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UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO
DO RIO GRANDE DO SUL
AIRTON TOLFO
A INTERPRETAÇÃO EM PAUL RICOEUR:
UMA PEDAGOGIA DO TEXTO?
Ijuí (RS)
2009
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1
AIRTON TOLFO
A INTERPRETAÇÃO EM PAUL RICOEUR:
UMA PEDAGOGIA DO TEXTO?
Dissertação apresentada ao Curso de
Pós-Graduação Stricto Sensu em
Educação nas Ciências Mestrado, da
Universidade Regional do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí,
requisito parcial para obtenção do título
de mestre em Educação nas Ciências.
Orientador: professor doutor Aloísio Ruedell
Ijuí (RS)
2009
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3
AGRADECIMENTOS
Agradeço a confiança e a disponibilidade do professor doutor Aloísio
Ruedell (Unijuí), meu orientador, pelas mediações durante o processo de
construção deste trabalho, com seus comentários, observações e correções
pertinentes. À comissão examinadora, professor doutor Cláudio Boeira Garcia
(Unijuí) e professor doutor Luiz Rohden (Unisinos), cujos valiosos depoimentos
científicos propiciaram a ampliação do meu potencial intelectual, resultando nesta
dissertação.
Aos demais professores da Unijuí, com quem tive a oportunidade de dialogar,
em especial ao professor doutor Paulo Evaldo Fensterseifer, membro da banca
de qualificação.
Ao finalizar mais uma etapa da minha vida, sou eternamente grato à minha
família pelo constante incentivo durante o período em que me dediquei à pesquisa,
pela compreensão de minhas ausências na concretização de um sonho. Hoje, sinto-
me feliz. Esta é a essência de todo ser humano.
A eles dedico este trabalho.
4
RESUMO
Esta dissertação aborda um ponto relevante do pensamento de Paul Ricoeur na
área da linguagem, que entre os demais, necessita de um olhar crítico-reflexivo em
razão da sua relevância. O nosso objetivo foi examinar a concepção e a
interpretação do texto em Paul Ricoeur, indagando por suas contribuições para o
campo da educação. Fizemos a investigação com a convicção de que a leitura e a
interpretação em Paul Ricoeur servem para repensar a educação. Ricoeur toma
como ponto de partida o texto, que adquire vida própria, autonomia, após ter sido
constituído. O argumento é de um olhar positivo quanto à distância, pela questão da
alienação. A questão que perpassa os dois capítulos é a autonomia do texto, pela
apreciação do projeto que traz consigo. O que interessa é entender o seu projeto,
mais precisamente as possibilidades de ser que dele emergem. O trabalho dá
enfoque especial para o texto e sua função hermenêutica na educação. São
aspectos, que na sua utilidade, proporcionam liberar o projeto contido no texto e se
tornar um vir-a-ser novamente.
Palavras-chave: Interpretação. Hermenêutica. Texto. Autonomia. Pedagogia.
Educação.
5
ABSTRACT
This thesis deals a relevant point of Paul Ricoeur’s thought on the language area,
that among the others, needs a reflective-critical eye because of its relevance. Our
goal was to examine the conception and the interpretation of the text in Paul Ricoeur,
inquiring for his contributions on the education field. We made an investigation with
the conviction that the lecture and the interpretation in Paul Ricoeur serve to rethink
the education. Ricoeur has as point of start the text, that acquires own life, autonomy,
after being formed. The argument it’s about a positive look as distance, by the
alienation question. The question that permeates the two chapters it’s the text
autonomy, by the appreciation the projects brings with it. The interest is to
understand his project, more precisely the possibilities of being that emerges from it.
The labor gives an especial attention to the text and his hermeneutic function on
education. Aspects, that, on its utility, provide to liberate the project contained on the
text and become a come-to-be again.
Key words: Interpretation. Hermeneutic. Text. Autonomy. Pedagogy. Education.
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................7
1 O
GIRO
LINGUÍSTICO NA FIGURA DO TEXTO.....................................................9
1.1 A filosofia enquanto linguagem .............................................................................9
1.2 Construção: o processo de formação de um texto..............................................12
1.2.1 A linguagem como discurso .............................................................................12
1.2.2 A linguagem como obra....................................................................................16
1.2.2.1 Mensagem e meio: fixação............................................................................18
1.2.2.2 Mensagem e locutor......................................................................................19
1.2.2.3 Mensagem e ouvinte .....................................................................................20
1.2.2.4 Mensagem e código ......................................................................................20
1.2.2.5 Mensagem e referência.................................................................................21
1.3 Concepção e autonomia do texto........................................................................24
2 BASES PARA UM CONCEITO DE INTERPRETAÇÃO........................................30
2.1 A tradição romântica ...........................................................................................30
2.2 A virada ontológica da hermenêutica ..................................................................34
2.3 A retomada epistemológica.................................................................................37
2.4 Hermenêutica e educação...................................................................................39
2.5 Pedagogia do texto .............................................................................................43
2.6 Interpretação do texto e compreensão de si .......................................................48
CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................53
REFERÊNCIAS.........................................................................................................57
7
INTRODUÇÃO
O pensamento de Paul Ricoeur organiza-se basicamente em torno de duas
tradições: a da crítica da subjetividade e a tradição hermenêutica. Todas as suas
discussões procuram conjugar essas tradões situadas no giro linguístico. Tanto
isso é verdade que Ricoeur define a tarefa hermenêutica como “a apropriação de
nosso esforço de existir e de nosso desejo de ser através das obras que
testemunham esse esforço e esse desejo.” (CESAR, 2002, p. 37).
Comenta o enxerto da hermenêutica na fenomenologia por aquilo que ele
designa a “via longa” da linguagem, em oposição a uma hermenêutica de “via curta”,
ao estilo de uma hermenêutica heideggeriana. Todos os debates temáticos e a
própria consciência de si passam pelo caminho da linguagem.
É desse contexto de discussão que surgiu o tema da presente dissertação. O
título indica que a linguagem é apresentada sob a figura do texto. Este fornece
todos os elementos e a perspectiva na qual se darão as discussões. O nosso
objetivo é examinar a concepção e a interpretação do texto em Paul Ricoeur,
indagando por suas possíveis contribuições para o campo da educação. Damos
curso à investigação com a convicção ou hipótese de que a dinâmica da leitura e da
interpretação, pensada por Ricoeur, servirá para repensar uma pedagogia mais
dinâmica e aberta, que ao encontro da pluralidade de opiniões e de
possibilidades.
O primeiro capítulo abordará determinadas características daquilo que se
designa por “virada linguística” e apresentará a construção e a concepção do texto,
visto como uma figura da linguagem. Expondo a linguagem em seus dois níveis, na
8
fala e na escrita, destaca a similaridade entre essas duas modalidades de expressão
em relação ao significado. Ao apresentar a linguagem enquanto discurso e a
linguagem enquanto obra, no entanto, cabe perguntar pela sua diferença. Como
semelhanças, certamente também diferenças importantes a serem consideradas.
Neste estudo, o interesse e a atenção estarão prioritariamente voltados para a
linguagem escrita, o texto e sua interpretação.
O segundo capítulo apresenta as bases necessárias para um conceito de
interpretação. Ao iniciar pela tradição romântica, particularmente em Schleiermacher,
teremos a preocupação com a interpretação e a compreensão ligadas ao autor do
texto. Ao passar dessa tradição para a hermenêutica existencial de Heidegger,
teremos a inversão da relação teleológica. Ocorrerá a virada ontológica da
hermenêutica, quando o compreender deixa de ser visto como procedimento para
ser analisado como modo de ser. Ao concluir esse capítulo examinaremos como
Ricoeur incorpora as duas perspectivas da hermenêutica de modo a conjugar
epistemologia e ontologia.
Sem perder os ganhos da virada ontológica, propõe-se retomar o debate
epistemológico. Enfim, desenvolveremos essa discussão hermenêutica, indagando
por sua contribuição para a educação. O que isso poderia agregar à educação? São
questões pertinentes, que nos desafiam e que estão na base do título do presente
trabalho: A interpretação em Paul Ricoeur: uma pedagogia do texto?
9
1 O GIRO LINGUÍSTICO NA FIGURA DO TEXTO
1.1 A filosofia enquanto linguagem
A expressão “giro linguístico” se tornou lugar-comum nos debates
filosóficos e nas discussões teóricas das mais diversas áreas do saber. Designa-se
com ela a passagem de um estilo de fazer Filosofia a partir do primado da
subjetividade em direção a uma Filosofia a partir da linguagem. Esta mudança,
obviamente, não ocorreu num momento preciso, mas se deu como um processo
que, nas últimas décadas, atingiu nível mais elevado. Como poderíamos precisar
melhor esse momento filosófico? Ou, que aspectos poderiam ser evocados?
A linguagem é um dado social que acompanha a história da própria
sociedade. Desde a Antiguidade ela foi objeto de preocupação e reflexão, recebendo
a atenção de diversos filósofos. Quem filosofa tenta definir ou redefinir termos e
conceitos, e a prática filosófica foi sempre uma prática linguística. Apesar disso,
entretanto, a linguagem sempre ocupava um lugar secundário. O problema estava
na ordem do ser, na perspectiva ontológica, ou na capacidade de conhecimento, na
perspectiva gnoseológica. A abordagem da linguagem somente era possível de se
realizar no contexto mais amplo de uma dessas perspectivas.
Isso significa que “para a tradição existe um mundo ‘em si’, cuja estrutura
podemos conhecer pela razão e depois comunicar aos outros por meio da
linguagem. A linguagem é instrumento secundário da comunicação de nosso
conhecimento do mundo.” (OLIVEIRA, 2006, p.126). Seria esta a única função, ou a
função mais importante da linguagem humana?
Esta seria uma perspectiva reducionista, alerta Wittgenstein: “para começar,
isso é falso em sua exclusividade, pois com a linguagem podemos fazer muito mais
coisas do que designar o mundo.” (apud OLIVEIRA, 2006, p. 127). No mais, “não
existe um mundo em si independente da linguagem, que deveria ser copiado por ela.
Só temos o mundo na linguagem; nunca temos o mundo em si, independente,
sempre por meio da linguagem” (p. 127, grifo nosso). Esta, por sua vez, deixa de ser
um simples instrumento de comunicação do conhecimento e passa a ser condição
de possibilidade para a constituição do conhecimento.
10
Passagens como estas expressam a virada de um tipo de Filosofia, de uma
tradição que parte do primado do sujeito em direção à linguagem. O impacto dessa
virada foi tal que a linguagem não apenas se tornou o tema preferido, mas
transformou-se na perspectiva de todos os temas e reflexões das Ciências Humanas
e da Filosofia em particular. Também a fenomenologia insere-se no contexto dessa
discussão, valorizando e abrindo a linguagem para as discussões hermenêuticas,
particularmente em Gadamer e Ricoeur.
Ricoeur assume uma postura crítica diante das filosofias do sujeito da
tradição cartesiana. Embora devedor dessa tradição, o giro linguístico não lhe
permite mais legitimar o pensamento a partir da subjetividade. Seu ponto de partida
será a linguagem. A partir dela, critica o primado do sujeito sem, contudo, rejeitar a
questão do sujeito enquanto tal. Preocupa-se com a questão do sujeito, e indaga
pelo seu lugar na discussão hermenêutica. Não dúvidas, para Ricoeur, de que a
linguagem é a base da legitimação de todo pensamento e conhecimento humanos,
porque constitui o limite indepassável de toda discussão teórica.
Ricoeur argumenta a favor dessa postura crítica diante das filosofias
reflexivas, afirmando que o sujeito apenas se constitui e se manifesta na objetivação
da linguagem. É ela que me põe a “caminho” do sujeito. A linguagem é o ponto de
partida, e o sujeito, livre e consciente, pode, no máximo, ser apenas a meta,
somente alcançável ao final do percurso pela linguagem. Poderia se perguntar:
quando, então, será o final do percurso, para que se possa atingir a meta? Talvez se
pudesse argumentar que o caminho é interminável, porque nunca vamos conseguir
sair da linguagem e a tarefa de sua interpretação nunca termina. Nada se constitui e
se mostra sem ela.
Não é pretensão discorrer neste estudo sobre os diversos desdobramentos
conhecidos pela Filosofia em relação a esse momento da virada da linguagem. Além
de ter sido um momento determinante para o debate filosófico, este, por sua vez,
tornou-se fator decisivo na formação da cultura e na elaboração e comunicação de
todo o conhecimento humano. Ou seja, a reviravolta linguística não apenas mudou
os rumos da atividade filosófica, mas exerceu impacto sobre todas as áreas do
conhecimento. Passa-se, então, a uma justificação filosófica a partir da linguagem.
11
Ricoeur sempre se mostrou sensível à riqueza da linguagem e de seus usos.
Essa mesma sensibilidade, contudo, também o levou a suspeitar de todos aqueles
que propunham uma linguagem “bem formada”, uma linguagem que traduzisse as
outras, limitando-lhes o significado.
Este autor inicia sua discussão por uma antinomia, encontrada da obra de
Gadamer, ou seja, a oposição entre distanciamento alienante e pertença. Como
resolver essa tensão entre pertença e distanciamento? O filósofo francês toma para
si a tarefa de superar essa antinomia, herdada de Gadamer. Procurará desincumbir-
se dessa tarefa, estruturando seu pensamento a partir de uma noção de texto que
está no centro de sua discussão hermenêutica, entendida como “a teoria das
operações da compreensão em sua relação com a interpretação de textos.”
(RICOEUR, 1990, p. 17).
O texto, afirma Ricoeur (1990, p. 44), é “muito mais do que um caso particular
da comunicação inter-humana, ele é o paradigma do distanciamento na
comunicação.” A tarefa será bem-sucedida na medida em que conseguir dar um
sentido positivo ao distanciamento, de modo a juntar os dois pólos da oposição,
distanciamento alienante e pertença.
Ao explicitar que o texto se constitui em “paradigma do distanciamento na
comunicação” Ricoeur (1990, p. 44) reconhece que esse distanciamento produzido
no texto enraíza-se num fenômeno ainda mais profundo e absolutamente primitivo
da própria linguagem. A dinâmica da linguagem traz em si mesma a marca do
distanciamento. Mesmo no discurso oral, adverte Ricoeur, um caráter
absolutamente primitivo de distanciamento. É o aprofundamento de uma perspectiva
já presente em Gadamer, quando, na terceira parte de Verdade e Método, ele reflete
sobre a linguagem enquanto diálogo. Ainda que os interlocutores sejam
indispensáveis para que ocorra o diálogo, este parece, de certa forma, fugir de seu
controle. Em vez de eles o conduzirem, é o diálogo que os conduz, esclarece
Gadamer. É a primazia do dito sobre os interlocutores.
