48
Todavia, como dupla face de uma mesma ideologia, fazendo uso das idéias de
Baêta Neves, ou seja, o saber articulado ao poder, e para justificar as ações do herói, o
poeta evidencia ora a falta de luz divina, ora a barbárie em que viviam os habitantes
desta nação.
57
Por isso, ao compará-los a animais, Anchieta aplica-lhes a primeira paixão ou
vício
58
, mostrando a prática da antropofagia como algo horrível, desconsiderando-a
57
Em grego, eudaimonía é a felicidade como perfeição ética, como resultado da vida virtuosa. Eudaimonía
relaciona-se com eupraxía: a práxis ou ação boa, bela e justa; a ação virtuosa. Desta forma, Mem de Sá, o herói da
epopéia anchietana, dotado de temperança, de justiça, de coragem e de prudência, ao agir, tenta levar os índios,
ainda guiados pela paixão e pela desmedida, a uma vida virtuosa, ou seja, dentro da vida cristã e como súditos do rei,
evidenciando os aspectos teológicos e políticos de sua ação.
58
O homem é um ser misto, ou seja, possui um lado que segue a Natureza (a vontade racional, que é sua essência) , e
possui um lado que é também sua natureza (o apetite ou desejo próprio a todos os animais), que pode contrariar sua
verdadeira natureza racional. O apetite-desejo é a marca de nossa passividade. O apetite- desejo é uma paixão, um
páthos. O verbo páskho, em grego, significa: ser afetado de tal ou qual maneira, experimentar tal ou qual emoção ou
sentimento, sofrer alguma ação externa, padecer ( em oposição a agir). Oposto a práxis. Na paixão, somos arrastados
em direções contrárias, não sabemos para que lado nos voltar e “flutuamos ao sabor das ondas de um mar revolto,
inconscientes de nosso destino”. A paixão é um movimento natural e violento. Natural, porque somos feitos de uma
matéria carente, desejante, passiva que busca vencer a carência e a passividade. Violento, porque a paixão suscita
movimentos contrários ao bem de nossa natureza, ao fim a que, como humanos, estamos destinados, isto é, a vida
racional. Por isso, a paixão – busca desenfreada do prazer e fuga desesperada da dor – é a origem de todos os vícios
humanos. A tarefa da ética será educar nosso apetite-desejo para que evite o vício e alcance a virtude. O apetite-
desejo é uma inclinação natural, uma propensão interna de nosso ser. É um movimento (uma tendência a) cuja
origem é dupla: por um lado, o objeto externo contingente que nos afeta; por outro, nosso caráter. Caráter, em grego,
se diz éthos e por isso a ética se refere ao estudo do caráter para determinar como pode tornar-se virtuoso. As
virtudes éticas (do caráter) são também virtudes morais (dos costumes, isto é, da sociabilidade humana). A ética nos
ensina os bons costumes, segundo nosso bom caráter. Nosso caráter é nosso temperamento. Cada caráter tem
apetites-desejos diferentes, pois para cada um deles os objetos de prazer e dor são diferentes. Pelo mesmo motivo,
cada caráter possui paixões e vícios diferentes. No entanto, em todos eles, um ponto é comum: o vício é o excesso ou
a falta entre dois pontos extremos. Em grego, a hýbris, a falta de medida, é a origem do vício. Diferente da hýbris, a
virtude é a medida entre dois extremos, a moderação entre os dois extremos, o justo meio, nem excesso nem falta.
Moderar, em grego, se diz médo, ação que impõe o médio/ medida, méson. É uma ação-decisão de impor limites ao
que, por si mesmo, não conhece limites. Moderar (médo) é pesar, ponderar, equilibrar e deliberar. A ética é a ciência
da moderação ou, como diz Aristóteles, da prudência. A virtude é virtude de caráter ou força do caráter educado pela
moderação para o mesótes, isto é, o justo meio ou a justa medida. Para Aristóteles, a virtude é um hábito adquirido
ou uma disposição permanente, um estado ou uma qualidade da alma. A tarefa
da ética é orientar-nos para a
aquisição desse hábito, ou seja, o exercício da vontade sob a orientação da razão para deliberar e escolher ações que
permitam satisfazer o apetite e o desejo sem cair num dos extremos. Tornamo-nos bons praticando atos bons. A
deliberação refere-se aos meios da ação; a escolha, aos seus fins. O apetite e o desejo são paixões, isto é, páthos,
passividade, submissão aos objetos exteriores. A virtude é ação, atividade da vontade que delibera e escolhe segundo
a orientação da razão que determina os fins racionais de uma escolha, com vista ao bem do indivíduo, isto é, sua
felicidade. O virtuoso é feliz porque prudente e prudente porque moderador e moderado. Os apetites e desejos não
são bons nem maus; as coisas apetecidas ou desejadas não são boas nem más. O apetite-desejo torna-se mau e o
objeto torna-se mau quando não se submetem à medida racional; tornam-se bons quando se submetem a essa medida.
Por isso, diz Aristóteles, não nascemos bons, mas nos tornamos bons com os atos bons, pois atualizam nossa
potencialidade para a razão e para a felicidade. In Chauí, Marilena. Introdução à História da Filosofia: dos pré-
socráticos a Aristóteles. São Paulo: Brasiliense, vol. I, 1994, pp. 310-313. A partir dessas idéias, a palavra cristã e a