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Até que ponto na equação freudiana dos sonhos, um sonho traumático pode
ser chamado de sonho? Neste sentido, ao considerar a premência do aparelho
psíquico de controlar o pulsional que insiste no sonho, evocamos Poulichet (1996)
que cita a proposição de Dayan de pensar a exceção dos sonhos traumáticos,
admitida por Freud, como sendo talvez a regra
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.
Em 1923, também a partir da clínica, principalmente em relação à resistência,
Freud revê a relação do eu com o inconsciente e introduz uma reformulação tópica.
A superposição da segunda tópica à primeira o leva, entre outras proposições, à
postulação da existência de aspectos inconscientes do eu
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. A compulsão à
repetição que causa desprazer ao eu está do lado do recalque, do inconsciente.
Mas, se o recalque causa o inconsciente, o que causa o recalque?
O recalcado é o que fere o narcisismo
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, é o que decorre de uma fonte de
estimulação intensa. O recalque parte do eu e é uma defesa contra a angústia que
ameaça essa unidade imaginária do sujeito. A angústia, para Freud, na primeira
tópica, é concebida como a carga libidinal livre, não ligada a uma representação,
que emerge na consciência como consequência do recalque. Na segunda tópica,
Freud propõe a angústia como causa do recalque, como uma angústia sinal de
desprazer percebido pelo eu que aciona o recalque. Pode-se pensar num momento
fundador, em que uma representação de fato produziu angústia, e num momento
posterior, aonde há uma evitação, via recalque, do que já produziu essa angústia.
A causa da angústia é ligada à noção de eu e de narcisismo, e o eu não
coincide com a consciência. Freud, em “Inibições, sintoma e angústia”, trata das
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A outra exceção à teoria dos sonhos, citada em “Mais além do princípio do prazer”, é os sonhos que ocorrem
durante o tratamento analítico.
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Deve-se atentar à tradução do termo Ich utilizado por Freud como o pronome pessoal ’eu’ em oposição ao
termo técnico ‘ego’, que nunca existiu na obra de Freud em alemão.
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Aqui a referência de narcisismo utilizada é a de 1914, ligada à ideia de estrutura, em oposição à de 1936, de
narcisismo como um estado ligado a propriedades biológicas, tendência do organismo vivo a retornar ao estado
de equilíbrio básico, tendência à morte.