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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE PSICOLOGIA
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA CLÍNICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA CLÍNICA
MARIA LUCIA DE SOUZA CAMPOS PAIVA
A TRANSMISSÃO PSÍQUICA E
A CONSTITUIÇÃO DO VÍNCULO CONJUGAL
SÃO PAULO
2009
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MARIA LUCIA DE SOUZA CAMPOS PAIVA
A TRANSMISSÃO PSÍQUICA E
A CONSTITUIÇÃO DO VÍNCULO CONJUGAL
Tese apresentada ao Departamento de
Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia
da Universidade de São Paulo como parte dos
requisitos para obtenção do título de Doutor
em Psicologia.
Orientadora: Prof
a
Associada Isabel Cristina Gomes
SÃO PAULO
2009
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AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO,
PARA FINS DE ESTUDO E PERQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogação na Publicação
Serviço de Documentação
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Paiva, Maria Lucia de Souza Campos.
A transmissão psíquica e a constituição do vínculo conjugal /
Maria Lucia de Souza Campos Paiva; orientadora Isabel Cristina
Gomes. -- São Paulo, 2009.
176 p.
Tese (Doutorado Programa de Pós-Graduação em Psicologia.
Área de Concentração: Psicologia Clínica) Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo.
1. Transmissão psíquica entre gerações 2. Teste de apercepção
temática 3. Casamento 4. Psicanálise 5. Negatividade (psicanálise) I.
Título.
HQ728
FOLHA DE APROVAÇÃO
Maria Lucia de Souza Campos Paiva
A transmissão psíquica e a constituição do vínculo conjugal
Tese apresentada ao Departamento de
Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia
da Universidade de São Paulo como parte dos
requisitos para obtenção do título de Doutor
em Psicologia.
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr. ____________________________________________________________________
Instituição ________________________________ Assinatura _________________________
Prof. Dr. ____________________________________________________________________
Instituição ________________________________ Assinatura _________________________
Prof. Dr. ____________________________________________________________________
Instituição ________________________________ Assinatura _________________________
Prof. Dr. ____________________________________________________________________
Instituição ________________________________ Assinatura _________________________
Prof. Dr. ____________________________________________________________________
Instituição ________________________________ Assinatura _________________________
Ao Edu, à Júlia e à Luísa,
com amor e carinho.
AGRADECIMENTOS
Muitas pessoas envolveram-se com este trabalho de modo direto ou indireto. Neste momento
de meus agradecimentos, sinto que faltam palavras para expressar a importância de cada uma.
À Isabel, minha orientadora, pela dedicação, incentivo e disponibilidade que sempre
demonstrou no decorrer do desenvolvimento deste trabalho de uma forma competente e
criteriosa.
Aos casais que aceitaram participar desta pesquisa, pela boa vontade e confiança que
depositaram em mim, contando sua história de vida.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, que durante dois anos me
concedeu bolsa de estudos.
À Maria Inês Assumpção Fernandes, pelas excelentes sugestões no exame de qualificação e
pela disponibilidade em me receber para discutirmos alguns aspectos deste trabalho que me
foram de grande valia.
À Celia Maria Blini de Lima, pelo desejo genuíno em colaborar e pelas valiosas sugestões
apresentadas no exame de qualificação que tanto ajudaram a enriquecer esta tese.
Ao Edu, meu marido, que acompanhou, apoiou e incentivou, mostrando-se sempre disponível
para conversar sobre o assunto de um modo afetuoso, que foi essencial para a realização desse
trabalho.
A minhas filhas, Júlia e Luísa, por entenderem minha dedicação a este trabalho e que, ao
longo desses anos, foram se envolvendo e torcendo por sua finalização.
A meus pais, Christina e Joaquim, que me transmitiram o gosto e a importância de estudar e,
em especial a minha mãe, que não mediu esforços para me ajudar.
A minha irmã Tina, por estar sempre a meu lado nos momentos alegres e difíceis.
A Bia, Roberto, Carolina, Alice e Elisa, que, mesmo morando longe, sempre estiveram
disponíveis para me ajudar no que eu precisasse.
A minha avó, por ter transmitido tantas coisas.
À Eliana Herzberg, pelo interesse e incentivo demonstrado para a realização deste estudo,
além de sugestões relevantes.
Ao Dr. Richard H. Dana, professor da Portland State University, pela oportunidade de discutir
o método.
À Almira Rossetti Lopes, minha primeira supervisora de casal e família, que me mostrou a
beleza de se estudar vínculos familiares e, ao longo dos anos, se tornou mais que uma amiga.
À Suzana, Vi e Caia, por estarem tão próximas, e a todos os meus amigos que são tão
especiais.
A todas as minhas colegas de doutorado que me acompanharam nesses anos, em especial à
Izabella, cuja amizade nasceu no mestrado, por tudo que temos passado juntas.
Aos colegas do Laboratório Casal e Família: clínica e estudos psicossociais, Adriano,
Cynthia, Maíra, Maria, Maria Ângela, Michelle, Leila, Lisette, Sandra e Sônia, pelas
deliciosas discussões teóricas e pela amizade que foi se construindo entre nós.
À Marina Massi, por me acompanhar tantos anos, pelas inúmeras vezes que me ajudou na
elaboração das minhas heranças psíquicas.
A minhas colegas e amigas de consultório, Anete, Juliana, Marilena, Selma, Suzanna e Vera,
pela torcida e incentivo com que acompanharam a execução deste estudo.
Ao corpo docente e à direção do curso de Psicologia da Universidade Presbiteriana
Mackenzie que, ao longo desses anos, demonstraram amizade e apoio.
A meus alunos, que me despertam a vontade de estudar.
A meus pacientes, que tanto me estimulam a estudar e buscar sempre novas respostas.
A todos os meus professores e supervisores que, ao longo de minha carreira acadêmica, tanto
me incentivaram e colaboraram para minha formação.
À Oscarlina Rezende que me ajudou na transcrição das fitas.
Às secretárias do Departamento de Psicologia Clínica, Cícera e Cláudia, pela boa vontade que
sempre demonstraram na resolução dos problemas que surgiam.
Às bibliotecárias do Instituto de Psicologia da USP, pelas inúmeras dúvidas que sanaram.
A todos, minha profunda gratidão.
Eu fico me perguntando, com tanta história de casamento ao
redor da gente, casamentos tão complicados, tão assim, que não
trazem a felicidade na vida das pessoas e tudo, por que a gente
acaba resolvendo casar também, né?
Sofia (casal I)
Nossos antepassados vivem através de nós
Ditado chinês
RESUMO
PAIVA, M. L. S. C. A transmissão psíquica e a constituição do vínculo conjugal. 2009.
176 p. Tese (Doutorado) Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo,
2009.
Na contemporaneidade, mulheres e homens estabelecem diversos tipos de vínculos amorosos.
Já não podemos dizer que existe um modelo único de casamento e família, tampouco fazer
previsões a respeito da durabilidade de uma relação matrimonial. Durante muitos anos os
estudos acadêmicos focaram a questão do rompimento do vínculo conjugal. Este trabalho foi
justamente realizado a respeito dos casais que permanecem casados por muitos anos. Assim, o
objetivo geral desta tese foi estudar a transmissão psíquica entre as gerações e a interferência
da mesma na constituição e manutenção do vínculo conjugal. Pretendemos entender as
influências que os casais receberam das famílias de origem e como elas interferiram na
possibilidade de o casal desenvolver uma identidade conjugal própria, enfocando tanto as
influências conscientes como as inconscientes. Abordamos, então, o mecanismo de
transmissão psíquica intergeracional e transgeracional na formação e manutenção do vínculo
conjugal. Utilizamos a psicanálise como referencial teórico, mais precisamente as
formulações teóricas de René Kaës. O método utilizado foi o clínico-qualitativo, proposto por
Turato (2003). A pesquisa foi realizada com dois casais casados entre vinte e trinta anos e que
não estavam em processo terapêutico. A coleta de dados foi feita por meio de entrevista semi-
aberta, com os dois em conjunto, e pela aplicação das pranchas 2, 4, 7RH, 7MF, 19 e 16 do
Teste de Apercepção Temática, com cada cônjuge, separadamente. Com base no material
coletado, evidenciamos a presença do declínio do masculino nas várias gerações das famílias
de origem desses casais e apontamos para a transmissão psíquica transgeracional da
fragilidade masculina. As principais conclusões indicam que as heranças psíquicas
transgeracionais foram determinantes na constituição do vínculo conjugal para esses casais
pesquisados e dificultaram o estabelecimento de uma identidade conjugal e familiar própria.
Palavras chave: Transmissão psíquica entre gerações. Teste de Apercepção Temática.
Casamento. Psicanálise. Negatividade (psicanálise).
ABSTRACT
PAIVA, M. L. S. C. Psychic transmission and constitution of marital bond. 2009. 176 p.
Dissertation (Doctoral) Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo,
2009.
Today, men and women establish various types of amorous bonds. We can no longer say that
there is one single model of marriage or family, nor make predictions about the durability of
marriage. For many years, academic studies have focused on the rupture of the marital bond.
This study deals with couples that remain married for many years. The general objective of
this dissertation is to study the psychical transmission between generations and its
interference in the constitution and maintenance of the marital bond. The purpose is to
understand the influence couples receive from their originating families and how it interfered
with the possibility of the couple to develop their own marital identity, focusing on both
conscious and unconscious influences, dealing with the intergenerational and the
transgenerational mechanisms of psychical transmission in the construction and maintenance
of the marital bond. The theoretical reference is based on Freud; specifically, the theoretical
formulations of René Kaës. The method used was the clinical-qualitative, proposed by Turato
(2003). The research was performed with two couples, married for 20 to 30 years and were
not participating in therapeutic treatment. Data was obtained through a semi-open interview
with the couple, and the application of cards 2, 4, 7RH, 7MF, 19, and 16 of the Thematic
Apperception Test. Based on the collected material, it became evident the decline of the male
persona in the various generations of the couples’ originating families and the psychical
transgenerational transmission of male fragility. The main conclusions indicate the mental
transgenerational legacy was a determinant in the marriage constitution of the studied couples,
making the establishment of their own marital and family identity difficult.
Key words: Psychic transmission between generations. Thematic Apperception Test,
Marriage. Psychoanalysis. Negativity (psychoanalysis).
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..............................................................................................................
11
1 A TRANSMISSÃO PSÍQUICA ...........................................................................
19
2 O NEGATIVO E A CONSTITUIÇÃO DO VÍNCULO CONJUGAL ............
34
3 METODOLOGIA .................................................................................................
49
4 CASAL I ................................................................................................................
63
4.1 A história de Sofia e Adriano ...............................................................................
63
4.2 Interpretação dos protocolos do TAT .................................................................
84
4.3 Discussão dos dados ..............................................................................................
90
5 CASAL II ...............................................................................................................
101
5.1 A história de Márcia e Valter ..............................................................................
101
5.2 Interpretação dos protocolos do TAT .................................................................
130
5.3 Discussão dos dados ..............................................................................................
137
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 154
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .........................................................................
163
APÊNDICES ...................................................................................................................
170
ANEXO ........................................................................................................................... 175
11
INTRODUÇÃO
Entre as muitas transformações que têm ocorrido em nossa sociedade, podemos dizer
que a relação homem-mulher apresentou inúmeras e relevantes mudanças. A emancipação
feminina, a ampliação da participação das mulheres no mercado de trabalho e a disputa
acirrada por condições igualitárias frente aos homens constituem algumas das mudanças mais
significativas da sociedade contemporânea, mudanças que têm repercutido de forma
considerável na família, bem como no casamento.
As transformações nas relações homem-mulher têm sido pesquisadas por muitos
teóricos, tanto no campo da Psicologia, como no da Sociologia e da Antropologia. Na
Psicologia, é crescente o número de profissionais que têm trabalhado com casais e famílias.
Especialmente no campo da clínica psicológica, as questões familiares também têm sido
objeto de interesse e estudo, tanto de um modo direto, por meio da psicoterapia com casais e
com famílias, quanto de modo indireto, com o atendimento a crianças, adolescentes e adultos.
Os terapeutas têm refletido sobre as mudanças que a família vem sofrendo, sobre as novas
configurações familiares e sobre os tipos de casamento existentes.
As questões vinculadas ao casamento e à família foram meu objeto de estudo durante
minha graduação e em cursos posteriores. Na época, a questão que começou a me intrigar foi
perceber o grau de sofrimento de alguns casais - sofrimento esse ligado às dificuldades
matrimoniais - e a manutenção da vida conjugal. Com nessas reflexões, surgiu o interesse em
pesquisar sobre os casamentos que se mantêm por muitos anos. A maioria das pesquisas
existentes tratava dos problemas que surgem com a separação dos casais e seus reflexos sobre
os filhos, em decorrência dessa separação.
Pouca ênfase havia sido dada, até então, sobre a dinâmica existente na vida conjugal
de casais que não rompem o vínculo, apesar das dificuldades relacionais presentes. Devido à
falta de estudos de caráter psicanalítico que abordassem o relacionamento de pessoas casadas
12
há muito tempo, surgiu na época o interesse em pesquisar esse assunto. Partindo do
pressuposto de que a sociedade atual aceita, em geral, com facilidade a idéia da separação, era
preciso investigar por que o vínculo conjugal se mantinha mesmo à custa de sofrimento
psíquico para os envolvidos.
Então, minha dissertação de mestrado, intitulada “Casamento entre vinte e trinta anos:
o uso de entrevistas e TAT na análise da relação conjugal” (2003), teve como objetivo geral
estudar o tipo de vínculo, consciente e inconsciente, que se estabelece em casais que vivem
juntos por muitos anos, isto é, entre vinte e trinta anos de casamento. O referencial teórico
utilizado nessa pesquisa foi o psicanalítico, mais precisamente a Escola Inglesa de
Psicanálise.
Nos três casais apresentados nesse trabalho pôde-se perceber que o que os mantinha
casados era o fato de formarem um par complementar e não uma parceria na qual o homem e
a mulher ocupavam lugares equivalentes. A complementaridade vivida por esses casais
assumia um caráter patogênico. A questão sobre a formação de um vínculo complementar na
relação conjugal foi aprofundada no corpo desta tese, pois tal vinculação pode apresentar um
caráter mais ou menos patológico dentro de um vínculo conjugal.
No caso dos casais entrevistados em meu mestrado, a mulher ainda ocupava um lugar
frágil dentro da relação conjugal. O nascimento dos filhos provocava grande alteração na
dinâmica matrimonial, perdendo-se o conjugal, ou seja, a relação marido-mulher. Também se
pôde observar a dificuldade de falar sobre os conflitos conjugais, pensá-los e transformá-los,
por parte desses sujeitos. Outro aspecto relevante a ser mencionado era a dificuldade de a
mulher viver a sexualidade dentro do casamento, pois acabava muitas vezes dividida entre os
papéis de mãe e esposa.
O roteiro de entrevista utilizado na coleta de dados foi minucioso e abrangeu os
principais aspectos de interferência na constituição do vínculo conjugal; analisamos, então, a
13
família de origem de cada cônjuge, a história do casamento ao longo dos anos, a chegada dos
filhos, enfim, tudo aquilo que poderia influenciar nesse tipo de vínculo estabelecido. Devido
aos objetivos da pesquisa, tomamos a decisão de circunscrever tal estudo à questão do casal,
deixando de lado todos os elementos considerados, naquele momento, como sendo menos
importantes para o entendimento do vínculo conjugal, principalmente no que se referia à
influência das gerações anteriores na constituição da conjugalidade.
Pudemos observar nesse estudo (Paiva, 2003) que os casais, apesar de estarem juntos
há muitos anos, tinham grande dificuldade em estabelecer uma identidade própria, isto é,
alguns desses casais repetiam os modelos de relacionamento vividos por seus pais. O único
casal que tentava estabelecer um outro tipo de organização conjugal sofria forte influência das
famílias de origem, o que não os deixava construir uma identidade própria. Desse modo, as
interferências das famílias de origem dos casais pesquisados faziam-se presentes, mesmo
quando o casal tentava evitá-las.
Foram encontrados vários pontos de vista que buscam explicar os fatores que
interferem na construção da conjugalidade da vida marital. Féres-Carneiro (1998), dentro de
uma visão mais psicossocial, aponta que um fator de interferência no casamento
contemporâneo é o fato de o casal vivenciar duas forças paradoxais causadas pela tensão entre
a conjugalidade e a individualidade. Essa tensão a que a autora se refere se deve ao momento
histórico em que vivemos, no qual há uma apologia à liberdade de cada indivíduo, em
detrimento do grupo. A dificuldade vivida por alguns casais giraria em torno de conseguir
conciliar os projetos individuais a um projeto comum de casal. No mesmo artigo, a autora
assinala também que, no estabelecimento da identidade, “o casal constrói não somente a
realidade presente, mas reconstrói a realidade passada, fabricando uma memória comum que
integra os dois passados individuais.” (Féres-Carneiro,1998, p.381).
O que percebemos, de fato, é que os três casais pesquisados (Paiva, 2003) tinham
14
dificuldade em estabelecer a conjugalidade, o que é, a nosso ver, uma das principais
características dos novos modelos de casamentos. Nesses casais analisados, a tensão não
girava em torno da conjugalidade e individualidade, mas estava muito mais ligada ao tipo de
vínculo conjugal estabelecido por eles.
Outro aspecto importante a ser mencionado é que nesses casais estudados havia
diversos sintomas. Entendemos por sintoma a expressão de um conflito inconsciente que não
pôde ser elaborado. O desejo reprimido, que foi recalcado, manifesta-se indiretamente por
meio de sintomas que podem ser tanto físicos como psíquicos. Nesses casais pesquisados, os
sintomas apareceram na forma de pânico, alcoolismo, dificuldades no âmbito da sexualidade,
tanto na família do casal entrevistado como em suas famílias de origem. Começamos, então, a
pensar sobre o peso da interferência das famílias de origem na constituição e manutenção do
vínculo matrimonial, bem como na dinâmica estabelecida pelo par conjugal, levando-se em
consideração a qualidade de vida.
Que aspectos conscientes e inconscientes na formação do vínculo conjugal seriam
oriundos das famílias de origem? Quais sintomas vividos pelos cônjuges teriam relação com
as heranças recebidas por meio das gerações? Que heranças poderiam ser transformadas e
elaboradas? Quais heranças das famílias de origem seriam não-ditas e apareceriam sob a
forma de sintomas na vida conjugal do casal? Que modelos de casamento teriam sido
transmitidos para esses casais antes mesmo de se casarem?
Na dissertação de mestrado não foi possível abordar essas questões relacionadas às
heranças psíquicas em toda a sua importância e com a profundidade necessária, o que nos
levou a empreender um novo estudo em que abordamos o legado familiar e sua interferência
na formação do par conjugal. Sabemos que a família exerce um papel fundamental na
constituição psíquica do indivíduo, influência essa que é carregada durante toda a vida,
inclusive quando o sujeito se depara com a escolha de um parceiro e a formação do vínculo
15
conjugal.
A importância do presente estudo deve-se à limitação de trabalhos psicanalíticos que
enfoquem a questão da transmissão psíquica na interface da constituição do vínculo conjugal.
Assim sendo, esta tese possibilita que se aprofundem e se ampliem os conhecimentos teóricos
a respeito do vínculo conjugal, sob a vertente da transmissão psíquica. Apesar de existirem
muitos estudos a respeito de casamento, não foram encontradas pesquisas que enfocassem a
questão da vinculação ao longo dos anos, sob o prisma da transmissão do psiquismo entre as
gerações. Desse modo, a originalidade desta pesquisa deve-se a seu objeto de estudo, mas
também ao procedimento metodológico que foi utilizado, que será abordado com mais
propriedade posteriormente, no capítulo dedicado à metodologia. Além do caráter original,
pode-se dizer que esta tese apresenta também relevância científica, devendo ser de valia tanto
para os profissionais que lidam com casais em consultório como para os estudos
psicossociais.
Nas últimas décadas, os terapeutas de casal e família que utilizam o referencial teórico
psicanalítico têm se voltado para a discussão sobre a transmissão psíquica e a incidência da
mesma na constituição do aparato psíquico do sujeito. Desenvolver esta pesquisa foi, em
última instância, fomentar o debate a respeito da transmissão psíquica, colaborando para o
entendimento dos meandros da construção do laço conjugal.
Assim, a proposta desta tese de doutorado é dar prosseguimento ao tema iniciado no
meu mestrado a respeito do vínculo conjugal, pesquisando uma população não-clínica, para
evitar um viés contaminado, pois os casais que recebem ajuda terapêutica já perceberam que
existe algum tipo de dificuldade no vínculo conjugal e/ou familiar e por meio do processo
terapêutico estão buscando elaborações e/ou modificações. Pesquisar casais que não estejam
em processo terapêutico apresenta a riqueza de se verificarem as características do vínculo
conjugal que eles constituíram e vivenciam e como eles o percebem, sem a interferência direta
16
de um terapeuta. Desse modo, analisamos casais com um vínculo matrimonial duradouro
entre vinte e trinta anos, com os vínculos bem estabelecidos e enraizados, podendo, assim,
analisar as heranças psíquicas e a sua interferência nesse tipo de vinculação.
Segundo Féres-Carneiro (1998, p. 380), “para Caillé
1
, cada casal cria seu modelo
único de ser casal, que ele chama de “absoluto do casal” que define a existência conjugal e
determina seus limites.” Pretendemos-s, neste trabalho, analisar o "absoluto do casal", aquilo
que lhe é mais próprio, tendo em vista as bagagens conscientes e inconscientes trazidas de
suas famílias de origem. Desvendar o laço conjugal é entender os aspectos positivos e
negativos que circulam na cadeia familiar, é compreender aquilo que pode ou não favorecer a
conjugalidade. É buscar os nódulos transmitidos, os não-ditos, que não puderam ser
modificados e que se manifestam, muitas vezes, por meio da dor psíquica de um membro do
grupo familiar.
Como já foi salientado, percebemos, em pesquisa anterior (Paiva, 2003), que algumas
heranças psíquicas vindas das gerações passadas eram difíceis de serem administradas,
gerando sintomas nos membros da família. Nesse trabalho anterior (Paiva, 2003, p. 12),
consideramos casamento um vínculo estável entre um homem e uma mulher que moram e
dividem a mesma habitação, no qual o afeto e a sexualidade podem estar presentes. É
importante retomar tal definição, pois o termo casamento tem sido utilizado para designar
diversas formas de união existentes. Nesta pesquisa será também utilizada a mesma definição
e toda vez que estiverem sendo utilizado os termos casal/casamento estará implícita tal
definição.
O problema de investigação a que esta tese se propôs responder é, pois: De que modo
as heranças psíquicas, tanto a intergeracional quanto a transgeracional, exercem influência na
1
Caillé, P. (1991). Un et un font trois Le couple révélé à lui-même. Paris: ESF.
17
constituição e manutenção do tipo de vínculo conjugal estabelecido pelo casal? Decorre dessa
questão o objetivo geral:
Pretendemos entender as influências que os casais receberam das famílias de origens e
como elas interferiram na possibilidade de o casal desenvolver uma identidade conjugal
própria, enfocando tanto as influências conscientes como as inconscientes, ou seja, o
mecanismo de transmissão psíquica intergeracional e transgeracional na formação e
manutenção do vínculo conjugal.
Como objetivos específicos esta pesquisa quis:
- identificar o tipo de vínculo que o casal estabeleceu ao longo dos anos, relacionando-o
com a intergeracionalidade e a transgeracionalidade;
- verificar a inscrição e a manifestação da figura do Negativo
2
no laço conjugal;.
- analisar o casamento sob a ótica da relação homem e mulher, em termos da
masculinidade e da feminilidade, o como cada um se coloca na relação conjugal,
levando-se em conta aquilo que foi herdado das gerações anteriores.
Esta tese traz primeiramente a discussão de dois capítulos teóricos. No primeiro,
intitulado A transmissão psíquica", buscamos, entre os teóricos de maior relevância, um
entendimento a respeito de como se dá o processo de transmissão psíquica, dentro de um
enfoque psicanalítico. Baseamo-nos em uma releitura do conceito na obra de Freud, sob a
ótica de René Kaës, mostrando o sentido e a presença da transmissão psíquica em vários
textos freudianos. Em seguida, nesse mesmo capítulo, apresentamos autores contemporâneos
que abordam essa questão.
No segundo capítulo, que tem por título "O Negativo e a constituição do vínculo
conjugal", buscamos discutir como se dá a construção do laço social, sob o prisma do
Negativo. Ao final desse capítulo é feita uma construção teórica sobre como se pode pensar a
2
O conceito de Negativo será abordado no capítulo 2 deste trabalho.
18
respeito dos laços conjugais. Esses dois capítulos constituem a base teórica utilizada na
interpretação dos dados coletados.
Em seguida, é apresentado o capítulo sobre a metodologia deste estudo, tendo sido
abordados o método da pesquisa, os critérios para a escolha dos sujeitos, os procedimentos
adotados na coleta de dados e na análise dos resultados.
Em cada um dos dois capítulos seguintes são apresentados a história do casal, a
interpretação dos protocolos do TAT e uma análise interpretativa à luz do referencial teórico
proposto. Por fim, são discutidas as conclusões que mostram que o legado familiar foi
determinante na constituição do vínculo conjugal para esses casais pesquisados e dificultou o
estabelecimento de uma identidade conjugal e familiar própria.
19
1 A TRANSMISSÃO PSÍQUICA
Ao nos propormos estudar neste trabalho a transmissão do psiquismo e a interferência
na constituição e manutenção do vínculo conjugal, é necessário discutir, primeiramente, o
termo vínculo e o seu uso dentro da teoria psicanalítica.
Segundo Moguillansky (1999), desde a década de 60 já era possível identificar, na
Argentina, as influências dos ensinamentos de E. Pichon Rivière na construção da noção de
vínculo, bem como na formulação de um novo aparato teórico que visava ao entendimento do
sofrimento humano por meio das redes sociais e familiares. Nessa época, iniciava os
primórdios do que é conhecido hoje em dia, como sendo a Psicanálise Vincular.
Berenstein (2004) aponta que o termo vínculo era ainda utilizado na década de 70 para
nomear qualquer tipo de relação. Era utilizado quase como um sinônimo de relação, podia-se
usar o termo para nomear tanto uma relação com o objeto interno, bem como com os objetos
externos.
Ao longo da história do movimento psicanalítico, o termo relação de objeto vem sendo
amplamente utilizado pela Escola Inglesa de Psicanálise. O termo, que foi consagrado pelos
escritos de Melanie Klein (1935/1996), vem sendo utilizado para dar ênfase ao entendimento
dos processos intrapsíquicos. Segundo Laplanche e Pontalis (1988), relação objetal é uma
Expressão usada com muita freqüência na psicanálise contemporânea para designar o
modo de relação do indivíduo com seu mundo, relação que é o resultado complexo e
total de uma determinada organização da personalidade, de uma apreensão mais ou
menos fantasmática dos objectos e de certos tipos privilegiados de defesa. (p. 576).
Conforme esse grupo argentino foi delineando seu pensamento, o termo vínculo foi
tomando características próprias e marcantes dentro dessa nova ramificação da teoria
psicanalítica. Começou a haver, então, uma diferenciação marcante quanto ao uso dos dois
termos: relação e vínculo. O uso indiscriminado desses dois termos já não era mais aceito nos
20
meios psicanalíticos, uma vez que cada um deles estava relacionado a referenciais teóricos
diferentes, isto é, teorizações divergentes quanto à concepção da constituição do sujeito
psíquico. Segundo Moguillansky (1999, p. 30), a noção de vínculo surge a partir da relevância
que o intersubjetivo passou a ter na compreensão da constituição do sujeito psíquico. No final
da década de 60, buscavam uma compreensão maior das questões familiares, com base no
entendimento do sujeito inserido em um conjunto de redes, além de uma concepção de
inconsciente calcado em uma leitura intersubjetiva.
Puget (2005) coloca que a psicanálise vinha sendo pensada "como uma relação entre
sujeito e objeto, objeto da pulsão". Entretanto, vários autores, inclusive ela, "tentam dar um
status teórico à relação entre sujeito e sujeito." (p. 18).
Assim sendo, a noção de vínculo deixa de ser usada como sinônimo de relação, pois
tem um significado próprio. O termo vínculo é utilizado com o intuito de significar a união ou
atadura de uma pessoa com outra. Berenstein (2004) salienta que a definição sugere a idéia de
uma ligação estável. Esse autor menciona que toda relação conjugal e familiar parece estar
associada à fantasia, bem como ao imaginário popular, de uma condição estável, em termos
de tempo.
Puget e Berenstein (1993, p.18) definem:
Chamaremos de vínculo uma estrutura de três termos, constituída por dois pólos, os dois
egos (descrito a partir de um observador virtual), ou um ego e outro (visto a partir de si
mesmo), e um conector (ou intermediário) (Kaës, 1983, 1985) que dará conta da
maneira particular de ligar ambos.
3
Essas novas formulações teóricas dentro da própria psicanálise passaram a ser
inevitáveis, já que a clínica contemporânea passou a exigir novos paradigmas, uma concepção
de sujeito psíquico que pudesse atender às demandas oriundas dos próprios atendimentos
3
Neste trabalho será utilizada a definição de vínculo que Puget e Berenstein (1993) e Berenstein (2004)
propõem.
21
psicanalíticos. Apenas uma leitura intrapsíquica do indivíduo já não respondia às solicitações
vindas dos consultórios dos psicanalistas.
É importante salientarmos que a teoria psicanalítica foi construída com base na
experiência de Freud (1905[1901], 1909, 1911) com seus próprios pacientes, fornecendo um
referencial teórico intrapsíquico para o entendimento do sujeito psíquico. Entretanto, na obra
freudiana podemos encontrar textos em que o autor estabelece uma relação entre a psicologia
individual e a psicologia grupal, ou seja, entre o aparelho psíquico individual e sua relação
com o intersubjetivo.
Apesar de Freud, em sua obra, não ter como sua preocupação central a questão do
sujeito enquanto sujeito da herança, é possível encontrar em seus escritos referências a esse
respeito. A noção de transmissão psíquica na constituição do sujeito já estava presente na obra
de Freud (1912-1913, 1914, 1921).
Enquanto na Argentina se buscavam respostas para as novas patologias que foram
surgindo, na Europa, mais especificamente na França, certa corrente de analistas desenvolveu
um processo similar e simultâneo, havendo, desse modo, interferências mútuas entre os dois
grupos. Podemos, então, dizer que, nas últimas décadas do século passado, a discussão sobre
o conceito da transmissão psíquica acabou sendo objeto de interesse entre os psicanalistas,
mais precisamente em um grupo de pesquisadores que procurou fazer uma correlação entre a
terapia de grupo e a familiar. Destacam-se, entre outros, Kaës (1996, 1997a, 1998, 2001,
2003), Eiguer (1985, 1995, 1998), André-Fustier e Aubertel (1998) e Ruffiot (1981). Passou-
se, então, a aprofundar a questão da transmissão do psiquismo, abordada em termos do sujeito
do grupo. Os pesquisadores retornam aos escritos de Freud, buscando nesse autor elementos
que pudessem contribuir para a elaboração de um entendimento do aparato psíquico, sob a
ótica do grupo familiar. O sintoma individual passou a ser visto como uma expressão de uma
22
patologia do grupo e, para sua compreensão, a história familiar e as heranças psíquicas
geracionais começaram a ser analisadas e entendidas sob uma nova ótica.
Kaës (2001), ao analisar a questão da transmissão psíquica entre as gerações, destaca
que na obra de Freud há pelo menos quatro termos para designar a palavra transmissão. Essa
variação de termos não se deve somente à riqueza da língua alemã, mas ao uso que Freud faz
do termo transmissão em sua obra. “Essa diversidade semântica indica a diversidade de
objetos da investigação freudiana ao longo de toda a sua obra.” (Kaës, 2001, p. 28).
A questão da hereditariedade, focando a etiologia das neuroses e sua
transmissibilidade através da via psíquica, encontra-se, segundo Kaës (2001), presente na obra
freudiana desde os Estudos sobre a histeria (Freud, 1893-1895/1980) até seus últimos textos,
notando-se uma ênfase maior nos trabalhos entre 1895 e 1905.
Seguindo a análise feita por Kaës (2001), com a publicação do texto A interpretação
dos sonhos (Freud, 1900/1980), uma nova via a respeito da transmissão psíquica passa a ser
enfocada, mas sempre em relação com a questão da histeria. Segundo Kaës (2001, p. 28),
Freud discute a "etiologia das neuroses e sua transmissibilidade por via psíquica." A
Interpretação dos sonhos (Freud, 1990) passa a ser o texto de referência em relação ao que
se transfere ou se transmite. A passagem de conteúdos do Inconsciente, para o Pré-consciente
e posteriormente para o Consciente, dos conteúdos latentes para o relato manifesto, se
através dos pensamentos intermediários.
Kaës (1997a) chamou de formações intermediárias ao processo psíquico de ligação
entre os espaços intrapsíquicos, interpsíquico ou para a ligação de ambos os espaços.
Essas formações intermediárias estabelecem uma ponte e uma separação entre as
formações intrapsíquicas; elas cumprem diversas funções de ligação, de deslocamento,
de fixação, de condensação [...]. Sonho, processo associativo, representação, essas
formações são os objetos e os vetores da transmissão interna da realidade psíquica.
23
Desde o princípio Freud os pensa de tal forma que o ponto de vista econômico adquire
um lugar importante: investimentos, localizações, deslocamentos de afetos, de energia e
de representação, condensação e difração. (Kaës, 2001, p. 30).
Freud, depois de abordar a transmissão intrapsíquica, discute o tema da transmissão
por outra via em seu trabalho Totem e Tabu (1912-1913), escrevendo sobre o que se transmite
de geração em geração, abordando a transmissão do tabu, do crime e da culpa. (Kaës, 2001).
Em Totem e Tabu (1912-1913), Freud, ao mencionar as transformações e a evolução
que o homem foi sofrendo ao longo de sua história, afirma que há traços que sobrevivem ao
longo do tempo, oriundos dos nossos ancestrais, traços esses que colocam cada um muito
próximo ao homem primitivo. A transmissão das gerações passadas encontra-se presente na
cultura e na história de cada povo.
Nesse mesmo texto, Freud (1912-1913, p. 55) afirma que "o tabu teve sua origem
numa proibição primeva imposta numa ou noutra época por alguma autoridade externa
evidentemente não é passível de demonstração." Mesmo sendo inviável a demonstração da
sua origem, Freud aponta-nos a importância do peso e da interferência que o tabu assume na
vida do indivíduo.
O tabu é uma proibição que não se apóia em nenhuma lógica, variando apenas em sua
forma e seu conteúdo de uma sociedade para outra. Entretanto, sua presença e força
perpetuam-se por meio da imposição de uma geração à seguinte. O motivo real das
proibições, da origem verdadeira do tabu, é apontado, nesse mesmo trabalho, como devendo
ser "inconsciente" (Freud, 1912-1913, p. 51).
Ao descrever as leis que regem e organizam as sociedades, Freud vai, ao mesmo
tempo, delineando a vida em grupo, o jogo de relações entre os processos psíquicos grupais e
individuais, mas sobre tudo vai expondo a presença das heranças psíquicas geracionais na
vida do homem.
24
Mais adiante, no mesmo trabalho, ele afirma a existência de processos psíquicos que
avançam de uma geração à outra. Mesmo havendo conteúdos reprimidos, restam ainda
vestígios.
podemos presumir com segurança que nenhuma geração pode ocultar, à geração a que
sucede, nada de seus processos mentais mais importantes, pois a psicanálise nos
mostrou que todos possuem, na atividade mental inconsciente, um apparatus que os
capacita a interpretar as reações de outras pessoas, isto é, a desfazer as deformações que
os outros impuseram à expressão de seus próprios sentimentos. Uma tal compreensão
inconsciente de todos os costumes, cerimônias e dogmas que restaram da relação
original com o pai pode ter possibilitado às gerações posteriores receberem sua herança
de emoção. (Freud, 1912-1913, p. 188).
Em um escrito posterior, "Sobre o narcisismo: uma introdução", datado de 1914, Freud
aponta o caráter da transmissão psíquica presente na relação entre pais e filhos. Segundo ele, o
pai, ao manifestar seu amor pelo filho, está apenas fazendo renascer o próprio narcisismo.
Nesse pensamento freudiano, ao denunciar o desejo dos pais em relação aos filhos
como sendo fruto do renascimento do narcisismo paternal, está intrínseca a idéia de que o
filho é fruto de uma cadeia geracional, de um desejo narcísico, que teve sua origem também
nas gerações passadas, em seus avós, bisavôs e assim por diante.
Diante da mortalidade do eu, a segurança é alcançada pela busca de continuidade nos
filhos, que transforma em amor objetal o narcisismo dos pais, no filho renascido.
Portanto, assistimos a um narcisismo estruturante para a criança, o qual inclui a
transmissão dos sonhos de desejos insatisfeitos dos pais, quando a geração sucessora
constitui-se com a esperança por parte da antecessora de realizar o não-realizado, de
fazer o não-feito. (Inglez-Mazzarella, 2006, p. 43).
25
Nos trabalhos de Freud, “Psicologia de Grupo e a Análise do Ego (1921) e O Ego e
o Id (1923), a transmissão é tratada sob outro enfoque. A questão da identificação, do ego e
do superego passam a entrar em cena na discussão sobre os processos da transmissão. No
texto Psicologia de Grupo e a Análise do Ego (1921/1980), Freud retoma o Caso Dora e
fornece outros exemplos para apresentar a idéia de que o sintoma se constrói pela via da
identificação. Freud faz toda uma análise sobre "o mecanismo do contágio psíquico no qual se
evidência a identificação como indício de um ponto de coincidência entre dois egos. Trata-se
de uma aliança inconsciente." (Kaës, 2001).
Fernandes (2003) aponta que Psicologia de Grupo e a Análise do Ego (Freud,
1921/1980) é analisado por Kaës não como um escrito da Psicologia Social, mas um ensaio
no qual Freud cria conceitos no âmbito da Psicologia Social, “para assegurar uma abertura
intersubjetiva dos aparelhos psíquicos em um lugar onde se poderia assegurar conjuntamente
a estrutura de laço ou vínculo libidinal entre vários sujeitos, a função das Identificações e dos
Ideais e a formação do Eu.” (Fernandes, 2003, p.48).
