Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
DANIELA PROVEDEL
OS SONHOS E OS PSICANALISTAS:
DITOS, NÃO-DITOS E INTERDITOS
São Paulo
2009
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
DANIELA PROVEDEL
OS SONHOS E OS PSICANALISTAS:
DITOS, NÃO-DITOS E INTERDITOS
Dissertação apresentada ao Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo
como parte dos requisitos para obtenção do
grau de Mestre em Psicologia.
Área de concentração:
Psicologia Clínica
Orientadora:
Profa. Dra. Léia Priszkulnik
São Paulo
2009
ads:
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA
FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogação na publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Provedel, Daniela.
Os sonhos e os psicanalistas: ditos, não-
ditos e interditos / Daniela
Provedel; orientadora Léia Priszkulnik- São Paulo, 2009.
196f.
Dissertação (Mestrado Programa de Pós-Graduação em
Psicologia. Área de Concentração: Psicologia Clínica) – Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo.
1. Sonho 2. Psicanálise 3. Psicanalista 4. Freud, Sigmund, 1856-
1939 5. Clínica psicanalítica I. Título.
BF1078
Daniela Provedel
Os sonhos e os psicanalistas: ditos, não-ditos e interditos
Dissertação apresentada ao Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo
como parte dos requisitos para obtenção do
grau de Mestre em Psicologia.
Área de concentração:
Psicologia Clínica
Aprovado em: ___/___/____
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. ____________________________________________________________
Instituição: ______________________________. Assinatura:__________________
Prof. Dr. ____________________________________________________________
Instituição: ______________________________. Assinatura:__________________
Prof. Dr. ____________________________________________________________
Instituição: ______________________________. Assinatura:__________________
Prof. Dr. ____________________________________________________________
Instituição: ______________________________. Assinatura:__________________
Dá-me a tua mão: Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha
busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número
dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de
música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia, por mais
juntos que estejam, existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir
nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do
mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.
Clarice Lispector
(A paixão segundo GH)
Dedico este trabalho
Aos meus queridos pais,
que me sonharam amorosamente e que
sempre nutriram meus sonhos.
A minha avó Ivone e à Kika,
exemplos de força e coragem.
Ao meu amor Zan,
amor de todos os tempos, amor de uma vida.
Delicada presença que me ajuda a ouvir o silêncio
e a sentir a respiração do mundo.
AGRADECIMENTOS
A gratidão é a mais agradável das virtudes; não é, no entanto, a mais fácil.
Por que seria? [...] No caso da gratidão, todavia, a satisfação surpreende menos que
a dificuldade [...] A gratidão é um segundo prazer, que prolonga um primeiro, como um
eco de alegria à alegria sentida [...] O fato de ela ser uma virtude, porém, basta para mostrar
que ela não é óbvia, que podemos carecer de gratidão e que, por conseguinte, há mérito –
apesar do prazer ou, talvez, por causa dele – em senti-la. Mas por quê? A gratidão é um
mistério, não pelo prazer que temos com ela, mas pelo obstáculo que com ela vencemos. É a mais
agradável das virtudes, e o mais virtuoso dos prazeres.
André Comte-Sponville
(Pequeno Tratado das Grandes Virtudes)
Agradeço a minha orientadora por me ajudar a voar, sonhar e despertar.
Professores, mestres, analistas, supervisores, banca de defesa, colegas
pesquisadores, funcionários do IPUSP: obrigada pela presença genuína e generosa!
Amigos revisores e interlocutores, amigos musicais, amigos de profissão, amigos de
momentos, amigos que se foram, amigos de sempre: amo vocês!
Zan: obrigada por estar muito pacientemente em cada página deste trabalho.
Você é o início e o fim, lugar de compreensão, incentivo e amor profundo para onde
sempre volto e onde quero viver, sempre.
Pelo encontro essencial e transformador, agradeço, com muito carinho, aos
entrevistados, pacientes, alunos e a minha família, em sua configuração “original”, e
aos agregados – fixos e passageiros – que me fazem intensamente feliz!
Sonhei que era proibido sonhar, mas sonhei mesmo assim.
Relato de vítima de campo de concentração
colhido por Charlotte Beradt
Bulkeley (1994, p. 123)
Sonho, logo existo.
August Strindberg
Dramaturgo
RESUMO
PROVEDEL, D. Os sonhos e os psicanalistas: ditos, não-ditos e interditos.
2009. 196f. Dissertação (Mestrado) Instituto de Psicologia, Universidade de São
Paulo, 2009.
Esta pesquisa trabalha com relatos de psicanalistas a respeito de suas práticas
clínicas, na busca de uma interlocução crítica com as asserções freudianas sobre os
sonhos no processo analítico. Em Freud, é patente e inigualável a importância
conferida aos sonhos nos âmbitos metapsicológico e clínico. Entretanto, apesar de
ampla disseminação da psicanálise e da teoria onírica, desde a publicação da
Traumdeutung até o final de sua vida, Freud questionou e criticou a compreensão,
produção teórica e o trabalho clínico dos analistas referente aos sonhos. algo de
peculiar e ambíguo na relação dos analistas com os sonhos, e isso é anunciado
desde Freud, mas esse tema é pouco abordado na literatura psicanalítica. Trata-se
de um assunto que merece ser investigado, considerando o lugar primordial
conferido aos sonhos pelo fundador da psicanálise, bem como por seus seguidores.
Como são trabalhados os sonhos na clínica hoje em dia? Como os analistas se
apropriaram, ou não, das propostas freudianas sobre os sonhos? Como se esta
relação peculiar entre os analistas e os sonhos? Será que existe um não-dito sobre
o tema? Este trabalho fundamentou-se no todo psicanalítico para abordar essas
e outras questões, e utilizou duas dimensões centrais de procedimentos: pesquisa
bibliográfica e entrevistas com analistas de diversos percursos de formação e
reconhecida trajetória na área.
Palavras-chave: Sonhos. Psicanálise. Psicanalistas. Freud. Técnica psicanalítica.
ABSTRACT
PROVEDEL, D. Dreams and psychoanalysts: saids, non-saids and interdicts.
2009. 196f. Dissertação (Mestrado) Instituto de Psicologia, Universidade de São
Paulo, 2009.
In search for a critical interlocution with Freud’s conceptions about dreams in
analytical process, this research works with the accounts of some psychoanalysts
about their clinical practice. In Freud, is clear and unique the importance conferred to
the dreams in metapsychological and clinical scope. Despite the ample dissemination
of psychoanalysis and the oniric theory, from the publication of the Traumdeutung to
the end of his life, Freud questioned and criticized analysts about their
understanding, theoretical production and clinical handling of dreams. There is
something peculiar and ambiguous on the relation between analysts and dreams, but
there are few approaches on this subject in psychoanalytical literature. It is a subject
that deserves to be investigated, regarding the primordial place that psychoanalysis
founder and its followers had conferred to that. How are dreams managed by some
psychoanalysts at the present time? How analysts relate to dreams? How analysts
deal with freudians propositions about dreams? Is there a non-said among
psychoanalysts about dreams? This work was based on the psychoanalytical method
to reflect on these and other questions, and had used two dimensions of procedures:
bibliographical research and interviews with analysts of different backgrounds and
with recognized experience at the area.
Key-words: Dreams. Psychoanalysis. Freud. Psychoanalysts. Psychoanalytical
practice.
SUMÁRIO
RESTOS DIURNOS...................................................................................
11
INTRODUÇÃO..........................................................................................
12
PARTE A O SONHO PARA FREUD.......................................................
38
1 SONHOS DE CRIANÇAS..........................................................................
39
2 AUTOANÁLISE E FORMAÇÃO DO ANALISTA......................................
50
3 INSTITUCIONALIZAÇÃO DO SONHO?...................................................
58
4 ESTRADA REAL.......................................................................................
67
5 MAIS REALISTA QUE O REI?..................................................................
74
6 OS SONHOS NA CLÍNICA........................................................................
79
6.1
A IMPORTÂNCIA DOS SONHOS NO TRATAMENTO.....................................
79
6.2
SONHOS: TRANSFERÊNCIA, SUGESTÃO E RESISTÊNCIA...........................
82
6.3
O MANEJO DOS SONHOS NO TRATAMENTO ANALÍTICO.............................
85
6.4
ALGUMAS REVISÕES METAPSICOLÓGICAS E IMPLICAÇÕES TÉCNICAS........
93
7
INCERTEZAS E CRÍTICAS…………………………………………………..
101
PARTE B O QUE OS ANALISTAS TÊM A DIZER?...............................
106
1 PERCURSO METODOLÓGICO……………………………………………..
107
1.1
SINGULARIDADES METODOLÓGICAS......................................................
107
1.2
COM QUEM EU FALO?...........................................................................
115
2 O QUE DISSERAM (OU NÃO) OS ANALISTAS.......................................
118
2.1
SER, ESTAR, TORNAR-SE: OS SONHOS E A FORMAÇÃO DO ANALISTA........
119
2.2
NEM KLEINIANO, NEM BIONIANO, NEM....................................................
125
2.3
OS SONHOS NA CLÍNICA.......................................................................
127
2.3.1
FUNÇÃO E IMPORTÂNCIA DOS SONHOS.......................................
127
2.3.2
CAIXA DE PANDORA: O MANEJO DOS SONHOS NO TRATAMENTO....
130
2.3.3
VIA RÉGIA?..............................................................................
142
2.3.4
ALGUMAS REFLEXÕES METAPSICOLÓGICAS.................................
149
2.3.5
O SONHO ACABOU?..................................................................
153
2.4
DA VIA RÉGIA AO SONHO QUÂNTICO.......................................................
161
2.4.1
SONHO, ARTE E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA.....................................
163
2.4.2
SONHOS, MÍDIA E CONSUMO......................................................
169
2.4.3
SONHO QUÂNTICO....................................................................
173
CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................
178
REFERÊNCIAS.........................................................................................
187
11
RESTOS DIURNOS
“O sonho, caminho privilegiado segundo o pai da psicanálise, Sigmund Freud,
para a lógica do inconsciente, está sumindo.” Ao ler essa primeira frase em artigo do
jornal Folha de São Paulo, em 2004, fui tomada por inquietude.
A inquietude foi crescente ao me deparar com as proposições que se
seguiram: “crise da via régia”, “diminuição dos sonhos”, “desinteresse pelos sonhos”,
“a crise dos sonhos é a crise da cultura”, entre outras.
Mas isso não acontece na minha clínica! Será?
Nada melhor do que um “será” ou certo desassossego para empreender uma
pesquisa de mestrado! Fome de saber, como diria Adélia Prado.
Diante de tal inquietude algumas questões surgiram: Que sonhos são esses
referidos na reportagem? Qual o lugar dos sonhos na clínica hoje? O que meus
companheiros de “ofício impossível” diriam sobre o assunto? alguma
peculiaridade na relação do psicanalista com o sonho?
As reações de alguns colegas analistas também foram instigantes, quando eu
relatava interesse em fazer uma pesquisa relacionada aos sonhos. Foi recorrente
uma polarização nos comentários, que iam de certo enfado a um encantamento em
relação ao tema. De um lado, reações como: “Pesquisa sobre sonhos? Tenho a
impressão de que quase tudo foi dito sobre isso...”. De outro, manifestações
quase quixotescas acompanhadas de preocupação, questionamentos ou indignação
em relação à possível “crise onírica”.
Tudo já foi dito? Algo não pode ser dito? Eu quero escutar.
12
INTRODUÇÃO
O sonho acabou?
1
Alguns analistas arriscam a dizer que, de certo modo, sim.
Nota-se em diversas publicações psicanalíticas o alerta de que, apesar das
neurociências nos “garantirem” a existência de sonhos diários (sem os quais não
sobreviveríamos), a importância do sonho, tal como proposta por Freud, sofreu
profundos abalos na clínica desde o surgimento da psicanálise. Outros analistas,
mais otimistas, localizam o sonho e, mais especificamente, o sonhar num lugar
privilegiado, principalmente no que diz respeito à técnica e ao setting analítico. Há,
também, os que garantem a atualidade da Traumdeutung (“A Interpretação dos
Sonhos”, livro inaugural de Freud sobre o assunto) e os que proclamam sua
caducidade. O que podem significar essas divergências? Como são trabalhados os
sonhos na clínica psicanalítica hoje? O que os analistas têm a dizer sobre este tema
em interlocução com as propostas freudianas? Estas são algumas das perguntas
que norteiam este trabalho.
Decerto é uma tarefa dificílima, após mais de cem anos da publicação da
Traumdeutung, abordar o tema sob qualquer uma de suas facetas sem repetir, de
algum modo, seus inúmeros comentadores oriundos de diferentes campos de
estudo. Na literatura psicanalítica existe uma vasta quantidade de material teórico e
clínico produzido acerca dos sonhos: de Freud aos analistas “fundadores” de
1
Referência à frase de John Lennon em sua música “God” do seu primeiro álbum solo, em 1971, após a
dissolução dos Beatles. A frase vai além da questão do término da banda, é uma provocação sobre o abalo nos
ideais da geração dos anos sessenta que acabou com seus sonhos e mitos “enlatados”. Foi uma constatação de
que o sonho americano venceu os sonhos da contracultura. John fala numa entrevista nessa época: “Agora faça
seu próprio sonho. Essa foi a história dos Beatles, não foi? [...] as pessoas não podem fazê-lo por você. Eu não
posso despertar você. Você pode se despertar.” (CARVALHO, 1986, p. 81).
13
escolas, bem como textos de comentadores e publicações variadas em periódicos
de um modo geral.
Existe, ainda, uma série de reflexões críticas sobre aspectos epistemológicos
e técnicos relacionados ao tema. Porém, apesar de muito material ter sido
produzido, são poucos os trabalhos que se propõem a escutar psicanalistas sobre a
clínica e a técnica analítica, menos ainda, referente aos sonhos.
Esta pesquisa busca apresentar outro tipo de aproximação ao assunto. Por
meio da escuta de analistas em entrevistas, pretende-se ir além do discurso
organizado, pensado e elaborado sobre a clínica que encontramos no abundante
material escrito. Sabe-se o quão delicada e cuidadosa é a escrita da clínica e o peso
que exerce na formação do analista, na sua inserção e reconhecimento na
comunidade analítica. Não se pode ignorar que esses aspectos, muitas vezes,
influenciam na espontaneidade e na originalidade do material publicado.
A temporalidade da entrevista, mais instantânea do que a escrita, facilita o
aparecimento do elemento surpresa em relação ao tema; e a presença da
pesquisadora imbuída de escutar os não-ditos sobre o assunto, também não é sem
consequências
2
, ainda mais quando se trata de um assunto que gera tanta
ambiguidade e repetição. Portanto, a ideia de entrevistas pode ser ainda mais rica
por sua tendência em propiciar um ambiente de criação e elaboração típico do
encontro humano, das produções transferenciais. Buscou-se, portanto, um cenário
de pesquisa favorável ao surgimento de produções originais acerca da questão
estudada.
Retomando alguns aspectos históricos sobre o tema, como na obra de Freud,
é patente e inigualável a importância conferida aos sonhos no âmbito
2
Este texto segue as novas regras estabelecidas pelo Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, que
entrou em vigor em 1 de janeiro de 2009.
14
metapsicológico, clínico e na formação do analista. A teoria onírica atravessou os
estudos de Freud e sofreu inúmeras modificações e revisões importantes, mas
[...] nenhuma elaboração teórica se revelou tão estável quanto à
doutrina do sonho [...] A concepção do sonho se sustentou
imperturbavelmente sob as duas tópicas e através das sucessivas
reviravoltas das doutrinas das pulsões. (DAYAN, 1996, p. 487).
No entanto, se na dimensão teórica podemos localizar certa estabilidade, na
técnica encontramos, no mínimo, algumas questões cruciais. A este respeito, Dayan
(1996) aponta para a problemática técnica que circunda o método de interpretação
dos sonhos na atualidade:
[...] é um problema técnico – e não dos menores – saber se e quando
o método é aplicado. Um outro é imaginar de que modo essa
aplicação se dá e a partir do que (de que espécie de momento
analítico e de que forma de relato). E um terceiro ponto diz respeito à
finalidade com que o método é aplicado, quando se optou
efetivamente por fazê-lo. A técnica assim concebida não se limita,
portanto, a um estudo dos procedimentos, ela inclui, ao contrário,
tudo que se refere ao uso do método no curso de uma psicanálise, e
não na interpretação desse ou daquele sonho [...] (p. 488).
Chaboudez (2000) lembra-nos o quanto varia em proporções relevantes a
atitude dos analistas frente aos sonhos, principalmente na clínica. Apesar de certa
concordância entre os psicanalistas quanto ao lugar fundamental do sonho, há
variação de uma escola para outra, de um clínico a outro, e, também, no mesmo
analista em diferentes momentos de sua prática. Para a autora, os momentos
fecundos para a interpretação dos sonhos, na história do movimento psicanalítico,
são momentos fundadores. E acrescenta que para cada psicanalista podemos,
igualmente, supor que o processo de tornar-se analista comporta uma atitude
particular quanto ao desejo de interpretar, notadamente, o sonho.
15
A autora cita o comentário de Paul-Laurent Assoun no Colóquio do
Centenário da Traumdeutung na França, em 1999, no qual sublinha a importância
de analisar o desejo de interpretar para pensar a questão dos sonhos. Este desejo
comporta certa transgressão e suscita, entre os analistas, uma espécie de mal-
estar
3
. É nestes termos que deve ser considerada a espantosa queda, após seu
entusiasmo inicial, dos avanços dos psicanalistas sobre o sonho, como explica
Chaboudez. Freud comentou esse declínio em 1932, mas esse movimento
prosseguiu por muito tempo (CHABOUDEZ, 2000).
Freud, em 1932 nas “Novas conferências introdutórias sobre psicanálise”,
aponta a utilização da teoria dos sonhos como condição e caminho fundamental a
ser percorrido para quem deseja tornar-se um “seguidor da psicanálise”:
[...] devemos voltar nossa atenção primeiramente para a posição que
ocupa a teoria dos sonhos. Esta ocupa um lugar especial na história
da psicanálise e assinala um ponto decisivo; foi com ela que a
psicanálise progrediu de método psicoterapêutico para psicologia
profunda. [...] O caráter exótico das asserções que ela foi obrigada a
apresentar, fê-la desempenhar o papel de senha, cujo uso decidiu
quem poderia tornar-se seguidor da psicanálise e a quem ela
permaneceria para sempre incompreensível. (FREUD, 1932-
1936/1996a, p. 17).
Relevantes comentários a respeito da disseminação e evolução da teoria
onírica foram apresentados por Freud em momentos anteriores, mas é neste texto,
mais de trinta anos após as elaborações iniciais sobre o tema, que ele demonstra
séria preocupação com o destino dos sonhos no movimento analítico:
3
Entendemos que esse comentário de Assoun referia-se a uma atitude mais parcimoniosa adotada atualmente
pelos analistas em relação à interpretação na clínica, um movimento que privilegiaria o ato analítico ao invés da
interpretação no intuito de revelação.
16
[...] É de especial interesse para nós, no caso particular da teoria dos
sonhos, por um lado, seguir as vicissitudes por que passou a
psicanálise durante este intervalo, e, por outro lado, verificar que
progressos fez para ser compreendida e valorizada pelo mundo
contemporâneo. Posso dizer-lhes desde logo que os senhores
ficarão desapontados em ambos esses sentidos. (FREUD, 1932-
1936/1996a, p. 18).
Apesar da ampla adesão de seus discípulos à teoria onírica, Freud questiona
a compreensão da mesma além de denunciar um progressivo declínio das
publicações analíticas sobre o tema:
[...] Examinemos os volumes da Internationale Zeitschrift für
(Ärztliche Psychoanalyse) [Revista Internacional de Psicanálise
(Médica)], na qual desde 1933, os escritos de peso em nossa área
de trabalho têm sido reunidos. Nos volumes iniciais, os senhores
encontrarão um título de seção que se repete, “Sobre a Interpretação
de Sonhos”, contendo numerosas contribuições sobre diferentes
pontos da teoria dos sonhos. No entanto, quanto mais prosseguirem
cronologicamente nesse exame, mais raras se tornam essas
contribuições e, por fim, o título da seção desaparece
completamente. Os analistas fazem como se não tivessem nada
mais a dizer acerca de sonhos, como se nada mais houvesse a
ser acrescentado à teoria dos sonhos. (FREUD, 1932-
1936/1996a, p.18, grifo nosso).
Alguns anos antes, em 1921, no prefácio à sexta edição da “Interpretação dos
Sonhos”
4
, Freud faz um comentário no mesmo sentido que também merece ser
citado:
[...] Assim, não foi confirmada minha suposição de que após
uma existência de quase vinte anos este livro cumprira sua
tarefa. Pelo contrário, eu poderia dizer que ele tem uma nova
tarefa a executar. Se sua função anterior era oferecer informações
sobre a natureza dos sonhos, tem ele agora a missão não menos
importante de lidar com as obstinadas interpretações errôneas a
4
Livro que teve sua primeira edição no ano de 1900.
17
que essas informações estão sujeitas. (FREUD, 1900/1921/1996b,
p. 36, grifo nosso).
Diversas proposições acerca dos sonhos passaram a ser de conhecimento
geral, entre elas algumas equivocadas, como a de que todos os sonhos são de
natureza sexual. Porém, aspectos realmente importantes parecem não serem
levados em conta. “Tudo isso parece tão alheio ao conhecimento da maioria das
pessoas, como o era trinta anos”, propala Freud (FREUD, 1932-1936/1996a, p.
18).
McDougall (1999) observa que os principais desenvolvimentos teóricos de
Freud sobre os sonhos têm inspirado e ainda recebem a adesão da maior parte das
diferentes escolas psicanalíticas, enquanto o restante da metapsicologia freudiana
tem sido submetido a várias revisões. No entanto, para a autora, o emprego dos
sonhos na prática psicanalítica também tem passado por transformações ao longo
dos anos. Ela considera que essas transformações devem ser consideradas
levando-se em conta, entre outros fatores, a técnica da interpretação do sonho no
trabalho psicanalítico na atualidade.
Sobre a técnica, McDougall (1999) enfatiza a importância da distinção entre a
utilização do método da associação, proposto por Freud como um caminho para a
decodificação do conteúdo latente do sonho, e o uso clínico da interpretação. Este
último “considerado numa época como o caminho real para o inconsciente,
atualmente é utilizado com prudência e parcimônia pela maioria dos analistas” (Ibid.,
p. 150).
Muitos nunca recorreram a este tipo de procedimento. Com o passar do
tempo, vários analistas parecem ter esquecido as notáveis características do
processo onírico, ou talvez eles simplifiquem o que lembram (McDOUGALL, 1999).
18
Por outro lado, a autora remete-nos a outro alerta freudiano a respeito de uma
atitude clínica dos analistas praticamente oposta à mencionada. Ela relembra que
Freud, em 1923, também criticou a tendência dos analistas de superestimarem o
valor da interpretação do sonho e a mostrarem um exagerado respeito pelo
“misterioso inconsciente” (FREUD, 1923/1996c, p. 151).
Esta referência e outras semelhantes encontram-se em “Observações sobre a
teoria e prática da interpretação dos sonhos” de 1923, e em “Algumas notas
adicionais sobre a interpretação de sonhos como um todo” também de 1923, em que
Freud discute a importância da dimensão valorativa do sonho por parte dos
analistas. Ele questiona:
[...] Que conclusões se pode se extrair de um sonho corretamente
traduzido? Parece-me que a prática analítica nem sempre evitou
erros e avaliações em demasia sobre este ponto, em parte devido a
um respeito exagerado pelo ‘inconsciente misterioso’. É muito fácil
esquecer que um sonho, via de regra, é simplesmente um
pensamento como outro qualquer, tornado possível pelo
relaxamento da censura e pelo reforço inconsciente, e
deformado pela operação da censura e pela revisão
inconsciente. (FREUD, 1923/1996c, p. 128, grifo nosso).
Retomando os dois alertas freudianos a respeito dos sonhos na clínica,
somos conduzidos a um interessante paradoxo: se de um lado constatou-se um
progressivo declínio na produção teórica sobre o assunto, ou mesmo certa
negligência ou incompreensão das nuances metapsicológicas e técnicas por parte
dos analistas; por outro, nota-se um “respeito exagerado pelo inconsciente
misterioso” e uma supervalorização da interpretação ou do sonho como revelação.
O que será que está subjacente aos alertas de Freud sobre a relação dos
analistas com os sonhos? Será que existe um não-dito entre os psicanalistas a
19
respeito do tema? O que há de particular nos sonhos que se presta talvez à
idealização ou denegação?
Gurfinkel (2004), no seu trabalho sobre as funções intermediárias no processo
onírico, tece considerações a respeito da relação dos analistas com os sonhos que
vão ao encontro das constatações de Freud. O autor comenta que o psicanalista
“mantém, historicamente, uma relação muito singular com o objeto-sonho. Uma
relação certamente ambígua, na qual uma grande paixão comporta também o risco
de alienação.” (p. 2). Ele adverte sobre o cuidado de não considerar neutra a relação
do analista com os sonhos, sejam os seus, os alheios ou qualquer teoria referente
ao tema, sob pena de “trair” o próprio método psicanalítico ao negar a subjetividade
de pesquisador-psicanalista.
Gurfinkel (2004), remetendo-se ao analista como sujeito, sugere que este
pode se “esconder nos sonhos” e que na relação ambígua com o objeto-sonho
5
, a
paixão pelo próprio sonho pode encobrir um “fingidor”. Explica seus comentários por
meio de uma paródia que faz do poema “Autopsicografia” de Fernando Pessoa: “O
analista é um sonhador, sonha tão completamente, que chega a sonhar que é dor, a
dor que deveras sente.” (p. 4).
O autor acrescenta que o analista “não está isento destes efeitos alienantes, e
deve guardar-se de confundir seu ofício com o do poeta.” (Ibid., p. 4). Assim, esse
“pescador de sonhos”, metáfora de Gurfinkel inspirada em Winnicott para se referir
ao analista, está ele mesmo envolvido na pescaria, como Freud nunca deixou de
estar desde o início
6
(Ibid.).
É importante marcar que as ambiguidades, contradições, oscilações,
5
Referência a termo cunhado por Pontalis (2005) para designar que o sonho é também um objeto investido
libidinalmente pelo sonhador ou pelo analista.
6
Os desenvolvimentos relacionados à autoanálise de Freud e à ênfase dada por ele para o analista interpretar
seus próprios sonhos serão abordados ao longo do trabalho.
20
incertezas e questionamentos em relação aos aspectos teóricos e práticos dos
sonhos, e na relação dos analistas com estes, são constitutivas e inerentes ao tema.
Não se trata, portanto, de uma crítica, mas de marcar essa particularidade.
Em Freud, esses aspetos foram contemplados. Ele discorre, em seu texto
“Incertezas e Críticas” na Conferência XV das Conferências introdutórias sobre
psicanálise, a respeito das inúmeras críticas, incertezas e ambiguidades próprias
aos sonhos e sua interpretação, a fim de sustentar que elas em nada invalidam suas
proposições, inclusive confirmam-nas:
[...] A conclusão de que, por causa das imperfeições na interpretação
de sonhos, nossas hipóteses seriam incorretas, é invalidada
assinalando-se que, ao contrário, a ambigüidade ou a indefinição é
uma característica dos sonhos que era de se prever,
necessariamente. (FREUD, 1916/1996d, p. 230).
Autores bastante relevantes no cenário analítico mundial desenvolveram
considerações importantes sobre a relação do analista com os sonhos e a situação
do sonho no movimento analítico. Destacam-se Fedida, Pontalis, Lacan, Winnicott,
Ogden, Bollas e Khan.
No Brasil, destacamos os trabalhos de Gurfinkel (2004; 2008), Ab’Sáber
(2005), Mezan (2000; 2002a; 2002b), Kupermann (1996) que abordam direta ou
indiretamente o tema.
Fedida (1991), em seu texto “Do sonho à linguagem”, convoca os analistas:
“Releiam as Novas Conferências!” (p. 31), e retoma o alerta de Freud, que já
citamos, sobre as condições de reconhecimento da função do sonho para alguém
poder se chamar psicanalista. O autor explica que não se trata simplesmente de
uma questão de maior ou menor espaço reservado ao sonho no tratamento, mas de
21
um ponto da doutrina que envolve todo o resto, sendo em primeiro lugar o trabalho
do analista, e no que diz respeito à linguagem aquilo que é chamado de cnica
psicanalítica.
Fedida (1991) justifica que o título de seu texto tem a intenção de marcar de
forma clara que a referência ao sonho possui um valor essencial de paradigma para
tratar da linguagem na psicanálise, e adverte que “ao se afastar do paradigma do
sonho, a psicanálise transforma-se rapidamente em psicologia dinâmica ou
psicologia social, mesmo que qualificada de clínica.” (p. 31).
O autor convoca os analistas a uma reflexão em torno do sonho e da
linguagem no que diz respeito à preservação de uma “rede de mal-entendidos” em
torno de ambos, tanto na metapsicologia como na clínica.
Fedida (1991) enuncia esse alerta em resposta à influência de algumas
propostas anglo-saxãs que tratam o sonho como um objeto comportamental, como
consequência da priorização da relação interpessoal, situando o trabalho com o
sonho no âmbito da comunicação entre analista e alisando. Neste contexto o sonho
parece “ameaçado de desafeição [...] e a fala sofre os efeitos do abandono de um
paradigma segundo o qual o sonho é a teoria da transferência.” (Ibid., p. 45-46).
Neste caso, o enfoque recai sobre a informação e as “preocupações pré-
conscientes, [...] e conceber o ‘trabalho’ analítico em termos de estratégias da
comunicação não tem mais nada a ver com a psicanálise.” (Ibid., p. 43).
O reconhecimento da importância do sonho, portanto, não basta para se
identificar o autêntico psicanalista. Pois o que conta na teoria do sonho a partir do
status de interpretação da psicanálise, da significação que a atividade associativa
toma na fala durante o tratamento, do trabalho do sonho é a capacidade que ela
tem de pensar outros fenômenos e de engendrar sua metapsicologia e o mal-
22
entendido (FEDIDA, 1991).
O autor retoma a insistência que teve Freud, até o final de sua vida, em
considerar a teoria do sonho como paradigma da teoria e técnica analítica, e
relembra que o privilégio atribuído por Freud ao sonho depende estreitamente da
estranheza radical que ele constitui. O sonho protege o analista de seu
esquecimento negligente no familiar:
A situação analítica pode ser descrita como um lugar, caso
estejamos de acordo para reconhecer-lhe uma organização cênica
cujo paradigma é o sonho. Mas o fato de designá-la como uma
situação indicaria primeiramente que se trata de um sítio, e que este
sítio é o do estrangeiro, que nela descobre a fala quando esta se
surpreende escutando aquilo que diz. Ao evocar o sitio do
estrangeiro fazemos apelo menos a uma função da regra analítica,
ou a uma figura ética do analista, do que ao ato de escutar como
recurso de linguagem próprio à fala nas palavras usuais da língua.
Por essa razão a ambigüidade é ao mesmo tempo uma formação
sintomática do discurso e o signo do estrangeiro naquilo que lhe é
próprio. (FEDIDA, 1991, p. 61, grifo nosso).
Pontalis também possui uma significativa produção sobre os sonhos. Aqui
será enfatizado mais detidamente o que diz respeito ao tema em estudo, o sonho
para os analistas e as consequências dessa relação na clínica.
Frochtengarten (2005, p. 13), na introdução do livro “Entre o sonho e a dor” de
Pontalis, resume as contribuições do autor apontando para a importância de suas
proposições no sentido de remeterem à preservação da “estranheza” e do pulsional
do sonho na clínica; e para o cuidado dos analistas em não reduzirem o sonho a um
objeto interno do paciente ou a um fim em si mesmo.
Encontramos algumas outras críticas a respeito da relação dos analistas com
o sonho, as quais são semelhantes às realizadas por Freud. Estas abrangem a
23
questão do declínio do interesse pelo assunto ou a compreensão e simplificação
da teoria onírica (DAYAN, 1996; JONES, 1970/1989; LACAN, 1957/1998). Outras
críticas mais contemporâneas, e bastante recorrentes na mesma direção de Pontalis
(2005) e Fedida (1991), referem-se a algumas questões técnicas atribuídas,
indevidamente ou não, às propostas kleinianas.
Encontramos um resumo dessa crítica no artigo de Loden, “The fate of
dreams in contemporary psychonalaysis”, publicado no Journal of the American
Psychoanalytic Society em 2003. Ela relaciona um possível declínio do estudo e da
prática da interpretação dos sonhos na atualidade à ênfase concedida no cenário
analítico contemporâneo aos fenômenos da transferência e contratransferência. A
autora alerta que alguns analistas escutam o sonho na sessão analítica como
comunicações exclusivamente direcionadas à relação transferencial, e adverte que
fazer qualquer suposição a priori do que o sonho significa fere os princípios
psicanalíticos fundamentais e reduz a capacidade do paciente de produzir
associações (LODEN, 2003).
Voltando a Pontalis, em seu texto “Entre o sonho-objeto e o texto-sonho”, ele
questiona o trabalho com os sonhos na clínica, tanto por parte do analista como pelo
analisando. Do lado do analista adverte que, ao tratar o sonho de imediato como um
texto, não poderia reconhecer as operações defensivas em ação que o sonho –
como objeto investido libidinalmente pelo analisando carrega; e propõe que se
valorize a experiência do sonho em contraposição à interpretação do sonho
(PONTALIS, 2005).
O autor comenta a importância de avaliar a função que o sonho cumpre no
tratamento e o lugar que ele ocupa na tópica subjetiva. Do contrário, qualquer
interpretação da mensagem do sonho é na melhor das hipóteses sem efeito, e na
24
pior alimenta uma conivência sem fim sobre um objeto específico, objeto de um
investimento libidinal não esclarecido entre o analista e seu paciente: não é mais
uma fala que circula, é uma moeda (PONTALIS, 2005).
Mais adiante, em relação ao status do sonho no movimento analítico, Pontalis
(2005) faz uma interessante comparação entre dois colóquios realizados na França
que abordaram o sonho na clínica, distantes 13 anos entre si, um realizado em 1958
e o outro em 1971.
[...] o sonho não era mais visto pelos analistas em 1971 da mesma
maneira como o era em 1958, a percepção que tínhamos dele podia
ter-se alterado com o passar do tempo. Lembro-me de ter saído do
encontro brincando mentalmente com a distinção entre o sonho
como objeto, como lugar, e como mensagem e que terminava com
um: ‘o sonho não é mais o que era’ marcado de certa nostalgia. [...]
Se o sonho é objeto e, intimamente aparentado com o objeto da
nostalgia, ela mesma lugar de seu próprio espelho e assim por diante
indefinidamente, ele não suscita uma única relação e sim uma
variedade de ‘modos de uso’, ele não tem a mesma função para
todos. E, em primeiro lugar, essa função é necessariamente diferente
para Freud e o analista de hoje. A observação é banal. Mas, e suas
conseqüências? (PONTALIS, 2005, p. 35-36).
Constatou-se no primeiro colóquio uma oposição, às vezes no mesmo
analista, de duas tendências: a de considerar o sonho como via gia, apontando
para a necessidade de escutá-lo no tratamento como uma linguagem à parte; e
outra que não o considerava diferente em sua natureza do conjunto do conteúdo de
uma sessão. As tendências se juntavam, sem que percebessem, seja em relação ao
sonho como privilegiado, como revelador do desejo inconsciente, ou em seu caráter
de resistência (PONTALIS, 2005).
no segundo colóquio notou-se um questionamento mais amplo em relação
aos sonhos. Não se pressupõe mais nenhum estatuto para o sonho na situação
25
analítica, nenhum estatuto prático, pois o estatuto teórico do sonho, como definiu
Freud, deixa em aberto todas as questões, quando entra efetivamente em jogo na
cena da transferência a organização dos desejos e das defesas.
Pontalis (2005) enfatiza que a Traumdeutung não é o livro do sonho nem da
análise dos sonhos, mas o livro que, por meio das leis do logos do sonho, Freud
descobre as de qualquer discurso e funda a psicanálise. Conclui, a partir daí, que “o
sonho não tem de ser, enquanto tal, objeto preferencial da análise, mas para Freud,
para o homem Freud ele o foi, sem dúvida e apaixonadamente.” (p. 38). Pontalis cita
a existência de vários tratamentos que progridem sem interpretações ou relatos de
sonhos, e, inclusive, quando estas são muito abundantes tornam-se prejudiciais ao
processo analítico.
Pontalis comenta também sobre dois comportamentos que considera muito
disseminados entre os analistas, e que classifica como “desconcertantes” e
“surpreendentes”. O primeiro é um interesse apaixonado pelos sonhos de Freud: “A
coitada da Irma nunca parará de receber novas ‘injeções’ de sentido?” O autor
discorre sobre a fascinação pelos sonhos de Freud e pelo corpus do texto deles.
“Corpus, corpo incansavelmente inspecionado, escrutado, dissecado, fragmentado,
reconstituído – mas falta sempre um pedacinho!” (PONTALIS, 2005, p. 54).
O segundo comportamento refere-se ao modo como alguns analistas relatam
em público um sonho do analisando e, mais ainda, como o auditório responde. Para
ele, nesses termos, o sonho é literalmente oferecido à interpretação. Parece haver
uma espécie de apelo no sonho a um terceiro, o qual é capaz de converter
imediatamente o visível em legível (Ibid.).
Em relação a esse fascínio, é pertinente evocar um trabalho anterior, de 1991,
também de Pontalis, no qual enuncia que o sonho exerce uma “força de atração”.
26
Explica a atração como um encantamento que emana de certos objetos, lugares ou
pessoas, e que se resiste a traduzir em palavras, como se, então, corresse o risco
de dissolver-se e apagar o efeito de captação. A atração é vista também no sentido
que Freud atribui ao recalcado, ao infantil, ao visual e à mãe. A exaltação do sonho,
para o autor, comporta também uma aspiração ao indiviso, à unidade (PONTALIS,
1991).
Pontalis comenta que a despeito da “atração” e “fascínio”, Freud, de certa
forma, desencanta o sonho. Este perdeu seu lugar de estrada principal para a
interpretação. “Na união das duas palavras Traumdeutung, a Deutung pretende
dissipar o mistério do Traum. O mistério lugar ao enigma e o enigma abre o
espírito, no mesmo momento que o desconcerta, se não à solução, pelo menos à
procura desta.” (PONTALIS, 1991, p. 20).
