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ÉRIKA BERGAMASCO GUESSE
SILVIO ROMERO E OS CONTOS POPULARES
BRASILEIROS DE ORIGEM INDÍGENA: UMA PROPOSTA
DE ALISE
UNESP - ARARAQUARA
2009
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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
SILVIO ROMERO E OS CONTOS POPULARES
BRASILEIROS DE ORIGEM INDÍGENA: UMA PROPOSTA
DE ALISE
ÉRIKA BERGAMASCO GUESSE
Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências
e Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio
de Mesquita Filho”, Campus de Araraquara, para
obtenção do título de Mestre em Estudos
Literários.
Orientação: Profª Drª Karin Volobuef
ARARAQUARA
2009
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Guesse, Érika Bergamasco
Silvio Romero e os contos populares brasileiros de origem indígena:
uma proposta de análise / Érika Bergamasco Guesse – 2009
115 f. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Universidade
Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Campus de
Araraquara
Orientador: Karin Volobuef
l. Literatura brasileira. 2. Romero, Silvio, 1851-1914.
3. Funcionalismo (Linguistica). 4. Contos indigenas. 5. Folclore.
6. Contos folclóricos. I. Título.
4
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho a todos aqueles que,
de alguma forma, valorizam as
expressões populares, em todos seus
aspectos, e àqueles que dedicam seus
estudos aos costumes e às diversas
formas de expressão artísticas indígenas.
5
AGRADECIMENTOS
Agradeço, em primeiro lugar, à agência de fomento CAPES pelo fornecimento da
bolsa de mestrado, através da qual foi possível que eu me dedicasse em tempo
integral ao desenvolvimento da pesquisa.
Agradeço também à mestra e professora D Karin Volobuef por sempre
compartilhar de meu entusiasmo e conquistas e também das minhas eventuais
frustrações; agradeço pela dedicação, pelo compromisso, pela competência e por
me ensinar, na prática, o real significado do termo “orientação”.
Agradeço aos docentes integrantes da banca examinadora, Profª Drª Maria de
Lourdes Ortiz Gandini Baldan e Prof. Dr. Sérgio Luiz Rodrigues Medeiros, pela
atenção e pelo tempo que disponibilizaram para mim e minha pesquisa, pelas
importantes considerações que fizeram acerca do meu trabalho.
Agradeço a minha família por me proporcionar toda a infra-estrutura necessária para
que eu pudesse, com tranqüilidade, desenvolver meu trabalho.
Agradeço aos amigos de caminhada pelo incentivo e apoio em todos os momentos.
Agradecimentos especiais para Daniela, Benedito, Solange e Douglas,
companheiros com os quais compartilho mais um momento importante de minha
vida.
6
Por fim, agradeço especialmente a Fernando H. Borges pelo companheirismo,
cumplicidade e amor incondicionais. Uma pessoa maravilhosa com a qual faço
questão de dividir a imensa alegria de mais uma realização. Agradeço por toda
paciência e também por toda ajuda. Essa é mais uma conquista nossa!
7
SUMÁRIO
RESUMO ............................................................................................................................. 8
ABSTRACT ......................................................................................................................... 9
INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 10
CAPÍTULO 1: AS EXPRESSÕES DA LITERATURA ORAL E O OLHAR DE SILVIO
ROMERO........................................................................................................................... 14
1.1 CARACTERÍSTICAS E IMPORTÂNCIA DA LITERATURA ORAL ............................................ 14
1.2 A LITERATURA ORAL BRASILEIRA: ORIGENS E CARACTERÍSTICAS .................................. 16
1.3 A INFLUÊNCIA INDÍGENA NA LITERATURA ORAL NO BRASIL .......................................... 18
1.4 O CONTO POPULAR ...................................................................................................... 21
1.5 O CONTO POPULAR E O MITO ........................................................................................ 23
1.6 O OLHAR DE SILVIO ROMERO ...................................................................................... 26
CAPÍTULO 2: ALAN DUNDES E SUA TEORIA........................................................... 37
2.1. O PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA E ALGUMAS CONSIDERAÇÕES IMPORTANTES ........... 37
2.2. A MORFOLOGIA DOS CONTOS INDÍGENAS NORTE-AMERICANOS..................................... 38
2.3. O ESTUDO ESTRUTURAL DOS CONTOS TRADICIONAIS.................................................... 44
2.4. A ANÁLISE MORFOLÓGICA DOS CONTOS INDÍGENAS ..................................................... 53
2.4.1. A seqüência nuclear bimotivêmica: carência/reparação da carência.................. 53
2.4.2. A seqüência tetramotivêmica: interdição/violação .............................................. 55
2.4.3. Outra seqüência tetramotivêmica: ardil/engano ................................................. 57
2.4.4. A combinação de seis motivemas ........................................................................ 57
2.4.5. A estrutura de contos mais complexos e mais extensos........................................ 58
2.4.6. A importância da análise estrutural.................................................................... 60
2.4.7. As conclusões da teoria ...................................................................................... 62
CAPÍTULO 3: ANÁLISE DOS CONTOS POPULARES BRASILEIROS DE ORIGEM
INDÍGENA, COLETADOS POR SILVIO ROMERO .................................................... 63
CAPÍTULO 4: PERSPECTIVAS COMPLEMENTARES PARA AS ANÁLISES
ESTRUTURAIS................................................................................................................. 91
4.1. O QUADRO SINTÉTICO................................................................................................. 91
4.2. SOBRE AS PERSONAGENS ............................................................................................ 93
4.3. SOBRE AS ESTRUTURAS............................................................................................. 100
4.4. SOBRE AS TEMÁTICAS............................................................................................... 103
4.5. SOBRE OS ELEMENTOS CENTRAIS .............................................................................. 104
COMENTÁRIOS FINAIS............................................................................................... 110
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................ 114
8
RESUMO
A presente pesquisa tem por objetivo apresentar uma proposta de análise de um
grupo de onze contos populares brasileiros de origem indígena, coletados por Silvio
Romero e publicados no volume Contos populares do Brasil (1883), que reúne
contos populares brasileiros de origem européia, indígena e africana. A dissertação
aborda basicamente quatro tópicos. O primeiro deles trata das características
fundamentais da literatura oral brasileira, com enfoque especial para as tradições
orais indígenas, além de apresentar um levantamento de informações
biobibliográficas sobre Silvio Romero. O segundo tópico consiste em um estudo da
teoria proposta por Alan Dundes, em Morfologia e estrutura no conto folclórico, que
serve de ferramental teórico para a leitura estrutural dos contos (uma vez que
Dundes parte das funções de Propp e dos estudos do antropólogo/lingüista Kenneth
L. Pike para chegar a um modelo de análise específico para narrativas de origem
indígena). No terceiro tópico, são realizadas as análises das narrativas que
compõem o corpus. As análises mostram que a maioria dos contos indígenas
coletados por Romero pode ser analisada a partir dos esquemas estruturais de
Dundes, embora algumas adaptações sejam necessárias devido às especificidades
das narrativas brasileiras. Por fim, no quarto tópico, desenvolvemos um quadro
comparativo que concentra os principais resultados das análises. A partir desse
quadro, apresentamos algumas possíveis interpretações dos dados coletados, vistas
como perspectivas que complementam as análises estruturais realizadas.
Palavras-chave: conto popular, conto indígena, folclore, análise estrutural, análise
sócio-cultural.
9
ABSTRACT
This research aims at presenting a proposition for analysis of a set of eleven
Brazilian folktales with indigenous origins, gathered by Silvio Romero and published
in the Contos populares do Brasil (1883) volume, which collects Brazilian folktales
with European, indigenous and African origins. This work approaches basically four
topics: the first is about fundamental characteristics of oral Brazilian literature having
a special focus on oral indigenous traditions, besides presenting a collection of
bibliographical information about Silvio Romero; the second topic is a study on the
theory proposed by Alan Dundes, in Morphology and structure in the folktale, which
serves as theoretical tool for the structural reading of the short stories (once Dundes
starts with Propp’s functions and anthropologist/linguist Kenneth L. Pike’s studies to
come to a specific analysis model for narratives with indigenous origins); in the third
topic, the narrative analyses which compose the corpus are performed. Through
these analyses, we show that most indigenous short stories collected by Romero can
be analyzed from Dunde’s structural schemes, with some adaptations due to
specificities of Brazilian narratives. Finally, in the fourth topic, we develop a
comparative chart that shows the main results from the analyses. From this chart, we
show some possible interpretations of the data collected, seen as perspectives that
complement the structural analyses performed.
Key-words: popular short story, indigenous folktale, structural analysis, sociocultural
analysis
10
Introdução
O presente trabalho tem por objetivo a realização de uma análise literária de
um grupo de onze contos populares brasileiros de origem indígena. Esses contos
foram coletados por Silvio Vasconcelos da Silveira Ramos Romero (1851-1914) e
publicados no volume Contos populares do Brasil (1883), que agrega contos
populares brasileiros de origem européia, indígena e africana.
Apesar de possuir uma obra ampla, Silvio Romero não tem sido um autor
muito estudado. Assim como aconteceu com Luis da Câmara Cascudo, sua
produção aguardou por certo tempo que chegasse o momento de redescoberta e
valorização. Conforme demonstram trabalhos mais recentes a exemplo de Sílvio
Romero hermeneuta do Brasil (2005), Na captura da voz - as edições da narrativa
oral no Brasil (2004), A poesia popular na República das Letras - Sílvio Romero
folclorista (1994) – o cenário atual é de reavaliação e reconhecimento de sua
contribuição. Diante da riqueza e significado de sua obra, bem como o relativo
esquecimento em que seu legado caiu, consideramos que nosso trabalho poderá
trazer contribuições para a reflexão sobre seu valioso legado.
Os contos maravilhosos têm sido, nos últimos tempos, objeto de vários
estudos, sendo uma das teorias mais empregadas a de Vladimir Propp (abordagem
estruturalista). A despeito desse interesse pelos contos maravilhosos, as narrativas
de origem indígena continuam pouco estudadas, de modo que há uma grande
diversidade de elementos ainda a serem explorados.
O desconhecimento desses contos deve-se, provavelmente, a peculiaridades
que os tornam menos acessíveis pela via metodológica de Propp. Afinal, as
narrativas coletadas entre os índios apresentam menor extensão em termos de
número de páginas, freqüente presença de personagens animais, enredos menos
complexos, leque de temas específicos, etc.
Justamente devido a essas especificidades, julgamos fundamental conhecer
melhor e submeter a um estudo sistemático esses contos, uma vez que expressam a
cultura do povo brasileiro e representam um grupo étnico bastante significativo para
a formação histórico-cultural do Brasil.
A figura do índio foi abordada por outros grandes autores da literatura
brasileira, conforme exemplificam José de Alencar, com O guarani e Iracema;
11
Gonçalves Dias, com os poemas I-Juca-Pirama e Os timbiras; Basílio da Gama, com
Uraguai; Santa Rita Durão, com O Caramuru; Mário de Andrade, com Macunaíma.
Vale ressaltar que essas várias obras trataram o índio de vários modos, ora
idealizando-o, ora inferiorizando-o em relação ao português; ora utilizando-o como
matriz heróica, ora transformando-o em verdadeiro anti-herói. Entretanto, se, nessas
obras o índio aparece como personagem, nos contos que pretendemos analisar, o
índio assume a posição de autor/criador. Ou seja, as histórias são provenientes de
uma longa tradição oral, em que os índios expressavam seu universo cultural, suas
crenças, seu imaginário ficcional, suas práticas, medos e anseios: os contos foram
narrados por índios, para os índios e sobre o mundo, tal como visto pelos índios.
Dadas as especificidades dos contos que formam nosso corpus (que os
tornam algo divergentes em relação às funções de Propp), buscamos apoio teórico
no trabalho desenvolvido pelo pesquisador Alan Dundes. Em seu livro Morfologia e
estrutura no conto folclórico, Dundes apóia-se nas funções de Propp e, com base
nelas, desenvolve um modelo de análise específico para narrativas de origem
indígena (o pesquisador norte-americano trabalhou com narrativas dos índios dos
Estados Unidos).
O critério utilizado para selecionar os contos do corpus foi a escolha de
narrativas cujas estruturas mais afinidades apresentassem com o modelo das
funções do conto maravilhoso popular na acepção de Dundes. Ou seja, dentre os
21 textos coletados por Romero e classificados por ele como sendo de origem
indígena, há alguns que têm uma estrutura narrativa que mais se aproxima de outras
formas narrativas, em especial a fábula. Assim, entendemos que os contos
indígenas da antologia de Romero que não entraram em nosso corpus demandariam
ainda uma outra abordagem teórica, pois inclusive o arcabouço de Dundes não seria
adequado para analisá-los.
Tendo em vista essa peculiaridade, os contos de Silvio Romero que
selecionamos para análise são:
1. “O cágado e a fruta”
2. “O cágado e o teiú”
3. “O cágado e o jacaré”
4. “O jabuti e a raposa”
5. “O cágado e a fonte”
6. “O urubu e o sapo”
12
7. “Amiga folhagem”
8. “A raposa e a onça”
9. “O jabuti e o homem”
10. “O veado e o sapo”
11. “O jabuti e o veado”
Segundo Silvio Romero, os contos de número 1, 2, 3, 5, 7 e 10 são de origem
sergipana; o conto de número 6 é de origem pernambucana; o conto de número 9
estaria na tradição oral do Norte, tendo sido ouvido em Pernambuco (mas Couto de
Magalhães o teria coligido, em versões semelhantes, entre os índios do Pará); os
contos de número 4, 8 e 11 são versões de lendas colhidas entre os índios por
Couto de Magalhães.
É importante salientar que, embora o número de textos que compõe o corpus
de análise pareça grande, os contos escolhidos são narrativas curtas, cada qual
cobrindo de duas a três páginas.
Para a consecução do objetivo proposto, a pesquisa foi realizada de modo a
cobrir quatro tópicos, conforme descrição a seguir.
O primeiro capítulo apresenta as características e especificidades da
literatura oral, mais especificamente da literatura oral brasileira. Devido ao fato dos
textos analisados pertencerem ao gênero do conto popular, esse capítulo realiza
também uma abordagem sobre esse nero, estabelecendo suas relações e
fronteiras com o mito. Para completar este capítulo, ocupamo-nos com a fortuna
crítica existente sobre Silvio Romero. Além de buscar informações biobibliográficas
(importantes devido ao relativo desconhecimento que ronda o autor e sua produção),
procuramos identificar como sua obra em especial sua antologia de contos
populares – foi lida e entendida pelos críticos e historiadores literários.
O segundo capítulo apresenta em minúcias a proposta teórico-metodológica
de Alan Dundes. Sua teoria pode ser considerada complexa e, por ser o principal
ferramental teórico das análises dos contos realizadas por este trabalho,
acreditamos ser fundamental para a compreensão das referidas análises a
exposição detalhada do método utilizado pelo estudioso norte-americano.
O terceiro capítulo traz nossas análises dos onze contos populares de origem
indígena, mostrando a viabilidade da teoria de Dundes para o trabalho com contos
brasileiros. Tendo em vista, porém, a especificidade do conto indígena brasileiro
(que não se revela perfeitamente simétrico às criações das tribos norte-americanas),
13
nossa análise também incorpora comentários e algumas adaptações indispensáveis
para obtermos uma discussão mais completa e eficiente das narrativas do corpus.
Como as análises estruturais sempre demandam uma posterior interpretação
dos dados (ou estruturas), o quarto capítulo apresenta algumas perspectivas que
complementam essas análises estruturais. Inicialmente, elaboramos um quadro que
sintetiza as principais características dos onze contos analisados. Esse quadro tem
por objetivo facilitar o processo de integração e comparação entre os textos. A partir
disso, ao longo do capítulo, desenvolvemos os elementos presentes neste quadro
sintético: personagens, temática e outros fatores que julgamos importantes na
construção das narrativas.
Comecemos, então, nossa jornada. A primeira etapa leva-nos ao século XIX,
e às investigações folclóricas de Silvio Romero.
14
Capítulo 1: As expressões da literatura oral e o olhar de Silvio Romero
1.1 Características e importância da literatura oral
Segundo Luis da Câmara Cascudo, a literatura oral, “que seria limitada aos
provérbios, adivinhações, contos, frases-feitas, orações, cantos, ampliou-se
alcançando horizontes maiores. Sua característica é a persistência pela oralidade. A
fé é pelo ouvir, ensinava São Paulo” (1984, p. 23).
Todas as vezes que em se aborda o tema da literatura oral ou popular, é
comum relacioná-la com a literatura folclórica, porém, para Cascudo (1984, p. 24),
toda literatura folclórica é popular, mas nem toda literatura popular é folclórica. A
diferença está, de acordo com o autor, num inevitável processo de
descaracterização. Para que uma literatura seja folclórica, são necessários quatro
fatores: antiguidade; persistência; anonimato; oralidade. Ou seja, a literatura
folclórica é uma produção de origem popular cuja fixação no tempo é improvável e
as tonalidades da época de sua criação foram perdidas.
Segundo Cascudo (1984, p. 26) a literatura oral tem considerável importância
nos estudos das ciências pedagógicas: estudos arqueológicos, sociológicos,
antropológicos, musicais, medicinais e até mesmo psiquiátricos; todos eles procuram
desvendar características e caminhos a seguir a partir das produções coletivas.
Câmara Cascudo revela, porém, a camuflagem e até marginalidade nas quais
vive a literatura oral, quando comparada à chamada literatura oficial.
A literatura oral é como se não existisse. Ao lado daquele mundo de
clássicos, românticos, naturalistas, independentes, digladiando-se,
discutindo, cientes da atenção fixa do auditório, outra literatura, sem
nome em sua antiguidade, viva e sonora, alimentada pelas fontes
perpétuas da imaginação, colaboradora da criação primitiva, com
seus gêneros, espécies, finalidades, vibração e movimento,
continua, rumorosa e eterna, ignorada e teimosa, como rio na
solidão, e cachoeira no meio do mato. (CASCUDO, 1984, p.27).
Para o autor, essas duas vertentes literárias são diversas, porém
inseparáveis. Enquanto a literatura oficial, obedecendo a ritos de escolas ou de
predileções individuais, é a expressão de uma ação refletida e puramente intelectual,
a literatura oral segue a espontaneidade do povo, de suas crenças, tradições, festas.
15
E essa última, tão antiga, natural e intrínseca, quando descoberta pelo poeta,
músico, romancista, é julgada como original e nova.
Câmara Cascudo (1984, p. 28) diz que a literatura oral ainda está fortemente
ligada ao povo e é intensamente lida, em voz alta, nas fazendas, nas cidades, em
varandas, calçadas, em roda; ela é uma expressão vasta e poderosa.
Assim, essas características apresentadas por Cascudo nos remetem a toda
uma tradição popular expressa pela literatura oral e vivida por ela. Para o estudioso,
“Entende-se por tradição, traditio, tradere, entregar, transmitir, passar adiante, o
processo divulgativo do conhecimento popular ágrafo” (1984, p. 29).
Michèle Simonsen (1987, p. 26) nos relata sobre o ritual das instituições de
transmissão da literatura oral. Para essa autora, essas instituições seguem um
modelo geral que consiste em uma reunião na qual um dos membros tem a palavra;
e diferem das mídias modernas porque o ato de comunicação do texto está sob o
poder direto da comunidade. Mesmo assim, qualquer pessoa não relata qualquer
coisa em qualquer lugar.
Simonsen (1987, p. 26) aborda ainda os três critérios principais do ato de
narrar: o primeiro é o quadro de reuniões, ou seja, o lugar, a ocasião e a hora
adequados para o relato; o segundo critério é a seleção dos participantes. Esse
critério é, por sua vez, subdividido em três fatores: sexo, faixa etária e profissão. O
último critério, então, é o repertório, já que dependendo dos outros dois critérios
anteriores, uma seleção de gêneros será realizada para ser contada. Sobre os pré-
requisitos para ser um contador, diz Simonsen: “O que é preciso para ser contador?
Certamente, é preciso ‘ter tempo para sonhar os contos’, isto é, ruminá-los
interiormente, mas também é preciso ter a oportunidade de praticá-los, senão podem
ser esquecidos” (1987, p. 29).
Maria Emília Traça (1998, p. 23) também faz uma reflexão sobre a literatura
oral, mais especificamente, sobre os contos. A autora inicia sua obra abordando a
presença viva do conto em nossa sociedade atual, seja no cinema, nos textos
publicitários, no teatro ou mesmo nos livros infantis.
Segundo Maria Emília Traça (1998, p. 35-36), para as sociedades agrárias
tradicionais, a atividade de narrar era uma forma de “lazer”, mesmo que viesse
acompanhada da execução de tarefas diárias; o ato de contar era, portanto, uma
experiência vivida pelo grupo social. A autora cita o historiador Robert Darnton, que
considera os contos populares como verdadeiros documentos históricos, por
16
estarem tão ligados ao cotidiano das pessoas e refletir, muitas vezes, a realidade de
vida dos camponeses. Diz a autora sobre os contos da tradição oral:
Muito antes de terem sido fixados através da escrita de alguns
adaptadores [...] ou de serem fixados pela escrita ou por outros
processos possibilitados pelo progresso tecnológico, por folcloristas
e etnólogos, os contos de tradição oral constituíam um patrimônio
popular. Contados ao serão, nas festas coletivas, desempenhavam
um papel regulador de tensões num espaço de ficção em que se
exprimiam conflitos, pulsões, o não dito da realidade social.
(TRAÇA, 1998, p. 37)
1.2 A literatura oral brasileira: origens e características
Segundo Cascudo (1984, p. 29), para compor a literatura oral brasileira,
apresentam-se três principais grupos étnicos: indígenas, portugueses e africanos.
Diz Cascudo (1984, p. 29) que, quanto aos indígenas, no quadro colonial,
estudá-los era como colaborar com Satanás. Assim, o que se soube sobre seus
costumes, modos de ser, agir, pensar e todas suas expressões culturais se limitou
ao século XVI. Hoje, sabe-se que a figura do índio tem começado a ocupar seu
merecido lugar nos estudos de uma maneira geral. Ainda estamos longe de
compreender sua grandeza e importância para a cultura brasileira, no entanto,
alguns progressos têm acontecido. Sobre esse assunto, tratar-se-á posteriormente.
Segundo o autor, quanto aos africanos, em fins do século XIX, assim como
dos índios, pouco se ouvia. O interesse em estudá-los é quase contemporâneo,
segundo o autor. Atualmente, nessa área, sabe-se que o paradigma também tem
mudado. Os portugueses se apresentam, portanto, como os mais fortes em relação
à confirmação de sua cultura e de suas influências étnicas e psicológicas.
Câmara Cascudo (1984, p. 30) diz que a essas três fontes básicas, somam-se
a passagem de séculos, a presença de outros povos e civilizações, num entremeio
de convergências, coincidências, confusões. Dessa forma, estudar as origens e
características de determinada expressão oral, tendo como base métodos e formas
muito rígidos não alcançará os resultados esperados, já que o contato e a
proximidade dos elementos de uma cultura com a outra é inevitável e incontrolável.
Com isso, os problemas e as dificuldades de estudo aumentam, que elementos
comuns surgem em povos e épocas muito distantes entre si, muitas vezes,
17
impossibilitando o pesquisador de compreender os limites da procedência e da
influência desses elementos.
Segundo Câmara Cascudo, essa falta de controle se dá porque há, em
qualquer agrupamento humano,
a memória coletiva de duas ordens de conhecimentos: o oficial,
regular, ensinado pelo colégio dos sacerdotes ou direção do rei, e o
não-oficial, tradicional, oral, anônimo, independendo de ensino
sistemático porque é trazido nas vozes das mães, nos contos de
caça e pesca, na fabricação de pequeninas armas, brinquedos,
assombros. (CASCUDO, 1984, p.32).
Em relação a esse primeiro saber, de acordo com as idéias do autor, os
aprendizes são passivos, porém, ao segundo saber, o saber da tradição, são ativos,
ouvem-no, modificam-no e transmitem-no.
Para Cascudo (1984, p. 34), as expressões orais mais populares no Brasil
não são aquelas com marcas regionais ou que certamente nasceram no país; são
aquelas de caráter universal, espalhadas por quase toda a superfície terrestre.
Assim, quando se pesquisa os temas recorrentes na literatura oral, buscam-se os
mais antigos, aqueles que iniciaram o gênero.
Tanto mais os temas se distanciarem da simplicidade espiritual
primitiva, da unidade psicológica inicial, maior número de elementos
adquirem, desenvolvendo-se e possibilitando o entendimento para
outros povos [...] Toda literatura oral se aclimata pela inclusão de
elementos locais no enredo central do conto, da anedota, da ronda
infantil, da adivinha. (CASCUDO, 1984, p.35).
Segundo Cascudo (1984, p. 35-36), a finalidade desse tipo de literatura, com
seus temas inerentes, é, dentre outras, doutrinar, colocar ao alcance do povo os
ensinamentos sociais e religiosos pertencentes à organização do grupo. Sob essa
perspectiva, gêneros da literatura oral como a fábula, o conto, as historietas pidas
são gêneros primários e os temas satíricos são decorrências posteriores. O sentido
da sátira, o conto obsceno, a anedota testemunham uma evolução mental, uma
libertação do grupo religioso.
O autor apresenta gêneros muito variáveis e diversos, que compõem a
literatura oral; dentre eles estão: canto, dança, auto popular, dança dramática, mito,
18
lenda, fábula, tradição, conto, rondas infantis, parlendas, adivinhas, anedotas,
adágios, provérbios.
Enfim, toda essa literatura é incrivelmente viva e atual; apesar de um tanto
desvalorizada, retrata a sabedoria popular.
1.3 A influência indígena na literatura oral no Brasil
Das três etnias que basicamente compuseram a tradição oral brasileira,
índios, negros e portugueses, este trabalho abordará especificamente a influência
indígena na literatura oral do Brasil.
Cascudo retrata uma cena muito comum em todas as aldeias indígenas
visitadas: “Depois do jantar, noite cerrada, no pátio que uma fogueira ilumina e
aquece, reúnem-se os velhos indígenas, os estrangeiros para conversar e fumar até
que o sono venha” (1984, p. 78).
Essa cena muito nos lembra as características da arte de narrar, tal como
analisadas por Emília Traça e Michèle Simonsen, apresentadas anteriormente. Para
os índios era de extrema importância este momento em que compartilhavam a
lembrança de seus costumes passados, os mistérios da mata, as figuras de chefes e
guerreiros mortos.
Segundo Cascudo (1984, p. 78), num tempo mais remoto, os indígenas
vivenciavam o ritual do conselho, no qual o pajé e mais três velhos se reuniam para
debater a vida da tribo e, principalmente, manter vivas as tradições, crenças e
costumes. Posteriormente, em todas as ocasiões festivas, um dos membros do
conselho seria encarregado de transmitir e instruir os moços acerca dos segredos
orais que tanto orgulhavam narrador e ouvintes. Dessa maneira, a sabedoria
acumulada ao longo do tempo não se concentrava em alguns índios do grupo, mas
renasciam na mente de todos os membros da tribo. E essa transmissão não era feita
apenas pelos pajés ou membros do conselho; as mães também costumavam fazê-la
a seus filhos.
Nenhum indígena, quinhentos anos e atualmente, deixa de
narrar, com gesticulação contínua e teatral, a história de seu dia, os
dias vividos num encargo individual ou desempenho de missão
tribal. É a Poranduba, a Maranduba, expressão oral da odisséia
indígena, o resumo fiel do que fez, ouviu e viu nas horas distantes
do acampamento familiar. (CASCUDO, 1984, p. 79).
19
Assim, Poranduba é, segundo o autor, a narrativa indígena, que significa
histórias fantásticas, fábulas, alusões, relatos mitológicos. a Maranduba
compreende notícias e histórias de guerras e de fatos verdadeiros contadas pelos
pais e chefes, aos filhos e à tribo, perpetuando os feitos de seus antepassados.
Segundo Frei Ivo d’Evreux (Apud Cascudo, 1984, p. 80), os índios contam
diante dos moços quem foram seus antepassados e os fatos ocorridos em um tempo
muito distante. Convidam gente para ouvi-los e narram, palavra por palavra, uma
história de vida, vivenciada pela coletividade.
De acordo com Cascudo (1984, p. 83), para os indígenas, o cantor e o músico
tinham grande prestígio e compartilhar com o homem branco seus cantos e danças
era o primeiro passo. Agora, as narrativas, como as fábulas e contos, viriam
conforme a amizade crescesse, que estariam partilhando um patrimônio comum
da tribo, sua literatura oral.
Para Cascudo (1984, p. 83), um dos grandes obstáculos para a transmissão
da literatura de índios para brancos foi o idioma, pois, ao narrar numa língua que
não era sua, o narrador ameríndio perdia uma boa parte de sua arte. No entanto,
mesmo com dificuldades, muitas histórias indígenas compuseram o memorial
literário brasileiro e vieram por intermédio do mameluco, filho de índio com
português. Nesse processo, segundo o autor, o idioma tupi foi o maior divulgador da
literatura oral; foi um denominador comum de estórias, que ocupou por um bom
tempo, o posto de língua geral do Brasil. A língua portuguesa começou a ser
utilizada como língua geral apenas em 1775.
É importante salientar que, segundo Cascudo (1984, p. 85-86), o idioma tupi,
na maioria das vezes, não representava tanto a glória indígena e sua cultura, mas,
sim, servia de instrumento para incutir, nos índios, a cultura do branco europeu.
