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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
SOLANGE MARIA DE SOUZA MOURA
TECENDO OLHARES DO SER NEGRO: A DINÂMICA DO
ENSINO DA ARTE NA PRODUÇÃO DE ESPAÇOS DE
PERTENCIMENTO DE AFRO-DESCENDENTES
Salvador- BA
2009
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SOLANGE MARIA DE SOUZA MOURA
TECENDO OLHARES DO SER NEGRO: A DINÂMICA DO
ENSINO DE ARTE NA PRODUÇÃO DE ESPAÇOS DE
PERTENCIMENTO DE AFRODESCENDENTES
Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação, da Faculdade de
Educação, da Universidade Federal da Bahia, como requisito para obtenção
do grau de Mestre em Educação.
Orientador Prof. Dr. Roberto Sanches Rabêllo
Salvador-BA
2009
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UFBA / Faculdade de Educação – Biblioteca Anísio Teixeira
M929 Moura, Solange Maria de Souza.
Tecendo olhares do ser negro : a dinâmica do ensino de arte na
produção de espaços de pertencimento de afrodescendentes / Solange Maria
de Souza Moura. - 2009.
221 f. : il.
Orientador Prof. Dr. Roberto Sanches Rabello.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia. Faculdade de
Educação, 2009.
1. Arte – Estudo e ensino. 2. Cultura afro-brasileira - Arte. 3. Identidade
cultural. 4. Espaço (Arte). 5. Multiculturalismo. 6. Colégio Estadual Prof.
José Barreto de Araújo Bastos - Estudo de casos – Salvador (BA). I.
Rabello, Roberto Sanches. II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de
Educação. III. Titulo.
CDD 707 - 22 ed.
A meus pais, Regina Nilza Moura
e Laert de Souza Moura (em memória),
por terem me deixado brincar de andar sobre a linha
dos trilhos da estrada de ferro.
AGRADECIMENTOS
Este foi um trabalho tecido coletivamente, sem retirar, é claro, a responsabilidade das
escolhas de caminhos e formas, por vezes solitária, que recai sobre uma autoria. Tenho convicção
de que a existência dessas mãos realizou a pesquisa. As palavras são ínfimas para expressar meus
agradecimentos às figuras especiais que teceram comigo esta pesquisa.
Agradeço amorosamente a minha irmã Suzana Moura, uma das principais personagens
para a realização desta pesquisa, desde a sua fase embrionária, quando eram ainda idéias larvais
para um projeto. Ela me ofereceu suporte material, espiritual e intelectual.
A direção do Colégio Oficina, pela ajuda na impressão final dos volumes da dissertação.
A direção do Instituto Social da Bahia, que possibilitou ausentar-me do trabalho para
que pudesse dedicar à pesquisa.
Prof. Roberto Rabbêlo, carinhosamente Bob, um orientador em cena pelos 'norte e sul'
do ritual de pesquisa, a confiança, o respeito e a escuta sensível.
Ao relevante trabalho de ourives e de mestre cuca da Profª Isa Trigo, instigando-me a
lapidar e a engrossar o mingau desta pesquisa.
Com o professor Álamo Pimentel, figura gentil e com um olhar sensível, tive a
oportunidade de discutir o que veio a se constituir as matizes pilares da dissertação. E as suas
observações quanto à necessidade da minha presença no texto foram extremamente ricas e deram as
cores deste tecido.
Aos professores e professoras que tive a oportunidade de conviver nas disciplinas e
pelos corredores da faculdade: Prof. Roberto Sidnei, que me apresentou as bases teóricas da
etnopesquisa crítica multirreferencial; Profª Florentina Sousa, que nas discussões com os Estudos
Culturais instigou as mudanças em trajetórias conceituais na pesquisa; Profª Licia Beltrão, que me
emprestou suas horas para um entendimento com a Análise de Discurso e que foi relevante para a
forma com a qual passei a enxergar os textos imagéticos da arte; Prof. Sergio Farias, que provocou
a ampliação do meu olhar sobre o campo de conhecimento da arte educação. E ainda Prof. Roberto
Vehaine e Profª Vera Fartes.
Aos meus belos filhos Maira, Daniel e Vinícius (Tito) pela compreensão diante dos
longos momentos de ausência, pela paciência nos meus momentos de impaciência e por terem
mergulhado comigo na viagem de retorno a casa. E a Maira também por desatar alguns nós que
tenho com a tecnologia do computador.
A uma pessoa que me acompanhou nas várias fases da pesquisa, discutindo, lendo o
material e, sobretudo, ouvindo muitíssimo as minhas viagens, certezas e incertezas. Adauto Silva
você é um ser humano belíssimo, obrigada!
Agradeço a amiga Adriana Bittencourt pela disponibilidade com que se coloca, as idéias
provocadas, livros emprestados e pelo divã que, em vários momentos, precisei usá-lo. Ao casal de
amigos: Mary Claudia pelos livros emprestados e as reflexões em arte educação e a Claudio
Orlando pelas elucidações preciosas na filosofia multirreferencial.
E ainda: a colega Ilmara por algumas observações pertinentes na introdução; a Breno
Ramos e Ludmila Britto pela correção e formatação de todo texto; a minha irmã Vera Moura pela
grande ajuda no abstract; a Maria das Graças Pereira, persona atenciosa e delicada no trato com as
pessoas e indispensável ao PPGE da FACED; e a profª Claudia Pessoa, amiga e colega de trabalho,
que me apresentou ao CEPJBAB e a densos textos sobre a cultura afro-brasileira.
As/aos colegas de pós-graduação pelas trocas de conhecimentos: Maria José, Glauria,
Rita, Romilson, Danilo, Anália, Idalina, Paulo Leite, Heloisa, Petry, e todos os/as outros/as da
turma de 2007.
E finalmente, quero agradecer a coordenadora pedagógica, aos/as funcionários/as e
professores/as do CEPJBAB. E em especial: a profª Ana Paula que se dispôs e abraçou a pesquisa
desde o primeiro momento, disponibilizando materiais e todo acesso aos dados coletados; ao diretor
por ter aberto os portões da escola sem nenhuma reticências, pelos momentos de troca sobre
questões da cultura afro-brasileira e pelo material de audiovisual enviado; e as/aos estudantes
carinhosos e receptivos que, prazerosamente, convivi por quase 10 meses, por todos os dados
oferecidos para que a pesquisa se realizasse.
Figura 2: The Right Protection Maria Magdalena Campos-Pons
RESUMO
Esta dissertação analisa o Ensino da Arte – linguagem de artes visuais – na inclusão sociocultural de
afro-descendentes compreendida nas produções de visibilidade do espaço de referência e de
identidade cultural. Espaço e Identidade Cultural se articulam e se constroem, histórica e
socialmente, nas representações de práticas culturais engendrados na relação entre poder,
conhecimento e cultura. Focaliza os movimentos no trabalho pedagógico para mediar o olhar crítico
e sensível entre a produção artística das culturas negras, as quais se têm dado visibilidade na sala de
aula, e o público/estudantes/espectadores e produtores de imagem de arte, provocando
identificações, ampliando os lugares do sujeito no mundo e (re) posicionando-o. Tais movimentos
consubstanciados, neste ensino, pelas dimensões e discursos de seu campo de conhecimento
envolvem escolhas políticas, caracterizando uma dinâmica inclusiva do Ensino da Arte que tece,
sobretudo, nos processos de leitura, fruição e produção de imagens de arte as formas de produção
dos espaços de pertencimento. Os espaços tornados visíveis e seus interstícios produzem a
identidade cultural. O objeto de estudo teve como cenário a inclusão do Ensino da História e da
Cultura Afro-Brasileira e Africana no currículo do ensino básico do país, após a promulgação da
Lei 10.639/03. E uma cena protagonizada na sala de aula de um Colégio Estadual do bairro de São
Caetano, município de Salvador. Através da observação participante periférica, no período de
fevereiro a novembro de 2008, o estudo de caráter qualitativo foi fundamentado nas bases teóricas
da etnopesquisa crítica e multirreferencial, tecido com saberes enunciados por vozes autorizadas em
plano de curso, entrevistas, projetos interdisciplinares, imagens e notas de campo. As análises do
estudo apontam que, nessa cena, estudantes se reconhecem e se vêem pertencentes à cultura afro-
brasileira, mas tal olhar se opera na homogeinização de experiências culturais, sem desfiar os
porquês de representações que produzem sentidos e significados a partir da diversidade dessas
experiências no cotidiano de seus atores.
Palavras Chave: Ensino da Arte, Imagem da Arte, Inclusão, Espaço, Identidade Cultural.
ABSTRACT
This dissertation analyzes the Teaching of the Art - language of visual arts - in the socio-cultural
inclusion of Afro-descendents in the productions of Visibility of the Space of Reference and
Cultural Identity. Space and Cultural Identity are articulated and are built, historically and socially,
in representations of cultural practices constructed by the connection among power, knowledge and
culture. This study focus on the movements of the pedagogic work mediating the critical and
sensitive view between the artistic production of the African and Afro-descendent cultures, which
have been giving itself visibility in the classroom, and the public students, viewers and producers
of image of art - originating identifications and amplifying places of the subject in the world - re-
positioning him/her. Such movements constituted, in this teaching, by the dimensions and
discourses of its field of knowledge include political choices which characterize an inclusive
dynamic of the Teaching of the Art which interlace, especially, in the processes of reading,
enjoyment and production of images of art, the forms of production of the space of belonging. The
spaces made visible and its gaps produce the Cultural Identity. This study had as its scenery the
inclusion of Afro-Brazilian and African History and Culture in the curriculum of basic courses in
the country, after the promulgation of the Law 10.639/03; and a play performed in the classroom of
a State School of the district of São Caetano, located in the city of Salvador, Brazil. Through
participatory observation, from February to November of 2008, this qualitative study was based on
the theory of Critical Ethno-Research and Multireferential and was developed using the knowledge
acquired in courses, interviews, interdisciplinary projects and images and field notes. The study data
analyses has shown that students recognize and see themselves belonging to the Afro-Brazilian
culture, however, such sense of belonging produces itself in the homogenization of the African and
African- Descendents cultural experiences without, however, disentangle the reasons why the
representations produce meaning from the diversity of those experiences in the students’ daily life.
Key words: Teaching of the Art, Image of the Art, Inclusion, Space, Cultural Identity.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
SEÇÃO 1
1. ESCOLHENDO OS FIOS: DINÂMICA INCLUSIVA DO ENSINO DA ARTE NA
MEDIAÇÃO DO OLHAR
1.1 ENSINO DE ARTE: AS FRONTEIRAS DE UM CONHECIMENTO
1.2 DINÂMICA INCLUSIVA DA ARTE: TORNANDO VISÍVEL O INVISÍVEL
1.3 ARTE IMPRESSÃO E EXPRESSÃO: FORMAÇÃO DO/DA ESTUDANTE
ESPECTADOR E PRODUTOR DE IMAGEM
1.4 IMAGEM DA ARTE COMO PRÁTICA DE REPRESENTAÇÃO SOCIAL
1.5 MEDIAÇÃO DO OLHAR NO ENSINO DE ARTE
SEÇÃO 2
2. OS FIOS QUE TECEM UM MANTO: INCLUSÃO SOCIOCULTURAL
2.1 TECENDO O ESPAÇO
2.2 FIANDO E DESFIANDO IDENTIDADE CULTURAL
2.3 ENSINO DA ARTE: PERSPECTIVAS EM TECER O ENTRELUGAR NA SALA DE
AULA
2.3.1As Tramas do Multiculturalismo nos Parâmetros Curriculares Nacionais
SEÇÃO 3
3. APRESENTAÇÃO DO MANTO: A POLIFONIA DE CORES E FORMAS DO
CAMPO
3.1 CAMINHOS METODOLÓGICOS
3.2 DO MATAGAL, VIA ESCOLA DE PLÁSTICO À ESCOLA MODELO
3.3 ENTRANDO NA SALA DA 5ª SÉRIE TURMA C
3.3.1 A professora de Arte
3.3.2 Os/as estudantes
3.4 O TRABALHO PEDAGÓGICO DO ENSINO DA ARTE: CONSTITUINDO A
INCLUSÃO SOCIOCULTURAL DE AFRO-DESCENDENTES
3.4.1 A Proposta Pedagógica do Ensino da Arte
3.4.2 Imagens de Arte no Processo de Mediação do olhar
3.4.3 Diálogos Interpretativos: Fazendo, lendo e fruindo arte
TESSITURAS PRODUZIDAS E INCONCLUSAS DA PESQUISA:
15
28
30
38
47
54
60
79
84
93
101
114
124
125
137
143
145
146
148
149
155
168
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
APÊNDICES
ROTEIRO DE OBSERVAÇÃO
ROTEIRO ENTREVISTA.
200
211
218
221
LISTA DE FIGURAS
1. Mestre Didi, Eyin Olorun Ati Ejo. Disponível em <www.cesa.art.br/agend.htm>. Acesso em
3 maio 2006
2. Maria Magdalena Campos-Pons, The Right Protection. Disponível em
<www.zonezero.com/.../images/magdalena.jpg>. Acesso em 4 abr. 2008
3. Iraildes (artesã), Pano da Costa. Disponível em <www.acasa.org.br/arquivo_objeto.php?
secao=Acervo&id=1439>. Acesso em 27 jul. 2008
4. Pintura rupestre de Moçambique, África. Disponível em <www.macua.org/
rupestre/rupestre03.html>. Acesso em 27 jul. 2008
5. Máscara Chokwe, Angola. Mukixi wa Mwana Pwo . Disponível em <www.
nossoskimbos.net>. Acesso em 27 jul. 2008
6. Antônio Olé, Canoa Quebrada. Catálogo Mostra Pan Africana de Arte Contemporânea,
2005, p 58.
7. Desenho da estudante do CEPJBAB, arquivo da autora.
8. Sergio Guerra, Exposição fotográfica Salvador Negro Amor. Disponível em
<www.agenciaginga.com.br/blog/?p=995>. Acesso em 27 jul. 2008
9. Campanha Publicitária Benetton. Disponivel em <http://3.bp.blogspot.com/
_OE0QfA4mIII/SI21szn0aEI/AAAAAAAAAEw/0BDVolr-Lc4/s320/benetton2.jpg>.
Acesso em 12 fev 2009
10. Manto de Apresentação, Artur Bispo Rosário. Disponível em
<www.artebrasileira1990.blogspot.com>. Acesso em 27 jul. 2008
11. Pintura dos/das Estudantes do CEPJBAB, Releitura das casas Ndebele, África do Sul.
Arquivo do projeto de arte do CEPJBAB.
12. Gráfico - modelo da tabela de análise de dados. Arquivo da autora
13. Produção dos/das estudantes CEPJBAB, Projeto Salvador Roma Negra, 2005. Arquivo do
projeto de arte do CEPJBAB.
14. Produção dos/das estudantes CEPJBAB, Projeto Salvador Roma Negra, 2005. Arquivo do
projeto de arte do CEPJBAB.
15. Produção dos/das estudantes CEPJBAB, Projeto Salvador Roma Negra, 2005.Arquivo do
projeto de arte do CEPJBAB.
16. Produção dos/das estudantes CEPJBAB, Projeto Salvador Roma Negra, 2005. Arquivo do
projeto de arte do CEPJBAB.
17. Produção dos/das estudantes, Projeto Salvador, Releitura Africana & Carybé 2006. Arquivo
do projeto de arte do CEPJBAB.
18. Produção dos/das estudantes, Projeto Salvador, Releitura Africana & Carybé 2006. Arquivo
do projeto de arte do CEPJBAB.
19. Produção dos/das estudantes, Projeto Salvador, Releitura Africana & Carybé 2006. Arquivo
do projeto de arte do CEPJBAB.
20. Produção dos/das estudantes, Projeto Os Didi da Bahia 2007. Arquivo do projeto de arte do
CEPJBAB
21. Produção dos/das estudantes, Projeto Os Didi da Bahia 2007. Arquivo do projeto de arte do
CEPJBA.
22. Produção dos/das estudantes, Projeto Os Didi da Bahia 2007. Arquivo do projeto de arte do
CEPJBAB
23. Di Cavalcanti , Mulata com Pássaro. Disponivel em <suefb.blog.uol.com.br>. Acesso em 23
ago. 2008
24. Desenho do estudante do CEPJBAB, atividade de aula de arte 2008, arquivo da professora
de arte.
25. Ilustração do livro Uana e Marrom da Terra, Lia Zats, Ed. Biruta, 2007
26. Ilustração do livro Uana e Marrom da Terra, Lia Zats, Ed. Biruta, 2007
27. Ilustração do livro Uana e Marrom da Terra, Lia Zats, Ed. Biruta, 2007
28. Ilustração do livro Uana e Marrom da Terra, Lia Zats, Ed. Biruta, 2007
29. Ilustração do livro Manu em Noite Enluarada, Lia Zats, Ed Biruta, 2007
30. Ilustração do livro Manu em Noite Enluarada, Lia Zats, Ed Biruta, 2007
31. Desenho da estudante do CEPJBAB, atividade de aula de arte 2008, arquivo da professora
de arte
32. Pintura dos/das estudantes, releitura pintura egípcia, projeto Brasil & África: em um único
tom, cor e som 2008, arquivo da professora de arte
33. Pintura dos/das estudantes, releitura tecidos Baulê, projeto Brasil & África: em um único
tom, cor e som 2008, arquivo da professora de arte.
34. Pintura dos/das estudantes, releitura das máscaras Bamikele, projeto Brasil & África: em um
único tom, cor e som 2008, arquivo da professora de arte.
35. Pintura dos/das estudantes, releitura das paredes das casas Ndebele, projeto Brasil & África:
em um único tom, cor e som 2008, arquivo da professora de arte.
36. Fotografia espaços do colégio, professora de arte e os/as estudantes, projeto Brasil & África:
em um único tom, cor e som 2008, arquivo da professora de arte.
37. Fotografia espaços do colégio, professora de arte e os/as estudantes, projeto Brasil & África:
em um único tom, cor e som 2008, arquivo da professora de arte.
38. Fotografia detalhe de dois braços, professora de arte e os/as estudantes, projeto Brasil &
África: em um único tom, cor e som 2008, arquivo da professora de arte.
39. Montagem Pano da Costa e fotografias do campo na confecção de máscaras, arquivo da
autora.
15
INTRODUÇÃO
“Eu acho que este comercial foi pra mostrar que existe muito preconceito ainda
dos brancos com os negros. Alguns brancos acham que os negros são ladrões e
que os brancos não. Os brancos podem até ser ladrão, só que aos olhos de outros
brancos, os brancos são de bem e pessoas negras sempre são ladrões, são
discriminadas, sem nem saber, sem nem ser conhecidos e acha que é ladrão.
[...] É até difícil mesmo emprego. [...] Se um branco entrar numa loja, pode ser
mal vestido e tudo, ninguém pensa nada de errado, porque pensa que vai
comprar. Agora se for negro entrar na loja, até bem arrumado, alguns já ficam de
olho: - Ah! Olhe aquele dali, porque vai roubar, veio disfarçado. E o branco não,
o branco pode vir de qualquer jeito, pode entrar. (Estudante do CEPJBAB,
campo da pesquisa).
Neste trabalho, analiso o Ensino da Arte na dinâmica de inclusão sociocultural
de afro-descendentes, a partir do estudo de caso do Colégio Estadual Professor José
Barreto de Araújo Bastos (CEPJBAB), localizado no bairro de São Caetano, na cidade de
Salvador. Esse colégio vem quatro anos construindo projetos nas aulas de Arte,
objetivando a inclusão e a valorização das culturas africana e afro-brasileira, provocando
um sentido de pertença nos estudantes afro-descendentes.
A dinâmica de inclusão no Ensino da Arte é aqui considerada nos movimentos
inclusivos produzidos no trabalho pedagógico do ensino da arte ao mediar um olhar crítico
e sensível entre arte e estudantes, tornando visíveis espaços ocultados e provocando o
deslocamento de vozes silenciadas e posicionadas a margem, no processo de exclusão
sociocultural. Repensar o Ensino da Arte na produção de espaços de pertencimento é
compreendê-lo tramando os fios, a partir de seu campo de conhecimento – a arte – e do seu
público espectador/a e produtor/a os estudantes –, tecendo olhares do ser negro. A
referência a uma mediação do olhar não a restringe à visão, mas considera todo
conhecimento produzido no corpo, sem fragmentá-lo, sem esquartejá-lo. Corpo que sente,
pensa, cheira, ouve, toca e vê.
A inclusão da história e da cultura africana e afro-brasileira no Ensino da Arte,
nas escolas de Salvador, não prescinde as considerações sobre as condições que
particularizam essa cidade. Somos hegemonicamente negros, sem que isso, absurdamente,
tenha qualquer influência sobre a relação desigual de poder e privilégio no espaço social e
nas suas instituições. O que é visível é a predominância dos espaços de branqueamento no
espaço escolar, inclusive nas escolas públicas e que conta majoritariamente com a presença
16
da população de afro-descendentes, posicionando uma grande parte de estudantes e
professores como estrangeiros dos seus lugares.
Vivemos em uma cidade na qual a indústria cultural explora parte da produção
artística das culturas negras, gratinando-a em uma linguagem universal mais palatável aos
interesses econômicos do capital e os elementos constituidores do local de onde emergiu a
produção se perdem no mercado. Nas nossas escolas é possível encontrar as imagens
trabalhadas das culturas negras associadas à capoeira, à baiana, aos elementos do
candomblé, ao samba, às comidas, e às vezes, não se oportuniza refletir sobre os discursos
que atravessam as imagens ou a visão de mundo e as relações que produzem a
indumentária da baiana, as tramas do pano da costa ou a forma de amarrar o dorso na
cabeça.
As imagens acima citadas e outras das produções artísticas das culturas negras
e de temas que abordam a discriminação racial podem estar ocupando os espaços da escola
e, mais especificamente, na sala de aula, sem que, contudo, possamos compreender como
essas imagens vêm sendo trabalhadas no espaço pedagógico das aulas de arte; se uma
reedição do que aparece na mídia ou no discurso dominante ou se são desfiadas outras
tramas sobre essas produções.
Tramas que se desfiem, afim de que se possa ler, produzir e fruir imagens, na
perspectiva de um olhar sensível, crítico e reflexivo. Um olhar que, ao ler imagem,
produza, segundo Peter McLaren, “um texto dentro do texto”; ao interpretar, crie “um texto
sobre um texto”; e ao criticar, construa um “texto contra um texto” (2000, p.45). De acordo
com este autor:
O que faz a leitura crítica é sua habilidade de tornar aquele que aprende ciente de
como as relações de poder, as estruturas institucionais e os modelos de
representação trabalham sobre e através da mente e do corpo de quem aprende,
mantendo-o sem poder, aprisionado em uma cultura de silêncio. Na verdade,
uma perspectiva crítica demanda que o próprio processo de linguagem seja
interrogado (MCLAREN, 2000, p.45).
Porque aqui falamos de arte: forma de representação e linguagem que
posiciona o sujeito no mundo; e, para Luigi Pareyson (2001), na sua contradição e de modo
inseparável, a arte está presente na vida do ser humano e a vida do ser humano está
presente na arte. E falamos também do seu ensino na linguagem de artes visuais, que,
segundo Ana Mae Barbosa (2005), tem a imagem como sua matéria prima, e, portanto,
17
pode vir a provocar uma participação mais crítica e sensível do/da estudante no meio
ambiente social o qual circula, à medida que atua como sujeito instituinte desses espaços.
Espaços onde circulam imagens cristalizadas, como aquelas enunciadas na
epígrafe, muito antes dos doze anos de estudantes que ocupam a sala se aula do CEPJBAB.
As imagens descritas, que escutei da estudante, foram apreendidas “nas cenas de hoje em
dia, da vida real”. Uma vida real que encontra ressonâncias de discriminação,
posicionamento marginal e identidades fixadas em representações estereotipadas, no
espaço de visibilidade perverso na sociedade, na escola e, mais pontualmente, na sala de
aula.
Na expressão enunciada pela estudante “aos olhos de outros”, revela-se que a
imagem – o 'outro' – representa um testemunho antropológico, cultural e social que permite
interações e produz comunicação que, muitas vezes, abre espaço de reconhecimento nas
experiências simbólicas dos sujeitos na construção de sentidos e significados. E, ao mesmo
tempo, essa imagem, como força de dominação visível e invisível, é representação,
produzida por discursos que atuam no cotidiano, agindo sobre o imaginário social,
intervindo no nosso espaço, na forma como nos reconhecemos e, portanto, no processo de
formação de identidades. O imaginário aqui entendido no que apresenta Juremir Machado
Silva (2006): não é a vida, porém uma forma de vida que nos faz viver nele.
Na sociedade multirracial e multicultural brasileira, por conta de uma educação
fundada nas bases hegemônicas do branqueamento, é perceptível a dificuldade, no âmbito
da escola, em se compreender a complexidade que envolve a inclusão da história e da
cultura africana e afro-brasileira na educação básica. E que tal inclusão não significa
apenas incluir conteúdos, mas sim, transformar o trabalho pedagógico.
É possível que a educação não tenha um poder de operar grandes
transformações sociais sem uma ação conjunta com os demais campos sociais, mas ela
pode provocar perturbamentos necessários a essa transformação: seja na dimensão estética
da educação, segundo João Francisco Duarte Jr. (1988), dando sentidos às nossas ações
cotidianas, em uma mediação do olhar munindo os/as estudantes nas suas inserções sociais
(MCLAREN, 2000). Ou quiçá em um Ensino da Arte que venha a problematizar a relação
poder, conhecimento e cultura através da imagem, abrindo perspectivas de inclusão e, ao
mesmo tempo, criando estratégias de ampliação do espaço na escola para as culturas
negras posicionadas à margem, as quais propomos discutir aqui.
18
A arte propicia, enquanto produção, leitura e fruição, transferências simbólicas,
reciprocamente, entre ser humano e materialidade das coisas e, de acordo com Fayga
Ostrower (1983), amplia sua consciência enquanto ser cultural e sensível, capaz de
transformar e transformar-se. Nesse sentido, entendemos que a arte é forma de
conhecimento humano, e que esse conhecimento produz as “bases para entender as
condições atuais que informam a vida cotidiana” (MCLAREN, 1989, p.215/216), tornando
os/as estudantes, produtores/as e espectadores/as sensíveis às suas experiências cotidianas,
ao refletirem as relações que implicam sobre as suas e outras produções. uma
ampliação dos seus lugares. Tal ampliação, acredito, emerge pelo fato de se estar
produzindo visibilidade em espaços que são referencias para se posicionarem no mundo e,
ao mesmo tempo, compreenderem como são posicionados neste.
Partindo desses pressupostos, busquei no campo, no caso específico do
CEPJBAB, refletir e responder uma questão, posta da seguinte maneira: como o Ensino da
Arte produz visibilidade do espaço de referência e identidade cultural de afro-
descendentes?
Foram três as inspirações que fizeram pulsar essa inquietação e que serviram
também de base para compor o quadro teórico da pesquisa. A primeira é parte fundante e
inquietante na minha história de vida, simbolicamente do meu retorno à ‘casa’, o lugar que
traduz nossas primeiras experiências no mundo. A forma alegórica encontrada para essa
representação, e que convido o leitor a usar a imaginação para visualizar, é uma simbiose
do Sankofa
1
e do Baobá
2
. Tal forma simbiótica representa um duplo desejo: de pegar o que
ficou para trás, em um movimento instaurado no presente; e na posse do que traduzi do
passado, dos espaços que desconhecia e que se presentificaram através de uma memória
coletiva no fazer, desfazer e refazer voltas, tornando-me consciente dos meus locais de
enunciação como afro-descendente e transformando as minhas ações no mundo, nos
diferentes papéis que atuo.
A segunda inspiração parte das marcas do rastro da minha docência em artes
visuais, imersas em comunidades formadas por populações significativas de afro-
descendentes, onde foram desenvolvidos projetos pedagógicos que desenhavam os
movimentos de inclusão da arte. Trabalhando com menor abandonado e em situação de
1
Ideograma africano que é a imagem de um pássaro com o pescoço voltado para traz, simbolizando voltar e
pegar o que ficou atrás.
2
Árvore de origem africana de grande simbologia no resgate da memória ancestral.
19
risco, na antiga Fundação de Assistência ao Menor do Estado da Bahia (FAMEB), e em
comunidades, a exemplo da Rocinha e da Mangueira (Rio de Janeiro), (re) modelamos em
argila, papel, papier marché, fotografia a imagem, seja produzindo, lendo e fruindo. Será
que na sala de aula ensinar e aprender arte também não pode se tornar uma (re) modelagem
de imagens excludentes das “cenas de hoje em dia”, como nos falou a estudante?
Vários foram os momentos na experiência docente, no processo do trabalho
pedagógico, que apontavam os movimentos de tensão e contradição da arte: uns vividos
visceralmente, em que compartilhávamos os sentimentos que protagonizavam a cena; e,
em outros, parávamos para dialogar, questionar e refletir as experiências. Nesses
momentos, a. arte, uma forma cultural (McLaren, 1989), uma forma de representação
(HALL Stuart, 2005) e que tem sua existência vinculada às dimensões da sociedade,
movimenta-se, pendularmente, incluindo e excluindo.
E a terceira inspiração é saber da relevância do Ensino da História e da Cultura
Afro-Brasileira e Africana no currículo do ensino básico das escolas públicas e particulares
do país, através da lei 10.639/03 e, atual, lei 11.465/08, junto a outras políticas de ações
afirmativas, no sentido de corrigir desigualdades sociais e raciais. Nesse sentido, o texto
das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para
o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana ao citar, por exemplo, “orgulho
de pertencimento étnico-racial”,direitos garantidos”, “cidadania e identidade valorizada”,
apontou para a relevância de se investigar como o espaço de educação escolar, mais
especificamente, o Ensino de Arte, vinha construindo a sua práxis, no sentido de
empreender o deslocamento da margem em que o negro e sua produção cultural foram
posicionados no processo de discriminação, exclusão, negação e ocultação de histórias.
As chamadas políticas de ações afirmativas, embora recentes na história da
ideologia anti-racista, abrem perspectivas de inclusão. Dessa forma e com base nas
Diretrizes Curriculares, compreendo que o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana no Ensino da Arte aponta na direção de uma perspectiva de inclusão sociocultural
discutidas, aqui, no que diz respeito à produção de visibilidade de espaços de referência e
identidade cultural. Inclusão a qual o trabalho pedagógico do Ensino da Arte pode vir a dar
contribuições, à medida que possibilite aos afro-descendentes e demais brasileiros tornar
visível o espaço de referência material e imaterial da cultura negra, através da produção de
conhecimentos que tragam discursos e representações de vozes autorizadas, de lugares de
20
enunciação da cultura negra. Mas provocando também, em uma mediação do olhar, que
discursos e representações possam ser questionados, esgarçados e reinventados, para
produzirem espaços de pertencimento.
“Se sentir pertencendo à...” pressupõe se sentir incluído no processo de (re)
conhecimento dos espaços da cultura onde o sujeito Ser consciente-sensível-cultural
(OSTROWER, 1983) – torna-se consciente da sua implicação na produção desses espaços.
Ser capaz de construir e construir-se alicerçado na alteridade, permitindo-se um olhar
sobre o mundo e sobre si mesmo, a partir das diferenças.
O (re) conhecimento do nosso espaço e a consciência de pertencermos a um
grupo nos são engendrados nas representações da cultura. O conhecimento, o tornar
conhecível histórias vividas e não vividas, mas que interferem na posição que o sujeito
ocupa, possibilita que este, simultaneamente, (re) posicione-se e (re) configure o seu
espaço.
A pesquisa realizada tomou como objeto de estudo o Ensino de Arte, na
linguagem de artes visuais, no âmbito de uma sala de aula, na sua dinâmica de inclusão
sociocultural de afro-descendentes. Nessa sala, o objetivo foi o de investigar como o
Ensino da Arte trabalha pedagogicamente a produção de visibilidade do espaço de
referência e de identidade cultural de afro-descendentes. Reflito e discuto, então, sobre
uma práxis pedagógica do Ensino de Arte no espaço escolar que não oculte, nos diálogos,
os conflitos e as contradições; e que amplie o espaço da sala de aula, trazendo as imagens
do cotidiano para dialogar com a produção artística das culturas negras. Enfim, que
possibilite ao estudante experienciar a arte na sua dinâmica de inclusão sociocultural.
Experiência, aqui compreendida, envolvendo sentido, conhecimento, travessia e exposição
do sujeito, construção e reconstrução. Experiência compreendida, segundo os argumentos
de Jorge Larrosa Bondía (2001), como algo que nos toca e não o que toca, o que passa. A
experiência é diferente das muitas coisas que passam cotidianamente por nós, porque ela
nos acontece, tomando-nos por inteiro.
Para tal investigação, propus-me a analisar o trabalho pedagógico do Ensino de
Arte, na linguagem de artes visuais, na perspectiva da inclusão do Ensino da História e da
Cultura Africana e Afro-Brasileira; analisar se o trabalho pedagógico do Ensino de Arte
tem dado acesso para que se produza um diálogo sensível e crítico com a produção artística
das culturas africana e afro-brasileira; e discutir subsídios teóricos, mirando uma práxis
21
pedagógica do Ensino de Arte, na perspectiva de uma Educação das Relações Étnico-
Raciais.
Ao falar de produção artística das culturas negras, refiro-me àquelas
produzidas na diáspora das rotas pelo atlântico e àquelas que nos falam sobre essas culturas
de lugares autorizados, por reverberarem lutas anti-racistas.
Considerei para as análises no campo: o plano de curso, os projetos
interdisciplinares, os marcos de aprendizagem, as notas de observações das aulas, as
imagens produzidas pelos/pelas estudantes e utilizadas em aula e as entrevistas da
professora e dos/das estudantes.
No que se refere ao quadro teórico, parti da premissa na qual para se ensinar
arte é preciso conhecer arte uma prática social que constrói representações que inclui e
exclui; e como um corpo material e imaterialmente apresentado é capaz de provocar de um
leve emocionar-se a reações viscerais, produzindo sentidos e significados. Tal
conhecimento que se consubstancia nas apropriações das dimensões social, política,
histórica e estética da imagem da arte, no processo de mediação do olhar.
Procurando focalizar o Ensino da Arte como área de conhecimento, enquanto
processo de ampliação interpretativa e compreensiva das dimensões da imagem da arte e
dos discursos que a constituem, convidei, dentre outros autores, Fernando Hernandez,
Ivone Richter e Ana Mae Barbosa. Mas é também um processo produzido como condição
equânime entre o sensível e o inteligível (DUARTE Jr., 2001).
Em Fernando Hernandez busquei referências para construir no trabalho
pedagógico, o que denominamos de diálogo interpretativo. Esse é configurado, nesta
dissertação, na tríade fruição, leitura e produção. O autor emprestou-me uma noção de
interpretação para o processo de leitura de imagem, que a estendi também para a produção
de imagem. As noções de diálogos, inspiradas em Paulo Freire, não retiram os conflitos
que perpassam o encontro entre consciências, como atitude problematizadora que inclui o
outro e se amplia na sua relação corpórea, diálogos com o olhar.
Para refletir e discutir o recorte do Ensino da Arte no que aqui denomino de
'dinâmica inclusiva', busquei primeiro delimitar uma dimensão inclusiva da arte, produzida
nos seus movimentos que criam um corpo para o que nos é visível e invisível, e nos liga ao
outro distante, perto ou inacessível, por provocar identificações ao transpassar e ser
transpassada pela vida. Assim, a arte, nas suas “variadas” dimensões, está presente,
22
operando na relação do ser humano com a vida (PAREYSON, 1997). Esse diálogo foi
possível em um encontro que reuniu enunciações de Ernst Fischer, Paulo Freire, Fayga
Ostrower, Michel Maffesoli, Luigi Pareyson e Ângela Linhares.
Para uma mediação do olhar, interessa, aqui, o fato da arte provocar
identificações na perspectiva do produtor e do espectador, porque o movimento de inclusão
no trabalho pedagógico tem um público, os estudantes, que produz, e frui arte. Nesse
sentido, convidei Suzanne Langer, que apresenta a arte dos pontos de visão da expressão e
da impressão. Pontos que consideramos um aspecto relevante para o Ensino da Arte, com
as discussões centradas, normalmente, na arte como expressão. Flávio Desgranges nos
possibilita pensar um espectador protagonista que intervêm criticamente e Jorge Larrosa
Bondia um espectador sujeito da experiência.
Quando das minhas incursões docentes, em diferentes momentos, apresentava
aos estudantes A Traição da Imagem, do artista surrealista René Magritte, suas reações
eram muito próximas a: “ele é maluco?”, “então o que é isso”? A imagem tem como figura
um cachimbo de perfil que ocupa toda a extensão da largura do quadro, posicionado
levemente inclinado sobre um fundo na cor marfim. É uma pintura que tecnicamente o
aproxima muito do objeto real. Na parte inferior do quadro Magritte escreveu “Ceci n'est
pas une pipe” (Isto não é um cachimbo).
Essa imagem de Magritte nos encaminha para uma discussão entre arte,
realidade e representação, compreendendo, de acordo com Katharyn Woodward (2000), a
não transparência dos sistemas simbólicos através dos quais os significados são produzidos
e que permeiam todas as relações sociais. A produção de significados na representação da
arte, a partir dos símbolos como relação de poder constrói identificações e inventa
realidades.
As noções de espaço e identidade cultural são estruturantes para se refletir no
Ensino da Arte uma inclusão sociocultural de afro-descendentes, porque os conhecimentos
acerca das culturas negras, nas imagens de arte, envolvem representações e discursos que
produzem deslocamento, (re) posiciona e provoca identificação.
Busquei, então, refletir em Milton Santos o espaço que se constrói numa
relação indissociável entre ações e objetos e que, portanto, é modificável, é transformado.
Tal espaço em construção é a referência para o que somos e nos tornamos. O não
conhecimento e a não reinvenção dos nossos lugares nos posiciona estrangeiros nesses
23
espaços. Espaço e Identidade Cultural são, pois, duas categorias que se entrecruzam e se
nutrem solidariamente.
Há quem pense a identidade cultural, segundo Nestor Canclini (2006), tal como
nas comunidades arcaicas: um lugar, um território que contém um patrimônio cultural,
onde as pessoas que compartilham os mesmos símbolos e rituais são idênticas e aquelas
que não compartilham fazem parte de outro cenário, são os diferentes. Mas a identidade
cultural, a qual dialogamos com Hall, é produzida historicamente e constituída nas
posições assumidas pelo sujeito e as quais se identifica (HALL, 2000). A idéia de fixidez e
a visão essencialista da identidade cultural o que sou têm se constituído de aspectos
negativos nas representações das culturas negras e da produção de discursos que ocultam
as assimetrias de poder e forjam uma homogeinização.
A consciência dos nossos locais de enunciação pode ser produzida nas formas
do trabalho pedagógico. E a forma ressaltada, nesta pesquisa, constitui uma visão de
educação e de arte que esboçam fios para tecer a identidade cultural o tornar-se e ser
negro em proposições do multiculturalismo crítico, ancorada em discussões com Peter
McLaren. Essas discussões possibilitam-nos refletir a identidade e a diferença a partir da
margem, pensando nos processos de tradução envolvidos na produção de cultura e no
processo de mediação do olhar no Ensino da Arte. Os processos de hibridização (HALL,
BHABHA e CANCLINI) vão provocar, nesta pesquisa, a reflexão de uma refocalização no
olhar sobre o trabalho pedagógico, tendo em vista as perspectivas do diálogo interpretativo
com a imagem de arte, o/a estudante espectador e produtor/a, e o papel de tradutor/a do/da
educador/a.
Quero registrar ainda que autores como Muniz Sodré, Homi Bhabha, Peter
MacLaren e Paulo Freire trazem conceitos relevantes para o corpo teórico desta pesquisa e
que, portanto, perpassam todo texto.
No chão teórico desta pesquisa, a inclusão precisava ser refletida em um
trabalho pedagógico que repensasse a educação escolar como uma necessidade de se ter
como parâmetros as mudanças das representações, dos valores sociais e dos saberes
disciplinares assentados, ainda hoje, sob uma visão eurocêntrica, com raízes do século
XVIII e XIX (HERNANDEZ, 2001). Nesse sentido, ao construir a base teórica com os
autores Peter Mclaren, Stuart Hall e Tomáz Tadeu Silva, busquei, de certa forma, uma
composição que articulassem um caminho com o pensamento de uma “Teoria Critica da
24
Educação” (SILVA, 1993) e com inserções de pensamentos pós-moderno e pós-
estruturalista, naquilo que nos possibilita avançar na análise crítica para proposições
concretas no trabalho pedagógico do Ensino de Arte como intervenção política.
Considerei, nesse sentido, algumas asserções pós-modernas e pós-
estruturalistas, da crítica a modernidade, que não são possíveis discutir nos limites desta
pesquisa, mas que perpassam a produção do chão teórico. A principal delas é a rejeição às
grandes narrativas como conhecimento universal e verdades absolutizantes, à medida que
tais narrativas investiram pesado no projeto de colonização e da condição branca
eurocêntrica e nos possibilitam discutir sua manutenção e contribuição para as
desigualdades de poder e desconstruí-las. Sem abrir mão de uma análise na dinâmica social
no entrecruzamento entre o global e o local, em que apenas narrativas parciais não dão
conta para compreender essa dinâmica nas estruturas de desigualdades e injustiças que se
encontram no global.
Considerei ainda, para refletir sobre as imagens da arte, a não distinção entre
“alta cultura” e a “cultura popular”; e a asserção da não transparência da linguagem e as
suas construções de realidades. Porém, não deixei de considerar que também estruturas
concretas, referentes no mundo social, fora da textualidade, que atingem concretamente a
vida e o cotidiano das pessoas e grupos. E finalmente, as críticas às análises construídas em
binarismo, embora as considere e, ao mesmo tempo, amplie as análises para os
deslizamentos produzidos entre eles.
O caminho metodológico construído envolveu um estudo de caráter qualitativo,
ancorado nas bases teóricas da etnopesquisa crítica e multirreferencial, em diálogos
produzidos com Roberto Sidnei Macedo. Tal caminho se refere a uma escolha política e,
portanto, uma atitude que construiu a pesquisa, envolvendo ética e estética. A pesquisa
levou-me a um diálogo produzido sobre uma mirada multidisciplinar, conjugando saberes
da filosofia, comunicação, dos estudos culturais, da antropologia, sociologia, geografia e
da estética, que envolveram os temas Ensino da Arte, Inclusão Sociocultural, Espaço,
Identidade e Multiculturalismo. Nesse sentido, adotei uma linha de abordagem que dialoga
criticamente com os autores; diálogos que se constroem atentos ao rigor acadêmico e que
compreendem na produção do saber a complexidade do ser humano, no sentido da
“inconclusão” do conhecimento.
25
Na construção do texto, a presença da literatura, do campo e de imagens amplia
os diálogos, tornando este um encontro em que diferentes linguagens, verbal e não verbal,
e visões de mundo tecem movimentos de inclusão, os quais se desenham nos espaços
sociais produzidos na cultura.
A pesquisa realizada foi relevante, porque a microcena da sala de aula do
CEPJBAB, na sua dinâmica, ampliou estudos sobre o Ensino da Arte, na linguagem de
artes visuais e seu trabalho pedagógico, questionando sobre as fronteiras que desenham
esse ensino como área de conhecimento. Bem como abriu perspectivas para (re) discutir e
encaminhar investigações futuras que ancorem uma proposta pedagógica para o Ensino de
Arte na perspectiva da Educação das Relações Étnico-Raciais na educação escolar,
sustentada sobre uma perspectiva crítica na pós-modernidade, no âmbito das
especificidades da Bahia e da cidade de Salvador.
A investigação construída reafirmou também a sua relevância, à medida que o
campo propiciou uma reflexão sobre a práxis pedagógica do Ensino de Arte e a forma do
acesso, nesta prática, à produção artística Africana e Afro-Brasileira, a qual vem
produzindo espaços de pertencimento. Levando esse estudo a afinar-se com as lutas
empreendidas para uma Educação das Relações Étnico-Raciais, a partir da legislação atual,
que dispõe sobre a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira na
Educação Básica.
Essa investigação encontrou um campo onde fica evidente um trabalho
pedagógico, em uma escola pública, que tem se constituído na inclusão das culturas negras
em muito mais do que apenas acréscimos de conteúdos. Nesse sentido, o estudo trouxe
questões que possibilitarão refletir estratégias que corroborem para que o Ensino de Arte
implique na produção de visibilidade do espaço da cultura negra na escola e na sociedade.
Uma escola que trabalhe para iluminar a margem do palco em que foi colocada a cultura
negra, reposicionando-a em novas cenas; uma escola que, ao trazer imagens, desconstrua
as representações racistas e estereotipadas que ainda perpassam o olhar sobre as culturas
africana e afro-brasileira.
Acreditamos ser a escola um espaço relevante na produção de identidade
cultural: como espaço de concretização de iniciativas no combate ao racismo e às
discriminações; espaço circulante de produção de sentidos e significados, de
26
reconhecimento da memória coletiva do Outro e de possibilidades de “desocultação” de
histórias que interessam a todos.
Ler, fruir e produzir Arte são aspectos fundamentais para a sobrevivência
humana no mundo contemporâneo. Somos cotidianamente invadidos por imagens,
portanto, necessitamos nos apropriar de outras linguagens que nos possibilitem construir
um novo e crítico olhar diante da realidade imagética. Acrescente-se a isso o que Duarte
Jr. (2004) nos fala sobre a educação da sensibilidade como forma de romper a crise da
modernidade, crise dos sentidos pela qual passa o mundo contemporâneo, propondo que
transformemos o estado de anestesia em que nos encontramos, através do saber sensível.
E ainda, construindo uma educação assentada em enunciações de Paulo Freire
que, conforme lembra Ana Mae Barbosa (2005), faz-nos olhá-la como ação de nos ver e,
ao mesmo tempo, de ver o mundo a nossa volta. Olhar esse que nos leva a compreender o
nosso contexto na dinâmica relação entre linguagem e realidade.
Essa dissertação está dividida em três seções. As duas primeiras sustentam a
minha caminhada teórica, na busca de conceitos e noções que ancorem as categorias da
dinâmica inclusiva do Ensino da Arte e inclusão sociocultural de afro-descendentes no
entrecruzamento de espaço e identidade cultural.
A seção “Escolhendo os fios: Dinâmica inclusiva do Ensino da Arte na
Mediação do Olhar” apresenta, em cinco subseções, o corpus teórico do Ensino da Arte
nos fios que qualificam o movimento inclusivo. A imagem de um pano da costa, uma
tradição africana, é a porta de entrada e o caminho da seção.
O trabalho de tecer é uma transfiguração na qual as mãos que entrelaçam linhas
de diferentes matizes, espessuras e texturas em movimentos horizontais e verticais vão
produzir um tecido. Essas são escolhas que vão intervir nos resultados. São sobre os
conhecimentos que interferem nas escolhas e que consubstanciam a forma dos movimentos
inclusivos do trabalho pedagógico que discutimos o Ensino da Arte. Contemplamos, então,
a necessidade de uma (re) atualização do que se compreende acerca do Ensino da Arte
como área de conhecimento, discutindo a partir de rasuras do seu posicionamento marginal
na educação escolar. Conhecimentos que são construídos no que aqui entendemos acerca
da dimensão inclusiva da arte, na perspectiva da formação do estudante dos pontos de
vistas da arte como expressão e impressão, e na representação social da imagem da arte
que, como prática social, define exclusões e inclusões, para consubstanciarmos o processo
27
de mediação do olhar crítico e sensível refletido sobre a não neutralidade da imagem que
se pretende mediar.
Na seção “Os Fios que Tecem o Manto: inclusão sociocultural”, denominação
que faz referência à obra de arte de Arthur do Bispo Rosário, discutimos as noções de
espaço e identidade cultural, considerando-as na relação entre o local e o global. Tais
noções vão refletir a (re) configuração do espaço e as identidades produzidas no trabalho
pedagógico; bem como os espaços de referência de afro-descendentes na produção artística
das culturas negras e em outros espaços, os quais os estudantes têm acesso e que vão
interferir nos seus processos de identificação.
Finalizo essa seção, intitulando a subseção “Ensino da Arte: perspectivas em
tecer o entre-lugar na sala de aula”, discutindo o trabalho pedagógico do Ensino da Arte na
Educação das Relações Étnico-Raciais, a partir do multiculturalismo crítico e nas questões
da diversidade no Ensino da Arte posto nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Arte, e
que tem referenciado, no cotidiano da escola, os subsídios teóricos para o planejamento
pedagógico. É nesse chão teórico que pisei para discutir a inclusão sociocultural de afro-
descendentes, onde a escola, espaço de produção cultural, organiza-se nos seus modos de
produção semióticos, revelando-se um espaço relevante no desenvolvimento do sentido de
pertencimento e de construção de identidade.
Na última seção, “Apresentação do manto: a polifonia de cores e formas do
campo”, trago o caminho metodológico, para logo depois apresentar um manto tecido no
campo com os fios que ali se apresentam (o colégio, a sala de aula, os atores do espaço
pedagógico, e todo o trabalho pedagógico descrito, analisado e discutido nas falas, imagens
e escritos do campo). Depois, então, passo a interpretá-los sob as formas que os constitui
na perspectiva da inclusão sociocultural de afro-descendentes.
Em “Tessituras produzidas e inconclusas da pesquisa: considerações finais”
trago o que o campo nos disse com as certezas produzidas naquele microespaço social e
político e suas inconclusões, não pela pesquisa, que aponta rastros para outra
investigação, mas das nossas próprias buscas, seres humanos que participamos desse ritual.
28
SEÇÃO 1
ESCOLHENDO OS FIOS: DINÂMICA INCLUSIVA DO ENSINO DA ARTE NA
MEDIAÇÃO DO OLHAR
Figura 3: Pano da Costa
29
Uma arte não se constrói no vazio, pois mergulha sempre suas raízes na vida
profunda das sociedades. Ou seja, através de sua arte, uma sociedade projeta a
concepção global de sua existência por um conjunto de símbolos que expressam
a vida dessa sociedade em todas suas dimensões: estética; estrutura social,
econômica, política, religiosa, etc. Quando se observa a arte negro-africana,
embora nela estejam presentes todas as dimensões, percebe-se que a dimensão
religiosa ocupa um espaço de destaque pelo fato do fenômeno religioso permear
as outras dimensões da vida como a política, a economia, a organização social,
etc. até a lúdica. O que levou a maioria dos estudiosos ocidentais a reduzir a
compreensão da arte africana somente ao estudo do mecanismo religioso. Uma
visão sem dúvida reducionista e caricatural da arte negro-africana cuja
complexidade vai além do religioso.
Kabenguele Munanga
3
,
Ensinar arte pressupõe a existência de um campo de conhecimento (arte), de
um público (estudantes) e de um caminho de produção (trabalho pedagógico), sobretudo
sobre as concepções que temos de um e de outro, as quais vão se desenhando no processo
de mediação do olhar. Um processo que nos responsabilizamos “por ensinar o que é
significado, inclusive conflitos de significado e como as coisas chegam a significar”
(FREEDMAN Kerry, 2005, p. 139) na imagem da arte, tendo a perspectiva do alcance de
um Ensino de Arte na construção do sujeito mais crítico, criativo e reflexivo, capaz de
atuar sobre o seu contexto e a sua realidade, conjugando-se nas tensões como ser sensível e
inteligível.
Acreditamos, como Munanga (2004), que a arte não é construída em um vazio,
mas que vida e arte se penetram. A arte age na vida, através de dimensões que
consubstanciam tanto a arte como a vida. A sua presença na vida requer um olhar para esse
campo de conhecimento na sua complexidade desenhada por suas dimensões social,
histórica, política, cultural e estética.
Pensando assim a arte, refletirmos o seu ensino no seu processo de mediação.
Primeiro, são desenhadas formas insurgentes no Ensino da Arte visto como área de
conhecimento. A partir dessas considerações, são discutidas, nas subseções seguintes, as
produções da dinâmica inclusiva articulada a partir de três eixos: na dimensão inclusiva da
arte; nas relações da arte sob os ângulos de quem a produz e de quem a lê; e na imagem da
arte como representação social. Esses eixos ancoram-nos em reflexões da arte como local
3
Citado no Colóquio Ancestralidade Africana e Cidadania: O Legado Vivo de Abdias Nascimento, na
palestra proferida sobre o tema “Arte Negro-Africana e Ancestralidade” - Arquivo Nacional, Rio de Janeiro
25 e 26 de novembro de 2004. Disponível em:
<http://www.abdias.com.br/nacional_90anos/nacional_90anos_coloquio.htm>.
30
de negociação de discursos de poder, de visão de mundo e de produção de identidade
cultural o que inclui as imagens produzidas na cultura visual, para chegarmos, então, na
última subseção, às concepções que constroem a mediação do olhar no Ensino da Arte,
configurando o trabalho pedagógico na perspectiva inclusiva.
Os movimentos mobilizadores da dimensão inclusiva da arte, considerados
nesta dissertação, são: a ação transformadora da arte; a ação sobre uma matéria que
transforma a ambos – sujeito e objeto –; o tornar-se lugar de corporeidade dos sentidos nas
experiências vividas pelo sujeito; o seu significado de produção para o coletivo; e a
qualidade simbólica de conferir poder. Esses são movimentos a serem considerados no
trabalho pedagógico que se entranhem nos conhecimentos mediados sobre a arte e na
forma de mediação desse ensino
No recorte desta dissertação, de acordo com os PCN (Parâmetros Curriculares
Nacionais), o Ensino da Arte na linguagem de Artes Visuais abrange: artes plásticas, artes
gráficas, TV, vídeo, cinema, fotografia, computação e performance (instalação,
happening). A denominação imagens de arte é aqui tratada a partir dessa abrangência,
pensando os objetos de arte em diferentes momentos históricos, as imagens produzidas na
cultura visual, como também as cenas e a estética do cotidiano. Mas com um olhar que se
debruça, mais especificamente, sobre as imagens de arte das culturas africanas e afro-
brasileira, após a promulgação da Lei 10.639/03.
1.1 ENSINO DA ARTE: AS FRONTEIRAS DE UM CONHECIMENTO
Ensino da Arte?
Do Decreto de 1816 de D João VI, criando o ensino artístico no Brasil, até a
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em 1996, que institui a
obrigatoriedade do Ensino da Arte na educação básica, ‘ser instrumento para’ tem
historicamente sido o atributo desse ensino nos seus diferentes epítetos e tendências
pedagógicas. Queremos, no tempo e no espaço desta dissertação, tecer sua existência, não
como um acessório para determinados fins, visão restrita deste ensino, mas que nosso olhar
31
possa, ao percorrer essas três palavras Ensino da Arte compreender essa área de
conhecimento a partir do lugar da arte na produção de identidade.
Para refletir essa área de conhecimento é preciso, em primeira instância, uma
aproximação com sua ancoragem na educação. Nesse sentido, nos apropriamos da
enunciação de Paulo Freire para refletir o Ensino da Arte, na educação escolar, na sua
contradição e dialética: “a educação, especificidade humana, é um ato de intervenção no
mundo” (2005, p. 109). Tal intervenção pode tanto provocar mudanças e rupturas, como
também pode reproduzir os espaços de dominação.
Contudo, também somos chamados/as para um sentido das palavras de Bhabha,
quanto ao “momento de trânsito” em que nos encontramos e de cruzamento espaço e
tempo, o qual “produz figuras complexas” (BHABHA, 2007, p.19). Tais sentidos nos
convidam a olhar o intervalo entre elementos antagônicos, a deslizar entre os opositores
para ver o que emerge do espaço limiar.
Assim, refletimos o Ensino da Arte sobre uma visão que compreende a
articulação entre as duas proposições: as contradições da educação e da arte e os
deslizamentos, figurados como movimentos de expansão para todos os lados, quando dessa
ação de intervir no mundo. Isso significa exercitar o olhar para perceber que outras
tramas sendo produzidas no intervalo entre essas polaridades, nas respostas e
problematizações insurgentes da dinâmica e das especificidades da sala de aula pelos seus
atores. No campo da pesquisa empírica, por exemplo, a escolha de uma imagem de arte
européia, atravessada de valores estéticos de branqueamento, para trabalhar os conteúdos
em um espaço hegemônico da presença étnico-racial de afro-descendentes, no bairro
periférico da cidade de Salvador, é refletida nas implicações da dialética reprodução e
transformação que estão envolvidas nessa escolha e nos processos operados e produzidos
na sala de aula a partir dessa escolha. um processo dinâmico, considerando ainda a
imagem como campo de sentido e a construção de significados pelo/a estudante.
A discussão do Ensino da Arte parte da sua concepção como área de
conhecimento, referenciado na cultura e construído no processo de mediação. Tal
concepção implica na ampliação da interpretação e na compreensão das dimensões sociais,
históricas, políticas e estéticas das imagens da arte e discursos que constituem o seu campo
de conhecimento. As visões sobre tais dimensões da arte no seu movimento de exclusões e
inclusões é que vão desenhar o espaço de intervenção deste ensino na educação escolar; e,
32
conseqüentemente, possibilitar constituir-se, enquanto processo, na sua dinâmica inclusiva
de gênero, raça e etnia.
Do ponto de vista legal, a Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional
(LDB), Lei de 9394/1996, Art. 26 § 2º, determina: O Ensino da Arte constituirá
componente curricular obrigatório, nos diversos níveis da educação básica, de forma a
promover o desenvolvimento cultural dos alunos” (BRASIL, 1996). Os Parâmetros
Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998) ratificam a disciplina Arte com conteúdos
específicos a serem trabalhados nas diferentes linguagens: Visual, Teatro, Dança e Música.
Ensino da Arte é, sobretudo, reiterado na idéia desse campo como
epistemologia da arte por desenhar o compromisso político desse ensino com uma
educação crítica, reflexiva e estética. Comprometer-se com o trabalho pedagógico do
Ensino da Arte enquanto área de conhecimento torna-se uma relevante atitude política
concernente: ao processo histórico desse ensino no Brasil; ao espaço e posição que essa
área ainda ocupa no currículo escolar; e, de forma mais ampla, a necessidade de uma
consciência com relação às inserções da educação estética na vida. Essas não se excluem,
haja vista à condição relegada a esta área na escola, caracterizando-a como atividade
supérflua e posicionando-a marginalmente com relação as demais áreas consideradas mais
importantes e, portanto, tidas como mais sérias
4
.
Dentre as várias questões que colaboraram para a posição ocupada pelo Ensino
da Arte fazemos três destaques na intenção de reiterar este ensino como epistemologia da
arte e devolver à responsabilidade com a complexidade de seu campo de conhecimento a
qual, ainda hoje, permanece significativamente reduzida e subtraída em muitas práticas
pedagógicas.