Portanto, se “a cada vez que um analista interpreta um relato de sonho, de
algum modo está mantendo um diálogo com Freud”, como escreve Mezan (2002b, p.
29), digamos que esse diálogo comporta, à luz dos comentários de Pontalis, também
uma frustração.
O encantamento, a força de atração do sonho, a exemplo da física, talvez
comporte também uma força de repulsão. Repulsão à constatação do impossível de
interpretar? Repulsão ao confronto constante com a insistente demanda de
interpretação dos pacientes? Repulsão às limitações da psicanálise ou às suas
limitações como psicanalista? São pontos para reflexão.
Pontalis (2005) ressalta a importância de se reconhecer o sonho como um
objeto libidinalmente investido pelo sonhador e que os psicanalistas em seus
trabalhos escritos “parecem ter prestado pouca atenção às relações com o objeto-
sonho.” (p. 38). Salienta ainda o parentesco que alimenta a tradição romântica entre
27
o sonho e o objeto, sem fim, da nostalgia. Ela está inscrita pelo menos duas vezes
em todo sonho, em sua visada regressiva e na distância entre o sonho posto em
imagem e o sonho posto em palavras.
Sobre isso, refere-se ao relato do sonho no tratamento como uma
“cumplicidade encantada”, “excitação tranqüila”, “trégua”. Por mais desconcertante
que possa ser o conteúdo do sonho, ele é posto entre o analista e o analisando,
numa espécie de no man’s landque parece proteger sem que se saiba sempre de
quê. O mais selvagem dos sonhos não está domesticado? O insensato ganhou
forma, o múltiplo discordante repousa finalmente em um sonho (PONTALIS, 2005).
O autor compara o sonho ao objeto transicional: “que próximos estão, essa
criança que tem de chupar uma pontinha do cobertor para conseguir adormecer e
esse adulto que tem de sonhar para poder continuar dormindo!” (p. 40). Pontalis
(2005, p. 40) retoma as palavras de Sacha Nacht: “Um sonho é apenas um sonho.”
É a relação que mantemos com ele que decide seus efeitos.
Desenvolvimentos importantes sobre o sonho, o sono e o sonhar vinculados à
intersubjetividade, à transicionalidade e ao setting analítico foram desenvolvidos por
autores, como Ella Sharpe, Masoud Khan, Käes, entre outros. Bollas e Ogden,
psicanalistas norte-americanos, também fizeram considerações relevantes sobre os
sonhos na clínica, considerando a posição do analista. Käes e Anzieu articularam de
modo importante os sonhos e o grupo. a questão da alteridade é abordada em
profundidade por Lacan. Mencionar essas múltiplas facetas é importante para este
trabalho, pois elas parecem apontar para um momento de revigoramento da teoria
dos sonhos em franca articulação com reflexões sobre o posicionamento do analista
diante do tema e sua implicação subjetiva no trabalho com os sonhos na clínica.
Esse revigoramento parece ter tomado um colorido especial no Brasil e no
28
mundo à época da comemoração do centenário da publicação da “Interpretação dos
sonhos”. Figuram nessa época inúmeros colóquios, congressos, publicações e
eventos culturais. Por um lado produções bastante originais, por outro, algumas
repetições de alguns velhos clichês: das inúmeras “injeções de sentido” à fatídica
placa em homenagem a Freud em Bellevue que insiste...
No Brasil destacamos as seguintes publicações comemorativas: “Psychê” ano
3, 4, 1999; “Revista Literal” (Um século de Interpretação dos Sonhos, 4, 2001);
“A Ciência dos sonhos: um século de interpretação freudiana” (Livro resultante de
evento promovido pela PUC, Instituto Goethe, MIS e Folha da São Paulo); e “A
interpretação dos sonhos: várias leituras” (livro comemorativo produzido pela
UNISINOS).
Destacamos as discussões feitas por Renato Mezan (1999) a respeito da
atualidade da Traumdeutung em nosso meio analítico brasileiro. Ele apresenta, na
edição da Revista Psychê em comemoração à publicação da Traumdeutung, uma
análise do modo que as ideias freudianas, sobre os sonhos, foram apropriadas pelos
analistas na atualidade. Para ele, os artigos da revista constituem uma “prova
eloqüente” da atualidade da Traumdeutung. Será? E o que significa dizer que a
Traumdeutung é “atual”? Qual a relação com a atualidade do texto e a atualidade da
prática clínica subjacente ao texto?
A respeito dos artigos apresentados, Mezan (1999) comenta que
[...] detalhes mencionados na Traumdeutung conservam sua
atualidade e são utilizados diariamente pelos analistas [...] É
importante notar que, mesmo se para estes diversos autores a mente
humana não está constituída exatamente da mesma forma que para
Freud em 1900, o sonho trabalhado na clínica continua a ser um dos
meios privilegiados de acesso a ela [...] O diálogo que estes
diferentes trabalhos estabelecem entre si, e com a obra de Freud em
sentido amplo, mostra que a Traumdeutung continua a ser uma
29
referência comum para todos os psicanalistas, seja qual for a sua
orientação clínica ou teórica. E isso tanto porque pensamos com os
seus conceitos mesmo e sobretudo quando os utilizamos para
inventar outros quanto porque os sonhos de Freud nos servem
como referência compartilhada, como material cuja função exemplar
inspira a teorização flutuante de cada um de nós [...] se fosse
necessário comprovar a ’atualidade da Interpretação dos Sonhos
(quanta pretensão temos nós, modernos [...], este número de Psychê
é mais do que suficiente para dar razão a André Green, quando
interrogado certa vez sobre o que havia de ‘novo’ na psicanálise,
respondeu sem hesitar: ‘Freud’. (MEZAN, 1999, p. 10).
Intrigante essa constatação e comprovação de “atualidade” por meio da
leitura dos textos publicados. Certamente, quando se estuda um assunto é
importante retomar criticamente os textos fundadores, ainda mais no campo
psicanalítico em que a transferência e, fundamentalmente, a transferência a Freud é
um ponto de partida. No entanto, continuamos o questionamento: as referências e
ocasionais reverências textuais à Traumdeutung nos dias de hoje confirmam sua
atualidade ou podem indicar a necessidade de sustentar sua atualidade?
O constante retorno a esse texto fundante, a esse tema, poderia ser um ponto
irredutível de resistência à evolução ou involução da psicanálise, ou ao seu
caráter originalmente subversivo? Quão criticamente o texto e a teoria são
retomados? O quanto esse retorno ao texto original pode se prestar à sustentação
de uma idealização de Freud por parte dos analistas?
Não se trata, com nossa observação, de julgar a importância da atualidade do
texto original ou de dizer, de modo generalizador, que este não tem sido retomado
criticamente, mas de iluminar a relevância da compreensão da relação dos
psicanalistas com ele e também com o que Freud disse sobre ele. A maneira que
Freud se refere à teoria onírica e sua prática clínica correlata é, no mínimo,
30
extremamente enfática e percorre toda sua obra. Isso será abordado mais
detidamente ao longo do trabalho.
Esse tema ganha uma dimensão ainda maior se o transportarmos para o
âmbito institucional, que também será trabalhado com maior profundidade mais
adiante. A questão da institucionalização da psicanálise e seus efeitos está bastante
atravessada historicamente pela teoria onírica, pela relação de Freud com sua
preciosa criação (KUPERMANN, 1996).
Portanto, caso a Traumdeutung continue “atual”, decerto sabemos que essa
“atualidade” não é constante nem contínua, sofre oscilações. Essas oscilações são
do maior interesse para analisar a relação dos analistas com os sonhos. Os
analistas se apropriam de maneiras diferentes do texto freudiano, sofrendo variações
conforme a época, as influências teóricas pós-freudianas a que estejam vinculados,
os recortes epistemológicos feitos da obra, entre outros. Esses diferentes modos de
apropriação geram relevantes consequências também para o fazer clínico.
Como exemplo, segue um comentário de Checchinato (1987), em tom de
denúncia, feito na década de oitenta e que mostra um posicionamento oposto ao
apresentado por Mezan. No prefácio do livro de Moustapha Safouan, “O
Inconsciente e seu escriba”, Checchinato alerta sobre a situação dos sonhos na
comunidade analítica brasileira:
Nada mais oportuno do que este trabalho [...] Oportuno porque é
uma contribuição sólida e deveras crítica sobre a interpretação dos
sonhos [...] Oportuno finalmente, porque a interpretação dos sonhos
não tem merecido a devida atenção (pelo contrário até menos caso)
em certos meios psicanalíticos brasileiros.
7
(CHECCHINATO, 1987,
p. 9).
7
No corpo do texto é possível inferir que a crítica estava direcionada à escola inglesa.
31
Outro dado histórico, também na década de oitenta, parece interessante.
Berlinck (1983), em sua dissertação de mestrado sobre a constituição da teoria
onírica em Freud, comenta sobre a relevância do estudo dos sonhos no Instituto de
Psicologia da USP: Ainda no ensino da psicologia, especialmente de psicologia
clínica, os sonhos têm um lugar importante. Uma prova disto é nosso curso de pós-
graduação em que mais de um docente oferece curso que versa, especificamente,
sobre esse tema.” (BERLINCK, 1983, p. 3).
Mesmo que não possamos fazer qualquer paralelo direto com a extinção de
disciplinas que tratam exclusivamente dos sonhos e o declínio de interesse pelo
assunto, esse também é um dado interessante para reflexão.
Japiassu (1998) nos lembra que:
[...] a psicanálise deve ser apreendida como um elemento da cultura
de uma época é tributária de suas exigências epistemológicas e de
suas zonas de irracionalidade. Ademais, admite deslocamentos no
tempo de suas problemáticas e seus objetos. Uma das vantagens de
assumir seus próprios limites e de deixar-se entrelaçar (no campo da
cultura) é o de evitar o risco de uma indesejável penetração
ideológica. (JAPIASSU, 1998, p. 22).
É necessário marcar que o sonho, o sonhar, as práticas clínicas correlatas e o
recorte que os analistas fazem do texto de Freud sobre esses temas sofrem
consequências do contexto histórico-cultural, são vivos, e suas modificações
merecem toda atenção. Pois pesquisar a posição dos analistas diante dos sonhos
pode ser um indicativo de sua relação com a psicanálise, com o inconsciente e, em
última instância, com os modos de entrelaçamentos do sujeito com a cultura. É
também nos efeitos da interpenetração sujeito-cultura que trabalha um analista.
32
Portanto, refletir sobre a atitude clínica dos analistas e sua relação com os
sonhos é de fundamental importância para o entendimento do movimento analítico
de uma época. Dessa reflexão podem-se decantar, também, considerações sobre
modos eficazes de intervenções psicanalíticas nos sofrimentos na atualidade,
propostas de novos recortes do texto freudiano ou até a percepção de fenômenos no
campo psicanalítico, não nomeados até então.
Não podemos restringir a abordagem do tema relegando apenas ao analista,
ao paciente ou às peculiaridades do setting a responsabilidade pelos sonhos. É
necessário abordar o assunto de modo mais amplo, respeitando sua complexidade e
levando em conta, também, as dimensões sociais, econômicas, históricas, entre
outras.
Neste sentido, convém mencionar alguns desenvolvimentos sobre os sonhos
e o onírico a partir dessas dimensões, de seus entrelaçamentos na atualidade e em
diálogo com as formas de se conceber a subjetividade. Costa e Katz (2004, p. 1), por
exemplo, questionam o valor dos sonhos na clínica psicanalítica atual e supõem uma
diminuição da importância de sua função de enigma e “decifração” do sujeito. No
lugar da ambivalência, da relação com o Outro, a contemporaneidade oferece (e o
sujeito demanda) instrumentos prêt-à-porter de decifração permanentes.
Os autores remetem à questão ética:
[...] O sonho é um indicativo da relação com o outro e sobretudo
constitutivo da ética do sacrifício na qual, para obter sentido para
minha vida, eu tenho que abrir mão de algo meu para dar ao outro.
Isso foi válido para religião grega, para o cristianismo, até para a
política, quando abro mão de parte da minha autonomia para dá-la
ao Estado e adquirir sentido e segurança. Acho que hoje em dia se
começa a perder um pouco isso sem que nada reclame. Nossa
imaginação talvez não tenha pensado outra relação com a alteridade.
[...] A tarefa compartilhada de decifração do sonho é enfraquecida
33
[...] O sonhador não reconhece o outro que dê sentido ao seu sonhar,
numa sociedade que [...] assiste à emergência de sujeitos que atuam
de maneira desmedida, ignorando a conseqüência de seus atos nos
outros, ou como credores lamurientos de tudo e de todos [...] O outro
hoje se transforma em formas medicamentosas, em formas curativas
rápidas, e não mais o outro da interrogação. Isso é preocupante pois
o sujeito não mais quer saber o que o angustia, mas suturar, tapar
isso imediatamente. (COSTA; KATZ, 2004, p. 2).
Para os autores, o declínio do sonho na clínica tem relação com uma ruptura
no modo atual do sujeito conceber sua identidade. Se anteriormente era uma tarefa
hermenêutica de si a partir do outro e daquilo que se supunha como motivações
mais profundas, hoje há uma adesão a certas formas de padrões sociais que
ofertam o sujeito ao espetáculo e punem ao menor desvio.
Neste sentido, e a partir de um recorte sociológico, Debord (1997)
8
fala
desses padrões em referência ao conceito de espetáculo. Para o autor, o espetáculo
é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social. Não apenas a
relação com a mercadoria é visível, mas não se consegue ver nada além dela. A
imagem toma o lugar do subjetivo, o espetáculo é a outra face do dinheiro, é o
dinheiro que apenas se olha. O espetáculo decorre de o homem moderno ser
demasiado espectador (DEBORD, 1997).
O autor nos alerta para o espetáculo como o “sonho mau da sociedade
moderna aprisionada, que só expressa, afinal, o seu desejo de dormir.” (Ibid., p. 19).
Para ele, o espetáculo é o guarda desse sono.
A partir da releitura de Freud e, sob a ótica da sociologia e da política, temos,
também, consideráveis contribuições apresentadas pelos instigantes pensadores
contemporâneos Giorgio Agambem (1995/2002) e Zygmut Bauman (1991/1999).
8
O livro de Debord foi publicado no Brasil pela Editora Contraponto, Rio de Janeiro, em 1977. As citações do
livro de Debord nesta dissertação seguem a edição brasileira de 1997.
34
Eles apontam para um “insuportável” da ambivalência e do onírico na
contemporaneidade e se referenciam nas proposições de Freud em “Totem e tabu”
(1913/1996e). Nesse texto, Freud comenta que os impulsos psíquicos dos povos
primitivos comportam mais ambivalência do que se pode encontrar no homem
moderno civilizado. Ele supõe que, como essa ambivalência diminuiu, o tabu
(sintoma da ambivalência e um acordo entre os dois impulsos conflitantes)
lentamente desapareceu. Quais seriam as implicações disto para os sonhos?
Conforme apresentado, inúmeros questionamentos sobre uma espécie de
declínio, tanto do sonho como do onírico, na atualidade. Propomos uma provocação
para ampliar esses questionamentos: será que ao invés de um abalo ou declínio do
sonho, o estaríamos diante de um movimento contrário, ou seja, de uma entrega
de alguns sujeitos ao sonho quase que exclusivamente em sua faceta imagética?
Nesse caso, estaríamos diante de um declínio do onírico e não dos sonhos.
Esta entrega poderia ser pensada como uma banalização ou redução do
sonho à imagem, uma captação e fascínio pelo aspecto imagético do sonho, tal qual
o efeito de fascínio que exercem a propaganda, o cinema comercial ou um vídeo-
game de última geração que utilizam um intenso realismo das imagens.
Esse realismo, segundo Kehl (2004), quando muito exacerbado praticamente
não permite uma polissemia, possui sentidos muito fechados e é violento
exatamente por essas razões, que acabam por inibir o pensamento. De fato, uma
entrega apenas a essa faceta imagética do sonho descaracteriza o onírico que traz a
marca da ambiguidade, do enigma, da busca e produção de sentidos, da experiência
subjetiva e, em última instância, da condição humana.
Será que um analisante, na atualidade, está menos propício a produzir
associações a partir de seus sonhos, devido à acomodação ao excesso de imagens
35
fechadas e pouco polissêmicas às quais está diariamente exposto? E o analista,
mesmo que esteja advertido sobre essas questões, não estaria ele também sob os
impactos dessa banalização e invasão da imagem? Que efeitos isso teria para sua
prática?
Ao lado dessas questões, figuram outras de igual relevância: Qual a
importância do estudo desses fenômenos para a prática clínica? Pensar os sonhos
na clínica a partir de qualquer uma dessas proposições não reduz ou empobrece a
escuta analítica dos mesmos? Qual o lugar da associação livre na atualidade?
Enfim, são outras questões importantes que também permeiam este trabalho e
serão abordadas ao longo do texto e na análise das entrevistas.
Para refletir as questões apresentadas, o trabalho fundamentou-se no método
psicanalítico e tomou como objeto de pesquisa o relato de analistas sobre suas
práticas clínicas. Foram realizadas entrevistas com analistas de diversos percursos
de formação e reconhecida experiência na psicanálise.
Seriam várias as possibilidades discursivas e recortes a serem feitos para
estudar os sonhos na clínica: o discurso de pacientes sobre os sonhos (em situação
de análise ou não), análise de casos clínicos da pesquisadora ou de outros analistas
relatados em publicações, investigar os desenvolvimentos promovidos no assunto
após Freud por outros psicanalistas “fundadores”, entre outros. Porém, como
mencionado, escolheu-se escutar analistas, fazer um recorte de seu discurso, devido
à apreensão privilegiada do assunto que pode ser produzida na relação de
entrevista.
Uma vez contextualizado o cenário e as ltiplas facetas engendradas no
tema de estudo, apresentaremos, a seguir, a estrutura do trabalho. Várias questões
foram propostas, mas enfatizamos que a pergunta primordial que se apresenta é
36
referente ao lugar dos sonhos na prática clínica dos analistas na atualidade em
interlocução com as proposições de Freud sobre o assunto.
O trabalho está dividido em três partes. Na parte A é abordado o sonho para
Freud. Salienta-se que é um caminho diferente de estudar a teoria dos sonhos em
Freud, tema exaustivamente trabalhado na literatura psicanalítica. Trata-se de
privilegiar o estudo da relação de Freud com os sonhos. Portanto, é uma parte do
trabalho dedicada a aspectos essencialmente biográficos, históricos e clínicos.
Nesta primeira parte, os capítulos buscam fazer um recorte por meio de uma
leitura crítica de textos do próprio Freud, ou comentadores, a respeito do tema,
desde sua infância até as últimas revisões metapsicológicas e suas implicações
clínicas. A ênfase recai sobre a importância dada por Freud para os sonhos na
história da psicanálise, na formação do analista e no processo de análise. Sigmund
Freud figura simbolicamente nesta etapa do trabalho como o primeiro
entrevistado.
A parte B trabalha o material produzido nas entrevistas. O material é
apresentado na forma de vinhetas das entrevistas que se intercalam com
comentários da pesquisadora e inserções da bibliografia. A disposição dos capítulos
visa propiciar uma interlocução com as proposições freudianas apresentadas na
parte A. No primeiro capítulo da parte B serão apresentados os aspectos
metodológicos e gerais sobre as entrevistas (os critérios para escolha dos analistas,
procedimentos de entrevista, entre outros).
O segundo capítulo aborda os temas desenvolvidos na parte A que foram
mencionados pelos entrevistados, além de temas não previstos inicialmente e que
tiveram relevância no trabalho.
Por fim, serão apresentadas as considerações finais e limitações da pesquisa.
37
Essa última etapa não pretende ser conclusiva, mas busca apresentar uma releitura
do percurso realizado e propiciar um posicionamento mais amplo diante do texto,
além de propor um diálogo mais estendido com o material apresentado e também
com outras áreas do conhecimento.
Buscou-se durante o trabalho um constante cotejamento com o não-saber
radical com o qual nos confrontam os sonhos, que a nosso ver, é aonde reside a
força e a beleza do tema. Como nos disse Pedro, um entrevistado:
Não sabemos se o sonho existe [...] ninguém sabe como é, nem a
psicanálise, nem as neurociências [...] chamamos determinadas
coisas que acontecem de sonhos, mas existe algo misterioso [...] não
sabemos direito nem o que é o cérebro! Boa parte dele é apenas
água...
9
9
As falas dos entrevistados serão destacadas em itálico ao longo do texto.
38
PARTE A
O SONHO PARA FREUD
39
1 SONHOS DE CRIANÇAS
Todos os sonhos são sonhos de crianças.
Freud (1916-1917/1996f, p. 215).
“Esse menino nunca chegará a nada”, disse Jakob Freud, após o pequeno
Sigmund ter urinado no quarto de seus pais aos sete ou oito anos de idade. Freud
comenta a esse respeito: “[...] em meus sonhos ocorrem repetidas alusões a essa
cena [...] unidas a enumerações de minhas realizações e meus sucessos, como se
eu quisesse dizer: Está vendo? No fim das contas, eu cheguei a alguma coisa [...]
Isso deve ter sido uma terrível afronta à minha ambição.” (JONES, 1970/1989, p.
30).
Os primeiros sonhos com que Freud se deparou foram os de criança, os seus
sonhos de criança. Jones (1970/1989) comenta que seu interesse pelo assunto
“manifestou-se muito cedo, provavelmente na meninice: ele sempre sonhou muito e
mesmo bem cedo, não apenas levava os sonhos em consideração, como os
registrava.” (p. 353).
A análise de sonhos infantis, em Freud, é bastante anterior aos seus
primeiros escritos sobre a psicanálise com crianças. Ainda em meados da década de
1890, bem antes da publicação da Traumdeutung, análises de sonhos de crianças,
essencialmente de seus filhos e, também, seus próprios sonhos infantis recordados,
figuram na correspondência e nos escritos de Freud como elementos primordiais no
cenário do nascimento da Psicanálise.
40
Em Freud apenas um texto exclusivo sobre sonhos de crianças. Na
literatura psicanalítica também é notória a diferença entre o número de publicações
sobre sonhos de adultos e de crianças. As publicações sobre clínica, metapsicologia
do sonho e técnica analítica versam, quase exclusivamente, sobre sonhos de
adultos (FRANCISCO, 1986; FRANÇA, 1999; TOMAZELLA, 1984).
Para alguns autores, essa disparidade deve-se à possibilidade de transpor
aos sonhos de crianças o que se sabe sobre o dos adultos, não havendo
especificidades. Para outros, isso é considerado consequência de uma espécie de
equívoco, não raro entre os analistas, em considerar os sonhos de crianças como
simples, sem deformações e geralmente fáceis de interpretar, pois estariam a
serviço de indisfarçadas realizações de desejos.
Apesar de Freud ter feito várias revisões e acréscimos em relação aos sonhos
de crianças, é notória “uma tendência a interpretar os sonhos de crianças como
satisfação prazenteira de desejos.” (GARMA, 1991, p. 268). Os sonhos de crianças
mais novas, menores de quatro anos, principalmente de seus parentes e filhos de
amigos, permaneceram predominantemente em seus escritos com caráter de
realização de “vontades” ou “necessidades”.
Ele relata pela primeira vez em sua obra um sonho de criança, em carta a
Fliess. Trata-se do sonho de Anna, sua filha, que, posteriormente, foi apresentado
na Traumdeutung, junto com o sonho de Irma, e em outros momentos da obra
freudiana, como exemplos incontestáveis de sua tese do sonho como realização de
desejo (FREUD, 1897/1996g).
[…] Você acha que a fala das crianças durante o sono também pode
ser encarada como sonho? Se for assim, posso presenteá-lo com os
mais recentes sonhos de realização de desejos: Aninha, um ano e
meio de idade. Um dia, em Aussee, ela teve de ficar sem comer
41
porque passou mal de manhã, o que foi atribdo ao fato de ter
comido morangos. Durante a noite seguinte, ela recitou um cardápio
inteiro no sono: ‘Molangos, molangos silvestres, omelete, pudim!’
Talvez eu já lhe tenha contado isso. (FREUD, 1897/1996g, p. 318).
As produções oníricas infantis tomam um lugar essencial na metapsicologia,
porém, aparecem quase sempre como exemplos para validar e fundamentar os
sonhos e o psiquismo dos adultos exclusivamente; e como manifestações em que o
desejo é apresentado sem deformações. Freud realizou algumas revisões discretas
sobre a questão da deformação, mas o tom de simplicidade e transparência parece
predominar quando se trata de sonhos de crianças.
No capítulo “O Sonho é a realização de um desejo” da Traumdeutung, Freud
(1900/1996b) comenta diversos sonhos infantis, inclusive o de Anna, equiparando-os
aos sonhos de conveniência, em que necessidades fisiológicas ou desejos não
satisfeitos do dia anterior (de adultos ou crianças) são aplacados de maneira simples
e com pouca deformação.
[...] É de esperar que encontremos as mais simples formas de
sonhos nas crianças, que não dúvida alguma que suas
produções psíquicas são menos complicadas que a dos adultos. [...]
Os sonhos de crianças pequenas são freqüentemente puras
realizações de desejos e são, nesse caso, muito desinteressantes se
comparados com os sonhos dos adultos... (FREUD, 1900/1996b, p.
161, grifo nosso).
Segundo o editor inglês Strachey (1996), o advérbio ‘freqüentemente’ foi
acrescentado em 1911, indicando, provavelmente, que a partir de então, passou a
considerar a existência de distorção em sonhos de crianças, mas com a ressalva de
que se tratava de crianças a partir de quatro ou cinco anos de idade. O editor inglês,
citando Ernest Jones, esclarece que esta nota de rodapé foi acrescentada após
42
protesto de Jung
10
.
No estudo de um sonho de Robert, filho de Fliess, Freud mostra que,
paulatinamente, conforme se a sedimentação da censura, é possível encontrar
deformação onírica precocemente (FREUD, 1900/1996b); e, posteriormente, podem-
se encontrar, novamente, hipóteses de Freud (1909/1996h) sobre a distorção no
relato do caso clínico de Herbert Graf, o “Pequeno Hans”.
Essas hipóteses parecem ser decorrentes de suas teorias sobre a
sexualidade infantil e o complexo de Édipo, mais sedimentadas e que ganham
bastante relevância clínica neste caso. Freud desenvolve:
[...] Hans confirma da maneira mais concreta e sem compromisso o
que eu tinha dito na minha A Interpretação de Sonhos (1900a, na
Seção D do Capítulo V) com respeito às relações sexuais de uma
criança com seus pais. Hans era realmente um pequeno Édipo que
queria ter seu pai ‘fora do caminho’, queria livrar-se dele, para que
pudesse ficar sozinho com sua linda mãe e dormir com ela. (FREUD,
1909/1996h, p. 103).
Vários sonhos de Hans são relatados, e é extensivo o trabalho de
interpretação realizado por Freud em conjunto com o pai do paciente
11
. Um sonho de
angústia ganha destaque nesse caso, e parece ser um bom exemplo do trabalho
onírico na criança à semelhança dos adultos (FREUD, 1909/1996h).
Na primeira edição do livro da Traumdeutung, ainda se desvencilhando de
sua teoria da sedução, Freud comenta sobre as crianças “inocentes de desejos
sexuais”:
10
Esse protesto de Jung tomará um caminho oposto alguns anos depois, quando irá questionar a sexualidade
infantil. Mais adiante nos comentários sobre o “Homem dos Lobos” será evidenciado como Freud combateu de
maneira incisiva essas críticas, com especial ênfase neste caso clínico.
11
Nota-se que nesta análise infantil, a interpretação parte do analista e do pai de Hans, ainda num sentido de
tradução do sonho, concepção que será modificada posteriormente em Freud.
43
Embora tenhamos em alta conta a felicidade da infância, por ser ela
ainda inocente de desejos sexuais, não nos devemos esquecer da
fonte fértil de decepção e renúncia, e conseqüentemente de estímulo
ao sonho, que pode ser proporcionada pelas duas outras grandes
pulsões vitais. (FREUD, 1900/1996b, p. 164).
Em 1911, acrescenta uma ressalva sobre a “criança inocente” na seguinte
nota de rodapé:
[...] as forças pulsionais sexuais, em sua forma infantil,
desempenham um papel bastante relevante, que tem passado
despercebido por demasiado tempo, na atividade psíquica das
crianças. Também esse estudo mais detido deu margem para sentir
algumas dúvidas no tocante à felicidade da infância, tal como tem
sido retrospectivamente concebida pelo adulto. (FREUD,
1900/1911/1996b, p. 165).
Ainda em modificações acrescentadas em 1911, Freud indica claramente que
“há deformações nos sonhos infantis” e, por outro lado, relembra que os adultos
podem ter sonhos com pouca deformação em algumas circunstâncias relacionadas
à privação e necessidades físicas. Contudo, ele deixa claro que, em qualquer caso,
os desejos sexuais infantis recalcados são a origem dos sonhos. (FREUD,
1900/1996b).
Freud dedica onze conferências – toda a parte II de suas “Conferências
Introdutórias Sobre Psicanálise” (FREUD, 1916-1917/1996f) aos sonhos em seus
aspectos teóricos e clínicos. Uma das conferências versa exclusivamente sobre
sonhos de crianças e nela Freud fala sobre distorção, porém, no restante do texto
utiliza amplamente sonhos de crianças em “início de atividade mental” e enfatiza que
“o sonho manifesto e o latente coincidem.” (Ibid., p. 129-130).
Todavia, Freud faz uma ressalva indicando que mesmo nos sonhos mais
“simples” há, ao menos, uma deformação que decorreria do fato do sonho ter como
44
uma de suas funções preservar o sono. Neste sentido, a realização de desejo tem
caráter regressivo, de satisfação alucinatória. Freud alerta:
[...] representa o desejo sendo satisfeito sob a forma de uma
experiência alucinatória. ‘Gostaria de ir ao lago’ é o desejo que
origina o sonho. O conteúdo do sonho propriamente dito é: ‘Estou
indo ao lago’. Portanto, mesmo nesses simples sonhos de crianças,
uma diferença entre o sonho latente e sonho manifesto, uma
distorção do pensamento onírico latente: a transformação de um
pensamento em uma vivência. (FREUD, 1916-1917/1996f, p. 132).
Mais adiante, afirma: “todos os sonhos o sonhos de crianças, eles
operam com o mesmo material infantil, com os impulsos e mecanismos mentais da
infância.” (Ibid., p. 215, grifo nosso).
No caso do “Homem dos Lobos”, Freud (1918/1996i) confere mais uma vez,
em um de seus importantes casos clínicos, um lugar preponderante a sonhos
relatados pelo paciente, tanto nos aspectos teóricos que puderam ser estudados por
meio do atendimento, como em relação à técnica psicanalítica.
Nota-se que os sonhos infantis de angústia, tanto no “Pequeno Hans” como
no “Homem dos Lobos”, são apresentados por Freud como um dos importantes
fatores que fizeram eclodir a neurose de ambos os pacientes e ao mesmo tempo são
significativos pontos de partida para seu tratamento.
Para Strachey (1918/1996), a importância deste caso clínico à época de sua
publicação se deveu também aos subsídios que forneceu para as críticas de Freud a
Adler e, mais especificamente, a Jung. Havia nele evidências conclusivas para
combater qualquer recusa da sexualidade infantil. No “Homem dos Lobos”, um
sonho de infância narrado pelo paciente ganha lugar central para Freud no relato do
45
caso. Trata-se de um sonho de angústia que, durante o tratamento, leva a
suposições sobre a cena primária e à angústia de castração.
A relevância que Freud a este feito pode ser notada em alguns
comentários que redigiu em periódicos dessa época, resgatados por Strachey:
[...] Ficaria satisfeito se todos os meus colegas que se preparam para
ser analistas coligissem e analisassem cuidadosamente quaisquer
sonhos de seus pacientes cuja interpretação justifique a conclusão
de que aqueles que os tiveram tenham sido testemunhas de um ato
sexual nos primeiros anos de vida. Uma sugestão é sem dúvida
suficiente para tornar evidente que tais sonhos são de um valor muito
especial, em mais de um aspecto. Apenas esses sonhos podem, é
claro, ser considerados como indicativos de que ocorreram na
infância, e são lembrados a partir desse período. (FREUD,
1918/1996i, p. 16).
Freud faz algumas ressalvas no texto indicando que não se trata
necessariamente da recordação de uma cena real, mas talvez de sua reprodução
como fantasia. Neste sentido, podemos encontrar uma pista sobre a técnica analítica
dos sonhos infantis em Freud, em que ele comenta que o analista precisa emprestar
à criança palavras com as quais ela não conta em seu pré-consciente (FRANÇA,
1999).
Ainda neste caso clínico, Freud (1918/1996i) afirma que, apesar das
dificuldades da análise dos sonhos de crianças, seus sonhos não são “nem mais
pobres nem mais claros do que os de adultos.” (p. 21). Ele ressalta os obstáculos às
associações verbais na criança, mas, ao mesmo tempo, proporciona um estímulo
fundamental para a investigação dos sonhos infantis, quando afirma de modo
resoluto que:
46
[...] A análise de neuroses infantis possui um interesse teórico
particularmente alto, proporciona-nos tanta ajuda na compreensão
das neuroses dos adultos quanto os sonhos infantis em relação aos
sonhos dos adultos [...] ainda por não haver tantos depósitos
posteriores, a essência da neurose salta aos olhos com uma nitidez
inequívoca. (FREUD, 1918/1996i, p. 20)
12
.
Mais tarde, ainda sob influência do sonho do “Homem dos Lobos”, Freud
acrescenta, em 1919, uma modificação no capítulo sobre o “Esquecimento dos
sonhos” na Traumdeutung. Declara que os sonhos, que ocorrem nos primeiros anos
de infância e que são guardados por dezenas de anos, frequentemente com grande
vividez, são, quase sempre, muito relevantes para o entendimento da história do
desenvolvimento psíquico do sujeito e de sua neurose (FREUD, 1900/1996b).
Ainda no mesmo texto, Freud acrescenta uma explicação que parece
bastante relevante para a compreensão de uma das possíveis razões da
deformação onírica nas crianças ser menos acentuada:
[...] O caso de criancinhas nos proporciona um teste convincente da
validade da nossa teoria dos sonhos. Nelas os vários sistemas
psíquicos ainda não se acham acentuadamente divididos e as
repressões ainda não se tornaram profundas, de modo que
amiúde nos deparamos com sonhos que nada mais são do que
realizações indisfarçadas de impulsos impregnados de desejos que
sobraram da vida de vigília. Sob a influência de necessidades
imperativas, os adultos podem também produzir sonhos desse tipo
infantil. (FREUD, 1925/1996k, p. 50, grifo nosso).
Em 1925, Freud inclui uma observação relevante em nota de rodapé no
capítulo sobre “Distorção nos Sonhos” (1900/1996b). Ele combate enfaticamente as
críticas que recebera sobre o comentário contido neste capítulo, no qual afirma que
12
Um comentário semelhante já havia sido feito por Freud na Conferência XXIII, “Os Caminhos da Formação dos
Sintomas” (FREUD, 1917/1996j), época em que havia concluído a análise do “Homem dos Lobos”, mas que
ainda não havia publicado.
47
“o sonho é uma realização (disfarçada) de um desejo (suprimido ou recalcado).” (p.
193). De acordo com Freud, seus opositores, “de maneira inescrupulosa”, acusaram-
no de considerar que “todos os sonhos têm um conteúdo sexual”. A isso, Freud
responde já se remetendo à sua segunda teoria das pulsões:
A situação seria diferente se ‘sexual’ fosse empregado por meus
críticos no sentido que é agora comumente utilizado na psicanálise –
no sentido de ‘Eros’. Mas é muito pouco provável que meus
opositores tenham tido em mente o interessante problema de
determinar se todos os sonhos são criados por forças pulsionais
‘libidinais’, em contraste com as forças ‘destrutivas’. (Freud,
1900/1996b, p. 193).
Freud cita, mais uma vez, sonhos de crianças das páginas precedentes, que
são exatamente os sonhos de sobrinhos e de sua filha Anna, para sustentar que
nem sempre se tratam de sonhos de realização de desejo sexual.
Em seus últimos escritos, Freud acrescenta importantes contribuições sobre
os aspectos técnicos e metapsicológicos dos sonhos, porém, não mais
desenvolvimentos específicos sobre os sonhos infantis.
Lacan (1955/1985), ao discutir o estatuto do desejo nos sonhos em Freud,
comenta que a questão dos sonhos de crianças é o único ponto de mal-entendido na
“Interpretação dos Sonhos”: “este ponto de confusão vem desta propensão, que
existe em Freud, em recorrer freqüentemente a um ponto de vista genético, e que é
de sua obra o que mais caducou.” (p. 265).
É isso que queremos marcar aqui. Não se trata de fazer uma revisão da
metapsicologia do sonho de crianças ou de rever em detalhes as proposições
freudianas sobre o desejo, o infantil ou a criança, mas de apontar esse “mal-
entendido” de Freud, como diz Lacan, em relação aos sonhos de crianças.
48
Nem sempre se pode atribuir o estatuto tópico de inconsciente aos desejos
nos sonhos apresentados por Freud em seus textos, principalmente nas crianças.
Mas, independente do estatuto tópico de que o sonho é constituído (podendo o
desejo que ele porta ser um anseio, aspiração ou até necessidade), Freud foi
incisivo ao afirmar que um desejo consciente pode induzir a formação de um
sonho se despertar um desejo inconsciente de mesmo teor e conseguir reforço dele.
Os desejos sexuais infantis recalcados proporcionam as fontes motivadoras mais
fortes e frequentes para a formação dos sonhos (PACHECO FILHO, 2002)
13
.
Se Freud (1916-1917/1996f, p. 215) afirma que “todos os sonhos o sonhos
de criança”, em referência a esses desejos sexuais infantis recalcados que o sonho
tenta realizar, o faz para enfatizar essa dimensão infantil constitutiva do desejo do
adulto. No entanto, em relação às produções oníricas de crianças, isso não é
constante. um movimento pendular em relação ao estatuto sexual e inconsciente
do desejo nesses casos. O tema é trabalhado por Freud de modo contraditório: ora
os sonhos de crianças comportam realizações disfarçadas de desejos sexuais, ora
são absolutamente cristalinos, simples e sem deformações. Essas oscilações estão
presentes, às vezes, até no mesmo texto e aparecem até o final de sua obra.