Mesmo assim, de maneira paralela e marginal, esse idioma ia conduzindo as
tradições indígenas e marcando-as na mente do homem branco. Portanto, não é
possível considerar o processo de influência na literatura oral como um processo
unilateral, sendo preciso considerá-lo recíproco: os indígenas influenciaram
portugueses e, na mesma medida, foram influenciados.
Um branco, a quem é dada a oportunidade de ouvir um indígena, se
surpreenderá com a extensão de sua cultura oral. Essa cultura é o resultado de
experiências concretas vividas pela tribo e guardadas na memória. Diz Cascudo que
20
o índio narra, durante um tempo inimaginável, histórias sobre os rios, as matas, os
animais, as lutas, os guerreiros, os deuses, a pesca, a caça.
A massa desses conhecimentos tradicionais é maior do que calcula
o otimismo perguntadeiro do “branco”.
Esse conjunto de estórias, lendas, danças, e cantos completa o
sentido da vida indígena. Não o pode dispensar porque explica o
mundo, justificando-o aos olhos de sua curiosidade. (CASCUDO,
1984, p. 87).
De acordo com Cascudo (1984, p. 88-89), uma das expressões orais
indígenas mais difundidas é a bula, na qual os animais ocupam o lugar dos seres
humanos, com suas qualidades, defeitos e limitações. Esse gênero é extremamente
sugestivo aos ouvidos indígenas e é, através dele, que o índio critica e ensina; os
problemas sociais, morais e vitais se esclarecem pela ação dos bichos. Para os
índios, tudo o que existe no mundo se originou de um animal sagrado. Dentre os
animais que estão mais presentes nas fábulas indígenas, o jabuti é o predileto,
acompanhado do macaco, sapo e raposa.
Diz Cascudo (1984, p. 98) que os indígenas tinham a necessidade de explicar
naturalmente tudo o que acontecia em suas vidas e fazia isso através da lenda; ela
registra a origem de tudo o que é indispensável na vida ameríndia. Nesse gênero
um ambiente heróico, o sobrenatural é indispensável e a sua constante é o traço
religioso; a lenda exige uma ação e tem um caráter utilitário para a tribo. As lendas
indígenas brasileiras, como literatura oral, não tiveram a mesma repercussão das
fábulas e mitos; são mais citadas nos livros e menos lembradas na memória do
povo. “A lenda indígena não constitui um elemento vivo na literatura oral brasileira.
Está circunscrita aos limites do interesse indígena. Levada, pelos naturalistas ou
missionários, torna-se elemento literário e não popular” (CASCUDO, 1984, p. 104).
Já o mito será abordado posteriormente, quando apresentarmos as suas
relações com o conto popular. Quanto aos contos populares, na sua abordagem
sobre a literatura oral indígena, Cascudo não apresenta nenhuma informação
específica.
Por fim, segundo Cascudo (1984, p. 129), a tradição é a História do povo
indígena e engloba os mitos, as lendas, as guerras e vitórias, os antepassados,
chefes e guerreiros, ou seja, tudo aquilo de mais sagrado que foi sedimentado na
memória coletiva ameríndia; um patrimônio oral transmitido de geração em geração.
21
Dessa maneira, segundo o autor, na convivência do coletor com o povo
indígena, fica clara a dificuldade de se sistematizar a literatura oral. que, como
exposto acima, o primeiro canal de contato do branco com o índio é sua dança e seu
canto; num segundo momento, conforme a amizade é estabelecida, as fábulas são
trazidas à conversa; posteriormente os mitos são partilhados; porém, as tradições
quase nunca são relatadas àqueles que não são membros do grupo.
1.4 O conto popular
Segundo Leal, “O conto popular é uma expressão que pertence a este
contexto de sonho e fantasia, de magia e de mistério; ele é parte da fala do povo,
um canto harmonioso dirigido ao mistério das coisas (1985, p. 12).”
Para este autor, o conto popular, como gênero, apresenta quatro
características fundamentais:
Antiguidade: relacionada com a temática dos contos. O conteúdo de um
conto, contado numa determinada época em um determinado lugar, pode ter
sofrido transformações ao longo do tempo, porém sua essência é a mesma
de um conto remoto, contado em época e lugar completamente diferentes.
Assim, em sua raiz, os contos relatam conteúdos comuns referentes à
essência dos homens.
Anonimato de autoria: os contos populares têm como característica o autor
anônimo; não se sabe quem foi o “criador” da história, portanto, ela é
considerada criação do povo e, então, anônima. Muitos foram os coletores de
contos populares ao longo da história; alguns até mesmo modificaram um
pouco os relatos que coletaram, porém não são seus criadores.
Capacidade de persistir no tempo: segundo o autor, os contos populares
seriam codificados numa linguagem simbólica e universal capaz de ser
compreendida por homens de todas as épocas e lugares. Isso explicaria sua
capacidade de persistir no tempo.
Modo de transmissão: os contos populares são transmitidos oralmente,
contados ou cantados; os contos são transmitidos de pais para filhos, ao
longo das gerações. Vale novamente salientar que oralidade não quer dizer
22
simplicidade ou rusticidade; os contos respeitam rituais de transmissão e
possuem complexidade, arte e capacidade de seduzir seus ouvintes.
Quanto à classificação do conto popular, diz Leal (1985, p. 15) que sempre
houve polêmica e problemas. Segundo o autor, os folcloristas europeus tentaram
inutilmente classificá-los; então, decidiram estudar suas estruturas em primeiro lugar,
para tentar simplificar o processo de classificação. Daí surgem os estudos
estruturalistas do conto popular, que têm como seu principal representante Vladimir
Propp, estruturalista russo.
No Brasil, segundo Leal (1985, p. 16-17), as tentativas de classificação não
foram menos confusas ou mais produtivas. Silvio Romero, por exemplo, ao invés de
classificar os contos, acabou dividindo-os em contos de origem européia, indígena e
africana. Já Câmara Cascudo foi o estudioso que, de acordo com Leal, chegou à
classificação mais aceita no Brasil. Cascudo classifica os contos populares em:
contos de encantamento, contos de exemplo, contos de animais, facécias, contos
religiosos, contos etiológicos, demônio logrado, contos de adivinhação, natureza
denunciante, contos acumulativos e ciclos da morte.
Em relação à linguagem utilizada nos contos populares, de acordo com Leal
(1985, p. 24-25), o narrador dos contos pode ser considerado profissional e, por isso,
sua linguagem apresenta características formais bem definidas. O modo de começar
as narrativas segue uma espécie de modelo, cujo objetivo principal é apresentar os
personagens, processo esse denominado “protocolo de iniciação”. O modo de
acabar os relatos também segue um modelo e seu fecho pode ser interno ou
externo. O fecho interno é aquele que apenas termina a narrativa sem nenhum
acréscimo; o fecho externo é aquele no qual há o acréscimo de uma intervenção
do narrador através de uma moral ou apenas alguns versinhos rimados e cômicos,
que marcam para os ouvintes o final da história.
Outra característica da linguagem dos contos populares, segundo o autor
(1985, p.32), é a expressão corporal, utilizada pelos contadores como um
instrumento para auxiliar a palavra e encantar seu público. Além disso, nos contos
populares, o predomínio da coordenação sobre a subordinação e, por fim, a
repetição, cujo objetivo é enfatizar, intensificar ou, muitas vezes, apenas ser fiel às
fórmulas mágicas que, para serem eficazes, dependem justamente de sua repetição.
23
1.5 O conto popular e o mito
Inicialmente, pode parecer simples diferenciar o conto popular do mito, porém
não é tão simples assim. De acordo com Leal (1985, p. 20), não há um critério eficaz
para distinguir uma forma da outra. A solução proposta é opor uma à outra, ver os
elementos que se aproximam e se afastam e, então, tentar uma definição.
Segundo o estudioso (1985, p. 20-22), o mito teria algumas características
fundamentais:
Personagens: os personagens dos mitos são deuses e seres da ordem
sobrenatural
História: a história relatada pelo mito é séria, verdadeira; trata das origens das
coisas e do mundo
Possui um herói divino
Procura dar respostas para a existência humana
A partir da comparação dessas especificidades do mito com as peculiaridades
dos contos populares abordadas no tópico anterior, Leal chega as seguintes
definições:
Mito: uma narrativa sagrada que tem por personagens seres
sobrenaturais, e que procura dar ao homem respostas vitais para
sua existência e ao mesmo tempo tem a capacidade de sacralizar o
espaço do real por ser ele próprio uma forma de irrupção do
sagrado no profano. [itálico no original]
Conto popular: é uma narrativa tradicional que tem por herói seres
humanos; sua forma é solidamente estabelecida e nela os
elementos sobrenaturais ocupam posição secundária. Não se
refere a temas sérios” ou reflexões filosóficas profundas. Seu
principal atrativo consiste na própria narrativa. (1985, p.23). [itálico
no original]
De acordo com Simonsen (1987, p. 6), o mito, a saga, o conto, a lenda e a
anedota são os gêneros narrativos populares mais significativos da Europa e, para
diferenciá-los, ela utiliza os seguintes traços distintivos: atitude, forma, protagonistas
e função social. Como nosso trabalho enfoca o conto e o mito, reproduzimos abaixo
parte da tabela comparativa elaborada por Simonsen (1987, p. 6), limitando-nos
apenas a esses dois gêneros (a tabela de Simonsen cobre outros gêneros
adicionais):
24
Atitude Forma Protagonistas
Função
Social
MITO verdade poesia Divindades e
heróis
rito
CONTO ficção
Prosa/formas
rimadas
Seres
humanos,
seres
sobrenaturais
e animais
divertimento
Assim, para Simonsen:
O conto é, pois, um relato em prosa de acontecimentos fictícios e dados
como tais, feito com finalidade de divertimento.
O mito, ligado a um ritual, tem um conteúdo cosmogônico ou religioso.
Simboliza as crenças em uma comunidade, e os acontecimentos fabulosos
que ele narra são tidos como verídicos (1987, p. 6).
Na literatura oral indígena, o mito, segundo Cascudo (1984, p. 104), é difícil
de ser conceituado; muitas vezes se confunde com a fábula, com a lenda e até
mesmo com o conto. De acordo com o pesquisador, teóricos alemães de Tübingen e
Göttingen os diferenciam dizendo que o mito vira lenda e a lenda se torna conto, ou
seja, um conto seria um fragmento de uma lenda e a lenda, um fragmento de um
mito. Cascudo caracteriza o mito como sendo uma narrativa de ação constante, uma
constante em movimento, e a lenda, de ação remota, um ponto imóvel de referência.
Além disso, para o autor, a lenda possui o elemento coletivo, enquanto o mito é
nitidamente personalizado.
O estudioso Herman Steuding (Apud Cascudo, 1984, p. 105) diz que o mito
trata de assuntos referentes à morte e vida de deuses e semideuses e a lenda trata
dos heróis e a fábula é criação imaginária.
Para Cascudo (1984, p. 106), os mitos indígenas são, geralmente, articulados
por um aspecto religioso. Os três deuses superiores são o Sol (Guaraci), a Lua (Jaci)
e Rudá (deus do amor). Os semideuses Guirapuru, Anhangá, Caapora e Uauiará
são submetidos ao Sol; Saci-Cererê, Mboitatá e Curupira são submetidos à Lua; e
25
Rudá é um guerreiro que vive nas nuvens e planta o amor no coração dos homens.
Infelizmente, diz Cascudo (1984, p. 107) que o homem branco traduziu por
“demônios infernais” todos os deuses e semideuses da floresta. Assim, os traços da
religião indígena foram massacrados através da catequese feita pelo colonizador,
que implantou suas crenças como religião oficial do país.
Para Medeiros (2002, p. 19), o estudo dos gêneros das narrativas ameríndias
ainda não solucionou as dificuldades de se aplicar conceitos “livrescos” (originados
na cultura européia) à realidade oral dos textos indígenas. Assim, o leitor não deve
estranhar se perceber uma certa disritmia no emprego desses conceitos, inclusive
nas teorias de estudiosos renomados. Diz Medeiros que “ainda não se chegou a um
consenso sobre o que seria a ‘narrativa indígena’. Quase poderíamos dizer que,
para o fruidor não-indígena, a ‘narrativa oral’ ainda é um objeto em construção, na
verdade uma incógnita” (2002, p. 20).
Para esse pesquisador, o critério temático também não soluciona o problema,
que uma mesma narrativa pode possuir várias versões, sagradas ou não,
dependendo do contexto. Medeiros (2002, p. 21) aborda a teoria de Barre Toelken,
que, através da análise da forma e do conteúdo de diferentes versões do mito do
Coiote, desenvolveu vários níveis semânticos de análise, definidos a partir de uma
maneira específica de narrar a história. Basicamente, os quatro níveis mais
evidentes são:
Nível I: entretenimento
Nível II: ensinamento moral
Nível III: terapia
Nível IV: malefício
Nos dois primeiros níveis, a história é narrada por completo. No primeiro nível
são enfatizados pelo narrador/contador os aspectos cômicos da narrativa. no
segundo nível são mais destacados os valores e os tabus expressos, enquanto no
terceiro, o narrador/contador é livre para fragmentar a narrativa e escolher apenas
alguns trechos considerados terapêuticos por evocarem o todo. Por fim, no quarto
nível, o narrador/contador fragmenta a narrativa, e a desintegração do enredo
aparentemente acarreta a desintegração da pessoa que se deseja exterminar ou
atingir.
O estudo desses níveis, segundo Medeiros (2002, p. 22), mostra que uma
mesma narrativa pode assumir papéis diferentes ou até mesmo opostos,
26
dependendo do contexto e da performance do contador. Dessa forma, classificar as
narrativas indígenas baseando-se em conceitos de gênero fixos, como conto, mito
ou lenda, é algo questionável na opinião de Barre. Para Medeiros,
cada narrativa oral é potencialmente uma multiplicidade de formas:
ora conto, depois mito, finalmente símbolo ou fragmento, depois
novamente conto etc. [...] As narrativas parecem participar de vários
gêneros sem pertencer a nenhum gênero em particular (2002, p. 22).
1.6 O olhar de Silvio Romero
Silvio Vasconcelos da Silveira Ramos Romero nasceu em 1851, na Vila de
Lagarto, então província de Sergipe (Romero, 1959, p. 18). Conforme relata o
próprio Silvio Romero – em textos coligidos por seu sobrinho, Nelson Romero (1959)
–, quando nosso autor tinha seis semanas de vida, sua mãe não pôde mais
amamentá-lo, pois foi contaminada pela febre amarela. Foi levado, então, para o
engenho de seus avós maternos (localizado em uma região chamada o Piauí,
denominação abstraída do rio local), onde permaneceu até os cinco anos de idade.
Desse período data o início de seu contato com o povo e com a religião (Romero,
1959, p. 18). Silvio Romero recorda: “Tudo que sinto do povo brasileiro, todo meu
nativismo, vem principalmente daí. Nunca mais o pude arrancar d’alma, por mais
que depois viesse a conhecer os defeitos de nossa gente, que são também os meus
defeitos” (Romero, 1959, p. 19). Assim, desde os tempos da primeira infância, vivida
no engenho, o autor sergipano carregou consigo a forte relação com o povo e uma
religiosidade indestrutível; essa última adquirida pelo contato com a mucama de
estimação de sua avó, chamada Antônia.
Uma segunda epidemia, desta vez de cólera, fez com que Silvio Romero
voltasse para a casa dos pais, no Lagarto, em 1856, onde viveu dos cinco aos doze
anos. Conforme lembra Romero (Romero, 1959, p. 20-21), sua irmã Lídia e sua mãe
faleceram por causa da doença. De 1863 a 1867 estudou no Rio de Janeiro, no
antigo Ateneu Fluminense, onde recebeu, segundo ele mesmo, a influência de cinco
pessoas, que norteariam seu pensamento por toda sua vida: Padre Gustavo Gomes
dos Santos, professor de Latim, responsável por despertar nele o prazer literário;
Joaquim Veríssimo da Silva, professor de Filosofia, responsável por apresentar-lhe a
metafísica alemã, principalmente de Kant; Padre Patrício Moniz, professor de
27
Retórica e Poética, voltado também para os domínios germânicos; Francisco Primo
de Souza Aguiar, professor de História e Geografia, que argumentara em favor do
valor da história e cultura alemães; e Barão de Tautphoeus, que não fora seu
professor, mas participou de sua formação através de palestras sobre filosofia da
história, partindo de uma raiz etnográfica. Conforme recorda Romero (Romero, 1959,
p. 24), aos dois últimos deve seu germanismo histórico, social e político.
Silvio Romero foi para Recife, em 1868, e permaneceu até 1876. Nesse
período, realizou alguns estudos que confirmaram as tendências que suas reflexões
futuras seguiriam: o folclore, as tradições literárias populares, a mitologia, a
etnografia, a crítica literária. Romero (Romero, 1959, p. 25) ainda salienta a forte
influência que recebeu de Tobias Barreto a partir de 1870, dizendo que não recebeu
dele propriamente idéias, mas que aprenderam juntos. Na ocasião em que João do
Rio lhe perguntou qual de seus próprios trabalhos mais lhe agradava, Romero
respondeu: “pondo de parte uma fingida modéstia que nunca tive, e sem perder a
cabeça em julgá-lo mui grande coisa, declaro que, se se pode assim falar, de meus
trabalhos prefiro todos, porque cada um deles visou um fim e teve função especial:
me gustan todos. Desculpe a rude franqueza de nortista” (Romero, 1959, p. 25).
Romero cursou Direito, exerceu cargos políticos e foi autor de uma vasta
obra, porém pouco conhecida e estudada. Diversas foram as áreas às quais se
dedicou. Conforme Souza (1976, p. 4-5), o próprio Silvio Romero teria feito uma
distribuição sistemática para enumerar suas obras. Assim, no âmbito da crítica e
história literária produziu A literatura brasileira e a crítica moderna (1880); História de
literatura brasileira (1888), que haveria de se tornar uma de suas obras mais
conhecidas; Machado de Assis (1897); Zeverissimações ineptas da crítica (1910),
etc. No que se refere aos estudos e atividades envolvendo o folclore nacional, reuniu
os Cantos populares do Brasil (1882) e Contos populares do Brasil (1883), dentre
outros. Silvio Romero ainda publicou nas áreas de etnografia, política e estado
social, filosofia e poesia.
Silvio Romero foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras em
1897. Foi crítico, ensaísta, polemista, enfim, um escritor de grande relevância para
sua época. Segundo Fernandes (2003, p. 199), Silvio Romero também foi o primeiro
folclorista representativo do Brasil, e seus estudos caracterizaram-se pela procura de
uma estética propriamente brasileira a partir do folclore nacional. Para o estudioso
mencionado, Silvio Romero teve como meta
28
estabelecer uma ligação mais viva entre a cultura popular e a cultura
erudita, o povo e a literatura. Aqui Romero se revela muito coerente:
a literatura de um povo deve ser expressão desse povo. Mas é
preciso que os artistas pensem, então, também em termos de seus
valores fundamentais. Daí a utilidade de uma estética brasileira e a
sua existência como condição necessária para o aparecimento de
uma literatura característica. (FERNANDES, 2003, p. 201).
Ainda de acordo com Fernandes (2003, p. 200), Romero entendia o estudo do
folclore como uma espécie de ponto de apoio para o estudo da literatura brasileira.
Em seus escritos haveria uma preocupação constante: a contribuição cultural de
cada grupo étnico para a formação do Brasil, principalmente o português, o negro e
o índio. Diz Fernandes sobre Romero: “a sua é a primeira grande contribuição para o
estudo do folclore brasileiro e é muito pouco provável que tenhamos, novamente, um
investigador da sua envergadura” (2003, p. 204).
Apesar de possuir uma obra ampla, Silvio Romero não tem sido um autor
muito estudado. Assim como aconteceu com Luis da Câmara Cascudo, sua
produção aguardou por certo tempo que chegasse o momento de redescoberta e
valorização. Conforme demonstram trabalhos mais recentes a exemplo de Sílvio
Romero hermeneuta do Brasil (2005), Na captura da voz - as edições da narrativa
oral no Brasil (2004), A poesia popular na República das Letras - Sílvio Romero
folclorista (1994) o cenário atual é de reavaliação e reconhecimento de sua
contribuição.
Schneider (2005, p. 45) diz que a obra de Silvio Romero é marcada pela
influência do cientificismo evolucionista de fins do século XIX, um cientificismo que
seria racialista em sua interpretação da sociedade, da literatura e da população
brasileiras. No entanto, haveria um traço ainda mais forte na obra de Romero: “uma
concepção essencialista, culturalista e romântica de nação” (2005, p. 45). Assim nós
teríamos uma obra paradoxal e até mesmo contraditória, devido ao encontro ou ao
choque entre uma vertente romântica e outra cientificista.
Segundo Schneider, “[o] nacionalismo é um ordenamento cultural e político
surgido na Europa em fins do século XVIII e início do XIX [...] Enquanto o Estado é
definido como um conjunto de instituições voltado para a ordem pública, a nação se
pretende a expressão de convicções, lealdades, solidariedades e identidades,
sobretudo de natureza cultural e lingüística” (2005, p. 46).
29
Schneider (2005, p. 49) relata que Silvio Romero, como estudioso da cultura
popular no Brasil (e com formação voltada para o germanismo, como visto acima),
se inspirou tanto em Johann Gottfried Herder como nos irmãos Grimm.
De acordo com Schneider:
Herder lutava para que a nação alemã, politicamente dispersa,
tomasse consciência de si mesma, através de sua literatura, sua
História, sua cultura popular e sua língua. Eis uma questão central na
reflexão herderiana: a língua seria a alma de uma nação e sobre ela
repousaria o gênio do povo. Cada nação do mundo deveria procurar a
si mesma e encontrar-se em seu interior, no povo, naquilo que
houvesse de mais autêntico e original [...]. (2005, p. 48).
Sobre os irmãos Grimm, diz o pesquisador:
Os irmãos Grimm também desempenharam um notável papel na
construção das identidades nacionais européias. Mais do que meros
pesquisadores, foram teóricos do romantismo alemão, acalentando
um projeto nacional, segundo o qual caberia aos pesquisadores da
tradição popular revelar o valor das velhas tradições alemãs, de tal
modo que despertasse a consciência de uma unidade política
nacional, ainda inexistente (SCHNEIDER, 2005, p. 48).
Ainda de acordo com Schneider (2005, p. 49-50), no século XIX, as nações
européias contavam com vastos materiais folclóricos, considerados nacionais e que
legitimavam politicamente os Estados Nacionais. Todo este material originado da
tradição popular deveria servir de fonte e inspiração para a literatura considerada
culta. E foi neste contexto que Silvio Romero escreveria a sua obra mais conhecida
e importante, a História da literatura brasileira, considerada por vários teóricos, como
Antônio Cândido, Sylvio Rabello e Roberto Ventura, um tratado de “sociologia da
cultura brasileira”. Apesar dos seus princípios cientificistas e racialistas, era uma
idéia de povo, de tradição romântica, de unidade nacional que orientava seu olhar e
suas reflexões. Intelectualmente, Romero esteve ligado às tendências pós-
românticas da segunda metade do século XIX, marcadas pelo realismo, naturalismo
e cientificismo, no entanto, em relação à nacionalidade, sua visão foi pautada por
uma tendência romântica. “O problema que Romero se impôs foi hercúleo: como
fazer dos descendentes dos escravos negros, dos índios desaldeados, da vasta
gama de mestiços pobres, dos portugueses imigrados e dos novos imigrantes
europeus que chegavam integrantes da mesma nação?” (SCHNEIDER, 2005, p. 55).
30
Ao mesmo tempo em que Romero estava atento a tudo que ocorria no
exterior, voltava seu olhar para a realidade brasileira que estava a sua volta. A
erudição científica européia, segundo Schneider (2005, p. 56), entrava em choque
com as temporalidades socioculturais brasileiras. Romero não resolveu por completo
esta tensão, porém, em nenhum momento, evitou refletir sobre ela.
A moderna Ciência européia e a tradição brasileira freqüentemente
identificada como atrasada formavam as duas partes de um
problema e não se ajustavam facilmente. Da universalidade da
Ciência deveria verter a singularidade histórica e cultural brasileira.
Realizar simultaneamente a nação e a modernidade, segundo os
padrões civilizatórios reinantes na Europa de seu tempo,
configuraram-se como os dois pilares do projeto intelectual de Sílvio
Romero (SCHNEIDER, 2005, p. 26).
Nesse contexto cientificista, modernista e impessoal, Silvio Romero tratou de
combater intensamente o movimento indianista no Brasil. Para ele, diz Schneider, os
escritores românticos apresentavam um índio alegórico, idealizado que apenas
falseava o espírito nacional e não buscava a verdadeira nacionalidade brasileira. Na
visão de Romero, um índio alegorizado, como aquele apresentado por José de
Alencar, não poderia representar de forma alguma a nação, pois o povo brasileiro
deveria ser representado pelo mestiço, pois esse, sim, seria o elemento novo e mais
representativo da nação. Em outras palavras, o mestiço seria o verdadeiro brasileiro.
A questão das três raças formando o povo brasileiro e a importância da
mestiçagem podem ser considerados pontos centrais na obra de Romero,
principalmente quando ele percebeu que quase não havia estudos etnográficos e
demográficos no Brasil.
Fica a impressão de que ele próprio assumiu a missão ao pesquisar
as influências étnicas e culturais na formação do povo brasileiro,
lançando um olhar moderno e científico às tradições populares. Supôs
estar a serviço da formação da nacionalidade, como estiveram os
irmãos Grimm na Alemanha e D’Ancona e Comparetti na Itália
(SCHNEIDER, 2005, p. 59).
De acordo com Schneider (2005, p. 73), os discursos científico-racialistas
condenavam arduamente a mestiçagem, enquanto, na realidade brasileira, Romero
a exaltava, divergindo, assim, das teorias de prestígio de sua época. Para Romero,
seria possível encontrar uma identidade nacional se aceitássemos a fusão do
31
povo colonizador (o português/europeu) com os povos colonizados (índios e negros),
ou seja, a questão do nacionalismo brasileiro passaria impreterivelmente pela
questão da mestiçagem. É muito importante ressaltar, aqui, que essa questão, na
obra de Romero, não é tão simples quanto possa parecer.
Diz Schneider (2005, p. 74) que foi essa questão uma das grandes
responsáveis por um paradoxo que permeia toda a obra do autor sergipano. Romero
defendia que era através do processo de mestiçagem que as tradições populares e
culturais do Brasil seriam identificadas, recuperadas e mantidas. No entanto,
Romero também concordava com a teoria das raças superiores e acreditava que a
mestiçagem era o caminho para que a população do Brasil “embranquecesse”.
Haveria uma desigualdade natural das raças e, enquanto alguns teóricos criticavam
a mestiçagem por acharem que esse processo degeneraria as raças superiores,
Romero achava que as raças inferiores é que seriam elevadas.
Como a literatura era um símbolo da nacionalidade, Silvio Romero sentiu-se
impelido a procurar nela as marcas da mestiçagem. “Em certo sentido, pode-se
definir a História da literatura brasileira como a História da miscigenação
literariamente representada” (SCHNEIDER, 2005, p. 77). Para Romero, a literatura
mimetizava os acontecimentos, e o povo e a nação se tornariam visíveis nos textos
literários. Assim, os homens das letras teriam a função de narrar e estudar a alma do
povo. Schneider (2005, p. 25) ressalta que, para Romero, tudo aquilo que fosse
publicado em livro era literatura, ou seja, os mais diversos gêneros textuais
(romances, versos, cantigas populares), fossem eles sobre política, economia,
geografia, história; tudo isso fazia parte do universo literário da nação. Dessa
maneira, o autor sergipano acreditava que os textos literários deveriam ter um
compromisso com a realidade, expressando a história, os costumes e as tradições
de seu povo. “A literatura deveria narrar o Brasil, sem jamais ignorar o advento das
três raças postas em contato pela colonização e tudo o mais que ddecorresse”
(SCHNEIDER, 2005, p. 36).
A rigor, o intuito romeriano era descobrir uma realidade brasileira e
uma singularidade popular, que por sua vez estariam contidas na
literatura e nas manifestações populares – como os cantos e os
contos. Auxiliada por critérios extraliterários, a exemplo das “leis
gerais”, a vida do povo como uma coletividade de natureza nacional
estaria ou deveria estar depositada no acervo literário do país. A
32
função maior da literatura seria explicar a sociedade e seus dramas
(SCHNEIDER, 2005, p. 35-36).
Convém salientar, de acordo com Schneider (2005, p. 85), que Silvio Romero
não delimitou a mestiçagem a um processo apenas étnico e cultural; o autor abordou
também a influência das três raças na formação da “língua brasileira”, ou seja, a
língua portuguesa do colonizador que foi modificada, tanto em seu léxico, quanto na
sua fonética e sintaxe, pelo contato com as línguas indígenas e africanas.
Segundo Schneider, três pontos estavam constantemente presentes e
relacionados nas reflexões e estudos de Romero: população, raça e nacionalidade.
Diz o autor que “a pergunta que tanto constrangeu a intelligentsia brasileira de seu
tempo também lhe atormentou: quais as conseqüências da vastíssima mestiçagem
na sociedade brasileira? Sua obra é, de certa maneira, uma tentativa de responder
essa questão” (SCHNEIDER, 2005, p. 86).