Ricoeur começa a analisar a questão a partir da efetuação da linguagem
como discurso, caracterizando o distanciamento como dialética entre evento e
significação. Para ele, o exercício da linguagem ou sua efetuação em discurso é a
12
dissolução da antinomia de Gadamer: os pólos de oposição, que suscitavam uma
alternativa insustentável, são agora percebidos como momentos complementares de
uma mesma realidade ou processo. O filósofo mostra como os diversos momentos e
figuras da efetuação da linguagem manifestam aquilo do qual o texto é paradigma, o
distanciamento na comunicação. Traça uma rica e detalhada análise do processo de
construção e de interpretação do texto, conforme apresentação que segue.
1.2 Construção: o processo de formação de um texto
1.2.1 A linguagem como discurso
É em conseqüência da necessidade de comunicação que surgem as
alterações da linguagem ao longo do tempo. Acontecem coerções, limitações,
criação de novos mbolos no decorrer da História, visando a adaptar a linguagem
ao ser humano. É ela que o faz ser.
A intenção de transmitir alguma coisa por meio da fala efetiva-se com a
junção de palavras, formando frases, pois as palavras por si não teriam um
sentido nem verdadeiro nem falso. Para entender, obter significado, precisamos
argumentar, fazer a junção de pelo menos “um nome e um verbo”; então
poderemos estabelecer um diálogo, tornando possível um discurso seguido de um
entendimento.
No Crátilo, Platão mostrara que o problema da verdade” das palavras
isoladas ou nomes deve permanecer indecidido porque a denominação não
esgota o poder ou a função da fala. O logos da linguagem requer, pelo
menos, um nome e um verbo e é o entrelaçamento destas duas palavras
que constitui a primeira unidade da linguagem e do pensamento.
(RICOEUR, 2000, p. 13).
Hoje, na Linguística moderna, as diversas línguas usadas pelas comunidades
linguísticas tornam-se códigos autônomos, de acordo com cada língua falada. É
relevante aqui citar o nome do pai da Linguística moderna, Ferdinand de Saussure,
que distinguiu, na constituição da linguagem, langue (língua, código) de parole
(palavra, fala). “Langue é o código ou o conjunto de códigos sobre cuja base
13
falante o particular produz a parole como uma mensagem particular.” (RICOEUR,
2000, p. 14).
Sem pretender analisar todo o pensamento linguístico de Saussure, a questão
aqui proposta é esta: o que se ganha e o que se perde, ao considerar o discurso
feito oralmente (enquanto parole) para o ouvinte, pois “[...] o ato de falar não é
somente excluído como execução exterior, como performance individual, mas como
livre combinação, como produção de enunciados inéditos. Eis o essencial da
linguagem e, falando propriamente, sua destinação.” (RICOEUR, 1978, p. 73).
A fala é uma forma de comunicação que vem de dentro para fora, o que
supõe que a comunicação humana se constitui de uma dupla dimensão: externa e
interna. O ato de falar provém de dentro do próprio ser, como uma livre combinação,
e provido de vontade para fazer ou demonstrar esse ato comunicativo. Para isso é
preciso “estar junto, enquanto condição existencial da possibilidade de qualquer
estrutura dialógica do discurso, surge como um modo de ultrapassar ou de superar a
solidão fundamental de cada ser humano.” (RICOEUR, 2000, p. 27).
O que Ricoeur refere nesta passagem não é apenas o estar só, sem o contato
com outras pessoas, mas também o fato de que cada sujeito tem suas experiências
particulares, sem poder transferi-las a outros. Há, contudo, a possibilidade de, pelo
diálogo, contar fatos vividos, com a finalidade de transmitir significado.
Um acontecimento que pertence a uma corrente de consciência não pode
transferir-se como tal para outra corrente de consciência. E, no entanto, algo
se passa de mim para vocês, algo se transfere de uma esfera de vida para
outra. Este algo não é a experiência enquanto experienciada, mas a sua
significação. Eis o milagre. A experiência experienciada, como vivida,
permanece privada, mas o seu sentido, a sua significação, torna-se pública.
A comunicação é, deste modo, a superação da radical não-
comunicabilidade da experiência vivida enquanto vivida. (RICOEUR, 2000,
p. 27).
O que, portanto, merece ser destacado no diálogo é a significação, pois o
evento, enquanto tal, perde-se com o tempo, como o vento que se vai, mas o que se
pretende deixar é o seu significado para que mais pessoas possam interpretar de
maneira diferente, uma vez que minhas experiências vividas não podem ser
repassadas.
14
O evento não é apenas a experiência enquanto expressa e comunicada,
mas também a própria troca intersubjetiva, o acontecer do diálogo. A
instância do discurso é a instância do diálogo. O diálogo é um evento que
liga dois eventos, o do locutor e o do ouvinte. É em relação ao evento
dialógico que a compreensão é homogênea. (RICOEUR, 2000, p. 28).
No diálogo é possível transmitir a mensagem, além de mostrar ou apontar o
objeto referido ali no momento. Torna-se mais fácil de ser compreendido, pois neste
momento estão ali postas as pessoas, que no acontecer do diálogo vão mostrando e
articulando. A compreensão ocorre mediante a troca de informações dos sujeitos
participantes do evento enquanto tal, pois, “ao falarmos a alguém, apontamos para a
única coisa que queremos dizer graças aos dispositivos públicos dos nomes
próprios, demonstrativos e descrições definidas” (RICOEUR, 2000, p. 28).
É pelo diálogo que podemos chegar a uma compreensão adequada, pelo fato
de podermos pedir novamente ao sujeito falante, se algo ficou mal-entendido, ou
seja, quando acontecem mal-entendidos há a possibilidade de corrigir: queria ter dito
isto e não aquilo. É pelo simples fato de estarmos em contato com o ser falante que
isto é possível, ou seja, tirar as dúvidas e deixar claro o que realmente se está
querendo dizer. na escrita isso não é possível, uma vez que o autor do texto não
está mais à disposição para ser questionado, para sanar dúvidas sobre o que de fato
quis dizer.
É pelo diálogo que podemos chegar a um entendimento. O que se pretende
com o discurso pronunciado em dado momento é que se entenda realmente o seu
significado. Para tanto, o sujeito falante escolhe esta maneira de comunicação direta
com o ouvinte, para evitar mal-entendidos. É para isto que serve o diálogo, frente a
frente, para tirar as dúvidas, pois a sua função é evitar mal-entendidos.
Neste sentido, o discurso possui, não somente um mundo, mas o outro,
outra pessoa, um interlocutor ao qual se dirige. Neste último sentido, o
evento é um fenômeno temporal da troca, o estabelecimento do diálogo,
que pode travar-se, prolongar-se ou interromper-se. (RICOEUR, 1990, p.
46).
O evento é a ocasião em que o ser humano, fazendo uso da palavra, procura
dizer e mostrar o que realmente pretende fazer, falando diretamente a outros seres
semelhantes, que estão ali fazendo parte do evento enquanto tal, de modo que
possam, também estes, interromper e tomar a palavra, se porventura o estiverem
15
entendendo ou entrando em um acordo, ou ainda, se alguém se sentir prejudicado
com o pronunciamento de alguém.
Assim sendo, “o evento consiste no fato de alguém falar, de alguém se
exprimir tomando a palavra.” (RICOEUR, 1990, p. 46). O discurso realizado como
evento é este estar ali na presença do outro, no pronunciamento, na vontade de
participar deste ato de troca de mensagens, no qual o que se quer entender, por
meio desta troca de mensagens, é o seu significado, pois a compreensão vai até
uma aceitação de ambas as partes, até ficar homogênea. Quer dizer: a
compreensão deve ser a mesma, do par constitutivo deste evento, até chegar a uma
aceitação igual e final de ambas as partes. “É em relação ao evento dialógico que a
compreensão como significação é homogênea” (RICOEUR, 2000, p. 28).
Significado é o que a escrita quer passar para o leitor, contudo não mais
tendo a presença do outro. A escrita:
Não preserva as marcas linguísticas da enunciação oral, mas também
acrescenta sinais distintivos suplementares como os sinais de citação, os
pontos de exclamação e de interrogação, para indicar as expressões
fisionômicas e gestuais, que desaparecem quando o locutor se torna um
escritor. (RICOEUR, 2000, p. 29).
Nesse contexto quem transporta o significado é a frase, também elaborada e
empregada no discurso oral. A pretensão de passar um significado ocorre em ambas
as partes, no discurso oral e na obra escrita.
A distância também se dá no discurso oral enquanto tal, entre os indivíduos
que fazem parte do diálogo, no momento da troca de significados, pois o sentido de
uma frase dita oralmente também é entendido como “externo” à frase pronunciada. É
por essa razão que a frase escrita tem sua “possibilidade de grande semelhança”,
assim como o discurso oral, graças aos dispositivos gramaticais.
Ajudo o outro a identificar o mesmo elemento para o qual aponto, graças
aos dispositivos gramaticais que fornecem uma experiência singular com
uma dimensão universal do predicado, comunicada pela dimensão genérica
das entidades lexicais. (RICOEUR, 2000, p. 28).
Não é intenção deste autor afirmar que o presente ensaio baste por si mesmo
para eliminar todo o mal-entendido. Sem uma investigação específica da escrita,
16
uma teoria do discurso ainda não é uma teoria do texto. Na medida em que
podemos “mostrar que um texto escrito é uma forma de discurso, discurso sob a
forma de inscrição, então, as condições da possibilidade do discurso são também as
do texto.” (RICOEUR, 2000, p. 35).
No diálogo, ao falarmos e nos referirmos a alguma coisa, mostramos o outro
ser; e isso ocorre por meio da linguagem, possível em virtude da distância entre o
falante e aquilo que estamos a mostrar. Esta distância é originária do discurso oral
enquanto tal, pois isto que estou a falar e apontar é externo a mim, e por este motivo
é que acontece uma distância. Na fala também entendemos o significado externo à
frase, isto é: o que entendemos não é a frase em si, as palavras da frase, mas sim o
que ela quer dizer, o seu significado. É desta maneira que podemos salvar um
discurso por intermédio da escrita. Se, entretanto, a intenção principal pode ser
afetada, isso é conseqüência do fato de termos essa maneira de gravar eventos.
A presença do outro é aquilo que se ganha no discurso oral. É na presença
do outro que se pode tirar todas as dúvidas a respeito daquilo que se esfalando,
pois não se vive solitariamente, mas buscando fora de si a presença do outro. A
solidão não foi bem-aceita ou não é aceitável pelos seres humanos; ela é prejudicial.
A não-presença do outro é a falta, que se procura compensar recorrendo a
formas exteriores, como a escrita, manifestando-se, assim, a um público mais amplo;
projetando para a frente, intenções de colaborar com a história e apontando para as
gerações futuras.
1.2.2 A linguagem como obra
Cada indivíduo é distinto em sua maneira de ser e interpretar. Assim também
cada texto tem ou carrega consigo uma interpretação, que, por sua vez, será
interpretada novamente, a qualquer momento na História, por alguém que saiba ler.
Essa suposta interpretação vem de outra já ocorrida. Ela toma de empréstimo
entendimentos anteriores; depois, o leitor passa a formular a sua própria concepção,
e assim sucessivamente, caracterizando-se, então, o desinteresse pela
compreensão original do autor e sua trajetória. A atenção e o interesse voltam-se
17
para o texto enquanto tal. O interesse é pela obra, que, passando de mão em mão,
de tempo em tempo, por mentes diferentes, sempre proporciona uma nova abertura
na história, deixando suas marcas.
A escrita é a grande responsável por tornar o texto autônomo, frisando-se,
entretanto, que a escrita não é tudo. Depende também da interpretação de cada
indivíduo que sabe ler. A escrita apenas abre caminhos para este início de
discussão que é o mundo da obra, ou o caminho que esta irá percorrer; mas,
procedendo desta maneira, o que se perde e o que se ganha com a escrita da obra?
Essas questões serão apresentadas ao leitor que entrar em contato com a mesma.
O discurso feito obra é o resultado de um trabalho de produção de ações
humanas, que passam de um “campo desconhecido” para um “novo estado de ser”,
a obra feito texto. Expressando em outras palavras, é a saída do campo virtual para
a entrada no campo empírico, no qual as demais pessoas podem entrar em contato
por estarem ao alcance de nossos sentidos. Neste momento estou aqui comentando
o discurso feito obra, ou seja, este, o discurso, o é feito mais oralmente, e sim
constituído empiricamente. É o resultado de um trabalho. Explicitar “uma obra é uma
seqüência mais longa que a frase, e que suscita um problema novo de
compreensão, relativo à totalidade finita e fechada constituída pela obra enquanto
tal.” (RICOEUR, 1990, p. 49).
Uma obra é o montante de um trabalho considerado mais amplo do que
apenas palavras ou uma frase; é o resultado de ambas, constituindo uma união
entre elas, podendo a obra ser de diversos tipos: um poema, um discurso, letra de
uma sica ... enfim, aquilo que tem a pretensão de se tornar maior que uma frase.
A composição do todo podemos denominar de obra. “Enfim, uma obra recebe uma
configuração única, que a assimila um indivíduo e que se chama de estilo.”
(RICOEUR,1990, p. 49).
Este configurar, dar forma externa, é próprio da “persona(ou seja, do perso-
nagem que a molda e configura). É o estilo individual de cada intérprete. “O estilo é
a promoção de um parti pris legível numa obra que, por sua singularidade, ilustra e
enaltece o caráter acontecimental do discurso. Mas este acontecimento não deve
ser procurado alhures, mas na mesma forma da obra.” (RICOEUR, 1990, p. 51).
18
A intenção é mostrar que a forma objetivada, a escrita, também tem sua
condição de possibilidade, que é reconhecida na linguagem enquanto discurso. Esta
passagem da fala para a escrita leva à ação, quando o discurso passa a ser escrito.
Isso no entanto, não quer dizer que venha a cancelar toda a estrutura que aparece
no discurso e sim que a escrita é a sua plena manifestação. “O que acontece na
escrita é a plena manifestação de algo que está num estado virtual, algo de
nascente e incoativo, na fala viva, a saber, a separação da significação
relativamente ao evento.” (RICOEUR, 2000, p. 37).
1.2.2.1 Mensagem e meio: fixação
Este acontecimento, da passagem da fala para a escrita, está relacionado à
mensagem e ao meio em que isso se dá.