Por isso, escolheu-se apresentar esse tema no trabalho, para evidenciar o
caráter de ambiguidade também de Freud na relação com os sonhos, uma vez que
em relação a outras facetas da teoria onírica ele parece muito mais resoluto.
Não se buscou analisar o desejo de Freud, mas questionar essa aparente
atmosfera de estabilidade, principalmente em relação à teoria, que acompanha o
tema sonhos na obra freudiana.
13
Não se pretende realizar neste momento uma análise pormenorizada dos aspectos metapsicológicos dos
sonhos infantis, nem um levantamento histórico minucioso da evolução do tema na obra freudiana. O objetivo é
mostrar como Freud se relacionou com o assunto.
49
O que apontamos não deve ser visto isoladamente, e sim à luz da criação da
psicanálise e de sua história. Não se trata, portanto, de apontar de um modo
idealizado esse ou outro ponto de ambiguidade em Freud, ou nos analistas, como se
fosse possível não haver ambiguidades ou equívocos; mas de relembrar que a
relação de Freud com os sonhos, assim como em outros analistas, além de trazer as
marcas de sua época também carrega as marcas de suas referências pessoais, de
sua posição subjetiva. Isso não era ignorado por Freud e esteve presente, inclusive,
em sua autoanálise.
50
2 AUTOANÁLISE E FORMAÇÃO DO ANALISTA
Quando me perguntam como pode uma pessoa fazer-se psicanalista,
respondo que é pelo estudo dos próprios sonhos.
Freud (1909/1996h, p. 46).
Para Freud, o estudo dos sonhos de crianças, de seus próprios sonhos, a
escrita da Traumdeutung e sua autoanálise foram praticamente concomitantes.
A primeira alusão à ideia de escrever um livro sobre sonhos ocorre em uma
carta a Fliess em 16 de maio de 1897, ou seja, poucos meses antes do início, de
fato, da autoanálise. No conjunto, os dois projetos foram desenvolvidos tão
estreitamente que podem ser encarados quase como se fossem um só: “’A
Interpretação dos sonhos’ é, entre outras coisas, uma seleção da autoanálise.”
(JONES, 1970/1989, p. 357).
As produções oníricas de Freud assumem lugar privilegiado no
“emaranhamento entre autobiografia e ciência que marcou a Psicanálise desde o
início” (GAY, 1989, p. 97), e tornam-se pontos de partida de dois fios condutores da
obra freudiana: a autoanálise e a interlocução com o pensamento científico de sua
época.
A morte de seu pai em 1896 e as evidências que levaram Freud a abandonar
a teoria da sedução em 1897, também fazem parte do contexto que o levou ao
caminho dos sonhos (MEZAN, 2002b).
A clínica também foi determinante: Freud notava precocemente que seus
pacientes interpolavam às associações alguns relatos de sonhos que geravam
51
novas cadeias associativas, e em sua experiência psiquiátrica, por meio dos estudos
de alucinações observadas em psicóticos, também notou certo caráter de realização
de desejo (JONES, 1970/1989).
Em 1897, Freud abandona a teoria da sedução e em carta a Fliess,
explicando os motivos que o levaram a renunciar à teoria, comenta que seu trabalho
dos últimos cinco anos desmoronava como um castelo de cartas. Desesperado,
inibido em seu trabalho, perdido em meio aos enigmas que o atormentavam decide
aplicar a si mesmo o método terapêutico que inventara, e empreende uma
autoanálise sistemática. Como não podia consultar um psicanalista – pois era o
único praticante da arte resolve valer-se da “estrada real para o inconsciente” que
os sonhos lhe ofereciam (MEZAN, 2002b, p. 21).
Portanto, como mencionamos, “se hoje o sonho não tem de ser
necessariamente, enquanto tal, objeto preferencial da análise [...] para o homem
Freud o foi, sem dúvida e apaixonadamente.” (PONTALIS, 2005, p. 38).
Freud, por meio do trabalho de interpretação contínuo e metódico de seus
sonhos, “realizou sua Selbstanalyse: durante um determinado período, ele marcou
literalmente encontros com seus sonhos e, o que é ainda mais impressionante, os
sonhos compareciam aos encontros.” (Ibid., p. 38).
Pontalis (2005) aponta que seria simplista atribuir aos sonhos a mera função
de mediadores, os quais teriam possibilitado a Freud o “pleno reconhecimento de
seu conflito edipiano”, por exemplo.
Trata-se de algo bem diferente: o sonho foi para Freud um corpo
materno deslocado, ele cometeu incesto com o corpo de seus
sonhos, penetrou seu segredo, escreveu o livro que o torna
conquistador e dono da terra incógnita [...] A intensidade pulsional
era tamanha que, três quartos de século mais tarde, seus longínquos
52
sucessores voltaram a perscrutar o corpo, transformando em corpus,
de seus sonhos. (PONTALIS, 2005, p. 38).
Os “encontros” de Freud com seus sonhos nem sempre foram bem
sucedidos. Vejamos: “Minha auto-análise continua interrompida. Descobri o motivo.
posso me analisar com conhecimentos obtidos objetivamente, como um
estranho. A verdadeira auto-análise é impossível, do contrário não haveria doença”,
desabafa Freud, um tanto desanimado, em carta a Fliess em novembro de 1897
(GAY, 1989, p. 103).
Gay (1989) critica a forma exaltada com que Jones (1970/1989) refere-se à
autoanálise de Freud, inclusive cita Freud em 1898 fazendo referência a esse
processo de modo bem mais modesto do que o descrito na biografia escrita por
Jones: “comecei 43 anos a dirigir meu interesse para os resíduos de minha memória,
de minha própria infância.” (FREUD apud GAY, 1989).
Freud “não estabelecia uma sólida equivalência entre seu auto-escrutínio e
uma análise completa.” (p. 97). Chegou, inclusive, a se referir ao processo como
“observação de si mesmo”, em “Psicopatologia da Vida Cotidiana” (GAY, 1989, p.
97).
As hesitações e os modestos circunlóquios de Freud o apropriados,
comenta Gay. O psicanalista, em suma, é para seu analisando aquilo a que Freud
elevou Fliess: o Outro. “Como Freud conseguiria, por mais ousado ou original que
fosse, converter-se em seu Outro?” (Ibid., p. 104).
Em ocasiões posteriores, Freud defenderia a autoanálise como uma forma de
o analista reconhecer e, assim, neutralizar “seus próprios complexos”. Mas ao
mesmo tempo afirma que ser analisado por outra pessoa “é uma via marcadamente
superior para o autoconhecimento.” (GAY, 1989, p. 103).
53
Freud “se encontrava com seus sonhos” nessa época, como diz Pontalis
(2005, p. 38), mas, a partir da publicação da Traumdeutung começou um movimento
crescente de encontro de Freud com analistas interessado na psicanálise. Em 1902
surge a Sociedade Psicológica das Quartas Feiras, quando um pequeno grupo de
jovens médicos começa a reunir-se com Freud movidos pelo interesse de conhecer,
aplicar e difundir a psicanálise. Esse primeiro grupo psicanalítico “foi a concretização
em ato do convite à transferência que Freud havia formulado em a ‘Interpretação de
Sonhos’.” (KUPERMANN, 1996, p. 42).
Vejamos o convite de Freud em seu texto:
[...] passarei a escolher um de meus próprios sonhos e, com base
nele, demonstrarei meu método de interpretação. No caso de cada
um desses sonhos, far-se-ão necessárias algumas observações à
guisa de preâmbulo. E agora devo pedir ao leitor que faça dos
meus interesses os seus próprios por um período bastante longo, e
que mergulhe comigo nos menores detalhes de minha vida, pois
esse tipo de transferência é obrigatoriamente exigido por nosso
interesse no sentido oculto dos sonhos. (FREUD, 1900/1996b, p.
140).
Em relação ao lugar dos sonhos na formação, o caminho que Freud percorre
começa nesse convite que faz aos analistas para seguirem com ele, na
Traumdeutung, a análise de seus sonhos em busca do conhecimento das leis do
inconsciente. Alguns anos depois, Freud sugere que o analista interprete seus
próprios sonhos
14
e, posteriormente, que ele o faça mediante tratamento analítico.
Aqui os sonhos parecem ocupar um lugar primordial na formação.
Vejamos alguns desses momentos no texto freudiano. Na terceira das “Cinco
Lições de Psicanálise”, Freud, pela primeira vez, indicações explícitas sobre a
14
Na Traumdeutung, Freud já discute a autoanálise e a autoanálise dos sonhos, mas nesse momento ainda não
as vincula à formação do analista.
54
formação do analista relacionada aos sonhos.
[...] Pareceu-me quase escandaloso apresentar-me neste país de
orientação prática, como ‘onirócrita’, antes de mostrar-lhes qual a
importância a que pode aspirar esta velha e ridicularizada arte. A
interpretação de sonhos é na realidade a estrada real para o
conhecimento do inconsciente, a base mais segura da psicanálise. É
campo onde cada trabalhador pode por si mesmo chegar a adquirir
convicção própria, como atingir maiores aperfeiçoamentos. Quando
me perguntam como pode uma pessoa fazer-se psicanalista,
respondo que é pelo estudo dos próprios sonhos. (FREUD,
1909/1996h, p. 46, grifo nosso).
Mais adiante, nas “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise”,
é mencionada a necessidade da realização de análise por parte do analista em
formação:
[...] alguns anos, dei como resposta à pergunta de como
alguém se pode tornar analista: ‘Pela análise dos próprios
sonhos’. Esta preparação, fora de dúvida, é suficiente para muitas
pessoas, mas não para todos que desejam aprender análise. Nem
pode todo mundo conseguir interpretar seus próprios sonhos sem
auxílio externo. Enumero como um dos muitos méritos da escola de
análise de Zurique terem eles dado ênfase aumentada a este
requisito, e terem-no corporificado na exigência de que todos que
desejem efetuar análise em outras pessoas terão primeiramente de
ser analisados por alguém com conhecimento técnico. (FREUD,
1912/1996l, p. 130, grifo nosso).
O Instituto psicanalítico de Berlim, fundado em 1920, desempenhou um papel
decisivo na instauração dos princípios da análise didática no seio da Associação
Psicanalítica Internacional (IPA). Dois anos após, em 1922, em congresso da IPA,
apresentou-se a exigência da análise didática para todo e qualquer candidato à
analista. Ferenczi contribui muito para enfatizar a função da análise didática, a qual
considerou como a “segunda regra fundamental da psicanálise” (LAPLANCHE;
55
PONTALIS, 1971, p. 24).
A partir desta data, começaram a ser encarados como transgressões os
costumes “anárquicos” da época anterior. Inúmeras críticas foram levantadas a
respeito da formação, e a “crise da formação psicanalítica” marcou todos os debates
da segunda metade do século XX (ROUDINESCO, 1998, p. 18).
Numa última fase, portanto, com a profissionalização da psicanálise, impõe-se
o caráter obrigatório e a padronização da análise didática. O sonho, no discurso da
formação, aparece agora apenas como um dos elementos presentes no processo
obrigatório e normatizado pelo qual os analistas devem passar para serem
considerados como tais. Não estamos dizendo que ele perdeu importância na
formação, mas que, pelos arranjos transferenciais institucionais, chega a tomar
contornos mais domesticados e até de obrigatoriedade e persecutoriedade.
Imaginemos um candidato à analista no auge do estabelecimento da
ortodoxia freudiana nas instituições que simplesmente o se lembra de seus
sonhos, ou não apresenta sonhos em sua análise. Será que ele seria considerado
apto para ser um analista?
Esta época carrega outra marca muito significativa: o diagnóstico do câncer
de Freud em 1923. Kupermann comenta o quanto o diagnóstico foi impactante para
a comunidade analítica, principalmente porque se pensou, na época, que ele
morreria em poucos meses. Com isso, uma série de medidas para combater a
heterodoxia se asseverou (BERNFELD apud KUPERMANN, 1996).
A morte de Freud é um fato de extrema relevância para se pensar a
institucionalização da psicanálise. Safouan considera “a padronização da formação
uma repetição do mito freudiano de “Totem e Tabu”, um arranjo dos irmãos
56
parricidas ditado pelo crime comum.” (SAFOUAN, 1987 apud KUPERMANN, 1996,
p. 80).
Propomos, a seguir, um caminho para pensar o sonho na formação do
analista, considerando as dimensões apresentadas neste capítulo em diálogo,
também, com o capítulo anterior. Trata-se de um “ensaio lógico” de caráter apenas
ilustrativo para provocar uma reflexão.
Se “todos os sonhos são sonhos de crianças” (FREUD, 1916/1996d, p. 215) e
“alguém se torna analista pela análise de seus próprios sonhos” (FREUD,
1912/1996l, p. 130), então, para alguém tornar-se analista deveria, portanto, poder
analisar seus sonhos de criança?
Neste silogismo não se tomou com rigor a complexidade e as controvérsias
em relação à autoanálise citadas, nem a questão da análise didática e das várias
outras discussões mencionadas sobre o tema. A ideia é apontar, a partir de Freud,
para a importância do analista não desprezar as contradições e a complexa tensão
entre sua posição de analista e de sujeito. Independentemente das propostas
institucionais e da padronização excessiva que se seguiram, é muito relevante
ressaltar a importância de um percurso de investigação pessoal para a formação do
analista.
O sonho ocupa um lugar fundamental na formação, mas queremos por em
relevo uma dimensão que vai além de sua interpretação. Assim destacamos com
muito maior ênfase outra questão, a da importância do analista estar atento a sua
relação com os sonhos: os seus, de crianças, de Freud, de seus pacientes, e,
metaforicamente, também os sonhos institucionais, os sonhos da formação, de
resistência, os sonhos da teoria, da certeza, da idealização, da completude, entre
outros.
57
O modo de conceber essa relação pode ser também uma importante via para
investigar sua relação com o inconsciente e com as referências fundamentais da
psicanálise, bem como sua transferência com Freud, lugar constantemente
idealizado. Essa investigação pode contribuir para que o analista circule de modo
mais crítico, fluído e criativo pelo campo analítico, na sua clínica e no seu processo
de formação.
Para além dos sonhos e das burocracias institucionais, citamos Freud a partir
de recorte de Hoffmann (1998, p. 127 apud KAUFMANN, 1996). O autor recorta
“uma passagem freudiana que vai do finito ao infinito da formação.” Vejamos em
Freud essa passagem, em “Recomendações aos médicos que exercem a
psicanálise”:
[...] Todo aquele que possa apreciar o alto valor do
autoconhecimento [...] continuará, após terminar, o exame analítico
de sua personalidade, sob a forma de auto-análise, e ficará contente
em compreender que, tanto dentro de si quanto no mundo
externo, deve sempre esperar descobrir algo de novo. (FREUD,
1912/1996l, p. 130, grifo nosso).
É possível pensar na emergência do novo, no devir, em meio à
institucionalização?
58
3 INSTITUCIONALIZAÇÃO DO SONHO?
Lacan (1955/1985, p. 207) comenta que o sonho da injeção de Irma,
integrado ao processo das descobertas de Freud, naquela época adquire um duplo
sentido. Ele “não é apenas um objeto que Freud decifra, é a sua fala.” Freud supõe
que um dos sentidos desse sonho é dizer que “a seringa estava suja, a paixão do
analista, a ambição de vencer, eram poderosas demais, a contratransferência era
o próprio obstáculo.” (Ibid., p. 207).
A posição subjetiva de Freud, seu desejo de reconhecimento e de ver a
psicanálise largamente difundida já foram trabalhados de modo amplo por biógrafos,
comentadores e em farto material psicanalítico. Porém, em Lacan, existe um
movimento inaugural nessa leitura do homem Freud em seus sonhos, sua obra e
nas relações institucionais.
Conforme Kupermann (1996, p. 143), “Lacan promove um corte transferencial
inédito na psicanálise.” (p. 143). Na “Proposição de 9 de outubro”, Lacan lança um
desafio ético: o estudo das instituições psicanalíticas, os efeitos transferenciais
induzidos pela estrutura de grupo e da relação dos psicanalistas com as mesmas
(Ibid.).
Como mencionamos por meio de Kupermann, o relato do sonho da injeção
de Irma e sua análise, como ilustração do método de interpretação freudiana,
fundam a transmissão da experiência psicanalítica e estabelecem a um tempo a
condição básica segundo a qual a psicanálise se institucionalizará: a transferência a
Freud (KUPERMANN, 1996).
59
Retomando a questão do convite de Freud aos analistas:
Em A Interpretação dos Sonhos é formulado um convite à
transferência a partir do qual forma-se em torno de Freud, o grupo
que daria início ao movimento psicanalítico. A Interpretação dos
Sonhos coloca-se como texto fundador da transmissão da
experiência psicanalítica e de sua institucionalização, e vem apontar
que, entre sonhos e utopias, uma e outra são reguladas pela
transferência. (KUPERMANN, 1996, p. 9).
O autor menciona a etimologia do sentido ativo de instituição, que significa
“fazer com que se mantenha de ”, sublinhado por Lapassade (1980). Freud, em
relação à psicanálise, tinha desejo de instituição. Ao incentivar a criação da IPA,
pretendia organizar o movimento psicanalítico, sua difusão e, ao mesmo tempo,
garantir sua especificidade (KUPERMANN, 1996).
A criação da IPA coroa o movimento de institucionalização da psicanálise,
cujas bases estão dadas desde a Interpretação dos sonhos. Nesse movimento “a
psicanálise deixa de ser um movimento de vanguarda e passa a ser uma instituição.”
(ROUDINESCO apud KUPERMANN, 1996, p. 54).
Hess (2007) afirma: “o conceito de institucionalização é polissêmico, equívoco
e problemático.” (p. 148). O autor recorta dois grupos de significações que apontam
para duas dimensões da instituição. A primeira refere à instituição como “forma
social estabelecida” (o instituído). A segunda remete aos processos pelos quais uma
sociedade se organiza (o instituinte) (Ibid., p. 148).
Existe uma tensão inerente à instituição que “pode ser entendida como o
produto de uma confrontação permanente entre o instituído (o dado, o que
procura se manter) e o instituinte (forças de subversão, de mudança).” (HESS, 2007,
p. 149).
60
Kupermann (1996) fala sobre essa tensão:
uma tensão irredutível entre o que a psicanálise se propõe
enquanto processo terapêutico e as vicissitudes de sua
institucionalização [...] entre a investigação do inconsciente e as
formas pelas quais a psicanálise vai se organizar, se manter e se
perpetuar na cultura. (p. 9).
A instituição é “um amálgama de afetivo, de ideologia e de organização. A
base material da instituição a institui definitivamente.” (HESS, 2007, p. 153). O
nascimento da instituição pressupõe uma “comunhão fundadora” e a ideia de obra a
realizar. Desse modo, o instituinte se define como o que desenvolve uma lógica de
verdade em relação ao momento fundador (Ibid.).
o instituído, ao contrário, é o que falsifica o espírito fundador da instituição.
A institucionalização é, pois, o recobrimento desse espírito fundador por um
instituído, cujo efeito é o de negar os objetivos iniciais da instituição para seguir
objetivos próprios. “Qualquer idéia, qualquer invenção, à medida que toma forma
social, entra em institucionalização, ou seja, perde a radicalidade.” (Ibid., p. 156).
Essa perda de radicalidade foi trabalhada por Freud (1932/1996m) em “A
questão de uma Weltanschauung (visão de mundo)
15
. O que faz de uma teoria uma
Weltanschauung é a imposição de uma proibição do pensamento, que pode se dar
pela associação dessa teoria a sistemas religiosos, ou pela sacralização de um autor
e de uma obra, cuja crítica se tornaria tabu.
Kupermann (1996) conclui:
15
Freud explica o termo no texto citado: “é uma construção intelectual que soluciona todos os problemas de
nossa existência, uniformemente, com base em uma hipótese superior dominante, a qual, por conseguinte, não
deixa nenhuma pergunta sem resposta e na qual tudo o que nos interessa encontra seu lugar fixo.” (FREUD,
1932/1996m, p. 155). Segundo o editor inglês, em nota de rodapé na mesma página, a tradução para ‘visão do
universo’ ou ‘cosmovisão’ não é satisfatória.
61
Freud corria esses dois riscos: além de assistir à tentação de captura
da psicanálise por uma lógica da ilusão, era de fato e de direito, o pai
da psicanálise, colocando aqueles que dela se aproximavam frente a
um complexo paterno quando da relação com sua palavra, o seu
texto a sua criação. (KUPERMANN, 1996, p. 34).
Para a primeira geração de analistas, a psicanálise, a teoria e as regras
técnicas eram mais intensamente vinculadas à pessoa de Freud, e para as gerações
que se seguiram o texto freudiano ganhou grande peso
16
. Neste sentido, vejamos
alguns recortes marcantes que exemplificam como Freud conscientemente ou não
pode ter reforçado em seu discurso o estatuto de tabu da teoria analítica e, mais
adiante, da teoria onírica:
Não é de se estranhar o caráter subjetivo desta contribuição que
me proponho trazer à história do movimento psicanalítico, nem
deve causar surpresa o papel que nela desempenho, pois a
psicanálise é criação minha; durante dez anos fui a única pessoa
que se interessou por ela, e todo o desagrado que o novo fenômeno
despertou em meus contemporâneos desabou sobre a minha cabeça
em forma de críticas. Embora de muito tempo para eu tenha
deixado de ser o único psicanalista existente, acho justo continuar
afirmando que ainda hoje ninguém pode saber melhor do que eu
o que é a psicanálise, em que ela difere de outras formas de
investigação da vida mental, o que deve precisamente ser
denominado de psicanálise e o que seria melhor chamar de outro
nome qualquer. (FREUD, 1914-1916/1996n, p. 18, grifo nosso).
Se em relação à psicanálise, de um modo geral, Freud, ao menos
aparentemente, não costumava demonstrar muito orgulho por suas descobertas
científicas, “atuava como apenas um mensageiro esforçado de uma inspiração, de
algo alheio a si próprio”; em relação aos sonhos sua reação foi diferente, ele
exaltava a si mesmo (GARMA, 1991, p. 210).
16
Mais adiante trataremos da relevância da “presença” de Freud na prática e no estudo da psicanálise.
62
Algumas das frases de Freud conhecidas sobre suas descobertas a respeito
dos sonhos: “O meu melhor livro; Uma descoberta assim se faz uma vez na vida;
A mais bela descoberta que fiz, provavelmente a única que me sobreviverá; Quando
estou em dúvida me volto para os sonhos; Perturbei o sono do mundo; Aqui nesta
casa o segredo dos sonhos foi revelado ao Dr. Sigmund Freud; Golpe no narcisismo
humano equiparado à revolução provocado por Copérnico”, entre outras.
Além dessas, uma série de comentários lamuriosos e preocupados, como
o modo equivocado que muitos analistas teriam se apropriado da teoria onírica e
outros que apresentam a teoria dos sonhos como, por exemplo, condição ou senha
de acesso para quem quisesse “tornar-se seguidor da psicanálise e a quem ela
permaneceria para sempre incompreensível.” (FREUD, 1932/1996m, p. 17).
Kupermann (1996) faz um jogo de palavras e transporta para a psicanálise a
mesma denúncia que Freud lançou a respeito do marxismo e de sua condição
refratária a críticas, típica de uma Weltanschauung:
Causaria espanto, quando nos referimos a certos meios
psicanalíticos, dizer que os escritos de (Freud-Melanie Klein-Lacan)
assumiram o lugar da Bíblia e do Alcorão, como fonte de revelação,
embora não parecessem estar mais isentos de contradições e
obscuridades do que esses antigos livros sagrados? (Ibid., p. 35).
Ainda no mesmo sentido, Kupermann (1996) fala das garantias da ilusão:
[...] o destino provável daquele que destrói a ilusão alheia é ser, ele
próprio, investido da mesma forma que a ilusão anterior. Portanto,
se Freud ‘perturba o sono’ (e os sonhos) do mundo, não se deixará
de sonhar; passar-se-á a sonhar com Freud e a psicanálise. Afinal, é
possível viver sem o sonho da ilusão? (KUPERMANN, 1996, p. 35).
63
Não podemos esquecer, portanto, que em contato com a “coisa” psicanalítica
tanto os psicanalistas quanto os pacientes estão sujeitos às limitações provocadas
pela resistência suscitada pela própria psicanálise (KUPERMANN, 1996). Este
capítulo, tendo o sonho como eixo condutor, também trata disso: de como os
mecanismos institucionais e de institucionalização podem funcionar, muitas vezes,
como ferramentas de resistência em detrimento de sua função de organização e
garantias à psicanálise.
Acompanhamos no início do trabalho com Pontalis (1991) a força de atração
dos sonhos e, agora, com Lacan (1957/1998) e Kupermann (1996) a força de
atração de Freud. Prestemos atenção, portanto, à dupla força de atração presente
na história e nas particularidades da institucionalização da psicanálise: o(s) sonho(s)
de Freud nos sentidos literal e figurado.
Se pensarmos a institucionalização, conforme as discussões desse capítulo e
do anterior, a partir das transferências dirigidas a seu fundador, do amálgama
afetivo, da comunhão fundadora, dos tabus, estabelecimento de regras e
mecanismos de controle da formação poderíamos pensar metaforicamente na
institucionalização do sonho?
Isso implicaria em reconhecer o quão regulamentados podem ser, em alguns
momentos, os recortes que a psicanálise faz do assunto e como esse movimento,
em última instância, pode indicar uma institucionalização, inclusive, da resistência:
aos sonhos, à psicanálise, ao novo, ao que vem de fora dessa instituição e que
poderia lhe interpelar, ameaçar, tirar da ilusão.
Garcia-Roza (1991) nos um exemplo: “Habituamo-nos de tal maneira à
tese de que os sonhos são realizações de desejos que corremos o risco de deixar
64
na penumbra a questão: será o sonho apenas realização de desejo?” (GARCIA-
ROZA, 1991, p. 174).
Evocamos um pitoresco estudo sociológico dos sonhos feito por Bastide
(1962 apud CALLOIS; GRUNENBAUM, 1978). Ele aponta o jogo do bicho como um
exemplo para a função de institucionalização da função do sonho no Brasil e se
pergunta: Será que a psicanálise institucionalizará os sonhos? Isso é possível, ele
responde. “Dentro de cinqüenta anos poderemos considerar o sonho como uma
verdadeira instituição. Por enquanto isso não ocorre devido à importância crescente
dada à produção, à práxis.” (Ibid., p. 139).
Será que Bastide acertou sua previsão? Não foi justamente no caráter prático
de suas regras e teoria que se deu a institucionalização dos sonhos?
Evocamos aqui uma pergunta que permeia o trabalho de Kupermann (1996):
Será que a dimensão ilusória ou alienante das instituições, inclusive as
psicanalíticas, é inexorável?
O autor nomeia, por meio de uma metáfora, uma solução para a dimensão
alienante da institucionalização que começou a se delinear no movimento analítico
na década de setenta. O pluralismo começou a florescer de modo mais evidente
nesta época. O trânsito dos analistas por diferentes teorias, mestres e, até mesmo,
associações psicanalíticas diversas caracterizou uma espécie de nomadismo
teórico-institucional, no qual a fixidez dos lugares previamente estabelecidos é
abalada. A condição afetiva para o surgimento deste novo arranjo institucional é a
emergência de um arranjo transferencial inédito na história da psicanálise: a
transferência nômade no campo psicanalítico (KUPERMANN, 1996).
Este modo transferencial embaralha os códigos, contratos e as fidelidades
transferenciais de modo a propiciar em diversos lugares transferenciais a diferença e
65
a angústia da incerteza que marcam a experiência psicanalítica em seu momento
inaugural e que devem marcar cada nova análise (KUPERMANN, 1996).
Acrescentamos à proposta de Kupermannn uma alternativa apresentada por
Hess (2007): as trocas elaboradas via Internet. Trata-se de um sistema que em nada
falsifica uma profecia. Segundo o autor, a maneira pela qual os austríacos
contestatários do poder vigente comunicam-se entre si, por exemplo, revela um
amplo movimento alternativo que nega a lógica piramidal das antigas lutas, que
valorizavam a constituição de uma vanguarda. Em todo caso, este modo de
comunicação não é portador de institucionalização. Ninguém tenta “capitalizar”,
“recuperar” a dinâmica do grupo social real que emerge através da rede. Este grupo
existe em seu momento “instituinte” e se autodissolve em seguida, antes mesmo
da fase de recuperação (HESS, 2007, p. 158-159).
Na proposta de Kupermann, apresentada na década de noventa, talvez a
dimensão de redes virtuais ainda o estivesse tão profundamente enraizada como
nos dias de hoje. Se nos debruçarmos sobre o significado do nomadismo, vemos
que uma de suas referências é o local físico. A despeito da proposta de Kupermann
(1996) propor uma desterritorialização, o movimento nômade, mesmo em sua
errância, pressupõe a existência de um local físico.
O que merece ser destacado na atualidade, extrapolando o movimento
nômade recortado pelo autor e indo ao encontro das propostas de Hess, é a
existência de grupos virtuais de psicanálise. Nesses casos, encontramos a criação
de ambientes que possibilitam as transferências em rede, em que o rompidas as
vinculações de saber a um espaço físico. Não se trata de propor uma virtualização
dos debates psicanalíticos, mas de apontar um movimento que tem se mostrado
muito interessante na circulação dos saberes psicanalíticos.
66
Além dos grupos virtuais de debates, há uma ampla rede de divulgação de
eventos, cursos, lançamentos de livros, entre outros. As publicações de artigos e a
disponibilização das teses acadêmicas ou até dos currículos de pesquisadores on-
line, sempre acompanhados de e-mail, facilitam enormemente o contato com
colegas da mesma área ou de outras áreas do conhecimento no mundo inteiro
17
.
Vimos como, na psicanálise, o sonho de institucionalização pode
institucionalizar o sonho e como as estradas virtuais, em rede, podem ser uma
aposta complementar ao movimento institucional para a multiplicidade e
flexibilização. Voltemos um pouco na história, para a estrada real ou via régia.
17
Sabemos que isso não é um consenso, porém optamos por não aprofundar essa discussão. Algumas pessoas
acreditam que essa disposição em rede empobrece, esvazia ou até inibe a experiência do contato ou a troca de
informações, porém, esta não é nossa posição.
67
4 ESTRADA REAL
A célebre frase de Freud: “A interpretação dos sonhos é, na realidade, a
estrada real para o conhecimento do inconsciente” foi apresentada em 1909, na
Terceira lição de suas Cinco lições sobre psicanálise proferidas na Clark University,
em Worcester, Estados Unidos (FREUD, 1909/1996h, p. 46).
uma interessante concomitância com a primeira menção à formação do
analista nesse mesmo texto. No mesmo ano, ele insere no capítulo VII da
“Interpretação dos Sonhos” uma passagem muito semelhante, mas com alguns
acréscimos: “A interpretação dos sonhos é a via real para o conhecimento das
atividades da vida anímica.” (FREUD, 1900/1909/1996b, p. 634, grifo nosso). Não
se sabe ao certo qual delas foi a primeira, mas estas foram as únicas vezes que a
frase foi apresentada desta maneira.
Essa expressão de Freud se presta aos mais variados equívocos. Talvez o
maior deles, contra o qual Freud se esforçou ao longo de sua obra para combater,
tenha sido a ideia de que os sonhos são o inconsciente
18
. A simplificação da frase
original para “os sonhos são a estrada real para o inconsciente”, omitindo as
palavras ‘interpretação’ e ‘conhecimento’, empobrece muito as nuances que a
expressão original comporta. Outra modificação comum é: “os sonhos são a via
régia para acessar o inconsciente”.
18
Essa questão foi muito abordada por Freud também em relação às questões técnicas, tema que será abordado
no próximo capítulo.
68
Sandler (2002) discorre sobre essas alterações feitas às proposições iniciais
de Freud. Ele localiza as raízes do equívoco na simplificação e incompreensão a
respeito dos conteúdos manifestos e latentes:
Os conceitos de conteúdo manifesto e latente foram gradualmente
sendo super simplificados. O último tem sido visto como se fosse um
desvelar do inconsciente; o mesmo ocorreu com uma frase, quase-
aforismo, que Freud escreveu sobre os sonhos. A citação comum é
que eles seriam ‘a via régia para o inconsciente’. Mas Freud
escreveu que os sonhos são a via régia para o conhecimento dos
processos inconscientes da mente. (SANDLER, 2002, p. 103, grifo
nosso).
Uma questão relevante para discussão é a concepção de inconsciente
subjacente à metáfora da estrada real. A ideia de estrada pode remeter à noção de
que é possível chegar a esse “lugar inconsciente”, significá-lo e desvendá-lo. Mesmo
que Freud tenha insistido, desde o início, que algo que resiste à significação no
sonho o umbigo do sonho e mesmo após as reformulações metapsicológicas
mais tardias que afastam de vez essa noção um tanto concreta do inconsciente,
essa metáfora indica uma abordagem ambígua da questão dos sonhos. Certamente
deixa portas abertas para um entendimento um tanto reificante do inconsciente.
a utilização da palavra ‘conhecimento’, para se referir à apreensão dos
processos inconscientes, faz certo sentido quando se trata do conhecimento teórico
ou na interlocução com a comunidade científica da época, mas pode, por exemplo,
remeter a uma abordagem positivista do trabalho com os sonhos na clínica.
Questões sobre a tradução também são relevantes: ‘via régia’, ‘estrada real’,
‘via real’ são as principais versões brasileiras. Cássio, um de nossos entrevistados,
comenta que a tradução do alemão corresponderia a via principal, como de uma
69
cidade pequena, por onde você entra, por onde chega, onde existem as coisas
principais da cidade.
Freud deixou evidente de várias maneiras a imensa importância que conferia
aos sonhos. No entanto, em sua obra, como mencionado, a expressão sobre a
estrada real aparece duas vezes. Diante disso, queremos evidenciar duas
posturas distintas em relação ao assunto: uma é considerar a importância dada por
Freud aos sonhos, outra é o apego que se pode constatar por parte dos analistas à
tal frase.
Curiosamente, lembramos que Freud proferiu esta frase numa comunicação
aos estudiosos americanos, de quem ele esperava uma estrondosa resistência.
Por que tantos equívocos a respeito dessa expressão? Por que os
analistas repetem-na até com certo exagero? Algumas vezes essa repetição parece
apenas um automatismo que encobre um não-dito a respeito dos sonhos, ou um
incômodo em questionar o lugar primordial conferido aos sonhos pelo mestre. Não
seria possível pensar, também, que a aparente insistência na crença de que existe
uma via primordial, com tal intensidade, presta-se a algum tipo de idealização ou
negação do “impossível ofício de psicanalisar”?
Mais algumas reflexões são necessárias: ‘Via régia’ quer dizer uma via de
acesso mais fácil? Mais rápida? Mais importante? Melhor? Principal? Mais “nobre”?
Via régia para quem? Para o analista ou para o paciente? Veremos nas entrevistas o
quanto variam as concepções dos analistas a respeito desse tema.
Checchinato (1987) discorre sobre a via régia:
Freud sempre teve o sonho como a principal manifestação do
inconsciente. A ele recorria nos momentos de dúvida sobre
diagnóstico, sobre a incerteza do desejo de seus pacientes. Quando
Freud fala sobre o sonho como uma via real do inconsciente, essa
70
figura se torna tênue demais, senão ambígua, para os que hoje lêem.
(CHECCHINATO, 1987, p. 11).
Entretanto, é possível localizar em Freud diversos argumentos que explicam
solidamente as razões sobre os sonhos figurarem como produções privilegiadas
numa análise. O mais citado entre eles é que “o estado de sono possibilita a
formação de sonhos porque reduz o poder da censura endopsíquica” (FREUD,
1900/1996g, p. 557), portanto, os sonhos, principalmente os ocorridos durante a
análise, constituem a fonte mais importante do retorno do recalcado (FREUD,
1923/1996b, p. 132).
Porém, é necessário lembrar as várias e importantes menções de Freud à
faceta de resistência presente nos sonhos durante o tratamento. Isso será
desenvolvido adiante no capítulo sobre a técnica analítica.
Nessa perspectiva, questiona-se: Com a disseminação da psicanálise na
cultura, a popularização do analista como alguém que “gosta de sonhos” e como um
“intérprete de sonhos”, não pode acarretar no deslizamento dos sonhos como via
régia da resistência? Outra questão: Considerar que existe uma via principal, a priori,
quando se escuta um paciente não é um entrave para a atenção flutuante do
analista?
Após vários questionamentos, apresentamos por meio de Manonni (1994), o
que parece ser um interessante e conclusivo desdobramento a respeito das
afirmações sobre a via régia. Para o autor, quando se fala sobre a via régia é
admissível pensar em vários sentidos: pode ser o melhor meio para chegar ao
conhecimento dos pensamentos inconscientes de um paciente; ou o melhor meio de
chegar a um conhecimento teórico do inconsciente; ou ainda o melhor caminho para
levar os leitores a admitir a existência do inconsciente.
71
Checchinato (1987) também faz um comentário que merece consideração.
Ele aponta para uma abordagem histórica do termo: “‘Via real’, é preciso lembrar,
trata-se da via ampla, larga, pela qual o rei passava, fazia seus desfiles. É a via mais
reta, menos impedida.” (p. 11).
Sabemos o quanto as metáforas ferroviárias são caras a Freud. Imaginando
que a escolha do termo ‘estrada real’ também tenha relação com alguma referência
cultural de Freud, e em função das abundantes citações relacionadas aos sonhos
que abordam a antiguidade oriental, considerou-se importante mencionar um dado
histórico
19
: sabe-se que a mais antiga estrada de que se tem registro era a
revolucionária “Estrada real da Pérsia”, construída pelo rei Persa Dario I no século V
a.C. para proporcionar uma comunicação rápida por todo seu imenso império.
Ligava as civilizações da Mesopotâmia e do Egito e estendia-se do golfo Pérsico ao
mar Egeu, num percurso que unia a Pérsia à Turquia, Grécia e Egito. Foi o primeiro
grande sistema de rodovias formado de estradas que se interligavam, criavam
grandes centros de caravanas e permitiam intensa troca comercial entre regiões
distantes.
Heródoto escreveu sobre ela: Não nada no mundo que viaje mais pido
que esses mensageiros persas”. E ainda: “Nem a neve, nem a chuva, nem o calor e
nem a escuridão da noite impedem que realizem a tarefa proposta a eles com a
máxima velocidade.” (CEPA, 1999). Seria esta estrada real a inspiração de Freud
para a escolha da célebre expressão sobre os sonhos?