A partir de 1920, Freud delineia a segunda tópica, definindo as três instâncias do
funcionamento psíquico: id, ego e superego. Em O Ego e o Id (1923/1980), o ego é descrito
como o mediador dos impulsos oriundos do id e das demandas do superego. Enquanto um
ente fronteiriço, Freud (1923/1980, p. 72) define o "ego como uma pobre criatura que deve
serviços a três senhores e, conseqüentemente, é ameaçado por três perigos: o mundo externo,
a libido do id e a severidade do superego."
Kaës (2001) aponta que o ego tem, então, um caráter intermediário, entre desejos
oriundos do indivíduo e do grupo. Nesse sentido, há uma mediação entre o ideal do sujeito e o
grupo. "O ego é uma instância psíquica particularmente solicitada nos processos e funções da
transmissão psíquica em razão de sua posição intermediária (Grenzwesen, ser fronteiriço)."
(Kaës, 2001, p. 31)
26
Os textos de Freud (1921, 1923) trazem elementos para se pensar a transmissão tanto
em termos do intrapsíquico como da intersubjetividade.
O peso da transmissão, dos traços herdados, da herança maldita, o desejo do pai de que
os filhos cumpram aquilo que foi idealizado por ele é possível de ser encontrado mesmo antes
dos escritos de Freud. Paiva e Gomes (2008) apontam que até mesmo nos textos bíblicos,
mais precisamente no livro do Gênese, a herança psíquica, os lugares que cada filho ocupa
dentro de uma família, o desejo do Pai em relação aos filhos, já estavam, desde então,
colocados.
Entretanto, somente nas últimas décadas é que as publicações envolvendo
pesquisadores e terapeutas familiares de base psicanalítica se debruçaram sobre essa questão,
retomando os escritos de Freud sobre a transmissão psíquica. Buscam, em Freud, um eixo
norteador para um entendimento do aparato psíquico, sob a ótica do grupo familiar. Essas
formulações de Freud sobre a transmissão psíquica possibilitaram, assim, que novas idéias
sobre a transmissibilidade presente na vida psíquica pudessem ser construídas.
Kaës (1996), ao discutir em seus textos a respeito de quais são as incidências do grupo
no desenvolvimento do aparato psíquico do sujeito, propõe uma nova metapsicologia
diferente da freudiana, na qual sujeito e grupo estão numa relação dialética.
Isso que nós temos que construir é uma teoria psicanalítica do vínculo: uma teoria que
não será a dos fundamentos sociais do vínculo, nem da psicologia da interação, mas
aquela dos movimentos do desejo inconsciente, desejo do outro e do objeto do desejo do
outro. (Kaës, 1996, p. 5)
4
Kaës (1996, p. 1) destaca que os vínculos que os casais, as famílias e as instituições
estabelecem são vínculos instituídos. Para esse autor, o vínculo instituído determina-se pelo
efeito de uma dupla conjunção. A primeira é da ordem do desejo do sujeito de se inscrever em
4
Tradução da autora.
27
um vínculo que tenha uma duração e uma certa estabilidade. A realização desse desejo, de se
inserir em um vínculo, supõe certo número de formações intersubjetivas, assim como de
alianças entre as formações psíquicas que, em cada sujeito, encontra uma correspondência ou
uma ressonância no outro, de tal modo que essas alianças sejam suficientemente investidas e
protegidas entre os sujeitos, em razão dos interesses comuns e específicos que cada um
encontra. A segunda conjunção é aquela das formas sociais que reconhecem e sustentam de
diversas maneiras (jurídica, religiosa, cultural, econômica) a instituição desse vínculo.
Desse modo, podemos pensar o casamento como um vínculo instituído que se apóia
nas alianças conscientes e inconscientes que o casal estabelece. Além dessas alianças,
podemos pensar que esse vínculo conjugal também acaba sendo sustentado tanto pelo desejo
dos cônjuges quanto pela comunidade que o reconhece como tal. Essa sustentabilidade dada e
vivida pelo par conjugal possibilita que se construam uma identidade e um funcionamento
próprio.
Segundo Kaës (1997a), o sujeito singular, ao se agrupar, leva ao grupo o que ele
projeta, o que ele rejeita e o que não pode aceitar em sua realidade inconsciente. Também leva
seus projetos, o que realiza, bem como seus sonhos irrealizáveis. Insere no grupo parte de si e
retoma, por meio do laço grupal, seu narcisismo primário, “que ele obtém da corrente com
que é constituído, como um de seus representantes...”, mas também retorna ao grupo, onde
se associa com a formação do Ideal do grupo, sob o modo de conluio ou conflito.”(p. 189).
Esse autor diz que a conceituação do aparelho psíquico grupal serve para se pensarem
três aspectos importantes a respeito do sujeito e do grupo. O primeiro aspecto diz respeito ao
“trabalho de ligação, de transformação e diferenciação das partes do aparelho psíquico
individual mobilizadas na construção da realidade psíquica do grupo”. O segundo aspecto diz
respeito às relações de entrelaçamento e desenlaçamento entre os espaços psíquicos e entre
28
as formas de subjetividade mobilizadas nos grupos.” Por último, Kaës (1997a, p. 201) aponta
que é importante pensar sobre “os efeitos do agrupamento sobre a formação do inconsciente.”
André-Fustier e Aubertel (1998, p. 132) enfatizam que, com base nas formulações de
Ruffiot (1981) e, dos trabalhos de Kaës (1997a) a respeito da existência de um aparelho
psíquico grupal, foi possível que se expandissem as hipóteses sobre o funcionamento do
aparelho psíquico familiar. André-Fustier e Aubertel (1998, p. 132) definem aparelho
psíquico familiar "como uma aparelhagem psíquica comum e partilhada pelos membros de
uma família, cuja função é de articular o funcionamento do 'estar junto familiar' com os
funcionamentos psíquicos individuais de cada um dos membros da família." Esses autores
prosseguem dizendo que as funções do aparelho psíquico familiar são de "continência, de
ligação, de transformação e de transmissão."
Para esses autores a continência, a ligação e a transformação são funções que dão
suporte ao desenvolvimento emocional do lactante e, posteriormente, do indivíduo. A
transmissão diz respeito à maneira como o indivíduo vai construir sua história com base na
história familiar que o precedeu. (André-Fustier e Aubertel, 1998).
Os autores acima salientam que as heranças psíquicas transmitidas são constituídas em
duas ordens, a herança intergeração e a herança transgeração. A primeira refere-se às
heranças psíquicas que foram elaboradas. Uma herança transgeração é "constituída de
elementos brutos, não elaborados, transmitida tal qual, oriunda de uma história lacunar,
marcada por vivências traumáticas, de não ditos, de lutos não elaborados." (p. 134).
Kaës (1998) afirma que podemos pensar em algo que se transmite de um espaço
psíquico a outro. Para esse autor, transferem-se “as configurações de objetos psíquicos
(afetos, representações, fantasias), isto é, objetos munidos de seus vínculos, incluindo
sistemas de relação de objeto.” (p. 9).
Granjon (2000) assinala que em um processo de transmissão deve existir
29
uma distância e um laço entre ”transmissor” e “receptor”, acolhimento e apropriação
pelo adquirente, até mesmo herdeiro, mas também, eventualmente, modificação daquilo
que é transmitido, em função dos intermediários capazes de intervir nesta transmissão.
O sujeito é beneficiário, herdeiro, servidor forçado, mas também adquirente singular do
que é transmitido. (p. 24).
A autora prossegue, dizendo que os processos de transmissão acontecem devido a
ligações entre diferentes níveis intrapsíquicos e intersubjetivos; graças aos agenciamentos e às
aparelhagens psíquicas mobilizadas. Esse processo favorece transformações, podendo levar a
uma diferenciação entre aquilo que é transmitido e aquilo que é herdado e, posteriormente,
obtido. Assim sendo, o trabalho de transmissão psíquica intergeracional permite que cada
geração se localize perante as gerações que antecederam; insere cada sujeito em uma cadeia e
em um grupo; possibilita que o sujeito se aproprie de seu legado e construa sua própria
subjetividade. (Granjon, 2000, p. 24).
Entretanto, nem sempre é possível que o legado familiar seja elaborado e
transformado. Temos, então, uma transmissão transgeracional que é aquela em que o herdeiro
não pode se beneficiar das modificações que permitem a integração psíquica. (Granjon, 2000)
Granjon (1990, p. 64) esclarece o significado dos termos usados para diferenciar as
duas modalidades da transmissão psíquica. O prefixo inter da palavra intergeracional significa
o espaço de repetição e de transformação; já o prefixo trans da palavra transgeracional traduz
aquilo que se passa sem uma possibilidade de transformação e sem uma diferenciação. As
duas formas de transmissão, a intergeracional e a transgeracional, são vitais no processo de
transmissão psíquica.
Correa (2003) chama atenção para o fato de que uma transmissão psíquica defeituosa
pode gerar uma alienação da subjetividade. O reconhecimento de tal fato nos permite um
novo olhar a respeito das patologias da contemporaneidade. A autora retoma o conceito de
30
cripta proposto por Abraham e Torok (1978)
5
. “A definição de cripta refere-se ao enterro
intrapsíquico de uma vivência vergonhosa e indizível, traduzindo-se num fantasma de
incorporação, sendo este o resultado dos efeitos de um segredo inconfessável.” (p. 37) Nesse
conteúdo incrustado e encapsulado, na forma de uma cripta, a presença constante de pulsão
de morte que é transmitida por meio das gerações.
O fato do sujeito não conseguir se apropriar do conteúdo herdado e encravado em seu
psiquismo possibilita o surgimento de patologias. Nessa mesma vertente de pensamento,
Almeida Prado e Giovannini (2001) afirmam que há
uma convergência de diferentes conceitualizações no que diz respeito à constituição
psíquica de certos sujeitos, em que a história de seus antepassados e a que é vivida entre
eles, parece ter um peso e uma eficácia etiopatogênica, em sucessivas gerações, que
transcende a história propriamente vivida pelo sujeito. A experiência clínica assinala
que fatos, particularmente aqueles caracterizados por segredos, ocorridos em um tempo
anterior ao nascimento do sujeito, e histórias que aparentemente não lhe pertencem,
revelam-se constitutivo de seu psiquismo. (p. 97)
Retomando as idéias de Freud (1912-1913), de fato uma geração não consegue ocultar
das gerações seguintes seus processos mentais. A transmissão psíquica tem uma importância
fundamental na vida do sujeito. Não podemos esquecer que é por meio da transmissão
psíquica que o sujeito se identifica como pertencente ao grupo social, enquanto membro de
uma rede social.
Rosa (2001) discute que muitas vezes aquele conteúdo que os pais temem que seja
transmitido a seus filhos é justamente o que é passado e retorna na forma de sintoma: "a
transmissão opera-se à sua revelia, dado que o não-dito comparece na subjetividade da criança
5
A obra mencionada é A casca e o núcleo, publicada pela editora Escuta.
31
através dos processos de identificação e construção de valores e ideais, na trajetória edipiana."
(p. 127).
Essa autora (2001, p.123) aponta também que na atualidade as famílias têm tido
dificuldade em educar seus filhos, pois os “dispositivos tradicionais” de outras gerações já
não cabem mais na contemporaneidade. Há um declínio do significante pai e há uma falta de
novos saberes eficazes na cultura que possam substituí-lo.
Ampliando a questão do declínio do significante pai, Oliveira (2002, citado por
Muszkat, 2006) destaca para a necessidade de se discriminarem as diferentes masculinidades.
A crise vivenciada pelos homens em relação ao exercício do poder, presente na atualidade,
aparece mais nos segmentos socioeconômicos médios e altos, contrapondo-se às classes
populares, nas quais a conduta masculina dominante é ainda bastante valorizada.
Muszkat (2006, p.183), em sua dissertação de mestrado sobre violência e
masculinidade, ao descrever o trabalho que realizou com homens de uma classe social de
baixa renda, aponta que esses homens estão permeáveis à desmoralização da função paterna,
apesar de esse estrato da população ser regido, no universo imaginário, por ideais patriarcais,
demarcados por hierarquias e lugares determinados.
As mudanças identificadas em relação à masculinidade estão intimamente atreladas ao
lugar que as mulheres vêm ocupando ao longo do tempo. Quando pensamos sobre o par
conjugal e o lugar que o homem e a mulher ocupam em um vínculo matrimonial,
necessariamente nos remetemos à questão da herança psíquica que cada um recebeu de sua
família de origem, bem como às heranças sociais, isto é, às heranças oriundas do grupo social
ao qual eles pertencem. Há um discurso social sobre o que é ser homem e mulher e, conforme
o estrato social, há um significado próprio para cada papel. Entendemos que para se pensar
sobre a transmissão psíquica precisamos analisar também aquilo que é transmitido e que vai
além do grupo familiar.
32
Pensar em como se dá a constituição psíquica do sujeito implica uma análise dos
traços que lhe foram transmitidos, tanto via grupo social ao qual ele pertence, como via
transmissão psíquica do grupo familiar. É nas diversas intersecções das redes sociais em que o
sujeito psíquico está inserido que ele vai constituindo a sua subjetividade, com base nas
heranças recebidas, bem como no momento sócio-histórico vivido por ele.
As heranças psíquicas, oriundas da família, acabam sendo marcantes na vida do
sujeito, uma vez que se apropriar do legado familiar acaba sendo um desafio para o sujeito
psíquico.
Almeida Prado e Giovannini (2001) apontam que alguns pais, devido a uma
incapacidade psíquica de elaborar suas vivências e de transformá-las, correm o risco de
transmiti-las para uma geração seguinte como um saber não compreendido, portanto, da
ordem do Negativo.
Kaës (2001, p. 20) ressalta que, já nos escritos de Freud (1914), aparecia o caráter de
se transmitir o que falta, “o narcisismo da criança apóia-se sobre o que falta na realização dos
‘sonhos de desejo’ dos pais.” A transmissão também se dá pela ausência, pelo que não adveio.
O processo da transmissão psíquica é complexo, pois seu tempo pode não ser linear, “pode ser
esburacado, intermitente.” (p. 40), mas o Negativo assume um lugar de destaque nesse
transcurso.
Não é possível abolir os traços que se transmitem, eles podem aparecer nas próximas
gerações como enigmas ou signos. Durante o processo terapêutico familiar é possível detectar
a presença de tais traços por meio de sintomas individuais somáticos ou físicos. Muitas vezes
também são percebidos sob a forma de fantasmas, criptas, segredos ou ainda na forma de
“objetos brutos”. (Granjon,1990, p. 65).
Nesse sentido, Granjon (1990) acata a hipótese de Kaës, uma vez que a clínica vem
confirmar: “Toda afiliação se faz sobre as falhas da filiação. Isto quer dizer é que sobre os
33
defeitos da transmissão psíquica, a partir da herança transgeracional negativa, que se fundam
nossas afiliações, nossas alianças e nossas pertenças grupais.”
6
(p. 65).
Granjon (1990, p. 65-66) destaca que cada um vai tecer laços de reagrupamento,
buscando um lugar de apoio para sua herança não administrável, valendo-se do que não pode
ser inscrito, daquilo que poderia constituir seu destino. Segundo essa autora, nossos
antepassados nos legam um livro de história no qual nos é imposto escrever as páginas que
faltam, arrancadas, e nós temos que dar conta daquilo que nos transmitiram.
Essas páginas arrancadas, histórias que não puderam ser ditas e elaboradas por uma
geração, aparecem inscritas nas demais sob a forma de elementos brutos, não digeridos, como
já foi dito anteriormente, da ordem do Negativo.
O Negativo, na psicanálise, vem sendo utilizado em vários contextos. Por ser ele um
conceito central no entendimento das alianças inconscientes e em como se dá o processo de
transmissão psíquica, optamos por apresentar um capítulo sobre o Negativo. Apresentamos,
inicialmente, uma discussão a respeito do uso do termo em Psicanálise, posteriormente
abordamos a teoria de Kaës a esse respeito. Ao final desse capítulo, são tecidas algumas
reflexões sobre como é possível pensar a constituição do laço conjugal, tendo em vista a
transmissão psíquica e a negatividade.
6
Tradução da autora.
34
2 O NEGATIVO E A CONSTITUIÇÃO DO VÍNCULO CONJUGAL
A negatividade na linguagem cotidiana, como salienta Kaës (2003), é usada com uma
conotação pejorativa, mas em Freud a negatividade apresenta “uma consistência psíquica
desprovida de julgamento de valor”. (p. 21).
Complementando essa idéia, Rosolato (1991) afirma que o termo negativo leva a
marca do signo (-) e está associado à falta, a um estorvo, a um retardo, a uma interrupção em
relação a uma continuidade, enfim, o negativo está associado a uma impossibilidade.
Guillaumin (1991), por seu lado, ao escrever sobre o uso do termo negativo na
psicanálise, enquanto um substantivo, frisa que Freud já o havia utilizado antes de 1905.
Podemos inferir que essa alusão à obra freudiana feita pelo autor refere-se aos primeiros
escritos de Freud quando ele ainda estava construindo a teoria psicanalítica. A idéia do
negativo, enquanto aquilo que obstrui, que aparece na forma de obstáculo, aparece nos
primeiros escritos e, posteriormente, recebe o nome de recalcamento.
Guillaumin (1991) destaca que, em 1905, Freud, ao escrever Três ensaios sobre a
sexualidade, utiliza o termo negativo no sentido de opor a neurose à perversão. Essa
aplicação do negativo tem um caráter metafórico e singular, seu uso refere-se à inversão que
há entre a neurose e a perversão. Freud (1905a, p. 155) aponta que "os sintomas se formam,
em parte, às expensas da sexualidade anormal; a neurose é, por assim dizer, o negativo da
perversão
7
."
Posteriormente, segundo Guillaumin (1991), Freud emprega o termo negativo,
enquanto um adjetivo, para qualificar uma forma agressiva que pode ocorrer na transferência,
bem como o resultado de certas terapias e, por último, uma forma de julgamento no processo
secundário.
Green (2008) salienta que na obra de Freud não existe apenas a idéia do negativo, mas
7
Grifo de Sigmund Freud.
35
também do trabalho do negativo que está evidenciado na própria teoria freudiana sobre o
recalcamento. Até o artigo A Negativa (Freud, 1925), Freud só tratava dos problemas do
negativo relacionados ao recalcamento, isto é, ao inconsciente. A partir de então, “ele se
interessa pela negação propriamente dita, isto é, a um fenômeno ligado à linguagem, portanto,
ao consciente.” (Green, 2008, p.261).
Guillaumin (1991, p. 39) ressalta que nesse trabalho de Freud datado de 1925, a
negação aparece como “uma definida modalidade de juízo no processo secundário
8
. Freud
apresenta o valor de uma afirmativa que a negativa assume, quando o paciente reage, dizendo
não à interpretação do analista. "A negativa constitui um modo de tomar conhecimento do que
está reprimido; com efeito, já é uma suspensão da repressão, embora não, naturalmente, uma
aceitação do que está reprimido." (Freud, 1925, p. 296).
É possível encontrar diversos usos, na obra freudiana, do termo negativo, bem como
entre os psicanalistas. Segundo salienta Missenard (1991), o termo negativo na psicanálise foi
utilizado no passado e continua sendo utilizado no presente. Esse autor justifica o fato e a
importância de inúmeros autores na atualidade pesquisarem o negativo, destacando três razões
para justificar esse interesse. A primeira razão deve-se ao fato deque os pacientes que buscam
um tratamento psicanalítico são mais difíceis de serem analisados do que os da época de
Freud. Missenard (1991) chama a atenção que os pacientes contemporâneos apresentam
dificuldade para pensar que não diz respeito apenas a proibições ou inibições. Há novas
enfermidades, patologias narcisistas, neuroses do vazio, que devem ser compreendidas e
analisadas de maneira diferente do que vinha sendo feito.
Outra razão pelo interesse dos psicanalistas em se debruçarem sobre esse tema deve-se
às concepções atuais sobre o funcionamento psíquico. O mesmo autor argumenta que se tem
discutido a respeito da transmissão transgeracional, bem como sobre a intersubjetividade. "O
8
Tradução da autora.
36
negativo de um (...) é transmitido ao outro e o determina em sua patologia
9
" (p. 15). Esse
autor apoia-se nas idéias de Kaës sobre o Negativo, dizendo que aquilo que foi negado,
reprimido, forcluído, é o que se transmite. Além disso, Missenard (1991, p. 15) aponta que
Kaës (1976)
10
, ao falar sobre grupos, diz que, no início do funcionamento grupal, o grupo se
depara com a angústia de não ser e há no grupo uma "urgência identificatória" (Missenard,
1982)
11
. O peso que o negativo assume na constituição e organização dos grupos, mencionado
aqui valendo-se das idéias de Missenard sobre a sua importância, será abordado com maior
propriedade mais adiante nesse capítulo.
A terceira justificativa dada para o estudo do negativo na atualidade deve-se às
concepções recentes sobre a estrutura da psique e as conseqüências para a cura que se seguem
a partir disso. Novamente Missenard (1991) alerta que o desejo inconsciente não está
vinculado somente a conteúdos reprimidos, oriundos de representações que eram conscientes,
mas também de aspectos que nunca foram antes representados e, por conseqüência,
permanecem sem representação, pelo menos em termos de palavras. “O reprimido, por um
lado, o que não pode ser representável, por outro, se situam no núcleo do funcionamento
psíquico inicial e constituem a "substância comum" da mãe e do bebê.”
12
(p. 16).
Para esse autor são indispensáveis as teorizações a respeito das bases da psique
humana, no sentido de se entender "lo negativo primero". Autores, como P. Aulagnier, D.
Anzieu, Joyce McDougall e J.Laplanche, estruturam seus estudos sobre o negativo presente
nos primeiros marcos identificatórios no início do desenvolvimento do indivíduo.
(Missenard,1991, p. 16).
Ao defender a importância do estudo do negativo, Missenard (1991, p. 16) alerta que o
termo, oriundo da Filosofia, pode assumir dentro da Psicanálise uma categoria "coringa", com
9
Tradução da autora.
10
Este livro aparece na referência bibliográfica, em sua edição brasileira, de 1997a.
11
A obra, a qual Missenard se refere, é Le travail psychanalythique dans le groupes. 2. Les voies de
l'élaboration, Dunod, Paris, data de 1982.
12
Tradução da autora.
37
diversos sentidos que se mesclam e confundem. Para esse autor, o conceito do negativo ou
negatividade exige uma certa organização, pois ele é utilizado para os diferentes níveis do
aparato psíquico.
Guillaumin (1991, p. 40) mostra que é possível encontrar três conotações para o uso
do negativo, entre os psicanalistas, mas que é difícil separá-las, já que se encontram
interligadas em sua essência: a ausência de representação e representabilidade, um destino
nocivo do funcionamento psíquico e, por último e relacionado a essas duas conotações
anteriores, um sentido mais geral de carência, de falta.
Entendemos que o debate sobre o negativo que se iniciou desde Freud (1905, 1925) e
que continua sendo objeto de estudo de autores contemporâneos acaba enriquecendo a
compreensão do funcionamento psíquico do sujeito. Não pretendemos neste trabalho ampliar
a discussão sobre as vicissitudes que os diversos autores trazem a respeito da figura do
negativo, pois esse não é o objetivo deste estudo. Entretanto, não podemos deixar de apontar
que as análises que André Green traz a respeito do negativo acabam contribuindo para o
entendimento do conceito dentro da psicanálise e, por essa razão, decidimos apresentar alguns
aspectos destacados por ele.
Com base numa perspectiva mais voltada aos processos intrapsíquicos do indivíduo,
André Green coloca:
Há muitos anos, eu propus que designássemos, sob a denominação de trabalho do
negativo, o conjunto das operações psíquicas para as quais o recalque é o protótipo,
tendo dado posteriormente variantes distintas: tais como a negação, a condenação
(“desaveu”), o repúdio (“forclusão”). (Green, 1988a, p.24).
Nesse mesmo texto, Green (1988a) prossegue, dizendo que o trabalho do negativo não
se restringe ao Ego e a seus mecanismos de defesa, mas às outras instâncias do aparelho
psíquico, Id e Superego.
38
Green (1995, 2008), ao abordar as vicissitudes do trabalho do negativo, retoma a
discussão a respeito da alucinação negativa. Numa tentativa de definir a expressão, esse autor
coloca que alucinação negativa é a não-percepção de um objeto ou de um fenômeno
psíquico perceptível. Trata-se então de um fenômeno de apagamento daquilo que deveria ser
percebido.
13
(Green, 2008, p.267).
Valendo-se das idéias de Freud sobre os esquecimentos, os “brancos” que aparecem no
decurso do pensamento do indivíduo, Green (2008) vislumbra a origem da produção
alucinatória.
Esta resultaria de uma dupla ação a partir de uma interface:
- sobre sua face externa; uma percepção indesejável, insuportável, ou intolerável agrega
uma alucinação negativa que traduz o desejo de recusá-la ao ponto de negar a existência
dos objetos da percepção.
- sobre sua face interna; uma representação inconsciente de desejo (abolida) procura se
tornar consciente mas está impedida de fazê-lo pela barreira do sistema percepção-
consciência.”(Green, 2008, p.268).
Mais adiante no mesmo texto, Green (2008) conclui que, apesar de Freud não
explicitar claramente, a alucinação negativa “desempenha um papel essencial no conceito de
recalcamento da realidade, que é bastante difícil de conceber.” (p.268).
Concordamos com Guillaumin (1991) quando esse autor se refere à aproximação que é
possível se estabelecer entre os diversos olhares e entendimentos sobre a figura do negativo.
Green (2008) aponta a questão da alucinação negativa sob o prisma do intrapsíquico, mas
pensamos que esse fenômeno de apagamento, essa não percepção de algo que deveria ser
percebido pode ser também entendido a partir de uma leitura intersubjetiva, ou seja, do sujeito
do grupo, inserido em uma cadeia geracional. Entendemos que Green, apesar de conceber a
13
Grifo de André Green.
39
realidade psíquica priorizando o ponto de vista intrapsíquico, fornece elementos importantes
que nos ajudam na compreensão das modalidades do negativo.
No capítulo anterior, discutimos amplamente a noção de transmissão psíquica na
constituição do sujeito. Buscamos fundamentar a metapsicologia intersubjetiva, que entende o
Sujeito como um Sujeito do grupo (Kaës, 1997a), que tem seu destino entrelaçado às
formações e aos processos que perpassam os espaços e os tempos psíquicos de cada indivíduo
de um grupo "e que determinam em parte a organização tópica, dinâmica, econômica e
estrutural de cada sujeito".
14
(Kaës, 1991, p. 130).
Fernandes (2005, p. 119) alerta que "estudar e operar com a figura do negativo
15
no
que se refere à problemática da constituição do sujeito, dos grupos e coletivos implica
diversos impasses." A autora argumenta que um dos impasses "coloca em discussão o
conceito de realidade psíquica" e o outro impasse "se refere à relação entre realidade
psíquica e realidade histórica."
16
Isso se deve à dimensão que o social assume na realidade
psíquica do indivíduo, pois o sujeito psíquico se constrói no grupo, numa relação dialética
inserida em um contexto sócio-histórico.
Então, de acordo com esse ponto de vista, nesta tese o termo Negativo utilizado está
vinculado à teorização que René Kaës faz sobre o mesmo, ou seja, uma vez que está sendo
adotada aqui a concepção da constituição do sujeito psíquico com base em uma leitura
metapsicológica intersubjetiva e transsubjetiva. Não se trata de abandonar o entendimento do
sujeito em sua singularidade, mas resta entender o que sucede com o sujeito inserido em um
encadeamento geracional, no qual é constituído e constituinte, herdeiro e transmissor,
estabelecendo vínculo tanto em uma perspectiva vertical quanto horizontal, isto é, dentro da
cadeia de geração que o sucedeu, bem como entre os pares de uma mesma geração.
Kaës (1991, p. 135) não propõe um inconsciente do conjunto, mas um inconsciente
14
Tradução da autora.
15
Grifo de Maria Inês A. Fernandes.
16
Grifo de Maria Inês A. Fernandes.
40
que tem sua formação, alguns de seus conteúdos e seu destino constituídos dentro do
conjunto.
"Essa nova metapsicologia procura desenvolver uma noção politópica do inconsciente
e exige a retomada do conceito de recalque no que se refere à sua constituição, fundamental
para a vida psíquica." (Fernandes, 2003, p. 53).
Fernandes (2003) ressalta que a importância do recalque se dá na dimensão
intrapsíquica, mas sua manutenção ocorre por meio do grupo. O recalque é garantido pelo
grupo. O conteúdo que foi abolido da consciência e foi recalcado exigiu algum tipo de
renúncia inconsciente “por parte do sujeito na sua singularidade e por parte do conjunto que o
recebe e o inscreve na rede de significados que produziu. (Fernandes, 2003, p. 53). A autora
prossegue dizendo que, em decorrência dessa formulação temos a hipótese formulada por
Kaës: a negatividade está na base da construção do vínculo, do laço social.” (p. 54).
Kaës (2003, p. 22) diz que "sobre essa negatividade se apóia a positividade da vida
psíquica". Para esse autor, o Negativo está na construção das alianças inconscientes que
exercem efeitos na capacidade de pensar do indivíduo.
Esse autor analisa as três modalidades do Negativo que estão presentes no princípio da
psique humana, a negatividade da obrigação, a negatividade relativa e a negatividade radical.
Essas modalidades encontram-se no princípio do trabalho de conexão intrapsíquica, bem
como no trabalho de ligação transpsíquica dos conjuntos, isto é, dos casais, das famílias, dos
grupos e das instituições. (Kaës, 1991, p.137).
A negatividade de obrigação é entendida por Kaës como sendo a necessidade que o
aparelho psíquico tem
de efetuar as operações de rejeição (rejet), negação (négation), recusa (déni),
desmentido/retratação (désaveu), renúncia (renoncement) e apagamento/supressão
(effacement), a fim de preservar um interesse maior da organização psíquica, do próprio
41
sujeito ou dos sujeitos aos quais ele está ligado em um conjunto por um interesse maior.
(Kaës, 2003, p. 22).
Kaës (1997b) salienta que a negatividade de obrigação é necessária para a formação e
manutenção do vínculo. Ela é exigida por cada sujeito do vínculo, que em troca a sustenta e a
produz. Nesse mesmo trabalho, o autor diz que
o apagamento dos limites que impõem as identificações, o sacrifício de certas partes do
Si-mesmo e do outro naquilo que deve ser objeto da renúncia pulsional, a repressão de
uma representação ou a supressão de certos afetos são necessários para que a vida em
comum seja possível, para que o vínculo se organize e contenha seus elementos
constituintes.
17
(1997b, p.392).
A negatividade relativa, para esse autor, é fruto daquilo que ficou em sofrimento na
constituição de continentes e conteúdos psíquicos. Ela tem um caráter positivo à medida que
se apresenta como uma possibilidade “organizadora de um projeto ou de uma origem: alguma
coisa que foi e não é mais” ou então de algo que não foi, mas poderia ter sido. Ela apresenta
um sentido de algo que não foi suficiente, mas que poderia ter sido de outro modo. “A
negatividade relativa sustenta o espaço potencial da realidade psíquica.” (Kaës, 2003, p. 25).
Nesse sentido, essa modalidade do negativo está no campo do possível.
A negatividade radical aparece dentro do espaço psíquico como aquilo que “não é”.
Ela é representada pela falta, pela ausência, pelo vazio, pelo desconhecido, enfim,
representada nas figuras do branco. (Kaës, 2003, p. 31). Nesse sentido, entendemos que nessa
categoria de negatividade não há simbolização, nem possibilidade de elaboração.
Kaës (1996) coloca que uma instituição se funda sobre as relações de obrigação, que
são a relação de obrigação propriamente dita, o contrato narcísico e o pacto denegativo. A
obrigação maior é ceder uma parte de si mesmo em favor a um ideal comum. Dentro desse
17
Tradução da autora.
42
processo, o indivíduo acaba recebendo proteção do grupo. Essa relação de obrigação foi
descrita por Freud (1929-1930/1980) em O Mal-Estar na Civilização.
A segunda relação de obrigação é a noção de contrato narcísico que foi introduzida por
Castoriadis-Aulagnier (1975). O contrato narcísico carrega o sentido de que cada sujeito vem
ao mundo já inserido numa sucessão de gerações. A missão que cada um tem é assegurar a
continuidade da geração e do conjunto social. Cada sujeito recebe um lugar determinado no
conjunto ao qual pertence. Com a finalidade de assegurar essa continuidade, o grupo, por sua
vez, fará um investimento narcísico nesse novo sujeito. "Esse contrato designa a cada um
certo lugar que lhe é oferecido pelo grupo e que lhe é significado pelo conjunto das vozes que,
antes de cada sujeito, manteve um certo discurso conforme ao mito fundador do grupo."
(Kaës, 1997a, p. 263). Nesse discurso estão inseridos os ideais e os valores e cada indivíduo
deve retomá-los por sua conta. Por meio desse discurso, o sujeito fica ligado ao Ancestral
fundador.
Kaës (1997) propõe distinguir o contrato narcísico em dois tipos, segundo suas formas.
O primeiro tipo conclui-se no grupo primário, mediante os dos investimentos do narcisismo
primário. O segundo contrato narcísico firma-se nos grupos secundários, nas relações de
complementaridade e de oposição. Esse segundo contrato retoma e recoloca em questão as
exigências do grupo. Qualquer mudança do sujeito em relação ao grupo coloca "novamente
em questão, em certos casos em trabalho, os percalços do contrato; eles são motivados por
uma dúvida e fecham-se sobre uma certeza." (p. 264).
A terceira relação de obrigação é o pacto denegativo, conceito proposto por Kaës. O
pacto denegativo sustenta a formação e os processos dos vínculos intersubjetivos. (Kaës,
1991). Esse pacto inconsciente que se inscreve no inconsciente é feito com várias finalidades:
uma delas teria o objetivo de que o laço se institua e garanta a complementaridade de
interesse. Outra finalidade seria de tornar assegurada a permanência dos investimentos e “dos
43
benefícios ligados à subsistência da função dos Ideais, do contrato ou do pacto narcísico.”
(Kaës, 1997, p.265). Há um mútuo interesse, tanto do sujeito singular como da cadeia de que
ele é membro, de garantir que aquilo que geraria sofrimento seja recalcado. "Nos casais, nas
famílias, nos grupos e nas instituições, as alianças, contratos e pactos inconscientes sustentam,
principalmente, o destino do recalcamento e da repetição.” (Kaës, 2000, p. 46).
O pacto denegativo apresenta duas polaridades: uma é organizadora do laço e do
conjunto intersubjetivo e outra é defensiva. (Kaës, 1991). O grupo organiza-se positivamente
através dos investimentos mútuos, das identificações comuns, dos ideais e crenças que a
comunidade possui, sobre o contrato narcísico. Em contrapartida, o grupo organiza-se
negativamente, à medida que o estar junto exige renúncias e sacrifícios. A organização dá-se
sobre recalcamentos e restos deixados de lado.
Esses três tipos de relação de obrigação acima descritos estão presentes no vínculo
conjugal. Há uma renúncia pessoal, em função do próprio prazer para que o vínculo conjugal
possa se formar e se manter. Dependendo da modalidade do pacto que o casal institui é que
será definido o tipo de laço conjugal que se formará.
Granjon (1990) aponta que o pacto de aliança é para o casal e para a família um pacto
sobre os negativos da transmissão psíquica. Os conteúdos que são deixados à parte são
necessários para o sujeito de todo vínculo, mas também são alienantes.
A história familiar herdada das gerações anteriores faz-se presente na formação do
psiquismo do sujeito. Dependendo do modo como ele a recebe, pode-se tornar um prisioneiro
dessa herança, pela impossibilidade de elaborá-la, ou pode se tornar um herdeiro dela, no
sentido de conseguir se apropriar dos conteúdos recebidos. Tudo dependerá da possibilidade
que o psiquismo desse indivíduo tem de elaborar as heranças psíquicas adquiridas.
Quando pensamos o que induz e define uma determinada escolha de um parceiro, é
preciso ter em mente que cada cônjuge é portador de uma história familiar, de uma herança
44
psíquica singular, que foi vivida por ele de uma determinada maneira. Ao encontrar um
parceiro, haverá o encontro de duas heranças psíquicas e dois processos de construção de
subjetividade.
Para Kaës (1991), o vínculo funda-se em algo que foi negado. O casamento, enquanto
um vínculo instituído, permanece com base no que é negado pelos cônjuges. O recalque é um
processo intrapsíquico, que se dá individualmente, mas obtém seu apoio e sua manutenção no
grupo. Então, pode-se dizer que nunca a escolha de um cônjuge é casual (Paiva, 2003), há
sempre mecanismos inconscientes que envolvem a mesma.
Um casal, durante os anos de casamento, vai estabelecendo um tipo de modalidade de
ligação ou outro, conforme a história de vida que os cônjuges forem construindo e as heranças
psíquicas que receberam. Quando não é possível de ser pensado e transformado um conteúdo,
surge uma cripta com o objetivo de evitar uma dor psíquica. Os sintomas familiares surgem a
partir desses conteúdos que não foram possíveis de serem elaborados em uma ou em várias
gerações anteriores.
Entretanto, quando o casal vive diferentes crises, essas podem ser erupções dos
conteúdos negados, que foram deixados de lado via pacto denegativo. O casal poderá elaborar
esses aspectos recalcados, surgindo, então, um novo pacto denegativo.
Como já foi dito anteriormente, Kaës (1997a) diz que no início do funcionamento
grupal, o grupo se depara com a angústia de não ser, há uma "urgência identificatória"
(Missenard, 1991). Um casal recém-casado vive a angústia de não possuir uma identidade
própria. Alguns casais chegam a dizer que só se sentiram casados quando nasceram os filhos
(Paiva, 2003). A conjugalidade e a parentalidade confundem-se, à medida que a chegada dos
filhos os define enquanto pais, uma vez que falta de uma identidade conjugal. A
parentalidade impõe-se, muitas vezes, devido ao cuidado com os filhos, deixando a
conjugalidade à deriva, já que, muitas vezes, não estava bem constituída quando os filhos
45
chegaram. Nessa urgência identificatória, alguns casais passam a nomear o cônjuge por
mãe/pai, deixando de usar o nome do parceiro.
Kernberg (1995, p. 57) diz que o fato de um casal estar casado, não quer dizer que já
se tornou um casal. Alguns casais se tornam casais muito tempo depois de terem deixado de
chamar a atenção de seu grupo social.
Pincus e Dare (1981) afirmam que as motivações que levam ao casamento, a
manutenção e a suas qualidades particulares são, em grande parte, inconscientes. Nos
relacionamentos duradouros, de um modo geral, existe uma reciprocidade e
complementaridade das necessidades, anseios e medos que fazem parte da vida a dois.