O problema da escrita é idêntico ao da fixação do discurso em qualquer
suporte exterior, seja a pedra, o papiro ou o papel, que é diferente da voz
humana. Esta inscrição, que substitui a expressão vocal imediata,
fisionômica ou gestual, é em si mesma uma realização cultural tremenda. O
facto humano desaparece. Agora, as “marcas” materiais transportam a
mensagem. (RICOEUR, 2000, p. 38).
O evento em si desvanece-se com o tempo; ele aparece e também se vai
como o vento; o que se quer fixar não é o evento em si, mas o discurso mediante a
linguagem escrita.
A escrita pode salvar a instância do discurso porque o que ela efetivamente
fixa não é o evento da fala, mas do dito” da fala, isto é, a exteriorização
intencional constitutiva do par “evento-signifição”. O que escrevemos, é o
noema do acto de falar, a significação do evento lingüístico, e não o evento
enquanto evento. (RICOEUR, 2000, p. 39).
O que a escrita visa realmente a salvar é a intenção colocada em um evento,
o seu significado, e não o evento da fala, pois para o dito é possível retornar, é
possível rever o dito no discurso, enquanto o dizer do evento passa como o vento,
desvanece-se. Ricoeur recorre a Hegel no início da fenomenologia do espírito: “O
dizer desvanece-se, mas o dito subsiste; a este respeito, a escrita não representa
nenhuma revolução radical na constituição do discurso, mas cumpre o seu voto mais
profundo” (1989, p. 361), “o destino do discurso é confiado à littera, o à vox
(2000, p. 40).
19
Com a escrita, podemos fixar o dito em algo à parte, possibilitando retomá-lo.
Nasce aí a História, contada e conservada por meio da escrita, desenvolvida segun-
do leis que regem o condicionamento humano. A escrita toma o lugar da fala no
intuito de conservar memórias vivas através do tempo. É este o material que temos.
1.2.2.2 Mensagem e locutor
A relação, contida no diálogo, é substituída pela escrita. Desaparece, por
conseguinte, o estar frente a frente com o sujeito do diálogo, e permanece somente
o seu resultado, pelo fato de ser escrito. Elucidar esse resultado escrito é próprio da
hermenêutica, que, ao ser fixado, isto é, ao ser escrito, o seu conteúdo agora passa
a interessar mais aquilo que o próprio autor quis expressar pela escrita. E expressa-
se da seguinte maneira:
A inscrição torna-se sinônimo de autonomia semântica do texto, que resulta
da desconexão da intenção mental do autor relativamente ao significado
verbal do texto. Em relação ao que o autor quis dizer e ao que o texto
significa. A carreira do texto subtrai-se ao horizonte finito vivido pelo seu
autor. O que o texto significa interessa agora mais do que o autor quis dizer
quando o escreveu. (RICOEUR, 2000, p. 41).
Recorremos ao texto quando o autor não está mais presente para ser
interrogado; esse conceito de autonomia semântica é de significativa importância
para a hermenêutica. O texto nos proporciona outras possibilidades. O trabalho de
deixar gravado por meio da escrita ocorre pelo fato de não vivermos por muito
tempo. Somos seres finitos. Esta tentativa, de mediante a escrita levar adiante a
“coisa do texto”, para que possa projetar por intermédio da interpretação algo
sempre renovado. Cabe lembrar, contudo, que “a coisa do texto não é aquilo que
uma leitura ingênua do texto revela, mas aquilo que o agenciamento formal do texto
mediatiza.” (RICOEUR, 1990, p. 137).
Segue o autor argumentando:
Mais ainda que a escrita, a produção do discurso como obra opera uma
objetivação pelo que ele se dá a ler em condições existenciais sempre
novas. Mas, diferentemente do discurso simples da conversação que entra
no movimento espontâneo da pergunta e da resposta, o discurso enquanto
obra pega em estruturas que fazem apelo a uma descrição e uma
explicação que mediatizam o compreender. (RICOEUR, 1989, p. 362).
20
1.2.2.3 Mensagem e ouvinte
No diálogo a mensagem é dirigida diretamente à outra pessoa, posta ali no
momento do discurso, mas, com a escrita, em um suporte material, lançada ao
mundo, resulta, segundo Ricoeur (2000, p. 42),
um texto escrito dirige-se a um leitor desconhecido e, potencialmente, a
quem quer que saiba ler. Esta universalização do auditório é um dos efeitos
mais notáveis da escrita e pode expressar-se em termos de paradoxo. Por-
que o discurso está agora ligado a um suporte material, torna-se mais espiri-
tual, no sentido de que é liberado da estreiteza da situação face a face.
Nesse sentido, Ricoeur (2000, p. 43) segue afirmando que:
Mais uma vez, a dialética da significação e acontecimento é exibida na sua
plenitude pela escrita. O discurso é revelado como discurso pela dialética do
endereço que é, simultaneamente, universal e contingente. Por um lado, é a
autonomia semântica do texto que abre o âmbito de leitores potenciais e,
por assim dizer, cria o auditório do texto. Por outro, é a resposta do auditório
que torna o texto importante e, por conseguinte, significativo.
Esse procedimento, de transmitir a mensagem na forma escrita, possibilita
mais interpretações, mais caminhos abertos, alarga o círculo de abrangência e inicia
novos modos de comunicação, diferentemente daquela que se somente entre
duas pessoas, no momento da troca de informações. É neste aspecto que o texto
significa e é muito mais que isto; é um momento em que podemos trazer e gravar
diretamente da mente para o papel ou algo parecido e dividir com um público bem
mais numeroso do que o apenas aqui e agora, como ocorre na fala viva. O objetivo
do texto é estar “aberto” a todos os que saibam ler, pois ”o direito do leitor e o direito
do texto convergem numa importante luta, que gera a dinâmica total da interpre-
tação. A hermenêutica começa onde o diálogo acaba.” (RICOEUR, 2000, p. 43).
1.2.2.4 Mensagem e código
Com a literatura os problemas da inscrição e produção tendem a se sobrepor:
Graças à escrita, as obras de linguagem tornam-se tão auto-suficientes
como as esculturas. Não é por acaso que “literatura” designa o estatuto da
linguagem como escrita littera e como incorporada em obras segundo
gêneros literários. Com a literatura, os problemas da inscrição e produção
tendem a sobrepor-se. (RICOEUR, 2000, p. 45).
21
O mesmo se pode afirmar a respeito do conceito de texto, que combina a
condição de inscrição com a textura própria das obras geradas pelas regras
produtivas da composição literária. Dessa maneira, “o texto significa discurso como
inscrito e trabalhado.” (RICOEUR, 2000, p. 45).
A escrita somente designa algo quando gravada em alguma coisa material,
pois com esse procedimento manifestamos a vontade de mostrar algo específico.
Tal é a afinidade específica que reina entre a escrita e os códigos
específicos que geram as obras do discurso. Esta afinidade é tão íntima que
poderíamos ser tentados a afirmar que até as expressões orais das
composições poéticas ou narrativas se fundam em processos equivalentes
à escrita. (RICOEUR, 2000, p. 45).
Prossegue Ricoeur (2000, p. 45): “No sentido alargado de inscrição, a escrita
e a produção das obras do discurso segundo as regras da composição literária
tendem a coincidir, sem que os processos sejam idênticos.”
1.2.2.5 Mensagem e referência
Não sendo mais o discurso feito dialogicamente entre pessoas ali presentes,
mostrando e apontando por gestos o que está acontecendo, então a escrita passa a
comandar este tipo de relacionamento.
A escrita pode levar o leitor para este mundo descrito pelo seu autor, ou seja,
pela leitura o leitor traz para sua mente o mundo distante do texto. A leitura
proporciona isto: perder-se no texto, para poder melhor compreender, à semelhança
da maneira dialogal, na comunicação oral. Evidentemente,
os indicadores ostensivos e, mais ainda, as descrições definidas, operam do
mesmo modo no discurso oral e escrito, fornecem indicações singulares e
as identificações singulares não precisam de se fundar na exibição, no
sentido de uma indicação gestual da coisa referida. (RICOEUR, 2000,
p. 46).
Todo este esforço do homem de colaborar e deixar sua contribuição para a
continuidade da História é que o leva a produzir e exteriorizar (deixar marcas
gravadas no decorrer de sua vida). Este desejo de se distinguir dos demais leva-o a
22
escrever e ser reconhecido como ser de vontades. “Graças à escrita, o homem e
o homem tem um mundo e não apenas uma situação.” (RICOEUR, 2000, p. 47).
Relevante trazer aqui, de passagem, uma das mais importantes contribuições
de Ricoeur. O homem não é apenas uma situação aqui e agora; ele tem o poder de
fazer história pelos seus atos e pelas marcas contínuas vai traçando seu próprio
caminho. Ele é o continuador do próprio homem. Pelas marcas materiais, mais
especificamente pelo texto, podemos abrir mais janelas para o “mundo” e projetar
um maior número de interpretações.
Para mim, o mundo é o conjunto das referências desvendadas por todo o
tipo de texto, descritivo ou poético, que ali, compreendi e amei. E
compreender um texto é interpolar entre os predicados da nossa situação
todas as significações que constituem uma Welt a partir da nossa Umwelt.
(RICOEUR, 2000, p. 49).
É neste sentido mais amplo que Paul Ricoeur lança o seu olhar projetando
uma maior abrangência. É inserindo mais palavras em um texto que vamos
compreendendo o seu significado. É pela leitura, pelo querer compreender, pelo
interesse de entender que colocamos mais palavras, quer dizer: na medida em que
adentramos em um texto, além de entendermos seu significado, sempre
introduzimos mais interpretações, é isto que enriquece o mundo, abrindo mais
caminhos para outros projetos. Aqui, Ricoeur (2000, p. 49) apresenta Heidegger:
“[...] que o que primeiro entendemos num discurso não é outra pessoa, mas um
‘projeto’ , isto é, o esboço de um novo modo de estar-no-mundo.”
Ler e interpretar é uma forma de viver em outra época; é perdendo-me no
texto, isto é, deixando-me levar pelo texto, que me transporto e vivo o texto. É desta
maneira que podemos falar e viver épocas diferentes, pois sem estas marcas
externas, que trazem consigo toda esta pretensão de verdade, não poderíamos
rever fatos ocorridos em várias gerações passadas. Esta é a janela que o texto
proporciona: abertura, um mundo vivo de possibilidades presentes.
Da mesma maneira que o texto libera a sua significação da tutela da
intenção mental, libera também a sua referência dos limites da referência
situacional. Para nós, o mundo é o conjunto das referências abertas pelos
textos ou, pelo menos por agora, por textos descritivos. É neste sentido que
podemos falar do “mundo grego”; já não é imaginar o que eram as situações
para os que lá viviam, mas designar as referências não situacionais exibidas
pelos relatos descritos da realidade. (RICOEUR, 2000, p. 47).
23
Todo este comentário foi tecido na tentativa de esclarecer que não existe
diferença no sentido de intenção, as duas maneiras têm a mesma pretensão: passar
uma mensagem. Podemos todavia, nos perguntar: o que se perde e o que se ganha
ao fazer o discurso na forma escrita? A diferença que existe entre um discurso feito
oralmente, na presença do ouvinte, e o discurso elaborado de forma escrita é
somente a presença do outro. De um lado, interpretando Ricoeur, não sendo mais o
discurso feito oralmente, na conversação, quando se pode falar, ouvir e perguntar
novamente a questão colocada, então ocorre uma perda.
Visto de outra maneira, por meio da escrita, em algo à parte, em que o autor
não está mais ali para ser perguntado, o que se ganha pode ser mais proveitoso; é a
ampliação das possibilidades de interpretação, para além daquela feita pelo próprio
autor. Pode-se afirmar que se ganha mais do que se perde, pois a ampla
interpretação que este ”ser autônomo” (o texto) proporciona é maior do que se
apenas feito dialogicamente para poucas pessoas.
A escrita vem cumprir um papel fundamental em nossa vida. Podemos deixar
gravadas ocorrências da vida do ser humano, para que possam lhe servir de base
para novos caminhos, novos horizontes. Por outro lado, a conversação ganha toda
sua credibilidade, pois podemos argumentar até o ponto de uma compreensão
adequada que satisfaça ambos os lados. Com a escrita, no entanto, torna-se
possível atingir um público bem maior, lançar projetos a longas distâncias, aproximar
a distância e a pertença, trazendo-as para perto, a fim de que se possa entender,
chegando a uma infinidade de novas interpretações.
A escrita merece nossa credibilidade, pois é por intermédio dela que podemos
gravar projetos de vida, tornar e retornar a ver o dito em épocas diferentes da vida,
em que muitas vezes os projetos e as interpretações são vistos com “outros olhos”,
de modo diferenciado, além de enviar comunicados e mensagens a longas
distâncias. Muitas vezes acabamos esquecendo algo importante por não ter sido
gravado, apenas confiando na memorização, que, por vezes, falha. por esse
aspecto a escrita merece toda a confiança. Além disso, ainda seria possível
considerar o fato de não vivermos por muito tempo, a média de vida é extremamente
baixa, tornando impossível dialogar com muitas gerações, a não ser pela escrita.
24
1.3 Concepção e autonomia do texto
O texto assemelha-se a uma partitura musical, na qual o leitor segue a
notação para poder interpretar o conteúdo existente nesta pauta. Compreender o
texto, porém, é colocar mais palavras, é fazer acontecer um novo momento com a
proposta apresentada. As mais diversas interpretações vão perpassando a história
da qual fazemos parte. Vamos produzindo um distanciamento ou deixando
“verdades” soltas pelo caminho, que, em algum momento, tentamos juntar para
achar as explicações. Assim como numa partitura musical, na qual, deixando-se
levar pelas notas musicais vamos interpretar e compreender o conteúdo
apresentado nesta pauta, ou seja, neste texto.
O texto é como uma partitura musical e o leitor como o maestro que segue
as instruções da notação. Por conseguinte, compreender não é apenas
repetir o evento do discurso num evento semelhante, é gerar um novo
acontecimento, que começa com o texto em que o evento inicial se
objetivou. (RICOEUR, 2000, p. 87).
Temos de seguir a “denotação do texto”, posto que a real intenção do autor
escapa ao nosso alcance. Nesse ponto Ricoeur (2000, p. 87) opõe-se claramente à
hermenêutica romântica. “O fato é que o autor o pode ‘resgatar’ a sua obra [...].
Sua intenção é-nos, muitas vezes, desconhecida, por vezes redundante, às vezes
inútil e, outras vezes até prejudicial [...]. Mesmo nos melhores casos, deve avaliar-se
à luz do próprio texto.” É deixar-se levar pelo texto. Refere-se ao mesmo sentido de
seguir a notação, assim como em uma partitura musical.