Citamos, por exemplo, equívocos interpretativos ocorridos nos relevantes
fundamentos das concepções de autores como Herbert Read e Victor Lowenfeld sobre a
livre expressão, no Ensino da Arte. Como concepção da tendência modernista centrada na
arte como expressão e atividade, a livre expressão, uma das mais fortes influências
pedagógicas na historia do Ensino da Arte no Brasil, ainda hoje tem ressonância em muitas
4
Pela própria relação entre o lúdico, o estético e a arte o discurso normalizado na nossa sociedade coloca o
Ensino da Arte pejorativamente como um brincar. Discurso ingênuo, por um lado, por não refletir o brincar
como uma das atividades mais sérias, porém não sisuda que o ser humano realiza. Por outro lado, retira-se da
arte o seu caráter de trabalho, enquanto transformação; essa é, então, vista como uma atividade livre e feliz
em oposição à idéia de trabalho.
33
escolas. Essa tendência deixou as marcas pedagógicas de uma área esvaziada de
conteúdos; no papel omisso do professor que não provocava para não interferir na
expressão da criança; e na prática do laissez-faire nas aulas de artes.
Citamos também os reflexos de políticas de educação do Brasil. Recordemos,
por exemplo, que durante o contexto político de ditadura militar do país, a LDB 5692/71
designou esse ensino com o epíteto de Educação Artística, tornando-o obrigatório como
atividade, relacionada ao desenvolvimento de práticas e procedimentos. Àquelas que foram
designadas na lei como Disciplinas tinham o caráter de área de conhecimento com
conteúdos, objetivos, metodologias e processo de avaliação. Ao assumir a condição de
Educação Artística na expectativa do/da professor/a que domine as diferentes linguagens,
releva-se a visão reducionista sobre os conhecimentos na e da arte; e ainda afirma-se o
discurso da arte como 'dom', que pretende atender a uma idéia de 'inclinação' do
estudante para uma das linguagens, e, portanto, nega-se a construção desse conhecimento.
Considerando ainda o que nos apresenta Hernandez sobre essa questão, em um
contexto mais amplo, não como memória de um passado longínquo, porém como algo que
não está totalmente superado em práticas pedagógicas, criando visgos entre as idéias de
habilidades manuais e do ‘dom inato’ ao Ensino da Arte. Temos que;
Se o leitor e leitora lembrar de suas experiências formativas relacionadas com
educação artística vinculadas às artes visuais, reviverá algumas aulas centradas
na prática de atelier; na aprendizagem do desenho e de alguns procedimentos
pictóricos e, sobretudo, na realização de trabalhos manuais com o fim de
alcançar uma série de habilidades e destrezas e adquirir determinados critérios de
gosto. Esse caráter prático e manual (além de atender a outras razões
sociológicas e culturais nos países de tradição católica, onde se continua
acreditando que os gênios nascem fruto de um “dom” divino ou genético) levou
essa disciplina a ser considerada, na educação escolar, como um saber informal
ou como uma habilidade funcional de pouca importância e não como um campo
de conhecimentos organizados que pode ajudar-nos a interpretar o passado, a
realidade presente e a nós mesmos (grifo meu). (HERNANDEZ, 2000, p.38)
Lembro-me que após a LDB 5692/71 nas aulas de arte, na escola pública,
aprendia a fazer salada de frutas, a pintar figuras de gesso compradas, a bordar... A questão
não está neste fazer e sim no nada que antecedia e no nada após o fazer. Era apenas uma
habilidade que se reproduzia mecanicamente e que se destacavam aqueles que 'levavam
jeito'. O que não muda muita coisa se passarmos a fazer releituras, como cópias de Volpi,
Rubem Valentim, Basquiat e outros, mantidas em práticas esvaziadas, exceto o fato de se
passar a conhecer alguma informação sobre os artistas. Essas são práticas que não
34
consideram os conhecimentos histórico, social, cultural, político ético e nem estético no
campo da arte, noções que nos ajudam a interpretarmo-nos e ao nosso cotidiano.
E, finalmente, citamos o apartamento da nossa dimensão estética, o qual fomos
impingidos/as em todo processo de construção da sociedade e da vida sobre os paradigmas
modernos na exacerbação da razão instrumental, refletida na estrutura da escola. Não
escutar o corpo e controlar a sensibilidade foram formas de pensamentos provocadoras de
rupturas entre o intelectual e o sensível. É no projeto Iluminista que a razão pura subordina
a sensibilidade. Para Maffesoli, os positivistas, dando prosseguimento a esse caminho,
reduzem o conhecimento aos critérios da ciência e consideram o real apenas o racional. A
arte, como todo resto, foi relegada “às esferas particulares da existência” (MAFFESOLI,
2005, p. 71).
O conhecimento produzido na dimensão estética ainda hoje é apartado no
processo de educação escolar. Processo que enxerga apenas cabeças sem corpos sobre as
carteiras da sala de aula e corpos inoperantes em seus movimentos e sentidos. O Ensino da
Arte emprenhado do conhecimento na arte pressupõe o encantamento, o momento da
fruição, do gozo que é gestado da sensibilidade e que envolve o corpo na sua inteireza com
seus sentidos e percepções. A fruição é um momento desse ensino na arte. Em que ela é
produzida estejamos atuando como espectador/a e/ou como produtor/a.
Como construir um trabalho pedagógico com a responsabilidade da
complexidade da arte sem nos nutrirmos e nos envolvermos dos conhecimentos na e da
arte? Conhecimentos que não estão prontos e acabados como a produção de peças em
linha de montagem, mas se tornam no ato de reinvenção em que problematizam as
distorções e torções das formas e conteúdos culturais, sociais, políticos, estéticos e
históricos da arte. E que dizem respeito à nossa realidade presente, mas sem perder de vista
os esclarecimentos que o nosso olhar necessita buscar no passado.
Como construir inclusões no espaço da sala de aula de arte, local de produção
de identidades, em que a linguagem da arte, nas suas representações, participa do processo
de construção de imagens do sujeito, em como somos interpelados e interpelamos? Como
construir no cotidiano da sala de aula inclusões de movimentos que pulsam em diferentes
ritmos?
Uma sala onde todos se tornam protagonistas através das imagens do cotidiano
da aula e que são como cenários vivos traduzidos nos movimentos dos/das estudantes e do/
35
da professora: deito minha cabeça de um lado, apresento a proposta da aula, levanto e vou
à janela, canto, converso com o/a colega, respondo a pergunta da professora, levanto uma
questão para que todos/todas participem, risco meu caderno, peço para beber água ou ir ao
banheiro, estou ansioso/a pelo horário do intervalo, quero logo que a professora me libere,
escuto o que a professora fala, corro atrás do meu colega, silencio e meu pensamento vai
para longe.
Desde o início dos anos 1990, o que tem caracterizado as práticas pedagógicas
no Ensino da Arte, no Brasil, são os processos de leitura e produção de imagens.
Confirmando esse enfoque na atualidade, referenciado nos PCN Arte, Roberto Rabêllo nos
informa que:
A concepção de arte mais difundida aponta para a articulação entre a produção
(expressão, construção e representação), apreciação (recepção, percepção,
decodificação, interpretação) e a contextualização (social, cultural e histórica) no
movimento de interação e aprendizagem coletiva. (RABÊLLO, 2006, p.170)
Nesse sentido e na prerrogativa da existência do Ensino da Arte como área de
conhecimento, consideramos a necessidade de uma (re) atualização do que tem sido
explorado em sala de aula como conhecimento de arte. Uma (re) atualização que amplie as
perspectivas dos caminhos que se traçam ao fim almejado, nas diferentes propostas
pedagógicas, quanto à capacidade dos/das estudantes de ler e produzir imagens. Caminhos
que se constroem, nas aulas de arte, também nas concepções sobre leitura e produção e, ao
mesmo tempo, nos conhecimentos que envolvem o processo de mediação entre arte e
público.
Nas considerações de Hernandez (2000) o trabalho pedagógico do Ensino da
Arte, nos processos de leitura e produção da imagem, vem refletindo nas aulas as
“miopias” sobre esse ensino. Tais miopias são apresentadas em conteúdos que restringem
esses processos. O autor cita algumas práticas escolares em que, por exemplo:
se observa um quadro de Kandinsky para fixar-se na importância da linha, do
ponto e do plano; ou na realização de exercícios sobre diferentes tipos de linhas e
texturas, etc.; ou aqueles que ensinam uma técnica (a aquarela, a têmpera,etc.)
sem contexto, como se tivessem surgido do nada; ou os que fazem com que seus
alunos compreendam uma “visão simbólica” do mundo, como o que oferece a
perspectiva geométrica, sem relacioná-la com a história do olhar e da
representação e etc. (HERNANDEZ, 2000, p.28)
O Ensino da Arte não se limita à leitura de imagens em reproduções em que os
olhares dos/das estudantes não se demoram mais do que alguns segundos sem que sejam
36
instigados a permanecerem por mais tempo para que, no processo de mediação, se possa
abrir e fechar novas dobras ou quem sabe ousar tornar transparentes as opacidades frente a
uma dada representação. Concordando com Kellner, ler imagens criticamente implica
aprender como apreciar, decodificar e interpretar imagens, analisando tanto a forma como
elas são construídas e operam em nossas vidas, quanto o conteúdo que elas comunicam em
situações concretas” (KELLNER, 2005, p. 109). Ler criticamente é situar-se, a partir da
relação entre o como a forma opera em uma vida, em particular, e o que do conteúdo
expresso e comunicado constroem nessa vida, enquanto subjetividade e coletividade, “na
intersecção da linguagem, da cultura, do poder e da história” (MCLAREN, 2000, p.44).
Nessa intersecção, desenha-se o lugar onde as coisas começam a fazer sentido para nós,
porque forma e conteúdo são interpretados também do nosso lugar de enunciação, com a
nossa implicação. É um momento de desalienação.
O Ensino da Arte não se limita, ainda, em um fazer artístico como um exercício
ilustrativo de uma definição e que se esgota na própria atividade. Como um dia de
observação no CEPJBAB, no qual a atividade proposta para trabalhar os conceitos de cores
frias e quentes, foi a experimentação de duas pinturas, aplicando, separadamente, os tons
de azuis e os tons de vermelho/amarelo. Na consigna da professora o desenho deveria ser a
representação de um ponto turístico de Salvador, proposta de interdisciplinaridade com o
conteúdo da disciplina Estudos Baianos. Contudo, não houve um tempo e um espaço que a
arte enseja
5
. Esse tempo é necessário para o corpo do sujeito leitor/produtor, durante as
aulas, para ampliar essa produção no pensar, refletir, discutir e ouvir dos/das estudantes
sobre essa criação ou (re) produção de imagens. A produção em arte que torna visível o
invisível se constrói no processo em que, também, essa se torna objeto de leitura e de
fruição, dentro do trabalho pedagógico.
Reduzir no Ensino da Arte a produção de ateliê como uma atividade na qual,
após o seu término, o objeto na sua concretude não tenha qualquer valor para o/a
estudante que o produziu é concordar com Vicent Lanier, segundo o qual, “a produção em
arte de ateliê não é necessariamente a maneira mais eficaz de promover o crescimento em
extensão e qualidade da experiência estética visual” (LANIER, 2001, p. 46). A produção
5
O tempo e espaço da arte os quais estamos nos referindo diz respeito a uma necessidade de que os
conhecimentos deste ensino se construam em processos que possibilitem os/as estudantes se colocarem e
exporem os seus próprios conhecimentos (re) elaborados e experienciados. Um olhar de descobertas e de
curiosidades diante das relações entre arte e vida.
37
em arte termina reduzindo-se, em certos casos, a uma existência que finda até o olhar, às
vezes, furtivo do/da professor/a e da pontuação (nota) que recebe, sem nem ao menos ter
sua existência no tempo e espaço da arte do compartilhar coletivo. Fato que se confirma
quando vemos essa produção amassada e jogada ao chão. A produção de ateliê precisa ser
provocada no seu sentido visceral, dentro do trabalho pedagógico: produção que nasce do
corpo e projeta-se sobre materiais e técnicas em movimento. Esse trabalho se permite
tornar antropofágico pelo processo de trituração, absorção e recomposição de imersão e
emersão do/da estudante.
Assim, a mediação no Ensino da Arte diz respeito à produção de conhecimento
da cultura que se implica com a extensão latente entre a imagem que representa e um
mundo representado. O que significa dizer que esse ensino tem como campo de
conhecimento a arte que rejeita a concepção de artefato autônomo e a-histórico. Sendo esse
ensino epistemologia da arte, de rejeitar a destituição dos contextos políticos e
socioculturais que envolve a leitura crítica, a fruição e a produção de imagens pelos/pelas
estudantes.
Temos então, no Ensino da Arte, o processo de mediação entre as imagens
produzidas como práticas sociais e o público produtor e leitor. Em que o fluxo e o
refluxo da mediação nesse itinerário, que salientamos não ser linear ou previsível, vão
construir as exclusões, inclusões, autorizar, desautorizar ou legitimar. Sendo assim, o nosso
propósito é o Ensino da Arte que inclua vozes, cores e formas ausentes no trabalho de
produção semiótica da escola e nas produções culturais do grande contingente
populacional de afro-descendentes da cidade de Salvador.
A perspectiva inclusiva da arte é construída na imagem de aderência entre arte
e vida. Porque a arte provoca encontros que envolvem subjetividades e coletividades. O
objeto artístico e o sujeito: um encontro das ressonâncias de vidas históricas, culturais e
singulares da qual a arte emerge e da qual ela imerge, refazendo a ambos. Os objetos são
fontes de (re) conhecimento e ganham sentidos na experiência com o sujeito. Sejam
sentidos ganhos quando o sujeito uma forma nascer de suas próprias mãos ou quando
participa da existência da forma como espectador.
O objeto pode ser uma cena quando passamos na rua e ela nos detêm pela
emoção que nos provoca, tornando-se parte de nós mesmos e uma manifestação artística. A
dimensão inclusiva da arte pode então ser configurada nos processos de identificação que
38
ela provoca tanto no produtor como no espectador, os quais se constituem pela idéia de
tornar-se parte de, de partilhar ou solidarizar-se com uma visão de mundo e com uma
linguagem instauradora de sentidos.
Um dos pontos de partida para compreender a dimensão inclusiva da arte é a
percepção de que a arte tem sido, é e sempre será necessária (FISCHER, 1987), sendo,
portanto, parte imprescindível à existência humana, à existência da cultura e da sociedade.
1.2 DINÂMICA INCLUSIVA DA ARTE: TORNANDO VISÍVEL O INVISÍVEL
Para discutir a dimensão inclusiva da arte, iniciamos propondo um diálogo
entre Freire e Fischer. Em Freire trazemos a questão da inconclusão do ser humano e o seu
“permanente movimento de procura” (FREIRE, 2005, p.14). Nesse reconhecer-se na sua
incompletude, o ser humano vai compondo seu movimento de busca, de procura. A arte é
parte desse movimento de procura, no qual do seu caleidoscópio emerge a utopia. O vir a
ser, outras realidades possíveis e as possibilidades de encontro, de identificações, dito
assim por Fischer:
Como primeiro passo, é preciso advertir que tendemos a considerar natural (e
aceita-lo como tal) um fenômeno surpreendente. E, de fato, referimo-nos a algo
surpreendente: milhões de pessoas lêem livros, ouvem música, vão ao teatro e ao
cinema. Por quê? Dizer que procuram distração, divertimento e relaxação, é não
resolver o problema. Por que distrai, diverte e relaxa o mergulhar nos problemas
e na vida dos outros, o identificar-se com uma pintura ou música, o identificar-se
com os tipos de romance, de uma peça ou de um filme? Por que reagimos em
face dessas “irrealidades” como se elas fossem a realidade intensificada. Que
estranho, misterioso divertimento é esse? E se alguém nos responde que
almejamos escapar de uma existência insatisfatória para uma existência mais rica
através de uma experiência sem riscos, então uma nova pergunta: por que nossa
própria existência não nos basta? Por que esse desejo de completar a nossa vida
incompleta através de outras figuras e outras formas? Por que, da penumbra do
auditório, fixamos o nosso olhar admirado em um palco iluminado, onde
acontece algo que é fictício e que tão completamente absorve a nossa atenção?
(FISCHER, 1987, p.12)
Fischer e Freire trazem fios que conduzem essa investigação para a
compreensão da imprescindibilidade da arte, não apenas por funções ou papéis exercidos
nas sociedades ao longo de sua história, mas na relação entre o ser humano e o mundo.
Relação que aponta para o entendimento da dimensão inclusiva da arte no entranhar, no
sentido de dar forma às incompletudes do ser humano na sua subjetividade e coletividade,
39
a partir das identificações que provoca. Entendimento que, perspectivado no trabalho
pedagógico do Ensino da Arte, compreende, no processo de mediar o olhar do/da
estudante e o objeto artístico, o envolvimento de problematizações no que me liga ao
Outro, por relacionar-se com a produção de mundo, no como olhamos o Outro e no como
nos olhamos.
O Outro, simbolicamente representado na pintura, na música, na cena
iluminada do palco, serve-nos de espelho, seja plano, convexo ou côncavo, em que as
imagens podem se projetar simetricamente ou sofrer modificações, o fato é que ela não é a
mesma. Um existir fora de nós, o (re) conhecimento da diferença ou da posição que ocupo,
um tornar-se, uma relação identitária. Olho no ‘espelho’ o que vejo? E de onde vejo? Ou,
olho no ‘espelho’ o que não vejo? Através dos significados que são produzidos nessas
representações, referenciados na nossa experiência, produzimos sentidos que nos (re)
modelam.
Contudo, vale ressaltar que a arte provoca identificações não com
“irrealidades” ou com o “fictício”. Consideramos que as palavras utilizadas não nos
informam sobre a linguagem da arte, como prática de representação que atribui sentidos e,
como tal, é instituinte de realidades e que diz respeito à experiência imediata do sujeito.
Desde os primórdios a arte tem sido uma prática de representação. Das formas
mais antigas que chegaram até nós, das pinturas paleolíticas das cavernas, das estatuetas de
osso ou marfim, o ser humano encontrou na arte a possibilidade de representar,
simultaneamente, o desejo e a realização do desejo. Produziu na pintura rupestre o tornar
verdade. Ao representar um animal com uma lança fincada no peito, por exemplo, buscava
o mais possível uma aproximação com a realidade que desejava efetivar. A representação
significava o ato concreto e dessa ação dependia a sobrevivência de um grupo. Assim, com
o sentido ‘mágico’ de ‘encantamento’, a arte foi o meio para dominar um real inexplorado,
empoderando o ser humano nas modificações do seu espaço. A arte, assim, segundo
Fischer, a partir do conceito de trabalho em Marx, revela o seu caráter de trabalho ao
possibilitar ao ser humano tomar a natureza e transformá-la em cultura.
Contudo, em Muniz Sodré se evidencia que:
A “natureza” existe para o “civilizado”. Para as culturas tradicionais não
existe o natural, tudo é ritualisticamente simbólico, tudo se submete às
obrigações da regra. Ser enfeitiçado, seduzido, ou encantado é ser vertiginosa e
ritualisticamente absorvido por um Destino; é deixar de ser sujeito de uma
40
consciência, de uma razão, de uma verdade fadada à transparência (grifo meu)
(SODRÉ, 2005, p.120).
A arte nos fala do simbólico, de corporeidade, de intenções, de produção de
sentidos e significados, da relação de domínio, de inscrita e escrita nos espaços da cultura,
de sedução e das suas opacidades. Todas essas noções emprenham a arte na forma de
representação social e na sua dinâmica de poder na estrutura da vida cotidiana, agindo
sobre o imaginário, seja nas culturas tradicionais nos símbolos ritualísticos, ou nas culturas
contemporâneas das imagens efêmeras e transitórias.
Figura 4: Pintura rupestre de Moçambique, África
De acordo com Juremir Silva, o ser humano se move pelo imaginário que
produz. O imaginário impressão digital” do indivíduo ou do grupo no vivido é um
reservatório que vai agregar “sentimentos, lembranças, experiências, visões do real,
leituras de vida e, através de um mecanismo individual/grupal, sedimenta um modo de ver,
de ser, de agir, de sentir e de aspirar ao estar no mundo” (SILVA, 2006, p.11/12). Para o
mesmo autor, o imaginário como motor é um sonho que realiza a realidade, uma força
que impulsiona indivíduos e grupos. Funciona como catalisador, estimulador e estruturador
de limites” (idem, 2006, p.12). Em relação à imagem da arte pictórica, escultórica,
fotográfica, cinematográfica, digital e outras Silva cita Maffesoli, que não considera a
41
imagem produtora do imaginário, mas sim a imagem como o resultado da existência do
imaginário.
Reafirmando a relevante dimensão da arte como provocadora de transfiguração
cultural, Ostrower (1983) nos coloca ser ela capaz de transformar o marfim em Vênus,
geradora de vida ou ainda, o amorfo em forma. No processo de transformação, a matéria é
impregnada com as emoções de quem a produziu. A matéria, que possuía um valor que lhe
era próprio, passa a conter novos valores: com a história de um ser humano, de uma
singularidade e de uma cultura. Na ação de captar o mundo e configurá-lo, o ser humano
cria e se recria.
A arte assim posta se desenha no seu caráter de trabalho cultural enquanto
transformação, processo em si criador e intencional que o ser humano realiza ao produzi-
la: liberta o significado nos signos e instaura o projeto de libertação no processo de
conhecimento. Ao transformar a matéria, possuidora de seus significados, na ação de
moldar um objeto, de dar-lhe uma forma, o sujeito também vai dando forma a sua
incompletude, a sua inconclusão.
O movimento de empoderamento da arte, quando nas representações capazes
de conferir domínio sobre uma realidade, intervindo no dinamismo do processo cultural,
pode ser observado também no uso de máscaras nas culturas africanas, em eventos sociais
e religiosos, em cerimônias feitas para invocar os espíritos dos ancestrais e para celebrar
ritos de passagem. A máscara ao ser vestida, tomando todo corpo, revela desejo e o
imaginário de um grupo em absorver e possuir as forças concernentes do ser evocado. Ela
não se pretende apenas em esconder o rosto de quem a usa. A máscara transforma esse
alguém em um “outro” com um poder do espírito ancestral, poder do mundo invisível.
Segundo Maffesoli:
[…)]Na base de toda representação ou de toda ação, uma sensibilidade
coletiva e uma reunião extralógica que servem de fundamento à existência
social. Nesse sentido, o Lebenswelt, o mundo da vida é o que une de um modo
não consciente. É uma ética no sentido forte do termo: isto é o que permite que a
partir de algo que é exterior a mim possa se operar um reconhecimento de mim
mesmo. Esse algo exterior pode ser um outro-eu mesmo:outrem, um outro
enquanto outro: objeto, um outro enquanto qualquer outro: a alteridade ou a
deidade. Em todos os casos, e é isso que é importante, reconhecemo-nos em
outrem, a partir de outrem (MAFFESOLI, 1996, p. 38/39).
42
Figura 5: Máscara Chokwe, Angola. Mukixi wa Mwana Pwo
Maffesoli considera que o sentido da arte, o Outro no objeto, reside em quem
nela se reconhece e quem a produziu. Uma forma significante para um grupo que permite
se constituir como tal e que o (re) une em um movimento de sensibilidade coletiva o qual
fundamenta a existência social.
Importa, nesta dissertação, o que a arte realiza. O que a máscara representa
enquanto símbolo insurgido na arte, seus significados, o que a constitui e o que por ela é
constituído em um dado contexto. A máscara “contém a vida de onde emerge”
(PAREYSON, 1997, p. 55). Importa ainda a força dessa simbologia para um coletivo, as
emoções que são suscitadas, o encantamento no compartilhar emoção, que compreende o
sentido de estética enunciado por Maffesoli (1996) como Ética da Estética: um respirar
coletivo, que se constituí em emoções partilhadas e vivenciadas em comum.
O sentido residente na arte colocado por Maffesoli é cimento para o
movimento inclusivo no trabalho pedagógico do Ensino da Arte. É o compartilhar da
produção de um objeto e/ou o reconhecer-se nas representações do objeto de arte como um
conhecimento vivo, pulsante, que fora constituído, insurgido e experienciado
43
coletivamente no contexto que define o espaço da sala de aula. Os significados gerados
nessa produção constroem os vínculos que re-junta o grupo como sujeito instituinte desse
conhecimento.
Importa também o significado do movimento de empoderamento na arte
produzido pelos sujeitos que estavam envolvidos na sua realização, mesmo na posição de
espectador/a. Poder conferido na representação como forma de intervenção em um
processo cultural sustentado pela idéia da participação, do tomar parte e tornar-se partícipe
da sua condição de artífice da cultura.
É no jogo das representações: (re) ordenando, (re) organizando, (re)
configurando, dando sentido aos objetos do mundo, que o ser humano produz cultura. Na
sua produção material e imaterial, a cultura expressa a forma de percepção de mundo.
Portanto, os objetos de arte além de utilitários, em determinados contextos culturais,
trazem nas suas formas/conteúdos a expressão dessa visão sentido estético. A arte pode
ser vista, então, como o lugar aonde o sentido toma corpo a partir das experiências
individuais e coletivas.
Ressaltamos, ainda nos exemplos expostos da pintura rupestre e da máscara
africana, a arte na sua dimensão inclusiva como produção para o coletivo, voltada para a
relação do grupo, da comunidade que testemunha e infere o significado do coletivo e do
pertencimento ao grupo. A arte envolve o sentido de comunidade. Dessa forma, o
pertencimento, para o indivíduo, tem o sentido de vida e conteúdo da vida enquanto que, a
exclusão do grupo, tem o sentido da ‘morte’.
A arte, prática de representação, realiza-se no espaço ritual do cotidiano e, ao
mesmo tempo, constrói a vida cotidiana e confere poder ao indivíduo e ao coletivo. Sentir-
se no domínio do objeto representado ou apoderar-se da força desse objeto evoca na arte a
sua contigüidade com a realidade imediata. Nesse sentido, emerge a socialidade da arte no
“influxo da arte sobre a sociedade” (PAREYSON, 1997, p.120) a partir da forma que lhe é
conferida, caracterizada pelos objetivos com relação a uma cultura. “Trata-se então de fins
não a serem perseguidos com a arte, mas a serem conseguidos na arte: es em jogo não
uma subordinação da arte a um fim social, mas a assunção de tal fim na própria arte”
(idem, 1997, p.120). Esse sentido da arte para uma cultura e para um grupo é inseparável
deles. Ou seja, é o processo de imersão e emersão revelados na arte e que mostra a arte
pertencer àquele momento. Isso torna, de certo modo, a arte irrepetível e indispensável.
44
Mesmo no seu sentido mais utilitário, com uma finalidade específica almejada,
a dimensão estética não lhe é despojada. Dessa forma, atravessando o tempo, em diferentes
momentos históricos, a arte é capaz de provocar, de incitar e de suscitar sentidos e
significados outros e não o que foi no seu contexto uterino. Afirma-se irrepetível, não
apenas enquanto objetivação e materialização, mas enquanto forma de expressão e
comunicação: revela, de acordo com Pareyson, a todos e a cada um singularmente.
Os fins desejados na arte não a subordinam a reproduzir a sociedade, embora se
reconheça que a arte reflete a sociedade e por ela é refletida; e em muitos momentos
históricos e em diferentes contextos sociais a arte é utilizada como instrumento de
constituição de hegemonia das classes dominantes, mas, por outro lado, em outros
momentos, provoca rupturas. Pareyson apresenta a arte instituidora de socialidade, porém
reconhece também características artísticas na sociedade, que operam no “influxo da
sociedade sobre a arte” (PAREYSON, 1997, p.117).
Para esse autor, a relação entre arte e sociedade tem sido, mais de um
século, colocada em dois extremos: de um lado a cultura positivista que trata a socialidade
da arte nos condicionamentos sociais e no determinismo mecanicista, ou seja, a arte é
produto do social; do outro, a cultura idealista que, numa reação à cultura positivista,
afirma a individualidade e autonomia da arte, o seu caráter pessoal e de insularidade.
Pensamos que a realidade social reflete na arte e os condicionamentos sociais
atuam no fenômeno artístico e nutrem a produção da arte, como também é nutriente na
relação com o produtor. Entretanto, o produtor tem como filtro nessa relação a sua
subjetividade: na forma como o mundo, no que lhe é visível ao seu corpo e no tornar
esse corpo vidente, o como medeia mundo e arte, e que sentidos sua experiência com o
mundo corporifica na arte. Essa articulação entre a subjetividade humana, não insular, e a
sua realidade cotidiana é que realiza a arte. O que leva-nos a compreender que a arte,
artefato cultural e objeto estético, ao ser produzida pelo ser humano, é consubstanciada por
elementos da cultura e da singularidade, alimentados mutuamente.
Antônio Olé, artista angolano, realiza na arte, ao mirar da sua porta, toda
realidade que lhe é visível, porém invisível para outros. Em “Canoa Quebrada”, uma de
suas instalações, os materiais papel, ferro, tijolos, corvos embalsamados, televisão e seis
fotografias em preto e branco, cinco homens e uma mulher, rostos expressamente
marcados dão concretude às formas evocadas na sua experiência e na sua memória
45
diaspórica compartilhada. Formas que sugerem o elemento mar em alusão ao seu
movimento de idas e vindas do tráfico negreiro: “[...] evoca o mar - via e testemunho do
comercio de escravos no seu país [...] e os objetos por ele levados, e posteriormente por ele
devolvidos”. (Catálogo Mostra Pan Africana de Arte Contemporânea, 2005, p 58.)
Na sua obra, observamos o elemento da singularidade na sua relação e no seu
conhecimento com as situações presenciadas no seu país e na necessidade de expressar e
dar concretude a esses sentimentos. o componente cultural pode ser observado nas
formas que lhe foram oferecidas dentro do seu contexto específico o mar, o tráfico
negreiro para dar corporeidade aos sentidos apreendidos da sua experiência diaspórica
compartilhada. Seu filtro como produtor na relação com a realidade social é revelado no
seu próprio corpo que percebeu e deu visibilidade a algo invisível para outros; apresentou-
nos nas formas materiais de Canoa Quebrada” e nas suas concepções estética e formal os
conteúdos de sua experiência individual e coletiva.
Figura 6: “Canoa Quebrada”, Instalação Antônio Olé
A dinâmica da arte da instalação social de Olé –, ao produzir o inexistente, o
até então não posto, transcende o existente e se constitui num continuum existir, nutrido
nas relações de fruição, a qual se expõe e abre portas. Portas que se abrem quando nos
identificamos com fragmentos de memórias que apresentam um passado não no passado,
46
mas no presente. E, ao mesmo tempo, nos tornam parte dessa história e, portanto,
instituintes de uma nova realidade.
A dinâmica inclusiva do Ensino da Arte na articulação com a dimensão da arte
na sua práxis pedagógica, enquanto ação transformadora, lugar de corporeidade dos
sentidos nas experiências do sujeito, significado de produção do coletivo e qualidade
simbólica de empoderamento, enseja diálogos e rasuras nas relações do sujeito com o
mundo. Diálogos e rasuras que o/a estudante produtor/a de imagem expõe no processo de
produção de seu artefato cultural, dando corporeidade a sua realidade cotidiana, seus
filtros, seu movimento de procura, transformando a si e a matéria utilizada. O trabalho
pedagógico pode ser palco de produção de visibilidades, sobretudo problematizando
opacidades que são produzidas.
Ao refletir uma articulação entre o trabalho pedagógico e as questões que
mobilizam a dimensão inclusiva da arte, é relevante pontuar que o caráter de trabalho
apresentado na sua ação transformadora configura a arte também como modo de produção.
O que torna a produção de arte, no espaço escolar, uma armadilha pela possibilidade de
constituir-se em processo de produção de alienação do/da estudante. Um fazer mecânico
dissociado do corpo, ação e objeto estranhos a ele/ela mesmo.
Que movimentos de produção têm se engendrado no Ensino da Arte, em sala
de aula? Que poderes a arte no seu ensino tem conferido para modificações do espaço do
sujeito?
O objeto artístico, por sua relação estética, guarda em si o potencial
desencadeador de vinculações imediatas. O que provoca identificações, ampliando e
posicionando os lugares do sujeito no mundo. O trabalho pedagógico no Ensino da Arte se
torna um espaço de provocação, de inserções no lugar a que o sujeito se sente pertencente,
pois a arte é espaço de acontecimento do sujeito da experiência
Nos nossos rituais do cotidiano nos tornamos produtores e espectadores de
imagem, a grande questão está no como somos posicionados e nos posicionamos com
relação a essa produção, se estranhos a ela ou parte dela. O Ensino da Arte no seu trabalho
pedagógico também provoca o posicionamento do/da estudante e provoca a forma como
ele/ela se deslocará.
47
1.3 ARTE, IMPRESSÃO E EXPRESSÃO: FORMAÇÃO DO/DA ESTUDANTE
ESPECTADOR E PRODUTOR DE IMAGEM
Clarice Lispector, em Água Viva, nos convida a um mergulho no qual, a princípio,
sentimos corporalmente e, imediatamente, refletimos as perspectivas da arte,
simultaneamente, como forma de expressão e impressão.
Escrevo-te toda inteira e sinto um sabor em ser e o sabor-a-ti é abstrato como o
instante. É também com o corpo todo que pinto os meus quadros e na tela fixo o
incorpóreo, eu corpo-a-corpo comigo mesma. Não se compreende música: ouve-
se. Ouve-me então com teu corpo inteiro. Quando vieres a me ler perguntarás por
que não me restrinjo à pintura e às minhas exposições, que escrevo tosco e
sem ordem. É que agora sinto necessidade de palavras – e é novo para mim o que
escrevo porque minha verdadeira palavra foi até agora intocada. A palavra é a
minha quarta dimensão. ([..] Não pinto idéias, pinto o mais inatingível "para
sempre". Ou "para nunca", é o mesmo. Antes de mais nada, pinto pintura. E
antes de mais nada te escrevo dura escritura. Quero como poder pegar com a
mão a palavra. A palavra é objeto? E aos instantes eu lhes tiro o sumo da fruta.
Tenho que me destituir para alcançar cerne e semente de vida. O instante é
semente viva. (Água Viva, claricelispector.blogspot.com/2008/04/agua-
viva-1).
A palavra, o objeto artístico como quarta dimensão, é aquele instante fugidio,
“semente viva”, como aquele captado pelo impressionista e que, no momento da segunda
pincelada, tudo já mudou, a luz é outra, o tom é outro. A palavra como quarta dimensão é a
corporificação poética do incorpóreo, um momento após o outro em que nos lançamos
visceralmente em movimentos sensoriais com o mundo. Nesse sentido, a autora nos
convoca para uma fruição, para sermos espectadores com o corpo inteiro, o mesmo corpo
que produz arte. O conhecimento assim posto, como quarta dimensão, que torna visível o
invisível, que revela o indizível e que passa pelo sensível e inteligível, indissociáveis no ser
humano, traduz a arte como forma de conhecimento o como encontramos sentido no
mundo, quando alcançamos “cerne e semente viva”.
Tomamos nesse estudo a experiência da arte nas perspectivas do produtor e do
espectador, não para julgar a obra de arte na dualidade do ponto de vista do crítico de arte,
48
mas para fundamentarmos e analisarmos o objeto artístico no Ensino da Arte na sua
dinâmica de inclusão sociocultural, onde o/a estudante atua nessas duas perspectivas.
Langer aborda essas perspectivas da arte como expressão e impressão, apontando-as como
pólos antagônicos não superados pela supremacia entre forma prescrita e conteúdo
emocional” (LANGER, 2003, p.15). Tal antagonismo não interessa aos propósitos deste
estudo.
A arte como impressão, produzindo sentimentos de identificação no
espectador, descortina sentidos e significados que não estão cravados no objeto artístico
como algo fixo, inalterado. O fruidor/espectador, de forma sensível, crítica e autoral
estabelece um diálogo com o objeto numa construção perpassada e conduzida pelos seus
sentimentos e suas experiências cotidianas. Nesse diálogo, interage objeto e espectador.
O espectador é aqui concebido sobre duas vertentes que se imbricam na idéia
da passividade do sujeito da experiência, conforme Bondia (2001), aberto, receptivo e não
inerte e, na idéia de protagonista, elemento ativo que reage e interfere. Considerado assim
por Desgranges:
Formar espectadores consiste também em estimular os indivíduos (de todas as
idades) a ocupar o seu lugar não somente no teatro, mas no mundo. Educar o
espectador para que não se contente em ser apenas o receptáculo de um discurso
que lhe proponha um silêncio passivo. (DESGRANGES, 2003, p. 37)
Trata-se de formar também o/a estudante espectador/a que atravesse e se deixe
atravessar pelos silêncios do dito e do não dito nos objetos artísticos, a partir das suas
impressões revolvidas no processo de sua experiência, em que nos permitimos uma
desaceleração. Parar, ver, escutar, sentir e caminhar por algum momento na contramão do
fluxo ininterrupto de informações em que se constrói o espaço da sala de aula. É no
processo de interação entre o sujeito e o objeto, compreendido a partir da sua imersão, que
se revela o momento da experiência estética, onde fechamos momentaneamente as janelas
do cotidiano da nossa percepção ordinária, “a experiência estética é diferente de qualquer
outra” (LANGER, 2003, p. 38). E para vivermos tal momento, nas palavras de Langer:
Uma vez que pararmos de nos preocupar com a tentativa de entender o escultor e
nos entregarmos puramente à obra, não parece que nos defrontamos com um
símbolo em geral, mas com um objeto de valor emocional peculiar. Existe uma
emoção real induzida pela sua contemplação deste, bem diversa do ‘sentimento
dentro dela’; essa emoção real, que tem sido chamada de “a emoção estética”,
não é expressa na obra, mas pertence à pessoa que a percebe (grifo meu); é um
efeito psicológico da atividade artística desta, essencialmente o mesmo, quer o
49
objeto que prende sua atenção seja um frágil texto de poesia; quer uma obra de
terrível impacto e muitas dissonâncias torturantes [ ...] (LANGER, 2003, p. 410)
“Um objeto de valor emocional” máscaras africanas, pinturas rupestres, a
reescrita da memória na instalação de Antônio Olé, as palavras pintadas de Clarice
Lispector é possuidor de elementos simbólicos emprenhados do cultural e do singular
que, a partir das suas contradições e multiplicidade de sentidos, suscitam no espectador
uma experiência na relação ali engendrada com o objeto, a partir da tradução do espectador
e das perturbações oferecidas pelas suas vivencias cotidianas. Sentidos suscitados que
pertencem ao encontro do espectador com o objeto. Mais do que “efeito psicológico” de
uma emoção estética visto como essencialmente o mesmo, construído na idéia de prazer
que a autora anuncia, trata-se de um momento de fruição, de degustação. É a ruminação do
sensível construído no encontro e na relação estabelecida do sujeito com o objeto, com
possibilidades de operar mudanças em nossa experiência imediata.
O/a espectador(a)/estudante, provocado/a esteticamente no processo de fruição,
torna-se protagonista ao se distanciar do objeto na sua leitura, problematiza sobre este e
recorre às suas vivências para compreendê-lo. É na tradução, na leitura do objeto artístico,
no processo de interpretação, que o sujeito torna a realizá-lo, recria-o e se recria. O
trabalho do/da espectador(a)/estudante pode ser ainda compreendido em Helio Oiticica
quando da criação do Parangolé
6
·, em que o artista carioca sugeria uma interatividade
entre a obra e o público. Para ele, o/a espectador/a ativo/a, aquele/a que interage com a
obra, empresta significados correspondentes, algo previsto pelo artista, embora as
significações cedidas sejam possibilidades não previstas suscitadas pela obra. Assim, o/a
espectador/a estabelece diálogos com a obra numa construção daquilo que formula.
Uma estudante, do CEPJBAB, nos conta sobre um filme
7
que assistiu, fiando e
desfiando seu processo de interação e formulações vivenciadas. Suas reflexões, agora
distanciadas do objeto suscitador, são provocadas por sentidos que tomam corpo nos
significados apontados na sua fala, na voz baixa e pausada nos ritmos de uma respiração
marcada por expressões - “aí” - que se repetem em curtos intervalos:
6
Os Parangolés são capas, estandartes, bandeiras para serem vestidas ou carregadas pelo
espectador/participante, que torna-se parte integrante (e ativa) de um happening. O envolvimento de Helio
Oiticica com o samba leva-o à criação do Parangolé. O interesse por esta dança, por sua vez, nasceu, segundo
o artista, da necessidade de uma livre expressão e o samba leva o participante a um mergulho no ritmo.
7
Filme “Homens de Honra” de George Tillman Jr.
50
[...] Assisti um filme que o negro queria ser da marinha. ele estava em um barco.
Tinha bastante branco etinha ele de negro. Aí pararam num meio de um mar. Aí os
brancos foram nadar. o negro queria nadar também e disse que não podia
poderia os brancos que o branco podia mais que o negro. O negro pulou na água e os
brancos acharam ruim. apostaram uma corrida, o negro ganhou. Quando chegou
nesse lugar o dono de disse que o negro não podia entrar. Ele passou um mês do
lado de fora esperando. viu que o negro ele é tão trabalhador que esperou, teve a
paciência de esperar. Ele pegou e conseguiu. Do mesmo jeito que ele foi discriminado,
teve o dia da festa que achava que ele era fraco, não sei o que, só porque ele era negro.
Competiu de novo embaixo d’água e ele ganhou . inventaram uma roupa de
ferro de homem de marinha [...] Eu senti que o negro ele luta para ter o que quer, se
ele não tiver o que quer ele não desiste. Eu tirei várias idéias sobre o negro Ainda por
cima ele quebrou a perna e ainda queria ser marinha [...] (Estudante do CEPJBAB)
O filme, seu referente, colabora para que a estudante construa uma imagem
positiva do negro, principalmente, no momento da entrevista em que ela, única no grupo de
dez, contrapunha às falas dos colegas que pontuavam, nas suas reminiscências, as
representações negativas do negro na mídia e as injustiças que o excluíam. Enquanto nos
conta o filme, vai demonstrando que seu olhar recai sobre a afirmação do negro na intensa
luta para ocupar um espaço que desejava, mas que tinha que enfrentar o processo de
discriminação em um local, também numericamente, de dominação branca, “só tinha ele
de negro”.
A extensão dessa relação entre a estudante com o objeto artístico não é
mensurável. Mas é fato que, na sua experiência de negra, foram mobilizadas referências
nas quais as “idéias sobre o negro” que mais a tinham tocado e suscitado identificação
recaíram na sua força de resistência: “eu senti que o negro luta para ter o que quer”. Força
esta, contudo, que o discurso do filme reproduz e reforça as idéias da meritocracia que
exacerba a ação individual, em detrimento do coletivo e do esmaecimento da sociedade
desigual, tão presentes na sociedade americana, local de produção do filme e que encontra
ecos na nossa sociedade. O negro, no filme, tem que provar o tempo todo ser capaz de
superar-se, demonstrando individualmente ao branco que é bom para penetrar em espaços
que não são vistos como seus de direito.
Nos trechos que soam em ritmos que se repetem na sua fala “e ele ganhou”,
“ele conseguiu”, “ainda por cima ele quebrou a perna e ainda queria ser marinha” –, a
estudante vai tecendo sua posição que a identifica ao personagem ao desenhar o processo
de conquista dos espaços de exclusão na não desistência e na ousadia para se superar e
superar o que se impõe.
51
Inúmeras são as questões provocadas pelo filme, do seu lugar de enunciação
como produção americana e os significados revelados pela estudante; e inesgotáveis são as
opacidades do filme. Dessa forma, a percepção das dimensões social, política, estética e
cultural envolvida dos processos de leitura e fruição, na perspectiva da arte como
impressão, é determinante no trabalho pedagógico que se propõe inclusivo. Tais processos,
ao se construírem em diálogos polifônicos e polimórficos entre o/a estudante espectador/a
e o objeto artístico, são como um ensaio mobilizador das ocupações dos lugares do sujeito
no mundo. Os diálogos com o objeto artístico ensejam rupturas à medida que se constituem
em um descascamento, em um desvelamento de camadas sobre os significados evocados
na leitura e, dessa forma, abrem possibilidades de (re) escritas na sua experiência.
Fora do horário escolar, pulando os muros da escola, a estudante tem acesso a
essas representações que fixam valores e discursos que a posicionam. Aqui se apresenta
uma condição do Ensino da Arte não ignorar e capturar esses referentes no seu processo de
mediação do olhar do/da estudante/espectador (a), a arte na perspectiva da impressão.
A arte, também artefato produtivo e prática de representação, inventa sentidos
que circulam e operam nos campos culturais, tensionando e negociando significados. A
arte como linguagem aguça os sentidos, traduzindo significados não passíveis de
simbolização conceitual; nas suas imagens visual, musical, corporal, cênica e poética torna
possível refletirmos do lugar onde estamos, quem somos e como nos sentimos
(BARBOSA, 2005). A arte, na perspectiva da impressão, convida-nos a olhar o estudante
na práxis pedagógica do Ensino da Arte, no seu processo de construir-se espectador na
fruição, no processo da experiência estética, e na leitura crítica e reflexiva de imagem.
Leitura que se faz exploratória, invasiva, epidérmica e exaustiva, e, quando achamos que
terminamos, temos a certeza da sua inconclusão.
A arte, na perspectiva da expressão, é realização. Cada emoção, expressa na
plasticidade das suas formas e que captamos com os nossos sentidos, não foi precisamente
experimentada pelo artista (LANGER, 2003). A arte não é cópia de sentimentos e
emoções; ela apresenta-nos símbolos, formas e conteúdos nos nossos encontros com ela,
que revelam sentimentos, emoções, mas também visões e versões de mundo e discursos. A
plasticidade da arte configura-se em elementos materiais e imateriais em aderência com o
imaginário, conjugando sensibilidade e formas de pensamento” (MEIRA, 2003, p. 125),
tornando-se corpo visível e invisível.
52
A arte, ao representar um contexto histórico, social e uma cultura, revela-se nas
suas contradições de refletir e refratar o mundo (LINHARES, 2003). Reflete por objetivá-
lo nas suas formas e conteúdos, ainda que manifeste seu caráter de subjetividade; e, ao
mesmo tempo, refrata quando aponta para o que não está posto, para o não existente. “Em
parte, a arte se separa do vigente e instaura um novo reino que promete realizar essa
tensão entre o que é e o que poderia ser é seu fermento crítico” (LANGER, 2003, p. 388).
Essa enzima é que faz crescer o bolo das realidades possíveis, nascedouro da utopia.
Movimento e motor que impulsiona o sujeito no processo de tornar-se no mundo. É fato
que a arte não se dá no vazio, ela é engendrada de um processo de vida, mas, ao instaurar o
provável realizável, a arte inventa verdades.
A arte, na perspectiva da expressão, é ação intencional do sujeito que a produz.
A consciência sobre a intencionalidade da produção artística do/da estudante é um
elemento significativo no trabalho pedagógico do Ensino da Arte, à medida que provoca
leituras críticas sobre o que está sendo produzido e sobre as imagens de onde seu olhar
partiu para operar uma nova produção. Jaime Sodré (2006) nos informa sobre a produção
dos objetos pelo artista negro africano, “em especial o litúrgico”, cuja produção é operada
com consciência de que aquela ação está além de uma execução que exige apuro e cuidado
técnico. O artista está cônscio da presença do elemento mágico-religioso” na escolha dos
códigos da cor, do material, “e até mesmo observância de precauções e impedimentos,
além de contar com a proteção das forças que irá manipular” (SODRÉ, 2006, p. 59). Ele
conhece os signos que manipula e os significados que ali são produzidos; ele reconhece o
elemento que domina a sua ação dentro do contexto a qual ela irá apresentar na concretude
no objeto. Ele não está alienado na relação com o que produz.
Na produção imagética sobre um texto visual, a imagem capturada,
materialmente apreendida em uma folha de ofício, lápis de cor e caneta, corporifica os
sentidos produzidos pela estudante do CEPJBAB na leitura da imagem de sua família,
proposta solicitada pela professora de arte
8
. Em seu olhar, não frontal para a realidade,
que ela aparece representada na cena, espelha plasticamente, não necessariamente em uma
visão plana, uma realidade percebida: Eu desenhei diferente, meu pai não tem cabelo aqui
na frente e minha mãe tem cabelo assim que nem o de Maria (nome fictício). Deixei a cor
da pele normal da cor do papel, porque não tinha lápis de cor para pintar da cor que minha
8
Dados da entrevista da pesquisa empírica do CEPJBAB. O trabalho solicitado pela professora partiu da
leitura do livro de Lia Zats ,“Manu em noite enluarada”.
53
família é”. A estudante assume ter desenhado diferente, confirmando a imagem não como
uma cópia da realidade, e negando a transparência da imagem. Ela teve dificuldade para
descrever e dizer as características do cabelo da mãe; encontrou, então, uma colega lhe
serviu de referencial cabelos pretos, longos e ondulados com pequenos cachos nas
pontas. Observe que ela não pôde pintar a cor da pele de sua família, então considerou
como cor de “pele normal”, o branco do papel.
Figura 7: Desenho da estudante do CEPJBAB
Não é apenas sobre o apuro técnico do material utilizado ou dos elementos da
composição visual presentes que o trabalho pedagógico deve se deter, mas na relação de
consciência da estudante produtora com o seu objeto, de acordo com as considerações de
Sodré (2006), nos signos apresentados e nos significados que ganham concretudes através
das formas que nascem de suas mãos com relação ao contexto em que está sendo
produzido.
54
A estudante, na sua produção artística, fez, simultaneamente, uma leitura de
outra imagem texto sobre texto. Forma e conteúdo que operam em nossas vidas,
comunicam-nos e suscitam emoções. Formas que nos posicionam quando legitimamos o
branco como a cor da pele normal”, essa é a identidade tomada como 'natural' a partir da
qual as outras são construídas, hierarquizadas e posicionadas. A normalização é uma forma
sutil do poder operar no campo da identidade cultural. Esse é apenas um exemplo de
produção e leitura que os/as estudantes, como produtores/as e espectadores/as de imagens
de arte, trazem para o espaço da sala de aula e que, muitas vezes, permanecem invisíveis,
sem que o trabalho pedagógico compreenda a complexidade que envolve o projeto político
do Ensino da Arte na educação das relações étnico-raciais.
Afinal, que mediação tem sido construída entre o objeto artístico produzido
pela estudante e o sujeito estudante afro-descendente que produz essas leituras? Qual a
mediação para atualizar imagens cristalizadas que compõem cenas do cotidiano do nosso
espaço social?
No mergulho que Clarice Lispector nos convida, a perspectiva da dinâmica
inclusiva do Ensino da Arte é realizável no trabalho pedagógico que provoque “tirar o
sumo” do objeto artístico que o consubstancia quando se apresenta singularmente a cada
um na sua subjetividade e coletividade.
1.4 IMAGEM DA ARTE COMO PRÁTICA DE REPRESENTAÇÃO SOCIAL
“Era meu sonho ver uma fotografia minha representando a minha cor, a minha
raça, minha pele.”
9
. Essas palavras entoadas com emoção fazem parte do vídeo Salvador
Negro Amor produzido um ano após a exposição a céu aberto de mesmo nome
10
. São
palavras de vozes autorizadas, protagonistas cotidianos das complexas cenas que tecem o
nosso espaço social na cidade de Salvador. Vozes que ecoam daquele momento, não
apenas das pessoas fotografadas, mas de todos/as nós que, ali, nos sentimos positivamente
representados/as.
9
Documentário Salvador Negro Amor, de Sergio Guerra, 2008. Disponível em <www.agenciaginga.com.br/
blog/?p=995>.
10
Exposição do fotógrafo Sergio Guerra
55
Figura 8: Exposição Salvador Negro Amor, 2007 Sergio Guerra
Ao assistir o documentário, reavivamos emoções vividas, respiradas e
partilhadas coletivamente na ocasião da exposição que o antecedeu. Na alvorada de janeiro
do ano de 2007, acordamos e nos vimos em expressões de negritude de pessoas anônimas,
pelas ruas da cidade de Salvador, nas centenas de fotografias produtoras de visibilidade de
identidade étnica, parte predominante do cotidiano da cidade que sai da periferia para o
centro. A intervenção artística tomou esquinas, ruas e avenidas dos diferentes bairros, com
expressões que ocupavam, naqueles dias, um espaço diferenciado. Ocupavam os
disputados espaços midiáticos de poder do mercado – os outdoores.
“O espaço é nosso também!”
11
. Não resta dúvida. E essa fala, presente no
documentário, ressoava nas expressões de cada fotografia exposta. Nesse sentido, a arte,
forma de expressão e impressão, pôde revelar-se a cada espectador na sua dinâmica
inclusiva; e, ao mesmo tempo, a arte, artefato cultural, tensionou, provocou e contestou a
hegemonia do mercado que opera nos outdoors.
Esses veículos de discursos hegemônicos, modeladores de subjetividades,
influenciam a vida cotidiana, na formação de identidades e no modo como somos
posicionados. E, em muitos momentos, tais espaços de poder produzem discursos visuais
que forjam negativamente identidades negras.
Como visto anteriormente, a arte, na sua socialidade, também reflete e é
refletida pelo seu contexto deflagrador, à medida que o singular e o cultural a
consubstanciam e lhe são inerentes. Sendo assim, a arte, como forma cultural, é projetada
na sua existência em símbolos que expressam, não de forma transparente, as dimensões de
11
Documentário Salvador Negro Amor, de Sergio Guerra, 2008. Disponível em <www.agenciaginga.com.br/
blog/?p=995.>
56
vida da sociedade que a deflagrou. Esses símbolos da cultura têm sua existência vinculada
às assimetrias de poder e, portanto, ao conhecimento que envolve as relações das minorias/
maiorias excluídas da sociedade. Ao longo de sua história, a arte foi sendo apropriada de
diferentes maneiras e de forma profícua
Se voltarmos à Idade Média, encontraremos, por exemplo, a arte sendo
utilizada como propaganda dos conteúdos de dominação do cristianismo, claramente
expressa nas palavras de São Gregório Magno, sem que por isso retiremos toda a beleza
que aquela arte é capaz de expressar, ainda que façamos analogias entre as catedrais
medievais e o écran da televisão:
O que os escritos proporcionam a quem os lê, a pintura fornece aos analfabetos
(idiotis) que a contemplam porque assim esses ignorantes vêem o que devem
imitar; as pinturas são a leitura daqueles que não sabem ler, de modo que
funcionam como um livro, sobretudo entre os pagãos. (Disponível em
<www.pem.ifcs.ufrj.br/Arqueologia>)
Viajando ainda no tempo não linear e analisando superficialmente outros
objetos de arte, como as histórias ou filmes infantis, percebemos nessas narrativas, além da
plasticidade sonora e visual, conteúdos simbólicos, muitas vezes, discriminadores e
racistas.
Pode-se tomar como exemplo a história do Patinho Feio, publicada em 1844,
pelo escritor dinamarquês Andersen, em que suas traduções receberam diferentes enfoques.
Ganharam, inclusive, outros contornos na versão de Monteiro Lobato, enunciador de
narrativas extremamente racistas. A fábula conta a história de um pato que nasce diferente
dos irmãos e por isso é rejeitado por todos, depois ele foge e retorna quando sua
imagem refletida na água e se descobre na sua diferença como um belo cisne. No seu
retorno é festejado, admirado e respeitado. Na ilustração da história, quando o patinho feio
é discriminado pela suas diferenças acentuadas com o estereótipo do desajeitado, a cor de
sua representação é o preto; e como belo cisne, sua cor é o branco.
Dessa forma, os discursos e representações produzidos nos objetos artísticos,
construtores de imagens, sejam elas negativas e positivas, precisam ser analisadas como
espaço de articulação de poder e, portanto, de ideologia, referindo-se aqui “à produção de
sentido e significado” (MCLAREN, 1987, p.209). As imagens da arte, práticas
significantes que produzem significados, são produtos sociais e históricos que traduzem
57
valores e por isso precisam ser tratadas como construção de novas realidades que definem
também as inclusões e exclusões, já que envolvem relações de poder.
Como espectadores/as desse mundo imagético, somos cotidianamente
bombardeados por entulhos capitaneados por uma cultura visual dominante. A estrutura
social na sua ideologia articula o visível, potencialmente político, no massacre do
imaginário quando solapa a existência cultural do ‘outro’. Os entulhos, lixos imagéticos
que aqui nos interessa refletir, veladamente ou não, engendram como poder simbólico a
negação da diferença.
O processo de comunicação, forma de transmissão do poder, ensina e traduz a
relação de poder engendrado no mundo social. Essa relação, que constitui o centro da
teoria de Bourdieu, é aquela estabelecida entre reprodução cultural e reprodução social,
“ou a forma pela qual o poder se traduz em dominação cultural” (BOURDIEU apud
SILVA, 1996, p.18). A violência simbólica torna a força de dominação invisível quando o
sujeito legitima as representações dominantes, ao naturalizá-las.
Os símbolos definidos por Bourdieu como instrumentos de conhecimento e
comunicação tornam possível a consensualidade sobre o sentido do mundo social e
exercem poder estruturante na reprodução da ordem social. Pensando o poder simbólico
como um poder de construção da realidade, a cultura dominante constrói maneiras pelas
quais as culturas subordinadas respondam às representações a partir de uma visão de
mundo comum que maquia essas relações de poder. De acordo com MacLaren:
A cultura dominante é capaz de construir as maneiras pelas quais os grupos
subordinados vivem e respondem ao seu próprio sistema cultural e experiências
vividas, em outras palavras, a cultura dominante é capaz de fabricar sonhos e
desejos, tanto para o grupo dominante como para os dominados, fornecendo
“termos de referência” (ex.: imagens, visões, histórias, idéias).
(MCLAREN,1996, p. 207)
Mas, além disso, fissuras são produzidas porque os sujeitos e os grupos não são
inertes, nem ‘idiotas culturais’ e nem massas amorfas moldáveis, afinal existe uma relação
e como tal um jogo de poder, com os deslizamentos produzidos entre dominação e
resistência.
um texto de Rubem Alves (2005) que dialoga bem com a enunciação
anterior de Peter McLaren, quando ele reflete sobre o poder da imagem a partir de uma
propaganda em que a pessoa é submetida, simultaneamente, a uma imagem que seduz pela
58
beleza e a uma informação comprovada cientificamente, mostrando-nos que a televisão
sabe que a beleza movimenta o inteligível e o sensível. Assim, Alves, dirigindo-se a
Roberto Marinho, comenta sobre o poder que ele detém por dominar a imagem como dono
de uma fantástica máquina de fazer sonhar:
Mas o senhor é um bruxo: o senhor sabe como fazer os homens sonhar. O senhor
tem uma fantástica máquina de fazer sonhar. O senhor tem mais poder para
mexer com as pessoas que tudo o que, no Brasil, se faz com o nome de ‘escola’.
O senhor não se assusta com esse poder que lhe foi dado? (ALVES, 2005, p, 22).
Os símbolos como instrumentos de conhecimento e de comunicação,
concebidos aqui na sua relação com o poder, são mecanismos que agem como processo
intermediário nas modelações da reprodução cultural sobre as formas culturais. Além de
produzir imagens negativas, a ideologia dominante pode manipular as imagens positivas
que surgem nos espaços de resistência na busca de empreender a desconstrução de
estereótipos, como forma de assegurar a hegemonia cultural, mascarando as profundas
desigualdades nas relações entre negros e brancos.