Em meio a todas essas características do pensamento de Silvio Romero,
podemos concluir que ele foi realmente polêmico no cenário em que atuou. De
acordo com Schneider, uma polêmica importante envolvendo seu nome foi a crítica
que fez a Machado de Assis. De maneira bastante simplista, podemos dizer que um
dos pontos dessa desavença foi a questão da nacionalidade, que Romero dizia
que o consagrado autor fluminense se negava a abordar os temas nacionalistas de
sua época, estando em falta, assim, com a nacionalidade brasileira. Para o
sergipano, os textos literários permitem que se compreenda um país e essa
dimensão não estava sendo contemplada nos escritos machadianos.
De acordo com Maria Inês de Almeida e Sônia Queiroz, em seu trabalho
sobre as edições da narrativa oral no Brasil, “Os primeiros registros impressos das
manifestações poéticas da voz narrativa em território brasileiro vão aparecer na
segunda metade do século XIX” (2004, p. 11). Segundo as autoras, um dos
pioneiros desse trabalho com as narrativas orais é Silvio Romero. Assim, a História
da literatura brasileira (1882) possui uma importância significativa nesse contexto,
pois Romero dedica o capítulo VII do Tomo Primeiro de sua obra à literatura oral,
intitulando-o “Tradições populares. Cantos e contos anonymos. Alterações da língua
portuguesa no Brasil” (ALMEIDA & QUEIROZ, 2004 p. 11).
A preocupação do autor sergipano em relação às expressões da literatura
oral, porém, não param por aí. Em 1883, publica Cantos populares do Brazil e,
33
segundo Almeida e Queiroz, em 1885, “Romero publica em Lisboa, pela Nova
Livraria Internacional Editora, sua coletânea de Contos populares do Brazil” (2004, p.
11-12), obra da qual foram retirados os 11 contos analisados neste trabalho. De
acordo com Schneider (2005, p. 62), essas duas obras foram realmente as primeiras
coletâneas sistematizadas sobre a cultura popular brasileira, embora houvesse
artigos sobre este assunto. Diz Schneider:
Na primeira edição de Contos populares do Brasil, lia-se uma
“advertência”, onde o autor explicava as fontes, a organização da obra
e declarava que havia se inspirado em Canti e raconti del popolo
italiano, de D’Ancona e Comparetti, expondo seus nculos com a
tradição romântica, interessada em documentar as tradições
populares como fundamentos da nacionalidade (2005, p. 61-62).
Segundo Almeida e Queiroz (2004, p. 12), antes de Romero houve um outro
pioneiro na edição de material originado da literatura oral popular: o general Couto
de Magalhães. Em 1876, o general, apoiado pelo imperador D. Pedro II, publica a
obra O selvagem, na qual o objetivo maior era propor um curso de “Língua Tupi Viva
ou Nheengatú”. Através desse curso, os brancos poderiam aprender o nheengatú
para entrarem em contato direto com os indígenas e, por sua vez, lhes ensinarem a
língua portuguesa, para que isso facilitasse o processo de aproveitamento do
selvagem na colonização. Como parte integrante do curso, Couto de Magalhães
publica 25 “lendas tupis”, coligidas pelos sertões do Brasil, que o general tinha
permissão do então ministro da guerra, Duque de Caxias, para coletar as narrativas
diretamente dos soldados indígenas (ALMEIDA & QUEIROZ, 2004, p. 14).
Dessa forma, as obras Contos populares do Brasil, de Silvio Romero, e O
selvagem, de Couto de Magalhães, “vêm a ser, portanto, as duas primeiras
coletâneas de narrativas orais editadas em livro a partir da audição de contadores
brasileiros” (ALMEIDA & QUEIROZ, 2004, p. 14). Além disso, é digno de nota o fato
de Romero ter reaproveitado vários contos inicialmente coletados por Couto de
Magalhães alguns, inclusive, fazem parte de nosso corpus de análise. Ao serem
reproduzidos em nosso texto dissertativo, acrescentamos uma anotação indicando
tratar-se de versões colhidas entre os índios pelo general e depois retomadas por
Silvio Romero.
Dizem Almeida e Queiroz (2004, p. 15) que a direção editorial da primeira
edição da coletânea dos contos coligidos por Romero foi do escritor português
34
Theophilo Braga e essa relação acabou gerando, para Romero, uma outra grande
polêmica. A partir da segunda edição da obra, o escritor sergipano publica uma
“nota” enumerando aquilo que considera como sendo erros e abusos cometidos pelo
escritor português contra seu livro. Dentre as “reclamações” está o fato de Theophilo
Braga ter cortado um trecho no qual Romero explicava a divisão dos contos a partir
de elementos étnicos e do editor português ter tomado para si a proposta dessa
divisão. Além disso, Braga teria passado contos de origem indígena para o grupo
dos contos africanos e escrito um prólogo “disparatado” em relação aos estudos
sobre a poesia popular brasileira.
Devido a esses problemas, a partir da segunda edição do livro, Romero
assume a autoria integral da obra e substitui o prólogo português por introdução
própria (ALMEIDA e QUEIROZ, 2004, p. 16). Logo no início dessa introdução,
intitulada “Origens de nossa poesia e de nossos contos populares Portugueses,
Índios, Africanos e Mestiços”, diz Romero:
Indicar no corpo das tradições, contos, cantigas, costumes e
linguagem do atual povo brasileiro, formado do concurso de três raças
que, quatro séculos, se relacionam; indicar o que pertence a cada
um dos fatores, quando muitos fenômenos se acham baralhados,
confundidos, amalgamados; quando a assimilação de uns por outro é
completa aqui e incompleta ali, não é coisa tão insignificante, como à
primeira vista pode parecer. (2000, p. 13)
Romero discute, em primeiro lugar, a questão da poesia popular brasileira.
Diz ele que os agentes criadores são as três raças distintas e também o mestiço.
os criadores diretos, ou seja, aqueles que criam na sua própria língua; e seriam os
portugueses e os mestiços. Os criadores indiretos, ou seja, aqueles que criam
através de uma língua imposta; seriam os negros e índios. o agente
transformador por excelência seria o mestiço, que, por si só, representa uma
transformação.
Justamente devido à diferença entre os criadores diretos e indiretos, Romero
considera, na poesia popular, o português e depois o mestiço como fatores
principais, cabendo aos negros e índios uma atuação menos frutífera. Além disso,
raramente foram coligidos fragmentos da poesia dos selvagens e africanos.
Num segundo momento, o autor sergipano aborda a questão dos contos e
lendas, ou seja, a manifestação em prosa. Diz ele que, sob esse aspecto, a
35
produção das três raças distintas é bem mais intensa e o mestiço seria mesmo um
agente de transformação. Romero (2000, p. 16) salienta que foram coligidos contos
criados pelas três raças. A primeira parte da antologia de Romero é composta pelos
contos de origem portuguesa, que teriam análogos nas coleções européias.
Sobre os contos de origem indígena, que compõem a segunda parte da obra
(e dos quais foram retirados os contos do corpus deste trabalho), diz Silvio Romero:
De origem indiana coligimos diversos, muito popularizados e repetidos
por toda parte. Alguns deles têm seus paradigmas originais entre os
colhidos por Couto de Magalhães e publicados no seu livro O
Selvagem. Os que vulgarizamos agora correm entre nossas
populações cristãs. São muito diferentes dos de origem portuguesa,
cujos originais primitivos podem ser cotejados nas coleções de Adolfo
Coelho e Teófilo Braga. Os mais notáveis são do círculo do cágado, o
jabuti dos índios, e do ciclo da raposa, a micura dos tupis. [...] É
incontestável, porém, que os nossos indígenas, além dos grandes
ciclos de contos do jabuti e da onça, tinham também muitos contos da
raposa (micura). (2000, p. 16-17)
Na terceira parte da antologia estão os contos de origem africana, aos quais
Romero também atribui importância significativa.
Diz ainda Romero que, muitas vezes, é difícil decidir a origem dos contos,
que muitos se repetem sob aspectos diferentes, voltados para mais de uma raça
simultaneamente. Além disso, muitos contos indígenas e africanos (e também
alguns portugueses) acabaram não sendo transmitidos para as populações cristãs
do país, porém, segundo o autor, não é apenas na poesia e nos contos populares
que se encerra a contribuição das três raças à formação do povo brasileiro
(ROMERO, 2000, p. 27).
De acordo com as considerações romerianas, aos portugueses devemos a
ordem social, jurídica, religiosa e política e a importância dessas contribuições
seria imensa. Aos indígenas devemos o uso de plantas medicinais, o emprego de
indústrias rudimentares, a manipulação de substâncias cosméticas, muitos outros
usos e costumes e até mesmo algumas crenças fantásticas, como a do Caipora.
Quanto à influência negra, Romero é ainda mais enfático. Diz ele que,
enquanto os índios se tornavam improdutivos, fugiam do homem branco e morriam,
os negros iam chegando, fortes, robustos e dispostos. Assim, o africano penetrou
em nossa vida íntima e por ela moldou-se em grande parte a nossa psicologia
popular” (2000, p. 28). O negro se aliou ao branco e prosperou, enquanto o índio
36
fenecia. Segundo Romero, a cozinha brasileira, nossas danças e cantos o
fortemente africanos. O autor salienta também o seu pesar ao ver a escravidão
vigorando no país e ao recordar os maus tratos e crueldades vivenciados pelos
indígenas.
Para concluir, Romero deixa claro que considera a raça portuguesa uma raça
superior, enquanto as outras duas são inferiores. Porém, para ele, o grande
personagem da história brasileira é o mestiço, que estaria elevando as raças
inferiores e formando um povo genuinamente brasileiro.
Ainda com pesar, o autor acredita que a raça selvagem está destinada a
sucumbir, enquanto a negra resistirá por muito tempo ao lado do branco,
modificando-se através do mestiço e delineando a formação do branco brasileiro
“que acabará por triunfar de todo” (2000, p. 33).
Assim, encerramos este capítulo, dedicado a vários aspectos, envolvendo a
peculiaridade (marcada pelo seu tempo e contexto cultural) do pensamento de um
autor tão significativo quanto Silvio Romero e, ao mesmo tempo, tão pouco
estudado. Confiamos que a recente revalorização de seu trabalho e a divulgação de
suas inúmeras contribuições ao estudo do Brasil do séc. XIX poderão enriquecer
diversas áreas e, em especial, a pesquisa sobre os contos populares de nosso país.
No próximo capítulo, passaremos ao estudo mais aprofundado da teoria
desenvolvida por Alan Dundes para a leitura estrutural de contos indígenas.
37
Capítulo 2: Alan Dundes e sua teoria
2.1. O prefácio à edição brasileira e algumas considerações importantes
O presente capítulo destina-se a apresentar a proposta teórica de um
importante estudioso de contos folclóricos o norte-americano Alan Dundes, cujas
idéias servirão de ferramenta para nossa própria abordagem dos contos brasileiros
coletados por Silvio Romero. Para melhor situar o estudioso, buscamos informações
sobre o desenvolvimento de seus estudos, bem como de sua vinda a nosso país.
No “Prefácio à edição brasileira” de seu livro Morfologia e estrutura no conto
folclórico, Dundes comenta que visitou o Brasil brevemente uma única vez em
setembro de 1966. Ele havia participado de um congresso na Argentina e acabou
sendo convencido pelos organizadores do evento, o brasileiro Paulo de Carvalho
Neto e seu compatriota Richard M. Dorson, a vir até aqui. Na época, em 1962,
Dundes já havia publicado, na Revista Brasileira de Folclore, o ensaio “O Estudo
Estrutural dos Contos Populares”. Renato Almeida, o professor que recebeu Dundes
aqui, contou-lhe sobre a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, que
estabeleceu o dia 22 de agosto como o dia oficial do Folclore no Brasil. Esse dia,
inclusive, é o mesmo no qual, em 1846, William Thoms propôs, pela primeira vez, o
termo “folclore”.
Para Dundes (1996, p. 10), a folclorística, ou seja, o estudo do folclore, tem
uma característica peculiar no Brasil. Enquanto a maior parte dos países latino-
americanos considera o folclore apenas ligado à tradição do homem do campo,
excluindo, assim, as influências indígenas e urbanas, o Brasil aborda o folclore de
uma maneira bem parecida com a dos norte-americanos. uma preocupação com
as questões teóricas e, dentre os folcloristas brasileiros, o autor destaca Câmara
Cascudo, Arthur Ramos e Carvalho Neto. Os dois últimos são destacados por
Dundes devido a seus trabalhos folclorísticos com veio psicanalítico. Aliás, o próprio
Dundes seguia inicialmente a linha psicanalítica, porém fora sempre desencorajado
pelos colegas acadêmicos a aplicar os conceitos da psicanálise aos dados do
folclore. Assim passou a dedicar-se aos estudos estruturalistas do folclore e,
posteriormente , retornou aos estudos psicanalíticos.
38
Segundo Dundes (1996, p. 12), duas etapas no estudo do folclore. A
primeira delas seria a identificação, na qual se examina o objeto de estudo e na qual
a contribuição da análise estrutural é fundamental para que os gêneros do folclore
sejam identificados. A segunda etapa seria a interpretação, ou seja, a descoberta
dos sentidos do folclore. A grande dificuldade dos folcloristas seria justamente a
segunda etapa. Muitas obras sobre materiais folclóricos são compostas apenas
pelos dados em si, sem tentativas de interpretação. Dundes (1996, p. 13) acredita
que grande parte do material folclórico pode ser compreendida e interpretada a
partir do conceito de inconsciente. Ele considera que a teoria psicanalítica,
modificada pelo relativismo cultural e pela teoria feminista, seja uma boa ferramenta
para o estudo do folclore.
Para Dundes (1996, p. 13), a teoria junguiana (teoria dos elementos
universais) não tem validade para a folclorística, que, em seus estudos, jamais se
deparou com um mito, conto ou lenda que fosse conhecido por todos os povos da
terra. Assim, a teoria psicanalítica (entende-se, aqui, a teoria freudiana) se mostra
mais adequada por admitir o relativismo cultural. Assim, Dundes aborda duas linhas
teóricas para o estudo do folclore: a linha estrutural e a psicanalítica, que foram as
duas vertentes seguidas por ele em seus estudos. Ao realizar a análise dos contos
populares brasileiros de origem indígena, coletados por Silvio Romero, faremos uso
de uma das teorias do autor norte-americano que segue a linha estrutural de análise.
2.2. A morfologia dos contos indígenas norte-americanos
Morfologia e estrutura no conto folclórico, de Alan Dundes, tem no início um
capítulo que trata especificamente da morfologia dos contos indígenas norte-
americanos, intitulado “A morfologia dos contos indígenas norte-americanos”. Trata-
se de uma proposta específica para se abordar narrativas folclóricas de origem não-
européia. Diz Dundes:
O presente trabalho é um estudo científico de uma forma primitiva
de arte. A forma de arte é o conto dos índios norte-americanos; o
estudo é científico na medida em que é construído e testado um
modelo abstrato hipotético. O modelo estrutural dos contos
indígenas norte-americanos é testado por comparação empírica de
suas propriedades com as da realidade fenomenológica, ou seja, os
próprios contos. (1996, p.19).
39
A tese defendida pelo autor é, basicamente, a de que os contos indígenas
norte-americanos são rigidamente estruturados. Como o material de origem
folclórica raramente é identificado segundo datas de criação ou outras delimitações
culturais ou geográficas, não houve, para Dundes, a preocupação de se estudar
contos de uma tribo ou região específica. Além disso, a análise proposta pelo autor
recai mais sobre contos independentes do que sobre os ciclos de trapaceiro ou
herói.
Dundes comenta que adotou a seguinte metodologia de trabalho:
O plano de ataque começa com um levantamento de estudos
anteriores na área de estrutura e morfologia dos contos indígenas
norte-americanos. Vem a seguir um esboço da abordagem
estrutural do estudo dos contos populares. Depois desses itens
introdutórios, serão estabelecidos modelos estruturais específicos
de vários desses contos ameríndios, com exemplos. (DUNDES,
1996, p. 21).
Segundo Dundes, o estudo do folclore indígena norte-americano enfrenta um
problema que atinge grande parte dos estudos folclóricos em geral: dedicação
acadêmica em tempo parcial, sendo poucos aqueles que se dedicam
exclusivamente ao folclore ameríndio; além disso, vários dos trabalhos existentes se
limitam a um único conto ou região cultural.
De acordo com o teórico norte-americano, os estudos do folclore são divididos
em três áreas. A essa divisão Dundes chama de “clássica divisão tripartida do
estudo do folclore” (1996, p. 25):
1. compilação
2. classificação
3. teorização ou análise: origem (histórica e psicológica), função e
estrutura
Quando se trata de material folclórico indígena, observa-se uma ênfase maior
na compilação, algumas tentativas de classificação e quase nada de teorização. Do
pouco que de teorização, os estudos concentram-se na origem histórica, alguns
casos do aspecto funcional e parece que não há nenhuma preocupação com a
estrutura. Segundo Dundes (1996, p. 27), os teóricos preferem considerar os contos
40
indígenas como destituídos de estrutura. No séc. XIX, Joseph Jacobs, um dos
membros da English Folklore Society, considera os “contos selvagens” como
informes e vazios, sem nenhuma ligação com os contos europeus; essa perspectiva
ainda ocorre no séc. XX. Franz Boas dizia que os contos europeus eram muito mais
uniformes do que os contos indígenas. Para George M. Foster, os contos indígenas
eram aglomerados aleatórios de motivos. Tristram P. Coffin chama os contos
indígenas de “estória de incidente único”, desprovidos de qualquer padrão de
organização.
Por outro lado, houve, no fim do século XIX e início do século XX, um
interesse pelos elementos constituintes dos contos populares indígenas. Dentre as
propostas, estava uma tentativa da construir uma tabela de temas, ou então um
índice de motivos em contraposição a um índice de tipos de contos, ou ainda a
tentativa de estabelecer “palavras-chave” para designar os motivos. Vale ressaltar
que a maioria dessas tentativas não deu certo. Mas, a partir delas, surgiram também
algumas considerações sobre tipologia. A. L. Kroeber, em sua discussão sobre as
“palavras-chave” que serviriam para denominar os motivos, fez importantes
observações tipológicas. Para ele, alguns elementos dos entrechos dos contos
poderiam ser aglutinados em grupos de idéias mais genéricos, ou seja, os fatos em
si, que ocorrem nas narrativas, fazendo parte de seus enredos são denominados
idéias concretas e são limitadas especificamente em cada conto por exemplo: um
roubo de uma gaita ou de uma fruta. Segundo Kroeber, esses fatos “concretos”
podem ser agrupados de maneira mais abrangente ou genérica, a exemplo do roubo
como violação.
Segundo Dundes (1996, p. 34), a distinção de Kroeber entre idéias concretas
limitadas especificamente e grupos mais abrangentes de idéias nada mais é do que
a distinção entre forma e conteúdo, distinção essa que Dundes salienta bastante ao
longo de sua obra. Assim tem-se:
Tipo geral de idéia X Idéia concreta limitada especificamente
Forma conteúdo
41
Em relação à distinção entre forma e conteúdo, o importante é perceber que,
nos contos aborígines norte-americanos, segundo Dundes (1996, p. 34), a forma
permanece constante enquanto o conteúdo varia, ou seja, os contos possuem um
número limitado de modelos estruturais (formas constantes), no entanto, esses
modelos podem ser preenchidos com conteúdos diferentes (mudam os personagens
de um conto para o outro ou o objeto roubado ou o motivo do roubo ou a maneira de
ser enganado). Dundes denomina esse processo de variabilidade do conteúdo dos
contos e reafirma essa constatação ao longo da exposição dos modelos de análise,
seguidos de seus exemplos.
De acordo com o autor (1996, p.35), Erna Gunther considerou que a
variabilidade do conteúdo dos contos pode advir dos narradores individuais. Os
estudiosos Lowie e Radin dizem que o narrador (entende-se, aqui, o contador de
histórias) pode acrescentar, excluir ou modificar elementos de acordo com as
circunstâncias da narrativa, porém as alternativas estão contidas um corpo de
conhecimento folclórico pertencente à cultura do referido narrador; não há, assim,
como definir limites para a variabilidade do conteúdo dentro de uma estrutura geral.
Além disso, os limites da variabilidade podem ser diferentes de uma cultura para
outra; por exemplo, os contos zuni e isletas apresentam grande variabilidade,
enquanto os contos tillamooks e esquimós apresentam pequena variabilidade de
conteúdo.
O pesquisador Theodore Stern apresentou um conceito importante para a
teoria de Dundes: o princípio de equivalência funcional, ou seja, mesmo que os
conteúdos dos episódios estudados num dado conto fosse completamente distinto,
esses conteúdos poderiam desempenhar a mesma função no enredo do conto,
sendo, portanto, entrechos funcionalmente equivalentes.
No entanto, Dundes observa que o estudo da variabilidade de conteúdo
dentro de uma mesma forma foi realizado apenas na análise de um conto por vez
(conto individual em suas várias versões). “Nenhum (estudioso) tentou
sistematicamente contos individuais diferentes como possíveis variações de
conteúdo dentro de uma mesma forma comum” (1996, p. 40).
Para Dundes, até mesmo a distinção entre as formas do conto e do mito é
problemática entre os folcloristas em geral. Mesmo Boas (Apud DUNDES, 1996,
p. 41) apresenta uma definição confusa, na qual o mito compreenderia uma estória
de uma época antiga em que a humanidade ainda não possuía todas as artes e
42
costumes da nossa época e o mundo não se apresentava em sua forma atual,
enquanto o conto seria uma estória da época moderna; não haveria, assim, uma
linha precisa entre mitos e contos populares. Diz Dundes: “De modo geral, os
estudiosos têm-se mostrado incapazes de distinguir satisfatoriamente, na tradição
oral dos índios norte-americanos, os pretensos gêneros de mito e conto” (1996,
p.43).
Discutindo o problema de classificação, Ǻke Hultkrantz defende a idéia de
que os contos indígenas norte-americanos dividem-se em três categorias: mitos,
lendas e contos de fada, com pouquíssimos exemplos desses últimos. Tanto
Hultkrantz como D. B. Shimkin tentaram classificar os contos dos shoshones de
Wind River. O primeiro, porém, utilizou como critério de classificação fatores
funcionais externos, como por exemplo, o efeito que os contos exercem sobre os
ouvintes; o modo de reação é o critério. Shimkin utilizou critérios internos
objetivos no que diz respeito à estrutura, ao conteúdo e ao estilo das principais
formas literárias shoshones. Shimkin não define muito bem os aspectos formais que
utiliza, não realizando, então, uma análise formal autêntica. Além disso, ele também
não define uma unidade estrutural adequada de análise. Dundes não deixa muito
claro o que seria essa unidade estrutural adequada, que ele chama outras vezes de
unidade básica ou unidade de estudo. No entanto, pela perspectiva geral de sua
obra, concluímos que uma unidade estrutural adequada para a análise do folclore
seria como o metro é a unidade de medida ou o quilo a unidade de peso. Assim, os
esquemas e seus elementos propostos posteriormente por Dundes serão como
unidades de medida para os contos indígenas, da mesma forma que Propp (2006, p.
62) diz que, para cada conto maravilhoso, seu esquema aparece como unidade de
medida.
A questão da unidade básica no estudo do folclore ainda é confusa, segundo
Dundes (1996, p. 45). O quadro abaixo mostra a diferenciação da terminologia
utilizada para designar as unidades de estudo folclorístico por diferentes estudiosos.
Elas estão dispostas conforme a extensão da unidade: desde as mais simples e
curtas (de menor extensão) para as mais complexas e longas (maiores em
extensão). Assim, na visão de Boas, por exemplo, as narrativas constituíam-se de
unidades nimas (que ele denominou incidente); os incidentes se juntam formando
unidades maiores (que ele denominou elemento); e os elementos, por sua vez, se
unem formando a estrutura total, mais complexa, denominada conto.
43
Ao observarmos a tabela abaixo (adaptada de DUNDES, 1996, p. 47),
notamos que vários autores organizaram as narrativas de forma diferente, com
nomenclaturas diversas, porém sempre das unidades mais simples (menores) para
as mais complexas (maiores).
Estudioso
Esquema das
unidades (das
menores para as
maiores)
Boas (1891) incidente elemento Conto
Reichard (1921) incidente episódio complexo-mito
Demetracopoulos e
Du Bois (1932)
elemento incidente Núcleo
Luomala (1940) incidente episódio Mito
Reichard (1947) e
Wheeler-Voegelin
(1950)
elemento episódio (ou
incidente)
Entrecho
Afirma Dundes:
Esse desacordo entre os folcloristas no tocante à terminologia pra
designar as unidades dos contos indígenas norte-americanos
reflete a falta de rigor científico de grande parte da pesquisa
folclórica. Infelizmente não se trata apenas de um problema da
validade de um termo contraposta à validade de outro; é antes a
natureza das unidades que ainda tem de ser definida de modo
adequado. (1996, p.48).
Segundo Dundes, a análise efetiva dos contos folclóricos deve obedecer a
seguinte seqüência: estabelecimento das unidades estruturais de análise, estudo da
morfologia e estudo da tipologia. Infelizmente os estudiosos têm se importado bem
pouco com a busca e a definição de tais unidades e, assim, também não têm
conseguido lidar com os problemas de morfologia e topologia dos contos indígenas
norte-americanos, revelando o estreito alcance da maioria dos estudos acadêmicos.
Ainda prevaleceria época do estudo de Dundes) a idéia de falta de estrutura e
combinação aleatória de elementos nos referidos contos.
44
2.3. O estudo estrutural dos contos tradicionais
Segundo Dundes (1996, p. 50), a abordagem geral do folclore e, mais
especificamente, dos contos populares está relacionada tanto com o Formalismo
Russo como com o “New Criticism” (ou Nova Crítica) na teoria literária.
Dundes (1996, p. 50-51) comenta que o formalismo Russo surgiu como uma
reação à tradicional metodologia filológico-histórica da crítica literária do século XIX
e defendia a análise estrutural da obra literária. O “New Criticism tornou-se uma
corrente forte da crítica literária nos Estados Unidos na metade da cada de 1930,
que foi entre 1935 e 1950 que esse movimento se deslocou da Inglaterra para lá.
Seus adeptos davam muito mais importância ao poema do que ao poeta; eles
criticavam a crítica literária que buscava o sentido dos poemas na biografia do autor
ou em seu contexto histórico-social. Para eles, a interpretação poderia ser obtida
através da análise dos próprios textos.
De acordo com Dundes (1996, p. 52), na Alemanha, pouco depois do fim da
Primeira Guerra, surgiu um movimento denominado Crítica da Forma, cujo objeto de
estudos era o material evangélico em sua forma pré-literária, ou seja, em suas raízes
de oralidade. Alguns seguidores dessa corrente afirmavam que, através desse
estudo remoto, poderiam obter indicadores de historicidade.
Entre o Formalismo Russo, o “New Criticism” e a Crítica da Forma um
elemento em comum muito forte: o predomínio da análise da forma sobre a
abordagem histórica (DUNDES, 1996, p. 52). Também na lingüística e na psicologia,
grandes mudanças de abordagem aconteciam. Por exemplo, Saussure, em seus
estudos, já havia percebido a importância da análise sincrônica em oposição à
diacrônica.
Segundo Dundes, desses estudos estruturalistas da lingüística, podemos
absorver conceitos importantes para a análise de material folclórico, dentre eles:
abordagem sistêmica da linguagem X abordagem atomística
fragmentária da linguagem (Entende-se, aqui, abordagem sistêmica da
linguagem a partir das contribuições de Saussure, para quem a
linguagem deveria ser estudada como um sistema, na qual seus
componentes adquirem valor nas relações que estabelecem entre si.
Por abordagem atostica fragmentária da linguagem entende-se a
visão dos filólogos comparatistas, para quem a linguagem deveria ser
45
estudada a partir de fatos isolados, fragmentados, sem a noção de
sistema e inter-relações);
natureza limitante definida dos padrões de linguagem, ou seja, de
acordo com a teoria lingüística, uma língua pode possuir um grande
número de sons diferentes quanto à articulação, porém os números de
combinações possíveis e práticas desses sons e o meros de
combinações teóricas desses sons é menor.
Também na área da antropologia, os novos paradigmas instalaram-se com o
interesse pelo estudo da totalidade e pela idéia de padrão. Diante de tudo isso, a
posição teórica dos folcloristas continuou alheia a essas novas teorias e
perspectivas de análise. Dundes (1996, p. 58) considera que a análise de
abordagem estrutural deve ser feita de acordo com a natureza do objeto de estudo.
Assim, os folcloristas deveriam optar por esse tipo de análise não por ela ter dado
certo em outras disciplinas, mas por serem os materiais folclóricos padronizados e
estruturados. Apenas alguns poucos folcloristas refletiram sobre as novas teorias,
mesmo assim essas manifestações foram praticamente insignificantes; o campo do
folclore continuava intocado.
Na opinião de Dundes, “Uma das razões da lenta adesão dos folcloristas à
corrente estruturalista é que o estudo do folclore estava modelado a partir do
estudo da linguagem, a saber, da abordagem histórico-filológica da linguagem”
(1996, p. 61).
Assim, mesmo que os estudos da linguagem tenham migrado da abordagem
atomística para a estrutural, o estudo do folclore não seguiu o mesmo caminho e não
acompanhou a evolução das disciplinas congêneres. Segundo Dundes, ainda um
pressuposto básico que orienta os estudos folclorísticos: “o conto é igual à soma dos
motivos que ele contém.” (1996, p.62)
Para Dundes (1996, p. 62), até mesmo o estudo de tipos de conto Aarne-
Thompson é um estudo atomístico. O finlandês Antii Aarne desenvolveu um sistema
de classificação dos contos de fadas que identifica os textos segundo unidades
temáticas. Aarne publicou seu trabalho em 1910. Para desenvolver seu sistema,
Aarne baseou-se em contos finlandeses e dinamarqueses (coletados por Grundtvig)
e alemães (antologia dos Grimm). Stith Thompson encarregou-se da segunda
edição do texto de Aarne (dessa vez em inglês), mas de tal forma ampliou e
46
completou o sistema de classificação, que se tornou co-autor do trabalho: AARNE,
Antii, THOMPSON, Stith. Types of the Folktale, 1928.
