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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA BRASILEIRA
DOUGLAS SOARES DE MIRANDA
A Guerra em Nome de Deus: Uma Análise Crítica do De
Gestis Mendi de Saa, de José de Anchieta
São Paulo
2007
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2
DOUGLAS SOARES DE MIRANDA
A Guerra em Nome de Deus: Uma Análise Crítica do De
Gestis Mendi de Saa, de José de Anchieta
Dissertação apresentada ao departamento
de Letras Clássicas e Vernáculas da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo
para obtenção do título de Mestre em
Literatura Brasileira.
Orientador: Prof. Dr. Eduardo de Almeida
Navarro
São Paulo
2007
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3
FOLHA DE APROVAÇÃO
Douglas Soares de Miranda
A Guerra em Nome de Deus: Uma
Análise Crítica do De Gestis Mendi de
Saa, de José de Anchieta
Dissertação apresentada ao departamento de
Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo para obtenção do
título de Mestre em Literatura Brasileira.
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr.
Instituição: Assinatura:
Prof. Dr.
Instituição: Assinatura:
Prof. Dr.
Instituição: Assinatura:
4
DEDICATÓRIA
À Solange, companheira de longa estrada, ao
Victor e ao Carlos Eduardo, as jóias mais preciosas da
minha vida, com amor, admiração e gratidão pelo
carinho, compreensão e apoio ao longo do período de
elaboração deste trabalho.
Ao Jônatas, in memoriam, pelas palavras amigas
nos difíceis momentos, pessoais e acadêmicos, que vivi
ao longo do Mestrado.
5
AGRADECIMENTOS
À Solange e aos meus filhos, Victor e Carlos
Eduardo, por me aturarem;
Ao Prof. Dr. Eduardo de Almeida Navarro, por três
motivos: pela oportunidade, pelas sábias e
esclarecedoras orientações e, sobretudo, pela amizade
oferecida nos momentos de angústia e de dificuldade;
À banca qualificadora, por tornar o meu trabalho
mais preciso;
Ao velho e bom mestre, professor Diógenes, das
difíceis épocas de Senai, por ter-me feito acreditar que
eu era capaz de transformar a minha realidade quando
todos pareciam, sumariamente, me condenar ao
fracasso;
Ao Preto e ao Hugo, os últimos dos moicanos;
À Marlene, amiga de Mestrado, por elevar-me
quando tudo parecia desmoronar;
Ao Tião e à Sandra, por me receberem em
Votuporanga;
Ao amigo Marcos Antonio Gabriel, pelo estímulo;
Ao Arão, pelos comentários sobre o Apocalipse;
Ao amigo Napoleão, pela correria de última hora;
À Silvia Pierre, pela tranqüilidade de Caraguá,
Ao amigo Antonio Carlos, pelas leituras
compartilhadas;
À Eliana, Casa de Portugal, pelos livros sugeridos;
À Luci, pela “Literatura Ocidental” e pelos florais
relaxantes;
Às doces e belas pessoas que facilitaram o meu
caminho.
6
Emudeçam apologistas e
acusadores de profissão: não
se escutem as vozes da
afeição e do ódio e num
século em que tanto
alardeiam rigores de crítica
histórica, seja também o
Jesuíta julgado com
imparcialidade. Examinem-se
friamente as leis que o regem
e as ações que pratica e por
elas se dê a sentença.
Francisco Rodrigues, 1917
7
RESUMO
Análise histórico-literária do poema épico De
Gestis Mendi de Saa, escrito por José de Anchieta no
século XVI.
Sob a perspectiva de uma época de reforma e
contra-reforma religiosa, procurou-se mostrar como as
guerras figuradas, neste poema, pelo padre Anchieta
imitam os discursos de autoridades como Santo
Agostinho e Tomás de Aquino e o direito canônico
vigente do Concílio de Trento.
Neste embate de bandeira católica contra
bandeira protestante em terras brasílicas, os índios
serão figurados não como inimigos dos portugueses,
mas, por serem pagãos, do próprio Deus de Roma que,
por meio do herói desta epopéia, busca a inserção
deles no mundo cristão.
Palavras-chave: Poema épico. José de Anchieta.
Guerras religiosas. Concílio de Trento. Índio.
8
ABSTRACT
A historical and literary analysis of the epic poem
“De Gestis Mendi de Saa”, written by José de Anchieta
in the 16th century.
Under a perspective of religious Reformation and
Counter-reformation period, this work tried to
demonstrate how the depicted wars in this poem by the
priest José de Anchieta imitate the speeches of the
medieval authorities Saint Augustine and Saint
Thomas Aquinas – and the canonical law of the Council
of Trent time.
In this struggle between catholic and protestant
flags in Brazilian soil, the Indians are considered as
non-enemies of the Portuguese, but for being gentile,
also of the very roman God that by means of the hero
of this epic pursues their insertion through the Christian
world.
Key-words: epic poem. José de Anchieta. religious
fights. Council of Trent. Indian.
9
SUMÁRIO
1 – Introducão-----------------------------------------------------------------------------------------------10
2 – De Gestis Mendi de Saa: recepção da obra e diferentes olhares sobre o índio--------
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------15
2.1 – Publicações e autoria------------------------------------------------------------------------------15
2.2 – Padre Armando Cardoso: as “justas” razões de Mem de Sá---------------------------23
2.3 – Azevedo Filho: Anchieta – humanista da Contra-Reforma------------------------------26
2.4 – Florestan Fernandes: a reação indígena à conquista colonizadora-------------------28
2.5 – Baêta Neves: o saber articulado ao poder---------------------------------------------------33
2.6 – Breve comparação---------------------------------------------------------------------------------39
3 – O combate entre Deus e o Diabo (as virtudes do herói e as paixões viciosas dos
seus inimigos) nas diferentes partes da obra. Uma análise crítica----------------------------45
3.1 – Sobre as guerras de Mem de Sá: a conversão pela política----------------------------84
3.2 – A figuração da guerra justa (a imitação de discursos autorizados)--------------------95
3.3 Reminiscências de uma Idade de Ouro paradisíaca nos relatos dos Grandes
Descobrimentos.------------------------------------------------------------------------------------------106
3.3.1 – A origem e o desenvolvimento de uma história do Paraíso no Ocidente--------106
3.3.1.1 – O Paraíso na América de Quinhentos--------------------------------------------------115
3.3.2 – O Paraíso e sua diferente representação em De Gestis Mendi de Saa----------119
4 – O Catolicismo Guerreiro no De Gestis Mendi de Saa-------------------------------------121
5 – Conclusão---------------------------------------------------------------------------------------------137
6 – Bibliografia------------------------------------------------------------------------------------------- 143
10
1 – Introdução
Nosso objetivo, nesta dissertação, é o de contribuir, ainda que de forma diminuta,
com a pesquisa acadêmica, resgatando do olvido a obra De Gestis Mendi de Saa, de
José de Anchieta, ainda pouco lida, e até mesmo desconhecida, entre os profissionais
das Letras.
Publicada no ano de 1563, colocou-se dúvida se sua autoria pertence ao padre
José de Anchieta. Em que pesem opiniões contrárias a essa autoria, os críticos são
quase unânimes em apontá-lo como autor desta epopéia.
Sendo assim, tentamos mostrar no capítulo 2 do De Gestis Mendi de Saa,
intitulado “recepção da obra e diferentes olhares sobre o índio,” um pouco da história e
das divergências em torno desta obra de Anchieta.
Para tanto, em 2.1 Publicações e autoria,” mostramos, por exemplo, que a
publicação saída pelo Arquivo Nacional, em 1958, não era a primeira edição do poema,
como se acreditou naquela época. Tal edição fora feita a partir de um manuscrito
encontrado em Algorta no ano de 1928, mas que guardava diferenças textuais
significativas em relação à primeira edição, preservada em peça única na Biblioteca de
Évora, sem que os editores do Arquivo Nacional tivessem essa informação quando
publicaram o “De Gestis” no final da década de cinqüenta.
Na tentativa de aclarar melhor a discussão sobre como o “De Gestis foi lido e
analisado, partimos da opinião de quatro autores escolhidos por nós, dentre vários que
lemos, mas que fugiam à discussão que pretendíamos fazer. Não deixamos, no
entanto, de relacionar, na bibliografia final, todos os textos lidos e consultados sobre
esse poema de Anchieta.
11
Desta forma, seguem, respectivamente, 2.2 ”Padre Armando Cardoso: as “justas”
razões de Mem de Sá; 2.3 “Azevedo Filho: Anchieta humanista da Contra-Reforma”;
2.4 “Florestan Fernandes: a reação indígena à conquista colonizadora” e 2.5 Baêta
Neves: o saber articulado ao poder”.
Confrontamos, em 2.6 ”Breve comparação”, as diferentes opiniões sobre os
indígenas e a legalidade, ou não, de convertê-los ou colonizá-los, respectivamente, à
fé católica e à Coroa portuguesa ao longo do século XVI.
Ressalte-se, entretanto, que essa discussão, no caso de Florestan Fernandes, não
se deu a partir da sua leitura específica da obra De Gestis Mendi de Saa, mas que,
aproveitadas por nós, as reflexões deste autor sobre o contato indígena com os
portugueses que aportaram no Brasil do século XVI foram bastante pertinentes e
aplicáveis ao nosso trabalho de pesquisa.
Dando seqüência à nossa dissertação, no capítulo 3 “O combate entre Deus e o
Diabo (as virtudes do herói e as paixões viciosas dos seus inimigos) nas diferentes
partes da obra. Uma análise crítica”, analisamos os quatro livros que compõem o “De
Gestis”, tentando mostrar que, desde o início do poema, Anchieta figura uma guerra
religiosa entre Deus e o Diabo, representados respectivamente pelos portugueses
católicos, ou melhor, pelo governador-geral, herói da epopéia anchietana, e pelos índios
pagãos, antagonistas principais do herói nos três primeiros livros, além dos franceses
calvinistas, que entram em combate contra os portugueses no último livro.
O estudo da obra, importante ressaltar, foi feito a partir da tradução do Pe.
Armando Cardoso e buscamos mostrar, ao longo da nossa análise, que Anchieta atribui
virtudes ao herói Mem de Sá, que representante de Cristo nesta batalha, e vícios aos
12
inimigos dos portugueses, ora comparando-os a animais, no caso dos índios, e ora,
tanto os índios quanto os franceses calvinistas, vinculando-os ao domínio do demônio.
Terminada parcialmente a análise, fez-se necessário o acréscimo de sub-títulos a
este capítulo. Assim, completamo-lo com 3.1 “Sobre as guerras de Mem de Sá: a
conversão pela política”; 3.2 “A figuração da guerra justa (a imitação de discursos
autorizados)” e 3.3 “Reminiscências de uma Idade de Ouro paradisíaca nos relatos dos
Grandes Descobrimentos”.
Em “Sobre as guerras de Mem de Sá: a conversão pela política”, nossa intenção
foi contar um pouco, do ponto de vista histórico, as guerras de Mem de e os motivos
da resistência indígena às ões do governador. A conversão pela política representa o
desencanto de Nóbrega e dos outros jesuítas pelo método, inicialmente empregado
pela Companhia de Jesus em terras brasileiras, denominado por Alcir Pécora de
conversão pela via “amorosa”, mas que não acarretou, para os jesuítas, no campo da
evangelização, muitos frutos junto aos índios.
Uma vez que, para Aristóteles, a poesia é diferente da história, porque o
historiador escreve o que aconteceu e o poeta o que poderia ter acontecido,
Por tal motivo a poesia é mais filosófica e de caráter mais elevado que a história,
porque a poesia permanece no universal e a história estuda apenas o particular.
O universal é o que tal categoria de homens diz ou faz em tais circunstâncias,
segundo o verossímil e o necessário.
1
Procuramos mostrar em “A figuração da guerra justa (a imitação de discursos
autorizados)”, que Anchieta imita
2
o discurso de autoridades como Santo Agostinho e
1
Aristóteles, Arte Poética.São Paulo: Martin Claret, p. 43.
2
Para Aristóteles, op. cit., p. 45, a missão do poeta consiste mais em fabricar fábulas do que versos, visto que ele é
poeta pela imitação e porque imita as ações. Embora lhe aconteça apresentar fatos passados, nem por isso deixa de
13
Santo Tomás de Aquino e, também, a regulação do direito canônico vigente, ao tratar a
guerra contra os inimigos dos lusos. Ele não narra, portanto, as guerras históricas de
Mem de Sá, aquilo que, de fato, aconteceu, mas o que poderia ter acontecido, o
possível, segundo a verossimilhança ou a necessidade.
E, fechando o capítulo, em “Reminiscências de uma Idade de Ouro paradisíaca
nos relatos dos Grandes Descobrimentos”, pretendemos mostrar que o sonho de
reencontrar o Paraíso Terrestre sempre esteve no imaginário dos povos antigos e que,
imbuídos do imaginário dos autores da Idade Média sobre este Paraíso, nossos
descobridores das Américas, diante de uma realidade que se revelava preenchida por
símbolos paradisíacos, já conhecidos dos relatos medievais, terão o sentimento de tê-lo
reencontrado.
Todavia, de forma sucinta, mostramos, também, que não é essa a imagem
paradisíaca - de uma natureza bela e de homens vivendo em estado de felicidade - a
que encontraremos no “De Gestis, de José de Anchieta.
No último capítulo da nossa dissertação, “O Catolicismo Guerreiro no De Gestis
Mendi de Saa
3
, focamos nossa análise não mais no embate que se deu nos três
primeiros livros entre os portugueses, representantes de Cristo, e os índios, escravos
do demônio. Na última parte da epopéia, os principais antagonistas dos portugueses
cristãos serão os calvinistas franceses, ou melhor, os protestantes heréticos. Tentamos
mostrar que a luta que se trava, figurada por Anchieta, prende-se a uma ação teológico-
política da guerra, ou seja, é política, por causa da invasão francesa, mas, sobretudo,
ser poeta, pois nada impede que a existência de alguns dos acontecimentos ocorridos seja verossímil ou possível e,
por isso o poeta seja o criador deles.
3
A expressão Catolicismo Guerreiro foi cunhada por Eduardo Hoornaert no livro “Formação do Catolicismo
Brasileiro”.
14
teológica, em nome da religião, representando o embate da bandeira católica contra a
bandeira protestante e que, por conta disso, Anchieta aplica as determinações do
Concílio de Trento, ao figurar essa guerra de religião contra religião, reafirmando os
dogmas da Igreja Católica e da doutrina cristã, que se encontravam, na época,
abalados com o avanço do Protestantismo.
15
2 – De Gestis Mendi de Saa : recepção da obra e diferentes olhares sobre o índio
2.1 – Publicações e autoria
Em 1958, veio a público, através do Arquivo Nacional, o texto De Gestis Mendi de
Saa, acompanhado da tradução vernácula pelo padre Armando Cardoso. Acreditou-se,
naquela época, que essa fosse a primeira edição da obra, ocorrida graças ao
manuscrito, encontrado em Algorta,
4
da epopéia escrita por José de Anchieta.
Esse manuscrito é o único conhecido do De Gestis e, apesar de o levar o
autógrafo de Anchieta, parece, segundo a afirmação do padre Armando Cardoso, ter
todo o aspecto de cópia antiga do século XVII:
Foi transcrito provavelmente de um rascunho de Anchieta, guardado no arquivo
nacional, o mesmo que serviu de base à cópia limpa oferecida pelo autor a
Mem de Sá e mandada por este à família em Portugal. Se não foi anterior, é
pelo menos da época em que Simão de Vasconcelos foi encarregado da
publicação das poesias latinas do Apóstolo do Brasil ( a . 1643 ).
5
No entanto, quando da sua publicação, em 1958, o padre Armando Cardoso
desconhecia que havia na biblioteca de Évora um exemplar impresso, também o único
até hoje conhecido, do De Gestis Mendi de Saa, mas pôde, posteriormente, constatar,
através de cópia microfilmada, que a obra fora impressa em 1563, em Coimbra, pelo
4
Em 1928, ao visitar essa pequena aldeia, próximo de Bilbao, capital da Biscaia, na Espanha, o padre Florentino
Ogara, inaciano, surpreendeu-se ao encontrar esse manuscrito na casa da senhora Feliza Zuazola, descendente da
família Anchieta. Como esse documento foi ter às mãos daquela senhora não está perfeitamente esclarecido.
Todavia, acredita-se que foi levado para a Península Ibérica por algum jesuíta, logo após a extinção, por obra do
marquês de Pombal, da Companhia de Jesus em Portugal e nas colônias portuguesas.
5
Padre Armando Cardoso. Introdução Histórico-Literária, Cap. IV, p. 62. In ANCHIETA, Joseph S. J. “De Gestis
Mendi de Saa”, Edições Loyola, São Paulo, 2.ª ed., 1986.
16
tipógrafo régio João Álvares, e também que, naquela edição, havia a supressão do
episódio da morte de Fernão de Sá, filho do governador, na batalha contra os índios do
Espírito Santo.
6
Esse poema visava à celebração dos feitos de Mem de Sá, terceiro governador-
geral do Brasil e, segundo Viotti:
É possível que o pequeno volume ( in 8.º, 49 folhas de 26 linhas ) se destinasse,
não ao público em geral, mas constituísse uma edição limitada, para
distribuição entre amigos e parentes.
7
Fosse, então, pela raridade do exemplar ou pelo anonimato com que surgiu, isso
parece, em parte, explicar o porquê de o poema não ter atraído a atenção dos
estudiosos até os dias atuais, quando, mesmo entre os profissionais das Letras, é
quase desconhecido.
Talvez pela raridade do exemplar ou devido à edição limitada, o De Gestis Mendi
de Saa não teve grande repercussão nem mesmo entre seus contemporâneos e, por
6
Em relação ao manuscrito encontrado em Algorta, de onde veio à luz a edição de 1958, a edição de 1563 apresenta
a omissão de 640 versos referentes ao livro I, empresa de Fernão de contra os índios do Espírito Santo. É, na
opinião de Armando Cardoso, o defeito principal daquela edição. Explica que a supressão deu-se por motivo de
economia, para diminuir o volume da impressão. Não é, no entanto, opinião unânime. Jorge Alves Osório, em
“Considerações em torno do De Gestis do Pe. José de Anchieta - Cruzamentos Literários”, artigo publicado In Actas
do Congresso Internacional, “Anchieta”, pp. 681-703, afirma que a ausência de tais versos, que culminam na morte
de Fernão de Sá, não compromete a estrutura do poema em termos literários, mas o compromete para o seu
significado no contexto cultural do tempo. Ou melhor, pela narrativa celebrativa do capital de heroicidade acumulado
no passado histórico, sobretudo se relacionado com a motivação do serviço religioso, não seria de excluir a hipótese,
diz o autor, de que um tal sucesso tivesse também atuado como estímulo para a tentativa da ostentação pública,
mediante o impresso, de um feito que trazia uma mais-valia óbvia para a família dos Sás. Desta forma, pondera que
em nada interessava aos Sás o corte desses versos na edição impressa de 1563. Ao contrário, aventa a hipótese de
que houve no manuscrito uma versão posterior alargada. Outra opinião em torno da supressão desses 640 versos é a
de Américo da Costa Ramalho, da Universidade de Coimbra, em “Os Versos de Francisco de e a autoria do
poema “De Gestis Mendi de Saa”, quando diz que, ao mandar imprimir o “De Gestis”, Francisco de Sá, irmão de
Fernão de Sá, numa disputa de filhos, onde o filho vivo procura ficar em vantagem, omitiu os 640 versos que
terminavam com a morte do irmão, mas exaltavam também o seu heroísmo em terras brasílicas. Afinal, o poema era
em honra do pai e não de Fernão de Sá. A omissão dos versos se deve também à acusação de imprudência que Mem
de sofria em Portugal pela morte do filho Fernão de Sá, ou porque seria vergonhoso ao povo português a morte
do herói cristão diante dos índios.
7
Viotti, Hélio Abranches. Anchieta: O apóstolo do Brasil.. São Paulo: Edições Loyola, 2.ª ed., 1980, p.311.
17
conta disso, autores que, ainda hoje, ao se referirem à obra, dizem que tal poema é
atribuído ao padre José de Anchieta
8
ou colocam em dúvida a sua autoria, como fez
Serafim Leite, em 1963, na revista Brotéria com o artigo “O Poema de Mem de e a
pseudo-autoria do Padre José de Anchieta”, tendo sido refutado, com veemência, na
revista Verbum do mesmo ano pelo padre Hélio Viotti.
Viotti afirma que Luís Carvalho não poderia ter publicado esse poema épico,
conforme escreve Serafim Leite no artigo “O Poema de Mem de e Luís Carvalho,
mestre da Eneida na Baía em 1564”, pois o poema estava impresso, em Coimbra,
desde 1563.
Não fosse assim, Serafim Leite não teria mudado o nome daquele artigo,
publicando-o como “O Poema de Mem de e a pseudo-autoria do Padre José de
Anchieta”, como se quisesse fugir da própria contradição, imposta pelo nome anterior
que dera ao artigo
9
.
Mais ainda, dirá que
Desse irmão estudante, que em 1565 desaparece dos catálogos da
Província, nada restou, aliás, que lhe permitisse figurar modestamente na mais
completa bibliografia dos jesuítas no Brasil colonial.
10
8
Em “O Discurso Épico do Cristianismo em De Gestis Mendi Saa”, tese de doutorado defendida na UFRJ em 2001,
a autora, Prof.ª Josefa Nunes Tavares, diz na introdução, p. 12, que a tese se propõe a estudar o poema “De Gestis
Mendi Saa”, atribuído ao padre José de Anchieta.
9
Na última gina e nota (n.18) do artigo publicado por Serafim Leite vem uma informação que revela que o título
inicial foi outro: “Este estudo já está mencionado, entre os inéditos, na Bibliografia de Serafim Leite S.J.
Apresentação de Miguel Bartlori (Roma, 1962) 72, n. 276, com o título de “O poema de Mem de Sá e Luís Carvalho,
Mestre da Eneida na Baía em 1564”. Na revisão geral, antes de se imprimir, achou-se mais pertinente o título
explícito que leva agora”.
10
Viotti, Hélio Abranches, op. cit., p. 314.
18
Apesar da ausência de documentos coevos – argumento de Serafim Leite –, não se
pode negar inapelavelmente que a autoria do poema pertence a Anchieta. Com efeito,
Anchieta, até hoje, é reconhecido como o autor do De Beata Virgine Dei Matre
Mariae”
11
, tendo, inclusive, sido apontado pelo visitador Inácio de Azevedo, em 1566,
como “teniendo... mucha habilidad para las letras
12
, e depois por Inácio Tolosa, no
catálogo de 1574, como “grande humanista”.
13
Somente poderia ter escrito o poema, argumenta Viotti, alguém que conhecesse
de perto, in loco
14
, a realidade dos fatos narrados no “De Gestis e, mais ainda,
alguém a quem Simão de Vasconcelos
15
atribuiu a autoria por meia dúzia de vezes,
utilizando-se, inclusive, dos fatos narrados nessa epopéia, para escrever sobre a
Companhia de Jesus na sua Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil.
16
11
O padre Armando Cardoso faz uma comparação entre as duas obras na Introdução Histórico-Literária do “De
Gestis Mendi de Saa”, op. cit., pp. 17-18. Diz textualmente: “[...] vamos compará-lo agora nas idéias e no estilo
com outra grande obra, certamente de Anchieta, o De Beata Virgine. São tantos e tão expressivos os conceitos e
versos semelhantes de um e outro poema, que não é possível explicar tal fenômeno por simples coincidência de
autores diversos, nem pela imitação de um pelo outro, dada a quase simultaneidade da impressão do DG. em
Coimbra e a composição do DB. em Iperuí e S. Vicente.” Em seguida, passa a fazer as comparações dos dois textos
em Latim.
12
Viotti, Hélio Abranches, op. cit., p.314.
13
Ibidem, p. 314. Viotti cita Inácio de Azevedo, Carta a São Francisco de Borja, MB, IV, 341-345. Arsi, Bras.,
(catálogo de 1574).
14
Sobre isso, o padre Armando Cardoso, op. cit., pp. 9-10, diz: “[...] Este belo documento literário e histórico
poderia ter sido escrito no Brasil por pessoa que colheu dos próprios lábios de muitas testemunhas presenciais os
fatos que narra , os quadros que pinta, os sentimentos que expressa. Um humanista em Coimbra, um Jesuíta com a
riqueza das cartas do Brasil poderia sem dúvida tecer um poema, mais excelente até, não porém a epopéia que
temos. Inúmeros pormenores que traz o poema não se encontram nas cartas, como outros e muitos significativos não
são aproveitados no DG. Qual a razão? É que o poema não se baseia em fontes escritas, mas orais, no testemunho
dos soldados e companheiros de Mem de Sá, inclusive o próprio Nóbrega.”
15
Nascido na cidade do Porto, ingressou aos 19 anos de idade no colégio jesuítico da Bahia, onde professou em
1636. Ocupou diversos cargos na província do Estado do Brasil e acompanhou Vieira na viagem a Portugal, em
1641, para prestar fidelidade a D. João IV, aclamado após a Restauração. [...] Dentre todas as ocupações a que se
dedicou, destaca-se a de cronista da Companhia de Jesus no Brasil. Segundo Serafim Leite, a obra de Simão de
Vasconcelos constitui um todo articulado, cujas partes enfocam as vidas dos três mais destacados jesuítas, compondo
um painel que abrange desde o estabelecimento da ordem no Brasil até meados do século XVII. Assim, a Crônica da
Companhia de Jesus do Estado do Brasil (1663) cobre o período de 1549 a 1570, ano em que morreu Manuel da
Nóbrega. Por sua vez, as biografias Vida do venerável padre José de Anchieta (1672) e Vida do padre João Almeida
(1652) estendem as narrativas até 1654, data do falecimento deste último. In Dicionário do Brasil Colonial ( 1500-
1808 ), Ronaldo Vainfas ( Org. ). Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2000, p. 465.
16
Ibidem, pp. 465-466. A Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil divide-se em dois livros, ocupando-
se o primeiro das “notícias antecedentes curiosas e necessárias das cousas do Brasil” e o segundo da descrição dos
19
Sobre isso, o padre Cardoso(1986), no capítulo “ História e autoria do poema”, vai
dizer que Simão de Vasconcelos, às vezes, para seu mal se afasta do poema:
Pois se se ativesse mais ao texto do poema, principalmente à sua ordem
cronológica, não teria incorrido em diversos erros e datas, como o da empresa
do ESPÍRITO SANTO e das guerras dos ILHÉUS; e não teria confundido
episódios diversos, como os desta guerra e o do PARAGUAÇU.
17
Fica evidente, ao se referir diretamente ao poema, que Simão de Vasconcelos
teve contato com o “De Gestis” :
Compôs não aqui, mas em várias partes do Brasil, com vivo e raro engenho,
muitas obras poéticas, em toda a sorte de metro, em que era mui facil, todas ao
divino e afim de evitar abusos e entretenimentos menos honestos. Entre estas
foram as de mais tomo, o livro da vida e feitos heróicos de Mem de Sá, terceiro
governador que foi deste Estado, em verso heróico, latino; [...]
18
Nessa mesma direção, Simão de Vasconcelos, noutro passo, diz:
Deste grande varão Mem de e de seus muitos talentos e façanhas, compôs
um livro inteiro o nosso José de Anchieta, seu contemporâneo, que intitulou de
rebus gestis Mem de Sa. Tem cousas dignas de história, mas não são tanto do
nosso intento; a ele remeto o curioso que quiser saber delas.
19
trabalhos apostólicos. Aquele contém uma descrição geográfica da América Portuguesa e uma inquirição teológica
destinada a verificar se os nativos estavam aptos a participar do grêmio da Igreja católica. Com base na bula do papa
Paulo III, que reconheceu a humanidade dos índios em 1537, Simão de Vasconcelos refutou os autores que os
identificavam aos animais.
17
Cardoso, Padre Armando, op. cit., p. 24.
18
Vasconcelos, Padre Simão de. Vida do Venerável Padre José de Anchieta.. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1943, p.34.
19
Ibidem, p.70.
20
Se Vasconcelos remete o leitor diretamente ao “De Gestis” é porque não pretendia
tratar de pormenores dessa epopéia numa obra cujo objetivo era falar sobre a vida de
Anchieta.
Por outro lado, quando remete o leitor diretamente à fonte, parece ao padre
Armando Cardoso que não o está remetendo ao arquivo da Província estranhos não
tinham acesso a ele -, mas à edição impressa de Coimbra, que não devia ser, assim,
tão rara.
Desta forma, divergem a esse respeito o padre Armando Cardoso e o padre lio
Viotti quando este diz, conforme citação feita, que é possível que o “De Gestis
publicado em 1563 não se destinava ao público em geral, mas, por ser uma edição
limitada, aos amigos e parentes.
Outra curiosidade é saber por que os primeiros biógrafos de Anchieta não fazem
referência ao “De Gestis” quando escrevem sobre a sua vida. Uma explicação possível,
e nisso concordam os padres Armando Cardoso e Hélio Viotti, é que tanto Quirício
Caxa quanto Pero Rodrigues tiveram a preocupação de apresentar no recém-falecido
apenas o santo e o missionário, deixando de lado o literato e o ideólogo do império
português.
Quando Quirício Caxa
20
refere-se ao Poema da Virgem e a outras obras menores
como Cantigas, Hinos, Auto da Pregação Universal, o faz tão-somente para exaltar a
devoção de Anchieta à mãe de Jesus e à Sagrada Escritura ou para mostrar o zelo do
apóstolo nesses assuntos, mas não o faz para colocar em evidência as qualidades do
homem de letras, diz Viotti.
20
Quirício Caxa, um ano após a morte de Anchieta, escreveu em 1598 a “Breve relação da vida e morte do Padre
José de Anchieta”.
21
Cardoso (1986) corrobora essa idéia:
O Poema DG. se distingue de todos os outros: não é obra de devoção, nem
diretamente de zelo apostólico, mas literário, de gênero bem especificado,
épico-histórico. Não se enquadra pois no esquema edificativo de Quirício Caxa.
Assim não que estranhar se dela não fala em particular, apesar de sua
importância.
21
O mesmo procedimento terá Pero Rodrigues
22
que, apesar de conhecer o “Poema
da Virgem”
23
, não se refere ao “De Gestis”, exceto de maneira geral, dizendo que
Anchieta compôs muitas outras obras em todas as quatro línguas que sabia, latina,
portuguesa, castelhana e brasílica.
Mas sobre a dúvida de Anchieta ser, ou não, o autor do De Gestis, por conta do
silêncio dos seus primeiros biógrafos, em uníssono responderão tanto Cardoso ( 1986 )
quanto Viotti (1980):
Cremos que do silêncio dos dois primeiros biógrafos do santo não se de tirar
argumento contra a autoria de Anchieta, quando a finalidade desses escritores
não era senão a edificação espiritual, que não é o cunho específico deste
Poema.
( In Cardoso, op. cit., p. 21)
21
Cardoso, Armando, op. cit., p. 21.
22
Apesar da obra Vida do P. José de Anchieta, da Companhia de Jesus, Quinto Provincial que foi da mesma
Companhia no Estado do Brasil” ser do ano de 1606, portanto posterior à Breve Relação de Quirício Caxa, Pero
Rodrigues é considerado o primeiro biógrafo de Anchieta. Foi a seu pedido que as primeiras informações escritas
sobre o autor do “De Gestis Mendi de Saa” foram colhidas por padres que conheceram Anchieta em vida. Quirício
Caxa, então, serviu-se dessas informações para escrever sua obra. As informações colhidas pelos padres foram
entregues ao padre Fernão Cardim que, ao perceber o sucesso das leituras, sugere, por carta a Pero Rodrigues, que
recolha novos testemunhos, mas, desta vez, canônicos, ou seja, sob juramento de pessoas das quatro capitanias em
que Anchieta residira. Somente após isso é que toda essa documentação foi entregue ao padre Pero Rodrigues, em
1604, pelo seu sucessor no Provincialado, para que ele escrevesse uma biografia. Em 1606, estava pronta a primeira
biografia de Anchieta que, então, foi enviada a Roma para dela se tirar uma biografia latina, visando à sua melhor
propagação pela Europa toda.