Sem pretender lançar qualquer sombra no reconhecimento sobre os aspectos
positivos construídos com a exposição, citada anteriormente, ‘Salvador Negro Amor’,
observamos, porém, o fato de ter sido um acontecimento no período de maior fluxo
turístico da cidade de Salvador e durante as proximidades do espetáculo do carnaval. Tal
fato produz o mascaramento das relações de desigualdades em uma sociedade do
espetáculo, sendo esta “uma relação social entre as pessoas mediadas pela imagem”
(DEBORD, 1997 apud SILVA, 2006). Por outros interesses, diversos do movimento de
resistência, o que era visto como negativo passa a ser positivo e opera nos artefatos
legitimados pelo espaço de dominação que merca com uma produção de identidade
cultural, vitrine da Bahia. Esse é um viés perverso na produção de visibilidade do espaço
da cultura afro-brasileira na nossa cidade.
E essas são imagens recorrentes no espaço da sala de aula: as culturas negras
associadas, em geral, com imagens que são expressas na música A Bahia te espera, de
Chianca de Garcia e Herivelto Martins, “A Bahia da magia, do feitiço e da fé”. Salvador é
uma cidade onde predomina uma “comunidade imaginada”
12
nas idéias de uma
12
O conceito “comunidade imaginada” é dado por Benedict Anderson , citado por vários autores dos Estudos
Culturais, dentre eles Stuart Hall (2005) e Tomaz Tadeu Silva (2000), e se refere às idéias partilhadas que
vão constituir a identidade nacional. Essas idéias criam laços simbólicos que permitem ligar as pessoas por
59
‘baianidade’ esteticamente de matrizes africanas, sem que, muitas vezes, no espaço da sala
de aula se compreendam outros significados relevantes dessas construções, além daqueles
explorados pela indústria cultural, e as desigualdades que operam. Sem que
compreendam que, ao estabelecer “um sentido de homogeneidade” a partir de um conjunto
de características que construa a imagem de ‘baianidade’, “suprime [se] as diferenças
internas” (PINHO, 2004, p.217). A grande exposição revelou o que Patrícia Pinho coloca:
“(...) muitas Bahias dentro da Bahia, Em cada uma delas, corpos negros muito
diferentes habitam o cenário” (idem, 2004, p.217).
Como tem sido produzido esse espaço quando incluímos as produções
artísticas africanas e afro-descendentes no trabalho pedagógico do Ensino da Arte?
Reforçamos estereótipos? Que espetáculos produzimos?
As imagens veiculadas através das máquinas de produção de sonhos precisam
ser inseridas no trabalho pedagógico do Ensino da Arte. Imagens estas que são parte da
cultura visual do mundo pulsante fora do espaço das aulas de arte, mas que impregnam o
cotidiano dos atores sociais desse espaço. Um ensino crítico entra em consonância com a
produção estética visual de sua época e reconhece que hoje, mais do que nunca, a escola e
a sala de aula não podem permanecer como local de alienação frente aos movimentos que
constituem as formas de vida da mídia, no espaço social e cultural.
Confirma-se, então, a não neutralidade da imagem e, portanto, a não
neutralidade também na escolha do repertório de imagens que habitam o espaço da sala de
aula. Reconhece-se, ao mesmo tempo, a relevância do Ensino da Arte na educação das
relações étnico-raciais e sua problematização no processo de leituras de imagens.
também as opacidades dos discursos produzidos na cultura visual e nas experiências
cotidianas com a produção visual, que provocam nos/nas estudantes questionamentos
acerca desses discursos, para que possam reagir e interferir sobre sua realidade. “Conhecer
também pode ser o processo de examinar a realidade de uma maneira questionadora e de
construir visões e versões não diante da realidade presente, mas também de outros
problemas e circunstâncias” (HERNANDEZ, 2000, p. 57).
um sentimento e pensamento comuns. Essas são idéias que fixam identidades em essencialismos culturais.
Embora funcionem em determinados momentos, como estratégias de resistência, através dos ’mitos
fundadores’, nos processos diaspóricos, quando, por exemplo, construímos uma identidade cultural na
imagem da ‘Mama África’.
60
Conhecer a imagem da arte, na sua forma plástica que instaura mundo e
inventa realidades, é analisar, retirar as camadas e questionar essas realidades postas em
consonância com o vivido. Nesse processo, o/a estudante, sujeito dos seus próprios
significados individual e coletivo, atualiza e (re) constrói a imagem. Produz novas visões e
versões, extrapolando o que até agora estava posto. Nesse sentido, a mediação no Ensino
da Arte ao propor leituras e produções é uma ação política.
1.5 MEDIAÇÃO DO OLHAR NO ENSINO DA ARTE
O trabalho pedagógico na mediação do olhar, como construção da dinâmica
inclusiva do Ensino da Arte Visual, na perspectiva de afro-descendentes, articula-se a
partir de dois eixos: imagem da arte e diálogo interpretativo. A questão da imagem da arte
compreende a ampliação do seu conceito e a não neutralidade nas escolhas das imagens. E
o diálogo interpretativo diz respeito à forma que se constrói a leitura, a fruição e a
produção de imagem. Esses eixos foram construídos na articulação com os conhecimentos
do campo da arte expostos nas subseções precedentes.
O conceito de leitura crítica de Kellner (2000), citado anteriormente, será aqui
considerado na noção do processo de mediação. O que significa dizer que a mediação se
encontra na forma como esse processo é construído para operar na vida do/da estudante e
nos conteúdos revolvidos das dimensões da arte para que comunique e expresse situações
concretas que se aproximem do/da estudante. Forma e conteúdo críticos e sensíveis,
pensando a arte como sendo um processo. Uma relação temporal e espacial com a arte
viva, no seu sentido e significado para o sujeito, que se constrói criticamente na interação
com este “que a observa com um olhar vivo e inquiridor” (BUORO, 2003, p.44).
Processo de mediação capaz de provocar o olhar para o ver, ouvir, sentir e
pensar além do que exige o ordinário cotidiano. Na escultura de Picasso Cabeça de Touro,
o artista espanhol retira um objeto do seu uso cotidiano e recria-o sobre outra superfície, o
assento de uma bicicleta e o seu guidon são transpostos para uma nova realidade. Quem
pode dizer que o assento, transposto do seu uso cotidiano, não pode ser visto como uma
cabeça de touro? Quantos viram um assento de bicicleta? Quantos são provocados para
tal transposição?
61
Mediar arte e público é fundamentalmente o cerne do Ensino da Arte. A noção
de mediar não é simplesmente a de se interpor entre dois, como detentor de um
conhecimento, mas é a própria relação assumida em um processo de construção do
conhecimento que envolve subjetividades e identificações culturais. A mediação não é
apenasum construir” sobre arte, mas “um construir” na arte que inclui vivência estética,
alimentada epidermicamente na experiência com o objeto artístico; reflexão crítica, nutrida
no processo de leitura de imagem; e, finalmente, a produção realizada por um corpo
cônscio sobre uma matéria e vice-versa.
Considerando as palavras de Freedman sobre o que é imagem:
Uma poderosa forma de representação. Boa parte desse seu poder está no seu
caráter interpretativo (Ewen, 1988; Fredberg, 1989). Além da beleza estética,
uma imagem personifica um significado que é, ao mesmo tempo, transitório e
intimamente ligado a qualquer pintura, propaganda de roupas, seqüência de
computação gráfica ou filme pós-moderno. Essa objetivação do significado
emerge por meio de interpretações da relação entre o que é representado e sua
representação; entre o significante, o significado e o signo. (FREEDMAN, 2005,
p. 126)
A imagem, ao personificar um significado, vida ao sentimento e a uma
verdade capturados no momento da interpretação. muitos significados capturados pelo
poder da representação em diferentes tipos de imagem. Significados que são contraditórios,
escravizantes, reificadores, libertadores e estereotipados. A imagem da arte tem ainda o
poder de nos conectar a mundos próximos e distantes, e isso compreende uma produção de
sentido vivida com uma arte no tempo e no espaço do aqui e agora, pretérita e futura,
sendo esta última resultado do seu fermento crítico, na utopia.
A discussão sobre a imagem no Ensino da Arte é colocada, primeiramente, na
necessidade de ampliação do conceito de imagem da arte, restrita ainda hoje em muitas
escolas apenas às obras de artes ditas consagradas ‘universalmente'. Tal ampliação implica
no alargamento do valor estético da imagem da arte a partir do conceito de estética trazido
por Ritcher (2003) para investigar a estética do cotidiano e que é denominada, segundo a
autora, por Marcos Villela Pereira, como “microestética”, diferenciando-se da
“macroestética”. Esta ultima refere-se, de maneira bem sucinta, ao “campo epistemológico
independente” que nasceu no século XVIII e que institui modelo homogeneizante no
conceito de belo, como produto de subjetividade. E a microestética refere-se à forma como
a subjetividade é organizada no indivíduo, ou ainda, na forma como o mundo toma
62
sentido para nós, de acordo com a maneira pela qual nos afeta e pela qual nós o afetamos”
(PEREIRA, 1996 apud RICHTER, 2003, p.23).
Nesse sentido, essa ampliação pressupõe incluir na prática pedagógica deste
ensino outras produções, quer sejam: as diferentes produções imagéticas das culturas
apresentadas na cultura visual, nas micro cenas do cotidiano e na estética do cotidiano. As
imagens da cultura visual compreendem toda produção imagética, hoje também incorpórea
e instantânea, circulante nas mídias que operam no imaginário social e que intervêm nos
espaços em que somos posicionados e nos quais nos posicionamos. Imagens as quais os/as
estudantes têm acesso.
As imagens das micro cenas do cotidiano referem-se aos cenários vivos da
nossa realidade imediata e, portanto, lugar de compreensão dos processos de identificações
culturais. E as imagens produzidas na estética do cotidiano significam para nós, nas
palavras de Richter:
[...] Além dos objetos ou atividades presentes na vida comum, considerado como
possuindo valor estético para aquela cultura, também e principalmente a
subjetividade dos sujeitos que a compõem e cuja estética se organiza a partir de
múltiplas facetas de seu processo de vida e transformação. (RICHTER, 2003, p.
20/21)
Ao ampliar o conceito de arte, pressupondo o seu Ensino na dinâmica de
inclusão sociocultural, incluímos também o diálogo com as produções imagéticas da
cultura local, rompendo, de acordo com as análises dos Estudos Culturais, as fronteiras
entre as designações maniqueístas artes popular e erudita ou mesmo alta e baixa culturas.
Ao abrir o espaço da sala de aula para as produções da comunidade na qual a escola se
insere, para as comunidades próximas ou para o que está sendo consumido pelos seus
atores sociais, mediamos com imagens que possuem valor estético para essa cultura e que
envolve as subjetividades dos sujeitos do local.
Considerando o local uma comunidade, uma cidade, um ponto do planeta nas
suas especificidades culturais, históricas, econômicas e sociais, sem, contudo, perder de
vista sua relação com o global.
Concordamos que o enaltecimento da alta cultura na prática pedagógica serve
como “instrumento de exclusão, marginalização e dominação, ao longo dos eixos do
gênero, da raça e da classe social” (KELLNER, 2005, p.106). E é isso que comumente
viemos praticando em nossas salas de aula, quando restringimos o acesso dos/das
63
estudantes às imagens de diferentes culturas sob uma orientação etnocêntrica que toma
como padrão de alta cultura a produção das culturas européias.
Não negamos a relevância do acesso às imagens da arte ditas eruditas no
trabalho pedagógico como um direito do/da estudante à democratização do saber artístico.
Ressaltamos, contudo, em toda imagem de arte, o seu caráter de produto social e histórico
e, portanto, tradutor de valor que expressa a cultura, envolvendo, como dito, relação de
poder que inclui e exclui.
Que imagens escolhemos para apreciar, ler e fruir no espaço da sala de aula?
Que relações essas imagens suscitam a partir das experiências cotidianas dos estudantes?
Que identificações elas provocam no espectador? Que relações ela tem com um dado local
ou com a micro-cena dos espaços cotidianos da sala de aula e da escola?
Para McLaren:
[...] como instrumento pedagógico, uma ênfase “nas grandes obras”,
frequentemente desvia a atenção das experiências pessoais de estudantes e da
natureza política da vida cotidiana. Ensinar as grandes obras é também uma
maneira de incutir certos valores e conjuntos de comportamentos em grupos
sociais, solidificando, assim, a hierarquia social existente. (MCLAREN, 1987,
p.210)
Refletir as questões levantadas, nas palavras de McLaren, surge como
provocação para que nós, arte educadores, pensemos sobre as inclusões e exclusões
concretas que fomentamos na nossa prática pedagógica na medida em que ‘grandes obras’
estão no centro das aulas de arte, sendo referenciais para os diferentes conteúdos das artes
visuais. Em vinte dois anos atuando em escolas, presenciei, durante um tempo, em minha
prática e na dos/das demais professores/as de arte, essa escolha ou essa não escolha. Mas,
'grandes obras' também são objetos artísticos que podem nos tocar e provocar
identificações.
Assim, embora se reconheça uma função das “grandes obras” em processos de
inculcação de valores e de comportamentos reprodutores da sociedade ou no desvio de
atenção da ‘natureza política da vida cotidiana’, acreditamos que outras imagens operam
nesse sentido e que podem encontrar ressonâncias a partir do diálogo estabelecido com
elas, na construção de significados envolvida no processo pedagógico. O que nos leva a
discutir o diálogo interpretativo com a imagem, outro eixo no processo de mediação.
Vamos tomar como exemplo a imagem de uma campanha publicitária
veiculada pela Benetton que, com certeza, não é colocada na lista dos grandes ícones da
64
arte, mas manipula símbolos que reafirmam a discriminação racial ao imputar valores do
bem e do mal na cor da pele. Uma imagem que mostra duas crianças abraçadas: uma
branca, face avermelhada, cabelos louros cacheados e sorriso ingênuo, e a outra negra. A
criança negra tem um semblante sombrio, acentuado pela sombra do lado esquerdo do seu
rosto; pela forma como seu braço avança pela frente do corpo da outra criança e pelo peso
visual que este ganha na imagem, até mesmo pelo contraste de cor; pela forma que seus
cabelos estão dispostos, de maneira a sugerir o chifre; e pelo peso que seu braço ganha na
sua disposição e no jogo de luz no espaço composicional em contraste com a leveza do
abraço sugerido pela criança da esquerda.
Figura 9: Campanha Publicitária Benetton
Não esgotamos, no processo de leitura, as opacidades da imagem. muitos
contextos para serem vistos, como o lugar de enunciação da Benetton e do publicitário
responsável pela campanha, e que não seriam possíveis neste espaço de dissertação. Mas, o
que nos salta aos olhos na leitura dessa imagem são os estereótipos construídos, tendo
como cenário o nosso contexto histórico de sociedade escravocrata. São os valores de uma
cultura judaico-cristã eurocêntrica revelados nos ícones do anjo e do demônio relacionados
à idéia de raça – anjo branco, demônio negro.
O trabalho pedagógico de leitura que envolve essa imagem, o discurso que será
construído nesse processo é que vai ser determinante para operar a forma de interferência
65
do/da estudante no mundo e a forma de seu deslocamento. Podemos simplesmente nos
contentar em deixar que se revele a beleza desse encontro, a harmonia do abraço ou quiçá
podemos ignorar essas imagens presentes em espaços que transitamos. E, então, estaremos,
no espaço da sala de aula, confirmando as palavras de uma estudante do CEPJBAB, que
revelam, na sua percepção, os discursos que atravessam as tramas do tecido social na
produção de identidades: “Tem muito branco que coloca isso na cabeça de um negro: que
ele não é capaz, que ele não é capaz, que não é capaz. o negro fica com essa idéia na
cabeça que não é capaz” (estudante do CEPJBAB).
Para Hernandez, a proposta construtivista crítica, uma das abordagens
pedagógicas do Ensino da Arte, ressalta o papel relevante da interpretação na construção
de significados no processo de aprender a fazer leituras de imagens. E incluímos a
relevância da interpretação na produção de imagens, porque, ao produzirmos, lançamos
visões de mundo e (re) criamos outras versões. Para este autor, “interpretar significa
prestar atenção às diferentes versões dos fenômenos, questionando suas origens e as forças
(os poderes) que criaram tais interpretações” (2000, p.108). A interpretação no processo de
leitura se propõe a analisar e questionar os discursos e representações da imagem da arte,
para o (re) conhecimento dos aspectos dominantes em cada época e cultura. As
repercussões dessa interpretação refletem na forma como nos reconhecemos e como somos
reconhecidos no presente. A interpretação no processo de produção se propõe a darmos
forma às visões de mundo e, simultaneamente, (re) criarmos outras versões, sobre as quais
nos faremos conhecidos no espaço da cultura.
Hernandez diz ainda que:
O que se persegue é o ensino do estabelecimento de conexões entre as produções
culturais e a compreensão que cada pessoa, os diferentes grupos (culturais,
sociais, etc.) elaboram. Trata-se, em suma, de ir além de “o quê” (são as coisas,
as experiências e as versões) e começar-se a estabelecer os “porquês” dessas
representações, o que as tornou possíveis, aquilo que mostram e o que excluem
os valores que consagram etc. (HERNANDEZ, 2000, p.49)
Se os/as estudantes estão tendo acesso às imagens, como a da campanha
publicitária da Benneton ou do filme Homens de Honra, do outro lado dos muros da
escola, o trabalho pedagógico na mediação do olhar não pode ignorar o alcance dessas
imagens na produção de identidades culturais, que elas fazem parte também da
experiência do/da estudante. Problematizar os “porquês dessas representações” e
66
interpretar os valores culturais que estão sendo mediados através dessas imagens são
necessários para a reconstrução de novos significados frente à realidade que se apresenta.
No processo pedagógico do Ensino da Arte, o trabalho de mediação, a escolha
da imagem e o diálogo interpretativo confirmam a não neutralidade da imagem e
configuram, concordando com Freire, que a ação de ensinar exige um reconhecimento de
que a educação é ideológica:
É que a ideologia tem que ver diretamente com a ocultação da verdade dos fatos,
com o uso da linguagem para penumbrar ou opacizar a realidade ao mesmo
tempo em que nos torna ‘míopes’. O poder da ideologia me faz pensar nessas
manhãs orvalhadas de nevoeiro em que mal vemos o perfil dos ciprestes como
sombras que parecem muito mais manhãs das sombras mesmas. Sabemos que
algo metido na penumbra, mas não o divisamos bem. A própria ‘miopia’ que nos
acomete dificulta a percepção mais clara, mais tida da sombra. Mais séria
ainda é a possibilidade que temos de docilmente aceitar que o que vemos e
ouvimos é o que na verdade é, e não a verdade distorcida. (FREIRE, 2005,
p.126)
À medida que nos conscientizamos dessas tramas e os retesamentos do tecido
social vão provocando rupturas, como os momentos de efetivação de ações afirmativas, o
nevoeiro que toma conta da sala de aula começa a se esvair e o trabalho pedagógico pode
ganhar outros contornos, passamos a divisar as sombras. Abrindo passagem,
possivelmente, para outros nevoeiros.
Evidenciamos no momento uma noção do Ensino das Artes Visuais como um
processo de expressão e impressão de cultura que pode ampliar a interpretação crítica e o
reconhecimento das imagens. Tais imagens podem ser icônicas, oriundas da estética do
cotidiano, das cenas que constroem o cotidiano pelos dois lados do muro (da escola e da
cultura visual) de diferentes culturas, nas suas diferentes dimensões.
É no núcleo de teorias pós-modernas em Arte/Educação, com autores como
Fernando Hernandez, Ivone Richter, Ana Mae Barbosa e Kerry Freedman, que
fundamentamos a concepção culturalista do Ensino da Arte. Tais autores trazem uma visão
culturalista para tal prática, considerando:
Que a arte é uma manifestação cultural e os artistas realizam representações que
são mediadoras de significados em cada época e cultura. A compreensão (em sua
dupla dimensão de interpretação e produção) desses significados é o objetivo
prioritário para alguns docentes desde o início dos anos 90. Esta tendência está
vinculada a alguns referenciais que, no contexto da chamada pós-modernidade
cultural, revisam o atual status da arte e o papel que as imagens (reais e virtuais)
exercem na construção das representações sociais (HERNANDEZ, 2000, p.45).
67
Pensar no papel que as imagens exercem na construção das representações
sociais tem sido nossa preocupação peremptória. Por isso partimos, aqui, para uma revisão
no valor estético do que é considerado objeto artístico no espaço da sala de aula, valor esse
que é erigido no espaço social e que, conseqüentemente, reflete no espaço da escola.
Entretanto, a escola, também espaço de transformação, como forma de ampliação do que
seja o objeto de arte, deve pensá-lo a partir de seu local de enunciação e do valor estético aí
atribuído e do valor que seus atores atribuem.
No Brasil, o Ensino da Arte na perspectiva da experiência de cognição tem sido
importante para a abordagem culturalista que, desde o final da década de 80 do século XX,
vem se afirmando como o maior referencial de práticas pedagógicas do país. Relevantes
mudanças de paradigmas vêm desde então se operando no Ensino da Arte com revisões de
idéias acerca desse ensino, a partir dessas abordagens. Contudo, ainda encontramos
espaços onde se presenciam práticas pedagógicas fragmentadas em que ressoam idéias que
misturam práticas pedagógicas da livre expressão, liberais e da abordagem triangular.
As abordagens culturalistas no Brasil têm como referenciais as concepções
contextualistas ou instrumentalistas que começaram desde os anos 1960 a ser postuladas
por autores nos EUA, a exemplo de Elliot Eisner
13
, em contraposição às idéias
essencialistas ou estéticas. Segundo Richter:
O enfoque contextualista pleiteava que a arte fosse estudada tomando-se seu
contexto cultural de origem, bem como pleiteava um ensino mais fundado em
conhecimentos antropológicos e sociológicos, que contemplasse, por um lado o
contexto da obra de arte, mas por outro o próprio contexto social e cultural dos
(as) alunos (as). (RICHTER, 2003, p.43)
As concepções contemporâneas no Ensino da Arte, na perspectiva da arte como
cognição, têm como premissa devolver para este ensino os conteúdos específicos da arte.
De um lado, os essencialistas vêem que tais conteúdos, no âmbito da experiência artística,
devem emprenhar o sujeito do que é artístico, da especificidade da arte, sendo que limita o
que seja a especificidade da arte, ou seja, limita as noções dos conhecimentos que
pertencem ao campo da arte. Segundo Lanier, “durante as quatro últimas décadas, a
Psicologia e, posteriormente, embora em menor grau, a Sociologia e a Antropologia
13
Um dos precursores da DBAE (Discipline-Based Art Education), Elliot Eisner propõe a classificação
contextualista e essencialista para as diferentes concepções filosóficas do Ensino da Arte na educação dos
EUA. Essas concepções têm fortes divergências conceituais, ao considerar ou não, respectivamente, a arte
como meio para atingir objetivos, nem sempre ligados diretamente às concepções que têm de arte.
68
dirigiram a atenção de arte-educadores para referenciais sociais não artísticos” (LANIER,
2001, p. 44). Para esse autor, o foco de referência da arte é no domínio de “procedimentos
estético-visuais” (idem, p.45).
Assim, a concepção essencialista não nega os aspectos de crescimento
individual, os quais denominam “benefícios colaterais” (LANIER, 2001, p. 45), que o
Ensino da Arte pode propiciar na sala de aula, tornando o/a estudante mais criativo (a) ou
levando-o (a) a perceber seu contexto social mais objetivamente. Mas os aspectos
concernentes às especificidades da arte têm relação com o crescimento das capacidades
estéticos-visuais que amplie a sensibilidade estética. A ênfase na reflexão deve suplantar a
produção de atelier em arte, que o tempo na educação formal é limitado, e essa
preocupação tem se tornado “o mais insano de todos os nossos problemas” (idem, p. 52).
Continuando, o autor pergunta: “É necessário que joguemos futebol para podermos
entendê-lo ou desfrutá-lo?” (idem, p.52). A proposta é informar sobre a natureza da
experiência estética, para ampliar a qualidade dessa experiência.
A vertente contextualista o estudo da arte voltado para a percepção e
expressão como qualidades contribuintes para a ampliação da linguagem artística e do
pensamento crítico que, conseqüentemente, vão interferir na capacidade de resolução de
outros problemas ligados ou não a arte. Se pensarmos na arte como cultura e no fato de que
as ações humanas são permeadas de sentido estético, sem que isso nos leve a
generalizações nesse campo de conhecimento, essa visão termina sendo determinista a
respeito do que seja ou não um problema da arte.
A vertente contextualista defende, portanto, no processo de mediação do
Ensino da Arte, a importância da produção de atelier, da história, da estética e da crítica,
para, respectivamente, ajudar a pensar sobre a criação de imagens visuais, entender o
tempo e o lugar da arte, julgar as qualidades da arte e possibilitar ver as qualidades que
constituem o mundo visual (EISNER, 2001).
Com relação ao campo da Arte, de acordo com Hernandez:
[...] Atualmente o que é considerado como campo da Arte se caracteriza pela
dissolução de seus limites (tanto nos meios como nos conceitos), o que leva a
que as manifestações e os objetos artísticos se mostrem para serem
compreendidos (em seus significados), mais do que para serem vistos (como
estímulos visuais). Essa preocupação pelo significado da arte coincide com os
interesses em outros campos como a antropologia ou a psicologia (Kvale, 1992;
Smith, Harré e langenhove, 1995) e com um movimento generalizado a favor da
consideração da cultura não como variável independente, mas como marco
69
explicativo de representações e comportamentos dos seres humanos.
(HERNANDEZ, 2000, p. 49)
Pensamos que as manifestações e objetos artísticos se oferecem para “serem
compreendidos” nos seus significados considerados dentro e a partir da cultura e, ao
mesmo tempo, para serem vividos na experiência estética.
Não é nosso propósito discutirmos, nesta pesquisa, as concepções citadas,
porém, é relevante darmos visibilidade ao que percebemos acerca desse ensino. Nesse
sentido, não concordamos em engessá-lo em concepções dicotômicas, mesmo porque
temos pontos de divergência e diferenciação com relação às duas. A crítica mais
contundente ao momento diz respeito à restrição do objeto artístico em relação ao seu valor
estético que, ao ser visto nos seus condicionamentos universalistas ou a partir de
hierarquias sociais, tornam-no socioculturalmente excludente.
Tais concepções valoram, preponderantemente, a arte na visão das Belas Artes,
no sentido tradicional do termo. Ainda que Lanier
14
, por exemplo, na perspectiva
essencialista, advogue o uso no diálogo estético das imagens da ‘arte popular’ e da cultura
visual, ao propor como objetivo central do Ensino da Arte ampliar o âmbito e a qualidade
da experiência estética visual, ele o faz no sentido de “estabelecer currículos e estratégias
de ensino capazes de demover o aluno dos envolvimentos estéticos que existem em seu
ambiente estético natural o artesanato e as artes populares para as Belas Artes, área
específica do professor de arte” (LANIER, 2001, p. 48). Um discurso que limita o conceito
de arte afirma-se excludente e desqualifica o valor estético, que denomina de natural,
engendrado a partir do repertório cultural do/da estudante.
Porém, paradoxalmente, ele enfatiza (e essa é uma questão importante) o papel
do Ensino da Arte na ampliação da experiência estética, reconhecendo, ainda, os
envolvimentos estéticos dos/das estudantes nos seus ambientes culturais que antecede a
sala de aula. Tais envolvimentos, que são identificações culturais, não podem, contudo, ser
vistos apenas como canais motivacionais, mas tornados visíveis e reconhecidos no espaço
de aula, como produção legítima de culturas.
14
O autor embora relate no texto sua experiência, em uma posição contextualista, com um Ensino da Arte a
serviço da responsabilidade social, assume ter adotado um atitude essencialista, ao buscar um forte conceito
desse ensino vinculado aos referenciais artísticos.
70
Retomando os enfoques culturalistas, encontramos em Barbosa a idéia de que o
Ensino de Arte, “como expressão pessoal e como cultura, é um importante instrumento
para a identificação cultural e o desenvolvimento individual” (BARBOSA, 2005, p.99).
Concordamos que a arte provoca, ao invés de ser “instrumento”, identificações
culturais, o que confirmamos nas palavras de uma estudante, quando falava sobre o
trabalho pedagógico envolvendo a arte afro-brasileira, dentre outras, as releituras de
imagens das mulatas de Di Cavalcanti: “mudou quase tudo, porque antes eu não gostava de
ver o se que passava da África” (estudante do CEPJBAB). Sua falta de interesse era
pontuada pelas imagens negativas as quais tinha acesso na televisão AIDS, crianças com
fome e outras. Continuando, ela nos informa: “através do trabalho que fiz eu desenvolvi a
minha raça, que é a raça negra”
15
. Símbolos e imagens são, na pós-modernidade, conforme
Maffesoli (1996), o aporte de identificações do sujeito com os grupos sociais e o
reconhecimento de pertencimento pelo grupo. As identificações do sujeito levam-no a
apropriação e construção de espaços onde são tecidas as relações de poder, as negociações,
rupturas e as (re) configurações nos arranjos sociais.
Isso nos leva a considerar a noção de Ensino da Arte, posta anteriormente,
como processo de expressão e impressão de cultura. Tal noção, enquanto local de
produção, configura-se como leitura e fruição de imagem, nas diversas modalidades das
artes visuais, em diferentes épocas e culturas, e tem uma relevante dimensão na educação
escolar como espaço de inscrição (estando também escrita) na identidade cultural. Não é
demais relembrarmos que a arte, como forma cultural e prática simbólica, engendra
diferentes sentidos e significados. Dispensa-se uma leitura mimética da realidade,
considerando-se seu poder de representação que reflete e refrata o mundo. [...] São as
experiências e conhecimentos afins ao campo da arte os que mais contribuem para
configurar as representações simbólicas portadoras dos valores que os detentores do poder
utilizam para fixar sua visão da realidade” (HERNANDEZ, 2000, p. 43).
Os valores atribuídos nas representações de imagens constroem estereótipos
como estratégia discursiva de conhecimento e poder. Criam-se simulacros do universo
ideal composto por uma única verdade estética, que atuam sobre o imaginário social, a
exemplo da arte tradicional da cultura africana, vista sob um discurso colonialista europeu
no seu estereótipo de arte exótica e legitimada na arte cubista, aliada à cumplicidade dos
15
O projeto artístico intitulado “Os Didi da Bahia” foi realizado em 2007, na CEPJBAB.
71
livros de história da arte ocidental. Esses não apresentam nada sobre arte africana, e
quando o fazem, dedicam, no máximo, duas páginas, com o disparatado título: Arte
Africana: precursora do Cubismo. A mediação no Ensino da Arte trabalha com e sobre o
imaginário, sendo, portanto, uma categoria relevante para se entender os valores
legitimados e o modo de representação da alteridade. Imaginário sobre o qual nos
movemos, nas nossas lembranças, leituras, experiências, e que, de acordo com Juremir
Siva, é uma realidade em que “cada ser é autor, co-autor e protagonista” (2006, p.50).
Queremos fazer as devidas considerações à ressalva da arte vista como
instrumento, feita anteriormente, por concebermos a arte educadora enquanto arte, sem que
isso nos torne defensores das concepções essencialista ou que neguemos afinidades com as
concepções contextualista no Ensino da Arte. Se assim concebemos, é por pensar que a
arte se engendra nos contextos socioculturais, envolvendo subjetividades, e que portanto,
essas dimensões não estão fora dela. Outra consideração é que a Arte, tomada como
instrumento, alimenta a forma negativa que impregna, em muitas escolas, a prática
pedagógica do seu ensino não como área de conhecimento, mas, apenas, como um fazer
técnico, uma atividade desprovida de conteúdos, momento de ‘relaxamento’, no sentido
pejorativo. Heranças das tendências tecnicista e modernista que marcaram a história do
Ensino da Arte no Brasil.
Através da arte, segundo Barbosa:
É possível desenvolver a percepção e a imaginação para apreender a realidade do
meio ambiente, desenvolver a capacidade crítica, permitindo analisar a realidade
percebida e desenvolver a capacidade criadora de maneira a mudar a realidade
que foi analisada. (BARBOSA, 2005, p.100)
No desenvolvimento individual, as noções de percepção, imaginação,
capacidades crítica e criadora são atributos objetivados na arte, e não exclusivos dela, e,
portanto, desencadeados no seu ensino para uma apreensão e uma interferência sobre uma
realidade percebida e analisada. Provocar uma interferência no sentido de transformação de
uma dada realidade é o que almejamos numa proposta de educação crítica inclusiva de
afro-descendentes. Essas são noções presentes nos PCN Arte (BRASIL, 1996) e que
norteiam os trabalhos pedagógicos. Contudo, o grande que tem presença confirmada
nos planejamentos e planos de aulas diz respeito ao que, de fato, é feito e como é feito para
dar concretude a essas noções no trabalho pedagógico. Voltamos ao cerne do Ensino da
72
Arte: a mediação do olhar construída entre a imagem de arte e o seu possível diálogo
interpretativo.
Evidenciamos a relevância do contexto político, histórico e social da arte a ser
considerado no objeto artístico no processo de mediação, ao provocar a ‘percepção’ e a
‘imaginação’ nas relações com o mundo a nossa volta e com s mesmos, e,
conseqüentemente, a consciência do poder das “miopias”. A imaginação torna-se
afirmação da condição de rebeldia do ser humano: “Um rebelde que nega o existente e
propõe o que ainda não existe” (DUARTE Jr., 1988, p.100). Podemos também nos deter
nas palavras de uma estudante sobre sua máscara, intitulada “Flicts”, gestada na
modelagem do seu rosto e nos encontros, dentre outros, com os estudos de máscaras
africanas Yoruba, Ashanti e Chokwo: “Então aquela cara preta feita de gesso, folha de
guardanapo, cola, semente e tinta sou eu [...] E de todos os outros que deixaram suas
marcas na minha cara”
16
(estudante de uma escola particular).
A dimensão inclusiva da arte que se torna o lugar de possibilidades da
estudante corpo aos sentidos suscitados nas suas percepções com os estudos propostos,
através de fruição e leituras de imagens que dão forma a “Flicts”
17
e a todas as relações
implicadas nesse formar. Essa máscara se torna agora um objeto de leitura aberto a uma
reconstrução na qual intervêm: a estudante é, simultaneamente, produtora (na perspectiva
da arte como expressão) e espectadora leitora/fruidora (na perspectiva da arte como
impressão), e os demais estudantes do grupo também são espectadores.
Nesse sentido, os elementos formais de artes visuais cor, espaço, movimento,
volume e outros envolvidos na produção de imagens e na leitura dessas não precisam ser
trabalhados como conteúdos por si só, com uma existência apenas nas suas definições que
tão logo serão esquecidas. Eles podem ser articulados às temáticas abordadas, que
envolvem a estética, o político, o social, o histórico, e que são permeados pela percepção e
imaginação. Esta última é tanto o motor das imprevisibilidades da criação estética como
também é provocada no diálogo interpretativo. Deve-se levar em conta nesse processo a
16
Trabalho realizado por uma estudante da 8ª série no Ensino da Arte em uma escola que leciono.
17
É importante pontuar que Flicts é o nome de um livro de Ziraldo e que a estudante faz alusão no processo
de leitura sobre sua produção. Flicts é um personagem/cor que busca seu lugar no mundo junto às outras
cores e passa por um processo de discriminação pela sua diferença em relação às qualidades apresentadas
pelas demais cores e nas formas que elas ocupam - os valores.
73
polifonia de vozes nas salas de aula, que têm como referenciais o seu local de enunciação e
o mundo polifórmico que transitamos e os espaços que nos constituem.
O como tem sido feito para concretizar o trabalho pedagógico segue, ainda
hoje na escola, o rastro da modernidade e, segundo Rabêllo:
O ensino da arte, acompanhando a crise da modernidade, ao colocar a ênfase nos
aspectos racionais do ensino, privilegia o conceito, a argumentação sobre o
objeto artístico, a interpretação de obras famosas, em detrimento da experiência
sensível. Considerando a sensibilidade como deflagradora de outros processos
mentais, o conhecimento formal acerca da arte, ou seja o enfoque teórico e
discursivo sobre o fenômeno estético e o ensino de técnicas, que vem
caracterizando o Ensino da Arte na atualidade, não pode prescindir da educação
da sensibilidade. A revelação estética do mundo pode se dar a partir da
experimentação, dos sentidos, das sensações da nossa corporeidade, da
sensibilidade em relação ao meio ambiente, que foram desprezados na
contemporaneidade. (RABÊLLO, 2006, p.184)
“A revelação estética do mundo” no diálogo interpretativo no processo de
mediação do trabalho pedagógico inclui a experiência estética como conhecimento que
oportuniza o entendimento da cultura produzida na vida cotidiana e em outros espaços,
provocando possibilidades de rupturas. Experiência que, para se constituir como tal,
impregna-se do caminho que a gesta. Isso significa dizer que o Ensino da Arte possibilita-
nos leituras e diálogos com o mundo, onde articulamos o sensível e o inteligível.
Fazendo uma crítica ao privilégio que tem sido dado à lógica da modernidade
no contato com a realidade em detrimento da sua captura, também pelo sentimento, Duarte
Jr. tece a seguinte consideração:
E tal consideração se dirige especialmente a essa tendência do “Ensino da Arte”
que vem se firmando entre nós, a qual tem se prendido muito mais ao discurso
teórico e interpretativo do fenômeno estético do que valorizado a capacidade do
sensível dos educandos, capacidade que nunca poderá se reduzir a um
encadeamento de conceitos e de reflexões teóricas. É preciso despertar e treinar a
sensibilidade, a atuação dos sentidos, na vida que se vive. Obras de arte,
consagradas ou não, apenas ganham significação na medida em que podem ser
vinculadas à vida e às experiências efetivamente vividas pelas pessoas. E tais
experiências precisam ser estimuladas e desenvolvidas, num modo sobretudo
sensível, antes de intelectual. (DUARTE Jr., 2004, p.186)
Concordamos com Duarte Jr. sobre a necessidade de uma educação da
sensibilidade, que não é um caso de treinamento. O que o autor coloca de mais
significativo é a relevância da experiência estética na apreensão do objeto, o momento da
fruição pelo espectador. Esse é um momento importante no diálogo interpretativo com o
74
objeto artístico ou com a imagem de arte. Poderíamos chamá-lo de pré-reflexivo: o corpo
com seus sentidos, na sua totalidade de interação com o objeto, quando o espectador
transcende o seu olhar ordinário e imediatista, percebe, emociona-se e é tocado aisthesis.
Segue-se um momento reflexivo, de versões e de visões (re) construídas; momento de
consciência estética. Essa consciência tem a ver, de acordo com Duarte Jr. (1988), com a
capacidade critica, a não submissão à imposição de valores e sentidos e ao poder de
escolhê-los e recriá-los. E para essa consciência, a reflexão do “fenômeno estético”
também é um aspecto relevante que alimenta o sensível e educa a sensibilidade. O corpo
vidente que apreende o visível e invisível do mundo e que modela essa apreensão sobre
uma matéria é, na sua inteireza, sensível e inteligível.
Concebemos que o sensível e o inteligível não são apartados e nem
incomunicáveis na existência humana, como colocado pelo autor nos pressupostos da
modernidade. Até porque não teríamos como fazer essa separação, por mais que a estrutura
social nos imponha tal intento, através das suas instituições que operam nas relações
antagônicas entre corpo e mente, razão e emoção. Citando Duarte Jr.: “Movemo-nos entre
as qualidades do mundo, constituídas por cores, odores, gostos e formas, interpretando-as e
delas nos valendo para nossas ações, ainda que não cheguemos a pensar sobre isto”
(DUARTE Jr., 2001, p. 163). Provocar a sensibilidade diante dessas qualidades que
permeiam nossas relações com o mundo é uma proposta de educação estética no Ensino da
Arte que se pretende crítico. Levando-se em conta que nos movimentamos cotidianamente
através dessas qualidades comendo, caminhando, trabalhando e também que essas
qualidades são profundamente manipuladas pelas imagens na cultura visual, no jogo de
sedução dos apelos midiáticos, tornando-nos, muitas vezes, consumidores de imagens
acríticos.
Transformar as anestesias em “estesias” é o que Duarte Jr. nos propõe como
forma de educar a sensibilidade, tornando-nos mais sensíveis e atentos ao que nos acontece
e aos acontecimentos do nosso entorno, começando pela compreensão do corpo
(corporeidade na experiência de apreender o mundo), na qual os processos sensíveis se
apresentam como parte do saber humano.
Na direção da enunciação de Duarte Jr., Sodré (2001) nos confirma a
relevância do corpo na articulação com o saber simbólico e, ao mesmo tempo, leva-nos a
perceber que a inclusão da história e da cultura africana e afro-brasileira no Ensino da Arte
75
passa também pela apropriação de algumas concepções de mundo ali inscritas, podendo
ancorar o trabalho pedagógico. Nesse sentido, destacamos o conceito concernente à
inserção do corpo, impregnando-se do saber da dinâmica simbólica do segredo, presente
nas culturas tradicionais africanas, como processo de conhecimento e que, aqui, temos
denominado de experiência estética. Para Sodré:
Você tem ali na Bahia essa originalidade dessa cultura somática, corporal,
simbólica, onde o símbolo é como a cebola. Se você começar a descascar uma
cebola, no final não tem nada, é o vazio. Mas certamente seu corpo fica marcado
por essa experiência, porque primeiro você chorou, sua mão ficou cheirando a
cebola, etc. e em cada desfolhamento, o fascinante e o sedutor é viver a
experiência do segredo com o grupo, ou com alguém. (SODRÉ, 2001, p.10)
18
.
A metáfora de ‘descascar a cebola’, como processo da experiência que marca e
impregna quem nela mergulha e o fascínio do compartilhar emoções e do respirar coletivo
(MAFFESOLI, 1996), reporta-nos aos conceitos colocados anteriormente da experiência
estética na perspectiva da arte como impressão e expressão, pensando o espectador como
protagonista. A educação estética compreende o sensível e o inteligível no Ensino da Arte,
em que a experiência estética constrói o processo de leitura e produção de imagem. Leitura
que, ao se construir crítica, sensível e transformadora, provoca uma consciência estética do
sujeito, levando-o a uma percepção sobre a forma a qual ele e o mundo, reciprocamente,
se afetam (PEREIRA, 1996 apud RICHTER, 2003).
Tem uma história de Augusto Boal (2003), em um dos trabalhos no Teatro do
Oprimido, que plasticidade às noções de experiência estética e consciência estética
como um processo que pode instigar o deslocamento, o (re)posicionamento e, sobretudo,
uma mudança imaginal, quando são provocados “choques perceptivos que transformam os
imaginários” e que “nascem de combustões individuais ou sociais” (SILVA, 2006, p.100).
No livro O teatro como arte marcial, Boal conta uma história Mulher no
espelho que ocorreu no Teatro Glória, em 1999, quando, em um dos seus trabalhos com
o Teatro do Oprimido (espaço de vozes silenciadas no processo de exclusão social),
apresentava a peça Marias do Brasil. No palco havia treze mulheres, todas empregadas
domésticas. Após a apresentação, Boal foi ao encontro de uma das Marias que chorava
muito. No diálogo, Maria revelou seu momento de visibilidade quando estava no palco:
18
Entrevista a Mariluce Moura, Jornal Valor Econômico – Caderno Valor, 4 de março de 2001
76
pelas luzes que iluminavam seu corpo, podia ser vista por todos, e, pela sua voz projetada
pelo microfone, podia ser escutada por todos na platéia. Mas naquela platéia, ela foi vista e
ouvida pelos seus ‘patrões’, pela primeira vez em dez anos deixava sua condição de
invisibilidade. Agora eles sabiam que ela existia, agora ela sabia que existia para além de
um avental. Sua emoção é mais intensa quando se olha no espelho e se enxerga mulher.
Não mais um avental”, não mais a Maria invisível, condição que no imaginário construía
sua existência de empregada doméstica; não mais uma voz silenciada no “sim senhor” ou
no “sim senhora”. Maria se viu mulher, levantou a cabeça e voltou ao palco para receber os
aplausos.
Essa é uma imagem belíssima da dimensão inclusiva da arte. O trabalho com
arte, na linguagem do teatro, provocou a percepção de fios capazes de (re)tecer o olhar,
(re)constituindo a imagem de Maria. As leituras e fruição de Maria das imagens que se
projetavam do palco à platéia foram constituindo seus espaços de pertencimento. Neste
momento, a ressonância do anverso da imagem construída nas palavras de Fischer (1987)
se presentifica: da penumbra do Teatro Glória, em um ponto do palco, um sujeito fixa o
seu olhar com o corpo em uma platéia que se ilumina, porque algo acontece, algo que é
real e que tão completamente absorve o sujeito Maria.
O processo de mediação do olhar no Ensino da Arte, atravessado pelo conceito
de microestética ((PEREIRA, 1996 apud RICHTER, 2003), constrói-se na perspectiva da
dinâmica inclusiva por compreender, no espaço da sala de aula, que a arte realiza as
percepções, sentimentos e pensamentos que se tem de um mundo que transitamos. Ao
ampliar o conceito de objeto artístico valorado, não dentro de um padrão tomado como
verdadeiro e universal, mas sim a partir das subjetividades produzidas nas diferentes
culturas e nos diferentes cotidianos, incita-se o olhar sobre si e sobre o outro.
Nesse sentido, a prática cotidiana da sala de aula, como espaço de relações
entre poder, conhecimento e cultura, também produz resistência, à medida que é capaz de
levar-nos a percepção dos nossos locais de enunciação e do outro. Locais da microestética,
em que nos tornam conscientes sobre a forma como afetamos o mundo e reconhecemos as
formas como o mundo tem nos afetado, quando, na mediação do olhar, no objeto artístico,
na “colcha da vovó” (LANIER, 2001) oportunizamos desfiar e fiar em cada fio os sujeitos
e as culturas que ali estão representados, as identidades e diferenças ali produzidas.
77
Trago a imagem da ‘colcha da vovó’ para refleti-la nas noções de estética do
cotidiano e de valor estético no conceito de imagem da arte, como uma crítica a forma que
ela aparece no texto de Lanier:
Para um poderá ser a colcha da vovó, para outro os pôsteres de artistas. Devemos
explorar esses interesses pessoais. Entretanto, os currículos são normalmente
planejados para grupos e não para indivíduos e é importante identificar ou prever
aquelas artes populares que podem servir (grifo meu) como denominador
comum mais abrangente do interesse da juventude. (LANIER, 2001, p. 50)
Esse autor indica, depois, que o “indutor estético” mais abrangente se encontra
na área da mídia. Será que a ‘colcha da vovó’ não é mais do que um interesse pessoal?
Como mensurar o valor estético de um objeto, para um grupo ou uma comunidade,
desqualificando esse valor pelo fato de existir em maior quantidade, segundo o autor? Não
estamos excluindo, quando não vemos, no cotidiano da sala de aula, o valor estético das
tantas Colchas da Vovó?
Não perceber o valor estético do objeto com o olhar da cultura que o produziu
significa negar ou ocultar as representações desse valor para uma cultura; é encobrir as
subjetividades que nelas se organizam e que compõem os seus processos de vida e de
transformação (RITCHER, 2003).
Fazendo uma analogia com a produção estético-visual das culturas negras: a
não visibilidade do valor estético de ‘colchas da vovó’, a posição serviçal ou não em que
elas são colocadas na mediação do olhar no Ensino da Arte, os discursos produzidos
através dessas imagens de arte como “indutor estético” desenham as inclusões e exclusões
socioculturais de afro-descendentes na sala de aula. A dinâmica inclusiva do Ensino da
Arte, no trabalho pedagógico, vai se construindo e engendrando a questão política da
identidade e da diferença na consciência da escolha da imagem que (re) conhece o lugar da
arte e, portanto, os seus movimentos que inclui e exclui. É também no diálogo
interpretativo com a imagem que se (re) conhece a complexidade da linguagem artística
como expressão e impressão do/da estudante. Tal questão posta no multiculturalismo
envolve as tessituras dessa práxis pedagógica no imaginário social e nas constituições de
espaços de pertencimento, em que identidades culturais são produzidas através das
representações da imagem da arte.
O imaginário é uma categoria que nos leva a entender as muitas representações
negativas do negro. E a mediação de uma dessas representações, na imagem da arte, é uma
78
das possibilidades de, no microespaço da sala de aula, (re) desenharmos essa imagem e,
conseqüentemente, atuar na arte com e sobre o imaginário.
Frantz Fanon, em “Pele Negra Máscaras Brancas”, ao falar Uma vez que o
outro hesitava em me reconhecer; havia uma solução; fazer-me conhecer”
(FANON,2008, p. 108), convida-nos a rasurar representações do olhar do outro, do
eurocentrismo, das discriminações, dos estereótipos, e fazermo-nos conhecer; convida-nos
a rasurar os sentidos que insistem em pré-existir, esperando por nós, negros. O movimento
do mar, o estar em trânsito são imagens que, poeticamente, sugerem-nos a identidade
cultural num tornar-se; que negam a identidade como um a priori, e, portanto, reafirmam as
possibilidades da dimensão inclusiva da arte, se compreendermos que, na ação de tecer, as
escolhas dos fios e a forma que tramamos os fios são políticas.
Nesse sentido, as considerações, até agora postas, sobre os movimentos
inclusivos que consubstanciam a mediação do olhar no Ensino da Arte nos encaminham
para refletir, na seção seguinte, sobre os espaços de pertencimento que são produzidos
nesse ensino. Os fios que tecem o manto da inclusão sociocultural, quando da imagem de
arte das culturas negras mediadas e do diálogo interpretativo ao fazer conhecer, produzem
visibilidades de espaços que ganham corpo como referência para os afro-descendentes e os
demais estudantes e, ao mesmo tempo, produzem identidade cultural. Que espaços e
identidades são tramados nas aulas de arte?
79
SEÇÃO 2
OS FIOS QUE TECEM UM MANTO: INCLUSÃO SOCIOCULTURAL
Figura 10: Manto de Apresentação Artur Bispo Rosário
80
Antes eu não gostava de ver esse negocio afro nada... (risada), fazendo esse
trabalho eu me sinto negra. Estou me sentido eu mesma, fazendo pra mim
mesma. Eu valorizo mais. Antes eu não gostava de ficar junto de pessoas
negras. Me sinto já uma negra legítima. (Estudante do CEPJBAB).
São com essas palavras, ditas por uma estudante de 12 anos afro-descendente,
que iniciamos essa seção para nos debruçarmos no estudo sobre a inclusão sociocultural de
afro-descendentes, mirando o Ensino da Arte e a Educação das relações Étnico-Raciais.
Inclusão tramada em diálogos que imbricam duas categorias densas e complexas, mas que
tecem movimentos que se entrecruzam espaço de referência e identidade cultural. Tecem
tramas emergidas no sentimento de pertença, que possibilitaram à estudante (re) conhecer-
se, identificar-se e (re) posicionar-se, legitimando um olhar sobre uma condição que fora,
no momento, construída positivamente tornar-se negra, artífice e partícipe da cultura
afro-brasileira e afro-baiana.
Frantz Fanon fala do lugar de sua experiência como psiquiatra colonial em um
hospital na Argélia francesa, mesmo lugar em que se descobre impossibilitado de sua
missão frente a uma estrutura social hostil à tentativa de inclusão do indivíduo ao seu
lugar. Para Fanon (2008), a arte capacita o ser humano a não se sentir estranho nos seus
lugares no mundo, possibilitando sua inserção no lugar ao qual pertence. Significa dizer
que a arte, nas suas tramas, provoca-nos inserções em lugares os quais construímos
identificações, ao mesmo tempo em que nos leva a tecer esses lugares cônscios dos fios
que os constroem.
Nesse sentido, discorremos em uma breve evocação a história do artista Arthur
Bispo do Rosário, nascido em Sergipe vinte e um anos após a abolição da escravatura, para
uma aproximação do nosso olhar com noções de constituição de espaços de pertencimento
nos movimentos de desalienação. Essas noções, concebidas na dimensão inclusiva da arte,
possibilitam nos fazer conhecer e reconhecer pelas identificações que provocam com o
lugar de corporificação dos sentidos e pelos processos de transformação que engendram a
existência da arte. Tal conhecimento na relação com o poder é intervenção no espaço e no
processo de formação de identidades, na perspectiva da inclusão sociocultural de afro-
descendentes na dinâmica do Ensino da Arte que aqui discutimos.
Arthur Bispo Rosário, artista negro, encontrou na arte uma linguagem capaz de
dar forma a tudo que existisse no mundo como parte de sua memória, após ser acometido
81
por alucinação que lhe falava e chamava para a hora de reconstruir um mundo. Na sua
condição de interno em uma colônia para alienados no Rio de Janeiro, viveu horas em
isolamento, jejuando, costurando, bordando, ocupando-se em reconstruir um mundo em
miniaturas. Sua história, revelada nos objetos artísticos Manto, Estandarte, Assemblage
, nas tantas palavras e linhas bordadas, ecoa o poder de realizar um mundo sem limites.
Esse artista, um estranho no seu lugar, na sua percepção da cor, das linhas, formas e vozes,
revela o desejo de tornar-se mestre de sua realidade, utilizando-se de objetos e dejetos
recolhidos do cotidiano e da sociedade. Tecia, nos interstícios dos espaços da colônia e do
que trazia de sua outra casa, o que tomava e filtrava da realidade com os fios de lençóis e
de roupas que desfiavam histórias e memórias. Desfiou, fiou, tornou a desfiar e fiar, por
cinqüenta anos, dando corpo a um mundo. E nós como espectadores dessa arte nos
tornamos co-autores: pela tradição objetos da sociedade inserida em cada fio e que
nossas reminiscências podem nos revelar; e, simultaneamente, pela tradução espaço de
ressignificação – em cada fio tecido que damos sentido, como artífices de histórias.
Fiar, desfiar, tradição, tradução, produtores, espectadores, alienar-se,
desalienar-se, autorizar-se e representar, todas essas palavras, na sua complexidade,
compõem a bricolagem com que discutimos a inclusão sociocultural de afro-descendentes,
mirando o Ensino da Arte.
Partimos da premissa que a inclusão sociocultural pressupõe o sentido de
pertença ao espaço material e imaterial da cultura. Tal sentido se corporifica em um
processo de apoderamento, pelo sujeito, dos saberes que envolvem esses espaços. Saberes
constituídos da sua implicação na produção desse espaço e do reconhecer-se nesse espaço.
A inclusão enquanto pertencimento é ainda compreendida do ponto de vista do ser
consciente-sensível-cultural. Ser que, consciente da sua existência individual, conscientiza-
se da sua existência social e tem a cultura como referência para o que se torna, faz,
comunica, e cria (OSTROWER, 1987).
A noção de inclusão, amplamente discutida em diferentes áreas, principalmente
na educação, é articulada, neste estudo, no foco dialético inclusão/exclusão e no foco de
deslizamento que essas categorias provocam, quando analisadas nas rupturas provocadas
no jogo das configurações culturais no espaço de hegemonia.
A dialética exclusão/inclusão vem respaldada em um longo processo histórico
pós-colonialista, que é representado pelas lutas das minorias na busca incessante pela
82
defesa de seus direitos de cidadania. O processo de exclusão, ao não considerar todos os
seus membros como cidadãos legítimos, gera na sociedade um apartheid social e cultural, e
nos sujeitos o sentimento de não pertencimento. Nessa dialética, as chamadas políticas de
ações afirmativas, propostas no sentido de reparar as desigualdades raciais e sociais,
embora recentes na história da ideologia anti-racista, abrem perspectivas de inclusão
sociocultural. Nesse sentido, a partir da Lei 10.639/03, resultado de lutas empreendidas
pelo Movimento Negro, fica estabelecida a obrigatoriedade do Ensino de História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana no Ensino Fundamental e Médio do país; e ainda, a
Resolução nº1/2004 do Conselho Nacional de Educação, que aprova o Parecer
CNE/CP3/2004, institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino acima mencionado, garantindo legalmente a todos os
brasileiros o direito de estudar as histórias e as culturas de matrizes estéticas brasileiras.
O direito legalmente assegurado conduz à (re) configuração do espaço da
educação, da escola e da sala de aula. Tal (re) configuração é anunciada, por exemplo,
quando presenciamos em uma escola particular um debate entre representantes e vozes
autorizadas de terreiros de Salvador e os estudantes do ensino fundamental. O espaço
produzido deu visibilidade para que outra versão sobre o tema da cosmovisão de matizes
africanas como espaço de resistência, que vinha sendo construída em estudo,
confrontasse com algumas visões estereotipadas que construíam o olhar dos/das
estudantes. Algo que, até pouco tempo atrás, era distante da nossa realidade torna-se fato,
pelo movimento de deslizamentos produzidos na relação inclusão e exclusão no jogo que
(re) configura o cenário cultural da escola.
Ao tomarmos a inclusão ancorada no sentido de pertença aos espaços da
cultura e, concordando com Hall, que essa não é apenas “uma viagem de redescoberta,
uma viagem de retorno” e que a cultura é uma produção” (HALL, 2005, p.43), isso nos
leva buscar compreender a forma como esses espaços têm se constituído. Forma que
corporifica politicamente o que tem sido produzido de visibilidade do espaço das culturas
negras na sala de aula. E mais ainda, buscar compreender sob que referências o Ensino da
Arte articula a existência desses espaços que produzem a identidade cultural de afro-
descendentes.
Dessa forma, o espaço de referência é aqui compreendido como o espaço
simbólico e vivido, desenhado nas realidades, percepções, filtros e representações das
83
relações do sujeito e nas suas tradições e traduções do espaço matricial. Refletimos, assim,
fazendo um recorte cultural, sem obliterar a sua multidimensionalidade, a noção de espaço
em Santos (1987), construído na relação entre a materialidade dos objetos e a vida que o
anima e o transforma. Espaço que se transforma num continuum das relações sociais e que
produzem outros espaços materiais e imateriais. Destaco, ainda, nessas relações
construídas, as possibilidades de rasuras que se instauram como movimento de
desalienação do espaço/lugar, onde o sentido de pertença do sujeito, nas suas
identificações, é construído também no tecer memória e história como sujeito cultural
desse espaço.
Assim, no mesmo viés em que construímos a noção de espaço, refletimos a
identidade cultural que vai se esculpindo no tornar-se. A identidade enquanto identificação
é pensada relacional, histórica, formada e transformada nas transfigurações que a
comunidade produz socialmente e culturalmente em seu processo histórico, nas relações de
poder e na construção de sentidos e significados (HALL, 2003). Mas, criamos um
momento de tensão e quiçá de contradição, quando somos atravessados/as visceralmente
por um pensamento que perpassa todas as pinceladas reflexivas das tessituras desse texto, o
ditado Yorubano: Eni mon ibi ti mbó, mon ibi òún nlo” (AYOH’OMIDIRE,
2004, p.176) Aquele que desconhece o seu passado e sua origem, dificilmente saberá
definir aonde quer chegar”.