Freud, em “Sobre o início do tratamento”, ao falar da regra fundamental da
psicanálise, a associação-livre, constrói a clássica metáfora ferroviária que pode ser
facilmente vinculada à concepção da interpretação dos sonhos, como estrada real:
19
http://pt.wikipedia.org/wiki/Estrada_Real_Persa/. Acesso em: 20 nov. 2007.
72
[...] Assim, diga tudo o que lhe passa pela mente. Aja como se, por
exemplo, você fosse um viajante sentado à janela de um vagão
ferroviário, a descrever para alguém que se encontra dentro as vistas
cambiantes que vê lá fora. Finalmente, jamais esqueça que prometeu
ser absolutamente honesto e nunca deixar nada de fora porque, por
uma razão ou outra, é desagradável dizê-lo. (FREUD, 1913/1996e, p.
150).
Assim, junto com Freud e Pontalis, mais do que considerar a interpretação
dos sonhos como especial ou privilegiada, vemos a importância de se considerar os
sonhos como um meio, um caminho, e não um fim, ou um ponto de chegada.
Vejamos a viagem dos sonhos proposta por Pontalis (1991):
[...] O relato do sonho seria o que o viajante conta de sua viagem
depois que chegou em casa (os encontros, as paisagens
vislumbradas da janela). O Wunsch seria o que o levou, com
excitação, inquietude e expectativa, a tomar o trem. Mas isso, o
viajante, o narrador e o ouvinte ignoram, como se a estação de
partida não figurasse nos horários da estrada de ferro, mas apenas a
estação de chegada (o relato) e as estações intermediárias (as
associações). Dificuldade suplementar: o ‘trem de pensamentos’ não
segue nunca o caminho mais direto, mas um trajeto extremamente
complicado, com desvios, linhas laterais, mudanças de via, recuos. O
trem deve andar, e isso é tudo. Cada sonhador inventa o seu
percurso, que é dele. Cada um organiza sua rede. (PONTALIS,
1991, p.19).
Da mesma forma que cada sonhador inventa seu percurso, cada analista
também poderia fazê-lo. Eckenstein (1994) pontua que em diferentes fases da
história da psicanálise e da técnica analítica variaram as vias régias em evidência. O
autor também sugere que diferentes momentos na formação de um analista levam-
no a estas escolhas, e que estas não deveriam ser estanques.
Neste sentido, poderíamos, talvez, pensar que a via régia para psicanalisar
seria, então, deixarem-se surpreender, analista e analisando, sem escutar
73
previamente nenhum elemento como via régia? A rigor, poderíamos considerar
um elemento que se presentifique na análise como via régia a posteriori, por seus
efeitos.
Estamos cientes do cuidado que se deve ter ao relativizar uma afirmação
relevante como a da via régia. E quando se trata de sonhos, não podemos deixar de
lado a existência de particularidades que os diferenciam radicalmente de qualquer
outro material produzido em análise. Mas não se pode esquecer que particularidade
não significa necessariamente superioridade ou preferência em relação a outros
conteúdos.
O percurso neste capítulo buscou ampliar o termo, incluindo a dimensão
histórica nele implicada a fim de descolá-lo apenas da dimensão técnica. Não é
possível extinguir as ambiguidades nele presente, e talvez tenha sido essa a
intenção de Freud (caso tenha havido de fato uma intenção implícita quando proferiu
a frase). Além disso, buscou-se iluminar o modo como os analistas se relacionam
com esta proposição de Freud.
Quando a ‘via régia’ deixa de ser polissêmica e se torna uma repetição
insistente com um único sentido, geralmente vinculado ao caminho certo, seguro e
privilegiado para a decifração dos sonhos de acordo com as regras do mestre, não
seria ela mais uma versão da ilusão que abordamos no capítulo anterior? Mas é
possível ou desejável viver sem ilusão?
Mesmo com a grande valorização dos sonhos no tratamento, vemos que
Freud nem sempre lhes conferia o estatuto de via régia. Em seus textos, ele
demonstrava estar muito atento à dimensão de resistência dos sonhos. Seque
seus seguidores também o fizeram?
74
5 MAIS REALISTAS QUE O REI?
“O senhor não está cansado de sonhos? O senhor precisa dar também o que
está em sua mente consciente”, disse Freud segundo Smiley Blanton (1975, p. 13)
em novembro de 1929. Em seu livro “Diário de minha análise com Sigmund Freud”,
Blanton relata seu período de análise com Freud. Trata-se de um material
interessante, pois aborda a técnica analítica do ponto de vista de um paciente de
Freud, material muito escasso na literatura psicanalítica.
O que temos disponível para refletir sobre a relação de Freud com os sonhos
especificamente na clínica? Sua obra, correspondências, documentos
20
, registros
históricos, comentadores da sua época e da atualidade, biografias, publicações
sobre a história da psicanálise e escritos relacionados a pessoas que conviveram
com ele. Nesta última categoria, podemos encontrar uma interessante variedade de
material que vai desde biografias de Martha, esposa de Freud, relatos de pacientes
atendidos por ele e até diários de funcionários que trabalharam na casa dos Freud.
Stratchey (1918/1996) comenta, na introdução dos artigos sobre técnica de
Freud (1911-1915), que uma escassez desse tipo de escrito em Freud. Para o
editor inglês essa relutância se devia ao ceticismo de Freud em relação à formação
teórica dos analistas, em detrimento da experiência clínica e de sua preocupação
com o acesso que os pacientes teriam do material, o que poderia ser prejudicial às
análises.
20
Não entraremos na discussão sobre o material de Freud retido e não divulgado pelo Sigmund Freud archives,
mas sublinhamos que se trata de um assunto de grande relevância para pensarmos, entre outros aspectos, a
questão da prática de Freud e de sua biografia.
75
Sobre a importância epistemológica, histórica, teórica, ou até pessoal,
atribuída por Freud aos sonhos, estamos ainda num terreno menos nebuloso,
porém, quando se trata da clínica, temos que ter algo em mente: não sabemos
realmente como Freud trabalhava.
Nogueira (2004) comenta:
A bibliografia psicanalítica é construída pela consciência dos
analistas, a partir dos cinco casos relatados por Freud. Uma coisa é
o que Freud viveu na relação com Dora, por exemplo, outra foi o que
ele escreveu sobre essa experiência. Então, para que serve essa
transmissão? Ela é a única maneira que nós temos de nos aproximar
dessa realidade, que é o inconsciente, que Freud descobriu e para o
qual inventou um método de investigação. Mas esse método mostra
justamente os limites disto. (p. 87).
Não possibilidade de se reduzir uma coisa a outra, não se pode investigar
o inconsciente como objeto da realidade. A teoria psicanalítica é muito fascinante
para o ser humano, mas esquecemos que o que é obtido na relação entre falantes é
obtido por um processo inconsciente e a consciência tenta transmitir isso, porém
um salto entre a experiência original e a transmissão (NOGUEIRA, 2004, p. 87).
Freud, em correspondência com Pfister, fala sobre o processo de descrição
de um caso clínico:
Discrição é incompatível com a descrição satisfatória de uma análise;
para se obter esta, é necessário ser inescrupuloso, entregar, trair, se
comportar como um artista que compra tintas com o dinheiro da casa
juntado pela mulher ou queima a mobília para aquecer o estúdio para
sua modelo. Sem um traço desse tipo de falta de escrúpulos, é
impossível se realizar essa tarefa. (FREUD, 1910 apud ROAZEN,
1999, p. 21).
Em meio ao crescente material produzido por Freud e a seu respeito, uma
76
questão permanece em aberto: como era ele na prática clínica? As pessoas
esquecem com facilidade, devido sua grande produção como escritor, que a maior
parte dos seus dias de trabalho não foi gasta escrevendo, sentado numa
escrivaninha, mas, sim, ouvindo pacientes (ROAZEN, 1999)
21
.
O exemplo que mencionamos na análise de Blanton (1975) é apenas um de
uma série de recortes clínicos que mostram o quão heterodoxo Freud poderia ser na
clínica. No livro de Roazen (1999), “Como Freud trabalhava: relatos inéditos de
pacientes”, encontramos vários relatos de ex-pacientes de Freud que o autor
entrevistou. Por mais polêmico e criticável que possa ser esse material em relação
ao valor de verdade que ele tenha sobre a prática clínica de Freud, ele pode ser um
indicativo interessante de uma razoável heterodoxia de sua prática não muito
mencionada na literatura.
Temos, portanto, alguns aspectos importantes a serem pensados: 1. Não
podemos ignorar o caráter de impossibilidade da transmissão da clínica. 2. Devemos
lembrar o quanto Freud era extremamente cuidadoso e discreto em relação aos
relatos de casos clínicos, o que sugere, muito provavelmente, a realização de
significativas alterações nos conteúdos dos relatos
22
. 3. Mesmo se consideramos os
relatos clínicos de Freud como emblemáticos e representativos de sua prática, como
ele mesmo deu a entender, eles são o recorte de uma parcela ínfima da experiência
clínica de Freud
23
. 4. As publicações clínicas de Freud, principalmente à época do
nascimento e estabelecimento da psicanálise, ou em momentos de mudanças em
21
Utilizou-se essa referência a Roazen com alguma reserva, devido a ser considerado um autor revisionista da
obra freudiana. Porém, por esta pesquisa ter um cunho crítico exatamente sobre a relação dos analistas também
com Freud, os autores considerados polêmicos merecem atenção.
22
Freud destruiu quase totalmente seus registros sobre pacientes.
23
No auge de sua capacidade, Freud recebia oito pacientes por dia e os via regulamente, seis vezes por semana
(ROAZEN, 1999). Não estamos levantando uma questão estatística com esse dado, mas lembrando que,
provavelmente, muito material importante e revelador sobre Freud na clínica não chegou sequer a ser
mencionado por ele em sua obra.
77
suas proposições teóricas, muitas vezes eram recortadas a fim de servirem de
comprovação de suas propostas
24
.
Neste sentido mencionamos um alerta de Roazen (1999) sobre os casos
publicados de Freud:
Mesmo que alguém aceite de modo acrítico a versão que Freud fez
sobre esses cinco pacientes razões para questionar em que
medida essas histórias tão conhecidas são representativas de seus
métodos. O tato e a discrição de Freud, assim como sua concepção
de ciência moldaram o material clínico que ele escolheu para
apresentar para o púbico. (ROAZEN, 1999, p. 19-20).
Porém, mesmo diante de todos esses aspectos tão conhecidos dos analistas,
são muito comuns as referências simplificadas à prática clínica de Freud, ou um
apego aos seus textos técnicos e relatos clínicos como modelo a seguir na prática
da psicanálise. Certamente não podemos creditar apenas aos analistas uma
possível idealização ou apropriação acrítica dos textos técnicos de Freud.
Sabemos o quanto Freud, aparentemente despretensioso e flexível em
relação ao cumprimento de seus preceitos técnicos, em alguns momentos da história
da psicanálise, foi bastante severo quanto a essas questões, tanto em seus textos
como na convivência com seus discípulos. É interessante sublinhar como
praticamente todos os textos técnicos de Freud sobre sonhos têm um tom de
advertência aos analistas em relação à prática, e de correção de interpretações
errôneas de sua teoria.
Entretanto, sabemos que em relação aos escritos técnicos, era bastante
conhecido entre os membros mais próximos do grupo de Freud o fato de que ele não
24
Ao considerarmos os interlocutores de Freud e as questões históricas, o assunto fica bem amplo. A afirmação
da psicanálise no meio médico, as querelas com seus discípulos, a sustentação de novas teorias, a intenção de
preservar os princípios da psicanálise e o tão citado desejo de reconhecimento não podem ser ignorados como
fatores de alta influência quando pensamos nas publicações de Freud, inclusive sobre a clínica.
78
se apegava em demasia às regras que recomendava (ROAZEN, 1999).
Nas instituições de modo geral, e na psicanálise também, vemos como os
arranjos transferenciais que modulam a transmissão – da teoria e da técnica
podem, algumas vezes, criar discípulos com pretensões de serem, de fato, mais
realistas do que o rei.
79
6 OS SONHOS NA CLÍNICA
6.1 A IMPORTÂNCIA DOS SONHOS NO TRATAMENTO
A importância dos sonhos na análise
25
, como sublinhado por Freud em
inúmeros textos, reside principalmente em seu caráter de presentificação: de
memórias esquecidas, do desejo e do pulsional.
Os sonhos no tratamento analítico são uma fonte inigualável do retorno do
recalcado e também da recuperação de conteúdos esquecidos. No sentido de
rememoração, eles possuem uma importância relevante também nas construções
em análise.
Sobre a rememoração, Freud (1925/1996k) comenta:
É bem plausível acontecer que os sonhos durante a psicanálise
consigam trazer à luz a coisa reprimida em grau maior do que os
sonhos tidos fora dessa situação. Isso, porém, não se pode provar,
de vez que ambas as situações não são comparáveis; o emprego
dos sonhos na análise é algo muito afastado de seu propósito
original. Em compensação, não se pode duvidar de que, dentro de
uma análise, muito mais a coisa reprimida vem à luz em vinculação
com sonhos que por qualquer outro método. A título de explicação,
deve haver algum poder motivador, alguma força inconsciente mais
bem capacitada a conceder apoio aos propósitos da análise durante
o estado de sono, que em outras ocasiões. (FREUD, 1925/1996k, p.
50)
26
.
25
Quando se fala dos sonhos em análise, estamos nos referindo aos sonhos que ocorrem enquanto o paciente
está em tratamento e também os sonhos que os pacientes tiveram em período anterior, inclusive em sua
infância, mas que são recordados em análise. Quando falamos do trabalho com os sonhos na análise, trata-se
do que se faz com o relato do sonho. As associações e produções do paciente e do analista. Fazemos essa
ressalva para prevenir o mal-entendido recorrente de considerar o relato do sonho como sinônimo do sonho.
26
Isso será repetido em “Esboço de psicanálise”, (FREUD, 1938-1940/1996o, p. 180).
80
Em “O Retorno do recalcado”, ele menciona as experiências que crianças
muito novas, de aproximadamente dois anos de idade ou menos, viveram e não
puderam compreender, mas que podem recordar “por meio de seus sonhos através
da análise.” (FREUD, 1939/1996p, p.140)
A origem do infantil do desejo é calcada no mito de Édipo, introduzido por
Freud inicialmente nas reflexões sobre os sonhos de morte de pessoas queridas.
Essa característica significa que Édipo, como mito, desvela a estruturação do desejo
na medida em que é articulado com a lei. “Que o desejo guarde o selo da primeira
infância faz acentuar suas características de proibido, inconfessável e
indestrutível.” (QUINET, 2003, p. 75).
Freud propõe que todo o sonho expressa um Wunsch
27
. “Em alemão, Wunsch
designa um voto, uma aspiração, um desejo ou mesmo um pedido
28
. O termo em
alemão pode significar um pedido que se faz às fadas, estrelas cadentes ou quando
se entra pela primeira vez numa igreja”. Este termo comporta uma forte dimensão de
endereçamento, pedido, demanda
29
. (QUINET, 2003, p. 65).
Apesar de em alemão o termo não ter a conotação de desejo sexual, Freud
vai elevá-lo a uma categoria fundamental da psicanálise: o desejo inconsciente
sexual infantil indestrutível
30
. O texto da “Interpretação dos sonhos” é um longo
percurso da elaboração desse conceito (Ibid.).
As experiências infantis não significadas configuram algo da ordem do desejo
infantil indestrutível que retorna repetidamente, que irrompe na forma de sintomas e
outras formações do inconsciente. E o posicionamento do sujeito diante dessas
27
Termo em alemão utilizado na Traumdeutung referente a desejo que remete à ideal, sonho, objetos almejados.
No alemão ele não comporta a dimensão sexual presente no português (HANNS, 1996).
28
Curiosamente, a palavra para se referir à varinha de condão é Wünschelrute (Pênis-de-desejo).
29
Importantes contribuições a respeito das articulações entre desejo e demanda no sonho são desenvolvidas por
Lacan (1957/1998), principalmente em seu seminário 5. Não desenvolveremos essas teorizações de Lacan por
estarmos nos debruçando mais exclusivamente no percurso freudiano.
30
Não iremos explorar neste item a função do sonho a serviço do desejo de dormir. Isso será desenvolvido nas
discussões metapsicológicas.
81
formações, o questionamento sobre seu desejo, possui importância primordial na
análise.
Em “Além do princípio do prazer” (FREUD, 1920/1996q), Freud equipara os
sonhos tidos em análise aos sonhos traumáticos. São sonhos que não se prestam
diretamente à realização de desejos, mas à compulsão à repetição, “embora seja
verdade que, na análise, essa compulsão é apoiada pelo desejo (incentivado pela
‘sugestão’) de conjurar o que foi esquecido.” (Ibid., p. 43).
Em seus textos sobre sonhos na década de vinte, Freud afirma
categoricamente que os sonhos são capazes de trazerem à luz muito mais
conteúdos reprimidos do que qualquer outra manifestação psíquica, e que,
particularmente, os sonhos que acontecem durante o período de análise costumam
trazer ainda mais conteúdos reprimidos do que em situações fora do tratamento.
Freud sublinha que esta última particularidade está absolutamente ligada à
transferência, o analista figura como participante do desejo formador do sonho.
Sobre a importância dos sonhos na análise para Freud, resumimos seus
aspectos principais: a rememoração de conteúdos reprimidos (infantis ou outros), a
compreensão mais geral da vida psíquica inconsciente (funcionamento psíquico) do
paciente e a presentificação do desejo e da pulsão no tratamento. A presentificação
na análise está absolutamente enlaçada à transferência.
82
6.2 SONHOS: TRANSFERÊNCIA, SUGESTÃO E RESISTÊNCIA
Há, em Freud, duas dimensões da transferência que são intimamente
vinculadas: a transferência de sentido e outro processo correlato, o fenômeno da
transferência, que ocorre durante o tratamento, vinculado à figura do analista.
Ambas são respostas do aparelho psíquico à necessidade de transferência,
conceito fundamental na obra freudiana. Vejamos nas palavras de Freud:
O inconsciente prefere tecer suas ligações em torno de impressões e
representações pré-conscientes que sejam indiferentes e às quais,
por isso mesmo, não se tenha dado atenção ou que tenham sido
rejeitadas [...] Se presumirmos que também nos sonhos atua essa
mesma necessidade de transferência por parte das representações
recalcadas, [...] dois dos enigmas do sonho serão resolvidos de um
golpe, a saber, o fato de que toda análise de um sonho revela o
entrelaçamento de alguma impressão recente em sua trama, e que
esse elemento recente é freqüentemente banal [...] o fato de os
elementos triviais serem preferidos é explicado por sua isenção da
censura. (FREUD, 1900/1996b, p. 592, grifo nosso)
Miller (1987) destaca em Freud três tipos de transferência. São concepções
da transferência vinculadas às noções de repetição, resistência e sugestão.
Encontramos o termo ‘transferência’ empregado por Freud desde “A interpretação
dos Sonhos”.
Em seus textos técnicos, Freud (1914/1996r) aponta para a neurose de
transferência como uma saída para a cura em análise. É por meio do manejo da
transferência e da interpretação que o analista pode propiciar que a recordação e a
elaboração tomem o lugar das repetições que o paciente empreende na vida e na
análise. É porque o paciente se encontra sob transferência, é pelo amor de
83
transferência que é possível suportar a palavra interpretativa, o levantamento do
recalque e abrir mão da repetição.
Porém, Freud (1912/1996s) nos adverte sobre a transferência durante o
tratamento: “invariavelmente nos aparece, desde o início, como a arma mais forte da
resistência, e podemos concluir que a intensidade e persistência da transferência
constituem efeito e expressão da resistência.” (p. 115).
O paradoxo da transferência é que sem ela o existe análise, no entanto é
nela que reside a resistência. A transferência está a serviço da resistência. Freud
sugere o manejo da transferência erótica apaixonada ou negativa para que a análise
possa prosseguir.
Em relação a esse paradoxo, Freud, em seus artigos sobre a técnica
analítica, inclui uma discussão sobre a faceta de resistência que os sonhos
engendram:
Devemos em geral evitar demonstrar interesse muito especial na
interpretação de sonhos, ou despertar no paciente a idéia de que o
trabalho se interromperia se ele não apresentasse sonhos; de outra
maneira, o perigo de a resistência ser dirigida para a produção de
sonhos, com a conseqüente cessação destes. Pelo contrário, o
paciente deve ser levado a crer que a análise invariavelmente
encontra material para sua continuação, independentemente de ele
apresentar ou não sonhos, ou da atenção que lhes é dedicada. [...]
Quanto mais o paciente aprende da prática da interpretação de
sonhos, mais obscuros, geralmente, se tornam seus sonhos
posteriores. Todo o conhecimento adquirido sobre sonhos serve
também para colocar em guarda o processo de construção onírica.
(FREUD, 1912/1996t, p. 102-105).
Em 1920, Freud propõe a repetição a serviço da pulsão de morte, tendência
predominante no psiquismo em repetir, para além do princípio do prazer. A
manifestação da resistência na transferência passa a ser vista agora sob dois
aspectos: resistência à significação, uma resistência proveniente do recalcado em
84
função do princípio do prazer, na evitação do desprazer e outra dimensão de
resistência que deriva da pulsão de morte, que se manifesta na compulsão à
repetição.
Em ambos os casos é a sugestão, a interpretação e o manejo do analista na
relação transferencial que podem trabalhar a resistência no sentido de promover
uma elaboração por parte do paciente. Em seu primeiro escrito sobre os sonhos na
clínica após suas reformulações tópicas e pulsionais, “Observações sobre a teoria e
a prática da interpretação dos sonhos”, Freud (1923/1996c) chega a falar de uma
aliança entre o tratamento e a compulsão à repetição:
Podemos acrescentar, aqui, ser a transferência positiva que
essa assistência à compulsão à repetição. Fez-se uma aliança [...]
que, em primeira instância, é dirigida contra o princípio de prazer, e
cujo propósito final, porém, é o estabelecimento do domínio do
princípio de realidade. [...] muito amiúde acontece a compulsão à
repetição abandonar suas obrigações sob essa aliança [...] (FREUD,
1923/1996c, p. 133, grifo nosso).
Já à luz dessas reformulações, Freud discorre sobre a importância e as
particularidades dos sonhos na análise:
É bem plausível acontecer que os sonhos durante a psicanálise
consigam trazer à luz a coisa reprimida em grau maior do que os
sonhos tidos fora dessa situação. [...] o emprego dos sonhos na
análise é algo muito afastado de seu propósito original. Em
compensação, não se pode duvidar de que, dentro de uma análise,
muito mais a coisa reprimida vem à luz em vinculação com
sonhos que por qualquer outro método. A título de explicação,
deve haver algum poder motivador, alguma força inconsciente
mais bem capacitada a conceder apoio aos propósitos da
análise durante o estado de sono, que em outras ocasiões.
(FREUD, 1923/1996c, p. 132, grifo nosso).
85
Os desenvolvimentos desse texto têm grande relevância e culminam com
uma afirmação de Freud importante para nossa pesquisa. Para ele, esse poder
motivador em direção aos sonhos localiza-se na dimensão transferencial:
O que está em pauta não pode ser outro fator senão a submissão do
paciente em relação ao analista [...] a parte positiva daquilo que
chamamos de transferência; [...] em muitos sonhos que recordam o
antes esquecido e reprimido, é impossível descobrir qualquer outro
desejo inconsciente a que se possa atribuir a força motivadora para a
formação do sonho. Desse modo, se alguém deseja sustentar que a
maioria dos sonhos utilizáveis em análise são sonhos obsequiosos e
devem sua origem à sugestão, nada se pode dizer contra essa
opinião, do ponto de vista da teoria analítica. (FREUD, 1923/1996c,
p. 133, grifo nosso).
6.3 O MANEJO DOS SONHOS NO TRATAMENTO ANALÍTICO
Desde o “Projeto para uma Psicologia Científica”, Freud (1896/1996u)
abordou a técnica relativa aos sonhos. Porém, é após “A Interpretação dos Sonhos”
que, além dos desenvolvimentos fundamentais sobre a metapsicologia, a questão
técnica referente aos sonhos começa a ganhar maior relevância. Neste texto
inaugural, marcamos um deslocamento que Freud propõe acerca da interpretação
em comparação com os desenvolvimentos anteriores sobre os sonhos: o sonhador
interpreta seu sonho. Aliás, o próprio sonho e seu relato são considerados
interpretações.
Posteriormente, em vários casos clínicos e ao longo de seus textos
31
, a
31
O editor inglês da obra de Freud acredita não ser exagero considerarmos que em praticamente todos os seus
textos há menções a sonhos.
86
questão do manejo dos sonhos no tratamento também é abordada. Entretanto,
em seus escritos cinco textos fundamentais que versam exclusivamente sobre o
trabalho com os sonhos no tratamento analítico.
O primeiro deles foi “O manejo da interpretação dos Sonhos na Psicanálise”
(1911), seguido da Conferência VI das “Conferências introdutórias sobre psicanálise”
(1916). Depois, em 1923, Freud escreveu “Observações sobre teoria e prática da
interpretação de Sonhos” (FREUD, 1923/1996c). Trata-se de um artigo fundamental
que revê a técnica referente aos sonhos, após suas proposições acerca da pulsão
de morte.
Dois anos mais tarde, Freud escreveu “Algumas notas adicionais sobre a
interpretação de sonhos como um todo” (1925/1996v), e seu último escrito
especificamente sobre o assunto foi a Conferência XXI, “Revisão da teoria dos
sonhos”, nas “Novas conferencias introdutórias sobre psicanálise” de 1932 (FREUD,
1932-1936/1996a).
Na Traumdeutung, Freud apresenta inúmeros exemplos de manejo clínico
dos sonhos. Nesse momento, o manejo praticamente coincide com a interpretação.
A interpretação consiste em, por meio das associações do sonhador, chegar-se à
elucidação de seus pensamentos oníricos latentes que originaram o sonho, o desejo
do sonho. Isto também teria efeitos terapêuticos, pois os pensamentos oníricos
latentes derivam dos mesmos núcleos centrais de onde emergem os sintomas
neuróticos: os desejos infantis sexuais recalcados.
Freud fala da resistência no capítulo VII, no item “Esquecimento dos sonhos”,
e menciona, também, a existência nos sonhos de um ponto irredutível à
interpretação que permanece na obscuridade: “[...] um emaranhado de pensamentos
87
oníricos que não se deixa desenredar [...] Esse é o umbigo do sonho, o ponto onde
ele mergulha no desconhecido.” (FREUD, 1900/1996b, p. 556-557).
Em seu texto de 1912, Freud não se debruça na interpretação dos sonhos
propriamente dita, mas em como esta se insere no tratamento como um todo. Ele
propõe que a interpretação dos sonhos não deve ser perseguida no tratamento
como “arte pela arte [...] o manejo deve submeter-se àquelas regras técnicas que
orientam a direção do tratamento como um todo”, referindo-se à escuta flutuante e à
associação livre (FREUD, 1912/1996t, p. 101).
Freud fala de uma renúncia do analista em não buscar interpretações
definitivas ou exaustivas dos sonhos: Sei que é pedir muito do paciente e do
médico, esperar que abandonem seus propósitos conscientes durante o
tratamento e entreguem-se a uma orientação que [...] parece ‘acidental’.” (Ibid., p.
104, grifo nosso).
Como mencionamos, Freud (1912/1996t) sugere cuidado na demonstração
de interesse do analista sobre o sonho, insiste em alertar os analistas em relação a
sua faceta de resistência. É comum encontrar nos textos técnicos sobre os sonhos
recomendações para que os analistas fiquem atentos a uma espécie de
deslumbramento e desejo de interpretar os sonhos.
Nas conferências (1916-1917/1996f), Freud faz longos desenvolvimentos
sobre os sonhos. Em relação à técnica o acento é colocado novamente na
associação livre. Ele sugere que se pergunte diretamente ao paciente:
O que fazem os senhores se Ihes comunico algo ininteligível? Os
senhores me farão perguntas, não é mesmo? Por que não faríamos
a mesma coisa com a pessoa que sonhou - questioná-la sobre o que
seu sonho significa? [...] o sonhador sempre diz que nada sabe [...] é
altamente provável que o sonhador sabe, sim, o que seu sonho
significa: apenas não sabe que sabe, e, por esse motivo, pensa que
88
não sabe. Também aqui perguntaremos a quem sonhou de que
modo chegou ao sonho e, da mesma forma, seu primeiro comentário
pode ser considerado uma explicação. (FREUD, 1916-1917/1996f, p.
105).
Nos estudos de Freud sobre o manejo clínico dos sonhos, a resistência é
amplamente mencionada. Duas dimensões principais o abordadas: a resistência
de seus interlocutores à teoria onírica e a resistência do paciente no tratamento.
Freud justifica ambas como efetivações da censura.
As resistências à teoria são trabalhadas por Freud de modo extremamente
enfático, e muitas vezes até combativo em seus textos. Na própria apresentação do
trabalho ele costuma levantar as possíveis objeções ou questionamentos ao
conteúdo que irá desenvolver, e é comum, a partir daí, convidar o leitor a lhe
acompanhar em inúmeras interpretações e raciocínios em que vai detalhadamente
expondo a teoria e a prática referente aos sonhos.
Em quase todos seus escritos sobre técnica, Freud enfatiza repetidamente
que não se deve buscar a interpretação dos sonhos como um fim, e nem tentar
esgotar a interpretação de um sonho isoladamente. Ele insiste que o trabalho com
os sonhos faz parte do tratamento e, como tal, segue seus princípios fundamentais.
Freud (1923/1996c), em “Observações sobre a teoria e a prática da
interpretação dos sonhos”, enumera alguns procedimentos técnicos para a
interpretação dos sonhos em análise. Ele afirma que não pode estabelecer qual dos
procedimentos seria preferencial ou traria melhor resultados. Para ele, a escolha dos
procedimentos fica em aberto.
(a) proceder cronologicamente e fazer com que o sonhador traga
suas associações aos elementos do sonho na ordem em que esses
elementos ocorreram em seu relato do sonho. É esse o todo
89
original, clássico [...] (b) iniciar o trabalho de interpretação a partir
de algum elemento específico do sonho, que se apanha de seu
meio [...] o fragmento mais notável dele, ou aquele que apresenta a
maior clareza ou intensidade sensória [...] Ou pode-se (c) começar
por desprezar inteiramente o conteúdo manifesto e, em vez disso,
perguntar àquele que sonhou quais os acontecimentos do dia
anterior associados em sua mente com o sonho que acabou de
descrever. [...] (d) estando aquele que sonhou familiarizado com a
técnica da interpretação [...] deixá-lo decidir com que associações ao
sonho irá começar. (FREUD, 1923/1996c, p. 125, grifo nosso).
Neste escrito, Freud apresenta um importante desenvolvimento sobre a
relação do analista com os sonhos na clínica. Para ele, a interpretação do sonho
incide em duas fases: “a fase em que é traduzido e a fase em que é julgado ou seu
valor foi determinado.” (Ibid., p. 125).
É neste momento que irá falar sobre a influência do analista no trabalho com
os sonhos e na própria ocorrência de sonhos. Ele deixa claro que o analista
influencia os sonhos do paciente:
O fato de o conteúdo manifesto dos sonhos ser influenciado pelo
tratamento analítico não necessita de provas. [...] não é de
surpreender os pacientes sonharem com coisas que o analista
debateu com eles [...] nosso interesse passa para a questão de saber
se os pensamentos oníricos latentes [...] também podem ser
influenciados ou sugeridos pelo analista. E a resposta pertinente
mais uma vez deve ser obviamente afirmativa, de vez que uma parte
desses pensamentos oníricos latentes corresponde a formações pré-
conscientes [...] porém, sobre a elaboração onírica no sentido estrito
da palavra, nunca se exerce qualquer influência. (FREUD,
1923/1996c, p. 129-130).
Mais adiante, no mesmo texto, Freud a entender que, em alguns casos, o
fato do sonhador saber que os sonhos “são esperados pelo analista” (FREUD,
1923/1996c, p. 130) pode influenciar os sonhos e que isto não é necessariamente
90
ruim. Podemos inferir a partir do texto, que em se tratando de alguns pacientes, isso
é até necessário no caso de alta pressão da resistência.
Nos textos, após a elaboração da pulsão de morte e a segunda tópica, Freud
propõe que se observem as gradações da resistência. Ele menciona a importância
do analista averiguar se um sonho está sob baixa ou alta pressão da resistência.
Neste momento, a resistência não está apenas relacionada ao tratamento e à
relação transferencial, mas às instâncias psíquicas e às particularidades do aparelho
psíquico propostas após a segunda tópica. Por exemplo, a instância de censura, o
superego, ganha relevância nas discussões de seus últimos textos. A partir daí, o
trabalho do analista deve guiar-se conforme as pressões de resistência.
No caso de alta pressão, podem não ocorrer associações ou haver um
excesso delas, além de aparecerem, possivelmente alguns “sonhos intraduzíveis”.
Freud fala que é como se ouvíssemos uma conversa que “se realiza à distância ou
em voz muito baixa.” (FREUD, 1923/1996c, p. 126).
Nesses casos, o analista deve ser contido em expressar suas considerações
sobre o sonho do paciente e deve ter em mente que “apenas determinada parte dos
produtos oníricos de um paciente possa ser traduzida e utilizada, e, mesmo assim,
na maior parte das vezes de modo incompleto.” (Ibid., p. 126).
Nos textos mais tardios, fica ainda mais claro que para Freud não existe
interpretação completa. É nas associações do paciente que se encontram o ponto
de partida e de chegada das interpretações, que não são únicas. Freud fala que os
analistas precisam “se acostumar com a idéia de que o sonho é capaz de ter muitos
significados.” (Ibid., p. 143, grifo nosso).
Retomando as principais propostas a respeito da técnica, lembramos que,
apesar de em alguns momentos, principalmente na Traumdeutung, constatarmos
91
que Freud busca interpretações mais extensivas dos sonhos, é marcante como ele
sempre remete à dimensão irredutível do sonho, dos seus limites à interpretação. E
isso se intensifica ao longo de sua obra, chegando ao seu ápice após a formulação
de sua segunda teoria das pulsões.
As consequências técnicas dessa dimensão irredutível e pulsional refletem,
principalmente, numa atitude mais parcimoniosa em relação aos sonhos na clínica,
visando, primordialmente, o manejo da resistência.
Em seus outros textos, Freud enfatiza alguns aspectos: nunca se analisa um
sonho isoladamente, nem fora da situação de análise, e sempre se busca as
associações do sonhador e não do analista, nunca se esgota uma interpretação, não
uma única interpretação para os sonhos, não se deve perseguir os sonhos no
tratamento e nem demonstrar muito interesse para o paciente.
Notamos, portanto, que, apesar de Freud se referir ao trabalho com os
sonhos na clínica, sempre sob o título de interpretação, suas intervenções técnicas
são bem mais abrangentes. Ele insiste na importância de considerarmos os sonhos
como inseridos no tratamento de um modo mais amplo. Logo, seu manejo, apesar
de apresentar algumas particularidades, está submetido aos preceitos fundamentais
da análise: associação livre e escuta flutuante, em detrimento de um apego
exagerado a qualquer outra regra específica ou minuciosa.
O manejo da resistência, da transferência e da contratransferência no
trabalho com os sonhos também são constantemente mencionados. Em relação a
esta última, são frequentes os alertas freudianos sobre uma tentação de
interpretações em demasia, que acomete, segundo ele, boa parte dos analistas e
pacientes.
Freud propôs a noção de construção para temperar a onipotência da
92
interpretação, pois se percebe na história da psicanálise uma paixão dos analistas
pela interpretação. A dificuldade em manejar essa paixão reside justamente no fato
de que o mecanismo de interpretação é inerente ao sistema de pensamento
freudiano. A construção é uma proposta de intervenção na qual o analista busca
reconstituir a história infantil e inconsciente do paciente de modo global e sem
apego, em demasia, a detalhes sintomáticos ou desvelamentos (ROUDINESCO,
1998).
Em “Construções em análise”, Freud (1937/1996w) confere às lembranças
obtidas por meio dos sonhos como fundamentais ao trabalho de construção na
análise. Nesse contexto, o trabalho com os sonhos novamente é visto de modo mais
amplo dentro do processo de análise. Inclusive, também em 1937, Freud propõe que
mesmo os sonhos mais obscuros sejam utilizados em análise como qualquer outra
comunicação.
Freud discorre sobre os benefícios de se tomar o material onírico como uma
comunicação qualquer do tratamento, e vice-versa:
O sonho [...] é um ato psíquico inteiramente válido, com sentido e
valor, que podemos utilizar na análise como qualquer outra
comunicação [...] Se formos capazes de transformar o sonho em
uma comunicação de valor desse tipo, evidentemente teremos a
perspectiva de aprender algo novo e de receber comunicações
de uma espécie que de outro modo seria inacessível para nós.
(FREUD, 1937/1996w, p. 19, grifo nosso).
93
6.4 ALGUMAS REVISÕES METAPSICOLÓGICAS E IMPLICAÇÕES TÉCNICAS
Apesar de termos abordado vários aspectos da metapsicologia nos itens
referentes à clínica, optamos por evidenciar mais ordenadamente algumas revisões
metapsicológicas realizadas por Freud e suas consequências técnicas mais
relevantes para o trabalho com os sonhos. Além de ordenar o assunto,
consideramos importante fazer esse desenvolvimento, devido às várias citações dos
entrevistados relacionadas à metapsicologia e pela estreita relação desta com a
clínica.
32
O prestígio do livro “Interpretação dos sonhos” é tal que os que se referem à
teoria freudiana dos sonhos tendem a ater-se ao que é enunciado na obra de 1900.
Entretanto, ao longo dos quase quarenta anos que se seguiram, Freud trabalhou
intensamente na elaboração de sua teoria. As reformulações realizadas na
metapsicologia, nesse período, foram de tal monta que seria impossível considerá-
las como inócuas, como não tendo efeitos profundos e imprimindo, portanto, novas
inflexões à primeira teoria dos sonhos (RUDGE, 2003).