23
Dedica um capítulo inteiro de sua obra para mostrar as circunstâncias extraordinárias da composição do Poema da
Virgem e, mais ainda, para mostrar o nculo de devoção que Anchieta demonstra à Maria, sua protetora diante de
tantos perigos, não somente de seu corpo, mas da sua alma.
22
Além disso, de um argumento ex-silentio, como se sabe, só em condições
especialíssimas se poderia passar a uma negativa rotunda, categórica,
dogmática como esta: “Anchieta o é o autor do Poema de Mem de Sá”.
Pretenderam esses biógrafos levantar sistematicamente a bibliografia
anchietana? Enquadrava-se a elaboração do De Gestis, poema épico de
assunto profano..., nos aspectos visados por eles em seus escritos
hagiográficos?
( In Viotti, op. cit., p.316)
Leodegário Azevedo Filho que, não tendo nenhum argumento novo para
acrescentar sobre essa questão, ironiza quando diz que respeita a opinião de Serafim
Leite de que o De Gestis Mendi de Saa não é de Anchieta, mas que foi escrito por
alguém que viveu na época de Anchieta e tinha o nome de Anchieta.
24
Estabelecido, então, que a publicação de 1958
25
não foi a primeira edição do “De
Gestis e que a autoria, ao que tudo indica, pertence ao padre José de Anchieta,
passemos, pois, à tentativa de levantarmos questões em torno do obra, a partir de sua
recepção, ou melhor, de como foi, ou poderia ter sido analisada e lida, buscando
estabelecer, por diferentes opiniões, o estado da crítica sobre o poema, já que
nenhuma análise é inocente ou despretensiosa.
24
Azevedo Filho, Leodegário. Anchieta, a Idade Média e o Barroco. R io de Janeiro: Edições Gernasa, 1966, p. 144.
25
Posteriormente, em 1970, a edição de 1958 foi republicada e refundida pelo Pe. Armando Cardoso, ou seja, depois
do achado da edição de 1563. A edição mais recente é de 1986. Mantém a divisão em livros, mas reparte o terceiro
livro em dois, destacando, no quarto livro, a campanha do Rio de Janeiro contra os franceses calvinistas. Esta divisão
23
2.2 – Padre Armando Cardoso: as “justas” razões de Mem de Sá
No capítulo III da Introdução Histórico-Literária do “De Gestis”, Cardoso (1986) diz
que, como todas as epopéias que cantam um herói ou um povo, o “De Gestis”
apresenta um vasto cenário de guerras e que não se pode ver nisso um defeito, pelo
fato de essas guerras terem sido feitas contra os indígenas, que, em sua opinião,
basta ler as cartas dos contemporâneos dos jesuítas para se perceber que ninguém
conheceu e amou tanto os indígenas como Nóbrega e Anchieta e outros missionários.
Diz ainda que, nas cartas, todos são unânimes em afirmar que o método a se
empregar para civilizar indígenas era o da sujeição e temor:
Acostumados a guerras contínuas de tribo a tribo, cruéis por natureza contra os
inimigos pelo vício da antropofagia, se deixavam impressionar pela bravura
guerreira e se rendiam à civilização por uma força maior que lhes incutisse
respeito.
26
Nesse sentido, Cardoso parece inspirar-se no próprio Anchieta quando o jesuíta
escreve, em carta de 1563, referindo-se a um ataque dos índios inimigos contra
Piratininga, mas que fora vencido pelos portugueses e pelos índios cristãos:
Parece-nos agora que estão as portas abertas nesta Capitania para a
conversão dos Gentios, se Deus Nosso Senhor quiser dar maneira com que
sejam postos debaixo de jugo, porque para este gênero de gente não há melhor
pregação do que espada e vara de ferro...
27
em livros foi idéia do Pe. Armando Cardoso para melhor compreensão da obra, já que não aparece na edição de
1563.
26
Cardoso, Padre Armando, op. cit., p. 42.
27
Anchieta, José de. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 1988, p.196.
24
Para Cardoso, todas as guerras tratadas no poema, tendo à frente o governador
Mem de Sá, “foram não só justas mas necessárias e forçosas, em defesa da urgência”.
Diz, justificando a guerra do Paraguaçu, que, além de não entregarem os companheiros
que assassinaram os pescadores portugueses, os indígenas ainda desafiaram os
cristãos à guerra. Concorda que houve injustiças dos colonos para com os índios, mas
que isso foi resolvido, sobretudo, com a chegada de Mem de Sá, que passou a proibir
tais injustiças. A impressão que fica dessas guerras, segundo Cardoso, e que realça a
grandeza de Mem de Sá, é a dos resultados obtidos, ou seja, a paz e a civilização, de
braços com a catequese e a glória de Deus. Parece acreditar que os jesuítas cumpriram
sua missão: salvar os bárbaros da ignorância em que viviam em terras brasílicas,
trazendo-lhes a Santa Católica. O indígena, segundo ele, a despeito do seu atraso
na civilização e na fé, exerceu sobre o humanista e missionário José de Anchieta
sentimento profundo de simpatia e, às vezes, de admiração pelas qualidades naturais
que o selvagem ostentava, mas “muito mais ainda de ânsias e aspirações pelo que lhe
faltava de humano e sobrenatural”, ou seja, a civilização e a oferecidas pelos
portugueses cristãos. E prossegue em suas afirmações:
Não foi difícil aos índios, às ordens de Mem de Sá, o grande governador, reto e
justiceiro, abandonar suas malocas e cabanas enfumaçadas e imundas,
construídas de pau a pique e cobertas de palha e palmas, e construir outras
mais civilizadas e estáveis, a exemplo dos colonos. Antes, eram semi-nômades:
depois de dois ou três anos, caíam-lhes os casebres miseráveis, escasseavam-
lhes os víveres da pequena roça e a caça, e forçosamente, à maneira de
bichos, buscavam outros matos a explorar, erguiam outras choupanas.
28
28
Cardoso, Padre Armando, op. cit., p.53.
25
Se o índio é conformado como bárbaro, opondo-se ao português cristão e
civilizado, o herói Mem de é pintado em retratos de grande beleza física e moral,
“dotes realçados pela sincera e zelo das almas”. É um homem extremamente
piedoso, que oferece o exemplo da prática religiosa não somente aos índios, mas a
todos os soldados.
E não poderia ser diferente, pelo menos aos olhos de Anchieta, autor da epopéia,
e nem aos de Cardoso, que corrobora as idéias anchietanas quanto ao bem que os
portugueses trouxeram aos índios, pois “o próprio Cristo os acompanha para resolver-
lhes as dificuldades, como chefe invisível do exército cristão.”
Para Cardoso, o trecho que mais se caracteriza pela inspiração sagrada é “a
fundação das aldeias, a mudança dos costumes bárbaros e a vida piedosa dos novos
cristãos”, tudo pintado em formosa alegoria, como uma primavera das almas.
Mas todos esses frutos são colhidos graças ao incessante trabalho feito pelos
jesuítas que, comparados a lavradores, se lançaram durante muito anos a uma terra
estéril, recebendo a recompensa por um trabalho ingrato, mas perseverante. As
benesses do Cristianismo são descritas, mostrando quão felizes os nativos ficaram.
Enfim, para o padre, no “De Gestis” temos a vitória de Cristo-Rei - representado
por Mem de Sá, com sua espada justa e impoluta, transformada por Anchieta numa
cruz invencível -, sobre Lúcifer, ou melhor, não somente os selvagens se dobram à
doutrina de Cristo, mas também os hereges franceses são expulsos de terras lusitanas:
na descrição da vida feliz das aldeias e do triunfo do missionário, no grito de
vitória contra a superstição e a heresia, está toda a alma de Anchieta, alma de
santo, alma de apóstolo, alma de poeta cristão, que aspira para o Brasil os
séculos de ouro da fé e da civilização católica.
29
29
Cardoso, Padre Armando, op. cit. 61.
26
2.3 – Azevedo Filho: Anchieta - humanista da Contra-Reforma
Em tudo parece concordar Leodegário Azevedo Filho com o padre Armando
Cardoso:
O De Gestis Mendi de Saa, portanto, representa a epopéia do primeiro século
de nossa colonização, a luta dos portugueses contra os franceses e contra os
índios que se rebelavam aos trabalhos da catequese.
30
Retoma os mesmos temas que representam a barbárie do índio e que foram
combatidos pelos jesuítas e colonizadores:
As leis impostas por Mem de Sá, proibindo o antropofagismo, o nomadismo, a
poligamia e as guerras, num meio selvagem e bárbaro, indicam a medida do
heroísmo dos colonizadores, muitos dos quais pereceram, ao lado dos jesuítas,
numa luta ingente que redundaria nos fundamentos cristãos de nossa
nacionalidade.
31
Na sua opinião, se Anchieta, no De Gestis”, trata os índios que se opõem à
catequese de maneira rude, o faz por serem inimigos da obra cristã de Mem de Sá.
A ação do governador, segundo Azevedo Filho, reflete, simplesmente, o Brasil do
século XVI, na luta contra o selvagem antropófago e cruel, resistente à ação
civilizadora.
Anchieta não é, portanto, contra o índio, mas contra a selvageria e a
antropofagia, em nome do cristianismo que ele e outros jesuítas anunciavam. Mas,
30
Azevedo Filho, Leodegário. Anchieta, a Idade Média e o Barroco. Rio de Janeiro: Edições Gernasa, 1966, p. 148.
31
Ibidem, p.148.
27
aos que aceitavam participar dessas benesses cristãs, Anchieta dirigia um outro
olhar:
Mas é sempre com bondade que Anchieta se refere ao índio que participa das
lutas contra o estrangeiro invasor, dócil à ação jesuítica da catequese.
32
Portanto, ao afirmar que a luta é contra os costumes primitivos, em defesa da
fé católica, Azevedo Filho corrobora as mesmas idéias do padre Armando Cardoso,
pelo menos até esse ponto. Passa a discordar de Armando Cardoso quando a
questão é estritamente literária.
Com efeito, Cardoso dirá que, por sofrer influência de Virgílio, o “De Gestis“
pertence ao período renascentista da literatura e que Anchieta, portanto, é um
poeta clássico. Contra isso, Azevedo Filho afirma que tanto Virgílio quanto Ovídio
estiveram presentes também na Idade Média, e não apenas no Renascimento, não
sendo esta uma razão suficiente para incluir Anchieta no período clássico.
No “De Gestis” não recurso ao maravilhoso pagão com interferência de
deuses mitológicos em ações humanas. O seu humanismo não é antropocêntrico,
mas teocêntrico, como na época medieval:
A atitude espiritual de Anchieta, como a de todos os jesuítas, em face dos
costumes primitivos do gentio, minado pelo rito antropofágico, obedece às
normas
ideológicas da Contra-Reforma,
opondo-se não apenas ao racionalismo
dos reformistas e dos hereges, mas sobretudo ao paganismo silvícola.
33
32
Ibidem, p.148.
33
Ibidem, p. 149.
28
Passando ao largo dessa discussão literária entre os dois autores,
o nosso
objetivo visa a, tão-somente, aproveitar, em capítulo posterior, a idéia de que os
jesuítas estavam filiados ao ideário stico da Contra-Reforma e, portanto, em
tudo, defendiam as recomendações do Concílio de Trento, integralmente
promulgadas em Portugal, de levar a religião ao seio do povo, retomando territórios
perdidos para o Protestantismo e, no caso do Brasil, anunciando o Evangelho aos
nativos para ampliação do Orbis Christianus, ao mesmo tempo que se defendiam
das investidas protestantes em solo brasileiro.
2.4 – Florestan Fernandes: a reação indígena à conquista colonizadora
Florestan Fernandes começa, em capítulo publicado em “História Geral da
Civilização Brasileira”, afirmando que foram os Tupis, dentre os vários grupos
tribais existentes, os que mais travaram contatos com os portugueses que tentaram
ocupar e explorar colonialmente o Brasil.
Mais do que isso, os Tupis foram o principal núcleo de resistência organizada
aos objetivos dos colonizadores e, ao mesmo tempo, o principal ponto de apoio
deles junto às populações nativas.
Não é verdade, diz o autor, que os aborígines dessa parte da América
assistiram passivamente à ocupação das suas terras e à colonização imposta pelos
europeus. O que sustenta esse mito é a idéia de que estavam em um nível
civilizatório muito baixo.
Longe disso, dentro das suas possibilidades, foram inimigos duros e terríveis,
29
que lutaram ardorosamente pelas terras, pela segurança e pela liberdade, que
lhes eram arrebatadas conjuntamente.
34
Apesar de o desfecho do processo ter sido adverso aos indígenas, não se
pode negar que esse processo possui duas faces.
Se houve coragem e heroísmo entre os brancos que aqui aportaram, o mesmo
deve ser dito dos aborígines, ainda que isso não tenha movimentado a história e,
pior, tenha-se perdido com a destruição do mundo em que viviam, diz o autor.
A partir disso, propõe-se a descrever os aspectos mais importantes da
organização das sociedades tupis, procurando, nessa organização, os fatores que
permitem explicar, sociologicamente, o padrão de reação à conquista.
Em síntese, o autor afirma que, na sociedade tupi, os indígenas conviviam de
forma ordenada e eram solidários uns aos outros. Habitavam o litoral dos atuais
estados do Rio de Janeiro, Bahia, Maranhão e Pará, praticando a horticultura, a
coleta, a caça e a pesca.
Não se preocupavam em restabelecer o equilíbrio da natureza, o que levava à
exaustão das áreas ocupadas e, conseqüentemente, ao deslocamento periódico
das tribos para áreas ainda não exploradas. Havia um padrão rígido de equilíbrio
interno e as regras de educação eram pautadas pelo respeito mútuo.
Todavia, com a chegada dos portugueses, aos poucos, houve um efeito
desintegrador, que atingiu o centro desse equilíbrio:
34
Fernandes, Florestan. Antecedentes Indígenas: Organização Social das Tribos Tupis. In História Geral da
Civilização Brasileira.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p. 72.
30
Enquanto estes eram em pequeno número e podiam ser incorporados à vida
social aborígine ou se acomodavam às exigências dela, nada afetou a unidade
e a autonomia do sistema social tribal.
35
Isso somente foi possível nas regiões onde os brancos limitavam-se ao
escambo do pau-brasil e outros produtos e, assim, não havia a necessidade da
permanência de grande número de estranhos nas tribos, possibilitando aos nativos
impor sua autoridade e seu modo de vida.
No entanto, tudo se modifica, a partir de 1533
36
, quando os portugueses
começam a querer subordinar os indígenas, sujeitando-os a seus interesses de
exploração da terra:
Ao substituir o escambo pela agricultura, os portugueses alteraram
completamente seus centros de interesse no convívio com o indígena. Este
passou a ser encarado como um obstáculo à posse da terra, uma fonte
desejável e insubstituível de trabalho e a única ameaça real à segurança da
colonização.
37
Florestan Fernandes, então, diz que passamos do período de tensões
encobertas quando, apesar do estado amistoso de convivência com os nativos, os
portugueses viviam aterrorizados pela insegurança -, para a era do conflito social com
os índios:
Os alvos dos brancos só poderiam ser alcançados e satisfeitos pela
expropriação territorial, pela escravidão e pela destribalização.
38
35
Ibidem, p. 80.
36
A partir desse período os portugueses criam o regime das capitanias hereditárias e, posteriormente, o governo
geral.
37
Fernandes, Florestan, op. cit., p.82.
38
Ibidem, p.83.
31
Dessa forma, explica-nos o autor que, para subjugar os indígenas à ideologia
colonial, a Coroa portuguesa atuou em três frentes distintas. Primeiramente, a do
colono, o agente efetivo da colonização:
Para ele, ‘submeter os indígenas equivalia a reduzi-los ao mais completo e
abjeto estado de sujeição. Tomar-lhes as terras, fossem ‘aliadosou ‘inimigos’;
convertê-los à escravidão, para dispor ad libitum” de suas pessoas, de suas
coisas e de suas mulheres; tratá-los literalmente como seres sub-humanos e
negociá-los...
39
Depois, atuava o administrador ou agente da Coroa, que se via numa situação
difícil: ao mesmo tempo que compartilhava das idéias dos colonos referentes aos
índios, não podia colocá-las em prática, dadas as circunstâncias, ou seja, fazia conces-
sões aos colonos, mas resguardava certos interesses que davam à Coroa a
possibilidade de utilizar as tribos aliadas como um instrumento de conquista e de
controle dos territórios ocupados.
Sobre essa mediação entre os interesses dos colonos e dos nativos, Florestan
Fernandes diz que os colonos nem sempre respeitavam tais convenções, pois, se
algumas garantias eram dadas às tribos aliadas, ao mesmo tempo admitia-se o direito à
“guerra justa” contra as tribos hostis.
Ou melhor, estrategicamente, a Coroa, visando à realização da sua política de
exploração dos indígenas aliados como auxiliar humano da colonização, não impedia
os abusos dos colonos contra os nativos resistentes.
39
Ibidem, p. 83.
32
Por fim, atuaram os jesuítas, visando a subjugar o indígena ao projeto político da
Metrópole, mesmo que, com freqüência, contrariassem, por sua esfera de atuação junto
aos nativos, os interesses tanto dos colonos quanto da própria Coroa.
Todavia, como um desses agentes, os jesuítas fizeram bem o seu papel, em
consonância com os objetivos do colonizador: destruir as bases de autonomia das
sociedades tribais, reduzindo os indígenas à dominação do branco:
[...] Verifica-se que a influência dos jesuítas teve um teor destrutivo comparável
ao das atividades dos colonos e da Coroa, apesar de sua forma branda e dos
elevados motivos espirituais que a inspiravam. Coube-lhes desempenhar as
funções de agentes de assimilação dos índios à civilização cristã.
40
Isso, significou, na prática, que os jesuítas conduziram a política de destribalização,
fosse destruindo a influência dos pajés e dos índios mais velhos junto à tribo, ou
atacando diretamente as instituições nucleares que a orientavam, como o xamanismo e
a antropofagia ritual.
Além disso, os jesuítas incutiram nas crianças dúvidas quanto à opinião dos mais
velhos e quanto à legitimidade das tradições tribais.
Por fim, aglomeraram os indígenas em um número reduzido de aldeias, o que
causou um desequilíbrio nas relações sociais da tribo.
Em contrapartida, diz o autor que houve três formas básicas de resistência à
invasão dos portugueses e à subjugação dos indígenas que começava a se desenhar
naquele momento.
40
Ibidem, p. 84.
33
Primeiramente, por meios violentos, para preservar a autonomia da tribo, tentando
expulsar o lavrador branco. Como exemplo, cita Fernandes a resistência dos Tamoios,
que tiveram algum sucesso nessa empresa.
Outra forma foi a submissão aos portugueses, ou como aliados ou como escravos.
Ou seja, submetiam-se aos jesuítas ou aos próprios colonos quando eram derrotados
em “guerras justas”.
Por fim, por meios passivos, migrando para áreas onde o branco não pudesse
exercer dominação efetiva. Todavia, esse tipo de reação não terá muita eficiência,
dadas as entradas e as bandeiras postas em ação pelos portugueses.
Conclui o autor que os Tupis, diante das adversidades que se apresentavam,
tiveram de escolher entre dois caminhos: a submissão ou a fuga com o isolamento. E
por isolarem-se:
Os Tupis pagaram elevado preço por tal solução, pois tiveram de adaptar-se,
progressivamente, a regiões cada vez mais pobres. Mas conseguiram, pelo
menos parcialmente, combinar o isolamento à preservação de sua herança
biológica, social e cultural.
41
2.5 – Baêta Neves: o saber articulado ao poder
Começa o autor afirmando em “O Combate dos Soldados de Cristo na Terra dos
Papagaios: colonialismo e repressão cultural que, no que concerne à ideologia com
relação ao indígena, um grande silêncio se impôs a dezenas de gerações e de posições
teóricas, prevalecendo ainda o olhar que os jesuítas tiveram sobre a questão. Ou
41
Ibidem, p. 86.
34
melhor, não há silêncio, mas a repetição da fala e da ação dos religiosos, já que o tema
foi discutido e analisado sob uma única posição: a deles.
Desta forma, impôs-se às instituições pedagógicas, aos livros didáticos e aos
meios de difusão uma visão unilateral da questão, ou seja, a História passou a ser
contada do ponto de vista do branco, do cristão e do vencedor. Por outro lado, diz
Baêta Neves:
[...] surgem aqueles que criticaram e criticam os jesuítas porque estes teriam
sido cobiçosos e injustos. Cobiçosos porque queriam instalar um império
temporal na América; injustos porque não teriam tratado equanimemente os
‘selvagens’.
42
Tais críticos, diz o autor, são prisioneiros de uma moral religiosa: atacando os
jesuítas por se afastarem de seus paradigmas, acabam por aceitar os mesmos
paradigmas. Ou seja, no contato do cristão com o índio, bastava que a cobiça e a
injustiça não fossem cometidas contra o “selvagem” para que a ideologia dos jesuítas
fosse abonada por esses mesmos críticos. Afinal, o Evangelho e a Santa Católica
estavam sendo doados às gentes que os desconheciam e, portanto, viviam fora daquilo
que se entendia por civilização: ser europeu e cristão.
Desta forma, a crítica contra a visão dominante não prospera, pois o terreno
escolhido para o debate é o mesmo traçado pelos religiosos, diz o autor.
42
Baêta Neves, Luiz Felipe. O Combate dos Soldados de Cristo na Terra dos Papagaios: colonialismo e repressão
cultural. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1978, p.17.
35
Desvendar as relações de poder e as determinações e articulações entre o saber,
realizado pelos jesuítas em nome da Fé, e o poder, figurado no Império português, pas-
sa a ser o interesse de Baêta Neves, que delimita a sua pesquisa entre 1549 e 1570,
datas respectivas da chegada dos primeiros jesuítas e da morte de Manoel da Nóbrega.
Foram eles que iniciaram e provocaram alterações nas práticas pedagógicas jesuíticas,
que não eram neutras, diz o autor, assim como a antropologia não o é, pois ambas são
determinadas por discurso e prática históricos.
43
A história da Companhia de Jesus no Brasil é a história de uma missão, afirma o
autor, que busca defender essa tese a partir das modificações que o Renascimento, a
Reforma Religiosa e o Descobrimento da América provocaram na cristandade durante o
século XVI.
Sendo assim, com a Companhia de Jesus, revigora-se o missionarismo que,
opondo-se às tradicionais ordens monacais, valoriza uma dimensão social e uma
vocação universal da Igreja Católica, que precisava ser exercida, ainda que se
baseasse na antiga representação dos dois gládios: o gume temporal, do Imperador, e
o gume espiritual, do Papa.
Esse projeto missionário, no entanto, teve de encarar um duplo desafio: o da perda
de territórios tradicionais para os protestantes e o aparecimento de novos territórios por
conta dos Descobrimentos, que, nesse caso, motivaram os cristãos, por um lado, a
reencontrar a utopia do Paraíso Terrestre no Novo Mundo, e por outro, o de
43
Para tanto, são apresentadas como suas fontes de pesquisa as Cartas de Nóbrega e José de Anchieta, para a análise
da ideologia religiosa, e a História da Companhia de Jesus no Brasil de Serafim Leite, para a análise da instituição
educacional aqui implantada. O autor lamenta a destruição dos discursos indígenas que serviriam como contraponto
ao discurso oficial.
36
reconquistar as regiões caídas, ou seja, sob o jugo do Demônio, para a cristandade,
pois a idéia de universalidade implicava outras idéias, como integração e unidade, pois,
[...] como admitir que Deus, que uma sociedade vinda de Deus tenha regiões
“soltas” ou cindidas pelo faccionalismo? O Deus cristão é um só, apesar de sua
tríplice constituição (Pai, Filho e Espírito Santo), e a Igreja Católica o reafirmara
contra muitas heresias no correr da Idade Média e não havia porque
abandonar sua posição; pelo contrário.
44
Portanto, diz Baêta Neves, expansão, universalidade, integração e unidade serão
noções caras a um Ocidente que se lança à sua maior aventura de conquista. Nela, Fé
e Império estão incumbidos da cristianização do mundo, numa interdependência mais
ou menos amigável, visando ao mesmo propósito: anunciar o Evangelho onde ele não
era conhecido e, se preciso, impô-lo onde fosse renegado, pois “a cristianização do
mundo é a imposição de uma homogeneidade ideológica”.
45
Não somente isso, quanto
à descoberta de um novo continente e das pessoas que lá habitavam,
[...] não seria o achamento de uma Alteridade Total, de um Outro (uma série de
Outros) e sim um re-encontro com regiões de Si que se teriam afastado física e
espiritualmente. A “descoberta” é, antes, um conhecimento das partes até então
dobradas, ocultas, de um mesmo mapa há muito desenhado por uma
Mão.
46
Todavia, essa Mão não se oferece por inteiro ao olhar do cristão; deixa suas
marcas no mundo. Ao cristão missionário não lhe cabe somente a tarefa de ler essas
44
Baêta Neves, Luiz Felipe, op. cit., p. 28.
45
Ibidem, p. 29.
46
Ibidem, p. 32.
37
marcas, mas, sobretudo, após a leitura, modificá-las. Se não for possível modificá-las,
deve-se abandoná-las, ou eliminá-las. Ainda mais
quando o perigo de o inimigo de Deus e do homem ter-se apoderado
temporariamente ou não de certos objetos, roubando-os a seu legítimo
Senhor.
47
No que tange aos indígenas das terras descobertas, por não terem recebido a Boa
Nova, o saber, era preciso, antes, qualificá-los, colocando-os em um canto escuro dos
homens, ou seja, o mais próximo possível da natureza
48
, local ainda pouco iluminado
pela luz do Saber.
Portanto, se o indígena é relegado a essa condição de um ser ainda não iluminado
pelo Saber, pela Palavra, caberia, então, aos jesuítas esta dura missão: transformá-lo,
através dessa Palavra, em um ser civilizado, afastando-o dessa condição de ser bruto,
que se confunde com uma natureza intocada, à espera da ação dos súditos de Cristo
que vieram lapidá-la, ou melhor, civilizá-la.
Baêta Neves afirma que, nesse relacionamento desigual entre o europeu e o
selvagem, o melhor é a troca:
A cristandade dá a civilização e os gentios dão a natureza. [...] Civilização não é
igual a Natureza. Uma é o instrumento abençoado do Senhor que pode
modificar a outra; esta só pode se dar àquela.
49
47
Ibidem, p. 36.
48
O cristianismo daquela época, diz Baêta Neves, aceita uma divisão que separa Natureza e Cultura. Para os jesuítas,
segundo o autor, a natureza é menosprezada (ou mesmo temida) por não ter sido tocada da Mão Divina senão no
momento da sua criação. Com essa afirmação que coloca o índio o mais próximo possível da Natureza, Baêta Neves
não leva em conta que o núcleo da ação jesuítica é justamente a afirmação da universalidade da luz natural da graça
inata que também está presente na memória, na vontade e na inteligência do índio. Como diz Nóbrega, apenas estão
corrompidas pela abominação dos costumes indígenas.
49
Baêta Neves, Luiz Felipe, op. cit., p.42.
38
Logo, nessa troca entre a metrópole e a colônia, a primeira representa a civilização
e a segunda, a natureza, algo bruto a ser purificado sem que haja, no entanto,
estranheza nessa troca desigual, pois o discurso mercantilista da época propunha um
sistema internacional de trocas desiguais onde se acumulariam riquezas em apenas um
dos pontos do circuito.
No caso das Américas, não somente riquezas materiais seriam acumuladas em
um dos lados, mas, sobretudo, “riquezas culturais e espirituais” seriam impostas aos
nativos da terra.
Quanto a essas riquezas espirituais, ou melhor, à ideologia religiosa cristã, Baêta
Neves explica que, por ela ter um paradigma, o mundo profano se afasta desse eixo e,
depois, se afasta mais ainda com os Descobrimentos, aumentando a dimensão desse
mundo profano que, apesar de ser uma criação divina, encontra-se em desordem, pela
criação do demônio, devendo ser combatida e transformada em uma ordem divina.
Logo, nas Américas, essa é a missão da Companhia de Jesus, que deverá difundir
a Palavra aos povos que não a conheciam, através da catequese.
39
2.6 – Breve comparação
Depreende-se, pois, do exposto anteriormente, que o olhar do padre Armando
Cardoso sobre o indígena do “De Gestis, ou melhor, sobre o contato do europeu com
os nativos brasílicos no século XVI e tudo que se sucedeu a partir desse encontro, é, de
fato, o mesmo olhar dos religiosos quinhentistas da Companhia de Jesus. Para Baêta
Neves, uma visão unilateral da questão, uma vez que o tema foi discutido e analisado
sob uma única posição: a dos religiosos.
Assim, para Armando Cardoso o vasto cenário de guerras contra os indígenas
apresentado no “De Gestis” não reflete um defeito da obra, mas, pelo contrário, em
consonância com as cartas dos jesuítas daquela época, uma convicção de que o
melhor método para civilizar os indígenas era o da “sujeição e temor”.
Nesse sentido, toma partido do branco, europeu e cristão, que veio à América
trazer não somente os valores da civilização aos bárbaros que praticavam a
antropofagia, mas, sobretudo, a fé do católico para livrá-los dessa “prática demoníaca”.
Para ele, as guerras de Mem de Sá, tratadas no poema, foram “justas” e
“necessárias”, já que a impressão que fica dessas guerras, realçando a grandeza do
governador, é a dos resultados obtidos: a paz e a civilização.
Ou seja, os jesuítas cumpriram tão-somente a sua missão: salvar os bárbaros da
ignorância em que viviam, trazendo-lhes a Santa Fé Católica e os valores da civilização
européia, mesmo que, para isso, em tudo a cultura indígena tenha sido desprezada.
Se Armando Cardoso mostra em seu discurso somente o ponto de vista do
vencedor, tomando partido dele, que, para ele, os valores positivos da civilização e
da fé católica foram oferecidos aos bárbaros da terra e “escravos do demônio”,
40
Florestan Fernandes procura mostrar que o processo da colonização teve dois lados: o
dos europeus, vencedores, e o dos aborígines, que não movimentou a história e, pior,
perdeu-se com a destruição do mundo em que viviam.
Pode-se dizer que, ao contrário da opinião de Cardoso, Florestan Fernandes
sustenta uma opinião a favor dos indígenas, pois descrevendo os aspectos mais
importantes da organização das sociedades tupis, procura, nessa organização, fatores
que permitem explicar o padrão de reação à conquista dos europeus.
Logo, sua opinião, se aplicada à análise do “De Gestis”, refuta a de Cardoso
quando este diz que os indígenas desafiaram os cristãos ao combate, justificando a
guerra de Mem de Sá contra os índios do Paraguaçu, por exemplo.
Partindo das idéias de Florestan, os indígenas na sociedade tupi viviam de forma
ordenada e eram solidários uns aos outros. Nessa sociedade, havia um padrão gido
de equilíbrio interno e as regras de educação eram pautadas pelo respeito mútuo.
Na sua opinião, foi com a chegada dos portugueses que houve, aos poucos, um
efeito desintegrador, atingindo o centro desse equilíbrio.
Depois do período do escambo, veio o da agricultura, como vimos, e, então, a
partir daí, para os portugueses, os índios passam a ser vistos como um obstáculo à
posse da terra, como mão-de-obra para a agricultura e como a única ameaça real à
segurança da colonização.
