, a conhecer as semelhanças que existem entre elas,
as suas diferenças e as suas oposições. Todas às vezes, com efeito, que
ela é interiormente disposta desta ou daquela maneira, então considera
as coisas clara e distintamente, (...).” (ESPINOSA, 1991 p. 156)
A idéia de conhecermos segundo a nossa natureza não será descartada aqui,
mas como admitirmos a influência dos corpos exteriores e de idéias exteriores
colocando o sistema cognitivo como fechado? Como negar a cultura e a educação,
assim como o uso da linguagem e o aprendizado como um choque entre esta estrutura e
o corpo? Será possível admitir essa forma criativa de operar, sem negar a relação com o
mundo?
Na medida em que identifico esta mesma forma de operar, autônoma, não
no organismo vivo, mas na cultura, no meio que nos cerca, não posso dizer que ele
defina apenas o ser vivo. Apesar de sermos afetados segundo nossa natureza (filogenia)
e segundo nossa capacidade particular de afetação (ontogenia) o fato de conceber o
processo cognitivo fechado em si mesmo, não dá a possibilidade de relação, pois apenas
nos relacionamos quando estamos abertos de alguma forma voltados para além de nós
mesmos. Quando nos referimos à esquizofrenia, esta é eliminada a partir do momento
em que desloco esta determinação para a relação, como faz Espinosa.
Na questão do acoplamento estrutural, a relação saudável ou destrutiva,
apontada pelos autores, se relaciona com a questão de compor ou decompor de
Espinosa, com uma diferença também. Só é possível destruir um corpo, fazê-lo cessar
de existir, outro corpo exterior, pois dentro do mesmo corpo é impossível conceber algo
que negue sua própria natureza. Sendo assim, mais uma vez a abertura do ser é condição
para que haja de fato relação. Quem sabe ao deslocar a determinação na relação, assim
73
estamos levando em conta tanto a estrutura do ser como também a natureza daquilo que
afeta, podemos então, que a afetação não é a mesma para cada um, nem na teoria de
Espinosa, nem na teoria de Maturana e Varela, admitir a possibilidade de comunicação
um esforço e uma urgência de estudar e se aprimorar na arte relacional.
A autopoiésis de Maturana e Varela, da forma como foi criticada aqui,
remete a uma idéia de circularidade fechada em si mesma, o que podemos associar ao
circulo vicioso. Como a idéia de autoprodução encontra-se em Espinosa também, mas
com as diferenças que foram esclarecidas, podemos associar a imagem de autoprodução
espinosiana, como faz Morin (2002) que aproveita o conceito de autopoiésis e o
transforma em um movimento que escapa ao círculo vicioso, tornando-se um “círculo
virtuoso”, a esta imagem ele associa a de uma espiral. O que admite além da
determinação interna, uma abertura, como já foi ressaltado, do ser para o mundo.
Outro ponto a ser destacado, é a visão do corpo como uma pluralidade de
indivíduos. Também vemos na teoria de Damásio (2000) que o estado atual do corpo
muda a cada instante, também na teoria de Maturana e Varela identificamos este
conceito de fluidez, mudanças constantes, mesmo que determinadas pela estrutura.
Voltando na teoria de Damásio a noção de “eu” estável, autobiográfico, se coloca
apenas como uma necessidade de referência deste organismo.
A identidade temporária ou a multiplicidade de indivíduos que compõe o
corpo leva-nos a uma multiplicidade igual em afetações. O processo cognitivo se
nesta multiplicidade, a partir do momento em que queremos organizá-la, quando
tentamos encontrar ou impor a ela uma ordem, acabamos generalizando esta
experiência. Não estamos perdendo com isto? Espinosa nos alerta sobre os erros das
generalizações, que por um vicio da razão, faz associações a experiências passadas e
acaba por ignorar as singularidades.