(p.39).
Os autores apresentam a idéia de que um casal pode formar um par complementar e
isso pode assumir um aspecto terapêutico profundo, “se cada parceiro constatar no outro
aqueles aspectos de si mesmo que não conseguiu desenvolver.” (p.37). A complementaridade
pode assumir na relação conjugal um caráter positivo à medida que há uma possibilidade de
crescimento de cada cônjuge ou ainda quando ela aparece em um momento em que um
parceiro precisa da colaboração do outro.
Entretanto, essa mesma complementaridade pode assumir um caráter negativo quando
um parceiro projeta no outro aspectos que ele rejeite em si mesmo. Ao identificar tais
aspectos projetados no parceiro, passa a atacar o parceiro, quando percebe a manifestação dos
mesmos. O vínculo passa a ser patológico à medida que cada cônjuge permanece em lugares
fixos e rígidos dentro da relação conjugal.
Levisky (2008), ao relatar um atendimento clínico de um casal, salienta que
mecanismos de identificação projetiva produzem na relação conjugal “uma luta entre objetos
internos e externos do casal”. (p.7). Só por meio do processo terapêutico é que cada cônjuge
pode ter uma percepção da própria identidade, o que possibilita que o casal desenvolva uma
46
complementaridade construtiva dentro do vínculo conjugal.
Gomes (2007, p. 106) salienta que os vínculos que os casais estabelecem podem ser
os mais primitivos ou patológicos, em que a unidade (fusão) do casal é o ideal a ser
alcançado, até os vínculos mais maduros que fogem desse tipo de ligação
complementar, tendendo à unicidade e promovendo o surgimento de outra lógica,
própria da contemporaneidade que é a conjugalidade permeada pela discriminação das
individualidades e ênfase nas diferenças de cada membro do par.
Viver a conjugalidade permeada pela discriminação das individualidades acaba sendo
uma incumbência difícil de ser alcançada, tal fato tem sido evidenciado por meio das
pesquisas realizadas com casais (Paiva, 2003; Rios, 2007; Zanetti, 2008). Granjon (1990)
aponta que o sujeito singular tem a missão de atualizar aquilo que lhe foi transmitido,
situando-se o ego como um intermediário, no sentido de assegurar as articulações, as
mediações, as diferenciações e as passagens dos elementos transformados.
Um homem e uma mulher ao se unirem no matrimônio têm o mandato de atualizar e
“conviver” com as bagagens psíquicas de cada cônjuge. Pode-se pensar, sob a ótica da teoria
de Kaës (2003), que o laço conjugal está apoiado naquilo que o casal não pode se deparar,
pelo que é negado, como já foi dito anteriormente.
Granjon (1990) diz que a aliança fundadora do casal se refere a uma afiliação, ou seja,
a um vínculo que se organiza nas bases de uma transmissão psíquica transgeracional. Para
essa autora, na construção do vínculo conjugal também estão em jogo os elementos psíquicos
da ordem filiativa, isto é, elementos da ordem da herança intergeracional.No momento da
constituição do casal, a escolha amorosa se estabelece sobre os vínculos objetais e os vínculos
narcísicos (Eiguer, 1986)
18
e também sobre uma ruptura intergeracional.” (Granjon, 1990, p.
18
A autora refere-se à obra de A. Eiguer, Un divan pour la famille, Paris, Le Centurion. Na bibliografia, esse
livro é citado: Eiguer, A. (1985)
47
66).
19
Eiguer (2006, p. 87) ressalta que todos os estudos sobre a incidência do
transgeracional no casal devem levar em consideração as dinâmicas inconscientes que ligam
os dois parceiros e que os precedem, que podem dar tanto uma continência aos elementos
oriundos das heranças transgeracionais, bem como transformar essas heranças em eventuais
transtornos para a vida conjugal.
O autor acima mostra ainda que os momentos iniciais do casal são marcantes para a
vida conjugal. Duas linhas concordantes e complementares entram em cena: uma de natureza
essencialmente narcísica, ligada ao engajamento amoroso, e a outra, de natureza
essencialmente objetal, ligada à escolha sexual com base na representação inconsciente do pai
do sexo oposto. A escolha sexual contribui também para a exaltação passional, uma vez que
reencontrar traços do objeto edipiano reatualiza o fantasma de sedução infantil. Haverá, então,
como que uma articulação entre os "primeiros passos" do casal, a organização do casal e os
conflitos anteriores; tudo isso irá delineando o tipo de vínculo conjugal. (Eiguer, 2006, p. 88).
Podemos dizer que o Complexo de Édipo, assim como sua resolução, acabam sendo
também um fator de interferência na dinâmica conjugal. Blini de Lima (2002) destaca que a
não resolução edípica pode trazer conseqüências para a vida conjugal e familiar, podendo se
manifestar nos conflitos conjugais e na confusão das identidades. Britton (1995) evidencia
que as vicissitudes de um casamento se iniciam na infância, pois a criança tem a referência
dos pais tanto como indivíduos separados quanto como um casal. Esse autor ainda destaca que
a situação edípica está presente no cerne de um casamento.
O transgeracional, segundo Eiguer (2006), tem um papel importante na vida no casal,
mas deve ser analisado junto com outros fatores. As heranças não são um elemento essencial
para o casal, mas estão sempre presentes. O vínculo conjugal tende a se inspirar no modelo de
19
Tradução da autora.
48
casal dos pais, mas também dos avós ou dos ancestrais dos parceiros, o que se reatualiza em
brigas concretas ou em projetos. A manutenção de um vínculo conjugal pode satisfazer uma
ou mais identificações.
Os traumas vividos pelos ancestrais podem suscitar sentimentos de vazio. Alguns
casais formam-se na esperança, por parte de um dos parceiros, que o cônjuge possa ajudá-lo a
pensar o impensável, a elaborar o trauma vivido em termos do transgeracional. Entretanto,
junto ao desejo de que o trauma possa ser elaborado, há um temor na reprodução da situação
dolorosa. Frente a esse dilema, a esperança se desfaz, uma vez que o parceiro não se sente
autorizado de fato a introduzir o impensável na relação conjugal. (Eiguer, 2006).
Conforme propõe Eiguer (2006), podemos pensar que cada vínculo conjugal é algo
novo, cada casal tem em suas mãos o seu destino, mas a ruptura com os mandatos geracionais
não implica o desraizamento dos mesmos.
Com base no entendimento deste referencial teórico, foi possível estruturar as seguintes
hipóteses para serem correlacionadas com o material coletado dos casais pesquisados:
- O transgeracional, sendo um fator determinante do vínculo conjugal, desse modo, será
possível encontrar casais que tendem a ter dificuldade em estabelecer uma identidade
própria de casal.
- O tipo de vínculo conjugal construído estará atrelado ao tipo de herança recebida,
intergeracional e/ou transgeracional, por cada um dos cônjuges.
- A não elaboração das heranças psíquicas recebidas tenderá a gerar sintomas físicos e
psíquicos no grupo familiar.
- Será possível associar a necessidade de manutenção do casamento a fatores
relacionados à história e/ou à herança das famílias de origem, pois a dinâmica do casal
estará atrelada ao mecanismo de transmissão psíquica.
49
3 METODOLOGIA
Método
Para alcançar o objetivo desta pesquisa, foi usado um procedimento metodológico
similar ao utilizado em trabalho anterior (Paiva, 2003).
Utilizou-se o método clínico-qualitativo, proposto por Turato (2003). Esse modelo de
pesquisa tem, de um lado,
as concepções epistemológicas dos métodos qualitativos (compreensivo-interpretativos)
de pesquisa desenvolvidos a partir das Ciências do Homem e, de outro lado, os
conhecimentos e as atitudes clínico-psicológicas desenvolvidos tanto no enfoque
psicanalítico das relações interpessoais, como historicamente no campo da prática da
medicina clínica. (Turato, 2003, p.225-226).
Esse método apresenta como um dos focos centrais a busca dos sentidos e das
significações dos fenômenos, procurando capturá-los por meio da escuta e da observação dos
sujeitos da pesquisa, bem como a interpretação dos mesmos. Então, dentro dessa metodologia,
o pesquisador qualitativista trabalha com fenômenos, em contraposição à enunciação e
comprovação de fatos, metodologia empregada pelos positivistas.
A ida do pesquisador ao campo natural do sujeito para a coleta de dados é outro
aspecto importante a ser mencionado. Desse modo, tanto o consultório quanto a residência são
considerados como campo de pesquisa. O autor salienta que, por se tratar de um método
qualitativo aplicado em settings de saúde, é essencial que o pesquisador acolha o sujeito
assumindo uma atitude clínica. A angústia e a ansiedade por parte do entrevistado devem ser
valorizadas e levadas em consideração como um elemento de interesse do pesquisador.
Também a angústia e a ansiedade do pesquisador, que o movem dentro do processo da
pesquisa, não podem ser descartadas, devendo ser consideradas como mobilizadoras do
processo em si.
50
Outro aspecto relevante é a valorização de elementos psicanalíticos como ferramentas
básicas na elaboração da pesquisa. Turato (2003) destaca a importância de se utilizarem
referenciais teóricos para a análise e conseqüente interpretação dos fenômenos, levando em
consideração a ação do inconsciente. É necessária também a construção de instrumentos
auxiliares na coleta de dados, para que as sutilezas possam ser apreendidas, tanto os aspectos
transferenciais como contratransferenciais.
O pesquisador, além de ser um instrumento principal no processo de coleta de dados e
no registro dos mesmos, é também um pesquisador bricoleur
20
. Para esse autor, um
pesquisador bricoleur nada mais é do que um investigador que, ao se deparar com fragmentos
encontrados no campo, produz sua teoria, compondo um todo com base nas partes,
interligando os pedaços a seu objeto de estudo, criando um novo objeto.
Esse mesmo autor diferencia a metodologia clínico-qualitativa da psicanalítica
apontando que,
embora ambas se ocupem de estudar os significados para os sujeitos, os pressupostos de
pesquisa elaborados pelo pesquisador clínico-qualitativista levam-no a campo para
procurar confirmação ou revisão, os pressupostos do psicanalista fazem-no apenas
aguardar num “campo" onde o sujeito vier procurá-lo e num momento de “coleta” em
que o timing do psicanalisando fizer trazer um material para, igualmente, confirmar ou
rever as hipóteses iniciais do analista. (Turato, 2003, p. 273).
Um último aspecto relevante a ser salientado a respeito desse método é que a
apresentação dos resultados e as interpretações são processos concomitantes. As observações
emergentes do setting da entrevista devem completar a análise e interpretação dos dados.
Foram os seguintes os critérios para a escolha dos sujeitos da pesquisa:
- casais casados entre vinte e trinta anos,
20
De acordo com Turato (2003, p. 259), esse termo foi ressignificado por Lévi-Strauss como “aquele que produz
um objeto novo a partir de pedaços e fragmentos de outros objetos.”
51
- casais com filhos que ainda morassem com os pais,
- casais com segundo grau completo,
- casais que não estivessem em nenhum processo terapêutico no período da coleta de
dados.
Como já foi dito anteriormente, optamos por casais casados há muitos anos por
estarem os vínculos conjugais enraizados. É sabido também que casais com filhos pequenos
enfrentam muitas vezes dificuldades no âmbito da conjugalidade. Devido ao tempo maior de
matrimônio, levantamos a hipótese de que seria possível encontrar casais com filhos mais
velhos que teriam a dinâmica do grupo familiar já estabelecida.
Outro critério utilizado para a definição da amostragem é que os filhos deveriam ainda
estar morando com os pais, pois a saída dos filhos coloca o casal frente a novas vivências.
Voltar a conviver apenas o par conjugal pode proporcionar uma nova reorganização da
dinâmica conjugal estabelecida.
Por meio da exigência do segundo grau completo, tentamos isolar a questão da
dificuldade em arrumar um emprego, bem como a dependência financeira associada à
manutenção do vínculo conjugal.
Por fim, casais que não estivessem em processo terapêutico forneceriam o dado
“bruto” a respeito do vínculo conjugal.
Procedimento da coleta de dados
A pesquisa de campo foi realizada com cinco casais, cujo casamento teve duração
entre vinte e trinta anos. Foi estipulado tal período pelo fato de esses casais já estarem se
relacionando há bastante tempo, o que permite analisar o tipo de vínculo constituído e que se
mantém, focando a interferência da transmissão psíquica no estabelecimento do mesmo.
52
Simon (1993, p. 170) aponta para a riqueza que pode existir em pesquisas que utilizam
técnicas projetivas e a teoria psicanalítica, desde que "efetuada com permanente espírito
crítico". Em pesquisa anteriormente realizada (Paiva, 2003) foi possível verificar a riqueza e a
complementaridade que existe em se utilizar dois procedimentos.
Então, optamos por realizar a coleta de dados por meio de dois processos: entrevistas
semi-abertas com o casal em conjunto e a aplicação de algumas pranchas do Teste de
Apercepção Temática (TAT), de Henry A. Murray
21
, a cada cônjuge, individualmente.
A entrevista com cada casal visou possibilitar a análise do vínculo matrimonial entre
os dois e compreender a maneira como eles o percebiam, enfocando principalmente a questão
da transmissão psíquica. Foi feita uma adaptação do guia de entrevista
22
anteriormente
utilizado (Paiva, 2003), que foi desenvolvido com base no Guia de Entrevista Conjugal e
Familiar elaborado por Cardoso de Mello (1990) e Térzis (1987). Esse guia contém os
principais aspectos que foram investigados com cada casal, o relato da história de vida das
famílias de origem, sua própria história e a trajetória comum do casal.
Após a entrevista psicológica aplicamos o Teste de Apercepção Temática, seguindo a
metodologia proposta por seu autor, isto é, o marido separado de sua esposa. A aplicação das
pranchas com todos os casais foi realizada primeiramente com a esposa e depois com o
marido. Para evitar que um cônjuge comentasse com o outro sobre o teste, fizemos a
aplicação com um cônjuge e, logo em seguida, com o outro, sem que um tivesse podido
estabelecer qualquer tipo de contato com o outro. Gravamos a aplicação das pranchas do TAT
com o intuito de registrar fidedignamente a associação e, posteriormente, digitamos o
material.
21
Esse teste, no Brasil, é editado pela Casa do Psicólogo. Nesta pesquisa foi utilizada a 2
a
edição de 1995.
22
Vide o guia de entrevista no Apêndice A.
53
Em pesquisa anterior (Paiva, 2003), pôde-se perceber que dados que não puderam ser
obtidos durante a entrevista em que estavam presentes o marido e a esposa, puderam aparecer
durante a aplicação do TAT.
O TAT, nesta tese, foi utilizado enquanto um objeto mediador que favorece a
associação livre. Segundo Kaës (2005, p.48), “O objeto mediador tem como função essencial
ser um meio de restauração ou de sustentação das formações psíquicas intermediárias, e
notadamente, do trabalho do pré-consciente.“ As associações referem-se às relações entre o
objeto mediador e os objetos internos do sujeito (Kaës, 2005, p.48). Desse modo, utilizou-se o
TAT como uma via de acesso às formações psíquicas intermediárias, que ligam o afeto à
representação de palavra. Com base na norma temática de cada prancha, foi evocada a
associação de cada cônjuge e foi por meio da fala que houve “uma representação simbólica
secundária das experiências emocionais e das cargas pulsionais investidas no objeto de
mediação” (Kaës, 2005, p.50), que foi utilizado.
A escolha de cada prancha ocorreu por meio de um estudo minucioso, levando em
conta os objetivos desta pesquisa e a análise do material coletado anteriormente (Paiva, 2003).
Foram selecionadas as pranchas 2, 4, 7RH, 7MF, e 19 por evocarem situações de
relacionamento conjugal e familiar, que é o objetivo de estudo desta tese. Apesar de as
pranchas 7RH e 7MF não serem para ambos os sexos, optamos por aplicá-las tanto para os
homens como para as mulheres, pois as duas figuras poderiam fornecer dados sobre
maternidade/feminilidade e paternidade/masculinidade, que eram elementos essenciais para
esta pesquisa.
A prancha 2, por evocar conteúdos referentes às relações familiares, pode fornecer
também conteúdos a respeito das famílias de origem, o que pôde ser constatado nos
protocolos dos casais pesquisados (Paiva, 2003). A prancha 4 também foi aplicada nesse
mesmo trabalho anterior e foi possível verificar o quanto ela pode fornecer dados a respeito da
54
relação conjugal (Paiva & Gomes, 2004, 2005). Escolhemos a prancha 19 por considerar que
ela poderia fornecer dados sobre os vínculos familiares, uma vez que o estímulo de uma
casa/cabana poderia evocar conteúdos referentes ao ambiente familiar e a relação que a
família estabelece com o mundo externo.
Foi aplicada também a prancha 16, que, por se tratar de uma prancha em branco,
permite a projeção de qualquer conteúdo. Verificou-se, em pesquisa anterior (Paiva, 2003),
que, pelo fato de os casais saberem pela entrevistadora que se tratava de um estudo sobre
casamento, associaram a essa prancha dados sobre a relação conjugal.
Durante o exame de qualificação de mestrado da autora deste estudo, Herzberg (2003,
9 de junho) já havia apontado que o fato de os sujeitos de uma pesquisa saberem qual é o tema
que está sendo abordado poderia facilitar o aparecimento de conteúdos a esse respeito na
prancha 16. A mesma autora afirmou, na ocasião, que não há ainda estudos suficientes que
comprovem tal hipótese, mas em algumas pesquisas isso tem se confirmado. Optamos por
aplicar a prancha 16 ao final do protocolo, por ser uma prancha que pode causar um impacto
(por ser em branco) e/ou mobilizar outros conteúdos inconscientes que não haviam sido
suscitados pelas demais pranchas. As pranchas foram aplicadas na ordem já mencionada, ou
seja, 2, 4, 7RH, 7MF, 19 e16, tanto para as mulheres entrevistadas como para os homens.
Em supervisão realizada com o Professor Dr. Richard Dana (2005, 27 de outubro)
23
foi perguntado sobre o uso de pranchas femininas e masculinas para ambos os sexos, bem
como o uso das demais pranchas escolhidas. Dana apontou que a escolha das pranchas estava
adequada tendo em vista os objetivos desta pesquisa.
Thomas (1996) utiliza, em sua pesquisa, o TAT como um instrumento para definir
quatro perfis afetivos de relacionamento conjugal. Tal trabalho demonstra a eficácia do TAT
no sentido de fornecer dados de conteúdos inconscientes a respeito da dinâmica conjugal.
23
Supervisão dada à autora deste trabalho no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
55
Mesmo já tendo sido utilizado o TAT com os casais (Paiva, 2003), foi feito um teste
piloto devido à introdução e alteração de pranchas.
Em relação aos entrevistados, é importante salientar que este estudo visou a atingir a
população de um modo geral, como foi feito em trabalho anterior e não somente os que
buscam algum tipo de ajuda psicológica e que percebem que estão tendo dificuldades em seu
casamento. O acesso a esses casais foi feito por meio das escolas de ensino médio com que
temos contato. As entrevistas e a aplicação do teste foram realizadas na casa dos casais
contatados. Concordamos com Simon (1989) que a ida do psicólogo ao domicílio familiar
pode, por si só, fornecer dados sobre a dinâmica conjugal, possibilitando uma percepção
direta do ambiente familiar. Foi solicitado ao casal que escolhesse um lugar isolado da casa,
que proporcionasse a privacidade tanto ao entrevistado como ao entrevistador, de modo que
se pudesse trabalhar sem interrupção dos outros membros da casa. Solicitamos que os casais
entrevistados assinassem um termo de consentimento referente à participação na pesquisa.
Houve certa dificuldade em contatar casais que estivessem dispostos a participar desta
pesquisa. Várias foram as justificativas fornecidas pelos casais para não participar; um
exemplo é que não seria possível dar a entrevista já que o marido e a esposa nunca estavam
juntos e talvez isso é que os mantivessem casados. Outro casal argumentou que daria a
entrevista desde que não falassem nada sobre as famílias de origem. Outras vezes, quando
marido e mulher estavam de acordo em fornecer a entrevista, algum dos critérios exigidos
pela pesquisa não correspondiam. Foram inúmeros os contatos feitos para que fosse obtida a
amostra planejada. Conseguimos, então, cinco casais que preenchiam os critérios da pesquisa
e se propuseram a participar sem ressalvas. Com o primeiro casal foi realizado o estudo
piloto. Com os outros quatro casais foi feita a entrevista e a aplicação do TAT. A seguir estão
as informações a respeito da coleta de dados feita com cada casal.
56
Tabela 1
Informações da coleta de dados com cada casal
casal
número de
encontros
horas de gravação
da entrevista
I 4 6,5
II 4 5
III 4 7
IV 3 5,5
V 3 4
A diferença de horas na entrevista com cada casal deve-se à forma como cada um
respondeu às perguntas.
Procedimentos na seleção dos casais e na análise dos resultados
Em relação à quantidade de casais a serem analisados nesta pesquisa, optamos, então,
por colocar dois casais, devido à profundidade da análise que iríamos realizar. Consideramos
que, com essa quantidade os objetivos seriam atingidos, não comprometendo desse modo o
resultado pretendido.
Então, retomamos o material das entrevistas, bem como as associações das pranchas
do TAT. Utilizamos, como critério na escolha dos casais a serem analisados, a qualidade das
associações do material do TAT de cada cônjuge. Percebemos que havia uma discrepância em
termos da qualidade do material projetivo coletado. Alguns participantes da pesquisa
mostraram-se muito resistentes frente ao TAT, demonstrando dificuldade em elaborar uma
associação, descrevendo o estímulo da prancha. A qualidade da entrevista também foi um
critério de seleção. Os casais escolhidos mostraram-se mais disponíveis para relatar as
histórias de vida de suas famílias, colocando-se bem menos resistentes do que os demais
casais. Seguindo esses critérios mencionados, foram selecionados os casais I e III.
Como as entrevistas foram gravadas, primeiramente foram transcritas literalmente, em
forma de diálogo como tinham ocorrido. Depois realizamos um levantamento de informações
57
que permitiu caracterizar, num primeiro momento, o casal entrevistado. Em seguida, foram
criados grupos temáticos, que são apresentados, neste trabalho, na forma de itens que abarcam
a história de vida do casal e de seus familiares. Por fim, fizemos um modelo de familiograma,
baseado na proposta de Térzis (1987), para ilustrar a configuração familiar de cada casal.
Posteriormente, foram analisadas separadamente as pranchas de cada cônjuge para
serem comparadas entre si. Foi feita uma comparação entre as percepções que cada cônjuge
teve a partir do estímulo da prancha, para que se pudesse analisar com maior profundidade a
constituição e manutenção do vínculo conjugal. Optamos por utilizar o raciocínio clínico na
interpretação do TAT, conforme Dana (1985) propõe. Esse autor aponta que a interpretação
do TAT é intuitiva e criativa, mas é com base no uso dos dados normativos implícitos é que se
chega a um consenso na interpretação.
Num terceiro momento, foram integrados os dados do casal, obtidos tanto na
entrevista como na aplicação do teste. Todo o material coletado do casal foi analisado, dentro
de sua especificidade, buscando o entendimento do tipo de vínculo conjugal que se mantém,
relacionando com o que foi transmitido, consciente e inconscientemente, pelas gerações, de
acordo com o referencial teórico apresentado.
Então, foi feito esse mesmo procedimento com o outro casal desta pesquisa e foram
comparados os dados entre si, buscando os pontos comuns entre eles. Assim foi possível
verificar a interferência da transmissão psíquica das gerações anteriores no estabelecimento
do tipo de vínculo encontrado em cada casal e o peso que exerce na dinâmica conjugal.
Caracterização das pranchas e dos seus estímulos de cada uma
Em seguida, é apresentado um quadro com a descrição de cada prancha utilizada nesta
pesquisa. Em seguida, são apresentados os principais estímulos evocados em cada prancha
que justificam a escolha e foram norteadores para a interpretação das mesmas.
58
Quadro 1
Descrição das pranchas utilizadas
Prancha 2
É uma cena no campo, em que aparece num primeiro plano uma jovem
com um livro em sua mão. Em outro plano aparece um homem, sem
camisa, arando o solo com um cavalo; encostada em uma árvore aparece
uma mulher grávida olhando longe. Ao fundo, aparecem algumas casas e
outros cavalos.
Prancha 4
Uma mulher colocando um braço no ombro de um homem que está virando
o rosto e o corpo na direção oposta dessa mulher. Ao fundo, aparece um
quadro de uma mulher sentada, usando um vestido de alça.
Prancha 7RH
Aparecem dois homens. Um deles, grisalho, virado na direção do outro
homem, que tem um semblante mais jovem. O mais jovem está
aparentemente amuado, olhando para o vazio. Shentoub (1990, p. 53)
salienta que, apesar da diferença geracional entre os personagens, não há
nessa prancha uma alusão a que um personagem seja mais imaturo em
relação ao outro.
Prancha 7MF
Uma mulher mais velha com um livro na mão sentada num sofá ao lado de
uma jovem com uma expressão sonhadora. A jovem tem uma boneca em
seus braços e olha em direção oposta à da mulher mais velha. Shentoub
(1990, p. 53) aponta que a diferença de gerações é marcada e acentuada
pela boneca. A posição da jovem caracteriza a imaturidade.
Prancha 19
É uma prancha com uma gravura indefinida..Uma cabana coberta de neve.
Ao fundo aparecem nuvens claras e escuras pairando acima da cabana.
Prancha 16 Esta prancha é toda branca.
Tabela adaptada de Paiva (2003, p. 47).
Escolhemos esses autores, abaixo relacionados, para se fazer uma breve caracterização
dos estímulos de cada prancha utilizada, pela proximidade dos mesmos com o referencial
teórico desta pesquisa e pela clareza com que conseguiram descrever as normas temáticas de
cada prancha. Está incluído o pensamento de Dana (2005, 27 de outubro) por ser um
pesquisador que considera apropriado o uso do TAT com casais.
59
Prancha 2
24
:
A cena na fazenda, segundo Dana (1985, p. 93), evoca normalmente uma história
sobre as e a qualidade de vida. Segundo Shentoub (1990, p. 46), a relação triangular figurada
nessa prancha é suscetível de reativar o conflito edipiano. Silva (1989, p. 12) comenta que
essa prancha pode evocar associações referentes aos papéis femininos; conflitos entre a
maternidade e a realização profissional. Outras associações possíveis, segundo essa autora,
são referente ao conflito razão versus emoção.
Prancha 4
Como já salientamos anteriormente (Paiva, 2003, p. 48), nessa prancha aparecem,
normalmente, os conflitos pulsionais que permeiam uma relação heterossexual, segundo
Shentoub (1990, p. 49). Nesta prancha o dualismo pulsional está fortemente representado,
mais do que nas demais pranchas.
Dana (1985, p. 95) aponta que o estímulo da prancha evoca temas sobre o equilíbrio
de poder nas relações masculino - feminino. Para os homens, a pressão do parceiro é um tema
importante, enquanto, para a mulher, proporciona temas de ajuda ao parceiro.
Silva (1989) adverte que as associações envolvem temas referentes aos conflitos
heterossexuais, ligados ao abandono, à traição e aos ciúmes. Também aparecem temas
referentes “ao controle versus o impulso (a mulher representando a razão, o controle; o
homem representando a ação e a impulsividade).” (p.13).
Na adaptação do manual do TAT (Murray, 2005), é destacado que essa prancha pode
suscitar um conflito vinculado à triangulação amorosa (homem, mulher e amante). Temos
observado nas supervisões dadas e também em pesquisa anterior (Paiva, 2003) que a figura ao
fundo traz nessa prancha a possibilidade de suscitar tais fantasias. A omissão ou a apercepção
distorcida dessa figura ao fundo, quando a associação diz respeito ao relacionamento
heterossexual, pode trazer elementos a respeito das fantasias relacionadas ao conflito
24
Estímulos da prancha 2 transcrito de Paiva (2003, p. 48).
60
conjugal. Desse modo, o inquérito a respeito do que o sujeito associa acerca desse estímulo
pode ser revelador no sentido de identificar as fantasias inconscientes presentes.
Prancha 7RH
Silva (1989, p. 13) diz que essa prancha evoca atitude frente à figura paterna, que pode
ser vista como sendo autoritária ou como origem de apoio e proteção.
Dana (1985, p. 96) aponta que esta prancha suscita temas referentes ao pai ou a um
homem mais velho e à qualidade do relacionamento entre as figuras apresentadas. Esse autor
diz que é possível aparecer atitude referente à autoridade.
Segundo Shentoub (1990, p. 53), o conflito deve girar em torno da aproximação desses
dois personagens em termos de uma possível afeição e de uma oposição; ambivalência de
sentimentos presentes na relação com o pai. A energia pulsional é mobilizada tanto para
conteúdos agressivos como amorosos, mas há predominância, em geral, de cenários
agressivos e de rivalidade. Entretanto, segundo essa autora, quando uma aproximação mais
terna é evocada, não há somente uma erotização da relação, mas esta pode testemunhar o
apoio possível em um "pai bom", o que atesta a resolução do complexo de Édipo.
Prancha 7MF
Shentoub (1990, p. 53) destaca que a diferença de geração é marcada e acentuada pela
presença da boneca, podendo, assim, reativar a problemática da relação mãe/bebê.
Silva (1983, citado por Silva, 1989, p. 13)
25
diz que essa prancha suscita temas a
respeito da relação materna “que pode ser vista como modelo, apoio ou obstáculo à satisfação
das próprias necessidades. Ainda é possível investigar a problemática referente à maternidade,
principalmente quando há uma hesitação ou distorção em relação à boneca.”
Prancha 19
Shentoub (1990, p. 62) salienta que essa prancha é uma prova da capacidade de
25
Silva (1983). Características de época dos estímulos e sua influência ns respostas ao TAT. Dissertação de
Mestrado, Faculdade de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
61
delimitação do interno e do externo, por introjeção do bom e expulsão do mau.
Silva (1989, p. 16) aponta que o estímulo é desconcertante e induz à fantasia. Os
conteúdos mais freqüentes dizem respeito à necessidade de amparo e proteção frente a um
ambiente inóspito.
Prancha 16
Silva (1989, p. 15) diz que o fato de o estímulo dessa prancha ser branco, o sujeito é
levado a projetar-se totalmente.
Shentoub (1990, p. 62) chama a atenção para o fato de as solicitações latentes remetem
à maneira como o sujeito estrutura seus objetos privilegiados e as relações que ele estabelece
com eles.
Para Dana (1985, p. 101), a prancha evoca temas de situação de vida ideal ou de um
problema atual. Geralmente, a situação de vida ideal ou contém a família participando junto
de uma atividade agradável ou descreve uma pessoa contemplando a natureza.
Paiva (2003) observou que nessa prancha todos os casais pesquisados trouxeram
conteúdos referentes ao vínculo conjugal, o que confirma a hipótese apontada por Herzberg
(2003, 9 de junho)
26
de que o fato de os sujeitos de uma pesquisa saberem qual é o tema que
está sendo abordado poderia facilitar o aparecimento de conteúdos a esse respeito na prancha
16.
Aspectos éticos da pesquisa
Foi apresentado à Comissão de Ética do Instituto de Psicologia o projeto desta
pesquisa e o termo de consentimento
27
que os sujeitos receberam da pesquisadora. Antes de
realizar a coleta de dados com cada casal foram explicados os objetivos deste trabalho e
pedimos que os mesmos assinassem o termo de consentimento, pelo qual eles aceitavam
26
Comunicação oral feita durante o exame de qualificação de Paiva (2003).
27
Vide o termo no Apêndice B.
62
participar da pesquisa e a pesquisadora se comprometia a utilizar os dados somente em
publicações científicas, conservando a identidade dos mesmos preservada.
O Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do IPUSP (CEPH-IP) aprovou o
projeto de pesquisa
28
.
28
Vide parecer no Anexo.
63
4 O CASAL I
4.1 A História de Sofia e Adriano
Caracterização do casal
Sofia
29
e Adriano casaram-se vinte e dois anos, no civil e na Igreja Presbiteriana.
Na época, ela tinha vinte e sete anos e ele, trinta anos.
Sofia estudou Artes Plásticas e trabalhava em uma escola particular na grande São
Paulo, quando conheceu Adriano.
Adriano cursou o segundo grau completo e nunca iniciou o terceiro grau. Trabalhou
sempre em redação de jornal e revista, onde foi aprendendo, na prática, o ofício de jornalista.
Na ocasião da entrevista, Adriano estava, dois anos, tentando estruturar um negócio por
conta própria, mas ainda não tinha obtido sucesso.
O casal tem três filhos, uma filha de vinte, um filho de dezoito e outro de quatorze
anos. Na época, moravam na casa da mãe de Sofia.
Caracterização e história da família matrilinear de Adriano
Adriano veio de uma família de imigrantes que morava perto da fronteira com a
Argentina. Seu avô materno era militar, professor de educação física e matemática. Morreu de
problemas cardíacos ainda muito jovem. Sua mãe não conviveu com o próprio pai, pois ela
era muito pequena, quando ele veio a falecer. Na época em que seu avô morreu, sua avó
estava grávida do seu filho menor. Sua mãe era a única filha mulher de quatros filhos, sendo
ela a terceira deles.
Essa avó materna ensinou Adriano a jogar pôquer, desde criança. Ela era professora de
29
Os nomes utilizados são fictícios e alguns dados foram alterados para que o casal não pudesse ser identificado,
porém sem comprometer o entendimento da dinâmica conjugal.
64
profissão, mas gostava e vivia do jogo, além da pensão que o marido militar deixara. Conta-se
na família que seu bisavô materno era fazendeiro e muito rico. Jogava muito e sua avó
aprendera com o pai. Entretanto, esse bisavô perdeu tudo por causa do vício. Sua avó também
viveu tempos em que tinha muito dinheiro e outros em que não tinha nada, por causa do jogo.
Adriano contou que o jogo é “meio hereditário, não sei se é genético” (sic). Seu bisavô, sua
avó e Adriano sempre gostaram de jogar. Entretanto, Adriano diz que, apesar de ter jogado
por muito tempo, conseguiu se controlar e parou. Sofia diz que, de fato, esse é um traço da
família de Adriano, pois ele começou a aprender a jogar pôquer com sua avó quando tinha
seis anos de idade.
Adriano não soube relatar como seus avós maternos se conheceram e como era o
casamento deles, pois conheceu apenas sua avó e nunca comentou com ela essa parte da
história familiar. Segundo ele, sua família nunca foi próxima. Sempre tiveram mais contato
com amigos do que com parentes. Soube contar que essa avó materna teve muitos irmãos,
sendo ela a mais velha. Sua avó deve ter tido mais uns quatro irmãos, mas Adriano não soube
precisar o sexo e o número de tios-avós.
O irmão mais velho de sua mãe suicidou-se na frente da avó de Adriano, no momento
em que ela carregava o filho dele no colo. O outro irmão acima de sua mãe era “um boêmio
inveterado, um homem da noite, apaixonava-se pelas artistas de circo que apareciam na
cidade em que moravam e acabou morrendo de tuberculose. O irmão mais novo de sua mãe
trabalhava em uma repartição pública.
A mãe de Adriano começou a trabalhar com dezesseis anos, pois precisava. Iniciou
dando aula em escola primária, já que tinha feito o curso de Magistério. Permaneceu
exercendo esse trabalho durante toda a sua vida.
65
Caracterização e história da família patrilinear de Adriano
Quanto à família de Adriano por parte de pai, ele soube relatar muito pouco. Seu avô
paterno era ourives e sua avó, dona de casa. Seu pai era o filho mais velho, tendo, depois dele,
nascido duas mulheres e um homem. Em relação a seus bisavôs paternos, não soube contar
nada. Essa falta de informação deve-se ao pouco contato que teve com a família paterna.
Lembra-se que alguns tios avós chegavam a cavalo, passavam a noite e iam embora no dia
seguinte. Seu pai era de uma outra cidade, diferente de sua mãe.
Seu pai era de uma cidade pequena do interior de Santa Catarina. Ele era representante
comercial e foi trabalhar por uns três meses na cidade de sua mãe. Entretanto, acabou ficando
na cidade por muitos anos, pois casou com sua mãe. Trabalhou a vida toda com comércio e só
parou quando se aposentou.
Um traço marcante que caracterizava a família paterna de Adriano é a falta de
relacionamento próximo entre os familiares. Pouco conheceu seus tios paternos, pois, quando
iam visitá-los, lembrou-se que seus pais se alegravam muito, eram dias muito felizes.
Entretanto, após a visita, ficavam anos sem se ver.
Caracterização da família de origem de Adriano
Seu pai e sua mãe eram muito diferentes. Sua mãe era uma pessoa mais centrada e seu
pai “era mais largado” (sic). Ficaram casados durante quarenta e seis anos e “o casamento
deu certo porque nenhum pegava no pé do outro”. Quando iam a festas, o pai de Adriano
bebia muito e começava a dançar tango; sua mãe, então, pedia que um dos filhos a levasse
para casa, pois ele iria voltar a pé. Apesar de terem amigos em comum, cada um tinha sua
vida, sua mãe tinha um grupo de amigas e seu pai tinha outro grupo de amigos, numa cidade
bem pequena, o que não era comum na época.
Seus pais divertiam-se muito juntos. Não se lembra de ter presenciado conflitos entre
66
eles. Apenas contou que seu pai, por ser muito brincalhão, gostava de provocar sua mãe,
perturbando-a. A família de sua mãe foi contra o casamento de seus pais, não tendo nunca
sabido o verdadeiro motivo. Sua tia Aracy, irmã mais nova de sua avó, morou com eles por
muitos anos, pois seu bisavô perdeu tudo no jogo e, quando morreu, não deixou nada para a
família. Sua mãe ficou com pena dessa tia e resolveu recebê-la para morar com eles. Essa tia
cuidava de Adriano e seus irmãos para que os pais pudessem trabalhar e acabou sendo para
eles como uma avó. Quando sua mãe morreu, sua tia veio contar que seu pai tinha tido uma
filha de um outro relacionamento. Adriano não soube dizer se essa história era verdadeira,
pois sua tia, segundo Adriano e Sofia, sempre foi linguaruda. Ao ser questionado se havia um
desejo de sua tia desqualificar seu pai, mesmo depois de falecido, Adriano concordou
prontamente com essa hipótese. Falou que sua tia era muito ruim, brigava constantemente
com seu pai e sua mãe acabava brigando com ele também. Essa tia não chegou a casar, foi
muito cortejada em moça e teve muitos pretendentes. Teve um noivo e, pouco antes do
casamento, ele se matou. A partir de então, ela tornou-se uma pessoa amarga.