Desta forma, apoiando-se nessa opinião, não foram os índios os causadores das
guerras contra os portugueses. Defendiam, tão-somente, o seu sistema social de vida,
as suas terras e a sua liberdade.
41
Vimos que, para Florestan, não uma luta entre Deus e o Diabo, representados
respectivamente pelos portugueses católicos e pelos índios bárbaros, como descreve
Armando Cardoso.
Passando ao largo das questões religiosas que pudessem explicar tais guerras,
aplicadas ao “De Gestis”, as reflexões de Florestan sobre a organização social das
tribos tupis mostram que os portugueses destruíram intencionalmente essa organização
social, justificando que as instituições vinculadas à vida doméstica, ao xamanismo e à
guerra
50
, por exemplo, eram ameaças à segurança dos brancos.
Para tanto, conforme o autor, os indígenas foram subjugados à ideologia colonial
através de três agentes: o colono, o administrador do rei e os jesuítas. Podemos
perceber isso em várias passagens do “De Gestis”.
Os colonos, para praticarem a agricultura, tomavam as terras dos índios, faziam-
lhes guerra, matavam a muitos e, depois, pelo direito concedido pela “guerra justa”,
tornavam-nos seus escravos.
O administrador da Coroa, no caso, o governador Mem de Sá, protagonista do “De
Gestis, atuava no sentido de fazer valer as determinações do rei: subjugar e, depois,
50
Como uma dessas instituições, o ritual guerreiro abrangia quatro séries fundamentais de ritos. A primeira
correspondia aos ritos relativos à determinação da guerra, através dos quais os vivos interpretavam a vontade dos
mortos ou as determinações dos costumes. A segunda continha os ritos preparatórios da guerra, que apanhavam a
comunidade como um todo e possuíam uma dupla função: prover as necessidades materiais do bando guerreiro e
aferir o moral coletivo. A terceira abarcava os rituais “propiciatórios”, por intermédio dos quais os componentes do
bando guerreiro examinavam o caráter propício das forças sobrenaturais e exauriam das tradições revivescidas os
ideais de heroísmo. A quarta compreendia os ritos de apropriação e de tratamento do estranho, que estabeleciam as
vinculações e as condições de convivência dos tupinambás com os cativos e vice-versa. No sentido mais amplo, os
rituais tinham por função: 1) coordenar as reações contra o inimigo e as aplicar em uma direção determinada; 2)
ajustar o estado de tensão emocional dos indivíduos aos móveis “militares” da expedição guerreira, de modo a
garantir o equilíbrio do sistema organizatório do bando guerreiro ou do grupo local; 3) intensificar os laços de
solidariedade e a comunhão dos valores sociais dentro do “nosso grupo”; 4) atualizar os ressentimentos e os rancores
acumulados nas fricções com os grupos hostis, sob uma forma positiva, de modo a legitimar os propósitos de
vingança coletiva e a propor a empresa guerreira como um dever sagrado mas viável; 5) conceder ao grupo a
disposição de seres humanos imoláveis aos espíritos dos antepassados mortos de maneira cruenta, condição básica do
equilíbrio tribal. In Fernandes, Florestan. A função social da guerra na sociedade tupinambá. São Paulo: Globo,
3.ed., 2006, pp. 108-109.
42
tornar as tribos aliadas um fator humano para a colonização, ou melhor, utilizando-as
como um instrumento de conquista e de controle dos territórios ocupados e, ao mesmo
tempo, protegendo-as dos abusos dos colonos, mas permitindo-lhes, aos colonos, o
direito de “guerra justa” contra as tribos hostis.
Por fim, aplicam-se as reflexões de Florestan ao “De Gestis” também quando fala
dos jesuítas, pois atuaram visando a subjugar os indígenas aos projetos políticos da
Metrópole. Fizeram bem o seu papel, diz Florestan, em consonância com os objetivos
do colonizador, ou seja, destruir as bases de autonomia das sociedades tribais,
reduzindo os indígenas à dominação do branco, desempenhando as funções de
agentes de assimilação dos índios à civilização cristã.
Como será possível perceber durante a análise do poema, as reflexões de
Florestan Fernandes são bastante pertinentes, nessa política intencional de
destribalização dos tupis, quanto à participação dos jesuítas como agentes da Coroa
portuguesa, ora destruindo a influência dos pajés e dos índios mais velhos junto à tribo,
ora atacando as instituições nucleares que a orientavam como, por exemplo, a
antropofagia ritual.
Por fim, o que no “De Gestis será exaltado como um bem praticado aos índios, os
jesuítas vão aglomerar os indígenas em um número reduzido de aldeamentos,
causando, na opinião de Florestan, um desequilíbrio nas relações sociais da tribo.
Desta forma, opõe-se a opinião de Florestan Fernandes à de Armando Cardoso
quanto ao olhar posto sobre o índio do século XVI.
Não dirá Florestan que as guerras desse período contra os portugueses
colonizadores foram causadas pelos índios e nem que elas foram necessárias para
43
civilizar os indígenas que, por serem cruéis por natureza pelo vício da antropofagia,
se deixavam impressionar pela bravura guerreira.
As guerras indígenas, abundantes no “De Gestis, se analisadas à luz das idéias
de Florestan Fernandes, recebem, então, uma explicação diferente da opinião oficial
dos jesuítas, defendida por Armando Cardoso, pois somente tentavam resistir à invasão
dos portugueses e à subjugação das tribos aos colonizadores.
Portanto, se resistiram, também por meios violentos, foi para preservar a
autonomia da tribo, tentando expulsar o lavrador branco.
Quando eram derrotados, submetiam-se aos portugueses, ou como aliados,
inclusive lutando ao lado dos brancos contra outros índios, como mostram recorrentes
passagens do “De Gestis, ou como escravos dos colonos.
Baêta Neves, buscando desvendar as relações de poder e as determinações
entre o saber, realizado pelos jesuítas em nome da Fé, e o poder, figurado no Império
português, retoma o pensamento da Companhia de Jesus o mesmo do padre
Armando Cardoso -, mostrando que os jesuítas encaravam o projeto da Companhia
como uma missão que precisava ser exercida, ou seja, retomar os territórios
tradicionais perdidos para os protestantes e, no caso das Américas, reconquistar para a
cristandade, numa dimensão espiritual, uma região caída sob o jugo do Demônio.
Nessa aventura de conquista, e Império estarão incumbidos da cristianização
do mundo, numa interdependência mais ou menos amigável, visando ao mesmo
propósito: anunciar o Evangelho onde ele não era conhecido e, se preciso, impô-lo
onde fosse renegado, já que a cristianização do mundo era a imposição de uma
homogeneidade ideológica.
44
Aplicadas ao “De Gestis, percebemos que os indígenas, por não terem recebido a
Boa Nova, o Saber, foram qualificados como seres próximos ao estado da natureza, ou
seja, local ainda pouco iluminado pela luz do Saber, ou melhor, pelas benesses do
cristianismo e da civilização. E coube, nesse caso, aos jesuítas a dura missão:
transformá-los, através da Palavra, em seres civilizados e cristãos, mesmo que à força.
Baêta Neves parte das mesmas idéias do padre Armando Cardoso para, como
foi dito, desvendar as relações de poder, o Império português, e o saber, praticado pela
Companhia de Jesus em nome da Fé.
Por sua vez, pode-se dizer que o padre Armando Cardoso assume o ponto de
vista oficial, defendendo a Companhia de Jesus e a sua missão de levar a fé e a
civilização aos bárbaros antropófagos e escravos do demônio que habitavam o Brasil
do XVI.
Leodegário Azevedo Filho, prisioneiro de uma moral religiosa, apesar de leigo, não
escapa à mesma gica, pois discute o assunto em terreno traçado pela visão
predominante, ou seja, a dos religiosos.
Por fim, Florestam Fernandes, que não parte do paradigma religioso, discute as
relações sociais entre brancos e índios para mostrar que toda a estrutura interna de
organização social das tribos, que garantia a autonomia dos nativos, foi
intencionalmente destruída pelos portugueses, visando a subjugar os indígenas à
ideologia colonial de dominação.
45
3 – O combate entre Deus e o Diabo ( as virtudes do herói e as paixões viciosas
dos seus inimigos) nas diferentes partes da obra. Uma análise crítica.
Epístola Dedicatória
Em sua “Epístola Dedicatória”, Anchieta convida Mem de Sá a contemplar os feitos
que Deus realizou por seu intermédio em terras brasílicas: a pacificação dos índios, a
imposição de leis justas, a proibição de bárbaros costumes, sobretudo a antropofagia, e
a cristianização dos índios. Além disso, a vitória sobre os franceses e sua heresia.
Inovando em relação à estrutura da epopéia, além de colocar a dedicatória antes
da proposição e da invocação, Anchieta acrescenta-lhe o vocábulo “epístola”,
remetendo-nos, de imediato, ao campo do religioso cristão, sobretudo ao mundo
católico.
Inserido, então, nesse campo do discurso religioso, Mem de é elevado, pelo
poeta, à condição de herói, mesmo que os fatos narrados ainda não tenham sido
totalmente realizados.
Portanto, na Epístola Dedicatória, por não haver o distanciamento, no tempo,
daquilo que se narra, que os fatos são contemporâneos ao poeta e ao herói ainda
vivo -, ou mellhor, os fatos reais ocorrem paralelamente aos fatos narrados, Anchieta
profetiza as vitórias de Mem de
51
, exortando-o, contudo, a não se envaidecer com
as honras do mundo, mas, dando glória a Deus, a esperar a recompensa celeste.
51
Tavares, Josefa Nunes, op. cit., p. 131.
46
Por fim, deseja-lhe bom êxito e que seja imitado por outros no futuro para que
Cristo expulse o tirano infernal das terras do Sul/ e nelas implante o seu reinado”.
Livro I
Em seu livro I, Anchieta apresenta a proposição do poema:
As glórias do Pai celeste e sua força divina
teu nome, ó Cristo Rei, e teus feitos gloriosos
começarei a cantar. [...]
52
Vem, também, aí, a invocação:
Tu, ó Jesus, ó clara luz do firmamento sereno,
ó fulgor sem ocaso, ó imagem do brilho paterno,
ilumina-me a mente cega, aclara-me a alma
com esplêndidos lampejos. [...]
53
E, então, o poeta começa a narrar os feitos de Mem de Sá, ainda que o verdadeiro
herói, neste momento, seja Fernão de Sá:
Envolta, há séculos, no horror da escuridão idolátrica,
houve nas terras do Sul uma nação, que dobrara a cabeça
ao jugo do tirano infernal, e levava uma vida
vazia de luz divina. [...]
54
52
ANCHIETA, Joseph S. J. De Gestis Mendi de Saa. São Paulo: Edições Loyola, 2.ª ed.,1986, p. 91, vv. 109-111.
53
Ibidem, p. 91, vv. 119-121.
54
Ibidem, p. 93, vv. 131-134.
47
Ressalte-se que, além de viverem no “horror da escuridão idolátrica”, “vazia de luz
divina”
55
, os habitantes dessa nação também são pintados, pelo poeta, nos versos
seguintes, com bastante crueldade, como verdadeiros animais:
Imersa na mais triste miséria,
soberba, desenfreada, cruel, atroz, sanguinária,
mais feroz do que o tigre, mais voraz do que o lobo,
mais assanhada que o lebréu, mais audaz que o leão,
saciava o ávido ventre com carnes humanas.
56
Ou seja, escravizados pelo poder do demônio, eram cruéis e sanguinários e, por
conta disso, matavam e devoravam os cristãos.
Desde o início da narração, portanto, para justificar as proezas de Mem de Sá,
Anchieta conforma uma imagem negativa do índio.
Isso será recorrente ao longo dos três primeiros livros, perdendo um pouco a
intensidade no último e quarto livro, quando vai focalizar seu olhar, sobretudo, contra o
francês calvinista, não deixando, entretanto, de atribuir adjetivos que desqualificam o
índio tamoio, aliado dos franceses.
Nos versos anteriores, mas que serão inúmeros ao longo desta epopéia, Anchieta
figura o índio, comparando-o a animais, pois não somente é vazio de luz divina, aspecto
religioso da desqualificação, mas falta-lhe também o aspecto positivo da civilização,
que lhe será “oferecida” com a chegada de Mem de Sá.
55
Como dissemos anteriormente, para os jesuítas, a luz divina encontra-se também nos índios. Nesse caso, apesar da
luz divina estar presente na memória, na vontade e na inteligência dos índios, podemos depreender dos versos de
Anchieta que elas estão corrompidas pela abominação dos costumes deles, justificando-se, assim, no poema, a
intervenção dos portugueses para tirá-los dessa situação de barbárie.
56
Ibidem, p.93. vv. 135-139.
48
Todavia, como dupla face de uma mesma ideologia, fazendo uso das idéias de
Baêta Neves, ou seja, o saber articulado ao poder, e para justificar as ações do herói, o
poeta evidencia ora a falta de luz divina, ora a barbárie em que viviam os habitantes
desta nação.
57
Por isso, ao compará-los a animais, Anchieta aplica-lhes a primeira paixão ou
vício
58
, mostrando a prática da antropofagia como algo horrível, desconsiderando-a
57
Em grego, eudaimonía é a felicidade como perfeição ética, como resultado da vida virtuosa. Eudaimonía
relaciona-se com eupraxía: a práxis ou ação boa, bela e justa; a ação virtuosa. Desta forma, Mem de Sá, o herói da
epopéia anchietana, dotado de temperança, de justiça, de coragem e de prudência, ao agir, tenta levar os índios,
ainda guiados pela paixão e pela desmedida, a uma vida virtuosa, ou seja, dentro da vida cristã e como súditos do rei,
evidenciando os aspectos teológicos e políticos de sua ação.
58
O homem é um ser misto, ou seja, possui um lado que segue a Natureza (a vontade racional, que é sua essência) , e
possui um lado que é também sua natureza (o apetite ou desejo próprio a todos os animais), que pode contrariar sua
verdadeira natureza racional. O apetite-desejo é a marca de nossa passividade. O apetite- desejo é uma paixão, um
páthos. O verbo páskho, em grego, significa: ser afetado de tal ou qual maneira, experimentar tal ou qual emoção ou
sentimento, sofrer alguma ação externa, padecer ( em oposição a agir). Oposto a práxis. Na paixão, somos arrastados
em direções contrárias, não sabemos para que lado nos voltar e “flutuamos ao sabor das ondas de um mar revolto,
inconscientes de nosso destino”. A paixão é um movimento natural e violento. Natural, porque somos feitos de uma
matéria carente, desejante, passiva que busca vencer a carência e a passividade. Violento, porque a paixão suscita
movimentos contrários ao bem de nossa natureza, ao fim a que, como humanos, estamos destinados, isto é, a vida
racional. Por isso, a paixão busca desenfreada do prazer e fuga desesperada da dor é a origem de todos os vícios
humanos. A tarefa da ética seeducar nosso apetite-desejo para que evite o vício e alcance a virtude. O apetite-
desejo é uma inclinação natural, uma propensão interna de nosso ser. É um movimento (uma tendência a) cuja
origem é dupla: por um lado, o objeto externo contingente que nos afeta; por outro, nosso caráter. Caráter, em grego,
se diz éthos e por isso a ética se refere ao estudo do caráter para determinar como pode tornar-se virtuoso. As
virtudes éticas (do caráter) são também virtudes morais (dos costumes, isto é, da sociabilidade humana). A ética nos
ensina os bons costumes, segundo nosso bom caráter. Nosso caráter é nosso temperamento. Cada caráter tem
apetites-desejos diferentes, pois para cada um deles os objetos de prazer e dor são diferentes. Pelo mesmo motivo,
cada caráter possui paixões e vícios diferentes. No entanto, em todos eles, um ponto é comum: o vício é o excesso ou
a falta entre dois pontos extremos. Em grego, a hýbris, a falta de medida, é a origem do vício. Diferente da hýbris, a
virtude é a medida entre dois extremos, a moderação entre os dois extremos, o justo meio, nem excesso nem falta.
Moderar, em grego, se diz médo, ão que impõe o médio/ medida, méson. É uma ação-decisão de impor limites ao
que, por si mesmo, não conhece limites. Moderar (médo) é pesar, ponderar, equilibrar e deliberar. A ética é a ciência
da moderação ou, como diz Aristóteles, da prudência. A virtude é virtude de caráter ou força do caráter educado pela
moderação para o mesótes, isto é, o justo meio ou a justa medida. Para Aristóteles, a virtude é um hábito adquirido
ou uma disposição permanente, um estado ou uma qualidade da alma. A tarefa
da ética é orientar-nos para a
aquisição desse hábito, ou seja, o exercício da vontade sob a orientação da razão para deliberar e escolher ações que
permitam satisfazer o apetite e o desejo sem cair num dos extremos. Tornamo-nos bons praticando atos bons. A
deliberação refere-se aos meios da ação; a escolha, aos seus fins. O apetite e o desejo são paixões, isto é, páthos,
passividade, submissão aos objetos exteriores. A virtude é ação, atividade da vontade que delibera e escolhe segundo
a orientação da razão que determina os fins racionais de uma escolha, com vista ao bem do indivíduo, isto é, sua
felicidade. O virtuoso é feliz porque prudente e prudente porque moderador e moderado. Os apetites e desejos não
são bons nem maus; as coisas apetecidas ou desejadas não o boas nem más. O apetite-desejo torna-se mau e o
objeto torna-se mau quando não se submetem à medida racional; tornam-se bons quando se submetem a essa medida.
Por isso, diz Aristóteles, não nascemos bons, mas nos tornamos bons com os atos bons, pois atualizam nossa
potencialidade para a razão e para a felicidade. In Chauí, Marilena. Introdução à História da Filosofia: dos pré-
socráticos a Aristóteles. São Paulo: Brasiliense, vol. I, 1994, pp. 310-313. A partir dessas idéias, a palavra cristã e a
49
como um ritual da cultura indígena, e vinculando-a ao domínio do demônio em terras
brasileiras, como mostram outros versos:
[...] seguia,
no seu viver de feras, o exemplo do rei dos infernos,
que por primeiro trouxe a morte ao mundo, enganando
nossos primeiros pais. Dilacerava os corpos de muitos
com atrozes tormentos, e, embriagada de furor e soberba
ia enlutando os povos cristãos com mortes freqüentes.
59
Logo,
embriagada de furor e soberba, além de escrava do tirano infernal, não
poderia essa nação ficar sem o conhecimento da palavra cristã e sem as benesses
trazidas pela civilização portuguesa.
Então, eis que Deus mandou-lhes um herói de Portugal, Mem de Sá, para vingar
tais crimes horríveis e abrandar a ferocidade dos que os praticavam e “para arrancar as
almas brasílicas às cadeias do inferno”.
Diferentemente da imagem atribuída ao índio, Mem de Sá é figurado positivamente
pelo poeta. Após enfrentar os perigos do mar, chega às terras brasílicas um singular
herói de físico forte e de extraordinária coragem; de sangue nobre e de seiva ilustre.
Sua alma é excelente e ele traz no peito um amor de Deus, santo, filial, verdadeiro e a
fé de Cristo jamais desmentida.
Desta forma, já no início da narração, dois campos semânticos vão ficar em
evidência: o divino e o demoníaco, anunciando e justificando, então, a luta que será
civilização, no “De Gestis”, o benesses trazidas e oferecidas pelos portugueses aos índios, que são movidos não
pela virtude, ou melhor, pela força do caráter educado pela moderação para o mesótes, para o justo meio ou a justa
medida, mas, ao contrário disso, por serem afetados por paixões, são guiados pela hýbris, pela falta de medida. Além
disso, no antagonismo dos dois campos semânticos estabelecido pelo poeta, ou seja, o divino e o demoníaco, a
virtude, representada pelo herói Mem de Sá, vincula-se ao campo do divino, e a falta dela, ao índio e ao demoníaco.
59
ANCHIETA, Joseph S. J. De Gestis Mendi de Saa. São Paulo: Edições Loyola, 2.ª ed.,1986, p.93. vv. 140-145.
50
travada entre os soldados de Cristo e o demônio, mestre da nação “que dobrara a
cabeça ao jugo do tirano infernal, e levava uma vida vazia de luz divina”.
Ao contrário do índio, que vai à guerra contra os portugueses “arrastado de furiosa
loucura”, Anchieta diz que ferozes guerras e cruéis injustiças, causa de tantas dores,
esperam a energia do chefe.”
O poeta, dessa forma, mostra o equilíbrio de Mem de em oposição à paixão
desenfreada dos índios. O herói faz a guerra movido não pelo prazer, mas para conter
o Tamoio feroz que atacava os colonos portugueses do Espírito Santo:
[...] Inúmeros danos
causa por toda a parte, talando as culturas em fruto
e arrebatando os homens. Afastam-se altivos com a presa
e fartam de sangue humano os ávidos ventres.
60
Afora a guerra, novamente a antropofagia é colocada em primeiro plano. Os
tamoios vinham de várias paragens, para arruinar as aldeias cristãs, pois “ferve-lhes
nas veias a raiva, a louca paixão da guerra e o apetite da carne humana, batem os
corações em fúrias amentes”. Sob o olhar de Anchieta, o descomedimento parece ser
a marca dos índios. Não são guiados pela razão.
Mas o herói não vai à guerra sozinho e por conta própria ou, pelo menos, na voz
de Anchieta, não vai sem o respaldo divino:
Se o braço de Deus não impede esses aprestos ferozes
com o socorro celeste, senão dispersa essas tribos altivas
que vibram ao incêndio da guerra e ao faro do sangue,
em breve a ímpia guerra tudo terá conspurcado
e enxarcada se verá a terra no sangue dos justos.
61
60
Ibidem, p. 95, vv. 207-210.
61
Ibidem, pp. 95-96, vv. 216-220.
51
Diante de todo esse cenário, guerras e matanças contra os portugueses, é que
Mem de Sá, após pedir auxílio divino, envia o próprio filho, Fernão de Sá, à capitania do
Espírito Santo para acabar com as guerras que os índios Tamoios impunham aos
colonos portugueses.
No entanto, antes, exorta o filho a lutar com bravura e a entregar-se à glória de
Deus:
aprende, filho, desde os anos mais tenros,
a buscar no trabalho as virtudes e a glória,
não honras humanas: pois que haverá sobre a terra
capaz de encher-te a alma? No coração insculpido
leva o nome de Deus, e, na chama da fé abrasado,
onde quer que apertem os trabalhos da guerra,
arroja o dique do peito à maldade furiosa.
62
Prossegue sua fala, justificando a guerra: defender os cristãos dos ataques dos
tamoios:
Vês como gentes cruéis em hordas imensas preparam
aos Cristãos batalhas ferozes. De morte humilhante
ameaçam agora as cabeças dos pobres colonos,
quais tigres cruéis em redor da preia lanhada
sorvendo com fauces sedentas o sangue inocente.
Que esperança ou que alívio resta ainda aos sitiados?
[...]
Voa em auxílio da pobre gente no que puderes.
63
Parte, então, Fernão de Sá, disposto a domar a altivez dos índios.
Anchieta descreve as armas dos índios e a preparação para a guerra, chamando-
os ora de selvagens, ora de bárbaros, mas sempre comparando-os a animais ferozes.
Nesse mesmo sentido, Fernão de Sá, cheio de indignação, fala a seus soldados
antes da guerra, ao perceber que os índios eram poderosos em número e armas, e
estavam prontos para saquear barbaramente a gente lusitana:
62
Ibidem, p. 97, vv. 236-242.
63
Ibidem, p. 97, vv. 243-259.
52
eis aí, companheiros,
as hordas cruéis que destilam dos peitos malvados
o veneno mortal do furor e do ódio implacável
e nos ameaçam com a guerra o completo extermínio.
Contra nós se arrojarão em bloco cerrado,
com todas as forças que a raiva esporeia.
[..]
Eis a hora dos valentes e bravos!
Alento e energia nos dará o Deus poderoso
[...]. Sua mão vingadora
sobre o inimigo desumano descerá justiceira.
Vingando as ofensas sacrílegas, sua cólera santa
dizimará com a morte as alcatéias ferozes.
64
Não vai a combate, entretanto, o herói, sem antes examinar a consciência e se
ajoelhar aos pés do sacerdote de Deus. Assim, “liberta-se do peso das culpas que
talvez contraíra”. Os soldados, “seguindo-lhe o lúcido exemplo, purificaram os corações
de todas as manchas com a confissão”.
Interessante notar que imediatamente após a confissão, todos partem para o
combate e “lavra nos peitos, agora incontido, o fogo da guerra, e justa ira lhes ferve nas
veias”.
Mediada pelo Cristianismo, a ira dos portugueses torna-se justa. Mesmo após a
confissão, quando se libertam dos pecados, vão à guerra, mas tão-somente para
proteger colonos inocentes e em nome de Deus, ao longo de todo o poema.
Anchieta reafirma, então, de versos em versos, o antagonismo entre os dois
campos semânticos, ou melhor, entre o equilíbrio das coisas divinas, inclusive a guerra
em nome de Deus, e as do demônio: a barbárie indígena e sua louca paixão pela
guerra e por carne humana.
Na seqüência, prossegue desqualificando os índios, ora como inimigos cruéis, ora
como gente odienta ou turba inimiga; bárbaros ou hordas selvagens.
64
Ibidem, pp. 101-5, vv. 344-360.
53
Na guerra, não deixa também de mostrar os sentimentos dos índios, ora
evidenciando o terror e o medo diante dos portugueses, ora mostrando que eles não
eram guiados pela razão: “ainda não se esgota a fúria selvagem: nos peitos magoados
estuam juntos medo e cólera” .
Ao contrário disso, Fernão de Sá, enérgico, a passo firme, fixa a cada soldado o
seu posto e “em fileira cerrada o general e seus jovens guerreiros investem, expondo os
corações valentes à morte”. Estrategista, valente, ateia nos companheiros a chama da
guerra.
Se o fogo da vingança o abrasa é porque “ao contemplar a morte cruel dos amigos
valentes, o coração magoado do herói e de seus companheiros referve de dor”.
Todavia, diante da morte que causam aos índios, o poeta somente parece
lamentar que eles não conhecerão a palavra de Cristo, pois “enchem o Tártaro triste
dessas vidas sem rumo”.
os portugueses, “das almas nobres: vibram de entusiasmo: uma de duas, ou
acabar com as hordas bárbaras ou deixar no combate a vida, comprando com o sangue
a vitória da pátria”. Eis a fala do herói:
Vedes quantos aí estão prostrados a gemer moribundos,
quantos outros na fuga receberam mortais ferimentos.
Ou exterminar de vez esta raça felina
com a ajuda de Deus, ou sepultar-nos na areia
gloriosamente.
65
E será esse o destino do herói Fernão de Sá. Abandonado pelos companheiros,
ele e alguns poucos soldados ficam numa situação difícil diante do ataque dos índios
tamoios. Mesmo assim, Anchieta o chama de magnânimo, pois o tamoio “em luta
65
Ibidem, p. 113, vv. 541-545.
54
desigual, apertava uns poucos de heróis, com o furor de vingança que lhes incutia a
derrota e a morte dos seus".
Apesar da adversidade, o herói mostra coragem:
Para onde corremos, colegas?
Já não nos resta esperança alguma! O inimigo
nos cerca de toda a parte, de toda a parte o oceano!
A terra nos falta! Buscaremos a armada, cortando
com o peito as ondas? Para onde dirigir-nos no aperto
presente? Pois, rompamos à ponta da espada essas hordas!
Paira sobre nós a morte? – que paire! Oh! que belo
deixar por Deus as vidas caras na arena sangrenta
e comprar com esse sangue a vida de muitos!
66
Em combate, morre Fernão, bravamente lutando. Jovem de coração varonil, alma
plasmada nos moldes paternos. Herói do Livro I, levou para a guerra os últimos
conselhos do pai:
Se porém por desígnio imutável do Pai sempiterno
o último alento te escolher na primavera da vida,
se a morte te arrancar em plena flor da existência:
então te aguardarão imarcessíveis louros e honra perene,
glória imorredoura dourará no céu teus destinos!
Trocam-se assim pelo dia eterno efêmeros dias.
67
Não lhe havia assediado o peito a fome do ouro nem da vaidade, “mas a paixão
imensa da glória divina e a honra imaculada de Cristo te imola nesse altar, para que
sejam tuas feridas a vida de muitos”.
Graças à morte do herói, os lusos da posteridade terão a paz.
Anchieta, após tecer elogios ao herói, que morrera para salvar muitas vidas e,
também, em nome de Deus, deixa claro a posição dos jesuítas nessa empresa contra
66
Ibidem, pp.. 115-116, vv. 619-627.
67
Ibidem, p. 99, vv. 269-274.
55
os índios tamoios e contra aqueles que atacassem os portugueses ou não quisessem
aceitar a sua Fé e leis:
Nós, esquecidos de tanto sacrifício? Tanto nos acobarda
o amor desta luz transitória e a paixão egoísta
de viver, que não nos deixa vingar tua morte
em merecida desforra? Ah! vingar-nos-emos!
68
Desta forma, incendiados de ira, seus companheiros vingam a sua morte numa
justa vingança, pois o tamoio, que causara uma morte cruel ao herói valente, “reunira
inumerável exército para desafogar sua raiva louca e ódio descomedido, exterminar o
povo cristão em sangrenta matança e saciar as negras fauces e os ventres sedentos de
sangue”. Os soldados domam os selvagens em nova guerra, sempre com a intervenção
divina, trazendo a paz aos lusos. Depois disso, ao receber a triste notícia, Mem de Sá,
herói virtuoso, domina o sofrimento, pois a morte do filho salvara a vida de muitos.
E na voz do poeta, “ tão digno foi do filho esse pai e do pai esse filho!”.
Livro II
No livro II, Anchieta propõe-se a narrar, de fato, os feitos de Mem de Sá, ou
melhor, suas ações em nome de Deus. Para isso, recorre novamente ao antagonismo
dos dois campos semânticos que ilustram o poema: o divino, representado pelo herói, e
o demoníaco, representado pelos índios. Anuncia que seus cantos ficarão aquém da
grandeza do herói ou dos feitos praticados por ele. Pois,
quem lembrará o tempo das tribos ferozes
quando ainda os selvagens não te viam, chefe valente,
68
Ibidem, p. 121, vv. 719-722.
56
impor santas normas aos povos e lançar justo freio
a uma raça indomável?
69
E prossegue, frisando o antagonismo entre o divino e o demoníaco.
Antes do governador e de suas santas normas e da imposição do justo freio, os
índios pareciam indomáveis e desrespeitavam as santas leis da mãe natureza e os
divinos preceitos do Pai onipotente “cevando as queixadas bestiais em corpos
humanos”.
Desta forma, uma vez que os selvagens viviam em extrema crueldade e rudeza,
praticando a antropofagia, violando as leis da natureza e os mandamentos divinos,
Mem de Sá, disposto a corrigir-lhes os costumes, criou grande terror entre eles, ao
mandar prender o índio Cururupeba: bárbaro, de boca insolente, de insensato orgulho e
audaz arrogância, que bravateava contra os cristãos terríveis matanças.
Eis como Anchieta figura o índio, comparando-o a um animal que, sedento por
matar sua fome, prepara-se para devorar tenros cordeiros, alusão aos cristãos e
colonos portugueses:
Então com arrogância o índio sanhudo
olhava para os cristãos, e estes, entrincheirados
detrás de seus muros, tremiam de pavor vergonhoso:
como quando lobos vorazes, que a fome impiedosa
açula e avassala, rangendo os dentes, cobiçam,
à ronda do aprisco, espotejar os tenros cordeiros
e extinguir a sede ardente no sangue que sugam ;
lá dentro as ovelhas estremecem e fremem com medo
das feras que rondam fora, mal confiadas no aprisco.
70
69
Ibidem, p. 127, vv. 816-819
70
Ibidem, p. 127, vv. 828-836.