No contexto da segunda teoria das pulsões, os sonhos são ao mesmo tempo
causa e efeito de reformulações metapsicológicas (ROUDGE, 2003). E o resultado
de mais impacto, em termos da metapsicologia do sonho, é a condição que Freud
enuncia para que o sonho, propriamente dito, possa ocorrer. Essa condição, “esse
tempo anterior, tempo logicamente anterior”, como destaca Pontalis (1991), “é que a
Entbindung, a emergência da energia livre tendendo à descarga, esteja um tanto
‘domada’ para que um sonho possa se formar como tal, para que sua lógica se
32
Essas questões serão abordadas na parte B deste trabalho.
94
submeta ao princípio do prazer.” (p. 34). A energia livre não dominada causaria o
sonho traumático.
Então, se para Freud o sonho confirma a teoria da realização de desejo, ele
comporta, também, algo mais que uma fantasia cumprindo um voto (Wunsch). Essa
fantasia, que realiza um desejo, não faz senão mascarar algo que se situa para
além, cuja irrupção é traumática: é o real (CHABOUDEZ, 2000). Em Freud, uma das
facetas do real é o efeito traumático da energia pulsional não ligada:
[...] a função dos sonhos que consiste em afastar quaisquer motivos
que possam interromper o sono através da realização de desejos de
impulsos perturbadores não é a sua função original. Não lhes seria
possível desempenhar essa função até que a totalidade da vida
mental houvesse aceito a dominância do principio do prazer. Se
existe um ‘além do princípio do prazer’, é coerente conceber que
houve também uma época anterior em que o intuito dos sonhos foi a
realização de desejos. Isso não implicaria numa negação de sua
função posterior, mas, uma vez rompida a regra geral, surge uma
outra questão. Não podem os sonhos que, com vista à sujeição
psíquica de impressões traumáticas, obedecem à compulsão à
repetição? [...] E a resposta pode ser uma afirmativa decidida.
(FREUD, 1920/1996q, p. 43, grifo nosso).
O trauma fica fora da dinâmica do recalcamento, não se localiza em um lugar
similar ao da inscrição recalcada que assegura sua ligação, localidade e
temporalidade no inconsciente. Não se trata de uma repetição para não recordar que
o trauma proporciona, não é o retorno do recalcado, é um repetir mais essencial, um
repetir, que em busca de uma ligação, volta (UCHITEL, 2000).
Se em “Além do princípio do prazer” os sonhos traumáticos são apresentados
como exceção à realização de desejos, ao mesmo tempo, podem ser explicados
como a realização do desejo de controlar o trauma (GAY, 1989).
95
Até que ponto na equação freudiana dos sonhos, um sonho traumático pode
ser chamado de sonho? Neste sentido, ao considerar a premência do aparelho
psíquico de controlar o pulsional que insiste no sonho, evocamos Poulichet (1996)
que cita a proposição de Dayan de pensar a exceção dos sonhos traumáticos,
admitida por Freud, como sendo talvez a regra
33
.
Em 1923, também a partir da clínica, principalmente em relação à resistência,
Freud revê a relação do eu com o inconsciente e introduz uma reformulação tópica.
A superposição da segunda tópica à primeira o leva, entre outras proposições, à
postulação da existência de aspectos inconscientes do eu
34
. A compulsão à
repetição que causa desprazer ao eu está do lado do recalque, do inconsciente.
Mas, se o recalque causa o inconsciente, o que causa o recalque?
O recalcado é o que fere o narcisismo
35
, é o que decorre de uma fonte de
estimulação intensa. O recalque parte do eu e é uma defesa contra a angústia que
ameaça essa unidade imaginária do sujeito. A angústia, para Freud, na primeira
tópica, é concebida como a carga libidinal livre, não ligada a uma representação,
que emerge na consciência como consequência do recalque. Na segunda tópica,
Freud propõe a angústia como causa do recalque, como uma angústia sinal de
desprazer percebido pelo eu que aciona o recalque. Pode-se pensar num momento
fundador, em que uma representação de fato produziu angústia, e num momento
posterior, aonde há uma evitação, via recalque, do que já produziu essa angústia.
A causa da angústia é ligada à noção de eu e de narcisismo, e o eu não
coincide com a consciência. Freud, em “Inibições, sintoma e angústia”, trata das
33
A outra exceção à teoria dos sonhos, citada em “Mais além do princípio do prazer”, é os sonhos que ocorrem
durante o tratamento analítico.
34
Deve-se atentar à tradução do termo Ich utilizado por Freud como o pronome pessoal eu’ em oposição ao
termo técnico ‘ego’, que nunca existiu na obra de Freud em alemão.
35
Aqui a referência de narcisismo utilizada é a de 1914, ligada à ideia de estrutura, em oposição à de 1936, de
narcisismo como um estado ligado a propriedades biológicas, tendência do organismo vivo a retornar ao estado
de equilíbrio básico, tendência à morte.
96
consequências clínicas da existência dessas facetas inconscientes do eu, ao que se
remete ao próprio, o meu’, aos ideais, ao sistema de identificações de um sujeito e
seu corpo. Os quadros clínicos, e também os sonhos, seriam, portanto, uma defesa
operada pelo eu contra a angústia, visando preservar essa integridade narcísica. Em
“O Eu e o Isso”, Freud comenta a esse respeito do estatuto do eu:
[...] vemos este mesmo eu como uma pobre criatura que deve
serviços a três senhores e, conseqüentemente, é ameaçado por três
perigos: o mundo externo, a libido do isso e a severidade do supereu
[...] Como criatura fronteiriça, o eu tenta efetuar mediação entre o
mundo e o isso [...] ele disfarça os conflitos do isso com a realidade
e, se possível, também os seus conflitos com o supereu. Em sua
posição a meio-caminho entre o isso e a realidade, muito
freqüentemente o eu se rende à tentação de tornar-se sicofanta,
oportunista e mentiroso, tal como um político que percebe a verdade,
mas deseja manter seu lugar no favor do povo. (FREUD,
1923/1996x, p. 68).
Mais adiante, em “Esboço de Psicanálise”, Freud resume à luz da segunda
tópica a dinâmica do sonho:
[...] O estudo da elaboração onírica nos ensina, através de um
exemplo excelente, a maneira como o material inconsciente oriundo
do isso força seu caminho até o eu, torna-se pré-consciente e, em
conseqüência da oposição do eu, experimenta as modificações que
conhecemos como deformação onírica. (FREUD, 1938-1940/1996o,
p. 179).
Em seu texto “Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos” de 1917,
Freud faz algumas considerações sobre os sonhos à luz de seus últimos
desenvolvimentos metapsicológicos dos textos “Sobre o narcisismo” de 1914,
“Inconsciente” de 1915 e “Repressão” de 1915. Esse texto, de 1917, apesar de ser
anterior aos textos referentes às reformulações metapsicológicas, está intimamente
97
relacionado a elas devido a questão do narcisismo e da noção de eu (FREUD,
1917/1996j).
Nele Freud estuda os sonhos e o psiquismo, de um modo geral, em estado de
sono. Nesse estado ocorre um acentuado movimento regressivo em busca da
restauração do narcisismo primário. Trata-se de um retraimento narcísico
semelhante ao da vida intrauterina e uma retirada de catexia do mundo externo, um
movimento regressivo da libido ao eu. Freud (1917/1996j) descreve como o ‘eu’,
movido pelo desejo de dormir, almeja absorver todas as catexias em busca de um
narcisismo absoluto.
Os sonhos seriam, então, um resíduo da atividade mental, o qual é possível
devido o estado narcisista de sono não ter sido completamente estabelecido.
Quando isto ocorre, o desejo onírico conciliado com o desejo de dormir, é
alucinatoriamente satisfeito. A isso Freud denominou de “psicose alucinatória
carregada de desejo”. Vejamos as condições para que isto ocorra:
No estado de sono não deseja conhecer coisa alguma do mundo
externo; não se interessa pela realidade, ou só se interessa na
medida em que o abandono do estado de sono o despertar se
acha em causa. Por conseguinte, retira a catexia do sistema CS.,
bem como dos outros sistemas, do Pcs., e do Ics., na medida em
que as catexias neles obedecem ao desejo de dormir. Com o
sistema Cs. assim não-catexizado, a possibilidade do teste da
realidade é abandonada, e as excitações que, independentemente
do estado de sono, entraram no caminho da regressão, encontrarão
esse caminho desimpedido até o sistema Cs., onde elas valerão
como realidade indiscutida. (FREUD, 1917/1996j, p. 140).
Estamos diante de uma ampliação “do campo dos sonhos para além do
mapeado [...] que se estendeu à terra virgem da pulsão.” (GARCIA, 1999, p. 58).
Algumas questões devem ser consideradas para o analista poder dar conta desta
98
ampliação de fronteiras no trabalho analítico (Ibid.).
Freud, fala da posição do analista nesse momento de sua obra:
Lutando contra nós [analistas], estão a transferência negativa, a
resistência do eu devido à repressão (isto é, seu desprazer por ter de
abrir-se ao árduo trabalho que lhe é imposto), o sentimento de culpa
que surge de sua relação com o supereu e as pulsões [do paciente].
(FREUD, 1938-1940/1996o, p. 195).
Freud chega a comentar que o analista opera no tratamento, em vista da
dinâmica do psiquismo, como um aliado vindo de fora que prestaria assistência ao
sujeito em sua “guerra civil”, unindo-se ao paciente contra os inimigos, as
exigências instintivas do isso e as exigências conscienciosas do supereu.” (FREUD,
1938-1940/1996o, p. 181). Nesta posição o que se espera ouvir do paciente não é
apenas o que ele sabe e esconde de outras pessoas, “ele deve falar também o que
não sabe.” (Ibid., p. 181).
Se nesse momento uma atmosfera de embate do analista contra as
resistências, pulsões ou instâncias psíquicas, devemos lembrar que esse embate
pode conduzir a um efeito contrário ao perseguido. Freud em “Inibições Sintomas e
Ansiedade” fala sobre esse paradoxo: “Quando o analista tenta ajudar o ego em sua
luta contra o sintoma, verifica que esses laços conciliatórios entre o ego e o sintoma
atuam do lado das resistências e que não são fáceis de afrouxar.” (FREUD,
1926/1996y, p. 102).
Além da resistência clássica, a partir dos desenvolvimentos sobre o
narcisismo e sobre o supereu, podemos encontrar em Freud uma faceta da
resistência oriunda dessas instâncias, a qual ele denominou de “inacessiblidade
narcísica” (FREUD, 1923/1996x).
99
Na primeira tópica, sob a égide do princípio do prazer, encontrávamos o
analista diante de uma tarefa de desvendar o inconsciente por meio da
interpretação. A partir da pulsão de morte, o analista teria que se haver com o que
está além das representações reprimidas (GARCIA, 1999).
Apesar de concordarmos com os apontamentos de Garcia (1999), é
importante tomarmos cuidado nesse recorte feito de Freud em que tudo antes da
pulsão de morte era apresentado como interpretável. Vimos nos textos técnicos e
teóricos que, desde o início da psicanálise, Freud buscou os limites à interpretação.
Dialogando com o capítulo anterior sobre a técnica, pontuamos, levando em
conta as revisões metapsicológicas, alguns aspectos que devem ser considerados
no trabalho analítico: as novas dimensões das resistências, as pulsões, o analista
diante de seu desejo de interpretação e a inter-relação de todos esses elementos na
transferência.
Sobre a transferência, Garcia (1999) comenta que pelo viés pulsional, a
experiência do encontro analista-paciente precisa ser reconhecida como estando
fora da conceituação clássica de transferência. A ideia de vínculo transferencial, que
comporta as repetições do reprimido, não mais recobre as dimensões desse
encontro. nesse encontro uma dimensão nova, uma possibilidade de
simbolizações nunca antes vividas. Esta questão é amplamente trabalhada por
Lacan (1964/1998) em seu seminário “Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise”. Nesse seminário, chega a propor que a presença do analista é a
própria manifestação do inconsciente, o analista não é exterior ao inconsciente do
analisando.
Retomando novamente o capítulo anterior, apresentamos de modo mais
pontual alguns exemplos de consequências técnicas para os sonhos em decorrência
100
das revisões metapsicológicas: a impossibilidade radical de se esgotar uma
interpretação ou de tornar consciente o inconsciente; a radicalização da atenção
flutuante que não passa mais a considerar privilegiado o sonho, tornando-o como
disse Freud uma comunicação como outra qualquer da análise; a atitude
parcimoniosa do analista em relação à interpretação, devido também aos seus
impactos na resistência; e o trabalho intensivo do analista na elaboração de sua
contratransferência.
A partir da obra de Anzieu (1989), ressaltamos outro aspecto do trabalho
analítico. Este autor cita um conto de Jorge Luis Borges, “A Cidade dos Imortais”,
onde as personagens, os imortais, passam todo seu tempo a sonhar. “Sonhar é, na
verdade, negar que se seja mortal. Sem esta crença noturna na imortalidade seria a
vida diurna tolerável?”, pergunta Anzieu (1989, p. 270). Talvez a consequência
técnica das reformulações teóricas menos explícita no texto de Freud, mas que
queremos citar a partir desse último recorte, seja o delicado manejo na análise da
angústia do analista e do paciente.
Para finalizar, destacamos um aspecto que deve ser pensado criticamente.
Freud fez várias dessas reformulações em função de sua clínica, principalmente em
decorrência da necessidade de manejar as resistências dos pacientes. Quando
falamos dos impactos da teoria na técnica, não podemos esquecer que esse
movimento começa com a clínica. Se não pensarmos assim, pode parecer, de modo
ingênuo, que as mudanças na técnica obedecem às mudanças teóricas, em um
movimento arbitrário. Não podemos deixar de lado a ponta desse processo, seu
lugar de origem, que são as manifestações e os entraves da clínica.
36
36
Uma questão que não abordaremos, mas que vale ser mencionada, é a reflexão sobre o modo que a difusão
da psicanálise na época de Freud, até os anos vinte, impactou nas análises em relação às resistências e
consequentemente nessas reformulações da teoria. Há menções na literatura sobre isso, mas não iremos
desenvolver esse tema neste trabalho.
101
7 INCERTEZAS E CRÍTICAS
Se alguém acha tudo isso muito laborioso e muito inseguro,
ou se alguém está habituado a certezas mais garantidas
e a deduções mais elegantes, não deve prosseguir conosco.
Penso, no entanto, que não deveria se meter com os
problemas psicológicos,
porquanto é de se temer que em breve
achará intransitáveis os caminhos precisos
e seguros que escolheu para seguir.
Freud (1916-1917/1996f).
Inexatas, incertas e ambíguas: essas são algumas das críticas às pesquisas
com os sonhos que Freud destaca em seus textos sobre a pesquisa com sonhos,
que abordaremos a seguir.
Esses dois textos são a quinta e a última conferência das “Conferências
introdutórias sobre psicanálise” que integram uma série de quinze conferências
ministradas por Freud, em 1916 em Viena. Onze dessas conferências são
destinadas exclusivamente aos sonhos.
Freud (1916-1917/1996f) comenta, ironicamente, em caráter de provocação, a
aparente irrelevância da pesquisa sobre sonhos na Conferência V, “Dificuldades e
abordagens iniciais”:
[...] alguém se interessar por sonhos não é apenas pouco prático e
desnecessário; é positivamente ignominioso. Traz consigo a
reprovação geral de não ser científico e desperta a suspeita de uma
inclinação pessoal pelo misticismo. Imaginem um profissional da
medicina dedicando-se a sonhos, quando há tantas coisas mais
sérias, mesmo na neuropatologia e na psiquiatria: tumores da
dimensão de maçãs comprimindo o órgão da mente, hemorragias,
inflamação crônica, onde, em todos, as alterações dos tecidos
102
podem ser demonstrados ao microscópio! (FREUD, 1916-
1917/1996f, p.231).
Freud chega a mencionar que acredita que a verdadeira origem do desprezo
pelos sonhos, nos círculos científicos, seja uma reação contra a supervalorização
dos sonhos em épocas antigas.
Ainda na mesma conferência, ele levanta outras questões polêmicas acerca
da natureza dos sonhos como objeto de pesquisa:
[...] os sonhos são excessivamente triviais e indignos de ser objeto
de pesquisa. E existe algo mais que, por sua própria natureza, frustra
os requisitos da pesquisa exata. Ao investigar os sonhos, nem
mesmo se está seguro do objeto da pesquisa que se faz. Um delírio,
por exemplo, apresenta-se de forma inequívoca e com seus
contornos definidos. ‘Eu sou o imperador da China’, diz o paciente,
sem qualquer dissimulação. Mas, sonhos? Via de regra, não se pode
fazer nenhum relato de sonhos. Se alguém faz um relato de um
sonho, existe alguma garantia de que seu relato foi correto, ou, pelo
contrário, não poderia ter alterado seu relato à medida que o fazia e
ter sido compelido a inventar algum acréscimo para compensar a
obscuridade de suas recordações? A maioria dos sonhos não pode
absolutamente ser lembrada e é esquecida, salvo pequenos
fragmentos. E de que modo a interpretação de material desse tipo
pode servir como base de uma psicologia científica ou como método
de tratar pacientes? Um excesso de críticas pode despertar nossas
suspeitas. Essas objeções aos sonhos como objeto de pesquisa
obviamente foram longe demais. (FREUD, 1916-1917/1996f, p. 90).
Freud posiciona-se e propõe uma solução que aponta para a importância de
se considerar a indefinição e a incerteza, a subjetividade, como elementos inerentes
à natureza e ao rigor da pesquisa onírica:
No que concerne à sua indefinição esta é uma característica dos
sonhos, como outra qualquer: não podemos estabelecer para as
coisas quais as características que devem ter. [...] Podemos
103
conseguir superar a deficiência da incerteza ao relembrar sonhos, se
decidimos que deve ser considerado como sonho seu tudo aquilo
que nos relatar a pessoa que sonhou, sem levar em conta o que
possa ter esquecido ou tenha alterado ao recordá-lo. (FREUD, 1916-
1917/1996f, p. 90-91).
Na última conferência intitulada de “Incertezas e Críticas”, refletiu novamente
sobre algumas dúvidas e incertezas mais recorrentes a respeito do tema. Abordou,
novamente, a natureza, validade da pesquisa acerca dos sonhos e, também, a
influência do analista em seus pacientes:
Um dia o valor objetivo da investigação sobre sonhos pareceu ser
posto em xeque por uma observação de que os pacientes em
tratamento analítico ordenam o conteúdo dos sonhos conforme as
teorias prediletas de seu médico alguns sonhando
predominantemente com impulsos instintuais sexuais, outros, com a
luta pelo poder, e ainda outros, até mesmo, com renascimento
(Stekel). [...] Quando as observações feitas pelo médico e os indícios
que este fornece adquirem importância para o paciente, eles entram
para o rculo dos resíduos diurnos e podem prover estímulos
psíquicos para a construção dos sonhos, como quaisquer outros
interesses emocionalmente significativos do dia precedente, que não
foram atendidos. (FREUD, 1916/1996d, p. 236).
Mais uma vez, Freud lança luz sobre o recorrente equívoco dos críticos ou
dos próprios analistas em não diferenciarem os sonhos dos conteúdos latentes e do
desejo que os originam:
Freqüentemente, é possível influenciar uma pessoa acerca do que
ela vai sonhar, mas nunca aquilo que sonhará. O mecanismo da
elaboração onírica e o desejo onírico inconsciente estão isentos de
qualquer influência externa. A tese que estivemos discutindo, e que
procura lançar dúvidas sobre a objetividade da pesquisa referente
aos sonhos, mais uma vez está baseada numa confusão – desta vez,
entre o sonho e o material dos sonhos. (FREUD, 1916/1996d, p.
238).
104
Ao longo de sua obra vemos Freud combater enfaticamente as críticas a
respeito da psicanálise e, mais especificamente, sobre os sonhos. Críticas oriundas
do meio científico ou até mesmo de alguns analistas. Resumimos os aspectos mais
criticados: a aparente irrelevância, ou até o caráter ridículo ou ilusório do objeto de
pesquisa, a natureza evanescente e impalpável do objeto de pesquisa, a
impossibilidade de aplicar a este objeto os procedimentos das ciências naturais, a
influência do analista nos sonhos dos pacientes, entre outros.
É justamente a própria psicanálise, criação de Freud, que permite trabalhar
com todos esses aspectos, que são, em última instância, características do sujeito,
do inconsciente, do aparelho psíquico.
Se por um lado Freud foi alvo de críticas, ele também foi um crítico ferrenho
de seus pares e discípulos. Como mencionado na introdução deste trabalho, no
final de sua vida Freud considerava que os analistas ainda não haviam
compreendido suas proposições sobre os sonhos: “Tudo isso parece tão alheio ao
conhecimento da maioria das pessoas, como o era trinta anos.” (FREUD, 1932-
1936/1996a, p. 18).
Inexatidão, incerteza e ambiguidade: considerar essas dimensões faz parte
do rigor da pesquisa em psicanálise, do trabalho com os sonhos, da produção
teórica e da leitura crítica dos textos em psicanálise, como nos mostra Freud.
Freud, geralmente, combateu as críticas que lhes foram feitas lançando mão
do conceito de resistência. Isso se deve a sua tese de que o repúdio em relação à
teoria dos sonhos seria oriundo de uma evitação da própria incerteza e ambiguidade
da natureza humana, pensamento oposto ao da ciência de sua época. E não seriam
o homem e os sonhos, de fato, inexatos, incertos e ambíguos? Esta talvez fosse
105
uma possível réplica que Freud daria às críticas, e que podemos depreender desses
dois textos mais impactantes a respeito da natureza das pesquisas sobre os sonhos.
“Que diferença faz se as descobertas da interpretação de sonhos lhes
parecem desagradáveis ou, na realidade, embaraçosas e repulsivas? ‘Ça n’empêche
pas d’exister’.” (FREUD, 1916-1917/1996f, p. 148).
106
PARTE B
O QUE OS ANALISTAS TÊM A DIZER?
107
1 PERCURSO METODOLÓGICO
1.1 SINGULARIDADES METODOLÓGICAS
Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa
qualquer entender. Entender é sempre limitado.
Não entender, do modo como falo, é um dom. [...] É um
desinteresse manso [...] Só que de vez em quando vem a
inquietação: quero entender um pouco.
Não demais: mas pelo menos
entender que não entendo.
Clarice Lispector
Este trabalho fundamenta-se no método psicanalítico
37
, eixo norteador dos
procedimentos utilizados: pesquisa bibliográfica e trabalho de campo. Para a
primeira, foram realizados estudos críticos de textos teóricos, clínicos e históricos
com o intuito de contextualizar o tema pesquisado e estabelecer suas referências
conceituais e práticas. Nesta etapa também foram levantadas as problemáticas mais
significativas, referentes ao assunto, apontadas na literatura.
O estudo bibliográfico referenciou-se na proposta de Garcia-Roza (1994) de
releitura. Na releitura deve-se levar em conta o conceito como inserido numa
história, numa geografia; sua elaboração passa pelo Outro do autor, que não é uma
entidade externa ao texto, mas intrínseca e necessária. É importante perceber quais
são as questões e problemas a que o texto pretende responder, a fim de não lhe
37
A polêmica sobre validade do método psicanalítico na pesquisa universitária não será discutida neste trabalho.
Assumimos, a priori, essa validade em consonância com alguns autores: Mezan (1994), Safra (2001) e Elia
(2000).
108
impor previamente hipóteses, violentando-o (GARCIA-ROZA,1994).
Os textos estudados concentram-se no campo psicanalítico (livros,
publicações nacionais e internacionais). Buscou-se, também, uma interlocução com
outros campos do conhecimento, para aprofundar o trabalho e fortalecer seu cunho
crítico. Alguns desses campos são: história, artes, filosofia, epistemologia,
antropologia, sociologia, neurociências e psicologia. Nem todos foram abordados no
texto, mas fazem parte, indiretamente, das análises contidas nas considerações
finais.
Outros dois aspectos foram contemplados na pesquisa bibliográfica: 1.
material veiculado na mídia de massa sobre os sonhos (principalmente revistas,
manuais de decifração de sonhos, programas de televisão, filmes e inúmeros sites
da Internet); e 2. material produzido sobre as críticas à abordagem psicanalítica dos
sonhos (oriundo das neurociências e psicologia cognitiva, principalmente).
Como categoria central da pesquisa, no trabalho de campo, foi utilizada a
entrevista. Elia (2000) faz um desenvolvimento importante a esse respeito. Para ele,
a rigor, na psicanálise não existe pesquisa de campo. A ideia de pesquisa de campo
pressupõe a existência de outras modalidades de pesquisa, porém, o campo de
pesquisa na psicanálise é o inconsciente. Deste modo, “a clínica, como forma de
acesso ao sujeito do inconsciente, é sempre o campo da pesquisa” (p. 23). O
analista-pesquisador dirige sua escuta, sua intenção, ao que visa saber, mas sem
partir de um saber previamente estabelecido a ser verificado ou refutado. O autor
cita uma frase de Picasso utilizada por Lacan para se referir à atividade de pesquisa:
“Eu não procuro, eu acho.” (ELIA, 2000, p. 25).
Trata-se de conceber a investigação em psicanálise na perspectiva de um
procedimento processual, investigativo não conclusivo, como sustenta Safra (2001),
109
a partir das propostas desenvolvidas por Freud sobre o tema, em seu texto “Análise
Terminável ou Interminável”. Nos trabalhos de Lacan, Bion ou de Winnicott, essa
perspectiva também pode ser encontrada. Isso diz respeito a “uma característica do
processo psicanalítico diretamente relacionada às peculiaridades da subjetividade
humana: a contínua abertura para o devir.” (SAFRA, 2001, p. 171).
No sentido do devir, o termo ‘serendipidade’ é retomado por Caon (2000, p.
91) para falar da “capacidade de fazer, acidentalmente, descobertas desejáveis.” A
partir de um recorte metapsicológico, a serendipidade relaciona-se ao desejo. Não
se trata de “fazer descobertas acidentais ao acaso. É, pelo contrário, fazer, ao
acaso, descobertas desejáveis [...] Não se fazem descobertas por acaso,
inocentemente.” (CAON, 2000, p. 91-96).
De fato, seria ingenuidade dizer que um analista-pesquisador não tem uma ou
várias hipóteses acerca de suas questões de pesquisa (conscientes ou não). Essas
“hipóteses” certamente acompanham a escolha do tema, o recorte do objeto, o
planejamento, a feitura e a escrita da pesquisa. Porém, a hipótese numa pesquisa
em psicanálise, em oposição à concepção positivista, pode ser vista mais como um
ponto cego do que um objetivo a alcançar ou algo a ser provado.
Mas trata-se de um ponto cego bem vindo, estrutural e estruturante, lugar
onde fica bastante evidente o pesquisador como sujeito. A hipótese, mesmo que não
sabida ou não mencionada, é um ponto necessário e inextinguível que deve ser
considerado, revisitado e confrontado por meio de um movimento dialogado e
analítico do pesquisador, o qual deve estar atento à dimensão ética.
A dimensão ética na entrevista também é comentada por Costa e Poli (2006),
que advertem para os riscos de objetalização, instrumentalização e exteriorização do
sujeito na entrevista devido à “inversão do modelo clínico”. Na entrevista, a demanda
110
está do lado do pesquisador que se dirige ao entrevistado com base na suposição
de que este sabe algo e pode transmitir-lhe esse saber. Para que um saber analítico
possa se produzir, as autoras recomendam que as hipóteses com que o pesquisador
irá operar sejam suficientemente amplas e indefinidas, de modo a não oferecer
resistência ao aparecimento de um “efeito surpresa” em relação ao tema (COSTA;
POLI, 2006, p.18-19).
Na entrevista, a demanda explícita está do lado do pesquisador, mas no
encontro entre pesquisador e entrevistado demanda dupla, pois na hora que o
entrevistado aceita o convite uma demanda, mesmo que não seja explicitada em
momento algum do processo.
Serendipidade, abertura ao devir, para além do enunciado, efeito surpresa:
marcas da escuta analítica, da escuta flutuante. Buscou-se utilizar e tornar presente
essa referência fundamental do método psicanalítico, para realizar e analisar as
entrevistas nesta pesquisa.
Outras dimensões do método psicanalítico que devem ser levadas em conta,
na situação de entrevista numa pesquisa psicanalítica, são a associação-livre,
transferência e interpretação. Para isso, nos apropriamos do texto de Rosa (2004)
que analisa o método psicanalítico para além da clínica. A autora cita Laplanche e
Pontalis sobre a legitimidade da prática extensiva da interpretação, que “pode
estender-se às produções humanas para as quais o dispõe de associação-livres.”
(LAPLANCHE; PONTALIS, 1971, p. 329 apud ROSA, 2004). Neste sentido é
possível “trabalhar a partir da escuta psicanalítica de depoimentos e entrevistas
colhidos em função do tema do pesquisador que, por sua vez, reconstrói sua
questão nessa relação.” (ROSA, 2004, p. 342).
Para a autora, o psicanalista deve estar a serviço da questão que a ele se
111
apresenta, “o sujeito do inconsciente está presente em todo enunciado, recortando
qualquer discurso pela enunciação que o transcende.” (p. 341). A transferência
apresenta-se como método e instrumento não restritos à situação de analise, e “o
objeto de pesquisa não está dado a priori, mas produzido na e pela transferência.”
(ROSA, 2004, p. 341).
Considerar a transferência, em uma situação de entrevista para uma pesquisa
em psicanálise, significa levar em conta que o saber produzido nesse encontro está
sujeito à lógica do saber inconsciente, implica a transferência e carrega consigo as
marcas particulares da relação entre sujeitos que foi gerada.
Poder escutar esses momentos privilegiados de emergência do saber, implica
na suposição de um saber que “não se sabe”, mas que é suposto. As condições de
produção de conhecimento sobre este “insabido” são internas ao campo relacional
que o constitui. Não se trata de um saber prévio que estava ali no “entrevistado”,
como um dado a ser colhido pelo entrevistador. É algo que se situa no espaço
transferencial, no qual o “insabido” se expressa na transferência. Logo, ele inclui o
pesquisador na própria formação (COSTA; POLI, 2006).
Foram realizadas entrevistas com dezenove analistas com diversos percursos
de formação e orientações teóricas, além de significativa produção bibliográfica e
experiência clínica. Os critérios utilizados para a escolha dos analistas foram o
tempo de atuação na área e extensão dessa atuação, de modo a privilegiar
profissionais que tivessem uma vivência abrangente da psicanálise (ampla
experiência como clínicos, supervisores, atividade de transmissão, autoria em
publicações relevantes na área e reconhecimento público como formadores de
opinião no campo psicanalítico).
O grupo de entrevistados é composto por profissionais de ambos os sexos,
112
residentes, em sua maioria, em São Paulo, sendo dois do Rio de Janeiro e um de
Minas Gerais. A fim de respeitar a confidencialidade de suas identidades, foram
escolhidos os seguintes nomes fictícios: Mariana, Lúcia, Ciro, Cássio, Dimas,
Leonardo, Sílvio, Gabriel, Ercília, Fernando, Hilda, César, Tereza, Marília, Edgar,
Marcos, Pedro, Miguel e Rafael.
As entrevistas foram realizadas e utilizadas na pesquisa mediante o
consentimento formal dos profissionais, devidamente informados dos objetivos e dos
procedimentos do trabalho, conforme formulário de consentimento de acordo com a
CONEP.
O procedimento nas entrevistas não seguiu um roteiro ou um padrão p-
estabelecido. O contato inicial, a duração do encontro, os temas abordados e o
número de entrevistas com cada analista ganharam contornos bem particulares. A
maioria dos contatos foi realizada inicialmente por e-mail, e alguns por telefone;
momento em que se apresentava o tema de um modo geral e filiação institucional da
pesquisadora.
Alguns analistas foram escolhidos por lhes serem atribuída publicamente
determinada filiação teórica que interessava para a pesquisa
38
, e outros por certa
facilidade de contato devido a vínculos pessoais ou institucionais. Alguns foram
escolhidos em função de questões transferenciais bem pontuais da pesquisadora,
devido a textos publicados por eles, e outros foram escolhidos “ao acaso” a partir de
uma lista pública de contatos (como o site da Sociedade Brasileira de Psicanálise,
por exemplo).
Nas entrevistas, de um modo geral, apresentava-se o tema ou algumas
questões centrais da pesquisa aos entrevistados, que eram, então, convidados a
38
Buscou-se entrevistar um número semelhante de analistas de cada orientação teórica ou escola.
113
falar. As entrevistas não foram gravadas, mas registradas por meio de anotações
para possibilitar a apresentação de recortes considerados mais relevantes para o
objetivo do trabalho com comentários.
A análise e o trabalho com o material produzido durante as entrevistas
incluíram quatro etapas: recorte e agrupamento do material por assunto; diálogo do
material com a bibliografia e com Freud (tanto as lidas, como algumas novas
sugeridas ou relembradas nas próprias entrevistas); inserção de comentários, tanto
da pesquisadora como oriundos da bibliografia; e análise da relação entre os tópicos
(o que gerou vários rearranjos e reorganizações).
Percebeu-se, durante o processo, como a questão ou hipótese de pesquisa,
de fato, também podem ser entendidas como uma construção elaborada a posteriori
em relação ao trabalho de transferência. Sua formulação se faz acompanhar das
respostas que foram possíveis de serem construídas naquele contexto (COSTA;
POLI, 2006).
Durante os encontros, alguns temas se repetiram tanto em função de
questões recorrentes feitas pela entrevistadora, como em função de enunciados
espontâneos dos entrevistados. As respostas, ou os temas produzidos nas
entrevistas, após agrupamento, geraram os subitens dessa segunda parte do
trabalho.
Em relação à análise dos resultados, é importante levar em consideração que
na pesquisa em psicanálise os resultados são o próprio percurso. Portanto, aqui,
eles não derivam exclusivamente da pesquisa “de campo”. Os resultados são as
próprias entrevistas, a escrita do próprio trabalho, a escolha e modo de organizar os
capítulos, os recortes feitos da bibliografia e do material das entrevistas, bem como a
descrição e análise crítica do caminho percorrido.
114
Nessa perspectiva, o material produzido nas entrevistas deve ser considerado
um dos principais resultados do trabalho, não por fornecer alguma base empírica
para a tomada de conclusões, mas porque indica o que o tema da pesquisa naquela
relação provocou: quando os analistas são questionados sobre os sonhos em suas
clínicas, o que produzem? Portanto, não se buscou uma análise extensiva de cada
tema aberto pelos entrevistados, mas apresentar as peculiaridades de suas
respostas em vista de ampliar nossa visão sobre o tema de estudo, e até mesmo
para percebermos o quanto esse assunto está longe de ser esgotado.
Loureiro (2001) faz uma analogia do texto da dissertação em psicanálise com
a clínica. Ela sugere que o processo de produção do texto seja concebido “como um
verdadeiro caso metodológico, materialização e ápice de um percurso
irredutivelmente singular.” (p. 145). Trata-se de um “percurso que somente pode ser
apreendido e (re)traçado a posteriori”(LOUREIRO, 2001, p. 149).
algo de incomunicável na clínica, mais ainda em situação de entrevista
cujo tema é a clínica e, mais intensamente, num texto que relata essa complexa
operação. Portanto, esta parte do trabalho, consciente de suas inúmeras limitações,
peculiaridades e equívocos que lhes são inerentes (e até desejáveis), procura
transmitir algo da ordem do singular, a partir de construções feitas em função dos
relatos obtidos nas entrevistas a fim de contribuir para a reflexão do tema no campo
psicanalítico.
115
1.2 COM QUEM EU FALO?
Se tenho que ser um objeto, que seja
um objeto que grita.
Clarice Lispector
O verdadeiro pensamento parece sem autor.
Clarice Lispector
O que te fez chegar nessa pesquisa?Esse questionamento endereçado à
pesquisadora foi bastante frequente no início dos encontros. A motivação, o desejo
precipitador do trabalho, pareceu a questão inicial mais pungente para os
entrevistados. Muitas vezes, essa questão era feita antes de qualquer movimento da
pesquisadora.
Não é de se admirar, em se tratando de um grupo de analistas, que ocorresse
esse tipo de questionamento, como uma pergunta velada: O que você deseja com
essa pesquisa?”, Aonde você quer chegar?”. Porém, nossa leitura foi,
predominantemente, em relação à transferência: O que você espera de mim?”, A
quem dirijo minha fala?
A indagação sobre a orientação teórica da pesquisadora ou sua filiação
institucional, também foi frequente no momento inicial: Qual sua orientação
teórica?”, “Em que departamento cursa o mestrado?”, “Quem te orienta?
Essas indagações iniciais dos analistas parecem uma tentativa de responder
a essa pergunta fictícia que propomos aqui: Com quem eu falo? Para que lugar
endereço minha fala? Obviamente, na situação de pesquisa não se trata de analisar
esse lugar, mas é importante escutá-lo.
116
Algumas palavras endereçadas à pesquisadora que fazem referência a
lugares ocupados na transferência são: Você deve estar afiada com o assunto, me
avise se eu estiver sendo banal”, Quando você volta?”, Você pede sonhos aos
seus pacientes?”, Você conhece a teoria freudiana das pulsões?”, Você está
realmente fazendo ciência”, Você tem a idade da minha filha”, Esse assunto é
complexo [a segunda tópica], não vamos entrar nisso porque vai ficar muito
complexo”, “Bom receber você aqui, às vezes ficamos presos com os mesmos
pensamentos, os dinossauros das instituições, você me ajudou a arejar meus
pensamentos”, “Estou curioso(a) para saber o resultado da sua pesquisa.
O TERMO DE CONSENTIMENTO
Este é um ponto interessante e conflitante. Devido à utilização de entrevistas,
houve a necessidade de apresentar a proposta da pesquisa para o Comitê de Ética
e elaborar o termo de consentimento esclarecido a ser entregue aos participantes.
A reação dos entrevistados diante da apresentação do termo de
consentimento foi bastante variada. Alguns analistas preferiram garantir que não
seriam identificados, por questões institucionais”, porém, a maioria dos
entrevistados manifestou aparente indiferença: Você pode fazer o que quiser com
esse material”, Fique à vontade para me identificar se quiser.” Um ato falho também
ocorreu: Faça o que quiser comigo. Mesmo diante de aparente naturalidade, o
momento da assinatura do termo de consentimento pareceu comportar certa tensão
(evidente ou não), na maioria das entrevistas.
117
Alguns analistas manifestaram certo repúdio ou indignação. Por exemplo:
Isso é ridículo, esse termo de consentimento é ridículo”, ou Não tem nada de
segredo no que iremos falar, isso não faz sentido.” Por quais razões alguns analistas
insistiram em enfatizar a não necessidade do termo de consentimento? E por que
vários demonstraram enfaticamente sua indiferença ao termo? São algumas
questões que levantamos, mas foge ao cunho deste trabalho procurar suas
respostas.