Adriano e Sofia, ao serem questionados um pouco mais sobre os motivos da família da
mãe de Adriano não gostar do pai dele, disseram que o relacionamento entre o pai dele e sua
avó era muito bom, os dois se entendiam muito bem. O problema era com a sua tia-avó. Sofia
disse que seu sogro era muito carinhoso, que sempre os amigos da juventude de Adriano se
referiram a ele com muito carinho. Ela achava que essa implicância com seu sogro nasceu do
fato de ele ser de outra cidade, um forasteiro. A família de sua sogra, apesar de ter perdido
tudo, “tinha um certo status na cidade e casar com um sem eira nem beira não foi visto com
bons olhos.”
Adriano caracterizou seu pai como tendo sido muito engraçado, bem humorado,
contando muitas piadas. A mãe dele gostava desse jeito que seu pai tinha. O pai de Adriano
sempre teve o desejo de sair do Sul e ir morar no Rio de Janeiro. Sempre teve vontade de
67
aventuras e viajar. Tanto Adriano como seu irmão mais velho sempre tiveram a mesma
vontade que seu pai tinha, de sair do interior e morar em uma cidade grande. Seu irmão
acabou saindo do Sul e veio para São Paulo quando tinha dezessete anos e Adriano, na época,
tinha sete anos.
Adriano primeiro foi morar com seu tio materno, que conseguiu para ele um emprego
em uma repartição pública na cidade em que trabalhava. Era uma cidade bem maior, mas
Adriano achava que teria mais chances de seguir uma carreira de jornalista se viesse morar no
Rio de Janeiro ou em São Paulo. Ficou nesse emprego por alguns anos. Contou que queria
trabalhar na área de jornalismo ou de publicidade, pois era uma profissão com glamour e
sempre com muitas festas. Veio, então, para São Paulo, atrás do seu irmão mais velho.
Seu irmão do meio preferiu ir morar em uma cidade maior e ficou uns 500 quilômetros
de distância de sua cidade natal. Com a saída dos filhos de casa, os pais de Adriano
resolveram se mudar para a mesma cidade desse filho, para ficarem mais perto dele e dos
netos. Porém, Adriano achou que seus pais não fizeram uma boa escolha, não estavam
acostumados à cidade grande e “começaram a morrer aos poucos.” Seu pai morreu de ataque
cardíaco, em decorrência do cigarro. Oito meses após a morte de seu pai, sua mãe veio a
falecer. “Acho que ela também não estava muito a fim de ficar só.”
Na casa de Adriano, sempre houve liberdade para fazer o que se queria. Ele e seus
irmãos nunca foram obrigados a estudar. A mãe dizia que tinha estudado e que o marido
estava com a vida pronta, também tinha estudo, a questão de querer estudar ou não era algo
que Adriano teria que resolver sozinho, segundo a mãe dele. Então, optou por estudar só até o
colegial, a escola não o agradava. Sempre foi lendo e aprendendo as coisas por conta própria.
Os segredos da família de Adriano
Quanto a segredos familiares, conta que seu avô materno era peão, o irmão dele
68
também era peão de fazenda. Eles contavam muitas histórias dessas rodas de fogo, de lendas,
sobre saci-pererê, boi tatá. Essas histórias eram contadas, mas as histórias da família, não.
Houve uma época em que Adriano se interessou mais pelas histórias familiares, mas percebeu
que seus irmãos contavam histórias que não batiam, cada um contava de um jeito, até que ele
desistiu de saber mais sobre a própria família. Um exemplo é o livro de poesias que seu tio
materno, que morreu de tuberculose e era boêmio, escreveu. Adriano jamais pôde tocar nesse
livro, era um segredo que a família tinha. Segundo ele, seus familiares faziam todo um
mistério em relação ao livro, achavam que estava “contaminado”.
Outro segredo é o motivo pelo qual seu tio materno se matou. O fato de seu bisavô ter
perdido todos os bens no jogo também se tornou um tabu na família.
Caracterização e história da família matrilinear de Sofia
Sofia iniciou o relato de sua família, dizendo que seus familiares tinham muito
contato, diferentemente dos familiares do marido. Adriano a interrompeu e disse que convivia
mais com a família da esposa do que com a própria família. “Eu sou o único cara que tem a
foto da sogra na carteira.” A família materna de Sofia era do interior de Espírito Santo, da
região serrana, perto do Estado do Rio de Janeiro. Seu bisavô materno era imigrante
português, que veio para o Brasil no início do século XIX. Deu-se muito bem
financeiramente, tiveram muitas posses. Era um homem bastante culto e rico. Esse bisavô
sempre foi considerado como uma pessoa muito querida e carinhosa pela família toda e fez
questão de que os filhos estudassem, sem fazer distinção entre homem e mulher. Sua avó,
filha desse bisavô, conheceu o marido na época em que ele estudava em um seminário para
ser pastor presbiteriano.
O avô materno de Sofia era bem diferente do resto da família, "era mais duro, mais
grosseiro". Sofia contou que sua avó sofreu muito por ter casado com um homem tão
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diferente. O casamento dessa avó sempre a intrigou muito, pois ela era muito carinhosa com
todos os netos, já seu avô era uma pessoa de quem ninguém tinha prazer em ficar perto. Sofia
e seus irmãos passavam todas as férias com os avós, pois sua mãe trabalhava e não tinham
com quem ficar. Por passar tanto tempo com eles, Sofia disse que percebia o sofrimento de
sua avó. Imaginava que fosse pelo jeito de seu avô que sua avó tentava compensá-lo,
dedicando-se aos netos. Apesar desse jeito tão diferente de seu avô, sua avó acompanhava-o
sempre nas atividades da Igreja, dava aulas sobre a Bíblia e cantava nos cultos.
Adriano disse que se dava muito bem com esse avô de Sofia; melhor do que o
relacionamento que os próprios netos tinham com ele. Como o avô de Sofia viveu muitos
anos e veio morar com os pais dela em São Paulo, Adriano contou que conviveu bastante com
esse avô de Sofia; jogava baralho com ele, discutiam sobre futebol, enfim, os dois se
entendiam muito bem.
A mãe de Sofia tinha sete irmãos, quatro mulheres e três homens. Das mulheres, a mãe
de Sofia foi a única que se separou, depois de ter ficado casada por trinta anos. Entretanto,
Sofia achava que suas tias "também têm casamentos péssimos". Sua tia mais velha tinha um
jeito duro como o de seu avô e casou com um homem carinhoso como sua avó, estabelecendo
um casamento inverso ao modelo de casamento dos seus avós. Contudo, esses tios tinham
também dificuldades no relacionamento conjugal como seus avós. Sua outra tia, a que vem
logo depois de sua mãe por ordem de idade, morava longe da família, no exterior, e, segundo
Sofia, "esse é o casamento mais doido" que já viu. Seu tio apresentava um comportamento
sádico e sua tia submetia-se às maldades do marido. A irmã seguinte casou-se com um
homem desquitado e por esse motivo seu avô foi totalmente contra o casamento. Só com o
passar dos anos, seu avô o reconheceu como genro e passou a tratá-lo muito bem. Sua tia mais
nova tinha um relacionamento muito estranho com o marido. Quando havia festas em família,
como no Natal, ela viajava sozinha para o interior e o marido vinha para São Paulo passar a
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festa com os familiares da esposa.
Quanto aos irmãos de sua mãe, dois estavam separados e o caçula era o único que
permaneceu casado. O tio mais velho foi obrigado a casar, pois namorava há muitos anos uma
moça, filha de um general e, quando resolveu desmanchar o namoro, o avô de Sofia o impediu
de fazê-lo e o forçou a se casar. Entretanto, o casamento durou muito pouco tempo.
Seu segundo tio era boêmio e tinha muitas mulheres. Acabou engravidando uma moça,
sendo assim obrigado a se casar com ela. Sofia disse que gostava muito da esposa do seu tio,
mas o casamento também não deu certo. Seu tio caçula teve o casamento mais estável entre
todos os irmãos de sua mãe.
Ao falar de seus tios, Sofia apontou que em sua família um traço marcante eram as
discussões. "Eles discutem até em cima do que eles concordam. Era bem divertido ver as
discussões na casa de minha avó".
Caracterização e história da família patrilinear de Sofia
Os avós paternos de Sofia eram do interior do Espírito Santo e se mudaram para
Vitória na época do Getúlio Vargas. Por conta da política, seu avô vendeu todos os bens para
se candidatar a deputado. Como o Congresso foi fechado na época, ficou sem nada. Seus avós
vieram para São Paulo com os filhos para tentar uma vida nova. A família passou por muitas
dificuldades nesse período. Esse avô era da área biomédica. Por morarem bem próximos,
Sofia conviveu muito com eles e com seus tios. Era uma família muito próxima e Sofia se
recordou com muito carinho de seus avós.
As famílias de seus avós paternos e maternos eram amigas no Espírito Santo. Apesar
das duas famílias serem de origem presbiteriana, seu avô paterno não praticava essa religião.
Seu avô paterno desconfiava que sua esposa o traía, tinha muitos ciúmes. Sofia diz que
era "piração" de seu avô. Adriano justificou-o, dizendo que "também uma gata daquela!"
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Depois que sua avó paterna morreu, Sofia ouviu dizer que ela teve um filho de uma
relação anterior a seu avô.
Seu pai é o filho mais velho; tem uma irmã abaixo dele e depois dois irmãos. O único
que se separou foi seu tio caçula, pois a esposa pediu a separação. A tia, na época, arrumou
um namorado. Após a separação, seu tio casou-se novamente, permanecendo casado até
então.
Ao falar dos casamentos de sua família, Sofia questionou-se em relação aos motivos
que levavam as pessoas a se casarem, uma vez que via tantos casamentos que não davam
certo. Considerava os casamentos de suas duas avós, paterna e materna, muito estranhos.
Caracterização da família de origem de Sofia
Os pais de Sofia conheceram-se em uma festa em que as duas famílias estavam
presentes. Namoraram muitos anos, pois seu pai fazia faculdade no Rio de Janeiro. Como seu
pai iniciou a carreira de odontologista trabalhando com um professor, a mãe de Sofia foi
morar no Rio assim que se casou. Ficaram por lá durante os primeiros anos de casados e se
mudaram para São Paulo, pois seu pai teve uma proposta de emprego. Sua mãe já trabalhava
antes mesmo de casar e continuou no emprego. Nunca foi uma dona-de-casa propriamente
dita, sempre soube cozinhar, lavar, costurar, mas, como trabalhava o dia todo fora de casa
como auxiliar de administração, sempre teve em casa alguém para ajudá-la. Quanto ao
casamento de seus pais, Sofia diz que nunca foi “uma relação tranqüila”, brigavam muito e se
separaram, pois sua mãe descobriu que seu pai a traía com outras mulheres.
Sofia disse que viu essa situação de ciúmes de seu avô paterno com sua avó
reproduzida no casamento de seus pais. Contou que tanto seu avô como seu pai infernizavam
a vida das esposas, gerando brigas horrorosas por causa do ciúme. Com o passar dos anos, a
família ficou sabendo que seu pai tinha tido muitos casos e, por conta de um deles, seus pais
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acabaram por se separar.
Sofia desabafou, dizendo que a incomodava muito essa vida dupla que seu pai teve,
sempre muito moralista, duro com os filhos; "a vida dele não condizia com o que ele falava".
Adriano a interrompeu, dizendo que já a havia advertido, pois achava estranho o horário em
que seu sogro saía para trabalhar.
Sofia lembrou-se que seu pai sempre implicou com os namorados que teve
principalmente com um que era mais velho e já havia sido casado. Ao contar essa história,
associou-a com a história de sua mãe, pois seu pai morria de ciúmes dos ex-namorados de sua
mãe. Relatou que sua mãe dizia que o ex-namorado de que ele tinha mais ciúmes era um
rapaz separado que ela namorou. Então, Sofia sempre mantinha seus namorados e amigos
longe de sua família. O mesmo aconteceu com seus irmãos, nunca levavam as namoradas para
dentro de casa, só levaram as namoradas com quem se casaram.
Quanto ao casamento de seus irmãos, disse que um deles era casado com uma moça de
que ela gostava muito. Os dois se davam muito bem, trabalhavam juntos e se ajudavam.
Entretanto, seu outro irmão mantinha um relacionamento difícil com a esposa.
Os segredos da família de Sofia
Sofia relatou a história de sua avó paterna ter tido um filho antes de se casar como um
segredo familiar. Disse que seu bisavô era muito rico e perdeu tudo. Não soube dizer o motivo
de ele ter falido. Na época, havia um fazendeiro muito rico que se interessou por sua avó. Ela
era muito nova, quase uma criança. O fazendeiro não se casou com a avó de Sofia, largando-
a. Sofia supõe que esse fazendeiro era visto na época como um "salvador da pátria", já que a
família vivia numa situação financeira difícil. Sobre o paradeiro da criança, nunca ninguém
soube. O pai dela ficou sabendo dessa história por meio de um primo.
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A história do casal
Adriano e Sofia conheceram-se por meio de uma amiga comum dos dois. Uma amiga
de Sofia mostrou para ela umas fotos de uns amigos e Sofia achou Adriano muito bonito. Na
época, Adriano era noivo de uma moça no Sul e Sofia estava namorando outro rapaz. Algum
tempo depois, os dois se conheceram em uma festa. Sofia já havia terminado o namoro e
Adriano, desmanchado o noivado. Começaram a namorar rapidamente, mas Sofia já estava
com viagem marcada para conhecer os Estados Unidos e fazer um estágio, pois tinha
terminado a faculdade de Artes Plásticas. Ficaram juntos apenas por um mês. Após seis meses
viajando, Sofia voltou e os dois reataram o namoro. No final desse mesmo ano, Sofia resolveu
viajar novamente, mas dessa vez com umas amigas. Adriano ficou incomodado com as
viagens de Sofia e resolveu pedi-la em casamento.
Seis meses depois, os dois se casaram. Sofia justificou que casaram logo, pois não
eram mais crianças. Adriano argumentou, dizendo: "A gente já tava bem rodado." Disse que
Sofia já tinha tido vários namorados, mais que ele inclusive. Ele, por sua vez, morava em uma
república com estudantes universitários. Na época, muitas garotas freqüentavam bastante a
república, já que era dos "latino-americanos". Por serem do Sul, faziam muito sucesso com as
garotas.
Adriano disse que estava cansado daquela vida, tinha um subemprego que lhe dava
muita liberdade, "tinha dinheiro para pagar a república, cerveja e cigarro". Casar, para ele,
significava arrumar um emprego melhor e mudar de vida; "sossegar o facho mesmo e montar
uma família".
A família de Adriano era amiga da família de sua ex-noiva. Tinham esperança de que
eles se casassem e ele voltasse a morar no Sul. Quando Sofia foi para a terra natal de Adriano,
seu sogro já tinha morrido e sua sogra não a tratou bem. Um dos motivos pelos quais sua
sogra a hostilizou foi que Adriano não quis se hospedar na casa de sua mãe, ficando com
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Sofia na casa de amigos. Essa foi a única vez em que Sofia esteve com sua sogra, pois ela
veio a falecer alguns meses depois. O irmão de Adriano e a esposa, que moravam em São
Paulo, gostaram de Sofia desde o começo e apoiaram o namoro.
A entrada de Adriano na família de Sofia não foi fácil, já que a família dele não era
conhecida da dela. Vinha do Sul do país, não tinha feito nenhuma faculdade e não era rico,
muito pelo contrário, tinha um subemprego. Tanto os pais como os irmãos de Sofia
implicavam com suas características. A mãe de Sofia, por ser mais afetiva e ter mais
capacidade de aceitar os outros, acabou aprovando a escolha da filha e contribuindo bastante
nesse processo de aceitação de Adriano. Por ser muito comunicativo e brincalhão, aos poucos
ele foi cativando a sogra e, até então, os dois se davam muito bem. Adriano repetiu
novamente, durante a entrevista, que tinha a foto da sogra na carteira, gozando do fato. Ao ser
indagado sobre os motivos que o levaram a colocar a foto da sogra na carteira, Adriano disse
que tinha foto de todas as pessoas de quem gostava, seus filhos, seus pais, a esposa e,
conseqüentemente, a sogra.
Adriano associou a história da família paterna de Sofia com a advertência que o pai
dela fez quando os dois começaram a namorar. Seu sogro chamou a filha e disse para ela
tomar "cuidado com pessoas do Sul, pois muitas vezes deixam família por lá e vêm para São
Paulo enrolar as mocinhas de família". Recentemente, eles souberam que os parentes
achavam que o casamento não iria durar.
Sofia não preparou um enxoval, nem fez lista de presentes de casamento. A mãe de
Sofia deu algumas coisas que tinha em casa e o casal foi improvisando a organização da casa.
No início, foram morar em um apartamento da mãe de Sofia e o casal pagava um aluguel
simbólico. Como o apartamento estava alugado, quando se casaram, foram morar na casa de
uma tia-avó de Sofia, que, segundo ela, foi tirada de cena para que o casal tivesse onde morar.
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Fantasias presentes na escolha do parceiro
Quanto às fantasias na escolha de uma parceira, Adriano disse que não tinha um
padrão definido de mulher, “mas, dentro do que eu esperava, a Sofia se enquadrava bastante.
A independência, a cabeça, tanto que eu falo: eu não casei apaixonado, por isso que o
casamento deu certo, eu casei pela admiração pela pessoa, pela figura dela, não era
dondoca, até às vezes ela falava que eu precisava de uma dondoca pra ser minha parceira”.
Contou que sempre quis ter uma família, filhos e achava que, como tinha idade suficiente para
sossegar, Sofia era a mulher ideal. Adriano disse que Sofia não mudou o rumo da vida dela
depois que se conheceram, foi viajar e fez tudo que teve vontade. Isso o encantou! Ao mesmo
tempo em que admirava a independência da esposa, gostaria que ela o paparicasse mais, que
fosse mais dependente. Ao ser questionado a esse respeito, disse: Pode ir pro campo, mas
vou lá laçar, como boiadeiro, entendeu?”.
Adriano admitiu que, quando queria colo e não obtinha com a esposa, que segundo ele
era durona, optava por recorrer à filha, mas também não se sentia acolhido. Justificou dizendo
que as duas são muito duras. Aí vem uma característica edipiana, porque a minha mãe
também era meio assim, entendeu?”.
Quanto às fantasias na escolha de um parceiro, Sofia disse que tinha tido
relacionamentos muito complicados com homens mais velhos antes de conhecê-lo. Quando
conheceu Adriano, ficou atraída pela aparência física dele e pela “leveza”. “Não tinha essa
consciência, mas agora, você perguntando, eu acho que a resposta era alguém muito
diferente da minha família também. A minha família sempre foi muito pesada, assim,
inclusive a relação dos meus pais era muito pesada, era muita briga, muita ciumeira, muita
mentira.
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Dinâmica conjugal
Quando se casaram, Adriano achou que sua vida mudou. “A minha vida começou a
ficar mais organizada, apesar da gente estar nessa improvisação, para mim aquilo era
extremamente organizado. Agora eu vou virar um cara sério, (esposa ri), vamos fazer a coisa
séria. E, isso foi, eu acho que até hoje o nosso casamento está andando desse jeito.”
Sentiram-se casados quando os filhos nasceram. "Quando deixamos de brincar de
casinha", disse Adriano. Ao ser questionado sobre isso, os dois disseram que nunca brincaram
de casinha, que o comentário era uma "brincadeira" de Adriano. Para eles, assumir a casa foi
fácil, mais complicado foi a chegada dos filhos, pois, até então, não precisavam se preocupar
com nada. Sofia não sabia cozinhar e assim, ou Adriano fazia a comida ou saíam para comer
fora. Com as crianças, tiveram que organizar uma estrutura de casa diferente.
Financeiramente, o casal sempre viveu altos e baixos. Adriano contou que chegava a
ficar vinte dias sem nenhum dinheiro no bolso. Já mudou várias vezes de emprego e, em
alguns períodos, ganhou muito pouco. Antes de sair de seu último emprego fixo, Adriano
sofreu um enfarte. Resolveu, então, pedir demissão, pois achava que, se ele continuasse a
trabalhar tanto, iria morrer. Optou por ser autônomo e tentou organizar um negócio próprio,
mas não obteve sucesso até o momento.
Moravam em uma casa alugada e resolveram comprar uma casa própria com
financiamento bancário. Na época, Adriano estava empregado e o valor do aluguel
correspondia à prestação do financiamento. Entretanto, a casa tinha problemas no telhado que
somente foram percebidos depois que a compraram. Como não tinham dinheiro para a
reforma, tiveram que devolver a casa alugada, para poder pagar o financiamento. Foram
morar na casa da mãe de Sofia. Os amigos, que vinham ajudando financeiramente o casal,
pagaram algumas pequenas reformas na casa nova..
Sofia ficou muito angustiada quando Adriano deixou de ter um trabalho fixo, mas
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resolveu apoiá-lo já que ele se dizia infeliz e estressado em seu antigo emprego. Adriano
admitiu que seu gênio atrapalhou sua carreira profissional. "Eu engulo muito pouco sapo."
Também contou que nas festas contava piadas, "tava meio breaco". Quando foi questionado
sobre a bebida, negou o que havia dito e argumentou, comparando-se a seu filho do meio, que
"enlouquece sem fumar na roda, entendeu?"
Tentando justificar a fama que ele tinha de beber em festas, Adriano disse que sempre
teve fama de ter outras mulheres, isso já acontecia no sul, mas nunca traiu a esposa. Relatou
que fazia churrasco com os amigos em "puteiro", mas não ficava com nenhuma mulher nem
naquela época, nem durante o casamento.
Sempre conviveram bastante com os amigos, mas nessa fase do casamento sem que
estavam sem dinheiro, deixavam de sair, pois não se sentiam bem com os amigos pagando a
conta.
Adriano estava se sentindo deprimido, ficava dois a três dias sem falar com as pessoas.
Em outros momentos ficava muito otimista em relação a conseguir ter sucesso em seus
negócios. Sofia achava importantes esses dois movimentos do marido: o otimismo e a tristeza.
Quanto ao que mudou nesses anos de casamento, Adriano foi categórico, "de fato era
um menino, agora somos uns velhos."
Durante a entrevista, Adriano comentou para a esposa que tem bebido whisky todos os
dias. Ela disse que não sabia e tentou justificar racionalmente o fato de ela não saber que ele
estava bebendo.
Para o casal, aos olhos do pai de Sofia, Adriano era um “frouxo”, pois a mulher saía
com as amigas, viajava a trabalho e comentava com naturalidade quando encontrava um ex-
namorado. Para eles, o pai de Sofia gostaria que Adriano tomasse alguma atitude ou
manifestasse alguma reação em relação aos comportamentos de Sofia.
Sofia pensava que os dois formavam um "par complementar": ela, mais rígida, e ele,
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mais flexível.
Chegada dos filhos
Sofia engravidou um ano após o casamento. A gravidez não foi planejada e ela
explicou que o método anticoncepcional que usavam de alguma forma falhou. Quando sua
filha mais velha tinha dois anos, nasceu seu segundo filho, que foi planejado. Ficou muito
feliz com o nascimento de um menino, já que sempre quis ter um casal.
A gravidez do terceiro filho foi totalmente inesperada e Sofia passou muito mal
quando soube que estava grávida novamente, chegando a emagrecer oito quilos no primeiro
mês. Quase perdeu o bebê e, como o médico pediu que ficasse em repouso, ela repensou a
gravidez e resolveu ter o bebê. Contou que seu filho caçula acabou trazendo muita alegria
para a vida de toda a família. "O plano de Deus é melhor que os meus", concluiu Sofia. A
partir do nascimento desse filho, passaram a participar de uma Igreja Presbiteriana não tão
tradicional.
Como Sofia sempre trabalhou, deixavam a filha mais velha na casa de sua mãe. Já que
ela trabalhava só meio período, na volta do emprego Sofia ia para a casa de sua mãe e ficava
esperando que o marido viesse buscar as duas para irem embora.
Adriano disse que ajudava em tudo; chegou a fazer curso com a esposa de preparação
para o parto e sobre os primeiros cuidados com o bebê. Ficava sozinho com a filha, quando
Sofia tinha reunião na escola à noite. Disse que optou por ser pai mais do que por sua carreira
profissional, deixando de ir a reuniões para ir às festas na escola da filha.
Quando os filhos eram pequenos, Adriano brigava muito com sua sogra, pois ela
acabava "deseducando-os". Só quando Sofia o alertou de que a avó acabava fazendo isso
mesmo é que ele parou de brigar tanto com ela.
Quanto a dificuldades que tiveram com os filhos, contam que a filha mais velha
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começou com traços de comportamento obsessivo, quando era pequena. Na época, levaram-
na a um psicólogo e, mesmo fazendo terapia, alguns traços obsessivos permaneceram. O
segundo filho apresentou comportamentos agressivos na pré-escola e foi encaminhado pela
escola para fazer terapia. O filho caçula sempre teve dificuldade em estudar e por isso faz um
trabalho psicopedagógico.
Na idade em que os filhos estavam, costumavam ficar preocupados quando eles saíam
de madrugada e voltavam para casa de transporte público. O filho do meio gostava de música
e trabalhava como DJ em algumas festas e, como tinha um amigo que morava em uma favela,
ia a festas na região. Conversavam muito com os filhos, mas ficavam bastante preocupados.
"É um negócio sofrido, mas não tem o que fazer", argumenta a mãe. Referiram que eles
tinham com os filhos um pacto de confiança, acreditavam no que eles contavam e confiavam
neles.
Caracterização dos conflitos conjugais
Os conflitos começaram quando a primeira filha nasceu. Sofia ficava em casa
esperando Adriano e ele ia à happy-hour com os amigos. Isso a incomodava muito, pois
achava injusto. Sofia sentia-se muito presa com os filhos "Então, foi muita bronca, muita
briga, até enquadrar", lembrou-se Sofia, dando ênfase ao fato.
Quando precisava trabalhar à noite e Adriano não conseguia sair do emprego, Sofia
ficava muito tensa, por não ter com quem deixar a filha. Quando o segundo filho nasceu,
resolveram contratar uma empregada para ajudá-los.
Um dos conflitos que estavam vivendo era a mudança para a casa deles. Sofia disse
que a casa não estava totalmente pronta e Adriano argumentava que sim. "Para ele qualquer
coisa tá bom, ele morava em uma república e nem a pia funcionava." Sofia ficava preocupada
que não teriam dinheiro para pagar todas as contas, já que Adriano não estava ganhando nada.
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Adriano afirmou que, se eles mudassem, ele procuraria emprego, "nem que seja de porteiro."
Sofia disse que o marido é muito distraído; "não está ligado no que está fazendo e isso
irrita profundamente, profundamente!"
Ao falar sobre o jeito de cada um, Sofia disse que estar casada é uma opção. Para ela
não faltaram motivos para se separar, como, por exemplo, as chatices do outro. Sofia
reconheceu que gostava de organização, mas Adriano a considerava desorganizada, o que
levava os dois a brigarem.
O casal separou-se há menos de um ano e a separação durou uma semana. O motivo
da separação é que Adriano ficou de arrumar dinheiro para pagar uma parte do empréstimo do
banco e no dia, como ele não se manifestava, Sofia tomou a frente da situação e a resolveu.
Ela ficou muito brava com o marido, pois ele disse que iria resolver. Nesse dia, ela disse que
explodiu com ele e ele disse que não queria "aquilo" para ele, falando que iria embora. Como
ele já tinha dito isso outras vezes, Sofia disse para ele ir. Apesar de achar que não se deve
falar em separar da boca para fora e que as coisas não são resolvidas assim, Sofia resolveu
acatar a decisão do marido, com o intuito de ele perceber o que estava fazendo. Depois de
uma semana, ela o procurou para conversarem e os dois reataram, com o compromisso de não
brigarem como havia sido a última briga que levara à separação. Para Adriano, separar seria
perder o lar, o convívio familiar. Sofia disse que tentou mudar assim que voltaram, pois
Adriano reclamou que ela não olhava para ele há meses. Não soube dizer se estava
conseguindo dar atenção ao marido, pois achava que estava cheia de muitas preocupações. Ela
vinha trabalhando muito mais do que gostaria, arrumando projetos fora da escola, para
aumentar os ganhos.
Sofia disse que o jeito do marido de falar algumas coisas a deixava insegura. Não
sabia se era "brincadeira" ou se devia levar a sério. Foi aprendendo a lidar com isso ao longo
dos anos, mas isso acabava gerando conflitos entre eles.
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O papel de cada um no casamento
Sofia sempre decidiu as "coisas" dos filhos. Na adolescência, Adriano passou a cuidar
dos programas da filha, pois apesar das conversas intermináveis que Sofia tinha com a filha,
estas não surtiam efeito. Então, o pai baixava "decretos", que tinham muito mais a ver com o
humor dele.
Adriano sempre ocupou o lugar de provedor da família e, apesar do salário de Sofia
ser considerado baixo, nas épocas em que Adriano ganhou muito pouco dinheiro, o salário
dela passou a ser vital para a vida familiar. Durante a entrevista, ficou claro que, para eles,
Adriano era o provedor, mesmo nessa fase em que não estava ganhando suficientemente.
Desde recém casados, Sofia cuidou da organização do dinheiro da família.
Usaram uma imagem para definir os papéis de cada um: Sofia, "a locomotiva da casa"
e Adriano, "uma poltrona daquelas bem grandonas, bem cheias de almofadas, gostosas de
sentar; a cadeira do papai". Essas imagens surgiram durante uma entrevista com a psicóloga
da filha e, já naquela época, Adriano disse que, para ele, Sofia é mais um trem bala do que
uma locomotiva.
Identificação e identidade
Ao serem questionados se identificavam aspectos semelhantes entre o casamento
deles com o de algum parente, Sofia comentou que sua mãe sustentou seu pai em uma fase do
casamento, quando se mudaram para São Paulo. Disse que seu pai queria morrer de vergonha
pelo fato e se sentia humilhado. Já com os pais de Adriano, sua mãe ganhava mais que seu
pai, mas o pai de Adriano não ligava para o fato.
Sofia achava que Adriano tinha a alegria de sua avó. Ela se encantou com o otimismo
dele e com o pai que ele era para os filhos do casal.
Sofia lembrava, no aspecto da organização, a mãe de Adriano. Ele achava a esposa
amiga das amigas, desdobrando-se para ajudar as pessoas.
82
Sexualidade do casal
Ao iniciar a conversa sobre a sexualidade do casal, Adriano disse: "faço uma
brincadeira que terceirizei". Quando questionado a esse respeito, os dois admitem que foram
mais românticos e já se sentiram mais atraídos um pelo outro. Ele justificou, dizendo que os
remédios que ele tomava para o coração tiravam o desejo sexual. Pensou em tomar Viagra,
mas não o fez. Sofia estava se achando gorda, mas, para ele, ela parecia uma "Luiza Brunet",
mas, como as demais coisas que ele falava, ela ficava insegura, sem saber se essa era de fato a
opinião dele.
O fato de estarem morando na casa da mãe de Sofia não estava ajudando, dormiam em
camas separadas, uma mais baixa que a outra. Assim sendo, eles tinham relações sexuais
esporádicas.
Adriano não se incomodava com o fato de a esposa ter tido outros parceiros antes dele.
Ela contou que não foram boas as experiências e que na época as mulheres não podiam dizer
não. Gostaria de ter tido Adriano como seu primeiro parceiro.
O familiograma apresentado (Figura 1) ilustra a organização e as relações familiares de
Sofia e Adriano, representando-se três gerações antecedentes. Buscamos, por meio deste
esquema, facilitar a apreensão dos diversos casamentos e outros fatos relevantes da história
das famílias de origem.
Figura 1 Familiograma Casal 1
Adriano
Família
nuclear
? ?
Pais
Avós
Bisavós
?
Sofia
1 1 2 2 2 2 2
L
e
g
e
n
d
a
relações
extra-matrimoniais
homem
mulher
filho filha
falecimento
aborto
provocado
gênero não
relatado
casamento separação
matrimonial
nascido antes da
relação matrimonial
(filho não reconhecido)
não soube informar
?
suicídio
?
não soube relatar a
ordem do nascimentos
dois
casamentos
o mero dentro do símbolo
significa ser filho do primeiro
ou do segundo casamento
64
84
4.2 Interpretação dos Protocolos do TAT
30
(Casal I)
Prancha 2
Sofia
Sofia identificou-se com a jovem moça e associou, num primeiro momento, um
conflito que girava em torno da separação da família de origem frente à busca de um rumo
diferente. Então, talvez a filha, saindo de casa, tomando um outro rumo diferente dos pais,
deixando uma mãe grávida, pensativa, preocupada, tal... um pai forte, vigoroso, cuidando da
terra, um serviço mais braçal e tal. Numa tentativa de se organizar internamente, Sofia
mudou o rumo de sua associação, justificando-se por meio de argumentos lógicos. Disse que a
prancha poderia representar dois momentos da vida de uma mesma pessoa. Mesmo em sua
nova associação, a angústia da separação da família de origem e a busca de novos caminhos
permaneceram.
Adriano
Adriano iniciou descrevendo a cena da prancha numa tentativa de se distanciar do
conflito que a mesma evocou. Em seguida, caracterizou as figuras femininas como
esperançosas frente à condição em que vivem, diferenciando-as da figura masculina, que
parecia passivo frente à própria situação de trabalho. Não caracteriza como uma cena familiar.
A ênfase não é dada à relação entre os personagens, mas à diferença entre esperança feminina
e passividade masculina.Eu acho que as moças têm um olhar de esperança, as duas
mulheres, o cara, não sei, parece que ele tá fazendo uma coisa meio mecânica.
Prancha 4
Sofia
Sofia iniciou descrevendo em detalhes a prancha numa tentativa de se organizar
internamente devido à angústia suscitada pelo estímulo. Identificou a cena como um conflito
30
Colocamos em itálico partes significativas da associação.
85
de um casal. Então, tem aí uma questão de o macho e a fêmea muito, muito forte, mas ele
parece que não quer estar com ela, ela que tá querendo segurá-lo junto, junto dela. O
conflito do casal evocado dizia respeito a uma triangulação amorosa, onde a figura masculina
estaria interessada por outra mulher. Mas nitidamente esse homem não quer estar com essa
mulher e está andando numa outra direção e ela quer agarrá-lo e segurá-lo nos braços a
qualquer preço. Esse homem irá atrás dessa outra mulher, podendo até retornar mais tarde
para a companheira, mas não de uma maneira sincera. Sofia projetou na figura feminina
sentimentos de inconformismo. Mas aí, ele pega e talvez ache uma mais bonita, mais
atraente e ele tá, então, olhando em outra direção e ela não se conforma com isso, porque ela
não é uma pessoa largada, relaxada, já que é uma mulher bonita e atraente. Sofia justificou
a sua apercepção devido ao quadro ao fundo da prancha.
Adriano
Adriano identificou a cena como sendo um conflito de casal. É um casal, a moça
parece que tá tentando segurar o cara em funç (sic), parece que ele tá querendo ir embora,
não sei se, indo embora da relação ou indo embora pra uma briga, para alguma coisa, mas
há o conflito! E ela tentando segurar ele, tentando falar, mas parece que ele não querendo
ouvir, né. Como ele é mais forte, eu tenho a impressão que ele vai se desvencilhar, aqui do,
desse pseudo assédio, ou não.Num primeiro momento, descreveu uma foto ao fundo como
sendo de uma mulher sem roupa. A natureza do conflito, para ele, seria o ciúme com base
numa triangulação amorosa. Disse que podia ser que a esposa tivesse descoberto que o marido
estava interessado por outra mulher ou algum homem que tivesse olhado para a esposa.
Adriano acabou definindo como sendo o desejo do homem em ir embora, já que estava
enraivecido. O rompimento do casal se dará por parte do homem, já que é assim que se dá
muitas vezes. Ao final da associação, Adriano definiu que, ao fundo da cena, haveria uma
mulher. O que vai acontecer entre eles, não sei se ela tá envolvida, se ela é o pivô dessa
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briga, mas ela tá com a roupa aqui extremamente sensual, aqui, ela tá quase semi-nua,
decote bem generoso, a perna cruzada, mostrando a perna. Dá a impressão que ela deve ser
o pivô do negócio, não sei. Outra mulher envolvida no meio do casal. E a mulher é muito
bonita aqui, tá aqui, segurando o cara. Durante a associação, Adriano apresentou labilidade
emocional, demonstrando dificuldade em entrar em contato com suas fantasias inconscientes.
Prancha 7RH
Sofia
Sofia identificou a cena como uma conversa entre um pai e um filho, na qual o filho
necessita de conselhos do pai. Não há uma oposição entre os valores dos dois. Entretanto, a
angústia apareceu na figura paterna, se conseguiria ajudar o filho. Parece que dá o conselho,
mas não tá acreditando que o conselho vai gerar alguma, alguma mudança efetiva no
problema que o filho tá enfrentando. O filho irá acatar o conselho do pai, modificando-o.
Para apaziguar o conflito que a prancha suscitou, Sofia propôs um final feliz para a
associação, dizendo que tudo daria certo.
Adriano
Adriano definiu, rapidamente, num primeiro momento, que se tratava de um pai e um
filho. Devido à ansiedade provocada, substituiu o que havia dito, dizendo que poderia ser
também um tio ou um amigo mais velho dando conselho. O olhar da figura mais velha é um
olhar mais convicto, o olhar da figura mais moça aqui é um olhar meio perdido, meio sem, dá
a impressão: O que que eu vou fazer da vida? Sigo esse conselho, não sigo, vou pela minha
cabeça, não vou. O conflito vivido pelo mais jovem é permeado por uma ambivalência de
sentimentos. Existe um problema de entendimento entre o homem mais velho e o mais novo.
Não tão felizes os dois. Tem um problema aqui. Tem, assim, nem quem tá dando conselho
nem quem tá recebendo. Alguma coisa não tá legal entre eles, aqui. Não que eles tenham um
conflito, mas ambos, assim, não tão bem seguros do que tá acontecendo, mas "eu posso te
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falar, olha por experiência, pá, pá," o outro não tá muito ciente disso, convicto que vá ser
isso que vai ajudá-lo a tomar decisão ou coisa do gênero.A solução proposta para o conflito
suscitado foi múltipla, não conseguindo definir um posicionamento.