O discurso de fundação não pretende emergir a idéia de fixidez de identidade,
mas sim versejar a apropriação desse ditado que corporifica a memória como símbolo de
resistência das culturas negras e de memórias enquanto “força instauradora” que se
atualizam no presente (ABIB, 2007).
O Ensino de Arte, no seu processo de ampliação interpretativa das dimensões
da imagem e dos discursos que constituem o campo da arte, abre novas perspectivas de
reescrita no presente. Torna-se um espaço onde a memória é partilhada como
conhecimento pulsante. Tais memórias revisitadas instigam um respirar coletivo através da
produção estética visual das culturas africanas e afro-descendentes, à medida que nos
vemos e nos (re) conhecemos nelas.
Espaço e Identidade cultural são, pois, duas categorias que, pensadas no Ensino
da Arte na educação das relações étnico-raciais, imbricam-se e nutrem-se a partir da
relação poder e conhecimento sobre a produção simbólica das formas culturais, aqui,
84
especificamente, da arte. Como forma de expressão, a arte revela suas contradições de
objetivar o mundo e apontar para o ainda não existente. Nessa experiência imediata que
ultrapassa o existente, corporifica o visível/invisível do mundo. A arte se oferece ao sujeito
como ação e objeto, produzindo espaço.
2.1 TECENDO O ESPAÇO
Para começar, não podemos pensar, no contexto da pós-modernidade, a categoria
de análise espaço dentro da cultura sem, pelo menos, evocarmos a imagem da grande
tensão entre local e global, que se encontram atados por serem condição de existência um
do outro (HALL, 2003). O processo de globalização influencia sobre todos os aspectos da
vida, mas não atinge a todos igualmente. De acordo com Santos, “encontra obstáculos na
diversidade das pessoas e na diversidade dos lugares” (SANTOS, 2006, p.143). Portanto,
por mais que o processo de globalização se pretenda homogeneizador, a cultura
preexistente responde a essa ação de maneira diferenciada. A idéia de homogeneização é
ficcional.
Por saber que a relação espaço e tempo se relaciona diretamente com a
produção de cultura e influencia a forma que toma corpo na arte, não podemos furtar-nos
de aludir à compressão espaço tempo na condição pós-moderna, existência social e cultural
na nova forma do capital, que produzem a fragmentação e a dispersão espacial e temporal.
Tal alusão é feita ainda por compreender, como Hall (2005), que as categorias de espaço e
de tempo são básicas para as formas de representação da arte e, nesse sentido, operam
sobre a identidade. Para pensarmos as imagens de arte lidas e produzidas, hoje, tanto na
sala de aula pelos/as estudantes como nos outros espaços de produção da cultura, é
necessário saber que espaço e tempo tiveram diferentes formas de elaborações em
diferentes épocas da cultura e essas são elaborações que interferem no trabalho
pedagógico.
Assim, discutimos a categoria de análise espaço, fazendo um recorte nas
tensões culturais entre o local e o global. De um lado, mirando uma realidade específica,
uma escola pública de um Bairro periférico de Salvador, onde presença de referências
concretas de espaço e tempo nos ritmos impressos nas noções de comunidade que por ali
85
circulam: vizinhanças que se conhecem e encontram tempo para conversar das janelas de
suas casas; grande movimento do comércio aos domingos; feirinha permanente na rua
principal; som de pagode que sai do interior das casas e de alguns bares e ganham as
calçadas; e a escola que suspende as aulas para mandar seus/suas estudantes para casa mais
cedo porque a polícia está no Calabetão, comunidade próxima, de onde muitos deles são
egressos.
Por outro lado, a reflexão das ações verticalizadas sobre esse local, que
esboçam movimentos que semeiam expressões de atopia e acronia
19
, no processo de
globalização. Tais expressões alteram a percepção de tempo e de espaço, sem passado ou
futuro, porque se vive o futuro no aqui e agora, e se aproxima o distante. O espetáculo da
existência que invade cada casa seja pelo écran da televisão ou pelo computador, durantes
as incursões dos/das estudantes do CEPJBAB à ‘lan house’, oferece um mundo que se
engendra como simulacro, isto é, a aparência sem realidade. Um mundo do descartável, do
substituído. Esse mundo instantâneo que provoca o desaparecimento da realidade imediata
e se oferece através da atopia e da acronia das imagens de qualquer lugar e de lugar
nenhum. É o tempo presente sem casualidade. Tal mundo forja desejos comuns de
consumo, forja identificações.
É no rastro dessas imagens que tecemos a relação do sujeito com o espaço
cultural, no seu sentido simbólico, compreendendo este como uma parte hologromática do
conceito de espaço construído por Milton Santos. Para esse autor, o espaço é "um conjunto
indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações" (SANTOS, 1996, p. 18). Os
sistemas de objetos e de ações, enquanto processo e resultado na construção do espaço,
influenciam-se mutuamente de forma simultânea, solidária e conflitante. A dinâmica em
que se encontra a transformação do espaço humano se a partir desses dois sistemas,
onde os objetos condicionam a forma como se dão as ações e as ações levam à criação de
novos objetos ou se realizam nos objetos preexistentes.
O objeto, na abordagem desse texto, é visto como produto de elaboração
sociocultural, na sua dimensão simbólica. Materialmente apresentado, ou produzido como
significado na consciência, traduz, na sua configuração, a intencionalidade que formatou
sua origem, mas não o essencializa, se partirmos da premissa que sua forma de existência é
19
Marilena Chauí explica, no livro Simulacro e poder – Uma análise da mídia, a atopia e a acronia, ausência
de referenciais de espaço e tempo, que transforma os meios de comunicação em produtor de realidades.
86
condicionada pela ação humana dentro de uma temporalidade, ou seja, a partir dos sentidos
e significados que lhe são atribuídos nos diferentes períodos históricos.
A ação é um processo imbuído de propósito, onde o sujeito da ação, na sua
corporeidade, modifica e por esta é modificado. Santos lembra que a ação, vista por
Giddens, é “a corrente de intervenções causais reais ou observadas de seres corpóreos num
processo continuo de acontecimentos no mundo” (GIDDENS, 1978 apud SANTOS, 1996).
As ações são transformadoras à medida que colocam em movimento a história do sujeito
de um contexto, de uma sociedade, solidariamente com o sistema de objetos.
A dinâmica do espaço na produção do conhecimento nos é apresentada na
indissociabilidade e nas contradições dos sistemas de objetos e de ações. As palavras de
Ostrower citadas a seguir nos revelam essa dinâmica e ainda refletem o espaço simbólico
da arte como trabalho cultural, lugar de mediação, e, portanto, de transformação; capaz de
provocar também emersão da dimensão sensível do objeto:
Quando vemos uma jarra de argila produzida a 5 mil anos por algum artesão
anônimo, algum homem cujas contingências de vida desconhecemos e cujas
valorizações dificilmente podemos imaginar, percebemos o quanto esse homem,
com um propósito bem definido de atender certa finalidade prática, talvez a de
guardar água ou óleo, em moldando a terra moldou a si próprio. Seguindo a
matéria e sondando-a quanto à ‘essência de ser’, o homem impregnou-a com a
presença de sua vida, com a carga de suas emoções e de seus conhecimentos.
Dando forma a argila, ele deu forma à fluidez fugidia do seu próprio existir,
captou-o e configurou-o. Estruturando a matéria, também dentro de si ele se
estruturou. Criando, ele se recriou. (OSTROWER, 1983, p.51).
A ação humana, referenciada em um contexto histórico sobre a matéria argila,
que possuía um valor que lhe era próprio, leva a criação de um novo objeto, que passa,
agora, a conter outros valores com a realidade desse sujeito. Ao transfigurar a
matéria/forma impregnou-a de significações/conteúdos. Simbolicamente, a existência do
espaço, resultado historicamente obtido na relação forma-conteúdo, é compreendida no seu
sentido humano modificável nas relações cotidianas. Tal espaço em construção ganha
maior plasticidade e sentido a partir da implicação das relações humanas e identitárias que
dão significados a esse.
Dessa forma, desenha-se aqui o sentido de práxis no Ensino da Arte na
Educação das Relações Étnico-Raciais, quando é definido o processo de ampliação da
interpretação de objetos artísticos das culturas negras e de suas produções implicadas no
cotidiano dos atores envolvidos. Tal processo se constitui como ação capaz de revelar as
87
contradições desses objetos, que são modificados nas significações e sentidos dados nessa
realidade. O trabalho pedagógico precisa empreender uma ação que ponha em movimento
os diversos objetos de arte dessas culturas e as imagens da cultura visual, que criam os
scripts do espaço do negro na visão dominante, em reciprocidade ou em consonância com
a história e o contexto dos/das estudantes, sem fixar as posições de sujeitos nos diferentes
espaços e sem fixar os significados desses objetos e imagens. É necessário implicá-los em
leituras críticas, para que os/as estudantes tenham direito de negociar com a realidade em
condições de escolher os scripts que querem escrever (MCLAREN, 2000), não apenas
individualmente, mas em um processo que envolva a coletividade.
Os Scripts escritos sob novas condições seriam problematizados, como na fala
da estudante, citada na epígrafe “estou me sentido eu mesma, fazendo pra mim mesma”
(estudante do CEPJBAB) – sobre o significado individualizado, e que haja a perspectiva de
ampliação deste para um grupo, a partir de conhecimentos que envolvam as culturas
africanas e afro-descendentes.
O Ensino da Arte, assim concebido, consubstancia-se na arte seu campo de
conhecimento, como processo de mediação, engendrado no seu movimento de trabalho
cultural enquanto transformação. E como tal, processo em si criador, a ação humana
intencional instaura o processo do conhecimento. Na possibilidade de transformar argilas,
na ação de moldar um objeto, de dar corpo aos seus sentidos no mundo e de dar-lhe uma
forma, o sujeito também se dá uma forma.
A intencionalidade, outro aspecto suscitado no texto de Ostrower, diz respeito
a toda ação humana. A intencionalidade, forma de existência, denota uma visão de mundo
e constitui identidade; e, por outro lado, esta vai demarcar o espaço criado como
representação da relação social. As leituras que são produzidas no espaço, a partir da
intencionalidade, vão estabelecer campos de conflitos e de dominação. E são sobre essas
leituras que o trabalho pedagógico do Ensino da Arte produz a visibilidade do espaço de
referência de afro-descendentes e as condições em que essa visibilidade é produzida.
Embora a ação seja própria do ser humano, como resultado de necessidades,
intenções, objetivos, e até mesmo desejos, Milton Santos nos chama atenção para o
momento histórico que vivemos e que provoca distanciamentos, que denomina de
“alienação local”, revelando os atores que decidem e os demais:
88
As ações são cada vez mais estranhas aos fins próprios do homem e do lugar.
Daí a necessidade de operar uma distinção entre a escala de realizações das ações
e a escala de seu comando. Essa distinção se torna fundamental no mundo de
hoje: muitas das ações que se exercem num lugar são os produtos de
necessidades alheias, de funções cuja geração é distante e das quais apenas a
resposta é localizada naquele ponto preciso da superfície da terra. (SANTOS,
1996, P. 65).
Essas ações fomentadoras de estranhamento e alienação, que resultam em
objetos alienados, imprimem-se no que Santos chama de verticalidade, que se conduz
como um movimento homogeneizador, em ações indiferentes às realidades locais. Mas,
por outro lado, existe o movimento de resistência engendrado pela cultura preexistente.
Figura-se como um movimento de desalienação nas relações tecidas pela história e pela
cultura, dentro de uma temporalidade, que se insurge das especificidades concretas
produzidas no próprio espaço/lugar, nas possibilidades do vivido e significado pelos
sujeitos no cotidiano.
Fazendo uma analogia com a “alienação local” no contexto da sala de aula,
percebemos ser essa uma situação recorrente nas relações entre quem operacionaliza as
ações do trabalho pedagógico e quem decide essas ações tanto na escola como nas políticas
de educação. Referimo-nos às relações entre: educador/a e estudante; educador/a e escola;
e educador/a, escola e as políticas ou parâmetros e diretrizes educacionais.
O que termina produzindo, muitas vezes, um movimento homogeneizador em
ações pedagógicas indiferentes: aos sujeitos daquele espaço; às relações de gênero, raça,
etnia e sexo que configuram a sala de aula; e às experiências estéticas dos sujeitos
construídas nos seus espaços referenciais.
Outro aspecto significativo da resistência local em oposição ao movimento
verticalizante, relação global e local é o que Hall (2006) considera como “efeitos
diferenciadores, colocado anteriormente nas considerações de Santos sobre o alcance
dos processos de globalização na vida cotidiana. Ao causar efeitos que se diferenciam
dentro das sociedades, a globalização não pode ter o controle sobre tudo na “sua órbita”
(2006, p.57). O que obriga o movimento vertical global a considerar as lateralidades que o
atravessam. Outras forças do local que compreendem a complexidade de sua maneira no
mundo, na multiplicidade dos sentidos e significados entre as culturas locais, entrecruzam-
se e ressoam, agora, como um eu para o outro, não no seu binarismo fixo. Negociam-se,
nas suas diferenças e contradições, os valores simbólicos locais, em nome de uma
89
existência comum no conflito com o que lhe é externo. As mudanças que tais movimentos
operam, ocorrem tanto a nível local como global. Na perspectiva do espaço local, a
insurgência como resistência provoca fissuras e novas inscritas naquele espaço implicadas
e ancoradas na relação cultura, conhecimento e poder.
Nesse sentido, a produção de visibilidade do espaço como conhecimento se
engendra na sua relação com a cultura e o poder. Do ponto de vista dessa relação na Arte e
na Educação, dois espaços relevantes (campos de luta e conflitos simbólicos), ambas as
formas culturais revelam e produzem as assimetrias do jogo poder e conhecimento, que
intervêm nas visibilidades do espaço simbólico. Citando Tomaz Tadeu Silva:
Tanto na arte quanto na educação dois locais principais de “trabalho cultural” -
modos dominantes de produção semiótica freqüentemente tentam normalizar
práticas textuais e repertórios de imagens “verdadeiras” ou “úteis”, assim como
aquilo que conta com sua adequada exibição e mediação. Essas normalizações
são esforços para regular formas particulares de ver o mundo e definir o “senso
comum”. Pensadas nesses termos, as práticas que articulam modos particulares
de produção semiótica são, simultaneamente, educacionais e políticas, na medida
em que tentam orientar nossa concepção daquilo que é importante e
“verdadeiro”, assim como o que é desejável e possível (2005, p. 64/65).
Essas formas de regulação da cultura operadas como construtos do poder
discursivo e da hegemonia dominante, a partir da orientação conduzida para o que é
“verdadeiro” do repertório imagético ou ainda as imagens que se constroem como verdades
nos modos de produção dominante” da arte e da educação e que são mediadas, mais
especificamente, no Ensino da Arte, criam e reforçam estereótipos que reduzem, fixam e
essencializam as culturas negras. Um exemplo disso são os estereótipos que identificam a
produção artística das culturas negras às habilidades corporais, envolvendo a música, a
dança e as artes visuais, de maneira exótica, em detrimento do caráter também intelectual
dessa produção.
Outra questão a considerar é que, tal como na relação da ação verticalizada
global sobre o local, a pretensa homogeneização como forma de regulação dos modos de
produção da hegemonia escolar dominante não tem o controle dos efeitos diferenciadores
sobre os sujeitos, nem sobre os processos pedagógicos que constroem as transformações no
espaço da sala de aula. Essas fissuras constroem os deslocamentos pelas mudanças de
posição nas configurações de poder.
A linguagem da arte é uma das formas culturais que, como símbolo, expressa
um contexto histórico e uma cultura, não existindo longe das assimetrias de poder e,
90
portanto, do conhecimento, das relações de raça, classe e gênero (MCLAREN, 1997). Tal
visão da arte nos leva a concordar com Hall, quando o mesmo diz que o “significado de
uma forma cultural e seu lugar ou posição no campo cultural não está inscrito no interior
de sua forma” (HALL, 2003, p.241). O diálogo pedagógico sobre os objetos artísticos, nos
processos de mediação, é que vai produzir o seu significado e (re) posicioná-lo na cultura,
a partir dos lugares de enunciação dos atores pedagógicos, na sala de aula.
A consciência dos valores dos seus saberes vai possibilitar ao sujeito
reconhecer o seu espaço de referência e identidade cultural. Assim, o sentido de pertença é
provocado pelos saberes produzidos sobre o seu espaço/lugar, sejam nas imagens, afetos e
palavras que ali circulam; nas representações ali inscritas; e nas verdades” mediadas pelo
espaço simbólico. ‘Sentir-se pertencendo à...’ pressupõe, pois, sentir-se incluído no
processo de (re) conhecimento e produção do espaço material e imaterial da sua cultura.
Desenha-se, dessa maneira, a relevância do sujeito se (re) apropriar desses saberes e da
forma dessa (re) apropriação, para constituir-se o movimento de inclusão, o que
confirmamos no que Santos enuncia: “Quando o homem se defronta com um espaço que
não ajudou a criar, cuja história desconhece, cuja memória lhe é estranha, esse lugar é a
sede de uma vigorosa alienação” (SANTOS, 1987, p. 61). É sobre esse espaço, recriando-o
em leituras crítica e sensível que o sujeito tece seu movimento de desalienação.
Que traduções ou mesmo rasuras podem ser feitas no presente, se os espaços
imateriais e a memória, construíram-se em representações estereotipadas e que me fazem,
eu negra, uma estranha na minha própria cultura? As imagens semiotizadas do eu negra, no
imaginário social, nega e torna invisíveis partes da minha existência. Eu, sendo negra,
brasileira e baiana, desconheço a história, torno-me uma estranha à memória e não vejo a
minha condição enquanto sujeito de intervir na criação e recriação dos espaços da minha
cultura. Que espaços eu sujeito construo com um corpo em movimentos que me são
estranhos? Que espaços eu sujeito passo a construir quando são reveladas as opacidades
nas tessituras do tecido social? Construímos novos referenciais e ampliamos fronteiras?
O espaço se torna, assim, uma categoria relevante para pensarmos o
conhecimento enquanto ação e objeto, espaço de poder perspectivado no alargamento de
fronteira – que delineiam espaços, não como limite, término, “mas o ponto, a partir do qual
algo começa a se fazer presente” (HEIDEGGER apud BHABHA, 2007, p.19) no presente.
Espaço que produzo, mantendo também os vínculos coletivos e que me tornam parte dele,
91
o espaço que ocupamos com o nosso corpo e que nos ocupa. Tal espaço nos constitui e nos
transforma.
O espaço de referência é aqui também concebido engendrado na memória, no
seu sentido matricial. O espaço que contém as dimensões da vida e do lugar específico de
práticas sociais que nos formaram e, que, como placenta social, estabelece os nossos
primeiros diálogos com o mundo; espaço onde identidades são produzidas e estão ligadas
umbilicalmente. Tais elementos são nutrientes da plasticidade do espaço. É, poeticamente,
o espaço que cria valores íntimos como disse Bachelard: “a casa é nosso canto no
mundo” (1974, p.358) –, evidenciando o espaço da casa, como nosso ponto de referência
no mundo e que está inscrito simbolicamente no corpo. Espaço de vínculo que é
emocional, afetivo e tradutor da tradição. Tradição que não fixa, mas que irriga as veias da
cultura.
Muniz Sodré, em seu livro O Terreiro e a Cidade, discorre, referendado no
olhar africano, especialmente entre os Bantos do Sudoeste Africano, em uma associação
entre conhecimento e espaço, sobre a conquista do espaço como sendo, antes de tudo, uma
tomada de posse da pessoa. Prosseguindo, afirma que no ritual iniciático o/a jovem é
ensinado/a a tratar do seu corpo como um mundo reduzido. A casa vai então constituir-se,
no processo, o macrocosmo do corpo. Dessa forma, vai se ampliando o espaço físico-
espiritual para outros espaços sociais.
Essas associações são norteadoras nas construções de projetos educacionais
que trabalhem na perspectiva positiva da Educação das Relações Étnico-Raciais. O que vai
consubstanciar um fazer cotidiano da escola que pressupõe transformações no
entrecruzamento de dados do macrossocial e do microssocial tecidos por seus atores é a
compreensão dos seguintes fatores: da totalidade do ser humano; do corpo no processo de
conhecimento; do corpo/casa lugar de memória possuidor de saberes; do espaço de
conhecimento enquanto lugar de inscrições sociais; dos discursos e das representações
constituintes dos espaços e instituidores de sujeitos imaginados; e da alienação e do
estranhamento do espaço/lugar ainda a ser considerado todo potencial e complexidade
que o espaço microssocial revela em cada corpo histórico, social, cultural, estético e
singular que movimenta e ocupa uma dada sala de aula e que configura a sua existência.
Produzir visibilidade do espaço de referência de afro-descendentes no trabalho
pedagógico do Ensino da Arte, na comunidade do CEPJBAB, inclui o conhecimento das
92
tramas dos tecidos da produção cultural específicas da localidade, que se corporificam nos
artefatos culturais e artísticos que ali são produzidos no cotidiano: na influencia dos 22
terreiros que fazem parte da comunidade de São Caetano; nos painéis pintados nos muros,
em relevo ou nos mosaicos próximos da escola pelo artista e também morador do bairro, J.
Barreto (Segundo a professora de Artes, o seu trabalho lembra-lhe os padrões de tecidos
Baulé, da Costa do Marfim); nas peças de roupas (re) criadas pelas releituras do DVD
Calypso e costuradas à mão por uma estudante, reaproveitando pedaços de tecidos e roupas
velhas; nas tristes imagens da chacina cometida por policiais contra uma família inteira no
Bairro do Calabetão, em 2007; nos muitos filmes e propagandas que os/as estudantes têm
acesso e que encontram ecos em seus movimentos de identificações culturais; e em tantas
outras produções e imagens invisíveis ao espaço da sala de aula, mas que são partes vividas
pela comunidade. Tais imagens dizem respeito também a um contexto social mais amplo,
no qual essa comunidade está inserida.
Nosso desafio é articular uma práxis pedagógica no Ensino da Arte que não
oculte nos diálogos os conflitos e as contradições, ao trazer para sala de aula as imagens do
cotidiano e da cultura visual, para dialogar com a produção artística das culturas negras de
África e da experiência diaspórica em diferentes partes do mundo. É desvelar as formas
simbólicas dos discursos visuais, que sob o imaginário desconstrói e constrói a existência
das identidades e diferenças e, simultaneamente, revelar possibilidades de (re)
construirmos aonde queremos chegar.
Produzir visibilidade dos espaços é ainda tensioná-los em construção com os
de referências vividas, onde o sujeito constrói suas identificações e se posiciona ao se
sentir parte de um grupo. Esse último, por sua vez, partilha experiências que envolvem as
questões de identidade cultural tecidas nas relações étnico-raciais dentro de uma sociedade
como a brasileira, mais especificamente, a realidade de Salvador. Realidade esta que se
construiu sobre as representações e discursos de democracia racial, inferida pela
característica do colonialismo português, que produziu a mestiçagem, sobre a qual a nossa
imagem de terra mestiça e de harmoniosas relações entre brancos e negros ocultou durante
muito tempo as grandes discrepâncias e dissonâncias sociais e econômicas produzidas pelo
racismo.
Que imagens tem tido o poder avassalador sobre o imaginário, considerando-as
representações que criam realidades?
93
2.2 FIANDO E DESFIANDO A IDENTIDADE CULTURAL
uma imagem no livro “Claros e Escuros: identidade, povo e mídia no
Brasil”, de Muniz Sodré, na qual ele descreve os lugares sintomáticos da discriminação.
Uma imagem que, embora extremamente dolorosa e nos cause indignação, servirá, aqui, de
fundo na composição da categoria identidade cultural. Ela traduz o espaço de poder, onde a
identidade negra é fixada negativamente, mas, ao mesmo tempo, ela colabora com a
desconstrução do mito da democracia racial na sociedade brasileira. O racismo é
explicitado, quebrando o velado pacto social da invisibilidade dos “mecanismos
discriminatórios”:
[...] Em 1986, o centro de pesquisa e Assistência em Reprodução Humana
espalhou por Salvador, Bahia, cartazes publicitários com o título “defeito de
fabricação” acima da imagem de um garoto negro, com correntinhas no pescoço,
canivete na mão e uma tarja nos olhos. Abaixo, o texto: tem filho que nasce para
ser artista. Tem filho que nasce para ser advogado e vai ser embaixador.
Infelizmente, tem filho que nasce marginal (SODRÉ, 1999, p. 235).
A representação desse discurso revela peremptoriamente o “imaginário
etnocida”, marca simbólica de superioridade, latente na sociedade brasileira, e que a mídia,
utilizando o espaço simbólico do discurso visual, apropria-se e potencializa. A disputa de
espaço de poder, erigido pelos paradigmas brancos, joga com estratégias para conter o
crescimento da população de afro-descendentes e, conseqüentemente, do poder político
dessa população. Aqui, percebemos o entrecruzamento das duas categorias de análise
espaço e identidade cultural.
A representação, seja em um cartaz, em uma pintura ou em um filme, é um
processo cultural que está ligado à produção de identidade e de diferença, a imagem de arte
é uma forma de relação com a alteridade. Nesse sentido, o cartaz posiciona o negro em
uma imagem que constrói uma identidade em que a cor é atributo da condição de
marginalidade tem filho que nasce marginal”. Segundo Tomaz Tadeu Silva, “A
identidade é um significado cultural e socialmente atribuído” (SILVA, 2000, p. 89). Para
este autor, a identidade e a diferença estão ligadas à representação e é através dela que se
“ligam a sistemas de poder” (idem, p.91). Ter o poder de representar implica em ter
também o poder de posicionar a identidade. Um trabalho pedagógico crítico questiona o
94
sistema de representação das formas dominantes que dão suporte a esses posicionamentos
da identidade e da diferença, como, por exemplo, no caso do cartaz citado.
Hall observa que:
As identidades culturais provêm de alguma parte, têm história. Mas como tudo
que é histórico, sofrem transformação constante. Longe de fixas eternamente em
algum passado essencializado estão sujeitas ao contínuo 'jogo' da história, da
cultura e do poder. As identidades longe de estarem alicerçadas numa simples
'recuperação' do passado, que espera para ser descoberto e que, quando o for, a
de garantir nossa percepção de nós mesmos pela eternidade, são apenas os nomes
que aplicamos as diferentes maneiras que nos posicionam, e pelas quais nos
posicionamos, nas narrativas do passado (HALL, 1994 apud VILLAS-BOAS,
2002, p. 59).
A produção de identidade cultural no trabalho pedagógico do Ensino da Arte
não se trata de uma simples 'recuperação' do passado”. Para nós, no contexto brasileiro e
talvez, principalmente, no de Salvador-BA, trata-se de (re) conhecer a identidade cultural
que tem servido de patrimônio material e imaterial para fixar o terreno da nacionalidade
brasileira. Não seria apenas resgatar as culturas negras como uma peça de museu que
territorializa e contém os símbolos da identidade em umaversão autêntica” (CANCLINI,
2008), como algo que foi dado em uma posição de recepção na qual nada foi alterado.
Conhecer e tornar conhecível significa acessar outros códigos e sentidos que nos
reposicione agora; significa também compreender o 'por que' de representações, como a do
cartaz citado.
No viés do interesse desta dissertação, em seu processo de construção na
relação com o espaço de referência, na Educação das Relações Étnico-Raciais, a noção de
identidade cultural é considerada, nas concepções de Hall, uma perspectiva identitária em
um tornar-se, mas que dialoga com a questão de “ser”. Um tornar-se do sujeito nas suas
relações social e cultural, historicamente construídas. Dentro do qual o vivido e as leituras
construção de sentidos e significados –, realizados nessas relações, são construtos de
identidades. Assim, o social e o simbólico são processos necessários à construção de
identidades. Estas são ainda construídas na relação com o Outro”, com a diferença, “por
meio da diferença e não fora dela” (HALL, 2000, p. 110). Sei o que me torna por aquilo
que não me torna.
A construção da identidade do ‘ser sendo’ com o passado, nas narrativas que
nos posiciona, é dada no reconhecimento desse e na possibilidade de reinventá-lo,
permitindo ao sujeito identificar-se a uma cultura. O passado, articulado historicamente,
95
significa, citando Walter Benjamin, apoderar-se de uma reminiscência, tal como ela
relampeja no momento de um perigo” (BENJAMIN, 1994, p. 110). Sublinhando o
inconformismo e concordando com Pedro Abib (2007), vemos que a visão do passado não
se cristaliza no tempo, nas suas verdades universalizadas, mas sim na sua tensão com o
presente e, nessa perspectiva, tece rasuras.
Incluo ainda nessa reflexão a idéia da memória também como estratégia de
visibilidade de espaço, força instauradora no interior do jogo do poder e da exclusão que se
estabelece nos diferentes campos de atuação dos sujeitos. História e ancestralidade
partilhada se recepcionam de forma crítica. Ao contrário de fixar o pertencimento cultural,
como coloca Hall ao fazer críticas à visão essencialista do eu coletivo, a memória vai
tecendo o sentir-se pertencendo, à medida que nos possibilita (re) posicionarmos nos
espaços que atuamos pelos diferentes sentidos produzidos nas leituras desses discursos.
Dessa forma, o fato de partilhar memória e história não retira a identidade do seu processo
de travessia; naquilo que nos torna; em como somos representados e como essa
representação intervêm nas nossas próprias representações.
Voltar e pegar o que ficou para trás são negociações de “rotas” (GILROY,
1994 apud HALL, 2000). Hall nos conta acerca da forma de escrever pessoalmente e não
analiticamente, exemplificando essas negociações: “levei cinqüenta anos para voltar para
casa. Não que tivesse algo para esconder. Era o espaço que não conseguia ocupar, um
espaço que tive que aprender a ocupar” (HALL, 2003, p. 391). Essas voltas, rotas
negociadas e histórias que vivemos cotidianamente em determinado momento de nossas
vidas fazem parte do “espaço/lugar” específico de práticas sociais que nos formaram, e que
são referências, seja para não mais nos identificarmos ou para (re) construirmos novas
identificações. Não aprendendo a ocupá-lo, por ser o espaço dinâmico, historicamente e
socialmente construído, mas aprendendo a (re) criá-lo.
A questão da identidade cultural na Educação das Relações Étnico-Raciais no
Ensino da Arte, após a promulgação da lei 10639/03, insere-se em um campo que, como
espaço de conflito e tensão, é perpassado por questões de hegemonia cultural. O exemplo
do cartaz relatado anteriormente, como artefato cultural, é parte do jogo de poder, a
imagem negativa traz a representação de onde o negro é visto pela cultura do
branqueamento. Provocar no Ensino da Arte o olhar sobre essas relações, na idéia de
96
emergência de seus interstícios e compreender que todos nós temos nosso espaço/lugar de
enunciação, são formas de tensionar esse campo e modificar sua configuração.
Destaco, assim, duas questões que norteiam a visão da escola aqui
perspectivada. Primeiro, a escola é vista como um espaço dialético de reprodução e
resistência, espaço de educação transformadora que, mesmo recebendo condicionamentos
externos, reage sobre eles. E segundo, na perspectiva dos Estudos Culturais, a escola vista
enquanto espaço de políticas culturais, que se organiza através de modos de produção
semiótica”, citando Roger Simon, equivale ao conjunto de práticas sociais, textuais e
visuais planejadas para provocar a produção de significados e desejos que podem afetar a
idéia que as pessoas têm das suas futuras identidades e possibilidades” (SIMON, 2005, p
68).
Assim, para discutir o espaço da escola e, mais especificamente, da sala de aula
na construção da identidade cultural, a partir das concepções mencionadas sobre espaço e
perpassadas pelas questões de hegemonia cultural, desenho analogias com as concepções
de Hall acerca da cultura, seus significados e significantes populares.
As relações do poder cultural de dominação e subordinação são, para Hall,
aspectos intrínsecos da cultura. Nenhuma cultura se situa “fora do campo de força das
relações de poder e dominação”. A força da cultura dominante, através das suas
representações simbólicas, não tem o poder de encampar nossas mentes”, afinal os
sujeitos não são ‘idiotas culturais’. Porém, elas “invadem e retrabalham as contradições
internas nos sentimentos e percepções da classe dominada” (HALL, 2003, p. 238).
No caso da nossa imagem de fundo, inscrevem-se ali representações que
invadem os sentimentos e percepções dos negros e reforçam estereótipos. E tais
representações criam realidades, como um imaginário circulante, dando forma aos
discursos e às práticas sociais. Esse exemplo mostra como o “outro” é produzido no
discurso da representação e como as práticas sociais cristalizam posições subalternas e
dominantes.
Para Hall, a luta travada, hoje, pela hegemonia cultural não é uma questão de
perder ou ganhar; tal luta é engendrada num jogo pela “mudança de equilíbrio nas relações
da cultura” (HALL, 2003, p. 238). A questão é modificar as configurações do poder
cultural “e não se retirar dele”. O que intervêm na mudança de equilíbrio é o valor cultural
que se altera em diferentes épocas, a partir de um princípio estruturador. Tal princípio
97
“consiste das forças e relações que sustentam a distinção e a diferença” entre o que
pertence à cultura central e àquelas vistas como periféricas nesse jogo. A escola e o
sistema educacional são exemplos de instituições que distinguem a parte valorizada da
cultura, a herança cultural, a história a ser transmitida, da parte ‘sem valor” (idem, p. 238).
A escola é um espaço que legitima a cultura dominante e, portanto, é
emprenhada de seus valores culturais. A produção cultural negra, excluída do espaço
escolar, é, de forma estereotipada, considerada primitiva em uma construção modernista de
rejeição da diferença. E ao ser associada a uma produção da cultura popular também passa
a ser considerada, de maneira ingênua, uma produção inferior, em contraposição a alta
cultura (HALL, 2006). Os espaços de cultura visíveis na escola não estão desconectados
das representações que constituem o mundo que vivemos.
As valorações culturais no espaço da escola ocorrem também pelo processo de
alienação dessa trama social pelos seus atores, os quais estão imersos nas representações
dominantes. Vários são os espaços na escola em que as imagens de figura humana
colocadas em painéis e paredes são de brancos e louros; inúmeras são as aulas de arte em
que a noção de estética é pautada nas concepções clássicas, em que imagens da pré-história
são exemplificadas por pinturas rupestres da Europa. Desconhecemos as cavernas pré-
históricas de Moçambique e o sentido de Odara. Ignoramos que Salvador tem a maior
população negra fora da África?
Sabemos que o jogo é estabelecido em uma relação assimétrica de poder, na
qual a identidade produzida se articula com o histórico, o cultural e o político. Nesse
sentido, o deslocamento das culturas periféricas e negras, especificamente aqui, provocado
pela escola enquanto instituição que valora e produz cultura, ocorre no tensionamento do
equilíbrio da hegemonia cultural do branqueamento e nas emergências produzidas nos
interstícios articulados com os conhecimentos que envolvem as culturas africanas e afro-
brasileiras produzidas no cotidiano e no passado revisitado. Emergências exemplificadas
na fala da estudante, citada no início desta seção, que descreve o seu sentido de pertença à
cultura negra, deflagrado na sua relação com um conhecimento até agora construído e,
conseqüentemente, na relação com um espaço tornado visível para ela.
Uma das estratégias políticas das culturas negras no Brasil, no jogo de
configurações do espaço de poder, pode ser visto também no que Sodré nos apresenta
como jogo duplo. Uma estratégia política que operou na demarcação de espaço da
98
diferença, como forma de resistência e sobrevivência e na construção de identidade
cultural. Os espaços 'permitidos', por serem considerados inofensivos “na perspectiva
branca”, eram revividos pelos negros em seus ritos, suas formas de relacionamento
comunitário e outros. O que evidencia, para Sodré, uma “estratégia africana de jogar com
as ambigüidades do sistema” (SODRÉ, 2005, p. 93). Esse jogo exemplifica formas de
tensionar o equilíbrio dos espaços de hegemonia cultural, no sentido de (re) configurá-lo.
Ainda para este autor, desse jogo emergia a cultura negro-brasileira”. São nesses espaços
que os negros (re) atualizam seu ethos.
Para Sodré, por exemplo, a cosmogonia e os rituais nagôs que se implantaram
no Brasil não foram exatamente os mesmos existentes em África. uma reposição da
ordem original africana, a partir das relações entre “negros e brancos, mitos e religião”,
mas também “entre negros e mulatos, e entre negros e etnias distintas” (SODRÉ, 2005,
p.99 ). A síntese operada e as alterações sofridas decorrem de todo húmus social, político,
histórico e estético do processo de diáspora aqui no Brasil.
uma descrição feita por Hall, a qual voltaremos a ela posteriormente, que
nos remete aos espaços produzidos nos interstícios. Estes insurgem das emergências
culturais e vão focalizar articulações no encontro com o novo as traduções. “Uma
demanda que surge no interior de uma cultura específica se expande, e seu elo com a
cultura de origem se transforma ao ser obrigada a negociar seus significados com outra
tradição, dentro de um “horizonte” mais amplo que agora inclui ambas” (HALL, 2003, p.
82).
Que relações podem ter entre os espaços produzidos pelos africanos aqui no
Brasil: nos jogos de ambigüidade (SODRÉ, 2005), os espaços produzidos nas cotidianas
emergências culturais (HALL, 2003) e as encruzilhadas? Para Homi Bhabha (2006), a
encruzilhada é o “entre-lugar” da fronteira, espaço de negociação, de entrecruzamento de
vozes e histórias dissonantes. Nesse limiar de confluências, nesse cruzamento de culturas,
as diferenças são reconhecidas, aceitas ou recusadas no processo de (re) conhecimento do
‘outro’.
Que transposições podemos fazer desses espaços para construir estratégias
pedagógicas no Ensino da Arte na Educação das Relações Étnico-Raciais?
Ao discutir, nas considerações apresentadas até o momento, a identidade
cultural enquanto identificação, não negação de práticas culturais que definam as
99
particularidades das culturas negras explicadas pelas experiências compartilhadas
subjetivamente na sociedade e transformadas nos diferentes períodos históricos e contextos
culturais. Quando (re) encenamos o passado das culturas africanas, em sala de aula, através
dos seus objetos artísticos, na experiência estética, seja diante das máscaras Gueledes
20
, da
etnia Yoruba ou do Banco
21
, da região Luba ou ainda assistindo Grito de Liberdade,
revisitando pensamentos de Steve Biko ali representados, somos, muitas vezes, levados a
conhecer nossas experiências vividas ou a acessar sentimentos que não são vividos no
nosso cotidiano, mas com os quais nos identificamos. Dessa forma, através dessas práticas
culturais compartilhadas na vivência do presente, produz-se matéria para a construção de
identidades culturais e criação de espaços de pertencimentos.
Nesse sentido, a produção da matéria, no Ensino da Arte, é sondada e
impregnada pelas experiências dos/das estudantes. É sondada no seu existir histórico,
político e estético dentro do contexto de sua produção e na perspectiva de tornar visíveis as
opacidades que as atravessam nas relações de poder, nas formas de exclusão e nos valores
da cultura. E é impregnada de experiências produtoras de identidade cultural de afro-
descendentes, que são também configuradas nos espaços do cotidiano, das experiências
estéticas e das produções da cultura visual as quais os/as estudantes têm acesso.
Matéria/objeto/imagem de arte sondada e impregnada no espaço da sala de aula
e no trabalho pedagógico de mediação do olhar que, para além de ser um conteúdo
elencado em planejamentos, como foi dito, para cumprimento de determinações legais,
consubstancia-se em uma escolha política. Um trabalho pedagógico tecido em uma
apresentação coletiva “um manto” que condições aos/as estudantes de ensaiarem
uma posição de mestres das próprias histórias. Ensaios que (re) posiciona, (re) atualiza e
(re) apropria o olhar que nos torna afro-descendentes.
A sala de aula, na perspectiva inclusiva, pode tornar-se, então,
metaforicamente, a encruzilhada; um lugar de interseções em que os sentidos são
produzidos por vozes dissonantes, consonantes e multiétnicas; um espaço de tradução de
20
A máscara Gueledé pertence a uma associação de mulheres da etnia Yoruba usadas em rituais de
fecundidade, a fertilidade; aspectos importantes do poder especificamente feminino. As mulheres do ritual
geledés representam o culto das Iya Mi Oxoronga, as grandes mães ancestrais.
21
O trono nessa região (Luba - Congo) representa a autoridade sagrada e o poder sobrenatural do rei, passado
através da mulher. A representação do corpo da mulher possui o poder de guardar lembranças de deuses
anteriores, tornando o Banco o lugar de permanência da alma.
100
cruzamentos tal como o nosso tecido cultural; espaço de mediação de produção semiótica
em que não se cristalizam verdades absolutas; enfim, espaço de (re) atualizações, de jogar
com o equilíbrio da hegemonia dominante.
Há uma imagem na cerimônia do congado descrita por Leda Martins que é um
convite para (re) focalizarmos nosso olhar na esteira da sala de aula nessa metáfora.
Durante os festejos, os congadeiros, em cada encruzilhada encontrada, viram-se de costas e
caminham até atravessá-la, “pois, no anverso da máscara, em suas costas, é que o signo
significa e celebra” (MARTINS, 1995, p.59). Nessa cerimônia, a ambivalência do jogo
duplo e do jogo da aparência sustenta o espaço de (re) posição da cultura negra. De forma
sucinta, de acordo com a autora, os congados:
[...] são festivais consagrados a Nossa Senhora do Rosário, a Santa Efigênia e a
São Benedito. Os santos celebrados são católicos. Assim, na superfície, a
celebração é cristã; entretanto, na estrutura latente das cerimônias e da
organização ritual, predominam padrões de expressão africanos ou afro-
brasileiros. O ritmo da percussão, a coreografia das danças, as vestimentas e
adereços dos grupos, a técnica coral e, mesmo, as letras das músicas e cantos são
uma mistura de antigas línguas africanas e do português (grifo meu) […]
(MARTINS, 1995, p. 59).
É o cantar e dançar para os santos católicos e, com eles, as nanãs das águas
africanas e os antepassados. Nessa celebração Rei e Rainha de Congo são coroados e (re)
investidos de seus poderes no espaço de dominação branca, performatizando um ato de (re)
posição que transcende o contexto simbólico-religioso e induzindo à possibilidade de
reversabilidade de poder no contexto histórico-social adverso” (MARTINS, 2002, p.83). O
trânsito de signos vai desenhando nesses espaços a produção artística afro-brasileira,
revelando, nas rotas pelo atlântico, a cultura e as memórias recriadas no corpo, em gestos,
cerimônias e outros.
Assim, duas questões se evidenciam para serem refletidas na subseção
seguinte. A primeira é a questão implicada no processo de tradução descrito por Hall
(2005) e exemplificado na forma de expressão cultural do congado, que é inscrita também
em uma plasticidade visual. Essas e outras imagens, quando utilizadas no processo de
mediação, constroem-se, muitas vezes, em representações que criam fixidez sob o olhar e a
produção de identidade cultural.
A segunda questão, que contém a primeira, é que, tais como os congadeiros em
sua cerimônia, a sala de aula pode nos convidar também a (re) focalizar o nosso olhar. O
101
(re) focalizar o objeto na (re) instauração do passado e da memória, ao “virar de costa” e
caminhar no presente, sugere um movimento de transformação de ambos: estudante e
objeto. O primeiro se (re) posiciona em outras miragens sobre o segundo, perspectivando
outras visões. Talvez tenha sido essa uma das possibilidades, às vezes insondável no
espaço pedagógico, que a estudante do CEPJBAB encontrou para sua construção positiva
do se sentir uma “negra legítima”.
Nesse sentido, (re) focalizar o olhar para produzir visibilidade do espaço negro
e identidade cultural como identificação, no Ensino da Arte, provoca a reverberação de
vozes autorizadas, para que rasure e rompa com evocações racistas os discursos
imagéticos, como o do cartaz do Centro de Assistência e Reprodução Humana de Salvador.
Imagens que até hoje ecoam no imaginário social e que escuto nas falas de estudantes,
quando dizem, diante da leitura de uma propaganda veiculada na televisão que mostrava as
atitudes de discriminação de um guarda frente a uma situação que colocava em um
momento um menino negro correndo atrás de um menino branco e, em outro momento, a
situação inversa: “[...] eu acho que este comercial foi pra mostrar que existe muito
preconceito ainda dos brancos com os negros [...] Alguns brancos acham que os negros são
ladrões” (Entrevista Estudante do CEPJBAB).
Tal fala revela a percepção do local em que o ‘Outro’ negro é posicionado na
cultura. Revela também a consciência, o conhecimento e, portanto, a negação do discurso
de uma identidade primordial construída pela dominação. Revela ainda, concordando com
McLaren, que precisamos munir os/as estudantes de condições para a consciência crítica e
para a luta por justiça nas arenas políticas de raça, gênero e sexualidade” (MCLAREN,
2000, p. 280).
2.3 ENSINO DA ARTE: PERSPECTIVAS EM TECER O ENTRELUGAR NA SALA
DE AULA
Eu acho que não importa a cor, não importa a raça, não importa o que fazemos,
não importa tudo que todo mundo tem o seu valor, todo mundo tem sua etnia,
todo mundo tem sua religião, todo mundo tem os seus costumes, tem suas
músicas, tem tudo. Pois nenhum é melhor que o outro. (Estudante da 5ªC do
CEPJBAB)
102
Trabalhar com arte e educação, de certa forma, alimenta-nos da
utopia de explorar novas possibilidades e vontades humanas, por via da oposição da
imaginação à necessidade do que existe, porque existe, em nome de algo radicalmente
melhor que a humanidade tem direito de desejar e por que merece a pena lutar” (SANTOS,
2001, p.323). E esse direito desejado nos é apresentado na enunciação da estudante como
nutriente, para nós, de um exercício da utopia, exercício em compreender a realidade
imaginada e a realidade imediata. Refletir a condição de “que todo mundo tem seu valor”,
na fala da estudante, encaminha-nos para discutir o Ensino da Arte e Educação das
Relações Étnico-Raciais nas tessituras de um entre lugar na encruzilhada. Este, o lugar da
arte nos seus movimentos inclusivos, não deixando de considerar, é claro, as tensões no
processo de produção da identidade e da diferença no trabalho pedagógico.
A (re) educação entre negros e brancos, incluindo os indígenas e demais etnias
que constroem nosso espaço social, não é tarefa exclusiva da escola, mas algo que implica
uma articulação com as práticas e instituições sociais, políticas públicas e movimentos
sociais. Contudo, na fatia dessa articulação tomada como responsabilidade da escola, do
espaço da sala de aula e, mais especificamente, do trabalho pedagógico do Ensino da Arte
abordada nesta subseção, pensamos, de antemão, que essas são ações que precisam se
realizar conjuntamente em projetos pedagógicos, os quais impliquem as diferentes áreas de
conhecimento. Projetos que levem a escola a um “respirar coletivo” (MAFFESOLI, 2001),
por caminhos que compreendam a diferença na diferença e produzam visibilidade das
muitas vozes caladas das narrativas coloniais, ao mesmo tempo em que considere a
solidariedade, mesmo nas diferenças. Projetos os quais se construam como uma ação de
transgressão
22
, condição relevante em uma educação crítica e sensível que nos convoca a
romper com a prerrogativa de um único conhecimento validado, com o qual, muitas vezes,
aprisionamos corpos e mentes no processo de ensino/aprendizagem. É reinventar e
transformar, respectivamente, as narrativas da linguagem e da realidade social forjadoras
de identidade cultural homogênea e estereotipada.
22
“Transgressão. Talvez um dia ela pareça tão decisiva para a nossa cultura, tão parte de seu solo quanto a
experiência da contradição foi no passado para o pensamento dialético. A transgressão não busca opor uma
coisa a outra... não transforma o outro lado do espelho... em uma extensão rutilante... sua função é medir a
excessiva distância que ela inaugura no âmago do limite e traçar a linha lampejante que faz com que o limite
se erga”. (FOUCAUT, Prefácio à Transgressão. In: Linguagem, contramemória, prática. Citado em HALL
2006, p. 205).
103
Os conceitos de raça e étnico, no processo de (re) educação que impõe
aprendizagens e trocas de conhecimentos entre negros e brancos, são aqui tomados nas
considerações apresentados pelas Diretrizes Nacionais que destacam a relevância de se
entender:
(...) por raça a construção social forjada nas tensas relações entre brancos e
negros, muitas vezes simuladas como harmoniosas, nada tendo a ver com o
conceito biológico de raça cunhado no século XVIII e hoje sobejamente
superado. Cabe esclarecer que o termo raça é utilizado com freqüência nas
relações sociais brasileiras, para informar como determinadas características
físicas, como cor de pele, tipo de cabelo, entre outras, influenciam, interferem e
até mesmo determinam o destino e o lugar social dos sujeitos no interior da
sociedade brasileira. Contudo, o termo foi ressignificado pelo Movimento Negro
que, em várias situações, o utiliza com um sentido político e de valorização do
legado deixado pelos africanos. É importante, também, explicar que o emprego
do termo étnico, na expressão étnico-racial, serve para marcar que essas relações
tensas devidas a diferenças na cor da pele e traços fisionômicos o são também
devido à raiz cultural plantada na ancestralidade africana, que difere em visão de
mundo, valores e princípios das de origem indígena, européia e asiática.
(BRASIL, 2004, p.13).
Assim posto, discutimos, então, Ensino da Arte e a Educação das Relações
Étnico-Raciais, ancorando em proposições do multiculturalismo crítico, na perspectiva dos
diálogos interculturais no processo de educação. Tais proposições fundamentam-se: na
consciência dos mecanismos de poder que perpassam as relações culturais; articuladas a
partir da perspectiva das margens; situando as identidades historicamente e, portanto,
considerando a não fixidez e essencialização destas; em concepções de uma ação
pedagógica crítica, como uma ação também com sensibilidade estética; e na compreensão
de uma linguagem pedagogicamente operante nas posições de ações e de negociações do
sujeito (MCLAREN, 2000)
23
.
A discussão, aqui proposta, é ainda articulada ao tema transversal da
diversidade, posto nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Arte e na perspectiva da
linguagem da arte, considerando o cenário sociocultural da escola. Tal linguagem,
apropriada de suas dimensões no Ensino da Arte, provoca, no trabalho pedagógico, a
metáfora do “descascar a cebola” (SODRÉ, 2001), e, na experiência do segredo da
verdadeira “Grande Refazenda”, enunciada por Gilberto Gil, munir os/as estudantes de
condições para produzir inserções críticas no espaço social. De acordo com Gil:
“Para continuar resistindo, os africanos submetidos ao cativeiro e seus
descendentes tiveram que refazer tudo, refazer linguagens, refazer parentescos,
23
Essas são perspectivas, segundo Peter McLaren, que o multiculturalismo revolucionário articula a partir do
multiculturalismo policêntrico.
104
refazer religiões, refazer encontros e celebrações, refazer solidariedades, refazer
cultura. Esta foi a verdadeira Grande Refazenda”
24
(GIL, 2006).
Inserções construídas ao partilhar coletivamente a experiência nos significados
traduzidos na “Grande Refazenda”, como um grande processo de reinvenção na história da
humanidade e de superação do processo de estranhamento. O grande refazer, aqui na
Bahia, com as matizes de um arco-íris cultural que lançou sementes de uma visão de
mundo em valores e princípios da ancestralidade africana. Sementes de signos culturais de
origem africana presentificados na nossa cultura que impregnam nossos referenciais
estéticos apresentados a nós, por exemplo, na obra de Mestre Didi.
Na sua obra, contas preenchem as linhas e os espaços, e as palhas das
palmeiras tomam corpo, entrelaçando-se umas nas outras. Das suas mãos e do seu olhar,
entre movimentos de idas e vindas, emerge o espaço intervalar, entrelaçamento de dois
espaços: “da porteira para dentro, da porteira para fora”
25
. As formas surgidas dão
concretude à tradução da tradição Nagô pelas mãos e pelos olhos de Mestre Didi. A
primeira, palco de luta e lugar de resistência, e a segunda, o relacionamento entre o
passado, a comunidade e a identidade (HALL, 2005). Sobre a obra do artista sacerdote,
Dalmir Francisco
nos conta:
As mãos do artista tiram, da folha ressequida da palmeira, um a um, fios e
nervuras, preparando-os, pois que, enfeixados, serão a substância que irá
conformar um objeto, um signo, um emblema. O ato é material e concreto, mas
prenuncia algo simbólico, significativo. A folha ressequida da palmeira não
é mais folha, ewê, vida que ajuda a planta a respirar. É folha colhida ou caída,
ressequida e morta que é transformada em fios, em nervuras. Assim, a folha
ganha nova vida, nova possibilidade de viver em outra dimensão, a dimensão
radicalmente criada e sustentada pela ação humana e encarnada em objetos (...)
Mestre Didi, buscando nos fios preparados da palmeira e sua conversão em
nervuras (capilaridades que conduzem seiva ou líquidos vitais), nos búzios, nas
contas, nas peles (couro) e nas cores transcritas, para a arte sagrada / laica,
materiais e signos ou símbolos que possuem significado próprio, mas que são,
mais além, projetados e, neste projetar, recriados em contextos diferentes da
origem e, por isso mesmo, é uma obra de arte que convida, ou melhor, que
convoca a reflexão do outro e põe, em cena, a diversidade cultural, étnica, como
condição do ser humano. (Citação proferida na palestra do Prof. Dr. Dalmir
Francisco (UFMG) Mestre Didi: a história, o escrito e o sagrado, durante
24
Discurso do ex Ministro Gilberto Gil, sobre o tema central “A Diáspora e o Renascimento Africano” da
Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora realizado em Salvador em junho de
2006.<http://www.palmares.gov.br/_temp/sites/000/2/publicacoes/refazenda.pdf >. .
25
Metáfora enunciada por Mãe Senhora, “nos indica princípios de exercício de poder e territorialização que
caracterizam as relações da comunidade terreiro com o contexto social envolvente” da “porteira para dentro”
refere-se a cultura africana e “da porteira para fora” a cultura eurocêntrica. (Deoscóredes M. Dos Santos e
Marco Aurélio Luz, 2002, p.41).
105
Seminário Internacional Criatividade Âmago das Diversidades Culturais. A
Estética do Sagrado. Salvador, 2008).
Os objetos de arte de Mestre Didi, ao vivificar a folha ressequida da palmeira
na recriação da estética do sagrado, traduzindo passado no presente, “convoca”-nos a
refletir a diversidade cultural. Refletir não apenas como condição do ser humano, mas,
sobretudo, o sujeito nas condições social, cultural e histórica. A diversidade e a
multiplicidade movimentam os territórios de identidades no processo de produção social e,
portanto, envolvem relações de poder no jogo de configurações de espaços que apontam
para os processos de hibridização. Esses são processos insurgentes das relações de
conflitos nos movimentos diaspóricos e de colonização, e que também afetam o poder
dominante.
A arte de Mestre Didi, como parte da “Grande Refazenda”, constrói uma
estética da resistência política de matizes de cosmovisão africanas na Bahia. São esses
exemplos de relevantes conhecimentos que foram posicionados à margem, por não fazer
parte da visão da cultura dominante, e que foram ocultados das escolas, mesmo com o
projeto de identidade nacional erigido sobre uma dita democracia racial. Agora, após a lei
10.639/03 e na perspectiva do multiculturalismo crítico, eles são deslocados do seu silêncio
dentro do espaço da sala de aula, construindo um espaço de esperança que precisa ser
aproveitado estrategicamente (MCLAREN, 2000), principalmente para resistir às formas
pedagógicas que, muitas vezes, reduzem ou produzem esses conhecimentos não com as
vozes que estão posicionadas as margens.
O multiculturalismo, de acordo com Stuart Hall, é substantivo e “refere-se às
estratégias e políticas adotadas para governar ou administrar problemas de diversidade e
multiplicidade gerados pelas sociedades multiculturais” (HALL, 2003, p.50). Há diferentes
abordagens do multiculturalismo, não se constituindo, segundo o autor, como uma “única
doutrina”. Descreve uma série de processos e estratégias políticas sempre inacabados”
(idem, p.50).
Nesse sentido, o multiculturalismo crítico é apontado como um dos caminhos a
se buscar conduções na escola, para uma situação social mais justa, ampliando a
consciência crítica em relação a nossa sociedade, tão cheia de contradições e ambigüidades
“interétnicas” (RITCHER, 2003). Tal caminho se apresenta na dialética inclusão/exclusão,
como forma de resistência e mudança. Conforme Ritcher, referindo-se a McLaren:
106
Para ele, somente a resistência crítica à dominação cultural pode conduzir o
multiculturalismo ao seu verdadeiro caminho de humanização através do diálogo
e da paz. Da mesma forma, a educação multicultural e intercultural deve
familiarizar os (as) alunos (as) com as realizações de culturas não-dominantes,
de maneira a entrar em contato com outros mundos, abrindo-se para a riqueza
cultural da humanidade. (RITCHER , 2003, p.32)
O multiculturalismo crítico, ao propor no espaço da sala de aula a articulação
da produção de conhecimento, que emerge das “culturas não-dominantes”, lança olhares
sobre os significados e modos de vivências diversos no agir e tornar-se do sujeito na
relação com o seu mundo. Constrói-se, dessa forma, uma via para construção de estratégias
que conduzam para a produção de visibilidade do espaço de referências de afro-
descendentes e, conseqüentemente, a ampliação de espaço negro dentro de um espaço de
predomínio branco. O multiculturalismo, assim posto, assegura possibilidades de
“resistência crítica”, quando um perturbamento provoca formas de regulação do trabalho
cultural da educação operadas nos construtos do poder discursivo dominante, pela
visibilidade às multirreferências socioculturais (re) atualizadas no cotidiano de seus
sujeitos. Esse perturbamento nos confirma a relevância das imagens das cenas e da estética
do cotidiano e da cultura visual, conjuntamente às produções artísticas africanas e afro-
brasileiras no trabalho pedagógico do Ensino da Arte, por trazer as polifonias de vozes
excluídas e com elas os valores culturais dos/das estudantes produzidos em experiências
cotidianas.
Como coloca McLaren:
O multiculturalismo revolucionário reconhece que as estruturas objetivas nas
quais vivemos, as relações materiais condicionadas à produção nas quais estamos
situados e as condições determinadas que nos produzem estão todas refletidas em
nossas experiências cotidianas. Em outras palavras as experiências de vida
constituem mais que valores, crenças e compreensões subjetivas; elas são sempre
mediadas através de configurações ideológicas do discurso, economias políticas
de poder e privilégio e divisão social do trabalho (MCLAREN, 2000, p. 284).
O multiculturalismo crítico ou revolucionário considera as formas de
condicionamentos objetivos das estruturas da sociedade nas relações políticas entre o
micro espaço e o macro espaço. Situa a produção de identidade, a partir das experiências
imediatas do cotidiano. Mas essas experiências são atravessadas por uma relação social
mais ampla, mediada por um contexto global de descriminação, poder e privilégio, e que
envolve também discurso e, portanto, linguagem e representação. Nesse sentido,
107
compreendemos que o micro espaço social da sala de aula e da escola não prescinde da sua
relação com o macro espaço social na produção de identidade, e que os acontecimentos nos
primeiros são também transformados em ações que vão interferir nesse e em outros
campos sociais.