A reflexão de Ricoeur explicita um movimento que está apenas pressuposto
em Heidegger. Ele não parte do ser para pensar o sentido da linguagem, mas da
linguagem para pensar o ser. Toma o texto como ponto de partida de sua discussão
sobre hermenêutica. O texto, segundo ele, uma vez constituído, adquire vida própria
(autonomia). Ricoeur (1989, p. 142) pronuncia-se desta maneira sobre o texto. “O
texto é todo o discurso fixado pela escrita, que muitas vezes, poderia ter sido
pronunciado, mas por sua vez, se escreve por não ter sido dito.”
É pela escrita que podemos passar do intelecto para o papel aquilo que, em
algum momento da História, gostaríamos de deixar registrado. A escrita permite a
25
fixação ou “gravação”, que vem em auxílio da memória do próprio escritor e pode
constituir-se novamente como ponto de referência para outrem.
Uma vez fixado pela escrita, o texto está sempre à espera de leitores, aberto
para a sua leitura e para novas interpretações; torna-se autônomo, como alguém ou
algo que se separou de seu autor. Está desvinculado de sua origem. Para Ricoeur,
está claro que o texto não é apenas um meio de comunicação, mas possui aspectos
importantes, resultando que é o “paradigma do distanciamento na comunicação. Por
esta razão, revela um caráter fundamental da própria historicidade da experiência
humana, a saber, que ela é uma comunicação na e pela distância. (RICOEUR,
1990, p. 44).
O fator distância, no texto, tem um sentido positivo para Ricoeur, constituindo-
se em instância crítica, graças à interação entre o texto e seu leitor. O
distanciamento não caracteriza apenas o texto, mas também o leitor, que nele
percebe a si mesmo enquanto poder-ser. Quanto maior a distância, mais efeito o
texto produz. Por isso, a distância é importante; ela proporciona uma visão ampla,
um maior ângulo de abertura. É nesse sentido que a distância é importante, porque
de muito perto também não é possível ver direito; é preciso um certo afastamento.
Ao analisar a obra de Gadamer, Ricoeur (1990, p. 40) percebe que
apesar da oposição maciça entre pertença e distanciamento alienante, a
consciência da história eficiente contém, em si mesma, um elemento de
distância. A história dos efeitos é justamente a que se exerce sob a
condição da distância histórica. É a proximidade do longínquo ou, para dizer
a mesma coisa em outros termos, é a eficácia na distância.
Aprofundando essa percepção, Ricoeur procura resolver a questão da relação
entre distância e pertença, juntando as duas num entendimento conjugado. Dessa
forma, a distância pode ser entendida como um fator positivo, pois faço parte da
história. Ao mesmo tempo em que percebo a distância do texto e o meu próprio
distanciamento, faço parte da história e do texto.
Gadamer parece ver um empecilho na questão da distância (olhar negativo),
enquanto Ricoeur confere um enfoque positivo a ela. a distância como a
possibilidade de, no texto, encontrarmos a superação da antinomia, que ainda não
foi resolvida por Gadamer.
26
O texto, segundo Ricoeur (2000, p. 56) é uma realidade distante e autônoma.
Em relação à distanciação, assim argumenta:
A distanciação não é um fenômeno quantitativo; é a contrapartida dinâmica
da nossa necessidade, do nosso interesse e esforço em superar a
alienação cultural. O escrever e o ler tomam lugar nesta luta cultural. A
leitura é o pharmacon, o “remédio” pelo qual a significação do texto é
“resgatada” do estranhamento da distanciação e posta numa nova
proximidade, proximidade que suprime e preserva a distância cultural e
inclui a alteridade na ipseidade.
Na medida, porém, em que o intérprete vai interpretando, ele vai ficando cada
vez mais próximo. O contato com o texto vai abrindo um novo campo de
possibilidades de ser e de poder-ser. São essas possibilidades que Ricoeur no
texto lançado para o mundo. É este campo de abertura de poder vir-a-ser através do
contato com o outro, pois na medida em que eu me elevo ao texto, me dedico a ele,
consigo viver mais intensamente.
O distanciamento, no qual essa hermenêutica tende a ver uma espécie de
decadência ontológica, aparece como um componente positivo do ser para
o texto. Ele pertence primeiramente à interpretação, não como seu
contrário, mas como sua condição. Esse movimento de distanciamento es
implicado na fixação, pela escrita, e em todos os fenômenos comparáveis,
na ordem da transmissão do discurso. Com efeito, a escrita de forma
alguma se reduz à fixação material do discurso: esta é a condição de um
fenômeno muito mais fundamental, o da autonomia do texto. (RICOEUR,
1990, p. 135).
Enfim, em relação ao texto, resta-me argumentar que, após ter sido
objetivado, as idéias do autor não são mais invisíveis, ou melhor, são gravadas em
algum lugar onde podemos tornar a vê-las. E isso graças à distância desse material
ou a autonomia própria do texto.
Reconhecer a autonomia do texto equivale a reconhecer que ele não coincide
com aquilo que o autor quis expressar verbalmente. Traça-se dois caminhos,
totalmente distintos um do outro. Gadamer refere-se a um horizonte de intenções
produzido por um autor, contudo é por meio da escrita que o texto passa a fazer, por
assim dizer, um caminho externo ao seu criador, adquire uma “luz” própria. Ele
transcende quando entra em contato com outras e distintas culturas, ou seja: “[...] o
texto deve poder, tanto do ponto de vista sociológico quanto do psicológico,
descontextualizar-se de maneira a deixar-se recontextualizar numa nova situação: é
o que justamente faz o ato de ler.” (RICOEUR, 1990, p. 53).
27
Ao sair de um determinado campo social, no qual o texto foi escrito, este pode
passar outro entendimento, dependendo de cada leitor, de seu campo hermenêutico:
Em outras palavras, o texto vai passando outras idéias a cada leitor que entra em
contato com ele, pois a interpretação pode se dar de maneiras diferentes, mesmo
sendo vista do mesmo ângulo de abertura. Esta é a possibilidade que temos de um
texto poder sair de um determinado campo social e refazer-se por meio da
interpretação em outro campo social, que percebe as mesmas questões de
diferentes maneiras.
Por ser autônomo, o texto o depende mais de seu autor. Este lhe deu
“vida própria” no momento em que dele se separou. Se o texto adquire autonomia,
então poderíamos afirmar que ele tem uma função? Se autônomo, o que lhe cabe,
nesta distância de seu criador, é levar a mensagem; mas qual é mesmo a função de
um texto? É tentar passar aquilo que lhe foi pré-destinado ou confiado; o
entendimento que ele próprio carrega consigo. Esta abertura que está diante dele, e
não oculto por detrás da escrita. Ricoeur (1989, p. 143) pronuncia-se assim em
relação à autonomia:
Às vezes, gosto de dizer que ler um livro é considerar o seu autor como
morto e o livro como póstumo. De fato, é quando o autor está morto que a
relação com o livro se torna completa e, de certo modo, intacta; o autor
não pode responder, resta apenas ler a sua obra.
Dessa maneira, no transcorrer do curso de vida, “o escrito conserva o
discurso e faz dele um arquivo disponível para a memória individual e coletiva.”
(RICOEUR, 1989, p.143). Agora, o texto interessa mais de que o seu autor. Para
Ricoeur, em relação ao texto, o interessante é que o leitor simplesmente o
compreenda, pois mesmo o autor, depois de ter produzido sua obra, tem outras
idéias a respeito do próprio texto.
Neste momento é preciso retornar à idéia de que
a hermenêutica, tal como deriva de Schleiermacher e Dilthey, tendeu a
identificar a interpretação com a categoria de compreensão e a definir a
compreensão como o reconhecimento da intenção de um autor do ponto de
vista dos endereçados primitivos, na situação original do discurso.
(RICOEUR, 2000, p. 34).
Enquanto Schleiermacher defende que o autor é a peça fundamental, e que a
compreensão do texto é precisamente compreender o seu autor, para Ricoeur basta
28
simplesmente compreender o texto, pois é nele que vamos encontrar as
significações que estão postas. É possível perceber uma divergência entre
Schleiermacher e Ricoeur em relação ao conteúdo da interpretação.
Tendo em consideração que todos nascemos e vivemos dentro de uma
cultura e uma tradição enquanto seres humanos, basta em relação ao texto,
segundo Ricoeur, captar o que nele já existe, que é sua proposta, pois o texto é uma
“autoridade autônoma”, significa que não precisa passar a entender seu elemento
inicial, o autor. A questão da compreensão de si, que na hermenêutica romântica,
ocupara um lugar de destaque, vê-se transferida para o fim, como fator terminal, e
não como fator introdutório.
Nesse sentido, para Ricoeur, o desafio da hermenêutica é simplesmente
compreender o texto como tal, ou mais precisamente, as possibilidades de ser que
dele emergem. Mediante esta proposta, continuamos a fazer interpretações, propor-
cionando abertura para continuação do mundo da obra, ficando o texto responsável
por levar seu projeto a todo ser interessado em ampliar seu campo de visão.
Interpretando Ricoeur, o mundo dos textos forma assim uma “roda-viva”,
sempre percorrendo caminhos distintos, entre personalidades distintas. É uma roda-
viva de interpretações que estes textos carregam consigo, atravessando o tempo, no
qual o “hoje” passa a ficar enraizado na História porque pode ser gravado. Na
medida em que o autor lança este “ser autônomo” o texto na direção de outros
indivíduos, a esperança é que este texto se perpetue, cresça, para poder abrir ou
projetar mais opções de caminhos para quem entrar em contato com ele.
O objetivo do texto, segundo Ricoeur, é exatamente este: a esperança
projetada no tempo, à espera de que alguém venha a se ocupar ou,
metaforicamente dizendo, sombrear-se de seu mais puro intuito: ajudar, indicar
caminhos, iluminar, abrir novos horizontes neste mundo. A distância permite que
isso ocorra; e argumenta com as seguintes palavras:
Mas, se a distanciação a si-mesmo não é uma deformação a combater, mas
a condição de possibilidade da compreensão de si-mesmo face ao texto, a
apropriação é o complemento dialéctico da distanciação. Assim, a crítica
das ideologias pode ser assumida num conceito de compreensão de si que
implica, organicamente, uma crítica das ilusões do sujeito. A distanciação de
si-mesmo exige que a apropriação das propostas de mundo oferecidas pelo
texto passe pela desapropriação de si. (RICOEUR, 1989, p. 364).
29
A distância é um fator positivo. Ela se faz necessária, num sentido de
desapropriação das propostas sugeridas pelo texto, para que eu me identifique
diante do próprio texto, como uma complementação, proporcionando alargamento
de caminhos, maior abrangência, pois de muito perto não é possível ver nitidamente.
Na proximidade nosso ângulo de visão fica mais restrito, impossibilitando, assim, ver
muitas coisas que acontecem ao nosso redor.
O afastamento é importante para que o ângulo de abertura, projetado pelo
texto, seja cada vez maior e proporcione mais possibilidades de interpretação, pois a
distância não é algo que temos de combater; é a grande possibilidade de podermos
enxergar e perceber as coisas, em uma dimensão maior, do que apenas perceber o
que acontece ao nosso redor. O sujeito se identifica nesse processo.
O objetivo deste capítulo é exatamente a concepção de texto em Paul
Ricoeur. É uma tentativa de esclarecimento quanto à distância de um texto em
relação a seu autor e a sua função hermenêutica, ou seja: o caráter de autonomia
que um texto recebe quando se separa de seu autor. Esta separação é feita com o
intuito de mostrar e poder compartilhar seu pensamento com outras pessoas
interessadas em perceber questões de maior amplitude, com vasto ângulo de visão.
A exposição deste tipo de trabalho está sempre sujeita à crítica, e isso é
importante para que um texto se perpetue. A interpretação, de cada sujeito
particular, contribui para que o texto “viva”. Enfim, na construção de um texto ficam
gravadas as “vontades de verdades”, questões estas que sempre vão continuar a
ser revistas por alguém que tiver esta vontade. Ricoeur no texto essa
possibilidade de condição de tomada de consciência e é isto que nos faz viver,
continuar vivendo, pois mesmo o futuro não se constrói no vazio, ele é planejado,
estudado, interpretado, reinterpretado, construído, reconstruído. Vivemos em um
círculo hermenêutico.
30
2 BASES PARA UM CONCEITO DE INTERPRETAÇÃO
2.1
A tradição romântica
Neste capítulo será apresentada a compreensão romântica, particularmente
de Schleiermacher, na tentativa de chegar à intenção do autor. Esta “exploração”, ou
seja, alcançar a intenção do autor, marca a hermenêutica como arte de
compreensão, mais do que a arte de explicação. A explicação em vez de
compreensão vai transformar-se em arte de formulação retórica. O que é
compreender e o que é compreender para os grandes gênios por meio de suas
obras? São perguntas básicas que questionam a hermenêutica da época.
Para podermos apreciar a magnitude do contributo de Schleiermacher para a
teoria hermenêutica, é necessário entender as concepções expostas por dois
grandes eruditos da Filologia, Friedrich Ast e Friedrich August Wolf. Schleiermacher
desenvolveu o seu conceito de hermenêutica a partir de tentativas iniciais
formuladas sob a forma de aforismos (sentença moral breve e conceituosa)
referindo-se logo nas primeiras frases aos dois filólogos. Dessa maneira, a “obra de
Wolf e de Ast torna-se pré-requisito para a compreensão de Schleiermacher”
(PALMER, 1969, p. 83).
Para Ast (1778-1841), o objetivo essencial é captar o “espírito” da
Antiguidade, revelado com nitidez na herança literária. As formas externas da
Antiguidade apontam todas para uma forma interna, quer dizer: uma harmonia nas
suas partes, podendo ser designada o Geist da Antiguidade, isto é, o ponto central
de toda a vida. Seria possível compreender os pontos de vista de tudo aquilo que é
e pode ser se não estivesse de um modo primordial ligado ao Geist? “Só podemos
captar corretamente a unidade do espírito da antiguidade se captarmos as suas
relações individuais em obras antigas, mas o Geist de um autor individual não é
captado se não o colocarmos como um todo.” (PALMER, 1969, p. 85).