Prancha 7MF
Sofia
Sofia ficou mobilizada pelo estímulo da prancha e contou sua história pessoal. “Prá
assim de primeira vista é uma cena que me agrada, me remete, assim, a situações que eu vivi.
Aí eu me colocaria no lugar dessa menina, brincando de boneca e minha vó do lado, lendo
uma história para mim, isso aconteceu várias vezes na minha vida, então, é uma cena pra
mim boa, muito gostosa de ver.” Ao se identificar com a menina, disse que para as duas se
tratava de um momento especial e prazeroso de convivência.
Adriano
Adriano descreveu a cena como sendo de uma babá ou preceptora com uma menina.
Para justificar a idéia de que a menina estaria com o pensamento distante, descreveu a cena
em detalhes. Imaginou que haveria um distanciamento entre a menina e a mulher adulta. “Não
tá muito prestando atenção na história que a babá ou a preceptora tá falando aqui. A cabeça
dela tá no outro, em outro mundo. E a pessoa que tá lendo tá bem convicta que tá, que tá,
achando que ela tá prestando atenção, não tá nem imaginando que ela tá prestando em outra
coisa.Ao final da associação, disse que as duas se pareciam fisicamente e poderiam ser mãe
e filha.
Prancha 19
Sofia
Sofia demorou mais para iniciar a história do que ao ver as pranchas anteriores,
demonstrando que a prancha lhe causou impacto. Hesitou, num primeiro momento, devido à
abstração do estímulo, mas logo identificou um iglu e posteriormente uma casinha. Fez uma
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oposição entre o ambiente interno, como sendo acolhedor, e o externo, como sendo
ameaçador e “frio”. Ao final da associação, as agressões do ambiente externo foram vistas
como algo passageiro.Depois o dia vai clarear, o sol vem, a neve derrete, o furacão, a
tempestade, tudo já não existe mais, aparece o sol e (pausa) as coisas, assim, a vida continua,
né? As estações vão se sucedendo. Depois desse frio vem a primavera.
Adriano
Diante de um estímulo que é desconcertante e induz à fantasia, Adriano ficou
impactado e procurou entender a prancha, mudando-a de posição, isto é, virando-a algumas
vezes. “Isso aqui não tem posição ou eu que tenho que encontrar a posição? Isso tá no gelo,
aqui parece pólo, alguns iglus, tem um mar revolto com neve, alguns dólmens, né, nesses
iglus ou ocas, não sei o que que é isso, tem uma porta, uma janela. Tá meio confuso isso.
Tenho a impressão que tem um mar batendo, aqui, né, um relevo. Descreveu a prancha como
sendo uma cena confusa e em movimento, não conseguindo organizar uma associação
propriamente dita. Identificou um iglu ou barco que estava sendo arrastado e seria destruído.
Apresentou fantasias de destrutividade, persecutórias e de impotência, uma vez que não
identificou recursos internos, capazes de fazer frente ao ataque destrutivo. Inferimos que essa
prancha lhe causou impacto, pois Adriano entrou em contato com a sua fragilidade bem como
com suas fantasias de ser aniquilamento.
Prancha 16
Sofia
Sofia imaginou um quadro no qual ela estava em um topo de uma montanha, olhando
o mar e querendo ir até a praia. “E tô vendo uma praia lá embaixo, aqui em cima tem árvores,
ah, uma sombra gostosa, o mar tá bem azul, tá bem, iluminado assim, né, os reflexos do sol
batendo no mar, uma areia bem branquinha, eu tô louca pra descer lá embaixo e mergulhar
na água, mas aqui em cima tá gostoso, que tem a sombra da árvore, como se fossem aquelas
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trilhas que a gente faz para chegar no, no, na praia.” Falou do caminho árduo que enfrentou
para chegar à sombra da montanha e no desejo de permanecer por lá antes de enfrentar o novo
caminho. Podemos inferir que Sofia se referia aos “caminhos” que tem enfrentado dentro da
relação conjugal, das caminhadas árduas e cansativas que tem feito e da vontade que ela
sentia em permanecer nesse lugar tranqüilo. Projetou para o futuro a esperança de que seria
possível também ter prazer nesse novo lugar, apesar de identificar que serão prazeres
diferentes do que tem vivido, uma vez que trouxe um sentimento de muita tranqüilidade nessa
parada. Com base na associação de Sofia é possível pensar o trajeto que ela tem vivido junto
com Adriano. A sombra, à qual se refere, poderia ser o tempo que estão vivendo na casa de
sua mãe e o prazer do descanso sob a sombra pode ser entendido como a vivência de um
momento de "amparo", frente ao desamparo, insegurança e instabilidade vividos nesses anos
de casamento.
Adriano
Adriano descreveu a cena de um domador em um campo aberto, domando um cavalo
chucro. Falou da relação domador/domado que é feita com muita liberdade para ambos. “O
cavalo é um cavalo de pêlo tostado, que ficava dourado quando o sol incidia aqui assim e o
cara que, correndo, batendo no pescoço e na anca, a cabeça do cavalo metida entre as duas
patas dianteiras, pulando, em volta uns cachorros, meio que amadrinhando aquela correria
do cavalo.” Ele se identificou com o processo em que o cavalo é submetido para ser domado
que estaria associado à liberdade e não à obediência. “E o peão, domador, dá essa liberdade,
porque ele vai parar de pular. E o cara tem que ser um bom ginete para ficar em cima dos
arreios, porque a tendência do cavalo é tirar o cara de cima e ir embora.” Ele ficou tão
mobilizado pela história que passou a falar de sua saída do Sul e que um dia queria retornar a
viver na terra natal. Supomos que, por meio da cena do domador e cavalo, Adriano descreveu
o que ele e Sofia estavam vivenciando, ela tentando contê-lo, mas ele é que estaria
90
conduzindo-a. Liberdade, liberdade daquele cavalo e cavaleiro num campo, tudo
descampado, não vi cerca, não vi nada, eu vi um cavalo conduzindo esse cara campo afora.”
4.3 Discussão dos dados do Casal I
Antes mesmo de conhecer Adriano, Sofia ficou admirada com sua beleza, quando uma
amiga lhe mostrou sua foto. Sofia, quando conheceu Adriano, vinha de alguns
relacionamentos amorosos com homens mais velhos e "complicados" e que não haviam dado
certo. Iniciou o relacionamento sabendo que em breve iria viajar e não se sentiu pressionada
para ficar, muito pelo contrário, concordava com a decisão de romper o relacionamento, já
que ficaria bastante tempo fora do país. A liberdade que lhe foi dada por Adriano a encantou.
Buscava um relacionamento diferente do que vivia em casa, em que houvesse liberdade e
flexibilidade.
Adriano, na época em que a conheceu, morava em uma república e vivia uma vida de
extrema liberdade; não era estudante universitário, mas morava com alguns e vivia como tal.
A independência dela o encantou, uma mulher decidida. Queria mudar de vida, constituir uma
família e Sofia parecia ser a pessoa ideal. Se, por um lado, a liberdade de Sofia o encantava,
por outro, resolveu "laçá-la", pois desse modo garantiria que ela não o deixaria.
O vínculo do casal foi fundado, num primeiro momento, nos desejos inconscientes de
se sentirem amparados, cuidados, mas sem terem a liberdade cerceada. Adriano admitiu que
"de fato era um menino" quando se casou; saiu de casa cedo e resolveu casar na busca de uma
família. O acolhimento buscado por Adriano também pudemos perceber na escolha de Sofia.
Vivia em sua casa uma situação em que não se sentia entendida e amparada, tanto por suas
escolhas como pelo seu jeito diferente de ser.
A necessidade de seguir o próprio caminho apareceu na associação que Sofia fez na
prancha 2, num primeiro momento, quando se identificou com a moça que tomava um rumo
91
diferente dos pais. Aos poucos conseguiu explicitar o conflito intrapessoal tenso ali projetado,
que girava em torno da tomada de decisão em seguir os próprios caminhos ou não. Inferimos
que esse conflito dizia respeito à dúvida em deixar a família de origem e seguir a própria vida.
O conflito suscitado pelo estímulo da prancha 2 pode ser relacionado ao momento que
Sofia estava vivenciando, pois ela voltara a viver na casa de sua mãe, buscando um refúgio, já
que o casal não podia se "manter" em seu próprio lar. Encontrava-se vivendo naquele
momento a dúvida se iria novamente morar em uma casa com o marido e filhos ou
permanecer por mais tempo com sua mãe.
No início do casamento, ao se depararem com a angústia de não ser, de não possuírem
uma identidade própria (Kaës, 1997), organizaram a vida de casados pautada em um esquema
de muita liberdade, muito semelhante ao casamento dos pais de Adriano. Sofia idealizava que
vivendo um relacionamento em que imperasse a liberdade, não viveria a castração, algo muito
presente na educação que recebera de seu pai. Adriano, por sua vez, idealizava o casamento
de seus pais e se identificava com seu pai que se sentia livre, mesmo estando casado, podendo
dar vazão a seus desejos. Na fantasia de Adriano, no relacionamento de seus pais não havia
conflitos. Esses momentos iniciais da vida do casal acabaram sendo importantes na
constituição do vínculo conjugal. (Eiguer, 2006)
Granjon (1990) adverte que o sujeito singular tem a missão de atualizar aquilo que lhe
foi transmitido. Pode-se pensar que os dois trazem como herança traumática algo em relação a
como viver a liberdade, sem se sentirem desamparados. O casal estabelece entre si e os filhos
um "pacto de confiança", como eles nomeiam, no sentido de garantir a verdade entre todos.
Inferimos que, junto a esse pacto, está subentendida a formação de um laço familiar, em que
houvesse proximidade e intimidade entre os membros, em que os filhos pudessem gozar de
liberdade, mas pudessem transmitir tranqüilidade ao casal parental. Entretanto, pensamos que
o desejo inconsciente de elaborarem esse trauma do desamparo não foi possível de ser
92
digerido nesses anos de casamento.
Na prancha 7 MF, Adriano apresentou uma figura feminina mais velha que não
percebia o que se passava com a mais jovem. Durante a entrevista, ficou evidente que entre o
casal o mesmo acontecia. Sofia não percebia o que se passava com Adriano em relação à
bebida e em relação aos momentos em que o se marido entristecia; considerava a tristeza dele
como algo pelo qual o marido deveria passar. A liberdade dada a Adriano deixava-o sozinho
frente às próprias angústias, fazendo-o reviver o desamparo vivido em sua família de origem.
Notamos que Adriano tinha expectativas contraditórias em relação à Sofia, queria que ela lhe
desse liberdade, mas desejava também ser “paparicado” por ela.
Na prancha 7RH, apareceu o confronto entre as gerações: acatar ou não o que é
colocado pelo homem mais velho foi o tema proposto por Adriano. Identificou-se com o
homem mais jovem e não conseguiu elaborar uma única solução para esse conflito. Na mesma
prancha, Sofia já falou da angústia do pai em não saber se conseguiria ajudar o filho. Apesar
de o filho acatar o conselho do pai, Sofia apresentou uma figura paterna insegura, no sentido
de se sentir limitada no aspecto de dar continência e ajudar as angústias do filho. O conflito
entre as gerações estaria vinculado à potência da figura paterna e não decorrente dos valores
que o pai transmitiu ao filho. Essa ambivalência de sentimentos também era vivida na relação
que o casal estabelecia com os filhos: conversavam, mas se sentiam impotentes quanto às
decisões tomadas por eles.
A figura masculina e a figura paterna foram desqualificadas tanto nas histórias das
duas famílias de origem, como nas pranchas aplicadas. Adriano, na prancha 2, apresentou um
homem passivo frente à própria condição. Adriano lembrou-se, durante a entrevista, do
segredo familiar em relação ao tio materno, que ninguém podia tocar no livro de poesias
que ele escrevera, pois poderia, no imaginário familiar, ser contaminado pela tuberculose.
Muito mais do que um transmissor de uma doença física, o tio era partidário da boemia, ele
93
levava a vida seguindo o princípio do prazer (Freud, 1920). A família, ao proibir o acesso a
suas poesias, imaginava que bloquearia a transmissão de um traço familiar, a boemia, que em
última instância era o que mais se temia. Como Rosa (2001) aponta que, independentemente
do desejo dos pais, a transmissão ocorre, esse traço transmitido, que é da ordem do não-dito,
do não elaborado, enfim, do transgeracional, está vinculado à potência masculina, à dor de ser
homem dentro dessa família.
Rosa (2001) destaca que, na chamada contemporaneidade, houve um declínio do
significante pai e novos saberes vêm substituí-lo. Entretanto, não foram criados substitutos
eficazes na cultura, que possibilitassem o processo de constituição subjetiva dos filhos.
Podemos pensar que tanto dentro das famílias de origem de Sofia, bem como na de Adriano, o
significante pai/homem está em declínio. Para se inserir na cadeia geracional, Adriano
assume, via contrato narcísico (Castoriadis-Aulagnier, 1975), o lugar de homem passivo e
impotente, frente à própria condição e a educação dos filhos.
Kaës (1996), ao falar sobre a incidência do grupo no desenvolvimento do aparato
psíquico do indivíduo, abre espaço para que pensemos nos diversos grupos em que um
indivíduo está inserido. Podemos pensar que a constituição da subjetividade dos membros de
uma família se dá tanto pelo vínculo familiar como pelo vínculo estabelecido nas demais
instituições. Na prancha 19, levantamos a hipótese que esta poderia trazer dados sobre as
relações familiares. Adriano teve muita dificuldade em elaborar uma associação devido às
angústias suscitadas pela prancha, uma vez que entrou em contato com a própria fragilidade,
bem como, com suas fantasias de aniquilamento. Entendemos que o fato de ele ter associado
um iglu, uma moradia “fria”, sem sustentação, sendo arrastada pelo meio-ambiente nos
possibilitou pensar sobre o nível intrapsíquico e intersubjetivo. Pensamos que a fragilidade
apontada não pertencia somente a ele, enquanto homem, mas também à sua família nuclear. O
grupo familiar, sem uma sustentação sólida, é arrastado. O par conjugal, que vinha
94
vivenciando dificuldades em estabelecer uma conjugalidade (Gomes & Paiva, 2003), não
conseguia conter as angústias presentes no grupo familiar.
Sofia identificou, em um primeiro momento, um iglu, como Adriano o fez na prancha
19. Em seguida, negou o que havia dito, afirmando tratar-se de uma casa. Desse modo,
diferentemente de Adriano, apresentou fantasias em relação a um ambiente familiar mais
acolhedor, frente às fantasias de ataques agressivos oriundos do meio externo. Projetou no
futuro uma situação melhor, demonstrando esperança no vínculo familiar.
A figura feminina foi vista por Adriano como sendo ativa frente à passividade
masculina na prancha 2. Entretanto, a figura materna foi vista como pouco acolhedora, como
foi apontado anteriormente. Já na prancha 4, Adriano projetou na figura feminina a missão de
conter a impulsividade da figura masculina. No entanto, devido à força masculina, a mulher
não conseguiu contê-lo.
No protocolo de Sofia, a questão do feminino apareceu sob vários ângulos. Na prancha
7 MF, ao entrar em contato com o estímulo, associou a relação que teve com sua avó materna.
A figura da avó, como representante da maternidade, foi caracterizada como acolhedora e
esses momentos vividos entre as duas foram lembrados como sendo muito gratificantes.
Podemos dizer que esse é um traço da transmissão psíquica intergeracional da maternidade.
na prancha 2, como já foi dito, a figura jovem feminina vivia a angústia de não saber se
seguiria os próprios caminhos ou não. Algo similar apareceu na prancha 16, quando Sofia
falou da "trilha" cansativa que vinha seguindo e a vontade que tinha de descansar. O cansaço
em relação à vida e à esperança no futuro eram elementos também presentes nessa prancha.
Na prancha 4, os dois identificaram um conflito conjugal, devido a uma situação de
triangulação. A figura feminina foi vista por ambos como a que tenta segurar o homem, no
sentido de que ele permaneça vinculado a ela. Os dois chamaram a atenção para o insucesso
da mulher, apesar de essa mulher ser considerada por Sofia como sendo muito bonita. A
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figura masculina foi vista como impulsiva frente aos desejos sexuais e Sofia projetou na
figura feminina o inconformismo que sentiu frente às traições feitas pelos homens. É
importante retomar que, durante a entrevista, Sofia foi categórica ao falar das traições de seu
pai e de seu inconformismo em relação ao fato de ele pregar um discurso moralista e agir de
outra maneira.
Essa mesma prancha trouxe questões importantes em relação ao casamento de Sofia e
Adriano. Os dois têm visões muito similares de homem e mulher e os conflitos vividos pelo
casal não dizem respeito a essa área, já que as fantasias inconscientes quanto ao
feminino/masculino não são divergentes.
A triangulação amorosa apontada nessa prancha foi um traço presente nas duas
famílias de origem. Isso nos leva a pensar em uma situação edípica pouco elaborada que
impede uma aceitação dos limites, reforçando a fantasia onipotente. (Blini de Lima, 2002).
A fantasia de onipotência, em relação à castração, impediu-os de entrar em contato
com o confronto entre o princípio do prazer e o princípio da realidade (Freud, 1920). A
sexualidade passou a ser um elemento difícil de ser vivenciado dentro da relação matrimonial.
Adriano, durante a entrevista, ao "brincar" que terceirizou a sexualidade no casamento,
denunciou a dificuldade vivida pelo casal nessa área, pois estava vinculada ao elemento
transgeracional dessa situação edípica herdada, bem como ao envelhecimento e ao momento
mais depressivo em que se encontrava.
Durante a entrevista, Adriano mostrou-se muito “brincalhão”, sempre fazendo
pequenas piadas, mas num tom sarcástico. Em primeiro lugar, pensamos que ele se identificou
com a figura de seu pai, que, por conta das brincadeiras, ocupava um lugar amistoso nos
grupos sociais que freqüentava. Pensando também nessas piadas que ele fazia em relação às
situações cotidianas, Freud (1905b) aponta que uma das vias de acesso aos conteúdos
inconscientes são os chistes. Adriano utilizava-se de “brincadeiras” para falar de conteúdos
96
inconscientes que não podiam ser ainda pensados e elaborados. Algo era posto via brincadeira
e em seguida negado. Um traço forte que estava presente em Adriano era a contradição. Um
exemplo marcante foi a história que ele contou que ia com os amigos ao puteiro fazer
churrasco, mas não tinha relações sexuais com as mulheres. Há uma dupla mensagem, aquilo
que poderia ser entendido de um jeito é para ser percebido de outro. Sofia, durante a
entrevista, apontou o quanto esse jeito dele a deixava insegura, pois nunca sabia avaliar ao
certo se podia confiar ou não no que ele dizia.
As relações extra-conjugais sempre foram mantidas como segredos nas duas famílias.
Na família de Sofia, a história do filho de sua avó paterna passou a ser um segredo, algo da
ordem do não dito. Durante a entrevista, Sofia não conseguiu deixar claras as fantasias que
tinha em relação ao que ocorreu, mas deixou um espaço para que a pesquisadora pudesse, por
meio da relação contratransferencial, fantasiar que a sexualidade da avó paterna foi "utilizada"
como um meio de salvar a família que estava financeiramente falida. Com base nessa
hipótese, a mulher é a que vem "salvar" e amparar a família, já que o homem não conseguiu
fazê-lo. Na história da família de Sofia e em seu casamento cabia ao homem o papel de
provedor da família, seguindo uma visão tradicional de relacionamento conjugal. Entretanto,
Sofia, sua mãe e sua avó paterna precisaram ajudar os homens da família, pois, por vários
motivos, eles não deram conta de assumir esse lugar de provedor.
Nas duas associações da prancha 4, o conflito apareceu como uma ruptura ao estar
junto e não como uma possibilidade de entrar em contato com a dificuldade no âmbito da
triangulação amorosa. Inconscientemente, os dois tinham fantasias que o conflito levaria à
ruptura e não a um crescimento conjugal. No desfecho, elaborado por Sofia em sua
associação, ela disse que haveria uma reconciliação do casal, mas as dificuldades, entre eles,
permaneceriam. O casal referiu-se à impossibilidade que eles têm em elaborar o traço
transgeracional vinculado às limitações que uma relação conjugal impõe, em termos de
97
fidelidade: estar com um parceiro implica dizer não aos outros possíveis parceiros. Segundo
Eiguer (2006), os conteúdos transmitidos pelas gerações passadas e que não puderam ser
contidos e elaborados trazem transtornos à vida conjugal.
Há uma repetição familiar, nas várias gerações, da situação edípica não bem elaborada
e da fantasia onipotente, nas quais aparece a dificuldade em lidar com os limites que a vida
conjugal impõe. O pacto denegativo estabelecido garante o laço intersubjetivo e organiza a
vivência conjugal. (Kaës, 2000). Adriano, nessa aliança inconsciente, nega toda a
possibilidade de se firmar enquanto um homem potente. Pensamos que ele vivia a
ambivalência entre o homem que alegra a todos com suas piadas, mas que se entristecia frente
à condição de não ter se firmado profissionalmente. Já Sofia negava a necessidade que tinha
de ser cuidada e amparada por um homem, propunha-se a viver um modelo de casamento
onde pudesse estar com maior liberdade. Entretanto, esses aspectos negados acabavam
gerando altíssimo sofrimento a ambos.
Eiguer (2006) diz que a transmissão psíquica não é o principal traço que define a
constituição do vínculo conjugal. Entretanto, ele a identifica como um elemento importante, já
que os modelos de casamento dos ancestrais acabam sendo também um dos elementos de
referência para a formação do vínculo conjugal.
Sofia, durante a entrevista, descreveu inúmeros casamentos em sua família que a
intrigavam, pois não conseguia ver satisfação conjugal em muitos deles. Devido à dificuldade
dela em se identificar com os casamentos de sua família e dado o modelo idealizado do
casamento dos pais de Adriano, o casal adotou como referência este último. A liberdade para
ambos foi uma das principais características do início da vida conjugal.
O nascimento dos filhos rompeu com a fantasia que viviam de um casamento
idealizado. Sofia foi obrigada a estruturar a casa de um outro jeito para atender às
necessidades das crianças. Sentiu-se prisioneira e sozinha cuidando dos filhos, quando
98
percebia que Adriano continuava levando a vida como acontecia antes de os filhos chegarem.
Os conflitos passaram a existir entre o casal e Sofia assumiu o lugar de mãe, frente aos
desejos do marido de uma maior liberdade e de uma mulher libertária. As dificuldades
passaram a existir entre os dois e um traço marcante dos casamentos difíceis da família de
Sofia passou a se manifestar entre eles: Sofia assumiu o lugar de durona ou locomotiva, como
ela própria se denominou, e ele, um lugar mais brincalhão e afetivo, "uma poltrona gostosa e
confortável, do papai."
Na prancha 16, Adriano, ao descrever o processo em que o cavalo é domado, retratou
o que se passava entre os dois. No início do casamento, ele imaginava que a estaria "laçando e
domando", mas, nos anos de vivência conjugal, percebemos que Sofia tentou transformar o
"menino" em homem, ora dando-lhe mais liberdade para traçar os próprios caminhos
profissionais, ora exigindo uma atitude mais firme e madura, como se quisesse que o marido
assumisse o lugar de homem provedor dentro da família. O desejo de que Adriano pudesse
prover a família estava calcado em uma visão tradicional de família. Adriano fez uma
colocação que nos permitiu pensar: Quem estaria sendo domado na relação conjugal? Ele
disse: Liberdade, liberdade daquele cavalo e cavaleiro num campo, tudo descampado, não
vi cerca, não vi nada, eu vi um cavalo conduzindo esse cara campo afora. Sofia tentava
domá-lo, mas as características de Adriano, a força da figura masculina como ele mesmo
colocou na prancha 4, impediram que ela o contivesse. O vínculo conjugal estabelecia-se
nesse parâmetro, um tentando conduzir o outro.
O vínculo conjugal foi colocado por Sofia sob outro prisma na mesma prancha. Na
associação, falou da "caminhada" difícil e estafante que vinha tendo e o desejo que ela tinha
de aproveitar o amparo encontrado na casa de sua mãe. Projetou para o futuro a esperança que
ela tinha de que pudesse viver no casamento algo diferente do que vinha vivendo até aquele
momento.
99
Com base na teoria de Kaës (2003), o laço conjugal foi apoiado naquilo com que o
casal não podia se deparar e com que ainda não conseguia lidar, já que cada cônjuge precisou
negar e buscar apoio inconsciente no parceiro. O aspecto denegado e recalcado pelo aparelho
psíquico referia-se à modalidade de uma negatividade relativa, em que a dificuldade em lidar
com a castração, oriunda de uma situação edípica de difícil elaboração.
Retomando o conceito dessa modalidade de ligação, a negatividade relativa é
decorrente daquilo que ficou em sofrimento na constituição de continentes e conteúdos
psíquicos. Ela apresenta um sentido de algo que não foi suficiente, mas que poderia ter sido
de outro modo e é passado de uma geração para outra na ordem do sofrimento.
Levantamos a hipótese de que Adriano, dada a dificuldade na elaboração do
Complexo de Édipo, não pôde entrar em contato com a fantasia da castração e aceitar a
impossibilidade de viver as fantasias onipotentes, o que poderia levar a uma outra
subjetivação masculina. Inferimos também que Sofia apresentava dificuldades em lidar com o
feminino, que as mulheres de sua família vivenciaram relações difíceis com os parceiros.
Tentava se impor dentro do casamento, negando as próprias dificuldades.
Nesse sentido, a vida sexual do casal, que poderia favorecer uma maior intimidade e
cumplicidade para a vida conjugal, trazia para ambos fortes sentimentos de frustração, uma
vez que não se sentiam acolhidos em tais vivências. A dificuldade de elaboração do
Complexo de Édipo e o fantasma da triangulação amorosa impediam que o casal estruturasse
uma conjugalidade propriamente dita.
Na busca de um relacionamento que pudesse conter cada um com suas questões, o
casal montou uma armadilha de que não se dava conta. Adriano sentia-se não cuidado dentro
da relação conjugal e estava buscando na bebida amparo para sua dor. Sofia encontrou, na
casa de sua mãe, uma sombra, como ela apontou na asssociação da prancha 16, para a
caminhada árdua que tem vivido. Sentia-se insegura para dar continuidade à vida familiar
100
separada da mãe. A flexibilidade e a leveza do marido que a encantavam no início do
casamento trouxeram-lhe angústia e insegurança com o passar do tempo. Assumiu o lugar de
"locomotiva" da casa, como as demais mulheres de sua família já haviam feito anteriormente.
Os sintomas vividos pelos filhos podem ser entendidos como uma manifestação das
heranças transgeracionais recebidas, de uma transmissão psíquica defeituosa, como Correa
(2003) muito bem destaca. Há criptas que não puderam ser abertas nesses anos de casamento
e se perpetuam na vida dos filhos.
Com a análise desse casal foi possível perceber a dificuldade que eles têm em
constituir o vínculo conjugal com uma identidade própria, apropriando-se das heranças
recebidas. O Negativo de fato assumiu um lugar de destaque na constituição do vínculo
conjugal desse casal. Com base na herança transgeracional vinculada à situação edípica de
difícil elaboração é que se fundaram a aliança inconsciente e a manutenção do casamento.
A separação do casal poderia ter sido um momento de elaboração da dinâmica
conjugal, do desamparo vivido dentro do próprio casamento. Entretanto, não conseguem fazê-
lo, uma vez que esse trauma não tem espaço para ser elaborado e pensado no grupo familiar.
Inferimos que eles conseguiram ficar separados apenas por uma semana, pois o medo de
vivenciarem um desamparo ainda maior, um estando longe do outro os forçou a uma
reconciliação.
101
5 O CASAL II
5.1 A história de Márcia e Valter
Caracterização do casal
Márcia
31
e Valter casaram-sevinte e cinco anos, no civil e na Igreja Católica e na
época os dois tinham vinte e cinco anos. O casal tem duas filhas, a mais velha com vinte e um
anos e a outra, com dezessete anos. Valter formou-se engenheiro e trabalhava em uma
multinacional. Márcia estudou pedagogia, especializou-se em ensino religioso e não estava
trabalhando na ocasião da entrevista.
Caracterização e história da família matrilinear de Valter
A família materna de Valter é de origem espanhola. Para caracterizá-los, Valter
compara-os com sua família paterna, já que uma é o oposto da outra. Segundo ele,
perfeccionistas, e tinham um brasão que caracterizava a origem nobre da família. Apesar da
origem nobre, seu bisavô trabalhava como agricultor e veio para o Brasil por causa da
Primeira Guerra Mundial. Na época, estavam recrutando homens para lutarem e a família
resolveu fugir. Vieram seus bisavós com os filhos. A família foi morar no interior de São
Paulo e foram ser fazendeiros.
A comunidade de espanhóis, aqui no Brasil, tinha o hábito de juntar dinheiro e trazer
famílias da Espanha que estivessem em situação financeira difícil. A família de sua avó
materna veio nessa condição, fugindo da miséria que vivenciava na Espanha. Era muito
comum, na época, que os casamentos acontecessem dentro da comunidade de imigrantes. A
família de sua avó foi trabalhar em uma fazenda e, como o avô de Valter era proprietário
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Os nomes são fictícios e alguns dados foram alterados para que o casal não pudesse ser identificado, porém
sem comprometer o entendimento da dinâmica conjugal.
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rural, os dois se conheceram. Valter contou que a avó contava que quando seu avô chegava
para namorar, ela se escondia embaixo da cama, pois tinha muita vergonha. Valter brincou
que não sabia como a avó teve quatro filhos, pois era muito “pudica (sic) .
Sua mãe tem três irmãos, todos eles muito cultos. Seu tio Alfredo, o mais velho,
estudou engenharia no Rio de Janeiro e fez pós-graduação no exterior, mas tinha dificuldade
em se relacionar com os sobrinhos. Valter lembra-se de que, em uma noite de Natal, ele disse
que Herodes tinha razão em querer matar as crianças. Já seu tio Jorge era um doce de pessoa,
mas vivia afastado da família. O tio Mário morava sozinho e não deixava que nenhum
familiar fosse a sua casa, por isso a família o encontrou morto somente três dias após o fato
ter ocorrido. Esse tio havia sido renegado pelo avô de Valter quando era jovem, pois
apaixonou-se por uma mulher turca e isso, para um espanhol, é uma ofensa imperdoável”.
Só depois da morte de seu avô, esse tio passou a freqüentar a casa em que moravam, mas,
mesmo assim, permaneceu isolado em relação ao resto da família.
Valter explicou que nas famílias espanholas, cabia aos filhos homens tocarem o
negócio do pai e às filhas mulheres, cuidar dos pais na velhice. Era comum que as filhas
morassem depois de casadas com seus pais. Seus tios, que resolveram morar em São Paulo,
receberam patrimônios de seu avô quando se casaram, mas perderam todo o dinheiro em
negócios mal feitos. O único tio que não recebeu ajuda financeira foi tio Mário, por ter
rompido com o avô de Valter.
Seu avô materno centralizava a família, todas as festas eram em sua casa e, segundo
Valter, “a família vivia um esquema patriarcal.” Entretanto, ele reconhece que era sua avó
quem mandava mesmo, apesar de seu avô falar mais alto. Sua avó dizia que todos deviam
fazer tudo segundo a vontade de seu avô. Com o tempo, Valter foi percebendo que os desejos
a serem seguidos eram os de sua avó que usava o nome de seu avô para conseguir o que
almejava.
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Caracterização e história da família patrilinear de Valter
A família paterna de Valter é de origem italiana. Seu avô paterno era anarquista e
trabalhava como operário. Saiu fugitivo da Itália e foi para a França. Lá teve romance com
uma mulher, da qual teve um filho. Como a vida não estava dando certo na Europa, resolveu
vir para o Brasil.
A família de sua avó paterna já estava alguns anos no Brasil, pois seus bisavós
tinham vindo fugindo da miséria que viviam na Itália. Vieram para São Paulo em busca de
trabalho. O avô de Valter conheceu a avó quando ela estava trabalhando como lavadeira.
Então, “passa uma lábia nela e os dois passaram a morar juntos, como marido e mulher.
Valter contou que tentou encontrar a certidão de casamento de seus avós e de batismo, mas
não conseguiu. Nas pesquisas que tem feito sobre sua família italiana, descobriu que o lado de
sua avó paterna seguia os “padrões normais, padrões morais”. Entretanto, salientou que, no
início do século passado, era muito difícil encontrar alguém sem religiosidade.
Seus avós resolvem morar no interior de São Paulo e seu avô trabalhava como pintor
de quadro. Tiveram sete filhos e toda vez que a avó de Valter engravidava, seu avô ia para a
França até nascer a criança e ficava por lá com outras mulheres. Seu pai era o quinto filho
homem. A única mulher dos sete filhos era sua tia caçula.
Relatou que seus tios sempre tiveram problema em aceitar a lei. Um primo seu quando
era criança roubava e entregava o roubo para a mãe que o estimulava a fazê-lo. Por causa
disso, que sua família acabou se afastando da família paterna, tendo mais contato com a
materna. A característica marcante “dessa família seria que são inteligentes, mas sem
sabedoria nenhuma, tudo errado, tudo torto pro lado deles.”
Caracterização da família de origem de Valter
O pai de Valter era um homem muito bonito. Sua mãe viu-o passando pela rua na
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cidadezinha em que os dois moravam e ficou encantada por ela. Sua mãe conta que foi uma
paixão fulminante. Sua mãe estava noiva pela segunda vez, mas desmanchou o noivado para
se casar com seu pai. Seu avô materno não permitia casamento “inter-racial”, italiano com
espanhol, mas acabou permitindo que os dois se casassem, já que era uma paixão intensa. Na
época, seu pai trabalhava como pintor em obra. Como seu avô materno construía várias casas
com o intuito de dar uma para cada filho, Valter imagina que seu pai deve ter trabalhado em
uma das obras de seu avô e acabou conhecendo sua mãe.
Segundo Valter, seu pai era muito inteligente, galante e sedutor. Ele conseguia
conquistar as pessoas pela fala e, possivelmente, seu avô se apaixonou por ele, como todos
que o conheciam. Disse que seu pai era como um pavão: “a roupagem bonita e os pés
horrorosos.” (sic). Quando seus pais se casaram foram morar com seus avós maternos,
seguindo a tradição espanhola.
Seus pais tiveram seis filhos, quatro homens e duas mulheres e a diferença de idade
entre cada um deles é de aproximadamente dois anos. Valter é o terceiro filho, precedido por
sua irmã mais velha e por um irmão. Sua outra irmã é a quinta filha. Sua mãe teve duas
gravidezes após seu irmão caçula, mas abortou, pois a família já vivia uma situação financeira
difícil.
Quando Valter tinha sete anos, perguntou a seu pai qual era sua profissão e obteve
como resposta que a ocupação dele era de genro, ele vivia do que seu avô materno ganhava.
Na época, a família tinha uma condição financeira muito boa. Quando seu avô materno
faleceu, nenhum tio de Valter soube cuidar dos negócios da família, muito menos seu pai.
Como seu pai jogava e foi perdendo os bens, a família passou a ter dificuldades financeiras.
Depois de ter perdido todo o dinheiro, o pai de Valter envolveu-se com a extrema
esquerda e resolveu participar da luta armada contra a ditadura no final dos anos sessenta. Foi
endividando-se cada vez mais e se envolveu com “tudo o que não prestava. Um dia, a
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polícia cercou a casa e seu pai, em um momento de desespero, tentou matar a família toda,
mas, como não conseguiu, acabou cometendo suicídio. A família já esperava que algo trágico
pudesse acontecer devido ao comportamento de seu pai. Contou que a morte do pai foi um
alívio para ele, já que não suportava ver tudo o que o pai fazia.
Como a família morava no interior do Estado de São Paulo, em uma cidade bem
pequena, todos sofreram as conseqüências do ato de seu pai. Valter relatou que viveu nessa
cidade a sua adolescência toda e era proibido de ter amizades com as pessoas. As famílias não
permitiam que falassem com Valter e seus irmãos, já que ficaram conhecidos como filhos de
um bandido. Lembrou-se que a família passou a viver diferente das outras famílias, ficavam
muito em casa e por não terem dinheiro, todos ajudavam no serviço da casa.
Valter não guardou muitas lembranças de seu pai, relatou que seus irmãos mais velhos
ainda o conheceram melhor. Seu pai morreu quando tinha treze anos. Depois desse fato, todos
passaram a ajudar. A mãe e a irmã mais velha foram trabalhar. Valter e seus irmãos tinham
que ajudar no serviço da casa.
Durante a entrevista, Valter admitiu que tem dificuldade, até hoje, no relacionamento
entre homem e mulher. “Acho que a gente vai te chocar com o nosso padrão de família, eu
acho que eu nunca recebi, nem no Natal, um abraço da minha mãe, minha mãe nunca me deu
um abraço, nunca fez um carinho.” Disse que não teve laços de afetividade com ela,
sentindo-se responsável por ela e deve ajudá-la, senão pelo preceito religioso, ao menos pelo
preceito moral. Salientou que tem muito mais proximidade com a sogra do que com a mãe.
Quanto ao casamento de seus pais, Valter conta que sua mãe chegou apanhar de seu
pai. Nunca o viu bater, mas quando ela estava grávida de seu irmão mais velho, seu pai
chegou a agredi-la. Ela quase perdeu o bebê e teve que ser transferida para um hospital na
capital. Seu pai era tão ciumento que chegou a pintar os vidros canelados da casa com tinta a
óleo para que sua mãe não olhasse a rua.
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Recordou-se que viu uma vez seu pai e sua mãe sendo carinhosos um com o outro e
ficou admirado com o fato, pois era algo difícil de ver. Acha que seu pai nunca traiu sua mãe.
No início do casamento, sua mãe também era ciumenta, mas, com o passar dos anos, devido à
agressividade de seu pai, Valter imaginava que ela foi deixando de ter ciúmes.
Quando seus tios maternos, que moravam em São Paulo, iam visitá-los, deixavam
claro que achavam seus pais uns aproveitadores, pois moravam à custa de seu avô.
Relatou que seus tios tinham muito ciúmes da relação que seu pai tinha com o sogro,
pois seu avô, quando comprava um carro, dava também um para seu pai. Seu pai era o homem
de confiança de seu avô, acompanhava seu avô em tudo e guiava para ele. Foi surgindo uma
rivalidade entre seus tios maternos e seu pai, por conta do ciúme. Eles não chegaram a brigar,
mas seus primos, quando iam visitá-los, comentavam e demonstravam sentir inveja. Relatou
que ele e os irmãos eram muito inteligentes e aprendiam com facilidade. Seu avô era culto e
valorizava o fato de os netos irem bem na escola. Como seus primos tinham dificuldades na
escola, aos olhos de Valter, esse fato aumentava ainda mais a inveja que os primos sentiam.