57
Esse propósito de conformar negativamente a imagem do índio, comparando-o a
animais ferozes, que se guia tão-somente pelo instinto, prepara o terreno para justificar
as ões de Mem de Sá, ou seja, subjugar os índios aos preceitos da lei temporal e da
lei espiritual, trazidos pelos portugueses.
Resolve Mem de Sá, mal pisa os litorais brasileiros, determinar que os índios não
sofram mais do orgulho, mas “castigar com penas graves e justas os públicos crimes”.
Ao mandar prender o índio Cururupeba, profere tais palavras:
Ide e trazei-me preso esse louco
que tantas ameaças está contra nós vomitando.
Saiba ele enfim que não nos falta braço nem peito!
71
E “resolve impor justo freio ao furor dos selvagens, acalmar os vagalhões desse
mar furioso.” Entretanto, promete que, aos crimes públicos, os índios não sofrerão
penas somente graves, mas justas, evidenciando que o herói não se move pela paixão
ou prazer em guerrear e castigar, mas atras da razão, do equilíbrio, da justa medida.
Não faz a guerra por impulsividade. Prudente, simplesmente manda prender o principal
dos índios e, a partir disso, consegue que eles o temam. O que busca, na verdade, é a
paz para os portugueses e também para os índios.
Na voz de Anchieta, o piedoso Mem de Sá desejou, depois disto, - a prisão de
Cururupeba e o medo que os índios passaram a ter do governador -, ver adorado o
Senhor do céu, do mar e da terra e venerado, nas plagas do Sul, o nome de Cristo.
Proíbe, então, impondo leis, os bárbaros costumes dos índios, que viviam quais
feras:
[..] Logo desterra
71
Ibidem, p.129,vv. 864-866.
58
a antropofagia cruel: não permite mais que movidos
de gula infrene bebam o sangue fraterno,
nem mais se violem os santos direitos da mãe natureza
e as leis do Criador. [..]
72
Os colonos questionam essa decisão porque temem pela segurança da cidade: o
inimigo voltará sobre eles todas as iras e todos os braços, se faltarem outros em que
saciem a sede do sangue, dirão. Aproveita-se o poeta, então, para colocar em
evidência o horror da antropofagia e, diante da oposição dos colonos, mostrar a firmeza
do governador ao tomar decisões. Não deixa de se referir, também, à “ambição mal
inspirada” dos colonos que reclamavam da decisão do governador, não somente pelo
terror que tinham de novos ataques dos índios, mas porque lhes era conveniente que
a guerra continuasse a prosperar entre as tribos e que o bárbaro costume da
antropofagia fosse praticado.
Desta forma, seria mais fácil aprisioná-los e torná-los escravos, ou seja, dividi-los
para enfraquecê-los e, posteriormente, subjugá-los. Na opinião interessada dos
colonos, os índios eram indômitas gentes e, por isso, não aceitariam novos costumes,
novas normas. Impossível estabelecer tratados de aliança com povos selvagens, pois
se o prazer destes bárbaros, justamente nisso consiste,
atirar-se sempre em novas e ferozes batalhas,
provocar os outros à guerra em que sempre viveram,
rasgar-lhes com as unhas a carne, e piores que tigres,
fincar os dentes em lanhos palpitantes de vida:
devem agora aprender a esquecer seus furores,
criar almas meigas e corações de cordeiro?
73
72
Ibidem, p. 131, vv. 907-911.
73
Ibidem, p.131, vv. 921-927.
59
Tentam persuadir o governador, em audiência blica, a desistir das leis impostas
aos índios pois, afinal, por determinação de D. João III e da Providência, as terras
brasílicas haviam-lhe sido confiadas para que, em boa paz, dirigisse e olhasse pelo
bem-estar de todos os súditos.
Como poderiam abandonar a guerra e a sede de carne humana, hábitos tão
antigos, sem causar dor e sofrimento aos colonos ?
Resoluto, o governador, cujo peito era sacrário de Deus, confiado no poder de
Jesus, cujo nome ansiava por tornar conhecido naquelas bárbaras plagas, com ânimo
tranqüilo e semblante sereno, virtudes de um herói, responde:
Vive o Deus que criou céus, terras e mares
ante o qual tremem as abóbadas do firmamento
e as colossais muralhas do imenso universo.
Sua dextra trar-nos-há auxílio a seu tempo
e livrará os cristãos de tamanhas desgraças.
74
Justificam-se, assim, a partir daí, todas a ações praticadas pelo governador:
agindo em nome de Cristo, pretendia, tão-somente, desterrar o tirano infernal e libertar
os brasis de sua influência ou “trocar sua ferocidade por modos mais humanos” e levá-
los a conhecer o nome do Eterno. Vejamos alguns versos que corroboram essa idéia:
Começa a bárbara terra
a sacudir dos ombros o tirânico jugo do inferno.
Arrancada às trevas do escuro e lúgubre abismo,
vai receber a luz divina do Sol sem ocaso,
aprender as leis santas do Senhor Jesus Cristo,
abraçar-lhe a fé e salutares doutrinas.
75
74
Ibidem, p.135, vv. 988-992.
75
Ibidem, p. 135, vv. 1013-1018.
60
Após isso, Anchieta mostra como o ilustre e piedoso governador implantou entre
povos tão feros as suas determinações, para honrar o nome vitorioso, forte e imortal de
Jesus. Decidido a impor nova ordem, novos costumes, o magnânimo chefe manda
construir quatro aldeias para acabar com o nomadismo e para que os índios fossem
evangelizados.
Nelas, impõe “santas leis”: reconhecerem e amarem o único Deus, cessarem as
guerras e matanças, deixarem de praticar a antropofagia, respeitarem a
indissolubilidade do matrimônio, abandonarem as bebedeiras e orgias, deixarem o
curandeirismo. Assim:
Acorriam de todas as partes, movidos da fama
e do muito medo que do governador se espalhara;
todos se submetiam a si, suas esposas e filhos
sem ousar opor-se ou confiar em seus braços e armas.
76
Anchieta diz que o próprio Deus parecia falar ao governador:
Sujeita as plagas brasílicas! Que o terror e o tremor
que inspiras invada as aves e os brutos da terra,
invada os povos cruéis, que rompendo alianças,
contra a lei natural, matam e despedaçam os homens
à maneira de feras.
77
Também a seus ouvidos soava a voz de Cristo:
Força-os a entrar em meu santuário!
que de povos diversos a minha casa transborde!
78
76
Ibidem, p. 137, vv. 1038-1041.
77
Ibidem, p. 139, vv. 1089-1093.
78
Ibidem, p. 139, vv. 1094-1095.
61
O herói Mem de continua suas ações: manda erguer quatro templos para
realizar a catequese dos índios. Antes disso, a vitória de Cristo-Rei sobre o tirano
infernal, que se retira das terras brasílicas, é cantada pelo poeta.
A ação do herói é lica, mas as vitórias são das bandeiras da cruz que começam
a brilhar por entre os povos brasílicos.
Se age inspirado por Cristo, não nos parece descabido dizer que uma
indissolúvel imbricação entre sua ação política e os resultados provenientes dela, que
são espirituais. Ou seja, Mem de Sá amansa o corpo e os jesuítas, a alma.
Retornemos aos quatro templos. Paulo, Tiago e João. Esses os homenageados
que dão nome às igrejas.
Não por acaso. Foram apóstolos que sofreram em nome de Cristo e se, para os
portugueses, a conversão dos indígenas era uma missão sagrada,
Não foram as pedrarias do Oriente e as riquezas do Ganges,
[...]: foi, sim, o zelo abrasado
de levar teu nome, ó Cristo, a todas as gentes,
em qualquer clima da terra, o que moveu o régio peito
a afrontar sendas desconhecidas, trabalhos na terra,
ameaças no mar, e a rasgar com esquadras inteiras
oceanos inteiros e dantes jamais navegados.
79
Então, os lusos estavam igualmente dispostos, em terras do Sul, ao sofrimento em
nome de Cristo.
Por último, levanta-se o templo do Espírito Santo, aquele que vida às almas.
Neles, aprendem os Brasis os hábitos santos de Cristo. Pela mão firme do chefe, os
índios passam a freqüentá-los e seguem os mandamentos de Deus.
79
Ibidem, p. 167, vv. 1701-1709.
62
Além disso, não os versos anteriormente citados sugerem e reforçam essa
relação indissolúvel entre o poder temporal, o império, e o poder espiritual, a fé.
Imediatamente aos benefícios trazidos aos índios pelo levantamento dos quatro
templos e, ainda na direção do sofrimento em nome de Cristo, Anchieta dedica muitos
versos para exaltar a ação dos jesuítas junto aos índios e, também, junto ao governador
Mem de Sá:
Aí, os raios ardentes do sol a estiolar sem piedade,
as chuvas, as sedes, as fomes a atormentar de contínuo
esses heróis, irmãos unidos num só coração,
ufanos do nome de “companheiros de Cristo Jesus”.
80
Os jesuítas lutam para que as bandeiras fulgurantes do augusto Rei se desfraldem
e a obra da cruz rebrilhe imortal, pois “Rei é Cristo e seu império se estende na terra,
nas ondas, no espaço, e de direito inalienável reclama para si as plagas brasílicas.”
Na seqüência, Anchieta diz que seus versos não estão à altura de narrar tantos
feitos praticados pelo governador Mem de Sá, que rende graças ao Pai Celeste por ver
que a e a piedade sinceramente se cultivam, agora, entre os índios. Todavia,
muito que conquistar ainda.
Eis que os índios de Ilhéus levantam-se contra os colonos daquela região.
Viaja com a sua frota, então, o governador, para socorrê-los. leva consigo,
nessa empresa, frutos de suas ões, índios cristianizados que lutarão ao lado dos
portugueses.
Em Ilhéus, viviam tranqüilos os lusos, cultivando seus campos. Mantinham um
bom relacionamento com os índios, mas eis que esses se rebelam e encurralam os
colonos, prontos para atacar suas casas ou deixá-los à míngua.
80
Ibidem, p. 147, vv. 1273-1276.
63
O poeta diz que os índios começaram a encher-se de altivez e fereza, “rompendo
as doces cadeias da antiga amizade” .
Na voz do herói, apenas uma frase que justifica a ação contra os índios de Ilhéus:
“terão a sua paga!”
E parte, confiando na providência divina, mesmo contra a vontade dos colonos de
Salvador que, temendo pelo levante dos índios que tinham acabado de ser subjugados,
pediam que ele permanecesse para defendê-los, se necessário.
Ao chegar a Ilhéus, acometeram contra o inimigo, pego de surpresa, e queimaram-
lhe quatro aldeias.
Seguem-se mais dois combates, mas com a proteção de Deus, vencem os
portugueses.
Não restando outra saída, os índios, então, pedem paz e prometem submissão às
leis de Mem de que vibra de alegria ao ver os selvagens submissos e ansiosos por
conhecer o nome de Cristo. Afinal, não fora a cobiça de glórias ou riquezas o que levou
o monarca português a dominar as terras brasileiras, mas o zelo pela evangelização.
Livro III
Feitos maiores serão cantados, anuncia o poeta no livro III. Interessantes o os
versos:
Convidam-me feitos maiores, forçam-me a seguir os soldados,
lançar-me de novo às ondas revoltas e desbravar os recessos
da floresta sombria.
81
81
Ibidem, p. 169, vv. 1735-1737.
64
Sabemos que as fontes de Anchieta para escrever o “De Gestis” foram indiretas,
ou melhor, orais
82
, não tendo havido qualquer participação sua durante as empresas
do governador-geral.
Por isso, os versos acima sugerem uma participação não de Anchieta, mas da
própria Companhia de Jesus, enfatizando, então, uma ação que não era somente
política, mas também teológica.
Terra grande, havia, ainda, muito por dominar em nome de Cristo-Rei. Os
combates prosseguiriam.
Após dizer que os lusos usufruíam ainda da paz, referindo-se às recentes
conquistas de Ilhéus, Anchieta relata o motivo que levou à guerra do Paraguaçu: três
cristãos haviam sido mortos por bárbara tribo enquanto pescavam nessa região.
Mem de Sá, então, após receber a triste notícia, “ferido no íntimo d´alma”, partiu de
Salvador ao local dos crimes para vingar tais mortes.
Ciente de que tudo sucede por permissão divina diz:
Creio chegado o grande dia em que a bárbara tribo
receberá em morte cruel o castigo que pedem
tantos crimes cometidos, tanto sangue inocente vertido.
83
Mas antes, preparando-se para vingar as mortes injustas e abalado por dor
imensa, envia, por prudência, tentando evitar derramamento de sangue, emissários à
tribo, exigindo que os assassinos sejam-lhes entregues, amarrados pelas mãos, para
que pagassem pelos crimes.
82
Segundo Armando Cardoso, op. cit., p.36, as fontes do “De Gestis” são orais: são informações que Anchieta
colheu da própria boca de testemunhas visuais, capitães, soldados e do mesmo Nóbrega, quando se reuniram todos
em S. Vicente (abril de 1560), depois da vitória do Rio de Janeiro (16 de março de 1560).
83
ANCHIETA, Joseph S. J., op. cit., p. 169, vv. 1758-1760.
65
Insuflados por outros índios que tinham acabado de chegar àquela região, “loucos,
a quem a desenfreada sede de sangue atiçava mais ativa em labaredas de raiva os
peitos ferozes”, eis a voz do poeta, não lhes entregam os assassinos e ainda dizem que
não havia o que temer perante esquadrões de mulheres.
Afrontado dessa maneira, o governador e seus soldados, além dos índios
cristianizados, atacam e derrotam o primeiro forte dos inimigos.
Antes do confronto, no entanto, evidenciando uma das paixões dos índios,
Anchieta diz que, “arrebatados de ardor, os peitos selvagens suspiram pelos belos
riscos da guerra” e, em contraponto, “inflama-se além do ordinário a mocidade lusa.
Anseiam partir e domar essas hordas com o braço carregado de vingança”.
Sobre os perigos que a região oferecia, exaltando, portanto, a coragem dos
portugueses e não deixando de, mais uma vez, conformar os índios quais animais:
De há muito tempo que brancos não tinham pisado
essa terra. Cercados de toda a parte por densas florestas,
os inimigos habitavam em escarpados rochedos,
como leões ferozes metidos em escuras cavernas.
84
Diante da bandeira da cruz, durante o ataque ao primeiro forte, prosseguem as
imagens que comparam os índios a animais: caem já aos índios brutais os brutos
braços e pernas” e o inimigo é lançado nas tocas dos bosques, “como alcatéia de
lobos.” Na seqüência, narra Anchieta o episódio do braço furtado.
Após a primeira vitória, enquanto descansavam, escutou-se de boca em boca um
murmúrio de que um braço havia sido furtado de um inimigo morto no combate.
84
Ibidem, p. 173. vv. 1845-1848.
66
Coloca-se em destaque, então, durante alguns versos, a paixão dos índios por
carne humana.
Desta vez, no entanto, a antropofagia teria sido praticada, mostrando a sua
recaída no antigo hábito, por um dos índios convertidos de Mem de Sá, que, ao saber
disso, agiu prontamente:
Mal chegou o rumor aos ouvidos do Chefe piedoso
manda apregoar em alta voz por todos os bandos
a ameaça de morte para quem se manchou de tal crime,
se não restituir esse braço e o não ajuntar quanto antes
ao corpo do qual o cortara às escondidas de todos.
85
Estremeceram-se todos; um calafrio lhe correu pelos ossos ao ladrão; foi-se
depressa e repôs às ocultas o manjar mal havido e em vão cobiçado, diz Anchieta, pois,
afinal, a Mem de “tão grande amor de Cristo lhe inflamava o desejo de abolir os
costumes cruéis dessa bárbara gente!”.
Depois, atacam o segundo forte e deixam como resultado do combate cento e
sessenta aldeias incendiadas e mil casas arruinadas.
Em versos anteriores ao combate, o poeta anunciava o massacre “erguem-se
lestos, decididos a exterminar o inimigo e devastar-lhe com a vingança do fogo todas as
casas”.
Ao descrever o segundo forte, diz que fundo vale parece descer ao abismo do
inferno. Os portugueses estavam dispostos a isto: sofrer carregando a bandeira da
cruz, pois, mesmo diante de enormes pedras que os índios rolavam para atingi-los, o
poeta dirá que “aos esquadrões de Cristo nem flechas nem pedras conseguem parar”.
85
Ibidem, p. 175, vv. 1878-1882.
67
Como foi dito acima, o herói vence o combate, deixando as aldeias dizimadas.
Vejamos como o narrador figura essa ação:
Quem poderá contar os gestos heróicos do Chefe
à frente dos soldados, na imensa mata! Cento e sessenta
as aldeias incendiadas, mil casas arruinadas
pela chama devoradora, assolados os campos,
com suas riquezas, passado tudo ao fio da espada!
86
Em decorrência da ação do herói:
Choraram a perda dos pais os filhos queridos,
carpiram as mães inconsoláveis a perda dos filhos,
a esposa, agora viúva, chora a morte do esposo.
Morreram muitos à míngua perdidos na selva,
e, fato horroroso! Com as próprias mãos, pais desumanos
mataram os filhos que pelos bosques os seguiam chorando,
para que o choro deles não atraísse o inimigo.
87
O terror se estendeu, estendeu-se o luto profundo: tudo eram lágrimas, prantos e
espectros de morte. Por quinze dias, os portugueses incendiaram casas, talaram
campos e mataram os índios que encontraram pela frente. Após isso, fechando a ação
do herói, na voz do poeta “era tempo de voltar aos lares, rever as igrejas, casas de
Deus, levando em triunfo o pendão da vitória”.
Na volta, de surpresa, os índios atacam os portugueses, mas, rechaçados pelo
chefe valente que a muitos mata, “o herói, com braço fulminante, vai vibrando seus
dardos, com o peito varado lado a lado vão tombando os selvagens”, fogem para o
abrigo das matas.
86
Ibidem, p.179, vv.1952-1956.
87
Ibidem, p.179, vv. 1957-1963.
68
Ao pisar a terra, o herói, cercado de seus batalhões triunfantes, rende louvores ao
Deus eterno, pois graças a Ele “o medo e o pavor invadiu os bandos selvagens” e
“assim se desfizeram os bárbaros à vista de Cristo e foram despenhados nos escuros
abismos da morte”.
Durante o combate, enquanto os soldados cristãos devastavam o solo inimigo,
eram os colonos quem “erguiam preces e mais preces ao Deus das batalhas, para que
refreasse a cólera e o furor dos selvagens e o exército fiel alcançasse completo triunfo”.
Novamente, a bandeira da cruz é desfraldada.
Vencidos, três dias depois, os índios comparecem diante de Mem de para
entregar-lhe os assassinos que tinham desencadeado guerra tão cruel. Suas mãos
estão úmidas ainda do sangue cristão que derramaram havia pouco, diz o poeta:
Colocam-nos aos pés do Governador e suplicam,
já tímidos, que deponha a ira e expulse do peito
o justo rancor.
88
Prometem obedecer às suas leis e pedem paz. O governador ouviu com bondade
essas palavras, imagem positiva do herói, conformada pelo poeta, e respondeu:
Se vos fiz guerra cruel de extermínio,
devastando os campos e lançando em vossas moradas
o incêndio voraz, levou-me a isso vossa audácia somente.
Já agora, esquecidos os ódios, vos concedemos contentes
a aliança e a paz que quereis e sentimos vossa desgraça.
89
88
Ibidem, p.183, vv. 2046-2048.
89
Ibidem, p.183, vv. 2066-2070.
69
Recorrentes ao longo da obra, Mem de Sá, então, impõe-lhes as mesmas leis:
abandonar as contínuas guerras entre si, a antropofagia - que expulsem do peito a
crueldade e o hábito horrendo de saciarem o ventre, à maneira de feras raivosas, com
carnes humanas” -, guardar os mandamentos do Pai celeste e a lei natural e construir
igrejas: “aí serão instruídos na lei divina e, de vontade, abraçarão com os filhos a de
Cristo, porta única do caminho do céu.”
Além disso, incorporados ao Cristianismo, passam também a ser súditos da
Coroa portuguesa. Vejamos os versos:
[..] tudo quanto roubaram dos Cristãos às ocultas
ou por assalto, em tantos anos, os próprios escravos
mortos ou devorados, tudo pagarão e mais os tributos.
90
Sendo assim, submissos, os índios passam a praticar quanto lhes manda o
governador e, de bom grado, sujeitam-se aos preceitos divinos, ansiosos de abraçar a
fé e ouvir a palavra da salvação.
Na voz do poeta:
Finalmente, ó Bárbaro, abriram as portas de ferro
de teu coração, por tantos anos fechadas!
[...]
[...] livra-se agora das cadeias do inferno,
escapa das fauces do leão que rugia à sua volta
e entra para o teu rebanho, ó Jesus, bom pastor!
91
90
Ibidem, p.185, vv. 2081-2083.
91
Ibidem, p.185, vv. 2088-2100.
70
Depois de subjugar os índios do Paraguaçu, Mem de Sá prepara-se para ir vingar
a morte do Bispo Sardinha, morto e devorado pelos índios caetés, após ter sobrevivido
a um naufrágio. No entanto, isso não acontecerá, pois empresas maiores esperam pela
intervenção do governador.
Convocado, dirige sua armada para o Rio de Janeiro: precisava expulsar os
franceses que lá haviam fundado, ilegalmente, uma colônia.
Todavia, antes que o combate contra os franceses seja relatado, o poeta
interrompe o curso da narração para, recuando no tempo, precisamente junho de 1556,
narrar o episódio do naufrágio do Bispo e do seu derradeiro fim nas mãos dos caetés.
Anchieta, o poeta, não faz uma narração linear dos fatos, pois seguindo a tradição,
começa a narrar o “De Gestis”, que é um poema épico, in media res
92
, ou seja, no
meio dos acontecimentos.
Portanto, a narração não seguiu desde o início temporal da ação “e trezentos e
doze lustros o tempo volvia”, ou seja, o lustro que se inicia em 1556 e vai até 1560,
conforme anuncia o poeta.
93
Desta forma, é possível ao poeta retomar, mais tarde
94
, acontecimentos que foram
omitidos no início da ação sem, contudo, a História perder a verosimilhança ou a
92
Também começam in media res- a Odisséia, de Homero, e a Eneida, de Virgílio. A Ilíada segue a ordem
cronológica dos fatos narrados.
93
Anchieta, no entanto, não desconhecia o ano da chegada do governador: o tempo poético, como deve ser, é
impreciso para a rígida cronologia do tempo da História. Mem de chega ao Brasil em dezembro de 1557 e logo
envia seu filho Fernão de à empresa do Espírito Santo, que ocorreu no início de 1558. Então, a narração começa
com a sua chegada e a pronta intervenção de seu filho nesta capitania.
94
Isso é possível devido ao uso da analepse, figura de linguagem que, na narrativa literária, traz um fato passado para
o presente da história relatada. Trata-se, portanto, de um fenômeno de anacronia (do grego, ana - contra e chronos
tempo). Refere-se, portanto, às alterações entre a ordem dos eventos da história e a ordem em que são apresentados
no discurso. Desta forma, o narrador tanto pode antecipar os acontecimentos (prolepse), quanto recuar no tempo
(analepse). Parece-nos que Anchieta, na Epístola Dedicatória, que não faz parte da estrutura da poesia épica, da
forma como foi colocada por ele, ao fazer um breve resumo das ações que seriam narradas, ou melhor, dos feitos que
Mem de Sá, por intervenção divina, havia praticado em terras brasílicas, acaba fazendo uso da prolepse e consegue,
com isso, fornecendo informações antecipadas, manter a expectativa do leitor.
71
credibilidade dos fatos narrados, uma vez que é da epopéia narrar com maior ou menor
veracidade algum acontecimento histórico.
Anchieta faz uso, então, desse recurso para recuar no tempo e narrar a desdita do
Bispo Sardinha: “provoco pranto dos olhos e reabro com o verso cicatrizadas feridas”.
Fiquemos, no entanto, com apenas alguns versos que nos ilustram a maneira
como o Bispo foi morto, após naufragar e ter imaginado que os índios, que lhe
socorreram, ofereciam também a amizade:
Rápido, vem-lhe ao encontro, pela parte contrária
o desalmado inimigo, de espada em punho. Cego de raiva,
com a foice recurva lhe fende pelo meio a cabeça,
afeiando a fronte ungida, com ferida de morte:
ele caindo forma na margem vasta mancha de sangue.
Os membros todos lhe desfalecem aos poucos: em breve,
espetáculo lastimável, exala o derradeiro suspiro.
95
Anchieta, ao narrar esse episódio, leva as cenas aos olhos do leitor. Talvez, um
recurso para convencê-los da real necessidade de subjugar os índios, justificando,
portanto, as ações de Mem de Sá e também da Companhia de Jesus. Afinal, não agiam
sem motivação. O braço impiedoso dos caetés havia causado morte infamante a muitas
vidas, entre elas a do Bispo. Encheram a praia de corpos cristãos, imolados cruamente.
Banharam as praias com sangue inocente:
Ei-los que jazem nus os corpos dos portugueses crivados
de enormes feridas, mesa posta à rapina das aves
e à gula não menos feroz dessa bárbara gente.
96
95
ANCHIETA, Joseph S. J., op. cit., p.193, vv. 2260-2266.
96
Ibidem, p. 193, vv. 2275-2277.
72
Como já dissemos anteriormente, não pôde Mem de Sá ir a essas paragens vingar
a morte do Bispo. Não dentro do âmbito do poema escrito por Anchieta. Historicamente,
no entanto, noutros momentos, os caetés praticamente foram dizimados devido às
ações do governador.
Mas, fechemos o livro III com as intenções do governador em vingar a morte do
Bispo:
Estava o Governador valente decidido a vingar-se
essas mortes cruéis e a domar o feroz inimigo
com represálias: se maiores combates não o chamassem
a outro campo. Maiores trabalhos pela honra de Cristo
e pela conquista da verdadeira glória o esperam.
97
Livro IV
Anchieta abre esse livro referindo-se à região do Rio de Janeiro e às constantes
guerras que os tamoios fazem aos portugueses, seus vizinhos:
Aprisionam os homens traiçoeiramente, saqueiam
as propriedades sem guarda, lançam o incêndio nos campos
e cometem mil assassínios em freqüentes sortidas.
98
Todavia, dirá que os índios sofrem influência dos franceses que, ao lhes praticarem
o escambo, amansam os seus corações ferozes para receberem em troca o pau-brasil.
Assim, tentam para si, arrastados pela cobiça, o que os lusos alcançaram com grande
trabalho, pois, movidos de furiosa coragem, usurpam reinos alheios. Mais ainda:
97
Ibidem, p.193, vv. 2296-2300.
98
Ibidem, p.195, vv. 2311-2313.
73
com o coração infeccionado pela heresia,
e com a mente opressa pelas trevas do erro,
não só todos se afastam do reto caminho da crença,
mas procuram perverter, assim, dizem, com falsas doutrinas
os míseros povos índios, de todo ignorantes.
99
Por isso, desta vez, não se travará um combate somente contra os selvagens da
terra, mas, sobretudo, contra a heresia dos franceses que, além de tentarem tomar
terras lusas, procuravam, também, perverter com falsas doutrinas os povos índios, de
todo ignorantes.
O herói, compassivo, ao chegar ao local, assim como fizera no Paraguaçu,
percebendo que a guerra seria sangrenta, manda ao chefe francês um bilhete,
propondo-lhe que se retire pacificamente das terras lusas.
Antes disso, porém, apreende uma nau francesa. Tentando impedir que isso
acontecesse, os que estavam na fortaleza lançam contra a nau portuguesa bolas de
fogo, mas, como já acontecia nos combates contra os índios, surge-lhes proteção divina
e, em vão, as balas de canhão cortam os ares: antes, a pólvora explode no próprio paiol
francês, causando a morte de sete soldados, cujo destino será o mesmo dos índios
inimigos:
Infelizes! Começam já a sentir as chamas do inferno
em que os ímpios corações, manchados pela heresia,
sofrerão o eterno castigo que seus crimes merecem.
100
Voltemos, então, ao bilhete enviado ao chefe francês Bois-le-Comte, mostrando
como Anchieta figura a nobreza do herói que, ao ir à guerra, não o faz por paixão
pessoal. Busca, tão-somente, a justiça.
Prudente, no entanto, tenta evitar o combate:
99
Ibidem, p.195, vv. 2327-2331.
100
Ibidem, pp.197-199, vv. 2383-2385.
74
A fama, general glorioso, te canta como excelente
em feitos prestantes, e longa experiência da guerra
e também as belas artes todas te poliram a alma.
Não creio, pois, que te hás de lançar a empresa tão árdua
para defender uma causa injusta, contra todo o direito
divino e humano, com a morte de tantos soldados.
Essa terra que habitas é nosso domínio intangível:
pois que a conquistou o trabalho esforçado dos lusos.
Se te aprouver abandonar nossos reinos, de grado,
como o ordena o nosso e vosso rei, será suprimida
toda a ocasião de manchar nossas dextras com sangue,
e nada sofrerá por isso a tua honra de chefe.
101
E prossegue o discurso do herói:
Doutro modo, decididos estamos a atacar sem piedade
a fortaleza e a travar horrendo e cerrado combate,
manchar as mãos de sangue e a tingir de vermelho
as naus, os rochedos e as praias brancas de areia.
Fá-lo-ei contra a vontade, testemunha me seja
Deus aqui presente: tu só darás conta tremenda
do que suceder, no tribunal do Senhor. Responsável
tu só o serás dos crimes, das ruínas e sangue
que se derramar: do alto do céu nos contempla
Cristo que um dia virá julgar-nos os atos da vida.
102
Ao qual responde o chefe francês, depois de dizer que não abandonaria as
muralhas erguidas para proteger a fortaleza:
[..] tu vê bem a guerra que intentas.
Temos grande soma de munição, espadas luzentes,
artilharia rija, dardos incendiários, armaduras
para proteger os corpos afeitos a guerras contínuas.
Tudo enfim está bem preparado: aqui estou eu a postos
para defender os rijos muros da fortaleza.
Vamos pois! Prontos estamos para a defesa do forte!
103
101
Ibidem, p.199, vv. 2391-2402.
102
Ibidem, p.199, vv. 2403-2412.
103
Ibidem, pp. 199-201, vv. 2427-2433.
75
Diante dessa resposta, aparece a voz do jesuíta-poeta contra o inimigo francês,
pois Deus está do lado dos lusos:
Que cega loucura, ó Francês altivo, que soberba tamanha,
que incêndio de cólera te invadiu a cabeça?
Rejeitas a paz que te oferecem? Com que auxílio confias
conservar a vida? Cruéis batalhas te aprestam
a morte, nem pouparão a pequeno nem grande.
104
A soberba e a altivez, atribuídas ao inimigo francês, são adjetivos que, até agora,
haviam sido utilizados para conformar negativamente a imagem do índio arredio aos
portugueses. Mais do que adjetivos, são paixões que Anchieta, assim como fizera aos
índios, aplica ao inimigo francês
Sobre a dificuldade de escalar o forte francês:
Tanta confiança te inspira o alcantil deste forte?
Sim, mas não é fácil ao Senhor, desde seus fundamentos
arrasar garbosas cidades e espatifar contra o solo
altaneiras torres? Ele que sacode as muralhas do mundo
e com um aceno aterra os firmamentos celestes?
105
O combate está na iminência de acontecer. Antes, o governador pede reforços
aos de São Vicente. Tropas de índios cristianizados vêm para ajudar. Junto, trazem um
jesuíta para que os soldados se confessem antes da guerra.
Nesse ponto, falando da importância dos jesuítas durante o combate, pois “dia e
noite, com fervor sua mente e seus lábios se voltam ao Pai celeste[...], pedem-lhe que
os auxilie e dê aos nossos guerreiros a mais gloriosa e o mais estrondoso triunfo”,
104
Ibidem, p. 201, vv. 2435-2439.