A terceira edição, igualmente elaborada por Thompson, saiu em 1961 e
contém um material sete vezes maior do que a primeira edição de 1910. Tendo em
vista a substancial colaboração de Thompson para completar a versão definitiva,
hoje a classificação é conhecida com a denominação “Aarne/Thompson”.
A classificação elaborada por Aarne/Thompson divide os contos segundo
unidades temáticas, ou seja, a identificação de cada conto se baseia no tipo de
enredo e no tipo de personagem que ele contém. Para começar, Aarne e Thompson
agruparam os contos de fadas em quatro grupos maiores: “contos de animais”,
“contos propriamente ditos”, “facécias ou anedotas” e outros contos que não se
encaixam em nenhum dos grupos anteriores. Esses grupos maiores subdividem-se
mais uma vez, por exemplo: 900 tipos de “contos propriamente ditos”
(identificados com os meros de 300 a 1199), os quais se subdividem em “contos
de fadas ou de encantamento”, “contos de fadas legendários ou religiosos”, “contos
de fadas novelísticos” e “contos de fadas sobre o gigante, ogro ou diabo logrados”.
Os “contos de fadas ou de encantamento”, por sua vez, dividem-se em “contos com
opositor sobrenatural”, “contos com cônjuge (ou outro parente) sobrenatural ou
enfeitiçado”, “tarefa sobrenatural”, “ajudante sobrenatural”, “objeto mágico”, poder
ou conhecimento mágico” e contos com “outros elementos mágicos”. Finalmente,
esses grupos menores dividem-se em unidades temáticas.
Foram poucos os estudiosos que perceberam a necessidade de uma nova
abordagem para os materiais folclóricos, e a maioria deles foram lingüistas. Um
desses estudiosos foi o famoso lingüista Roman Jakobson. Para ele, havia relações
estreitas entre a linguagem e o folclore; Jakobson dizia que a distinção feita por
Saussure entre langue (a língua coletiva, regular, organizada sistematicamente) e
parole (a língua do indivíduo, com manifestação particular do comportamento
lingüístico) se aplicava também para os materiais folclóricos, na medida em que o
folclore seria social e coletivo e os textos particulares seriam expressões individuais
e idiossincráticas. Assim ter-se-ia:
Linguagem
Folclore
Langue x Parole
Folclore x Textos particulares
47
De acordo com Dundes:
No entender de Jakobson, o caráter recorrente do padrão
lingüístico equipara-se a fenômenos semelhantes na estrutura dos
contos populares. Jakobson afirma ainda que, ‘as partes
socializadas da cultura mental, como, por exemplo, a língua ou os
contos populares, está sujeitas a leis muito mais estritas e mais
uniformes do que os campos em que predomina a criação
individual’. Se a analogia de Jakobson estiver correta, poder-se-ia
esperar encontrar igualmente ‘uma escassez e relativa simplicidade
de tipos estruturais’ tanto no folclore quanto na linguagem. (1996, p.
64).
Alguns outros estudiosos mostraram seu descontentamento em relação aos
estudos folclorísticos de estrutura e morfologia, dentre eles Hans Honti, Adolf
Stender-Petersen e também o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss. Dos três, o
que mais contribuiu para os estudos estruturais foi Lévi-Strauss, um importante
representante da abordagem estrutural na antropologia que propôs uma análise
estrutural do mito e uma análise estrutural do material folclórico indígena. Apesar
disso, sua abordagem apresenta, na opinião de Alan Dundes, erros teóricos e
metodológicos. Dentre os principais erros estão:
confusão entre a estrutura do folclore e a estrutura da língua. De
acordo com Dundes, Lévi-Strauss não percebe que a estrutura do mito
independe da estrutura de qualquer língua; muitos outros estudiosos
fizeram essa mesma confusão, mas houve também aqueles que
tentaram evitá-la, como J.L. Fisher, Demetracopoulou e Du Bois. Esses
estudiosos defendem a idéia de que não importa a língua na qual uma
narrativa é contada, pois isso não interferirá em seu conteúdo.
colocar dados folclóricos numa forma estrutural relacionada a padrões
de parentesco; Lévi-Strauss faz confusão entre estrutura e finalidade e
talvez também origem.
absurda extensão do sentido do termo “variante”. Lévi-Strauss
acreditava que uma análise estrutural de um determinado conto
deveria considerar todas as suas versões e Dundes considera isso um
erro.
confusão entre análise sincrônica e diacrônica.
48
Para finalizar, Dundes ainda diz que os estudos de Lévi-Strauss não são
facilmente inteligíveis nem comprováveis e que até mesmo seus defensores
admitem algumas dificuldades.
Dundes cita também mais um estudioso que tenta, sem alcance de sucesso,
analisar a estrutura e a morfologia dos contos folclóricos. O estudioso é Thomas A.
Sebeok que, junto com Frances J. Ingemann, fez provavelmente o primeiro
levantamento da abordagem estrutural nos estudos folclóricos. Mesmo assim, essa
abordagem apresenta problemas, segundo Dundes, que é limitada aos aspectos
lingüísticos do conto popular e todos os textos estudados são de frase fixa.
Entendem-se aqui textos de frase fixa como aqueles em que o fraseado é tradicional
(provérbios, adivinhações e encantamentos), enquanto que textos de frase livre são
aqueles no qual existem uma considerável variação e liberdade no ato de narrar
(superstições, piadas e contos tradicionais).
Depois de apresentar um breve histórico dos estudos estruturalistas
dedicados aos contos populares em geral estudos esses que considera
insatisfatórios, principalmente quando se trata de contos populares indígenas –,
Dundes passa a tratar dos trabalhos de Vladimir Propp e de Kenneth L. Pike, que
foram contribuições fundamentais para a elaboração de seu próprio método de
análise estrutural.
Segundo Dundes, veio de Vladimir Propp a contribuição mais importante para
o estudo estrutural dos contos populares com a obra Morfologia do conto
maravilhoso, publicada em 1928. Para Dundes: “Propp tentou delinear uma
morfologia dos contos de fada. Por contos de fada ele entendia os contos
classificados no índice de Aarne entre os números 300 a 749, e por morfologia ‘a
descrição do conto popular conforme as suas partes constituintes e a relação dessas
partes entre si e com o todo’” (1996, p. 81).
A maior contribuição dos estudos de Propp foi a definição de uma nova
unidade básica: a função, ou seja, uma unidade de ão de um personagem do
conto, independente de qual personagem a desempenha ou de como essa ação é
realizada (FUNÇÃO = AÇÃO). Em alguns contos indígenas norte-americanos já foi
constatada, por exemplo, por W. W. Hill e Dorothy Hill, em seu estudo dos contos de
Coiote dos navahos, a variabilidade dos personagens em contraposição à
estabilidade do entrecho.
49
Propp estabeleceu uma lista limitada de 31 funções e também uma seqüência
fixa dessas funções. As funções não aparecem todas em um mesmo conto, porém
quando um número delas aparece, sempre estão numa ordem previsível. Assim, diz
Dundes que “Propp concluiu que todos os contos de fada, por motivos morfológicos,
pertenciam a um único e mesmo tipo estrutural de conto” (1996, p. 82). Na teoria
elaborada por Propp, a lista das funções é composta pelo número da função, uma
breve descrição, a definição reduzida numa palavra, seu signo convencional e os
exemplos. Segue abaixo a lista das funções dos personagens feita por Propp (2006,
p. 26-62), porém adaptada (esta somente apresenta o número, o signo e a definição
reduzida numa palavra):
1. β: afastamento
2. γ: proibição
3. δ: transgressão
4. ε: interrogatório
5. ζ: informação
6. η: ardil
7. θ: cumplicidade
8. A: dano (8a: a: carência)
9. B: mediação, momento de conexão
10. C: início da reação
11. : partida
12. D: primeira função do doador
13. E: reação do herói
14. F: fornecimento, recepção do meio mágico
15. G: deslocamento no espaço entre dois reinos, viagem com guia
16. H: combate
17. I: marca, estigma
18. J: vitória
19. K: reparação de dano ou carência
20. : regresso (do herói)
21. Pr: perseguição
22. Rs: salvamento, resgate
(Neste momento, repetem-se as funções 8, 10, 11, 12, 13, 14 e 15.)
23. O: chegada incógnito
50
24. L: pretensões infundadas
25. M: tarefa difícil
26. N: realização
27. Q: reconhecimento
28. Ex: desmascaramento
29. T: transfiguração
30. U: castigo, punição
31. W°: casamento
O esquema analítico de Propp trabalha com a distinção forma/conteúdo. As
funções abstratas (forma) são expressas por ações específicas (conteúdo).
A inestimável contribuição de Propp, do ponto de vista teórico, foi ter
definido de maneira mais precisa uma unidade formal, a função; além
disso, demonstrou o caráter fixo da seqüência de várias de suas
unidades num conto; e mostrou que contos com conteúdo
aparentemente muito diferente podiam, na verdade, pertencer a um
tipo estrutural idêntico, definido por critérios morfológicos
determináveis. (DUNDES, 1996, p.83).
No entender de Dundes, de todas as funções estabelecidas por Propp, a mais
importante ou “função obrigatória” seria a número 8, que corresponde a um dano, e
também a sua equivalente morfológica, a função 8a, que corresponde a uma
falta/carência. Seria essa função a responsável pelo verdadeiro movimento do conto.
As funções de 1 a 7 são consideradas como preparatórias; elas preparam o
caminho para um dano ou estado de carência. Isso ocorre porque geralmente
duas alternativas para se chegar ao estado de dano ou carência (função 8 e 8a);
essas alternativas são chamadas funções emparelhadas. Ou ocorre o par 2 e 3, que
corresponde a Interdição e Violação, ou ocorre o par 6 e 7, que corresponde ao Ardil
e Engano. Quando um par ocorre, o outro se torna desnecessário.
Segundo Dundes, o conceito de pares de função ou funções gêmeas é
importante: quando a primeira função do par ocorre em um conto, a segunda é
quase inevitável. O par mais significativo é das funções 8 (8a) e 19, na qual o dano
inicial ou a carência inicial são reparados. Freqüentemente, os pares de função
aparecem no conto em seqüência, porém o par 8 (8a)/19 é uma exceção à regra,
51
que a primeira função e seu par o separados por uma longa estória. Em alguns
casos, o que é procurado no início é diferente do que é encontrado no final.
Diz Medeiros que:
a aplicação do modelo proppiano à análise do mito indígena não é
automática, mas exige uma adaptação, visando melhor adequá-lo à
natureza do objeto. As narrativas indígenas, embora possam ser
longas, não possuem geralmente a complexidade do conto de 31
funções estudado por Propp. O grande mérito de Dundes foi ter
buscado um esquema estrutural mínimo – Carência/Reparação da
carência –, permitindo que a técnica analítica de Propp pudesse ser
aplicada ao estudo de quaisquer narrativas, indígenas ou tradicionais,
e mesmo ao estudo de gêneros não verbais, como por exemplo, os
jogos, estabelecendo um atualíssimo diálogo semiótico entre os
gêneros folclóricos (1996, p. 320-321).
Em relação à classificação de Aarne-Thompson, segundo Dundes, “Propp
rejeita com razão o tipo de conto Aarne-Thompson como unidade estrutural. Os tipos
de conto de Aarne-Thompson são classificados com base no conteúdo, e não na
forma ou na estrutura” (1996, p. 86).
Dundes evidencia problemas no índice de motivos, publicado por Aarne-
Thompson, como a dificuldade de definir conceitos; por exemplo, os conceitos de
tipo e motivo. Essa indefinição do conceito motivo implica o fato dele não poder ser
usado como unidade estrutural de análise para materiais folclorísticos. Os motivos
são como o léxico do folclore, e assim, segundo Dundes (1996, p. 88), as funções de
Propp podem ser consideradas unidades estruturais, ao passo que os motivos não.
Além dos estudos de Propp, também o trabalho do antropólogo/lingüista
Kenneth L. Pike serviu de base para que Dundes desenvolvesse seu próprio modelo
de análise estrutural.
Segundo Dundes, esse antropólogo fez uma tentativa de utilizar as unidades
lingüísticas em todas as áreas do comportamento humano, já que, para Pike,
a linguagem, enquanto comportamento verbal, é uma porção do
comportamento humano em geral. Assim como certas unidades, como
o fonema, foram ideadas para descrever o comportamento verbal,
talvez seja possível estender o alcance dessas unidades a fim de que
abranjam uma gama muito maior do comportamento humano.
(DUNDES, 1996, p. 89).
De acordo com Dundes (1996, p. 90), Pike apresenta uma clara distinção
entre dois tipos de abordagem: a abordagem ética, ou seja, não estrutural e
52
classificatória, e a abordagem êmica, estrutural. Para ele, um analista pode criar um
sistema ético, porém os padrões êmicos são descobertos, não criados. Para que
uma abordagem êmica seja realizada, mesmo sabendo que a estrutura de um dado
material é pré-existente e relativamente fixa, é necessário estabelecer unidades de
análise que uma estrutura descoberta pode ser descrita de várias formas. Para
isso, Pike estabeleceu três “componentes complexos superpostos” de unidades
êmicas, denominados modos: modo distintivo, modo manifestacional e modo
distribucional. Dundes (1996, p. 94) afirma que as unidades êmicas de Pike
correspondem ao conceito de função de Propp. Quanto aos modos, uma função
abrangeria os três modos, porém seu significado geral corresponderia ao modo
distintivo. Já o modo manisfestacional, como o próprio nome revela, indicaria as
diferentes formas que essa função pode se manifestar e, por último, o modo
distribucional indicaria a posição que a função ocupa na seqüência geral de funções
(no caso de Propp, 31 funções).
Diz Dundes:
A razão de combinarmos os esquemas de Propp e de Pike é que
desse modo são sanadas certas deficiências do primeiro. A unidade
de Propp é a função, porém o estudioso russo não se preocupou
em cunhar um termo que designasse os elementos que cumprem a
função, isto é, os constituintes do modo manifestacional. Ele
vários exemplos de todas as funções, mas não propõe um termo
adequado para nomear estes exemplos. Por uma curiosa
coincidência, Pike rotula a unidade mínima de seu modo distintivo
com o termo MOTIVO ÊMICO ou MOTIVEMA. Isto, na verdade,
corresponde à função de Propp. (1996, p.94).
Assim, teríamos:
Sistema de Propp Sistema de Pike
função motivo êmico/motivema
A partir disso, Dundes (1996, p. 95) estabelece as unidades estruturais
básicas para a análise de seu material folclórico, e também suas definições:
MOTIVEMA: unidade estrutural mínima;
MOTIVOS: elementos que preenchem os motivemas;
53
ALOMOTIVO: motivos que ocorrem em qualquer contexto motivêmico
dado.
Vale ressaltar, então, que a base dessas unidades é lingüística. Com as
unidades estruturais de análise estabelecidas, Dundes parte para a análise
morfológica dos contos populares indígenas norte-americanos.
2.4. A análise morfológica dos contos indígenas
Dundes defende a idéia de que os contos indígenas são, sim, estruturados.
Segundo ele: “Existem seqüências recorrentes definidas de motivemas, e estas
seqüências constituem um número limitado de padrões distintos, que, conforme
revela a observação empírica, são as bases estruturais da maioria dos contos
tradicionais dos ameríndios dos Estados Unidos” (1996, p. 97).
Assim cada padrão motivêmico é um modelo estrutural. Dundes deixa claro
que não fará uma abordagem de todos os possíveis padrões motivêmicos, nem
mesmo de todas as possíveis variações de um padrão. Ele trabalhará com quatro
padrões que, nos contos indígenas norte-americanos são mais recorrentes: a
seqüência nuclear bimotivêmica, duas seqüências tetramotivêmicas e uma
combinação de seis motivemas. Vejamos a seguir esses padrões.
2.4.1. A seqüência nuclear bimotivêmica: carência/reparação da carência
Dundes observa que à semelhança do que Propp constatou nos textos
populares europeus a grande maioria dos contos indígenas relata um movimento
de uma situação inicial de desequilíbrio para uma situação final de equilíbrio. Esse
desequilíbrio inicial pode ser representado tanto por uma falta/carência quanto por
uma sobra/abundância. O autor ressalta que, muitas vezes, a abundância de um
elemento provoca a carência de outro: por exemplo, uma abundância de água indica
também uma carência de terra firme.
Dessa forma, “Os contos indígenas podem constituir-se simplesmente do
relato de como a abundância foi perdida ou como a carência foi reparada” (1996,
p. 98).
54
Os contos que narram como a abundância foi perdida geralmente são mais
complexos do que aqueles que relatam a reparação de uma carência. Esses últimos
podem, portanto, constituir-se apenas de duas partes: carência, que corresponde à
função 8a de Propp (representada por C) e reparação da carência, que corresponde
à função 19 de Propp (representada por RC). Sendo assim, um grupo de contos tem
sua estrutura formada por apenas dois motivemas, representando uma definição
mínima de um tipo estrutural particular de conto; essa seqüência é denominada
seqüência nuclear bimotivêmica, segundo Dundes (1996, p. 99).
Nesse tipo de seqüência, a carência, freqüentemente, é apresentada no início
do conto e não tem importância o objeto do qual se tem falta pode ser sol, fogo,
alimento, uma noiva, etc. a reparação costuma aparecer como conclusão do
conto. Dundes observa também que a carência pode ser dada no início do conto ou
também pode ser gerada por uma outra ação do conto.
Esquematicamente temos:
Desequilíbrio Equilíbrio
1. Carência (C) Reparação (RC)
(no início do conto) (como conclusão do conto)
2. Abundância Perda (+ complexo)
Os dois motivemas fundamentais C e RC não perdem sua importância,
mesmo quando outros motivemas ocorrem entre eles. De acordo com Dundes
(1996, p.100), basicamente três combinações principais de motivemas
intermediários. A primeira delas seria tarefa ou prova (T) e realização da tarefa (RT),
que correspondem às funções 25 e 26 de Propp. Esse modelo aparece com menor
freqüência e a tarefa pode ser realizada por um animal ou herói depois de várias
tentativas ou fracassos de outros.
A segunda combinação seria interdição (Int) e violação (Viol), funções 2 e 3
de Propp. Segundo Dundes, esses motivemas formam também um outro padrão
motivêmico independente. A última combinação de motivemas mediais seria ardil
(Ard) e engano (Eng), funções 6 e 7 de Propp. Essa seqüência motivêmica de ardil e
engano é a forma mais comum do padrão nuclear bimotivêmico e, portanto, formará
uma das seqüências tetramotivêmicas estudadas posteriormente.
55
O quadro abaixo mostra, esquematicamente, os modelos estruturais formados
pela seqüência nuclear bimotivêmica (C e RC), juntamente com seus possíveis
motivemas mediais.
Motivemas mediais:
I. Tarefa (T) – Realização da tarefa (RT)
C – T – RT – RC
II. Interdição (Int) – Violação (Viol)
C – Int – Viol – RC
III. Ardil (Ard) – Engano (Eng)
C – Ard – Eng - RC
2.4.2. A seqüência tetramotivêmica: interdição/violação
Segundo Dundes (1996, p. 102), um dos padrões mais recorrentes nos contos
indígenas norte-americanos é formado pela seqüência Interdição, violação da
interdição, conseqüência (representada pelo termo: Conseq) e tentativa de fuga da
conseqüência (representada por TF). Como essa seqüência é formada por quatro
motivemas, é denominada tetramotivêmica. Entretanto, os contos baseados nesse
padrão podem apresentar um padrão mínimo formado por violação e conseqüência.
Isso ocorre por duas razões: a primeira é o fato de que nem sempre a interdição é
explícita na narrativa, que ela pode estar implícita. A segunda razão é que a
tentativa de fuga da conseqüência é um motivema opcional, podendo ser uma
tentativa bem sucedida ou fracassada; esse sucesso ou fracasso pode estar
relacionado com uma tendência cultural.
Assim, esquematicamente, temos:
Padrão mínimo:
(Interdição pode estar implícita) Violação Conseqüência
56
Modelo:
Interdição – Violação – Conseqüência – Tentativa de fuga (TF)
(TF opcional; pode levar ao sucesso ou ao
fracasso/tendência cultural)
Os motivemas interdição e violação podem ocorrer, na seqüência nuclear
bimotivêmica, como motivemas mediais. Isso acontece quando um tipo de
conseqüência tem também a função de carência ou reparação da carência. De
acordo com Dundes:
comentei que muitos contos começam com um estado de
desequilíbrio, mas que em outros o desequilíbrio não é “dado”. Uma
das formas mais freqüentes de provocar o desequilíbrio é a
violação de uma interdição. Uma violação pode conduzir a um
estado de carência ou de abundância. Em outras palavras, um tipo
de Conseqüência é um estado de carência ou de abundância. As
interdições, e os tabus em geral, são freqüentemente regulamentos
destinados a manter o universo em equilíbrio. A violação de uma
interdição ou tabu perturba o equilíbrio, causando um estado de
desequilíbrio que perdura até que o feito conseqüente seja anulado,
eliminado ou evitado. (1996, p. 103).
É importante compreender a independência da seqüência motivêmica
Interdição/Violação, mesmo em relação à seqüência nuclear bimotivêmica (C e RC);
a seqüência tetramotivêmica pode ocorrer por si mesma.
Nesse padrão tetramotivêmico, o motivema da violação pode ocorrer,
segundo Dundes, com quatro alomotivos: desobediência, injunção cumprida, ofensa
e roubo. A desobediência, elemento presente nos contos populares de todo o
mundo, que exige que o desobediente seja castigado, é a forma mais freqüente de
violação. Propp (Apud DUNDES, 1996, p. 108) observa que uma ordem pode
desempenhar também o papel de uma interdição, assim, cumprir uma injunção é o
mesmo que violar uma proibição. Quanto à ofensa, ela pode ser a um animal ou
objeto e sua conseqüência é, na maior parte dos casos, a perseguição pela parte
ofendida. Por fim, o roubo é uma violação muito comum e sua conseqüência é a
perseguição pela parte roubada.
Além da seqüência Interdição/Violação/Conseqüência e Tentativa de fuga, um
outro elemento pode ocorrer: o motivo explicativo (representado por Mot Explic),
porém esse elemento não tem uma função estrutural, é opcional e sua característica
recorrente é sua posição final nos contos, assinalando o término da narrativa ou de
um segmento de um conto mais longo.
57
2.4.3. Outra seqüência tetramotivêmica: ardil/engano
De acordo com Dundes (1996, p. 113), a forma mais comum para se reparar
uma carência é através do engano. Assim, aqui, Dundes retoma a seqüência
Carência/Ardil/Engano/Reparação da carência.
A primeira consideração relevante feita por Dundes é que, de acordo com a
teoria de Propp, o ardil geralmente é obra do vilão da história, porém, nos contos
indígenas, esse motivema é obra dos heróis tanto quanto dos vilões. Isso ocorre
porque nos contos ameríndios não o tradicional dualismo entre bem e mal, herói
e vilão, presente nos contos europeus. As personagens dos contos indígenas não
são nem totalmente más, nem totalmente boas, e, sim, uma mistura de ambos. Essa
característica é bastante importante, pois acaba gerando uma quebra de expectativa
por parte do leitor em relação às personagens e “seus destinos” ao longo das
narrativas. Esse fator será desenvolvido melhor no quarto capítulo.
O enganador, nesse tipo de conto, vai usar de muitos artifícios para ludibriar
sua vítima. Portanto, os motivemas ardil e engano apresentam vários alomotivos.
Dentre os principais estão: o trapaceiro se finge de morto para capturar uma caça; o
herói se transforma em criança ou bebê; utilização de um disfarce pelo enganador. A
escolha de determinados alomotivos para esses motivemas também pode estar
relacionada a questões culturais.
Cabe ressaltar a uniformidade e estabilidade da estrutura em oposição à
variabilidade do conteúdo. A estrutura proposta se mantém fixa (C Ard Eng
RC) enquanto o conteúdo é flexível e variado; não importa qual é o tipo de ardil ou
engano que ocorre no conto, mas sim as funções de ardil e engano desses
conteúdos diversos que são constantes. Ou seja, o que o narrador guarda na
memória, em primeiro lugar, são as funções (as estruturas) do texto que se
contado; a partir disso, ele pode modificar o “preenchimento” dessa estruturas.
2.4.4. A combinação de seis motivemas
Depois de apresentar as possíveis seqüências motivêmicas descritas acima,
Dundes demonstra como ocorre a combinação delas na constituição de contos mais
58
complexos. Assim, um conto tradicional pode conter uma ou mais seqüências
motivêmicas.
Dundes (1996, p. 118) trabalha com uma das combinações mais recorrentes
nos contos indígenas norte-americanos, formada por uma seqüência nuclear inicial
(Carência e reparação da carência) seguida da seqüência Interdição/Violação. Além
disso, com freqüência, os contos que seguem essa estrutura terminam com uma
conseqüência e também com uma tentativa de fuga da conseqüência.
Esquematicamente, temos:
Carência + Reparação + Interdição + Violação (+ Conseqüência)
(+ Tentativa de fuga)
Assim como acontece ao apresentar os modelos estruturais acima, Dundes
(1996, p. 121) deixa claro que o conteúdo que preenche as estruturas pode ser
muito diferente (alomotivos), porém o modelo é fixo. alguns motivos mais
comuns, por exemplo, a interdição ao uso de certas palavras ou a carência inicial de
comida, no entanto, muitas vezes, esse conteúdo pode ser determinado pela cultura.
Existem sempre diversos motivos para um mesmo motivema, assim esses motivos
tornam-se funcionalmente equivalentes não por causa das semelhanças que existem
entre eles, mas sim por ocuparem o mesmo “lugar” na estrutura, por isso são
chamados de alomotivos.
2.4.5. A estrutura de contos mais complexos e mais extensos
Dundes observa que os contos considerados mais complexos ou extensos
geralmente apresentam o processo de expansão de forma semelhante ao que
ocorre nos contos europeus. É comum que alguns contos formados por dois
motivemas nucleares, como carência e reparação da carência, sejam expandidos,
por exemplo, com uma seqüência de interdição e violação que provoquem a
carência inicial. Outro exemplo de expansão ocorre quando vários personagens
tentam realizar uma mesma tarefa. Estruturalmente omero de tentativas não
importa, não importando tampouco quais ou quantos personagens as realizam e,
muitas vezes, a repetição de algumas seqüências serve para enfatizar a estrutura
motivêmica, não constituindo um fenômeno estrutural.
59
Dundes (1996, p. 134) aborda também as relações existentes entre os pares
motivêmicos da Interdição/violação e tarefa/realização da tarefa. Segundo ele, em
ambos os pares ocorre uma injunção ao herói; na interdição ele o deve fazer algo,
enquanto na tarefa ou prova ele tem algo específico a fazer. Assim, esses pares se
distinguem em parte por suas características distributivas diferentes, ou seja, o lugar
em que se inserem na seqüência. O primeiro par (tarefa e realização da tarefa) se
interpõe entre a carência e a reparação, o segundo par (interdição e violação)
ocorre ou antes ou depois de uma carência importante se antes, pode provocar a
carência; se depois, pode auxiliar na reparação. Além disso, o segundo par ainda
pode ocorrer depois da reparação da carência, como na combinação dos seis
motivemas.
Por fim, mais uma forma de expandir um conto é incorporar a seqüência
ardil/engano à estrutura central.
Dundes ainda afirma que uma interdição pode acorrer como conclusão do
conto como se fosse uma moral e que, em alguns casos, o simples fato de
manifestar uma carência pode ser a violação de uma interdição. Além disso, o autor
(1996, p. 138) chama atenção para o fato de que uma conseqüência pode se tornar
também uma carência.
Para Dundes, os contos indígenas apresentam um número reduzido de
motivemas entre a seqüência bimotivêmica básica (C e RC) quando comparados
aos contos europeus. Na verdade, isso não ocorre apenas entre o par
Carência/Reparação, mas também entre os outros pares: Interdição/Violação e
Ardil/Engano. Dessa observação surge o conceito de profundidade motivêmica:
Independentemente da validade do conceito de profundidade
gramatical em lingüística, propomos aqui um conceito análogo para
o folclore: o de profundidade motivêmica. A profundidade
motivêmica consiste na quantidade de motivemas que são
interpostos entre os membros de um par motivêmico como
Interdição/Violação, Ardil/Engano, ou especialmente
Carência/Reparação da Carência. Assim, retomando a distinção
feita anteriormente entre os contos tradicionais dos indígenas norte-
americanos e os contos populares europeus, pode-se dizer que os
primeiros têm uma profundidade motivêmica menor do que os
segundos. (1996, p. 143-144).
Para Dundes (1996, p. 144), uma das explicações para essa diferença entre
os contos indígenas e europeus quanto à profundidade motivêmica é a tradição
60
literária. Quando os contos são registrados pela escrita, como é o caso dos
europeus, torna-se muito mais fácil que esses contos sejam mais extensos ou
complexos. os indígenas contavam amparados na memória, tornando-os mais
curtos e menos complexos para facilitar a transmissão oral. Nas coletâneas
européias pode haver entre a carência inicial e sua reparação vários contos
completos, ao passo que, nos contos ameríndios, geralmente as unidades de contos
são completas e narradas em sucessão. Uma carência é reparada antes que outra
seja apresentada.