118
2 O QUE DISSERAM (OU NÃO) OS ANALISTAS
Ouve-me, ouve o meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e
sim outra coisa. Capta essa outra coisa de que na verdade falo
porque eu mesma não posso.
Clarisse Lispector
Nossa, a gente ouve tanto, é bom vir alguém aqui e ser escutado”, disse
Edgar ao final de nossa primeira entrevista.
Escutar analistas: tarefa complexa e inesquecível.
Diversos atos falhos, chistes, “segredos” (como nomearam alguns
entrevistados), relatos de sonhos, e expressões frequentes como Estou falando o
que me vem à mente”, Nunca tinha parado para pensar nisso”, Lembrei disso
agora.
A maioria das entrevistas aconteceu nos consultórios dos analistas, sendo
que duas foram realizadas nas universidades em que os entrevistados são
docentes.
Em relação à duração, boa parte dos encontros foi longa, em torno de duas
horas, e com vários analistas chegaram a ocorrer duas entrevistas. Em dois casos
ocorreram três entrevistas. Alguns analistas deixavam reservado o horário para
uma entrevista mais extensa, outros, nem tanto. No caso dos horários mais justos,
também ocorreram excessos: passei quinze minutos do horário! Sobre esses
excessos, levantamos a possibilidade de que o tema da pesquisa e/ou a forma de
trabalhar o tema tenham despertado o interesse dos analistas. Várias outras
questões também foram pensadas, mas não nos aprofundamos por não serem
119
referentes ao nosso objeto de estudo
Em todas as entrevistas ocorreram relatos de sonhos de pacientes e, em
cerca de metade delas, relatos de sonhos dos próprios analistas, inclusive, com dois
analistas, ocorreram relatos de sonhos de momentos cruciais de suas análises.
Vejamos alguns exemplos de analistas que relataram efeitos relacionados aos
encontros: Depois que você veio aqui fiquei mais atento a alguns relatos de
sonhos”, Vou tentar perceber o que aconteceu na minha vida na época que passei
a me considerar analista, nunca tinha pensado nisso”, Vou reler alguns textos mais
antigos de Freud, faz tempo que não faço isso.
As intervenções da pesquisadora, na maioria das vezes, buscaram ampliar ou
questionar as falas dos entrevistados. Para exemplificar, vejamos recortes a partir de
afirmações de analistas sobre o sonho ser a via régia: O que quer dizer com isso?”,
Via régia para quem?”, “Caminho mais fácil por quê?”, “Mais fácil para quem?
Sobre as análises das entrevistas, como já mencionado, buscou-se fazer uma
interlocução com o que foi desenvolvido na parte A deste trabalho, os sonhos para
Freud. Quando questionados sobre os sonhos na clínica, para onde apontam os
analistas? Procurou-se apontar para a multiplicidade de caminhos que o tema gerou,
em detrimento de aprofundar cada tema isoladamente.
2.1 SER, ESTAR, TORNAR-SE: OS SONHOS E A FORMAÇÃO DO ANALISTA
Em algum momento no início das entrevistas, questionava-se sobre o tempo
que os entrevistados se denominavam analistas. De um modo bastante peculiar, e
120
em grande parte dos entrevistados, a resposta para a questão pareceu comportar
certa tensão. Não raramente, vinha acompanhada de suspiros, pausas para reflexão
e, em alguns entrevistados, comentários como: Nunca tinha pensado nisso ou
Fazia tempo que não pensava nisso.Em um caso específico houve, inicialmente,
uma recusa na resposta, Isso não pra responder, é impossível responder, não
vou responder...
A complexidade no processo de tornar-se analista, não nos é estranha ou
nova, mas surpreendeu o modo como esse assunto parece mobilizar incômodos em
vários analistas, inclusive nos mais experientes. Vejamos um exemplo: pouco
tempo me denominar assim deixou de me incomodar... ser analista é uma conquista,
estou tranquilo com isso há três ou quatro anos.”
Edgar comenta:
Denominar-se analista é diferente de sentir-se analista, não vejo
como uma profissão que você preenche na ficha de um hotel quando
vai se hospedar... Há vinte anos me denomino analista e há dez anos
me sinto analista. Ser analista não é constante, é uma tensão
complexa, dilacerante entre o paciente e analista.
A maioria parte dos entrevistados é constituída por psicólogos. Apenas quatro
são médicos. Dentre os que possuem formação em psicologia, alguns analistas
relacionaram o processo de tornarem-se analistas à diferenciação entre psicologia e
psicanálise. Vejamos um exemplo:
Acho que me considerei analista quando comecei a diferenciar a
psicologia da psicanálise [...] No começo não me achava à altura,
depois começou um incômodo em me apresentar como psicóloga,
depois como psicanalista. Hoje coloco no meu cartão que sou
psicanalista.
121
Quase todos os entrevistados fizeram referência ao reconhecimento de seus
pares no processo de se considerarem analistas. Em alguns casos isso passou pela
esfera da publicação de trabalhos. Leonardo, por exemplo, comentou sobre sua
primeira publicação em um periódico de psicanálise: Fiquei em dúvida se colocava
que era psicanalista [...] estava fazendo mestrado e minha dissertação falava sobre
a formação [...] nesse momento me intitulei psicanalista.
O reconhecimento institucional também é um aspecto relevante para alguns
analistas nesse processo, e está muitas vezes atrelado ao ato de publicar trabalhos.
Rafael falou sobre isso:
um marco na minha prática de psicanalista foi a fundação da
[instituição psicanalítica] [...] eu apresentava trabalhos em jornadas
[...] um efeito institucional, uma importância de pensar o que é um
analista, tem hora que isso fica mais pungente.
Sílvio falou de sua trajetória: Quando concluí a formação, me qualifiquei
analista, mas acho que comecei a me sentir analista quando passei a ser membro
da [instituição psicanalítica]”. Para Ciro, foi gradativo me sentir analista, acho que
ser aceito na sociedade foi um marco, mas ao mesmo tempo me questiono sobre
isso.
Pedro fez uma ressalva interessante:
Complicada essa questão... A primeira receita para uma pessoa não
ser psicanalista é se achar psicanalista. Existe o casal analítico... Eu
tento ser analista desde a primeira vez que pisei no consultório de
um analista para minha análise em 1974 [...] A [instituição
psicanalítica] disse que eu era analista na década de oitenta [...]
Freud falava que ser analista é como ser uma parteira, se não
atrapalhar, nasce! A gente ajuda a pessoa a fazer a análise dela.
122
Constatou-se que houve uma diferenciação entre denominar-se analista e
sentir-se analista, para alguns um ser analista, para outros, um estar, e ainda
para outros, um constante devir.
Sobre a formação, percebeu-se que os entrevistados conferem aos sonhos
um lugar privilegiado por vários motivos. Alguns analistas sublinharam a importância
que os sonhos tiveram em seus estudos de metapsicologia, outros falaram sobre o
valor fundamental dos sonhos em suas análises ou em suas experiências na
transmissão da psicanálise.
Sobre a transmissão, destacamos dois exemplos: O sonho mobiliza muitos
efeitos analíticos nos alunos.”, Estudei muito o capítulo sete da ‘Interpretação dos
Sonhos’ [...] dei muitas aulas de psicanálise sempre passando por esse capitulo.
Em relação aos analistas lacanianos, algumas particularidades chamaram a
atenção. Todos comentaram de modo muito semelhante sobre a importância da
revalorização de Lacan dos primeiros textos freudianos” na formação, e a relevância
desses textos na retomada lacaniana indo contra os pós-freudianos. Outra
discussão foi sobre os relatos de sonhos por parte dos Analistas da Escola
39
.
Sobre a importância dos sonhos em análise para sua formação, vários
comentários foram feitos para explicar essa importância: Os sonhos são uma
experiência muito forte”, Me apresentaram para o inconsciente”, Os sonhos na
minha análise me ajudaram a valorizar o uso dos sonhos com os meus pacientes”,
Na minha experiência como analisanda, o sonho traz algo que estava muito
inconsciente, em estado bruto, que então pode aparecer em imagem”, Nas minhas
análises, os sonhos tiveram papel forte no momento de entrada em análise e
estabelecimento de transferência.
39
Referência a título concedido ao analista que comprova seu percurso de análise mediante relato de sua
experiência a outros analistas, num dispositivo chamado “passe”, proposto por Lacan.
123
Na formação dos analistas, em suas análises, os sonhos são mais
relevantes do que nas análises leigas”, disse Leonardo, um dos entrevistados. Os
outros analistas compartilham de sua opinião: todos os entrevistados conferem um
lugar privilegiado aos sonhos em suas análises e na formação.
Nos relatos, a ênfase recai menos no trabalho interpretativo ou
autointerpretativo, como sugerido por Freud, e mais na experiência ímpar de contato
com o inconsciente e seu funcionamento que o sonho proporciona. Com exceção de
Mariana, que comenta: Trabalho o sonho na minha análise pessoal, escrevo, faço
igual ao Freud, trabalho as associações, analiso parte por parte.
Dois analistas relataram uma relação menos intensa com os sonhos: Os
chistes me encantaram, eu elegi os chistes para pensar a questão da psicanálise, da
clínica, da cultura [...] Não sei se o livro dos chistes deriva dos sonhos ou se é o
contrário, é uma questão polêmica.O outro analista comentou: Em Freud temos o
caminho dos sonhos e das pulsões, o das pulsões em seu caráter traumatofílico
sempre me atraiu mais.
Por outro lado, um dos entrevistados falou de sua experiência com os sonhos
atravessada pela paixão: Sempre gostei muito dos sonhos, vivi com muita
intensidade a experiência dos sonhos [...] relação muito forte [...] paixão quando fica
mais velho, começa a analisar com menos ingenuidade, o sonho também pode ser
um refugio... aí se pergunta: que deleite é esse?
Alguns dos entrevistados passaram por terapias junguianas ou
psicodramáticas no início de suas formações, e trouxeram relatos sobre o trabalho
com os sonhos nessas abordagens. Esses relatos tiveram um tom de crítica:
Quando fazia analise junguiana escrevia os sonhos, mas era um trabalho muito
egóico”, Trabalhava os sonhos de maneira clássica... restos diurnos, depois
124
decompondo [...] às vezes meu analista pedia para dramatizar algum personagem”,
A abordagem junguiana não me preenchia, precisava de algo que me tocasse
mais.
As referências à formação como algo distante, algo de um passado longínquo
e, às vezes, até nostálgico, foi muito presente nas entrevistas. Com exceção de duas
analistas, todos os outros entrevistados referiram-se à formação como algo distante.
E os sonhos, em vários momentos, também tomavam esse tom: Até sinto saudades
de quando lembrava meus sonhos quando estava em análise”, Na minha formação
sonhava bastante.
Mesmo com as variações e particularidades, a exaltação quase unânime do
sonho, como um elemento privilegiado na formação do analista, nos encorajou a
propor uma afirmação em relação aos entrevistados: O sonho pode ser uma das
vias régias para a formação do analista. Se a via régia o é um consenso entre
os analistas em relação à técnica analítica, como abordaremos mais adiante, ela o é
em relação ao lugar do sonho na formação.
Essa referência fundamental no sonho, para a formação, reside tanto no
caráter clínico, em suas experiências como analisantes e analistas, como no âmbito
teórico, em relação à apreensão da metapsicologia, além da importância histórica
que os sonhos possuem no movimento. Fica evidente a grande importância dos
sonhos na formação desses analistas, à maneira que vimos em Freud na parte A.
Em relação à importância dos sonhos na formação do analista, encontramos
alguma uniformidade; em relação às escolas ou referências teóricas, o quadro é
bem mais múltiplo.
125
2.2 NEM KLEINIANO, NEM BIONIANO, NEM...
Nem kleiniano, nem bioniano, nem corintiano!”, esse foi o comentário de
Pedro quando falávamos sobre sua orientação teórica. Citou uma série de autores
psicanalistas, filósofos, entre outros, para falar das influências teóricas que o
marcaram. Comentou: Freud não admitia que falassem a palavra ‘freudiano’, ele se
revoltou com isso.Ainda referindo-se às escolas, Pedro continuou: Pessoas que
fazem parte desses times não podem sonhar a psicanálise.
Acreditamos ser relevante para o trabalho abordar a questão das escolas de
psicanálise, mesmo não sendo nosso objeto primordial de estudo, pois o tema
ganhou contornos relevantes nas entrevistas e se entrelaçou com a questão
institucional, da formação e da técnica. Notaram-se algumas particularidades no
trabalho clínico com os sonhos que, entre outros aspectos, parecem ter relação com
a filiação ou não do analista a uma escola. E no caso de ser vinculado ou
identificado a uma escola em particular, nota-se outros tipos de particularidades.
Em vários entrevistados, a questão da filiação a uma escola psicanalítica
segue uma lógica inclusiva: “Se tivesse que dizer o que sou, diria escola freudiana, o
que não significa excluir as outras”, Não me denomino de uma determinada escola,
mas se tivesse que me denominar seria freudiana.
Miguel comentou: Na hora da sessão você é você. Você atende não de
acordo com uma escola, mas com as experiências que viveu, livros que leu etc.
Alguns citaram uma série de referências psicanalíticas, filosóficas, entre
outras. Ciro, por exemplo, comentou: Ferenczi me mostrou alguns caminhos na
clínica, Espinoza, Nietszche, Foucault, Derrida, entre outros.
126
Alguns faziam referências à instituição de formação ou a autores que
deixaram uma marca em sua formação, ou àqueles com quem mantêm uma
interlocução mais constante.
Leonardo falou de sua experiência: O campo psicanalítico não se satisfaz
com uma definição de freudiano. Ele e outros entrevistados, quando se
apresentaram como freudianos ou apenas como psicanalistas, disseram que notam
uma demanda social de uma maior delimitação de suas filiações ou especificações
de suas transferências institucionais ou teóricas.
Vejamos as variações sobre o tema: freudiano com Inflexão winnicottiana”,
freudiano com inflexões sociológicas”, freudiano com inflexões inglesas variadas”,
sou freudiano com uma inflexão, influência, estilo clínico das leituras de Ferenczi e
Winnicott”, neo-kleiniana”, transito por Freud e Winnicott”, formação pluralista”,
Freud como linha mestra e outros autores como desdobramentos dele”, me
chamaram de kleiniano, bioniano, dei aulas sobre Melanie Klein, mas não sou de
nenhuma escola.
Entre os entrevistados, os psicanalistas lacanianos e apenas uma kleiniana
destacaram-se por se apresentarem mais marcadamente como pertencentes a uma
escola bem delimitada: orientação lacaniana, no primeiro grupo e kleiniana, no
segundo.
40
Gabriel comentou sobre a filiação a escolas:
Se fixar num olhar é se fechar para o novo, o trabalho do Bollas fala
disso... certos analistas ingleses não conseguiam mais ver... perda
de possibilidade de construir no setting uma experiência mais
próxima da experiência onírica.
40
Nesse caso, estamos nos referindo a uma escola em termos institucionais e teóricos. Estamos atentos para o
fato de que filiação teórica não é o mesmo que filiação a escolas.
127
Marcos argumentou que o freudismo é o que nos une, a questão do
inconsciente, a base é Freud, sem isso haveria uma diáspora grande, a psicanálise
correria o risco de desaparecer.
Gabriel falou que tem o “pensamento de Freud como referência básica e
fundamental ao qual volto desde sempre mais identificação com Winnicott.” Ele
comentou sobre a questão institucional:
Não sigo uma escola, a organização em escolas não corresponde à
maneira que a psicanálise funciona bem, não penso como sendo
produtiva uma filiação. Estamos vivendo um momento histórico em
que as escolas, tempo das escolas em grande parte passou, isso
vem mudando desde a década de oitenta.
2.3 OS SONHOS NA CLÍNICA
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Carlos Drummond de Andrade
2.3.1 FUNÇÃO E IMPORTÂNCIA DOS SONHOS
Como vimos em Freud, a importância do sonho na clínica reside em seu
caráter diferenciado de produzir rememorações e na sua dimensão de
presentificação dos desejos e pulsões. Porém, Freud nos fala inicialmente que os
128
sonhos não existem para serem interpretados, que seu propósito na análise está
muito afastado de sua função original de proteger o sono. Após a formulação da
pulsão de morte, a função dos sonhos passa a ser, principalmente, a de tentar
controlar o trauma.
Neste tópico notou-se novamente certa polarização nos comentários dos
analistas. Um grupo referiu-se ao sonho como função psíquica importante por si só,
o outro deu mais relevância para o sonho como um elemento importante na técnica
analítica. Alguns analistas também enfatizaram o sonho como experiência. Essas
concepções acarretam em algumas consequências clínicas, que serão
desenvolvidas mais detidamente no próximo item.
No primeiro grupo predominam os analistas que não se dizem filiados a uma
única escola de pensamento, mas que trazem uma marca transferencial mais
implicada com as abordagens inglesas da psicanálise. Entre eles, situa-se, também,
uma psicanalista lacaniana.
Apresentamos alguns recortes dos discursos desse primeiro grupo, a respeito
da função dos sonhos: Sonho é trabalho da mente e não descarga de algo que
precisa ser satisfeito”, é um trabalho da mente em vista de um clamor de
significação”, função antitraumática”, função curativa”, elaboração do sofrimento
psíquico”, veículo de expressão de significados da vida psíquica, da experiência do
sujeito”, sonho não como sonho, a experiência psíquica é experiência sonhante”,
instrumento autoepistemológico”, “ajudam o indivíduo a dar uma forma, significado”,
sonhar já é uma interpretação”.
Nesse grupo percebe-se muitas vezes que o sonho é visto, por si só, como
curativo. O seu lugar no psiquismo, sua finalidade como processo psíquico em si e
não apenas no tratamento, parece receber grande atenção desses analistas.
129
O enfoque dado aos sonhos, por esses analistas, se assemelha à função do
sonho que Freud propôs a partir da pulsão de morte. Essa função consiste numa
tentativa de representação, de ligação. Vários desses analistas conferiram ao
processo de análise essa mesma função, de representação da experiência psíquica
e do não simbolizado.
Segundo Dimas, por exemplo, o sonho é um modelo da vida psíquica, o
objetivo da análise é poder sonhar, realizar um trabalho de representação.” Na
mesma linha, vários analistas se referiram ao sonho como experiência a ser recriada
no setting analítico, não em sua dimensão interpretativa, mas pela via da experiência
e significação.
O segundo grupo de analistas é constituído predominantemente por
lacanianos e alguns freudianos com inflexões winnicottianas”. Eles destacaram a
utilização dos sonhos no tratamento analítico: são importantes fontes e matrizes de
associações”, marcam momentos importantes da análise”, possuem importância
diagnóstica”, funcionam como um termômetro da transferência”, marcam a entrada
e o final de análise”, mais uma via de acesso ao sujeito”, lugar transferencial”, dão
uma mexida na análise, são uma carta na manga”, renovação da fala em análise”,
um lugar que remete a uma posição do sujeito que é diferente da fala cotidiana”,
sonho rompe com a estrutura dialogal quase automaticamente”, enigma”, sonho
surpreende, perturba”.
Nesse grupo há maior semelhança com as proposições de Freud sobre a
importância do sonho no tratamento, porém, notamos, também, que uma
expansão e, ao mesmo tempo, uma individualização da função dos sonhos, em
comparação às proposições freudianas, principalmente nos analistas de referências
predominantemente inglesas.
130
O comentário de Pedro ilustra bem essa situação: a função dos sonhos é
individual [...] os sonhos são o que você faz deles, stuff of life, como diria
Sheakspeare.
A função dos sonhos parece ser ampliada à medida que ganha especificidade
em cada tratamento e em cada sujeito. Não haveria, portanto, uma importância pré-
determinada como Freud apresenta algumas vezes, essa importância seria
construída a cada caso, no encontro analista-paciente.
Os sonhos na clínica, segundo os analistas entrevistados, parecem-nos
pontos de partida e de chegada. Pontos de partida, como observamos no segundo
grupo, no sentido de remeterem à surpresa, à Outra Cena, à transferência, partida
de uma viagem rumo ao Outro. Os pontos de chegada, como vemos no primeiro
grupo, consistem em sua função de representação, de ligação, de ancoramento do
sujeito em si. Não seriam os dois, inesgotáveis de pontos de partida e de chegada
do Outro em si e vice-versa? Fazemos essa pergunta retórica para provocar uma
reflexão sobre o quanto a função do sonho ou sua importância não são estanques,
mas construídas na relação, significadas pelo par analítico.
2.3.2 CAIXA DE PANDORA: O MANEJO DOS SONHOS NO TRATAMENTO
Você não atende de acordo com uma escola, mas com as experiências que
viveu, livros que leu [...] Dependendo do paciente usa recursos lança mão na hora...
abre a caixa atende com os recursos que tem”. Essa fala de Miguel é importante
para pensar o analista como sujeito na clínica.
131
Esse apontamento de Miguel está presente no discurso de vários analistas
sobre suas práticas clínicas. Certamente não há uma correspondência idêntica entre
a teoria e a prática clínica, no entanto, na fala dos analistas, sobre o manejo dos
sonhos, pudemos notar algumas marcas de sua subjetividade, bem como de suas
referências teóricas e, inclusive, institucionais.
Miguel evidenciou uma história marcada pela multiplicidade de experiências,
amplo repertório cultural, interesse pelos movimentos de seu tempo etc... Ele
mostrou, ainda, uma relação bastante flexível e multifacetada com a teoria, clínica e
em suas experiências institucionais, bem à maneira de sua comunicação que
citamos acima. Mas isso não aconteceu com todos os entrevistados.
Falar sobre a experiência clínica, e ainda em relação a um elemento tão
evanescente como o sonho, é sempre um risco. Pensamos, também, que por se
tratar de um assunto em que Freud é uma referência ainda tão viva, adentrar no
fazer clínico dos entrevistados poderia gerar uma série de resistências.
Sabemos quanto uma parte do que acontece na clínica nunca será significada
e que o falar sobre ela envolve uma “secundarização do pensamento” (MEZAN,
1994, p. 61) e uma perda. É importante destacar que é com essas ressalvas em
mente que consideramos os relatos dos analistas.
A referência à Caixa de Pandora
41
é, portanto, inspirada na caixa citada por
Miguel, mas também uma metáfora para ilustrar a intensidade e o caráter de mistério
e inacessibilidade dos conteúdos envolvidos, quando falamos sobre a clínica. A
caixa comporta algo que se deseja saber, mas que abre para uma série de
sentimentos e fantasmas que, como diz a mitologia, podem fugir do controle:
41
Caixa de Pandora faz parte do mito de Pandora da mitologia Greco-romana. Aqui utilizamos de modo mais
coloquial, sem referências ao mito de um modo amplo.
132
conforme as entrevistas iam se aproximando dos assuntos relacionados à prática
clínica, estas ficavam mais difusas e mais evanescentes.
A menção à caixa também remete ao uso coloquial que se faz desse termo
em relação a assuntos que geram polêmica, tabu, sentimentos ambíguos e
reprimidos, bem guardados na tal caixa. Nessa direção, pensamos nas múltiplas
sobreposições teóricas, na subjetividade, nas identificações e na multiplicidade de
experiências que compõem o repertório dos analistas, e que impactam em sua
clínica.
Portanto, sabemos que não estamos falando de “caixas bionianas”,
“lacanianas”, “kleinianas”, entre outras: o repertório da caixa” é tão múltiplo quanto
são múltiplas as dimensões subjetivas dos analistas.
Sobre a clínica, um dos aspectos mais ressaltados pelos entrevistados foi o
trabalho com o sonho, o como um fim em si mesmo, mas uma parte do
tratamento. A análise não deve ser um trabalho de interpretação de sonho, mas é
um instrumento importante sempre”, Não é necessária tanta ênfase nos sonhos,
mais ênfase nas associações”, Sonhos como porta de lembranças e associações,
como fonte de associações, mas também como matriz de associações”, Propiciar
associação a ponto do paciente chegar em algo que o surpreende.” Esses aspectos
são bastante coincidentes com o que vimos em Freud.
As formulações de Bion e Winnicott, sobre os sonhos, foram bastante
mencionadas nas entrevistas e implicam em relevantes consequências para o fazer
clínico de alguns analistas influenciados por esses autores, no que diz respeito ao
setting, à escuta analítica e à interpretação.
Pedro considerou que depois de Freud, Bion foi quem expandiu a teoria dos
sonhos. Ele abordou o trabalho onírico de vigília apresentado na sessão [...] Freud
133
falou disso, mas não desenvolveu [...] afinal, não dá pra desenvolver tudo.”
Esse e outros desenvolvimentos de Bion acarretam em algumas implicações
clínicas. César falou sobre elas: Nós sonhamos o tempo inteiro, sonhar é a lógica
do inconsciente, na sessão é importante ouvir tudo como se fosse um sonho [...]
escuta biauricular, escuta o drama imaginário e o latente.
Marília comentou: A partir de Bion sonho não é a expressão de desejo
reprimido, o sonho como trabalho da função alfa, como elaboração.”
Mas não foram caminhos como estes que Freud apontou em seus últimos
textos sobre os sonhos? Notamos em alguns entrevistados, de tendências pós-
freudianas, uma inclinação de creditarem a analistas mais contemporâneos a autoria
de propostas que encontramos claramente em Freud. Mas como disse Pedro,
não pra desenvolver tudo.Será que as escolas que sucedem outras escolas se
prestam a dar conta do que não foi desenvolvido anteriormente? Essa ideia não
daria uma conotação de evolução ao invés do convívio com as diferenças?
Sobre a escuta analítica, Ercília citou uma expressão de Bion: sem memória
sem desejo”, que foi muito mencionada em várias entrevistas. Ela explicou que se
trata de um estado mental disponível para sonhar junto com o paciente. César
discorreu sobre esse “sonhar junto” com o paciente:
é ver as imagens do sonho, entrar no sonho, está incluído no sonho,
ver como ele repercute em mim [...] Ver os dois dentro do território
dos sonhos, sem preocupação em deslindar um enigma e
principalmente compartilhar como se nós dois fossemos construindo
algo em conjunto [...] nesse tipo de clínica o ouvido escuta tudo
tentado captar nessa outra lógica que tipo de experiência emocional
[...] a contratransferência que antes era vista como obstáculo, hoje
não é.
134
Esse termo de Bion, segundo os entrevistados, deriva da transformação do
sonho pensamento, do elemento sonho, em direção à função sonhante”, escutar a
fala como realidade psíquica [...] atenção livremente flutuante, prestar muita atenção
em coisa nenhuma”.
Marcos, referenciado em Fedida, também falou sobre escutar a narrativa do
paciente como um sonho.
Gabriel trouxe a questão do holding materno, do sonho e da regressão para o
setting:
Ao desfocar do sonho como objeto, como algo a ser explorado e
desvendado, pode-se viver a experiência analítica [...] regressão
dentro de um espaço protegido, não se consegue adormecer em
qualquer lugar a qualquer momento [...] Deve haver algo
fundamental, setting como para dormir, sentir em segurança, pode
relaxar seu ego, pode se dissolver, facilitar o sonhar quando tem
algo a ser sonhado. Garantir de alguma forma que o setting seja
confiável para o sonho e para a análise, como um holding materno
[...] É fundamental, se não existe isso não possibilidade de
sonho.
Para Marília também é importante que o setting abrigue essa dimensão
onírica e explicou o conceito de ‘reverie’ de Bion:
é a importante capacidade de demonstrar que há interesse no estado
emocional do outro [...] há um outro que manifesta tentativas de
acolhimento, que oferece alternativas para transformar as vivências
do bebê ainda não representadas num estado tolerável [...] é a
gênese do pensamento, do campo de representação [...] com
paciente é parecido. Quanto mais se consegue na situação analítica
colocar mais próximo dos processos inconscientes, muito vai se
refazendo. O trabalho do sonhar é importante para dar sentido para
aspectos desarticulados.
135
Os lacanianos referiram-se mais ao sonho como relato e como enigma, e o
manejo não carregou muita especificidade em relação a outras falas, a não ser por
uma pergunta dirigida ao paciente mencionada por eles: Qual é o motivo do seu
sonho?
Trata-se de uma pergunta sobre o desejo?
Rafael falou em nome de Lacan:
ele faz a interpretação mais pela superfície, não diz respeito à
construção do sentido [...] e depois, com o conceito de objeto a
menos ainda. Quando se conta um sonho pleno de sentido é um
momento privilegiado para suspender essa busca de sentido. (grifo
nosso).
Cássio também falou dessa suspensão: trabalho com os sonhos misturado
com a técnica do corte, não do corte da sessão, corte do discurso.”
Tereza mencionou o filme “O carteiro e o poeta”: O sonho é o que você faz
dele, é o relato, assim como a poesia é o que você faz dela. Tereza ressaltou que
se a transferência não está estabelecida o paciente não traz sonhos.
Para a entrevistada, a verdade construída em análise tem a ver com analista
e analisante na transferência, com o momento. O sonho remete à Outra cena [...]
Antes sonho era visto como verdade, hoje é mais como uma ferramenta.”
Lúcia fez um alerta: Parece simples trabalhar o sonho, mas não é. Não é
logo da cara que se começa a trabalhar os sonhos na clínica. Sempre me pergunto
por que a pessoa sonhou.
Sílvio descreveu suas percepções e seu modo de trabalhar os sonhos na
clínica:
136
Não adianta buscar uma tradução porque estaria dissociada da
vivência, não estaria no relato do sonho e sim nas associações
acrescido do que o relato te mobiliza [...] Bion nos adverte: ‘sem
memória, sem desejo’ [...] Se o sonho entrar, entrou [...] Ouço o
sonhos, as associações, mas um eixo na sessão [...] De repente
surge dentro de mim uma possibilidade de correlacionar o conteúdo
do sonho com o conteúdo da sessão, surge na minha mente um
significado interpretativo que relaciona o conteúdo do sonho com o
conteúdo das associações que ele faz e as outras temáticas que ele
traz em outros momentos.
Sílvio fez outro comentário também bastante relevante. Ele falou que é
preciso tomar cuidado, pois, o analista atualmente tende a partir de uma teoria e
tentar identificar no paciente [...] O analista tem uma teoria, mas não pode impor isso
ao paciente e poder perceber no paciente algo novo que não está na teoria.
Neste sentido, Pedro apontou que: A gente ajuda a pessoa a fazer a análise
dela [...] o sonho é um instrumento autoepistemológico [...] o insight é o paciente que
tem, Freud falava que ser analista é como ser uma parteira, se não atrapalhar,
nasce!
A maioria dos analistas comentou sobre os sonhos traumáticos. Utilizamos o
comentário de Mariana para exemplificar as inúmeras menções dos analistas a esse
respeito: O sonho traumático é uma tarefa psíquica muito difícil, não é interpretável,
ao longo do tratamento vai modificando.Nesse caso, ela propôs que o analista
ocupe um lugar semelhante ao lugar que ocupa no testemunho, na escuta de
experiências traumáticas como as de vivências em campos de concentração.
Esta dimensão de testemunho também foi citada por Ciro, porém, em relação
a qualquer sonho. Por ele considerar os sonhos como manifestações psíquicas
curativas, alude à importância do analista estar disponível em seu lugar
contratransferencial sempre como receptor. Nesse caso, fazendo referência a
137
Ferenczi, cria-se um circuito em que o analista se analisa enquanto faz análise.
Para ele, “o sonho curativo não precisa de interpretação.
Cássio referindo-se aos sonhos traumáticos, mas também aos sonhos de um
modo geral na análise, falou sobre o modo como os sonhos se transformam na
analise. “Há um tratamento dos sonhos, a análise injeta o simbólico no sonho.
Em relação à transferência, Marcos falou do onírico em análise no que diz
respeito à sustentação da transferência, ao estatuo onírico da transferência. O
sonho, disse ele, “é o paradigma da transferência”.
Os analistas também falaram sobre modificações em relação ao manejo dos
sonhos ao longo de sua própria trajetória clínica. Parece haver um movimento que
vai da decifração ao trabalho associativo. A importância conferida aos sonhos
também se modifica. No início de suas atividades clínicas, os sonhos pareciam
ocupar um lugar bastante primordial para alguns analistas, e depois passou a ser
comum falarem de uma relativização desse lugar. outros, que não davam muita
importância aos sonhos no começo de suas clínicas, reviram essa posição.
Hilda discorreu sobre essas modificações na sua clínica:
Mesmo que não se conta, vai se modificando [...] No começo da
minha clínica tinha interesse em seguir a via régia, depois vai usando
outras vias, se contenta em usar o sonho numa parte da sessão.
Hoje não se percebe os sonhos num sentido de decifração, mas é
um elemento para esclarecer a situação psíquica do momento do
paciente. (grifo nosso).
Sobre se contentar”, retomamos os insistentes alertas freudianos em relação
à “tentação” e à “renúncia”, que ele sugere aos analistas diante dos sonhos, e
vemos, pelo menos com esse grupo de entrevistados, como ainda é importante
termos isso em mente, principalmente no início da atividade clínica e formação.
138
Pedro relatou que no início de sua atividade clínica era mais grudado no
conteúdo manifesto mais do que hoje [...] isso se relaciona com a incapacidade de
ser analista [...] o conteúdo manifesto é porta, o latente é a sala [...] pensando assim,
acho até que não trabalhava com os sonhos no começo.”
Para Fernando havia certa tensão em buscar aplicar a teoria:
Inicialmente havia uma ânsia de procurar o conteúdo latente, muito
violento, tentava seguir o que via na teoria. Via que não chegava ao
que o Freud chegava em seus tratamentos [...] Quando comecei a
relaxar, ter mais naturalidade, mesmo sem pedir sonhos, eles têm
vindo. No começo da carreira, quando um tratamento emperra, é
comum ocorrerem idealizações algo que resolva...
Rafael falou que no começo da clínica buscava mais os sonhos. No começo
trabalhava mais na via do sentido, o que revelava, me ocupava muito disso.
Marília fez um alerta essencial sobre o cuidado em analisar o modo de
trabalho de Freud com os sonhos. Para ela, na literatura analítica há uma espécie de
recorte que enfoca muito mais o início da produção freudiana, podendo gerar a
sensação de que Freud trabalhou muito a decifração dos sonhos.
Poucos analistas mencionaram esse cuidado, ou fizeram essa ressalva de
extrema importância em relação ao perigo de simplificar ou reduzir o percurso de
Freud. Como comentamos na parte A, mesmo no início de seus trabalhos com os
sonhos, em seu momento mais apaixonado, Freud não sem oscilações parece
ter sempre contemplado a irredutibilidade das produções oníricas.
A influência de algumas questões teóricas e institucionais ficou evidente.
Alguns analistas comentaram sobre esses impactos:
139
No começo da minha clínica não tinha um apreço especial pelo
aparecimento de sonhos, eram bem vindos, mas era mais
interessado nos sintomas... havia, talvez, um certo preconceito
teórico, uma excessiva importância no sintoma. Pensava: que o
inconsciente é estruturado como linguagem, tanto faz, vamos logo ao
que interessa. A experiência foi me mostrando como a aparição dos
sonhos poderia representar um corte nessa fala da queixa do
sintoma.
Hilda, que se denomina kleiniana, discorreu sobre as modificações em
relação ao manejo dos sonhos:
Paciente quando conta um sonho não sabe o que está falando [...]
no Sonho você fica nu. O que talvez tenha mudado em relação
aos sonhos é mais visível na técnica, principalmente o trabalho do
sonho na transferência. Que lugar ocupo no sonho desse paciente?
...Isso facilita visualizar o que você significa para o paciente no
sonho, o que o paciente precisa reconhecer. (grifo nosso).
Pedro falou sobre questões do movimento analítico:
Quando entrei na [instituição psicanalítica] tinha uma campanha anti-
sonhos, como se o trabalho com os sonhos fosse muito freudiano [...]
e como a escola inglesa promoveu um rompimento, talvez isso tenha
se refletido nessa questão também... se hoje falam que os pacientes
não sonham, antes se falava que o analista não deveria focar o
sonho. A meu ver, não escutar os sonhos é uma negação profunda
da psicanálise.
Marília, psicanalista com formação predominantemente baseada em autores
da escola inglesa, falou sobre uma interessante particularidade que notou ao
dialogar com colegas de outras orientações:
Quando ouço colegas de outras escolas que trabalham com
crianças muito pequenas comentarem sobre suas experiências
140
clínicas, sobre a técnica, às vezes parece que o que fazemos é
mais parecido do que pensamos. (grifo nosso).
Cássio comentou que no início da sua clínica, quando ainda não trabalhava
muito os sonhos:
A análise foi tomando um ligar meio apreensivo de que teria que falar
do sofrimento [...] Sonho como abertura, maneira de libertar a fala,
tipo de memória menos linear, apareceria certos significantes
diferentes dos que compõem o sintoma.
Ele discorreu sobre as modificações na sua clínica:
Inicialmente trabalhava os sonhos como guia para decifração dos
desejos inconscientes [...] depois comecei a perder um pouco da
minha confiança hermenêutica e percebi os sonhos como
indicadores do que não estava podendo ser dito na transferência. Na
hora que me dei conta disso, comecei a pedir sonhos, tinha
pacientes que não sonhavam e isso passou a ser uma questão para
esses pacientes, por exemplo. Mais e mais pacientes que
começaram a trazer sonhos e tornava as análises mais agradáveis.
Sobre algumas especificidades da técnica, Edgar retomou um lembrete
técnico de Freud: para que o analista busque nos sonhos lembranças sensoriais
vívidas. Outro aspecto é a importância diagnóstica do sonho, no psicossomático
encontramos um grau zero de metáfora.
Cássio também ressaltou a importância diagnóstica: Os sonhos ajudam em
várias dúvidas diagnósticas, sonhos típicos da psicose, por exemplo. O
entrevistado mencionou, também, como os sonhos são indicativos do próprio
processo analítico, são um termômetro da análise em seu início, transformações,
questões transferenciais e fim.” Ele destacou uma ocorrência comum em sua clínica:
141
pacientes que trazem sonhos que se repetem e às vezes acompanham todo o
tratamento.