105
Ibidem. p. 201, vv. 2440-2444.
76
Anchieta, como fizera na epístola dedicatória, antecipa o resultado dos
acontecimentos da guerra nos versos que se seguem:
Foram eles, estou certo, que com seus gemidos e queixas
comoveram os céus e lhes abriram as portas da graça;
eles que, dardejando do peito ardente setas de fogo,
moveram o Pai eterno a prostrar o inimigo,
incutir-lhe terror e afugentá-lo para longe do forte.
106
Prepara-se o governador para atacar a fortaleza quando ouve dos seus que era
impossível escalar o forte inimigo. Mas, magnânimo, tinha no peito o desejo de, acima
de tudo, propagar a fé. Apoiado, então, na força divina, opõe-se a todos e decide-se
pelo ataque. Deus incutirá forças e ajudará compassivo a causa do justo e do fiel. Com
a destra potente, castigará com a morte corações ímpios, vazios da verdadeira. Na
voz do herói:
Confiados, pois, na força do Deus invencível,
lancemo-nos à grande empresa para a glória divina.
107
E novamente, a imagem da bandeira da cruz:
Preceda-nos o estandarte fulgente do triunfo de Cristo,
e a desejada vitória seguirá a bandeira da Cruz.
108
Incendiados pela fala do comandante, todos ficam impacientes pela guerra, ou
melhor, pela causa santa da fé e da glória divina.
106
Ibidem, p. 201, vv. 2467-2471.
107
Ibidem, p. 203, vv. 2507-2508.
108
Ibidem, p. 203, vv. 2509-2510.
77
Antes, confessa-se o herói aos pés do ministro sagrado, purificando sua alma das
culpas e fortalecendo-a com as armas de Cristo. Imitam-no seus soldados.
Adiante, os versos que corroboram, mais uma vez, a idéia dos dois campos
semânticos, estabelecida desde o início do poema.
No entanto, agora, a bandeira do demônio é carregada pelos hereges calvinistas:
Chegara o dia que veria as batalhas sangrentas
de corpo a corpo, e de bandeira contra bandeira.
109
Adversários poderosos, descreve-se o forte inimigo e a sua quase inacessibilidade
para, em seguida, exaltar a ação dos portugueses, ou melhor, de Mem de Sá.
O herói, por inspiração divina, usando de estratagema, consegue afastar os
inimigos da defesa do forte, fazendo-os acreditar que os portugueses encontravam-se
em grande dificuldade durante o combate.
Sobre isso, aparece novamente a voz do poeta:
Loucos! deveriam ter ficado no sítio marcado
para afastar do acesso à colina os soldados intrusos,
único posto que permitia o ataque do forte.
Mas aguilhoada pela paixão infrene do sangue,
a instável multidão em vão se arroja furiosa
e tresloucada vence o grande espaço de areia.
110
A paixão desenfreada pelo sangue não é, nesse caso, uma alusão à antropofagia
indígena. O inimigo nessa parte do poema é, sobretudo, o francês herege, ainda que
tenha por aliado o índio tamoio. A desrazão, confirmada pelos adjetivos furiosa e
109
Ibidem, p. 205, vv. 2528-2529.
110
Ibidem, p. 207, vv. 2601-2606.
78
tresloucada, além de loucos, mostra apenas que eles não seguem a mesma bandeira e,
infeccionados pela heresia, com as mentes atormentadas pelas trevas do erro, se
afastam, portanto, do reto caminho. Ou melhor, não agem por inspiração divina,
reforçando o antagonismo com o herói.
Como desfecho dessa parte do combate, os portugueses conseguem tomar a
primeira colina e fincam nela a bandeira da cruz resplendente.
O combate prossegue e os portugueses atacam a segunda colina.
Sendo as forças equivalentes, não vencedor nesse primeiro confronto para a
sua tomada. Vejamos alguns versos para ilustrar esse combate:
[...] Ferve duro o combate
de uns e de outros. Cortam o ar as flechas zunindo
de parte a parte. Gemem os arcos ao golpe da corda,
e a bala metálica sibila rente às cabeças.
É um incêndio o ardor da luta. [...]
[...]
De parte a parte voam nos ares as flechas velozes
e o combate flutua daqui e dali, com sorte indecisa.
Não cedem estes, nem aqueles recuam vencidos;
nem estes arredam pé, nem voltam costas aqueles.
111
Afastam-se os dois exércitos e o combate prossegue, mesmo próximo ao pôr do
sol, pois “os Franceses, como não puderam num primeiro combate reconquistar em
contra-ofensiva as águas perdidas, espumam de raiva e, aguilhoados pelo despeito,
retomam o combate, fiados em armaduras, agora.”
Cansados, as forças começam a faltar aos portugueses, que chegam a cogitar a
fuga. Todavia, conseguem, num último tiro de bombarda, matar dois franceses e
dispersar os demais.
111
Ibidem, pp. 211-212, vv. 2691-2710.
79
De nada adianta. Em seguida, começam a perceber que seria impossível a tomada
da segunda colina. Mais ainda. A pólvora acabara durante os combates que se
seguiram. Alguns versos descrevem essa aflição:
Com que estratagema se acolherão aos navios
eles e os canhões, de tal sorte que o não sinta o inimigo?
A dúvida e o medo de um grande desastre os oprime.
Referve o anseio cruel no fundo de todos os peitos
e a imagem do perigo já paira em todos os olhos.
112
Não há no “De Gestis as constantes intervenções dos deuses mitológicos que
faziam uma guerra à parte, ou melhor, tomavam partido, ora ajudando seus heróis, ora
dificultando a vida dos adversários deles. Diante de uma situação humanamente sem
solução, eis que, devido aos deuses, o herói consegue resolvê-la. Percebemos isso na
“Eneida”, de Virgílio, a quem Anchieta imita em vários momentos
113
, e também na
“Odisséia”, de Homero.
Mas a epopéia de Anchieta não recorre aos deuses pagãos. Desde o início do
poema, carrega-se tão-somente a bandeira da cruz. E, por ela, uma luta entre os
soldados de Cristo, tendo Mem de como mero instrumento da vontade divina, e o
demônio, representado nas figuras do índio pagão e do francês herege.
Logo após a súplica do herói, o que se segue é uma intervenção do próprio Deus
cristão, de Roma, que sempre esteve ao lado dos católicos nessa empresa santa em
nome da fé. Diz-nos Anchieta:
112
Ibidem, p. 215, vv. 2775-2779.
113
Sobre isso, consultar a tradução e comentários de Armando Cardoso, op. cit., pp. 46-50. Não é objetivo desse
trabalho fazer uma detida comparação entre as passagens da “Eneida” que se repetem no “De Gestis”. Nossa leitura
da obra de Virgílio foi apenas superficial. Fica, no entanto, a idéia de no futuro fazer essa análise comparativa, pois
80
Então, como creio, o governador, no silêncio da angústia,
arrancou do coração estas vozes queixosas,
pedindo ao Pai celeste o auxílio que as forças humanas
não lhe queriam dar. Com os olhos cravados na altura
lançava para o céu estas palavras de prece.
114
Remete-nos, então, à súplica do herói:
Ai! porque nos entregas, supremo Criador do universo,
sem recurso nenhum, aos últimos riscos de vida?
Bem vês que nossas forças, rendidas por imenso trabalho,
já não podem subsistir. Como podes deixar que sejamos
o opróbrio do inimigo? Porque zombarão de teu nome
esses bárbaros? Porque há de o francês conspurcado
pelo crime feio da heresia, insultar teus soldados
cristãos e fiéis? A coragem nos abandonou por completo,
não resta outra força; compadece-te tu, senão perecemos!
[...]
Estende a mão bondosa e sinta teu furor justiceiro
a raça inimiga.
[...]
Vamos, apressa-te, corre em auxílio e levanta
os que estão a cair; e aos povos selvagens e ímpios
castiga-os! Experimentem o imenso poder de teu braço
nossos contrários! Enfim, arranca dos perigos presentes
o exército cristão que te ama e, respeitoso, te adora
e por tua glória se atira às mais duras pelejas.
115
E novamente, após a súplica do herói, aparece a voz do jesuíta-poeta:
Ouviu o Rei celeste estas vozes, ouviu juntamente
as que os Jesuítas e povos fiéis nesse tempo
arrancavam do peito, abalando com gemidos e prantos
as portas do céu compassivo. Não houve demora.
Oh! quem pudera sequer imaginar de que modo haveriam
Os ferozes Franceses de abandonar um forte tão firme
pela natureza e tão seguro pela arte da guerra?
116
sabemos, por vias indiretas, que Anchieta emula modelos não somente de Virgílio, mas, também de Lucano e
Estácio, autores cujas obras, até o momento, desconhecemos.
114
ANCHIETA, Joseph S. J., op. cit., p. 215, vv. 2780-2784.
115
Ibidem, pp. 215-217, vv. 2785-2805.
116
Ibidem, p. 217, vv. 2806-2812.
81
Deus, então, envia um ministro do exército alado e ordena-lhe que afugente
os inimigos da fortaleza, incutindo-lhes o terror pelas trevas da noite.
E “apenas o terrível temor transpôs os umbrais altaneiros da primeira porta,
todos de dentro começam a empalidecer; tremem, e pelos membros lhes coa
gelado pavor”.
Assim, batem em fuga os franceses, tamanho o terror que o Senhor Deus
onipotente lhes metera nas mentes e corações apavorados, e abandonam o forte.
Às pressas, tomam posse dele os portugueses, fincando, mais uma vez, a
cruz vencedora e aclamam o santo nome de Cristo. Olha o governador o forte e
rende graças a Deus que, de fato, havia afugentado o inimigo, pois força humana
alguma poderia ter arrasado tamanha estrutura.
Em versos anteriores, Anchieta agradece a Mem de Sá por ter tido a luz de
pedir auxílio divino num momento difícil para os portugueses. Por isso,
[...] no templo celeste
terás por destino a glória, e os coros dos anjos
te cingirão com a coroa de rei triunfante:
depois de sujeitares a Cristo os litorais brasileiros
e ensinares a venerar o nome santo de Cristo
.
117
Dentro do forte, não havia a imagem da cruz resplendente, nem a dos santos
que habitam o reino dos céus. Mas se encontram muitos livros que encerram
doutrinas crivadas de impiedades e erros.
Nesse momento, a voz de Anchieta aparece muito forte contra a doutrina da
Reforma, evidenciando a participação espiritual da Companhia de Jesus nesse
embate entre Deus e o Diabo.
Logo, referindo-se aos livros e atacando principalmente Lutero e Calvino,
117
Ibidem, p. 219, vv. 2869-2873.
82
Martim Lutero os compôs com mente perversa
e mandou a seus filhos observá-los à risca.
Enraivado, muitas blasfêmias arrojou contra o papa,
Sumo Pontífice e contra a Igreja, esposa de Cristo.
[...]
Também aí estava a fera que os abismos do inferno
há pouco arrotaram de suas vasas imundas,
dragão inchado de todo o veneno que o mundo
preparou em seus monstros. É Calvino, a serpente
de coleio variado e horrendo, que abraça no rolo
de suas espirais o forte, vibra olhares de fogo
e agita língua trífida em ruídos de morte.
118
Continua o ataque ao ímpio francês, dizendo que ele não podia ter-se fiado
na proteção de Calvino para vencer Cristo.
Fúrias ardentes, pura loucura, apossaram-se de Calvino quando,
desprezando a bandeira triunfante de Cristo, imaginou poder defender o forte,
pois o demônio havia sido derrotado quando Cristo estendeu os braços nus
sobre o lenho e derramou seu sangue.
Desta forma, primeiramente, erguem um altar no meio do forte e celebram a
primeira missa. O sacerdote, na veste sagrada,
celebra o banquete augusto do pão sacrossanto,
que jamais fora aí celebrado: a geração de Calvino
rejeita com impiedade o alimento celeste,
nem crê que as espécies de pão encerram a Cristo.
119
Em seguida, depois da matança, arrasam o forte: “assim ruiu o forte francês
desde as cimeiras, e o fogo num momento reduziu a cinzas esses muros altivos”.
Seguem-se, fechando a epopéia, hinos de louvor a Cristo, rei do universo, da
história humana e das almas.
118
Ibidem, p. 221, vv. 2884-2897.
119
Ibidem, p. 221, vv. 2913-2916
83
Ao rei do universo, agradecimentos pelas intervenções durante os combates
contra os infiéis e hereges, mostrando ao mundo o seu poder sobre todas as
coisas.
Ao da História, diz o hino: Tu és o único Senhor do mundo, tu dos globos
celestes és o Criador imenso que tudo moves, coevo do Pai e do Espírito Eterno,
eterno laço de amor.
E, finalmente, ao Rei das almas, após citar várias passagens do Velho
Testamento, tais como as da torre de Babel e as da travessia do Mar Vermelho,
feitos grandiosos de Deus em prol do povo escolhido:
Salve, artífice do mundo, Jesus, Glória do céu;
poderes e reinos te temem, veneram-te todos
os climas, aonde quer que chegue o Sol com seus raios,
e excede tua magnificência as alturas celestes.
Já o teu nome se espalha até aos confins do universo,
ó Cristo, como torrente de penetrante perfume,
chegando até aos Japões, os mais afastados da terra.
Arrancada às trevas e iluminada pelo sol fulgurante
da luz divina, também virá um dia adorar-te
a nação que se ceva agora em carnes humanas.
A terra em que sopra o Sul conhecerá o teu nome
e ao mundo austral advirão os séculos de ouro,
quando as gentes brasílicas observarem tua doutrina.
120
Com um canto de louvor a Cristo, Anchieta termina o poema antevendo o
futuro do Brasil: submeter o índio à doutrina cristã, ao Catolicismo. Os
portugueses foram eleitos para isso, depreendendo-se daí que o combate entre
as duas bandeiras continuaria e causaria ainda muitas mortes em nome de Cristo.
120
Ibidem, pp. 227-229, vv. 3042-3054.
84
3.1 - Sobre as guerras de Mem de Sá: a conversão pela política
No começo, quando os portugueses aportaram em terras brasileiras sob o
comando de Pedro Álvares Cabral, a convivência com os nativos parecia tranqüila e até
mesmo o olhar que projetavam sobre os índios mostrava uma certa benevolência: quais
folhas em branco, poderiam os lusos escrever neles, não somente os traços da
civilização, mas, sobretudo, os da santa fé católica, trazida e oferecida por eles.
Rezou-se a primeira missa e, após isso, saíram a terra com a bandeira de Cristo. E
mais, Cabral determinou que em lugar bem visível fosse erigido um cruzeiro e, ao seu
lado, um altar, onde foi rezada a segunda missa por Frei Henrique de Coimbra,
distribuindo-se, em seguida, cruzes entre os índios.
Sobre a convivência pacífica, os portugueses, no início, relacionavam-se com os
nativos praticando o escambo e, isso, não afetava a autonomia do sistema social tribal,
ou seja, os índios impunham sua autoridade e seu modo de vida.
121
No entanto, a partir de 1533, como vimos, essa forma de contato com os índios
será alterada e eles serão subordinados para favorecer o projeto de exploração da
terra, segundo o modelo mercantilista. Nesse sentido,
Subverteu-se o padrão de relação, passando a iniciativa e a supremacia para
as mãos dos brancos, que transplantaram para os trópicos o seu estilo de vida
e as suas instituições sociais.
122
Sendo assim, a substituição do escambo pela agricultura, tão necessária para que
121
Fernandes, Florestan. Antecedentes Indígenas: Organização Social das Tribos Tupis. In História Geral da
Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p. 80.
122
Ibidem, p. 81.
85
as capitanias prosperassem, alterou o modo como os portugueses encaravam os
nativos da terra. Antes, eles eram necessários para a sobrevivência dos portugueses,
propiciando-lhes alimentação e segurança. Depois, passavam a ser um obstáculo para
a posse da terra, causavam insegurança e importavam somente como mão-de-obra,
necessária ao plantio da cana-de-açúcar. Far-se-ia necessário, então, submeter o
indígena às necessidades lusas, ou sejam, dos colonos, dos agentes da Coroa e dos
jesuítas.
De uma forma ou de outra, todos eles agiam para subjugar os índios à dominação
lusa, recordando Florestan Fernandes.
Isso posto, para que compreendamos melhor os motivos das guerras conduzidas
pelo governador Mem de Sá, faz-se necessário dizer que, a partir das capitanias
hereditárias e, sobretudo, dos governos gerais, o clima de tensão entre os portugueses
e os índios era muito grande.
De um lado, as intenções já vistas dos portugueses e, do outro, a reação natural
dos indígenas, que tentavam preservar a sua autonomia diante dos brancos. Se se
submetessem aos portugueses, tornavam-se ou aliados ou escravos. Por sua vez, a
resistência
123
se dava também por meios passivos - migração de toda a tribo para
áreas às quais os portugueses não tivessem acesso -, como por meios violentos,
tentando expulsá-los da terra.
De uma imagem bela e agradável, da simpatia celebrada na carta de Caminha que
os coloca vivendo de acordo com a natureza, mansos e inocentes, passamos à imagem
123
Ibidem, pp. 84-86.
86
de índios bárbaros, que precisavam ser combatidos e até exterminados, e de índios
selvagens
124
, que deveriam ser civilizados e levados à fé católica.
Dados à antropofagia, às guerras constantes entre si e, devido ao fato de, na
opinião dos portugueses, não terem instituições sociais, jurídicas e políticas, ou, na
observação de Gandavo
125
, não possuírem nem F, nem L e nem R em sua língua,
significando, por conseguinte, a ausência de Fé, de Lei e de Rei, os índios passam,
então, por um outro filtro de olhar, criando-se-lhes uma imagem negativa diante dos
portugueses e dos europeus que recebiam essas mesmas impressões através de
cartas e crônicas que lhes chegavam às mãos.
Desta forma, por considerarem bárbaros os seus costumes e por acreditarem que
eles não tinham a capacidade de manter uma comunidade própria, deixá-los livres, a
bel-prazer, certamente significaria, aos olhos não pouco interessados dos colonos, um
grande perigo aos objetivos da colônia. Posteriormente, o preconceito contra os índios
aumentou, de tal forma, que não deveriam, segundo a afirmação difundida, ser
considerados seres racionais. Sobre isso,
torna-se difícil crer que algum branco tenha duvidado seriamente em considerar
os índios como homens realmente. O juízo sobre a raça americana parece,
pois, ter sido ditado antes pelo interesse do tipo econômico em encontrar
motivos justificados para a escravização do indígena.
126
124
No século XVI, quando os indígenas do Brasil são dados pelos colonizadores como “selvagens” ou como
“homens da natureza”, também são caracterizados como gente sem história. Em decorrência, como um campo aberto
para as intervenções das trocas civilizadoras. In Hansen, João Adolfo. A Servidão Natural do Selvagem e a Guerra
Justa contra o Bárbaro , p.352.
125
Gandavo, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil; História da Província Santa Cruz. Belo Horizonte: Ed.
Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1980, p. 52.
126
Thomas, Georg. Política indigenista dos portugueses no Brasil: 1500-1640. São Paulo: Edições Loyola, 1982,
pp.23-24.
87
Nem mesmo a opinião dos jesuítas parecia destoar da dos colonos. Certo é que os
objetivos de cada um eram diferentes, não concordando os jesuítas com a maneira pela
qual os colonos muitas vezes tratavam os índios.
Na opinião de Thomas(1982), não se encontra no Brasil do século XVI nenhum
missionário que partilhe das idéias de Las Casas.
De acordo com as concepções dos jesuítas brasileiros, o índio nem era o homem
inocente natural, conformado por Caminha, nem possuía os traços simpáticos que Las
Casas via neles.
Quanto a isso, Nogueira, um dos personagens do “Diálogo sobre a Conversão do
Gentio”, do jesuíta Nóbrega, diz
porque vemos que são es em se comerem e matarem, e são porcos nos
vícios e na maneira de se tratarem.
127
Corroborando essa mesma idéia, Thomas(1982) diz que também Anchieta,
“Apóstolo dos Índios Brasileiros”, não tinha muita simpatia por eles, embora os
defendesse contra a injustiça dos colonos. O seu julgamento do caráter do índio é
predominantemente negativo.
Para Anchieta, se encontravam mais perto das feras do que do homem devido
aos inumeráveis vícios: a poligamia, a beberagem, o gosto pela guerra, a pouca
127
Nóbrega, Manoel da. Diálogo sobre a conversão do gentio. In Cartas do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1988, p. 230.
88
inclinação para a fé cristã e a falta de docilidade.
128
Que se poderia esperar de “gente
tão bestial e carniceira, que vive sem lei nem rei?
129
Nesse sentido, buscando entender as guerras de Mem de Sá contra os índios
tupinambás de Ilhéus, ou melhor, o porquê de esses índios se oporem aos
portugueses, busquemos nas palavras de Nóbrega a explicação.
Em 1560, em carta enviada ao Infante Cardeal D. Henrique, o jesuíta descreve o
aumento do número de índios convertidos por causa das ações firmes do governador,
inclusive contra os colonos. Então:
A causa por que no tempo deste Governador se faz isto, e não antes, não é por
agora haver mais gente na Bahia; mas porque pôde vencer Men de Sá a
contradição de todos os Christãos desta terra, que era quererem que os Indios
se comessem, porque nisso punham a segurança da terra, e quererem que os
Indios se furtassem uns aos outros, para elles terem escravos, e quererem
tomar as terras aos Indios contra razão e justiça, e tyrannisarem-nos por todas
vias, e não quererem que se ajuntem para serem doutrinados [..]
130
Parecem-nos claro, nesse excerto da carta, os diferentes motivos de ão junto
aos índios: nos jesuítas, a intenção de converter os nativos da terra à fé cristã; nos
colonos, o desejo de expropriá-los de suas terras e torná-los escravos.
De qualquer forma, ambos os motivos levavam ao que Fernandes (1997) chama
de “destribalização”
131
da cultura indígena, ou seja, a desorganização deliberada das
instituições tribais, que pareciam garantir a autonomia dos nativos e eram vistas como
128
Quanto ao “bárbaro”, se define em oposição a “civilizado” : bárbaro é o que balbucia a língua que se quer
civilizada, ou seja, é o não-civilizado[...] Ou seja: só bárbaro” diferencialmente; para que exista, é preciso haver
uma civilização precedente ou contemporânea que ele destruiu ou tenta destruir. In Hansen, João Adolfo, op. cit.,
p.352.
129
Anchieta, José de. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 1988, p.243.
130
Nóbrega, Manoel da, op. cit., pp. 220-221.
131
Fernandes, Florestan, op. cit., p. 83.
89
“ameaças” à segurança dos brancos, como as instituições vinculadas à vida doméstica,
ao xamanismo e à guerra.
Na mesma carta, Nóbrega diz que Mem de
132
, por essas ações contra os
colonos, proibindo-lhes abusos contra os índios, ganhou inimigos, pois
Nesta terra, mais que em nenhuma outra, não poderá um Governador e um
Bispo e outras pessoas publicas, contentar a Deus Nosso Senhor e aos
homens; e o mais certo signal de não contentar a Nosso Senhor é contentar a
todos, por estar o mal assim introduzido na terra por costume.
133
Mais adiante, oferece-nos o motivo da guerra de Ilhéus:
Depois sucedeu a guerra dos Ilhéos, a qual começou por matarem um Indio no
caminho de Porto Seguro, e creio que foi por desastre, ou, por melhor dizer,
querer Nosso Senhor castigar aquelles Ilhéos, e feril-os para curar e sarar.
134
Aventamos a hipótese, sugerida por esse trecho da carta, de que, não raras vezes
as guerras eram provocadas pelos próprios colonos para poderem depois escravizar os
índios.
132
O governador que expulsou os franceses do Rio de Janeiro nasceu provavelmente em Coimbra, cerca de 1504. Era
filho de Gonçalo Mendes de e Inês de Melo, tendo como irmão o famoso poeta português Sá de Miranda. Casou-
se com Guiomar de Faria antes de 1533, com quem teve seis filhos. Jurista de Formação, obteve o grau de licenciado
em Leis pela Universidade de Salamanca, na Espanha, em 1528. Não era militar e nem homem de Corte. Alcançou
judicatura em plena mocidade, ocupando a partir de 1532 os cargos de desembargador da suplicação, corregedor dos
feitos civis da Corte e desembargador dos agravos. Era afamado por ser um “juiz probo e enérgico”, características
que iria demonstrar no governo da colônia. Em julho de 1556, foi nomeado terceiro governador-geral do Brasil, em
substituição a Duarte da Costa, chegando a Salvador em dezembro de 1557. A carta régia de sua nomeação, além de
fixar as metas do governo, concedeu-lhe o título de fidalgo da casa e do conselho do rei. Em contraste com os
governadores anteriores, D. João III concedeu-lhe amplos poderes de caráter político e de jurisdição cível e penal.
Encarregou o novo governador de solucionar o problema da presença francesa no Rio de Janeiro e estimular o
melhor aproveitamento da terra. Alguns historiadores têm argumentado que teria sido o perfil de magistrado eficiente
o principal fator de sua escolha para o cargo. A gestão anterior havia sido concluída em momento de grande disputa
entre autoridades coloniais, especialmente entre o filho do governador Álvaro da Costa e o primeiro bispo do
Brasil, Pero Fernandes Sardinha. A administração realizada por Mem de Sá, entretanto, seria marcada sobretudo pelo
seu desempenho militar, atributo que o distinguiu de forma decisiva no enfrentamento dos problemas com que se
debatia a governança do Brasil. In Dicionário do Brasil Colonial ( 1500-1808 ), Ronaldo Vainfas ( Org. ), Editora
Objetiva, Rio de Janeiro, 2000, pp. 387-388.
133
Nóbrega, Manoel da, op. cit., p. 221.
134
Ibidem, p. 221.
90
Nóbrega, coerente com a ação da Companhia de Jesus, na morte do índio,
nesse episódio, talvez um acidente, ou o próprio desígnio divino, permitindo levar aos
índios, depois da dor, o amor da fé cristã.
Finalmente:
e lá deu-se tão boa mão, que em menos de dous mezes que esteve, deixou
os Indios sujeitos e tributários, e restituiram o mal todo que tinham, assim
aquelle presente, como todo o passado, e obrigados a refazerem os engenhos
e não comerem carne humana e receberem a doutrina, quando houvessem
padres para lh´a dar; de maneira que
agora a geração dos Topinaquins, que
é muito grande, poderá tambem entrar no Reino dos Ceus.
135
Na mesma carta, Nóbrega notícia da guerra do Paraguaçu. Mostra-nos,
entretanto, o mesmo motivo da de Ilhéus, mas às avessas: os índios haviam matado
quatro pescadores que se encontravam em suas terras.
Mem de Sá, ao aportar nessas paragens, mandou que lhe entregassem os índios
que haviam provocado tais mortes. Diante da recusa, com o auxílio de índios
cristianizados,
Entrou pelo Parauaçú, matando muitos, queimando muitas aldeias, entrando
muitas cercas, destruindo-lhes seus mantimentos, cousa nunca imaginada que
podia ser, porque geralmente quando se nisso fallava, diziam que nem todo o
poder de Portugal abasteria, por ser terra mui fragosa e cheia de muita gente.
136
O resultado dessa guerra não foi diferente do da guerra de Ilhéus:
E foi a vexação que lhes deram, que elles ganharam entendimento para pedirem
pazes e deram-lh´as com elles darem dous matadores que tinham, e com
restituírem aos Christãos quantos escravos lhes tinham comido, e com ficarem
tributarios e sujeitos e obrigados a receberem a palavra de Nosso Senhor,
quando lh´a prégassem. Esta gente está agora mui disposta para nelles se
fructificar muito.
137
135
Ibidem, pp. 221-222.
136
Ibidem, p.222.
137
Ibidem, p. 222.
91
Do fragmento acima, importa frisar que Nóbrega encontra-se já desencantado com
o método apostólico de conversão aconselhado pelos teólogos da Segunda
Escolástica, bastando, segundo eles, que o simples ensino da doutrina fosse feito para
que os índios aceitassem a religião cristã.
Na direção dessas idéias, o índio foi visto e tido, por Nóbrega, num primeiro
instante, como gente dócil e como um papel em branco, onde o Evangelho facilmente
seria escrito.
138
Todavia, ao perceber que, pelo método da “via amorosa”, poucos frutos os jesuítas
conseguiam, Nóbrega se convence de que “talvez por medo se convertam mais
depressa do que o fazem por amor”. No entanto, sua intenção, com isso, não era
tornar os índios escravos, como pretendiam os colonos, pois a sujeição pela política,
obtida através das guerras dos governadores-gerais contra os nativos, visava a tão-
somente submeter os índios à hierarquia do reino, tornando-os não somente cristãos,
mas também súditos livres da Coroa portuguesa, que viveriam temporariamente sob a
custódia dos padres da Companhia.
139
Retornando às guerras de Mem de Sá, preparava-se o governador, após a guerra
do Paraguaçu, para vingar a morte do Bispo Sardinha, quando foi convocado para livrar
o Rio de Janeiro das mãos dos franceses.
138
No artigo “Arte das Cartas Jesuíticas do Brasil”, Alcir Pécora chama essa primeira fase de Nóbrega de conversão
pela “via amorosa” que logo passará, diante das dificuldades encontradas, para a conversão pelo método “do medo”,
da subjugação, da guerra. Pela via amorosa”, Pécora aproxima os jesuítas das idéias defendidas, por exemplo, pelo
teólogo Francisco de Vitoria. No entanto, diz que, mesmo pelo método da força, Nóbrega e os jesuítas, por extensão,
não se aproximam das idéias de Sepúlveda pois, ao contrário dele, os jesuítas acreditavam que os índios não eram
incapazes de, pela inteligência, chegar à fé. Não eram destituídos de razão ou de humanidade. Logo, o método de
conversão era o mesmo, mas não o fundamento doutrinário de concepção teológica.
139
Em “Máquina de Gêneros”, no capítulo “ A conversão pela política”, Alcir Pécora desenvolve bem essa passagem
de um método de conversão ao outro. Através das cartas, mostra a via amorosa de conversão e em “O Diálogo sobre
a conversão do gentio” analisa o método de conversão pela força, através de uma ação política.
92
Todavia, antes de falarmos desta guerra, vejamos quais foram as intenções dos
franceses ao fundarem, em 1555, na baía da Guanabara, no Rio de Janeiro, uma
colônia chamada França Antártica, sob a chefia de Nicolas Durand de Villegaignon.
140
Até 1550, a presença francesa no litoral brasileiro limitara-se à exploração do pau-
brasil, praticando o escambo junto aos índios. Todavia, em 1555, Villegaignon, militar
católico, propôs ao rei Henrique II não estabelecer no Brasil o domínio francês, mas,
também, propiciar refúgio aos que quisessem afastar-se das desavenças religiosas que
assolavam a França, opondo católicos e huguenotes.
Ao chegar, consolidou a aliança que já mantinha com os índios tamoios, condição
“sine qua non” para que a empresa obtivesse êxito, que esses índios haviam-se
tornado inimigos dos portugueses.
Em 1557, chegaram novos colonos, trazidos pelo seu sobrinho Bois-le-Comte,
católicos em sua maioria, e alguns pregadores huguenotes, enviados pelo próprio
Calvino, a quem, tempos antes, Villegaignon escrevera, informando-o das dificuldades
do empreendimento:
140
Os franceses conheciam bem o litoral do Brasil desde o início do século XVI: transportavam pau-brasil em
grande quantidade, aliavam-se a grupos indígenas e percorriam o extenso litoral com a mesma freqüência dos lusos.