Ao analisarmos um conto considerado complexo, confirmamos a análise
morfológica dos contos mais simples, que os mesmos motivemas básicos são
encontrados. Esses motivemas são combinados, formam seqüências que, por sua
vez, também se combinam e, assim, ocorre o prolongamento das narrativas,
constituindo os contos expandidos.
Observem que as seqüências motivêmicas são basicamente
unidades distintas. Não estão incluídas na estrutura de uma grande
seqüência como acontece geralmente nos contos europeus.
Constituem antes um exemplo expressivo de um grupo aditivo de
várias seqüências motivêmicas. Parte da engenhosidade dos
narradores indígenas é evidenciada pela habilidosa capacidade de
fundir seqüências motivêmicas separadas. (DUNDES, 1996, p. 146-
147).
2.4.6. A importância da análise estrutural
Dundes observa que os folcloristas não habituados a uma abordagem
estrutural do folclore poderiam argumentar que o modelo de análise estrutural,
depois de feito, seria inútil. No entanto, ele discorda dessa visão, pois considera que
“é fácil mostrar que uma análise morfológica precisa pode revelar-se um recurso
valioso no estudo de problemas em áreas como tipologia, predição, aculturação,
análise de conteúdo, comparação entre gêneros, função e etiologia” (1996, p. 147).
Ou seja, Dundes propõe uma interpretação dos dados estabelecidos nas estruturas.
Nos estudos antropológicos, por exemplo, Dundes cita a obra Os ritos de
passagem, cujo autor, Van Gennep, demonstra que ritos com conteúdo muito
diverso apresentavam o mesmo padrão estrutural: separação, transição e
incorporação, o padrão dos ritos de passagem.
61
Dundes (1996, p. 150) afirma que, nos estudos de aculturação, dizem os
folcloristas que, quando um conto vem de fora e é introduzido numa nova cultura, ele
sofre um processo de adaptação para se adequarem aos novos padrões. Entretanto,
não quase estudos que demonstrem essa adaptação, pois a análise estrutural
seria um pré-requisito para isso.
Ainda segundo Dundes (1996, p. 153), mais uma vantagem da análise
estrutural é ajudar a discernir a determinação cultural do conteúdo. A análise
estrutural trabalha com o estudo de vários contos, sem ligação histórica nenhuma,
mas estruturalmente iguais, que ocorrem em uma determinada cultura. Nesse
contexto cultural, um mesmo motivema pode aparecer em um grupo de contos e,
mais do que isso, um alomotivo desse motivema também pode ser recorrente,
mostrando uma preferência cultural. Assim temos o que Dundes chama de
determinação cultural de um alomotivo. “Se selecionarmos vários contos de uma
dada cultura, todos com a mesma estrutura, é possível verificar, literalmente à
primeira vista, as preferências culturais por determinados motivos” (1996, p. 157).
De acordo com Dundes, outro uso da análise estrutural é o de auxiliar nos
estudos da comparação entre os gêneros. O autor observa que uma separação
tradicional dos gêneros, pois não definições adequadas para esses gêneros.
Nesse caso, uma análise estrutural poderia ajudar na definição dos gêneros a partir
de características morfológicas e a comparação entre eles seria amplamente
facilitada. Como exemplo, Dundes cita a visível semelhança entre a estrutura de
certos contos tradicionais e certas superstições; gêneros que, precipitadamente, são
muito diferenciados quando comparados.
A análise estrutural também pode ser utilizada no estudo da função e etiologia
do folclore. Segundo Propp:
a análise estrutural fornece uma base para o aprimoramento dos
estudos funcionais do folclore e contribui para delimitar as questões
tanto das origens históricas quanto das psicológicas. (Propp apud
DUNDES, 1996, p. 164).
No que diz respeito à funcionalidade, cada cultura deveria ser estudada
separadamente para descobrir qual a função que as seqüências motivêmicas de
seus contos desempenham. Dundes observa que poderíamos distinguir pelo menos
dois tipos de funções para uma seqüência motivêmica: a função manifesta e a
62
função latente. Como exemplo, ele cita o caso da seqüência Interdição/Violação.
Sua função manifesta seria a de enfatizar as regras, os valores culturais, as
tradições e principalmente a obediência, com as conseqüências que a
desobediência pode ter. sua função latente seria o prazer que a platéia tem ao
ouvir contos que narram a violação de uma interdição, devido à ousadia do violador.
2.4.7. As conclusões da teoria
Dundes, ao final de sua teoria, apresenta suas principais conclusões, que
podemos condensar aqui da seguinte forma:
como Dundes havia defendido no início de sua abordagem, os contos
populares indígenas são estruturados e não apenas um amontoado de fatos
aleatórios.
os padrões estruturais devem ser aplicados a todas as expressões folclóricas
dos indígenas.
O mito e o conto popular não são estruturalmente distintos. O que os
diferencia é a carência: se a carência a ser reparada for individual, é um
conto; se a carência for coletiva, é um mito.
Ao que tudo indica, a análise estrutural constitui uma possível base
para trabalhos mais substanciais no estudo do folclore. Não é um
fim em si mesmo, mas um instrumento que tem como finalidade
esclarecer melhor como a mente humana se expressa numa forma
singular de sua criatividade: folclore. (DUNDES, 1996, p. 169).
a nova ciência do folclore deve incluir a análise estrutural sincrônica
que conduzirá à formulação de definições precisas dos materiais
folclóricos, definições baseadas em características morfológicas
formais. Naturalmente, haverá lugar para estudos históricos
diacrônicos, mas a necessidade primordial do folclore enquanto
ciência são as análises estruturais descritivas de todos os gêneros
folclóricos. Somente assim o estudo do folclore se converterá
realmente numa ciência. (DUNDES, 1996, p. 171).
Depois de apresentarmos detalhadamente a teoria de Alan Dundes, no
próximo tópico apresentaremos as análises de onze contos brasileiros, que foram
realizadas a partir dos modelos organizados pelo autor norte-americano.
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Capítulo 3: Análise dos contos populares brasileiros de origem indígena,
coletados por Silvio Romero
Neste capítulo realizamos uma análise de onze contos populares brasileiros
de origem indígena, coletados por Silvio Romero.
Conto 1:
O cágado e a fruta (Silvio Romero)
Diz que foi um dia, havia no mato uma fruta que todos os bichos
tinham vontade de comer; mas era proibido comer a tal fruta sem
primeiro saber o nome dela. Todos os animais iam à casa de uma
mulher que morava nas paragens onde estava o da fruta,
perguntavam a ela o nome, e voltavam para comer; mas quando
chegavam não se lembravam mais do nome. Assim aconteceu
com todos os bichos que iam e voltavam, e nada de acertar com o
nome. Faltava somente amigo cágado; os outros foram chamá-lo
para ir por sua vez. Alguns caçoavam muito dizendo: “Quando os
outros não acertaram, quanto mais ele!” Amigo cágado partiu
munido de uma violinha; quando chegou a casa da mulher
perguntou o nome da fruta. Ela disse: “Boyô yô-boyôyô-quizama-
quizú; boyô-boyôyô-quizama-quizú.” Mas a mulher, depois que
cada bicho ia-se retirando a alguma distância, punha-se de a
bradar: Oh, amigo tal, o nome não é esse não! E dizia outros
nomes, o bicho se atrapalhava, e quando chegava ao da fruta
não sabia mais o nome. Com o cágado não foi assim, porque ele
deu de mão à sua violinha, e pôs-se a cantar o nome até o lugar da
árvore, e venceu a todos. Mas, amiga onça, que estava à sua
espera, disse-lhe: “Amigo cágado, você como não pode trepar
deixe que eu trepe para tirar as frutas, e você em paga me
algumas.” O cágado consentiu: ela encheu o seu saco e largou-se
sem lhe dar nenhuma. O cágado, muito zangado, largou-se atrás.
Chegando os dois a um rio ele disse à onça: “Amiga onça, aqui
você me dê o saco para eu passar, que sou melhor nadador, e você
passa depois.” A onça concordou, mas o sabido, quando se viu da
outra banda, sumiu-se, ficando a onça lograda. Esta formou o plano
de o matar; ele soube e meteu-se embaixo de uma raiz grande de
árvore onde ela costumava descansar. chegada, pôs-se ela a
gritar: Amigo cágado, amigo cágado! O sabido respondia ali de
pertinho: “Oi.” A onça olhava de uma banda e doutra e não via
ninguém. Ficou muito espantada, e pensou que era o seu traseiro
que respondia. Pôs-se de novo a gritar e sempre o cágado
respondendo: “Oi” e ela: Cala a boca, oveiro!e sempre a coisa
para diante. Amigo macaco veio passando, e a onça lhe contou o
caso da desobediência do seu traseiro e lhe pediu que o açoitasse.
O macaco tanto executou a obra que a matou. Deu-se então o
cágado por satisfeito. [Sergipe] (ROMERO, 2000, p. 265-266)
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Para a análise deste primeiro conto, foram trabalhadas duas hipóteses. Na
primeira, apenas apresentamos uma seqüência direta de motivemas, sem a
preocupação de seguir os modelos de seqüências fixos de Dundes. Na segunda
hipótese, organizamos os motivemas de forma a constituírem seqüências fixas de
acordo com aquelas propostas por Dundes.
Primeira hipótese: Análise esquemática
Desequilíbrio = CARÊNCIA (falta) = todos os bichos queriam comer a fruta
INTERDIÇÃO = não comer a fruta antes de saber o nome dela
TAREFA = descobrir o nome da fruta para poder comê-la (várias tentativas)
ARDIL = a mulher confunde os animais
ENGANO = os bichos se esquecem do nome da fruta
REALIZAÇÃO DA TAREFA = o cágado consegue se lembrar do nome da fruta (fez
uso de uma viola e cantou o nome da fruta)
- venceu a todos os outros bichos (DISPUTA)
ARDIL = a onça pede para subir no pé e pegar as frutas para o cágado
ENGANO = o cágado concorda e a onça foge com as frutas
ARDIL = o cágado pede as frutas para passar pelo rio
ENGANO = a onça concorda e o cágado foge com as frutas
CONSEQÜÊNCIA = a onça quer matar o cágado
TENTATIVA DE FUGA = o cágado se esconde
ARDIL = o cágado engana a onça com o traseiro falante
ENGANO = a onça acredita no traseiro falante, pede para o macaco açoitá-la e ele a
mata
REPARAÇÂO DA CARÊNCIA = o cágado fica com as frutas
Seqüência de motivemas:
C – Int – Tarefa – Ard – Eng – RT – Ard – Eng – Ard – Eng – Cons – TF – Ard – Eng
- RC
Assim como pressupõe a teoria de Alan Dundes, esse conto se inicia com
uma situação de desequilíbrio, gerada por uma carência, ou seja, uma falta, uma
necessidade: os animais querem comer uma determinada fruta. Porém, essa
65
carência não pode ser reparada, pois há uma interdição: a fruta não pode ser
comida antes que o animal saiba o seu nome. Essa proibição gera, por sua vez, uma
tarefa: descobrir o nome da fruta, perguntando para a mulher que mora nos
arredores. Várias tentativas dos bichos de realizar a tarefa são narradas, mas sem
sucesso, já que a mulher confunde os animais (ardil); ela diz um nome e depois
desmente. Os animais, então, acabam se esquecendo do nome correto (engano).
De todos os animais, o único que consegue realizar a tarefa é o cágado, que faz uso
de sua violinha e canta o nome da fruta para não esquecê-lo.
Antes de sua carência ser reparada, a onça pede para ela mesma subir no
da fruta, que tinha mais habilidade para isso (ardil); o gado concorda, ela pega
as frutas e foge, enganando-o. Vale ressaltar aqui que a onça também procurava
uma forma de reparar sua carência, que era a mesma do cágado, ou seja, comer a
fruta. O cágado, por sua vez, persegue a onça e, ao chagarem perto do rio, propõe
que ele passe com as frutas já que nada melhor (ardil); a onça aceita e ele foge.
Como conseqüência, a onça quer matar o cágado e, tentando fugir, o cágado se
esconde e faz a onça acreditar que seu traseiro é falante (ardil). A onça acredita
(engano) e pede para o macaco surrá-la, levando-a à morte.
Dessa forma, a carência inicial do cágado é reparada e, para ele, e situação
passa a ser de equilíbrio.
Segunda hipótese: Análise esquemática
Para o cágado:
Desequilíbrio = CARÊNCIA (falta) = o cágado quer comer a fruta
TAREFA = descobrir o nome da fruta para poder comê-la
REALIZAÇÃO DA TAREFA = o cágado consegue se lembrar do nome da fruta (fez
uso de uma viola e cantou o nome da fruta)
REPARAÇÂO DA CARÊNCIA = o cágado fica com as frutas
Para a onça:
Desequilíbrio = CARÊNCIA (falta) = a onça quer comer a fruta
INTERDIÇÃO (subentendida) = não roubar
VIOLAÇÃO = a onça rouba as frutas do cágado
CONSEQÜÊNCIA = perseguição (a onça é perseguida pelo cágado)
66
PERSEGUIÇÃO :
ARDIL: o cágado pede as frutas à onça para passar pelo rio
ENGANO: a onça entrega as frutas e o cágado foge com elas
CONSEQUÊNCIA: a onça quer matar o cágado
TENTATIVA DE FUGA: o cágado se esconde
TENTATIVA DE FUGA:
ARDIL = o cágado engana a onça com o traseiro falante
ENGANO = a onça acredita no traseiro falante, pede para o macaco oitá-la
e ele a mata
A seqüência central e principal do conto é protagonizada pelo cágado. Ele
vive, inicialmente, uma situação de desequilíbrio, causada por uma carência: a
falta da fruta, do alimento. Para conseguir reparar sua carência, o cágado precisa
realizar uma tarefa: descobrir o nome da fruta que quer comer; para isso, ele
deve perguntar o nome da fruta para uma mulher que mora nos arredores. O
cágado consegue realizar a tarefa fazendo uso de um instrumento musical, no
caso uma violinha, com a qual ele faz uma música para poder gravar o nome da
fruta. E, no final do conto, a carência do cágado é reparada, já que ele consegue
suas frutas. Vale ressaltar que, se vários animais têm uma mesma carência ao
mesmo tempo, como acontece nesse conto, essa carência acaba gerando uma
disputa entre os bichos. Assim, nem sempre, todos terão sua carência reparada.
Entretanto, entre o momento da realização da tarefa e a reparação da
carência do gado, encontra-se uma segunda seqüência de motivemas,
centrada numa nova carência: a da onça. A onça também vive uma situação de
desequilíbrio causada por uma carência: a falta da fruta, do alimento. Para
reparar sua carência, a onça viola uma interdição, que, no conto, está
subentendida: é proibido roubar; e a onça rouba as frutas do cágado. Como
conseqüência de sua violação, a onça passa a ser perseguida pelo cágado. Esse
processo de perseguição acaba gerando uma terceira seqüência de motivemas.
O cágado persegue a onça e, ao encontrá-la, pede para que ela o deixe
atravessar o rio com as frutas (ardil); a onça concorda e o cágado foge com as
frutas (engano). Como conseqüência, a onça, por sua vez, quer matar o gado,
que tenta fugir dela, escondendo-se. Porém essa tentativa de fuga não se
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restringe apenas ao esconderijo do cágado, mas também um novo ardil e um
novo engano. O cágado se faz passar pelo traseiro da onça e, como ela acredita
que seu traseiro é falante, pede para o macaco açoitá-la e, de tanto apanhar,
acaba morrendo. Assim, o cágado se livra da onça e sua carência inicial é
definitivamente reparada, fazendo com que sua situação final, no conto, seja de
equilíbrio.
Esse é um conto complexo, no qual várias seqüências motivêmicas se
encaixam.
Seqüência motivêmica: seqüência nuclear bimotivêmica
C – TAR – RT – RC
C – INT – VIOL – CONS (perseguição)
ARDIL – ENG – CONS – TF
ARD – ENG
Acreditamos ser importante salientar alguns aspectos do conteúdo deste
conto que nos parecem muito significativos. O primeiro deles seria a tarefa dos
animais de nomearem a fruta antes de comê-la. Parece-nos que existe aqui uma
necessidade de se referenciar, através da linguagem, um elemento do mundo
concreto. Apenas aqueles que dominassem essa referenciação, ou seja, que
soubessem o nome da fruta poderiam tocá-la e comê-la. Há uma relação muito forte,
não apenas entre o significante e o significado, mas também entre o signo abstrato e
seu referente concreto. Além disso, quem possui o domínio total da palavra e
conseqüentemente da linguagem, isto é, quem sabe o nome da fruta é um
personagem humano (uma mulher) e os personagens animais têm dificuldade para
guardar o termo na memória.
Outro ponto importante é a semelhança entre o fato de haver uma proibição
de se comer uma fruta da qual não se sabe o nome e a questão bíblica da maçã
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proibida de ser comida por Adão e Eva no paraíso. No conto, é necessária a
aquisição de conhecimento para se comer a fruta, enquanto que, na história bíblica,
ao comer a fruta, os seres humanos passariam a ter um conhecimento que não
tinham antes.
A questão da musicalidade, ou seja, do uso da música para guardar na
memória o nome da fruta e a valorização das habilidades individuais, como saber
subir na árvore ou saber nadar, para solucionar os problemas também merecem
destaque.
Conto 2:
O cágado e o teiú (Silvio Romero)
Foi uma vez, havia uma onça que tinha uma filha: o teiú queria
casar com ela e o amigo cágado também. O cágado sabendo da
pretensão do outro, disse em casa da onça que o teiú para nada
valia, e que até era o seu cavalo. O teiú, logo que soube disso, foi
ter também à casa da comadre onça, e asseverou que ia buscar o
cágado para ali dar-lhe muita pancada à vista de todos, e partiu. O
cágado, que estava na sua casa, quando o avistou de longe correu
para dentro e amarrou um lenço na cabeça, fingindo que estava
doente. O teiú chegou à porta e o convidou para darem um passeio
à casa da amiga onça; o cágado deu muitas desculpas, dizendo
que estava doente e não podia sair de pé naquele dia. O teiú
teimou muito: “Então, disse o cágado, você me leve montado nas
suas costas.” “Pois sim, respondeu o teiú, mas de ser até
longe da porta da amiga onça.” “Pois bem; mas você há de deixar
eu botar o meu caquinho de sela: porque assim em osso é muito
feio.” O teiú se maçou muito, e disse: “Não que eu não sou seu
cavalo! “Não é por ser meu cavalo, mas é muito feio.” Afinal o
teiú consentiu. “Agora, disse o cágado, deixe botar minha brida.
Novo barulho do teiú, e novos pedidos e desculpas do cágado, até
que consentiu pôr a brida no teiú e munir-se do mangual, esporas,
etc. Partiram e quando chegaram a lugar não muito longe da casa
da onça, o teiú pediu ao cágado que descesse e tirasse os arreios,
senão era muito feio para ele ser visto servindo de cavalo. O
cágado respondeu que ele tivesse paciência e caminhasse mais um
bocadinho, pois estava muito incomodado e não podia chegar a pé.
Assim foi enganando o teiú até a porta da casa da onça, onde ele
meteu-lhe o mangual e as esporas a valer. Então gritou para dentro
de casa: “Olá, eu não disse que o teiú era meu cavalo?! Venham
ver!” Houve muita risada, e o cágado vitorioso disse à filha da onça:
“Ande, moça; monte-se na minha garupa e vamos casar.” Assim
aconteceu com grande vergonha para o teiú. [Sergipe] (ROMERO,
2000, p. 267-268)
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Análise esquemática:
Desequilíbrio = CARÊNCIA (falta) = o teiú e o cágado querem se casar com a filha
da onça
DISPUTA = um precisa ser melhor que o outro para ter sua carência reparada
TAREFA do cágado = provar para todos que o teiú lhe serve de cavalo e, por isso, é
inferior
TAREFA do teiú = bater no cágado na frente de todos para provar que ele é
mentiroso e inferior
REALIZAÇÃO DA TAREFA do cágado = o cágado mostra a todos que o teiú lhe
serve de cavalo
ARDIL = quando o teiú vai buscar o cágado para bater nele na frente de
todos, ele se finge de doente e diz que não pode andar a pé; assim, deveria
ser carregado pelo teiú.
ENGANO = o teiú aceita e leva o cágado nas costas até a porta da casa da
onça
NÃO REALIZAÇÃO DA TAREFA do teiú = o teiú não consegue bater no cágado e
nem desmenti-lo sobre a história de servir-lhe de cavalo
REPARAÇÃO DA CARÊNCIA do cágado = o cágado casa-se coma filha da onça
NÃO REPARAÇÃO DA CARÊNCIA do teiú = o teiú não se casa coma filha da onça
Neste conto, mais uma vez, encontramos duas seqüências motivêmicas inter-
relacionadas. A primeira delas diz respeito ao cágado e a segunda, ao teiú. O
cágado vive uma situação inicial de desequilíbrio, que tem a carência de uma
noiva; ele quer se casar com a filha da onça. Porém, o tetem a mesma carência.
Já que os dois animais apresentam a mesma necessidade e, neste caso, apenas um
deles poderá repará-la, surge aqui um novo elemento: a disputa. Assim, para cada
um deles tentar reparar sua carência, eles terão que realizar uma tarefa para mostrar
quem é o melhor pretendente para a filha da onça. O gado precisa provar para
todos que o teiú lhe serve de cavalo e, por isso, é inferior; o teiú precisa bater no
cágado na frente de todos para provar que ele é mentiroso e inferior.
O teiú vai então buscar o cágado para surrá-lo e realizar sua tarefa, entretanto
o cágado, que também tem sua tarefa para realizar, se finge de doente e diz que
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não pode andar a pé; assim, deveria ser carregado pelo teiú até a casa da onça
(ardil). O teiú aceita e leva o cágado nas costas, sendo enganado por ele (engano).
Dessa maneira, o gado consegue realizar sua tarefa, mostrando a todos
que usa o teiú como cavalo; ele casa-se coma filha da onça e sua carência é então
reparada. Já o teiú não realiza sua tarefa, pois não consegue bater no cágado e nem
desmenti-lo, e sua carência não é reparada.
Seqüência motivêmica: seqüência nuclear bimotivêmica
Para o cágado: Para o teiú:
C – TAR – RT – RC C – TAR – TAR (não realizada) – C (não reparada)
ARD – ENG
Assim como na maioria dos contos de fadas, neste conto, o casamento é o
assunto central. os pretendentes que precisam realizar tarefas para receberem
como prêmio/recompensa a mão da “mocinha”. É interessante notar, porém, que a
tarefa não é realizada com a ajuda de seres ou objetos mágicos, mas sim com a
astúcia e esperteza de um dos pretendentes.
Conto 3:
O cágado e o jacaré (Silvio Romero)
O cágado tinha uma gaita que tocava com grande admiração de
todos os outros animais, e o jacaré tinha muita inveja. Uma vez ele
foi esperar o cágado no lugar que este costumava ir beber água, e
pôs-se do lado de fora da fonte deitado. Quando o cágado chegou
o saudou, dizendo: “Oh! Amigo jacaré, como vai?” “Estou
apanhando sol, amigo cágado.” O cágado bebeu sua água e pôs-se
a tocar sua gaita, e o jacaré disse: “Amigo cágado, me empresta
esta gaita para eu experimentá-la.” O cágado deu, e o jacaré pulou
com ele dentro d’água, e foi-se. O cágado ficou muito zangado, e
foi-se embora. Passados dias, ele foi a um cortiço, engoliu muitas
abelhas e foi pôr no lugar aonde o jacaré costumava apanhar sol,
escondeu-se nas folhas com o rabo para cima. Labreou o traseiro
bem de mel e, de vez em quando, largava uma abelha: “zum.O
jacaré, vendo aquilo, supôs ser algum cortiço, e meteu o dedo; o
cágado apertou-o e disse: “Só o largo quando me der conta da
71
minha gaita.” E foi arrochando cada vez mais. O jacaré abriu a boca
no mundo e pôs-se a gritar:
“Ó Gonçalo,
Meu filho mais velho,
A gaita do cágado...
Tango-lê-rê...
A gaita do cágado...
Tango-lê-rê...”
O rapaz de ouvia mal, e dizia: “O quê, meu pai?... a
camisa?” O jacaré, vexado, gritava com mais força:
“Não, Gonçalo,
Meu filho mais velho,
A gaita do cágado...
Tango-lê-rê...
A gaita do cágado...
Tango-lê-rê...”
O Gonçalo: “O quê, meu pai? As calças?” O jacaré tornava a
repetir a cantilena, e, depois de muita maçada e quando seu
dedo estava tora não tora, é que o Gonçalo veio com a gaita, que o
jacaré deu ao cágado. Só depois da entrega este largou-lhe o dedo.
[Sergipe] (ROMERO, 2000, p. 269-270)
Análise esquemática: seqüência tetramotivêmica I – padrão mínimo
INTERDIÇÃO (subentendida) = é proibido roubar
VIOLAÇÃO DA INTERDIÇÃO = o jacaré rouba a gaita do cágado
ROUBO = Ardil (o jacaré pede a gaita do cágado emprestada) + Engano (o
cágado empresta e o jacaré foge com a gaita)
CARÊNCIA = o cágado fica sem sua gaita
CONSEQÜÊNCIA = o cágado passa a perseguir o jacaré para recuperar sua gaita e
reparar sua carência.
PERSEGUIÇÃO = Ardil (o cágado disfarça seu traseiro de cortiço) + Engano
(o jacaré acredita, enfia o dedo no traseiro do cágado e fica com o dedo
preso)
REPARAÇÃO DA CARÊNCIA = o cágado recupera sua gaita
Este conto apresenta uma seqüência motivêmica um pouco diferente dos
anteriores, já que não se inicia com uma carência. O elemento inicial deste conto é a
violação de uma interdição, que está subentendida: é proibido roubar. Quando o
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jacaré rouba a gaita do cágado está, portanto, violando uma interdição e sim a
carência é gerada. Vale ressaltar que este roubo é composto por outros dois
motivemas: o ardil, quando o jacaré pede a gaita do cágado emprestada, e o
engano, quando o cágado empresta e o jacaré foge coma gaita. Essa violação gera,
além da carência, uma perseguição pela parte roubada, ou seja, o cágado passa a
perseguir o jacaré para recuperar sua gaita e reparar sua carência. Assim como o
roubo, a perseguição apresenta os motivemas ardil, quando o cágado disfarça seu
traseiro de cortiço, e engano, o jacaré acredita, enfia o dedo no traseiro do cágado e
fica com o dedo preso. Através da perseguição ao ladrão jacaré, o cágado consegue
sua gaita de volta (reparação da carência).
Seqüência motivêmica:
Int – Viol (roubo) - C – Cons (perseguição) - RC
(Ard – Eng) (Ard – Eng)
A partir do terceiro conto analisado, é possível perceber algumas
características recorrentes. Novamente, neste conto, como no primeiro analisado, a
musicalidade está muito presente. O objeto central do conto, responsável pelo
conflito inicial é um instrumento musical (a gaita) e é o fato do cágado saber tocá-la
bem que causa o sentimento de inveja no jacaré, levando-o a roubá-la. Vale
salientar que, nesta narrativa, a inveja é declarada diretamente pelo narrador.
Outra evidencia que enfatiza a musicalidade são os versos musicados
utilizados pelo personagem jacaré para dialogar com seu filho.
Conto 4:
O jabuti e a raposa (Versão colhida entre os índios por Couto
de Magalhães e depois reproduzida por Silvio Romero)
Conta-se que o jabuti tinha uma flauta. Um dia quando ele
estava tocando sua flauta, a raposa foi escutar e lhe disse: “Empresta-
me esta flauta.” “Eu não! respondeu o jabuti: para tu fugires com
73
minha flauta...” A raposa disse: “Então toca para eu ouvir a tua flauta.”
O jabuti tocou assim:
Fin, fin, fin!
Culo fon, fin!
A raposa disse: “Como és tão formoso com a tua flauta, jabuti.
Empresta-me um bocadinho.” O jabuti respondeu: “Pega lá! Agora não
me fugir com a minha flauta: se fugires, atiro-te com esta cera em
cima.” A raposa tomou a flauta do jabuti, tocou e se pôs a dançar e
achou muito bonito: depois largou-se na carreira com a flauta. O jabuti
quis correr atrás; mas não pôde e voltou para o mesmo lugar onde
estava, e disse: “Deixa-te estar, raposa! Não te dou muito tempo que
eu não te apanhe.” O jabuti foi pelo mato afora, chegou perto do rio,
cortou madeira para fazer uma ponte para passar; chegou à outra
banda, trepou, cortou da árvore o mel, tirou mel do pau, voltou para
trás, chegou ao caminho da raposa, encostou a cabeça no chão,
pegou no pau de mel e untou com ele o traseiro. Dali a pouco a
raposa chegou ali e olhou para aquela água, que parecia tão lustrosa
e tão bonita. A raposa disse: “Ih!... que será isso?” Meteu o dedo,
lambeu, e disse: “Ih!... i... i...! isto é mel.” Outra raposa observou:
“Qual mel, nada, aquilo é o traseiro do jabuti!
A outra respondeu: “Que! o traseiro do jabuti! Como é que isso
é mel...”
Com muita sede que estava meteu a língua nele. O jabuti
apertou o traseiro, a raposa gritou:
“Deixa a minha língua, jabuti!