A dimensão transferencial e a influência do analista são relatadas de modo
muito semelhante ao que Freud propôs. A maioria dos entrevistados considerou que
uma parcela considerável de responsabilidade do analista para que os sonhos
sejam trabalhados em análise. Fernando comentou sobre isso:
O trabalho com sonhos na análise depende bastante do analista
também, ele está envolvido na relação [...] ele não é responsável
pelas produções oníricas em si, mas é na transferência é que
elas podem aparecer. (grifo nosso).
Vários mencionaram que pedem sonhos explicitamente: eu peço sonhos”,
encomendo sonhos”, quando o paciente vem fechado inacessível, às vezes
pergunto dos sonhos”. Outros o fazem de modo mais indireto: “No início, ao enunciar
a regra fundamental menciono de modo geral que a pessoa pode trazer todo tipo de
material.
Alguns descreveram essa disponibilidade do analista de escutar os sonhos
como uma experiência, uma disponibilidade de poder sonhar a psicanáliseou de
jogar o jogo do inconsciente”. A entrada nesse jogo tem relação com “o modo que o
analista convida seu analisando ou valoriza o sonho.” Nesses relatos, vemos que o
trabalho com o sonho na análise depende da continência e da capacidade do
analista de sonhar.
A questão da sugestão também foi citada por muito entrevistados: “Há algo de
sugestão na análise, ela não é pura. Porém, a afirmação de um analista foi
surpreendente. Para ele, pensar que o analista pode influenciar os sonhos seria
142
behaviorismo”. Fora esse comentário, observamos como estão bastante próximas
das proposições de Freud, a influência do analista nos sonhos dos pacientes.
A dimensão de resistência dos sonhos no tratamento psicanalítico, tal como
desenvolvida em Freud, foi o assunto menos abordado espontaneamente pelos
analistas. Sabemos que isso não significa necessariamente que os entrevistados
não levem essa dimensão em conta em sua atividade clínica, mas chama a atenção
esse assunto ter sido menos abordado.
Se por um lado o aspecto de resistência dos sonhos é pouco mencionado, as
menções aos abalos e entraves da função onírica
42
são abundantes. Falou-se muito
sobre a necessidade premente de o setting e o analista serem como lugares de
acolhimento dos sonhos”, aproximações do setting à experiência onírica”, o
entendimento da análise como uma via que propicia o sonho e até, simbolicamente,
o adormecimento protegido.
Deixemos a Caixa de Pandora por alguns momentos e vamos à estrada.
2.3.3 VIA RÉGIA?
Me arrepios de contradizer Freud.. um homem tão à frente de sua época.
Preciso rever essa questão da via régia antes de falar algo, faz tanto tempo que não
leio esses textos...
42
Lembramos que a escola inglesa diferencia o sonho-objeto (o sonho em si), da função onírica, o “sonhar”. O
sonhar, como verbo, se estende a todas as produções do sujeito, é o modo do funcionamento do psiquismo.
Mesmo correndo o risco de sermos reducionistas, entendemos essa proposição como a ideia de levarmos em
conta que há sempre um latente nas manifestações do sujeito. Entendemos esse latente como algo da ordem do
desejo do inconsciente. Um abalo nessa função foi considerado por nós como abalos na possibilidade de
simbolização.
143
Vimos a partir da história da institucionalização da psicanálise, o quanto as
palavras do mestre ou suas proposições técnicas podem ser convertidas em
verdades imutáveis na própria instituição. No âmbito particular, na prática do analista
em seu dia-a-dia, isso pode tomar dimensões bastante peculiares também.
Mezan (2002a) reflete sobre o que Freud pode representar na prática de um
psicanalista. Não se pode apresentar uma hipótese universal sobre isso, mas a
incidência da obra de Freud, sobre a prática analítica, não passa pela aprendizagem
do conteúdo apenas de uma teoria. A teoria de Freud age por meio de maneiras
muitas vezes obscuras e absolutamente singulares, pelas quais é “assimilada,
metabolizada e apropriada por cada analista, encontra eco nas significações da
cada analista.” (MEZAN, 2002a, p. 362).
O autor propõe que na própria sessão analítica se interpõem várias figuras,
tanto do lado do paciente como do analista. Para ele, Freud visita os analistas
durante as sessões. “Freud é o autor da teoria que fundamenta o trabalho de um
psicanalista, mas também o nome de uma representação que age sobre esse
trabalho”, diz Mezan (2002a, p. 363). Ele lembra como Freud se intitulou o único juiz
daquilo que era legítimo chamar por psicanálise
43
.
Parece-nos que o processo pelo qual o analista elabora essas “visitas de
Freud” é uma parte relevante do seu percurso de formação. Um dos analistas que
entrevistamos, o mais jovem, fez um comentário sobre sua formação. Ele
demonstrou preocupação em mostrar Freud como pessoa e de mostrar como os
movimentos em sua obra são construídos.
Sua fala é paradigmática em relação ao processo de “desidealização”
(interminável?) que acontece, ou deveria acontecer, na formação do analista:
43
Desenvolvemos esse assunto no capítulo 3 da parte A, quando falamos sobre a institucionalização da
psicanálise e do sonho.
144
Precisamos ler Freud de um ponto de vista biográfico, não faz
sentido sem isso, não é pronto [...] ler Freud pela obra e acompanhar
as descobertas são fantásticas [...] depois ele mais velho, mais
decidido, homem... prefiro os primeiros textos, quando ele ainda
estava tentando provar suas teorias...Me identifiquei com o Freud
inicial, com a minha prática [...] ele errava diagnóstico, às vezes era
péssimo, vi que eu não era tão mal assim... O Freud era um cara
que errava. (grifo nosso).
Voltemos à via régia. Esse tema durante as entrevistas gerou uma série de
discursos ambíguos à maneira do que discutimos na parte A deste trabalho. Na fala
dos analistas, assim como nos escritos que analisamos, é patente o mal entendido
engendrado na sentença freudiana sobre a via régia.
Um dos aspectos desse mal entendido reside na simplificação ou na tradução
errônea do texto de Freud, como mencionamos. O sonho é a via régia para o
conhecimento dos processos inconscientes e não para o conhecimento do
inconsciente”, falou Pedro enfaticamente. Ele comentou queessa é uma frase
comumente mal traduzida, não entendida”.
Ercília também falou sobre esse equívoco: a interpretação dos sonhos é a
via régia para o conhecimento dos processos inconscientes na análise. A
interpretação é a estrada que entra e sai, não é o sonho. Rafael discorreu de modo
semelhante: nos sonhos os mecanismos que o inconsciente utiliza para fazer suas
formações aparecem de modo muito evidente”.
Notou-se um movimento oscilatório: em vários momentos dos relatos surgiam
comentários sobre o sonho como uma produção psíquica qualquer: O sonho na
análise é como qualquer outra coisa que a pessoa conte, como associações,
lembranças.”, O sonho é apenas mais uma via de acesso ao sujeito”. em outros
momentos aparecia como privilegiado.
145
Vários entrevistados, quando o assunto era a via régia, apresentaram um
movimento parecido: O sonho é a via régia, mas o é a única”. Outra semelhança
entre os entrevistados foi a de afirmar ou negar o sonho como via régia muito
prontamente, e quando indagados dos motivos que fazem, ou não, dos sonhos a via
régia, reconsideraram sua afirmação.
Apesar das oscilações, em poucos momentos os analistas manifestaram suas
prováveis dúvidas, lapsos de memória ou incertezas, hesitações em relação à
definição do que seria a proposta de via régia para Freud, como fez Tereza.
Outros elementos foram apresentados como via régia pelos analistas: a
transferência, a associação livre, o sonhar”, a associação livre que tem algo de
onírico”, as relações pessoais, a maneira como as pessoas estruturam essas
relações pessoais”, entre outros. Dimas, por exemplo, comentou: o sonhar é a
atividade psíquica por excelência, é a via régia, mais do que o sonho.”.
também outras adaptações das propostas de Freud. Alguns analistas que
creditam aos sonhos o estatuto de via régia, mas não pelos mesmos motivos
44
que
Freud explicitou, ao menos inicialmente. Edgar, por exemplo, considerou o sonho
como via régia pelas associações que propicia.
Para um entrevistado, atos falhos e chistes, ou outros conteúdos, têm
também papel muito importante: eu atendia um caricaturista, trabalhava com
criação de chistes, caricatura. Ele nunca contou um sonho, trazia muita coisa a partir
das caricaturas”. Ele citou um recorte cínico de Júlia Kristeva sobre um analisando
que pintava quadros, levava fotos dos quadros, para este paciente”, disse ele, esta
era uma via régia”, por exemplo.
Dimas, para falar dos deslocamentos e entraves da “via régia”, fez uma
44
Discutimos esses motivos no capítulo sobre a via régia/estrada real na parte A.
146
ressalva importante: nem sempre sonhar é curativo, por exemplo, há pacientes
depressivos que têm sonhos e acorda mais cansado”.
Sílvio teceu considerações sobre a multiplicada da via régia: existem muitas
estradas reais que permitem alcançar o inconsciente. Desenho, música, sonho,
teatro, por exemplo, são formas de projeção que contêm no não-dito significados e
motivações mais profundas”.
Hilda retomou a questão a partir da história da psicanálise, à maneira que
fizemos na parte A deste trabalho:
O sonho foi o contato mais profundo que Freud teve com o
inconsciente numa época que não tinha esse conhecimento. Havia a
histeria, mas os sonhos principalmente na auto-análise mostraram
para Freud o funcionamento do inconsciente [...] É a via régia para o
conhecimento do inconsciente.
Para Fernando, os sonhos são a via régia para Freud valorizar o
inconsciente. [...] Seu livro dos sonhos foi importante devido a seu interesse em tirar
a psicanálise do âmbito da histeria, da psicopatologia”, disse ele. Fernando
sustentou que “o caráter universal do sonho” também faz dele uma via régia.
Tereza comentou, a partir de suas referências teóricas, que:
Lacan mudou o conceito de inconsciente [...] em sua última
conceituação propõe o inconsciente como real inconsciente no
espaço de um lapso onde não sentido e interpretação... Existe
sonho como via régia à medida que o sonho traz consigo algo do
real, é via régia enquanto presentificação do inconsciente. (grifo
nosso).
No sentido lacaniano, a estrada real poderia ser tomada em seu sentido mais
estrito, o sonho é uma estrada real, ponto. Um real que se presentifica.
147
Lúcia considerou o sonho como via régia talvez na neurose, onde opera o
recalque. Na psicose, nos sintomas contemporâneos como toxicomanias, entre
outros, talvez não. Até na neurose obsessiva, por exemplo, muitos pacientes não
trazem sonhos.”.
Gabriel advertiu para o cuidado com uma visão substancializada da via régia.
Para ele, a partir de Winnicott e alguns outros autores, pode-se pensar o sonhar
como via régia:
A experiência do sonhar é um caminho privilegiado para se
aproximar da experiência do inconsciente, ou verdade do sujeito, ou
si mesmo, etc... O que acontece é que às vezes o objeto sonho e
não o sonhar, e às vezes não existe o objeto sonho, mas existe o
sonhar na sessão.
Cássio explicou os motivos pelos quais compartilha com a proposição
freudiana de via régia:
Sonhos são a maneira mais simples de se encontrar com a realidade
do inconsciente, o sintoma é mais difícil de compreender, de se
apropriar, ato falho é muito evanescente. O sonho compromete
menos o eu, o narcisismo [...] outra serventia são pacientes que têm
dificuldade para falar, timidez ou quando um tema difícil de ser
trabalhado [...] nesses casos o sonho funciona como uma área mais
guarnecida [...] ele acha mais seguro, mas é o menos seguro [...]
aparentemente libera o falante dessa responsabilidade.
Cássio também comentou a tradução do termo ‘via régia’ do alemão. Diz
respeito a uma via principal, como de uma cidade pequena, por onde se entra, por
onde chega, onde tem as coisas principais da cidade, imagem de acesso, de
importância.”.
148
Rafael fez comparações a outras formações do inconsciente: “o lapso e chiste
são mais fáceis de descartar”. Para ele, a relevância dos sonhos reside na força da
imagem, no tempo de duração, encadeamento de fatos. É um tempo onde o sujeito
sabe que ele está à mercê do inconsciente, não tem relação com complexidade ou
estrutura do sonho.”.
A fala de Rafael está alinhada com um comentário de Freud (1916) na
conferência VI de suas Conferências Introdutórias sobre psicanálise:
[...] o sonho não é somente uma palavra errada; consiste em
numerosos elementos [...] difere de um lapso de língua, entre outras
coisas, pela multiplicidade de seus elementos. Nossa técnica deve
levar isso em consideração. (FREUD,1916-1917/1996f, p. 110).
Durante as entrevistas esse tema configurou-se com um dos que geraram
mais respostas ambíguas e evasivas. Porém, é importante marcar que essa
ambiguidade nem sempre aparecia de imediato. Um movimento comum, quando se
tratou o tema, foi inicialmente a apresentação de uma afirmação resoluta por parte
do entrevistado e ao longo dos questionamentos propostos, ou que eles mesmos se
faziam, a ambiguidade e a polissemia apareciam mais evidenciadas.
Lembramos que não estamos tomando ambiguidade como erro ou algo a ser
evitado, ao contrário. Em relação ao termo via régia, vemos a ambiguidade como
bem vinda.
149
2.3.4 ALGUMAS REFLEXÕES METAPSICOLÓGICAS
A teoria decide o que podemos observar.
Albert Einstein
Todas as teorias são legítimas e nenhuma tem importância.
O que importa é o que se faz com elas.
Jorge Luis Borges
O inconsciente é muito exatamente a hipótese de que
a gente não sonha apenas “quando dorme
Lacan, “Une pratique de bavardage”
Em praticamente todas as entrevistas os analistas abordaram de algum modo
a metapsicologia. Os tópicos mais citados pelos entrevistados foram: a segunda
teoria das pulsões, a segunda tópica freudiana, algumas reformulações do conceito
de inconsciente, o trabalho psíquico de representação, e o aparelho psíquico no
sono, sonho e sonhar.
Aspectos metapsicológicos relativos à transferência, regressão e narcisismo
também estiveram presentes em várias entrevistas. O caráter alucinatório do desejo
foi trabalhado por dois analistas. Outra faceta abordada foi uma interessante
discussão metapsicológica da técnica, do setting e da contratransferência, descrita
por alguns analistas de influências predominantemente inglesas.
Ercília falou do lugar do sonho a partir de reflexões sobre mudanças na
metapsicologia freudiana:
A questão da via régia muda a partir da segunda tópica. Tomamos o
inconsciente na primeira tópica como um lugar, inconsciente é
substantivo. Na segunda tópica podemos tomá-lo como adjetivo.
Quando o inconsciente passa a ser adjetivo, é porque estamos
150
falando de um funcionamento. O sonho fica na intersecção entre o
funcionamento consciente e inconsciente, mas está ligado ao
funcionamento inconsciente.
A partir da segunda tópica não se pode deixar de lado que o sonho é ligado a
essa área da mente que se impõe, que nos leva a agir”, disse Ercília. Ela se referiu à
pulsão e sugeriu uma relativização da via régia, pois, se a interpretação dos sonhos
é a via régia para o conhecimento dos processos inconscientes na análise, o sonho
tomado em sua vertente pulsional não é passível de interpretação.”.
Tratam-se das mesmas consequências que extraímos do texto freudiano na
primeira parte desse trabalho.
Miguel discorreu sobre a constituição do sonho:
O sonho é um processo psíquico muito estruturado, como um
pequeno sintoma. Tem inconsciente, ego, superego. Quanto mais
poderosa a fronteira entre ego e inconsciente, mais importância terá
o sonho no tratamento. Carrega uma organização própria, inclusive
em seu caráter absurdo, ele é consequência de sua própria lógica,
parece sem pé nem cabeça, mas a psicanálise tem pé e cabeça.
De modo oposto, Pedro protestou contra o que denomina de crença
localizatóriaentre os psicanalistas: Não existe ego, superego, isso é apenas um
modelo. Ele também afirmou enfaticamente: o inconsciente é o não-conhecido,
isso! As palavras ficam desgastadas, reificadas em psicanálise.” (grifo nosso).
César teceu comentários sobre a concepção de inconsciente para Bion:
O inconsciente está o tempo todo captando infinitos estímulos
internos e o que chega no consciente é uma linha narrativa
pragmática para efeito de sobrevivência [...] nunca poderemos dar
conta do inconsciente porque é outra lógica, uma contradição, e isso
151
é o que o consciente menos suporta. Em Bion um sonho
permanente.
Marília também falou sobre isso: o paciente vai comunicando algo e o
analista vai sonhando, faz essa função sonho de ficar livre e poder associar.
Foram feitas várias referências ao texto de Freud, “Suplemento
metapsicológico à Teoria dos Sonhos”, principalmente em interlocução com uma
metapsicologia do vínculo. Dimas resumiu: “Para ter sonho tem que ter sono, tela do
sono, narcisismo, [...] de se ter “garantias narcísicas para a vida psíquica. Essas
garantias e o sono se dão no encontro com o outro.Segundo alguns entrevistados,
nos processos de reverie e holding, citados, residem a disponibilidade do analista
em acolher e até propiciar o sonho e o trabalho de representação de experiências.
Dimas comentou que o sonho se relaciona ao corpo: “Sem dor não há sonho,
a dor é anterior à angústia, a angústia é um sinal.Sobre o corpo, Pedro também faz
alguns apontamentos que julga importantes para pensar os sonhos, inclusive na
clínica.
No início do trabalho, acreditávamos que não seria tão evidente uma
correspondência entra a referência teórica de cada analista e sua prática clínica.
Porém, mesmo que tenhamos cuidado em não traçar correspondências lineares,
notou-se que as referências metapsicológicas fundamentais, de determinadas
escolas ou teóricos, marcam significativamente a prática dos analistas, ou ao menos
seu discurso sobre a clínica durante as entrevistas. Se “a teoria decide o que
podemos observar”, como diz Einstein, é porque, segundo nossa visão, ela se presta
a um elemento de enganche da subjetividade do analista.
Ercília comentou sobre os modos de apropriação da teoria e seus impactos
na técnica para o analista:
152
No início da clínica, as pessoas valorizam menos o que aprenderam
de si mesmos, das análises, valorizam muito o que os outros sabem,
leva um tempo para construir uma convicção do que de fato se pode
usar. Quando começa a discriminar suas projeções das percepções,
o conforto para trabalhar com os sonhos é maior. A teoria é
um modo de ver um fenômeno e os modos de ver mudam. Teoria
é um sintoma apenas quando é a verdade para a pessoa, pode
aprisionar. (grifo nosso).
Mannoni (1982, p. 30) fala que a função de uma teoria analítica é permitir a
transposição do que no sujeito resiste ao trabalho analítico. A teorização serve, em
geral pelo menos no início da formação, para o jovem analista evitar sua própria
análise. Busca-se a teoria de outro na esperança de receber uma resposta ao que,
em sua própria análise, permanece no recalque ou na denegação.
A autora faz um alerta:
A perlaboração da teoria de um outro, pode em alguns casos ter
efeito de verdade e ajudar no progresso do sujeito e sua própria
caminhada analítica. Mas a teoria pode também tornar-se um
simples instrumento de conhecimento, uma espécie de imposição
que dispensa o sujeito de todo remanejamento ao nível do ser.
(MANONNI, 1982, p. 30).
Num momento posterior, “o jovem analista pode chegar a ‘produzir’ uma
teoria própria para não ser tentado em sua clínica a enviar seu paciente a um outro:
o analista que seria detentor da ‘boa teoria’.” (MANONNI, 1982, p. 30).
O paciente sensato seria capaz de perceber
até que ponto não é com seu analista que o trabalho se efetua, mas
com um outro, ante o qual seu analista se apagaria. Não é
impossível levar a um bom termo uma análise nessas condições: na
medida em que, porém, se tiver com o paciente a honestidade de
reconhecer o risco das dificuldades e das transferências’. (Ibid. p.
30).
153
2.3.5 O SONHO ACABOU?
Não pra saber se sonhava-se menos ou não... Como posso distinguir o
que mudou nos pacientes e o que mudou em mim?”, alertou Gabriel.
É importante delimitar o que está em jogo, quando se pergunta sobre
mudanças em relação aos sonhos na clínica. Não se trata de realizar medições
quantitativas, buscar um nexo causal ou fazer comparações entre diferentes
momentos históricos.
Trata-se de um questionamento retórico que não tem resposta, mas que
suscitou muitas perguntas e reações peculiares dos entrevistados. O que nos
interessou foi o modo como eles se relacionaram com o tema, muito mais do que a
perspectiva de constatar se existe de fato um declínio dos sonhos.
Analisando a posteriori o material das entrevistas em relação ao tema deste
tópico, percebemos as manifestações dos entrevistados em vários momentos de
modo análogo às de uma queixa ou sintoma. O possível “declínio dos sonhos”
causou, no mínimo, alguma nostalgia ou indignação em alguns entrevistados e
parecia, justo por isso, ser portador de algo latente, não-dito.
A expressão “crise dos sonhos” proferida por um psicanalista formador de
opinião, como foi o que ocorreu na entrevista que inspirou esta pesquisa, talvez
funcione como um porta voz de um momento da psicanálise, possivelmente correlato
ao final da década de sessenta, quando John Lennon proferiu a famosa frase: “o
sonho acabou”. O sonho a que Lennon se refere é o sonho dos ideais, utopias de
sua geração que foram minados, à medida que a contracultura perdeu sua
radicalidade diante da invasão da cultura de massa. Quando questionamos no
154
campo analítico sobre o fim dos sonhos é preciso perguntar também: o fim de quais
sonhos?
Pensamos que se trata, num primeiro momento, de uma questão dirigida à
clínica, aos sonhos relatados por pacientes. Porém, propomos uma ampliação da
questão: esse possível declínio dos sonhos representaria o fim de determinado
recorte feito dos sonhos pelos psicanalistas, ou alguma mudança no lugar que os
sonhos ocupam na psicanálise ou no tratamento? Por fim, o declínio dos sonhos
poderia ser considerado consequência de uma espécie de desinvestimento libidinal
ou desidealização por parte do analista ou o contrário?
Esse tema também nos fez refletir sobre possíveis impactos da cultura no
sonho e no sonhar. Vimo-nos, porém, diante de uma complexa tensão. Se tomarmos
o sonho como atemporal ou acultural, como um produto isolado da mente,
estaríamos ignorando o sujeito que se constitui num incessante diálogo com a
cultura. Por outro lado, se ficássemos buscando apenas nas mudanças culturais os
possíveis fatores que abalariam os sonhos, estaríamos ignorando os impactos da
relação transferencial, da presença do analista, que não é neutro, e do encontro que
se dá na clínica, momento privilegiado para a emergência do sujeito diante do Outro.
Decretar a morte dos sonhos, portanto, mais do que uma constatação, pode
ser entendido como um ato político que convoca os analistas a um despertar
essencial. Um despertar que os desaloja da repetição em torno do tema, da
banalização, da idealização, da sensação de que tudo foi dito, ou de que algum
pós-freudiano finalmente tapou ou tapará os furos das formulações freudianas.
Decretar a morte dos sonhos, nesse aspecto, é uma possibilidade de mantê-los
vivos.
155
Vejamos, então, o que foi falado sobre o assunto nas entrevistas. A maioria
dos entrevistados relata que os sonhos, de um modo geral, continuam bastante
presentes e relevantes em suas clínicas. Porém, algumas modificações importantes
foram apontadas. Marília, por exemplo, acredita que as mudanças talvez residam no
espaço que o sonho ocupa na vida psíquica, que pode ter mudado.”.
Neste sentido, Miguel comentou que em Freud, por exemplo, podemos ver o
quanto variam a importância e a frequência dos sonhos em seus casos clínicos
publicados: Varia entre os próprios pacientes de Freud [...] não sabemos se as
pessoas hoje sonham de maneira diferente, mas nota-se uma tendência maior das
pessoas se ocuparem menos de sua vida psíquica.
Leonardo afirmou que em sua clínica os sonhos não são mais tão frequentes.
Ele perguntou: “De quem é o sonho que comparece na clínica hoje? Como o
inconsciente se manifesta hoje?
Marcos comentou que em sua clínica não notou modificações e propôs que o
onírico em análise diz respeito à sustentação da transferência. A partir daí ele
também fez um questionamento relevante: uma diminuição do sonho significaria
diminuição da transferência?
Ciro falou de sua experiência: “Na minha clínica realmente diminuiu, dou
supervisão [...] para cerca de setenta pessoas e percebo que de fato os sonhos aparecem
menos nas análises [...] Ele se questionou: Quais são as formas de produção
superdeterminadas que substituem os sonhos hoje?
Dimas fez uma reflexão comparativa:
Vejo o trabalho da análise como um sonho. Mas não vejo diferenças
grandes hoje e cem anos em termos de sonhos. Hoje não usa
mais assim como Freud, deixa o paciente falar e vai interpretando
(minhas interpretações são curtas, não são falas longas). Hoje temos
156
uma clínica diferente, mas isso ser diferente, não é a mesma coisa
que falar que os sonhos são diferentes.
Os recortes feitos por algumas teorias também podem dar a impressão de
que há algum abalo no lugar dos sonhos. Marília ao falar sobre isso, afirmou que:
Na psicanálise contemporânea a função sonhante é importantíssima,
mas não está aprisionada ao sonho noturno [...] não é que o sonho
não é importante, pelo contrário, ele é considerado tão importante
que, através da função sonhante, é estendido à vida de vigília [...]
Não noto uma diminuição, há pacientes que se utilizam mais e outros
menos, varia com o período do tratamento. Até mesmo o sonho de
um toxicômano, por exemplo, não para dizer que não serve, que
ele não associa. O próprio sonho já é uma forma de comunicação.
Lúcia, também deu um contorno à questão a partir de suas referências
teóricas:
A decadência do sonho está junto com a decadência do pai, do
Édipo e da psicanálise [...] A psicanálise está muito difundida no
social [...] Banalização do Édipo [...] Paciente não chega mais
buscando um sentido [...] A psicanálise lacaniana pode acolher isso
porque não esta presa a padrões... sempre existiu pacientes que nos
trazem sonhos... não é estatístico... É uma questão de princípio do
analista, não há um padrão.
Para Rafael, os relatos diminuíram, mas raramente há paciente que nunca
sonhou [...], porém, em pacientes que chegam com sintomas contemporâneos, em
alguns casos, nem aparece.”
Algumas mudanças nos processos analíticos também foram apontadas.
Nesse sentido, Leonardo levantou uma questão bastante relevante: a frequência das
sessões está muitíssimo menor [...] o paciente pega trânsito, chega angustiado, tem poucas
157
sessões, difícil falar de sonho ao invés de falar da dor dele [...] quem esta em formação até
suporta.
Não é comum os analisantes contarem seus sonhos espontaneamente. Está
ficando menos comum, está diminuindo”, falou Miguel. Ele também comentaou sobre
o formato das análises na atualidade:
estão se tornando mais superficiais [...] isso é pejorativo [...]
pacientes vêm menos vezes, reclamam que é longe [...] com pouco
tempo os problemas do cotidiano mais premente, as pessoas falam
muito mais do cotidiano, é um assunto que ocupa um espaço muito
grande.
A questão da formação do analista e da via régia pareceram bastante
carregadas de afetividade durante as entrevistas, porém o estatuto do sonho na
clínica atual e a provocação em relação à sua possível “crise”, foi o tema que mais
provocou questionamentos nos entrevistados. Ao falar desse assunto os analistas
formulavam hipóteses, questões, problematizavam mais do que em qualquer outro.
As contradições e ambiguidades também foram muito presentes.
Vejamos o exemplo de um analista: O sonho, mesmo hoje ainda tem algo
que trás de saída um enigma para o paciente pelo modo que aparece”. Após
algum tempo, o mesmo analista, ainda referindo-se à clínica comentou: uma
banalização do sonho, deixa de ser enigma, com a psicanálise na cultura temos: o
Freud explica.
Caso a sociedade ou os pacientes tentem banalizar o sonho, é importante
que o psicanalista, por sua vez, tente não banalizá-lo.
158
De modo oposto, Cássio disse que apesar da psicanálise estar difundida na
cultura parece que os pacientes ainda se surpreendem quando pedimos para eles
contarem seus sonhos.
A partir de reflexões sobre aspectos históricos da psicanálise e da
psicopatologia, vários entrevistados levantaram suposições para explicar a sensação
de que os sonhos diminuíram na clínica.
Dimas relembrou que as patologias borderline, psicoses, entre outras, só
começaram a ser tratadas por psicanalistas nos anos quarenta e cinquenta (do
século XX). Como nesses pacientes a função onírica está prejudicada, agora que
eles são atendidos na clínica psicanalítica, pode causar a impressão que os sonhos
de um modo geral diminuíram.
Freud trabalhou com uma clínica em que essa máquina maravilhosa de
sonhar funcionava bem, simbolização”, comentou um entrevistado. Para ele, na
atualidade, em algumas situações, como a toxicomania ou transtornos
psicossomáticos, um colapso do sonhar”. Nessa perspectiva, Dimas comentou
que as patologias típicas da contemporaneidade emergem em mecanismos mais
primitivos do que o recalque, um curto-circuito entre pulsão e ação, e entre a
pulsão e a ação temos a representação, o sonho.
Leonardo apontou que a partir dos anos trinta na psicanálise, com Ferenczi e
Winnicott, passou-se a considerar que as subjetividades não se constituem somente
a partir do recalque. Ferenczi percebia que nesses casos a associação livre não
funcionava. “O declínio dos sonhos não seria o declínio da associação-livre na
clínica?”
159
Miguel fez referência ao sonho como “um processo psíquico muito estruturado
[...] talvez sua pouca frequência seja indício da existência de processos psíquicos
menos estruturados, defesas mais porosas.”
Cássio comentou que em sua clínica percebe um aumento na demanda de
tratamento de psicoses ordinárias, borderlines e toxicomanias. Nesses casos
ocorreu o que ele chamou de “sonhos evacuativos, sonhos que são descrições, uma
espécie de continuidade do cotidiano [...] Noto um déficit imaginário e não
simbólico como se tem dito.Para ele, esse déficit repercute em uma dificuldade em
devanear, pôr em imagens. “Com esse tipo de paciente não se usa a técnica
clássica de dividir os sonhos, associar, fazer conexões.
Alguns analistas sublinharam a importância de levar em conta a participação
do analista na abertura para o campo dos sonhos, para sua aparição. Mariana
questionou se a falta de sonhos não estaria relacionada à falta de interesse do
analista.” Para ela, é importante considerar que atualmente os pacientes são menos
tolerantes à abstinência, existe uma demanda maior de informalidade na análise. O
analista deve estar atento a isso para que possa facilitar a fluidez dos processos
transferenciais.
César questionou a relação de alguns analistas com os sonhos:
Sonho é quase sinônimo de inconsciente, não se esgota. Pensar em
um declínio não seria o caso de um analista meio desencantado?
Analista mais experiente pode até ter se cansado da psicanálise,
mas não consigo entender como alguém pode perder a fascinação
com um brinquedo que não se esgota. É preciso poder sonhar a
psicanálise. Na minha opinião os analistas ainda acreditam em
sonhos.
160
Hilda fez um recorte histórico bastante relevante e que dialoga com a questão
da via régia:
Não acho realmente que os analistas deem menos importância aos
sonhos. Talvez deem menos importância à forma de lidar com o
sonho, acaba parecendo menos importância, mas não é [...] Talvez
não deem importância para usar os sonhos como ferramenta para o
conhecimento do funcionamento do inconsciente, ou menos
importância histórica [...] hoje existem muitos atalhos para esse
conhecimento. Analistas pegaram tudo pronto. Por exemplo,
quem estuda Darwin não vai estudar com detalhes as ilhas
Galápagos. Freud estudou o inconsciente numa época que ainda
não existia esse conhecimento. Ele pesquisa a histeria, por
exemplo, mas foram os sonhos que mostraram para Freud o
funcionamento do inconsciente.
Pedro manifestou-se enfaticamente: dizer que um paciente não sonha é uma
nova versão de negação da psicanálise [...] talvez alguns analistas não saibam
onde estão os sonhos! Não temos um sonhoscópio, o fenômeno aparece.(grifo
nosso).
Considerando a entrevista de Pedro como um todo, entendemos aqui, que
quando ele fala de não termos um sonhoscópio”, está se referindo mais a uma
concepção não determinística do sonho do que à carência do tal instrumento de
observar sonhos. Portanto, dizer que o sonho aparecetem a maior relevância para
este trabalho.
Por isso a questão deste item é retórica e não se pretende respondê-la.
Justamente porque a concepção de sonho, que recortamos de algumas entrevistas,
nos mostra que pensar no sonho como algo que é passível de acabar, ou que seria
perene, confere a ele uma substância quase similar a do sonho biológico que existe
independentemente do sujeito. Então, pensar que o sonho aparecenos indica um
convite a se entender o sonho como algo que acontece em um instante privilegiado,
161
evanescente e que depende do olhar do sujeito-observador para existir, depende do
paciente e do analista poderem recortá-lo da realidade psíquica no dispositivo
analítico ou não.
2.4 DA VIA RÉGIA AO SONHO QUÂNTICO
Quando a Traumdeutung foi lançada na época,
foi mais ou menos como se o primeiro livro
sobre teoria atômica fosse publicado
sem nenhuma espécie de ligação
com a física que o precedia.
Lacan (1957/1998, p. 388)
Neste item foram relatadas algumas interlocuções promovidas pelos
entrevistados entre a física e a psicanálise, além de serem trabalhados alguns
comentários sobre a temporalidade ou não do inconsciente e de suas leis.
Apesar do tema não estar situado na esfera clínica propriamente dita, essa
discussão trazida pelos analistas foi incluída porque produz impacto no fazer clínico,
que se dá em permanente diálogo com a cultura e os modos de produção de
conhecimentos vigentes.
Reflexões feitas pelos entrevistados sobre os impactos da globalização,
novas tecnologias e da mídia na subjetividade, bem como a apreensão estética da
psicanálise e dos sonhos, também serão discutidos. No último item se
desenvolvida, em referência aos assuntos citados, uma proposta de metáfora para
pensar o sonho a partir dos relatos de alguns analistas.
162
Mezan (1994) comenta o quanto Freud e Ferenczi eram extremamente
interessados no que se passava no mundo científico de sua época. A psicanálise,
para entender fenômenos próprios da regressão, processos primários, entre outros,
que são sua esfera de experiência, pode servir-se de dados provenientes da
biologia, como de qualquer outra ciência (MEZAN, 1994).
Mezan faz uma divagação sobre o pensamento de Freud:
Todos falam orgulhosamente que Freud descobriu a sinapse nervosa
no Projeto. Ele precisava de um modelo que explicasse a circulação
de idéias nesse aparelho e pensou assim: ‘deve ter alguma coisa
parecida com uma estrada de ferro que abre e fecha seus ramais’.
Depois algum biólogo descobriu que os neurônios se articulam dessa
maneira. Então, uma possibilidade de conceitualizar essa
experiência para conceitualizá-la em imagens. (MEZAN, 1994, p. 63)
Toda experiência pode ser conceitualizada, isto é, categorizada, por meio
de um uso da linguagem necessariamente metafórico. Que essas metáforas tenham
por origem a física, a biologia, a eletricidade etc., o campo de origem não faz a
mínima diferença. Para que uma experiência deixe de ser aquele escuro do
processo primário, ou aquela iluminação clarividente do insight, para que ela possa
ser formulada, necessita de um trabalho de linguagem que por natureza é
essencialmente metafórico (MEZAN, 1994).
Freud utiliza a eletricidade, ou o gramofone, e o aparelho telefônico que eram
novidades em sua época. Por que não utilizar hoje metáforas da informática ou da
pesquisa neurobiológica para formalizar essa experiência? Ao fazer isso, estaríamos
apenas acompanhando o que é mais comum para nós porque nos remetem a outras
experiências de vida que também temos (Ibid.).
163
2.4.1 SONHO, ARTE E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA
Como fenômeno estético, a existência é sempre,
para nós, suportável ainda.
Friedrich Nietzsche
A coisa mais bela que podemos experimentar é o mistério.
Essa é a fonte de toda arte e ciência verdadeiras.
Albert Einstein
O sonho é uma manifestação maravilhosa da mente humana”, disse Ercília
durante a entrevista. Sua fala remete a uma apreensão estética do sonho, recorte
marcadamente presente em alguns relatos.
Freud utiliza-se da arte com frequência para falar dos sonhos, da
metapsicologia e até do trabalho do analista. Inclusive, era muito comum se referir
ao trabalho clínico com os sonhos de “a arte da interpretação”. Ele se vale
frequentemente da experiência estética, da faceta de comunicação ou da
figurabilidade proporcionada pela arte, para falar do processo analítico. Na
Traumdeutung, inclusive, compara o trabalho do sonho ao trabalho artístico. Em
“Moisés de Michelangelo” (FREUD, 1914/1996z), declara que a finalidade do artista
é despertar no outro a mesma constelação mental que nele gerou o ímpeto de criar.
Os paralelos e interpenetrações entre psicanálise e arte são incontáveis em
Freud e na cultura; e especificamente com os sonhos, tais relações são bastante
férteis. Aproximações entre os sonhos e cinema, música, teatro, literatura, artes
plásticas, entre outros, o abundantes. Historicamente, destaca-se o lugar
privilegiado dos sonhos no movimento surrealista.
Vários entrevistados fizeram referências às artes para falar da psicanálise de
modo geral e também da clínica. Por meio dos relatos dos entrevistados, estiveram
164
conosco nas entrevistas: Fernando Pessoa, Cazuza, Jorge Luiz Borges, Garrincha,
Sheakspeare, Bergman, Artaud, John Lenonn, Picasso, Chico Buarque, Caetano
Veloso, Orson Wells, Proust, Mahler e até a Xuxa!
Relembramos “O carteiro e o poeta”, “Vinte mil léguas submarinas”, “Dom
Quixote”, “A Branca de Neve”, a Bíblia, a revolução russa, o movimento hippie, o
movimento tropicalista e a ditadura.
Em alguns momentos privilegiados, bem à maneira do que Pontalis chamou
de “força de atração”, éramos conduzidos a “fluxos de imagens” por meio de sonhos
relatados (PONTALIS, 1991, p. 35). Visitamos museus, viajamos de trem, de
Concorde, saltamos do alto de um prédio, falamos com mortos... Fiquei junto com
um paciente da Mariana, sozinha, num lugar assustador que tinha apenas uma
luzinha acesa... e a luz apagou.