[...] Todavia, somente em 1550, Villegaignon urdiu um plano para estabelecer ali uma colônia, com apoio do
almirante Coligny e do cardeal de Lorena. Calvinista, Coligny vislumbrava fundar uma colônia, a França Antártica,
onde os huguenotes ( calvinistas franceses) estariam livres da perseguição católica que grassava em França. O
cardeal de Lorena, em contrapartida, apoiava o empreendimento porque estava certo de que Villegaignon defenderia
o Catolicismo. Para tanto, Henrique II concedeu duas naus armadas, pólvora e recursos para o transporte de colonos.
Em novembro de 1555, os franceses se estabeleceram na Guanabara, recebidos calorosamente por mais de 500
índios. Os conflitos, no entanto, não tardaram a surgir entre os próprios membros da colônia francesa. Os revoltosos
foram duramente castigados: afogados, estrangulados e escravizados. Mas tudo se agravou mesmo com as disputas
religiosas, incluindo intermináveis debates sobre o significado da Eucaristia e outros sacramentos. Tais querelas
impossibilitaram a convivência, provocando o abandono da ilha de Villegaignon por parte de alguns dissidentes. Ao
retornarem, eles foram punidos com a morte por defenderem o credo reformado. Villegaignon viajou à França para
explicar os fatos, permanecendo no comando Bois-le-Comte, seu sobrinho. Em 15 de março de 1560, Mem de
tomou o forte Coligny, após intensos combates. In Dicionário do Brasil Colonial ( 1500-1808 ), Ronaldo Vainfas (
Org. ), Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2000, pp.312-313.
93
O país era totalmente deserto e inculto. Não havia nem casas nem tetos nem
quaisquer acomodações de campanha. Ao contrário, havia gente arisca e
selvagem (...). Mas havia principalmente a vizinhança dos portugueses que, não
tendo conseguido conservar sua posse, não podem admitir que nela estejamos
e nos dedicam ódio mortal.
141
Até 1560, por falta de recursos, o governo colonial não importunou os franceses.
Apesar disso, as dissensões na França Antártica não eram pequenas por vários
motivos: caráter de alguns colonos, escassez de mulheres, o que levava ao
concubinato com as indígenas, desagradando tanto os missionários católicos quanto os
huguenotes. Os próprios tamoios incomodavam-se com a rígida disciplina imposta por
Villegaignon e os adeptos de ambas as religiões desentendiam-se freqüentemente.
Foi dentro desse clima que Mem de Sá, em 1560, organizou a primeira expedição
contra os franceses, obtendo êxito parcial, que a expulsão deles somente se deu,
definitivamente, alguns anos mais tarde, depois de outras expedições e combates.
Frei Vicente do Salvador, sobre essa primeira empresa contra os franceses, diz
que a própria rainha Dona Catarina, em 1559, escreveu a Mem de Sá, determinando
que ele atacasse os franceses. Então, após arregimentar as tropas, alistando soldados,
assim brancos como índios cristianizados, partiu para o Rio de Janeiro.
Todavia, após apreender uma nau francesa, e ser informado de que Villegaignon
partira, mas deixara um sobrinho seu por capitão na fortaleza, antes de lhe declarar
guerra, tentando, ao contrário, evitá-la, escreve-lhe um bilhete:
El-rei de Portugal, meu senhor, sabendo que Villaganhon, vosso tio, lhe tinha
usurpada esta terra, se mandou queixar a el-rei de França, o qual lhe
respondeu que, se estava, que lhe fizesse guerra e botasse fora, porque não
viera com sua comissão. E posto que aqui o não acho, estais vós em seu
lugar, a quem admoesto e requeiro da parte de Deus e do vosso rei e do meu,
141
Wehling, Arno & Wehling, Maria José. Formação do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira,
1994, p. 72.
94
que logo largueis a terra alheia a cuja é, e vos vades em paz sem querer
experimentar os danos que sucederão da guerra.
142
Diante da recusa, Mem de Sá ataca o forte francês.
Nóbrega relata o final do combate e, interessante notar, assemelham-se, nesse
trecho, a carta e o poema de Anchieta, sobretudo quanto ao auxílio divino:
[...] depois de combatida dous dias, não se podendo entrar e não tendo os
nossos polvora, mais que a que tinham nas camaras para atirar; e tratando-se
já como se poderiam recolher aos navios sem os matarem todos, e como
poderiam recolher a artilharia que haviam posto em terra, sabendo que na
fortaleza estavam passante de sessenta Francezes de peleja, e mais oitocentos
Indios e que eram já mortos dos nossos dez ou doze homens com bombardas e
espingardas, mostrou então Nosso Senhor sua misericordia, e deu tão grande
medo nos Francezes e nos Indios que com elles estavam, que se acolheram da
fortaleza e fugiram todos, deixando o que tinham sem o poderem levar.
143
Após a tomada do forte, Nóbrega informa que o governador foi a uma aldeia e
matou muitos índios. Não pôde, no entanto, prosseguir com a matança, porque teve de
partir para São Vicente para consertar os navios avariados durante o combate.
Sobre a empresa do Espírito Santo, a primeira a ser narrada no poema, seguindo
a cronologia histórica, Frei Vicente do Salvador dá-nos o motivo:
Neste tempo estava Vasco Fernandes Coutinho em grande aperto posto pelo
gentio na capitania do Espírito Santo, e mandou à Bahia requerer ao
governador Mem de que o socorresse, o que o governador logo fez,
mandando cinco embarcações bem providas de gente, e por capitão-mor dela a
seu filho Fernão de Sá em a galé São Simão.
144
142
Salvador, Frei Vicente do. História do Brasil: 1500-1627. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da
Universidade de São Paulo, 1982, p. 155.
143
Nóbrega, Manoel da, op. cit., p. 225.
144
Salvador, Frei Vicente do, op. cit. p. 153.
95
Após relatar a descida sobre o rio Cricaré e os fortes ataques dos índios, que se
avolumavam de todas as partes para derrotar os portugueses, Salvador mostra a fuga
dos lusos, deixando Fernão de Sá e seu alferes Joanne Monge na retaguarda.
Mortos a flechadas, Salvador diz que assim acabou o capitão-mor, depois de
grandes feitos em armas contra os bárbaros tanto no combate do Espírito Santo quanto
em outros, na Bahia e em outras partes. Relata também o retorno dos portugueses à
guerra depois de conseguirem mais soldados para vencer os índios. E por fim, mostra-
nos como foram recebidos os que foram à Bahia dar a triste notícia ao governador:
[...], onde o governador os o quis ver, sabendo como haviam deixado matar
seu filho; e quando eles não tiveram esta culpa, nem por isso a devemos dar ao
pai em fazer extremos pela morte de tal filho.
145
3.2 – A figuração da guerra justa (a imitação de discursos autorizados)
Após termos visto os motivos históricos das guerras movidas por Mem de Sá
contra o índio hostil à boa nova trazida pelos lusos e contra o francês herege, adepto da
doutrina de Lutero e Calvino, inimigos, então, do Catolicismo, vejamos, pois, como
essas guerras foram figuradas por Anchieta em sua composição épica.
Para tanto, uma das picas heróicas que podemos depreender do “De Gestis, ao
longo do poema, é a da “guerra justa”, figurada por Anchieta a partir da imitação de
discursos de autoridades como Santo Tomás de Aquino e Santo Agostinho, bem como
da imitação do Direito Canônico vigente na Segunda Escolástica.
145
Ibidem, p. 154.
96
Em 1549, em substituição às capitanias hereditárias, a colônia passou a ter
governadores-gerais, tendo sido Tomé de Sousa o primeiro deles.
Junto com o governador, veio o primeiro Regimento emitido por D. João III no ano
anterior, contendo, como metas prioritárias da Coroa, a conversão dos pagãos
146
à
cristã e a preservação da liberdade dos índios, vinculando-se, dessa forma, tal
Regimento, às concepções jurídico-políticas dos teólogos da Segunda Escolástica.
O Regimento começa com a declaração do Rei de que suas determinações visam
ao bem comum de seus súditos, das gentes do Brasil e a satisfazer a vontade de
Deus.
Pretende o Rei, com isso, conservar sua capitania, mas, antes, garantir a
exaltação da fé, a paz e a harmonia do reino.
Vejamos como prosseguem as determinações reais:
Porque a principal cousa que me moveo a mandar povoar as ditas terras do
Brasil foi pera que a jente dela se comvertese a nosa santa fee catolica vos
encomendo muito que pratiques com os ditos capitaes e oficiaes a milhor
maneira que pera isso se pode ter e de minha parte lhes direis que lhes
aguardecerei muyto terem espiciall cuidado de os provocar a serem christãos e
pera eles mais folguarem de ho ser tratem bem todos os que forem de paz e os
favoreçam sempre e não consymtão que lhes seja feita opresão nem agravo
allgum e fazendo se lhe lho fação correger e emmendar de maneira que fiquem
satisfeitos e as pesoas que lhas fizerem sejão casteguados como for justiça.
147
Quanto aos nativos, determina-se que se trate bem aos que são de paz, não lhes
causando opressão nem agravo algum, depreendendo-se, portanto, que a força não
poderia ser usada nem mesmo para submetê-los à Coroa ou à Fé católica.
Para os teólogos da Segunda Escolástica, ao contrário dos adeptos das idéias
defendidas por Lutero, a sociedade política o advém diretamente da vontade de
146
Dentro do Catolicismo, aqueles que ainda não foram batizados.
147
Thomas, Georg, op. cit., pp. 220-221, Apêndice II, Regimento de Tomé de Sousa, 15 de Dezembro de 1548.
97
Deus, mas, como lei humana positiva
148
, surge por opção voluntária dos homens que
abrem mão da sua liberdade natural, em troca de melhores condições de sobrevivência
e de desenvolvimento humanos.
Para isso, delegam ao Estado o poder de
regulador dessa sociedade política,
desejando dele a garantia do cumprimento da “justiça natural”, ou seja, aquela inscrita
na lei da natureza.
Todavia, a sociedade política, decorrente de uma lei humana positiva, deverá
espelhar-se na própria lei da natureza, que busca a “justiça natural” para todos os
membros dessa sociedade. Assim,
Essa última fornece uma estrutura moral dentro da qual devem operar todas as
leis humanas; inversamente, o objetivo dessas leis humanas consiste apenas
em fazer viger, no mundo (in foro externo), uma lei superior que todo homem
conhece em sua consciência (in foro interno).
149
Logo, se a lei humana positiva se espelha na lei da natureza, essa, por sua vez,
espelha-se na lei divina e na lei eterna, prevalecendo, dessa forma, a vontade de
Deus.
150
Portanto, ao constituírem uma sociedade política, submetendo-se ao poder do
Estado, os homens o fizeram por vontade própria, pelo uso da razão.
148
Ao discutirem o conceito de sociedade política, a Segunda Escolástica retoma a concepção de Santo Tomás de
Aquino de um universo regido por uma hierarquia de quatro leis: a eterna, pela qual age o próprio Deus; a divina,
que Deus revela diretamente aos homens nas Escrituras e sobre a qual a Igreja foi fundada; a lei da natureza, que
Deus implanta nos homens, a fim de que sejam capazes de compreender Seus desígnios e intenções para o mundo e,
por fim, a lei humana positiva, que os homens criam e promulgam para si próprios com o objetivo de governar as
repúblicas que estabelecem. In Skinner, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996, p. 426.
149
Skinner, Quentin, op. cit., p. 426.
150
Para os neo-tomistas, a lei da natureza possui dupla essência: incorpora a qualidade de lei por ser intellectus
(intrisecamente justa e racional) e por ser voluntas ( a vontade de Deus). Nesse ponto, refutam a idéia dos
protestantes de que o homem, depois da Queda, não tinha condições de entender os desígnios de Deus por conta
própria.
98
Nesse sentido, dirá Francisco de Vitoria, defensor das teses neo-tomistas, a
conversão dos índios ao Catolicismo somente seria um ato legítimo se se respeitassem
duas condições: por livre arbítrio (direito humano positivo) ou se submetidos mediante
uma “guerra justa”, parecendo-nos, então, que, de fato, uma adesão do Regimento
de D. João III às
concepções jurídico-políticas dos teólogos da Segunda Escolástica,
pois, como vimos, se o Regimento determinava que se tratassem bem os índios que
eram de paz, proibindo contra eles qualquer tipo de opressão ou agravo, fosse religiosa
ou política, ao contrário, poder-se-ia fazer uso dela contra aqueles que praticassem
alguma agressão contra os portugueses, sobretudo se tentassem impedi-los de pregar
o Evangelho. Logo:
Eu são emformado que os jemtios que abitão ao longuo da costa da capitania
de Jorge de figueiredo da villa de São Jorge atee a dita Bahia de Todolos
Samtos são da linhajem dos Topynambaes e se alevantarão ja per vezes contra
os christãos e
lhes fizerão muitos danos e que ora estão
ainda alevantados e
fazem gerra e que seraa muito serviço de Deus e meu serem
lançados fora
desa
terra pera se poder povoar asy dos christãos como dos jemtios da
linhagem dos Topiniquins que dizem que he jemte pacifica e que se oferecem a
os ajudar a lançar fora e a povoar e defender a terra, [...]
151
Portanto, se aos aliados, sobretudo, se viessem a se tornar cristãos, o Regimento
determinava benevolência, aos inimigos que impediam a ação lusa fazia-se-lhes guerra,
com autorização real
152
, para expulsá-los da terra.
151
Thomas, Georg, op. cit., p. 220.
152
Tanto para Santo Agostinho quanto para Santo Tomás de Aquino, a guerra somente teria legitimidade se movida
por autoridade e causa adequadas. Particulares não poderiam mover guerra. Se a coisa blica depende do Estado, é
ao Estado que compete proteger os interesses da cidade, da província ou do reino. E para declarar guerra, seria,
também, necessário que aqueles que combatemos tenham cometido uma injustiça.
99
Por isso, os tamoios, que durante o tempo das donatarias haviam-se comportado
como adversários dos portugueses, foram o principal alvo das ordens contidas nesse
Regimento.
Combatidos, escravizados, mortos e tendo suas aldeias destruídas por
determinação do rei, mesmo após a sujeição o governador poderia lhes conceder
perdão, mas antes,
para tirar-lhes toda capacidade de resistência, antes de concluir um tratado de
paz com os bárbaros, deveria aprisionar alguns caciques e enforcá-los diante
dos habitantes de suas aldeias.
153
Desta maneira, o Regimento de D. João III, em consonância com as teorias da
Segunda Escolástica sobre o trato com os índios da América e sobre a “guerra justa”
154
,
eleva o Rei à condição de um governante comprometido com a vontade divina de
expansão do Evangelho cristão entre as gentes pagãs d´além mar.
153
Thomas, Georg, op. cit., pp. 60-61.
154
Francisco de Vitoria refutou os defensores das teses de que os bárbaros não tinham domínio político de si mesmos
ou de suas propriedades, por serem pecadores, infiéis e amentes (idiotas) e que, portanto, a dominação espanhola era
justa e correta. Como vimos, a conversão dos índios à católica e ao poder da Coroa somente seria lícita por livre
arbítrio dos índios, pois eles não eram idiotas como preconizavam alguns, mas exerciam o uso da razão ao modo
deles, com suas cidades, senhores, leis, artesãos etc. Se parecem idiotas e broncos, isso provém em sua maior parte
da e bárbara educação, diz Vitoria. Todavia, a conversão e a dominação tornar-se-iam citas se os índios fossem
submetidos mediante guerra justa. Vitoria estabelece, então, alguns critérios para que a guerra fosse considerada
justa: 1) Se houvesse a quebra de “sociedade e comunicação natural”, ou seja, os espanhóis não podiam ser proibidos
de atracar e de permanecer no território bárbaro, nem de comerciar com seus habitantes. Caso houvesse violência
para impedi-los, eles poderiam tomar as devidas providências; 2) Não poderiam ser impedidos de propagar a religião
cristã, pois era direito dos cristãos pregar e anunciar o Evangelho nas províncias dos bárbaros; 3) A guerra seria justa
para a defesa dos índios inocentes. Nesse caso, era cita a guerra para livrar os cativos de guerra, que seriam
devorados em rituais antropofágicos e, em decorrência da guerra justa, os espanhóis poderiam obrigar os vencidos a
deixarem tais costumes, impondo-lhes leis. No entanto, a guerra justa, nesse caso, não ocorre por causa da
antropofagia, mas para livrar os inocentes dos resultados dela. Não caberia ao governante da sociedade política julgar
um crime contra a lei da natureza, sob jurisdição divina; 4) Por razão de amizade e aliança, como ação militar de
auxílio a aliados, decorrendo daí domínio sobre as províncias vencidas.
100
Quanto à guerra justa” aplicada ao “De Gestis, vejamos como Anchieta imita a
regulação do direito canônico e de autoridades como Santo Agostinho e Santo Tomás
de Aquino.
Recordemos, no entanto, as guerras movidas por Mem de Sá contra os índios e
quais os motivos figurados no poema.
No livro I, apenas uma guerra: a do Espírito Santo. O governador envia seu filho a
essas paragens para tão-somente defender os cristãos dos ataques dos tamoios,
conforme os versos:
Sabe então o valente chefe que cruas guerras se apresentam
contra os cristãos, tribos ferozes se insurgem
de toda a parte, decididas de uma vez para sempre
a ferir, matar, devorar a todos os brancos.
155
Mais adiante, Anchieta conforma uma imagem negativa dos índios:
Vês como gentes cruéis em hordas imensas preparam
aos Cristãos batalhas ferozes. De morte humilhante
ameaçam agora as cabeças dos pobres colonos,
quais tigres cruéis em redor da preia lanhada
sorvendo com fauces sedentas o sangue inocente.
Que esperança ou que alívio resta ainda aos sitiados?
[...]
Voa em auxílio da pobre gente no que puderes.
156
Todavia, ainda que tenham sido comparados a animais sedentos por sangue
humano, alusão expressa à antropofagia, e que sejam gentes cruéis em hordas
imensas, não é isso que justifica a guerra contra eles, mas, como se depreendeu
155
ANCHIETA, Joseph S. J., op. cit., p.97, vv.222-225.
156
Ibidem, p. 97, vv. 243-259.
101
anteriormente, a guerra torna-se justa para a defesa dos cristãos que se viam
ameaçados, naquele momento, pelos índios.
Além disso, a ação bélica também visa ao restabelecimento da paz:
Domado ficou assim seu furor indomável.
cessou finalmente o terror, a altivez e ameaças
dos bárbaros; e voltou aos lusos a paz suspirada.
157
Nesse ponto, tomam-se as idéias de Santo Tomás de Aquino quanto à terceira
condição para legitimar o ato da guerra: a intenção reta dos beligerantes. Além da
autoridade legítima e do motivo justo, a intenção deve ser a de promover um bem ou de
evitar um mal pois, em caso contrário, a guerra conduzida tornar-se-ia ilegítima pela
perversidade das intenções de quem a conduziu.
No caso, a guerra do Espírito Santo, figurada por Anchieta, imita esse modelo.
Fernão de move a guerra por determinação do governador-geral, seu pai, e,
portanto, autoridade legítima para declarar a guerra, já que a segunda condição, o
motivo justo, se evidencia quando a guerra acontece para a defesa dos cristãos que
sofriam ataques dos tamoios. Quanto à intenção reta, temos o restabelecimento da
paz
158
, anunciado no último verso acima citado.
Antes da guerra de Ilhéus, figurada no livro II, Mem de manda prender o índio
Cururupeba e, após isso, apesar de não ter vencido o inimigo em “guerra justa”, que
não houve guerra, impõe, aos índios, leis que deveriam ser seguidas a partir de então.
Vejamos o motivo da prisão:
157
Ibidem, p.123, vv. 789-79.
158
A ordem natural, que quer a paz entre os homens, exige que o poder de fazer guerra seja reservado à autoridade
pública, desde que não se mova pela vontade de prejudicar, pela paixão de dominar, pelo ódio feroz ou pela
furiosa vingança.
102
Então com arrogância o índio sanhudo
olhava para os cristãos, e estes, entrincheirados
detrás de seus muros, tremiam de pavor vergonhoso:
como quando lobos vorazes, que a fome impiedosa
açula e avassala, rangendo os dentes, cobiçam,
à ronda do aprisco, espotejar os tenros cordeiros
e extinguir a sede ardente no sangue que sugam ;
lá dentro as ovelhas estremecem e fremem com medo
das feras que rondam fora, mal confiadas no aprisco.
159
Novamente, Anchieta compara o índio a um animal que, sedento por matar sua
fome, prepara-se para devorar tenros cordeiros, alusão aos cristãos e colonos
portugueses.
No entanto, apesar de noutros versos Cururupeba ser caracterizado como bárbaro,
de boca insolente, de insensato orgulho e audaz arrogância, principal dos índios que
viviam imersos na prática do canibalismo, violando, pois, as leis da natureza e os
mandamentos divinos, a prisão ocorre somente pelas ameaças e insultos que ele fazia
aos cristãos
160
, conforme seguem:
Ide e trazei-me preso esse louco
que tantas ameaças está contra nós vomitando.
Saiba ele enfim que não nos falta braço nem peito!
161
Com a prisão do seu principal, os índios ficam aterrorizados e aceitam seguir as leis
impostas pelo governador que, além de proibir-lhes, por exemplo, a antropofagia e as
159
ANCHIETA, Joseph S. J., op. cit., p. 127, vv. 828-836.
160
Mesmo que violassem as leis da natureza e os mandamentos divinos, a guerra não seria justa por essa razão. Para
Francisco de Vitoria, os índios são considerados seres racionais e, portanto, por terem domínio sobre si mesmo,
somente por vontade própria poderiam aceitar a religião cristã e o poder da Coroa.
161
ANCHIETA, Joseph S. J. , op. cit., p.129, vv. 864-866.
103
guerras constantes entre as tribos, também, nesse momento, impõe-lhes costumes
cristãos
162
.
Mas, quais súditos do rei que ora se tornam, Mem de também lhes promete
penas graves, mas justas, caso cometam crimes públicos.
Guiado pelo equilíbrio da justa medida, da razão e da prudência, Mem de
mandou prender o principal dos índios não somente pelas ameaças que fazia aos
cristãos, mas porque, novamente, buscava a paz tanto para os portugueses quanto
para os índios.
Ainda no livro II, não é diferente o motivo que leva Mem de a mover guerra
contra os índios de Ilhéus, onde viviam os lusos, tranqüilos, cultivando seus campos e,
inclusive, mantendo um bom relacionamento com os nativos. Todavia, eis que esses se
rebelam e encurralam os colonos. Anchieta, então, figura o motivo da guerra:
Mas agora os índios tudo abateram em súbito ataque,
Rompendo as doces cadeias da antiga amizade.
163
Anchieta figura a guerra, nesse caso, imitando dois modelos de autoridades que
trataram sobre a guerra justa: Francisco de Vitoria e Santo Tomás de Aquino.
O primeiro diz que a guerra torna-se justa quando, por razão de amizade ou de
aliança, a ação militar visa ao auxílio de aliados. Já para Santo Tomás de Aquino, a
injustiça praticada pelos índios contra os portugueses, conforme os versos que se
seguem, seria um dos critérios para que a guerra fosse considerada justa. Logo, a se
orientar por esses critérios, foram os índios que provocaram a guerra:
162
Mem de impõe leis cristãs não em decorrência da guerra justa que não houve, mas dos motivos que poderiam
ter levado à guerra: os insultos e as ameaças contra os cristãos.
163
ANCHIETA, Joseph S. J., op. cit., p. 153, vv. 1372-1373.
104
Um crime horrível perpetrou o feroz inimigo:
incendiou campos e casas aos cristãos e açulado
de furor selvagem deu morte cruel a inocentes.
164
Na guerra, queimam-lhes suas aldeias após derrotarem os índios que, então,
pedem paz e prometem submissão às leis
165
de Mem de que, por sua vez, vibra de
alegria, ao ver os selvagens submissos e ansiosos por conhecer o nome de Cristo.
Afinal, conforme o Regimento, não fora a cobiça de glórias ou riquezas que levara
o monarca português a dominar as terras brasileiras, mas o zelo pela evangelização.
166
Fechando as guerras propriamente ditas contra os índios, no livro III temos a
empresa do Paraguaçu, não havendo motivação diferente das outras guerras: três
cristãos haviam sido mortos por bárbara tribo enquanto pescavam na região. Eis as
palavras que Mem de Sá diz, ao receber a notícia e ficar ferido no íntimo d´alma:
Creio chegado o grande dia em que a bárbara tribo
receberá em morte cruel o castigo que pedem
tantos crimes cometidos, tanto sangue inocente vertido.
167
No entanto, por prudência, não teria movido guerra contra toda a tribo,
168
caso os
assassinos tivessem sido entregues para que recebessem o castigo merecido: a morte.
Ao contrário de entregá-los, os índios ainda atacam a honra dos cristãos,
chamando-os de esquadrões de mulheres, não havendo o que temer.
164
Ibidem, p. 153, vv. 1394-1396.
165
Novamente as leis são impostas pelo vencedor como direito de guerra.
166
Dentro das leis que são impostas aos vencidos, a fé católica é uma delas, mas a guerra não acontece por isso, pois,
como vimos, a sujeição à religião dos colonizadores deveria se dar por livre arbítrio tão-somente.
167
ANCHIETA, Joseph S. J., op. cit., p. 169, vv. 1758-1760.
168
Para Santo Tomás de Aquino, a guerra era a ultima ratio, depois que todos os outros meios pacíficos tivessem
falhado.
105
Somente após a derrota e de terem suas aldeias incendiadas é que entregam os
assassinos ao governador. Anchieta diz que as mãos deles estavam úmidas ainda do
sangue cristão que haviam derramado. E mais:
Colocam-nos aos pés do Governador e suplicam,
já tímidos, que deponha a ira e expulse do peito
o justo rancor.
169
Em consonância com as idéias da Segunda Escolástica, a ira do governador é
justa, assim como a guerra que se move contra os índios, os verdadeiros responsáveis
pela ação bélica. Mataram e, depois, atacaram a honra dos cristãos.
170
Por isso, derrotados, e por direito de guerra ao vencedor, prometem obedecer às
suas leis e pedem paz.
171
Mem de Sá, bondosamente, responde:
Se vos fiz guerra cruel de extermínio,
devastando os campos e lançando em vossas moradas
o incêndio voraz, levou-me a isso vossa audácia somente.
Já agora, esquecidos os ódios, vos concedemos contentes
a aliança e a paz que quereis e sentimos vossa desgraça.
172
E, em seguida, recorrente ao longo dos três livros, proíbe-lhes as guerras
contínuas, o hábito da antropofagia, além de impor-lhes a guarda dos mandamentos
divinos e da lei natural. E, o principal, passam também a ser súditos da Coroa
portuguesa e, em decorrência disso:
169
ANCHIETA, Joseph S. J., op. cit., p. 183, vv. 2046-2048.
170
Além do critério da injustiça praticada, a guerra torna-se justa pelo ataque à honra do exército de Mem de Sá.
Lembremos que Mem de interveio, impondo leis aos índios no episódio do chefe Cururupeba, que também
vociferava injúrias contra os portugueses.
171
Novamente a paz: finalidade última da guerra.
172
ANCHIETA, Joseph S. J., op. cit., p. 183, vv. 2066-2070.
106
[..] tudo quanto roubaram dos Cristãos às ocultas
ou por assalto, em tantos anos, os próprios escravos
mortos ou devorados, tudo pagarão e mais os tributos.
173
3.3 – Reminiscências de uma Idade de Ouro paradisíaca nos relatos dos Grandes
Descobrimentos
3.3.1 – A origem e o desenvolvimento de uma história do Paraíso no Ocidente
A imagem de um Paraíso desaparecido e a busca pela sua restauração
ocuparam o imaginário de quase todos os povos antigos que, de tradição em tradição,
acreditaram numa era primordial, quando, em harmonia com a Natureza, a humanidade
vivia uma existência simples, contudo cheia de felicidade. A Idade de Ouro da
humanidade, como veremos adiante, foi encarada e discutida ou como verdade
histórica, confirmando a narrativa bíblica do Gênesis, ou como uma metáfora profunda,
que trazia em si a visão sagrada dos antigos sobre um mundo de outrora onde
reinavam a paz e a alegria.
Essa idéia de um lugar paradisíaco por muito tempo apoderou-se da imaginação
da humanidade. Na opinião de Mircea Eliade:
Sob uma forma mais ou menos complexa, o mito paradisíaco encontra-se um
pouco por toda a parte no mundo.
174
173
Ibidem, p.185, vv. 2081-2083.
174
Eliade, Mircea. Mitos, Sonhos e Mistérios. Lisboa: Edições 70, [ 1989 ], p.55.
107
No mesmo sentido, Buarque de Holanda (2000), ao dizer que o mundo greco-
romano não carecia, assim como nenhuma outra civilização, da lembrança de um
estado de delícias que teria a humanidade vivido no começo dos tempos, também dirá,
comentando a Idade de Ouro conformada por Ovídio nas Metamorfoses, que, tendo
sido eliminados o mal, o medo e a morte daquele estado inaugural do homem e do
cosmos,
A terra, bem comum de todos, produz continuamente, ainda ignorante da
enxada e do arado que lhe ulcerassem a crosta, livre de cuidados ou
solicitações, o fruto saboroso e a espiga loura e nutritiva. [...] Não se conhece a
guerra, que faltam os motivos de emulação: nada de fortalezas, nem de
capacetes, espadas ou recurvas trombetas. Eterna é a primavera: um zéfiro
amável abranda o ar e acaricia as flores que ninguém cultivou. [...].
175
Sobre o fato de, nessa cosmogonia de Ovídio, a abolição da paisagem idílica e
venturosa não se prender ao erro do primeiro homem, mas à queda do primeiro deus,
Saturno, Buarque de Holanda afirmará que nada de fundamental separa esse mito da
Idade de Ouro do Éden bíblico, pois tanto no caso pagão como no cristão,
o paraíso perdido fosse fabricado para responder a desejos e frustrações dos
homens, não é de admirar-se se ele aparecesse, em vez de realidade morta,
como um ideal eterno e, naturalmente, uma remota esperança.
176
Sendo assim, em toda cultura ou tradição, a imagem do Paraíso estará presa a um
mito que remonta aos primórdios da humanidade e, para o Ocidente, por exemplo, o
175
Holanda, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso: Os Motivos Edênicos no Descobrimento e Colonização do Brasil.
São Paulo: Brasiliense; Publifolha, 2000, p. 186.
176
Ibidem, p. 186.
108
Éden dos hebreus e a Idade de Ouro clássica serão modelos, na arte e na literatura, às
inúmeras visões posteriores do Paraíso.
Antes de abordar, todavia, a história universal da Criação, importa frisar que esse
ato, em toda mitologia, é o primeiro de um grandioso drama cósmico.
Primeiramente, uma Idade de Ouro de paz, felicidade e fartura, seguida de uma
Queda ou período de degenerescência da humanidade, e, por fim, uma catástrofe que
leva a termo a sagrada Idade dos Deuses, dando início à atual idade profana do
mundo.
Dessa forma, o desejo de retornar ao tempo sagrado em que os deuses criavam e
organizavam o mundo é, de fato, a esperança de viver em um mundo tal qual veio das
mãos do Criador: um lugar pleno, perfeito, onde havia a liberdade, a paz e a
abundância e que, por ser um lugar de felicidade, não cabiam ali conflitos ou tensões.
Cabe dizer também que, inserido nesse imaginário de nostalgia, não sendo possível
localizar o paraíso perdido, ele também será deslocado para o futuro como uma remota
esperança de viver num local de pura felicidade.
Sobre isso, Buarque de Holanda (op. cit.) nos diz:
Virgílio, que o deslocará para o futuro, passará na Idade Média por um magno
inspirado, novo Isaías, mais exatamente por um profeta, e profeta cristão. Não
anunciara ele, como sua Idade de Ouro recuperada, a redenção do mal e o
próximo advento do Messias?