A outra disse: “É o que eu te disse. É o traseiro do jabuti; tu
disseste: Como é que isto é mel, então?
O jabuti disse então: Han! han! foi o que eu disse a você, ou
não? Cedo te apanhei. Dizem que tu, raposa, és muito esperta! Que é
da minha flauta?”
A raposa respondeu: “Não está aqui, não, jabuti!” O jabuti
disse: “Tu bem que a tens aí, dá-me já, senão te aperto mais.” A
raposa não teve remédio senão restituir a flauta. (ROMERO, 2000, p.
271-272)
Análise esquemática:
INTERDIÇÃO (subentendida) = é proibido roubar
VIOLAÇÃO DA INTERDIÇÃO = a raposa rouba a flauta do jabuti
ROUBO = Ardil (a raposa pede a flauta do jabuti emprestada) + Engano (o
jabuti empresta e a raposa foge com a flauta)
CARÊNCIA = o jabuti fica sem sua flauta
CONSEQÜÊNCIA = o jabuti passa a perseguir a raposa para recuperar sua flauta e
reparar sua carência.
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PERSEGUIÇÃO = Ardil (o jabuti disfarça seu traseiro com mel) + Engano (a
raposa acredita, enfia a língua no traseiro do jabuti e fica com a língua presa)
REPARAÇÃO DA CARÊNCIA = o jabuti recupera sua flauta
Este conto apresenta uma seqüência motivêmica exatamente igual ao conto
anterior, que é uma versão do conto O cágado e o jacaré. Assim, o elemento
inicial deste conto também é a violação de uma interdição, que está subentendida: é
proibido roubar. Quando a raposa rouba a flauta do jabuti está, portanto, violando
uma interdição e gerando uma carência. Vale ressaltar que este roubo é composto
por outros dois motivemas: o ardil, quando a raposa pede a flauta do jabuti
emprestada, e o engano, o jabuti empresta e a raposa foge com a flauta. Essa
violação gera, além da carência, uma perseguição pela parte roubada, ou seja, o
jabuti passa a perseguir a raposa para recuperar sua flauta e reparar sua carência.
Assim como o roubo, a perseguição apresenta os motivemas ardil, quando o jabuti
disfarça seu traseiro com mel, e engano, quando a raposa acredita, enfia a língua no
traseiro do jabuti e fica presa. Através da perseguição à ladra raposa, o jabuti
consegue sua flauta de volta (reparação da carência). Há, porém, neste conto, um
elemento que não aparece no anterior: um segundo animal, neste caso, uma
segunda raposa, que não fazia parte do grupo das personagens até então, surge
para aconselhar sua amiga/irmã raposa a não cair na armadilha do jabuti que havia
disfarçado o traseiro com mel. A raposa, no entanto, não segue o conselho e acaba
sendo enganada.
Quando fazemos a comparação entre os dois contos, comprovamos o que diz
Dundes quando afirma que os alomotivos que preenchem os motivemas não têm
importância para determinar a estrutura do conto, ou seja, não importa o conteúdo,
já que a forma continua a mesma.
Seqüência motivêmica:
Int – Viol (roubo) – C – Cons (perseguição) – RC
(Ard – Eng) (Ard – Eng)
75
Conto 5:
O cágado e a fonte (Silvio Romero)
Uma feita, o cágado intrigou-se com o homem, a teiú e a onça
por causa de um casamento com a filha da onça. Havia uma fonte
onde todos os bichos costumavam ir beber; o cágado lá chegou, botou
dentro dela uma boa porção de sapinhos e lhes deu ordem que,
quando viesse ali algum bicho beber, eles cantassem:
“Turi, turi...
Quebrar-lhe as pernas,
Furar-lhe os olhos...”
Feito isto, o cágado foi-se embora.
Chegou o macaco para beber, ouviu aquilo e ficou com muito
medo e foi-se, e espalhou o caso. Outros bichos vieram e todos se
retiraram com medo. Veio o teiú, a mesma coisa; veio a onça, o
mesmo. Afinal o homem veio e também fugiu com medo. Faltava o
cágado; foram chamá-lo. Ele disse que estava pronto a ir, mas
acompanhado de todos os outros, e munido de sua gaita e tocando.
Chegando a certa distância mandou os outros esperar, avançou,
chegou junto à beira da fonte, deu ordem aos sapinhos para se
calarem; eles obedeceram. O cágado encheu seu pote e retirou-se
vitorioso com grande espanto de todos os outros animais e casou-se
com a filha da onça. [SERGIPE] (ROMERO, 2000, p. 273-274)
Análise esquemática:
CARÊNCIA = o cágado, o homem e o teiú querem casar-se com a filha da onça (=
DISPUTA)
ARDIL = o cágado combina com os sapinhos da fonte que cantem para todos que
fossem beber água, assustando-os
ENGANO = vários bichos foram até a fonte e, ao ouvirem o canto dos sapinhos, se
assustaram. Apenas o cágado não se assustou
REPARAÇÃO DA CARÊNCIA = o cágado se casa com a filha da onça
Este conto apresenta uma das estruturas mais simples dos contos indígenas.
Inicia-se com uma carência, porém não é apenas um animal que possui a carência
de casar-se com a filha da onça, mas três: o homem, o cágado e o teiú. Quando isso
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acontece, a carência passa a ser também uma disputa, que apenas um dos três
vai conseguir repará-la.
Dentre os três carentes, o cágado provoca um ardil; ele combina com os
sapinhos da fonte, na qual todos os bichos iam beber água, para que, cada vez que
um animal se aproximasse, eles cantassem para assustá-lo. E assim foi feito. A cada
um que chegava à fonte, os sapinhos cantavam e o bicho corria de medo (engano).
Dentre os animais que foram à fonte estavam o macaco, o teiú, a onça e também o
homem. Por fim faltava o cágado, e, quando esse chegou à fonte, pediu que os
sapinhos se calassem e eles obedeceram. Desta forma, ele pegou água vitorioso e
casou-se com a filha da onça, reparando sua carência.
Seqüência motivêmica: seqüência nuclear bimotivêmica
C – Ard – Eng – RC
Como aconteceu no segundo conto analisado, neste também o casamento
aparece como tema central; rios pretendentes disputam a mão da filha da onça e
precisam realizar uma tarefa, mostrando-se corajosos, para que sejam dignos do
casamento. Essa temática, como já foi dito, nos remete claramente aos enredos dos
contos de fadas. Assim, apenas um dos “candidatos” consegue realizar a tarefa e
casar-se com a filha da onça.
Conto 6:
O urubu e o sapo (Silvio Romero)
O urubu e o sapo foram convidados para uma festa no céu. O
urubu, para debicar o sapo, foi à casa dele e lhe disse: “Então,
compadre sapo, sei que tem de ir ao céu, e eu quero ir em sua
companhia.” “Pois não! disse o sapo, eu hei de ir, contanto que você
leve a sua viola.” “Não tem dúvida, mas você de levar o seu
pandeiro”, respondeu o urubu. O urubu se retirou, ficando de voltar no
dia marcado para a viagem. Nesse dia se apresentou em casa do
sapo, e este o recebeu muito bem, mandando-o entrar para ver sua
comadre e os afilhados. E quando o urubu estava entretido com a
sapa e os sapinhos, o sapo velho entrou-lhe na viola, e disse-lhe de
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longe: Eu, como ando um pouco devagar, compadre, vou indo
adiante.” E deixou-se ficar bem quietinho dentro da viola. O urubu, daí
a pouco, se despediu da comadre e dos afilhados, e agarrou na viola
e largou-se para o céu. Lá chegando, lhe perguntaram logo pelo sapo,
ao que ele respondeu: “Ora! nem esse moço vem cá; quando em
baixo ele não anda ligeiro, quanto mais voar! Deixou a viola e foi
comer, que já eram horas.
Estando todos reunidos nos comes e bebes, pulou, sem ser
visto o sapo de dentro da viola, dizendo: “Eu aqui estou!Todos se
admiraram de ver o sapo naquelas alturas. Entraram a dançar e
brincar. Acabado o samba, foram todos se retirando, e o sapo, vendo
o urubu distraído, entrou-lhe outra vez dentro da viola. Despediu-se o
urubu e largou-se para a terra. Chegando a certa altura, o sapo
mexeu-se dentro da viola e o urubu virou-a de boca para baixo, e o
sapo despenhou-se lá de cima, e vinha gritando; “Arreda, pedra,
senão te quebras!... O urubu: “Qual?! qual?! compadre sapo bem
sabe voar!...” O sapo caiu e ralou-se todo; por isso é que ele é meio
foveiro. [PERNAMBUCO] (ROMERO, 2000, p. 287-288)
Análise esquemática:
CARÊNCIA = o sapo precisa chegar ao céu para uma festa para a qual foi
convidado
ARDIL = o sapo se esconde dentro da viola do urubu
ENGANO = o urubu não percebe nada e carrega o sapo
REPARAÇÃO DA CARÊNCIA = o sapo chega à festa
CARÊNCIA = o sapo precisava voltar da festa
ARDIL = o sapo esconde-se novamente dentro da viola do urubu
ENGANO = o urubu percebe que há algo errado com sua viola e a vira; o sapo
despenca lá de cima
REPARAÇÃO DA CARÊNCIA = apesar de cair, o sapo chega de volta ao chão
(MOTIVO EXPLICATIVO = o sapo é meio foveiro devido à queda que sofreu)
Este conto apresenta a repetição de duas seqüências motivêmicas iguais.
uma primeira carência: o sapo foi convidado para uma festa no céu, mas não tem
como chegar lá. Tentando reparar sua carência, ele esconde-se dentro da viola de
seu amigo urubu que também fora convidado (ardil). O urubu não percebe nada e
carrega o sapo até a festa (engano); portanto, a carência do sapo é reparada, já que
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ele consegue chegar à festa no céu. Uma seqüência é concluída e a segunda se
inicia.
O sapo precisa voltar da festa (carência). Novamente ele se esconde na viola
do urubu (ardil); a ave não percebe nada novamente (engano), porém, no meio do
caminho, o sapo se mexe dentro do instrumento, o urubu vira a viola, fazendo com
que o sapo despenque de de cima. Apesar da queda e de alguns ralados, o sapo
repara sua carência, pois chega de volta ao chão vivo.
Neste conto, além das duas seqüências iguais, um novo elemento, que
não aparece nos outros contos analisados: o motivo explicativo (que Dundes
simboliza por Mot Explic). Segundo Dundes (1996, p. 105), o motivo explicativo é
opcional e não tem um papel estrutural no conto, ou seja, se o motivo explicativo for
retirado do conto, sua estrutura ou sua compreensão não são prejudicadas. A
função desse elemento seria a de indicar o término do conto, já que, de acordo com
Dundes (1996, p. 106), vários antropólogos notaram que o motivo explicativo
aparecia no final das narrativas; por isso também é chamado motivo explicativo final.
No caso deste conto, o trecho final “O sapo caiu e ralou-se todo; por isso é que ele é
meio foveiro.”, corresponde ao motivo explicativo final, isto é, o trecho explica que o
sapo é meio foveiro devido à queda que sofreu que, por sua vez, aconteceu como
conseqüência de toda a história narrada anteriormente e, além disso, essa oração
marca o final do conto.
Seqüência motivêmica:
C – Ard – Eng – RC /// C – Ard – Eng – RC (+ Mot Explic)
Mais uma vez a musicalidade está fortemente presente através dos
instrumentos musicais. Um deles é a viola, que participa diretamente do conflito
gerado no conto e é o objeto central da narrativa. O outro é o pandeiro que, pela
primeira vez, é citado juntamente com o samba, fazendo-nos supor uma possível
influência africana. Além disso, este conto apresenta uma curiosidade vocabular: a
palavra foveiro, presente no vocabulário da Bahia, que significa feio, desbotado,
esmaecido, desgastado.
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Conto 7:
Amiga folhagem (Silvio Romero)
Uma vez o macaco intrigou-se com a onça, não se sabe bem o
motivo. A onça andava sempre a ver se pegava o macaco; mas o
macaco, muito arteiro, sempre escapava dela. Ora, houve um tempo
em que todos os rios e fontes do mundo secaram, e a onça ficou
contente, porque supunha que desta vez o macaco lhe não escaparia.
Largou-se e foi esperá-lo no lugar único em que havia água, e que
estava servindo de bebedouro a todos os bichos. O macaco foi beber
água e por um triz que não morreu. Mas sempre escapou-se, e ficou
com muito medo. Então ele engenhou-se um meio de escapar da
onça, e foi o seguinte: encontrou um viajante que levava umas
cabaças de mel de uruçu; apoderou-se de uma delas, e lambuzou-se
bem no mel e depois se cobriu todo de folhas bem verdinhas e largou-
se pelo mundo a fazer estrepolias. Logo chegou ao ouvido de todos os
bichos que tinha aparecido um bicho novo, a que chamavam amiga
folhagem. Assim, o macaco bebeu água, e escapou. Nessa ocasião a
onça lhe perguntou quem era, e ele respondeu:
“Eu sou a folharada,
Sempre que vier beber
Tenho de ser transformada.”
E realmente as folhas lhe foram caindo da pele e também o
pêlo. Foi então o macaco à fonte, lhe perguntaram quem era; ele
respondeu:
“O tronco da folharada:
Todas as vezes que aqui bebe
É transformada...
Dês que nesta casa bati
Nunca mais água bebi...”
Houve muita gargalhada, e o macaco ficou bebendo água
desassombrado. [SERGIPE] (ROMERO, 2000, p. 291-292)
Análise esquemática:
CARÊNCIA “moldura” = todos os rios e fontes secaram e falta água para todos os
animais.
CARÊNCIA “central” = o macaco quer beber água no bebedouro, mas a onça quer
capturá-lo.
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ARDIL = o macaco se disfarça, usando mel de uruçu e folhas verdes para cobrir o
corpo.
ENGANO = a raposa credita que o macaco é um bicho novo: a amiga folhagem.
REPARAÇÃO DA CARÊNCIA “central” = o macaco consegue beber água sem
perigo.
Este conto também apresenta uma combinação estrutural menos complexa.
uma carência (que denominaremos “central”): o macaco quer beber água no
bebedouro, que era o único lugar onde havia água disponível, porém a raposa
queria capturá-lo. Desta forma, o macaco se disfarça, cobrindo seu corpo com mel
de uruçu e folhas verdes. Vale ressaltar que a utilização de um disfarce pelo
enganador é uma das formas mais comuns de ardil. A raposa, ao ver o macaco
disfarçado, a credita que ele é um novo bicho a que chamaram amiga folhagem.
Com isso, o macaco consegue beber água sem nenhum perigo, reparando sua
carência. É interessante lembrar que, no início do conto, há explicitamente uma
outra carência, que denominamos de carência “moldura”. Essa carência é a falta
geral de água para todos os animais que todos os rios e fontes secaram; como
essa carência não é reparada no final do conto, concluímos que sua função é
restringir o lugar no qual o macaco poderia encontrar água para beber ao
bebedouro, delimitando não o espaço do conto, como também conduzindo a
coerência das ações narrativas.
Seqüência motivêmica: seqüência nuclear bimotivêmica
C “moldura” - C – Ard – Eng – RC
(não é reparada)
O que nos chama a atenção neste conto são os versinhos rimados que
aparecem em meio à narrativa, como no conto 3; o como pequenos poemas que
nos remetem mais uma vez para as características fundamentais da narrativa oral.
Além disso, uma figura nova e não muito recorrente está presente no conto: a
figura do viajante. Não se pode afirmar que ele seja humano ou animal, porém tem
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um papel fundamental para a solução do problema do macaco, pois é ele que
carrega as cabaças de mel de uruçu, usado pelo animal para disfarçar-se.
Conto 8:
A raposa e a onça (Versão colhida entre os índios por Couto
de Magalhães e depois reproduzida por Silvio Romero)
O sol secou todos os rios e ficou só um poço com água. A
onça então disse: “Agora sim; pilho a raposa, porque vou fazer espera
no poço da água.” A raposa, quando veio, olhou para frente e avistou
a onça; não pôde beber água, e foi-se embora, imaginando um plano
para poder beber.
Vinha uma mulher pelo caminho com um pote de mel na
cabeça.
A raposa deitou-se no caminho e fingiu-se morta; a mulher
arredou-a e passou.
A raposa correu pelo cerrado, saiu-lhe diante no caminho, e
fingiu-se de morta; a mulher arredou-a e passou adiante.
A raposa correu pelo cerrado, e mais adiante fingiu-se morta; a
mulher chegou e disse:
Se eu tivesse apanhado as outras já eram três.
Arriou o pote de mel no chão, pôs a raposa dentro do cesto,
deixou-o aí e voltou para trazer as outras raposas.
Então a raposa lambuzou-se no mel, deitou-se por cima das
folhas verdes, chegou ao poço e assim bebeu água.
Quando a raposa entrou na água e bebeu, as folhas se
soltaram; a onça conheceu-a, mas quando quis saltar-lhe em cima, a
raposa fugiu.
A raposa estava outra vez co muita sede, bateu num pé de
aroeira, lambuzou-se bem na sua resina, espojou-se entre as folhas
secas, e foi para o poço.
A onça perguntou:
Quem és?
Sou o bicho Folha-seca.
A onça disse:
Entra na água, sai, e depois bebe.
A raposa entrou, não lhe caíram as folhas, porque a resina não
se derreteu dentro d’água: saiu e bebeu e assim fez sempre até
chegar o tempo da chuva. (ROMERO, 2000, p. 293-294)
Análise esquemática:
CARÊNCIA “moldura” = falta de água para todos os animais porque o sol secou
todos os rios
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CICLO 1: CARÊNCIA 1 = a raposa quer beber água no poço, mas a onça quer
capturá-la
ARDIL 1.1 = a raposa finge-se de morta para a mulher (3 tentativas)
ENGANO 1.1 = a mulher acredita, recolhe a raposa
ARDIL 1.2 = a raposa se disfarça, usando mel e folhas
ENGANO 1.2 = a onça inicialmente não reconhece a raposa e a deixa entrar na
água e beber
REPARAÇÃO DA CARÊNCIA 1= a raposa bebe água e foge da onça
CICLO 2: CARÊNCIA 2 = a raposa quer beber água
ARDIL 2: a raposa se disfarça com a resina da aroeira e as folhas
ENGANO 2: a onça testa a raposa, mas, mesmo assim, é novamente enganada
REPARAÇÃO DA CARÊNCIA 2: a raposa bebe água
REPARAÇÃO DA CARÊNCIA “moldura” = chega o tempo da chuva
Apesar de este conto ser uma versão do anterior, ele pode ser considerado,
segundo Dundes, um conto expandido, que sua seqüência de motivemas é mais
complexa. Este conto pode ser dividido em dois ciclos, cada um com uma seqüência
motivêmica completa. No ciclo 1, a raposa quer beber água no poço, mas não pode
porque a onça quer capturá-la; está a carência 1. Para reparar sua carência, a
raposa em primeiro lugar, finge-se de morta para enganar uma mulher que passava
pelo caminho (ardil 1.1). São necessárias três tentativas até que a mulher acredite e
recolha a raposa (engano). Com o mel da mulher e algumas folhas, a raposa se
disfarça (ardil 1.2) e consegue enganar a onça, entrar na água do poço e bebê-la, ou
seja, a carência 1 da raposa é reparada. Vale ressaltar que a onça percebe que a
raposa está disfarçada, que o mel se derrete na água e as folhas saem de seu
corpo, porém a raposa, depois de beber água, consegue escapar. É neste momento
que se inicia o ciclo 2, que é basicamente uma repetição, uma extensão do ciclo 1.
Novamente a raposa tem a carência da água e o medo de ser pega pela onça
(carência 2). Ela então se disfarça novamente, mas desta vez usa resina da aroeira
(ao invés do mel) e as folhas (ardil 2). A onça testa a raposa, fazendo-a entrar na
água para ver se o estava disfarçada; como a resina de aroeira não derrete na
água, a onça acredita que aquela criatura é o bicho Folha-Seca (engano 2). Assim a
raposa repara novamente sua carência, bebendo água no poço. Esse processo se
repete até que chega o tempo da chuva.
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Neste conto, assim como no anterior, também um elemento inicial que
denominamos carência “moldura”, ou seja, é uma carência geral de água para todos
os animais. Além de ter as mesmas funções explicadas no conto acima, neste
caso, essa carência é reparada no final do conto.
Seqüência motivêmica:
C “moldura” Ciclo 1 Ciclo 2 RC “moldura”
C C
Ard Ard
Eng Eng
RC RC
Neste conto, que é uma versão do anterior, a figura do viajante desaparece;
aqui, da raposa encontra uma mulher pelo caminho. Entretanto, essa mulher
desempenha no conto o mesmo papel desempenhado pelo viajante no conto 7: é ela
que traz o mel utilizado para o disfarce da raposa.
Conto 9:
O jabuti e o homem (Silvio Romero)
O jabuti meteu-se numa toca, e pôs-se a tocar sua gaita.
As pessoas que iam passando escutaram.
Um homem disse: Eu vou apanhar aquele jabuti.
Chegou à toca, chamou: Ó jabuti!
O jabuti respondeu: Oi!
O homem disse: Vem cá, jabuti.
Pois bem, aqui estou, eu vou já.
O jabuti saiu, o homem agarrou-o, levou-o para casa. Quando
chegou à casa meteu o jabuti dentro de uma caixa. Logo de
manhazinha, o homem disse aos seus filhos:
Agora não vão vocês soltar o jabuti.
E foi-se para a roça.
O jabuti estava dentro da caixa tocando a sua gaita.
Os meninos ouviram e vieram para escutar.
O jabuti calou-se.
Então os meninos disseram: Toca mais, jabuti.
O jabuti respondeu: Vocês acham bonito, como não seria se
vocês me vissem dançar!
Os meninos abriram a caixa para verem o jabuti dançar.
O jabuti dançou pelo quarto:
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Lê, lê, lê, lê...
Lé, ré, lé, ré...
Depois pediu aos meninos para o deixarem ir mijar.
Os meninos disseram-lhe: Vai, jabuti, mas não fujas.
O jabuti foi para trás da casa, correu e escondeu-se no meio
do mato.
Então os meninos disseram: O jabuti fugiu!
Um deles disse: Agora como de ser? Como é que
havemos de dar conta a nosso pai quando ele chegar? Vamos pintar
uma pedra da cor do casco do jabuti, senão quando ele chegar nos dá
pancada!
Assim fizeram.
De tarde chegou o pai deles: Ponham a panela no fogo, para
tirarmos a casca do jabuti.
Eles disseram: Já está no fogo.
O pai deitou a pedra pintada na panela pensando que era o
jabuti.
Os meninos trouxeram.
O pai tirou o jabuti da panela, e quando, e quando o deitou no
prato quebrou-o!
O pai disse aos meninos: Vocês deixaram o jabuti fugir?
Eles responderam: Não, senhor.
Quando estavam dizendo isto, o jabuti tocou a sua gaita.
Quando o homem ouviu, disse: Eu vou-o apanhar outra vez.
Foi e chamou: Ó jabuti!
O jabuti respondeu: Oi!
O homem foi pelo mato afora à procura dele. Chamou:
Vem, jabuti!
Ele chamava de uma banda, e o jabuti respondia-lhe de trás. O
homem aborreceu-se, voltou para casa, e deixou-o. (ROMERO, 2000,
p. 299-302)
Análise esquemática:
CARÊNCIA = o homem quer pegar o jabuti
REPARAÇÃO DA CARÊNCIA = o homem consegue pegar o jabuti e o prende em
uma caixa
INTERDIÇÃO = os filhos do homem não devem soltar o jabuti
VIOLAÇÃO = os filhos soltam o jabuti
CONSEQÜÊNCIA = o jabuti foge
TENTATIVA DE FUGA = os filhos tentam esconder a fuga do jabuti, não
conseguem. O homem tenta recapturá-lo, e também não consegue.
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Este conto pode ser explicado através de duas seqüências motivêmicas. A
primeira delas seria a mais simples de todas as seqüências. uma carência, o
homem quer capturar um jabuti para comer, e esta carência é reparada: o homem
consegue pegar o animal, leva-o para casa e o prende em uma caixa. A partir disso,
inicia-se a segunda seqüência.
O homem proíbe os filhos de soltarem o jabuti; essa proibição constitui uma
interdição. No entanto, os filhos violam essa interdição e soltam o jabuti. Segundo
Dundes, a desobediência é o núcleo do padrão violação, sendo um elemento
freqüente nos contos populares do mundo inteiro. Como conseqüência, o jabuti que
foi solto pelas crianças foge, indo esconder-se no mato. Para tentar remediar a
situação, os filhos tentam esconder do pai sua desobediência e a fuga do jabuti,
pintando uma pedra da cor do casco do bicho (tentativa de fuga). Porém, o pai
descobre a verdade, tenta pegar novamente o jabuti, mas sem sucesso.
Seqüência motivêmica:
C – RC – Int – Viol – Consq – TF
Dos 11 contos analisados, este é um dos mais extensos e é o único no qual a
maioria das personagens é humana: o homem e os filhos.
Conto 10:
O veado e o sapo (Silvio Romero)
Era um dia um veado e um sapo que queriam ambos casar
com uma moça. Para decidirem a questão pegaram uma aposta.
Havia duas estradas; então o veado disse que aquele que chegasse
primeiro ao fim delas, este se casaria com a moça, e que quando ele
cantasse o sapo respondesse. Ficou tudo combinado e cada qual
seguiu por sua estrada. O veado estava muito alegre julgando ser ele
quem ganhava a aposta, mas o sapo de sabido reuniu todos os sapos,
um atrás do outro, em toda a extensão do caminho e ordenou que
ouvisse o veado cantar e estivesse mais perto dele respondesse; e foi
se colocar lá no fim da estrada. Os sapos todos ficaram alerta e
quando o veado cantava: Laculê, laculê, laculê, o sapo que estava
mais perto, respondia: Gulugubango, bango . O veado corria, corria,
e tornava a cantar:
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“Laculê, laculê, laculê.”
E o sapo que estava mais perto respondia:
“Gulugubango, bango lê.”
O veado ficava desesperado e largava-se na carreira, dizendo:
“Agora ele não ouve.” Tornava a cantar a mesma coisa e o sapo
respondia. Quando o veado chegou ao fim da estrada encontrou o
sapo e foi este que se casou com a moça. O veado ficou desesperado
e disse: “Aquele sapo me paga.” E quando foi na noite do casamento
encheu um poço que tinha no quintal do sapo, de água fervendo.
Quando foi de madrugada que o sapo viu que a moça estava
dormindo, saiu da cama devagarinho e correu para dentro do poço.
Quando foi caindo dentro não disse mais nem ai Jesus!... e morreu
logo. O veado ficou muito alegre e casou-se com a mesma moça.
[SERGIPE] (ROMERO, 2000, p. 309-310)
Análise esquemática:
CARÊNCIA = o veado e o sapo querem se casar com uma moça (= DISPUTA)
TAREFA = quem chegar mais rapidamente ao fim da estrada casa-se com a moça
(apostar corrida)
ARDIL = o sapo reúne todos os outros sapos à beira do caminho para que
respondessem ao chamado do veado e coloca-se no fim da estrada.
ENGANO = o veado caiu na armadilha do sapo e acreditou que tivesse perdido a
corrida
REALIZAÇÃO DA TAREFA = o sapo chega primeiro ao fim da estrada
REPARAÇÃO DA CARÊNCIA do sapo = casa-se com a moça
CARÊNCIA = o veado continua querendo casar-se com a moça
ARDIL = o veado enche o poço de água fervente
ENGANO = o sapo pula no poço e morre
REAPARAÇÃO DA CARÊNCIA do veado = casa-se com a moça
Este conto apresenta duas seqüências motivêmicas seguidas. A primeira
delas inicia-se com uma carência: tanto o veado quanto o sapo querem se casar
com uma moça. Quando duas personagens têm a mesma carência ao mesmo
tempo, gera-se uma disputa entre elas. Assim, para resolverem a questão, ambos
decidem apostar uma corrida, ou seja, uma tarefa é proposta para os dois: quem
chegasse mais rapidamente ao fim da estrada, casar-se-ia com a moça. O sapo,
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porém, tentando reparar sua carência, reúne todos os outros sapos e organiza-os
em fila por toda a extensão do caminho e coloca-se no fim da estrada; quando o
veado chamasse, o sapo que estivesse na frente e mais próximo do veado
responderia para que ele acreditasse que o sapo estava ganhando a corrida. Assim
foi feito, o veado caiu na armadilha do sapo e acreditou que tivesse perdido a
corrida. Tendo cumprido a tarefa de chegar primeiro ao fim da estrada, o sapo
repara sua carência casando-se com a moça. Desta maneira termina a primeira
seqüência de motivemas. No entanto, o veado ainda mantém sua carência e com ela
inicia-se a segunda seqüência.
Na noite do casamento, o veado enche o poço do quintal da moça com água
fervente (ardil). De madrugada, o sapo pula no poço e morre (engano). O veado
casa-se, então, com a moça e repara sua carência, fechando a segunda seqüência
motivêmica.
Seqüência motivêmica:
C – Tar – Ard – Eng – RT – RC /// C – Ard – Eng – RC
Assim como acontece nos contos anteriores, o tema central da narrativa é o
casamento. dois pretendentes (o sapo e o veado) que disputam a mesma noiva,
porém, aqui, a noiva é uma moça, o que nos faz supor que ela seja humana e não
animal, como ocorre nos outros contos.