“O multiculturalismo revolucionário, como um ponto de interseção com a
pedagogia crítica, suporte à luta pelo hibridismo pós-colonial” (MCLAREN, 2000, p.
21). Sendo isso, para este autor, “um modo crítico identitário”, que se configura na
fronteira ao buscar criar um novo espaço. Esse espaço, por sua vez, nega uma
cumplicidade com os “imperativos desenraizantes da ocidentalização” e com teorias de
um autoctonismo estático natural, com idéias monolíticas” (RADHAKRISHNAN, 1996
apud MCLAREN, 2000, p. 21), sendo denominado terceiro espaço”. Trata-se de uma
estratégia de recusa do processo de dominação cultural (BHABHA, 2007).
Mclaren convida os educadores, a partir da perspectiva do hibridismo pós-
colonial, a criarem “uma pedagogia fronteriza”. Na fronteira não centros, “tudo são
margens” (2000, p.21) e resistência à fusão. O que se afina com as considerações feitas,
na subseção anterior, quando a sala de aula se torna o “entre lugar”, um espaço de
intersecções que reflete a proposição de uma pedagogia de fronteira, a partir de
considerações dos processos de hibridismo cultural (MCLAREN, 2000; BHABHA, 2006;
HALL, 2005; e CANCLINI, 2008), em que estes não diluem as tensões e contradições nas
relações de poder das diferenças que desestabilizam a fixidez da identidade. É considerado
um modo crítico na produção de identidade, incorpora o dialogismo, é polifônico e é um
processo ambivalente e antagônico.
Antes de prosseguirmos, convém expor, em um breve comentário, a nossa
contraposição em relação à sinonimização entre as noções de hibridismo e mestiçagem
tomados por alguns autores, inclusive o próprio McLaren (2000). Em se tratando,
especificamente, da nossa sociedade brasileira, tal sinonimização não é aqui considerada, à
medida que o processo de hibridização, naquilo que nos interessa discutir, apresenta
diferenciais, já citados, em relação ao que envolve e almeja o discurso de mestiçagem:
ocultação de antagonismos; unidade conciliatória dos conflitos e diferenças étnicas e
culturais; discurso de superioridade branca no que é considerado 'mistura'; dentre outros.
As considerações que focalizamos no processo de hibridação, através de citações
apresentadas a seguir, interessam-nos sob a perspectiva do multiculturalismo crítico e que
108
não correspondem, então, ao discurso de mestiçagem sobre o qual se constrói
historicamente a identidade nacional no Brasil e, principalmente, em Salvador. As noções
de miscigenação são construções político-sociais de interesses dominantes, ao defender o
discurso identitário mestiço com base na cultura ocidental hegemônica, no qual os
referenciais da matriz africana da cultura brasileira não são visíveis. O próprio sistema
educacional brasileiro é uma evidência, poisrecentemente essa matriz toma parte, ainda
em um pequeno movimento, para a grande demanda que urge a educação das relações
étnico-raciais do currículo
26
.
Hall chama-nos a atenção sobre a forma mal interpretada de hibridismo
27
, não
sendo este “referência à composição racial mista de uma população” (HALL, p. 71). O
hibridismo não se trata, pois, de uma simples mistura de identidades, considerando-o,
portanto, como um “processo de tradução cultural agonístico” inconcluso. Hall nos
apresenta como tradução um conceito que:
[...] descreve aquelas formações de identidade que atravessam e intersectam as
fronteiras naturais, compostas por pessoas que foram dispersadas para sempre de
sua terra natal. Essas pessoas retêm fortes vínculos com seus lugares de origem e
suas tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao passado. Elas são obrigadas a
negociar com as novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem
assimiladas por elas e sem perder completamente suas identidades. Elas
carregam os traços das culturas, das tradições, das linguagens e das histórias
particulares pelas quais foram marcadas. A diferença é que elas não são e nunca
serão unificadas no velho sentido, porque elas são, irrevogavelmente, o produto
de várias histórias e culturas interconectadas, pertencem a uma e, ao mesmo
tempo, a várias “casas” (e não a uma casa particular). (HALL, 2005, p.88/85)
As identidades culturais também não são “unificadas” nos sentidos dominantes
da outra “casa”. Tal processo, citado anteriormente, é aqui compreendido, tomando
como referência a nossa realidade, na noção de “Jogo Duplo”, colocado por Muniz Sodré
(2005), e exemplificado na celebração dos congados, citada por Leda Martins (1995). É
importante que Hall confirma, nessas identidades, que não assimilação ou uma 'mistura'
que dilui o outro no caldo etnocêntrico, cujos traços culturais apaguem ou percam
completamente contornos das diferenças das “casas” e, sobretudo, dos valores da “casa”,
matriz referencial, a qual se sente pertencente, no processo de tradução.
26
“Podemos dizer que o currículo tem carne e alma, isto é, é movido concretamente por uma visão de homem
e de mundo, bem como auto-eco-organiza se mediado por estas instâncias” (MACEDO, 2004, p.258).
27
Stuart Hall coloca que o hibridismo encontra argumentos que consideram ser essa forma uma “poderosa
fonte criativa, produzindo novas formas de cultura” (2005, p. 91). Mas existem outros argumentos que
podem ser essa uma forma relativista que implica perigos.
109
Nas considerações de Bhabha, temos que o processo de hibridismo:
Não é simplesmente apropriação ou adaptação, é um processo através do qual se
demanda das culturas uma revisão de seus próprios sistemas de referências,
normas e valores, pelo distanciamento de suas regras habituais ou “inerentes” de
transformação. Ambivalência e antagonismo acompanham cada ato de tradução
cultural […] (BHABHA, 1997, apud HALL, 2006, p. 71).
As noções do processo de hibridação cultural são relevantes, nesse estudo, à
medida que permitem analisar possíveis ancoragens do trabalho pedagógico do Ensino da
Arte.
O primeiro aspecto constitui uma fonte alimentadora de uma das premissas
para a dinâmica inclusiva do Ensino da Arte. Dinâmica esta que diz respeito ao diálogo
interpretativo com a imagem, no processo de mediação, que problematiza a representação
do ‘outro’ nas imagens de arte e a posição que ele ocupa nos nossos discursos. Nesse
processo, a leitura crítica da imagem é vista em Douglas Kellner (2005) como uma análise
da forma e do conteúdo nos seus modos operantes e comunicativos na vida e em situações
concretas; implica também na forma de construção de uma leitura que se amplia ao
problematizar o “porquê” de uma representação imagética (HERNANDEZ, 2000),
tomando como referencial os contextos da imagem e do sujeito espectador. Nesse sentido,
(re) focalizar o olhar no trabalho pedagógico evidencia outra compreensão sobre as
produções artísticas híbridas da diáspora, considerando os seus processos de negociações
de poder e dos sistemas de significados que envolvem essas produções. Isso significa uma
compreensão, por exemplo, em relação ao processo de tradução de produções artísticas
afro-brasileiras, rompendo com o reducionismo em que ela é colocada na sala de aula,
sobre o discurso da “mistura”. Essa forma carrega um peso político que oculta os conflitos
e as grandes desigualdades nas relações sociais entre brancos e negros, quando tomam essa
produção como resultada da mestiçagem.
A compreensão dos processos de tradução na nossa cultura possibilita-nos
interrogar esse discurso e as representações que comumente estão associados às culturas
negras. Quando, por exemplo, a CEPJBAB encaminha em seu trabalho pedagógico a
valorização da cultura afro-brasileira através das obras de Di Cavalcanti e focaliza a figura
da mulata para homenagear a mulher brasileira, consideramos que o processo de mediação,
no diálogo interpretativo com a imagem, vai ser determinante nos caminhos de reificação
ou superação dos discursos que por perpassam. Porque o próprio Di Cavalcanti
110
confirmava o discurso de mestiçagem que ajudou a construir o mito da democracia racial.
Segundo este artista: “A mulata, para mim, é um símbolo do Brasil. Ela não é preta nem
branca. Nem rica nem pobre. Gosta de música, gosta do futebol, como nosso povo [...]”
(Disponível em http://www.dicavalcanti.com.br/apresentacao.htm>). Em projetos de
legitimação política, os mitos nacionais resultam de operações de transposição e escolha
sobre qualidades, fatos e heróis que não refletem as condições de vida da maioria do povo.
Entre os escolhidos e excluídos, o cenário brasileiro compôs seu projeto de identidade
nacional na tríade negro-índio-branco, mas excluiu ou estereotipou fatos, heróis e
qualidades das duas primeiras matrizes estéticas que interessavam a todos os brasileiros,
numa síntese perversa do seu projeto de embranquecimento.
Outra repercussão desse primeiro aspecto é a de problematizarmos, no
processo de leitura a versão do autêntico e da pureza cultural na produção artística,
analisando diferentes valores presentes, inclusive nos movimentos vertical e horizontal
(SANTOS, 2005) sobre essa produção.
O segundo aspecto situa-se na revisão de referenciais e valores implicados na
negociação com a diferença do outro, no processo de tradução cultural. Tal negociação,
nos embates culturais, carrega a noção de resistência cultural, não pressupondo,
necessariamente, fusões. Podem se interpelar, significando justaposição de culturas, como
é considerado por Roger Bastide em relação ao sincretismo, na sua análise do folclore
brasileiro(BASTIDE appud. PEIXOTO, 1998). O exemplo da cerimônia do congado
exemplifica bem essa questão, porque nos permite (re) tirar as “máscaras brancas” do
festejar os santos católicos sobre a “pele negra” (FANON, 2008), que festeja seus
ancestrais e divindades, coroando seu Rei e Rainha, usadas deliberadamente ou não em
outras situações. O descascar as camadas justapostas não torna a imagem visual
transparente, mas nos possibilita atentar para as sedimentações e modificações nas
configurações dos espaços de hegemonia cultural, e problematizar as identidades
posicionadas.
Nesse contexto, (re) focalizar o olhar sobre o/a
estudante/espectador/a/produtor/a pressupõe: primeiro, compreender esse/a estudante como
sujeito afro-descendente e brasileiro que constrói sua identidade, não homogênea, nessa
dinâmica de cruzamentos e interseções, considerando, inclusive, a relação entre o local e o
global; e segundo, no diálogo de interpretação com a imagem de arte refletir, explorar e
111
valorizar o/a estudante sujeito instituinte na posição de tradutor de uma cultura. Uma
escuta das margens mediada nas negociações com as diferenças na sala de aula. A
dinâmica inclusiva do Ensino da Arte pode constituir-se o “entre lugar”, à medida que se
torna o lugar de escuta, não harmonioso, nem consensual, nos processos de leitura e
produção de imagens da arte, de diferentes posicionamentos do/da estudante como sujeito
que está e vem de algum lugar (GIROUX, 1993). Esse é o lugar das possibilidades de
realidades que são produzidas e que dão conta de nos confirmar a cultura na sua
incompletude de sentidos e valores, e como busca de relacionamento com o real”
(SODRÉ, 2005, p.41), seja ele imediato ou imaginário. Um objeto pode ser mais
significativo para aquele que se relaciona com ele, questionando o seu sentido atual.
Sentido esse que pode circular, ao ser capturado por explicações que o situem em seu
contorno sociocultural (CANCLINI, 2008).
O terceiro aspecto, analisa o trabalho de tradução do/da professor/a articulado a
partir das lições que aprendemos em elaborações de estratégias de emancipação no
processo de hibridismo. Elaborações repensadas nas considerações de Bhabha e que, ao
mesmo tempo, confirma a dinâmica da cultura na sua incompletude:
mesmo uma convicção crescente de que a experiência afetiva da
marginalidade social como ela emerge em formas culturais não-canônicas
transforma nossas estratégias críticas. Ela nos força a encarar o conceito de
cultura exteriormente aos objets d’art ou para além da canonização da ”idéia de
estética”, a lidar com a cultura como produção irregular e incompleta de sentido
e valor, freqüentemente composta de demandas e práticas incomensuráveis,
produzidas no ato de sobrevivência social (BHABHA, 2007, p. 240).
O processo de deslocamento, a convivência de povos com visões de mundo díspares no
mesmo espaço, a experiência pós-colonial de desigualdades e marginalização levam a um
repensar a cultura não aprisionada em objetos que territorializam o seu conceito e os
reduzem em cânones estéticos. Significa pensar também na cultura gestada nesse espaço
como estratégia de sobrevivência social traduzida em um processo que atua com força
criativa e que se infiltra nas formas de dominação cultural, desestabilizando-a e ameaçando
os saberes normalizados. Um processo em que o “terceiro espaço” de enunciação é o
“entre lugar” que não elude os conflitos; lugar de contestação, mudança e afirmação.
O processo de hibridação, ao nos forçar a repensar o conceito de cultura,
condição sine qua non do multiculturalismo, transpõe-nos até a imagem da encruzilhada
sendo atravessada pelos congadeiros, ou ao movimento de trançar os fios, as nervuras da
112
palmeira da obra de Mestre Didi, para pensar o trabalho de tradução do/da professor/a de
arte, constituindo-se uma tarefa relevante para o processo de tradução do significado
cultural. É mediar na emergência da condição de duplicidade ou ainda de multiplicidade
dos espaços que se entrecruzam na leitura e produção artística da sala de aula. Nesse
espaço os sentidos e valores da cultura, produtores da identidade cultural, estão em
processo de negociação com os outros espaços de travessia de seus atores sociais.
um personagem de Ítalo Calvino, citado por Anamelia B. Buoro, Sr.
Palomar, que ajuda-nos a construir uma imagem do trabalho de tradução do professor/a.
Segundo esta autora, esse personagem com nome de “observatório astronômico”, através
de seu “olho telescópio”, sabe esgaçar a densa capa que recobre o velho mundo,
aparentemente cristalizado por uma centena de condicionamentos e automatismos, para
instaurar sua novidade perene em constante movimento de recriação” (BUORO, 2002,
p.63).
A forma alegórica do “olho telescópio” significa ampliar a condição de
enxergar. Ou seja, o trabalho de tradução (re) focaliza o seu olhar sobre as imagens que
medeia, num processo que puxa os fios das urdiduras da cultura e que os problematiza,
buscando compreender por onde eles passam nas produções artísticas das culturas negras,
suas relações com os tecidos sociais e os sujeitos que as produzem, incluindo o/a
estudante.
Buoro nos fala que “as imagens ocupam nossos espaços internos e externos
(...)” (2002, p. 48). Nesse sentido, o trabalho de tradução são ações conjuntas entre os
atores pedagógicos, no espaço da sala de aula, para intervir nas suas relações com os
espaços ocupados pela imagem na realidade, seja ela imaginária ou imediata. Olhar as
imagens de arte significando-a é dar-lhe visibilidade, olhares sensíveis e pensantes
produzidos na urdidura das travessias culturais que estão acontecendo a cada minuto.
McLaren, ao tecer considerações sobre o trabalho de tradução do/da professor/
a, cita o cuidado que tem Freire em:
(...) assegurar que sua linguagem de tradução oferece ao oprimido as ferramentas
para analisar suas próprias experiências e, ao mesmo tempo, reconhecer que o
próprio processo de tradução nunca é imune à inscrição em relações ideológicas
de poder e privilégio (FREIRE e GADOTT, 1995 apud MCLAREN, 2000,
p.69).
113
A linguagem de tradução do/da professor/a de arte está emprenhada da
tradução que este faz do campo da arte e, concordando com este autor, é um fazer sem
imunidade de inscrita nas relações ideológicas. A linguagem pedagógica opera nas
posições as quais os/as estudantes atuam e negociam.
As lições de revisão provocadas nas estratégias de sobrevivência social que
emergem no processo de hibridação nos convocam a repensar as molduras que sustentam o
Ensino da Arte (mais amplamente a educação escolar), e que demanda uma revisão dos
padrões culturais que permeiam esse espaço, (re) construindo o ensino na Grande
Refazenda”, como um processo de tradução. O que significa rever as referências nas quais
as ações pedagógicas são valoradas e as regras que pautam o jogo no espaço da sala de
aula, da educação escolar, ainda regidas sobre parâmetros curriculares tão dissonantes e
incapazes de perceber os acontecimentos produzidos nos interstícios da escola. Tal jogo
que se mantém atado às respostas previsíveis e que privilegiam um olhar e excluem outras
versões.
Ao repensar as molduras do trabalho pedagógico, da escola e da educação no
processo de inclusão, não podemos incorrer os mesmos equívocos os quais nos opomos
e dimensionamos epidermicamente seu poder avassalador (re) moldurar os
conhecimentos com base numa única visão e com parâmetros absolutizantes. Pelo
contrário, acenar para uma educação afinada com uma linguagem que traduza na
multiplicidade de vozes o poema Traduzir-se, de Ferreira Gullar, como possibilidades do
refletir e refratar a arte na relação com o mundo e como um corpo se produz sem o purismo
cultural:
Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
114
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?
Entre a permanência e o de repente, uma parte e outra, experiência e
consciência estética, o tornar-se múltiplo e o vazio, operam-se reconstruções na relação
cultura, conhecimento e poder. Os diferentes corpos culturais se produzem em movimentos
pendulares em um campo conflitivo e instável, refazendo os espaços e as identidades
culturais que inclui o Outro. É arte.
2.3.1 As Tramas do Multiculturalismo nos Parâmetros Curriculares Nacionais
Historicamente, nossa formação é estriada pela negação do outro, e a escola,
como instituição que se projeta sobre um conjunto de práticas sociais textuais e visuais,
afirma essas marcas. No cenário da escola, a base de suas construções está na afirmação
de conhecimentos de valores universais que se assentam na cultura européia (CANDAU,
2002). Nesse sentido, a construção de identidade cultural e a produção de visibilidade do
espaço de referência de afro-descendentes, analisadas no sentido da inclusão sociocultural,
no arcabouço do multiculturalismo, ampliam essa base de estruturação da escola, porque
passa a problematizar essa universalização, quando se movimenta pelas margens, mas sem
guetificar os conhecimentos. Como estratégia pedagógica, o multiculturalismo nos permite
situar de forma crítica os valores e conhecimentos universais.
Assim, se a escola, na perspectiva do multiculturalismo crítico, projeta sua
estrutura no diálogo entre culturas, ela se revela um espaço fundamental, no sentido de
pertencimento pelos processos de identificação que provoca e, ao mesmo tempo,
concordando com Vilma Reis, a escola se torna:
(...) o melhor lugar para enfrentar o racismo (...), pois é neste espaço de
socialização e trocas culturais que ele se manifesta com força absoluta, pela
afirmação quase exclusiva da cultura branca, de origem européia, e promoção
institucional de muitos silêncios sobre as contribuições civilizatórias negro-
115
africanas e dos povos indígenas, primeiros habitantes do território brasileiro.
Representação de duas matrizes e muitos povos, de África e das Américas,
portadoras de memória, línguas, religiões e outras dimensões culturais, materiais
e imateriais absolutamente diversas da matriz ocidental-branca-cristã-européia,
formadas por cosmovisões bem distintas, mas nem por isso ilegítimas. (REIS,
2005, p.113).
Sendo, então, a escola um espaço de trocas culturais, negociação e produção de
cultura de visões de mundo diversas e diferentes, o trabalho pedagógico tem que assumir,
metaforicamente, sua ação de ‘cruzar fronteiras’. Como coloca Tomaz Tadeu Silva:
Na perspectiva da teoria cultural contemporânea, esses movimentos podem ser
literais, como na diáspora forçada dos povos africanos por meio da escravização,
por exemplo, ou podem ser simplesmente metafóricos. “Cruzar fronteiras”, por
exemplo, pode significar simplesmente mover-se livremente entre os territórios
simbólicos de diferentes identidades. “Cruzar fronteiras” significa não respeitar
os sinais que demarcam “artificialmente” os limites entre os territórios de
diferentes identidades (SILVA, 2000, p. 87/88).
A Lei 10.639/2003 e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana,
como marco legal, abrem perspectivas de rupturas com os paradigmas eurocêntricos,
revelando as opacidades do discurso da democracia racial no país e assumindo legalmente
a tentativa de “epistemicídio” contra os negros na nossa história, subalternizando-os e
marginalizando-os, ao ocultar e eliminar, na visão eurocêntrica, “formas de conhecimento
estranho porque eram sustentadas por práticas sociais e povos estranhos”. (SANTOS,
2001, p. 328).
Os trechos abaixo, citados do Relatório do Conselho Federal de Educação,
confirmam as imagens refletidas:
A demanda por reparações visa a que o Estado e a sociedade tomem medidas
para ressarcir, os descendentes de africanos negros, dos danos psicológicos,
materiais, sociais, políticos e educacionais sofridos sob o regime escravista, bem
como em virtude das políticas explícitas ou tácitas de branqueamento da
população, de manutenção de privilégios exclusivos para grupos com poder de
governar e de influir na formulação de políticas, no pós-abolição. Visa também a
que tais medidas se concretizem em iniciativas de combate ao racismo e a toda
sorte de discriminações. (...) A demanda da comunidade afro-brasileira por
reconhecimento, valorização e afirmação de direitos, no que diz respeito à
educação, passou a ser particularmente apoiada com a promulgação da Lei
10639/2003, que alterou a Lei 9394/1996, estabelecendo a obrigatoriedade do
ensino de história e cultura afro-brasileiras e africanas (BRASIL, 2004, p.5/6).
Citando, também, as Diretrizes curriculares Nacionais para a Educação Étnico-
Raciais:
116
Precisa o Brasil, país multi-étnico e pluricultural, de organizações escolares em
que todos se vejam incluídos, em que lhes seja garantido o direito de aprender e
de ampliar conhecimentos, sem ser obrigados a negar a si mesmo, ao grupo
étnico/racial a que pertencem e a adotar costumes idéias e comportamento que
lhe são adversos. (BRASIL, 2004, p.14).
O texto das Diretrizes deixa claro que todos precisam se ver incluídos.
Portanto, precisamos tratar essa questão sobre a luz da nossa realidade sociocultural,
observando as identidades culturais produzidas nos diferentes contextos do País e os
movimentos transculturais que interferem nessas produções.
A questão da produção da identidade e da diferença, o problema da
multiculturalidade e a metáfora do “cruzar fronteiras” vêm sendo tratados nos Parâmetros
Curriculares Nacionais de Arte, na parte geral, como tema transversal. Embora a
incorporação desse tema não tenha sido pacífica e contou com a presença de pressões dos
movimentos sociais, essa é uma posição que não atende à demanda por reparação na
perspectiva das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-
Raciais e para o Ensino da História e da Cultura Africana e Afro-Brasileira.
Desde 1998, nos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino da Arte, de
a séries (BRASIL, 1998), ratificando a Lei de Diretrizes e Bases de 1996 (BRASIL,
1996), instituiu-se o ensino artístico como obrigatório, caracterizando essa área a partir do
entendimento da arte como manifestação humana e visando ao “desenvolvimento cultural”
do estudante. Considerando-se, ainda, a arte em suas dimensões de criação, apreciação e
comunicação. Os eixos produzir, apreciar e contextualizar nos quais se articulam os
conteúdos da área de arte no processo pedagógico são ancorados na abordagem
triangular (ler, fazer e contextualizar), sendo que, ao invés de uma mera apreciação,
coloca-se a leitura de imagem como parte do processo de aprendizagem. Essa é uma
proposta formulada por Barbosa, desde o final da década de 80, tendo como fontes
alimentadoras o Disciplined Based Art Education (DBAE) americano e o movimento
mexicano de Escolas de Arte Livre.
O seu texto, de um modo geral, representou, há dez anos atrás, um considerável
avanço em proposições renovadoras com relação ao tema transversal da pluralidade
cultural. Contudo, algumas ressalvas são feitas por replicarem com as concepções que os
fundamentam, se pensarmos sobre o cenário da realidade do Brasil, e, mais
especificamente, de Salvador com profundas discriminações e desigualdades sociais; e se
117
pensarmos sobre a demanda por reparação e reconhecimento da população
afrodescendente.
O tema é citado como sendo de relevância especial no Ensino da Arte, para que
o estudante se relacione de forma “positiva com a diversidade na arte e na vida”. A
justificativa é que, no espaço de aula, “inter-relacionam-se indivíduos de diferentes
culturas”, identificados na etnia, gênero, idade e outras; considera ainda que os diversos
grupos culturais, referendando a arte nas suas vidas, podem ter necessidades e conceitos
distintos de arte e na decisão do atributo qualificativo da “boa arte”. E acreditam que essas
discussões contribuam para “o desenvolvimento do respeito e reconhecimento da
diferença” (BRASIL, 1998, p.42).
Os objetivos do pluriculturalismo no Ensino da Arte nos PCN apontam para: a
promoção do entendimento de “cruzamentos culturais pela identificação de similaridades”,
intra e intergrupos culturais; o reconhecimento da diversidade étnica e cultural na arte e na
sociedade; e para a potencialização do orgulho da herança cultural dos indivíduos, como
resultado “de processos de erudição ou de vivencias do âmbito popular, folclórico ou
étnico” (BRASIL, 1998, p.42). Apontam ainda para as possibilidades de problematização e
de confrontação das ações demarcatórias dos eixos de aprendizagem, com relação às visões
etnocêntricas, aos preconceitos, ao racismo, aos estereótipos culturais, e à ênfase nos
grupos minoritários de negros, índios e mulheres (que, no nosso caso, é majoritário). Os
objetivos da temática devem desenvolver a consciência em relação aos mecanismos de
manutenção da cultura dominante, abrindo espaço para questioná-la e examinar os
processos de transmissão de valores e de dinâmica de diferentes culturas.
Segundo o texto dos PCN, na prática da sala de aula, uma abordagem
pluriculturalista não se limita a adicionar à cultura dominante conteúdos relativos a outras
culturas, como fazer cocar no dia do índio [...]” (BRASIL, 1998, p.43).
Muito relevante a citação acima dos PCN, até mesmo para pensarmos, hoje, a
inclusão do Ensino da História e da Cultura Africana e Afro-Brasileira no currículo e para
não reduzirmos o significado dessa ação política a esporádicos conteúdos que
comprometem a Educação das Relações Étnico-Raciais positiva. As ações pedagógicas
devem ser conduzidas com base nos princípios filosóficos e pedagógicos de consciência
política e histórica da diversidade. Ou seja, o reconhecimento de contribuições das culturas
negras para a humanidade e para as produções culturais do Brasil não se restringe a um
118
discurso folclórico em que se comemoram datas, destacam-se a culinária ou algumas
expressões artísticas, mas na compreensão dos processos de exclusão da sociedade.
Para replicar ao que está posto no texto dos PCN de Arte, a primeira
observação que faço, depois de transcorridos quase dez anos, é que existem escolas da rede
pública e privada nas quais as abordagens pluriculturalistas se resumem, por exemplo, com
relação à cultura negra, à arte de Aleijadinho no Barroco Brasileiro, não se evidenciando a
presença da cultura negra nessa arte. Ou ainda, ao estudo da Arte Egípcia deslocada para
visão européia e não abordada como arte africana. O que significa dizer que a discussão
dos parâmetros não acessou a inclusão das produções artísticas das culturas negras no
trabalho pedagógico, mesmo com a grande quantidade de estudantes afro-descendentes nas
escolas públicas e com uma produção que interessa e diz respeito a todos os brasileiros.
A segunda observação diz respeito ao posicionamento transversal do tema no
currículo, sendo significativo por pensar a apreensão dos conhecimentos na dinâmica da
realidade cotidiana. que o tema passa a ser um recurso para a educação e não um
problema. E, dessa forma, dificilmente teríamos a produção artística das culturas africana e
afro-brasileira sendo priorizadas. Essas não são nem explicitadas nos conteúdos de artes
visuais e nem a transversalidade atenderia às necessidades de mudanças nos conteúdos
dominantes no Ensino da Arte, para atender à demanda por reparação e uma mudança no
posicionamento marginal dessas culturas dentro da escola, que reproduz a estrutura social
excludente e discriminatória.
A terceira réplica é para analisarmos as concepções do multiculturalismo que
perpassam o discurso no texto dos parâmetros curriculares. O discurso nos PCN Arte
reconhece a sociedade brasileira multirracial e multicultural, mas os problemas da
diversidade, como construção de identidade cultural e diferença, não são vistos como
produção social e “como tal processos que envolvem relações de poder” (SILVA, 2000,
p.96). Dessa forma, a concepção de plural pensada no “desenvolvimento do respeito e
reconhecimento da diferença” (idem, p.96) é traduzida na idéia de tolerância ao Outro,
mitificando uma relação de harmonia em uma atitude de suportar a existência da diferença.
Isso fica evidente pela ausência de uma concepção pautada em discursos que evidenciam,
sobretudo, as assimetrias de poder e privilégio, contrariando as idéias do multiculturalismo
crítico que vão além da tolerância, ao encampar “uma política de respeito e afirmação”
(MCLAREN, 2000, p. 282).
119
Os PCN constroem uma visão essencialista de identidade, confirmada no
primeiro objetivo do pluriculturalismo no Ensino da Arte a promoção do entendimento
de cruzamentos culturais pela identificação de similaridades. Na metáfora do cruzar
fronteiras”, como coloca Silva, temos a idéia do livre movimento de diferentes identidades
nos territórios simbólicos. Isso é feito, pelo texto dos PCN, para se buscar entendimentos.
Tais entendimentos se associam à idéia de um pluralismo centrado na permanência de
identidades cada um no seu território, negando os processos de tradução envolvidos no
deslocamento de identidade.
O entendimento, assim posto, não evidencia também os conflitos, as
contradições, disputas e resistências na produção da identidade e da diferença, como
também nas configurações dos espaços culturais de dominação e subordinação. Conflitos
que ressoam, nesses espaços, no nosso processo histórico escravagista de marginalização e
desigualdades, e nas relações étnico-raciais, que insistem em produzir duras sentenças tão
bem refletidas por Regina Leite Garcia:
Onde estão os escravos e seus descendentes, senão nas favelas, nas fábricas, no
subemprego, nos grandes contingentes de desempregados, exército industrial de
reserva? São eles que constituem maciçamente a classe trabalhadora brasileira.
São eles que servem à burguesia em funções subalternas. São eles os 'meninos de
rua', criação brasileira para justificar a sociedade excludente e discriminatória
que se mantém quinhentos anos. E são eles nossos alunos, discriminados na
escola e dela excluídos (GARCIA, 1995, p. 117).
Acredito que asmiopias”, às vezes anestesias, ou quem sabe amnésias sociais
frente à realidade pulsante dentro e fora da sala de aula, reduzam a visão do que está em
jogo nas relações de troca cultural daqueles que defendem a diferença como tolerância.
Ivone Richter aponta ser essa uma visão da antropologia, que a educação multicultural
como experiência humana comum:
Na opinião de Mukhopadhyay e Moses (1994), justamente porque o ser humano
é capaz de múltiplas competências culturais, a troca cultural, assim como a troca
de códigos, não requer o abandono de identificações primeiras do grupo cultural
ao qual pertence, como é preocupação de algumas minorias, nem levará
inevitavelmente à ruptura da pessoa com seus sistemas de valores (RICHTER,
2003, p.26).
Depende sob que circunstâncias e contextos sociais essas trocas culturais se
realizam. Não podemos esquecer que as identidades são dinâmicas, relacionais e históricas,
e não algo intocável nos processos multiculturais. Na ação de cruzar fronteiras culturais,
120
não há manutenção do ‘purismo’ das culturas, principalmente em momentos de
sobrevivência social. É provável que processos de hibridizações sejam engendrados. E não
podemos esquecer que as relações culturais que envolvem poder não são harmoniosas. As
trajetórias dos diferentes grupos étnicos são compreendidas nas suas experiências, a partir
de uma totalidade sociocultural e política, mas que se entrecruzam e se confrontam nas
relações com os sistemas de referências da cultura dominante.
Nesse sentido, são limitadas as proposições dos PCN no que dizem respeito ao
tema do pluriculturalismo no Ensino da Arte. Existem discursos que incluem, como os
textos analisados dos PCN, mas que na realidade excluem, por não trazer para a prática
pedagógica uma análise das estruturas e práticas objetivas e conflitantes, nas quais
vivemos cotidianamente e historicamente.
Existem formulações contemporâneas no Ensino da Arte, como a pesquisa de
doutorado de Ivone Richter sobre interculturalidade no Ensino das Artes Visuais, que
possivelmente avançam mais em uma proposta pedagógica na perspectiva crítica, no
sentido de operar nos problemas das relações de identidade e diferença. Problemas que, ao
invés de serem ocultados em uma forjada convivência harmoniosa entre relações
assimétricas, são evidenciados, no intuito de fomentar consciência da experiência que
pretende ser estético-reflexiva.
Trazer para sala de aula a Estátua Nkondi, uma máscara do Senegal, as
instalações de Antonio Olé, as esculturas de Mestre Didi ou o Pano da Costa e tantos
outros exemplos não são suficientes para garantir um trabalho pedagógico que se afirme
politicamente como estratégia positiva na produção de identidade cultural de afro-
descendentes. Não são suficientes, se a mediação dessas e outras imagens sejam apenas
mostradas como pano de fundo de outros conteúdos, informando apenas suas
características gerais, às vezes até com referências alimentadoras de estereótipos. É
preciso ir além, problematizar sobre os signos e significados produzidos sob um olhar das
culturas que essas imagens trazem a tona, e sob um olhar das culturas que constroem suas
existências na sala de aula.
Trabalhando, certa vez, em uma aula, com estudantes universitários, entreguei
a cada um umas fotografias com obras de Mestre Didi e pedi que observassem a imagem.
Percebia que em torno de cinco segundos eles/elas haviam levantado o olhar, solicitei
que tornassem a olhar e repeti essa provocação mais algumas vezes, colocando uma música
121
ao fundo. Depois pedi que levantassem uma questão a partir da imagem e anotassem.
Continuamos o diálogo com a imagem, agora saindo do silêncio e compartilhando, nesse
primeiro momento, as impressões. Porque depois nos debruçaríamos sobre as questões
levantadas e trabalharíamos, posteriormente, com as dimensões dos contextos de produção
dessas imagens e do/da estudante/espectador. Um estudante colocou que aquela imagem
observada lhe remetia a idéia de mal, e esta se confirmava pela presença da cobra
28
na
escultura. Outra estudante o interpelou se era assim que ele também via o símbolo da
serpente na medicina. Confrontamos as diferentes visões sobre a representação da
cobra/serpente nas tradições Nagô e Grega. Começamos, então, a perceber os estereótipos
construídos em relação às imagens apresentadas, associados às imagens negativas sobre o
Candomblé. Tínhamos um longo caminho a percorrer, pelo menos com alguns, até que as
esculturas apresentadas provocassem identificações ou não, mas que essas escolhas fossem
ditadas por uma consciência estética. Como construir identificações com o desconhecido,
com aquilo que se olha sem olhar?
Nesse sentido, ir além, no trabalho pedagógico, significa construir estratégias
que provoquem um perturbamento no Ensino da Arte, ao levar em conta também as
questões postas por Ernest Fischer (1987), citadas anteriormente: as identificações
acordadas pela arte com relação à busca e ao desejo de completar a incompletude de nossa
vida através de outras formas no processo de experiência estética. É envolver o olhar do/da
estudante/espectador (a) em uma experiência diante da estátua Nkondi, máscara do
Senegal, instalação de Antonio Olé, esculturas de Mestre Didi ou do Pano da Costa de
Abdias, para que esse/a construa identificações pelo desejo de se ligar ao “Outro” nos
significados que são libertados dos signos pelo seu olhar, e que se entranham das tessituras
da sua existência cotidiana. Tais mediações, na dinâmica inclusiva de afro-descendentes,
ensejam condições para munir as consciências estéticas reflexivas dos estudantes sobre um
chão onde, concordando com McLaren, o “agir criticamente também quer dizer agir com
sensibilidade estética, que, em alguns aspectos que são fundamentais, a cultura estética
molda inevitavelmente a cultura política” (MCLAREN, 2000, p.282).
Uma ação crítica com sensibilidade estética é aquela que compreende, tal como
no filme Narradores de Javé, de Eliane Caffe, a história de um local que constrói
28
Um par de cobras e a “síntese mitológica” associada a Ósùmarè , segundo Jaime Sodré (1997, p. 181),
“(…) grande arco íris, a fabulosa cobra que envolve a terra projetando-se ao infinito, retornando à mesma,
assegurando o princípio da unidade e renovação”.
122
plasticamente o espaço da cidade de Javé, coexistindo vários atores com diferentes
histórias, olhares e conhecimentos que os inclui. Lembrando que moldar se constitui
também em um movimento de transformação de uma matéria e de quem a molda. A
cultura política moldada com sensibilidade provoca rasuras e mudanças, por se construir na
experiência da percepção da diferença e compreender que a percepção do outro é diferente.
A ação crítica, assim posta, busca sensibilizar os/as estudantes, sujeitos sociais,
para problematizar sobre a produção da identidade cultural e da diferença, no cotidiano,
nas suas experiências que dão sentido ao mundo e os posicionam, opondo-se ao
etnocentrismo e confirmando que “onde sentido diferença” (SODRÉ, 2005, p. 39).
Sentido instituinte de forma de conhecimento, gerado e sustentado pela prática social
(SANTOS, 2001).
O Ensino da Arte, para tramar com o propósito de tecer o olhar inquieto, tem a
condição sensível de se realizar com criticidade. Ensino que possibilite o olhar transpor
até o Outro, experienciando se libertar da escravidão de sentidos pré-fabricados que nos
posicionou na periferia, e que Solano Trindade traduziu em arte.
Eita negro! Quem foi que disse que a gente não é gente?
29
. Solano Trindade,
poeticamente na sua pergunta, responde-nos sobre representações negativas que tentaram
nos impingir, negando e excluindo a nossa existência de “gente”. Gente que tem histórias,
memórias, uma casa, várias casas, que não se reduz as essências dos discursos das
verdades absolutizantes, gente que traduz e se traduz, gente sujeitos, gente que negocia
rotas.
“Quem foi esse demente, se tem olhos não vê”... Acreditamos Solano Trindade,
que esses são os olhos da insanidade da nossa sociedade, da visão colonialista, do
eurocentrismo, do epistemicídio ocidental. Que não o “outro”, a diferença. E que
durante anos de história, forjou identidades fixas nas representações negativas. Mas que
não refreou formas de recusas à dominação cultural, que foram engendradas criativamente
pelas culturas negras nos diferentes locais da diáspora.
O espaço para iluminarmos, no palco da escola, através da inclusão do Ensino
da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, as culturas posicionadas na periferia não
foi “concedido” e nem “permitido”, foi também construído e negociado em movimentos de
corpos negros videntes os objetos de arte –, desde o momento em que etnias de línguas
29
Solano Trindade, ator, pintor e poeta da resistência negra (1908 – 1974).
123
Bantos e Iorubas foram aqui trazidas. Tais corpos negros (re) significados sobre os olhares
de estudantes e professores/as estão na sala de aula do CEPJBAB, recontando outras
histórias que incluem as memórias, que lhes servem de armas para redesenhar a forma
como o mundo tem os afetados e como eles vão intervir e afetar o mundo.
124
SEÇÃO 3
APRESENTAÇÃO DO MANTO: A POLIFONIA DE CORES E FORMAS DO
CAMPO
Figura 11: Pintura dos/das Estudantes do CEPJBAB, Releitura da casa Ndebele, África do Sul.
125
Chegamos ao campo. A casa propriamente dita, espaço uterino desta pesquisa,
desenhada e pintada nas cores e formas que o campo se apresentou, algumas já vistas nos
rastros dos fios tecidos desde a introdução, outras expostas nas páginas seguintes; e aquelas
que podem ser vistas também na releitura dos/das estudantes de uma casa do povo
Ndebele. Povo guerreiro que constrói casas e pinta nas suas fachadas obras de arte. Nessas
últimas, as mulheres têm o privilégio de assumir a arte na perspectiva da expressão, (re)
criando com formas geométricas, em cores contrastantes talvez, uma história de resistência
vivida por eles/elas durante o apartheid.
O trabalho de (re) construir casas e pintar na sua fachada formas simples, como
corações, losangos e triângulos, apresenta-nos um campo que tem, mirando
especificamente a sala de aula, uma professora de arte junto com estudantes pintando
sonhos e projetos de novas casas que transitam e que produzem um sentido de pertença,
rasurando tantos anos de apartheid cultural gerados no espaço da escola sobre o
conhecimento das produções artísticas afro-descendentes.
Aqui nesta seção, na metáfora de tecendo olhares do ser negro, apresentamos o
manto tecido, bordado e tramado pelos fios do trabalho pedagógico, em uma sala de aula
do Colégio Professor José Barreto de Araújo Bastos. É no trabalho pedagógico, na
metáfora de tecer, que emerge em seus movimentos fios, cores e formas escolhidas pelos
(as) estudantes, fomentando inúmeras possibilidades de resultados a desafiar a criação, e
que vão produzindo os espaços de pertencimento.
Inicialmente, teço considerações sobre como a caminhada no campo foi
produzida, para depois abrirmos a porta e entrarmos na escola, na sala de aula, conhecer
seus atores e o trabalho pedagógico do Ensino da Arte na inclusão sociocultural de afro-
descendentes.
3.1 CAMINHOS METODOLÓGICOS
Para dissertar o como”, começarei narrando o apreender, parte da bagagem que
comecei a conduzir, desde o início da pesquisa, consubstanciado com o sentido do método
no longo caminho que se vai tocando. Ir tocando compreende experienciar, aproximar-se:
as coisas não passam simplesmente por nós, elas nos falam, nos tocam.
126
Nesse caminhar método –, fui me despindo das certezas que tinha, em uma
trajetória de 20 anos, como arte educadora, para me posicionar em outro lugar da sala de
aula, como etnopesquisadora. Ao atuar nesse papel, houve momentos de dúvidas: se
permitia ou não que a professora de arte que me habita também se posicionasse. Negociei
com essa condição, para que pudesse me abrir para o conhecimento nascedouro no
CEPJBAB, sobretudo ali, especificamente, naquela sala do andar, de março a novembro
de 2008, onde sentava para assistir as aulas de arte, duas vezes por semana (100' semanais),
optando por não interferir no processo do trabalho pedagógico. Reaprendi a escutar, não
apenas com o ouvido, mas com a pele, os olhos, o olfato. Aprendi, não com facilidade, a
olhar dos lugares dos outros - estudantes, professores, auxiliar de disciplina, direção,
coordenação e segurança da portaria-, fertilizando uma “escuta sensível” diante das muitas
histórias performatizadas pelos atores sociais, que perfilaram o caminho da pesquisa. O
que facilitou foi que nunca fui afeita a um excessivo saber iluminista de que tudo sei.
Quase nada sei, conhecimento é inconcluso, vai se produzindo, aproximando-se de
algumas questões e outras indagações vão surgindo.
O objetivo de investigar como o Ensino da Arte trabalha pedagogicamente a
inclusão sociocultural de afro-descendentes, no sentido de produção de visibilidade do
espaço de referência e de identidade cultural de afrodescendentes, sugeriu que os
procedimentos metodológicos de pesquisa se fundamentassem nas bases teórico-empíricas
da etnopesquisa crítica e multirreferencial (MACEDO, 2004). Busquei um método que, na
sua visão epistemológica, possibilitasse conjugar saberes, visões de mundo e
compreendesse o outro na sua alteridade; a filosofia multirreferencial, em Ardoino, ancora
essa perspectiva. De acordo com Macedo:
(…) A epistemologia multirreferencial abre-se a pluralidade das referencias, à
alteridade, ao multiculturalismo, às contradições, ao dinamismo semântico das
práxis, as insuficiências e emergências, para não perder o homem e sua
complexidade, anulados na deificação da norma científica lapidante.
(MACEDO, 2004, p.94).
Buscava, também, um caminho que pensasse o local, a micro cena na sua
complexidade pulsante que nos fala na sua singularidade, procurando enxergar a riqueza
do cotidiano de uma sala de aula.
127
E ainda, porque a etnopesquisa crítica multirreferencial, nas suas concepções
sobre a produção de conhecimento, o olhar sobre o sujeito, o cotidiano e a realidade social,
afina-se e se entranha com a visão e a reflexão que aqui construímos no chão teórico sobre
Arte, Ensino da Arte, identidade cultural, espaço e multiculturalismo; e, sobretudo, com a
visão e a reflexão sobre as quais olhamos o campo.
O método é aqui compreendido a partir de Morin (1990) como “experiência”,
“viagem e transfiguração”, “estratégia”, “ensaio gerativo”; com sua aptidão para capturar o
efêmero esculpido e “dissolvido no caminho”. O método, ao emergir da experiência e da
travessia, corporificado na estratégia que se utiliza de risco e da diversidade, tira proveito
do erro, refletindo-o e regenerando a própria teoria que o gerou. Envolve-se a teoria e o
empírico, que se alimentam mutuamente em um movimento circular. Método que se traduz
nos versos da música Tocando em Frente”, de Almir Sater e Renato Teixeira: “(...) cada
um de nós compõe a sua história / (...) levo a certeza de que muito pouco eu sei / Eu
nada sei”.
Pesquisa de cunho qualitativo, a etnopesquisa crítica fundamenta-se na
fenomenologia crítica, compreendendo o mundo na perspectiva filosófica-epistemológica
do “ser-no-mundo” e do “ser-com-o-outro”. Ir ao encontro dos grupos humanos na sua
cultura empirismo heterodoxo –; ir ao encontro da condição humana, onde os atores
sociais se (re) fazem na sua totalidade cursiva impregnados de seu viver cotidiano social,
cultural e histórico, e não são como idiotas culturais”, mas instituintes da realidade que
vive. (MACEDO, 2004).
Nas considerações de Macedo:
Ser-no-mundo, no que se refere à educação, por exemplo, é viver a realidade da
sala de aula, dos livros, do material escolar, dos professores, técnicos,
funcionários, diretores e do currículo enquanto fenômeno significativo da vida
escolar. Ademais, o aluno com o qual nos defrontamos é um Ser reflexivo, que
se preocupa consigo, com as formas de responder às situações vividas com seus
outros” (MACEDO, 2004, p. 46).
Nessa intenção, mergulhei em um estudo de caráter qualitativo, focalizando a
investigação empírica em uma sala aula de série, turma C, do ensino fundamental do
CEPJBAB. Tal estudo não descreveu modelos explicativos e generalizantes sobre a
realidade estudada, mas sim um olhar para a singularidade ancorado na etnografia
semiológica, como dispositivo metodológico. Na etnografia semiológica, as verdades
interpretadas com o estudo de caso coexistiram na relação temporal e espacial com a
128
cultura viva, no seu sentido e significado para o sujeito. Essas, no entanto, podem
encontrar ressonâncias para pensarmos de forma mais ampla na Educação das relações
étnico-raciais dentro das escolas na educação básica do país.
A questão norteadora e o objeto já definiam a abordagem qualitativa. Trabalhar
com arte, seu ensino, experiência estética, representação, espaço, identidade, enfim, com as
inserções culturais e subjetivas do ser humano nas suas relações com o mundo pedem um
olhar qualitativo, o qual o evento se manifeste na sua intensividade, em uma grandeza
suficiente para sua detecção. Dessa forma, “o dado” definido como indicador é um
momento do processo de construção do conhecimento, e que tem sentido dentro dele”
(MACEDO, 2004, p. 71).
A escolha pelo segundo ciclo do Ensino Fundamental esteve ancorada em dois
aspectos: a garantia e a regularidade de dois tempos hora/aula - semanais para o Ensino
da Arte na escola pública; o fato desse ensino ser ministrado por um/uma professor/a com
formação em uma das linguagens artísticas e a preferência desta pesquisa foi com a
linguagem de artes visuais; e pela faixa etária que contempla momentos de se estabelecer
rompimentos, (re) afirmações e negações, um momento relevante na produção de espaços
de referências e de identidades.
Quanto a opção de um estudo de caso, essa foi uma escolha que possibilitou,
além do citado anteriormente, um maior detalhamento e um acompanhamento mais efetivo
(em diferentes momentos da dinâmica de um ano letivo) de um processo do trabalho
pedagógico no Ensino da Arte e que tem sua realização prevista, nos planejamentos, para
ocorrer nesse prazo. E a escolha pela série se deveu ao fato de ser a única no colégio que
contemplou em 2008 um projeto de inclusão e valorização das culturas negras. Embora não
tenha ampliado a observação em sala para as outras três turmas, coletei material produzido
por essas, em imagens produzidas pelos/pelas estudantes e em depoimento no vídeo feito
pela professora, incluindo nas análises. Como a professora era a mesma para todas as
turmas da série, isso possibilitou um maior acesso e certo conhecimento desses
materiais.
Por entender o etnopesquisador como um artista, um “bricoleur”, autorizei-me
a criar no processo. Nessa perspectiva, algumas técnicas especificadas no projeto inicial
precisaram ser revistas frente à realidade concreta in situ da pesquisa, por se revelarem
mais adequadas. Como por exemplo, uma das entrevistas que fora pensada
129
individualmente na prática se estruturou como um grupo focal, porque as aulas haviam
sido suspensas por falta de água e os/as estudantes foram dispensados naquele dia. Surgiu,
então, a oportunidade apresentada pela professora de português para que eu me reunisse
com um grupo da série. Os/as estudantes se dispuseram a ficar na escola e conversamos
durante 2h 30' na sala de reunião da coordenação.
Outro encaminhamento metodológico que o campo convidou-me a um
realinhamento no percurso foi no caráter de observação. Antes era participante periférica,
mas, após a mudança, dentro das distinções apresentadas por Macedo, citando estudos de
Adler e Adler (não identifico especificamente dentro das tipologias citadas), o caráter da
observação participante foi realizado. Segundo Macedo, ao distinguir três implicações na
observação participante do campo de pesquisa:
Na observação participante periférica (OPP), são os pesquisadores que
escolhem este papel ou esta identidade consideram que um certo grau de
implicação é necessário, entretanto, preferem não ser admitidos no âmago das
atividades dos membros. Procuram não assumir nenhum papel importante na
situação estudada. (…) Quanto à observação participante ativa (OPA), o
pesquisador se esforça em desempenhar um papel e em adquirir um status no
interior do grupo ou da instituição estudada, o que lhe permite participar
ativamente das atividades como um membro aceito. (...) Quanto à observação
participante completa (OPC) pertencimento original ou por conversão.
(MACEDO, 2004, p. 156/157).
A observação participante periférica me implicava como etnopesquisadora, por
envolver também o vínculo com o objeto de pesquisa no meu papel de arte/educadora.
Apenas por adentrarmos em um grupo, ainda que nos mantenhamos em silêncio, ele é
dizível, não somos invisíveis e nem neutros, portanto, modificamos a configuração daquele
espaço e a sua dinâmica.
Quando, em alguns momentos, comecei a ser solicitada a ter outra
participação, considero que desempenhei papéis importantes em eventos significativos no
projeto de inclusão das culturas africana e afro-brasileira do situs da pesquisa.
Na observação participante ativa, identifico, na cumplicidade entre pesquisador
e campo, um dado relevante sobre a qual a observação desta pesquisa se deu. A aceitação
da minha presença, sobretudo na sala de aula, tornava-me um membro”, sem que
assumisse ativamente uma função permanente em outro papel. Contudo, esporadicamente
estive em outro papel.
Assim, inicialmente, minha opção metodológica de não interferência no
trabalho pedagógico foi, em momentos, rasurada com a solicitação do campo. Durante as
aulas a professora e ou os/as estudantes pediam minha opinião sobre um assunto e fui
130
convidada a participar em atividades do projeto África. Participei como jurada na
atividade Garota & Garoto de Ébano, substituindo uma professora havia faltado; fiz uma
oficina de máscaras em duas aulas na turma da observação, parte da produção de ateliê do
projeto; ajudei a professora de arte a identificar sites e livros para coleta de material sobre
arte africana; e indiquei eventos que aconteciam na área de arte e de arte afro-brasileira, a
exemplo do seminário sobre criatividade na estética do sagrado na obra de Mestre Didi, o
qual ela veio a participar.
Ressalto que tais reposicionamentos não fragilizaram ou negaram o rigor da
pesquisa, muito pelo contrário, a capacidade crítica de avaliar e retomar o percurso é que
qualificou esta também como um processo dialético, ao dar visibilidade, no curso da
pesquisa, às contradições existentes nas questões humanas.
O processo de observação, em sala de aula, ocorreu em um período equivalente
a quarenta e quatro horas/aula, contados a partir de março. Além de: quatro horas/aula, em
encontros anteriores, para estabelecer contato com a direção da escola e as duas
professoras de arte e para conhecer o projeto do Ensino da Arte na inclusão da história e da
cultura africana e afro-brasileira; cinco horas/aula, distribuídas em dois sábados, de ensaio
e apresentação do desfile “Garoto & Garota de Ébano”; e doze horas/aula de entrevistas.
Foram quarenta e nove idas ao campo. Em todas essas idas, dados que me informavam as
questões de observação eram coletados no diário de campo e transcritos.
Mantinha também contato com os/as estudantes, não computado como hora de
observação, durante os intervalos e em horário vago, quando chegava ao colégio antes do
horário das aulas de arte. Tais contatos não se restringiam aos/as estudantes da sala situs da
observação. Ainda em outros intervalos estive na sala de professores. Esses eram
momentos que me aproximavam da dinâmica da escola.
Os dados que foram coletados durante as observações em sala de aula da
série turma C, nas atividades que envolviam o projeto interdisciplinar Áfricas: um
continente a ser descoberto e nos contatos mantidos fora da aula, com registros escritos no
diário de campo e outros gravados em um aparelho de MP4, descreviam, detalhadamente,
as aulas, as atividades, as falas e as interferências observadas. A descrição envolvia o que
ocorria na sala e nas suas imediações, e que dizia respeito ao trabalho pedagógico no
Ensino da Arte, o processo de mediação, as imagens da produção artística das culturas
negras e de temas relacionados com a discriminação e os discursos pedagógicos
131
produzidos através das imagens. As transcrições digitadas eram acrescidas de novas
observações pertinentes à questão norteadora e aos objetivos, imediatamente após retorno
do campo.
Através da análise documental nos subsídios teóricos de apostilas e textos,
planos de curso, projetos pedagógicos interdisciplinares de 2005 a 2008 de inclusão das
culturas africana e afro-brasileira –, considerei, nos objetivos, propostas, conteúdos,
justificativas e procedimentos metodológicos para o Ensino da Arte, abordagens que os
sustentam e entendimentos sobre a arte, concepções sobre a produção de arte das culturas
negras e sobre o/a estudante espectador e produtor de arte. Ainda nos documentos, foram
identificadas as imagens que foram escolhidas para mediação. Essa análise possibilitou
discutir os subsídios teóricos da 'proposta pedagógica', na perspectiva da práxis pedagógica
no seu movimento inclusivo.
Ainda como dispositivos de coleta de dados da investigação empírica, as
técnicas projetivas visuais foram relevantes para a área dessa pesquisa na produção de artes
visuais, pois possibilitou analisar, nos registros imagéticos, que olhares constroem as
representações sobre as culturas negras e como ela é posicionada: nas releituras produzidas
pelos estudantes da série do locus de observação e de estudantes de outras turmas dessa
série; nos materiais mediados ilustrações dos livros de história lidos em sala, cópias de
imagens de arte e um vídeo registro de produção de ateliê realizado pela professora nas
aulas do projeto de inclusão deste ano –; e nas fotografias das produções dos estudantes
nos projetos de 2005 a 2007. Essas foram analisadas nas representações tecidas em relação
às categorias espaço e identidade cultural. Para isso, considerei o contexto da imagem a
partir do seu projeto gerador (explicitado nos documentos); e para as imagens situadas no
período de observação da pesquisa, incluí referências construídas nos diálogos
interpretativos mediados em sala de aula e coletadas no diário de campo. Os registros de
imagens foram cedidos pela professora de arte.
E, finalmente, a entrevista semi-estruturada, que possibilitou momentos mais
livres de interação entre pesquisador e entrevistado sobre as categorias evidenciadas. Essa
entrevista permitiu um diálogo de forma mais franca para as questões que emergiram, as
quais essa técnica de coleta nos permitiu, na sua especificidade, provocar. Através dos
depoimentos de estudantes, compreendemos como eles têm se identificado com as
produções artísticas das culturas negras, e sobre quais discursos eles constroem as
132
representações do negro nos espaços sociais. No depoimento da professora de arte foi
possível identificar seus aportes teóricos e sua visão sobre o ensino de arte como área de
conhecimento, e, a partir desses, como provocou as mediações sobre as imagens das
culturas negras.
A entrevista foi realizada com um número menor de participantes, por ser
realizada coletivamente, e envolveu dois grupos de estudantes e duas professoras (uma de
arte da turma da observação e uma de português). A professora de português é uma das
responsáveis pelos projetos interdisciplinares e também me apresentou o colégio e sua
história. As entrevistas transcorriam tanto em ambientes ruidosos, nos horários de intervalo
ou vagos, como em sala da coordenação, com uma maior privacidade. Com a professora de
arte tive quatro momentos para conciliar com o seu tempo e com a necessidade de outros
esclarecimentos sugeridos após a pré-análise dos depoimentos.
Um dos grupos entrevistados era composto por 10 estudantes, que cursavam a
série, foram escolhidos aleatoriamente entre aqueles que haviam participado no ano
anterior (2007) do projeto de Arte intitulado “Os Didi da Bahia”, com objetivo da
valorização da cultura afro-brasileira. Essa entrevista apresentou características de grupo
focal, porque, além de ser realizada coletivamente, todos discutiam e interferiam, muitas
vezes, a partir das colocações que traziam sobre o tema apresentado, que fora conduzido
sobre quatro questões: Perfil do grupo, o que foi trabalhado em arte sobre as culturas
africana e afro-brasileira; o que havia mudado depois do projeto de arte afro-brasileira; e
comentar sobre representações do negro na mídia, as quais eles tiveram acesso e que mais
chamara a atenção (em propaganda, filme, outras).
As entrevistas com o grupo de estudantes da sala de observação da pesquisa
(5ªC), também com estrutura de grupo focal, foram realizadas, durante quatro horas/aulas,
divididas em dois momentos. No primeiro momento, início de junho, com aqueles que
haviam feito os desenhos da família (15 estudantes) a partir da história lida em sala que
abordava a questão do racismo, por ser a única produção de ateliê, de interesse da pesquisa,
realizada até o momento da entrevista; e entre aqueles que se disponibilizaram a participar,
após o convite. Após o perfil do grupo (12 estudantes), eles/elas falaram sobre seus
desenhos e a relação com as ilustrações e o texto da história, e o que eles/elas estavam
vendo nas aulas de arte que achavam importante sobre as culturas africana e afro-brasileira.