177
Esse Jardim do Éden, espécie de Paraíso, inacessível, então, à humanidade devido
ao Pecado Original, manteve-se, por muito tempo, no imaginário dos antigos, que
177
Ibidem, p. 186.
109
acreditaram que ele não tivesse desaparecido da terra, mas que somente homens
destemidos poderiam aproximar-se dele, alcançando, por isso, grandes riquezas.
Nessa direção, Delumeau (1992) acrescenta uma outra crença que incitou as
grandes descobertas:
se o paraíso terrestre se achava doravante interdito, subsistiam, mais ou menos
próximos dele, ou algures ao longe, regiões ditosas e maravilhosas que podiam
ser alcançadas por homens audaciosos e que lhes trariam riquezas
fabulosas.
178
Certamente que, muito antes das grandes descobertas, desde a época da Antiga
Aliança,
179
esse Paraíso evocado pelo Gênesis foi enriquecido e confirmado por muitos
outros textos, porque a esse local paradisíaco, situado, freqüentemente, numa alta
montanha ou muito distante, quase inatingível, serão associadas características de uma
natureza bela onde existiam água abundante, uma primavera perpétua e doces e
suaves perfumes.
Ainda no rastro das idéias de Delumeau, esse Paraíso, jardim maravilhoso criado
por Deus, foi em primeiro lugar e durante muito tempo o paraíso terrestre
180
e, por
séculos, nem os judeus e, depois, nem os cristãos colocaram em dúvida o caráter
histórico da narrativa bíblica do livro de Gênesis 2, 8-15:
Ora, o Senhor Deus tinha plantado, desde o princípio, um paraíso das delícias,
no qual pôs o homem que tinha formado. E o Senhor Deus tinha produzido da
terra toda a casta de árvores formosas à vista, e de frutos doces para comer; e
a árvore da vida no meio do paraíso, e a árvore da ciência do bem e do mal.
Deste lugar de delícias saía um rio para regar o paraíso, o qual dali se divide
178
Delumeau, Jean. Uma História do Paraíso: O Jardim das Delícias. Lisboa: Terramar, 1992, p. 51.
179
Denominam-se alianças os pactos que, segundo a Sagrada Escritura, Deus fez com os homens. A primeira aliança
foi com Adão; a segunda com Noé; a terceira com Abraão, a quarta, a que teve Moisés por intermediário; a quinta, e
última, aquela que teve Jesus Cristo como mediador e por ele selada com o seu próprio sangue. In Grande
Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Lisboa; Rio de Janeiro: Editorial Enciclopédia Limitada, s/d, Vol. I, p. 944.
180
Delumeau, Jean, op. cit.., p. 9.
110
em quatro braços. O nome do primeiro é Fison, e é aquele que torneia todo o
país de Evilat, onde se encontra o ouro. E o ouro deste país é ótimo; ali (
também ) se acha o bdélio e a pedra ônix. O nome do segundo rio é Gion; este
é aquele que torneia toda a terra da Etiópia. O nome, porém, do terceiro rio é
Tigre, que corre para a banda dos assírios. E o quarto rio é o Eufrates. Tomou,
pois, o Senhor Deus o homem, e colocou-o no paraíso das delícias, para que o
cultivasse e guardasse.
181
Ainda sobre esse caráter histórico do Paraíso bíblico, ou melhor, sobre sua
realidade material, Buarque de Holanda concorda que
A isso não parecem opor-se irrevogavelmente as Sagradas Escrituras, pois, do
contrário, qual a razão da presença daqueles querubins incumbidos pelo
Senhor de fechar o caminho que levará à árvore da vida?
182
Sobre o entendimento alegórico da narrativa bíblica dirá:
Parecia claro que o Paraíso continuava a existir fisicamente em alguma parte
da Terra, da banda do Oriente, como está no Gênese, a menos que toda a
narração blica tivesse sentido meramente alegórico. Mas com boa vontade,
também seria possível interpretar alegoricamente, ou até analogicamente, a
palavra santa, num sentido favorável a essa idéia, dizendo, por exemplo, que os
anjos colocados à entrada do horto significavam apenas as dificuldades opostas
a quem buscasse recobrar a perdida bem-aventurança, ou ainda que transmitia
uma oculta mensagem aos fiéis.
183
E arremata, afirmando que
De qualquer modo, nada militava fortemente contra a realidade material e
presente daquele jardim que Deus plantou para o primeiro homem. E a
existência de crenças semelhantes entre os antigos pagãos seria, ainda nesse
caso, um convite para que se amalgamassem, fortalecendo-se mutuamente as
diferentes tradições.
184
181
Bíblia Sagrada. São Paulo: Edições Paulinas, 6ª ed., 1979, pp. 26-27.
182
Holanda, Sérgio Buarque de, op. cit., p. 186.
183
Ibidem, pp. 186-187.
184
Ibidem, p. 187.
111
Na época da Criação, segundo os mitos pagão e blico, os seres humanos viviam
numa espécie de Paraíso de felicidade e abundância, em consonância com a vontade
divina e em harmonia com os animais. Mas, após a Queda, esse tempo será lembrado
por quase todos os povos com inveja e pesar. Ou, no dizer de Buarque de Holanda,
O perfeito acordo entre todas as criaturas, a feliz ignorância do bem e do mal, a
isenção de todo mister penoso e fatigante, e ainda a ausência da dor física e da
morte: estes são os elementos constitutivos da condição primeira do homem,
que há de ser abolida com o Pecado e a Queda.
185
Após o fim dessa Idade de Ouro , isso alimentará, por muito tempo, no imaginário
dos povos antigos, a crença num Paraíso Terrestre, remetendo-nos não somente a um
passado distante e longínquo de estado de graça e felicidade no Éden, mas também a
um Paraíso Terrestre futuro, sendo, nesse caso, a Terra um lugar de espera para mil
anos de felicidade antes do Juízo Final.
Essa crença milenarista vislumbrava não um Paraíso Terrestre, aos moldes do
Jardim do Éden onde viveram Adão e Eva a felicidade e a harmonia, mas um Paraíso
por vir, futuro, conforme fazia crer o texto das Escrituras Sagradas.
O mito da Criação, relatado no livro de Gênesis, e as imagens proporcionadas por
ele sobre Adão, Eva e a serpente tornaram-se a própria base da civilização ocidental.
Como vimos, no Éden havia muitas árvores frutíferas, ouro e pedras preciosas.
Esse Paraíso era a fonte das águas doces da Terra, pois o rio, que através dele fluía,
repartia-se em quatro correntes, que abasteciam os quatro quadrantes do mundo.
185
Ibidem, p. 185.
112
Cabia a Adão e a Eva , os primeiros seres humanos ali colocados, o cultivo e a guarda
desse Jardim das Delícias.
Sobre a criação de Adão e Eva, há, no livro de Gênesis, dois relatos que parecem
se fundir: primeiramente, os dois são criados juntos (Gênesis 1: 26, 27 ); depois em
Gênesis 2, 7; 18-23, o Criador faz apenas Adão, mas alivia-o, depois, da sua solidão,
criando os animais e, por fim, Eva.
Assim, o casal passa a viver em harmonia entre si e com os animais, nus e sem
conhecer a vergonha. Além disso, nesse Jardim das Delícias, o homem se comunicava
sem esforço com o mundo divino. Por isso, explica-se a nostalgia no imaginário coletivo
da humanidade sobre esse Paraíso perdido, todavia não esquecido, e o desejo de o
reencontrar.
Esse Paraíso perdido, onde a Natureza encontrava-se associada à água em
abundância, aos eflúvios perfumados, à ausência de sofrimento e a um clima sempre
primaveril, ficará na nostalgia coletiva. Na Antigüidade Clássica outros três grandes
temas vão favorecer sempre essa evocação de uma terra ditosa: o da Idade de Ouro, o
dos Campos Elísios e o das Ilhas Afortunadas.
Os Campos Elísios e as Ilhas Afortunadas serão descritos como locais onde a
mais doce das vidas era oferecida aos humanos. Não havia ali neve nem inverno
rigoroso ou chuva; apenas ventos suaves e frescos que subiam do oceano para
refrescar os humanos.
No entanto, depois da narrativa do Gênesis, a história do Paraíso que teve mais
influência sobre o mundo ocidental foi o mito pagão da literatura clássica da Idade de
Ouro. Essa expressão provém de uma tradução latina da frase de Ovídio aetas aurea
113
que se refere ao tempo da raça de ouro, descrita pelo poeta grego Hesíodo em Os
Trabalhos e os Dias, que nos remete ao tempo de Cronos:
(homens) Eram do tempo de Cronos, quando no céu este reinava; como
deuses viviam, tendo despreocupado coração, apartados, longe de penas e
misérias; nem temível velhice lhes pesava, sempre iguais nos pés e nas mãos,
alegravam-se em festins, os males todos afastados, morriam como por sono
tomados; todos os bens eram para eles: espontânea a terra nutriz fruto trazia
abundante e generoso e eles, contentes, tranqüilos nutriam-se de seus pródigos
bens.
186
Essa alusão a um passado remoto, idealizado, mostra que Hesíodo estava, na
verdade, lamentando o estado de degenerescência da sociedade contemporânea,
governada por barões venais e gananciosos que, pela força, extraíam subornos e
tributos da população rural.
Para Hesíodo, a Idade de Ouro foi seguida das Idades da Prata, do Bronze, dos
Heróis e do Ferro, essa última, a atual e a idade mais decadente, levando-o a declarar
que gostaria de estar morto antes da raça de ferro ou nascer depois dela, ficando
evidente, na opinião de Lafer (1991)
187
, que isso representa não o término de um
processo de declínio mas a existência de uma continuidade cíclica.
Ao contrário das mitologias das outras culturas antigas, a da Grécia foi comentada
e registrada por muitos autores, chegando até nós. Não é possível afirmar se esse
relato das Idades do Homem, fonte literária sobrevivente da mitologia grega, é uma
invenção do autor ou se ele apenas expôs para a posteridade uma crença antiga.
Todavia, essa idéia de uma felicidade plena, vivida pelos seres humanos na sua
origem, seguida da sua degeneração, parece ter sido aceita como fato histórico pela
186
Hesíodo, Os Trabalhos e os Dias. São Paulo: Iluminuras, 1991, p. 31, vv. 111-119.
187
Mary de Camargo Neves Lafer, tradutora e comentarista da obra acima citada, p. 81.
114
maioria dos gregos. Ainda sobre a Idade de Ouro, em O Político, Platão vai-se referir ao
período feliz do reinado de Cronos:
Sob o seu governo, não havia Estado, constituição [...] ( Os homens ) tinham
em quantidade os frutos das árvores e de toda uma vegetação generosa,
recebendo-os, sem cultivá-los, de uma terra que, por si mesma os oferecia.
Nus, sem leito, viviam, no mais das vezes, ao ar livre, pois as estações lhes
eram tão amenas que nada podiam sofrer, e por leitos tinham a relva macia que
brotava da terra.
188
Para Platão, as pessoas deveriam esforçar-se para imitar a vida que se diz ter
existido nos dias de Cronos. É possível depreender da obra de Platão o seu relato
sobre a história humana. Num tempo de Paraíso, o mundo está sob o governo de Deus.
Após isso, devido ao ingresso do mal no mundo, este separa-se de Deus, trazendo
para a humanidade a destruição e a decadência.
Também os autores romanos clássicos, como Ovídio e Virgílio, abordaram essa
história de Hesíodo sobre a raça de ouro original e, claro, enfatizaram as qualidades
que caracterizavam os benefícios de uma vida simples, primitiva, ou melhor, de
liberdade e auto-suficiência.
Por muito tempo, As Metamorfoses de Ovídio serão referência para o mundo
ocidental e a sua descrição da Idade de Ouro, no Livro I, passou a ser modelo
definitivo do mito para a Idade Média e para a Renascença:
A primeira a nascer foi a idade de oiro, que, sem repressão, sem leis, praticava
a boa e a virtude. Ignoravam-se castigos e o temor; não se liam escritos
ameaçadores no bronze, afixados em público; a turba suplicante não tremia na
presença do juiz; era inútil um defensor dos fracos para a sua segurança. [...]
Sem terem necessidade de soldados, as nações passavam, no seio da paz,
uma vida de doces lazeres. Também a terra, livre de rendas, sem ser violada
pela enxada, nem ferida pela charrua, dava tudo por si; contentados com os
188
Platão, “O Político” In Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 2ª ed., 1979, p. 218.
115
alimentos que ela produzia sem coacção, os homens colhiam os frutos do
medronheiro, os morangos das montanhas, os cornizolos, as amoras que
pendem das silvas espinhosas e as landes tombadas da árvore de Júpiter ( o
carvalho ) de grandes ramadas. A Primavera era eterna e os mansos zéfiros
acariciavam com os seus hálitos tépidos as flores nascidas sem sementeira.
Pouco tempo depois, a terra que ninguém tinha trabalhado cobria-se de
colheitas; os campos sem cultivo, tornavam-se amarelos sob as pesadas
espigas; então rios de leite, rios de néctar corriam aqui e além e a azinheira de
folhagem verde destilava o mel louro.
189
Como se pôde perceber, o mundo ocidental teve, pelo menos, duas heranças que o
influenciaram quanto a esse imaginário de crença num Paraíso original: a hebraica,
através dos textos bíblicos, e a clássica, através dos gregos e dos romanos. Sobre essa
herança, Buarque de Holanda diz que o ponto de partida para o imaginário medieval de
crença num Paraíso Terrestre está no livro de Gênesis, relatados nesse livro, e
ampliado por traços oriundos do Apocalipse e depois
De novos e sucessivos atributos tomados geralmente às crenças do
paganismo, irão engastar-se pouco a pouco os juízos interpretativos dos padres
da Igreja e dos teólogos, para formar, finalmente, a idéia medieval do Paraíso
Terrestre.
190
3.3.1.1 – O Paraíso na América de Quinhentos
Os mitos da Idade de Ouro e das Ilhas Afortunadas, que traziam em si qualidades
típicas do Paraíso Terreal, após passarem por uma progressiva cristianização,
especialmente na Idade Média, vão alimentar, ainda, o imaginário de cronistas,
viajantes e descobridores das Américas do século XVI que, ao se depararem com uma
189
Ovídio, Métamorphoses. Paris: Les Belles Lettres, 1924, pp. 10-11.
190
Holanda, Sérgio Buarque de, op. cit., p. 185.
116
natureza tão exuberante, reforçarão esse imaginário paradisíaco, atribuindo às terras
descobertas uma paisagem ideal, ou melhor, aproximarão essa paisagem belíssima do
Paraíso Terreal, como se tudo que fora escrito pelos poetas pagãos sobre a Idade de
Ouro e as Ilhas Afortunadas proviesse, de fato, do Paraíso Terrestre do livro de
Gênesis.
Nesse sentido, por conta do mito das Ilhas Afortunadas - onde havia jardins
maravilhosos e clima sempre ameno, com brisas odoríferas e, também, onde os
homens não precisavam trabalhar -, no século XII, muitos autores partilharam a
convicção de que o Paraíso Terrestre, poupado pelo Dilúvio, subsistia no Oriente,
embelezado pela lonjura e preservado pelo isolamento mas, por causa da sua altitude e
devido às terras e mares que se interpunham entre ele e a humanidade, passou a estar
inacessível. Não precisava de muito, portanto, para associar essas Ilhas Afortunadas ao
jardim do Éden que, fechado desde o pecado original, poderia ser posto num local
muito secreto e longe de todo e qualquer contato com os homens.
Naquilo que se refere ao Paraíso de Adão e Eva, o Ocidente tenderá a entender
no sentido real, histórico, a descrição do jardim do Éden oferecida pelo Gênesis.
Sobre isso, sem rodeios, Santo Agostinho, por exemplo, cuja opinião, na
cristandade latina, terá muito peso, abordará a questão da realidade histórica do
Paraíso Terrestre, constatando que:
existem três grandes opiniões a propósito do paraíso em que foram colocados
Adão e Eva. Diz que uns não vêem no paraíso senão uma realidade corpórea,
outros uma realidade espiritual , enquanto outros ainda, uma realidade
simultaneamente corpórea e espiritual.
191
191
In Delumeau, Jean, op. cit., 1992, p. 27.
117
Ele confessa que essa terceira opinião tem o seu favor, mas, no entanto, acaba
pendendo mais para o realismo do que para o alegorismo. Diz ainda que se podem
perceber na narrativa da criação todos os sentidos figurados que se quiserem, mas na
condição de ter igualmente por verdadeiro que os fatos que aí são contados “se
passaram realmente”.
Isidoro de Sevilha, em suas Etimologias, na direção de Santo Agostinho, vai encarar
de três maneiras o jardim do Gênesis. Na primeira, encara-o no sentido literal, depois,
no sentido figurado e, por fim, preservando a historicidade da narrativa, acrescenta-lhe
uma interpretação mística.
Santo Tomás de Aquino, após indagar se o paraíso (terrestre) era um lugar
corpóreo, responde, demonstrando argumentos a favor e contra, mas, por fim, toma a
mesma posição de Santo Agostinho, concluindo:
o que está dito, nas Escrituras, do paraíso apresenta-se à maneira de uma
narrativa histórica; ora em todas as coisas que as Escrituras referem desta
maneira, que tomar como fundamento a autenticidade da história e é sobre
isso que há que construir as interpretações espirituais.
192
E prossegue, concordando com uma interpretação mais literal do Gênesis:
Não é pelo facto de, depois do pecado, a habitação do homem não se encontrar
mais ali que esse lugar não tem razão de existir.
193
192
Aquino, Tomás de. Somme Théologique, “Les origines de l´homme”. Paris: Desclée, 1963, pp. 270-271.
193
Ibidem, p. 281.
118
Na Alta Idade Média, havia a convicção de que o jardim do Éden tornara-se
inacessível, mas que continuava a existir em algum lugar da Terra. Essa convicção,
certamente, não se desprende das viagens que levaram às grandes descobertas, pois
acreditava-se também que, próximas a esse paraíso terrestre inacessível, estavam
regiões maravilhosas que somente seriam alcançadas por homens audaciosos que
receberiam, por isso, grandes riquezas. Essa crença em um paraíso terrestre
inacessível, mas não desaparecido, que continuava a alimentar os grandes rios da
Terra, por muito tempo alimentará o imaginário da geografia cristã.
No Ocidente, sob a influência das idéias de Santo Agostinho, Isidoro de Sevilha
escreve, quando trata da geografia da Ásia, sobre a situação desse paraíso terrestre
interdito e de suas regiões maravilhosas, que
( Esta ) compreende numerosas províncias e regiões cujos nomes e
localizações vou enumerar resumidamente, começando pelo paraíso. O paraíso
é um lugar do Oriente cujo nome traduzido do grego deu em latim hortus. Além
disso, em hebreu chama-se Éden: o que na nossa língua significa deliciae. A
junção das duas palavras hortus deliciarum. Este acha-se plantado de todas
as espécies de árvores, em particular de árvores frutíferas, e contém também a
árvore da vida: ali o frio e a canícula são desconhecidos, o ar é sempre
temperado (tema familiar aos Antigos sempre que evocavam a idade de ouro e
as Ilhas Afortunadas ). No meio dele surge uma nascente que o irriga
inteiramente e que, ao dividir-se, origem a quatro rios. Depois do pecado, o
acesso a este lugar é proibido ao homem. Está com efeito rodeado de todos os
lados por uma chama semelhante a uma espada de folha dupla, isto é, por uma
parede de fogo cujas labaredas se elevam ao céu. Foi dada ordem a um
querubim [...] de proibir a entrada no paraíso a todo o espírito e a toda a
carne.
194
194
In Delumeau, Jean, op. cit., p. 57.
119
Essa crença que vai de Isidoro de Sevilha a Santo Tomás de Aquino, influenciados
por Santo Agostinho, não colocava, então, dúvidas na realidade corpórea do paraíso
onde, por pouco tempo, viveram Adão e Eva. Concordavam, entretanto, todos eles,
com a idéia de que tal paraíso existia, mas estava inacessível ao homem.
Dessa forma, imbuídos desse imaginário dos autores da Idade Média sobre o
Paraíso Terrestre, nossos descobridores de Quinhentos chegaram às Américas,
encontrando nelas uma paisagem amena e viridente e uma mesma agradável
primavera que tanto tinha alimentado o desejo e o imaginário dos
antigos que, mesmo
não concordando unanimente sobre o local exato desse Jardim das Delícias, jamais
colocaram em dúvida a sua existência. E a descrição dessas terras do Novo Mundo
denotará a busca dos diferentes sinais que assemelhassem esse espaço geográfico ao
tão buscado Éden.
Diante de uma realidade que se revelava nesse Novo Mundo, preenchida por
completo de símbolos paradisíacos e característicos da Idade de Ouro, já tão
conhecidos dos relatos medievais, esse, talvez, não fosse o Novo, nem o Outro, mas,
de certo modo, o Mundo Previsto, por muito tempo ambiciosamente procurado.
3.3.2 – O Paraíso e sua diferente representação em De Gestis Mendi de Saa
Todavia, não é essa visão paradisíaca que podemos depreender no De Gestis
Mendi de Saa em relação à Natureza e, muito menos, em relação ao homem nativo.
120
Pelo contrário, a julgarmos pelo poema de Anchieta, temos uma visão oposta
daqueles que vislumbraram, nas Américas, num primeiro instante, uma natureza
edênica e, por extensão, homens que viviam em estado de plena felicidade.
195
Para
Baêta Neves:
O jesuíta vê a natureza como algo luxuriante, soberbo, avassalador, misterioso,
grávido de perigos e surpresas. Como algo que lhe é estranho e temível. Ou
na melhor das hipóteses ainda lhe é estranho (porque ainda não dominou e
ocupou) e
ainda é temível ( porque, ou pode ser domínio do anti-Cristo ou
efetivamente é tal domínio).
196
E, por essas orientações, após ler e interpretar as marcas que Deus havia deixado
nessa natureza esquecida em terras d´além-mar, cabia aos jesuítas a missão de
modificá-las, se possível, ou eliminá-las quando a modificação proposta não fosse
aceita, sobretudo porque agiam inspirados pela manifestação da “vontade divina” em
causar tal modificação e, além disso, numa imagem bastante recorrente no “De Gestis”,
justificando toda a destruição e violência contra o indígena:
quando o perigo do inimigo de Deus e do homem ter-se apoderado
temporariamente ou não de certos objetos, roubando os a seu legítimo
Senhor.
197
195
Na verdade, o Paraíso prefigurado por Anchieta em “De Gestis” será conquistado com a conversão do gentio ao
Cristianismo, conforme podemos depreender dos versos: “A terra em que sopra o Sul conhecerá o teu nome /e ao
mundo austral advirão os séculos de ouro, /quando as gentes brasílicas observarem tua doutrina” (3052-3054).
196
Baêta Neves, op. cit., p. 53.
197
Ibidem, p. 36.
121
4 – O Catolicismo Guerreiro no De Gestis Mendi de Saa
No livro IV do “De Gestis” uma última guerra será narrada por José de Anchieta.
Nela, ainda dentro dos critérios vigentes e tridentinos da guerra justa, o francês
calvinista será o antagonista principal do herói Mem de e também da bandeira de
Cristo empunhada pelos católicos.
Antes, porém, de atentarmos a essa figuração dentro do poema, vejamos em
linhas gerais os antecedentes históricos das guerras religiosas entre católicos e
protestantes no século XVI.
O anseio por mudanças e transformação da Igreja remonta aos fins da Idade
Média. Naquela época, a palavra “reforma” detinha dois significados: purificação interior
do crente e busca da regeneração da Igreja Católica.
Aos que vão romper com a Igreja de Roma, o termo Reforma passou a significar o
movimento geral de transformação religiosa. Esses reformadores não se opunham à
Religião ou ao Cristianismo preconizado nela. A crítica se dava tão-somente à
instituição Igreja, ou melhor, aos maus exemplos daqueles que a dirigiam.
Digamos que, na época, assim como os Descobrimentos representaram uma
revolução econômica e o Renascimento, uma revolução intelectual e artística, a
Reforma
198
representou uma mudança da sensibilidade religiosa, pois, até ali, desde a
Idade Média, portanto, a Igreja Católica havia sido a referência da sociedade em todas
198
Aqui a palavra Reforma toma o sentido do rompimento de Lutero, e das conseqüências provenientes desse
rompimento, com a Igreja Católica. No entanto, podemos dizer que, internamente, a Igreja, para corrigir os abusos do
clero e para recuperar a pureza original do Cristianismo, também já havia tentado uma Reforma, desde a Idade
Média. Todavia, porque partisse de papas, bispos e fundadores de ordens religiosas, pertencentes, portanto, aos
quadros da Igreja, essa Reforma não prosperava, pois ainda que discordassem dela, não almejavam separar-se da
instituição Igreja.
122
essas áreas, sem que a autoridade do papa e da hierarquia eclesiástica fosse
questionada e os dogmas da Igreja fossem postos em dúvida.
Longe da esfera religiosa, um outro fator, puramente econômico, ajudou a
concretizar a Reforma. Com os Descobrimentos, impunha-se uma nova ordem
econômica diferente da feudal, onde o comércio subsistia apenas como atividade
marginal.
199
Além disso, com a expansão marítima e comercial, a burguesia começou a ficar
incomodada com as concepções tradicionais da Igreja
200
que taxava de pecado a
prática da usura.
Portanto, em dissonância com os novos tempos, a própria Igreja abriu espaço para
uma nova ética religiosa, mais adequada ao espírito do capitalismo comercial da
burguesia, satisfeito, em grande parte, pela ética protestante, surgida com a
Reforma.
201
Dentro desse contexto, passemos a Martinho Lutero, o primeiro dos reformadores
protestantes
202
e os motivos das reformas propostas por ele.
Em 1510, Lutero
203
viajou a Roma e de voltou decepcionado com o clima de
corrupção que percebera no alto clero. Depois disso, até 1513, aprofundou-se nos
199
A concepção teológica da Igreja, desenvolvida durante o período medieval, estava adaptada ao sistema feudal:
economia fechada e auto suficiência dos feudos.
200
Sendo o sistema feudal uma economia fechada e auto-suficiente, a teologia tradicional católica condenava a
obtenção do lucro excessivo nas operações de comércio, pois defendia a prática do preço justo.
201
Nem todos os líderes da Reforma, no entanto, coadunam-se no incentivo às práticas do capitalismo. Lutero, por
exemplo, viveu uma crise estritamente espiritual, de anseio pela sua salvação. Condenava o luxo e a usura e
propunha um ideal de vida modesto, longe da vaidade pelas riquezas materiais.
202
O adjetivo “protestante” se deve ao fato de os aliados de Lutero, membros da nobreza e da alta burguesia, terem,
em 1529, protestado contra as medidas do imperador que, por ser católico e, portanto, aliado do papa, condenou as
atitudes de Lutero, impedindo, com essas medidas, cada Estado de adotar sua própria religião. Aliando-se a Lutero
havia também o interesse da nobreza em apossar-se, com a cisão da Igreja, das terras que a Igreja Católica possuía,
na época, na região que hoje chamamos de Alemanha.
203
Lutero, em 1501, havia ingressado na Universidade de Erfurt para estudar Direito. Todavia, de inclinação para a
vida religiosa, em 1505, ingressou na Ordem dos Monges Agostinianos.
123
estudos teológicos e encontrou, durante os estudos, nas epístolas de o Paulo, uma
frase que lhe pareceu bastante significativa: o justo se salvará pela .
Baseado nela, Lutero conclui que, devido ao pecado original e corrompido por ele,
o homem poderia se salvar pela fé incondicional em Deus. Graças à misericórdia
divina, diferente do que pregava o Catolicismo, a fé simplesmente, sem as obras
praticadas, seria o único meio capaz de justificar o homem e de conduzir à salvação.
Dando seqüência à Reforma, Calvino, francês que havia estudado Teologia e
Direito, aderiu às idéias protestantes e, no início, apesar de ter assimilado os
ensinamentos luteranos, propôs, depois, reformas mais radicais que as de Lutero.
Entre elas, ainda que acreditasse, como Lutero, que a salvação se dava pela fé,
avançou nessa idéia, afirmando que ter fé não dependia dos homens e, sim, de Deus,
que a dava aos seus eleitos.
204
Quanto às fontes da fé, não diferiu de Lutero, aceitando somente as Sagradas
Escrituras, de livre exame, e sem a mediação dos eclesiásticos e das autoridades que
formavam a Tradição
205
da Igreja Católica.
Contra tudo isso, a Igreja Católica adotará medidas visando à reconquista das
regiões dominadas pelo Protestantismo
206
e a espalhar a católica pelo mundo afora.
204
Em 1536, Calvino publicou sua principal obra, a Instituição da Religião Cristã, na qual afirmava que o ser
humano estava predestinado de modo absoluto a merecer o céu ou o inferno e que, por culpa de Adão, todos os
homens nasciam pecadores, mas Deus tinha eleito algumas pessoas para serem salvas, enquanto outras seriam
condenadas à maldição eterna. Portanto, nada que os homens fizessem em vida poderia alterar-lhes o destino,
previamente traçado. Sobre a salvação, na dúvida há de se ter fé, pois para os calvinistas, a para a glória de Deus,
sentida por algumas pessoas que se viam impelidas por um desejo irresistível de combater o mal que povoa o mundo,
além da prosperidade econômica delas são um sinal da salvação predestinada. Desta forma, criou-se o modelo de
homem ideal: religioso e trabalhador, que enxergava no acúmulo de riquezas materiais um sinal da predestinação
divina. Logo, essa ideologia foi bastante aceita pela burguesia mercantil, que via sua ganância pelo lucro justificada
pela ética protestante calvinista.
205
A posição oficial da Igreja, baseada em Santo Tomás de Aquino, afirmava que a salvação do homem era
alcançada pela fé e pelas boas obras.
206
Alguns exemplos da expansão protestante pela Europa: 1) os luteranos, na Alemanha; 2) os huguenotes, na
França; 3) os puritanos, na Inglaterra; 4) os presbiterianos, na Escócia.
124
Para tanto, envia seus missionários a todos os países não-católicos e também faz uso
da Inquisição para impedir a ação da Reforma Protestante em países não atingidos por
ela, como, por exemplo, Portugal e Espanha.
Entre essas medidas que, na prática , funcionarão como os principais instrumentos
da Contra-Reforma
207
da Igreja, podemos destacar o Concílio de Trento
208
e a ação dos
padres jesuítas da Companhia de Jesus,
209
que tinham por missão impedir o avanço do
Protestantismo e, catequizar, no caso das Américas, os seus habitantes para, dessa
forma, expandir o domínio católico.
“Grosso modo”, reagindo às heresias
210
dos protestantes, o Concílio de Trento
apresentou um conjunto de decisões que se destinava a garantir a disciplina
eclesiástica e a unidade da católica, reafirmando diversos pontos da sua doutrina,
como, por exemplo, que a salvação humana depende da e das boas obras. Além
disso, que o dogma religioso tem como fonte a Bíblia e a tradição das autoridades,
cabendo à Igreja dar-lhe interpretação correta, pautando-se, para isso, nas autoridades
da tradição.
Por fim, a Igreja reafirma que, no ato da Eucaristia a presença de Cristo é real, ao
contrário dos protestantes, que afirmavam ser o pão e o vinho uma representação
simbólica do corpo e do sangue de Cristo.
207
A Igreja Católica procura evitar o termo Contra-Reforma, pois argumenta que já havia um movimento reformista
da própria Igreja, antes mesmo da Reforma Protestante.