Além disso, chama-nos atenção o uso, na narrativa, de expressões que não
pertencem à língua portuguesa: laculê, gulugubango, bango lê. Desta forma,
acreditamos que essas expressões possam ser da ngua indígena de origem das
narrativas.
Conto 11:
O jabuti e o veado (Versão colhida entre os índios por Couto
de Magalhães e depois reproduzida por Silvio Romero)
O jabuti saiu a procurar seus parentes e encontrou-se com o
veado. O veado perguntou-lhe: “Para onde você vai?” O jabuti
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respondeu: “Vou chamar meus parentes para virem me ajudar na
caçada grande da anta.” O veado falou assim: Então você matou a
anta? chamar todos, que eu fico aqui; quero vê-los.” O jabuti disse
então: “Eu me vou; aqui mesmo quero esperar que a anta
apodreça, tirar-lhe o osso para fazer uma gaita.” O veado falou deste
modo: “Você matou a anta, agora eu quero apostar uma carreira com
você.” O jabuti respondeu: “Espere por mim aqui; vou ver por onde hei
de correr.” O veado disse: Quando você correr pelo outro lado, deve
responder quando eu gritar.” O jabuti disse: “Já vou indo.”
O veado falou-lhe: “Agora nada de demoras... Eu quero ver a
tua valentia.”
O jabuti falou assim: “Espera um poucochinho; deixa-me
chegar à outra banda.”
Logo que chegou ali, chamou todos os seus parentes. Pastou-
os a todos pela margem do pequeno rio para responderem ao veado
tolo. Depois falou assim:
“Ó veado! você já está pronto?”
O veado respondeu: “Eu já estou pronto.”
O jabuti perguntou: “Quem é que vai na dianteira?”
O veado riu-se e disse: “Tu vai mais adiante, jabuti.”
O jabuti não correu; enganou o veado e foi colocar-se mais
adiante.
O veado estava seguro confiando nas suas pernas.
O parente do jabuti gritou pelo veado. O veado respondeu para
quem lhe ficava atrás.
Assim o veado falou: “Eis-me que vou aqui, tartaruga do
mato!
O veado correu, correu, correu, depois gritou: “Jabuti!
Outro parente do jabuti respondeu sempre de diante. O veado
disse: “Eis-me que vou, ó macho.”
O veado correu, correu, correu e gritou: “Jabuti!”
O jabuti sempre de diante respondeu.
O veado disse: “Eu ainda vou beber água.”
Então o veado ficou calado.
O jabuti gritou, gritou, gritou... Ninguém lhe respondeu.
Disse então: “Aquele macho por ventura morreu. Deixa-me ir
vê-lo.”
O jabuti disse a seus companheiros:
“Eu vou sorrateiro para espreitá-lo.
O jabuti, quando saiu à margem do rio, disse assim: “Nem
sequer cheguei a suar.”
Então chamou pelo veado: “Veado!
O veado não deu resposta.
Quando os companheiros do jabuti olharam para o veado,
disseram: “Verdadeiramente, já está morto.”
O jabuti disse: “Vamos lhe tirar o osso.”
Os outros perguntaram-lhe: “Para que é que tu o queres?”
O jabuti respondeu: “Para eu assoprar por ele e tocar em
qualquer tempo.” (ROMERO, 2000, p. 311-314)
Análise esquemática:
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CARÊNCIA = o jabuti quer uma gaita; ele encontra-se com o veado que lhe propõe
apostarem uma corrida
ARDIL = o jabuti reúne todos os outros jabutis à beira do caminho para que
respondessem ao chamado do veado e coloca-se no fim da estrada.
ENGANO = o veado cai na armadilha do jabuti, acreditou que está perdendo a
corrida, corre cada vez mais rápido e morre.
REPARAÇÃO DA CARÊNCIA do sapo = o jabuti faz uma gaita com os ossos do
veado.
Este conto é uma versão do conto anterior, porém, apesar de ser maior em
extensão, apresenta uma seqüência estrutural mais simples. Neste conto, a carência
inicial é de apenas um animal: o jabuti que quer uma gaita. Ele encontra-se com o
veado que então lhe propõe uma corrida. Vale ressaltar que, neste caso, a disputa
se estabelece não de forma ligada à carência inicial como no conto anterior, mas sim
como uma forma do veado verificar se o jabuti era tão corajoso como parecia, que
estava dizendo que tinha matado a anta.
O jabuti, muito esperto, aceita apostar a corrida com o veado, mas reúne
todos os outros jabutis à beira do caminho para que respondessem ao chamado do
veado e coloca-se no fim da estrada (ardil).
Ao ouvir as respostas dos jabutis, o veado cai na armadilha do jabuti, acredita
que está perdendo a corrida, corre cada vez mais rápido e morre de tanto cansaço
(engano). Assim, o jabuti usa os ossos do veado para fazer sua gaita e repara sua
carência. Ao observarmos a seqüência das ações narrativas do conto, podemos
concluir que o jabuti estava blefando quando diz ao veado que matou a anta,
justamente para que ele quisesse colocar à prova sua valentia, propondo-lhe a
corrida; o jabuti sabia como ludibriar o veado para então conseguir sua gaita dos
ossos.
Seqüência motivêmica:
C – Ard – Eng – RC
90
Devemos nos atentar para um elemento importante, presente nesse conto: o
clima de suspense criado pelo narrador. Esse clima reflete uma característica
fundamental da literatura oral; o narrador usa a estratégia do suspense para prender
a atenção de seus ouvintes.
Chegando ao final deste capítulo, podemos verificar que os 11 contos
populares brasileiros de origem indígena, escolhidos para o corpus, podem ser
analisados tendo como base teórica a teoria estruturalista do autor norte-americano,
Alan Dundes, mesmo que, em alguns momentos, essa teoria tenha sido adaptada
para assimilar melhor as especificidades das narrativas indígenas brasileiras.
Entretanto, a obra de Silvio Romero reúne 21 narrativas, que o autor organiza como
sendo de origem indígena. Assim, os outros 10 contos o foram incluídos neste
trabalho, por seguirem uma tendência bem diversa daquela apresentada pelos
contos do corpus. Os contos “A onça e o bode” e “O veado e a onça”, por exemplo,
apresentam conteúdos e organização bastante diferentes. O conto “O macaco e a
cotia”, por sua vez, possui uma estrutura que corresponderia mais ao gênero da
fábula do que ao gênero do conto popular.
Dessa forma, fica clara a necessidade de outros estudos que se voltem para o
restante dos contos de origem indígena, coletados por Romero, a fim de realizarem
novas adaptações da teoria de Dundes ou, como nos parece mais adequado,
buscarem novas alternativas e perspectivas para a análise dessas narrativas.
91
Capítulo 4: Perspectivas complementares para as análises estruturais
Como dito, em um dos itens finais do segundo capítulo da presente
dissertação, Dundes considera importante não apenas a realização das análises
estruturais dos contos indígenas, através da montagem das seqüências fixas dos
motivemas, mas também a posterior interpretação dos dados coletados e
organizados. Medeiros (1996, p, 324) considera os modelos narrativos de Dundes
mais abstratos que os de Propp. Ao afirmar isso, Medeiros não quer dizer que a
teoria de Dundes deixa de lado o conteúdo semântico em favor de uma análise
exclusivamente formal, mas:
Pelo contrário, o esquema de Dundes prevê esse conteúdo, mas vai
tratar dele num outro vel da análise, que é complementar à
descrição da seqüência de funções ou motivemas, sem jamais se
confundir com ela: existem vários degraus que o analista deve galgar,
se quiser apreender seu objeto de forma integral, sendo que o
primeiro diz respeito à descrição da seqüência narrativa abstrata, que
revelará a constituição interna do mito ou conto tradicional, mas, a
seguir, também os pontos de vista dos personagens poderão ser
descritos, e não apenas o do herói como no caso do modelo
proppiano (1996, p. 324).
A partir disso, o presente capítulo tem por objetivo apresentar,
primeiramente, um quadro sintético das características principais do grupo de onze
contos analisados, com o intuito de uma visão mais abrangente e global por parte do
leitor, para que possa compreender mais facilmente as relações existentes entre as
narrativas. Logo após, apresentaremos algumas possíveis interpretações dos dados
coletados nos contos. Essas considerações devem ser vistas como perspectivas que
complementem as análises estruturais realizadas no capítulo anterior.
4.1. O quadro sintético
Abaixo encontramos o quadro que resume, esquematicamente, os principais
elementos das onze narrativas indígenas analisadas. Na primeira coluna,
encontram-se os títulos dos contos; na segunda, informações sobre as personagens;
na terceira, as seqüências motivêmicas de cada conto (essas seqüências
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apresentam a estrutura de cada narrativa e foram trabalhadas no capítulo 3); na
quarta coluna, os temas centrais e, na última coluna, alguns elementos que julgamos
importantes no contexto de cada narrativa.
CONTO PERSONAGENS ESTRUTURA TEMA ELEMENTOS
CENTRAIS
1. O cágado e
a fruta
- humanos: mulher
(ela detém o
conhecimento do
nome da fruta e
queria atrapalhar os
bichos)
- animais: cágado
(descrédito),
onça (esperteza),
macaco (?)
C – Tar – RT – R
C – Int – Viol – Cons
(perseguição)
Ard – Eng – Cons – TF
Ard – Eng
- Cumprimento de
tarefa para poder
comer a fruta;
- Disputa pelas
frutas.
- quebra de expectativa;
- baixo corpo: o traseiro
falante causa a morte da
onça;
- ponto de vista (moral) do
cágado: valores
- instrumento musical: viola
2. O cágado e
o teiú
- animais
humanizados:
a onça e sua filha
o teiú
o cágado (esperteza)
- animal não-
humanizado:
cavalo
- Para o cágado:
C – T – RT – RC
Ard – Eng
- Para o teiú:
C – T – RT(não realizada) - RC
(não reparada)
- Disputa para fins
de casamento.
- fingimento de doença
(lenço amarrado na
cabeça);
- palavras do campo
semântico da montaria:
sela, brida, mangual,
esporas, arreios, garupa.
- humilhação, vergonha.
3. O cágado e
o jacaré
- animais: cágado
jacaré e seu filho
mais velho
Int – Viol – C – Cons – RC
(roubo) (perseguição)
Ard – Eng Ard – Eng
- Disputa por um
instrumento
musical.
- instrumento musical:
gaita;
- baixo corpo: o traseiro do
cágado prende o dedo do
jacaré;
- inveja
4. O jabuti e a
raposa
- animais: jabuti
2 raposas (apenas
uma é enganada)
Int – Viol – C – Cons – RC
(roubo) (perseguição)
Ard – Eng Ard - Eng
- Disputa por um
instrumento
musical.
- instrumento musical:
flauta;
- baixo corpo: o traseiro do
jabuti prende a língua da
raposa.
5. O cágado e
a fonte
- animais: cágado
teiú
onça e sua filha
sapinhos
macaco
- humanos: homem
(que tem as mesmas
características dos
animais, não sendo
superior a eles).
C – Ard – Eng – RC - Disputa pelo
casamento com a
filha da onça.
- fonte (de água)
- instrumento musical:
gaita
6. O Urubu e
o sapo
- animais: urubu
sapo e sua família
(esposa e filhos)
C – Ard – Eng – RC
C – Ard – Eng – RC
(+ Mot. Expl.)
- Como ir e voltar
de uma festa no
céu.
- festa no céu;
- instrumentos musicais:
viola e pandeiro
- samba
7. Amiga
folhagem
- animais: macaco
onça
- humanos: viajante
(possui as cabaças
com mel de uruçu)
C(m) – C – Ard – Eng – RC - Disputa entre os
animais para
poderem beber
água no
bebedouro.
- rios e fontes secas;
- disfarce.
8. A raposa e
a onça
- animais: onça
raposa
- humanos: mulher
(possui o pote com
mel e é enganada
pela raposa)
C(m)–Ciclo 1–Ciclo 2 –RC(m)
C C
Ard Ard
Eng Eng
RC RC
- Disputa entre os
animais para
poderem beber
água no poço.
- rios secos;
- o valor da experiência
para o aprendizado.
9. O jabuti e
o homem
- animais: jabuti
- humanos: homem
(predador) e seus
filhos (meninos)
C – RC – Int – Viol – Cons -TF - O homem apanha
um jabuti e esse
foge.
- instrumento musical:
gaita
- roça
- urinar, sendo empregada
a formulação “mijar”
- desobediência
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10. O veado e
o sapo
- animais: veado
sapo
- humanos: moça
(com quem os bichos
queriam se casar)
C – Tar – Ard – Eng – RT –RC
C – Ard – Eng – RC
- Disputa para
casar-se com a
moça.
- aposta;
- vitória do sapo (ligada ao
coletivo).
11. O jabuti e
o veado
- animais: jabuti e
seus parentes
veado
C – Ard – Eng – RC - Aposta de corrida - Clima de suspense criado
pelo narrador;
- a caçada grande da
ANTA
- instrumento musical:
gaita
- vitória coletiva do jabuti
- aposta
A partir dos elementos apresentados no quadro, faremos algumas
considerações que julgamos pertinentes para a complementação da análise
estrutural.
4.2. Sobre as personagens
Podemos observar que, nas narrativas indígenas analisadas, os animais
constituem a maioria das personagens. Há também personagens humanas, mas seu
número é bem menor. Segundo Cascudo (1972, p. 82), no folclore brasileiro, os
animais são seres criados por Deus e possuem linguagem e organização, com leis,
chefe, aliados, amigos e inimigos. Esses animais simbolizam os vícios e as virtudes
humanas. Na literatura oral, “os animais caracterizam a fábula, o exemplo moral em
que os bichos tomam a função consciente do pecado e da virtude humana”
(CASCUDO, 1972, p. 83). Desde tempos remotos, cerca de seis séculos antes de
Cristo, as histórias de animais, como transferência moral de nossas inferioridades,
constituem o melhor gênero na literatura oral e culta. Assim, cada povo foi
elaborando suas próprias narrativas, geralmente, com o intuito de corrigir ou prevenir
o erro, com o uso de uma linguagem que poderia ser compreendida por qualquer
pessoa. Na perspectiva de Cascudo,
A participação do animal no folclore e etnografia tradicional é variada
e ampla. Para o povo, o animal é portador de memória, prevenção,
simpatia, defeitos, virtudes e possui linguagem compreensível entre os
de sua espécie e, para muitos, “entendidos”, haverá uma linguagem
de comunicação geral para todas as famílias zoológicas. (1972, p. 85)
Dentre os animais presentes nos contos indígenas aqui analisados estão: o
cágado ou jabuti (contos 1, 2, 3, 4, 5, 9 e 11); a onça (contos 1, 2, 5, 7 e 8); o
macaco (contos 1, 5 e 7); a raposa (contos 4 e 8); o teiú (contos 2 e 5); o sapo
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(contos 5, 6 e 10); o veado (contos 10 e 11); o cavalo (conto 2); o jacaré (conto 3); o
urubu (conto 6).
Desses animais, o que mais se destaca nas narrativas é o cágado, que
aparece em alguns contos como “jabuti”; podemos verificar que esse animal é
também o mais recorrente. Nas histórias indígenas, o cágado é o herói invencível,
capaz de vencer até mesmo os animais mais fortes e violentos. Harrt diz que o
cágado
É um animal de pernas curtas, vagaroso, débil e silencioso;
entretanto, representa na mitologia do Amazonas o mesmo papel que
a raposa na do Velho Mundo. Inofensivo e retraído, o jabuti, não
obstante, aparece nos mitos da língua geral como vingativo,
astucioso, ativo, cheio de humor e amigo de discussão” (Apud
CASCUDO, 1972, p. 466)
Podemos observar que, nos contos ameríndios coletados por Romero, a
figura do cágado é fiel à tradição indígena. No conto 1, todos os animais que haviam
tentado decorar o nome da fruta para poder comê-la não haviam obtido sucesso. O
cágado foi o último a tentar e nenhum bicho acreditava que ele seria capaz de
realizar a tarefa. Apesar do descrédito, ele conseguiu decorar o nome, mas foi a
onça quem pegou as frutas, dando uma idéia inicial ao leitor de que o cágado, no
fim, acabaria em desvantagem. Entretanto, com toda sua astúcia, ele engana a onça
e recupera o alimento, terminando o conto vitorioso.
No segundo conto, o cágado também sai vitorioso, depois de enganar o teiú.
No conto 3, o vencido pelo cágado é o jacaré. No conto 4, novamente a raposa é
enganada pela astúcia do gado. Nesse conto, assim como no primeiro, o cágado
inicialmente aparenta inocência e a raposa o engana; porém, no final, ele se vinga,
tornando-se vencedor. No quinto conto, mais uma vez, o cágado faz uso de sua
esperteza, engana vários bichos, dentre eles, o macaco, o teiú, a onça e o homem, e
acaba casando-se com a filha da onça.
No conto de número 9, inicialmente, o jabuti é capturado pelo homem e
parece derrotado”, porém, consegue ludibriar os filhos do homem, foge e não o
prendem mais. Por fim, no último conto, o jabuti aposta uma corrida com o veado e
também é o vencedor, devido a sua astúcia. Podemos verificar que, apesar de ser
desacreditado pelos outros animais, devido a sua “lerdeza” e incapacidade, o
cágado sempre surpreende o leitor no final das narrativas. Isso ocorre porque, na
95
“hierarquia” natural dos animais, os mais fracos precisam ser mais espertos para não
perecerem.
Assim, comprovamos que, para as narrativas da tradição indígena, coletadas
por Romero, o cágado (jabuti) é mesmo o herói por excelência, sempre contemplado
pela esperteza e astúcia, que o levam à vitória; ele sempre tem suas carências
reparadas. No entanto, vale ressaltar que o cágado desempenha este papel apenas
nos contos de origem indígena; nos demais (de linhagem africana ou européia) esse
animal não manteve seu prestígio, sendo substituído pela raposa, macaco ou
coelho. Ou seja, são valorizados nesses outros contos os animais que nas tradições
daqueles continentes eram os heróis mais comuns. No Brasil a perspectiva indígena
(o cágado enquanto herói) não se imprimiu nem mesmo nos contos narrados entre
os mestiços. um ciclo da tartaruga na África; devido a isso, acreditava-se numa
possível emigração dos ciclos, mas Cascudo diz que a coexistência é a opção mais
aceita.
O segundo animal mais recorrente nos contos é a onça. Esse animal
simboliza a coragem e a valentia, personaliza a força bruta e é sempre derrotada
pela astúcia e inteligência de seus inimigos. Em relação à literatura oral da África,
corresponde ao leopardo. Russel Wallace comenta que:
A onça, dizem os indígenas, é o animal mais astuto da floresta. Imita
perfeitamente os piados e berros de quase todos os pássaros e
animais, a fim de atraí-los para perto de si. [...] É crença geral entre os
indígenas e habitantes brancos do Brasil, que a onça tem o poder de
fascinar os outros animais. Contam-se muitas estórias a esse respeito,
e que comprovam isso. (Apud CASCUDO, 1972, p. 637)
Nas narrativas analisadas, podemos verificar que essas características
apresentadas por Cascudo surgem como atributos da onça. No primeiro conto, a
onça até consegue roubar as frutas do cágado, mas esse, além de recuperar o
alimento, faz com que a onça acredite que seu traseiro está falando. Ela pede,
então, para que o macaco a açoite tanto, que ela acaba morrendo. Percebe-se que a
enorme força da onça não lhe serve em um momento crucial, de modo que ela é
derrotada pela astúcia do cágado.
No segundo conto, mais uma vez, a onça apresenta-se como tola e boboca,
acreditando na farsa do cágado que, por sua vez, engana o teiú para fazê-lo seu
cavalo. Também no conto 5, a onça deixa-se ludibriar pelo cágado e, além disso, ela
96
não se mostra corajosa e destemida, que fica com medo de beber água na fonte,
quando ouve um barulho que o sabe identificar. No conto 7, é a vez do macaco
enganar a onça. Pelo início da narrativa, fica claro que o macaco tinha medo da
onça, devido a sua força bruta, e que fugia dela. No entanto, fazendo uso da
inteligência, o macaco consegue envolvê-la em suas mentiras, enganando-a. O
conto 8 é uma versão do sétimo conto, uma vez que ambos apresentam enredos
praticamente iguais. A diferença entre eles é que, no oitavo conto, quem engana a
onça é a raposa. Podemos notar que, apesar de sua força física, a onça não é
dotada de muita inteligência, portanto, acaba se dando mal.
Quanto à raposa, ela aparece em apenas dois dos contos selecionados para
o corpus. No conto 4, ela rouba a flauta do jabuti e acaba, posteriormente, sendo
enganada por ele e forçada a devolver o instrumento musical. Vale ressaltar que,
nesse conto, aparecem duas raposas: uma no papel de protagonista e outra em
papel secundário. Apenas a raposa protagonista deixa-se enganar, enquanto a outra
age de forma muita esperta, alertando a primeira sobre o ardil, mas não é ouvida.
no oitavo conto, a raposa engana, primeiramente, a mulher e, logo depois, a onça,
revelando-se astuta e esperta ao fazer uso de um disfarce para conseguir beber
água e reparar sua carência.
A raposa é um dos animais mais freqüentes no fabulário em geral, sempre
espertíssima e dotada de uma grande astúcia para vencer vários animais. Nos
contos analisados, não podemos notar essas características. O que vemos são duas
situações distintas: uma na qual a raposa é, sim, muito esperta e outra na qual lhe
falta esperteza. Além disso, esse animal o aparece muito nos enredos das
narrativas selecionadas.
Passemos ao macaco. Diz Cascudo que o macaco “É a figura da agilidade,
astúcia sem escrúpulos, infalivelmente vitorioso pela rapidez nas soluções
imprevistas e felizes” (1972, p. 527). No primeiro conto analisado, o macaco surge
como uma personagem secundária, no final da narrativa. Ele é responsável por
atender ao pedido da onça e açoitá-la até a morte. No conto 5, o macaco,
novamente, é um coadjuvante. Aparece no meio da narrativa, cai no ardil do cágado,
ficando com medo de beber água na fonte (devido ao barulho misterioso, feito pelos
sapinhos). Entretanto, nesse conto, o macaco apresenta-se como fofoqueiro, que
cabe a ela espalhar para os outros o caso do barulho misterioso na fonte. É apenas
no sétimo conto que a figura do macaco corresponde às características descritas por
97
Cascudo. Neste conto, o macaco se disfarça com mel e folhas, engana a onça e
bebe água à vontade, sendo vitorioso. Segundo Cascudo, o macaco é um
personagem típico dos contos africanos, nos quais é sempre o triunfador, ao passo
que não é muito difundido nos contos brasileiros, principalmente nos indígenas.
Nosso pequeno corpus confirma a avaliação de Cascudo.
O teiú, uma espécie de lagarto muito referida na cultura popular, aparece
como personagem em dois contos analisados. No conto 2, devido a uma disputa
entre pretendentes da filha da onça, o cágado tenta desmoralizar o teiú, acusando-o
de imprestável e dizendo que lhe servia como cavalo. Sabendo das ofensas, o teiú
vai exigir explicações ao cágado, acaba enganado por ele e, realmente, servindo-lhe
de montaria. No quinto conto, o conflito ocorre entre o gado e o homem, o teiú e a
onça. Dessa forma, o teiú aparece apenas como uma personagem “coadjuvante”,
sem nenhuma importância específica, além do fato de fazer parte dos três animais
enganados pelo cágado.
Vale ressaltar que, no conto 2, do qual o teiú faz parte, aparece apenas uma
única vez a figura do cavalo enquanto animal irracional. Em todos os demais contos
analisados, os animais são humanizados e falam, pensam, etc. Ou seja, apenas no
conto 2, o cavalo aparece na condição de montaria e de animal não-humanizado.
Chama a atenção o fato de que, nesse conto, são também empregadas palavras do
campo semântico da montaria: sela, brida, mangual, esporas, arreio, garupa.
Segundo Cascudo (1972, p. 259-260), possuir um cavalo e montar nele é sinal de
elevação social: ser um bom cavaleiro é possuir um título superior aos outros. Ao
provar a todos que o teiú servia-lhe de cavalo, é justamente isso que o cágado
deseja: aparentar nobreza e superioridade para ser digno de casar-se com a filha da
onça, já que ter uma mulher de família respeitada e um bom cavalo era o maior bem
dos sertanejos.
o sapo aparece como personagem em três dos contos analisados. Afirma
Cascudo que o sapo é tradicionalmente visto como protetor das fontes e das
nascentes de água, locais onde sua presença é inevitável. Esses animais são
considerados os guardiões da chuva e os indígenas do Amazonas o chamam mãe
da chuva. Segundo Cascudo,
O sapo é um personagem vivo em todas as literaturas orais do mundo
e em todos os estados de civilização. Desde as fábulas de Esopo aos
98
contos populares africanos, oceânicos, chineses ou hindus, europeus
ou australianos, o sapo é um elemento de representação cômica, e,
às vezes, de astúcia solerte e vitoriosa. Os dois exemplos opostos são
o sapo que viaja para a festa no céu, dentro da viola do urubu, e a sua
aposta de corrida com o veado. (1972, p. 806).
Podemos verificar que Cascudo se refere justamente a dois contos presentes
em nosso corpus de análise. A primeira referência de Cascudo nos remete ao conto
6. Nesse conto, o sapo parece triunfar, que consegue enganar o urubu e ser
levado até a festa no céu, dentro de sua viola. No entanto, no final da narrativa, o
urubu, percebendo o engano, deixa o sapo cair lá do alto e estatelar-se no chão.
Inclusive, esse é o único conto que apresenta o motivema “motivo explicativo”, pois,
segundo o narrador, é devido a essa queda, sofrida pelo sapo, que ele é meio
foveiro.
A segunda referência de Cascudo, por sua vez, nos remete ao conto 10, no
qual o sapo aposta uma corrida com o veado, disputando a mão de uma moça em
casamento. Pedindo ajuda a seus familiares, o sapo engana o veado e ganha a
corrida. Porém, mais uma vez, no final, o sapo acaba em situação ruim. O veado
coloca água fervendo no poço, o sapo pula lá dentro e morre. Assim, o vedo casa-se
com a moça.
no conto 5, os sapos aparecem como personagens secundárias, apenas
atendendo a um pedido do cágado para que cantassem, assustando a todos que
quisessem beber água. Podemos perceber que, em dois contos, a figura do sapo
está diretamente ligada à água. No quinto conto, a água é o habitat natural dos
sapos, no qual eles têm uma vida equilibrada. No décimo conto, ao contrário, o sapo
sente falta da água, visto que espera a esposa dormir para pular no poço, mas é
essa mesma água (símbolo de vida) que acaba causando sua morte por estar
quente demais.
O veado, segundo Cascudo (1972, p. 84) costuma aparecer nas narrativas
populares como personagem simples, veloz e inofensiva. Esse animal se faz
presente nos dois últimos contos do corpus. Nesses dois contos, devido a sua fama
de ser veloz, os outros animais lhe propõem uma aposta de corrida. No décimo
conto, o sapo vence o veado porque o engana, não por merecimento. No entanto, o
veado não é tão inofensivo, já que mata o sapo na água quente. No décimo primeiro
conto, aí sim o veado é enganado até o final e ele é que acaba morto.
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Os dois outros animais que compõem o quadro de personagens dos contos
são o jacaré e o urubu. Essas personagens não apresentam especificidades, sendo
o jacaré um dentre tantos vencido pelo cágado no conto 3, e o urubu um vitorioso
em relação ao sapo no conto 6.
Além de todos esses animais, no último conto, o jabuti encontra o veado e
afirma estar empreendendo uma “caçada grande da anta”, por isso estaria
procurando seus parentes para ajudá-lo nesse provável ritual. Informações
específicas sobre esse ritual não foram encontradas, no entanto, Cascudo (1972, p.
87) nos traz informações sobre a anta. Segundo o estudioso, esse animal era o
maior mamífero do Brasil pré-colonial e uma figura freqüente no fabulário brasileiro,
representando a força bruta e o arrebatamento orgulhoso baseado na resistência
física. Os índios a denominavam tapira.
Assim, no enredo do décimo primeiro conto, quando o jabuti se faz passar por
caçador de anta, deseja aparentar aos olhos do veado como indivíduo cheio de
coragem e esperteza. Na verdade, é claro, o jabuti não seria capaz de capturar uma
anta, mesmo com a ajuda de parentes.
Passemos, agora, à figura dos seres humanos nos contos estudados. As
personagens humanas são também muito recorrentes nas narrativas indígenas em
geral, indicando, provavelmente, a estreita ligação entre os índios e os elementos da
natureza. Diz Cascudo que “A tradição popular brasileira mantém o homem na
mesma posição privilegiada e universal” (1972, p. 444). Analisando a presença dos
humanos nos contos ameríndios, verificamos que essa posição de supremacia do
homem em relação aos animais é apenas uma dentre várias alternativas de enredo.
No primeiro conto, é interessante notar que a personagem mulher é superior
aos personagens animais, que ela detém o conhecimento do nome da fruta. No
conto 7, o homem é caracterizado como viajante e é ele que possui as cabaças com
mel de uruçu, mostrando, assim, a dominação do homem em relação ao reino
animal. Não são as personagens animais que retiram da natureza o mel, mas sim o
humano; os animais apenas fazem uso desse mel. Segundo Cascudo, uruçu é uma
espécie de abelha indígena, domesticada pelo colono português, produtora de um
mel de extrema delicadeza. Não seria espantoso que o viajante da narrativa fosse
um colonizador português. No nono conto, essa dominação humana sobre os bichos
se repete. O homem é visto, aqui, como predador, que caça o jabuti com a
intenção de cozinhá-lo e comê-lo. Porém, a astúcia do animal mostra-se superior à
100
inteligência do humano. O homem deixa o jabuti sob a vigilância dos filhos, que são
enganados pelo animal, que foge.