No segundo momento, realizei a entrevista no final do mês de outubro quando findava as
133
produções em arte vinculadas ao projeto de inclusão das culturas negras. Optei em manter
o mesmo grupo, já que no primeiro momento não havia conseguido que os/as estudantes se
pronunciassem sobre a questão dos objetos de arte africana e afro-brasileira nas aulas de
arte. Eles/elas foram ter acesso as informações e imagens dos objetos de arte dessas
culturas a partir do mês de setembro. Ainda foram analisados os depoimentos de quatro
estudantes, no vídeo realizado pela professora sobre as imagens escolhidas para o projeto;
e de três estudantes que ganharam o concurso Garoto & Garota de ébano, atividade do
projeto de inclusão e valorização das culturas negras do CEPJBAB.
Para a análise dos dados coletados em um primeiro momento, pensei na análise
de discurso, mantendo uma coerência com bases teóricas de fundamentação desta pesquisa,
no que se refere ao olhar sobre os locais de discursos e de enunciação. O não domínio de
conhecimentos sobre essa forma de análise, para tratar dos dados coletados proveniente de
diferentes técnicas que me garantissem um rigor na qualidade nas análises dos dados,
levou-me a optar pela análise de conteúdos. Essa se construiu como um caminho de
diálogo com o campo, no qual meu olhar sobre os textos verbais e não-verbais dos dados
não os consideravam apenas na sua materialidade, encerrando-os em um sentido e uma
interpretação que se apresentasse de forma transparente, mas reconhecendo as suas
opacidades e escutando outros sentidos que envolvem os sujeitos dos discursos, os
contextos socioculturais do campo e do contexto mais amplo da sociedade e da cultura.
Todos os dados coletados foram da fase de pré-análise, organizados em tabelas
por três temas, mantendo o texto original na íntegra e as imagens de arte coladas com
referências, tendo ao lado uma coluna para observações. Classifiquei os temas em: 1.
Proposta pedagógica do Ensino da Arte; 2. Ensino da Arte e inclusão das culturas negras; e
3. Representações sobre as culturas negras.
Em um segundo momento, fazendo leitura e observações, subdividi o tema 1
em concepções/trabalho pedagógico, concepções sobre a arte, concepções sobre o/a
estudante espectador/a/produtor/a, imagens referência as culturas negras; e os temas 2 e 3
em Imagem de arte e diálogo interpretativo. No terceiro momento e nos seguintes,
mantendo a mesma estrutura, fui fazendo um novo filtro e acrescentando e/ou retirando as
observações de análise (figura 12). Passo a explicar a seguir, de forma mais detalhada, o
processo de análise.
134
DINÃMICA INCLUSIVA
Figura 12: modelo ilustrativo da tabela de análise
A categoria denominada 'dimensão inclusiva do Ensino da Arte' foi analisada
no estudo de caso, nos elementos de análise 'proposta pedagógica', 'imagem de arte' e
'diálogo interpretativo. Sendo que os dois últimos elementos foram considerados sobre as
produções artísticas das culturas negras e sobre os temas de discriminação racial; e o
último elemento contemplou os processos na leitura de imagem, na fruição e na produção
em arte. Busquei identificar, nesses elementos, as relações com as categorias de espaço e
de identidade cultural, as quais constituem a noção de inclusão sociocultural no recorte
dessa pesquisa: quais espaços têm sido visibilizados no processo de mediação do Ensino da
Arte, entendendo esses produtores de identidade cultural?
No elemento 'imagem da arte', compreendendo que a imagem não é neutra e
que, portanto, sua escolha é política. Desdobramos na sua análise: a representação social
do negro, ou seja, como as culturas negras foram representadas nessa imagem e que
discursos atravessaram essa imagem; a ampliação do seu valor estético, as imagens
escolhidas no trabalho de mediação sem exclusões nos desígnios de erudita e popular, já
que muitas as produções artísticas negras são produzidas nos espaços populares e não nos
135
espaços de dominação; e as articulações com os demais conteúdos para compreender o
trânsito e implicações da imagem escolhida com os conteúdos e temas elencados no ensino
que dizem respeito às culturas negras.
O elemento 'diálogo interpretativo' teve dois referentes: as ações da professora
de arte, voltadas para o olhar do estudante espectador e produtor de imagem; e na ação do/
da estudante em suas intervenções nesses papéis. As construções, no trabalho pedagógico,
entre a professora e os/as estudantes dos processos de leitura, fruição e produção foram
determinantes para se analisar as formas das ações. Qual a participação do corpo nesse
processo? Como são lidas as representações sobre as culturas negras nessas imagens?
Como essas culturas estão sendo representadas pelos estudantes, suas problematizações
sobre essas imagens e reificações? E que discursos visuais e textuais professora e
estudantes inferiram sobre as imagens escolhidas.
Considerei também para análise o elemento 'proposta pedagógica' do
CEPJBAB, no qual pude analisar a presença de subsídios teóricos que dão sustentação às
concepções sobre a mediação do olhar no Ensino da Arte discutidas do quadro teórico nos
temas: dimensão inclusiva da arte; arte como expressão e impressão; e representação social
da imagem da arte. Tais concepções são modeladoras dos movimentos de inclusão,
desenhando os espaços de pertencimento desse ensino.
Cabe ainda ressaltar que os elementos que delimitaram, nesta investigação, o
Ensino da Arte na linguagem de Artes Visuais em sua dinâmica inclusiva foram
observados na sala de aula, mirando-se o que se constitui as ações da professora e dos
estudantes, e na relação do cotidiano da sala de aula, que envolve ambos. Assim, as
histórias perfomatizadas na sala de aula do Ensino da Arte, sítio circular da observação,
teve na questão de pesquisa a solicitação de um olhar para o processo de mediação no
trabalho pedagógico observado nas imagens de arte escolhidas e nas formas de abordagem
crítica, sensível e reflexiva, os quais se operaram ou não esses diálogos interpretativos
produzidos pelos estudantes e pela professora de arte na construção e intervenção de suas
realidades. Essas histórias também identificam e verificam quais os espaços de produção
artística das culturas negras estavam sendo (re) visitados, as identidades culturais
produzidas e as identificações provocadas.
Percebi que o tempo para análise de dados não foi suficiente para um maior
aprofundamento das preciosidades que emerge do campo e para uma maior discussão com
136
chão teórico construído. Fiquei em campo até o mês de novembro, porque muito alimento
ainda seria dado a pesquisa, a partir dos diálogos interpretativos construídos com as
imagens da arte das culturas africanas. E embora tivesse iniciado o trabalho de análise
dos dados, principalmente dos documentos, desde o mês de maio de 2008, o trabalho com
o material, na sua totalidade, foi processado em dois meses (novembro e dezembro).
Apresento, então, na próxima subseção, descrição, análise e discussão se
entrecruzando, considerando três momentos (proposta pedagógica do Ensino da Arte,
Imagens de Arte e Diálogo interpretativo), para refletir e responder como o Ensino da Arte
produz visibilidade do espaço de referência e identidade cultural de afro-descendente,
consciente de que tais reflexões e respostas não se apresentam como um conhecimento
concluído, até porque conhecer é produzir um encontro de visões e versões.
Reafirmo, com esse estudo de caso, um tratamento único que possibilitou
descobertas para o trabalho pedagógico do Ensino da Arte, além daquelas específicas do
problema de pesquisa apresentadas nas considerações finais. O campo permitiu que o
quadro teórico fosse nutrido com as suas revelações, indicando a necessidade de sua
revisão. Por exemplo, quando levou às reflexões sobre o multiculturalismo crítico a
evidenciar, nos processos de hibridização, ancoragens para discutir subsídios teóricos no
trabalho pedagógico desse Ensino na Educação das Relações Étnico-Raciais. Os nutrientes
para tais subsídios foram apresentados nos discursos e representações do campo sobre a
identidade cultural das culturas negras e seus espaços visibilizados.
Optei em não anexar as tabelas de análise dos dados colhidos no campo,
porque eles são citados nesta seção; bem como aparecem desde a introdução da
dissertação. Também, não limitei a explicitação dos caminhos metodológicos apenas à
esta subseção. A própria escolha metodológica me permite compreendê-la e apresentá-la
materialmente em toda extensão deste texto, mas não linearmente. Assim, informações
sobre a o campo são apresentadas na introdução e na subseção seguinte.
A não linearidade foi também uma qualidade no processo que configura as
etapas desta pesquisa, fato que considero relevante. momentos de entrecruzamento
entre elas. A revisão de literatura, por exemplo, teve um momento mais definido, antes da
ida ao campo, mas foi necessária sua retomada após a qualificação. Acrescento ainda, que
a qualificação presencial foi uma etapa riquíssima por redefinir alguns caminhos da
pesquisa; bem como o trabalho orientado que possibilitou uma nova mirada sobre o projeto
137
e foi a substância que nutriu a segunda seção. Nesse sentido, entre idas, vindas e novos
caminhos, a pesquisa foi produzida nas seguintes etapas: apresentação do projeto, trabalho
de orientação, revisão de literatura, escolha e definição de um campo, ida ao campo,
observação e coleta de dados, qualificação da pesquisa, análise de dados, (re) escrita e
finalização do texto da dissertação, revisão do texto e defesa da dissertação.
Assumo revelar o nome do colégio campo, deste estudo, com a sua
aquiescência o mesmo que poderia fazer em relação ao nome da professora de arte, mas
tomo a decisão de apresentá-la com outro nome, por considerar desnecessário tal
identificação. Os nomes dos/das estudantes também não serão mencionados.
Erros e acertos sempre há, porque trabalhamos com questões humanas. E
talvez seja um erro não apontá-los agora. Mas primeiro vou precisar me distanciar do meu
objeto que mergulhei e ainda não emergi totalmente e respirar, para que novas (re)
avaliações, além daquelas feitas continuamente no curso da pesquisa, possam ser operadas
com um olhar renovado e, conseqüentemente, com rigor. Entremos no colégio.
3.2 DO MATAGAL, VIA ESCOLA DE PLÁSTICO À ESCOLA MODELO
Aqui na escola eu me sinto muito alegre e muito feliz porque eu estou estudando.
Porque muitas crianças não podem estudar e brincar que os pais não deixam [...]
Muitas crianças trabalhando hoje em dia. E aqui na escola eu me sinto muito
legal [...] muito feliz porque Deus me deu este dom pra mim estudar [...] pra meu
pai ter pra mim estudar. (Entrevista Estudante da 5ªC do CEPJBAB).
A pesquisa de campo representa o espaço sagrado do pesquisador, envolve-nos
no segredo que vamos apreendendo e nos encantando, ao deixarmos nos impregnar pelo
pulsar e o respirar daquele local. Os primeiros dias de estranhamento e certo torpor,
provocado por uma alienação em relação ao local, faz-nos caminhar pisando 'em ovos', e
com um olhar ansioso na busca de indícios que lhe sugira aproximação com as suas
questões. Mas aos poucos as coisas vão chegando e percebemos nos metamorfosearmos no
nosso papel de pesquisador.
As mudanças que se operam nas paisagens humanas, culturais e em nós
mesmos, durante todos os percursos que nos levam e nos trazem, nas idas e vindas, são
impressionantes. Essa é talvez a melhor palavra impressionante, impressionista, impressão.
138
Como pesquisadora, experienciei a fruição de todas as imagens vivificantes que a imersão
no campo me provocou. A cada dia, no simples domínio do trajeto até o Colégio Estadual
Professor Barreto de Araújo Bastos (CEPJBAB), percebia que avançava no meu espaço de
pesquisadora e minhas referências se ampliavam.
Nos movimentos de idas e vindas ao lócus da pesquisa, vivenciei breves
retornos a casa, ao passar por caminhos que guardavam memórias de infância. Essa
travessia provocava insigts que me levavam a percepção da força do objeto nas paisagens
revisitadas, ao suscitar nossas reminiscências. Pude, então, na experiência estética diante
de quadros vivos, das imagens de meu trânsito até o lócus da pesquisa, confirmar o lugar
que me encontrava e de onde seria autorizada e me autorizaria a falar e a escrever.
A Escola fica localizada no bairro de São Caetano, caminho entre a Liberdade
e Pirajá, tendo sido passagem para os combatentes no 2 de Julho. Também era o início da
Estrada Velha do aeroporto. São Caetano possui, de acordo com dados do mapeamento
CEAO UFBA (http://www.terreiros.ceao.ufba.br/terreiro/config), 22 terreiros.
A chegada ao Colégio Estadual aconteceu após ter percorrido 15 escolas da
rede Municipal de Salvador e ter me deparado, para minha surpresa, com a não inclusão do
ensino da cultura afro-brasileira e africana no Ensino da Arte, nas séries de a do
Ensino Fundamental. No primeiro momento da pesquisa, almejei as escolas municipais em
função do investimento, materiais impressos, formação de professor (a), que havia sido
realizado pela Secretaria Municipal de Educação, no sentido de assegurar no espaço
escolar projetos para Educação das Relações Étnico-Raciais. Em uma das escolas, a
professora de arte disse desconhecer os materiais da Secretaria.
Aceitei, finalmente, o convite de uma professora de Língua Portuguesa,
militante na educação das relações étnico-raciais, para conhecer o CEPJBAB, colégio que
trabalha desde quando era ainda chamada “Escola de Plástico” e “Escola de Papelão”.
Falava e elogiava as propostas das exposições de arte e os trabalhos pedagógicos
envolvendo a Lei 10.639/03 do colégio.
Posso dizer que tive um ‘encontro’ com o CEPJBAB, que trilhava um
caminho de três anos com projetos interdisciplinares, envolvendo conteúdos da cultura
Afro-Brasileira, mesmo sem investimentos da Secretaria de Educação do Estado da Bahia,
no sentido de criar condições de implantação da Lei 10.639/03. Encontrar o CEPJBAB
139
significou, para mim, sair ao encontro, lembrando Lefebvre (LEFEBVRE apud MACEDO,
2004). Deixei que esse espaço se apresentasse para mim.
Essa apresentação foi anunciada, no primeiro momento, pela professora de
português que se tornou uma espécie de guardiã da memória e da história do colégio. Foi
em um sábado ensolarado, durante a entrevista, que ela contou essas histórias como uma
griot
30
e suas palavras iam se movimentando em formas viscerais, com um intenso sentido
de pertencimento àquele espaço.
Era o ano de 2000, quando a primeira professora de português chegou ao
espaço onde funcionaria o CEPJBAB. Espantou-se ao ver que não havia escola, mas um
terreno baldio. Terreno considerado no bairro de São Caetano local de desova. A partir
daquele momento, ela disse ter compreendido o que era escola: compreendeu que a escola
também é a nossa implicação como professores quando nos sentimos pertencentes ao seu
espaço. Inicialmente, foi uma instalação de fórmica, daí porque ganhou o nome de “Escola
de Plástico”. Como nessa fase de construção às vezes faltava luz e conviviam com o
barulho, costumavam cantar, brincando com a situação através de trechos da música
“Barraco”, de Tenison Del Rey:
Pra quem mora lá no morro
Pra quem vive nas encostas
Onde o diabo faz fogo
Pra onde deus virou as costas
Esse barraco vai cair
Eu não me canso de avisar
Ele não tem alvenaria
Não tem coluna pra apoiar
Ai, eu não quero ver o dia
Dessa zorra acabar
Esse barraco vai cair...
Ôôôôô, vai desabar
Ôôôôô, não dá pra viver lá
Além das portas que não fechavam, a estrutura de divisórias em fórmica
permitia que as vozes das salas de aulas atravessassem, interferindo no outro espaço de
aula. Em 2002 foram para outro espaço, também nas mesmas condições físicas, até a
conclusão das obras de construção da escola. Nesse espaço, que era “um penhasco”,
30
O Griot em tradições orais de vários povos africanos é o guardião da memória, depositário de histórias, de
testemunhos ou de tradições que ele conta. Um dos símbolos representativos de todos os narradores.
140
tiveram que funcionar duas escolas ao mesmo tempo, a Escola SC e o CEPJBAB, que
alternavam o calendário pedagógico, em rodízio semanal. Essas escolas foram
posteriormente transformadas em um único colégio, quando inauguraram a atual
arquitetura do CEPJBAB.
O CEPJBAB parece ter, no curso de sua história, uma tradição de luta,
organização e interferência da comunidade escolar e do entorno. Tal qualidade pode ser
apreciada desde a sua criação como resultado de reinvidicações dos moradores do bairro
de São Caetano e para atender, pricipalmente, pela sua localização, às comunidades do
Calabetão, Marechal Rondon e Pirajá. Essa memória de luta é evocada nas lembranças da
narrativa da nossa griot, quando da mobilização dos/das estudantes, articulada junto com
professores e funcionários, para a preservação de uma grande árvore “e ela está até
hoje!”. Essa intervenção mudou a concepção do projeto inicial.
Nem a mudança do nome da escola, que passaria a se chamar Luis Eduardo
Magalhães pela estrutura arquitetônica dos padrões de escola modelo, foi aceita pela
comunidade escolar. Manteve-se o seu nome inicial. Procurei alguma biografia que nos
informasse sobre essa personalidade que o nome ao colégio, mas não encontrei
nenhuma informação. No momento, a bibliotecária investe em uma pesquisa que responda
a essa questão, que recentemente o diretor da Escola descobriu um parente distante do
professor, cujo nome da escola lhe homenageia.
A fachada do colégio se desnuda para rua, e o que antes era sua grande
entonação ser uma escola aberta, escola sem muros –, hoje se tornou um grande
problema, deixando-a vulnerável em conseqüência do aumento da violência na cidade. Sua
posição, no alto, permite que ela apareça inteira, na sua fachada, para quem passa pela rua.
As grades são um convite para que as atravessem de um lado para o outro, da rua para
escola e vice versa. Os próprios estudantes fazem uso desse artifício. Essa situação de
vulnerabilidade tem provocado algumas situações desagradáveis, como roubos de
equipamentos e pessoas que entram para pichar. O que se constitui, de fato, um momento
de reflexão, repensar se deve ou não ser construído um muro, como questiona a nossa
griot: “isso vai interferir no nosso projeto?“. Possivelmente, que a proposta é de uma
escola aberta, “a rua vê a escola, era uma proposta”.
141
A violência da região esprovocando uma oscilação no número de estudantes
na escola, inclusive diminuindo a turma do noturno. Para a professora do CEPJBAB, a
escola:
Ela está num ponto estratégico em termos de violência. Por quê? Porque ela está em
uma avenida que tem saída para todos os lados, e uma saída também estratégica que é
a BR. E isso é crucial na vida da escola. Quando a violência explode, que é o que está
acontecendo agora, o aluno também fica vulnerável. Ele é assaltado, é violentado, é
machucado, então ele não quer ir para aquela escola (entrevista Professora de
Português do CEPJBAB).
As brigas e rivalidades entre as comunidades que freqüentam o colégio
também são motivos pontuados pela professora como um problema da diminuição do
número de alunos em sala de aula. Embora seja reconhecido pela comunidade como um
colégio modelo. Fato que se confirma quando a professora conta ter ouvido de uma
estudante ter realizado o sonho de estudar no CEPJBAB. Sonho acalentado quando
passava pela rua e olhava o colégio, ansiosa pelo dia que estaria lá dentro.
A direção, vice-direção e coordenação pedagógica são consideradas
democráticas, participativas e com uma boa escuta dos professores. Estão afinados com a
luta da Educação das Relações Étnico-Raciais e investem no currículo da escola para a
inclusão das culturas africana e afro-brasileira.
A professora diz que tem percebido uma fala recorrente do desânimo do corpo
docente. houve um momento, dois anos atrás, que os professores faziam aula de dança
entre um turno e outro, o que serviu como fonte de motivação, permitindo ao professor não
apenas entrar na escola, dar sua aula e sair, mas “começar o outro turno renovado”.
Pontua ainda sobre a importância da idéia de pertencimento e a necessidade de
se trabalhar a construção da identidade do professor com a escola. Isso tem gerado
momentos de reflexões entre o corpo docente, no que ela traz categoricamente: “eu quero
ver meu colega motivado, porque isso vai gerar mudanças para vida dele e do aluno”. Com
a migração de professores antigos e a chegada de novos, percebe que eles não se sentem
pertencentes àquele local, não conhecem a história do local e se sentem desanimados.
Acredita que eles precisam considerar o espaço como sendo também deles. Mas para isso é
preciso que ”eu me reconheça enquanto personagem daquele palco e não um professor
que sua aula e tchau. Mas é um espaço de construção, o meu espaço” (entrevista
Professora de Português).
142
Na sua estrutura física, o colégio tem, hoje, um quadro de pessoal formado por
trinta e oito (38) funcionários que atuam na área de secretaria e limpeza; oitenta e oito (88)
professores (as), que possuem, na sua maioria, licenciatura na área que atuam e pós-
graduação. Quase 60% (sessenta) do quadro de professores têm apenas oito (8) anos de
serviços público estadual e foram nomeados para o colégio quando ainda era matagal, e
conviveram diretamente com o processo de construção do Colégio. Segundo a professora:
Pelo fato de serem professores novos na rede estadual verificamos certa facilidade em
produzirmos materiais e realizarmos atividades gratificantes e significativas. Os
mesmos apresentam uma disponibilidade para a realização de projetos e discutir ações
para melhoria da prática educativa. (entrevista Professora de Português do CEPJBAB)
O colégio tem matriculado 2.368 (dois mil e trezentos e sessenta e oito) alunos,
que estudam distribuídos em três turnos: no matutino e noturno funciona o ensino médio
regular; e no turno vespertino o ensino médio e fundamental (dados do documento projeto
arte, CEPJBAB, 2008).
Ainda segundo os dados do documento projeto arte (2008), a estrutura é
considerada padrão em termos de construção de prédios escolares. Na construção de dois
andares de forma oval, distribuem-se: catorze (14) salas de aulas, uma sala de dança, um
laboratório de informática, um anfiteatro, uma sala de arte, um auditório com cento e
noventa e oito (198) lugares, uma biblioteca, uma quadra poliesportiva, três salas de
línguas estrangeiras, duas salas de apoio pedagógico, um laboratório de Ciências Exatas,
uma área coberta, um jardim, um amplo estacionamento, além das salas de administração
sala de professores, direção, vice-direção, coordenação pedagógica, secretaria. O acesso
aos andares é feito por escadas ou com a utilização de rampas. O colégio possui sanitários
para alunos e funcionários em todos os andares, além de sanitários para portadores de
necessidades especiais.
As salas de arte e dança são amplas, essa última possui um espelho que ocupa
uma grande parede, com piso tabuado. A sala de arte tem pia e algumas pranchetas, mas só
foi utilizada nas últimas aulas de produção de ateliê, porque, durante o ano letivo, houve a
necessidade de ser ocupada por outra turma. É um colégio bem ventilado, em bom estado
de manutenção e limpeza, mas, mesmo com os cuidados administrativos, como conserto do
mobiliário e paredes pintadas no início do ano letivo, aos poucos vamos percebendo a
143
depredação de alguns móveis e o avanço de pichações, marcando territórios nas paredes
externas e internas.
O colégio não apresenta um único projeto pedagógico que vise construir uma
ação conjunta e que produza identidade pedagógica no departamento do Ensino da Arte.
Quatro professores estruturam seus trabalhos de forma independente, construindo
propostas diferenciadas: uma voltada para o desenho geométrico; outra para a aplicação de
técnicas de artes visuais e os elementos visuais; e outra considerada contextualista, a que
tive acesso através dos documentos escritos em plano de curso, plano de aula, projetos
interdisciplinares e observação em sala de aula. Os projetos de inclusão das culturas
africana e afro-brasileira tiveram, nos anos anteriores, a participação da equipe de arte do
CEPJBAB e pôde ser extensivo às demais séries. Nos anos de 2007 e 2008, por motivos de
afastamentos, inclusive de uma das professoras de arte que se encontrava em pesquisa
sobre essa temática, em Portugal, e com a chegada de outros profissionais, o projeto ficou
apenas no âmbito da 5ª série.
um projeto, Linguagens Artísticas-Núcleos, que tinha uma previsão de
realização para o ano de 2008, mas que foi adiado para operar em 2009. Esse projeto
envolverá duas professoras, para atender 120 estudantes em turno oposto, 20 estudantes
por grupo. Esse projeto manterá os objetivos da proposta desse ensino no horário regular,
porém ampliará as perspectivas de trabalho na produção de ateliê em diferentes
modalidades das artes visuais, de leitura e história da arte; e incluirá outras linguagens
artísticas. Essa proposta se realizará com uma carga horária maior, com um menor número
de estudantes e por grupos de interesses.
3.3 ENTRANDO NA SALA DA 5ª SÉRIE TURMA C
Inicialmente, a professora de arte sugeriu que a observação da pesquisa fosse
realizada nesse grupo, série turma C, pois ela havia dito ser esta uma turma muito
participativa e por se ajustar bem aos nossos horários. Como o primeiro aspecto levantado
não era um critério de escolha relevante para a pesquisa, conversei com ela que assistiria a
algumas aulas em outras turmas, inclusive das 6ª e 7ª séries.
144
Pelo horário de aulas da outra professora de arte, percebi logo que seria
inviável acompanhar suas aulas. E como a série não realizaria, nesse ano, um projeto
interdisciplinar de inclusão da história e da cultura africana e afro-brasileira, desde o início
do ano, optei definitivamente pela série. Depois de algumas aulas de observação,
finalmente concordei com a professora em ficar na turma C. As outras turmas tinham os
horários incompatíveis com as minhas idas ao campo.
O espaço físico de observação dessa pesquisa foi em uma sala do 1º andar que,
como todas as outras do colégio, é ampla, bem iluminada e pela tarde o sol avança em boa
parte do espaço. Um janelão ocupa toda a extensão do comprimento da sala, permitindo-
nos visualizar a rua e toda área externa da frente da escola e apreciar os painéis, nos muros
da rua, de um artista morador do local. Em outra parede há uma grande lousa branca, quase
nunca utilizada nas aulas de arte. A sala não possui mesa do professor, fato comum na
escola, por ter sido destruída, anteriormente, pelos/as estudantes.
A acústica não é boa e todos os ruídos do corredor são audíveis na sala, muitas
vezes atrapalhando a aula. Principalmente pouco antes do intervalo, quando os/as
estudantes das outras turmas são liberados mais cedo e passam empurrando a porta e,
algumas vezes, gritando no corredor. Ou ainda quando irrompem para falar com um colega
ou para pedir para que a professora adiante a aula, e escutam um “não é possível”.
Problema, aliás, que não é local, mas que diz respeito a outras escolas públicas do país, nas
quais como docente já vivenciei.
A disposição das cadeiras é modificada continuamente. Os/as estudantes se
organizam em duplas, trios ou mais combinações, deixando alguns espaços bem vazios e
outros mais ocupados, reconfigurando o espaço, as vezes, de forma bem desequilibrada. Os
braços e alguns assentos das cadeiras testemunham a marcação de territórios da pixação,
nos registros gráficos feitos de caneta, corretivo e tinta.
Um canto no chão, próximo à janela, é o local de depositar o lixo. Isso é o
resultado de um acordo feito na turma, após o sumiço da lixeira. Outras lixeiras já foram
colocadas, mas tem sempre o mesmo fim somem. Porém, parece que está claro não ser
uma ação da turma.
Esse espaço, no entanto, quando ocupado por seus atores, que cursam a 5ª série
e a professora de arte, nas segundas e quartas-feiras, das 14h 55’ às 15h 45’, é alegre,
agitado, às vezes confuso, mas muito receptivo.
145
Fui muito bem recebida pelos/pelas estudantes. No primeiro dia me apresentei
e expliquei meu trabalho de pesquisa. Ao final da aula, desde esse momento, ofereceram-
me presentes: formas de coração, meu retrato de perfil, casas. Os desenhos são diálogos de
apresentação, uma vontade de aproximação e, ao mesmo tempo, uma forma de que eu os
reconheça. E aos poucos os desenhos foram cedendo lugar à aproximação corporal, quando
colocavam suas carteiras ao meu lado. E, finalmente, passado três meses de observação, já
reclamavam de minha ausência, quando precisava faltar, e corriam para me beija, assim
que me avistavam. O meu diário de campo foi um objeto de curiosidade e de
reconhecimento do meu papel ali naquele espaço: “olha a professora sempre com seu
caderninho” (comentário de alguns/algumas estudantes). Quem são os atores desse espaço?
3.3.1 A professora de Arte
Sinto muito falta de condição da escola pública que impossibilita o trabalho
avançar mais. A gente pensa o melhor, mas na prática é diferente. (entrevista
Professora de Arte).
A professora Carla, formada dez anos em licenciatura em desenho e
plástica, pela Escola de Belas Artes da UFBA e especialista em psicopedagogia, é inquieta
e incansável na luta pelas suas bandeiras: “o trabalho de arte na educação tem que ser
voltado para a formação” (entrevista professora de arte). Um Ensino da Arte que:
“queremos ‘fazer acontecer’ e possibilitar aos nossos educandos novas perspectivas, novas
oportunidades na sociedade” (documento projeto arte). Caminhando com tranqüilidade e
sem pressa, com sua voz forte e sorriso no rosto, ela vai tramando com os/as estudantes o
espaço da sala de aula, preocupada em criar, naqueles cem minutos semanais, um vírus do
interesse em conhecer que contamine a todos e que, pela arte, “perspectiva e esperança
para meu aluno” (dados da entrevista). O espaço de esperança que McLaren também nos
fala. Para o autor, são espaços que encorajam mais não são suficientes por si sós e que
precisariam se transformar em “identidades coletivas” (MCLAREN, 2000, p.12). Podem
até não ser suficientes, mas, com certeza, são necessários e relevantes.
Freqüenta livrarias, garimpando livros para ler com os/as estudantes. Foi em
uma dessas incursões que adquiriu os livros que utilizou durante o ano letivo de 2008.
146
Como ela diz: “quer estimular a leitura”, isso aponta o direcionamento que a linguagem
das artes visuais percorre nas suas ações pedagógicas. Reconhece seus limites perto do que
planeja e que gostaria de alcançar. É autocrítica e está sempre disposta a aprender e
ampliar sua caminhada pedagógica.
cinco anos trabalha no CEPJBAB e é também professora do município.
Prefere trabalhar com as séries iniciais, até a série, e pontua que o interesse dos/das
estudantes por arte é maior nessas séries, por ser uma faixa etária em que são mais
atenciosos e escutam mais.
Para esta professora, a inclusão da história e cultura africana e afro-brasileira,
abrangendo o Ensino de Arte, é uma maneira de valorizar esse ensino. uma
confirmação da posição periférica desse ensino e do seu deslocamento, a partir da lei
10.639/03. Nesse deslocamento, a imagem que ela constrói é de uma “ponte”, uma forma
de atravessar até o conhecimento e não propriamente da arte como forma de conhecimento
humano.
Eu acho interessante até mesmo porque valoriza a nossa disciplina. Porque a arte, até a
alguns anos atrás, não era valorizada e de algum tempo para a gente está vendo
falar da importância da arte dentro da educação como uma ponte para o conhecimento
mesmo. E depois dos PCN colocou a arte como produção mesmo de conhecimento,
construção do conhecimento artístico. (entrevista Professora de arte)
A questão posta da valorização do Ensino da Arte é extremamente relevante
para o reposicionamento deste ensino na educação escolar, mas aqui se apresenta a
necessidade de se discutir as noções de conhecimento e, mais, as noções do que seja
conhecimento da arte e na arte no situs da pesquisa, conforme veremos no decorrer desta
seção.
O Ensino da arte, ao ser citado pela lei como uma das áreas que deve trabalhar
à inclusão, é convocado a assumir a sua relevância como parte do processo cultural na
educação, mesmo nas condições adversas da escola pública para sua realização, as quais
impedem avanços, de acordo com a professora.
3.3.2 Os/as estudantes
Eu gosto, no dia a dia, de fazer brincadeiras; gosto de aprender coisas novas; e também eu
gosto de almoçar junto com a minha família reunida. Eu sou muito feliz. Tem hora que
147
minha mãe brinca com a gente e tem hora que minha mãe reclama, porque tudo tem seu
tempo, tudo tem seu valor. É isso. Minha vida é isso (Entrevista Estudante da série
turma C).
Eles/elas chegam de Campinas de Pirajá, Calabetão, São Caetano, Marechal
Rondon. Adolescentes que gostam de brincar de elástico”, “pular corda”, pega-pega”,
“esconde-esconde”, de “bola”, “amarelinha”, e “vídeo game”. Alguns ajudam no trabalho
com os pais ou em casa: “sempre eu vou dia de sexta-feira pra casa de meu pai ficar mais
ele. Vendo cachorro quente, pipoca, DVD, doce e tudo lá em Cajazeiras”, “arrumo a casa”.
Assistir uma novela chamada Os Mutantes é a febre da turma, mas também existem outras
predileções em filmes românticos, de aventura, ação ou de terror: “é Harry Porter”, “meu
filme predileto é a Lagoa Azul”, “como, por exemplo, Fred Jason”. As músicas que gostam
são: “pagode”, “forró”, “rap”, cada tempo uma música”, música de igreja”, todas”
(Entrevista Estudantes 5ªC).
A turma contava no inicio do ano letivo com 40 alunos. No meio do ano eram
36, com uma média de 12 anos. 98% de afro-descendentes entre negros e pardos e 15
estudantes do sexo feminino e 21 do sexo masculino.
O grupo era flutuante em número de presença nas aulas, tinham dias que a aula
acontecia com 18 estudantes. Em nenhum momento, durante o período de observação,
presenciei toda a turma reunida nas aulas de arte. Quando a aula começava, havia sempre
um número reduzido, e aos poucos eles iam chegando, livros na mão ou mochila nas
costas, alguns carregando seu geladinho ou mascando chicletes. Às vezes falavam alto e
outras chegavam até a gritar com seu/sua colega para ser escutado/a. Quando respondiam
as perguntas da professora, a voz era geralmente mais baixa. Era um grupo participante,
agitado conversavam muito, mostravam-se tímidos quando solicitados a dar opiniões. Uma
parte dificilmente entregava a atividade no dia solicitado e alguns esqueciam o material
solicitado.
Alegres, carinhosos e atenciosos. Alguns criavam espaços nas aulas para atuar
em algo que os envolviam e os absorviam: cantando suas composições, uma mistura de
rap com pagode” - “É porque eu gosto muito de cantar. […] Eu cantoumas músicas que
eu invento”-; escrevendo poesias; e desenhando pelas páginas dos cadernos. “Eu gosto
muito de arte de fazer desenho, é o negócio que eu mais gosto”. Tais produções, gestadas
nos interstícios da aula e das experiências estéticas dos/das estudantes fora da escola,
148
também eram colocadas à margem do processo de sala de aula e permaneceram
desconhecidas e invisíveis. Pois a ação da professora no processo de mediação não deu
visibilidade a essas produções nem os/as estudantes as apresentavam ao grupo. A minha
ação de escuta sensível possibilitou capturar esses espaços, enquanto assistia as aulas, ou
ainda quando eles/elas chegavam, timidamente, para me apresentar suas produções.
3.4 O TRABALHO PEDAGÓGICO DO ENSINO DA ARTE: CONSTITUINO A
INCLUSÃO SOCIOCULTURAL DE AFRO-DESCENDENTES
Eu. (…) Melhorou, melhorou bem mais o que eu achava a respeito da cultura africana. Porque
assim eu fui respeitando as outras pessoas e fui respeitando a cultura dos outros. Eu aprendi
que eu não posso respeitar a minha cultura, eu tenho que respeitar a minha e respeitar a dos
outros. Não a minha que importa, não a minha cultura e sim a cultura de outras
pessoas,de outros povos, não o africano. E também eu achei importante que eu fui
conhecendo mais, despertando curiosidades. Curiosidades essas que eu não tinha e passei a ter
através desse trabalho que a professora desenvolveu na sala (Entrevista Estudante 6ª série).
A estudante do CEPJBAB, que cursava a série, foi aluna da professora Carla no
ano de 2007. A sua fala esboça os movimentos de travessia traçados no trabalho
pedagógico, no qual ela foi parte, na perspectiva inclusiva desse ensino. Sinaliza uma
mudança de olhar sobre a cultura africana melhorou bem mais”. Há uma imagem
anterior sobre essa cultura que é comparada com a atual, percebe-se que esta última se
torna mais positivada sob o olhar da estudante. Essa é uma imagem construída por outros
estudantes e algumas foram citadas nas seções anteriores. Nosso caminho, agora, nessa
subseção, é construído dos fios puxados das tessituras presentes nessa fala. O processo
experienciado suscitou novas referências, identificações, sentido de pertença, territórios: “a
minha”, “a dos outros”, outras pessoas”, “outros povos, não o africano”. A idéia de
respeito foi repetidamente colocada no trânsito, ao cruzar a fronteira entre o meu e o do
Outro. Acrescentando ainda, que no processo pedagógico vivenciado, o “conhecer mais” e
a curiosidade acordada são dois aspectos colocados que confirmam as provocações do
trabalho pedagógico no CEPJBAB.
Para apresentar o trabalho pedagógico na sua dinâmica de inclusão realizado
no CEPJBAB, faço, então, reiterando como dito no item 3.1, em um primeiro momento,
descrição, análise e discussão das concepções do Ensino da Arte que se constroem na sala
149
da 5ª série do Ensino Fundamental. Depois seguiremos com os elementos imagem da arte e
o diálogo interpretativo, construtos fundamentais do desenho do movimento inclusivo no
processo de mediação do olhar. Procuro também evidenciar as concepções da dimensão
inclusiva da arte que atravessam essa práxis pedagógica. Foi priorizado o olhar sobre o
trabalho construído em imagens utilizadas em sala de aula que dizem respeito: às
produções artísticas africana e afro-descendente; e aos processos de descriminação, de
racismo da sociedade. Mas outras também são apresentadas como suportes para a
compreensão do trabalho pedagógico.
Feita essa apresentação inicial da forma como realizei essa subseção, retomo,
nesse ponto aos fios, colocados anteriormente a partir da fala da estudante. Porque esses
fios desenham os espaços de pertencimento produzidos por esse ensino e nos conduzem a
uma compreensão do como é tecida, no Ensino da Arte, a inclusão sociocultural de afro-
descendentes.
quatro anos, a equipe de professores/as de diferentes áreas de
conhecimentos trabalha com projetos que incluem as culturas africana e afro-brasileira na
prática pedagógica, tendo o Ensino da Arte como o grande mobilizador desses projetos.
Segundo a professora de arte, para que esses projetos alcancem maiores resultados do que
àqueles, os quais já vem sendo obtidos, é preciso um envolvimento de todos na escola:
Eu acho que a gente tem que trabalhar com projetos. Apesar de que eu tenha percebido que
realmente tem resultado positivo, mas poderia ser melhor. Se houvesse mais empenho entre os
colegas. A gente está questionando, nós, as professoras que estão fazendo esse projeto, que não
é todo mundo que está envolvido, deveriam ser. Eu acredito que se tivesse mais interesse eu
acho que o projeto seria mais bem aproveitado. Um resultado melhor. Eu acho que tenha
um resultado positivo, mas seria melhor. (entrevista professora de arte)
Tratar da inclusão das culturas africana e afro-brasileira e, mais ainda, da
Educação das Relações Étnico-Raciais diz respeito a uma atitude frente à educação. É um
projeto político na educação que envolve a todos que constituem o espaço da escola e que
exige mudanças curriculares, na forma de pensar a escola, na alma e no corpo da escola. A
escuta sensível das falas do campo da pesquisa empírica nos confirmam essa necessidade.
3.4.1 A Proposta Pedagógica do Ensino da Arte
150
No plano de curso da série do CEPJBAB, o Ensino da Arte se apresenta na
área de Linguagens como disciplina Arte. Ao falar sobre o trabalho pedagógico, assim se
pronuncia a professora Carla: “o trabalho pedagógico de Educação Artística tem que
englobar tudo mais ou menos”. Assume, então, o Ensino da Arte como Educação Artística,
caracterizando seu raio de ação ao referir-se a uma junção “mais ou menos” de todas as
linguagens artísticas. Lança mão, na prática pedagógica, das matérias primas dessas
linguagens de forma restrita, ou até mesmo como recurso material, e não nas suas
especificidades como área de conhecimento. Contudo, ela pondera e admite não ter “como
trabalhar os conteúdos básicos das outras linguagens, por não ter a formação, mas utilizo
elementos da música, da dança”, o que reforça o caráter de atividade ainda considerado
nesse ensino.
Essa área, então, é considerada nas escolas estaduais da Bahia como Educação
Artística. A justificativa, comumente dada, é que, assim, esse ensino atende às diferentes
aptidões dos/das estudantes, restringindo o seu processo de ensino à sentença do “levar
jeito” ou não para a arte. O que caímos nos equívocos que condicionam a arte como um
dom (HERNANDEZ, 2000) e, conseqüentemente, o seu ensino descaracterizado como
área de conhecimento.
Na LDB, lei 9394/96, no capítulo II da educação básica, o epíteto Educação
Artística é substituído oficialmente por Ensino da Arte, como componente curricular dos
diversos níveis da educação. Mas essa questão não é específica desse lócus, uma idéia
recorrente em escolas da rede particular e pública, na Bahia, que alimentam o fantasma do/
da professor/a de arte polivalente, e que insiste em assombrar-nos, não considerando as
especificidades e complexidades de cada linguagem artística.
Nas propostas pedagógicas traçadas, encontramos fundamentalmente os
subsídios teóricos dos PCN Arte (BRASIL, 1996), que são ancorados nas propostas
culturalistas para esse ensino. O CEPJBAB ratifica tais propostas quando concebe o
Ensino da Arte “como produção mesmo de conhecimento”, e compreende que “através da
arte a gente consegue entender, perceber e conhecer uma cultura”.
Nos vários documentos analisados plano de curso, projetos de valorização da
cultura africana e afro-brasileira, marcos de aprendizagem para o Ensino da Arte e planos
de unidades faz-se presente as relações entre arte, cultura, vida e sociedade, e o papel
151
desse ensino, atuando e construindo o conhecimento nessas relações. Exemplo das
habilidades almejadas citadas nesses documentos:
Conhecer traços de uma determinada cultura através dos estilos artísticos; Investigar a obra de
arte através de sua leitura, interpretando a cultura da época estudada e relacionando com atual;
Construir conhecimento artístico estabelecendo significados e relacionando com a própria vida;
Estabelecer relações de obras de arte com o mundo ao redor. (Documento projeto arte, 2008)
A proposta do CEPJBAB da série do Ensino fundamental, ao se
fundamentar na arte como cultura, apresenta-se ancorada na tríade da abordagem triangular
leitura, produção (fazer) e contextualização –, sistematizada no Brasil pela
arte/educadora Barbosa. Segundo a autora, é uma proposta “construtivista, interacionista,
dialogal, multiculturalista e é pós-moderna” (1991, p.41). Porém o CEPJBAB mantém, no
documento dos marcos de aprendizagem de Artes Visuais, a triangulação com duas ações
que são questionadas por Barbosa – apreciar e refletir –, e que correspondem aos PCN Arte
de a séries. Segundo o documento, a forma de ação pedagógica foi construída no
“fazer, apreciar e refletir sobre arte como conhecimento artístico, como produção e
fruição”. Na proposta citada uma contradição: a produção e a fruição que sinonimizam
com o fazer e apreciar” sobre arte, respectivamente, foram consideradas distintas do
conhecimento artístico.
Nas habilidades, acima citadas, e em outros momentos, aparece o termo
leitura, e este é apresentado sempre em relação à obra de arte ou ao livro de história, ao
pretender “desenvolver o gosto pela leitura e escrita”, com a presença de uma proposta
dialogal, ao “repensar sobre a obra, compartilhando as perguntas dos alunos e que o
professor desencadeia”.
O fazer artístico aparece como: “releitura de obra de arte”; representar,
observando a imagem da obra e que partam dela”; e “produzir obras de arte sobre seu
bairro, cidade e país”. Percebe-se que o termo obra de arte não está sendo usado apenas
para o que é considerado 'grandes obras', os ícones da estética ocidental, pelo fato de tomar
a produção do/da estudante sobre seu bairro como “obra de arte”. O fazer artístico deve ser
socializado e partilhado na turma, como uma forma de “inteirar-se com o fazer artístico de
si próprio com o do outro (colegas, artistas)”.
E dentro da idéia de produção em arte, propõe como competência, no eixo de
preservação da produção cultural e histórica: “resgatar o valor da nossa história (africana e
indígena)”; “preservar e difundir a cultura local, baiana e brasileira, além de sua herança
152
(africana, indígena e européia); e “valorizar a vida e o meio ambiente”. Almeja um Ensino
da Arte afinado com a multiculturalidade do país, em ações de resgate, preservação,
difusão e valorização das heranças cultural e histórica. Porém, não se pronuncia quanto a
relação desses objetos na produção de sentidos e na (re) significação pelos/pelas
estudantes, para torná-los mais significativos.
A proposta pedagógica incorpora as idéias da percepção e expressão,
ampliando conhecimentos específicos da linguagem artística e da gramática visual, para
apreender a realidade do meio ambiente (BARBOSA, 2005), ao objetivar, nos projetos de
arte, a “alfabetização visual para interpretar o mundo”, e a ênfase na experiência, “dando
significado a partir da experiência do aluno”. E ainda:
Desenvolver as linguagens artísticas e culturais através da produção de arte (pintura, escultura,
instalação, performances), possibilitando maior integração e socialização. Além de organizar
ações que valorizem a capacidade e potencial do educando de criar, perceber, transformar e
compreender sua própria cultura e ampliá-la com a de outros povos (Documento projeto arte,
2008).
Nas propostas pedagógicas, identificações com pressupostos da abordagem,
contextualista, voltando-se para os aspectos sociais e culturais, através da imagem da arte e
do contexto dos/das estudantes (RICHTER, 2003), para o pensamento crítico, e para
soluções de problemas que não precisam, segundo a visão essencialista, necessariamente
ser um problema da arte. “Queremos fazer acontecer e possibilitar aos nossos educandos
novas perspectivas, novas oportunidades na sociedade. Mostrá-los que é possível superar o
quadro atual de desigualdades sociais e educativas”(documento projeto arte). Tais
perspectivas apontam o papel do Ensino da Arte na inclusão sociocultural dos/das
estudantes, para oportunizar a superação de “desigualdades sociais”.
Nos objetivos aparecem ainda aspectos considerados, pela visão essencialista,
como não sendo o foco estético-visual de referência da arte, os quais Lanier (2001)
denomina “benefícios colaterais”. Formar cidadãos “inteligentes”, “criativos” e
“saudáveis” são aspectos, segundo este autor, do crescimento individual, e que o Ensino da
Arte pode até alcançar, mas não se insere no seu foco. No texto de apresentação do projeto
arte 2008, encontramos que:
Conhecer a complexidade das linguagens artísticas (Artes Visuais, Dança, Música, Teatro) é
essencial para que os alunos participem criticamente das manifestações artísticas. A Arte
proporciona a oportunidade de apropriação de suas diversas linguagens e a interação com as
demais disciplinas. Portanto, a Arte visa o fortalecimento, o aperfeiçoamento e a interação das
habilidades que resultam na construção do conhecimento através do artístico e do estético.
153
Além disso, a arte torna possível o enriquecimento sociocultural dos educandos, desenvolve
sua sensibilidade e cria critérios éticos, formando cidadãos críticos, inteligentes, criativos e
saudáveis (documento projeto arte, 2008).
Paradoxalmente à idéia de “trabalhar tudo um pouco”, ao utilizar as diferentes
linguagens colocadas durante a entrevista, há, no texto do projeto, o reconhecimento da
complexidade que envolve as linguagens artísticas, sendo essa almejada como
conhecimento essencial para os/as estudantes atuarem criticamente nas manifestações
artísticas. Entretanto, fica vago a relação entre o conhecimento da complexidade das
linguagens e a atuação crítica dos/das estudantes.
A proposta de uma educação estética, de uma educação do sensível (DUARTE
Jr., 2001), que provoca a sensibilidade de um “reencantamento” dos sentidos e, portanto,
do corpo, diante das qualidades sonoras, corporais e visuais que permeiam nossas relações
com o mundo e seus entendimentos, é esboçada na proposta pedagógica do Ensino da Arte,
como:
[...] possibilidade da comunicação e expressões das linguagens da Arte que despertem o
educando para o reencantamento do mundo dos signos visuais, sonoros, corporais e seus
significados que integram a própria linguagem da arte para o melhor entendimento sobre o
mundo e a cultura (documento projeto arte, 2008).
E ainda, a proposta pedagógica do Ensino da Arte do CEPJBAB, por se
ancorar nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Arte, estrutura-se em projetos e marcos
de aprendizagens que balizam nos planos de unidades as competências e as habilidades de
acordo com o que preconizam as abordagens construtivistas e cognitivistas
31
.
nessas propostas, até agora apresentadas, uma amplitude de proposições a
serem perseguidas no Ensino da Arte e que solicita um olhar multidisciplinar, por envolver
os conhecimentos do campo da arte nas suas dimensões psicológicas, culturais, sociais,
éticas, estéticas, históricas e, até mesmo, morais/espirituais, quando a professora diz que “o
Ensino da Arte promove a limpeza da alma”. Tais proposições nos confirmam a
complexidade de como é visto o campo de conhecimento desse ensino, o qual é validado
no CEPJBAB como área de conhecimento.
Contudo, a amplitude de proposições nos leva a compreender a fala da
professora quando, em um raro momento de desânimo, reconhecia que na prática é muito
diferente do que se planeja”. Leva-nos também a compreender que existe uma distância
31
Como não é interesse desse estudo tratar da temática construtivista e cognitivista que fundamentam os
PCN, me limito apenas a citá-las.
154
entre o que efetivamente pode ser emprenhado na sala de aula e o grande processamento de
informações que identifica o conhecimento em arte nas abordagens dos PCN, sobre as
quais os planejamentos são assentados. Significa dizer que, fazendo uma analogia com a
idéia de “alienação local” (Santos, 1997), aquilo que está posto com base nos PCNs se
tornam ações estranhas (representa “quem decide”) ao local (a sala de aula e seus atores
que operacionalizam). O que termina por ser um grande aparato de preenchimento de
papéis com belas palavras e intenções, às vezes, inalcançáveis e incomensuráveis, e que
não refletem e não expressam os saberes que estão sendo conjugados na sala de aula.
Nas propostas do Ensino da Arte, a dimensão inclusiva da arte aparece quando
aponta a possibilidade de provocar o sentido de comunidade, compartilhando e produzindo
no coletivo, ao “fomentar (...) o desenvolvimento da estética, para que nossos alunos
partilhem experiências e emoções”, o que compreende o sentido de estética (MAFFESOLI,
1996).
um reconhecimento da idéia de inclusão na arte como expressão, quando
aponta para uma “integração e socialização” dos sujeitos pela sua produção. que,
“através” da arte, são organizadas ações que lidam com a percepção, criação,
transformação e compreensão do/da estudante sobre a sua cultura, estendendo-se à cultura
do outro. Esses são, segundo Pareyson (2002), fins perseguidos obtidos na arte e não
perseguidos por ela.
Mas como são operadas essas propostas no CEPJBAB, mirando a dinâmica
inclusiva do Ensino da Arte?
A proposta pedagógica do CEPJBAB não nega o compromisso político do
Ensino da Arte nos projetos de inclusão das culturas negras, apontando, assim, em seus
objetivos que aparecem no documento “Projeto Linguagens Artísticas”:
Desenvolver a cultura visual e formar alunos leitores, intérpretes da vida e críticos de todas as
imagens presentes no seu cotidiano seja ela filosófica, estética ou histórica. Pois acreditamos
ser esse o papel do Ensino da Arte. Conforme preconiza a Lei 10.639/03 de mudar os rumos da
nossa história de discriminação e desigualdade, abraçamos o desafio de ensinar, promovendo a
igualdade para os habitantes da cidade do Salvador, a mais negra do continente americano. A
população afro-descendente da primeira capital do país emerge ‘querentemente’ de apresentar
seu potencial artístico, tendo no espaço Escola, para colocar em prática sua capacidade política
de fazer, produzindo nesta área do conhecimento. ((Documento projeto arte, 2008)
A cultura visual, na citação, embora amplie o conceito de imagem de arte
com referência ao cotidiano do/da estudante, não inclui as imagens veiculadas na mídia,
fato confirmado na entrevista da Professora Carla. Embora ela tenha levado para a sala de
155
aula o episódio de discriminação e racismo protagonizado pelo coordenador do curso de
medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA), quando na época do resultado
negativo no programa de avaliação nacional, atribuiu esse resultado ao que denominou, na
sua ignorância, de “QI de um Berimbau”, considerando o baiano, pela sua afro-
descendência, menos capaz.
Assim, o papel do ensino da arte é projetado na perspectiva de mudar os
rumos” de uma história de desigualdades e descriminação. Papel que se opera na formação
do/da estudante afro-descendente produtor/a e espectador/a crítico/a, ao colocar o seu
querer expressado na arte, colocando “em prática sua capacidade política de fazer”.
3.4.2 Imagens de Arte no Processo de Mediação do olhar
Nos projetos construídos para a valorização das culturas negras nos anos de
2005 a 2008, as imagens escolhidas foram caracterizando o projeto político pedagógico
desse ensino, à medida que (re) desenhavam essas representações no espaço da sala de
aula.
Em 2005, a lei 10.639/03 foi viabilizada no CEPJBAB, através do projeto
Salvador Roma Negra, que objetivava a valorização da cultura afro-brasileira:
[...] enfocando a diversidade cultural e estética da nossa cidade, que é arquitetonicamente
semelhante a Roma, mas humanamente negra e Salvador é a Roma Negra possuidora de maior
Patrimônio Artístico Cultural Afro-brasileiro. Através de atividades que apresentem,
representem e identifiquem a África que existe na cidade do Salvador. (Documento Projeto
Arte, 2005).
O projeto foi construído sobre a expressão “Roma Negra”. Esta é atribuída, de
acordo com Juana E. dos Santos, em seu livro “Os Nagô e a Morte”, a Mãe Aninha, Obá
Biyi, tomando comparativamente a força do candomblé em Salvador e do catolicismo em
Roma. A imagem projetada perspectivava construir, no trabalho pedagógico, Salvador
como uma cidade que contém a África numa arquitetura religiosa, humana, artística e
cultural.
156
Figura 13: Produção dos/das estudantes CEPJBAB, Projeto Salvador Roma Negra, 2005. Técnica mista guache ecolagem sobre papel
A arquitetura da Roma Negra tomou corpo nas produções artísticas dos/das
estudantes traduzidas, em mosaico, nas releituras de músicas do Ilê Aiyê. As formas
expressas habitam um imaginário que constroem a cultura afro-baiana: nas representações
da capoeira, da baiana, da dança com atabaque (fig. 14 e 15); e em cenas de 'sincretismo',
em formas construídas no espaço tridimensional, onde aparecem uma igreja e
manifestações de ritos católicos e do candomblé (fig. 16), mas que ganham novos
coloridos e movimentos sob o olhar dos/das estudantes.
Figura 14: Produção dos/das estudantes CEPJBAB, Projeto Salvador Roma Negra, 2005. Técnica mista guache e colagem sobre papel.
157
Figura 15: Produção dos/das estudantes CEPJBAB, Projeto Salvador Roma Negra, 2005. Técnica mista guache e colagem sobre papel
Figura 16: Produção dos/das estudantes CEPJBAB, Projeto Salvador Roma Negra, 2005. Técnica mista guache e colagem sobre papel
O projeto culminou com uma exposição de 30 dias, no mês de novembro, na
Casa do Benin. Aspecto relevante na visibilidade da produção artística dos/das estudantes
que sai do espaço da sala de aula e ganha outros espaços da cidade, levando uma temática
referenciada na arte afro-brasileira. Essa é uma produção de visibilidade de espaço
positiva.
158
Em 2006, um novo projeto, Salvador, Releitura Africana & Carybé, coloca
como um dos grandes questionamentos:
[...] a necessidade da identidade da cultura afro sem preconceito dentro do grande
espaço social, político chamado Escola. Cada vez mais, o aluno negro ainda sofre
discriminação não somente pela sua tez, seu tom de pele, sua melanina, mas também
pela sua arte. Desta feita o CEJBAB, localizado em um bairro periférico, de classe
baixa, que gosta de seu ambiente escolar, tem necessidade de cultura, sede de arte,
identidade e sem melhores opções, a Equipe preocupada em ajudá-los a mudar estórias
e eles mesmos transformarem em história, apresenta o Salvador Releitura Africana
& Cary –, mostrando que negro pode fazer arte de qualidade, com referências de
outras localidades e através dela, ainda que no começo, despertar o desejo e interesse
pela Arte Africana que não seja de maneira folclórica, mas popular. Apresentando um
conjunto de valores estéticos, culturais sobre a matriz africana que tem a cidade do
Salvador, o enfoque na identidade desta matriz e Carybé, argentino de nascimento, e
baiano por obras e divindades africanas que abraçou a cultura baiana como sendo
parte de sua vida. Salvador Releitura Africana tem como fundamento a Lei
10.639/03 e sua aplicação; “É papel desse componente difundir e subsidiar os sistemas
de ensino no que determinam as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana; articular e fortalecer a rede de sistemas de ensino para a valorização da
diversidade étnico-racial; estimular políticas voltadas para a diversidade étnico-racial
na educação”, que tem nas suas principais diretrizes o estudo da cultura africana
especialmente nos conteúdos nas áreas de Educação Artística, Português e História
nos ensinos fundamental e médio das escolas públicas e particulares do Brasil
(Documento Projeto Arte, 2006).
O projeto trouxe imagens da África associada à produção plástica do artista
Carybé pintor, escultor, gravador, ilustrador ceramista e muralista. Nas suas formas,
movimentos, cores, traços, texturas e volumes, foram dadas a concretude de um olhar
sobre uma cultura, ao traduzir na sua arte símbolos e referencias do candomblé. Segundo
consta no projeto: “os alunos farão releituras de obras de Carybé, um grande admirador,
diplomata, produtor e amante, assim como Pierre Verger, da cultura afro-brasileira”.
O projeto propôs, através da arte, que a escola, enquanto espaço social e
político e, portanto, parte hologromática do espaço social mais amplo, produzisse um local
sem preconceito, no que constitui a identidade da cultura afro”. Identidade que está
associada, no texto, à temática encontrada nas imagens de Cary e que é a mesma que
pressupõe ser a arte do “aluno” negro. no discurso uma fixidez com relação ao que
pressupõe ser a arte do/da estudante negro/negra, associando esta às culturas negras, e, no
contexto do projeto, à temática que aparece na arte de Carybé. Considera ainda que essa
159
arte seja discriminada no espaço da escola, além do seu produtor/a estudante sofrer a
discriminação pelo seu fenótipo.
Esse determinismo apresentado nos conduz para as considerações de Pareyson
(1997) sobre a visão da cultura positivista, que trata a arte de forma determinista,
mecanicamente como produto do social. E não a arte como alimento mútuo entre a
singularidade do aluno e elementos da cultura, que filtra, na sua subjetividade, tornando
visíveis as suas experiências na sua realidade cotidiana e na suas formas de leitura, ao
mesmo tempo em que desenha a posição do negro na escola, do que seja sua arte, das
representações sobre as culturas negras e a produção de identidade cultural.
também, no discurso, uma representação construída com referenciais da
comunidade escolar predominantemente de afro-descendentes, que se associa às condições
sociais de classe ”localizado em um bairro periférico, de classe baixa” e que coloca a
cultura e a identidade como algo a ser dada, uma descoberta e não uma produção (HALL,
2006). E ainda, não reflete a educação como um processo cultural, ao considerar que essa
comunidade “tem necessidade de cultura, sede de arte, identidade e sem melhores opções”,
e tem a “Equipe preocupada em ajudá-los“. Mas o/a estudante, sujeito instituinte, artífice,
deve mudar “estórias” descaracterizadas da sua condição de inventar verdade e de construir
realidade, e transformar em “histórias” que se tornam fato e realidade.