208
Entre as medidas contra-reformistas adotadas pelo Concílio de Trento (1545-1563) destacamos: 1) o Index, para
censurar os livros contrários ao Catolicismo; 2) o ressurgimento da Inquisição, cujos tribunais julgavam os cristãos
acusados de o seguirem a doutrina católica; 3) o restabelecimento da disciplina na Igreja, fixando, por exemplo, as
condições e a idade mínima para o exercício de funções dentro da instituição e, além disso, torna obrigatória a
formação dos padres em seminários.
209
Quando foi fundada, a Companhia de Jesus fez voto de obediência plena ao papa e, graças a ação dos seus
membros pelos quatro cantos do mundo, não somente a autoridade do papa foi reforçada, como a doutrina
tradicional foi mantida e os protestantes foram duramente perseguidos. A Companhia de Jesus foi fundada em 1534
por Inácio de Loyola, ex-militar, mas somente em 1540 teve a sua criação aprovada pelo papa Paulo III.
210
Doutrina contrária aos dogmas da Igreja que os tem por verdade religiosa importante e indiscutível para os fiéis.
125
Com isso, o Concílio de Trento deita por terra a doutrina da justificação pela fé,
defendida por Lutero, assim como a da predestinação de Calvino. Também reafirma a
importância da Igreja como necessária à salvação dos fiéis, refutando a idéia
protestante de que a Igreja era somente útil à salvação dos homens e que, portanto, a
Bíblia poderia ser livremente analisada e interpretada por qualquer pessoa.
Em “De Gestis”, a guerra contra os franceses calvinistas, que tentavam fundar no
Brasil uma colônia francesa, não somente é justa pelos critérios deixados pela tradição
os franceses apossaram-se de terras lusas -, mas, sobretudo, porque, nessa guerra,
teremos os decretos do Concílio de Trento aplicados diretamente contra os inimigos da
Coroa portuguesa e, pior , inimigos heréticos do Catolicismo, defendido pela Igreja de
Roma.
Desta forma, logo no início do livro IV, Anchieta mostra a causa que levou à guerra
contra os invasores franceses: tentam conquistar para si, arrastados pela cobiça, o que
os lusos alcançaram com grande trabalho. Todavia, se a invasão justifica a guerra
contra os franceses, não é isso que ficará em primeiro plano ao longo dessa parte da
obra, pois:
[...] com o coração infeccionado pela heresia,
e com a mente opressa pelas trevas do erro,
não só todos se afastam do reto caminho da crença,
mas procuram perverter, assim dizem, com falsas doutrinas
os míseros povos índios, de todo ignorantes.
211
Se, nos três primeiros livros, como vimos, havia o estabelecimento de dois campos
semânticos, numa batalha incessante entre as duas bandeiras: a divina, defendida por
Mem de Sá, e a demoníaca, representada pelos índios pagãos, no último livro
211
ANCHIETA, Joseph S. J., op. cit., p. 195, vv. 2327-2331.
126
continuamos a ter uma luta representada também por bandeiras: a do Catolicismo e a
dos protestantes.
No entanto, do que se depreende dos versos acima, os protestantes, ao contrário
dos índios, não desconheciam a verdade cristã, mas, por vontade própria, se afastaram
dela e, pior, tentavam ensinar falsas doutrinas aos “míseros povos índios, de todo
ignorantes” que, mesmo assim, não perdem, diante de adjetivos tão brandos, a
conformação negativa dada por Anchieta nos livros anteriores, mas, sem saírem de
cena, ficam em plano secundário, para que os verdadeiros e poderosos inimigos de
Cristo sejam combatidos. Além disso, lembremos que, como braço direito da Igreja, ou
melhor, como um dos principais instrumentos da Contra-Reforma, a Companhia de
Jesus tinha por missão, além de expandir o Catolicismo mundo afora, impedir o avanço
do Protestantismo, sobretudo em território colonial, onde, para expansão do
Catolicismo, o trabalho da catequese já havia começado.
Em versos seguintes, evidenciando que a luta, de fato, é contra as heresias
protestantes, ao descrever a morte de sete soldados franceses que são engolidos pelo
fogo, causado pela explosão da própria pólvora, Anchieta diz que eles são infelizes e já
começam a sentir as chamas do inferno “em que os ímpios corações, manchados pela
heresia, sofrerão o eterno castigo que seus crimes merecem.”
Se a invasão de terras portuguesas configura somente um crime, Anchieta
certamente, ao colocar o substantivo “crime” no plural, tira o foco da guerra justa,
apenas pelo seu caráter político de ocupação do território, para focá-la numa guerra de
bandeiras religiosas distintas, onde apenas uma delas carrega a verdadeira fé cristã, ou
seja, aquela que tem no Concílio de Trento todos os dogmas da Igreja confirmados e
127
reafirmados e que luta por Deus e com o apoio Dele, como podemos observar nos
versos que antecedem à explosão da pólvora que mata os franceses:
Com a ajuda divina, em vão as balas cortam os ares:
antes, a pólvora explode no paiol inimigo.
212
Mem de tenta evitar derramamento de sangue. Por isso, dentro do caráter
político de ação, manda um emissário ao chefe francês, alertando-o do erro que
cometeria se levasse a guerra adiante, pois:
Não creio pois que te hás de lançar a empresa tão árdua
para defender uma causa injusta, contra todo o direito
divino e humano, com a morte de tantos soldados.
Essa terra que habitas é nosso domínio intangível:
Pois que a conquistou o trabalho esforçado dos lusos.
213
Injusta é a causa por parte dos franceses, mas, deixando o aspecto político da
guerra, novamente, em plano secundário, Anchieta diz que as terras invadidas eram de
domínio intangível por dois motivos: devido aos esforços lusos para conquistá-las e,
antes disso, por que a invasão francesa ia contra todo o direito divino.
Nessa direção, por ser uma guerra de bandeira contra bandeira, a ação política da
guerra tem uma única função: levar a bandeira de Cristo e tridentina à vitória sobre a
heresia protestante. Diríamos que a ação da guerra, figurada por Anchieta contra os
franceses na última parte do “De Gestis” , é teológico-política, ou seja, a vitória que se
pretende não é militar, mas, sobretudo, religiosa, em nome da verdadeira católica
que se defende.
212
Ibidem, p. 197, vv. 2379-2380.
213
Ibidem, p. 199, vv.2394-2398.
128
Vejamos que, diante da resposta negativa do chefe francês, a hipótese aventada
logo acima de que a ação da guerra é, antes de tudo, em nome de Deus, parece se
confirmar, pois na voz do poeta:
Que cega loucura, ó Francês altivo, que soberba tamanha,
que incêndio de cólera te invadiu a cabeça?
Rejeitas a paz que te oferecem?
214
Se o inimigo português, o francês herege, é altivo, soberbo, louco e colérico, a
ponto de rejeitar a paz oferecida por Mem de Sá, temos, assim como Anchieta fizera
com os índios, uma imagem conformada pela desrazão, pela falta de medida. Todavia,
os índios o conheciam a verdade e, por força dos maus hábitos, tornaram-se
escravos do demônio.
os franceses, conscientes da Verdade, escravizando-se por vontade própria,
afastaram-se da verdadeira e, por conseqüência disso, nos versos que se seguem,
Anchieta antecipa-lhes a derrota, que Deus freqüenta somente um dos lados da
bandeira:
Com que auxílio confias conservar a vida?
[...]
[...] não é fácil ao Senhor, desde seus fundamentos
arrasar garbosas cidades e espatifar contra o solo
altaneiras torres?
215
Dissemos que o Concílio de Trento reafirma o dogma da Igreja Católica, ou seja,
uma verdade religiosa importante e indiscutível para os fiéis e que, por conseguinte,
deve ser praticada, enquanto doutrina, por todos os cristãos, como, por exemplo, o rito
214
Ibidem, p. 201, vv. 2435-2437.
215
Ibidem, p. 201, vv. 2437-2443.
129
sagrado do Sacramento instituído por Jesus Cristo para dar, confirmar ou aumentar a
graça do fiel.
Mem de Sá, seguido pelos seus soldados, pratica, como mostram os versos que
se seguem, o sacramento da penitência antes de partir para a guerra contra os
franceses calvinistas:
Então purifica sua alma
das culpas e a fortifica com as armas de Cristo,
caindo de joelhos aos pés do ministro sagrado.
Muitos imitaram o belo gesto do chefe
e de coração sincero lhe seguiram o exemplo,
purificando suas almas, manchadas de culpas.
216
Ao colocar em evidência esse rito, Anchieta não somente figura em versos as
determinações do Concílio de Trento - os sete sacramentos que devem ser praticados
pelos verdadeiros cristãos como também figura que, por não praticarem esse rito
sagrado, os franceses heréticos estavam fadados à derrota, pois Deus luta ao lado dos
portugueses, como podemos depreender da fala de Mem de Sá, em versos anteriores,
ao preparar o espírito dos soldados para a guerra que se aproximava:
Ele incutirá forças e ajudará compassivo
a causa do justo e do fiel e com dextra potente
abaterá e esmagará o inimigo, castigando co´a morte
corações ímpios, vazios de fé verdadeira.
Confiados pois na força do Deus invencível,
lancemo-nos à grande empresa para a glória divina.
Preceda-nos o estandarte fulgente do triunfo de Cristo,
e a desejada vitória seguirá a bandeira da Cruz!
217
216
Ibidem, p. 205, vv. .2522-2527.
217
Ibidem, p. 203, vv. 2503-2510.
130
Não somente isso. Mem de ajoelha-se, como vimos, aos pés do ministro
sagrado, ou melhor, de um jesuíta da Companhia de Jesus, parecendo-nos, mais uma
vez, que a ação política da guerra é mediada pela ação religiosa, ou melhor, justifica-se
por ela. Logo,
Estuam as almas impacientes de ir arrasar
as fortificações francesas e entregá-las às chamas,
ou generosas perder a vida em morte gloriosa
pela causa santa da fé e da glória divina.
218
E a hipótese aventada de uma batalha política, mediada por um Catolicismo
Guerreiro, para utilizarmos a expressão de Hoornaert (1978), confirma-se na tomada da
primeira colina quando os portugueses, no alto do cume, “fincam vitoriosa a bandeira da
cruz resplendente”.
Nessa mesma direção, quando o exército luso encontra-se na iminência de uma
grande derrota, Mem de Sá apela à intervenção divina, lançando aos us palavras em
prece:
Ai! porque nos entregas, supremo Criador do universo,
sem recurso nenhum, aos últimos riscos de vida?
Bem vês que nossas forças, rendidas por imenso trabalho,
já não podem subsistir. Como podes deixar que sejamos
o opróbrio do inimigo? porque zombarão de teu nome
esses bárbaros? porque há de o francês conspurcado
pelo crime feio da heresia, insultar teus soldados
cristãos e fiéis? A coragem nos abandonou por completo,
não resta outra força; compadece-te tu, senão pereceremos!
Olha, Pai Celeste, para os que carecem de todo recurso.
Estende a mão bondosa e sinta teu furor justiceiro
a raça inimiga.
[...]
Vamos, apressa-te, corre em auxílio e levanta
os que estão a cair; e aos povos selvagens e ímpios
castiga-os! Experimentem o imenso poder de teu braço
nossos contrários! Enfim arranca dos perigos presentes
o exército cristão que te ama e respeitoso te adora
e por tua glória se atira às mais duras pelejas.
219
218
Ibidem, p. 203, vv. 2514-2517.
219
Ibidem, pp. 215-217, vv. 2785-2805.
131
Se o motivo da guerra, como vimos, era justo porque os franceses invadiram terras
alheias, podemos depreender, dos versos que se seguiram, quanto à guerra,
novamente uma ação política secundária, prevalecendo, então, o que denuncia a sua
causa de fato, elementos de um campo religioso da batalha, ou melhor, Mem de
pede intervenção divina, não pela injustiça política praticada pelos franceses, mas por-
que são praticantes do crime “feio da heresia” e, por isso, insultam soldados “cristãos” e
“fiéis”. É por causa das heresias que ele clama o furor justiceiro de Deus contra a raça
inimiga, pois o exército verdadeiramente cristão se atira às mais duras pelejas, única e
exclusivamente, pela glória Dele.
De fato, não nos parece descabido dizer que a ação da guerra ao longo do poema
e, sobretudo, no último livro é, antes de mais nada, teológica, figurada a partir das de-
terminações do Concílio de Trento contra a heresia luterana e calvinista e, por
extensão, contra os índios pagãos, que precisavam ser inseridos no mundo de Cristo.
Voltando ao poema:
Ouviu o Rei celeste estas vozes, ouviu juntamente
as que os Jesuítas e povos fiéis nesse tempo
arrancavam do peito, abalando com gemidos e prantos
as portas do céu compassivo. Não houve demora.
220
Mem de não estava sozinho em suas preces. Os jesuítas e os povos fiéis o
acompanhavam também em oração e, graças a isso, a ajuda divina veio rápida.
Todavia, antes de percebermos como se deu a intervenção divina, podemos pensar,
talvez, que a junção dos jesuítas em prece com o povo fiel pode representar, nos
versos anteriores, não somente o principal instrumento da Contra-Reforma em terras
220
Ibidem, p. 217, vv. 2806-2809.
132
brasílicas, a Companhia de Jesus, mas a própria Igreja de Roma confirmada e
reafirmada pelo Concílio como mediadora entre Deus e os homens e, mais ainda, como
necessária para a salvação deles. Lembremos que, para os protestantes, a Igreja
passou a ficar em plano secundário nessa questão, bastando a em Deus e a livre
interpretação da Bíblia para que se atingisse a salvação.
Vejamos, nos versos que se seguem, como a intervenção divina ocorreu
favoravelmente aos portugueses:
.... eis que Deus chama um ministro do exército alado
Manda-lhe que corte os espaços com as céleres asas
afugente os inimigos do posto altaneiro,
insuflando-lhes o terror pelas trevas da noite.
[...]
Apenas o terrível temor transpôs os umbrais altaneiros
da primeira porta, já todos de dentro começam
a empalidecer; tremem, e pelos membros lhes coa
gelado pavor.
221
Acometidos de pavor inexplicável, os franceses fogem de um forte “tão firme e tão
seguro pela arte da guerra”, “tamanho era o terror que o Senhor Deus onipotente lhes
metera nas mentes e corações apavorados”. Assim, mais uma vez, ao invadirem o
local, os portugueses “fincam logo a cruz vencedora no cimo do forte e aclamam o
nome santo de Cristo”.
Se há, como dissemos, uma batalha de bandeira contra bandeira, numa figuração
religiosa, ou melhor, numa figuração tridentina e contra-reformista
da guerra, podemos
pensar que o ministro alado de Deus, enviado para causar terror nas mentes e
corações dos franceses, é, de fato, uma figuração simbólica de um anjo real que, na
ação narrada, em forma de guerreiro, alia-se ao exército português para levá-lo o à
221
Ibidem, p. 217, vv. 2813-2831.
133
vitória política contra os franceses, mas à vitória contra os falsos cristãos que carregam
a bandeira das heresias.
Em várias passagens do “De Gestis” recorrentes intervenções divinas a favor
dos portugueses. Não é raro, podemos dizer, que o próprio Deus participe da guerra.
Logo, se estivermos no caminho correto, há, por inferência, nessas passagens, a
figuração do sacramento da Eucaristia, reafirmada no Concílio, contra aqueles que
diziam que a presença de Cristo no pão e no vinho era apenas simbólica.
Graças a essa intervenção, em pessoa, do próprio Deus, os portugueses tomam
posse do forte inimigo. Interessante que, na voz do jesuíta-poeta, a grande quantidade
de munição encontrada no forte é colocada em destaque, evidenciando a força do
inimigo francês, para em seguida, dizer que de nada isso adiantou, pois:
[...] não se encontrava ali a imagem
da cruz resplendente, nem a dos santos que habitam
o reino dos céus, por cujos merecimentos e preces
o Rei supremo se inclina ao perdão e abranda piedoso
a cólera justa e santa, protege os reinos terrestres
e enche de dons abundantes as almas humanas.
222
Perderam a guerra, portanto, pela ausência do que lhes faltava: a verdadeira e
única fé em Cristo, representado na cruz resplendente e nos santos intercessores.
Deixando, agora, em completa evidência que a guerra se , antes de tudo, por
uma ação teológica, de cunho religioso, de bandeira contra bandeira, de católicos
contra protestantes, de tridentinos contra os reformadores da Igreja, Anchieta,
empunhando a bandeira da Contra-Reforma, não economiza ataques aos inimigos
religiosos da Igreja Católica ao descrever o que havia no interior do forte inimigo
tomado pelos lusos. Vejamos:
222
Ibidem, pp.219-221, vv. 2876-2881.
134
Encontrava-se aí um grande móvel, cheio de livros
que encerram doutrinas crivadas de impiedades e erros.
Martim Lutero os compôs com mente perversa
e mandou a seus filhos observá-los à risca.
Enraivado, muitas blasfêmias arrojou contra o papa,
Sumo Pontífice e contra a Igreja, esposa de Cristo.
223
A tomada do forte é militar, mas o produto da guerra é teológico. Dessa batalha
entre Deus e o Diabo, os protestantes saíram derrotados por defenderem a bandeira
errada. Por não demonstrarem Lutero e seus seguidores qualquer respeito ao sagrado
e à religião oficial e, portanto, ao próprio Deus, pregam uma doutrina cheia de
impiedades e, mais, de erros, porque se afastam da verdadeira e correta interpretação
que a Igreja de Roma faz das Escrituras Sagradas.
Além disso, Anchieta, como se fora um verdadeiro cruzado, ataca Lutero com
adjetivos que denotam um significado religioso. Por exemplo, ao compor os livros da
“falsa” doutrina com mente “perversa”, podemos inferir que Lutero estava sob inspiração
demoníaca ou corrompido por ela. “Enraivado”, ou seja, movido por forte paixão, cega-
se diante da verdade e profere blasfêmias contra o representante de Cristo na terra e
contra a própria Igreja, insultando, portanto, o divino, aquilo que é sagrado.
Ainda como um cruzado de Cristo, sobre Calvino, Anchieta iguala-o ao próprio
demônio “a fera que os abismos do inferno pouco arrotaram de suas vasas
profundas”. Além de dragão, alusão, talvez ao fogo do inferno, Calvino é a serpente de
coleio variado, de movimentos sinuosos, de caráter pouco reto que “abraça no rolo de
suas espirais o forte”, ou melhor, transforma-o no próprio inferno, como sugerem os
versos seguintes:
Também aí estava a fera que os abismos do inferno
há pouco arrotaram de suas vasas imundas,
dragão inchado de todo o veneno que o mundo
223
Ibidem, p. 221, vv. 2882-2887.
135
preparou em seus monstros. É Calvino, a serpente
de coleio variado e horrendo, que abraça no rolo
de suas espirais o forte, vibra olhares de fogo
e agita a língua trífida em ruídos de morte.
224
A vitória militar contra os franceses evidencia, no “De Gestis”, a justiça da causa
católica em nome de Cristo-Rei, ou melhor, daquele que rege o universo. O próprio
Anchieta o diz, após os ataques a Lutero e a Calvino, ironizando o ímpio francês:
Calvino vencer a Cristo,
Senhor do céu e da terra? Em que fúrias ardentes te
consumias, que loucura de ti se apossava
quando, desprezando a bandeira de Cristo,
pensavas defender com teus venenos de monstro
os muros do forte? Não sabias que o dragão que habitava
as cavernas do inferno, caíra outrora vencido,
quando Cristo estendeu os braços nus sobre o lenho,
santificando com rios de sangue o horrendo madeiro?
225
Desses versos, podemos destacar que a morte de Cristo na cruz significa para os
católicos que, pela fé e também pelas obras, o fiel pode chegar à salvação. A morte de
Cristo no madeiro deu-lhes essa possibilidade.
Calvino, como vimos, pregava a teoria da predestinação. Os homens, para ele,
depois da Queda, não tinham mais condições de entender os desígnios de Deus e,
portanto, por mais que fizessem ou acreditassem, no final, era o próprio Deus que
escolhia seus eleitos.
Do exposto acima, temos, de fato, nos versos de Anchieta, uma figuração das
determinações do Concílio de Trento que confirmaram e reafirmaram todos os valores e
crenças defendidos pela Igreja de Roma.
224
Ibidem, p. 221, vv. 2891-2897.
225
Ibidem, p. 221, vv. 2900-2908.
136
Por extensão, se Cristo morreu na cruz, santificando-a conforme o verso de
Anchieta, ela, a cruz, passa a ter também um valor sagrado para os católicos, não
ocorrendo o mesmo para os protestantes.
De posse do forte, os portugueses erguem um altar e o sacerdote, na veste
sagrada, celebra o banquete augusto do pão sacrossanto, que jamais fora ali
celebrado, diz Anchieta, pois “a geração de Calvino rejeita com impiedade o alimento
celeste, nem crê que as espécies de pão encerram a Cristo”.
Novamente, evidenciam-se questões de cunho religioso, de bandeira católica e
tridentina contra a falsa interpretação que os protestantes davam ao sacramento da
Eucaristia. Não simbolismo algum, dirão os católicos, pois a presença de Cristo é
real no ato da comunhão. E também evidencia-se na guerra contra os inimigos da
verdadeira, sagrada e única fé: a da Igreja de Roma.
Desta forma, fecha-se a epopéia com hinos de louvor a Cristo: rei do universo, da
História e das almas. A Deus, agradecimentos pelas intervenções durante os combates
contra os infiéis e hereges. A Cristo, louvores que antevêem o futuro do Brasil:
submeter o índio à doutrina cristã, ao Catolicismo. Ao Espírito Santo, completando a
Santíssima Trindade de Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo: aquele que, por
meio da lei divina, revelou diretamente aos homens nas Escrituras os desígnios de
Deus e sobre a qual a Igreja de Roma foi fundada.
137
5 – Conclusão
Pudemos constatar, através da nossa pesquisa, que o poema épico De Gestis
Mendi de Saa, apesar de ainda pouco lido, e até mesmo conhecido, no meio
acadêmico, parece ser, de fato, de autoria do padre José de Anchieta. Nossa afirmação
se deve não tanto pela nossa parca autoridade sobre a obra anchietana e mais pela
convicção daqueles que, como Armando Cardoso e Hélio Viotti, defendem essa tese e,
portanto, mostraram argumentos mais consistentes que aqueles apresentados por
Serafim Leite, que sustenta opinião contrária.
No entanto, não conseguimos detectar as intenções de Serafim Leite, pois os três
foram padres da Companhia de Jesus. Por que divergem quanto a essa questão?
Como vimos, para Armando Cardoso, as ações do governador Mem de contra os
índios não somente foram justas, mas necessárias diante da realidade que se
apresentava. Teria Serafim Leite uma preferência pelos escritos de Nóbrega em
detrimento dos de Anchieta? Acreditava ele que o “De Gestis em si, diante do horror
das guerras apresentadas contra os índios, pudesse arranhar a imagem da Companhia
de Jesus no Brasil? Haveria algum prejuízo para a canonização de Anchieta se esse
poema fosse associado a alguém que passou para a História como defensor dos
índios? Deixamos, por ora, essas questões sem respostas, pois, quando suscitadas,
não havia mais tempo para pesquisá-las.
Quanto ao poema propriamente dito, devemos considerá-lo sob a perspectiva das
idéias do século XVI. Qualquer julgamento que condene as ações dos padres da
Companhia de Jesus seria anacrônico e feito sob um olhar retrospectivo que se põe
138
sobre a questão indígena daquela época. Não podemos voltar ao passado para matar
novamente os mortos.
Com isso, não estamos a abonar as ações da Companhia de Jesus no Brasil do
XVI. Concordamos com a opinião de Florestan Fernandes quando diz que os jesuítas,
na prática, em consonância com os objetivos do colonizador, promoveram a política de
destribalização dos índios tupis e, com isso, destruíram as suas bases de autonomia,
levando-os, portanto, à dominação do branco.
Também não discordamos de Baêta Neves quando tenta desvendar as relações
de poder, representado pela Coroa portuguesa, e de saber, praticado pela Companhia
de Jesus em nome da Fé. Ambos tinham o mesmo propósito: anunciar o Evangelho
onde ele não era conhecido e, se preciso, impô-lo onde fosse renegado, já que a
cristianização do mundo era a imposição de uma homogeneidade ideológica,
lembrando algumas idéias desse autor.
Da mesma forma, não nos parece possível dissociar o poder da Coroa do saber da
Companhia de Jesus. Ambos caminhavam juntos e devem ser analisados no contexto
daquela época.
Nesse sentido, Anchieta foi, simplesmente, um homem da sua época: defendia
valores do seu tempo e da sua religião. Membro de uma Ordem que seguia o rigor
militar de obediência à hierarquia interna e às determinações do Papa, Anchieta não
fugiu à regra.
Quanto aos índios, mesmo que Anchieta tivesse ousado enxergar as coisas sob
outra ótica, provavelmente teria sido banido da Companhia de Jesus, na melhor das
hipóteses, em tempos de Contra-Reforma. Logo, reiteramos a afirmação inicial de que,
139
sendo um homem da sua época, como tal sua obra deve ser lida e analisada, bem
como a própria Companhia de Jesus.
Se partirmos das guerras históricas movidas por Mem de contra os indígenas,
perceberemos que, naquele momento, havia um desencanto dos jesuítas pelo
método de conversão pela via amorosa, ou seja, o índio deveria ser convertido por livre
e espontânea vontade mediante o Evangelho que era pregado de aldeia em aldeia
pelos jesuítas. Esse método estava em consonância com as recomendações da
Segunda Escolástica, que dotou o índio de inteligência e, portanto, capaz não somente
de aceitar, ou não, a oferecida pelos jesuítas, como também o sistema político de
governo dos colonizadores. Todavia, como vimos, esse método não funcionou.
Como homens, os índios eram livres por natureza e não escravos em linha
aristotélica, como defendia, por exemplo, Sepúlveda que os enxergava como boçais e
idiotas que deveriam, antes de tudo, ser submetidos à força para, depois, serem tirados
dos maus hábitos que praticavam e conduzidos à fé cristã e aos valores da civilização
européia.
Nas guerras de Mem de Sá, na prática, com o apoio dos jesuítas, o que vai
acontecer é o método defendido por Sepúlveda, ou seja, a submissão pelo medo, pelo
terror da guerra.
No entanto, se o método que se pela política da guerra é o mesmo, a
concepção teológica ou o fundamento doutrinário de conversão afasta os jesuítas das
idéias de Sepúlveda que, como já dissemos, entendia ser o índio incapaz de chegar à
pela inteligência, como se fora destituído de humanidade. Basta ler “O Diálogo sobre
a conversão do gentio” para percebermos que Nóbrega se afasta dessas idéias, mesmo
140
que entenda que a submissão pelo medo seja o método mais adequado, como etapa
preparatória, de uma conversão plena à fé católica e à civilização lusa.
Numa época impregnada de guerras religiosas de católicos contra protestantes,
percebemos no “De Gestis que as guerras de Mem de contra os indígenas serão
também figuradas, por Anchieta, em termos religiosos pois, afinal, não somente a Coroa
portuguesa como a Companhia de Jesus tinham uma única missão, antes de qualquer
interesse por metais valiosos que a terra pudesse oferecer, conforme denuncia o
Regimento de D. João III entregue ao primeiro governador-geral: a expansão da fé
católica. No entanto, sustentamos essa afirmação somente dentro da análise do poema
“De Gestis pois, historicamente, em consonância com os ideais mercantilistas, na
prática, a Coroa portuguesa, na busca por metais preciosos, causou inúmeras mortes.
Desta forma, voltando à análise do poema, os índios, inseridos naquele contexto,
serão figurados no “De Gestis” não apenas como inimigos dos portugueses ou da
Coroa portuguesa, mas do próprio Deus de Roma. Assim, numa ação teológico-política
da guerra, a partir do estabelecimento de dois campos semânticos, como vimos, entre
as coisas divinas e demoníacas, os soldados de Cristo, os portugueses, vão combater
os índios, que são conformados pelo poeta como escravos do demônio, devido aos
maus hábitos que praticavam, desconsiderando, portanto, a sua cultura, e justificando,
dentro dos critérios da “guerra justa”, a ação bélica contra eles.
Interessante frisar, nesse ponto, que o mesmo Francisco de Vitoria, defensor da
autonomia indígena e da sua submissão apenas por vontade própria, estabelece
critérios para que a guerra contra eles fosse considerada “justa”.
141
Desta forma, aventamos a hipótese, no “corpus” do trabalho, de que não raras
vezes os próprios colonos provocavam as guerras, dando-lhes ares de “justas”, para
que pudessem escravizar os índios, como direito de guerra concedido ao vencedor.
Sabemos que a intenção dos jesuítas o era a mesma. Queriam que os índios
fossem inseridos no Reino como súditos do rei e que ficassem sob a tutela da
Companhia de Jesus num primeiro momento. várias passagens no “De Gestis que
corroboram essa idéia. Além disso, freqüentemente os jesuítas se desentendiam com
os colonos em defesa dos índios.
De qualquer maneira, as guerras figuradas no poema não vão ocorrer pelos maus
hábitos praticados pelos indígenas como, por exemplo, a própria guerra entre tribos e a
antropofagia, vinculadas ao campo do demoníaco, mas, em coerência com as idéias da
Segunda Escolástica, sobretudo as defendidas por Vitoria, as guerras vão ocorrer por
injustiças praticadas pelos indígenas contra os portugueses ou por alguma ofensa
contra a fé cristã, como pudemos perceber durante a análise do poema.
Se os colonos, na prática, faziam parecer que a guerra era justa para, depois,
escravizarem os índios, no poema “De Gestis” as guerras figuradas por Anchieta
também aconteciam por culpa dos índios e, como conseqüência delas, a ação bélica
tão-somente facilitava o caminho para a ação missionária, de evangelização e
expansão da verdadeira fé cristã, pretendida pelos jesuítas.
E partindo dessa possibilidade de análise, aventamos a hipótese, e em vias de
conclusão do nosso trabalho, de termos no “De Gestis”, em moldes tridentinos e
contra-reformistas da época, uma ação teológico-política das guerras, figuradas,
também, contra os inimigos dos portugueses, fossem os índios ou os franceses, mas,
sobretudo, contra os inimigos do próprio Deus e, por extensão, da verdadeira e santa
142
defendida pela Igreja de Roma. Nesses embates de bandeira contra bandeira, a ação
política da guerra funcionava em função do principal objetivo, que era teológico e
espiritual.
Coerente com o seu tempo, Anchieta figura uma guerra em que o próprio Deus de
Roma entra em combate ao lado dos portugueses, ou por meio deles, para, no caso do
índio, quando possível, inseri-lo no reino da fé, das coisas divinas ou, caso contrário,
livrá-los, com a morte, do jugo do demônio em terras brasílicas, lamentando, contudo,
que não tivessem suas almas salvas pelo sacramento do batismo.
Em moldes tridentinos e contra-reformistas, como dissemos, o mesmo se aplica
aos protestantes na última parte do poema, pois, ao contrário dos índios que
desconheciam a verdade, os franceses calvinistas se afastaram dela por vontade
própria e, por isso, dentro das determinações do Concílio de Trento, por praticarem
heresias contra a Igreja de Roma, deveriam ser perseguidos e exterminados com o
apoio do próprio Deus, que é figurado como católico, restando aos protestantes
servirem à bandeira do lado oposto: a do demônio.
Temos, portanto, ao longo de todo o poema, uma guerra em nome de Deus, de
cunho religioso, que parte da ação política de subjugar à força os seus inimigos para,
de fato, concretizar a ação teológica da guerra: inserir os índios no mundo cristão e, por
extensão, como tributários, no Reino, e impedir o avanço de idéias protestantes em
terras brasílicas.
E, desta forma, Anchieta, em consonância com o Concílio de Trento e numa ão
de vínculo contra-reformista, por figuração poética, confirma e reafirma os dogmas e
doutrina defendidos pela Igreja contra os inimigos da verdadeira fé cristã: a de Roma.
143
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