Valter falou que nenhum de seus primos é muito normal, comentou que todos têm
problemas, alguns tomam remédios psiquiátricos. Quanto a seu núcleo familiar, reconheceu
que também não é normal, mas em sua casa não tiveram ainda que buscar ajuda psiquiátrica,
ele tem pensado em “apelar para psicólogo para ajudá-los. Justificou que o fato de ele e os
irmãos terem tido que se adaptar rápido, devido à morte do pai, talvez isso os tenha ajudado.
Relatou que a cunhada de sua mãe teve um distúrbio psiquiátrico e, por um longo
período, seus primos iam passar o dia na casa em que Valter morava e só quando escurecia é
que eles voltavam para casa. Ao ser indagado sobre o distúrbio que sua tia teve, não soube
relatar, pois era pequeno na época e seus parentes não comentavam.
Na época em que seu pai morreu, a família já estava falida financeiramente. Valter
passou a ocupar o lugar do filho que ia atrás de trabalho para ajudar a mãe e os irmãos. Seu
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irmão mais velho ficava defendendo seu pai e reclamando da vida. Seus tios maternos não os
ajudaram e, quando apareciam, reclamavam que sua mãe não havia pago as dívidas com os
colonos da antiga fazenda que a família possuía.
Para sair dessa situação de miséria e opressão, Valter resolveu vir para São Paulo para
ser seminarista. Segundo ele, assim poderia “matar dois coelhos com uma cajadada só.”
(sic). Arrumaria um modo de sobreviver, sem passar mais fome, e poderia voltar para sua
cidade natal e ser novamente respeitado e reconhecido por todos. Ele passou nos testes do
seminário e percebeu, depois de um mês, que não tinha vocação. Tinha o desejo de ser o
Padre, mas percebeu que não iria conseguir e seria apenas mais um padre, entre outros.
Como seus dois irmãos mais velhos já moravam em São Paulo, Valter resolveu ficar
na cidade para terminar o colegial e trabalhar. Começou a trabalhar em uma empresa
multinacional e seu chefe o incentivou a continuar os estudos e acabou cursando Engenharia.
Valter comentou que três de seus irmãos seguiram o padrão de seu avô materno, são
muito preocupados com a honestidade e os outros três procuram sempre aplicar golpes nas
pessoas. Valter e seu irmão mais velho não se falam até hoje, mal se cumprimentam quando
se encontram, pois seu irmão achava que seu pai estava corretíssimo. Disse que esse irmão é,
hoje em dia, um galanteador como seu pai foi.
Os segredos da família de Valter
A mãe de Valter trata como um tabu as histórias sobre seu pai, inclusive sobre ele ter
sido agressivo com ela. Quem as conta, e raramente, é sua tia, irmã de seu pai.
Valter acha que sua família não tinha segredos, o único a que se refere são os abortos
cometidos por sua mãe, mas, apesar de sua mãe não comentar, Valter e os irmãos sempre
souberam.
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Caracterização e história da família matrilinear de Márcia
Márcia teve muito pouco convívio com sua mãe e seus familiares. Não soube contar
sobre a história de seus avós e bisavós, nem se foram casados.
Sua mãe tinha um irmão e uma irmã. Sua tia morreu de forma trágica, aos dezessete
anos. Sua mãe falava muito dessa irmã.
Caracterização e história da família patrilinear de Márcia
O avô de Márcia era português e veio para o Brasil com quatorze anos. As duas irmãs
dele já moravam no país e o trouxeram. Seu avô conheceu sua avó, casaram-se e tiveram dois
filhos, a tia de Márcia e o pai dela. Segundo Márcia, sua avó era muito “prá frente (sic),
engravidou do terceiro filho e como ela não queria, abortou.
A família de origem de sua avó era muito rica e tradicional, da região de São Carlos,
interior de São Paulo. Seus bisavôs tiveram quatorze filhos e sua avó, a terceira filha, era a
mais paparicada.
Seu avô paterno era dono de um hotel cinco estrelas e Márcia se lembra de que ele era
um português muito severo.
O pai de Márcia era um bon vivant. Os avôs paternos de Márcia eram muito ricos e seu
pai não fazia nada. Ele ficou quatro anos morando no Rio de Janeiro para estudar medicina,
mas não chegou nem a passar no vestibular.
Tanto seu pai como sua tia, nunca souberam cuidar do dinheiro que receberam. Seu
pai morreu sem nenhum bem material e sua tia, que ainda é viva, vive modestamente em
relação ao padrão de vida que ela teve.
Caracterização da família de origem de Márcia
A mãe de Márcia vivia no Paraguai de comércio ilegal. Veio para o Brasil fugindo e
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deixou os dois filhos com a avó de Márcia, pois estava com problemas com o governo
paraguaio. Na época, ela era separada do marido. Ao chegar ao Brasil, hospedou-se no hotel
do avô paterno de Márcia e sua mãe conheceu seu pai. A mãe de Márcia engravidou e como o
seu avô era muito severo e seu pai tinha medo dele, a família resolveu esconder do avô a
gravidez. Márcia foi apresentada, no início, para seu avô como filha de um parente distante.
Os pais de Márcia não chegaram a se casar e sua mãe permaneceu no país apenas dez
anos. Como sua mãe não mandava notícias para os parentes no Paraguai, sua avó materna
resolveu, então, pôr um anúncio no jornal. Após esse fato, a mãe de Márcia decidiu voltar
para o Paraguai por causa da mãe e dos outros filhos. O pai de Márcia não queria que sua mãe
a levasse embora, e, para poder ficar com a menina, revelou para seu avô que ele de fato era o
pai da criança. Então, quando Márcia tinha três anos, passou a viver com seus avós paternos.
Lembrou-se que seu avô sempre foi muito carinhoso com ela. Com o passar do tempo,
seu avô teve vários derrames e, como sua avó não sabia nem conseguia cuidar dele, sua tia
resolveu cuidar dos pais e dedicou a vida toda a cuidar deles. Então, seus avós, seu pai e ela se
mudaram para a casa de sua tia, mas, como o apartamento era muito pequeno, eles iriam
morar assim apenas alguns meses. Na época, seu avô já não era mais dono do hotel. Seu tio
morava no exterior por causa de sua profissão e vinha visitá-los umas duas vezes por ano.
Quando seu tio vinha, ele e sua tia dormiam na sala; a avó, o avô, a prima e ela dormiam em
um quarto.
Seu avô teve esclerose e, toda vez que seu tio chegava de viagem, ele dizia que era um
outro homem que a filha estava recebendo. Seu avô falava também que o pai de Márcia estava
bebendo muito, mas a família não lhe dava ouvidos. A família não dava ouvidos para o que
ele falava, pois estava doente. Todos sabiam que seu tio tinha várias mulheres na Europa, mas
ninguém comentava sobre o assunto abertamente.
Márcia relatou que seu pai perdeu todo o dinheiro que recebeu de herança, tornou-se
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um alcoólatra e morreu de cirrose. A família de Márcia nunca admitiu que seu pai bebia, sua
tia dizia que ele tomava um drinque só socialmente. Até hoje, a família diz que ele morreu de
enfarte. Márcia soube contar esses fatos, pois viu muitas vezes seu pai bêbado, inclusive
lembra-se de sentir vergonha do pai em algumas situações sociais.
No dia em que fez quinze anos, seu pai a levou para conhecer todas as boates de São
Paulo, desde a mais simples, para ela conhecer a prostituição, até as boates mais chiques. Foi
oferecendo bebida, para que não tivesse o problema que ele tinha com bebida. Márcia
relatou que seu pai não falou com essas palavras, mas entendeu que ele queria dizer isso.
Comenta que, por causa disso tudo, ela não bebe nada.
Seu pai chegou a se casar com uma alemã, mas os dois brigavam muito, por causa do
consumo de bebida dele. Sempre seu pai viveu à custa das mulheres com quem morava e,
quando elas reclamavam e o relacionamento começava a não dar mais certo, ele voltava a
morar à custa da avó e da tia de Márcia.
Valter comentou que as mulheres da família de Márcia é que mandavam. Todas as
coisas que seu pai fazia, sua avó e sua tia tentavam encobrir.
Márcia lembrou-se muito pouco de sua mãe, ela vinha para o Brasil a cada cinco/seis
anos. No período em que sua mãe ficava na cidade, ela ia dormir com a mãe no hotel em que
ela se hospedava. Recordou-se que sua mãe saía todas as noites e quando chegava, rezava
com ela. Conheceu sua irmã paraguaia, quando esta tinha dezessete anos e Márcia, na época,
estava com dez anos. Sua mãe trouxe a irmã para o Brasil, pois a irmã queria casar com um
homem no Paraguai e sua mãe queria impedi-la.
Conheceu seu irmão mais velho, quando foi para o Paraguai, com dezoito anos.
Quando se formou no colegial, pediu de presente uma viagem para conhecer a família de sua
mãe. Sua avó nunca a deixou ir ao Paraguai, pois achava que ela poderia ficar por lá e não
querer voltar mais. Márcia achava que sua mãe nunca quis morar com ela, apesar de sua mãe
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sempre dizer que não a levava embora por causa de sua avó. Seu irmão nunca a considerou
como uma irmã. Para ele, a mãe “era como uma prostituta”, pois havia pedido a separação,
deixado os dois filhos no Paraguai e havia engravidado no Brasil. Nesse momento, Valter
interveio e disse que, em espanhol, “China”, o nome pelo qual ela era conhecida, significa
mulher da vida. Quando perguntamos se ela era prostituta, Valter alegou que não, mas que
viajou muito e que nas obras em que esteve a trabalho pela América Latina, China
32
é a
mulher que não obedece ao marido, que vive pela noite. O nome verdadeiro de sua mãe é de
uma santa católica, bem conhecida.
Márcia questiona se sua mãe não teria mais filhos, pois passou um período em que ela
e seus irmãos não tiveram notícias de sua mãe, pois ela foi morar longe da família. Segundo
Márcia, ela era uma independente, queria viver a vida, sem vínculo com nada, nem com
ninguém.” Valter salienta que “ela era uma mulher cativante, uma companhia
extraordinária, uma pessoa que você não consegue ficar cansado do lado dela, mas uma
pessoa com os valores completamente diferente dos nossos.”
Márcia disse que a família dela eram seus avós paternos, sua tia e sua prima, que ela
considerava como irmã. Sua tia está viva e Márcia a chama de mãe. Lembrou-se de que sua
família vivia períodos com muito dinheiro, pois seu tio mandava dólares para eles do exterior,
mas, quando o dinheiro acabava, passavam necessidades.
Márcia contou que não se interessava por saber como estava sua mãe, mas durante
toda a entrevista, ao relatar os fatos que foram marcantes em sua vida, como o casamento e o
nascimento das filhas, ela mencionou sempre que fez questão de procurar a mãe para lhe
comunicar o que estava acontecendo com ela.
Valter comentou que, no início do namoro, ficou encantado com a família de Márcia,
sempre juntos e muito alegres nas festas. Márcia retruca, dizendo que tudo era superficial.
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A palavra “China” remete ao bairro chinês que é conhecido por prostituição e venda de drogas.
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Moravam em São Paulo bem perto de seus tios-avós.
Ao final da entrevista, Valter revelou que achava que Márcia nunca teve uma família.
Ela foi criada por eles, mas não ocupou um lugar de importância.
Os segredos da família de Márcia
Márcia comentou que o fato de seu pai beber sempre foi vivido dentro da família
como um segredo, sua avó e sua tia sempre fizeram de conta que não sabiam de nada.
Seu tio teve uma filha em outra cidade. Sua tia soube do fato, mas o assunto não era
tratado em família.
Márcia contou que seu tio a molestava em pequena e ela chegou a escrever uma carta
para sua tia, mas esta nunca chegou a conversar com a sobrinha sobre o assunto, mas depois
de ter escrito essa carta, seu tio nunca mais foi importuná-la. Sempre achou que sua avó soube
do fato, mas também nunca conversaram.
O aborto da avó de Márcia sempre foi um segredo e ela contou apenas para Márcia.
O pai de Márcia teve um filho que foi criado por parentes. Márcia soube da história,
pois a criança veio morar com um casal de primos que não podia ter filhos e freqüentava
muito a casa de seus tios. Sua avó e sua tia que organizaram a adoção da criança, mas nunca
contaram para ninguém, além de Márcia, quem era o pai da criança. Márcia pensava que a
mãe da criança era usuária de drogas, por isso entregou para a família.
O sobrinho neto de sua avó morreu de AIDS e era homossexual. Tanto a doença, como
o homossexualismo sempre foram mantidos em segredo.
O irmão adotado pelo pai de Márcia com a esposa alemã morreu de aids, devido ao
uso de drogas. Morreu sem saber que era adotado.
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A história do casal
A primeira pessoa que Valter conheceu em São Paulo foi Márcia. Quando Valter saiu
do seminário, foi morar em uma pensão em que vários jovens de sua cidade moravam. A
pensão dava para os fundos do salão da Igreja e foi lá que os dois se conheceram. Os dois
tinham dezoito anos na época. Valter queria participar de um grupo de jovens da Igreja e
Márcia, quando o viu chegando no grupo, logo falou para uma amiga que ele seria dela.
Valter ouviu o comentário, mas ficou quieto. Como ele era tímido, tinha muito medo de se
aproximar dela. Ele contou que não sabia como conversar com ela, muito menos como pedi-la
em namoro. Ficaram assim por um bom tempo. Até que um dia ela o convidou e uns amigos
para irem ao cinema e, durante o filme, ela acabou quase que o pedindo em namoro.
Quando acabou o filme, um amigo perguntou a Valter o que ele estava esperando.
Valter lembrou-se que, desde o dia em que a ouviu dizendo que ele seria dela, ele quis ficar
com ela, mas não sabia como fazê-lo. Entretanto, ele tinha uma namorada que morava na
região em que nasceu. Ao ser indagado sobre o fato de não conseguir pedi-la em namoro e ter
uma namorada, Valter justificou-se, dizendo que era seu amigo que tinha lhe arrumado essa
namorada. Esse amigo era apaixonado por uma moça que só podia sair de casa se ela estivesse
acompanhada de uma amiga. Então, ele pediu que Valter namorasse a amiga para os quatro
saírem juntos. Valter aceitou a proposta. Essas moças eram de uma cidade vizinha da dele e
ele chegou a ter mais de uma namorada em cidades diferentes. Valter e esse amigo iam aos
bailes e namoravam as moças. Disse que no interior se sentia diferente, menos tímido.
Valter afirmou que Márcia era diferente das moças do interior, era uma moça de São
Paulo, “com um clique diferente. O fato de ela ter deixado claro logo de início o interesse
que tinha, trouxe lhe tranqüilidade, pois sabia que não teria problemas, caso tentasse uma
aproximação. Entretanto, havia um fato que o impedia de se aproximar - não tinha clareza se
iria voltar para o seminário ou nãopois, tinha deixado o seminário há muito pouco tempo.
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Na época, Márcia já tinha até contado para sua avó que tinha conhecido um rapaz
muito bonito, mas achava que não daria certo, pois talvez ele fosse ser padre. Márcia
lembrou-se que até falou para a avó que talvez desse certo com o irmão dele, já que saíam
sempre todos juntos. Márcia disse que falou do irmão de Valter para sua avó por falar, pois
eles saíram muito pouco juntos. Então, continuou insistindo com Valter. Ia às missas, ia à
pensão em que ele morava e eles combinavam de sair com os outros jovens da Igreja. Valter e
seus irmãos tratavam as moças de um jeito diferente, segundo ela. Eles não tratavam as
mulheres de igual para igual, eles puxavam a cadeira e outras pequenas coisas e isso, para ela,
fazia diferença. Eles rodeavam as moças, não se atiravam como os paulistanos, pareciam levar
o relacionamento mais a sério. Na época, era difícil arrumar homem que quisesse levar
relacionamento a sério, segundo Márcia. Ao mencionarmos que eles, do interior, eram rapazes
para se casar, Márcia foi logo advertindo que nunca teve o sonho de se casar, como as moças
normalmente têm.
Além de morarem perto, os dois faziam colegial na mesma escola. Valter conseguiu
um emprego em uma fábrica, estudava pela manhã e trabalhava à tarde e à noite. Comia no
restaurante da empresa e, “como não sabia comer com talheres”, quando ia visitá-la, no início
do namoro, não comia nada. Na casa dela, a mesa era posta com todos os talheres e Valter não
se sentia à vontade. Então, nos fins-de-semana passava fome, por que não tinha dinheiro para
comprar comida suficiente.
Ele tinha um cuidado muito grande para não impressionar mal a família dela. A
impressão que ele tinha é que as pessoas de São Paulo eram sofisticadas. Quando foi pela
primeira vez à casa dela, ficou impressionado, achou tudo muito chique, havia cristais na
casa. Segundo Valter, a família de Márcia era muito preconceituosa. A avó dela disse a Valter
que ele não se enxergava, ela não queria que eles namorassem, pois a neta já tinha namorado
um rapaz da sociedade paulista. Isso o incomodou muito e teve que conviver com isso até a
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morte da avó de Márcia. No início, ficou bastante constrangido por não pertencer àquele
mundo, ele se achava um caipira. Somente aos poucos, foi conquistando todos os parentes
dela, tios, primos. Ele soube, com o passar do tempo, que o tio de Márcia também sofrera
muito com o preconceito da avó dela.
Márcia contou que Valter tinha o propósito de voltar para a cidade dele como alguém
que tinha vencido na vida. Então, ele foi rapidamente aprendendo como se comportar na
família de Márcia, desde como se portar à mesa até as vestimentas.
Passados alguns meses, Valter descobriu que o lugar em que Márcia se sentava, toda
vez que ele ia visitá-la, estava rasgado e ela tentava esconder. As comidas que ele achava
maravilhosas só eram feitas porque ele iria visitá-la. Com o passar do tempo, Valter foi
ficando constrangido por perceber que tudo era fachada e eles continuavam, “não tinham
mais o reino, mas não perdiam a majestade. Ao mesmo tempo, foi percebendo que “todo
mundo é igual” e eles também tinham dificuldades. Foi, então, que Valter passou a se sentir
útil, pois a família lhe pedia ajuda quando o pai de Márcia tinha problemas com a bebida.
Márcia, no início, só podia sair com Valter se a prima fosse junto. Com o passar do
tempo, puderam sair sozinhos, mas ela não podia chegar muito tarde em casa.
Depois de seis meses de namoro, Márcia perguntou quais eram suas intenções. Valter
foi categórico, ao dizer que tinha o objetivo de fazer a faculdade, seguir uma carreira
profissional e queria namorar para casar com ela, mas, caso o interesse dela não fosse esse, ele
gostaria de romper o relacionamento, pois não teria condição de começar depois outro
relacionamento. Quem quisesse namorá-lo, teria que saber e aceitar os propósitos dele. Ele, na
época, só tinha domingo para namorar.
Márcia disse que fez a pergunta a Valter, não com o propósito de casar, mas queria
saber se ele era alguém disposto a ficar com ela.
Namoraram um ano e ficaram noivos por cinco anos. Valter recebeu um dinheiro e
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resolveu comprar as alianças. Para a família dela o noivado oficial foi quando ele a pediu em
casamento e os dois marcaram a data. Na época as duas famílias foram contra o casamento. A
mãe de Valter não queria que ele se casasse, pois ele contribuía com dinheiro para a família.
Valter sempre foi o filho que mais ajudava a mãe. Sua mãe e sua avó já estavam morando em
São Paulo havia três anos. Elas vieram para a capital, porque os irmãos de Valter, que
moravam no interior, não conseguiam sustentá-la e sua mãe não conseguia, com o trabalho de
costureira, pagar todas as contas. Então, vieram todos, montaram uma casa e Valter voltou a
morar com eles. Ele decidiu voltar a viver com eles por gratidão à avó e pena do que ela
poderia passar. Seu irmão, que ele disse considerar muito parecido com seu pai no que se
refere ao gênio, poderia “abusar” de sua avó, no sentido de tirar o pouco de dinheiro que elas
tinham. Esse irmão morou com ele na pensão e pegava objetos e dinheiro de Valter, sem sua
autorização. Seu irmão justificava seus atos, dizendo que, por ser o irmão mais velho, poderia
fazê-lo. Esse irmão atualmente é alcoólatra.
Mesmo tendo morado sem a mãe, como sempre Valter recebeu uma educação rígida;
quando voltaram a morar juntos, passou a pedir autorização para ela para sair à noite de casa.
Quando ela não deixava, fingia que ia dormir e pulava a janela para poder namorar.
Márcia achou que o motivo de sua sogra ter sido contra o casamento era outro.
Lembra-se que Valter era fisicamente muito parecido com o pai e toda vez que ela o via dizia:
“Olha o Pedro chegando, referindo-se ao pai do Valter. Márcia considerou que ela queria
que ele não casasse para cuidar dos irmãos dele. Valter sempre foi uma referência para todos,
ele sempre teve iniciativa. Para mostrar a ascendência que ele tinha sobre a família, Valter
contou que, quando sua irmã engravidou solteira, todos achavam que ela deveria abortar.
Valter estava fora de São Paulo a trabalho e, quando chegou, disse que achava que ela deveria
assumir a gravidez. Todos abaixaram a cabeça e sua irmã teve o filho e a criança recebeu seu
nome.
117
A mãe dele nunca falou abertamente que era contra o casamento. Entretanto, já
durante o namoro Márcia começou a ocupar um lugar de mediadora entre Valter e a família
dele. Quando acontecia algo mais sério, Márcia era chamada e comunicada para que ela
contasse para Valter, pois ele ficava muito bravo e ela teria que acalmá-lo, quando soubesse
da notícia.
Quando já estavam noivos e com o casamento marcado para um ano depois, Valter
ficou doente e demorou a perceber. Nessa época, ele morava fora de São Paulo e tinha uma
vida desregrada, bebia muito, saindo à noite com os colegas de trabalho. Ele era chefe de uma
obra, em uma cidade bem pequena, e tinha tudo pago pela empresa. Márcia justificou,
dizendo que, como ele não teve adolescência, ele quis viver um pouco o que não tinha vivido.
Ao saber da doença, resolveram adiantar o casamento. Valter admitiu que estivesse levando
uma vida ruim, ele não conseguia viver naquele fim de mundo sozinho”. Como anteciparam
o casamento, as famílias acharam que Márcia estava grávida. Valter comentou que era
impossível ela estar grávida, pois eles tinham tudo tão planejado de como levariam a vida
depois de casados que uma gravidez antes do tempo estava fora de cogitação.
Márcia imaginava que ele estaria levando uma vida diferente da que ele tinha em São
Paulo, “que ele iria tirar o pé da jaca.” (sic). Ela não cogitava que ele poderia ter outras
mulheres por lá. Valter conta que chegou a “ter uns rabos de saia”, mas não tinha companhia.
Então, ele foi se dando conta de que tinha o que ele não queria. Ela disse que também poderia
ter arrumado alguém por aqui, mas estava tão focada nos estudos e no trabalho que nem foi
atrás. Sentia muita falta dele nos fins-de-semana. Quando se casaram, ela não sabia que ele
estava bebendo.
Na época em que Valter a pediu para casar e se mudar para onde ele estava
trabalhando, Márcia pensou que, se ficasse em São Paulo, os dois iriam se separar. Então,
Márcia aceitou o pedido, pois queria ficar com ele no dia-a-dia. Ela resolveu largar o emprego
118
e se mudou com ele.
Ela queria ter uma festa de casamento, mas a família vivia um período de dificuldades
financeiras. A tia acabou dando o que a família podia, o vestido e o enxoval, mas Márcia
queria trazer a mãe para a festa. Então, os dois juntaram dinheiro e conseguiram trazê-la para
o casamento.
A mãe de Márcia morou com eles por um ano. Eles estavam casados há quatro anos,
mas pediram que ela fosse embora, pois não agüentaram a convivência.
Fantasias presentes na escolha do parceiro
Márcia achava Valter muito bonito e sabia conversar assuntos interessantes com ela.
Outra coisa que a atraía era o fato de ele não ter dinheiro. Ele dava um duro muito grande para
conseguir as coisas e os rapazes com quem ela estava acostumada eram ricos e fúteis.
Valter contou que não tinha fantasias para escolher uma parceira. Ele sempre soube
que queria casar, ter duas filhas, mas nenhum filho homem, pois não sabia jogar futebol e
achava que seria complicado cuidar de filhos homens. Ele sempre quis ter menina, pois
sempre achou que a menina se dá bem com o pai e não com a mãe. Ao revelar esse
pensamento, Márcia riu, disse que não sabia e o chamou de egoísta.
Valter esperava que uma esposa fosse o que Márcia é: companheira, ela o ajuda, os
dois trocam conselhos, ela o orienta quando ele está errado, já que Valter tem um gênio muito
difícil e nem sempre consegue se controlar. Queria ter uma família, mas queria que fosse
totalmente diferente da dele e dos modelos de casamento que conheceu em sua família.
”Queria uma coisa simples, nada dessa pompa, queria um lugar que fosse meu. Aquele
padrãozão que as mulheres sonhavam, sou eu, não ela.
Márcia queria um parceiro que fosse o oposto de seu pai. Disse que não sabia se iria
morar junto ou casar, mas não queria viver nada semelhante ao que viu em sua casa.
119
Mencionou que tinha como modelo de casamento a união de seus tios e não queria algo
parecido para si, pois ele passava a maior parte do ano fora do país. Para quem olhasse de
fora, esse tempo que ficavam juntos era maravilhoso, mas, na verdade, os dois brigavam
muito, sua tia dizia que ele tinha outras mulheres e que ele deveria dar mais dinheiro à
família. Márcia conviveu também com o fato de seu pai ter muitos relacionamentos. Segundo
ela, seu pai teve muitas mulheres, mas não foi feliz com nenhuma.
Dinâmica conjugal
Valter queria que os dois tivessem um relacionamento diferente dos tios de Márcia,
onde ele fosse trabalhar, ela iria também. Então, no início da vida de casados, moraram por
três anos fora de São Paulo. Ela achou que esse período foi importante, por estarem longe das
famílias de origem. Márcia pensava diferente do marido, para ela, os dois deveriam ter um
vínculo forte entre eles e, quando chegassem os filhos, se ele tivesse que viajar a trabalho, ela
deveria ficar. Nos empregos que Valter teve fora da cidade, Márcia ficou morando sempre em
São Paulo e ele voltava para estar com ela quando podia.
Valter contou que queria muito que seu sogro parasse de beber e fosse morar com eles,
sempre teve esse sonho. Como seu sogro morreu poucos anos depois do casamento, esse
sonho não pôde ser concretizado.
Uma das dificuldades que os dois encontraram na vida de casados foi a organização
financeira da família. Valter admitiu que os dois são muito consumistas e imprudentes. Até
hoje, eles ajudam financeiramente as famílias de origem e não têm nenhum dinheiro
guardado.
Márcia contou que se sentiu casada quando tiveram a primeira briga séria. Naquele
momento, ela teve que optar se ficaria com ele ou não. Era carnaval e eles tinham ido a um
churrasco com os familiares dele. Valter bebeu muita cerveja e ficou bêbado. Ao ser
120
questionado sobre o motivo de ter bebido, Márcia justificou, contando que os dois irmãos
menores de Valter conseguiram se organizar financeiramente na vida e eles estavam na casa
do irmão caçula. Ela sempre achou que havia uma competição entre eles, por causa do que,
Valter começou a beber. Valter negou que tenha sido esse o motivo, que ele estava bebendo
por beber, mas admitiu que existia uma competição entre os irmãos em termos de conquistas
financeiras e de quem era o mais inteligente.
Como ele estava muito bêbado, Márcia achou melhor ir embora com ele de carro para
ele se acalmar. Durante o trajeto, ele tentou pegar a direção do carro para dirigir e, como ela o
impediu, ele a agrediu com um tapa. Márcia contou que essa foi a única vez em que ele lhe
bateu, mas, naquele momento, lhe veio tudo à cabeça. Como tinha um policial por perto,
Márcia pediu ajuda e Valter foi levado para a delegacia. Ela mencionou que se arrependeu,
pois ele foi preso e o delegado disse que só o soltaria se viesse alguém para ajudá-la a cuidar
dele. Márcia não sabia a quem recorrer e o delegado, por reconhecer o sobrenome da família,
acompanhou os dois até a casa do cunhado. Valter comentou que passou por tudo aquilo
porque não queria ter passado, eu repeti a história do meu pai, passei a noite na cadeia.”
Valter ficou seriamente doente após esse fato e teve que fazer um tratamento muito doloroso.
Quando tudo isso aconteceu, eles estavam casados havia oito anos e sua cunhada a
incentivou a se separar. De acordo com Márcia, a cunhada abriu uma possibilidade para ela se
questionar se queria ficar casada. Márcia lembrou-se muito do seu pai e sabia que Valter
poderia beber novamente. Como eles tinham feito “Encontro de Casais na Igreja, ela pensou
nas palestras a que tinham assistido e que o problema era dela, se ela queria continuar a estar
com ele e se na primeira dificuldade ela iria deixá-lo.
Quando voltaram para São Paulo, os dois conversaram e Valter disse que não iria
beber mais. Depois disso, ele nunca mais bebeu. “Foi o mal que veio para o bem. Depois
desse conflito, Valter disse que percebeu que, nos dias que sucederam ao acontecimento, ele
121
de fato estava em sua casa. Até hoje, seus irmãos lhe perguntam se de fato parou mesmo de
beber. Na família de Márcia, nunca ninguém comentou o fato, apesar de saberem do ocorrido.
Os dois sempre souberam muito sobre o que o outro fazia, quando não estavam juntos.
Márcia riu, durante a entrevista, ao contar que Valter estava incomodado porque ela tinha e-
mail e MSN e ele não participava nem sabia das conversas dela, os dois sempre fizeram juntos
as coisas. Sempre pediram muito conselho um para o outro sobre como deveriam agir ou o
que deveriam fazer.
Os dois são católicos praticantes e os dois acham que a religião interfere no
casamento. Passaram por um período em que não iam muito à igreja, mas, com uns dez anos
de casados, começaram a participar ativamente do Encontro de Casais em Cristo. As reuniões
do grupo são a cada três meses para receber novos casais. Eles acham que o fato de terem um
grupo para falar dos próprios problemas acaba ajudando-os. Valter salientou que no grupo
recebem muita informação “para se reciclar, para evoluir. A religião ajuda, já que nós temos
a predisposição para querer ficar casados.” (sic).
Márcia achou que, quando Valter teve problemas com a bebida, a religião foi
importante para ela pensar. Considerou que teria se separado se não tivesse a religião.
Recordou-se que, na época, lembrou-se de uma santa que ela admira muito e que teve a vida
muito sofrida. Em função disso, pensou que não poderia desistir frente à primeira dificuldade.
Para Valter, a religião lhe dá padrões éticos que nunca teve e por isso ela acabou ajudando a
relação conjugal. Para ele, permanecer casado não se deve à Igreja. Ele justificou que gosta
dela e da situação de estar casado, do ambiente familiar. Por ter viajado muito, ele soube o
que é não ter uma casa e um ambiente familiar. Nesse momento da entrevista, Márcia riu e se
lembrou do comentário da filha, logo cedo, antes de iniciarmos a entrevista: “Para saber por
que estão juntos, não precisa de tudo isso. Minha mãe anda de camisola e meia pela casa,
meu pai de camiseta. Para agüentar um ao outro assim, precisa ter muito amor!”
122
Moraram no mesmo bairro há anos e freqüentavam a mesma igreja. Tornaram-se
pessoas bem conhecidas no bairro e respeitadas, os vizinhos perguntavam coisas sobre a
Igreja e sobre as festas promovidas pela paróquia. A Igreja passou a “ser uma família” para
eles.
Ela contou que imagina que na velhice serão só os dois, pois percebeu que, com o
passar dos anos, eles foram se afastando das famílias de origem. Valter disse que tem a
esperança que, quando as filhas tiverem suas próprias famílias, a “terceira parte possa se
afeiçoar a eles e ficar próximo deles. Voltou a dizer que era por isso que queria filhas, para
que seguissem o modelo espanhol de cuidar dos pais.
Chegada dos filhos
Planejaram ter filhos e a primeira filha nasceu depois de quase quatro anos de
casamento. Ela não queria engravidar logo, pois queria aproveitar a vida. Na época de
namoro, ela achou que tiveram pouca liberdade para viajar, passear, sair sozinhos. Quando
voltaram a morar em São Paulo, Márcia percebeu que todos os empregos que procurava
perguntavam o tempo de casada e se tinha filhos. Como não conseguia emprego, achou
melhor engravidar, pois talvez o fato de não ter filhos a estivesse prejudicando para arrumar
emprego. Valter salientou que adiantaram os planos só alguns meses. Eles tinham decidido
que ela deveria decidir o momento de engravidar e não ele. O desejo dele era ter filhos
quando estivessem em São Paulo.
A família de Márcia os pressionava para terem filhos, pois sua avó queria ser bisavó
antes das irmãs dela, isto é, queria ser a primeira bisavó da família. A família queria escolher
o nome da filha. Queriam que fosse o nome de alguém da família. Então, a menina recebeu
um nome composto que Márcia escolheu. O primeiro nome da criança é o feminino do nome
de seu avô paterno e o segundo nome é o mesmo nome da mãe de Márcia. Nesse momento,
123
Márcia contou que o segundo nome dela é também dessa santa.
Valter queria uma filha só, mas Márcia queria ter mais. Ele assistiu à cesárea e disse,
na época, que se ela não quisesse mais ter filhos, ele não iria se opor. Para ele, ter filho é algo
muito sofrido. Ao ser indagado de onde viria essa opinião, Valter disse que possivelmente
devido às histórias que sua mãe contava, as gravidezes que ela comentava com eles quando
era pequeno.
Márcia demorou, então, para querer engravidar novamente. Estava esperando a
nomeação de um concurso que tinha prestado e só queria engravidar depois. Na família dela,
ela sempre escutou que quem tem um filho não tem nenhum.
Como a nomeação não aconteceu, engravidou e, depois de quatro anos, nasceu a
segunda filha. Quem escolheu o primeiro nome dessa vez foi a irmã mais velha. O segundo
nome da menina eles colocaram o nome da santa que Márcia, sua mãe e sua filha mais velha
têm.
Depois do nascimento da primeira filha, o relacionamento mudou. A casa foi invadida
por parentes que queriam ajudar durante os quarenta primeiros dias.
Só depois que nasceu a segunda filha é que Márcia voltou a trabalhar. Valter passou a
se dedicar mais à família depois de ter adoecido e ter feito o tratamento.
As meninas, quando pequenas, ficavam muito gripadas. Os dois fumavam muito e
Márcia resolveu parar de fumar por causa delas. Valter tentou fazer com que ela voltasse a
fumar, mas, já que ela havia conseguido e não voltava a fumar, ele se viu obrigado a parar
também.
Contaram que as meninas nunca tiveram doenças graves. O único problema que
tiveram foi com o peso, os quatro sempre comeram muito bem. Quando a segunda filha
nasceu, a mais velha regrediu, voltou a usar fralda e a mamar. Ela engordou nessa fase uns
oito quilos, mas com onze anos resolveu fazer regime. A filha mais nova, aos dez anos,
124
pesava mais ou menos setenta quilos. Márcia relatou que a filha não conseguia fazer regime.
Na época, Márcia resolveu fazer um regime e a filha resolveu acompanhar a mãe e fez junto,
conseguindo, então, emagrecer desse jeito.
Quanto a namoros, as filhas nunca namoraram, só ficaram com alguns rapazes. Por
isso, o casal não sabe como será vivida essa situação por eles.
Eles sentem que não deram às filhas uma educação que as tornasse capazes de lidar
com dinheiro e economizar.
Caracterização dos conflitos conjugais
Houve conflito com a chegada da filha mais velha que chorava muito eo dormia.
Ela achava que ele deveria ajudar mais, acordar mais durante a noite, mas ele tinha que
trabalhar no dia seguinte e não conseguia ajudá-la. Valter lembrou-se que ela queria que ele
saísse mais com a filha para passear. Ela queria amamentá-la de qualquer jeito, mas o seio
rachou e machucou muito. Márcia demorou para descobrir que a filha estava passando fome,
quem acabou ajudando-a a descobrir e a dar uma mamadeira foi sua empregada, que tinha
mais experiência em cuidar de criança. Mesmo depois que ela acertou com a alimentação da
filha, esta continuava dormindo muito pouco.
Não chegaram a brigar de fato, mas Valter recordou-se que as reclamações dela o
incomodavam muito. Para ela, foi um período muito difícil, ele estava muito preocupado com
a profissão. Ela não trabalhava e queria que ele participasse da vida da filha, que saísse do
trabalho na hora do almoço e buscasse a filha na escola.
Outra situação desgastante para o casal foi quando Márcia teve a primeira crise de
psoríase, causada possivelmente pelo desemprego de Valter. Márcia sempre foi criada a não
falar o que estava pensando. Devido à doença, percebeu que deveria falar o que a estava
incomodando. Valter ficava muito irritado, pois percebia que ela adoecia, também, por conta
1
25
dos problemas da família dela. Eles não brigavam por causa disso, mas ele se aborrecia.
Por causa dos remédios, Márcia perdeu os cabelos. Ela teve que parar de amamentar a
segunda filha. Ela contou que sua filha mais velha queria ir para a praia e o médico a havia
aconselhado que não fosse por causa da doença, mas, como a filha desejava, ela foi e chorou
muito por conta do sofrimento que passou com a doença no mar e na areia. Márcia relatou
essa passagem para mostrar como ela era e, com essa viagem, ela se deu conta do que ela
fazendo consigo.
Depois dessa crise na praia, Márcia começou a buscar relaxamento, trabalhos
corporais. Apesar de terem indicado psicoterapia, ela não o fez, pois achava que eles não
tinham dinheiro. A doença foi um divisor de águas no casamento deles. Valter lembra-se mais
da doença do que do nascimento da filha caçula.
Outra situação de conflito que vivenciaram refere-se às brigas por causa dos
problemas que eles tinham com as famílias de origem. Os irmãos de Valter sempre pediam
dinheiro e que ele aumentasse a “mesada” da mãe e da avó. Como ele não aumentava o valor,
os irmãos tentavam pressioná-lo, dizendo que não havia comida em casa. Então, os dois
acabavam brigando. Aos poucos, eles foram percebendo que tinham duas filhas e tinham que
cuidar de sua família nuclear e deixar os problemas da família de origem um pouco de lado.