A nossa participação comum no Geist permite apreender o significado de
escritos transmitidos desde a Antiguidade. A hermenêutica tende a clarificar a obra
no seu desenrolar interno e o significado de relacionar as partes entre si e
31
precisamente com o espírito da época. Ast divide em três as formas de
compreensão: 1) a compreensão histórica, que se refere ao conteúdo da obra, que
pode ser artística, científica ou geral; 2) a compreensão gramatical, compreensão na
relação com a linguagem, isto é, compreender a obra com a visão total do autor e
total da época; 3) contributo específico de Ast, posteriormente desenvolvido por
Schleiermacher (PALMER, 1969, p. 85).
Na hermenêutica idealista dos românticos Ast e Schleiermacher, os
processos baseiam-se claramente nas operações fundamentais da compreensão.
Ast define a idéia de compreensão como uma reprodução. Ele encara o processo de
compreensão como uma repetição do processo criativo, que reproduz a
compreensão do processo artístico da criação. A interpretação não havia sido
considerada na elaboração da teoria da criação artística. Este foi um dos principais
contributos de Ast para o desenvolvimento da teoria hermenêutica.
Wolf (1759-1824), ao contrário de Ast, pouco se importou com o sistema e
definiu hermenêutica como a ciência das regras. Ele defendia que cada regra
deveria ser obtida por meio da prática, sendo assim mais do que uma pesquisa
teórica. O objetivo da hermenêutica, para Wolf “era captar o pensamento escrito ou
oral de um autor como ele desejaria ter sido captado.” (PALMER, 1969, p. 89).
Wolf argumenta que o intérprete deve estar temperamentalmente apto para
compreender o tema, e assim poder explicá-lo a outros. Compreendemos a nós
mesmos quando explicamos algo para outros. Sem poder explicar a outros a
hermenêutica é impossível. Para Ast, a explicação tem de basear-se na
compreensão e esta distingue-se da explicação. O sentido de uma imagem é
captado diretamente na compreensão. Damos um passo adiante ao oferecer uma
explicação oral ou escrita dessa imagem.
A hermenêutica tem, portanto, inevitavelmente duas vertentes: a
compreensão e a explicação. Digamos que o intérprete deve possuir todo o
conhecimento histórico possível. “A hermenêutica histórica preocupa-se não com
os fatos históricos da época, mas também com um conhecimento da vida do autor,
de modo a chegar a um conhecimento daquilo que o autor sabia.” (PALMER, 1969,
p. 89). Esta sucinta abordagem da hermenêutica de Ast e Wolf ajuda a introduzir a
hermenêutica da época de Schleiermacher.
32
Em Schleiermacher, a hermenêutica transforma-se verdadeiramente numa
arte de compreensão. Como questão geral, ponto de partida, expõe a seguinte
questão: como é que toda ou qualquer expressão linguística, falada ou escrita, é
compreendida?
A situação de compreensão pertence a uma relação de diálogo. Em todas
as situações desse tipo uma pessoa que fala, que constrói uma frase
com sentido, e uma pessoa que ouve. O ouvinte recebe uma série de
meras palavras, e subitamente, através de um processo misterioso,
consegue adivinhar o seu sentido. Este processo misterioso, um processo
de adivinhação, é o processo hermenêutico. É o verdadeiro lugar da
hermenêutica. A hermenêutica é a arte de ouvir. (PALMER, 1969, p. 93).
A compreensão é a arte de poder voltar novamente a experimentar os
processos mentais do autor do texto. Compreender um texto, no entanto, é
compreender algo comparando-o com outra coisa que conhecemos.
Precisamente nesse sentido, Schleiermacher “considerou a compreensão em parte
como uma questão comparativa, em parte como uma questão intuitiva e divinatória.”
(PALMER, 1969, p. 94). Esses processos se complementam como uma espécie de
“saltos”, pois é o lugar da hermenêutica, do círculo hermenêutico, que implica um
elemento de intuição para a compreensão. Gadamer, ao apresentar Schleiermacher,
observa que ele
não fala tanto de incompreensão, mas de mal-entendido. O que ele tem em
vista não é mais a situação pedagógica da interpretação que procura ajudar
a compreensão do outro, do aluno. Ao contrário, nele a interpretação e a
compreensão se interpenetram
1
tão intimamente como a palavra exterior e
interior, e todos os problemas da interpretação são na realidade problemas
da compreensão. (GADAMER, 2008, p. 254).
Enquanto nas hermenêuticas anteriores a não-compreensão requeria a ajuda
de uma hermenêutica especial, Schleiermacher inverte tal concepção e estabelece
como fato fundamental o mal-entendido. Por isso, na hermenêutica rigorosa, deve-se
partir do primado universal do mal-entendido. Além disso, em qualquer processo de
compreensão, para seu sucesso, nunca poderá excluir-se totalmente um resto de
mal-entendido. Nunca se poderá dissipar do texto o não-entender. “O mal-entendido
se produz por si mesmo e a compreensão é algo que temos que querer e de
procurar em cada ponto” (2008, p. 255). Tal sentido é um convite a continuar
interpretando sem cessar.
1
Conferido no original alemão (verweben) (GADAMER, 1990, p. 188). Na edição brasileira (5. ed.)
está equivocadamente traduzido por interpretam.
33
Isso pressupõe que a hermenêutica tem como meta continuar interpretando
para a reconstrução da experiência mental do autor do texto. Ao apresentar o
assunto, nas palavras de Palmer (1969, p. 96), “Schleiermacher pretende
experimentar de novo aquilo que o autor experimentou e não vê a expressão
linguística separadamente do seu autor.”
À maneira de Schleiermacher fica claro que compreender é reconstruir. O
autor insiste no fato de a compreensão hermenêutica pretender apreender a
interioridade de um sujeito, tornando-a transparente. O ato da interpretação era para
Schleiermacher algo de pessoal e criativo, uma reconstituição imaginária da
personalidade do orador ou do escritor. É necessário assimilarmos, contudo, que
este experimentar de novo não precisa ser encarado como psicanálise do autor;
antes se limita a afirmar que a compreensão é uma arte de reconstruir o pensamento
de outra pessoa. “O objetivo não é atribuir motivos ou causas aos sentimentos do
autor (psicanálise), mas sim reconstruir o próprio pensamento de outra pessoa
através da interpretação das suas expressões linguísticas.” (PALMER, 1969, p. 96).
O objetivo é ter acesso àquilo que é significado no texto.
Ter acesso ao significado do texto, segundo Schleiermacher, é penetrar nas
suas entrelinhas. É entender o seu autor. Essa individualidade se expressa no estilo
particular do autor. Por isso, por intermédio de seu estilo, “conhecemos o homem em
toda a sua individualidade; em 1819 Schleiermacher resumiu de um modo
penetrante a importância do estilo: a compreensão total do estilo é todo o objetivo da
hermenêutica.” (PALMER, 1969, p. 97).
Foi propriamente com esse compreender que Schleiermacher levou a cabo o
problema de uma hermenêutica geral considerando o caráter universal da
compreensão e a idéia de um círculo hermenêutico, que se assenta na convicção
de que é possível compreender um texto a partir da totalidade da obra. Heleno
(2001, p. 61) referencia Ricoeur e observa que o “programa hermenêutico de
Schleiermacher é romântico pelo seu apelo a uma relação viva com o processo de
criação e crítico pela vontade de elaborar regras universalmente válidas da
compreensão.”
A busca de uma hermenêutica geral se justifica em Schleiermacher, no seu
projeto de traduzir as obras completas de Platão. A necessidade de apurar
34
instrumentos filológicos e de exegese levaram-no a projetar uma hermenêutica geral
com atenção particular ao discurso. A hermenêutica é vista como partindo das
condições de diálogo. Melhor, a arte de compreender uma expressão linguística, no
“esforço de ir para além da expressão linguística, procurando as intenções e os
processos mentais de seu autor.” (PALMER, 1969, p. 101).
O texto não fala por si mesmo, senão pelo seu autor, a quem o intérprete
deve identificar. O desafio de Schleiermacher é chegar à intenção do autor, como
momento introdutório e privilegiado para a compreensão. em Ricoeur a
compreensão é vista de outra maneira, como veremos mais adiante, porém ambos
se ocupam da linguagem textual para a apresentação de suas propostas.
2.2 A virada ontológica da hermenêutica
O intuito é caracterizar a virada ontológica da hermenêutica a partir de
Heidegger, em que se supera a preocupação metodológica de Schleiermacher, na
qual o compreender deixa de ser visto como procedimento para ser analisado como
modo de ser. Heidegger imprime um giro hermenêutico à tradição fenomenológica
na qual se inscreve. Mediante análise do ser-aí (Dasein) ele obtém uma via de
acesso à questão do ser.
Na hermenêutica tradicional a interpretação era um meio para chegar ao
entendimento. As passagens obscuras eram submetidas a um trabalho
interpretativo, cuja finalidade era torná-las compreensíveis. A interpretação
proporcionava os meios necessários para a compreensão. Ela precedia à
compreensão. A hermenêutica existencial de Heidegger, contudo, inverte essa
relação teleológica. Com ele, primeiro ocorre o compreender e a interpretação será o
desenvolvimento do compreender.
O ponto inicial da investigação de Heidegger é indubitavelmente o problema
do sentido do ser, que sempre é compreendido. Neste viés, o importante está em
alcançar a colocação correta pelo sentido do ser. Heidegger considerava o seu
método fenomenológico e hermenêutico. Nos dois conceitos a preocupação consiste
em trazer à luz aquilo que se oculta no que se mostra, mas que é precisamente o
35
que se manifesta nisso que se mostra. O trabalho heideggeriano visa a interpretar o
que se mostra, isso que se manifesta aí, mas que, no início e na maioria das vezes,
não se deixa ver.
A questão fundamental da Filosofia heideggeriana não é o homem, mas sim o
ser, o sentido do ser. No entanto, o ponto de partida necessário para toda tentativa
em determinar o sentido do ser do ente em geral é o homem enquanto ser-aí ou
Dasein. Entre todos os entes, este é o único de quem é, de fato, exigida uma
solução para o problema do existir. Criando uma terminologia própria, Heidegger
denomina o modo de ser do homem, nossa existência, com a palavra Dasein, cujo
sentido é ser-aí, estar aí. O Dasein é o único ente que pergunta, único capaz de se
questionar sobre o sentido do ser. A essa ontologia Heidegger irá denominar de
hermenêutica. É este, segundo ele, o verdadeiro sentido de hermenêutica: “[...] a
explicitação do solo ontológico sobre o qual se podem edificar“ (RICOEUR, 1989, p.
97) as ciências e deriva a tradicional hermenêutica metodológica.
A interpretação tem a finalidade de ajudar para que a compreensão resulte
transparente, ou seja, para que algo apareça. Por outras palavras, deixar que algo
seja visto como algo. Isso, todavia, “é uma questão de descoberta, ou de
manifestação, do que uma coisa é; trá-la (sic) para fora do esconderijo, para a luz do
dia. A mente não projeta um sentido no fenômeno; é antes o que aparece que é uma
manifestação ontológica da própria coisa.” (PALMER, 1969, p. 133).
Trata-se de aprender a deixar que uma coisa apareça como aquilo que é. A
fala, por exemplo, “não é um poder dado à linguagem por aquele que utiliza, mas
sim um poder que a linguagem a essa pessoa.” (PALMER, 1969, p. 133). Dessa
maneira, a interpretação não se funda na consciência humana, mas nas coisas com
que deparamos que vêm ao nosso encontro. Na verdade, nas palavras de Palmer
(1969, p. 133), o ser não pode tornar-se “um objeto para nós, dado que somos ser
no próprio ato de constituir qualquer objeto enquanto objeto.” E complementa:
A ontologia tem que se voltar para os processos de compreensão e de
interpretação pelos quais as coisas aparecem; tem que descobrir o modo e
a orientação da existência humana; tem que tornar visível a estrutura
invisível do ser-no-mundo. (PALMER, 1969, p. 134).
36
O ser-no-mundo é, assim, o ponto de partida da ontologia hermenêutica. Por
essa razão, a ontologia tem de se tornar fenomenologia, e enquanto fenomenologia
do ser, tornar-se uma hermenêutica da existência, que é o caminho indispensável
para a reposição da questão do sentido do ser. Conforme Oliveira (2006, p. 209),
a análise existencial é o caminho, mediação indispensável para a
interpretação do sentido do ser, uma vez que a característica ôntica do eis-
aí-ser consiste no fato de ser ontológico, isto é, de ser fundamentalmente
compreensão do ser. Porque o eis-aí-ser é, em si mesmo, hermenêutico,
isto é, compreendedor de ser, a ontologia hermenêutica passa pela
hermenêutica do eis-aí-ser, isto é, do homem enquanto revelador do ser. O
ser do eis-aí-ser é fundamentalmente EXISTÊNCIA, isto é, compreensão
prévia do sentido do ser, presença do ser. O conjunto das estruturas
constitutivas do eis-aí-ser é, então, a existencialidade.
O homem nunca é, simplesmente, mas é enquanto ser no mundo. Ele,
desde sempre, encontra-se situado num mundo determinado como hermenêutico.
Ele mesmo é aquele que compreende o ser do homem como revelador do ser. O
homem, enquanto existência, é antes de tudo ser do projeto, ser da possibilidade.
Em outras palavras,
compreendendo seu próprio ser, o homem compreende suas possibilidades.
[...] Não se reduz a alguém que observa do exterior seu próprio ser, mas,
antes, ele se relaciona a si como tarefa de ser. O ser do eis-aí-ser é, assim,
sempre um ser-adiante-de-si-mesmo. (OLIVEIRA, 1996, p. 211).
O compreender hermenêutico surge da preocupação ou do cuidado ante o
mundo que sai ao nosso encontro e nos concerne como possibilidades de ser, como
projeto do que está lançado para adiante, rumo ao futuro, projeto. E nesse entender
hermenêutico o Dasein se lança ao futuro e o abre como possibilidade. Essa é a
hermenêutica existencial exposta por Heidegger.
Se a tradição se mantinha de modo a edificar, por assim dizer, o ser, a
hermenêutica em Schleiermacher havia procurado um fundamento nas condições
comuns a todo o diálogo e “baseava-se na afirmação filosófica da identidade das
realidades internas (Identitätsphilosophie) de modo que, ao compreendermos,
vibrávamos em uníssono com quem falava à medida que íamos compreendendo.”
(PALMER, 1969, p. 135).
37
2.3 A retomada epistemológica
Ricoeur, sem desconsiderar os ganhos da tradição romântica e da virada
ontológica da hermenêutica, propõe a retomada do debate epistemológico. Convém
não esquecer, no entanto que, em Schleiermacher, a hermenêutica transforma-se
em arte de compreensão. A compreensão é a arte de poder voltar a experimentar os
processos mentais do autor do texto. Ter acesso ao significado do texto, segundo
Schleiermacher, é chegar à intenção do autor, como momento introdutório e
privilegiado para a compreensão.