Apesar de inovar muito para seu tempo Espinosa também busca uma
classificação, ele divide o conhecimento em três gêneros e admite também que o gênero
guiado pela razão é o mais adequado. No entanto, esta razão não difere ou é contrária às
emoções, nem tampouco tem um império sobre o corpo. A razão, na verdade, tenta
organizar esta multiplicidade sentida pelo corpo, mas nem sempre tem consciência de
todas as afecções geradas. Então, a questão é não “esquecer” que existe esta
74
multiplicidade, não deixa-la apenas no inconsciente, ter consciência dela, faz parte do
processo da descoberta de si.
Apesar de parecer coerente organizar a experiência em etapas, mesmo que
ela ocorra simultaneamente, a experiência cognitiva é composta por uma multiplicidade
irredutível. Talvez, a tentativa de organizá-la pode levar a uma fragmentação da mesma.
Como é o caso atual em que temos de pensar a relação entre o processo cognitivo e as
emoções, como se eles fossem separados, mas interdependentes. Ao invés de partirmos
desde para o questionamento de como as emoções participam do cognitivo e não
como elas se relacionam.
O mesmo Deleuze (1995) que parece partidário de algumas idéias
espinosianas, lança junto com Félix Guatarri um modelo muito interessante, oposto a
nossa tendência de querer abstrair, criar gêneros e modelos únicos, o modelo que não
pretende o ser, traçado por esses autores, é ver as coisas como rizomas
10
, como
multiplicidades, onde é possível um agenciamento, traçar mapas. O próprio eu são
muitos, e pode ser considerada uma ilusão até mesmo lingüística, não que não exista
uma experiência subjetiva, mas ela não é única, ela se liga a uma multiplicidade
esmagadora.
Concluindo, acrescentamos o conceito de autopoiésis, vista como uma espiral,
como um modo de operar da cognição. Além disto, a teoria de Deleuze e Guatarri
(1995) que cria o conceito de rizoma como uma perspectiva, fornece-nos a imagem que
temos do conhecimento, não mais como alicerçado em apenas um aspecto, mas como
uma multiplicidade representada pelo rizoma.
10
Rizoma são raízes que crescem horizontalmente, são ramificações subterrâneas. Por este motivo
Deleuze e Guatarri usa este conceito botânico para criar a imagem de horizontalidade no conhecimento,
diferente do cartesianismo que procura o fundamento, como uma raiz central de uma árvore que cresce na
vertical.
75
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
COMPONDO IDÉIAS
“- O que as pessoas- tu, por exemplo, chamas de real é
uma descrição, um conjunto de impressões, sensações,
sons, cores, imagens às quais dás nomes que te foram
ensinados, e também respondes a elas como t foi
ensinado. O que o animal que és necessita, em tuas
células está impresso o comportamento apropriado para
isso, seja o que for. No entanto, esse real, o mundo, é
um mistério que, à medida que te conformas à tua
descrição, pretendes ter desvendado. E à medida que
duvidas, perguntas e ficas curioso, vais descobrindo
mais, e descobrindo que a descrição é apenas decrição.
O real é incomensurável. Por isso é misterioso, sagrado,
divino ou infernal. Ou ambos.” (Silveira, Jehu T., 1991)
76
Relembrando o objetivo do trabalho exposto, a saber, investigar o papel das
emoções no processo cognitivo, podemos agora traçar algumas conclusões acerca do
tema.
Por trás de cada olhar lançado sobre um fenômeno, existe uma fundamentação
teórica. Se pensássemos este fato como uma bolha, poderíamos traçar vários níveis
desta. Por exemplo, em um nível mais geral, temos a condição de animal humano, ou
seja, enxergamos e vivemos aquilo que nossa estrutura humana permite, este nível
pode ser considerado o filtro dado pela espécie.
Em um segundo filtro, temos a cultura geral, que no caso aqui apresentado, é a
cultura ocidental. Em outro nível, temos o modo como essa cultura foi absorvida pelo
povo brasileiro, neste ponto, entraria em discussão a história do processo de
“civilização” em nosso país, assim como as formas de resistência e de reformulação
dessas perspectivas, levando em consideração que o Brasil foi “descoberto” em 1.500,
praticamente entrada da Modernidade.
