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refazer religiões, refazer encontros e celebrações, refazer solidariedades, refazer
cultura. Esta foi a verdadeira Grande Refazenda”
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(GIL, 2006).
Inserções construídas ao partilhar coletivamente a experiência nos significados
traduzidos na “Grande Refazenda”, como um grande processo de reinvenção na história da
humanidade e de superação do processo de estranhamento. O grande refazer, aqui na
Bahia, com as matizes de um arco-íris cultural que lançou sementes de uma visão de
mundo em valores e princípios da ancestralidade africana. Sementes de signos culturais de
origem africana presentificados na nossa cultura que impregnam nossos referenciais
estéticos apresentados a nós, por exemplo, na obra de Mestre Didi.
Na sua obra, contas preenchem as linhas e os espaços, e as palhas das
palmeiras tomam corpo, entrelaçando-se umas nas outras. Das suas mãos e do seu olhar,
entre movimentos de idas e vindas, emerge o espaço intervalar, entrelaçamento de dois
espaços: “da porteira para dentro, da porteira para fora”
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. As formas surgidas dão
concretude à tradução da tradição Nagô pelas mãos e pelos olhos de Mestre Didi. A
primeira, palco de luta e lugar de resistência, e a segunda, o relacionamento entre o
passado, a comunidade e a identidade (HALL, 2005). Sobre a obra do artista sacerdote,
Dalmir Francisco
nos conta:
As mãos do artista tiram, da folha ressequida da palmeira, um a um, fios e
nervuras, preparando-os, pois que, enfeixados, serão a substância que irá
conformar um objeto, um signo, um emblema. O ato é material e concreto, mas
já prenuncia algo simbólico, significativo. A folha ressequida da palmeira já não
é mais folha, ewê, vida que ajuda a planta a respirar. É folha colhida ou caída,
ressequida e morta que é transformada em fios, em nervuras. Assim, a folha
ganha nova vida, nova possibilidade de viver em outra dimensão, a dimensão
radicalmente criada e sustentada pela ação humana e encarnada em objetos (...)
Mestre Didi, buscando nos fios preparados da palmeira e sua conversão em
nervuras (capilaridades que conduzem seiva ou líquidos vitais), nos búzios, nas
contas, nas peles (couro) e nas cores transcritas, para a arte sagrada / laica,
materiais e signos ou símbolos que possuem significado próprio, mas que são,
mais além, projetados e, neste projetar, recriados em contextos diferentes da
origem e, por isso mesmo, é uma obra de arte que convida, ou melhor, que
convoca a reflexão do outro e põe, em cena, a diversidade cultural, étnica, como
condição do ser humano. (Citação proferida na palestra do Prof. Dr. Dalmir
Francisco (UFMG) Mestre Didi: a história, o escrito e o sagrado, durante
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Discurso do ex Ministro Gilberto Gil, sobre o tema central “A Diáspora e o Renascimento Africano” da 2ª
Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora realizado em Salvador em junho de
2006.<http://www.palmares.gov.br/_temp/sites/000/2/publicacoes/refazenda.pdf >. .
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Metáfora enunciada por Mãe Senhora, “nos indica princípios de exercício de poder e territorialização que
caracterizam as relações da comunidade terreiro com o contexto social envolvente” da “porteira para dentro”
refere-se a cultura africana e “da porteira para fora” a cultura eurocêntrica. (Deoscóredes M. Dos Santos e
Marco Aurélio Luz, 2002, p.41).