Na produção artística dos/das estudantes, uma exploração de diferentes
suportes, além da tela, utilizando cadeira e cerâmicas. Nas imagens apresentadas que
fazem parte do portfólio das exposições dos projetos a que tive acesso, aparecem as
traduções referenciadas na proposta pedagógica de releitura de Carybé, no quadro onde
aparece o Elevador Lacerda visto da lateral e na parte inferior do quadro, mais a direita,
duas pessoas jogam capoeira (fig. 17). Outras imagens que não sugerem possivelmente
esses referenciais trazem personagens do cotidiano, uma rede e uma imagem de um
homem no tronco com os braços amarrados (fig. 18); e ainda imagens na cerâmica do meio
que sugerem pinturas da Grécia Antiga (fig. 19).
160
Figura 17: Produção dos/das estudantes. Colagem s/ cadeira e guache sobre tela.
Figura 18: Produção dos/das estudantes 2006. Figura 19: Produção dos/das estudantes CEPJBAB,
Guache sobre cerâmica. Guache sobre tela
No ano de 2007, o CEPJBAB construiu o projeto “Os Didi da Bahia”, que
envolveu as 5ª, 6ª e 8ª séries do Ensino Fundamental e o 3º ano do Ensino médio:
A Escola deve preparar seus alunos para uma vida saudável e criativa. E a Arte, em sua essência,
propõe o enriquecimento do educando, preparando-os para um desenvolvimento cognitivo, afetivo,
social mais saudável e criativo. Partindo dessas afirmativas, trabalhamos mais um ano com a Lei
10.639/03 com o projeto “Os Didi da Bahia” que valoriza a cultura afro-brasileira através da figura
da mulata, tantas vezes pintada pelo grande Di Cavalcanti, homenageando a mulher brasileira. Esse
projeto valoriza não somente as Artes Visuais, como também o canto, a música, a dança, a poesia e a
161
arte da culinária baiana. […] Nesta urbe, nasceram Ilê Ayê, Muzenza, Olodum, Maledebalê, e
personalidades da música brasileira que tem afinidade e respeitável trabalho na cultura afro, como
Daniela Mercury, Margareth Menezes, Gerônimo (Documento Projeto Arte, 2007)
As imagens da identidade cultural afro-brasileira e, mais especificamente, afro-
baiana são apresentadas e representadas na figura da mulata referenciada em Di
Cavalcanti; na música, poesia e dança das entidades culturais afro-baianas e de músicos
vinculados às culturas afro; e na culinária baiana. Para se trabalhar pedagogicamente com
essas imagens e com a valorização de uma cultura que durante séculos foi excluída das
instituições sociais, o Ensino da Arte é ancorado em uma arte que enriquece a vida do/da
estudante, do ponto de vista da saúde, da criação, do cognitivo e do afetivo.
Segundo o texto do projeto, como nos anteriores, foram feitas visitas às
instituições de “raízes afro-brasileiras” – Biblioteca do CEAO, Casa de Angola, Senzala do
Barro Preto, Museu Afro, Escola Criativa do Olodum e Fundação Pierre Veger. Mas não
uma especificação das relações construídas entre essas instituições e os artistas/obras
estudados.
Na abertura da exposição, com imagens em peças de mandalas e cestaria em
técnica mista (jornal, papel ofício e tinta guache), apresentou-se o coral com a temática
“Mulher Afro-baiana e Afro-brasileira” e o Hino do Congresso Africano e da Juventude da
África do Sul, dança e capoeira.
Figura 20: produção dos /das estudantes do projeto Os Didi da Bahia, 2007. Cesta de jornal e pintura a guache.
162
Figura 21: produção dos /das estudantes do projeto Os Didi da Bahia, 2007. Técnica mista guache e colagem diversos
materiais sobre papelão.
Figura 22: Releitura dos/das estudantes 2007 Figura 23: Di Cavalcanti Mulata com Pássaro
Técnica mista guache e colagem de grãos sobre papelão
As imagens escolhidas para trabalhar os três projetos apresentados são as
imagens que comumente estão associadas à produção artística da cultura afro-brasileira e
afro-baiana. Produção que tem mais visibilidade no cenário baiano, mas que, após a Lei
10.639/03, ocupa o espaço da escola, como conhecimento da arte. As imagens e as
releituras, mesmo que positivas, confirmam e constroem um revisitar que dão manutenção
163
às formas relidas pelos/pelas estudantes, sem que se revelem as outras “Bahias” (PINHO,
2005) da cultura afro-baiana de seus outros espaços que o referenciam. E o trabalho
pedagógico, como “trabalho cultural” (SILVA, 2005) na produção de visibilidade do
espaço de afro-descendentes e na relação entre conhecimento, poder e cultura, é uma
regulação na forma particular de ver a cultura afro-baiana orientada para o que está
instituído como importante.
As falas dos/das estudantes, participantes do projeto “os Didi da Bahia”,
revelaram como para eles/as tem sido importante estudar as culturas africana e afro-
brasileira, conforme podemos ver nos trechos das entrevistas, citados abaixo:
Estudante 1: Eu aprendi [...] Desde a 5ªC, depois da apresentação, que não se pode valorizar
no Brasil porque na África tem muitos negros como a gente (grifo meu). Que todos nós somos
iguais.
Estudante 2: Mudou quase tudo, porque antes eu não gostava de ver as coisas que passava
sobre a África. Agora eu gosto, porque nossa raça somos misturados, na nossa veia (grifo
meu).
Estudante3: depois da dança que teve eu aprendi que nós temos que valorizar mais porque
faz parte da nossa cultura, que está tudo misturado em um campo só, porque por isso que teve a
nossa cultura, misturados para várias coisas, estilos e etc.
Estudante 4: Eu como negra eu acho que não devo ter preconceito pelo branco por ninguém.
Porque pela nossa veia corre o sangue do branco, do negro do índio (grifo meu).
Estudante 5: Através do trabalho que fiz eu desenvolvi a minha raça que é a raça negra. Eu não
devo ter preconceito pela minha cor e pela cor dos outros. Se alguém tiver preconceito pela
minha cor, nem pela cor das outras pessoas eu não me importo. O importante é que eu gosto da
minha própria cor e não vai mudar isso.
nessas falas considerações sobre: suas identificações com África; a forma
de representação dessas culturas como uma “mistura”, na qual se reconhecem; afirmações
de sua identidade étnico-racial; e um discurso de igualdade que oculta as tensões vividas
por eles/as.
Em outra fala percebemos que o trabalho pedagógico tem suscitado nos
estudantes aspectos da inclusão social, no viés da inserção no trabalho. Um estudante traz
essa questão ao apresentar o que tem significado trabalhar com a arte das culturas africana
e afro-brasileira:
Com essa cultura amanhã eu posso arranjar um emprego, na hora que eu estiver de maior
mesmo. Trabalhando sobre a África, falar sobre a África é importante pra mim e para os meus
colegas. África é um país como os outros, pode ser pobre, mas não é por causa disso, por causa
de dinheiro que vai se diferenciar.
A condição econômica que constrói a identidade de África nas representações de
um “país” pobre não é construto de diferença; e não modifica seu reconhecimento quanto a
164
importância do acesso aos conhecimentos trabalhados sobre África, para ele e os para os
colegas visando um futuro. Um futuro que é confirmado em um segundo momento,
quando responde sobre o que mudou depois do projeto “Os Didi da Bahia”: “Valoriza os
negros, para ele conseguir emprego não pelas idéias dos brancos” (Estudante 6ª série).
Ele se refere as idéias dos brancos a partir do contexto de discriminação
social tecido nas considerações de sua colega:
Alguns negros pensam: - ah não! Eu não vou consegui, vai numa entrevista de emprego, vai
e não consegue. Não conseguiu aquela vez, aí não volta mais. Aí eu acho que temos que tentar,
por mais que não consiga uma vez, não consiga duas, que continue tentando, nada é
impossível. Se você quer você vai conseguir, então eu acho que não é impossível. Você tem
que acreditar que é capaz. (...) Já vi gente, negro sendo discriminada a esse ponto, de ser
barrado em algum lugar porque é negro. Às vezes falam até assim: '- ah, não! Não é por causa
disso não, não é preconceito não'. Eles não querem dizer que é preconceito, mas é. Eles tem
preconceito de cor. Olhe, até eu mesmo se eu entrar em um lugar, nem todo mundo acha, mas
eu negra entrar num lugar as pessoas, alguns olham para mim com cara feia, entra um
branco todo mundo olha normal como se nada tivesse acontecido; se eu entro no lugar, por
falha minha, não dou boa tarde: “-ah, preta ignorante!” Agora se é um branco é normal, os
outros levam isso em consideração, esqueceu. Agora se é um negro, os outro acham que é
errado (Estudante 6ª série).
Embora a estudante evidencie, no contexto social, as assimetrias de poder, a
transformação dessa situação é colocada em uma ação muito mais individual, que valorize
a auto-estima, provando-se uma capacidade: “você tem que acreditar que é capaz”. A
estudante traz ainda a construção da identidade em imagens negativas do negro sobre o
olhar do Outro. Um Outro que ela é generalizada quando pontua como sendo “alguns”,
“nem todo mundo”.
O que é das culturas de África é visto como diferente, mas essa diferença é
diluída na mistura tal como as cores, nas considerações da estudante: “Na vez que a gente
fez a lata pra botar na sala, a gente fez uma pintura que ficou tudo borrada. quando a
professora passou o verniz por cima, ficou diferente, ficou assim como se fosse uma
cultura africana: que as cores se misturaram” (Entrevista Estudante 6ª série).
Ou diluída na imagem conciliadora de antagonismo, símbolo de fusão
harmoniosa: “A escolha vinha se dando a partir das imagens positivas, por exemplo, Di
Cavalcanti na valorização da mulher, da mulata” (Entrevista Professora de Arte).
As identificações e o reconhecer-se não têm sido, é claro, um caminho
tranqüilo. As imagens estereotipadas e negativas, as quais todos/as têm acesso e que
alimentam o imaginário, vêm construindo associações que criam preconceitos em relação a
165
forma de se olhar para as produções culturais negras. Segundo a professora Carla, em um
dos momentos da entrevista:
Porque eles acham assim: o ano passado mesmo eu trabalhei o hino do congresso africano para
a abertura de nossa exposição. E os meninos tudo que eles vêem de batuque eles acham que é
do candomblé. Tudo eles associam ao candomblé, se uma máscara eles acham que é coisa
do candomblé. É a falta de conhecimento. A gente tem que está trabalhando isso com eles, para
eles passarem a conhecer, deixarem de ignorar. Passar a conhecer mesmo. E tudo relacionado à
África eles acham que é do candomblé. Mas esse ano eu comecei trabalhando com eles a
literatura e venho percebendo que eles estão aceitando mais.
O que a professora coloca se confirma, por exemplo, nas atitudes dos/das
estudantes quando ouvem ou vêem imagens que simbolizam as religiões afro-brasileiras,
de acordo com o extrato de campo:
Um dia que estávamos com a 5ªC na biblioteca, logo que entramos, uma estudante de outra
turma procurou-nos, primeiro a professora de arte e depois veio falar comigo. Ela estava
incomodada por ter encontrado um nome igual ao seu no livro “Na terra dos Orixás”, de José
Ganymédes. Queria saber o que significava aquele nome no livro, quem era aquela menina que
tinha o seu nome e o que fazia. Queixava-se porque existiam tantos nomes e foram colocar
justo o dela, e na parte que tinha lido, o seu homônimo se vestia com as roupas dos Orixás.
Falamos que a personagem do livro tinha o mesmo nome dela e sugerimos que lesse todo livro
para entender a história. Quando explicávamos sobre os Orixás ali representados, víamos suas
roupas e instrumentos que carregavam. Ela olhava, escutava, porém usava as expressões:
“Deus me livre”, “vixe!”, “sai pra lá”. Perguntei o que a incomodava, ela disse que não gostava
do nome dela nessas coisas. “Que coisas eram essas?”, “Coisas de macumba, de Exu”. Disse
também que não tinha preconceito, que a tia freqüentava candomblé. Mas mesmo assim,
repetia, com ar incomodado e assustado, um “Deus me livre”. Conversamos mais um pouco e
sugeri que realmente lesse o livro para que aquilo que a incomodava pudesse ser esclarecido.
Deixei-a lendo.
“Passar a conhecer mesmo” tem sido o movimento para construir a relação
pedagógica na sala de aula, na inclusão das culturas negras. Um processo que envolve
estudantes, professora e o mundo acessado por eles/elas. Quando perguntava aos/as
estudantes o que conheciam das culturas africana e afro-brasileira, as respostas eram “não
conheço nada”,vatapá, carurú, acarajé”, “maculelê”, “as roupas”, “esculturas”. E embora
gostem muito do Pagode Baiano e do Hip Hop (arte com uma estética de transgressão e de
resistência), desconheciam a presença da cultura negra nesses movimentos musicais.
Durante o período de observação, não encontrei indicativos de que eles estão
aceitando mais” trabalhar os objetos artísticos que expressam as cosmovisões de matizes
africanas. As resistências não aconteceram de forma mais intensa, porque as abordagens
das imagens de arte expressavam também outras dimensões da vida nas sociedades
africanas, estudadas neste ano. E o fato de se buscar discutir os problemas do racismo
através da literatura foi outro encaminhamento pedagógico que não evidenciou muito a
166
questão da religiosidade, embora tenham surgido durante as discussões em sala, as imagens
negativas sobre o candomblé e as que criam as identidades de África no imaginário dos/das
estudantes.
Outro aspecto da associação entre a cultura africana e o “candomblé”, que
os/as estudantes reafirmam, é o fato do tema da religiosidade ser uma expressão da cultura
mais explorada pelo mercado cultural e pela mídia, as quais os estudantes têm acesso.
Além é claro, indiscutivelmente, de serem as cosmogonias africanas um grande princípio
estruturador de produção artística da cultura afro-brasileira.
Assim, em 2008, o trabalho pedagógico do CEPJBAB saiu do foco da cultura
afro-baiana e apresentou o projeto interdisciplinar Áfricas: um continente a ser descoberto.
As temáticas que envolveram a inclusão da história e cultura africana e afro-brasileira,
observadas nessa pesquisa, se deram paralelamente, desde o início do ano letivo, aos
conteúdos previstos nos plano de curso. Algumas temáticas foram articuladas com a
gramática visual, como por exemplo, o estudo dos polígonos e a confecção da bandeira do
país africano que a turma escolheu para estudar. Outras temáticas, que abordaram a
discriminação racial, foram trabalhadas através das histórias lidas em sala de aula. Mesmo
com sua estrutura interdisciplinar, o trabalho de arte envolveu a coleta de informações da
geografia física e social, da história e da arte do País estudado por cada turma.
Em Áfricas: um continente a ser descoberto, embora centrando os saberes em
África, o projeto ampliou a discussão para a necessidade de avançar nos currículos
escolares, na perspectiva de inclusão de todos os povos que compõem, o que eles chamam,
a “mestiçagem” do Brasil, ao afirmar:
A multiplicidade de raízes da nossa formação cultural não pode ser desconsiderada sob a pena
de se priorizar apenas a visão hegemônica e unilateral de mundo. O Brasil multicultural,
pluriétnico, deve ser estudado. Os currículos Escolares precisam contemplar o conhecimento
de todos os povos, sem exclusão. Assim, a grande maioria que compõe a mestiçagem do país
poderá reconhecer-se e ser reconhecida como detentora de valores humanos próprios e
partícipe do processo de desenvolvimento. Reconhecer que não desiguais, diferentes. O
respeito à diferença deve ser um dos sustentáculos de uma sociedade democrática, sonho de um
país justo e de uma sociedade marcada pela cidadania, pela inclusão (Documento Projeto Arte,
2008).
Na operacionalização da proposta pedagógica, o continente africano foi
dividido em regiões, ficando cada turma da série com uma dessas regiões, em que
escolheram o país que queriam estudar. Essa escolha foi feita nas aulas de geografia e,
segundo um estudante, essa se deu através dos nomes da coleta de dados que ele próprio
167
havia realizado. A partir dos nomes colocados na lousa, como por exemplo, República de
Camarões, região da África Ocidental, o critério da escolha foi a familiaridade com o local,
que neste caso se relacionou ao futebol. As outras turmas trabalharam com o Egito, Costa
de Marfim, Ruanda e África do Sul.
O projeto constou de duas etapas: a primeira etapa, intitulada “1ª Olimpíada do
Barreto: Levantando a Bola Africana”, foi subdividida na eleição Garoto & Garota de
Ébano, na festa Junina do muzongué com acarajé e nos jogos da olimpíada. A segunda
etapa, “Lendo um continente a ser descoberto”, foi realizada nas atividades de Lançamento
do livro Releitura de mitos africanos (não realizado) –, o Reggae no jardim atividades
folclóricas tematizadas –, o Meu Reflexo no Espelho – atividades lúdicas para
comemoração do dia das crianças, e a Mostra de Arte na culminância do projeto. Das
atividades planejadas foram realizadas a olimpíada, a eleição Garoto& Garota de Ébano e a
mostra de arte. Houve ainda uma aula de campo prevista em uma visita ao Museu afro-
brasileiro que não se concretizou, porque não se conseguiu transporte para levar os /as
estudantes. Todos/todas ficaram decepcionados/as, era uma visita ansiosamente esperada e
ainda no final do ano lembrada pelos/pelas estudantes: “a professora ia levar a gente para
museu, essas coisas. Eu nunca fui nesse lugar, nem a teatro”.
O trabalho pedagógico voltado para a África buscou produções artísticas
variadas das culturas negras nos cinco países escolhidos, para um diálogo com os/as
estudantes do CEPJBAB e a cultura afro-brasileira. Além dessas imagens, durante as aulas,
a professora, através de livros de histórias, trouxe questões de discriminação racial. Dentre
as imagens trabalhadas citamos: as bandeiras de países africanos, máscaras Bamileke da
República de Camarões; as ilustrações dos livros “Manu em noite Enluarada” e de “Uana e
Marrom da Terra”; e as músicas Zumbi e Raça Humana, de Gilberto Gil. As outras turmas
da série trabalharam com os “tecidos Baulê” da Costa do Marfim, o filme Hotel
Ruanda”, as pirâmides do Egito, as pinturas das casas dos Ndebeles da África do Sul com
foco na lei da frontalidade, e as músicas “África”, de Salif Keita, “Faraó”, do Olodum e o
Hino Sul Africano.
A formatação final do projeto, que culminou com a produção de ateliê e a
exposição, foi denominada “Brasil & África: em um único tom, cor e som”, e seu “objetivo
principal” é apresentado visando:
[...] Valorizar as identidades dos afro-descendentes através de releituras feitas
das culturas dos países africanos: África do Sul, Costa do Marfim, Camarões,
168
Egito e Ruanda oriundo do projeto África um continente a ser descoberto. Esse
projeto prestigia não somente as artes visuais, como também o canto, a música e
a dança. (Documento Projeto Arte, 2008)
A professora Carla explicou que os conteúdos que deviam fazer parte do
processo de inclusão das culturas negras, considerados importantes são “todos que
trabalhem a formação, o conhecimento sobre essa cultura que não precisa ser o
conhecimento artístico”. E mesmo afirmando que “não conheço quase nada, sei pouco
sobre essa cultura” (Entrevista Professora de Arte), ela pesquisou e instigou a produção de
visibilidade de espaços, e, portanto, de conhecimentos que foram produzidos. A
importância desses espaços são reconhecidos pelos/as estudantes, quando se referem à
produção das máscaras da etnia Bamileke, que nem todas as pessoas tem acesso a esse
tipo de cultura”(Estudante 5ª série C).
As identidades dos afro-descendentes são construídas em releituras, processo
de tradução da produção de ateliê no diálogo interpretativo, buscando referenciais em
objetos artísticos de países africanos e confirmando a arte como artefato da cultura que
produz identidade cultural.
A forma desse acesso, a qual passaremos a discutir, é que constrói o diálogo
interpretativo com as imagens escolhidas. Imagens que vêm ampliando, timidamente, os
conceitos de imagem de arte, à medida que são produzidas sobre suportes do cotidiano, ou
que encontram valores estéticos em estampas de tecidos. Sobre as escolhas das imagens, a
professora diz preferir “consultar e ouvir o aluno. Às vezes eles trazem questões que
apontam as imagens que vou trabalhar”. Embora com essa escuta, as escolhas das imagens,
no período de observação, ficaram mais centradas na ação da professora, pelos materiais
encontrados e pela sua escolha dentro dos entendimentos construídos para o projeto.
3.4.3 Diálogos Interpretativos: Fazendo, lendo e fruindo arte
É porque eu acho a arte muito bonita pelos desenhos […] Assim como a gente
fez a lixeira, pintando, colando [...] Muitos quadros, desenhando, sabe? Porque
eu acho muito importante. Antes eu achava bobagem, porque pensava que era
idiotice, mas depois quando eu vim estudar aqui eu vi que a arte é muito
valorizada por outros países [...] Que não é no Brasil. Que tem muitos países
que fala sobre a arte. (estudante da 6ª série).
Pintando, desenhando e colando, em tela, papel, tecido e lixeiras feitas de
papel, o que antes era pensado como “idiotice” ou “bobagem” é (re) significado: a arte é
169
algo importante. O trabalho pedagógico tem dado acesso à multiplicidade de artes nos
“muitos países” revisitados e não apenas no Brasil. Discorremos, então, na perspectiva de
evidenciar, nesse acesso, o envolvimento de problematizações, escutas e produções, nos
diálogos interpretativos com as imagens de arte das culturas negras e no processo de
mediar o olhar do/da estudante e o objeto artístico. Imagem que, na sua linguagem como
expressão e impressão, possibilita construir identificações.
Nas 44 horas/aula de observação na série, turma C, o ato pedagógico, do
ponto de vista metodológico, desenhou-se centrado em uma linha mais expositiva, algumas
vezes dialogal e reflexiva, e outras dirigidas e depositárias de informações. Mas os/as
estudantes são provocados, continuamente, a participarem: seja através de perguntas que
são levantadas pela professora; nas leituras dos textos (apostila) que contêm os conteúdos,
em que eles/elas são voluntários; nos trabalhos de pesquisa em grupo, em que os conteúdos
eram construídos nos materiais coletados pelos/pelas estudantes; ou no que a professora
levava pronto, mas solicitava a aquiescência do grupo.
Os procedimentos metodológicos adotados pela professora, de um modo geral,
mantinham o corpo do/da estudante limitado ao espaço da carteira, onde permaneciam
sentados durante a aula. É claro que eles/elas burlavam essa condição. Sem vivência com o
corpo e o espaço na sua exploração tátil, olfativa, gustativa e auditiva os sentidos não são
despertos (DUARTE Jr., 2003) e nem convidados a se tornarem mais visíveis no processo
de aula. Os procedimentos adotados e presenciados, durante o período de observação da
pesquisa, não nos informaram sobre uma proposta da educação do sensível, um saber
sensível” que considera a presença de todo o corpo na apreensão do mundo, do
conhecimento, ali naquele espaço.
um núcleo básico de conteúdos que concentra o conhecimento em arte em
parte de seus elementos composicionais e outros do desenho geométrico (ponto, linha, cor,
polígonos). A partir deles são articulados os conhecimentos com a história da arte, citando-
a mais do ponto de vista das características técnicas e estéticas, esta última enquanto estilo.
Assim, os conteúdos da gramática visual foram estudados nos seus elementos de
composição visual com ênfase nas suas definições abstratas e com alusões na sua
caracterização dentro de uma imagem ou nas suas articulações com as produções. Há nesse
breve momento de associação com imagens da história da arte uma acentuada escolha
pelas imagens da arte ocidental. E, lembrando McLaren (1987), a ênfase nos ícones da
170
“alta cultura” constituem na prática pedagógica o caráter de dominação, pelos valores
culturais e sociais incutidos nessas imagens, e o processo de exclusão.
A presença dos referenciais estéticos das grandes obras” nas escolhas das
imagens pode ser vista, por exemplo, quando se estudou o elemento visual ponto,
ilustrando-o em imagens pontilhistas de Paul Signac e Seurat; no estudo das formas,
considerando os polígonos, costurou-se a relação com o cubismo, na arte de Pablo Picasso
e no abstracionismo de Samson Flexor. Contudo, o trabalho pedagógico, lembrou também
de JC Barreto, artista da comunidade, que faz interferências com mosaicos,
reaproveitamento de materiais e pinturas no entorno da escola, e também de Bel Borba,
artista conhecido por suas interferências nas ruas de Salvador. A partir das definições dos
elementos visuais e na visualização de algumas imagens, os/as estudantes produziam os
seus trabalhos artísticos, desenhos pintados com lápis de cor e canetas hidrocor. E na
primeira unidade foi feita uma avaliação de múltipla escolha sobre esses conteúdos.
Essas foram aulas que ocuparam grande parte das e unidades, sendo, no
entanto, entrecortadas por outras aulas que traziam os encaminhamentos para a
operacionalização do projeto de inclusão das culturas negras e àquelas que discutiam
temáticas de discriminação a partir de contação de histórias. Algumas aulas que
predominaram nas duas primeiras unidades apresentaram o que Hernandez (2000)
considera como práticas escolares que restringem os processos de leitura e produção, por
não explorarem, nos conteúdos das imagens de arte, suas dimensões, além, por exemplo,
dos elementos visuais. A partir de uma apostila, material produzido pela professora, as
aulas transcorriam assim, de acordo com o extrato do diário de campo:
Um estudante lê em voz alta um texto sobre o cubismo, do estudo dos polígonos, e aqueles que
trouxeram acompanham nas suas apostilas, outros participam pouco, às vezes, não escutando o
que acontece. De vez em quando é preciso parar e chamar a atenção do grupo que conversa ou
brinca. Quando termina a leitura, a professora explica os conceitos lidos, essa forma de
trabalho é recorrente na sua metodologia. A professora fala sobre o quadro “Mulheres
D'avignon”, de Pablo Picasso como marco do cubismo e menciona as máscaras africanas que
são as protagonistas desse estilo que ele inaugura. Ao término da explicação, propõe para casa
a atividade 1 da apostila fazer um desenho, observando a rua da janela da casa de cada um.
Logo uma voz indaga: “A minha casa é colada na outra como faço?” Ele não tem janela, essa é
uma realidade na experiência daquele estudante. A professora para um pouco, e logo depois
sugere “olhe da rua e desenhe o que está vendo” (notas de campo, junho de 2008).
171
Figura 24: Representação do estudante de uma vista da rua
A representação acima apresenta o olhar que o estudante traduziu da sua rua: perde-
se a perspectiva de uma visão da janela, de um local mais específico e espelha-se uma vista
aérea e, simultaneamente, frontal no traçado imaginário de uma linha do horizonte
projetada à sua frente e à suas costas. O seu olhar de enunciação assume diferentes
posições, o que não deixa de apresentar uma característica do cubismo estudado.
Embora a aula exemplificada confirme a questão posta por Hernandez (2000),
a professora, mesmo que brevemente, aludiu a presença da arte africana no cubismo,
situação que em outro momento, antes da Lei 10.639/03, possivelmente, passaria sem
comentários. Ao solicitar a atividade, a professora compreende que está possibilitando um
ensino que significado a partir do que o/a estudante traz da sua vida, sendo, então, essa
uma oportunidade de “conhecer mais o meu aluno” (Entrevista Professora de Arte). Ao
solicitar o desenho trazendo a rua do/da estudante, uma busca pelos referenciais os
quais o/a localizam no seu contexto social e cultural, concretizados no lugar que mora. E,
ao mesmo tempo, a visão dele/dela pela janela é uma imagem cena do cotidiano, de sua
realidade imediata e, portanto, um objeto estético que é congelado, interrompido de seu
fluxo cotidiano na sua existência com os sujeitos que por ali transitam. Esse congelamento
da história, o que foi retido, ao produzir uma nova leitura, é uma oportunidade de olharmos
o que está sendo refletido daquele contexto, reiterando em Linhares, que em parte a arte
está “atrelada ao existente” (2003, p. 116). Essa foi uma via não apenas para a professora
conhecer mais o seu “aluno”, porém é um caminho também do/da estudante se conhecer e
se fazer conhecido, à medida que essa produção de ateliê se entranhe na construção de
172
leituras críticas, constituindo-se em um processo de aventura na sala de aula ao dialogar
com diferentes olhares perspectivados de ‘janelas’ sobre o espaço de cotidiano.
A proposta do Ensino da Arte, no CEPJBAB, referenciada na abordagem
triangular, possibilitou, em alguns momentos, articular e imbricar o projeto interdisciplinar
África um Continente a ser descoberto como contextualização à leitura de imagens e à
produção de ateliê com os conteúdos elencados da linguagem visual. Nas considerações de
Barbosa, a contextualização estabelece relações e é através dela que “se pode praticar uma
educação em direção à multiculturalidade e à ecologia, valores curriculares que definem a
pedagogia pós-moderna acertadamente defendidos pelos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN)” (BARBOSA, 1998, p.38).
A forma operada no processo de mediação do olhar trouxe a possibilidade de
uma interpretação nas dimensões política e histórica das imagens escolhidas das produções
artísticas das culturas negras e daquelas imagens que traziam questões que abordavam os
problemas sociais, a exemplo da discriminação racial.
Nos diálogos interpretativos, construídos no processo das aulas, muitas das
provocações eram previsíveis nas respostas, não instigando a percepção ou leituras
polissêmicas. Outros, no entanto, buscavam uma atuação dos/das estudantes nos seus
papéis de protagonistas de histórias que os envolviam.
Por exemplo, após a leitura da história de Uana e Marron da Terra, de Lia Zats
(2007), as questões centravam em uma interpretação maior no texto escrito e com pouca
ênfase nas imagens e no processo de produção de leitura em arte. As questões, de um modo
geral, não incitavam diferentes possibilidades de respostas, como: “Quais as personagens
principais da história? A quem ela perguntou se poderia morrer? Uana volta para a escola
após três dias com sua boneca no colo. O que ela disse aos colegas? Se você fosse Uana e
recebesse uma boneca, como Marrom da Terra qual seria sua reação?” Se observarmos, no
questionário oral realizado, das dezoito perguntas apenas uma última possibilita o/a
estudante trazer sua experiência.
Esse livro faz parte da coleção Marrom da Terra, formada por cinco livros, dos
quais dois foram trabalhados em sala, e em cada um o relato de uma criança negra que
vive os conflitos de identidade étnico-racial na escola.
Na história, de acordo com o extrato de notas (maio de 2008), Uana, é uma
criança negra, deve ter seus sete anos, e está hospitalizada por ter contraído sarampo. Ela é
173
representada de forma estilizada, e suas pernas se distanciam da figuração humana,
aproximando-se mais da figuração de uma formiga ou de outro inseto. Uana se sente
amedrontada ante a expectativa de morte, lembranças de seu primo. Não tem coragem de
perguntar a mãe sobre sua situação física, mas tem coragem de perguntar a uma
enfermeira, descrita como umrobô fantasiado”, que a atormenta, aumentando seu medo e
faz um comentário extremamente perverso, que não é explorado na história e nem na
leitura em sala “Sarampo não é moleza não. Se não obedecer direitinho é bem capaz de
virar anjinho... ou quem sabe um diabinho, pois anjinho preto eu nunca vi”. Essa
enfermeira sem rosto apresenta-se como uma pessoa jovem, um corpo delineado, cabelos
pretos e tez morena. outra enfermeira que é “boa” e que a conforta no seu medo. Essa
personagem branca tem o ar senhoril e sua face é sugerida pelo desenho do óculos.
Uana recebe de presente dos pais, durante a visita, uma boneca, na qual ela se
reconhece e se identifica (a boneca é representada com traços semelhantes às bonecas
“Barbie”). Mas um conflito se estabelece: a boneca negra como ela, a qual não sabe se a
acha bonita ou feia, pode ser apelidada de “piche”, fato que acontecera com outra colega, e
pode vir a ser discriminada nas brincadeiras da escola, assumindo um papel de empregada.
Mesmo considerando o posicionamento social em que os negros são colocados, com
reforço da mídia televisionada, em relação ao branco, a autora constrói essa questão de
forma negativa – quando também discrimina à condição de tornar-se empregada.
Estamos tratando de um problema social que dói epidermicamente, construindo
outro. Uana volta a olhar sua boneca que havia escondido sob os lençóis, percebe uma
mudança na sua aparência, agora com trancinhas e vestido com estampas geométricas,
embora antes ela também se apresentasse com um estilo de roupas que a identificava com
as culturas africanas. Quando a viu assim, achou-a mais bonita (novo processo de
discriminação pela aparência, que reforçam na nossa sociedade os estereótipos da imagem
do negro) e reconsiderou o branqueamento a que ia submetê-la. Ao ouvir uma história da
princesa africana, contada pela boneca, teve sua auto-estima elevada. Ao mesmo tempo, a
apropriação da história agiu sobre o seu imaginário, mudando sua posição e a configuração
– jogo de poder – no cenário de brincar da escola.
174
Figura 25: A menina Uana
igura 26: A boneca Marrom da Terra
Figura 27: Enfermeira que amedronta Uana Figura 28: Enfermeira “boa”
Mesmo com a previsibilidade da grande maioria das questões, os lugares das
experiências dos/as estudantes espectadores provocaram respostas outras que, durante a
entrevista, tive a oportunidade de escutar, verificando que a história havia mobilizado,
principalmente, as meninas. Durante o período de observação, a professora leu três
histórias, das quatro previstas no planejamento. Ao perguntar aos/as estudantes qual das
histórias haviam gostado mais, citaram “Flict”, de Ziraldo e “Uana e Marrom da Terra”.
Consideraram a boneca Marrom da Terra muito bonita e compreendiam a atitude de Uana
em querer escondê-la.
Comentaram ainda sobre a posição da boneca nas brincadeiras, comparando-a
com o que acontecia em outras situações: “as novelas também fazem isso” (Entrevista
Estudante série C). Sobre a história, uma estudante disse que: [...] falava sobre várias
coisas: que ela ia para a escola e os colegas ficavam rindo da cara dela, porque a boneca
175
dela era negra, cheia de tranças no cabelo. os colegas dela ficavam fazendo gozação
com a cara dela” (Entrevista Estudante 5ª série C).
Outra estudante contestou a discriminação presente na história: Porque eu
acho assim, que é racismo, nós não podemos ter racismo. porque ela era preta e tinha
trança no cabelo ai achavam que branco é que tem mais valor e preto é desprezado?”
(Entrevista Estudante 5ª série C)
E ainda, na fala de outra estudante, partindo da questão da discriminação racial,
surgem, entre dúvidas, afirmações e paradoxos, imagens que apresentam vários referentes:
na própria história lida na sala, no que o povo” fala, na experiência com seus vizinhos e
no que ouviu em um filme. O que nos apresenta assim:
Eu achava assim, a menina podia ser negra como for, mas por dentro era branquinha.
Por dentro a gente não sabe qual é nossa cor verdadeiramente. A gente assim por fora
é uma cor e por dentro a gente não é a mesma cor. Sei lá, a gente é negro de qualquer
jeito, sempre ouvi o povo falar. mesmo na rua tem uma moça preta, preta. Não.
Preta é uma cor, ela é bem morena, morena mesmo, tem a pele escura e teve uma filha
branquinha. Deve ser que o pai é branco, é uma mistura de cor. A idéia é que nós
somos todos negros não importa a cor. (estudante 5ª série C)
Pedi, então, que me explicasse “a idéia” de que somos todos negros não
importa a cor”:
Eu acho que todo mundo é negro porque o sangue é da mesma cor e todo mundo não
pode ser melhor do que ninguém todo mundo não é perfeito todo mundo é igual e o
sangue é a mesma cor, por isso todo mundo é negro, o sangue é vermelho. Dizem que
uns tem sangue azul, mas todo sangue é vermelho. Pra mim todos somos negros
porque toda nossa raça... Porque quando alguém bate na gente o mesmo sangue que
sempre sangue de todo mundo é igual e quando alguém bate na gente a gente começa
a chorar todos igual. Por dentro não... todo mundo é da raça negra. Tem um filme Ó
Paí, Ó que tem a parte que um branco... ouço... e ele fala assim a gente não é negro?
Quando bate a gente, não sangra igual? Quando a gente toma um tiro, a gente não
morre igual? (fala com a voz imitando o personagem do filme, a que se refere).
As ilustrações as quais tiveram acesso na leitura do livro de Uana e Marrom
da Terra, enquanto imagem de arte, embora não tenham tido um processo de mediação em
diálogo mais exploratório, nem por isso deixaram de suscitar, ainda que posteriormente,
significados outros, emprestados pelos/pelas estudantes, que não apenas àqueles
claramente manifestados pela autora. Os/as estudantes estão produzindo posições e espaço
a partir do diálogo que a história provocou, mas que se alimenta do conhecimento que o
seu cotidiano lhe fornece. De acordo com Hernandez: “Buscar exemplos na cultura que nos
176
cerca tem a função de aprender a interpretá-los a partir de diferentes pontos de vista e
favorecer a tomada de consciência dos alunos sobre si mesmos e sobre o mundo de que
fazem parte” (HERNANDEZ, 2000, p. 30).
A sala de aula sediou um encontro em que vários posicionamentos e (re)
formulações sobre representações negativas do negro com relação a seu corpo puderam ser
expostos. Esse encontro, anterior ao da história de Uana, foi motivado a partir da história
de Manu. Uma história infanto-juvenil que, tal como a de Uana, traz uma situação do
cotidiano escolar vivida por crianças negras. O preconceito, a discriminação racial e os
estereótipos são revelados na imagem do negro onde, nessa história, o bonito é ter cabelo
liso, associando o cabelo crespo com o ‘ruim’.
De acordo com as notas de extrato de campo (abril, 2008):
Manu é uma criança que se considera um grande desenhista, profissão a qual pretende
seguir. Em uma atividade solicitada pela professora se “impossibilitado” de desenhar
sua família após presenciar, na sala de aula, uma briga de dois colegas, envolvendo
racismo e discriminação. Um colega havia provocado o outro ao rir da representação de
sua família “negros de cabelos lisos” e comentar que “preto tem cabelo ruim, que parece
palha de aço”. A professora interfere na briga, e na imagem aparece ela segurando o
menino negro pela gola e isso traduz um movimento de maior agressão deste pela própria
inclinação do corpo e a sua expressão facial; enquanto o outro, branco, é apenas detido por
sua mão e traz um sorriso cínico no rosto. A professora questiona sobre o fato de todos os
cabelos representados serem lisos, ao perceber os desenhos no varal. Uma menina
responde que cabelo liso é que é bonito, e que a mãe dela estica e puxa seus cabelos todos
os dias, “eu fico mais parecendo uma japonesa preta”. Todos dão risada e a questão não é
discutida, fato justificado pelo término da aula. Manu vai para casa vivendo esse conflito,
deita mais cedo e dorme ouvindo no rádio da vizinha a música “banho de lua”. A noite,
durante o sonho, se branco de cabelo liso após um “banho de lua”. Como não foi
reconhecido pelos pais é mandado embora de casa. Acorda assustado, porém se sente feliz
por se (re) conhecer negro e desenha toda a sua família de cabelos crespos, porém com
diferentes penteados. Na escola todos admiram a beleza dos cabelos ao que ele responde
ser sua mãe “a melhor cabeleireira afro da cidade” (ZATS, 2007, página sem numeração).
177
Figura 29: A professora interfere na briga Figura 30: Processo de branqueamento de Manu em sonho
O processo de mediação da história de Manu foi construído de acordo com o
relato do extrato de notas do campo (abril de 2008), descrito abaixo:
No processo que envolveu a leitura, várias questões, presas ao que era visível no texto, foram
levantadas pela professora e os/as estudantes iam se colocando, alguns trazendo suas próprias
experiências, suas leituras e seus conceitos em relação ao tema. Acharam a história “legal”,
“interessante as figuras” e que “falava um pouco de todas as raças”. A história se refere sempre
ao “preto” e existe o momento em que a menina negra evoca para si a imagem de uma
”japonesa preta”. Nas ilustrações, aparecem a professora e mais três crianças brancas com
cabelos de cores diferentes, e mais cinco crianças negras. Portanto, possivelmente a observação
da estudante de que a história fala de “todas as raças” construiu uma ampliação que incorpora o
negro, o branco e uma alusão ao japonês. A professora questionou “sobre o motivo da briga
entre os dois colegas”. As respostas foram “Estavam dando risada da família do outro”, “Por
causa do cabelo”, “A família dele tinha cabelo crespo”, “Preconceito”, Disse que o cabelo
era duro e parecia palha de aço”, “Racismo professora!” e ”A família tem cabelo de “bombril”.
A professora chamou a atenção sobre o termo “cabelo de bombril”, perguntando à turma se no
livro era essa a imagem associada ao “cabelo ruim”. Ela, então, torna a interpelar: “O menino
se chateou com razão? O adjetivo feio. O cabelo é crespo, não é ruim. O cabelo é malvado para
ser ruim?”. A professora tenta retirar toda a carga semântica que essas palavras carregam
historicamente no contexto do eurocentrismo, ao buscar uma similaridade sinonímica entre
ruim e malvado, para desconstruir uma imagem do poder, secular, do discurso de
embranquecimento.
178
Segundo Pinho, as “representações negativas de negritude no Brasil têm suas origens
no período da escravidão” (PINHO, 2004, p.110). Para a autora, na maioria das colônias onde os
negros foram levados se construiu o discurso de que “o negro é feio”. “Para complementar a
suposta feiúra da cor, os cabelos crespos e os traços grossos revelariam a falta de refinamento e a
agressividade do negro, que as representações acerca do fenótipo denotariam características da
índole ou dos “dons naturais” (idem, p. 113). Continuando o relato:
Os/as estudantes passaram a justificar as escolhas pelo tipo de cabelo, naturalizando as
representações dominantes sobre um padrão de beleza que revela a atuação de poder da
“violência simbólica” através de quem o legitima: “A pessoa pode fazer o que quiser com seu
cabelo”; “Passar ferro”; “A gente deve se aceitar do jeito que é”; e “Alguns cabelos não
combinam com o jeito da pessoa”.
A questão do cabelo é definidor do divisor dos valores estéticos negro e
branco. Para Sodré, essa questão parece constituir uma espécie de índice semiótico da
revalorização identitária” (SODRÉ, 1999, p. 253).
A professora Carla cita como exemplo a matrícula no CEPJBAB, na qual pessoas que não
se reconhecem negra e respondem ser parda ou morena. Ao falar dos preconceitos em relação
aos negros, ela traz exemplos relacionados ao candomblé. Uma expressão ecoa na sala – “Deus
é mais!”. A professora escuta o comentário e observa que depois falará sobre esse assunto. Diz-
se católica e chama atenção para o preconceito no comentário do estudante, por associar o
“candomblé à coisa do diabo”. Diz ainda que “nem existe tal figura no candomblé”. Compara
as religiões, dizendo, inclusive, que a igreja católica é a que mais respeita as outras, não
inventando nada sobre as outras religiões.
Em outra ocasião, após ter participado do “Seminário Internacional sobre
Criatividade no Âmago da Estética do Sagrado”, promovido pela Sociedade de Estudos da
Cultura Negra no Brasil (SCNEB), a professora havia deslocado a sua posição em
relação à visão das outras religiões sobre o candomblé. Em um diálogo com os estudantes
colocava que a Igreja Católica era uma das responsáveis, aqui na Bahia, pelas imagens
negativas que associavam o candomblé ao diabo, e que essa era uma invenção dessa igreja.
Reafirmou a necessidade de “conhecer mais a nossa origem” e falou sobre a Europa e África, a
formação do povo brasileiro, relembrando a história: “primeiro os índios, depois o europeu e
depois chegaram (sic) os africanos”. E concluiu dizendo que: “no final somos todos brasileiros.
Não existe cultura superior a outra”. Voltou ao diálogo final com a história, perguntando sobre
a “mensagem” que essa “passou”. Escutamos: “Cabelo afro”, “Tomava banho e ficava
branquela”. A professora replica “Branquela é forma de racismo”. Alguns/algumas
179
estudantes não concordam que “branquela” seja um racismo e a discussão retoma. Em outra
situação uma estudante da 6ª série já havia me falado ter sentido a discriminação por ser “assim
mais clara”. Para ela: “tem gente que me chama de ‘branquela azeda', eu não ligo... Eu não
tenho preconceito a negro... Ele tem preconceito aos brancos”. Um estudante relatou, ainda,
ter sonhado com o seu cabelo liso e a professora perguntou se ele não gostava do cabelo dele.
Ele disse que sim, mas que preferia liso, gostava mais. Já outro estudante relatou que “foi
chamado” na escola quando passava: “Ô seu preto de cabelo duro”. E ele havia respondido:
“sou preto de cabelo duro com muito orgulho”. A turma aplaudiu e ele continuou: “Você não
sabe nem o que é ser preto”.
Esse foi o diálogo construído na mediação do trabalho pedagógico que
permitiu emergir como cada um via e vivia essa situação, mas sem problematizar sobre o
porquê dessas imagens. Contudo, a professora mediou o diálogo com as questões
suscitadas na história pelos/pelas estudantes, a partir das suas falas, mesmo com seu roteiro
de perguntas. Após o diálogo de leitura, a professora solicitou que cada estudante fizesse o
desenho de sua família.
Conversando com os/as estudante sobre os desenhos produzidos, 30 dias após a
leitura da história, teve um que me disse: minha mãe tem cabelo duro” (entrevista
estudante 9). Imediatamente uma estudante respondeu: “duro não”, interferindo na forma
pejorativa a qual seu colega se referia ao cabelo. Os diálogos sobre as questões do livro
Manu em Noite Enluarada já repercutiam na mudança de atitude de alguns estudantes.
Nas suas falas e nos desenhos aparecem a afirmação e recriação do biótipo da
família, indiferença, naturalização da cor da pele como a cor branca dos/as estudantes e o
rompimento com o discurso na dicotomia “preto versus branco”, emergindo outras
respostas “Eu fiz minha família de verde” (estudante 7). Os/as estudantes, constroem
plasticamente as leituras produzidas sobre as características físicas de suas famílias,
voltados para a solicitação da professora, mas trazendo a forma que cada um/uma digere a
temática da história de Manu, conforme trechos da entrevista transcritos abaixo:
Estudante 1: Desenhei minha família como ela é. Meu pai tem o cabelo marrom e crespo.
Pintei de marrom bem claro.
Estudante 2: Eu fiz do jeito que minha mãe é. E eu não botei do jeito que minha mãe é cabelo
liso. Não pintei porque não trouxe o lápis. Eu fiz do jeito que minha família é, não precisei
mudar para ser bonita. Eu gosto dela do jeito que ela é.
Estudante 3: Desenhei de qualquer jeito.
180
Estudante 4: Desenhei minha mãe, meus irmãos e eu. Deixei da cor da pele. (O papel é branco)
Estudante 5: Aqui ta minha mãe com os cabelos cacheados, meu pai meio careca. Aqui devia
ser eu e aqui meu irmão.
Estudante 6: Eu fiz minha família do jeito que ela é. Todos têm cabelos l(...) Alguns de cabelos
lisos, outros de cabelos cacheados, alguns mais fortinhos, alguns mais magrinhos, alguns mais
menores, alguns mais maiores, têm uns mais branquinhos outros mais moreninhos, só não
pintei muito porque não tinha lápis de cor ideal para pintar a cor deles .
Na figura 31, um dos desenhos apresentados pela estudante, a família mãe e
irmãos foi representada através de personagens com características do desenho animado
“Meninas Super Poderosas”, desenho americano, que mistura elementos de personagens
japoneses do estilo mangá. Os desenhos de mangá, que influenciam muitos jovens e
adolescentes, são reflexos do movimento global sobre o local e que a estudante articula
plasticamente, modificando o figurino e mantendo, do lado direito, a forma de uma casa
com características mais próximas do bairro em que mora. A sua família, ao ser
caracterizada com traços do estilo mangá, alude ao fato citado da “japonesa preta”, por ter
seu cabelo tão esticado pela mãe e modificar sua expressão facial na história de Manu. Os
desenhos animados são referencias que a estudante está tendo acesso fora da escola, mas
que ela trouxe para a sala de aula na linguagem visual, ao serem disparados nas suas
interpretações durante o processo de leitura com a história.
Figura 31: Produção de uma estudante representando a sua família
181
Nas aulas de arte, outros diálogos interpretativos provocavam um olhar mais
crítico, convocando os/as estudantes a ocuparem seus lugares na cena da sala de aula e no
mundo, ao possibilitar atuarem como estudantes/espectadores protagonistas
(DESGRANGES, 2003). Um desses momentos ocorreu durante uma aula na biblioteca da
escola, conforme extrato do diário de campo descrito a seguir:
A turma foi à biblioteca do colégio, a professora quer incentivá-los à coleta de materiais
que os informem sobre a República de Camarões, país que desde o início do ano eles
escolheram para trabalhar. Essas informações desenharão os caminhos para a produção de
ateliê. Ela propõe que todos/as separem informações que encontrarem nos livros da estante
de geografia, história e da coleção da Barsa
32
. Após algum tempo de procura, os/as
estudantes encontram, na Barsa, alguns dados geográficos sobre Camarões e informações
sobre a arte africana. Nos demais livros nada é encontrado. A ausência de referências, o
folhear os livros e não ter o prazer da descoberta de alguma informação gera inquietação e
as reclamações começam a tomar corpo naquele pequeno espaço. A professora, então, faz
uma provocação: Por que será que a maioria da turma não tem material sobre
Camarões?” E pede: “Reflitam sobre isso.” O silêncio toma conta daquele espaço,
ninguém responde. Ela insiste: Onde fica Camarões?” Todos/as respondem que na
África. A professora, então, abre um livro de geografia e começa a ler todo o sumário,
mostrando que cada capítulo daquele livro era sobre a Europa. o título do livro
“Geografia Crítica”. Lança uma pergunta ao grupo: Vocês sabem o que é crítica?”. Os/as
estudantes dizem que é criticar alguma coisa”. Ela torna a indagar: “Como a gente pode
aprender a criticar alguma coisa se aparece Europa e o Brasil é formado por uma
mistura?” “Por que vocês estão enfrentado dificuldades? E aí? Isso é um problema”. Agora
uma parte da turma permanece em silêncio, a outra conversa como se não escutassem.
A professora insiste: Eu quero saber o seguinte, o que vocês acham disso? Por que será?
Por que ainda não tem no livro didático, mesmo com uma lei aí obrigando? Obrigando
(repete com ênfase), porque teve que ter uma lei (refere-se a Lei 10.639/03) para obrigar.
E agora? Tem também dos indígenas. Porque problema a gente tem que levantar no
projeto. Isso é um problema? Escutamos um sim” de muitas vozes. O silêncio é
quebrado. A professora não para: Hei gente! Eu estou fazendo uma pergunta, vocês não
sabem me responder?” Um estudante responde indagando: “Qual é a pergunta?” Ele não é
escutado, o barulho da turma agora é maior, e ele silencia. A professora insiste mais uma
vez: “A Europa tem demais. Vocês não acham estranho?”. Como ninguém responde, a
professora pede para que alguém repita a pergunta feita por ela. Uma estudante,
32
Não existem livros, na biblioteca, sobre arte africana e afro-brasileira e um volume com temas
envolvendo as culturas negras, de Marina de Mello e Souza, “África e Brasil Africano”, editora Ática.
182
rapidamente, informa que a pergunta era “o que é estranho?”. Ela diz que não foi isso que
havia perguntado e a turma ri. Outra estudante se manifesta: “Professora a senhora
perguntou por que os livros da escola não têm falando (sic) sobre a África e Camarões”. O
mesmo estudante que, anteriormente, não havia sido escutado, apressadamente, procura
responder, aumentando sua voz: -Eu sei professora”. A professora volta-se para ele “É
que os países da África têm pouca coisa e a Europa tem mais poder para poder fabricar o
livro. E as pessoas do Brasil não querem fabricar, porque quer fabricar o do Brasil e os
da África eles que fazem lá”. A professora intervém: que esse livro aqui é da editora
Ática que é do Brasil” (mostra o livro que fala da Europa). A turma começa a
manifestar a sua opinião, todos querem falar. Uma diz que é racismo e condena isso: “é a
mesma cor, é a mesma raça, que não importa todo mundo é humano. Todo mundo tem
direito”. Outro diz que: “os africanos também fazem parte da cultura do Brasil, senão o
Brasil não ia ser tão misturado assim”. A professora volta a questionar: “E qual é o
prejuízo que isso causa para nós, enquanto brasileiros. Essa falta de informações sobre a
África? Quem gostaria de responder?” E ouvimos de uma estudante: “Isso é prejudicial
que é como se o negro não tivesse seu direito. Quando o negro não conhece seu próprio
país de origem e que anulam esse direito é como se o branco tivesse valor”. A
professora repassa para a turma essa afirmação, para que todos escutem a fala da colega. O
intervalo se aproxima, sabem que terão que buscar outros lugares e fontes para a coleta de
dados. Guardam os livros na estante, o burburinho é geral. Ao passar por uma mesa,
escuto um estudante lembrando com os outros colegas porque escolheram Camarões para
estudar. Uma estudante se aproxima e começa a me contar sobre sua experiência, dias
atrás, quando foi visitar a sua antiga escola, e participou de um encontro com um africano
do Senegal. A experiência vivida na aula de arte suscitava as suas lembranças, traziam
outras leituras por ela produzida, as quais descreverei adiante.
Essa rica cena do cotidiano da sala de aula nos oferece sorver um momento do
trabalho pedagógico no Ensino da Arte, envolvendo a experiência da problematização
“porque problema a gente tem que levantar no projeto”. A arte não é apenas busca de
solução, sobretudo ela é invenção de problema. Todos/todas
estudantes/espectadores/protagonistas e a professora, nessa experiência, tornaram visíveis
espaços negados nos livros, existentes naquele local, e por extensão na realidade brasileira,
para as culturas africana e afro-brasileira. Ao mesmo tempo, evidenciaram a posição de
dominação ocidental e, conseqüentemente, do espaço de branqueamento: “é que os países
da África têm pouca coisa e a Europa tem mais poder (grifo meu) para poder fabricar o
livro”.
183
Nos silêncios e nas falas, nas muitas perguntas sem tempo para digeri-las, bem
como nas dificuldades de compreendê-las, todos procuravam enxergar sobre o nevoeiro
que encobria as verdades (FREIRE, 2005) para a ausência de informações. Naquele
momento, essa ausência significou também um impedimento ao direito” de acesso ao
conhecimento dos/das estudantes e que apareceu sobre a forma do pré-texto da história e
da cultura da República de Camarões. História e memória, desconhecida e estranha,
respectivamente, que, até pouco tempo atrás, faziam do espaço da escola uma “sede de
vigorosa alienação” (SANTOS 1987). E a estudante presentifica memória e história
quando, na sua fala, percebe o alcance desses ocultamentos: “quando o negro não conhece
seu próprio país de origem (...)” é retirado dele o direito de reconhecer-se.
Esse direito, negado aos saberes do Outro afro-descendentes pelos
discursos dominantes que posicionam e produzem identidades no espaço da sala de aula, é
revelado nas palavras da estudante “como se o branco tivesse valor”. “Valor” que tem
sido parâmetro na sociedade brasileira mais de quinhentos anos e imposto como
verdade universal. O reconhecimento do prejuízo que tal parâmetro nos causa, a partir do
que nos constitui como sujeito social e cultural, é elaboração operada no processo de
rasuras que começam a se desenhar no espaço da turma de 5ª série do CEPJBAB.
É fato que não houve a imagem de arte materialmente apresentada naquele
espaço, o que caracteriza objetivamente uma produção em artes visuais. Mas é fato,
também, que a imagem ou objeto evocado, através das informações culturais e históricas
da República de Camarões, produzindo-se como significado na consciência (SANTOS,
1996) envolveu um processo de leitura crítica (HERNANDEZ, 2000), levando os/as
estudantes a questionarem o porquê” daquela realidade apresentada. O que confirma o
conhecimento como processo de exame da realidade de forma “questionadora” e como
construção de visões e versões dos problemas.
Acrescente a isso o que Barbosa fala do quanto é fundamental a leitura “(...) de
palavras, gestos, ações, imagens, necessidades, desejos, expectativas, enfim, leitura de nós
mesmos e do mundo em que vivemos”. (BARBOSA, 1998, p.35).
A leitura da imagem é um elemento relevante no diálogo interpretativo. A
forma operada na leitura de imagem, considerando as imagens de artes visuais nas
modalidades citadas pelos PCN escultura, pintura, performance, cinema e outras –, não
foi trabalhada pedagogicamente na sua sistematização. Trabalho que envolve um processo
184
de apreciação, decodificação e interpretação, em que forma e conteúdo são vistos
criticamente em relação a uma realidade concreta (KELLNER, 2005), de modo a explorar
o olhar do/da estudante na sua relação com o objeto artístico. Nas aulas em que as imagens
são mostradas, o olhar do/da estudante sobre elas não se detém mais que alguns segundos,
não oportunizando viver uma aventura exploratória pela imagem. Nenhuma das aulas
observadas foi construída para esse fim, embora o compromisso com a formação do leitor
crítico apareça nos textos do projeto pedagógico. A professora, posteriormente, colocou as
restrições que impossibilitaram o processo de leitura, por não ter domínio desses processos.
Assim, as imagens de arte foram utilizadas para ilustrar os conteúdos. Mas é fato que as
leituras estão se processando.
Observei que muitas leituras aconteciam sobre outras imagens, sem que fossem
esse um propósito intencionalmente e previamente projetado na ação da professora ou que
houvesse a consciência de que aquela ação se constituía em um rico processo de leitura de
imagem do cotidiano e que confirmava, então, o conceito de leitura crítica apresentado por
Kellner (2005).
uma passagem que ilustra bem o momento da leitura, o qual nossa imagem
de arte é o chão da sala coberto de papéis de balas, de caderno, ponta de lápis e outros
objetos. Geralmente, no início das aulas, a professora faz perguntas que levam os/as
estudantes a recordarem os compromissos, data de atividades e o que haviam trabalhado na
aula anterior. Esses questionamentos vêm sempre no rastro da relação com o ensinar e a
formação do/da estudante, colocada por ela como um dos objetivos do Ensino da Arte.