Em outro nível, temos a cultura de nossos pais, a educação que tivemos acesso,
entre outros. Em um último nível, poderíamos considerar a história pessoal de cada um,
a forma como foi afetado por todas essas esferas de significação.
O que temos é um mundo dentro de outro e outro e assim sucessivamente. Neste
trabalho, abordamos apenas níveis mais gerais, as bases da cultura ocidental, algumas
teorias acerca do funcionamento biológico da estrutura humana, algumas suposições
sobre o funcionamento da mente humana e sua influência sobre a formação de um “eu”
e de uma concepção de mundo. Isso lembra o conceito de autopoiésis visto como uma
espiral, esses mundos nunca se fecham em si mesmos, sempre uma abertura do ser
que faz um intercâmbio entre essas esferas, no entanto, não podemos escapar da
determinação de algumas delas.
Por exemplo, sempre vamos enxergar por uma perspectiva humana, ainda que na
relação sujeito-objeto, no momento em que somos afetados por algo, a afecção dependa
da natureza do objeto e a natureza do corpo afetado. Isso porque o encadeamento das
emoções pouco revela sobre o objeto que nos afeta.
Se voltarmos para analisar a teoria de Espinosa, iremos perceber que o
conhecimento que sentimos sobre a natureza do objeto diz mais respeito à nossa
natureza do que a uma característica concreta do mesmo, pois é o diferente ou o
semelhante neste objeto, à nossa natureza, que vai definir as variações de sentimento.
Aumento de potência, diminuição, alimento, veneno, entre outros. Mesmo assim, não
77
estamos afirmando que este processo, a cognição, se fecha em si mesmo. Porque é a
partir desta abertura que é possível conhecer, mesmo que o conhecimento diga mais
sobre nós mesmos do que da coisa em si.
Aliás, falar de “coisa em si” é insignificante neste caso. Admitindo a
impossibilidade de escapar deste filtro forte, a determinação humana, não se pode falar
em “coisa em si” ou querer enxergar alguma essência por trás das coisas. Também não
queremos dizer com isso que o conhecimento não é possível, sim ele é possível, mas
dentro de algumas limitações.
Quando iniciamos este trabalho, falamos sobre a aventura de pesquisar um
objeto que se volta para si mesmo, A mente investigando a mente, a mente que quer
compreender a mente. Em se tratando deste tema, independentemente do “instrumento”
a ser utilizado, a ciência, a psicologia, a filosofia, enfim, nunca teremos um
conhecimento objetivo e definitivo. Por este motivo, este trabalho pretende fazer
agenciamentos, revelar multiplicidades e não traçar leis sobre o processo cognitivo.
Sendo assim, tratando-se de um trabalho teórico, ao invés de nos voltarmos para
o fenômeno do processo cognitivo, antes procuramos identificar sobre que bases
teóricas se constituíram a visão que temos sobre ele. Como movimentos tectônicos têm
os duelos emoção-razão, riso-seriedade, corpo-mente. Algumas “placas” foram
sedimentadas e outras permaneceram como um “intermezzo”. O caminho do meio é
sempre o mais difícil, considerar o mundo de forma binária, é privilégio também das
máquinas, conflitar entre os contrários é privilégio apenas humano.
Na passagem do mito à razão, percebemos como se fundamentou a separação
entre razão e emoção e consequentemente a dicotomia mente-corpo. Optamos por
utilizar apenas um “instrumento”, a razão, e esquecemos que até mesmo ela desenvolve-
se a partir do corpo e das emoções.
Em um segundo momento, no fundamento cartesiano, trabalhamos as questões
contemporâneas do duelo corpo-mente, e percebemos, que o que foi descartado na
passagem do Obscurantismo para o Século das Luzes, por medo e receio justificados,
ainda atormenta aqueles que pretendem trabalhar a questão. Ou separa-se a mente do
corpo, criando duas substâncias, ou se aceita um materialismo pobre, que acaba por não
dar conta da complexidade do corpo e das emoções, suprimindo assim a subjetividade e
com ela o que nos torna humano.