Em Ricoeur (2000, p. 99), a questão da compreensão que, na hermenêutica
romântica ocupara um lugar de destaque, vê-se transferida para o fim, como fator
terminal, e não como fator introdutório. Se a compreensão não se resume ao
aspecto introdutório, “a compreensão tem menos do que nunca a ver com o autor e
sua situação. Procura aprender as posições de mundo descortinadas pela referência
do texto.”
A noção de compreensão heideggeriana do Dasein centra-se na
manifestação do ser-aí, cuja existência é preenchida pela compreensão do ser.
Pertence ao que Ricoeur designa a via curta da ontologia da compreensão. É uma
orientação que afasta as questões relativas à metodologia do compreender e incide
em uma “ontologia do ser finito, para nele reencontrar o compreender, não como
um modo de conhecimento, mas como um modo de ser.” (RICOEUR, 1978, p. 22). A
compreensão do ser, como modo de existir do ser-aí, o se processa de forma
gradativa, mas por meio de uma analítica existencial desse ser mesmo, ou seja, por
uma ontologia direta.
A via ricoeuriana não se apresenta propriamente em oposição a esta
orientação, uma vez que a questão do ser se encontra no horizonte de suas
preocupações. O termo visado da compreensão do ser, todavia, é mediado por uma
epistemologia da interpretação, pelo que Ricoeur sugere designar o seu caminho de
via longa. Para ele, a compreensão do ser opera-se graças a uma reflexão sobre o
sentido do texto. O problema com o qual Ricoeur se debate cai no âmbito epistemo-
lógico e visa a encontrar a forma de conferir um organon aos diferentes campos
disciplinares da investigação, que a interpretação exprime por meio da linguagem.
38
Heidegger visava à compreensão ontológica do ser, constituindo, assim, não
“uma reflexão sobre as ciências do espírito, mas uma explicitação do solo ontológico
no qual se podem edificar as ciências.” (RICOEUR, 1989, p. 97). Desse modo, não
permite esclarecer como se liga a compreensão originária do ser às Ciências
Humanas, afastando do seu caminho os problemas particulares à compreensão de
qualquer dessas disciplinas e à solução dos conflitos que as interpretações
suscitam.
Ricoeur (1978, p. 14), pelo contrário, parte “do plano em que a compreensão
se exerce, isto é, o plano da linguagem”, a fim de descobrir os sinais do seu
enraizamento no ser. Ricoeur partilha com Heidegger a idéia de que a relação com
os acontecimentos se faz em ordem à compreensão das suas possibilidades de ser,
mas afasta-se de Heidegger, em virtude de que este se tornou incapaz de “proceder
ao movimento de regresso que da ontologia fundamental conduziria à questão
propriamente epistemológica do estudo das ciências do espírito.” (RICOEUR, 1989,
p. 101).
Nosso autor vai recusar em Heidegger o fato de ele ter criado uma separação
radical entre a fundação ontológica e o fundamento epistemológico, rompendo
definitivamente com o mundo das ciências. A Filosofia heideggeriana, por se ter
afastado do diálogo com as ciências, tem dificuldade de regressar a elas, correndo o
risco de se fechar em si mesma. para mencionar Gadamer, que sentiu o
problema, preocupou-se em reavivar o debate das Ciências Humanas, procurando
restabelecer a ligação da ontologia com os problemas epistemológicos.
É nessa linha que Ricoeur (1978, p. 14) propõe uma compreensão epistemo-
lógica do ser, não a partir de uma pré-compreensão soberana, mas de uma relação
direta com “o ser privilegiado do Dasein, tal como ele é constituído em si mesmo, e
reencontrar em seguida a compreensão como um dos seus modos de ser.”
A hermenêutica de Ricoeur, ao contrário do que defende Heidegger, pretende
retomar esta dimensão epistemológica que alimentou a fundação da hermenêutica
moderna, sem, contudo, renunciar à ontologia. Designando a posição heideggeriana
por via curta, proporá a sua via longa, com o intuito de renovar as questões
epistemológicas à luz dos contributos contemporâneos.
39
Em lugar de compreender a ação humana como expressão de um modelo
único de significação, Ricoeur atende às diferentes disciplinas que constituem as
Ciências Humanas, procurando encontrar, na discursividade que lhes expressão,
o veículo para uma compreensão mais ampla e completa do homem. As diferentes
interpretações deixam transparecer uma variedade de sentidos da existência, que
põem a descoberto múltiplas modalidades do eu.
2.4 Hermenêutica e educação
Esse binômio hermernêutica-educação remete-nos à obra de Hermann (2002,
p. 10), que leva o mesmo título e vem ao encontro do tema aqui discutido. A autora
aponta para a produtividade desse modo filosófico de pensar, mas, em que medida
a hermenêutica pode oferecer contribuição para a educação? Reconhecemos que
ela “expôs essa abertura em toda a sua radicalidade, apontando a história e a
linguagem como elementos estruturadores de nosso acesso ao mundo e de nosso
aprendizado.”
A educação depara-se com um processo de instabilidades e pluralidades, o
que requer urgência em repensar a formação do ser humano, não mais como
reprodutor de conhecimentos estáticos, mas como um mediador comprometido com
a busca de uma sabedoria que transforma e que nos constitui como seres sociais
responsáveis no contexto em que estamos inseridos. Na busca do saber, e “ao
produzir saber, ao dizer como as coisas são, o homem produz a racionalidade,
evidenciando uma estreita relação entre os dois termos saber e racionalidade.”
(HERMANN, 2002, p. 13).
Nesse sentido alerta Hermann (2002, p. 15) é tarefa da hermenêutica
“desconstruir uma racionalidade que, colocada sob limites estreitos, quer mais a
certeza que a verdade, e demonstrar a impossibilidade de reduzir a experiência da
verdade a uma aplicação metódica, porque a verdade encontra-se imersa na
dinâmica do tempo.” A hermenêutica “é uma racionalidade que conduz à verdade
pelas condições humanas do discurso e da linguagem.” (p. 83).
40
Tal concepção permite que a educação “torne esclarecida para si mesma
suas próprias bases de justificação, por meio do debate a respeito das
racionalidades que atuam no fazer pedagógico.” (HERMANN, 2002, p. 83). A
educação pode interpretar o seu próprio modo de ser plural, assim como um texto,
com posicionamento explícito e provocativo, convoca ao debate e à reflexão.
A hermenêutica pode oferecer uma contribuição valiosa para a educação,
“sobretudo na medida em que permite um auto-esclarecimento de suas bases
teóricas e de suas contradições, e [...] nos lembra que, quando trabalhamos com a
razão, não fazemos apenas ciência.” (HERMANN, 2002, p. 29). A autora buscou
esta referência nas palavras de Gadamer, quando este fala de razão e ciência. Na
objetividade do “fazer ciência” está também sempre presente um modo de ser
histórico e contextual do homem e da linguagem. A produtividade desse modo
filosófico de pensar é um desafio, tanto no agir pedagógico quanto na produção de
novas interpretações.
A experiência educativa, enquanto experiência hermenêutica, coloca-nos em
situações de abertura, expõe-nos ao risco, ao estranhamento e a inesperadas
surpresas. Quebra-se dessa forma a situação habitual e instala-se um mal-estar e
uma certa desorientação. Isso, entretanto, se faz necessário para que aconteça a
retomada e a reorientação, sob um modo hermenêutico de fazer educação, no qual
o processo formativo é uma busca ininterrupta.
O sentido da educação não encontra sua excelência quando se entrega
completamente às técnicas e aos procedimentos metodológicos, mas quando aceita
a própria experiência educativa, acolhendo e valorizando o que nela existe de
imprevisível. Esse modo de fazer a educação por parte da hermenêutica amplia as
possibilidades compreensivas, superando a tradição de um modelo único e
universalmente padronizado. Na abertura, proporcionada pela perspectiva
hermenêutica, está a possibilidade de ampliação de horizontes.
Nessa discussão, porém, independentemente da concepção metodológica, a
linguagem é suposição fundamental, uma vez que o conhecimento a ser apreendido
ou construído não passa de um conjunto de enunciados linguísticos. Apreender um
conteúdo exige captar sua linguagem, que é comum entre aquele que aprende e
41
aquilo que lhe é ensinado. Além de se constituir uma necessidade para a relação
entre aluno e teoria ou conhecimento, a linguagem comum revela-se a própria forma
de relação entre professores e alunos.
O entendimento em torno de uma linguagem comum, em sala de aula, é
fundamental não apenas para que os alunos possam aprender, mas, sobretudo,
para que tenham condições de construir o conhecimento. A linguagem é o espaço
no qual professores e alunos realizam sua experiência do conhecer. É, nesse
sentido, condição fundamental para a viabilização do ensino e da aprendizagem.
Aprender supõe vínculos e se realiza por meio do diálogo e do entendimento.
Numa educação realizada dialogicamente, na perspectiva hermenêutica, o
próprio educando é o sujeito de sua educação, materializada na relação com o
outro, professores e alunos. O outro estimula ou desperta para a possibilidade de
uma libertação ou um novo nascer, desperta para uma nova reflexão. Ao dar-se
conta de suas limitações diante do outro, o educando percebe quanto ainda precisa
aprender.
Na situação dialógica “educar-se com o outro”, nenhum dos interlocutores
posiciona-se como superior. Esse sempre novo nascimento provoca uma
descentralização do eu diante do outro. É assim que surgem as novidades, ou seja,
um conhecimento que até então não estava disponível entre os envolvidos. Novas
explicações e sentidos são reconhecidos ou atribuídos, possibilitando ao aluno
construir seus referenciais e auxiliando no crescimento e na continuidade do próprio
fazer educativo.
Esse educar-se com o outro supõe a escuta do outro, como quem escuta uma
música e com ela sintoniza. No diálogo autêntico os parceiros não podem pretender
prever o que nele sucederá. Uma palavra puxa outra que, por sua vez, remete ao
mundo da vida, onde cada qual está envolvido. O diálogo não é apenas um modo de
mediação e de constituição da identidade humana; é também um espaço e um meio
para a revelação do ser, do outro e do mundo, sem, contudo, esgotá-los, nem
engessá-los. Um diálogo autêntico supõe sintonia.
Nesse intercâmbio sintonizante e permanente entre alunos-alunos, alunos-
professores, professores-professores, abrem-se possibilidades para se chegar a um
42
acordo. Na procura do acordo está implicada a tarefa de julgar, de discernir os
argumentos e contra-argumentos dos parceiros do diálogo. A hermenêutica, na arte
do diálogo, proporciona isso, no entanto não diálogo que se realiza plenamente,
de modo a anular totalmente a individualidade dos interlocutores.
À luz da linguagem, converte-se em tarefa imprescindível, para o professor,
preocupar-se com a individualidade e a diversidade subjetiva de seus alunos e de
suas condições de serem sujeitos e interlocutores de diálogo. No momento em que
ocorre o reconhecimento de uma nova maneira de conceber a aula, o diálogo e a
investigação tornam-se condição de possibilidade do ensino e da aprendizagem.
Dessa forma, a hermenêutica na educação converte-se em “cunha” para abrir fendas
nos hábitos que encobrem o sentido de bem-viver, abre clareiras no cotidiano, como
um despertar do sono.
Para o diálogo em sala de aula, o texto pode ser essa “cunha”. É ele que
proporciona abertura ao desconhecido por intermédio da interpretação. Como
elemento estruturador da aprendizagem, expõe a abertura e convida à reflexão. O
leitor, evidentemente, tem papel fundamental nesse processo. É pela leitura que se
vai para além do que é dito. Constrói-se novamente um sentido, pois “faz parte da
significação de um texto estar aberto a um número indefinido de leitores e, por
conseguinte, de interpretações.” (RICOEUR, 2000, p. 43). O diálogo é possibilitado
pelo texto, tornando a reflexão enriquecida.
É essa “abertura” que a hermenêutica vem agregar na educação. Trata-se de
possibilidades, não de certezas, mas no sentido de “provocar” os alunos ao debate,
preparando-os para “enfrentar os imprevistos, o inesperado e a incerteza, e
modificar seu desenvolvimento, em virtude das informações adquiridas ao longo do
tempo. É preciso aprender a navegar em um oceano de incertezas em meio a
arquipélagos de certezas.” (MORIN, 2005, p. 16).
A incerteza é um estímulo à coragem. Trabalhar dessa maneira é lançar-se a
outros “mares”, até então não navegáveis. Nesse sentido, possuo o mapa, o
trajeto de se fazer em águas profundas e desconhecidas. Isso traz desconforto e
preocupações, pois não sei do resultado, ele não me é adiantado, fica como tarefa,
de sempre se fazer, no andar juntos.
43
Pensar a educação dessa maneira é produtivo e compensador, e pensar a
hermenêutica na educação é transformador. Perceber-se a si mesmo como um outro
amplia horizontes. A linguagem, enquanto relação, comunica e humaniza. E “não
pensamento ou projeto que não tenha sempre a forma de linguagem, no sentido
de que todo pensar ‘já é um falar interior’, valendo-se de recursos linguísticos.”
(RUEDELL, 2000, p. 210).
A hermenêutica na educação ajuda a pensar melhor teorias e ações e, em
consequência, amplia “o sentido da educação para além da prevalência da
normalidade técnico-científica, cuja origem se encontra na racionalidade moderno-
instrumental.” (HERMANN, 2002, p. 83). Esta autora adverte, porém:
[...] a necessidade de autocompreensão do processo educativo não pode
significar uma pretensão de total transparência. É
uma ilusão considerar
que podemos clarear todas as motivações e interesses que subjazem à
experiência pedagógica. A hermenêutica nos mostra que nem tudo aquilo
que é desconhecido é transformado em conhecido, como pretendia o
conceito iluminista de progresso. (HERMANN, 2002, p. 88).
2.5 Pedagogia do texto
Com pretensão de validez, dirige-se perguntas a Ricoeur: com o campo
educacional, como se atravessa a pedagogia do texto? O que isso poderia agregar à
educação? A proposta de Ricoeur possui implicações pedagógicas? São questões
pertinentes que nos desafiam neste pensador.
Neste cenário, o que afinal propõe Ricoeur a respeito do texto? Ele quer
entender a interpretação como um processo dialético que inclui os dois momentos, a
explicação e a compreensão. É preciso explicar mais para compreender melhor,
repetirá ele várias vezes. O processo de interpretação é entendido assim como uma
relação dialética entre a compreensão e a explicação, e é nesse movimento em que
o leitor se dirige ao texto, com sua pré-compreensão, suas conjecturas, que vai
progredindo na leitura do texto, validando, refazendo, dando forma às suas
expectativas.
