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Em Schleiermacher, a hermenêutica transforma-se verdadeiramente numa
arte de compreensão. Como questão geral, ponto de partida, expõe a seguinte
questão: como é que toda ou qualquer expressão linguística, falada ou escrita, é
compreendida?
A situação de compreensão pertence a uma relação de diálogo. Em todas
as situações desse tipo há uma pessoa que fala, que constrói uma frase
com sentido, e há uma pessoa que ouve. O ouvinte recebe uma série de
meras palavras, e subitamente, através de um processo misterioso,
consegue adivinhar o seu sentido. Este processo misterioso, um processo
de adivinhação, é o processo hermenêutico. É o verdadeiro lugar da
hermenêutica. A hermenêutica é a arte de ouvir. (PALMER, 1969, p. 93).
A compreensão é a arte de poder voltar novamente a experimentar os
processos mentais do autor do texto. Compreender um texto, no entanto, é
compreender algo comparando-o com outra coisa que já conhecemos.
Precisamente nesse sentido, Schleiermacher “considerou a compreensão em parte
como uma questão comparativa, em parte como uma questão intuitiva e divinatória.”
(PALMER, 1969, p. 94). Esses processos se complementam como uma espécie de
“saltos”, pois é o lugar da hermenêutica, do círculo hermenêutico, que implica um
elemento de intuição para a compreensão. Gadamer, ao apresentar Schleiermacher,
observa que ele
não fala tanto de incompreensão, mas de mal-entendido. O que ele tem em
vista não é mais a situação pedagógica da interpretação que procura ajudar
a compreensão do outro, do aluno. Ao contrário, nele a interpretação e a
compreensão se interpenetram
1
tão intimamente como a palavra exterior e
interior, e todos os problemas da interpretação são na realidade problemas
da compreensão. (GADAMER, 2008, p. 254).
Enquanto nas hermenêuticas anteriores a não-compreensão requeria a ajuda
de uma hermenêutica especial, Schleiermacher inverte tal concepção e estabelece
como fato fundamental o mal-entendido. Por isso, na hermenêutica rigorosa, deve-se
partir do primado universal do mal-entendido. Além disso, em qualquer processo de
compreensão, para seu sucesso, nunca poderá excluir-se totalmente um resto de
mal-entendido. Nunca se poderá dissipar do texto o não-entender. “O mal-entendido
se produz por si mesmo e a compreensão é algo que temos que querer e de
procurar em cada ponto” (2008, p. 255). Tal sentido é um convite a continuar
interpretando sem cessar.
1
Conferido no original alemão (verweben) (GADAMER, 1990, p. 188). Na edição brasileira (5. ed.)
está equivocadamente traduzido por interpretam.