No entanto, contrapondo a esta sedimentação, temos a teoria de Espinosa, um
“intermezzo”, que coloca o corpo em posição de destaque. O conceito de afecções
78
coloca o conhecimento como um processo que tem no corpo e na sua capacidade de ser
afetado o seu primado. Sua teoria admite esta multiplicidade gerada pela afecção e tem
na razão, um instrumento capaz de organizar esta variedade. O corpo abre mil
possibilidades e desconhecemos o que ele pode, de fato. Se a razão limita-se como um
instrumento regulador a traçar leis e padrões, no campo das afecções-imagens um
caos sensitivo. Ondas emotivas, turbilhão de idéias. Conhecer implica em fazer este
produto, a razão, interagir com este caos, fazer esta recente invenção do corpo, a
consciência, chegar ao limiar do inconsciente corporal.
Com Jung, introduzimos o conceito de inconsciente como esta usina produtiva,
com a capacidade de pensar e produzir julgamentos e idéias, em uma linguagem
simbólica, cujo acesso reproduz arquétipos, esquemas primitivos gravados no nível
mais arcaico da psique humana.
A linguagem que vemos nascer do inconsciente remete à idéia de afecções-
imagens, nos faz concluir que a razão não é a única a produzir pensamentos. Também
nos leva a concluir que os mitos, a fabulação, assim como o cômico, ou a tragédia, nada
mais são do que uma forma de pensamento, assim como a ciência, a filosofia, entre
outros. Uma forma de explicação que remete a este esforço de ajustamento homem-
mundo, que nada mais é do que uma necessidade de adaptação e autoconhecimento.
Em uma linguagem mais recente, como o da neurociência, temos com Damásio
uma explicação científica para as mesmas faculdades, uma consciência antiga, que faz
lembrar o inconsciente, uma consciência recente, e todas elas tendo como inicio de seu
desenvolvimento a capacidade de ser afetado do corpo no ato de conhecer. A
identidade, mesmo que temporária, surge desta fricção dos corpos, na medida em que
começamos a ter um sentimento em relação ao que ocorre em nosso interior.
Todas essas teorias, recentes ou não, trabalhadas aqui, Espinosa, Jung, Damásio,
parecem variar sobre um mesmo tema: conhecimento, emoção-sentimento, corpo,
consciência.
Mas ainda permanece apenas subentendida nossa perspectiva sobre o processo
cognitivo, sendo assim, vamos explicitá-lo de forma mais clara.
O conhecimento depende das emoções, ele é gerado a partir das afecções deste
corpo. O aspecto racional do conhecimento é apenas uma parcela ínfima deste processo,
ele se ramifica de forma subterrânea gerando várias perspectivas, o “eu” são muitos.
Sendo assim, alguns aspectos, sempre ficam escondidos ou guardados, no inconsciente,
não temos acesso direto a todas as formas como somos afetados pelo objeto.
79
Portanto, conhecer sempre implica em autoconhecimento. Assim como a
aparente racionalidade por trás de nossas predileções teóricas ou nossas conclusões ao
final de um encadeamento de idéias, nunca está isenta deste outro aspecto, o emotivo.
Emoção e razão não são contrários, mas complementares, já que a razão parte da
emoção.
Pensar o corpo como fundamento do cognitivo, faz imaginar que exploramos
muito pouco nossas habilidades cognitivas. Ao ponto de querer imaginar que basta
replicar seu aspecto racional e consciente para ter o todo da mente humana.
Assim também, podemos dizer que as atividades que envolvem o corpo,
envolvem igualmente conhecimento. Produzir conhecimento, nem sempre implica,
dentro desses aspectos, seriedade e racionalidade. Assim como na Idade Média o
realismo grotesco faz nascer uma perspectiva rica através do riso, o cômico faz parte
deste processo cognitivo. Podemos até afirmar que o riso ou o choro nos coloca mais
próximos do que verdadeiramente se conhece da realidade, da vida.
E dentro da educação, o que implicaria ver o processo cognitivo desta forma?