Dessa maneira, o leitor passa de uma compreensão superficial a uma mais
aprofundada, encontrando novos elementos para direcionar seu entendimento e
44
dar-lhe objetividade. Então, compreender o quê? Como referimos, não se trata de
compreender a intenção do autor; esta ficou para trás. Compreender não é
encontrar-se com o autor ou colocar-se em seu lugar, com a experiência que ele
teria tido e expressado no texto. O que compreende o leitor? Pela mediação do texto
por meio de sua leitura e trabalho de interpretação, pelo entendimento do texto, o
leitor compreenderá a si mesmo e ao mundo em que vive. O que se interpreta num
texto é o seu mundo, “o mundo do texto”, a “coisa” do texto, segundo Gadamer, esse
mundo que não está atrás dele, mas o “que ele explana diante de si.” (RICOEUR,
1989, p. 131).
A hermenêutica vai desempenhar um papel primordial no pensamento de
Paul Ricoeur em virtude de sua opção por uma abordagem indireta de seus objetos.
Ricoeur escolheu o caminho hermenêutico, ou seja, interpretativo, uma das marcas
distintivas de seu pensar. Para ele, o se pode atingir o ser humano diretamente,
mas pela via da interpretação, é que ele busca o humano. É pelas mediações que
o ser humano se compreende.
O homem é conhecido por meio de sua linguagem. Este é o eixo fundamental
do pensamento de Ricoeur: linguagem-interpretação, assim se conhece o homem
em sua curta consciência e sua visão crítica do mundo. Para Ricoeur, no entanto, o
sentido da linguagem situa-se além de um pensamento estritamente crítico. Ela
se esclarece suficientemente numa referência ao símbolo, ou seja, “[...] mediante o
símbolo, a possibilidade de ver um retrato humano: no símbolo uma palavra
escondida.” (FRANCO, 1995, p. 49).
Mas antes precisou o homem descobrir que as pegadas, os traços
impressos em algum suporte material podiam simbolizar para algo outro que
eles mesmos podiam ser lidos. então sinais impressos no mundo físico
puderam transformar-se em símbolos, elemento fundante do mundo
humano da significação. (MARQUES, 2003, p. 62).
No entendimento de Ricoeur, a linguagem é um texto que carrega uma
palavra que precisa ser ouvida, pois é do sujeito existente, e ela é reveladora. Cabe,
portanto, descobrir os limites de uma abordagem, o que significa discutir as
possibilidades. Das possibilidades chegamos a uma síntese, que no pensamento de
Ricoeur é sempre adiada, aparece apenas como horizonte, como uma idéia-limite. O
que aparece nele como marca é o conflito, a luta pela mediação e a arbitragem entre
45
as interpretações concorrentes. Tal dialética significa possibilidade de sair da
estreiteza objetivista. Do contrário, “o ego se prende em certa circularidade consigo
mesmo. O ego precisa reconhecer e se inspirar nos los objetivos para poder sair
de si próprio.” (FRANCO, 1995, p. 51).
Não é por acaso que ele privilegia o símbolo, o mito, a metáfora, a narrativa.
Porque para ele esses elementos são exatamente os elementos que não se
esgotam, que não podem ser completamente apropriados. Subsiste então o
mistério. Mas, obviamente, pode-se repetir a máxima de Ricoeur: o símbolo
provoca o pensamento. Ou então parafraseá-lo: o mistério estimula a vida e
a filosofia... (FRANCO, 1995, p. 51).
de se ter um começo, ou melhor, um ponto de partida. Se o começo de
Ricoeur não é absoluto, isso não significa que ele não tenha um certo começo. Ele
começa precisamente com os símbolos. Se alguém perguntasse se os
símbolos são anteriores à linguagem, a resposta poderia ser uma:
certamente não. Quem começa com os símbolos não começa em um lugar
mágico anterior à linguagem. Mas quem começa com os símbolos começa
levando em conta todo o processo registrado na própria linguagem.
(FRANCO, 1995, p. 54).
Falar de símbolo é dizer que uma “coisa” recebe um significado especial e se
torna simbólica. O símbolo evoca uma multiplicidade de coisas, todas elas de
importante significado. Ele é praticamente inesgotável. Seu falar enigmático tem uma
função criadora e criativa, fazendo emergir novos mundo possíveis. “Os símbolos
são a saída que a humanidade obteve para dizer algo que não poderia ser dito de
outra forma, por ser muito complexo, muito enigmático, ou muito traumático e
existencial.” (FRANCO, 1995, p. 69). Então, a produção humana faz sentido. É um
material fundamental para compreender o ser humano. A tarefa da Filosofia é refletir
sobre os sentidos e os significados desse material.
Nos ensinamentos de Ricoeur a linguagem é um texto a interpretar. Está
um material precioso para a educação e reeducação do ser humano. Ricoeur chega
a essa conclusão pela via de sua investigação filosófica da vontade. Descobre que a
reflexão tem acesso ao mal por sua expressão simbólica, isto é, pela mediação dos
símbolos com que as culturas apreendem, exprimem e dão forma a este mal. Afinal,
cabe à hermenêutica a tarefa de decifração dos símbolos, que apontam para outra
coisa, um sentido que só se revela pela interpretação.
46
Pergunta-se então: afinal, o que é interpretar? “[...] é a decifração do sentido
velado no sentido manifesto, é pôr à luz a pluralidade de sentidos.” (CESAR, 2002,
p. 44). É trazer o mundo do texto ao mundo da ação, elucidando-o, desvelando o
mundo proposto pelo texto, enunciando um novo discurso sobre ele, a partir dele,
tornando-o novamente acontecimento. Convém recordar que é a partir dele, com
base nele. Não se trata, porém, adverte Ricoeur (1989, p. 159), de se impor ao texto,
mas de se subordinar a ele. “Interpretar é tomar o caminho aberto pelo texto, pôr-se
em marcha para o oriente do texto.” É preciso ser capaz de se entregar a ele, aceitar
pôr-se na direção de pensamento proposto pelo texto.
É nesse caminho, guiado pelo texto, que o homem se compreende pela
narrativa, pelo relato de suas experiências. Afinal, “a experiência é algo que
acontece aos seres humanos possuidores de vida e de história.” (PALMER, 1969, p.
233). É desta forma que ele apreende os acontecimentos, como uma totalidade de
experiências significativas. A experiência humana que é trazida à linguagem
encontra-se desde sempre antecipada e simbolicamente mediatizada; todo o real
se apresenta à maneira de um texto que pede para ser lido.” (RICOEUR, 1989,
p. 12).
Considerando a própria ação do homem como um texto, a leitura se torna a
condição “enquanto dimensão constituinte da pedagogia, propõe a leitura do mundo
da sala de aula, a fim de que sejam desvelados os muitos sentidos que se fazem
presentes e interagem.” (BOUFLEUER, 1998, p. 77). Com isso rompem-se barreiras
e possibilitam-se autonomia e emancipação. É isso que a hermenêutica do texto
busca oferecer, uma forma de desvelamento daquilo que está obscuro, em que
possamos não apenas “ver” aquilo que está posto ao nosso redor, mas “enxergar” o
que de real existe no nosso cotidiano. O texto possibilita esse entrever.
O texto é considerado o paradigma da ação, que projeta um mundo e se
dirige a uma série de leitores possíveis que, por sua vez, criam ou elaboram novos
textos, dando continuidade ao processo texto-leitura-ação. Esse tipo de ação “deixa
um 'rastro', põe a sua 'marca', quando contribui para a emergência de tais
configurações, que se tornam os documentos da ação humana.” (RICOEUR, 1989,
p. 196, grifo do autor).
47
Uma Pedagogia centrada na hermenêutica do texto e no diálogo favorece um
maior desenvolvimento cognitivo e moral ao aluno e a todo aprendiz. Ela possibilita
uma integração no tempo, com identidade dinâmica, na qual a visão de si e dos
outros podem confrontar-se, sem uma anulação. A esperança é que no futuro, e não
apenas no presente, o texto fique sempre aberto a novas experiências e novas
interpretações ou reinterpretações.
Dessa maneira, referindo-se ao campo educacional, a escola, como prática
hermenêutica, “deve ser vista como um texto escrito por muitas mãos, as de quantas
as instâncias sociais nela atuantes, [...] para que nela possam reposicionar-se os
educadores/educandos.” (MARQUES, 1996, p. 129). Falar em re-posionar-se é
remeter-se a uma reflexão do que temos aí no campo da educação. Nesse contexto,
Ricoeur vai reafirmar que o trabalho de reinterpretação e de reapropriação nos ajuda
a pensar de um modo mais imaginativo as nossas experiências.
Pensar a educação como possibilidade de experiência e sentido, este é o
propósito de Larrosa (2004). Para ele, a experiência é um saber que não se pode
separar do indivíduo concreto em quem encarna, pois ninguém pode aprender da
experiência do outro. A experiência não pode ser repassada. Esta é subjetiva,
particular, é própria do sujeito existente. A experiência é o que nos passa, o que nos
acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca.
A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos
acontece. Poderíamos afirmar que tudo o que se passa está organizado para que
nada nos aconteça.
Se a experiência não é o que acontece, mas o que nos acontece, então
pessoas que enfrentam o mesmo acontecimento não têm a mesma experiência. O
acontecimento é comum, mas a experiência é individual, irrepetível. Dessa maneira,
não está como o conhecimento científico, fora de nós, mas a experiência vai se
construindo e destruindo no viver. Tudo o que faz impossível a experiência faz
também impossível a existência.
A ciência moderna, com a idéia de uma ciência experimental, em que a
experiência se converteu em experimento, já não é o que “nos acontece”, mas o que
“acontece”. Temos uma enorme inflação de conhecimentos objetivos, técnicos, e
48
uma profunda pobreza dessas formas de conhecimento. A vida humana, segundo
Larrosa (2004), se fez pobre e necessitada, e o conhecimento moderno não é o
saber ativo que alimentava e guiava a existência dos homens, mas algo que flui no
ar, estéril e desligado dessa vida em que já não pode encarnar-se.
Larrosa (2004) faz uma clara distinção entre experiência e experimento. Se o
experimento é genérico, afirma ele, a experiência é singular. Se o experimento
produz acordo entre os sujeitos, a experiência gera diferença e pluralidade. Na
experiência, trata-se mais de uma dialogia, que funciona heterologicamente, e não
de uma dialogia que funciona homologicamente. Se o experimento é repetível, a
experiência é irrepetível. Se o experimento é preditível e previsível, a experiência
tem sempre uma dimensão de incerteza que não pode ser reduzida. A experiência
não é o caminho até um objetivo previsto, mas uma abertura para o desconhecido,
para o que não se pode antecipar, nem pré-ver, nem pré-dizer.
A partir de tais conceitos cabe a pergunta: o que estamos a proporcionar na
educação? Experiência ou experimento? Mais do que responder a essas questões,
é necessário retomar a discussão de Ricoeur sobre o texto para identificar a
contribuição que ela traz para a importante distinção de Larrosa (2004) entre
experiência e experimento. Essa distinção está, de certa forma, contemplada na
concepção do texto de Ricoeur, para quem o texto, enquanto obra objetiva e
autônoma, não deixa de ser um importante experimento, historicamente produzido e
situado. Na medida, porém, em que a leitura do texto é sempre uma interação entre
o leitor e o mundo do texto, o ato da leitura é o momento da experiência, em que o
sujeito toma consciência de si mesmo, do que efetivamente é e de suas
possibilidades de ser, abertas pelo texto.
2.6 Interpretação do texto e compreensão de si
Nesse pico procura-se mostrar como a compreensão do texto é
simultaneamente o conhecimento de si, porque o conteúdo a ser interpretado são as
possibilidades que se abrem diante do texto e que se identificam como
possibilidades de ser do próprio intérprete (potencial pedagógico). O intérprete
49
sente-se desafiado em suas potencialidades. Nesse cenário, quanto mais leituras,
mais possibilidades.
O texto, enquanto potencial pedagógico, permite identificar a presença do
outro em vários momentos de seu percurso. Enseja destacar o si mesmo como um
outro, indicando a diversidade desse outro, que é constitutivo da identidade do
sujeito humano enquanto poder-ser. Estando a nossa frente ou ao nosso lado, o
outro também está em nós. Nesse sentido, diverso de mim, o outro sou eu mesmo.
Outro, mas o mesmo. O mesmo, mas outro. O Si-mesmo como um outro, título da
obra de Ricoeur (1991).
podemos compreender o que é o sujeito humano se identificarmos de que
maneira esse outro lhe está presente. O pensamento de Ricoeur caracteriza-se
muito por sua relação com as filosofias do sujeito. Para ele, entretanto, o sujeito não
é dado de início: ele pode ser obtido por mediações, principalmente pelas obras
da cultura, nas quais se reconhece. Um sujeito que não é o “eu” de uma
representação dada a si mesmo como ponto de partida, mas um sujeito que se
descobre como “si mesmono ponto de chegada de um percurso, pela retomada
reflexiva de suas ações.
Entre o ponto de partida e o ponto de chegada temos, entretanto, o tempo,
que decorre e que transforma. Esse tempo é constitutivo do sujeito, a partir da
própria temporalidade do existir humano, pois é a sua vida e sua história. No tempo,
o sujeito, de certa forma, nunca mais será o mesmo do ponto de partida, mas, de
certa forma, é, contudo, o mesmo. Essa é uma maneira de interpretar e
compreender a si-mesmo, enriquecido, ao longo do tempo, pela relação com o outro.
Ricoeur (1991) mostra como o texto pode levar-nos ao diálogo com o outro,
tentando compreendê-lo em sua alteridade própria, sem reduzi-lo ao mesmo. Um
diálogo com as formas mais tradicionais e de uma abertura ao diferente. Talvez por
esse tipo de visada, a obra de Ricoeur se tornando uma referência, convidando-
nos a pensar adiante, mais e melhor.
O texto proporciona possibilidades de comunicação com o outro. Por meio do
texto o ser se interpreta a si próprio; a história da vida não é em si mesmo um dado
puro e adquirido, mas é sempre obtida por “mediação” ou “refiguração”, mediante as
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narrativas pelas quais o “si” ou a comunidade se definem. As vidas vão
correspondendo a esse emaranhado de histórias de vida. Apenas o trabalho da
reinterpretação e da reapropriação nos ajuda a evitar a alternativa duvidosa de uma
simples repetição.