Esse foi o motivo que a impulsionou para a cena que passo a descrever, de acordo com o
extrato de notas de campo (abril, 2008):
A professora entra na sala e vê uma grande quantidade de lixo no chão, nada fala. Caminha até
a sua cadeira, deposita seus materiais e percorre o olhar por todo o espaço da sala. Pára
próximo a lousa e boa tarde, como de costume. Aponta para o chão e pergunta o que aquilo
significa. Pede que todos olhem para o chão e pergunta novamente o que significa aquilo e se
eles jogam lixo no chão em outros espaços, “no shopping, por exemplo?” A turma,
prontamente, responde, em coro, um “claro que não”, considerando aquela pergunta absurda.
Os ecos dessa expressão e o burburinho provocado revelam ser o shopping um espaço
diferenciado, um local que não ousam desafiar suas regras, até porque esse é um espaço no
qual poucos freqüentam. Ela continuou provocando a turma para essa diferença que eles fazem
em relação aos dois espaços e a turma argumenta não ser permitido naquele lugar jogar lixo no
chão. Professora: “E por que a Escola pode se ela é nossa, é de vocês. É paga com o dinheiro
dos impostos que todos pagam, quando compram qualquer coisa, uma mercadoria?” Eles
continuam dialogando. Depois de algum tempo, alguns levantam, pegam os papéis de bala, de
caderno, de biscoito e jogam no canto do lixo a lixeira simbólica da sala. Uma intervenção é
realizada pelos/pelas estudantes, à medida que se levantam e (re) configuram o espaço da sala.
185
Na performance da sala de aula, existiu uma preocupação em utilizar imagens
do cotidiano e sinalizar para uma consciência em relação ao cuidado com um espaço que é
público. Houve uma preocupação em trabalhar a sensibilidade dos alunos, através do
despertar os seus sentidos percepção do espaço da sala, da escola para a problemática do
ato de jogar lixo no chão. Duarte Jr (2001) nos fala sobre o fato de antes de se discutir
obras de arte, a sensibilidade precisa ser trabalhada em uma realidade mais palpável dos
alunos. Não criar anestesias em relação ao seu ambiente escolar foi o que a professora de
arte fez e também ampliou o conceito de objeto artístico, ainda que não tenha feito de
forma consciente, na mediação do olhar crítico e sensível para imagens-textos do cotidiano
da sala.
O diálogo interpretativo no fazer artístico produção de ateliê- teve pouco
espaço no planejamento. Segundo a professora, ela sente “falta de não trabalhar mais a
produção de arte”. Poucas são as aulas nas primeiras unidades para a produção de ateliê.
Geralmente os/as estudantes produziam em casa. A partir do final da terceira unidade, as
aulas se dirigiram mais para essa produção. O fazer artístico se estruturou em atividades
elaboradas a partir dos elementos da linguagem visual e na noção de releitura, que
funciona como um processo de tradução e suporte interpretativo para a produção dos/das
estudantes. Porém, observei, durante as releituras, pouca autonomia em relação ao
processo de criação, porque os/as estudantes se prendiam às formas apresentadas. Como
não ocorreram o momento pedagógico de leituras das imagens que serviriam de suporte
interpretativo, o texto visual foi apreendido e relido não nas sínteses processadas nos
significados atribuídos e nem nos sentidos produzidos pelos/pelas estudantes, a partir de
questionamentos sobre as imagens lidas.
Os/as estudantes nos informam sobre seu processo de produção, conforme
trechos da entrevista (estudantes da 6ª série) citados abaixo:
Estudante 1: Mas a pintura que a gente fez foi exatamente como se fosse na África, com os
desenhos que tem lá. A gente tentou fazer uma semelhança.
Estudante 2: Escolhi a 'Mulata com o gato do lado' e fiz a releitura, desenhei ela com o guarda-
sol na praia.
186
Estudante 3: Fiz um desenho de um homem tocando berimbau e dois dançando capoeira.
Estudante 4: Vi fotos de Di Cavalcanti, cada aluno tinha uma foto do quadro de Di Cavalcanti.
O conceito de releitura foi trabalhado, durante as aulas, como interpretação,
através das obras As meninas, de Diego Velásquez e de Pablo Picasso, que foram
mostradas em sala. Nessa aula, houve muita participação da turma. Alguns consideravam a
obra de Picasso uma cópia, pela presença de uma intertextualidade explícita. Finalmente,
chegam quase a um consenso e um estudante conclui: “é parecida, não é igual”. Essa
observação do estudante é que traduz a ancoragem da produção de ateliê em arte no
contexto do CEPJBAB, sendo a imagem traduzida na visibilidade que a forma opera no
olho e não necessariamente no olhar.
Figura 32: Pintura dos/das estudantes em referência a Lei da Frontalidade- Egito 5ªA. Guache sobre tela
É importante pontuar que não há, no trabalho pedagógico, um fazer artístico
como uma prática do laissez faire. Todo trabalho parte de uma contextualização, havendo
uma preocupação para que o/a estudante articule a sua produção dentro do que está sendo
proposto. Mas, não no processo de mediação uma provocação que leve o/a estudante a
tornar-se cônscio da sua ação de transformação da matéria e que estimule um refletir
187
acerca do que está produzindo ou do que se quer produzir, Durante a produção das
máscaras, por exemplo, ao perguntar aos/as estudantes o que estavam representando nas
pinturas, não havia uma consciência prévia em relação à sua (re) criação. Contudo eles
traduziam e compreendiam alguns significados das máscaras nas culturas tradicionais
africanas, considerando-as como: “um símbolo”; o seu uso – “um ritual como o candomblé
faz, com preparação” –; e uma síntese de que “os africanos acham que a máscara é para
tirar o poder de outros, mas que a gente fez a nossa própria máscara para ter o nosso
próprio poder e não tirar de outro” (entrevista estudantes 5ª série C).
Figura 33: Pintura dos/das estudantes – referência aos tecidos Baulê – Costa de Marfim 5ªB. Guache sobre tecido
O trabalho de máscaras foi feito em grupo, cinco grupos, cada um tinha em
média seis estudantes. Mas nem todos/as participaram do projeto. Foram feitos três moldes
em atadura gessada, utilizando o próprio rosto dos/das estudantes, processo que despertou
muito o interesse do grupo. Quem experienciou disse: “não sentir a cabeça, nem o rosto”,
“alegre, porque é engraçado no rosto dos outros”, “uma sensação muito boa, a sensação
que você sente quando está feliz” (entrevista estudantes 5ª série C).
188
Experienciar a produção artística na sala, compartilhando a confecção da
máscara no grupo, cimentada em um processo que começou desde março, foi um trabalho
pedagógico que se apresentou na sua dinâmica inclusiva, porque, de certa forma, o grupo
reconhecia também sua implicação naquele objeto. Os/as estudantes dividiam pinceladas,
idéias e sensibilidade.
Claro que houve exclusão. A falta de material, onde parte dele teve que ser
bancado pela professora, impediu que se estendesse a todos os/as outros/as a experiência
da produção das máscaras sobre suas peles. Mas nem por isso deixaram de construir
vínculos, porque se identificavam e se viam parte daquele processo.
Do molde foram feitas dez máscaras com a técnica de papietagem, que reutiliza
papel. O tempo não foi suficiente para aumentar o número de cópias. Contudo, esse fato se
transformou em uma experiência relevante com o coletivo, pelas negociações das idéias na
fase da pintura. Embora tenha existido um pré-projeto que fora construído em sala, este foi
ignorado. A improvisação e as referências visuais das máscaras da etnia Bamileke, de
Camarões, foram os condutores das pinturas. Um fazer que se constituiu em momentos de
beleza, vividos com a emoção do realizar, e que permitiu um maior desprendimento das
formas referenciadas.
Observar a forma como cada um se presentificava e se construía nas traduções
que envolvia uma ação coletiva (re) confirmava o quanto a arte possibilita encontros
com nossos lugares no mundo. Cada sentido produzido na perspectiva da expressão,
possivelmente, não será o mesmo para o espectador. Mas, naquele momento, nós que
estávamos ali, (re) juntando-nos, partilhamos e vivemos a cumplicidade das vidas que
emergia em cada máscara.
Nas pinturas, aparecem em uma máscara, por exemplo, as cores da bandeira de
Camarões; em outra, sua estrela que deixam rastros como se nos indicasse um caminho.
ainda uma máscara em que as cores, em tonalidades intensas, combinam o vermelho, o
laranja e o preto, e em branco vai surgindo uma linha que se movimenta como um delta de
um rio; e a máscara que tem escrito “brasileiro” sobre cores referenciais de África (figura
34).
189
Figura 34: Releitura das máscaras Bamikele 5ªC. Guache sobre Modelagem em papietagem, selada com cola
Houve interferência da professora na busca de uma maior qualidade técnica da
produção na arte final, justificado por ela pelo padrão estético que se deseja em um
trabalho artístico e pelo nível de qualidade técnica dos/das estudantes para explorarem esse
padrão, o qual o Ensino de Arte deve se propor a ensinar. Aqui se apresenta também uma
visão de estética no belo da arte, sobre parâmetros universais clássicos de beleza, harmonia
e equilíbrio. A professora Carla havia especificado o conceito de estética com o qual
trabalha durante os preparativos do desfile da Garota & Garoto de Ébano”, quando falava
sobre a roupa que os/as estudantes deveriam usar: “Tem que ficar bonito. Bonito assim,
estético, harmonioso” (notas de campo, junho de 2008). Em outra aula, quando recebia os
trabalhos sobre um ponto turístico de Salvador que deveria ser pintado com as cores
neutras, ela disse a turma que fizesse o “trabalho bonito”, sendo esse “o trabalho limpo,
bem feito” (notas de campo, maio de 2008).
Durante o período de observação, o trabalho pedagógico não oportunizou que
as imagens produzidas pelos/pelas estudantes se tornassem também objetos de leitura, de
acordo com o planejamento desse ensino, e que o espaço da sala de aula fosse palco dessas
190
grandes capturas da experiência vivida pelo outro. Mas, no período de exposição do
projeto África, a professora levou todas as turmas para inteirar-se dos processos
construídos em cada imagem produzida.
A exposição foi o momento de culminância do projeto e aconteceu em
novembro, mês da consciência negra. Além da exposição, a professora ensaiou pequenos
grupos com dança e canto, entrecruzando a arte de alguns países africanos e músicas
africana e afro-baiana, incluindo o pagode baiano. Foi um trabalho que não inclui a todos
pelo tempo para prepará-lo, pelo comportamento dos/das estudantes, pelas habilidades
individuais e, sobretudo, pela vontade de participar. A professora apresentou a proposta e
as pessoas interessadas se habilitavam. Os ensaios aconteceram durante as aulas, onde tudo
foi planejado e pensado por ela. Contou também com a colaboração de um professor de
dança, voluntário da comunidade, para ensaiar com as estudantes uma pequena coreografia
com a música “Faraó”, do Olodum. De cada turma, cinco estudantes em média subiram ao
palco para a apresentação que encheu o auditório da escola.
Nos bastidores, algumas estudantes se mostravam descontentes porque não
iriam participar da apresentação e solicitavam a minha interferência: “Ô pró, fale com a
professora” (estudante da série C, notas de campo novembro de 2008). Segundo suas
falas, nos últimos ensaios estavam cantando muito baixo foram substituídas. Outras duas
disseram que queriam ter ensaiado uma dança com outra música para apresentar, mas não
houve tempo.
Foi um momento de festa, uma estudante da 5ªC subiu ao palco para ser
apresentadora, estava muito feliz nesse papel a que fora escolhida. Atrás, um telão
projetava momentos do processo pedagógico do ano letivo que, junto aos gritos de euforia
dos/das estudantes, reavivavam emoções.
Primeiro apareceu no telão o dia de desfile para a escolha daGarota e Garoto
de Ébano”. Esse foi um evento que ocupou quatro aulas da arte com informações. Os/as
estudantes que quisessem se inscrever poderiam fazer. Não houve uma contextualização do
conceito de ébano e não foi apresentada uma referência sobre a sua importância e
significado para as lutas dos afro-descendentes na Bahia.
Passo a transcrever esses momentos a partir nas notas de campo (maio/junho,
2008):
A professora perguntou: “Ébano o que é”? Um aluno respondeu que é a cor negra. Não
houve um diálogo que discutisse a questão levantada. A explicação foi dada a partir de
191
informações sobre o concurso que elegeu a garota e o garoto de ébano do colégio com a
participação da 5ª série, onde cada turma representou um país africano. Em uma outra
aula, a professora apresentou os critérios de julgamento “critérios de beleza” um deles
foi “criativo na roupa”, que deveria ter as cores da bandeira do país representado. Sobre
essa questão ela colocou: “não venham com shortinho ou mini-saia, isso a gente vai para a
praia. A maneira como você se veste tem a ver com arte”, ampliando mais uma vez a
concepção de imagem de arte. Os outros dois critérios foram: “postura corporal: o andar, o
caminhar”. O estudante fala que tem que se soltar”; e, “saber se expressar”, que se
considerou a expressão verbal, avaliada através do texto que os/as estudantes devem
memorizar”, dando informações sobre o país africano que representavam. No dia do
desfile, sábado a tarde, no auditório, aproximadamente umas 150 pessoas entre estudantes
e alguns pais; no palco, como cenário, imagens coladas na parede cinza ao fundo, imagens
das bandeiras confeccionadas pelos/pelas estudantes Republica de Camarões, Egito,
África do Sul, Ruanda e Costa do Marfim do lado esquerdo uma mesa com uma toalha
branca, jarro azul e flores coloridas de plástico e tecido. Suas roupas: as meninas com sais
médias, curtas, não tão curtas, vestidos, bermudas, algumas esportistas, outras com
vestidos rodados; na roupa ou nos adereços havia a presença de uma, duas ou todas as
cores da bandeira do país africano. Os meninos de jeans, camisa de malha, camisa aberta
com uma malha por dentro, calça e camisa social. Todos/todas desfilavam com orgulho e
felizes, por estarem ali. Os/as estudantes iam desfilando, paravam ao centro do palco e os
fragmentos de textos, preparados pela professora, eram ditos entre grande fluência,
gaguejos, timidez, esquecimento, alegria, segurança. O texto não passava pelo corpo,
repetia-se o que a memória tinha gravado. Esses fragmentos continham informações sobre
clima, localização, capital, riquezas naturais, agricultura, música, questões sociais e outras,
e assim os/as estudantes se apresentavam.
Alguns dos textos seguem abaixo:
Sou (...), tenho (...) anos, sou aluno (a) da C, represento o país africano Camarões, da África
Central. As cores são as cores Pan-Africanas, e o design é adaptado da bandeira da
França. O vermelho é a cor da unidade, e a estrela amarela é a "estrela da unidade". O
amarelo simboliza o sol e também as savanas do norte do país; e o verde, as florestas do
sul do país”. “Sou (...), tenho (...) anos, sou aluno (a) da C, represento o país africano
Camarões, da África Central. Os Beti são mais conhecidos pela música Bikutsi. A palavra
Bikutsi pode ser vagamente traduzido como batendo o solo permanentemente” (apostila,
material da professora de arte).
.
Rainha, rei, príncipe e princesa de ébano foram coroados, receberam uma faixa
vermelha e desfilaram. A platéia ficou dividida entre euforia e descontentamento. Na
192
expressão dos outros participantes, principalmente do menino que havia desfilado de
camisa social, percebi uma ponta de tristeza. Apenas três meninos haviam participado do
desfile. Mas era hora de deixarmos o auditório, porque a comunidade aguardava para um
evento que iria ocupar aquele espaço. Pedi aos/as quatro estudantes que venceram o
concurso para falar sobre a experiência de participar do desfile Garota & Garoto de
Ébano”, nas suas palavras:
Estudante, princesa de ébano: Me inscrevi porque me acho bonita.
Estudante, rainha de ébano: Eu fiquei rezando para ser princesa eu fui rainha, eu nem
acreditei [...] Meu pai teve que comprar uma roupa nova para mim: as cores da roupa foram
verde amarelo, vermelho.
Estudante, príncipe de ébano: Foi muito bom porque relembrou a história, eu apresentei o país
de Camarões [...] Eu gravei a fala.
O estudante que disse ter gravado a fala, tornou a repeti-la para mim, mas falou
que não sabia explicar o que significava, resumiu: “é a história”. Os outros três não se
lembravam do que tinham falado e não responderam sobre o que sabiam sobre o país que
haviam representado no desfile.
Os prêmios para os/as vencedores/as foram livros de história em quadrinhos do
Snoopy, de Charles Schulz, segundo a professora, “para incentivar a leitura, a cultura”. No
total, 17 estudantes participaram do desfile.
O segundo momento que aparece no telão do auditório é a semana da
Olimpíada: futebol masculino e feminino, baleado e basquete foram algumas das
modalidades dos jogos. A atividade denominada de “Levantando a Bola da África” fala
através de uma linguagem que tem grandes identificações com os/as estudantes. Foi um
momento de grande participação em que vestiram as cores das camisas de países africanos
e com muito corpo e vibração faziam algo que lhes davam muito prazer, essa era uma bola
que eles conheciam (notas de campo, agosto de 2008).
Na abertura um professor fantasiou-se de leão, representado o mascote que
havia sido eleito entre as cinco turmas da série, trabalho realizado nas aulas de arte.
Os/as estudantes pesquisaram animais do país que representavam, a professora mostrou
imagens de outros mascotes e, em grupo, eles escolhiam entre os desenhos realizados
individualmente. De cada turma, um foi selecionado para a decisão final pela equipe de
professores/as envolvidos/as no projeto.
193
Ainda para esse evento, todas as turmas fizeram um jingle e tinham a sua
torcida organizada. O jingle foi feito pelo/pela estudante que tivesse interesse, uma única
estudante apresentou o seu, todos gostaram, cantaram e dois estudantes levantaram e
dançaram. Nesse dia a aula estava mais viva.
Com a melodia de “Minha sorte grande”, cantada por Ivete Sangalo, a letra,
criada pela estudante, cita Bahia, Brasil, África e o colégio; e identifica o “povão” de
Camarões como irmãos.
Na Bahia meu irmão
você é bem feliz,
pois é no nosso Brasil
Camarões, não fica atrás.
pois lá nosso povão
são todos nossos irmãos
e todos já estudam no J.B. colégio maravilhoso
e a África é somente um continente que faz bem para toda gente.
Bahia, Brasil, Camarões, África
eu quero ouvir todos dizer (bis).
Esse jingle não foi cantado na abertura, a estudante faltou no dia do ensaio.
Sem a letra para ensaiar, a turma e a professora compuseram outro, que dizia: “um ponto,
dois pontos, três pontos não faz mal, porque a 5ª C sempre ganha no final / passou, passou,
passou um avião/ e nele dizia Camarões é campeão”.
E finalmente, no telão, estavam as imagens tomadas das aulas nos processos de
produção visual, cujos produtos estavam expostos na sala de arte. Logo após a exibição no
telão, que trazia também depoimentos dos/das estudantes, a turma fazia sua pequena
apresentação de canto, dança ou desfile. Nos depoimentos, escutamos sobre as escolhas
das imagens produzidas e parte do processo de trabalho:
A gente teve que estudar a cultura e arte de cada país […] Depois que a gente estudou a arte, a
gente veio para a etnia de Camarões […] Tivemos que ir a biblioteca pesquisar. A gente achou
pouco, no máximo que a gente achou foi falando sobre a cultura e etnias. Decidimos pesquisar
sobre as etnias (depoimento do vídeo, estudante 5ªC)
Ao final da busca por informações sobre Camarões, a professora elaborou uma
síntese sobre as etnias, os dados geográficos e informações sobre a arte que serviram de
apoio para trabalharem durante três aulas. Fizeram leitura juntos, foram tirando dúvidas de
palavras desconhecidas; e nas outras aulas, em grupo, responderam a um questionário com
dados precisos encontrados no texto. No final, uma pessoa do grupo apresentava a resposta
copiada e os demais grupos corrigiam, confirmando suas respostas.
194
Ainda nos depoimentos filmados, encontramos um olhar que não nos informa
sobre algum dado específico e significativo, para o estudante, sobre a cultura estudada. Na
sua fala pontua sobre o incentivo dado para conhecer as culturas africanas; a relação
identitária entre Brasil e África pela descendência; e volta-se para as questões do racismo
que, de modo enfático, ele diz desprezar, apoiando-se no discurso da igualdade entre as
pessoas:
Eu gostei da cultura de Camarões e achei interessante. Eu acho interessante que alguma pessoa
incentive outras pessoas a ver essas culturas. A África e o Brasil são quase a mesma coisa,
porque várias pessoas são descendentes de negros africanos. E uma coisa que eu desprezo é o
racismo, porque muito no Brasil tem isso, por uma pessoa ser mais escura ou mais clara que a
outra, a pessoa é superior? Não, são tudo igual (depoimento em vídeo, estudante 5ªC).
Em outra turma, o estudante fala ainda sobre um olhar que especifica o local
estudado através de uma imagem de arte de uma produção étnica que ele considera muito
importante e bonita”. E assinala ser esse um fator definidor da escolha para expressar
plasticamente um aspecto da identidade cultural de um país africano: Nós estamos
estudando a África do Sul, por isso resolvemos fazer a casa Ndebele, porque nós achamos
essa cultura muito importante e bonita” (depoimento vídeo, estudantesérie). As pinturas
fazem referência aos padrões geométricos e coloridos que se encontram em muitas paredes
de casas dos Ndebeles
e que a professora reconheceu sua similaridade nas pinturas dos
muros de um artista da comunidade.
Figura 35: Releitura dos/das estudantes das paredes das casas Ndebele. Guache sobre tela
195
Outra turma parte de “Hotel Ruanda” e faz releituras, percorrendo os espaços
do CEPJBAB, sobre os cenários da escola fotografados pela professora. No relato da
estudante:
A 5ªD está trabalhando com o país Ruanda. Nós assistimos um filme chamado Hotel Ruanda,
nele continha um genocídio. Foi através do genocídio do filme que começamos a denunciar a
violência da escola com fotografias. Eu gostei muito de trabalhar com a fotografia, todas as
fotografias retrataram muito a violência na escola e também na rua. As fotografias chamaram
minha atenção, violência é o que está mais acontecendo no mundo. A 5ªD está trabalhando
com uma dança e uma música que com um desejo de mudar a realidade da violência. Mas
isso poderá acontecer com todos juntos. Todos juntos unidos com mais educação
(depoimento vídeo, estudante 5ª série).
Na apresentação, uma performance, com a música Redescobrir”, de
Gonzaguinha, convida para que se forme uma grande ciranda pela paz. Convite vivido
pela turma quando é sensibilizada a olhar para o espaço da escola e denunciar a violência
ali produzida.
Figuras 36: Fotografia produzida pela professora, acompanhada dos/das estudantes. Área interna do CEPJBAB
Figura 37: Fotografia produzida pela professora, acompanhada dos/das estudantes. Área interna do CEPJBAB
196
Figura 38: Fotografia produzida pela professora, acompanhada dos/das estudantes. Dois estudantes do CEPJBAB
Não foram muitos os momentos de provocação à experiência estética, de
fruição na sala de aula. Aqueles momentos os quais somos convidados a um mergulho
corpóreo, descrito por Clarice Lispector em Água Viva; ou ainda a viver a emoção estética
enquanto valor emocional peculiar pertencente a quem percebe o objeto, descrita por
Langer (2003). Mas eles existiram, alguns visíveis para mim, na condição de pesquisadora.
Os momentos visíveis de maior emoção ocorreram durante as leituras das histórias de
Uana e Marron de Terra, Manu na Noite Enluarada e Flicts, de Ziraldo. Nesses
momentos, mesmo com as interferências externas dos barulhos que vêm do corredor ou do
pátio, os/as estudantes se deixam envolver, mais intensamente, embalados pelas palavras
que escutavam e pelos sentidos que elas lhe provocavam. Não desejavam que a professora
parasse de contar e atravessavam minutos do horário de intervalo.
Outro momento de fruição e de experiência estética, pela força com que a
emoção tomava conta de cada um, uma alegria contagiante e uma emoção partilhada, foi
quando eles puderam se ver na filmagem, produzida e editada pela professora, dos
momentos experienciados durante o ano. O sentido que reside nesse momento de
existência de uma sensibilidade coletiva (MAFFESOLI, 1996), cimentou, naquele
momento, uma dinâmica inclusiva do Ensino da Arte.
As molduras que sustentam a forma do trabalho pedagógico na inclusão das
produções artísticas das culturas africana e afro-descendentes podem ser verificadas nas
197
considerações da professora Carla sobre arte e cultura, ao falar da importância dessa
inclusão:
Eu acho importante está colocando a historia da arte, história da África e afro-brasileira dentro
do currículo de arte. Não da arte, mas como a pergunta é direcionada a arte. É importante
sim. Porque através da arte a gente consegue entender, perceber, conhecer uma cultura, através
de uma obra de arte agente vê o pensamento todo de uma época (grifo meu) e facilita mais para
os alunos compreenderem o pensamento, a cultura do povo africano e de seus descendentes
brasileiros (Entrevista Professora de Arte).
A arte possibilita acessar o conhecimento sobre uma cultura e constrói
compreensões de pensamentos que ali perpassam, facilitando para o/a estudante essa
compreensão. Mas também, para a professora, a obra, na qual a representação é concebida,
conta de revelar o pensamento “todo de uma época”, o que pressupõe uma imagem de
arte como expressão transparente de uma cultura, capaz de caber na captura de um olhar.
Nesse sentido, não se evidencia a arte como produção que se caracteriza na sua
ambigüidade e contradição. O olhar sobre a obra não se abre para um diálogo com as
diferentes leituras, além daquela do seu contexto deflagrador. Mas qual é o discurso que
reconstrói aquele contexto? Qual o lugar de enunciação daquelas informações que traduzo,
no trabalho pedagógico, como sendo o significado cultural daquela obra?
Embora a arte contenha a vida de onde emerge, nos processos de leitura, não a
capturamos na sua inteireza. Mas podemos incitar a captura de sentidos por ela suscitados
nas leituras e produções dos/das estudantes, singularmente a cada um. Como um dia, após
a aula da biblioteca, em que a estudante me chama para contar uma experiência que
passara há duas semanas atrás:
Sabe naquela segunda que eu faltei? Eu fui visitar minha antiga escola e quando cheguei
tinha um africano fazendo uma apresentação sobre a África. eu fiquei participando das
brincadeiras. eu perguntei que país da África ele morava, ele disse que era Senegal. eu
perguntei se ele vivia bem lá, na casa dele. ele disse que sim. Ele falou que gosta muito da
África, ele falou que gosta muito de morar lá. Ele estava falando muito assim que não dava
para entender muito, mas dava para entender um pouco. Ele falou que algumas crianças
passam fome. Algumas pessoas da escola perguntou (sic) várias perguntas, como se [...]
Falava um monte de coisa assim, que não gostava da África porque tinha um bocado de criança
que passava fome lá. Eu fiquei, assim, até com pena dele, por que as crianças perguntaram
coisas sem sentido (Estudante da 5ªC, notas de campo).
Perguntei-lhe quais as coisas faladas pelas outras crianças que eram sem
sentido, disse-me que haviam perguntado:
Por que na África tinha um bocado de criança que passava fome, por que na África tem
negro (para essa estudante na África tinha negros e os brancos é que foram morar lá). E
198
assim, se a África tem negro ali, não foi por causa deles. Foi porque Deus fez eles assim,
né? Também é a cultura deles. Não problema algum em ser negro, porque o negro tem
orgulho. Eles têm muitas culturas [...] Os africanos é que começaram a mexer com o metal,
ferramenta com a pedra lascada. E os africanos também inventaram a capoeira. […] Os
europeus tinham ciúme dos africanos (Estudante da 5ªC, notas de campo ).
Ela não usou o espaço da aula para trazer esse seu conhecimento, mas aquela
aula tinha feito emergir uma lembrança, falava com a voz baixa, quase como se contasse
um segredo. Sentia “pena” pela exposição ao que o negro, simbolicamente ali representado
numa cultura, era submetido pelas perguntas “sem sentido” que tornavam visíveis um
espaço comumente visto de África fome, doença produzido pela mídia; e um olhar
negativo com que ela via a condição de ser negro, olhar atravessado pelos valores judaico-
cristãos. Ela conhecia imagens positivas das culturas africanas, e, ao final, constata a
existência de um sentimento que talvez justificasse para ela tantos séculos de negação o
“ciúme” do europeu pelo africano.
O trabalho pedagógico do Ensino da Arte no CEPBAB vem se construindo no
sentido de produzir visibilidade das culturas africana e afro-brasileira, compreendendo a
importância da inclusão como forma de trabalhar a auto-estima do/da estudante afro-
descendente e na necessidade do conhecimento de origem africana, por ser parte dopovo
brasileiro” e, portanto, diz respeito a todos/as os/as estudantes. Situou, nos três primeiros
projetos, parte da produção cultural vinculada à religiosidade, dimensão expressiva dessas
culturas, porém não única. O que podemos verificar nas palavras da Professora Carla:
Eu venho trabalhando desde 2005 com essa temática com eles. E não foi fácil, no início,
porque o desconhecido é sempre temido. E as crianças e os adolescentes, principalmente
quando a gente entra na questão da religiosidade, eles não aceitam muito bem assim de cara,
por ter outra religião que infelizmente ainda descrimina a religião do candomblé aqui na Bahia.
Eu sempre trabalhei mais aqui na Bahia. Eu vejo que ainda existe um preconceito, mas que
vem melhorando porque eles estão com a cabeça mais aberta para isso também. Então aos
poucos que a gente vai trabalhando com eles, eles vão percebendo. Porque antigamente não
tinha nada em relação à arte africana, à cultura africana, à arte afro-brasileira. As pessoas não
valorizavam isso. Eu mesma fiz Federal e não tive nenhuma disciplina relacionada à África ou
a cultura e a arte africana e afro-brasileira. Pra mim também foi difícil, porque não tinha
nenhum material. Eu fui buscando, o governo também foi dando curso para que a gente
pudesse trabalhar e eu estou vendo uma melhora. Os meninos estão aceitando mais, porque
antes eles não aceitavam. Porque até a própria cultura eles achavam distante deles, eles não se
viam. E hoje eu percebo que muitos se vêem como negro, como afro-descendente. Então a
inclusão é importante sim principalmente para elevar a auto-estima. E outra coisa também é
resgatar, valorizar mesmo a cultura afro-brasileira e africana, logicamente, porque a gente tem
que conhecer a origem, porque também faz parte do nosso povo brasileiro. (Entrevista
Professora de Arte)
199
A inclusão da história e da cultura africana e afro-brasileira vem se realizando
no CEPJBAB como “temática”, algo que tem sido construído com dificuldade e temido por
representar, para todos na escola, o desconhecido. História e memória desconhecidas, não
criadas pelos atores pedagógicos do CEPJBAB, mas que ao se tornarem visíveis, na sala de
aula, invocam imagens de preconceito e de discriminação, que atravessam por séculos o
discurso excludente de dominação da nossa sociedade. Entretanto, a professora ressalta que
esse é um processo de aproximação, no qual os conhecimentos acessados foram relevantes
para ampliar a produção de espaços de pertencimento, à medida que iam “melhorando”, ou
seja, deslocando professores/as e estudantes de uma condição de estrangeiros de lugares
que antes não se (re) conheciam. Aponta as dificuldades encontradas, também por conta da
sua formação acadêmica, que ocultou tais conhecimentos, mas reconhece que “aos poucos”
o trabalho pedagógico no Ensino de Arte tem possibilitado que os/as estudantes se
reconheçam “como negro, como afro-descendentes”, e tal fato é confirmado em vários
depoimentos citados ao longo desta dissertação.
200
TESSITURAS PRODUZIDAS E INCONCLUSAS DA PESQUISA:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Figura 39, montagem processo de confecção das máscaras, estudantes CEPJBAB, sobre o pano da costa
201
Os caminhos percorridos para investigar como o Ensino da Arte produz
visibilidade do espaço de referência e identidade cultural de afro-descendentes, na
perspectiva da inclusão sociocultural, enunciam que as formas de mediação do olhar sobre
essas produções se relacionam, no trabalho pedagógico, com três aspectos que se
entrecruzam. São eles: as concepções acerca do Ensino da Arte, os conhecimentos sobre
as dimensões da imagem da arte e os conhecimentos sobre os sistemas os quais se inserem
a produção de imagens de arte das culturas afro-brasileira e africana na sociedade. Tais
concepções e conhecimentos vão provocar os desenhos de espaços de pertencimento. E é
no processo de mediação e nas suas fissuras que o Ensino da Arte tem provocado os/as
estudantes a se (re) posicionarem e se (re) conhecerem afro-descendentes.
Com base nas discussões teóricas, vimos que a arte é inclusiva, por provocar
identificações que se relacionam com a incompletude humana, busca sobre a qual se
assenta um princípio fundador na educação e um movimento que se realiza na arte e a
realiza, na experiência estética do sujeito. O que vejo no Outro com o qual me identifico ou
não, representado no objeto de arte, é produzido em um encontro entre sujeito e objeto, e
que tem como referência elementos da cultura e da singularidade.
No CEPJBAB, os momentos de encontros provocados no trabalho pedagógico
do Ensino da Arte na inclusão da história e da cultura africana e afro-brasileira envolveram
um trabalho de projeto no curso do ano letivo. O trabalho se construiu com várias
incursões por outras áreas de conhecimentos, além da arte, o que se torna um aspecto
positivo e negativo, ao mesmo tempo. Sua positividade residiu no fato de se trazer
diversos saberes sobre a cultura estudada e sua negatividade esteve no tempo reduzido para
o diálogo interpretativo com a imagem da arte e a não realização desse diálogo nas
diferentes dimensões da arte.
A inclusão das culturas negras no Ensino da Arte foi vista como relevante, por
reconhecê-la como parte da formação da identidade cultural brasileira, para valorização da
auto-estima, e também como uma condição de se valorizar esse ensino diante da sua
posição ainda marginal que ocupa na escola, enlevando-o como área de conhecimento. Tal
conhecimento, no entanto, foi posto como algo dado e acabado, e não na sua incompletude,
a qual não prescinde de visões e versões para produzi-lo. Ele tem informado sobre aspectos
da vida cotidiana dos/das estudantes, no âmbito do espaço macrosocial, nas questões sobre
discriminação social e na estética de matrizes africanas, presentificadas em objetos de arte
202
da nossa cultura. Mas não tem produzido as bases para se entender as condições atuais
desse cotidiano, os “porquês” dos discursos e representações que atravessam esses objetos
e que podem provocar uma compreensão sobre os sistemas os quais estes se inserem. Se
tomarmos as noções de conhecimento compreendidas na construção do olhar sobre as
tramas e ações que (re) constituem os objetos e é problematizado no contexto sociocultural
que o produziu e no que emerge, no presente. E isso vai influenciar sobremaneira na
produção de espaços de pertencimento.
Ressalto ainda, sobre esse conhecimento, o fato de no trabalho pedagógico se
considerar a inclusão das culturas africana e afro-brasileira uma temática”, tal como a
questão da diversidade é posta nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Nesse
sentido, a importância dessa inclusão foi construída no resgate cultural e em uma viagem
de descoberta, enfatizando o respeito ao Outro, na condição de que somos todos iguais, e
não necessariamente um conhecimento implicado em trocas e relações culturais que
envolvem diferentes visões de mundo, com profundas desigualdades nas relações de
privilégio e poder, e, portanto, produção de cultura não harmoniosa.
Ao produzir visibilidade de espaços de referência de afro-descendentes, o
trabalho pedagógico, do CEPJBAB, escolheu, prioritariamente, nos três primeiros anos, as
imagens de arte da produção da cultura afro-baiana. Mas, ao fazer essa escolha, evidenciou
o que poderíamos chamar de “ícones dessa cultura”. Não significando que tal escolha, se a
considerarmos 'grandes obras', tenha representado um trabalho de “inculcação”. O que
efetivou, de fato, uma (re) produção de valores foi o diálogo estabelecido com essas
imagens, ou seja, os conhecimentos produzidos por meio desses objetos perpassados em
discursos e representações que fixam e essencializam a identidade cultural.
Ao produzir visibilidade de espaços de referência em produções artísticas de
países africanos, as imagens de arte escolhidas, além de apresentar os ícones estéticos,
também incluíram diferentes produções daquelas comumente apresentadas no espaço
escolar. O processo de estudo de África, na mediação do olhar, foi se espalhando como um
rizoma por outras tramas. Evidenciou, inclusive, a problemática da exclusão das culturas
negras nas dificuldades de coleta de materiais sobre África nos livros didáticos. Ampliou
também a visão de uma África para o seu plural e, nesse sentido, houve o reconhecimento
da pluralidade étnica do continente africano. Na perspectiva de descobrir culturas, o
203
trabalho pedagógico ensaiou os primeiros passos para uma aproximação dessas imagens
com situações vividas no espaço da escola.
Outras imagens evidenciadas no campo deram visibilidade aos espaços de
exclusão e de discriminação na sociedade, e aparecem em uma proposta de um Ensino da
Arte que inclui, no trabalho pedagógico, a produção literária infanto-juvenil e a
interpretação de texto verbal. Embora a produção literária também seja um objeto artístico,
não se priorizou a linguagem visual na produção do conhecimento.
Ao analisar se o trabalho pedagógico do Ensino da Arte tem dado acesso para
que se estabeleça um diálogo sensível e crítico com a produção artística das culturas afro-
descendentes, um primeiro aspecto que se levanta é que a arte, campo de conhecimento
desse ensino, não tem sido apresentada como prática cultural, o que significa dizer que não
um olhar sobre as formas de representação das culturas negras nas imagens de arte
como um produto das relações entre cultura, conhecimento e poder, relações assimétricas e
de conflitos.
Um segundo aspecto é o fato de encontramos no campo, nas concepções sobre
o Ensino da Arte, uma contradição na forma do diálogo interpretativo, no processo de
leitura de imagem. Por um lado, o campo mostrou uma mediação que criou momentos de
problematizações, levando os/as estudantes a se posicionarem como espectadores
protagonistas, instigando leituras críticas sobre imagens tomadas de cenas do cotidiano e
de temas de discriminação, as quais não havia uma consciência de que essas se tornavam
imagens de arte; e sobre as quais uma leitura e uma produção estavam se processando.
Mas por outro lado, não ocorreu um processo de leitura crítica sobre a imagem
de arte, e se considerarmos, inclusive, esse processo como um debruçar-se sobre esse
objeto com uma consciência dessa intencionalidade, poderíamos afirmar que não houve um
processo de leitura de arte. Se tomarmos, no entanto, a releitura como um processo de
tradução, então, algo foi lido, ainda que superficialmente.
É preciso, aqui, fazer um destaque, apresentado pelo campo, que considero
relevante nas concepções sobre o trabalho pedagógico do Ensino da Arte. Diz respeito à
existência de um processo de leitura de imagem, sem que o objeto esteja materialmente
presentificado, ele é evocado e toma corpo no próprio processo de leitura. É como se o
objeto fosse sendo desenhado à medida que é apresentado, um desenho coletivo executado
204
por todos na sala. Isso significa uma perspectiva de ampliação do conceito de produção em
arte, que incorpore essa leitura como um fazer de ateliê.
Ainda sobre o diálogo interpretativo nos processos de leitura e produção de
imagem, pode-se afirmar que nas revisitações às produções artísticas das culturas negras, a
leitura ocorrida não mirou objetivamente produzir reinvenções a partir de problematizações
ou que a arte viesse a criar um problema que se refletisse nas releituras dos/das estudantes,
imbuídos/as também no seu papel de espectador protagonista e produtor cônscio dos
significados que os envolviam naquele fazer. São releituras e produções de imagens que
também confirmam significados visíveis do que se tem construído acerca dessas culturas,
porque, embora a arte que ali emergiu contenha a vida daquela microcena, dos seus atores
sociais e os sentidos das suas experiências, ela não ignora, no movimento do seu corpo, na
sua materialidade e imaterialidade, as macrocenas que também a realiza. Revalida-se, em
parte, no processo de produção artística do/da estudante, a cultura como algo dado.
Um outro aspecto apresentado nos processos de produção de imagem, diz
respeito aos movimentos sobre os quais se configuram a dimensão inclusiva da arte
presentificados no trabalho pedagógico. O/a estudante tem participado da experiência da
arte na transformação de uma matéria e a arte tem sido o lugar de corporeidade dessa
experiência. Mas esse lugar tem sido produzido com a presença objetiva da experiência do/
da professor/a, da escola e do que se planeja. São como impressões digitais que se
sobrepõem. Não nitidez da implicação e das decisões do/da estudante acerca da sua
produção, no espaço da sala de aula. É um fazer que muitas vezes ausenta o corpo, ele/ela
opera sobre algo que não decidiu. A dinâmica do trabalho pedagógico, paradoxalmente, na
produção de espaços de pertencimento, também se constrói como um 'local de alienação'.
No trabalho pedagógico, a produção das identidades culturais afro-baianas e
afro-brasileiras se constituiu atravessada por um discurso homogenizador, cristalizando
verdades. Uma verdade” mais evidenciada construiu as culturas negras no discurso da
“mistura” de que “somos uma coisa só, é tudo misturado”. Tal verdade enunciada no
campo (re) afirma um discurso dominante da identidade cultural da mestiçagem, sem
tensionar e desfiar as formas e conteúdos que constroem essas representações e suas
relações no jogo de configurações do espaço social.
A não rasura e o não rompimento com os lugares que somos posicionados
legitimam uma verdade que se constitui como uma grande armadilha. É um discurso
205
dominante reeditado, através de uma imagem de arte das culturas negras, em um momento
no qual há um processo de inclusão se constituindo no (re) posicionamento dessa produção
no espaço sociocultural da escola.
Do mesmo modo, o trabalho pedagógico, ao apresentar uma visão da existência
de uma arte do/da estudante negro/a, absolutizando essa arte em representações sobre
padrões tomados com relação a ícones estéticos, posiciona a produção da identidade
cultural na idéia da homogeinização das experiências das culturas africanas e afro-
descendentes, opondo-se às noções de uma identidade dinâmica, relacional e construída
historicamente.
Nas relações dos diferentes campos que transitamos (seja o espaço vivido, o
espaço da casa e das casas, o espaço liminar, a identificação da tradição presentificada, as
releituras do passado, as leituras que fazemos das representações que nos chegam das
memórias de ancestralidade), as representações do vivido cotidianamente estão sempre em
movimento num processo de formação e transformação de identidades e de construção de
espaço. Tal produção de visibilidade no trabalho pedagógico não considerou, no entanto,
outras imagens as quais os/as estudantes têm acesso a nível local e global, e que também
constroem seus referenciais, posicionando-o/a no espaço social, incluindo as imagens da
cultura visual.
No CEPJBAB, aparecem produções artísticas de estudantes e leituras sobre
imagens que constroem suas identificações, convocando o trabalho pedagógico a (re)
focalizar o olhar e iluminar, na cena da sala de aula, as formas como as subjetividades se
organizam plasticamente, a partir de outros valores que não aqueles que sustentam as
propostas pedagógicas do ensino da arte: uma estudante que desenha a família em
personagens que atravessam fronteiras culturais, trazendo uma imagem de arte híbrida;
outra estudante que constrói positivamente seu olhar sobre o negro a partir das imagens de
um filme americano; um estudante que compõe raps falando do seu amor e que
desconhece nesse movimento uma estética de resistência e transgressão de culturas negras;
e mais outro que escreve poemas que nos conta seu cotidiano. Esses/as e outros/as
estudantes não citados/as são estudantes afro-descendentes, produzindo nos interstícios do
trabalho pedagógico, cujos referenciais ainda são excluídos do processo de mediação.
Contudo, as experiências estéticas cotidianas dos/das estudantes atravessam as
grades que separam a escola da rua e ocupam, ainda que sorrateiramente, a sala de aula,
206
metamorfoseando plasticamente sua relação como o mundo e apresentando as formas
plásticas em que ambos se afetam.
Nesse sentido, as mediações do olhar tecidas no Ensino da Arte, ao produzir os
espaços de pertencimento, não necessariamente têm provocado a produção de um olhar
sensível dos/das estudantes diante das suas experiências estéticas. Porém, o Ensino da
Arte, como um processo que envolve expressão e impressão de cultura, ao moldar
materiais, formas, espaços, cor, e ao lidar com a imprevisibilidade, atua na relação com o
sensível, mesmo que não haja uma ação pedagógica intencionalmente voltada sobre uma
proposta para uma (re) educação da sensibilidade.
Enfim, a análise sobre como o Ensino da Arte tem produzido a inclusão
sociocultural de afro-descendentes leva-nos a considerar que ao tornar conhecíveis
aspectos das culturas negras em objetos artísticos de culturas africanas e afro-brasileira e
ao abordar temas que envolvem a discriminação racial na sala de aula, o trabalho
pedagógico tem provocado um movimento de se ver e reconhecer-se nas identificações
produzidas pelos próprios movimentos inclusivos da arte. As imagens que têm sido
apresentadas (e algumas reapresentadas) e o diálogo interpretativo que as reconstroem
qualificam esses movimentos, os quais não prescindem dos referenciais assentados nas
experiências cotidianas desses sujeitos. Ainda que não sejam explorados na sala de aula,
eles têm emergidos e sustentados os movimentos de identificações produzidos pela arte e
na arte.
A produção de visibilidade de espaços tomados como referência da cultura
afro-descendente ainda encontra movimentos de resistência por parte dos/das estudantes
quando lhes são apresentados objetos artísticos de culturas negras, pelas associações às
imagens prenhes de estereótipos acerca da religiosidade de matizes africanas. O que leva-
me a apresentar uma reflexão sobre esses movimentos de resistência e a perspectivar
propostas de construção de uma práxis pedagógica para o Ensino da Arte na educação das
relações étnico-raciais.
Considero os movimentos de resistência um aspecto relevante em uma
educação ancorada em parâmetros do multiculturalismo crítico, se transformada em
resistência crítica. Resistência, então, compreendida como produção de conhecimento. O
que es em jogo na sala de aula é a (re) configuração do espaço pedagógico e a relação
deste espaço com a produção de identidade cultural: espaço que excluiu, por muito tempo,
207
as culturas negras e que, agora, ao deslocá-la, provoca, na sala de aula, diferentes
movimentos ancorados sobre as experiências de seus atores.
uma produção de cultura em curso no trabalho pedagógico que diz respeito
à dinâmica do espaço que está sendo (re) configurada, a partir da mutualidade de influência
de ações sobre objetos imagens de arte –, antes perifericamente posicionada. Ao
analisarmos tal movimento com base no pressuposto de que a dinâmica que transforma o
espaço humano se na indissociabilidade e contradição da relação entre os sistemas de
objetos e ações, em que ambos se condicionam, acreditamos que a dinâmica inclusiva do
Ensino da Arte tem provocado um deslocamento na estrutura anterior, a qual tem
interferido nos processos de identificação. Mas, a plasticidade e sentido dados a essa
produção de espaço não tem implicado os/as estudantes, a partir da diversidade de suas
experiências como afro-descendentes. E esse é um aspecto relevante que precisa ser revisto
no processo de inclusão.
Acredito que, no trabalho pedagógico, as representações e discursos que
atravessam e produzem as imagens de arte, os diálogos com marcos de origem, passado,
história e memória não devem pretender constituir-se como um lugar de enunciação da
verdade, na qual retiramos cascas para enfim revelar o imponderável libertador de uma
identidade cultural de afro-descendentes, que ali estaria. A idéia é do passado que surja em
um presente e que dialogue nessa posição do que pode se tornar, quando produzida em
uma realidade imediata e imaginada, como lugar de conflito da identidade e da diferença.
Dessa forma, o que perspectivo como proposta é a sala de aula, arena de poder,
na perspectiva do multiculturalismo crítico que inclui o estético, vir a se constituir como o
“entre-lugar”, o terceiro espaço que surge de uma realidade diversa e complexa, onde
culturas e visões de mundo colocadas a margem se encontram. E esse espaço precisa ser
negociado. Conhecer a visão da outra cultura requer muito mais do que se atravessar
fronteiras para um passeio, sem que haja deslocamento na forma como se olha o outro.
Ao se manter, na produção de cultura, apenas um único foco durante a
travessia, sem 'virar-se de costa' para se ter outras visões que não àquela até agora
construída nas realidades imaginada e imediata, o Outro se produz no sentido de uma
permanência de ser estrangeiro. Esse é um olhar que o campo apresentou, em alguns
momentos de mediação entre a produção artística das culturas africanas e afro-brasileira e
os/as estudantes espectadores/as e produtores/as de imagem da arte. Um olhar no qual
208
produção artística do Outro afro-descendentes era mirada sob um olhar de afro-
descendentes estrangeiros de seu espaço.
A inclusão da história e da cultura na Educação Básica e a luta para a Educação
das Relações Étnico-Raciais é um momento de espaço de esperança que nos convida para
que sejamos criativos e não absolutizemos o conhecimento em uma única verdade. O
encontro com o outro objeto artístico pode não ser cruzamentos de fronteiras, mas
produções na fronteira. Uma fronteira que articula a casa, espaço uterino, construto de
estreitas ligações, por vezes, inegociáveis; as casas transitadas e as identificações
produzidas com a história e a memória.
Como transformar a sala de aula de arte em um “entre-lugar”, um espaço de
produções na fronteira, onde os sentidos tomam corpo a partir da diversidade das
experiências dos sujeitos?
Tecendo considerações a partir do que foi observado e analisado no campo
faço uma analogia entre os movimentos verticais na produção de espaço e as ações
pedagógicas homogeinizadoras. Entendo que essas ações não têm o controle sobre os
sujeitos, considerando suas diferenças e também os sujeitos enquanto um corpo um
microespaço, o qual se amplia para os outros espaços. Assim, as imagens de arte e,
sobretudo, as leituras que surgiram nos interstícios do trabalho pedagógico são reveladoras
dos efeitos diferenciadores dessas ações. São produções das fissuras de onde emerge o
terceiro espaço, o entre-lugar”, permanecendo ainda invisíveis na sala de aula. Tais
produções não conseguem ser abarcadas no trabalho pedagógico e muito menos na
estrutura atual oferecida pela educação escolar ao Ensino da Arte. Como pesquisadora,
pude observar como o trabalho pedagógico perde preciosidades. Perdas as quais se exclui
o/a estudante do seu lugar de enunciador/a, que lhe autorizaria, como afro-descendente, a
dar visibilidades àqueles que têm se tornado também seu espaço de referência. E essas são
situações que precisam ser questionadas e tensionadas no espaço pedagógico.
Nesse sentido, os subsídios teóricos do multiculturalismo crítico, na sua
interseção com os processos de hibridação, possibilitaram-nos discutir perspectivas da
práxis pedagógica do Ensino da Arte no seu movimento inclusivo, mirando uma Educação
das Relações Étnico-Raciais, sobretudo na forma de um olhar sobre a produção de
identidade cultural de afro-descendentes, evidenciada nos interstícios do campo. Tais
subsídios apontam a necessidade de uma pesquisa que retome as ancoragens propostas para
209
o trabalho pedagógico sustentadas na discussão dos processos de hibridização, (re)
focalizando o olhar sobre: as produções artísticas das culturas negras da diáspora
perpassadas na noção de hibridação; sobre o/a estudante/espectador (a) / produtor (a), na
sua posição de tradutor; e o trabalho de tradução do professor/a de arte.
Acredito que as experiências de racismo cultural e exclusão pedem, no nosso
contexto, estratégias pedagógicas de construção com (re) identificações com as nossas
matrizes culturais africanas, principalmente nos ensinamentos dos seus princípios da
ancestralidade, presentificados também no sentido de pertencimento aos espaços da cultura
e da troca e parceria cultura/natureza. Mas pedem também estratégias que compreendam a
produção cultural dessas matrizes na formação de identidades culturais a partir de uma
dinâmica que se produz fertilizada pelo humus social, cultural, político, histórico e estético
que se apresenta na Bahia e, nas formas diferenciadas, no Brasil. O que significa que ela
não pode ser tratada como a 'mesma coisa' da cultura africana, em oposição à cultura
branca. Ver a identidade não fixa e essencializante nos aponta para estratégias pedagógicas
de lutar contra as imagens negativas sobre as culturas negras e para refletirmos as idéias de
absolutismos culturais que engessam os movimentos de produção de cultura.
A sala de aula, na perspectiva do “entre-lugar”, é um esboço que começa a se
desenhar em uma proposta pedagógica para o Ensino da Arte, aceitando o convite de Peter
McLaren (2000) para construir uma pedagogia fronteriza, cuja semente colhida no campo
desta pesquisa não tem a pretensão de significar um Baobá, mas, com certeza, desenha-se
sobre a sua sombra, entoando a verdadeira “Grande Refazenda”. E esse é um projeto no
qual eu me inscrevo para uma nova pesquisa.
A pesquisa de campo também trouxe outras questões que não respondem
diretamente aos objetivos desse trabalho, mas não poderiam deixar de ser sinalizadas, por
compreender o campo da educação e do Ensino da Arte. São questões antigas, mas que
ainda permanecem atuais nas escolas, apontando a necessidade de pesquisas.
A compreensão de que a escola também é a implicação dos/das professores/as,
quando o sentimento de pertença a seu espaço. O que aponta, então, para a necessidade
de se trabalhar a construção da identidade do professor com a escola, sem perder de vista
às condições atuais de trabalho desses profissionais da educação.
A falta de condição da escola pública ainda é um empecilho para que o
trabalho pedagógico avance mais, aproximando-se do que se planeja.
210
Repensar e refletir as considerações acerca do que seja produzir conhecimento
em arte na proposta de seu ensino no trabalho pedagógico, junto às escolas de ensino
básico; bem como rever as determinações legais e as formas não legítimas de apropriação
do Ensino da Arte como Educação Artística.
Tratar da inclusão das culturas africana e afro-brasileira e, mais ainda, da
Educação das Relações Étnico-Raciais diz respeito a uma atitude frente à educação. É um
projeto político na educação que envolve a todos que constituem o espaço da escola e que
exige mudanças curriculares, na forma de pensar a escola na sua alma e no seu corpo. A
escuta do campo na pesquisa empírica nos confirma essa necessidade. A idéia de se
trabalhar com projeto tem se confirmado como uma forma importante de se conduzir a
inclusão, caberia um entendimento sobre a forma como a escola pensa a noção de
projeto. Porque eles existem, mas não se entranham ao fazer pedagógico. Ficam, às vezes,
como apêndices, que os conteúdos, ditos formais, mantêm-se inalterados. Trabalhar com
projetos requer um espaço maior de estudo para o professor (o qual não é oferecido), de
(re) definições do trabalho pedagógico e, mais ainda, de uma nova proposta de currículo.
211
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218
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
MESTRADO E DOUTORADO.
ROTEIRO DE OBSERVAÇÃO
Na prática, no cotidiano das aulas e no planejamento, como o espaço legalmente
assegurado pela Lei 10.639/03, agora lei 11465/08, tem sido construído no Ensino
de Arte?
Qual o compromisso do Ensino de Arte, nesse situs, na perspectiva da reeducação
das relações entre negro e branco, ou seja, como o espaço pedagógico trabalha
essas relações?
A escola desenvolve projetos de valorização da cultura negra, envolvendo Ensino
de Arte?
Como a identidade cultural de afrodescendentes é abordada no trabalho pedagógico
do Ensino de Arte?
Que imagens de arte, pertinentes com os conteúdos da estética visual africana e
afro-brasileira, são escolhidas pela professora?
A professora tem uma postura provocativa com relação ao diálogo com a imagem?
Como ela articula os conteúdos concernentes às culturas afro-brasileira e africana
com os demais conteúdos de artes visuais?
Que abordagens metodológicas do Ensino de Arte estão presentes no diálogo com a
imagem – leitura, fruição e produção?
A professora utiliza imagens icônicas, da cultura visual, da estética do cotidiano e
de cenários vivos no processo de mediação?
Que representações da cultura negra presentificam-se no trabalho pedagógico
(memória, estereótipos, exótico, artistas, estilos e outras)?
Como o estudante interfere no processo de leitura?
O que tem significado para o estudante trabalhar com a produção da cultura negra?
219
Que imagem, escolhida pela professora, provoca identificações individuais e no
grupo?
Os estudantes realizam as produções sugeridas pela professora?
Há diálogo com a produção do estudante?
Existem imagens no espaço da escola (painéis, desenhos)? O negro é representado
nessas imagens? Como ele é representado?
Que conteúdos da cultura e da história africana e afro-brasileira têm sido
priorizados e com que discursos eles são construídos?
A produção da estética do cotidiano dos estudantes e da comunidade local ou
entorno fazem parte do conteúdo de Ensino e arte? E como fazem parte? Qual a
relação desse conteúdo com a identidade cultural e a produção de visibilidade do
espaço de referência de alunos afrodescendentes?
Como é o processo de produção, leitura e fruição de imagens?
220
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
MESTRADO E DOUTORADO.
ROTEIRO ENTREVISTA ABERTA
Professora de Arte
Perfil do Arte Educador e Concepções do Ensino de Arte
1. Trajetória de Formação acadêmica e profissional
2. Que tipo de leitura acha prazerosa
3. Autores da arte/educação
4. Sobre freqüência, prazer e contato com exposição, cinema, filmes, teatro, show,
música, feiras de artesanato, eventos artísticos.
5. Nas artes visuais, que tipo de arte mais a atrai.
6. Sobre sua produção artística
7. Sobre leituras/autores em arte /educação
8. O que pensa ser importante trabalhar nas aulas de arte
9. Sobre conteúdos que acha importantes no trabalho pedagógico
10. Quais os referenciais teóricos para o trabalho pedagógico
Concepções do Ensino de Arte e da produção estética visual afro brasileira e africana,
Identidade Cultural e Espaço de Referência
1. O que pensa sobre a inclusão da cultura afro brasileira e africana no Ensino de Arte.
2. .Sobre mudanças no aluno a partir da inclusão e construção dos conteúdos da
cultura afro brasileira e africana, nas aulas de arte.
221
3. Sobre as condições ideais para realização desses conteúdos, nas aulas de arte.
4. Pensamentos sobre a cosmovisão africana
5. Que imagens considera importante para o trabalho pedagógico com a cultura negra
6. O que pensa sobre a utilização nas aulas de arte de imagens do negro nas
propagandas, programas de televisão e filmes.
7. Sobre a utilização da produção artística local/ da comunidade nas aulas de arte
8. Que conteúdo considera relevante no trabalho pedagógico de inclusão da cultura
negra
9. Como se a escolha dos artistas e tema para trabalhar os projetos de valorização
da cultura negra
Estudantes 6ª Série (Participantes do projeto “Os Didi da Bahia”, CEPJBAB, 2007
(grupo focal)
1. Perfil do grupo
2. O que foi trabalhado em arte sobre as culturas africana e afro-brasileira
3. O que havia mudado depois do projeto de arte afro-brasileira.
4. Comentar sobre representações do negro na mídia, as quais eles tiveram acesso
e que mais chamara a atenção (em propaganda, filme, outras).
Estudantes da 5ª Série (2008)
1. Perfil individual
2. Comentar o desenho da família feito a partir da história de Manu em Noite
Enluarada”, de Lia Zats.
3. Qual a história que mais gostou que fora lida nas aulas de arte e falar sobre o
que achou mais importante.
4. Sobre os objetos de arte africana e afro-brasileira nas aulas de arte.