O que podemos afirmar é que tendo esta perspectiva sobre o conhecimento, não
podemos apenas fazer da sala de aula, um lugar sério e compenetrado, onde as pessoas
apenas ouvem e escrevem enquanto apenas um fala. O aprendizado depende da
capacidade de ser afetado por aquilo que se pretende conhecer.
Na esfera do teórico, uma diferença em armazenar teorias e compreendê-las.
Isso por que, compreender depende de que o amontoado de frases faça algum sentido
para quem escuta ou lê. É preciso que o conhecimento produza algum afeto no corpo de
quem aprende. Por isso, a diferença que se traça entre teoria e prática nada mais é do
que a constatação de que aquilo que o corpo faz, a prática do corpo, faz com que se sinta
o significado da teoria pela experiência. Explicando de uma forma melhor, é como se
para compreender algo, ou alguém (no caso de um teórico) é preciso ter um pouco
deles. É preciso ter sido afetado de igual modo, ou que sua natureza tenha uma
semelhança com a natureza daquilo que se conhece. Enquanto não essa relação,
sempre temos uma confusão de informações, que podemos até armazenar, mas não
compreender.
Conhecimento implica compreensão.
Dado a relação do conhecimento com a vida, aquilo que é prazeroso, que produz
um afeto positivo, aprendemos melhor. Sendo assim, a forma como o conhecimento
pretende ser transmitido em sala de aula, importa para o processo de aquisição do
80
mesmo. Mas isso são constatações que em algum momento da vida já havíamos
percebido, mesmo através do senso comum que afirma que aquilo que “o que não presta
se aprende rápido”, ou o que não presta sempre é bom, ou nossa natureza possui algo
estragado.
Temos que levar em consideração também, que cada um se afeta de forma
diferente, segundo sua natureza e a natureza daquilo que o afeta, por este motivo, a
discussão da afetividade como relações exteriores, pode variar. Exemplo disto é o caso
de pessoas que aprendem muito mais em um meio adverso, em condições adversas, do
que em um meio afetivo “saudável” ou positivo. Vai sempre depender daquilo que
pretendemos apreender e da nossa própria natureza. pessoas que não conseguem
“tirar proveito” de uma relação afetiva com o professor, por exemplo.
Considerar que o conhecimento não se adquire apenas na forma racional é levar
em consideração, também, práticas pedagógicas alternativas. Um exemplo disto é
utilizar de recursos lúdicos como uma forma de ensinar. Brincar, encenar teatralmente
uma peça, ver filmes, enfim, tudo o que remete a uma produção de conhecimento não
convencional, que se encontra na esfera da arte, e por isso mesmo em uma esfera além
do racional, pode ser considerado formas igualmente eficazes de aprendizado.
Concluindo, o conhecimento nem sempre precisa ser tido como sério e racional
para ser considerado importante.
O que fizemos aqui foi revelar outras formas de conhecer, abrir o
horizontalmente as ramificações deste processo tão importante para quem pretende
educar e aprender, o processo cognitivo.
Lembrando que este trabalho não é uma resposta definitiva e muito menos
pretende responder a todas as questões levantadas sobre o tema. Concluímos, dada a
característica das idéias defendidas nesta dissertação, com um poema de Fernando
Pessoa (CAEIRO, Alberto 2006 p. 51 e p. 63):
81
“Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os pensamentos são todos sensações
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
(...)
O que nós vemos das coisas são as coisas.
Porque veríamos nós uma coisa se houvesse outra?
Porque é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?
O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê,
Nem ver quando se pensa.”
82
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. A cultura Popular na Idade Média: O contexto de François
Rabelais. 6ª ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2008.
CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo: Cultrix, 1995.
DAMÁSIO, António. O mistério da consciência: do corpo e das emoções ao
conhecimento de si. .São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
---------------------------. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. São
Paulo: Companhia das Letras, 1996.
DENNETT, Daniel Clement. A perigosa idéia de Darwin: a evolução e os significados
da vida. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
---------------------------------. Tipos de mentes: rumo a uma compreensão da consciência.
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