Ricoeur pretende por intermédio da hermenêutica, potencializar o fosso
existente entre vida e literatura, estabelecendo entre elas estreito relacionamento
por meio da leitura. Na sua concepção, o exemplo narrado é interpretado, avaliado e
se manifesta na vida cotidiana. Dessa forma, pela linguagem, escrita e narrada, o
homem se mediatiza e, pela sua capacidade de imaginação, faz com que novos
mundos refaçam a compreensão de si mesmo. Este poder surge das significações
emergentes da linguagem, cuja dimensão imaginativa opera como pedagógica.
Não podemos nos esquecer que a narratividade carrega consigo “estratégias”
de persuasão ou de sedução que os narradores impõem aos leitores. Por isso,
adverte Marques (2003, p. 10): “não se apegue à letra desta escrita, mas dela faça
trampolim para sua imaginação criadora.” A narrativa, não sendo neutra, sempre nos
leva a uma reavaliação de nosso mundo. A imaginação narrativa permite pensar
possibilidades outras.
A nossa relação com o real não é direta, porque sempre mediatizada por
“configurações” e “refigurações”. São estas que dão sentido à vida humana. A
transmissão e a tradição assumem papel importante no processo da imaginação, na
sua reformulação da realidade. entra o “mundo do texto” que, por intermédio da
leitura, penetra em nosso mundo, esclarecendo-o e transformando-o. Isso ocorre de
tal maneira que a linguagem (sob a figura do texto) não apenas descreve a
realidade, mas também a revela e cria ou recria. Podemos exemplificar essa
capacidade da linguagem de criar um mundo lembrando nosso costume de falar
[...] do mundo grego, do mundo bizantino. Este mundo podemos dizê-lo
imaginário, no sentido de que é presentificado pelo escrito, no lugar em que
o mundo era apresentado pela fala; mas este imaginário é, ele próprio, uma
criação da literatura, é um imaginário literário. (RICOEUR, 1989, p. 145).
Nesse processo, a imaginação projeta o dinamismo da ação narrativa. Nas
palavras de Ricoeur (1989, p. 11), “a espiral hermenêutica concretiza-se na solução
narrativa para a problemática temporal, por uma passagem da pré-compreensão do
51
mundo da ação à transformação do mundo do leitor (mudando o seu agir).” É a
imaginação que proporciona a possibilidade de mudar, por meio da literatura, por
intermédio do “si” doado em forma de ação.
A função narrativa é entendida por Ricoeur como a ambição de refigurar a
nossa condição histórica e de elevá-la ao estatuto de consciência histórica,
emergindo como uma mediação entre o futuro, como horizonte de expectativas, o
passado, como tradição, e o presente, como surgimento. Fica a concepção de
presente e de ação como uma iniciativa, como a possibilidade de começar, de dar
um curso novo aos acontecimentos. É, porém, “necessário mexer com eles, atuar
sobre eles para que se revelem.” (MARQUES, 1996, p. 38).
Segundo Ricoeur (1989, p. 12), em Do texto à ação, a hermenêutica move-se
ao nível da “onto-semântica” todo o ser é linguagem , retomando o modelo de
revelação da teologia, que esclarece que a compreensão é uma escuta do ser. A
ontologia referida por Ricoeur, todavia, emerge do “poder-fazer” e situa-se no interior
da cultura em constante refiguração. Para poder-fazer, a imaginação é importante.
“Direi por meu lado, na linha de uma hermenêutica a partir do texto e da ‘coisa’ do
texto, que é, em princípio, à minha imaginação que o texto fala, propondo-lhe os
‘figurativos’ da minha libertação.” (RICOEUR, 1989, p. 138).
O dizer de um hermeneuta é um redizer que reativa o dizer do texto. É por
meio da imaginação que podemos jogar com os possíveis práticos; é nesse
imaginário que podemos experimentar o nosso poder de fazer. O texto nos ajuda a
estabilizar os começos e a fixar os contornos dos fins provisórios das ações. Isso
requer do leitor uma visão de mundo e uma nova avaliação de si próprio. Para haver
uma transformação do agir humano, entretanto, precisa o homem repensar o sentido
de seu agir. O texto é, nesse sentido, uma ajuda que está a seu dispor. Auxilia o
leitor a fazer as suas escolhas.
O texto constitui-se, de certa forma, em modelo e laboratório de
experimentações. Cada obra é uma variação imaginativa sobre o tempo, é uma
verdadeira viagem nesse tempo. A história de um personagem, por exemplo, de
maneira comparável com a nossa própria história, é pautada no mundo, mas é vivida
por cada um nesse tempo real. Em se dizer ou escrever, “conte aí a sua historia”, “é
52
sempre a mesma história”, e pelo simples fato de que fazem parte de nosso
cotidiano, levando-nos a pensar a importância do texto, do ato de narrar, pois me
vejo como eu mesmo.
A função do ato de escrever é reveladora e transformadora em relação à
nossa prática no cotidiano; reveladora no sentido de que vem trazer mais luz para
nos ajudar em nossas experiências; transformadora no sentido de proporcionar
mudança de vida. A construção, o ato de escrever, lançado à distância, propicia um
mundo imaginário, que atua em nossa vivência cotidiana. É este cruzamento entre o
mundo da obra e o mundo do leitor que amplia a subjetividade deste último, função
que abre condições de possibilidades alargadas para si mesmo. “Essa a história dos
que escrevem. E os que, podendo fazê-lo, resistem ao escrever, terão, eles também,
sua história?” (MARQUES, 2003, p. 73).
O comportamento e a vivência do intérprete são modificados na medida em
que a obra ecoar em seu pensamento. O mundo o envolve pelo seu encontro com a
obra que lê. Não há confronto entre os dois mundos, pois a obra, por si só, não pode
atualizar-se; jogada ao mundo, ela visa muito mais do que construir um mundo
autônomo, visa a nossa forma de habitar o mundo. Este é o poder de revelação e de
transformação que a obra proporciona. O potencial da obra de construir o mundo e
os valores da nossa existência persiste independentemente dos problemas, dos
constrangimentos e da época em que surgiu.
Fica a tarefa, como sempre tema, como sempre a se fazer, que o ser humano
se compreende como resultado, como projetado, como um poder-ser. Nas palavras
de Ricoeur (2000, p. 106), essa tarefa, esse poder de poder-ser, nos é “alargado na
sua capacidade de autoprojeção, ao receber do próprio texto um novo modo de ser.
É o texto, com seu poder universal de desvelamento de um mundo que fornece um
Si mesmo ao Ego.” O texto, ao se revelar, incomoda como um potencial contido, que
possibilita estimar a si-mesmo como um outro e o outro como a si-mesmo.
Com essa sugestão, que incomoda muitas idéias adquiridas, pretendo
finalizar. Mas será que não somos destinados a sermos incomodados em
nossas idéias recebidas, se é que queremos permanecer atentos às novas
formas de conflitos e projetar os traços novos da própria ação? Nosso modo
de tomar parte nos “gemidos da criação” consiste em escrever nossa
esperança numa leitura atenta e numa ação inovadora. (RICOEUR, 1990,
p. 172).
53
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A discussão da linguagem é, atualmente, uma das principais características
da Filosofia. Mais do que um tema preferido, a linguagem é a perspectiva de todos
os temas e reflexões das Ciências Humanas, e da Filosofia, em particular. É o que
se designa comumente por “giro linguístico”, a passagem de um modo de fazer
Filosofia a partir do primado da subjetividade para uma Filosofia que se legitima a
partir da linguagem.
Também as discussões de Ricoeur situam-se nesse contexto. Tomando a
linguagem como ponto de partida, nele fica claro que o sujeito, livre e consciente,
pode, no máximo, ser apenas a meta, somente alcançável ao final do percurso pela
linguagem. Quando será esse final ou quando será possível atingir essa meta?
Talvez se deva concluir que o caminho é interminável. Nunca vamos conseguir sair
da linguagem, e a tarefa de sua interpretação jamais termina. Nada se constitui e se
mostra sem ela.
Ricoeur começa a elaboração de sua hermenêutica com a antinomia
encontrada em Gadamer, a oposição entre distanciamento alienante e pertença.
Seu propósito é superar essa antinomia, revelando o sentido positivo do
distanciamento. Este não é apenas o que deve ser superado, porque sempre é
condição da compreensão e da interpretação. A dinâmica da linguagem traz em si
mesma a marca do distanciamento. Mesmo no discurso oral, afirma Ricoeur, um
caráter absolutamente primitivo de distanciamento, uma vez que o diálogo, de certa
forma, foge ao controle de seus interlocutores. Em vez de eles o conduzirem, é o
diálogo que os conduz. É a primazia do dito sobre o dizer. O que, portanto, merece
ser destacado no diálogo é o significado.
54
O significado é o que a escrita quer transmitir para o leitor. A pretensão de
passar um significado é a razão de ser das duas formas da linguagem, do discurso
oral e do texto escrito. O que entendemos não é a frase em si, as palavras que a
compõem, e sim o que ela quer dizer, o seu significado. Nesse sentido, a frase
escrita assemelha-se ao discurso oral, graças aos dispositivos gramaticais que
podem ser empregados.
É desta maneira que podemos salvar um discurso, por meio da escrita,
tornando-se, assim, a escrita, a manifestação do discurso. Não uma diferença
fundamental em relação à intenção. As duas formas a escrita e a fala têm a
mesma pretensão: passar uma mensagem. Há, certamente, outras aproximações
possíveis, bem como diversas distinções a considerar. Neste estudo, porém, o
interesse e a atenção voltaram-se prioritariamente para a linguagem escrita, o texto
e sua interpretação.
A escrita lança a obra ao mundo, conferindo-lhe autonomia. Assim
constituído, enquanto autônomo, o texto ou sua leitura têm uma função própria. Na
concepção de Ricoeur, a função do texto é proporcionar uma abertura de visão e de
pensamento.
Procuramos, no primeiro capítulo, esclarecer minimamente as duas formas da
linguagem a fala e a escrita sob um aspecto que as identifica a igualdade em
relação ao significado. Também nesse tópico explicitamos a autonomia do texto e
destacamos o sentido positivo do distanciamento. A distância é a grande
possibilidade de podermos enxergar e perceber as coisas em uma dimensão maior,
sem reduzi-las ao “aqui e agora”.
No segundo capítulo apresentamos bases para um conceito de interpretação.
Compreender é reconstruir, argumenta Schleiermacher. Este Filósofo insiste no fato
de a compreensão hermenêutica pretender compreender o que o sujeito
experimentou, tornando-a transparente. Ter acesso ao significado do texto, segundo
Schleiermacher, é entender nas entrelinhas, e entender estas é entender o autor do
texto. É o esforço e o desafio de chegar à intenção do autor. A interpretação,
segundo este autor, proporciona os meios necessários para a compreensão.
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A hermenêutica existencial de Heidegger inverte essa relação teleológica.
Segundo Heidegger, primeiro é necessário compreender, e a interpretação será o
desenvolvimento do compreender. A questão fundamental da Filosofia
heideggeriana não é o homem, mas o ser, o sentido do ser. O ponto de partida
necessário para toda tentativa de determinar o sentido do ser do ente, no entanto,
em geral é o homem enquanto ser-aí ou Dasein. O trabalho heideggeriano visa a
interpretar o que se mostra, isso que se manifesta aí, mas que, no início e na maioria
das vezes, não se deixa ver. E nesse compreender hermenêutico o Dasein se lança
ao futuro e abre possibilidades.
Ricoeur, de maneira contrária à questão da compreensão, como fator
introdutório, desloca-a para o fim, como fator terminal. Ricoeur vai recusar em
Heidegger o fato de ele ter criado uma separação radical entre a fundação
ontológica e o fundamento epistemológico, rompendo definitivamente com o mundo
das ciências, correndo o risco de se fechar em si mesma. Em oposição à via curta”,
Ricoeur proporá a sua via longa”, com o intuito de renovar as questões
epistemológicas à luz das discussões da linguagem.
Na concepção de Ricoeur, a linguagem é um texto, o qual carrega uma
palavra que precisa ser ouvida. Não se trata, porém, diz ele, de se impor ao texto, e
sim de se subordinar a ele. Interpretar é tomar o caminho aberto pelo texto, é pôr à
luz a pluralidade de sentidos que dele emergem. A nossa relação com o real não é
direta, porque sempre mediatizada por “configurações” e “refigurações”. São estas
que dão sentido à vida humana. entra o “mundo do texto”, que, por meio da
leitura, entra em nosso mundo, esclarecendo-o e transformando-o. Isso ocorre de tal
maneira que a linguagem (sob a figura do texto) não apenas descreve a realidade,
mas também a revela e cria ou recria.
De que forma a educação pode receber essa contribuição hermenêutica? A
hermenêutica é uma racionalidade que conduz à verdade pelas condições humanas
do discurso e da linguagem. De acordo com Hermann (2002), isso permite que a
educação torne esclarecidas para si mesma suas próprias bases de justificação, por
meio do debate a respeito das racionalidades que atuam no fazer pedagógico. A
educação pode interpretar o seu próprio modo de ser plural, assim como um texto,
detentor de um posicionamento explícito e provocativo, convoca ao debate e à
56
reflexão. Dessa forma, a hermenêutica na educação converte-se em “cunha” para
abrir fendas nos hábitos que encobrem o sentido de bem-viver, como um despertar
do sono. Pensar a hermenêutica na educação é transformador, e leitura ou
interpretação do texto é condição constituinte da Pedagogia.
A hermenêutica favorece pensar a educação como possibilidade de
experiência e de sentido. Se a experiência não é o que acontece, mas o que nos
acontece, então pessoas que enfrentam o mesmo acontecimento não fazem a
mesma experiência. O acontecimento é comum, mas a experiência é para cada
sujeito a sua, irrepetível. O texto, enquanto obra objetiva e autônoma, não deixa de
ser um importante experimento, mas, na medida em que a leitura do texto é sempre
uma interação entre o leitor e o mundo do texto, o ato da leitura é o momento da
experiência, em que o sujeito toma consciência de si mesmo, do que efetivamente é
e de suas possibilidades de ser, como um potencial ainda contido, mas já projetado.
Enfim, no lugar de compreender a ação humana como expressão de um
modelo único de significado, a hermenêutica de Ricoeur atende às diferentes
disciplinas que constituem as Ciências Humanas, procurando encontrar, na
discursividade que lhes expressão, o veículo para uma compreensão mais ampla
e completa do homem. As diferentes interpretações fazem transparecer uma
variedade de sentidos da existência, que põe a descoberto múltiplas modalidades do
eu.
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