No oitavo conto, a personagem humana é uma mulher que, além de possuir
o pote com mel, é enganada pela raposa três vezes; mais uma vez, a esperteza
animal é vencedora. Por fim, nos contos 5 e 10, as figuras do homem e da moça,
respectivamente, não apresentam nenhuma diferença em relação aos animais.
Inclusive, no décimo conto, a moça se casa com o sapo e depois com o veado.
4.3. Sobre as estruturas
No capítulo anterior, apresentamos em minúcias as estruturas dos onze
contos populares brasileiros de origem indígena, baseadas nos modelos de Alan
Dundes. Sem querermos ser redundantes e repetir as considerações arroladas,
voltamos ao tópico das estruturas das narrativas, mas agora para tratar de um
elemento não desenvolvido anteriormente.
Pretendemos ressaltar nesse momento os motivemas ardil e engano
presentes no corpus na verdade, em dez das onze narrativas (com exceção do
conto 9). Segundo Propp (1992, p. 37), a natureza não pode ser ridícula, portanto,
não é objeto de riso e o tem qualquer conotação de comicidade. As florestas, as
flores, montanhas, mares ou ervas não são risíveis e não há lugar para o cômico.
Entretanto, essas considerações não dizem respeito à natureza em geral,
visto que elas excluem o reino animal. Os animais podem despertar o riso porque
são parecidos com os homens. O animal lembra o ser humano na forma, na
expressão facial ou nos movimentos e ações, e essa semelhança pode ser
acentuada através do adestramento. Nosso senso de ridículo em relação aos
animais pode ser despertado pelas semelhanças diretas e imediatas, como a
semelhança entre o homem e o macaco (o mais ridículo de todos os animais, por
lembrar mais o homem); ou por semelhanças remotas e indiretas, como pode
ocorrer com uma girafa, devido a seu pescoço exageradamente comprido. Até o
reino vegetal, que à primeira vista pode dar a idéia de ser “imune” ao riso, pode
gerar o efeito cômico se, de alguma forma, for apresentado com traços próximos do
humano.
Portanto, Propp chega à conclusão de que “somente o homem ou aquilo que
o lembra podem ser ridículos” (1972, p. 40) e provocar o riso. Além disso, é
101
importante levar em conta que apenas o ser humano tem a capacidade de rir. Os
animais podem até expressar sua alegria, mas não podem dar risada. Para rir é
preciso reconhecer o ridículo, atribuir-lhe valor moral e realizar uma operação
mental. E desses processos só o homem é capaz.
Quando há comicidade, “a causa do riso é inerente às características daquele
que é objeto do riso. O revés é provocado por ele mesmo. Atua uma única pessoa”
(PROPP, 1972, p. 99). Entretanto, o revés ou malogro pode ser provocado por
outrem, algo que Propp chama de “fazer alguém de bobo”. Essa situação é
representada nos contos indígenas pelos motivemas ardil e engano. Diz o Propp
que, na literatura humorística e satírica, esse procedimento é muito comum, como
ocorre também nos contos indígenas coletados por Romero. Havendo duas
personagens, é possível desenvolver-se um conflito, uma luta, uma intriga. Cada
personagem pode atuar sozinho, como ocorre nos contos 1, 2, 3, 4, 6, 7, 8, 9 e 10,
ou pode ter ao seu lado um grupo de adeptos ou de parceiros, como ocorre no conto
5, no qual os sapinhos ajudam o cágado a enganar os outros animais, e no conto 11,
no qual os parentes do jabuti ajudam-no a enganar o veado.
Esse procedimento de “fazer alguém de bobo”, chamado em russo de
odurátchivanie, segundo Propp, pode constituir um dos sustentáculos fundamentais
das tramas das comédias (1972, p. 100) e também do folclore cômico e narrativo
(1972, p. 101), compreendendo, assim, os contos maravilhosos de animais. Vale
salientar também que, nesses contos, o esperto ou enganador é absolvido
moralmente e conquista a simpatia dos ouvintes e leitores, em detrimento do
enganado.
Diz Propp que, de acordo com a região e a cultura, um animal que é o
enganador por excelência e, como visto anteriormente, enquanto na Europa esse
animal é a raposa, para os indígenas brasileiros é o jabuti. Propp nos lembra
também que o processo de fazer alguém de bobo pode ser redobrado, ou seja,
acontecer mais de uma vez, com a mesma personagem, com personagens
diferentes, ou com uma personagem que passa de enganado a enganador.
Esse redobramento do processo de fazer alguém de bobo também é
recorrente nos contos analisados. No conto 1, o cágado engana a onça duas vezes.
No conto 3, primeiramente o jacaré engana o gado e, depois, os papéis são
invertidos: o cágado engana o jacaré; no conto 4, a raposa engana o jabuti e,
posteriormente, o jabuti engana a raposa. No sexto conto, o sapo engana o urubu
102
uma vez, mas a segunda tentativa de enganá-lo não certo. O oitavo conto é o
que mais apresenta o odurátchivanie redobrado: a raposa engana a mulher,
fingindo-se de morta, três vezes, e a raposa engana a onça disfarçando-se duas
vezes. Por fim, no décimo conto, o sapo, com a ajuda de seus parentes, engana o
veado, mas, no final, o veado passa a ser o enganador do sapo. Ainda sobre essa
temática, diz Propp:
Esses contos maravilhosos não são propriamente cômicos no sentido
estrito da palavra: eles não provocam gargalhadas. Mas são
permeados por um humor popular incontestável. O ouvinte permanece
do lado do enganador não porque o povo aprove o engodo, mas
porque o enganado é bobo, medíocre, pouco esperto e merece ser
enganado (1972, p. 102).
Propp também afirma que
o folclore tem suas próprias leis: o ouvinte não as relaciona com a
realidade; trata-se de um conto maravilhoso, não de histórias
verídicas. O vencedor tem razão pelo fato de vencer [...] Esses
contos maravilhosos assumem facilmente o caráter de sátira social
(1972, p. 103).
Quanto ao caráter de sátira social, Propp considera que o povo aceita as
“maldades” feitas pelo enganador porque não sente nenhuma compaixão para com
os seus inimigos, que, geralmente, os enganados são o pope ou o patrão, e o
enganador é o peão da roça. Esses procedimentos teriam um caráter de vingança,
evidente “nos casos em que aquele que é feito de bobo é odioso ao povo pela
posição social que ocupa” (PROPP, 1992, p. 104). É devido a isso que o estudioso
diz que a personagem pode ou não ser culpada por tornar-se vítima de um engano.
A organização social dos indígenas é diferente da organização social do
homem branco; assim, esse caráter de sátira social não nos parece ocorrer nos
contos. Outro fator relevante é que as personagens dos contos indígenas analisados
não são humanas e não ocupam posições sociais, diferentemente das personagens
as quais Propp se refere, personagens dos contos maravilhosos europeus. Além
disso, na cultura ameríndia, como dito, não o duelo tradicional entre bem e mal
e as personagens não são somente boas ou somente más. Quem ora é enganado
pode tornar-se enganador mais tarde.
103
4.4. Sobre as temáticas
Podemos verificar que os temas tratados nas onze narrativas de nosso corpus
não são muito variados. A temática mais freqüente, presente em quase todos os
contos, é a da disputa entre os personagens.
No primeiro conto, a rivalidade se dá entre vários animais que disputam para
ver quem conseguiria gravar o nome da fruta para poder comê-la. Além disso,
depois que um animal consegue se apoderar das frutas, outro as rouba e, dessa
maneira, outra disputa se inicia: qual animal ficará com as frutas? Vale ressaltar que
a disputa é um elemento inicial que acaba gerando outros, como o roubo, por
exemplo.
nos contos 7 e 8, os animais não competem por alimento, mas sim para
poderem beber água no bebedouro e na fonte, respectivamente. Nesses dois casos,
a rivalidade acaba gerando a necessidade de os animais se disfarçarem.
No segundo conto, a contenda se pelo casamento, temática que retorna
nos contos 5 e 10. Sobre isso, Cascudo afirma:
As superstições e prognósticos ligados ao casamento são os que
existem no mundo em mais alta percentagem. Universais, incontáveis,
pela unidade do assunto, transmitem-se fielmente, constituindo um
número que desafiará colheita e fixação. Superiores às superstições
de caça e pesca, as superstições para anunciar o casamento
denunciam a importância capital do sexo, o lírico poder do amor,
onipotente e onipresente (1972, p. 254-255).
O casamento, como dito anteriormente, aparece como temática em
histórias de todos os povos e de todos os tempos e, com a literatura oral indígena
brasileira, não é diferente. É interessante notar que não raramente as disputas por
casamento geram tarefas a serem cumpridas para que os pretendentes sejam
dignos da mão da “donzela”.
Nos contos 3 e 4, a disputa acontece por um instrumento musical: uma gaita e
uma flauta, respectivamente. Também, aqui, a concorrência leva ao roubo.
Dessa maneira, temos abaixo uma tabela que apresenta as diferentes
disputas, ocorridas nos contos, e as ações geradas por cada uma delas:
104
DISPUTA AÇÃO GERADA
Disputa por alimento (frutas) – conto
1
Disputa por instrumento musical –
contos 3 e 4
Roubo
Disputa por água – contos 7 e 8 Disfarce
Disputa por casamento contos 2,
5 e 10
Tarefa
Obs: No conto 5, o elemento “tarefa” não é explícito,
mas o fato dos animais tentarem beber água no poço,
todos se assustarem com o canto misterioso dos sapos
e apenas o cágado conseguir seu objetivo, deixa
implícita uma tarefa.
Nos demais contos, as temáticas são únicas e sem especificidades. No conto
6, o tema central é o sapo tentando encontrar um meio de ir a uma festa no céu,
que ele não voa. O conto 9 aborda a questão da presa e do predador: o homem
captura um jabuti para comer, o jabuti foge e o homem não consegue recapturá-lo.
Já o último conto trata de uma aposta de corrida entre o jabuti e o veado.
4.5. Sobre os elementos centrais
O primeiro elemento com o qual trabalharemos é a presença de instrumentos
musicais nas narrativas. Não nos surpreende que vários instrumentos apareçam em
contos indígenas, que a música e a dança são componentes importantíssimos na
cultura ameríndia. Para os índios, em especial, os instrumentos musicais são
componentes culturais fundamentais. De acordo com as informações de Cascudo
(1972, p. 457), alguns deles (mais especificamente, 15 deles), conhecidos como
instrumentos sagrados de Jurupari, fazem parte de rituais e as mulheres são
terminantemente proibidas de ver esses instrumentos. Se isso acontecer, mesmo
que por acaso, elas são punidas com a morte.
O primeiro instrumento aparece logo no primeiro conto analisado: é a viola,
utilizada como facilitadora para que o gado conseguisse memorizar o nome da
fruta. Porém, segundo Cascudo (1972, p. 456), os indígenas não conheciam
instrumentos cordofones. Para explicar esse fato, recorremos a outra informação de
105
Cascudo (1972, p. 909), que nos afirma que os portugueses, sim, dominavam
praticamente todos os tipos de instrumentos e os trouxeram para o Brasil.
A viola foi o primeiro instrumento de cordas divulgado pelos colonizadores em
nosso país. Os jesuítas, inclusive, utilizavam esses instrumentos no processo de
catequização. Portanto, é bem provável que os indígenas tenham incorporado a
viola através do contato com o homem branco. As violas sempre estiveram
presentes no contexto do sertanejo, simbolizando a alegria e a música popular.
No conto 6, o urubu é convidado para uma festa no céu e leva sua viola. Além
de servir como um instrumento de integração e distração para os participantes da
festa, a viola serve como esconderijo para o sapo, que não tinha como chegar à
festa. Assim, ela é um elemento central para o enredo do conto.
No terceiro conto, o instrumento é a gaita. Nessa narrativa, o instrumento
musical faz parte da temática central, ou seja, o tema do conto é a disputa pela
gaita. Esse instrumento, para o Norte, é a flauta. Além disso, a gaita é sinônimo de
dinheiro, que quem tem dinheiro é tão bem humorado quanto aquele que toca a
gaita (CASCUDO, 1972, p. 419). A partir disso, podemos compreender porque o
narrador deixa claro que o jacaré tinha inveja do cágado com sua gaita e porque se
dá a disputa.
A gaita aparece ainda no nono conto, servindo para que o homem
encontrasse o jabuti em sua toca e o capturasse (ele estava tocando a gaita na toca)
e servindo também como meio do jabuti distrair os filhos do homem, que o havia
capturado, e fugir. No último conto, novamente, encontramos a gaita, responsável
por uma certa circularidade da narrativa: o conto inicia-se com o jabuti dizendo ao
veado que havia matado a grande anta e que faria uma gaita com os ossos dela. A
partir daí, os dois apostam uma corrida, o jabuti engana o veado, que morre. No final
da história, o jabuti faz a gaita com os ossos do veado, ou seja, o instrumento
musical representa a carência existente no conto.
No quarto conto, as características referentes ao instrumento musical são
semelhantes às do terceiro conto. Também, aqui, a disputa pela flauta é a temática
central. Segundo Cascudo (1972, p. 456), os indígenas dominavam bem os
chamados instrumentos aerofones, ou seja, aqueles que emitem sons a partir da
intromissão do ar por um orifício. Dentre esses instrumentos, mais tradicionais e
típicos da cultura ameríndia, estão as flautas, pios, buzinas sagradas, trombetas de
guerra, de madeira e osso, com ou sem ressonadores.
106
Também o pandeiro está presente em uma das narrativas. Esse instrumento
também foi trazido para o Brasil pelos portugueses que, por sua vez, obtiveram-no
através dos árabes e dos romanos. No sexto conto, o pandeiro aparece como sendo
um instrumento que o sapo deve levar para uma festa no céu. Mais uma vez, a
influência da “cultura musical” do europeu (aliás, árabe) fica evidente na narrativa
indígena. Ainda neste mesmo conto, a presença do samba na festa do céu. No
grupo dos onze contos analisados, é apenas nesse que um “ritmo” musical
específico é mencionado. O samba representa a dança popular em todo o Brasil e
tem sua origem na cultura africana. Portanto, em um mesmo conto de origem
indígena, podemos encontrar influências européias e africanas.
Ao analisarmos as personagens, o enredo e os temas dos contos,
indiretamente analisamos reflexos de comportamentos. Entretanto, alguns
pontos, relacionados especificamente ao comportamento, que gostaríamos de
abordar. O primeiro deles diz respeito ao primeiro conto, que traz um ponto de vista
moral. Porém, essa moral é baseada nos valores veiculados pelo gado. Esses
valores são: a esperteza, a astúcia, a vingança, a falta de escrúpulos para alcançar
seus objetivos, dentre outros. Mesmo enganando vários animais e tendo essas
características comportamentais, o cágado é visto como um vitorioso e herói. Isso se
porque, como dito anteriormente, no universo indígena, não o dualismo
tradicional entre bem e mal, entre herói e vilão, como nos contos europeus. As
personagens indígenas não são nem somente boas, nem somente ruins; são
constituídas de uma mistura de ambos os comportamentos. Essa situação não
ocorre apenas nesse conto. Quanto a esse aspecto, podemos identificar uma
espécie de estratégia do narrador: como o leitor não espera o final favorável ao
cágado, há uma quebra de expectativa.
No segundo conto, novamente o cágado tem o mesmo perfil do conto anterior
e, devido ao seu comportamento “desleal”, acaba causando para o teiú uma
situação de vergonha e humilhação. Mesmo valendo-se da mentira e do engano,
que o cágado finge estar doente, amarrando um lenço na cabeça, ele consegue ser
“bem visto” pela família da onça e casar-se com sua filha. Todo esse contexto se
repete nos contos 5 e 11, também com a figura do cágado/jabuti.
Outro ponto que merece destaque é o valor da experiência para o
aprendizado. Esse aspecto pode ser observado claramente no oitavo conto. Para
poder beber água no poço e não ser pega pela onça, a raposa se disfarça, usando
107
mel e folhas verdes; porém, o mel se dissolve na água e por um triz a raposa escapa
de ser capturada pela onça. Ao querer beber água novamente, a raposa se disfarça,
usando não mais o mel e sim a resina para grudar as folhas no corpo e impedir que
elas se soltem na água. Portanto, a experiência primeira, que não deu certo, fez com
que a raposa aprendesse e buscasse uma nova alternativa para reparar sua
carência.
Para tratar da questão do aprendizado, remetemo-nos ao nono conto, no qual
os filhos desobedecem ao pai, deixando que o jabuti saísse da caixa, onde estava
preso, e fugisse. Dessa forma, a família perde a caça/o alimento, que serviria para o
jantar. Esse conto tem uma intenção de ensinar as conseqüências da desobediência
das crianças em relação aos mais velhos e mais sábios. Esses valores são
importantes para praticamente todas as culturas, sendo os valores bem fortes,
principalmente, para os indígenas.
Outro elemento muito presente na cultura ameríndia e freqüente nos contos
analisados é a importância da coletividade e da família. Em relação à família, no
conto 3, o jacaré é auxiliado por seu filho mais velho, fazendo-nos supor que haveria
um (ou mais) filho(s) mais novo(s). No conto 6, a família do sapo está completa, com
a esposa e os filhos. No conto 9, novamente, o homem é apresentado como pai de
meninos. Quanto à coletividade, no conto 5, o cágado apenas consegue se casar
com a filha da onça porque recebe a ajuda dos sapinhos. No conto 10, o sapo
apenas consegue vencer o veado na corrida por causa da ajuda de outros sapos e o
mesmo acontece no conto 11: o jabuti apenas vence o veado devido à ajuda de
seus parentes. Esses exemplos nos remetem ao convívio indígena, que valoriza
muito a união da tribo e as idéias de solidariedade e de coletivo.
Por fim, trabalharemos com um elemento, presente nos contos 1, 3 e 4, que
designamos a partir de uma expressão utilizada por Bakhtin: o baixo corpo. Segundo
Bakhtin,
Nas palavras do oráculo da Dive Bouteille (a Divina Garrafa), o centro
de todos os interesses se transfere para baixo, para as profundezas, o
fundo da terra. As coisas novas, as riquezas que estão escondidas na
terra são muito superiores ao que existe no céu, na superfície da terra,
nos mares e rios. A verdadeira riqueza, a abundância não residem na
esfera superior ou mediana, mas unicamente no baixo (1999, p. 323).
108
O teórico analisa o “baixo” material e corporal em trechos de obras de
Rabelais, mais especificamente em dois episódios: o célebre capítulo do limpa-cus
de Gargantua (Livro I, cap. XIII) e os da ressurreição de Epistémon e sua história de
além-túmulo (Livro II, cap. XXX). Para Bakhtin, tudo o que se orienta para baixo,
para o avesso, de trás para frente, ou seja, todo o movimento que coloca o alto no
lugar do baixo ou o traseiro na frente é próprio de todas as formas de alegria popular
e do realismo grotesco. Nas palavras de Bakhtin,
Esses rebaixamentos não têm um caráter relativo ou de moral
abstrata, são pelo contrário, topográficos, concretos e perceptíveis;
tendem para um centro incondicional e positivo, para o princípio da
terra e do corpo, que absorvem e dão à luz. Tudo o que está acabado,
quase eterno, limitado e arcaico precipita-se para o “baixo” terrestre e
corporal para aí morrer e renascer (1999, p. 325).
Segundo o estudioso, a substituição do rosto pelo traseiro é um dos exemplos
mais recorrentes desse movimento em direção ao “baixo”; o traseiro é o rosto do
avesso. No primeiro conto analisado, podemos verificar essa substituição, já que a
onça acredita que seu traseiro esteja falando. A fala é proveniente da boca que se
situa no rosto; quando a onça crê que a voz (que na verdade é do cágado,
escondido embaixo de uma raiz grande de árvore) vem de seu traseiro, ela está
substituindo a função do rosto pelo traseiro. Vale ressaltar que a onça pede para seu
traseiro falante se calar e, como ele não obedece, ela pede ao macaco que a açoite;
devido à surra, a onça acaba morrendo. Outra informação importante é que, além da
denominação “traseiro”, no conto aparece a palavra oveiro”, substantivo feminino
que representa a região do corpo feminino que compreende os ovários, o ventre e
os quadris, ou seja, a região responsável pela sexualidade e pela procriação; mais
uma relação com o “baixo” corpo.
Ainda tratando da troca do rosto pelo traseiro, diz Bakhtin (1999, p. 329) que,
muitas vezes, são passados no traseiro produtos comestíveis, servidos à mesa e
destinados à boca. No conto 3, o cágado lambuza suas degas com mel para
enganar o jacaré; um alimento, que deveria ser colocado na boca é colocado no
traseiro.
Além disso, também podemos usar a boca para morder o dedo de alguém;
nesse conto, o cágado usa seu traseiro para apertar o dedo do jacaré aque esse
lhe devolva sua gaita. No quarto conto, o enredo se repete: o jabuti lambuza seu
109
traseiro com mel e prende o dedo e a língua da raposa para que ela lhe devolva sua
flauta.
De acordo com Bakhtin, a presença do “baixo” material e corporal produz o
riso, que alegra e liberta de uma seriedade mentirosa e de ilusões inspiradas pelo
medo. Sua finalidade seria tornar o texto mais próximo do homem, mais fácil de ser
compreendido, mais acessível e, portanto, mais distante do medo, o que teria como
resultado a carnavalização do mundo, do pensamento e da palavra. A Idade Média
era repleta de tons sérios das preces, da lamentação, da humilhação, da
intimidação, da ameaça, da interdição. O contato com o “baixo” seria, então, uma
forma de libertação, de não se deixar inibir pela “moral” convencional.
Acreditamos que, nos textos indígenas, esse uso de referências ao “baixo
corpo” possa também representar uma certa resistência à moral do branco
colonizador ou até mesmo um desafio à imposição da cultura européia, além de
tornar os textos mais divertidos, alegres, acessíveis e fáceis de serem entendidos,
assim como nos esclarecem as reflexões de Bakhtin.
110
Comentários finais
Ao concluirmos nossa jornada, alguns pontos merecem destaque diante de
tudo o que foi por nós apresentado.
O primeiro deles diz respeito ao próprio autor Silvio Romero. Um de nossos
objetivos foi mostrar a importância de seus estudos e de seu pioneirismo em relação
à literatura e ao folclore brasileiro. Sua preocupação em identificar e retratar uma
literatura “genuinamente brasileira” e sua iniciativa de coletar contos populares
brasileiros, dividindo-os em três grupos de acordo com sua origem (européia,
africana e indígena) evidenciam sua tendência de olhar para o povo e valorizar suas
formas de expressão e também a rica contribuição dada por cada uma das etnias
que constituíram o Brasil como nação.
Entretanto, mesmo diante de seu importante legado, esse estudioso foi um
tanto quanto esquecido. Apenas agora o cenário propõe uma redescoberta e
revalorização de Romero e de sua obra. Esperamos que nosso trabalho tenha
contribuído de alguma forma para que esse processo se intensifique. As reflexões de
Romero acerca do Brasil do século XIX são de grande valia para que possamos
compreender melhor o panorama geral de nossa história e de nossa literatura e,
portanto, devem ser reconhecidas e respeitadas.
A partir da riqueza da obra de Romero, decidimos desenvolver nosso trabalho
a partir dos contos populares brasileiros, originários da tradição oral dos povos
indígenas. Verificamos que as expressões da literatura oral, apesar de vivas e ativas
no seio dos povos, ainda sofrem um certo preconceito, sendo consideradas literatura
“inferior”, como defende Cascudo. Acreditamos que essa perspectiva tende a mudar,
que é inevitável enxergar a importância desse tipo de expressão popular como
parte fundamental da história da literatura considerada “oficial”.
Não podemos negar que o estudo de expressões orais traz consigo alguns
empecilhos. Não podemos dizer que trabalhamos, nesta dissertação, por exemplo,
com literatura oral propriamente dita, mas sim com literatura originada na oralidade.
Devemos levar em consideração que Romero, assim como outros grandes coletores
Grimm, Andersen, etc mudaram, de algum modo e em algum grau, as histórias
ouvidas quando foram “fixá-las” através da escrita. Porque, com a literatura oral, o
que a escrita faz é isso: fixa uma forma, que antes era tão flexível na oralidade dos
111
contadores. Pelas próprias especificidades do discurso, uma narrativa escrita nunca
é igual à mesma narrativa quando contada oralmente. Ao passarem do oral para o
escrito, os coletores imprimiram sua marca pessoal nos textos, por mais fiéis que
desejassem ser.
Segundo Almeida e Queiroz, Romero declarou-se extremamente fiel no
processo de recolher as narrativas. Diz o autor:
Todos os contos que se encontram neste livro, exceto os quatro ou
cinco tomados a Couto de Magalhães para estudo comparativo, foram
por nós diretamente recolhidos da tradição oral. Não incluímos neles
nenhum artifício; nenhuma ornamentação, nenhuma palavra há que
não fosse fielmente apanhada dos lábios do povo (ROMERO, Apud
ALMEIDA & QUEIROZ, 2004, p. 139).
O que as autoras salientam é que aquilo que Romero e também outros
coletores dizem na teoria não acontece na prática. Podemos verificar que os textos
foram transcritos com o predomínio do dialeto padrão escrito e não do oral popular.
Devemos considerar também que os coletores pioneiros tinham seu trabalho de
coleta e transcrição dificultado pela precariedade dos recursos tecnológicos.
Podemos perceber, segundo Almeida & Queiroz (2004, p. 141), até mesmo uma
certa ingenuidade desses coletores que, mesmo diante da inexistência de
instrumental científico adequado, defendem a proposta de uma transcrição fiel à
narrativa oral. Todo esse processo se “complica” ainda mais quando a história
ouvida não é narrada na língua do coletor, já que é necessário, então, que se faça
uma tradução. Enfim, essas são questões muito complexas, para as quais apenas
queremos chamar a atenção, sem nenhum pretexto de esclarecê-las.
O principal objetivo de nosso trabalho foi apresentar uma proposta de análise
para contos populares brasileiros de origem indígena. Para isso, baseamo-nos nas
considerações teóricas do autor Alan Dundes, que propôs um modelo de análise
para contos indígenas norte-americanos. Dundes partiu da teoria de Propp para criar
um modelo específico para os contos indígenas devido às peculiaridades desse tipo
de conto. Assim, analisamos 11 contos e verificamos que o modelo de Dundes pode
ser utilizado para essas narrativas brasileiras. Além do mais, verificamos também
que esses textos realmente são fortemente estruturados e não uma massa disforme,
como pode-se supor.
112
Além disso, apresentamos algumas perspectivas complementares de análise.
A partir dos resultados obtidos com a análise estrutural dos contos, desenvolvemos
uma interpretação dos dados, tentando justificar a presença de um tipo de estrutura,
de certas personagens, temáticas e outros elementos.
Por fim, gostaríamos de salientar um fator que, para nós, é de grande
importância. Apesar das limitações e dificuldades de se trabalhar com expressões da
literatura oral, como abordamos anteriormente, apresentamos, em nossa
pesquisa, narrativas nas quais o índio não é personagem, mas sim
autor/criador/narrador. Romero, como um visionário, teve a sensibilidade de
perceber a relevância desse processo já na segunda metade do século XIX e,
segundo Almeida e Queiroz:
Assistimos atualmente a uma espécie de eclosão do que nomeio a
priori uma literatura indígena no Brasil, que, a meu ver, configura um
movimento literário, na medida em que pode ser observado nos seus
aspectos coerentes, como um grande texto que se a ler. Seus
escritores representam uma população de cerca de 350.000
indivíduos, falantes de aproximadamente 180 línguas diferentes, além
do português, e habitam desde a fronteira brasileira com a Venezuela
até a fronteira com o Uruguai (ALMEIDA & QUEIROZ, 2004, p. 195).
Esse processo que ocorre nos dias de hoje se difere daquele de Romero, pois
nesse último, o branco escrevia em nome do índio para outro branco ler. Já, hoje, o
próprio índio escreve sobre os índios (e também sobre os brancos) para que,
principalmente, outros índios leiam. Podemos dizer que tem se configurado, no
Brasil, uma literatura do índio para o índio. Entretanto, tanto na obra de Romero,
como nas produções atuais, é a figura indígena que se apresenta como criadora; ela
é sujeito de sua própria história. É seu olhar diante do mundo que se reflete naquilo
que é contado e escrito.
No Brasil, de acordo com informações de Almeida e Queiroz (2004, p. 196-
297), existem cerca de 1500 escolas indígenas diferenciadas e também cerca de
3200 professores índios e são esses professores que a cada dia intensificam o
processo, contemplado por Romero, do índio como autor/criador. São esses
docentes que têm construído, a partir de suas práticas de trabalho, a literatura das
suas comunidades; são os chamados “livros da floresta”.
Toda essa abordagem é muito ampla e merece novas perspectivas de
estudos; é um novo horizonte que se abre diante das pesquisas acadêmicas.
113
muito ainda a ser feito. Diz Almeida e Queiroz (2004, p. 195) que “Os escritores
indígenas estão descobrindo o Brasil”. Cabe, então, a nós RE-descobrirmos os
índios, os “autores da floresta”, sob um aspecto mais humano, mais democrático,
mais literário.
114
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