Um conflito sério, que já foi descrito anteriormente, foi o episódio em que Valter
bebeu e ficou detido na delegacia.
Depois desse fato, ocorreu outra circunstância difícil para o casal. Foi quando Valter
saiu do emprego e foi abrir um negócio com seu irmão mais velho. Na época, achou que
poderia ajudar o irmão e seria uma boa oportunidade profissional. Valter disse que se deixou
seduzir, achava que ele tinha mudado. Então, fez uma loucura de abrir um negócio junto com
ele, pois seu irmão chegava a usar maconha no escritório. A empresa quebrou em pouco
tempo. Nessa fase, eles chegaram até a passar fome.
126
Enquanto ele esteve desempregado, seu relacionamento não ia bem. Márcia voltou a
trabalhar e Valter, quando chegava em casa, achava que Márcia e as meninas não gostavam
mais dele. Pensou em se matar, mas não o fez por se lembrar de como foi duro para ele a
história de seu pai. Nesse período, as crianças tiveram que mudar para uma escola pública e
todos estavam muito tensos com a situação. A filha mais velha, que estava adolescente,
começou a ter dificuldade com os novos amigos da escola, pois havia muito uso de drogas.
Valter, por estar mais em casa, conseguiu se aproximar da filha e ajudá-la nessa situação.
Entretanto, como ele conseguiu um emprego na região Norte, foi transferido para lá e ficava
quase dois meses sem ver a família. Conseguiram se equilibrar financeiramente, mas Valter
não suportou o regime de trabalho, pois, segundo ele, era quase como uma penitenciária a
vida nas condições que ele vivenciava.
Quando retornou a São Paulo, voltou a trabalhar com um amigo em uma empresa.
Valter disse que pretende ficar nesse emprego até fazer uma nova loucura. Márcia riu e
advertiu que agora não dá mais para ele fazer por causa de sua idade.
Essa distância foi mais sentida pelas meninas, mas para o casal eles acharam que foi
bom, pois, quando ele voltava para casa, eles estavam com muita saudade. Valter contou que
sofria ficando longe da família.
Atualmente, os conflitos giram em torno de questões sobre se as meninas podem ou
não sair. As brigas que ocorrem entre eles, por questões de modo de agir ou de falar as coisas,
acabam sendo parecidas com os conflitos que têm com as meninas. Justificaram, dizendo que
uma filha tem o gênio do pai e a outra, o da mãe.
Entre eles, há o costume de pedir desculpa quando um faz algo errado. Esse
comportamento foi construído no decorrer do casamento, pois não existia nas famílias de
origem.
127
O papel de cada um no casamento
Márcia, desde o início, desempenhou o papel de contê-lo, mas sempre foi muito difícil
para ela referir-se às coisas que estava percebendo, pois ele ficava muito bravo. Os dois
acabavam brigando muito por causa disso, mas, com o passar dos anos, Valter foi aceitando
mais as colocações de Márcia e ela foi conseguindo falar mais.
Em relação aos cuidados com as meninas, eram responsabilidade dela, mas ela sempre
quis que ele a ajudasse.
Por seu lado, Valter sempre desempenhou o papel de provedor da família. Márcia
nunca se achou obrigada a trabalhar. Trabalhou por pequenos períodos, mas, como as meninas
já estão grandes, está pensando em voltar a trabalhar.
Como Márcia não cozinha bem, ele sempre fez pratos especiais e, quando estava em
casa cuidava das refeições, mas arrumar a casa, lavar a louça sempre foi responsabilidade
dela. Como ele aprendeu a costurar com a mãe dele, as barras das calças e pequenas costuras
sempre foi ele quem fez.
Identificação e identidade
Márcia o vê até hoje como um homem lindo, maduro, que a satisfaz em tudo que ela
precisa. Sente-se repleta e aceita a mudança que o tempo vem impondo aos dois. Como
qualidade, ela o acha carinhoso, “fala coisas gostosas de ouvir”, é preocupado com os outros
e sempre disposto a ajudar. Ela considera que seu principal defeito é ter pavio curto e ser
impulsivo, quer resolver tudo na hora. Acha que o marido tem características bem diferentes
dos homens de sua família, seu pai e seus tios.
Valter a enxerga como a sua namorada, a colega que conversa com ele, que sempre
está a seu lado. Ele a acha extremamente generosa, principalmente com ele. Ela é firme em
seus propósitos, muito paciente e é capaz de se abster do que gosta para o fazer feliz. Quanto
aos defeitos, o principal é ela não falar o que pensa, isso gera uma dificuldade muito grande,
128
mas acaba proporcionando um mistério que o atrai.
Valter acha que o casamento deles se assemelha ao casamento de seu tio, irmão de sua
mãe. Sua tia teve problemas psiquiátricos e seu tio cuidou dela com muito carinho e
dedicação, mas também, quando ela estava bem, cuidava bastante do marido.
Sexualidade do casal
Valter disse que as mulheres da família reclamavam, porque, se deixassem por conta
dos homens, teriam relações sexuais “todo dia, toda hora. Márcia riu e falou: “Daí, não
dá!” Valter disse que chegou a ler Masters e Johnson e Simone de Beauvoir para entender
sobre a parceira que teria, já que não teve pai para conversar com ele sobre isso.
Márcia relatou que também buscou informação à sua maneira com os médicos. Na
casa dela, sobre sexo não se falava. Ela explica que a sexualidade do casal foi melhorando ao
longo do tempo.
Valter contou que, quando um dos dois quer ter um momento mais íntimo, o cortejo já
começa logo cedo e o outro vai percebendo. Os dois sabem que mais tarde terão um
momento de grande intimidade.
Apresentamos o familiograma (Figura 2) com o intuito de ilustrar a composição e as
relações familiares de Márcia e Valter ao longo do tempo. Foram representadas as três
gerações antecedentes. Esse esquema busca facilitar a apreensão dos diversos casamentos e
outros fatos relevantes da história das famílias de origem.
Figura 2 Familiograma Casal 2
?
Márcia
Valter
Família
nuclear
? ? ? ?
Pais
Avós
Bisavós
Legenda
relações
extra-matrimoniais
homem mulher
filho filha
filho adotivo
falecimento
aborto
provocado
gênero não
relatado
casamento separação
matrimonial
nascido antes da
relação matrimonial
(filho não reconhecido)
não soube informa
r
?
filho fruto de uma relação
extra-conjugal
(filho não reconhecido)
relacionamento
casual
suicídio
130
130
5.2 A interpretação dos protocolos do TAT
33
(Casal II)
Prancha 2
Márcia
Márcia identificou-se com a jovem moça, dizendo que esta resolveu se desenvolver
profissionalmente no interior como professora, lecionando para as pessoas. Fez uma
digressão
34
, numa tentativa de aplacar a angústia suscitada pela prancha.Ela foi ter uma vida
ótima, porque tinha cavalo. Olha que decia, adoro cavalo, acho lindo cavalo, se eu fosse um
bicho seria cavalo.” O conflito evocado girou em torno da vida sofrida que os alunos
levavam e a vida que ela tinha antes de estar ali com eles. “... começou a ver o sofrimento, a
pobreza das pessoas, mas não infeliz, ao contrário, fez com que ela se tornasse uma pessoa
mais feliz por ter podido participar dessas duas realidades, da realidade que ela vivia antes
de chegar nesse lugar, e que ela passou a viver a partir daí porque ela conheceu duas
realidades e pode viver no meio das duas.” Solucionou o conflito, dizendo que a moça iria
retornar a seu lugar de origem “para se desenvolver mais profissionalmente, para constituir
uma família e vai usar esse período da vida dela como uma experiência, para poder adquirir
uma vida melhor, sei lá”.
Valter
Identificou a cena como a de seus ancestrais que trabalhavam no campo. Tem uma
mulher aqui do lado que provavelmente está constituindo e dando progresso nessa família
numa terra distante, ela tá meio barrigudinha, dá a impressão que está grávida, e já tem uma
menina mudando o destino das coisas, né, fazendo com que as coisas evoluam. Então, não vai
ficar parado só na terra, porque esse sujeito, provavelmente a única coisa que ele podia fazer
era trabalhar na terra. E ele está fazendo isso, agora a outra geração já está se
desenvolvendo, já está se preparando.” Valter projetou na figura da filha a possibilidade de
33
Colocamos em itálico partes significativas da associação.
34
Segundo Shentoub (1958 apud Silva,1989), digressão são comentários não pertinentes ao teste.
131
ter uma vida melhor que os antepassados tiveram, por meio de um trabalho que não será de
cultivar a terra.
Prancha 4
Márcia
A prancha causou-lhe um grande impacto e, depois de questionar se era para contar
uma história, revelou seu estado emocional: Ai, não gostei da cara desse homem. (Ela dá
risada.). Identificou a cena como sendo uma briga de um casal. Em um primeiro momento, a
figura masculina estaria querendo fugir e a figura feminina estaria tentando acal-lo. Em
seguida, Márcia diminuiu a intensidade do conflito apresentado inicialmente, dizendo que eles
estariam no cinema e a mulher quereria assistir a um filme que o parceiro não desejava.
Justificou pela razão a apercepção
35
distorcida, mencionando que a figura ao fundo se tratava
de um outdoor. Entretanto, questionou a própria apercepção:Será?”Após uma pequena
pausa, não conseguiu aprofundar o próprio questionamento, reprimiu-o e retomou o rumo da
associação. Ela teve que segurá-lo, fisicamente, porque ele ia embora, não sei o fim da
história, não sei qual vai ser, porque ... Acho que ele vai assistir o filme com ela, ela
consegue acalmá-lo e ele vai assistir o filme com ela.
Valter
Identificou a cena como sendo de um casal de namorados. Em relação à figura
masculina, Valter advertiu que “deve ter um gênio caloroso como o meu e coitada da moça.”
Como a figura feminina recebeu um elogio de um homem, “ele já com o sangue estourado,
levantou e já queria arrumar confusão.” O conflito suscitado girou em torno da
impulsividade, representada pela figura masculina, versus o controle, representado pela figura
feminina. Quando perguntamos qual seria a solução para tal conflito, Valter disseele vai
refletir, vai perceber que não tinha motivo nenhum dele estar nessa, nesse desespero, que ele
35
Sobre os tipos de apercepção, ver Barros (2004).
132
até se levantou correndo, vai sentar, vai pedir desculpas para ela, vai se explicar e vão
continuar normais e, numa próxima vez, ele vai tomar mais cuidado. Você vê pelos olhos do
cara, ele está irado.Valter projetou que a figura feminina apesar de se sentir envergonhada
pela situação, “se sente muito orgulhosa de ver essa forma dele, é a forma errada, mas é a
forma dele manifestar a paixão dele.
Prancha 7RH
Márcia
Identificou um neto pedindo conselhos para o avô. Os dois estão tranqüilos porque é
uma conversa serena, gostosa, ninguém está nervoso, ninguém está, só o neto que está um
pouco apreensivo, o que é coisa da idade quando se é um pouco mais novo e quer já
solucionar a coisa ontem e aí o avô mostra que não que dá para ter tempo para solucionar as
coisas. Márcia apontou que a dificuldade que o neto tem em aproveitar os conselhos do avô é
devida à faixa etária e à limitação que o avô tem em poder ajudar o neto. “O máximo que ele
(o avô) pode fazer é dar uma opinião, sugerir e torcer para que ele (o neto) seja feliz e o neto
vai sentar com mais pessoas, porque não é só o avô que ele quer ouvir, ele quer ouvir mais
gente, vai ver o que os outros falam e depois tomar uma decisão que talvez no futuro ele
chegue à conclusão que o avô tinha mais razão que os outros, mais ele não vai saber na
hora.” Na associação, ela deixou implícita a idéia de avô que consegue entender a diferença
existente entre ele e o neto, devido à idade de ambos e um respeito e tolerância ao processo de
crescimento do neto.
Valter
Valter fez uma pausa inicial, como nas demais pranchas, e iniciou, dizendo que
naquele dia estava com os italianos na cabeça, referindo-se a família de seu pai. Em seguida,
após uma pequena pausa, prosseguiu, dizendo: eu vejo uma situação, vocês gostam muito de
coaching, de treinamento, né, vejo uma situação de dois indivíduos resolvendo uma situação,
133
vamos colocar uma situação familiar, uma situação desse tipo, e o mais velho está
aconselhando o mais novo e está passando para ele uma forma dele conduzir o assunto, essa
pendência, essa dúvida que ele tem. Os dois homens têm um relacionamento de amizade, de
muita troca e muito afeto. O mais novo vai seguir os conselhos dados pelo mais velho e o
mais velho vai verificar se o que ele aconselhou se o ajudou em alguma coisa ou não.
Prancha 7MF
Márcia
Iniciou a associação, demonstrando o quanto ficou mobilizada pelo estímulo, Isso
aqui é o quê, uma criança? (pequena pausa) Ou é um pedaço de pão? (pausa) Parece uma
criança, né? (pequena pausa) Isso aqui eu vou contar uma história como se fosse minha,
porque eu lembro uma foto que eu tenho quando o meu irmão mais novo nasceu. Após esse
preâmbulo, conseguiu organizar seu relato, mostrando que se identificou com a menina que
estava conhecendo o irmão por parte de pai. Relatou que a menina não foi preparada para a
chegada do irmão, pois não teve contato com a gravidez da mãe dele. Negou que houvesse
ciúmes por parte da menina, mas identificou um estado emocional bravo,não pelo irmão,
mas pelo que a mãe está falando do irmão que chegou, porque ela sabe que ela não vai
cuidar, não vai participar da criação desse menino, ela queria só curtir e a mãe está
enchendo o saco dela que chegou o irmãozinho. Aquelas coisas que mãe sempre faz, fica
falando, falando e ela não quer mais ouvir, ela só queria pegar o nenê no colo, ela nunca
tinha pego um nenê no colo. Então, ela já tá com o saco cheio da mãe.” Márcia apresentou
uma figura materna que tinha dificuldade em entender o que se passava com a filha. Em um
tom de voz severo, concluiu: “Aliás, pela cara dela (mãe), eu acho que ela não está nem
prestando atenção no que a filha está sentindo, está prestando atenção no que ela está
falando, e se a filha está ouvindo ou se não tá, não faz a menor diferença para ela, eu acho.
134
Valter
Iniciou a associação dizendo “O que é isso, é uma boneca?” Em um tom mais irônico,
após uma pequena pausa, prosseguiu, “Ah, isso aqui com uma imaginação boa,, com
imaginação boa! Isso não tem mais hoje em dia, mas para mim nessa história aqui é uma
empregada ou uma ama, coisa do tipo, né, contando uma história para uma menina e a
menina está toda embevecida, está toda envolvida nessa história. Uma história de, de, de
príncipe encantado e tudo. Identificou as personagens com estados emocionais divergentes
frente à situação:a ama está contando a história um pouco por obrigação, mas ela,
provavelmente, está revivendo aquilo que eram as expectativas dela e que não aconteceram.
Tanto que ela é uma empregada, uma coisa assim, dentro de uma casa de família. Mas a
menina está se sentindo num outro mundo, ela está viajando dentro dessa história.
Pensamos que, por se tratar de uma prancha que evoca temas relacionados à figura materna,
Valter ficou impactado com o estímulo e, ao ser irônico dizendo que precisaria de muita
imaginação para elaborar uma associação, ele revelou o quanto para ele seria difícil imaginar
uma cena entre mãe e filha, na qual as duas pudessem estar juntas. Mesmo transformando a
cena para uma relação entre uma ama (uma substituta da figura materna) e uma menina, a
primeira é colocada como estando frustrada, devido às expectativas que tinha em relação à
própria vida que não se concretizaram e estava com a menina por obrigação.
Prancha 19
Márcia
Devido ao impacto que a prancha lhe causou, iniciou dizendo: Nossa, sabe o que eu
imagino que o Valter vai contar uma história imensa disso aqui. Eu não enxergo nada e ele
deve enxergar mil coisas. (pequena pausa) Meu Deus!” Márcia fez uso de mais uma pausa,
numa tentativa de se organizar emocionalmente frente à ansiedade que o estímulo lhe
suscitou.Bom, parece o mar, nuvens. Preciso contar uma história? Não tem ninguém lá.”
135
Márcia experimentou descrever a prancha, numa tentativa infrutífera de organizar uma
narrativa. Era um iglu? Tem um monte de coisas ao redor. Era uma casinha, perto do mar,
de pescadores, bem rústica, bem simplesinha, mas que aparentava o contrário do que eu
falei, bastante vida, bem iluminada, parece que tem uma vela lá dentro da casa, da janela. A
gente só vê a janela da casa, né?” Ao falar que o local poderia enfrentar vendaval, terremoto,
solicitou-nos ajuda, demonstrando insegurança e necessidade de aprovação. Tentou mudar o
curso da associação, mas retomou o que havia dito, é uma casa de pescadores, só que é um
lugar que tem muito vendaval, tem muito terremoto. Então, eles vivem lá embaixo na terra e
você só vê a janelinha da casa. Pela janela, você percebe que é uma casa feliz, que as
pessoas que moram aí apesar de viverem lá no fundo da terra, vivem bem, que elas vêm aqui
para cima só para pescar, procurar o seu alimento. E a vida toda dessa gente acontece lá
embaixo.” Márcia revelou suas fantasias persecutórias ao dizer que “a foto dá a impressão
que ela é mais alegre assim (Colocou a prancha de ponta cabeça.) do que assim, porque
assim, aqui em cima parece que tem uma tristeza aqui, uma coisa triste que fica aqui no
fundo, tá vendo? Uns olhos, parece aqui em cima não é uma coisa muito boa.” Terminou a
associação, dizendo “é uma gente feliz”. Podemos inferir que o fato de Márcia projetar um
lugar seguro, no fundo da terra, protegido do mundo externo visto como ameaçador,
possibilitou que ela idealizasse uma vida feliz para as pessoas que lá viviam.
Valter
Devido à ansiedade provocada pelo estímulo, desvalorizou a prancha em um primeiro
instante: essa com um pouquinho de cor dava para fazer um Miró, mas tudo bem. Em
seguida, falou que ali havia neve, mas para ele neve era algo distante,visto em televisão.
Eu vejo uma casinha assim, sabe da imaginação da gente quando criança, quando fala no
Natal, aquela casinha toda coberta de neve, que a única coisa que você consegue distinguir
que é uma casa.” Para lidar com a ansiedade suscitada pelo estímulo, idealizou a situação de
136
uma família em uma noite natalina, descrevendo o ambiente vivido por eles como sendo
Extremamente caloroso, né, por que se você tem a luz lá dentro da casa e tem essa condição
onde todos estão juntos, até por causa do frio, faz com que as pessoas ficam mais juntas e
fica mais aconchegante, né. Valter fez um contraponto entre o clima afetuoso vivido pela
família e o frio do mundo externo. Ao ser questionado sobre o que aconteceria depois, disse
que a vida continua, mas esse clima de alegria vai continuar, porque eles não vão
simplesmente sair e ficar do lado de fora, vão continuar juntos lá dentro, vão continuar
curtindo isso. Entendemos que Valter enfatizou a necessidade premente que sente em
permanecer no ambiente doméstico em detrimento de outras vivências que poderia ter fora do
convívio familiar, já que o ambiente externo é visto como não acolhedor.
Prancha 16
Márcia
Márcia imaginou uma foto que “tem o caminho longo, ladeado de árvores, um lugar
bem gostoso, bem tranqüilo, tudo verde, céu azul, chazinho marrom.Descreveu esse lugar
com sol, com bastante luz e com várias pessoas andando. “Existem vários caminhos e aí a
pessoa tem que escolher um caminho e a pessoa escolheu esse caminho para a vida dela, são
caminhos de tranqüilidade, de calma, de paz. Então, essa foto remete a esse lugar, tranqüilo,
calmo, onde passa assim uma, como é que a gente fala, uma brisa suave e a pessoa toda vez
que ela precisa de um momento de calma ela vai para esse lugar. Mais adiante, Márcia
prosseguiu, dizendo Esse lugar transforma essa pessoa numa pessoa tranqüila, calma, que
leva a vida tranquilamente, sem grandes expectativas que o mundo vai desabar daqui a
pouco.” Com base nessa associação, podemos pensar que Márcia falou sobre a própria
escolha de vida que ela fez, ao constituir sua própria família, na busca de uma paz e
tranqüilidade. Posteriormente, conforme ela foi desenvolvendo a narrativa, colocou o lugar
que lhe transmite paz como sendo algo ligado à religiosidade, “é um caminho que leva a
137
pessoa também a refletir o que vai vir depois que acabar essa vida que ela tem agora. Uma
vida depois que ela imagina que seja assim de um lugar calmo, tranqüilo, onde não vai ter
essas loucuras que ela viu na vida que ela leva hoje e que fazem com que ela tenha que ir às
vezes para esse lugar pensar um pouco, quando acabar essa vida e ela for para outro lugar,
ela vai ter uma vida sempre assim, tranqüila e calma Inferimos que tanto a vida familiar
como a religiosidade acabam sendo vividas por Márcia como lugares para a contenção de suas
angústias e lhe possibilitam se sentir mais tranqüila consigo.
Valter
Descreveu uma foto que tirou com a esposa e o cachorro no sítio. Contou que um dia
foi com a família para um sítio de amigos. Como ele se machucou, vestiu uma camiseta para
que Márcia não notasse o que tinha acontecido na barriga dele. Imaginava que se ela o visse
daquele jeito, iriam ao médico e perderiam aquele dia em que todos estavam juntos. As filhas
sabiam do machucado e passaram o dia inteirinho fazendo farra, elas zombando de mim,
porque eu tinha que pôr camiseta para esconder” o que tinha acontecido. Valter admitiu que
estava com dor. Pensamos que o estar em família ocupa para ele uma dimensão tão grande
que as próprias feridas e dores acabam sendo esquecidas e escondidas para se manter nesse
ambiente familiar de que ele tanto necessita.
5.3 Discussão dos dados do Casal II
Ao considerarmos mais atentamente a história de vida de Valter, vemos que ele
veio para São Paulo com o objetivo de ser padre, mas trazia nessa proposta o desejo de poder
um dia voltar à terra natal e ser olhado não mais como o filho de um bandido, mas como um
filho de Deus, o Salvador. A herança deixada pelo pai de Valter era tão forte, que seu ideal de
ego era seguir uma trajetória na Igreja e ocupar um lugar grandioso, queria ser o Padre. O
seminário seria o instrumento para voltar vitorioso e obter uma ascensão social também. Além
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disso, não podemos esquecer a origem nobre que um dos ramos de sua família de origem
tinha. Pensamos que havia um desejo de resgatar o prestígio social perdido. Entretanto,
inferimos que, ao chegar ao seminário, o grupo não sustentou tal vontade e Valter percebeu
que não conseguiria chegar a seu propósito, começando a questionar a disposição para estar
naquele lugar.
Ao sair do seminário, Valter conheceu Márcia, que logo deixou claro que o queria. A
beleza de Valter a encantou assim que o viu. Além disso, Valter tinha como predicado ser
oriundo do interior. Ele aparentava ser um bom rapaz, com um jeito respeitoso frente às
moças e tinha dificuldades financeiras. Para reforçar, ela o conheceu na igreja e ele não sabia
na época se, de fato, queria ser padre. No imaginário de Márcia, Valter tinha todos os
ingredientes de um rapaz respeitoso com as moças e trabalhador.
Como Márcia, no início, deixou claro o interesse que tinha, Valter sentiu-se tranqüilo,
pois sabia que não seria rejeitado a priori. Valter, até então, para namorar tivera que recorrer a
moças de outras cidades, em que a história de sua família não era conhecida. Se, por um lado,
sabia que poderia tê-la, por outro isso o assustava, não sabia como agir nem se comportar.
Presumimos que a paralisia de Valter, no início do relacionamento, não tinha relação
com timidez ou por ele não saber como se portar na cidade grande. Estabelecer um
relacionamento com Márcia implicava constituir uma família, que era o que ele queria, mas
que tipo de família ele conseguiria ter? Havia também um desejo de mudar de vida, de ocupar
um lugar de prestigio e de apagar o que havia passado em sua cidade.
Na prancha 2, ele identificou a cena como sendo de uma família. Na associação, Valter
projetou na geração seguinte a missão de buscar uma vida melhor, em termos de trabalho,
frente ao que seus pais tiveram. Podemos inferir quanto ele tinha a aspiração de constituir
uma família com mais recursos do que a dele, tanto no aspecto afetivo como financeiro.
Márcia oferecia para Valter a perspectiva de constituir uma família e a de Márcia
139
aparentava, na fachada, viver uma situação econômica muito boa. Desse modo, ele optou por
ficar com ela e abandonou o desejo de ser padre. Quando casaram, ela tinha a missão de
conter os impulsos de Valter, oriundos da herança paterna familiar e colocá-lo em uma vida
regrada.
Na prancha 4, Valter identificou a figura masculina como sendo impulsiva e com um
gênio caloroso” e a figura feminina, “uma coitada”, que teria que controlá-lo. O desejo da
figura feminina é apresentado como sendo contraditório; ao mesmo tempo em que sentia
vergonha, sentia um prazer na manifestação agressiva por parte do parceiro, como se, por
meio da impulsividade, o homem deixasse claro o quanto a desejava. Pensamos que Valter,
nessa associação, apresentou a visão transgeracional de homem que estava presente em sua
família de origem. Nessa prancha, a resolução do conflito somente é dada quando
perguntamos qual o desfecho da história. Espontaneamente, ele apresentou, por meio do
objeto mediador, a visão que tem de homem e mulher. Inferimos que a pergunta foi ouvida
por ele como um questionamento superegóico, pois respondeu que o homem iria refletir e
pedir desculpas.
Valter apresentou, como já foi mencionado, uma visão de masculinidade vinculada ao
desejo feminino de que o homem demonstre sua força e virilidade, algo muito presente no
relacionamento de seus pais expresso por ciúme, impulsividade e agressividade em relação à
esposa. Muszkat (2006) adverte que, nas classes sociais de baixa renda, no universo
imaginário popular, há ideais patriarcais e os homens ocupam lugares demarcados por
hierarquias. Concordamos com a autora e inferimos que a imago que Valter tem de homem é
fruto desse modelo de masculinidade herdado, atrelado às influências de um discurso do que é
ser homem no grupo social ao qual ele pertence. Sua família vem de uma cidade bem pequena
do interior e a força do masculino pode ser vista pela figura de seu avô materno. Apesar de
sua avó materna tentar manobrar a família para que seus desejos fossem atendidos, enquanto
140
seu avô era vivo a família seguia seus mandamentos, inclusive seu pai obedecia ao sogro.
Com a morte do seu avô materno, a decadência e a fragilidade do masculino ficaram mais
explícitas como podem ser vistas na própria história do pai de Valter.
O pai de Valter era filho de um anarquista italiano que questionava o poder. Pelas
histórias que Valter contou sobre seu avô paterno, inferimos que a participação dele no
movimento anarquista estava bastante pautada pela busca de liberdade e autonomia, já que ele
tinha dificuldade em acatar a lei e os limites que a vida lhe impunha. Um exemplo disso seria
como ele lidava com as gestações da avó de Valter. Toda vez que a esposa engravidava,
refugiava-se na Europa com outras mulheres. Nesse sentido, podemos pensar que o avô não se
submetia às regras impostas pela sociedade, sendo uma outra manifestação dessa atitude é a
falta de registro legal de seu casamento. O caminho profissional trilhado por esse avô seguiu
também em direção à autonomia. Deixou a vida de operário na Itália, para se tornar um pintor
de quadros no Brasil, transformando-se desse modo, em um artista que podia gerenciar sua
própria produção e alimentar suas fantasias onipotentes, que poderia agir como bem
entendesse.
No discurso dessa família, a união dos avós de Valter se dá a partir de uma sedução:
seu avô passa uma lábia (sic) em sua avó. Valter, em seu relato, frisou que a sedução
ocorreu quando sua avó estava trabalhando. Pensamos que a proposta do avô tinha duas
finalidades: uma, para atraí-la para um contato amoroso e outra, para fazer com que ela
largasse o ofício de lavadeira e alcançasse uma vida diferente. Inferimos que a família da avó
paterna de Valter, que veio fugindo da miséria vivida na Itália, vivia também em condições
difíceis no Brasil. Essa proposta do avô teria também o sentido de tirá-la dessa condição de
vida.
O vínculo conjugal dos avós paternos de Valter fundou-se com base na negação da
necessidade que o avô tinha de se submeter às leis sociais e à cultura, dando vazão às
141
fantasias onipotentes que poderiam realizar seus desejos. Esse conteúdo negado e recalcado
pelo avô de Valter recebeu o apoio inconsciente de sua avó.
Retomando as idéias de Kaës (1991), o pacto denegativo tem o objetivo de que o laço
se institua e assegure a complementaridade de interesse dos membros do grupo. Existem
interesses recíprocos, tanto do sujeito singular como da cadeia de que ele é membro, de
avalizar que aquilo que poderia proporcionar dor seja recalcado. Desse modo, o pacto
inconsciente tem a função de proteção.
Mencionamos pouco o que o avô de Valter precisou negar. Mas qual seria o
benefício que a avó teria nesse pacto denegativo? Qual seria o conteúdo que a avó de Valter
precisava reprimir e para o qual precisava buscar apoio no laço conjugal, por meio dessa
aliança inconsciente? A família da avó de Valter veio fugindo da miséria que grassava na
Itália. A família buscava a sobrevivência dentro dos “padrões morais”, ou seja, viviam à custa
do próprio trabalho e a perspectiva de vida seguia essa trajetória. Já não passavam fome no
Brasil como ocorria na Itália, mas a realidade se impunha de maneira dura para eles.
Cogitamos que o que ela nega é justamente aquilo que já estava estabelecido, a condição
sócio-econômica da família. A avó deixou-se seduzir pela lábia de um Don Juan, e ao
estabelecer um vínculo conjugal, ela aderiu à fantasia de que o casal poderia viver uma
realidade menos dura, mais prazerosa. Durante a entrevista, ele não soube fornecer mais
dados a respeito de sua avó, mas com base no material coletado, imaginamos que a condição
em que ela vivia deveria lhe gerar sofrimento, o que levou a avó de Valter a buscar um novo
tipo de relacionamento, deixando de lado os padrões moraissob os quais sua família de
origem vivia.
Esses conteúdos negados foram transmitidos sob a forma de uma herança
transgeracional para as gerações posteriores. Granjon (1990) aponta que os conteúdos
transmitidos e que foram deixados à parte são necessários para o sujeito de todo vínculo, mas
142
também são alienantes.
Essa negatividade herdada e inserida no psiquismo do pai de Valter proporcionou-lhe
uma alienação da própria subjetividade. Cresceu em uma família basicamente de homens, no
qual a dificuldade em aceitar as regras sociais caracterizava os membros daquele grupo, algo
que a família havia herdado de seus antepassados. A tia de Valter, por exemplo, estimulava
que o filho roubasse e trouxesse para casa aquilo que tinha conseguido. Inferimos que o pai de
Valter, em sua infância, não teve a presença marcante de uma figura paterna, que pudesse dar
sustentação à família.
Quando os pais de Valter se casaram, os dois passaram a viver na casa de seus avós
maternos, seguindo a tradição cultural espanhola. Na época, seu pai ainda trabalhava como
pintor de obra, enquanto seu avô paterno havia sido um pintor de quadros. Ponderamos que a
própria profissão do pai de Valter mostra também um aspecto desse declínio do masculino
dentro da família. Após o casamento, o pai de Valter foi “adotado” pelo sogro e passou ter a
profissão de genro, o que causava muitos ciúmes entre os irmãos da mãe de Valter.
Enquanto esteve vivo, o avô de Valter sustentou a vida que o genro queria levar, a de
um bon vivant. Já ao nascer, para se inserir na cadeia geracional, foi oferecido a este genro,
via contrato narcísico (Castoriadis-Aulagnier, 1975), um lugar de homem que pudesse
aproveitar a vida com plena liberdade. Com a morte do sogro, o pai de Valter perdeu o
alicerce que tinha e, por causa do jogo, levou a própria família à falência. Supomos que a
entrada do pai de Valter no movimento político da extrema esquerda, no final dos anos 60,
não estava baseada em uma visão política, como já fizera o avô de Valter em relação ao
movimento anarquista italiano. Cremos que ele usou a luta armada contra a ditadura para dar
vazão à raiva que sentia em relação ao sogro, pai simbólico, que o deixara desamparado. Essa
falta de contenção vivida pelo pai de Valter levou-o à ruína e, vendo-se encurralado, tentou,
em um rompante de ódio, eliminar a família, como se ela fosse a culpada e a causadora de
143
todo o sofrimento vivido por ele. Ao ser impedido de matar os familiares, o pai de Valter
cometeu o suicídio e deixou como herança o trauma de seu ato.
A prancha 7RH, segundo Silva (1989) e Dana (1985), evoca temas referentes à figura
paterna. Valter, após olhar brevemente o estímulo, disse que naquele dia estava com os
italianos na cabeça, ou seja, sua família paterna. Posteriormente, ele identificou a cena como
sendo de coaching (treinamento) em que os dois indivíduos estariam resolvendo uma situação
familiar. O mais velho está aconselhando o mais jovem. Refletindo sobre essa associação,
cremos que Valter não pôde identificar a circunstância como sendo de uma situação entre um
pai e filho, pois não teve essa vivência em sua casa. A falta de referência interna de uma
figura paterna próxima e presente fez que ele imaginasse que se tratava de um coaching.
Pensamos que as situações de treinamento buscam fornecer ferramentas e têm por objetivo
capacitar o indivíduo. Valter projetou a falta de ferramentas de que ele se ressente para poder
lidar com as questões familiares. A solução apresentada para o conflito suscitado foi imaginar
uma capacitação em que havia alguém mais experiente que pudesse fornecer uma referência a
um jovem. O fato de ele ter, primeiramente, associado ao lado italiano da família e, em
seguida, a uma situação de coaching nos leva a pensar que a dificuldade em lidar com a
função paterna é um traço transgeracional, que vem sendo transmitido pelos homens das
várias gerações de sua família.
Antes mesmo de ser pai, Valter já percebia a própria dificuldade em lidar com a
paternidade e a masculinidade. Contou que não desejava filhos homens, pois nunca apreciou
jogar futebol e achava que criar meninos iria ser mais difícil. Outro motivo pelo qual desejava
ter filhas é que elas, segundo ele, são mais carinhosas com o pai e poderiam na velhice cuidar
deles, seguindo o modelo espanhol de família.
Apesar da presença instável do pai na vida de Márcia, na prancha 7RH ela identificou
a cena de um neto pedindo conselhos para o avô. A situação foi descrita como sendo afetuosa
144
e as duas figuras masculinas pareciam calmas. O conflito suscitado girou em torno da
dificuldade que o neto tinha em aproveitar a experiência do avô, dando-lhe crédito. Na
história de vida de Márcia, seu avô acabou ocupando o lugar de figura paterna para ela.
Na prancha 2, Márcia identificou-se com uma moça que buscava se desenvolver
profissionalmente, longe de sua cidade. O fato de a jovem ter encontrado uma realidade mais
sofrida do que aquela que vivenciava fez que aceitasse melhor a própria condição e
possibilitou a formação de uma família.
Quando Márcia conheceu Valter, pretendia seguir uma carreira profissional. Frente às
dificuldades financeiras e à própria história de Valter, sua família parecia rica, sofisticada e
sem dificuldades. No início do namoro, Valter ficou encantado com a família de Márcia,
sempre juntos nas festas, demonstrando muita alegria. Aos poucos Valter foi percebendo que
eles também tinham muitas dificuldades. Em contrapartida, Márcia, ao perceber que ele não
sabia as regras de etiqueta, nem sabia se vestir como os rapazes da cidade grande, isso foi lhe
trazendo alívio em relação às dificuldades emocionais e financeiras que sua família
apresentava. Márcia poderia ajudá-lo, como de fato ocorreu, mas também a história dele trazia
lhe conforto e tranqüilidade frente a sua própria história.
Ao ver a prancha 19, sobre a qual levantamos a hipótese que forneceria elementos
sobre a relação da família com o mundo externo, Márcia ficou muito impactada com o
estímulo e projetou no marido a possibilidade de ter recursos internos para lidar com a
situação. Pincus e Dare (1981) apontam que, em relacionamentos duradouros, existe uma
complementaridade das necessidades, aspirações e temores presentes na vida conjugal. Tanto
Valter como Márcia explicitaram nessa prancha as fantasias persecutórias que os dois tinham
e, para lidar com elas, utilizaram como mecanismo de defesa, a idealização de um ambiente
familiar acolhedor e protetor. Apesar de associarem aspectos similares, Márcia caracterizou a
família como vivendo em condições bem simples, reclusa, morando embaixo da terra e sua
145
interação com o meio ambiente só ocorre devido às necessidades básicas de sobrevivência.
Valter retomou suas fantasias infantis de uma família vivendo um momento idealizado, no
qual todos juntos estariam passando a noite de Natal e permaneceriam assim por tempo
indeterminado.
Pensamos que o fato de os dois idealizarem o ambiente familiar deve-se à dificuldade
que eles sentiam em pensar sobre as questões da própria família e das heranças psíquicas que
receberam. Na prancha 7MF, Valter, ao se deparar com o estímulo que diz respeito à relação
mãe e filha, disse que precisaria de uma boa imaginação para elaborar uma associação,
demonstrando o quanto para ele é difícil de conceber uma cena entre uma mãe e uma filha, na
qual as duas pudessem estar juntas. Ele imaginou a cena de uma ama cuidando de uma
menina por obrigação e projetou na figura feminina um sentimento de frustração frente à
condição em que vivia.
Nessa mesma prancha, Márcia ficou muito mobilizada pelo estímulo, demonstrando
uma dificuldade inicial em se organizar. Ela perdeu o distanciamento do estímulo, no início,
pois a imagem a remeteu à própria história. Identificou-se com a menina, que, por viver em
uma família reconstituída, estaria conhecendo seu irmão por parte de pai pela primeira vez.
Descreveu uma figura materna que estaria mais preocupada em passar ensinamentos à filha e
não conseguiria perceber os sentimentos da menina. Ao projetar sentimentos de irritação por
parte da filha, Márcia revelou a falta de sintonia que existiria entre as duas, uma vez que a
figura materna foi apresentada como alguém que não consegue identificar as necessidades da
filha.
Márcia teve uma mãe que, segundo ela, só lhe “emprestou a barriga.” Durante a
entrevista, Márcia falou com muita ênfase que era filha de um casal que nunca se casou.
Pensamos que o tom enfático se deve não ao fato de os pais de Márcia não terem se casado,
mas a como sua mãe engravidou e ao tipo de vida que ela levava. A mãe de Márcia
146
apresentava em seu nome e em seu apelido um paradoxo: recebeu o nome de uma santa e o
apelido que significa prostituta. Nas poucas vezes em que a mãe veio ao Brasil visitá-la,
Márcia ficava com ela no hotel em que se hospedava. Contou que, quando a mãe chegava de
seus programas noturnos, rezava com ela. Cremos que a mãe tentava integrar dois lados
paradoxais: o de mãe e o de prostituta. Inferimos que, ao orar com a filha, ela exercia o papel
de mãe, mas também tentava que aplacar a culpa por não residir com a filha e viver uma
sexualidade desregrada.
Apesar de Márcia não saber contar a história das mulheres da família de sua mãe,
inferimos que viver a sexualidade fora dos padrões morais deva ser um traço transmitido pelas
mulheres de sua família de origem, enquanto um desejo recalcado e negado. Tal hipótese está
fundamentada na escolha do nome de sua mãe ao nascer. Pensamos que a família, ao escolher
o nome de uma santa, queria inscrevê-la na cadeia geracional como uma mulher pura que
deveria negar os impulsos sexuais como as demais mulheres do grupo familiar. Entretanto, a
mãe de Márcia não cumpriu o mandato que lhe foi designado, deixando para que ela o
cumprisse.
Freud (1912-1913, p.188) ressalta que “nenhuma geração pode ocultar, à geração que
a sucede, nada de seus processos mentais mais importantes”. Márcia, ao nascer, recebeu um
nome composto. O primeiro foi escolhido por gosto, mas o segundo nome, igual ao de sua
mãe, tinha o intuito de perpetuá-la. Márcia recebeu uma herança transgeracional, vinda de sua
mãe, referente ao conflito vinculado à possibilidade de viver a sexualidade.
Ao conhecer Valter, Márcia achou-o muito bonito e expressou seu desejo de tê-lo
como parceiro. Entretanto, queria estar com alguém disposto a levar o relacionamento a sério,
não queria algo passageiro. Supomos que Márcia tinha fantasias que poderiam estar
associadas à possibilidade de ser vista como uma moça fácil, semelhante a sua mãe, que tinha
relacionamentos passageiros. Na infância, ela já tinha vivenciado a dura experiência de ter
147
sido molestada pelo tio. Então, na escolha de um parceiro, ela queria um relacionamento em
que imperasse o respeito e a seriedade e Valter atendia a esses quesitos. Pensamos que Márcia
buscava nele uma contenção para seus impulsos sexuais que deveriam ser recalcados.
Durante a entrevista, quando questionamos sobre a vida sexual do casal, percebemos
pelo modo como eles relataram a existência da mesma. No relato de Valter verificamos
também a dificuldade que ele sentiu em iniciar um relacionamento com a esposa, por não ter
recebido nenhum tipo de orientação antes de se casar, o que o levou a buscar leituras de livros
mais específicos sobre relacionamento sexual e o mundo feminino. Supomos que a
insegurança de Valter estava vinculada ao quanto ele imaginava que Márcia era uma moça
diferente das que ele tinha conhecido até então. Márcia supriu a própria desinformação,
pedindo orientação a médicos e, com a vivência conjugal, o relacionamento deles foi
melhorando.
A prancha 4, que pode fornecer elementos a respeito da relação conjugal, causou um
impacto em Márcia, por suscitar fantasias de que o homem estaria querendo deixar a parceira.
O conflito evocado girava em torno da figura masculina, descrita como impulsiva, que não
atendia ao desejo da figura feminina. Márcia distorceu a figura ao fundo, dizendo que se
tratava de um outdoor, devido à dificuldade em pensar sobre uma possível triangulação
amorosa. Márcia questionou a própria apercepção indagando Será?”. Ela tentou entrar em
contato com a própria percepção, como essa lhe era insuportável, reprimiu o questionamento
“pela barreira do sistema percepção-consciência”. (Green, 2008, p.268).
A necessidade de eliminar da consciência a possibilidade de uma triangulação
amorosa pode estar relacionada ao fato de Márcia temer ser abandonada. Depois de poucos
meses de namoro, Márcia perguntou a Valter quais eram, de fato, suas reais intenções. Márcia
estava mais preocupada se ele iria deixá-la do que se ele queria se casar. A vivência do
abandono já estava presente na história de Márcia. Quando era pequena, sua mãe a deixou
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com seus avós para a criarem e seu pai residia com eles somente de tempos em tempos.
Conforme seu pai arrumava uma namorada e resolvia morar com ela, mudava-se de casa e,
quando o relacionamento não dava certo, voltava a morar com a família. A necessidade de ser
acolhida e ter os desejos atendidos por um outro aliado apareceu nessa prancha 4, mas
também na prancha 7MF, na qual Márcia se identificou com uma menina que ficou muito
irritada com sua mãe por não se sentir entendida em relação ao que estava sentindo.
Valter e Márcia formaram uma aliança inconsciente que garantiu para Márcia que as
fantasias de abandono fossem recalcadas. Pensamos que também havia um desejo
inconsciente de encontrar alguém que podia estar de fato em sintonia com ela, atendendo aos
seus desejos. Outro aspecto que Márcia queria recalcar e para o qual buscava apoio no vínculo
matrimonial eram seus impulsos sexuais, que poderiam gerar a vivência de uma sexualidade
fora dos padrões.
Valter, por sua vez, não soube relatar as fantasias que tinha na busca por uma parceira.
Ele sabia que queria ter uma família, uma esposa que fosse companheira, que o ajudasse e o
orientasse quando estivesse errado. Nesse pacto denegativo, Valter precisou recalcar todo o
desamparo vivido em sua família de origem. Outro aspecto que precisou ser negado por ele e,
apoiado por Márcia foi a fragilidade masculina.
Granjon (2000, p.24) adverte que, em um processo de transmissão psíquica, “O sujeito
é beneficiário, herdeiro, servidor forçado, mas também adquirente singular do que é
transmitido.” Enquanto herdeiro singular dos conteúdos vinculados à masculinidade que lhe
foram transmitidos, Valter poderia modificá-los e, desse modo, poderia haver uma integração
psíquica dos mesmos.
O pacto denegativo estabelecido pelos dois organizou a vida conjugal no início do
casamento, pois ele garantiu, em nível de recalque intrapsíquico, que aquilo que poderia gerar
sofrimento fosse retirado da consciência. Ao se casarem, Márcia foi morar com Valter na
149
cidade em que ele estava. Imaginavam que, com a vida de casados, ela iria contê-lo e eles
teriam um modelo de casamento diferente daquilo que haviam conhecido. No início do
casamento havia uma “urgência identificatória” (Missenard, 1982, citado por Missenard,
1991), queriam constituir uma família, mas faltavam referências diferentes das que eles
tinham.
Cremos que eles fantasiavam que o casamento poderia ser uma reparação a tudo
aquilo que eles tinham vivenciado. O desejo de reparação estendia-se também a seus
familiares. Valter sonhava que ele conseguiria que seu sogro parasse de beber e que fosse
morar com eles, desejava “salvar” o sogro, já que não havia conseguido ajudar o próprio pai.
Em relação à mãe de Márcia tentaram acolhê-la em sua casa, na esperança de que pudessem
transformá-la em uma mãe e futuramente em uma avó.
Entretanto, o legado da família de Valter, de caráter transgeracional, manifestou-se em
um dos conflitos do casal. Os dois estavam no sítio do irmão dele e, segundo Márcia, devido à
rivalidade que se criava entre irmãos quando se encontravam, Valter bebeu muito e Márcia
tentando contê-lo, foi agredida fisicamente. A crise vivenciada pelo casal gerou um
sofrimento intrapsíquico em ambos. O casal vivia uma contradição, tudo que eles gostariam
de não compartilhar, estavam vivendo. O sofrimento atingiu ambos e acabou sendo um marco
no relacionamento conjugal. Márcia sentiu-se verdadeiramente casada naquele momento, pois
questionou se queria continuar com Valter e optou pelo sim. Ele, por sua vez, sentiu que, de
fato, tinha um lar e não queria pôr tudo a perder.
Esse momento de crise poderia ter levado o casal à elaboração dos conteúdos negados.
Se isso tivesse ocorrido, haveria uma nova modalidade de ligação inconsciente, um novo
pacto denegativo se estabeleceria, já que aquilo que teria sido elaborado não precisaria mais
ser recalcado, passando desse modo novos conteúdos a serem retirados da consciência.
Pensamos que o uso que Valter fazia da bebida era sintoma de um conflito
150
inconsciente, vinculado à potência masculina, que não pôde ser elaborado. Em relação ao fato
de Valter ter ficado bêbado, Márcia não quis se separar frente à primeira dificuldade, já que
Valter prometeu parar de beber. Ela apoiou-se na religião e negou as dificuldades que o
marido tinha, imaginando que o fato de ele ter parado de beber solucionaria tudo.
Márcia sempre quis que Valter ocupasse o lugar de provedor da família, mas também
de um pai que estivesse envolvido e participasse da vida das filhas. Devido à própria história,
sentia-se identificada com as filhas e queria que ele fosse um pai exemplar, mas ele não
conseguia administrar tantas exigências. Quando Valter ficou desempregado pela primeira
vez, Márcia não suportou entrar em contato com a fragilidade do marido e adoeceu, tendo a
primeira crise de psoríase.
Valter contou que, para ele, as crises de psoríase da esposa se deviam também às
interferências das famílias de origem de ambos. O casal passou a ser uma referência para as
duas famílias e, quando alguém tinha algum problema, se dirigia a eles em busca de apoio.
Supomos que a doença de Márcia era a expressão do peso decorrente do legado familiar, bem
como do tipo de conjugalidade e parentalidade estabelecida. Uma manifestação disso foi
quando Márcia, querendo que as filhas tivessem uma vida diferente da dela, negou a doença,
contrariou a ordem médica e viajou para a praia, o que lhe ocasionou muita dor e sofrimento.
Outro conflito vivido pelo casal ocorreu quando Valter ficou pela segunda vez
desempregado, após ter tentado montar um negócio com o irmão mais velho. Cremos que o
desejo de se aproximar desse irmão, que levava uma vida parecida com a de seu pai, estava
apoiado na fantasia de que ele poderia salvá-lo. A impotência de Valter frente às próprias
dificuldades e às do irmão, o fato de estar sem emprego e as fantasias persecutórias de que as
filhas e a esposa não gostavam mais dele levaram-no a pensar em cometer o suicídio. Naquele
momento, Valter resgatou a história da morte de seu pai e imaginou o que as filhas passariam
e conteve seus impulsos destrutivos. Pensamos que esse mecanismo de defesa encontrado por
151
Valter para lidar com a dor foi possível devido ao amparo que Valter sentia no ambiente
familiar de então.
Mencionamos que, com a prancha 16, poderíamos obter dados do vínculo conjugal.
Valter nessa prancha fez uma associação que demonstrou a importância que a família acabou
tendo para si. Estar em família, para ele, ocupava uma dimensão tão grande que as próprias
feridas e dores acabavam sendo esquecidas e escondidas para se manter no convívio familiar.
Como já mencionamos, Valter não tinha referências introjetadas do que seria viver em
família em termos de uma relação afetividade mais presente. Valter buscou apoio na Igreja
para que pudesse obter parâmetros de comportamento. Podemos pensar que a Igreja, por meio
dos seus mandamentos, fornece uma lei clara e objetiva, o que, para Valter, era algo
importante, já que em sua família de origem esse aspecto era negado. Com o passar dos anos,
conforme os conflitos foram surgindo, o casal foi participando mais dos movimentos da
Igreja. Valter justificou, dizendo que o grupo de Encontro de Casais de que participavam
servia “para se reciclar, para evoluir. A religião ajuda, já que nós temos a predisposição
para querer ficar casados.”
Concordamos com Levisky (2006), que salienta que alguns indivíduos buscam a
religiosidade devido a um sentimento de vazio e insegurança. Pensamos que a inserção do
casal na Igreja teve uma função organizadora, os dois passaram a se sentir acolhidos e
amparados pela comunidade e Valter passou a ser identificado em seu bairro como uma
pessoa respeitável. Entretanto, durante a entrevista, Valter disse que já haviam pensado em
apelar para psicólogos” para ajudá-los. O apoio que os dois têm obtido por meio do vínculo
conjugal e da Igreja não tem sido suficiente para ajudá-los a superar o legado transgeracional
herdado.
Na prancha 16, Márcia imaginou um lugar muito bonito e tranqüilo. Depois associou
que, frente a várias possibilidades de um caminho a seguir na vida, uma pessoa escolheu esse
152
caminho de tranqüilidade, de calma e de paz. Supomos que Márcia se casou na expectativa de
vivenciar, por meio da relação familiar, um ambiente gostoso e tranqüilo. Eiguer (2006)
adverte que alguns casais se constituem na esperança de elaborarem o trauma vivido pelos
ancestrais que lhes foram transmitidos. Pensamos que os dois se casam com a expectativa de
que os traumas herdados pudessem ser elaborados. Entretanto, eles não conseguiram
introduzir e elaborar aquilo que foi negado por eles, já que é da ordem do impensável. Nesse
sentido, quando Márcia falou na prancha 16 também de um lugar a que a pessoa recorreria
para se sentir em paz, supomos que a Igreja seja esse lugar, onde ela pode pensar e tentar se
livrar dos fantasmas que a perseguem, projetando, na figura de Deus, o poder de ajudá-la.
Falar sobre religião acaba sendo um assunto que suscita muitas controvérsias. Não
pretendemos discutir a questão da fé desse casal, muito menos os movimentos da Igreja.
Queremos apontar que percebemos que, frente à história de vida de Márcia e Valter, eles
encontraram um amparo na Igreja. Entretanto, vemos que há limitações. Ao mesmo tempo em
que se sentem amparados e recebem algumas referências, por outro lado, não há espaço para
que eles entrem em contato com as próprias dificuldades.
Podemos dizer que o laço conjugal desse casal está apoiado em uma negatividade
relativa, que se constituiu daquilo que ficou em sofrimento no psiquismo. Conforme fomos
apontando, as heranças psíquicas transmitidas não puderam ser elaboradas e têm se
manifestado na vida conjugal e familiar na forma de sintoma. O casal, desde o início, tentou
estabelecer um vínculo diferente de tudo que haviam vivenciado em suas famílias de origem.
Pensamos que mesmo a escolha do parceiro teve relação com o legado familiar herdado.
Os dois vivenciaram em suas famílias de origem situações traumáticas. Não podemos
dizer que a vida conjugal não trouxe benefícios para eles. Frente ao que foi vivido, os dois
encontraram no vínculo conjugal uma experiência muito mais positiva, eles conseguiram se
organizar enquanto uma família. Entretanto, encontramos sofrimento psíquico nesse grupo
153
familiar. As crises vividas pelo casal, que poderiam levar a mudanças efetivas, conseguiram
organizar a situação vivida por eles, mas quando surgia uma nova crise, ficava evidente que as
mudanças eram superficiais. Estamos nos referindo à crise vivida quando Valter ficou bêbado
e Márcia resolveu continuar casada. Essa situação foi tão forte que Valter parou de beber e a
vida familiar se reorganizou. Entretanto, passados alguns anos, ele pediu demissão do
emprego e se associou ao irmão, na esperança de salvá-lo. Vemos nesse episódio a
manifestação desses conteúdos transmitidos que não foram elaborados. Com base nessa
análise feita, podemos dizer que as heranças de seus antepassados ainda estão muito presentes
na vida conjugal.
154
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesta tese propusemo-nos a estudar um tema complexo e amplo que diz respeito ao
vínculo conjugal em casais casados há muitos anos. Temos percebido que o fato de
pesquisarmos sobre casamento desperta interesse e curiosidade nos profissionais ligados à
vida acadêmica e nas pessoas de um modo geral. O valor dado a esse assunto deve-se ao fato
de ser um tema universal, que faz parte da vida de todos os indivíduos, pois tanto homens
como mulheres, ao se depararem com a incompletude existencial própria do ser humano,
acabam por buscar relacionamentos afetivos que possam lhes trazer satisfação íntima ou, pelo
menos, atender a necessidades de natureza diversa. No imaginário social estar casado é algo
muito importante e se considera que uma vida a dois contribui significativamente para que os
indivíduos possam enfrentar com maior facilidade as diversidades que surgem no decorrer da
existência.
Por muitos anos, os estudos acadêmicos ficaram focados nas conseqüências da
separação conjugal tanto para os casais como para os filhos, bem como nos efeitos que o
rompimento matrimonial poderia gerar para a família como um todo e para a sociedade. Os
tempos mudaram, a mulher elevou sua formação educacional, foi conquistando seu espaço no
mundo do trabalho e na esfera familiar e, conseqüentemente, o homem foi obrigado a rever o
lugar que ocupava na sociedade e na família. Atualmente, estar casado não implica
durabilidade garantida. Bauman (2004) destaca a fluidez e o caráter descartável que as
relações amorosas tendem a ter na contemporaneidade.
Por meio de um olhar mais minucioso, buscamos construir conhecimento sobre os
casais que justamente permanecem casados por muitos anos, em uma sociedade em que há
uma apologia ao descartável, ao instantâneo e ao prazer imediato. Propusemo-nos, nesta tese,
a investigar a influência que as heranças psíquicas exercem na constituição e manutenção do
155
tipo de vínculo conjugal estabelecido pelo casal. Analisamos as influências que os casais
receberam das famílias de origens e como elas interferiram na possibilidade de o casal
desenvolver uma identidade conjugal própria, enfocando tanto as influências conscientes
como as inconscientes. Buscamos um entendimento a respeito da transmissão psíquica
intergeracional e transgeracional na formação e manutenção do vínculo conjugal.
Assim sendo, pretendemos, nesta parte final, expor algumas conclusões a que
pudemos chegar. Algumas das questões que apresentamos em relação ao tema abrem espaço
para que novos pesquisadores ampliem e aprofundem o estudo desse tema. Gostaríamos de
ressaltar que as interpretações e as conclusões foram recortes feitos com base no referencial
teórico utilizado nesta tese. Entretanto, sabemos que, devido à riqueza do material coletado,
seria possível eleger diferentes partes do mesmo para serem analisadas. Assim, outros
referenciais teóricos poderiam ter sido utilizados e, sem dúvida nenhuma, os dados poderiam
ser abordados sob outra ótica.
Optamos por iniciar nossa apresentação teórica contextualizando o surgimento e o uso
do termo vínculo. Em seguida, retomamos os textos principais de Freud em que a questão da
herança psíquica é tratada. Apesar de Freud não ser um teórico que tenha se preocupado em
demasia com a questão do grupo, é possível encontrar em seus trabalhos relações entre a
psicologia individual e a psicologia do grupo.
Observamos o quanto nas últimas décadas alguns psicanalistas buscaram ampliar o
entendimento a respeito da origem dos sintomas, devido às novas patologias que vinham
surgindo. Então, mostramos que o conceito de transmissão psíquica foi retomado pela
psicanálise, principalmente a de casal e família, e a questão das heranças psíquicas assumiu
relevância no entendimento do sofrimento psíquico.
Dentro do objetivo de construir um arcabouço teórico sobre a transmissão psíquica,
trouxemos as análises que René Kaës faz a respeito dos textos de Freud que abordam esse
156
tema. Desse modo, expusemos a noção de transmissão psíquica na constituição do sujeito.
Apoiando-nos nas teorizações de Kaës, fundamentamos a metapsicologia da
intersubjetividade que entende o sujeito como sujeito do grupo, que tem seu destino atrelado
ao encadeamento geracional e ao grupo em que está inserido.
Apresentamos e diferenciamos os tipos de herança psíquica, a intergeracional e a
transgeracional. Evidenciamos que o negativo assume um lugar de destaque no processo de
transmissão psíquica. Portanto, expusemos o uso do termo negativo dentro da psicanálise e,
com base no referencial teórico de Kaës, apresentamos as três modalidades de negatividade: a
de obrigação, a relativa e a radical. Por fim, buscamos, amparando-nos no pensamento de
alguns teóricos da atualidade, apresentar como entendemos que se organiza a constituição do
vínculo conjugal.
Quanto aos entrevistados, apesar de apresentarem histórias de vida tão diferentes, o
fato de já terem sido estabelecidos alguns critérios prévios para sua seleção garantiu uma
semelhança básica entre os mesmos que permitiu aprofundar a análise. Os dois casais moram
perto da região central da cidade de São Paulo em bairros de classe média alta. O tempo de
casamento é muito próximo, o casal I estava casado há vinte e dois anos e o casal II, há vinte
e cinco anos. Nenhum dos entrevistados fez algum tipo de processo psicoterapêutico.
As famílias de origem desses casais são de imigrantes, que vieram morar no Brasil no
início do século XIX. Não nos aprofundamos nessa questão, pois não foi nosso objetivo
estudar o tema da imigração. Entretanto, na família de Valter as culturas de seus ancestrais
são um traço marcante e algumas expectativas em relação a alguns comportamentos têm
relação com a cultura do país de origem a eles transmitida. Um exemplo é quando Valter disse
que gostaria que suas filhas seguissem a tradição espanhola, em que as filhas cuidam dos pais
depois que se casam, quando estes estiverem mais velhos.
157
As duas mulheres têm profissão e curso universitário. Sofia sempre trabalhou e Márcia
atuou profissionalmente apenas por alguns períodos durante a vida de casada. Apesar de os
dois casais apresentarem situações financeiras deficitárias, o papel de provedor do casal era
do homem. Sofia ganhava menos do que o marido, mas, durante o período em que Adriano
esteve desempregado, seu salário foi muito importante para a sobrevivência da família.
Apesar de contribuir significativamente para manter a casa, essa situação sempre foi vivida
pelo casal como uma ajuda e, durante a entrevista, Sofia deixou evidente o quanto lhe era
oneroso trabalhar tanto. Entendemos que Sofia sente como um peso o fato de ter que trabalhar
para ajudar financeiramente a família por causa das expectativas que ela tem de que Adriano
seja realmente o provedor da casa.
Quando os filhos nasceram, as duas mulheres queriam ajuda dos maridos para o
cuidado dos mesmos e também queriam que eles participassem da sua vida diária. Adriano
contou que perdia reuniões de trabalho para assistir às apresentações na escola de seus filhos.
Pensamos que esses dois casais apresentam uma característica comum a muitos casais na
atualidade. Essas mulheres desejam que os maridos participem da criação das crianças, algo
que antigamente era tarefa exclusivamente feminina. Cremos que tal desejo está de acordo
com o novo papel que os homens vêm assumindo nas relações familiares. Entretanto, quando
os dois casais salientam que o homem deve ser o provedor da família, percebemos que existe
também uma expectativa de que esse homem tenha um papel pautado no modelo tradicional
de família, demonstrando, nesse sentido, uma contradição em relação ao que esperam de um
homem.
Os dois homens resolveram se casar para constituir família e levar uma vida mais
regrada. Adriano desejava "sossegar o fachoe Valter queria também ter uma vida de casado
para que sua vida tomasse um rumo diferente do que estava ocorrendo. Nos protocolos do
TAT, encontramos elementos importantes para pensarmos a visão de homem e mulher que
158
esses casais têm. Os dois casais apresentam, na prancha 4, a figura masculina como impulsiva
e a feminina tentando contê-lo. Tanto Adriano como Valter caracterizaram o homem como
sendo forte. Adriano frisa em sua associação que o homem conseguirá se desvencilhar da
mulher devido à força. Inferimos que ele estava se referindo à força física, pois a mulher
tentava contê-lo segurando-o.
Pensamos que o traço mais significativo e semelhante entre os dois casais é a questão
do masculino. A fragilidade masculina apareceu nas duas famílias. Como mencionamos
pouco, as duas mulheres tinham desejos contraditórios em relação ao que esperavam de um
homem, ora queriam uma relação simétrica, na qual pudessem dividir com os parceiros a vida
familiar, ora queriam um homem para ampará-las, que ficasse no lugar de provedor. Os
homens, por sua vez, identificaram que a força do masculino estaria mais no corporal do que
numa capacidade interna. Na discussão dos dados de cada casal, fomos apontando o declínio
do masculino nas gerações dos antepassados de Valter e Adriano.
Percebemos que os dois homens tiveram dificuldade em constituir a própria
subjetividade, principalmente naquilo que diz respeito ao masculino. Queremos dizer em
relação ao lugar que ocupam na vida conjugal e familiar. Essa dificuldade está atrelada às
heranças transgeracionais, mas também ao momento sócio-histórico em que vivemos. Em
publicação anterior (Paiva, 2003), apontamos que na atualidade podemos encontrar vários
tipos de casamento: tradicional, moderno e pós-moderno. Vivemos uma época em que há uma
diversidade de discursos e possibilidades de papéis e lugares para mulheres e homens
ocuparem. Não é por acaso que as esposas não sabem ao certo o que esperar de seu marido. A
falta de um padrão, de um modelo único de conduta, abre para os casais a possibilidade de
viverem situações diversas. Na atualidade, diferentemente de outras épocas, quando havia um
discurso moral que impunha regras de conduta, hoje temos um leque de opções sobre como
159
conduzir um relacionamento. Convivemos com vários tipos de famílias: monoparentais,
reconstituídas, homoparentais, entre outras.
Então, por que esses casais apresentam uma dupla mensagem acerca das expectativas e
desejos em relação ao cônjuge? Cremos que não se trata apenas de uma construção social, um
período de transição, em que os casais buscam construir modos novos de se viver, mas de
uma dificuldade originada da falta de uma referência.
Nesta tese investigamos de que modo as heranças psíquicas exercem influência na
constituição e manutenção do tipo de vínculo conjugal estabelecido pelo casal e chegamos à
conclusão de que as heranças psíquicas transgeracionais foram determinantes na constituição
do vínculo conjugal, para esses casais pesquisados e dificultaram o estabelecimento de uma
identidade conjugal e familiar própria.
Os dois casais afirmaram que não gostariam de repetir os modelos de casamento de
seus familiares. Na prancha 2, Sofia revelou, em sua associação, o conflito intrapsíquico em
querer seguir o próprio caminho e deixar a família de origem. A hipótese que havíamos
levantado de que o tipo de vínculo conjugal construído estaria atrelado ao tipo de herança
recebida, intergeracional e/ou transgeracional confirmou-se. Os dois casais formaram pares
complementares, mas não no sentido de que Pincus e Dare (1981) falam, ou seja, que um
casal pode formar um par complementar e isso pode assumir um aspecto terapêutico.
Pensamos que eles tentam viver, por meio da vida conjugal, uma reparação daquilo que foi
possível de ser vivido em suas famílias de origem. Entretanto, percebemos que a
complementaridade assumiu seu lado negativo nesses casais, pois cada cônjuge permaneceu
em lugares fixos e rígidos dentro da relação conjugal.
Levantamos, nesta tese, a hipótese de que a manutenção do casamento estaria
relacionada à história e/ou à herança das famílias de origem, pois a dinâmica do casal estaria
atrelada ao mecanismo de transmissão psíquica. Entendemos que muito do que foi vivido pelo
160
casal II, em termos de dinâmica conjugal, diz respeito às heranças inter e transgeracionais.
Pensamos que Márcia e Valter, durante os anos de casamento, lutaram para não reproduzir o
modelo de casamento de seus ancestrais. Contudo, o aspecto da fragilidade masculina, que foi
transmitido pela modalidade da negatividade relativa, acabou se manifestando em vários
períodos da vida conjugal. Ao se referir aos percalços difíceis de sua vida profissional, Valter
disse que permaneceria nesse emprego até fazer a próxima loucura. Em um momento de
lucidez, Valter denunciou o quanto ele percebia que acabava cometendo “loucuras”. Frente a
essa fala de Valter, Márcia riu e disse que ele não tinha mais idade para isso. Cremos que as
“loucuras” de Valter tinham uma função na dinâmica conjugal, pois Márcia não precisava
entrar em contato com a própria loucura, a de viver uma sexualidade desregrada que ela tanto
recalcava.
Supomos que a manutenção do casamento para Sofia e Adriano também está
relacionada à história e à herança das famílias de origem. Entretanto, Sofia pareceu-nos muito
cansada e questionando a própria dinâmica conjugal. Como não se tratava de uma intervenção
psicoterapêutica, não sabemos se esse conflito vivido pelo casal possibilitou a elaboração dos
aspectos denegados. Parece-nos importante dizer que, apesar de termos vislumbrado uma
pequena possibilidade nessa direção, acreditamos que o caminho mais eficaz para a
elaboração das heranças transgeracionais se dá por meio de um processo psicoterapêutico,
seja individual ou grupal (casal ou familiar).
Um aspecto relevante a ser mencionado são os caminhos que eles buscam para tentar
dar conta do legado familiar que invade sua vida. Márcia e Valter buscaram sustentação
emocional no convívio familiar e na vivência religiosa. Sofia e Adriano, por sua vez,
procuraram apoio para os aspectos denegados na família de origem de Sofia e, desse modo,
passaram a ser cuidados pela mãe dela. Entretanto, ficou evidente para nós que os caminhos
que esses casais encontraram não são eficazes.
161
Nos dois casais encontramos a presença, entre outros, de vários sintomas: alcoolismo,
obesidade, TOC, psoríase, jogo compulsivo, tanto na família nuclear desses casais como nas
famílias de origem. Desse modo, confirmamos a hipótese levantada de que a não elaboração
das heranças psíquicas recebidas acaba gerando sintomas físicos e psíquicos no grupo
familiar.
Em relação ao Teste de Apercepção Temática, gostaríamos de enfatizar que sua
aplicação foi de grande valia neste estudo enquanto objeto mediador das formações
intermediárias. A hipótese de Herzberg (2003, 9 de junho)
36
, que mencionamos no capítulo do
método, de que a prancha 16 poderia fornecer dados sobre a vida conjugal se confirmou nesta
pesquisa. Valendo-se prancha, pudemos entender mais profundamente o significado de
estarem casados e como eles se organizavam.
Dissemos, no capítulo III, que a prancha 19 poderia fornecer dados sobre os vínculos
familiares. Encontramos em todas as associações desta pesquisa conteúdos que remetem ao
ambiente familiar e à relação que a família estabelece com o mundo externo. Contudo,
sugerimos que novas pesquisas sejam desenvolvidas a respeito da norma temática dessa
prancha para possibilitar a verificação das nossas conclusões.
No que se refere às entrevistas, ocorreu algo significativo que deve ser mencionado.
Conforme os casais foram relatando sua história de vida e algumas perguntas eram feitas,
percebemos que a entrevista ia assumindo um aspecto terapêutico para eles, à medida que
paravam para pensar nas histórias, no modo como foram construindo a própria vida, a
conjugalidade e a família atual. Em alguns momentos, disseram que nunca haviam pensado
sobre aquele aspecto que estava sendo conversado.
Consideramos que o laço conjugal dos dois casais pesquisados está apoiado, com base
na teoria de Kaës (2003), na modalidade de uma negatividade relativa, devido aos conteúdos
36
Vide nota 24, no Capítulo 3.
162
que foram passados pelas gerações antecessoras que eram da ordem do sofrimento, como já
mencionamos na discussão dos dados de cada casal. Entendemos que as heranças psíquicas
transmitidas determinaram tanto a escolha quanto a manutenção conjugal.
Gostaríamos de terminar, retomando o ditado chinês sobre o fato de nossos
antepassados viverem em nós. Na China, o sentido desse ditado refere-se a uma visão
religiosa a respeito da presença do espírito dos antepassados na vida do indivíduo. Apesar de
não ser uma visão psicanalítica como a que foi exposta nesta tese, ousamos trazê-la aqui, pois
pensamos muito durante todo este estudo sobre a presença dos antepassados na vida do
indivíduo, pois muitas vezes assombram a vida psíquica do sujeito, como um espírito vagando
em uma casa mal assombrada.
Concluímos, trazendo a célebre frase de Goethe, citada por Freud (1913-1914, p.188)
“Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu.”
163
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170
APÊNDICES
APÊNDICE A GUIA DE ENTREVISTA CONJUGAL E FAMILIAR
APÊNDICE B TERMO DE CONSENTIMENTO
171
APÊNDICE A GUIA DE ENTREVISTA CONJUGAL E FAMILIAR
37
1. FAMILIOGRAMA
2. ESQUEMA DA ENTREVISTA
- data
- entrevistado
- n° de entrevistas
- observações
- Data do casamento
3. FAMÍLIA NUCLEAR (pai, mãe e filhos)
- nome
- parentesco
- idade
- sexo
- ordem de nascimento
- estado civil
- ocupação
- religião
- parentes e não parentes que convivem no mesmo lar
- identidade grupal da família nuclear: status sócio-econômico, mobilidade social e integração
em grupos sociais.
4. FAMÍLIA AMPLIADA
Família Matrilinear
conte a história dos seus pais, avós
Família Patrilinear
conte a história dos seus pais, avós
- Como eram as famílias na cidade de origem?
- ambiente na casa dos sogros antes do casamento
- como eram os papéis de marido e esposa, tipos de casamentos nas famílias de origem.
- Há segredos familiares, histórias familiares “mal contadas”?
37
Baseado no guia de entrevista de Paiva (2003), que foi desenvolvido a partir dos modelos de guia de entrevista
de Melllo (1990) e Térzis (1987).
172
5. HISTÓRIA E PRÉ-HISTÓRIA DOS FAMILIARES (ESTUDO DIACRÔNICO)
5.1. Família Nuclear
- como os cônjuges se conheceram
- como se deu a escolha do parceiro (fantasias)
- Como imaginavam que seria o parceiro depois do casamento?
- reação dos genitores do casal parental em relação ao namoro/casamento
- noivado/ casamento (como, por que, em que momento se casaram)
- como foi a organização da vida conjugal
- Quando vocês se sentiram casados?
- Quando vocês sentiram que formaram uma família?
5.1.1 Os filhos
- a decisão de ter filhos, como foi?
- queriam ter um filho homem ou mulher, levando em conta as histórias e mitos familiares.
- nascimento dos filhos por ordem; mortes possíveis.
- relacionamento do casal após o nascimento de cada filho.
- se existe algum filho com problemas; se existe, quais são e como são as reações e atitudes
dos pais e irmãos com ele; quem cuida mais dele e como é esta relação; com quem ele se
parece.
- escolha dos nomes
6. DINÂMICA NO CASAL
6.1. Situação sócio-econômica e cultural da família
- religião; inserção social (suas crises eventuais)
- situação econômica; dificuldades; habitação e alimentação
- relacionamento no trabalho, no bairro (na comunidade)
- vínculos com a família ampliada
- Como os fatores acima interferem na relação conjugal?
6.2.Caracterização dos conflitos
- Eles se manifestam? Entre quem e quem? São verbalizados? São relacionados com o quê?
Como e em quais circunstâncias são desencadeados?
- se existe nos cônjuges uma forma espontânea de resolver estes conflitos.
- a natureza dos conflitos (motivos)
- os conflitos são admitidos?
- circunstâncias das crises (acontecimentos anteriores ou concomitantes ao aparecimento das
crises)
- a família (ampliada e nuclear) abalou-se com a crise? Como?
- o reequilíbrio; o que aconteceu após a crise; se houve mudança no comportamento de um
dos cônjuges ou na relação conjugal
- se houve separação em algum momento ou abandono temporário do lar por um dos cônjuges
- Ocorre semelhança com a história dos pais, avós...?
6.3. Estudo dos Papéis
- papel prescrito, papel assumido e papel esperado, para cada um; papel aceito como
assumido; distorção dos papéis sexuais fundamentais - marido/mulher/pai/mãe/filho.
- complementaridade dos papéis; se a complementaridade é tolerada; se existe uma adaptação
recíproca aos papéis, se há flexibilidade; se as tarefas são divididas.
- comparar com as gerações passadas
173
6.4. A comunicação
- como é a comunicação entre o casal?
6.5 A sexualidade do casal
- como eles vivem a sexualidade no casamento; como a sexualidade desenvolveu-se nesses
anos, aspectos que consideram positivo e negativo
- educação sexual - receberam algum tipo, dão algum tipo
- comparar com as gerações passadas
6.6. Identificação e identidade
- ao nível manifesto, como cada um se vê e vê o outro;
- como eles gostariam que o outro cônjuge fosse;
- qualidades e defeitos (na própria pessoa e no outro)
- se estas descrições correspondem às descrições de seus pais (observar as dificuldades e as
confusões de identidade)
- expectativa dos pais quanto ao futuro dos filhos (gênese de ideal de ego).
7. No seu casamento você se vê parecida(o) com seu genitor(a)?
174
APÊNDICE B TERMO DE CONSENTIMENTO
Concordamos em participar como voluntários da pesquisa A intergeracionalidade na
constituição do vínculo conjugal
38
. Esta pesquisa estará sendo realizada para a sua tese de
doutorado junto ao programa de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade
de São Paulo com casais casados. Foi nos explicado que essa pesquisa pretende estudar os
vínculos matrimoniais que os casais estabelecem, tanto os conscientes como os inconscientes
e a interferência de suas famílias de origem na constituição desses vínculos.
Para isso, concordamos em participar de entrevistas que serão realizadas em nosso
domicílio. Além das entrevistas, foi nos informado que será aplicado um instrumento
projetivo de nome TAT, individualmente, isto é, o marido separado da esposa. Para realizar
todas essas atividades, serão necessários em torno de três encontros.
Autorizamos, ainda, que a entrevista seja gravada em fita cassete para que não se deixe
passar despercebido nada do que foi conversado e que pode ser importante para a pesquisa.
Estamos conscientes que este estudo possui uma finalidade de pesquisa nos meios
acadêmicos, podendo os dados obtidos ser utilizados em publicações científicas sem que as
pessoas participantes sejam identificadas.
Declaramos ainda:
1) que estamos aceitando voluntariamente a participação nesse estudo, não tendo sofrido
nenhuma forma de pressão para isso;
2) que fomos assegurados de que as identificações serão mantidas sob absoluto sigilo,
sendo suprimidas ou alteradas informações que possamos ser identificados.
São Paulo, de de
____________________________ ____________________________
Assinatura da esposa Assinatura do marido
____________________________
Assinatura da pesquisadora
38
No momento em que a entrevista foi realizada, esse era o título do trabalho ainda provisório.
175
ANEXOS
ANEXO PARECER DO COMITÊ DE ÉTICA
176
ANEXO PARECER DO COMITÊ DE ÉTICA
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