Fomos a Paris, ao sertão nordestino, campos de concentração, visitamos
muitas casas grandes com cara de infância, viajamos de navio, navegamos na
Internet, conversamos com adolescentes paleolíticos, com índios, trabalhamos em
Brasília, jogamos vôlei, fomos mutilados, assistimos Big Brother, nascemos de novo
e jogamos xadrez.
Marília comentou, fazendo referência a Bion, que manifestações como sonho
e arte, são elementos simbólicos passíveis de construir uma ponte com aspectos
mais conscientes, são maneiras de se tomar contato com esses aspectos mais
brutos.
César fez uma afirmação mais radical: Psicanálise não é uma ciência é
uma arte. Nossa visão de sonho atualmente deixa de ser uma visão científica e
passa a ser uma visão estética e emocional.”
165
Relembremos a fala de Mario Ruppuolo, personagem do filme “O Carteiro e o
Poeta”, resgatada por Tereza: “A poesia não pertence a quem escreve, mas a quem
precisa dela.Neste sentido, podemos pensar como o sonho, assim como a obra de
arte ou a poesia, podem tocar analista e paciente como uma experiência estética da
qual eles podem partir para produzirem significações, representações.
Freud em “Moisés de Michelangelo” (1914/1996z) comenta sobre a força de
atração da obra de arte. Essa força residiria no convite que a obra faz à tentativa de
compreensão da intenção do artista expressa em sua obra. Não diz respeito a uma
compreensão intelectual; o que o artista visa é “despertar em nós a mesma atitude
emocional, a mesma constelação mental que nele produziu o ímpeto de criar.” (p.
217).
Neste sentido, “a experiência psicanalítica tem uma afinidade com a
experiência estética e poética: é um tornar-se outro, perder-se no outro e
reencontrar-se consigo mesma.” (ROSENFELD apud MEZAN, 1999, p. 11).
Safra (1999) comenta que para além da relação do homem com a beleza, a
estética refere-se a uma noção de percepção, apreensão do mundo com os
sentidos. A relação com os objetos, com o espaço, com o tempo e com o outro, é de
natureza predominantemente estética, não são relações com significados. Antes de
decodificar o significado de algo, apalpamos esse algo com a corporeidade do corpo
imaginativo (Ibid., p. 80).
O autor propõe uma vivência estética dos sonhos. Para ele, quando Freud
propõe o trabalho do sonho e a deformação onírica, a criação de um paradigma
que imperou na psicanálise por muitos anos. Nesse paradigma, a interpretação do
analista como caminho inverso, a fim de revelar o desejo reprimido, sonho e
sintoma, são textos a serem decifrados.
166
Tudo já está no sonho. Não necessidade de interpretá-lo para além do que
ele apresenta. Se vemos um sonho como um texto, podemos de fato encontrar
nele o desejo. Se o abordamos pela perspectiva das relações objetais,
encontraremos as vicissitudes das relações com o outro, no interjogo do amor e do
ódio. Mas se o investigarmos como uma organização estética, poderemos encontrar
nele os enigmas da existência do indivíduo – há uma dimensão existencial no sonho.
(SAFRA, 1999).
Safra comenta sobre fenômenos que se passam no mundo contemporâneo,
os quais ele denomina de desenraizamento do ser humano, fenômeno que está
ligado às consequências da globalização:
O homem altera a natureza das coisas através da tecnologia. Sua
relação com o espaço, com a terra, com o tempo sofreu alterações
profundas. O homem está isolado do mundo atual por artefatos
tecnológicos, não mais observa o ciclo da vida. As famílias, por
exemplo, cerca de trinta anos atrás eram mais extensas, uma
pessoa tinha possibilidade de se relacionar com pessoas da família,
consciência do fluir das gerações. Hoje há um isolamento e a perda
de contato com as origens e ancestrais. (SAFRA, 1999, p.78, grifo
nosso).
Vemos no texto de Safra (1999) como a questão da temporalidade se
encontra nas artes. Ele ressalta a impressionante transformação que aconteceu nos
filmes produzidos pelos estúdios da Disney.
Nos primeiros desenhos em longa metragem era possível encontrar
o tempo da narrativa, que é um tempo cíclico, da fala humana em
que as coisas nascem, acontecem e morrem. Os desenhos atuais
não têm mais o tempo da narrativa, mas do vídeo-clip. As imagens
projetam-se na tela rapidamente, a narrativa se perde e uma
apresentação de estímulos complexos em que a própria medida da
167
temporalidade humana se fragmenta. (SAFRA, 1999, p.79, grifo
nosso).
Sabemos que alguns pacientes ou alguns analistas cometem ocasionalmente
um ato falho: trocar a palavra sonho por filme. Ou, às vezes, alguns pacientes
referem-se a fragmentos de seus sonhos como “cenas”. A este respeito temos a fala
de Leonardo, o qual citou o dizer de Deleuze em “Mil Platôs”: O cinema é o divã do
pobre”, e fez algumas reflexões sobre os impactos do cinema na subjetividade e até
no processo analítico: Não tinha cinema na época de Freud, será que hoje os
pacientes trazem mais sonhos ou filmes para a análise?
“As pessoas nos dias de hoje chegam nos consultórios porque precisam
restabelecer o sentido da temporalidade e/ou sentido espacial [...]. O acontecimento
humano demanda presença de outros, de tempo, de espaço.” (SAFRA, 1999. p. 79).
A questão da temporalidade, levantada por Safra, talvez seja um elemento
crucial para caracterizar o que Kehl (2004) chama de ‘violência do imaginário’. A
violência do imaginário seria essa violência produzida por uma sociedade que é
organizada prioritariamente pela imagem em excesso e alta velocidade (Ibid.).
Em tal contexto, a ausência da polissemia da imagem, ao menos naquela
usada publicitariamente: ela o tem nenhuma abertura de sentido, diferente do
que acontece com a arte, ela tem um sentido muito imperativo. A imagem traduz a
coisa como se fosse a expressão da sua verdade (Ibid.). Em relação a essa
ausência de polissemia, acrescentamos que, mais do que ao declínio do sonho, ela
remete a um abalo no onírico.
Ercília comentou a imagem e a dimensão alucinatória do desejo:
168
O homem é um ser sempre em conflito, e os conflitos se expressam
sempre nos sonhos, o que a cultura exige dele, impõem para ele,
pode talvez não ser mais tanto a sexualidade, mas a questão
narcísica, ter o poder, por exemplo. Se pensarmos a premência da
alucinação estimulada pelos meios de comunicação, a força das
imagens (auto-imagem, narcisismo exacerbado), o sujeito segue
alucinando mais e mais, mas não atende suas necessidades reais,
estas seriam atendidas pela realidade [...] é um movimento
constante de insatisfação. (grifo nosso).
A partir de Ercília, retomamos Freud, em “Suplemento metapsicológico à teoria
dos sonhos”, para falar do caminho regressivo à alucinação, do rompimento com o
mundo externo e da entrega profunda a um estado de narcisismo:
No estado de sono não deseja conhecer coisa alguma do mundo
externo; não se interessa pela realidade [...] retira-se a catexia do
sistema CS., [...] Com o sistema Cs. assim não-catexizado, a
possibilidade do teste da realidade é abandonada, e as
excitações que [...] entraram no caminho da regressão [...] valerão
como realidade indiscutida. (FREUD, 1917, p. 140, grifo nosso).
Como vimos nesse item, o empobrecimento da dimensão estética do sujeito,
e a prevalência da satisfação alucinatória estimulada pelos meios de comunicação,
segundo Ercília e Kehl (2004), apontam para a importância de pensarmos a questão
do narcisismo e da satisfação alucinatória do desejo na atualidade.
Talvez o “tornar-se outro, perder-se no outro e reencontrar-se consigo
mesmo”, proposto por Rosenfeld (apud MEZAN 1999, p. 11), que caracteriza a
experiência artística, analítica e poética, tenha, nesse quadro apontado por Kehl
(2004), seu ciclo corrompido: tornar-se outro, perder-se em si mesmo e
desencontrar-se de si e do outro.
Sonho e narcisismo, também dizem respeito à tensão entre o sujeito e cultura.
Segundo Pontalis (2005), “quando o tecido capilar entre o interior e o exterior pára
169
de ser permeável, o homem fica mutilado: à escassez de sonho corresponde à
escassez de realidade.” (Ibid., p. 69).
2.4.2 SONHOS, MÍDIA E CONSUMO
Meu partido/É um coração partido/
E as ilusões/Estão todas perdidas/
Os meus sonhos/Foram todos vendidos/
Tão barato/Que eu nem acredito/
[...]
Ideologia!/Eu quero uma prá viver/
O meu prazer/Agora é risco de vida/
Meu sex and drugs/Não tem nenhum rock 'n' roll/
Eu vou pagar/A conta do analista/
Prá nunca mais/Ter que saber/
Quem eu sou.
Cazuza (Ideolgogia)
Ciro comentou que a cultura força os sonhos, produz ideários do eu. Eu vejo
hoje, por exemplo, Doras sonhando em frente à TV vendo big brother.Seriam, por
exemplo, os reality shows”, literalmente, shows de realidade, novos modelos de
sonhos para alguns sujeitos?
Miguel fez referência a algumas questões da atualidade para falar de certas
mudanças nas demandas de análise. Para ele, o sujeito se transformou num
consumidor [...] a busca do sujeito migrou de um ideal de felicidade para o sonho
de consumo.” (grifo nosso).
Em seu ponto de vista, a publicidade faz parte dos mecanismos que moldam
desejos, e aspirações, e o consumo em direção a uma promessa de felicidade. Ele
170
explicou que na atualidade percebe os sintomas na clínica como mais fluídos e que
nota, muitas vezes, uma busca de uma felicidade difusa e padronizada.
Vejo as pessoas preocupadas com uma espécie de ideal de
felicidade que parece distante. Neste aspecto, parece que a
realidade cotidiana tem um peso na vida psíquica muito grande e
as pessoas [confrontos, decepções, realizações]... Pessoas se
preocupam porque se sentem confusas, infelizes, mais do que
sintomas clássicos como um homem dos ratos. (grifo nosso).
Fernando vai além, quando fala do imediatismo e da
exigência e consumo da felicidade [a exemplo das drogas da
felicidade, o Viagra, xenical, entre outros], nota-se um movimento de
algumas pessoas em busca de um conhecimento sedutor, narcísico,
no sentido de revelação de algo sobre si mesmas. Uma busca de se
definir e se revelar a partir de algo que é dado, diante de uma
autoajuda, por exemplo, horóscopo ou informações na internet onde
buscam “se conhecer melhor. (grifo nosso).
Para alguns dos analistas entrevistados, essa busca tem passado cada vez
menos pelo campo dos sonhos. O que acontece, segundo Rafael, é uma mudança
na relação do sujeito com o tempo, as pessoas dizem que não têm tempo, falam
menos dos sonhos, dão menos importância.Algumas questões da atualidade o
citadas a esse respeito:
Diante da quebra da autoridade paterna, globalização, volume
absurdo de informações e velocidade, diminui a importância dos
sonhos [...] o sujeito não tem que se preocupar com esse
conhecimento [...] tem outras informações mais prontas e rápidas a
seu alcance e outras preocupações aparentemente mais urgentes
[...] por exemplo, acorda com pressa para ir pro trabalho [...] não se
ocupa do que sonha, é trabalhoso.
171
Freud (1908/1996aa), em “Moral Sexual Civilizada e Doença Nervosa Moderna”,
descreve o seguinte quadro:
[...] em todas as classes aumentam as necessidades individuais e a
ânsia de prazeres materiais; um luxo sem precedentes atingiu
camadas da população a que até então era totalmente estranho; a
irreligiosidade, o descontentamento e a cobiça intensificam-se em
amplas esferas sociais. O incremento das comunicações resultante
da rede telegráfica e telefônica que envolve o mundo alteraram
completamente as condições do comércio. Tudo é pressa e
agitação. A noite é aproveitada para viajar, o dia para os negócios, e
até mesmo as ‘viagens de recreio’ colocam em tensão o sistema
nervoso. As crises políticas, industriais e financeiras atingem
círculos muito mais amplos do que anteriormente. A vida urbana
torna-se cada vez mais sofisticada e intranqüila. Os nervos
exaustos buscam refúgio em maiores estímulos e em prazeres
intensos, caindo em ainda maior exaustão. (FREUD,
1908/1996aa, p. 170-171, grifo nosso).
Devemos tomar cuidado com o discurso a respeito do peso do cotidiano e das
questões contemporâneas. Cada época possui suas vicissitudes e particularidades
da subjetividade para suportá-las (ou não). Se hoje nos debruçamos sobre os
impactos da mídia ou da Internet sobre o sujeito, por exemplo, imaginemos os
impactos que o telefone, o telégrafo ou até o cinema causaram à época de sua
invenção! Assim o foco se desloca para como o sujeito se relaciona com esse peso
do cotidiano, com a contemporaneidade e até que ponto ele interfere na análise.
Edgar ressaltou que nos anos setenta a cultura tinha estatuto de ideal, nela se
dava a construção da alteridade, a promessa de liberdade, a busca de um ideal
romântico. Era uma concepção mais transcendente do que na atualidade segundo
ele. Com o fim das ditaduras buscar esse ideal ficou complicado, hoje existem
formas de dominação mais sutis do sujeito, principalmente com as novas
172
tecnologias”. Vê-se muito presente o ideal romântico do sujeito na frase recorrente
no consultório: Quero me conhecer melhor.
Miguel fala de uma desparametrização:
uma gelatinização das instituições, declínio das grandes utopias,
lenta decadência dos imperialismos, junto com a ONU, trouxe para a
cena política solapamento da autoridade, revolução na relação com a
autoridade e das imagens que legitimavam essa desigualdade, a
classe média está desparametrada.
Marília sustentou que a função do analista é poder facilitar contatos com os
processos inconscientes do sujeito na interação com a cultura. Alguns analistas
abordaram essa questão, muitas vezes, como algo para além do seu alcance.
Diante de tal perspectiva, resgatamos aqui a posição do analista como
estrangeiro. O estrangeiro é proposto por Koltai (2000) como “algo que se situa na
fronteira do subjetivo singular com o social, como limite entre o individual de um lado
e o social e político do outro.” (p. 125). Lugar fronteiriço de mal-estar onde é gerado
o sujeito, consequência da submissão da ordem biológica à ordem simbólica,
portanto ao social enquanto tal.
Alertamos para os perigos de responsabilizarmos a “cultura”, os modos de
vida ou a contemporaneidade pelo possível declínio do sonho. Apesar de ser
importante fazer esse cotejamento com a cultura, ele pode levar a uma exclusão do
analista na produção do sonho na clínica, no encontro, na transferência; desde
Freud já sabemos o quanto o sonho parte também do analista.
173
2.4.3 SONHO QUÂNTICO
Quanta do latim/Plural de quantum/
Quando quase não há/Quantidade que se medir/
Qualidade que se expressar/Fragmento infinitésimo/
Quase que apenas mental/
[...]
Qualquer coisa quase ideal/
Sei que a arte é irmã da ciência/
Ambas filhas de um Deus fugaz/
Que faz num momento/
E no mesmo momento desfaz/
Gilberto Gil (Quanta)
Para Sílvio, o inconsciente se manifesta de acordo com a experiência do
sujeito, e a interpretação dos sonhos varia com a cultura e com a mentalidade de
uma época:
Desde a antiguidade se interpretava sonhos e depois, quando o
cristianismo dominava a Europa, a maneira de interpretar os sonhos
era conduzida segundo a visão binária do mundo, dividida entre bem
e mal. [...] Hoje, porém, podemos escutar a clínica a partir de
elementos mais complexos, numa dimensão quântica.
Nesta mesma direção, Leonardo apontou que houve uma transformação
relevante na atualidade em relação à clínica. Afirmou ainda que não se toma mais
como referência o paradigma do inconsciente como baú, como algo a ser
conhecido.(grifo nosso). Essa metáfora alude a alguns paradigmas científicos do
século XIX:
O pleno funcionamento do princípio da razão suficiente ou da
causalidade e do determinismo universal exige que seja mantida a
idéia de substância, isto é, de uma realidade que permaneça
174
idêntica a si mesma, seja causa de alguma coisa e efeito de alguma
outra. Essa realidade pode ser uma matéria, uma energia, uma
massa, um volume, mas tem que ser alguma coisa com
propriedades determináveis, constantes e que possam ser
conhecidas. Deve ser uma quantidade constante e/ou uma forma
constante. Ora, a microfísica ou física quântica veio mostrar que não
há nem uma coisa nem outra. (CHAUÍ, 1997, p. 265, grifo nosso).
As quebras de paradigmas ocorridas na física a partir do advento da física
quântica, bem como a criação da psicanálise, são exemplos de acontecimentos do
século XX que encetam um cenário de movimentos de ruptura com o
estabelecimento de verdades e realidades perenes e imutáveis.
Os objetos quânticos possuem propriedades que desalojam as condições
fundamentais da ciência clássica. Sobre as consequências disso, Chauí (1997)
questiona: “se quantidade e forma perdem a constância, a regularidade e a
freqüência, como continuar falando de causa e efeitos?” (p. 265).
Vejamos, portanto, o que acontece com o “baú” do século XIX após essas
mudanças nas palavras de César:
Estamos numa época de incertezas, vamos abandonando as
certezas iluministas, positivistas do século passado e vivendo com
a dúvida. Porém, jamais a ciência poderá ter o controle do
sonho. [...] O inconsciente pode funcionar com um número maior de
dimensões e talvez nossa percepção do sonho, já seja uma redução
desse algo multidimensional. A partir da física quântica vivemos
algumas mudanças de paradigmas, mudanças nos modos de
pensar a si e o mundo. Por exemplo, uma partícula pode ser
partícula e onda ao mesmo tempo. (grifo nosso).
Ciro comentou sobre os impactos dessas transformações em seu modo de
pensar a proposição freudiana de via régia:
175
Essa história de via régia, de estrada, dá impressão que se vai de
um lugar a outro... Não gosto de pensar assim, não é tão linear.
Sabemos atualmente, por exemplo, que um feixe de luz, ao incidir
numa partícula, faz com que ela possa estar em dois lugares ao
mesmo tempo, como pensar em estrada? (grifo nosso).
As características dos objetos quânticos talvez possam servir de metáforas
para pensarmos a psicanálise. Lembremos o quanto a contradição, a
atemporalidade e a relativização da realidade são qualidades do funcionamento
inconsciente, como proposto por Freud. Nesse novo modo de conceber o
conhecimento e o encontro com o real, os processos ganham mais relevo e os
objetos perdem a substancialidade:
No universo quântico, onde nunca se pode dizer que a matéria existe
mas que ela apresenta uma "tendência a existir" e que os eventos
possuem uma "tendência a ocorrer", o conceito de "realidade da
matéria", tão caro à visão mecanicista foi destruído de uma vez por
todas: a ordem se apóia no caos. Para a física quântica, a matéria
não é senão energia confinada em uma forma. (CECCARELLI,
2009).
Ercília, mesmo sem mencionar os fenômenos quânticos, comentou sobre os
sonhos como algo evanescente, que podem se configurar na dimensão do instante:
É como algo que existe no ar e pega! Como o uso das palavras,
quando um sujeito pode nomear uma experiência [...] Por mais que
se mapeie nas neurociências o psiquismo, o indivíduo atribui
significados às experiências. Esses significados dependem da
experiência do indivíduo [...] os sonhos, um dos veículos de
expressão desses significados são os sonhos [...]. (grifo nosso).
César fez um desenvolvimento análogo ao de Ercília. Ele também falou dos
sonhos e acrescentou comentários sobre a posição do analista:
176
[...] O sonho, na atualidade muda e não muda [...] No sonho o
substrato emocional é onda que se particulariza enquanto
falamos e de repente se transforma em um acontecimento, é o que
chamamos do colapsar
45
em física. Não existe o
observador/analista imparcial, não se toma o sonho como objeto,
há uma imersão nos sonhos [...] Muda-se da lógica do ‘ou, ou’ para a
do “tanto, quanto” e isso tem impactos na subjetividade, no
pensamento, não sabemos ainda como isso vai acontecer [...]
quando será que essas descobertas chegam ao homem comum?
(grifo nosso).
Aceitamos agora o convite de Mezan, citado no início do capítulo, referente à
utilização de metáforas para “acompanhar o que é mais falante para nós”, e
propomos a ideia de sonho quântico para pensar o sonho na clínica a partir de
reflexões trazidas por alguns analistas entrevistados.
Retomamos uma fala mencionada de Pedro: “Não temos um sonhoscópio,
o fenômeno aparece.(grifo nosso). Usar uma metáfora que aproxima o sonho de
um fenômeno quântico tem relação com a concepção do sonho como um fenômeno
que se dá, não deterministicamente, num instante privilegiado, tal qual o fenômeno
do colapso citado, e que depende e sofre influências da presença do analista. Para
existir o sonho, como já mencionamos, é necessário que paciente e analista possam
recortá-lo da realidade psíquica no dispositivo analítico.
Nesse tópico e ao longo do trabalho, encontramos ditos dos analistas ou de
Freud que ilustram essa metáfora. Vejamos alguns: Não existe o
observador/analista imparcial, não se toma o sonho como objeto, uma imersão
nos sonhos” (César), “É como algo que existe no ar e pega!” (Ercília), “Não temos
45
O fenômeno do colapso em física diz respeito à influência do observador. Os objetos quânticos podem se
comportar como onda ou partícula, mas se propagam como onda. A presença do observador para realizar a
medição do fenômeno destrói a interferência quântica, causando o chamado “colapso da função de onda”.
Assim, o efeito de observar o estado do sistema faz com que esse estado seja alterado (CEDERJ, 2009).
177
um sonhoscópio, o fenômeno aparece” (Pedro), “Analista está incluído no sonho”
(César).
Marcamos que não estamos nos propondo a realizar qualquer tipo de
“atualização” das metáforas científicas da época de Freud, como se elas fossem
ultrapassadas, pois para seu propósito original elas nunca o serão.
O caminho que traçamos da via régia ao sonho quântico não pretende ser
uma recriação histórica da clínica psicanalítica, nem uma correspondência ponto a
ponto entre as metáforas científicas e a prática clínica. Sabemos que esses
caminhos não são contínuos. Assim como na física os paradigmas convivem sem se
excluírem, vimos em Freud e nos entrevistados, como os recortes dos sonhos e da
clínica se alternam entre deterministas ou “quânticos”, ou passam por outros modos
de apreensão.
Buscou-se nesse item pensar em referências, em ensaios reflexivos por meio
de material trazido pelos entrevistados. Tais reflexões buscaram propor alternativas
de linguagem que contribuam para resguardar os sonhos de serem captados por
redes de significados reducionistas ou universalistas.
178
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ver a verdade seria diferente de inventar a verdade?
Clarice Lispector
Sonhos são como deuses:
quando não se acredita neles,
eles deixam de existir.
Antônio Cícero Compositor
[...] Acaso algum dia se conta outra coisa
senão sua própria história?
Granoff
46
Freud (1923/1996c) faz uma advertência aos analistas: “Penso ser, em geral,
um bom plano manter de tempos em tempos em mente o fato de que as pessoas
possuem o hábito de sonhar antes que existisse uma coisa chamada psicanálise.”
(p. 132, grifo nosso).
Veremos nessas considerações finais o quanto suas palavras são alinhadas
ao caminho que trilhamos.
Em nosso percurso reafirmamos a grande importância que os sonhos têm
para Freud e para a maioria dos analistas entrevistados. Porém, ao mesmo tempo,
apontamos para os não-ditos e interditos que povoam o campo dos sonhos.
Conforme vimos com Freud e os entrevistados, além dos autores com quem
mantivemos uma interlocução mais próxima, o sonho é um objeto libidinalmente
investido pelo analista. Tal como “objeto”, é a relação com ele que decide seus
efeitos. Recortamos duas dimensões desses efeitos: de ilusão e de despertar,
46
Granoff apud Kupermann (1996, p. 216).
179
ambas versões do que Pontalis (1991) chamou de “força de atração” dos sonhos.
Existe, portanto, uma tensão, uma polarização da força de atração dos
sonhos. De um lado uma atração à decifração alienante, de outro uma dimensão
de abertura para o desconhecido, para o devir e para o não-saber. Esta tensão é
estrutural e bem vinda, porém delicada. Ela persistirá nos analistas porque é a
própria tensão que constitui o sujeito. Decifra-me ou devoro-te, a bolsa ou a vida, o
sonho resposta ou o sonho pergunta, eis a questão!
Se o sonho comporta essa força de atração que pode deixar o analista
suspenso, numa delicada tensão entre a alienação e a separação, devemos ficar
ainda mais atentos ao peculiar lugar que ele ocupa na psicanálise, histórica e
institucionalmente. Lugar que intensifica essa tensão.
Acompanhamos com os entrevistados e com os autores lidos que, além da
força de atração dos sonhos, existe no campo analítico a força de atração de Freud.
Buscamos em nosso percurso, portanto, sublinhar o cuidado que o analista deve ter
com essa dupla força de atração, presente na história e nas particularidades da
institucionalização da psicanálise, que se presentifica no(s) sonho(s) de Freud em
seu sentido literal e figurado.
Uma das variações dessa força de atração é a força de repulsão que pode
levar aos mesmos perigos alienantes mencionados. É nesse campo de forças, que
se situam os principais não-ditos sobre os sonhos, segundo o recorte dessa
pesquisa.
Esses não-ditos passam pela questão da possível relação ambivalente dos
analistas com os sonhos e com o pai dos sonhos, que se expressa principalmente
em dois modos de se posicionar diante deles: pela via da idealização e a da
180
banalização, das quais a força de atração e repulsão podem ser consideradas
correlatas.
Nesse mesmo campo de “forças” encontramos os interditos. Os interditos
sobre os sonhos que pudemos recortar passam pelas questões transferenciais e
institucionais.
Vimos com Kupermann (1996) que na Traumdeutung é formulado um convite
à transferência a partir do qual forma-se, em torno de Freud, o grupo que daria início
ao movimento psicanalítico. Sua obra e seus sonhos ocupam lugar primordial e
fundante na transmissão da experiência psicanalítica e em sua institucionalização.
Questionamos ao longo do trabalho, até que ponto, a partir das peculiaridades
da história da institucionalização da psicanálise, e do lugar conferido aos sonhos e a
Freud, não estaríamos diante da institucionalização do sonho, submetidos às regras
e interditos da instituição e, em última instância, do pai.
Acreditamos que uma das possíveis implicações desses interditos, seria a
transformação dos sonhos numa espécie de tabu. O tabu, enquanto sintoma da
ambivalência, enquanto produto do acordo entre os dois impulsos conflitantes,
coloca os sonhos num lugar intocável. Nesse caso, os sonhos correriam o risco de
sofrer uma redução a um objeto exclusivo da psicanálise, impenetrável, regido por
suas proposições teóricas e regras institucionais.
Nessa ocasional redução pode haver um apagamento de algumas das
qualidades mais poderosas dos sonhos: sua dimensão inapreensível, desconhecida,
e, enfim, o que causa estranheza e descentramento. Isso reduziria a potência dos
sonhos de gerar significações não previstas, não na clínica, mas também na
metapsicologia, além de institucionalizar, inclusive, a resistência.
181
Trabalhar nessa via do não-previsto, do não-sabido, é uma das forças vitais e
condições da psicanálise em termos de seu potencial de questionamento de si, da
cultura, do sujeito. Sem isso, como diz Japiassu (1996), a psicanálise corre o risco
de se fechar num discurso autossuficiente e perder sua radicalidade. Portanto,
qualquer tipo de apropriação do sonho, como objeto exclusivo ou inerente à própria
psicanálise, extingue o sonho como tal.
A proposição de Freud sobre a via régia é um exemplo paradigmático dos
não-ditos e interditos mencionados. Quando a via régia é sacralizada e deixa de ser
polissêmica, torna-se uma mera repetição que em nada se parece com as propostas
da psicanálise.
Na formação do analista esse assunto também tem relevância. É importante
que, para além de analisar seus sonhos, como propõe Freud, o analista se debruce
na análise da sua relação com os sonhos e com o que é considerado fundante ou
quase “sagrado” na teoria freudiana, o próprio Freud. Trata-se de um processo de
desidealização.
Em relação à clínica, foi marcante a intensidade em que os sonhos, a
presença de Freud e a Traumdeutung se apresentaram como “referência
compartilhada”
47
entre os entrevistados. Retomemos uma fala de Marcos: o
freudismo é o que nos une.Ideia compartilhada por muitos analistas pelo mundo
afora.
Notamos grande similaridade, ao menos nos relatos, entre a prática clínica
dos analistas com os sonhos e as propostas de Freud. Durante a escrita do trabalho,
por diversas vezes, ao transcrever relatos de analistas sobre o manejo clínico com
os sonhos, tínhamos a impressão que se tratava de um texto de Freud.
47
Expressão de Mezan (2002a) que utilizamos na introdução do trabalho.
182
O que nos chamou a atenção é que eles parecem não se dar conta disso: um
fato que merece ser mencionado foi a maneira pela qual alguns analistas atribuíram
a s-freudianos a autoria de proposições teóricas ou técnicas que nos parecem
nitidamente freudianas. No entanto, como mencionamos, não sabemos realmente
como Freud trabalhava e fazer essa comparação tem, portanto, seus riscos.
Lançamos, porém, esses comentários como hipóteses que poderiam ser trabalhadas
em pesquisa futura.
Ao longo das entrevistas e das pesquisas sobre a história do movimento
psicanalítico, percebemos que as oscilações diante dos sonhos não são
exclusividade da contemporaneidade. Desde a descoberta da psicanálise existiram
movimentos de questionamento, idealização e negação da psicanálise, e também
dos sonhos. Lembremos, por exemplo, o comentário de Pedro sobre uma campanha
velada “antissonhos”, que ocorreu nos anos oitenta (do século XX), em uma
instituição analítica.
Analisamos em detalhes e explicitamos, por meio das falas dos analistas,
vários fatores que podem implicar em uma impressão de declínio dos sonhos.
Aspectos históricos, culturais, econômicos, sociais e da psicopatologia foram
mencionados, porém o que mais nos marcou para pensar em alguma hipótese sobre
o assunto foi a questão transferencial.
Em primeiro lugar, marcamos o quanto fica evidente, em Freud e nas
entrevistas, que o trabalho com os sonhos na clínica reside na relação transferencial.
Dessa forma, qualquer oscilação no estatuto dos sonhos na clínica carrega, logo
de partida, uma grande responsabilidade por parte do analista. Poucos analistas
vincularam o possível declínio dos sonhos a essa questão. Talvez resida outro
não-dito, assunto que poderá ser explorado em pesquisas futuras.
183
Notamos um discurso recorrente sobre falhas na função onírica e certo
recorte nostálgico de que à época de Freud essa função estava mais preservada.
Que consequências isso pode ter para a clínica? Se considerarmos que as falhas
nessa função decorrem ou são decorrentes de vicissitudes da atualidade, e se
pensarmos que este é um assunto “em voga” no momento, não estaríamos, de novo,
diante de um cenário como o que nos apontou Pedro na década de oitenta (século
XX)? Ao invés de uma “campanha antissonhos”, estaríamos diante de um discurso
que privilegia possíveis vicissitudes da atualidade?
Não sabemos se o sonho existe [...] ninguém sabe como é, nem a
psicanálise, nem as neurociências [...] chamamos determinadas coisas que
acontecem de sonhos, mas existe algo misterioso [...] não sabemos direito nem o
que é o cérebro! Boa parte dele é apenas água...
Essa fala de Pedro foi crucial para este trabalho. Ele foi um dos poucos
analistas que ressaltou o radical desconhecimento a que nos remete o sonho, um
desconhecimento para além das proposições psicanalíticas sobre os sonhos, como
mencionamos. Apontar os sonhos como produções psíquicas que comportam um
não saber sobre o desejo ou sobre o sujeito, é dar um contorno a eles. Pode
apagar uma dimensão importante resgatada várias vezes neste trabalho: não
sabemos realmente o que são os sonhos.
Ao apresentar o sonho como uma produção humana, sem necessariamente
correspondê-la ao logos psicanalítico, o não-saber que ele engendra é radicalizado.
Certamente não se trata de ignorar o conhecimento que a psicanálise produziu
sobre os sonhos, e tomá-los apenas como fenômenos, mas fica aqui um alerta para
que esse conhecimento possa ser mais “flutuante” na prática analítica.
184
Neste sentido, percebemos em alguns entrevistados uma tendência
interessante em dessubstancializar o sonho. Para eles, parece que é nesse não-
saber do sonho, no seu aparente vazio, que se presta a receber um infindável fluxo
de significações do sujeito e da cultura, que reside sua importância. Não um
único sentido para as palavras de Freud, para uma obra de arte, para os sonhos ou
qualquer produção humana. O sonho é o que você faz dele”, como nos disse uma
entrevistada
O que se faz de um sonho está intimamente ligado ao desejo do sujeito, a
uma época, aos discursos dessa época, aos recortes metapsicológicos, referências
epistemológicas, entre outras. Talvez o sentido dos sonhos não seja, exatamente,
que ele tenha um sentido! Mas que o ser humano precisa significar e fazer sentido
de suas experiências, inclusive e por meio do sonho. Este seria o ponto de
partida de qualquer associação-livre.
Para finalizar nosso trabalho, aceitamos o convite de Freud para termos em
mente que o sonho não é uma criação da psicanálise, ele é anterior a ela. Pensar o
sonho a partir de outras áreas do conhecimento, circular por elas e se deixar
interpelar, realmente por elas, pode ser uma tarefa interessante para arejar os
“sonhos psicanalíticos”.
É notável como em muitas publicações de diversas áreas, como antropologia,
sociologia, neurociências, biologia, artes plásticas e até religião, mantêm um diálogo
com Freud, nem que seja para discordar de suas propostas. Para exemplificar,
comentamos sobre uma publicação que nos deixou perplexos.
Allan Hobson (2005) um dos primeiros neurocientistas a estudar o sono
REM, professor de Harvard, publicou recentemente um livro sobre sonhos a partir de
seus referenciais médicos. O livro se chama “Treze sonhos que Freud nunca teve”.
185
Hobson (2005), um ferrenho crítico de Freud, dedicou várias páginas no início e no
final de seu livro simulando uma espécie de carta que Freud escreveria a respeito
dos sonhos, à luz das ciências contemporâneas, se redimindo de seus equívocos.
Esse é apenas um exemplo mais radical desta interlocução às vezes quase real
em alguns pesquisadores da atualidade.
48
Além das publicações analíticas, estudamos várias pesquisas sociológicas,
médicas, antropológicas e até literárias sobre os sonhos, mas que optamos por não
abordar diretamente no trabalho, pois foge ao nosso objetivo. Nessas incursões, às
vezes tivemos a impressão que muitas dessas pesquisas, que pouco dialogam entre
si, parecem chegar num território comum a todas: não existe uma verdade sobre os
sonhos.
Sobre isso, citamos Domhoff (2005), também pesquisador norte-americano
sobre os sonhos, que em seu artigo percorre historicamente os desenvolvimentos
sobre os sonhos nas neurociências e chega a uma interessante conclusão, a qual
consideramos parecida com as palavras de Pedro: “Os sonhos são um bom exemplo
de um acontecimento humano extraordinário que nos une na nossa ignorância e na
nossa paixão pela verdade.” (DOMHOFF, 2005, p. 3).
Domhoff (2005) menciona que algumas especulações concernentes à
neuropsicologia dos sonhos são tão questionáveis quanto as crenças populares
sobre o conteúdo dos sonhos.
Lembremos, portanto, o quanto Freud dialogou com seus pares, com outras
áreas da ciência, com os artistas e até com a cultura popular; e aceitemos seu
convite de tomar o sonho para além e aquém da psicanálise!
48
Não entraremos na discussão sobre as propostas salvacionistas da neuropsicanálise, por não considerarmos
relevante para este momento do trabalho. Mas é um tema que também pode ser interessante para pesquisas
futuras.
186
Para encerrar nosso percurso, evocamos as palavras de Pontalis (1991 p.
129): “Escrever também é sonhar. [...] É querer dar forma ao informe, alguma
permanência ao mutável [...] Autor e leitor esperam a ilusão de um começo sem fim
[...] Enquanto houver livros, ninguém terá a última palavra.”
Fizemos muitas perguntas neste trabalho, e outras infinitas poderão ser feitas.
Enquanto houver sonhos também haverá questões, o não saber do sonho interpela,
provoca. As questões que este trabalho levantou, os impactos do tema e as
questões que engendrou nos interlocutores, nos encorajam a propor que, enquanto
houver questões que interpelam o ser humano, muitos tentarão significá-las, também
por meio dos sonhos, mesmo que um dia não existam mais os livros!
187
REFERÊNCIAS
AB’SÁBER, T. A. M. O sonhar restaurado: formas do sonhar em Bion, Winnicott e
Freud. São Paulo: Ed. 34, 2005.
AGAMBEM, G. (1995). Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte:
UFMG, 2002.
ANZIEU, D. O. O eu - pele. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1989.
______. Grupo e o Inconsciente: o imaginário grupal. São Paulo: Casa do
psicólogo, 1993.
BERLINCK, H. B. de. Os sonhos em Freud. O Percurso e lenta aproximação de
Freud no estabelecimento de sua teoria a respeito dos sonhos: possibilidades de
aplicação. 1983. 96 f. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Psicologia, Universidade
de São Paulo, São Paulo, 1983.
BAUMAN, Z. (1991). Modernidade e ambivalência. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed.,
1999.
BLANTON, S. Diário de minha análise com Sigmund Freud. Tradução de Dante
Moreira Leite. Comentários de Margaret Gray Blanton. São Paulo: Nacional, 1975.
BULKELEY,K. Dreaming in a totalitarian society: a reading of Charlotte Beradt’s “The
third reich of dreams”. Dreaming, v. 4, n. 2, 1994.
CALLOIS, G. E.; GRUNENBAUM van. Sonhos e Sociedades Humanas. Rio de
Janeiro: F. Alves, 1978.
CAON,J. L. Serendipidade, comparatismo e transdisciplinaridade da pesquisa
psicanalítica: contribuição para o entendimento da formação de insocorridade
humana numa experiência de situação-limite. In: PACHECO FILHO, R. A.; COELHO
JUNIOR, N.; ROSA, M. D. (Orgs.). Ciência, pesquisa, representação e realidade
em psicanálise. São Paulo: Casa do Psicólogo/EDUC, 2000.
188
CARVALHO, E. M. M. (Org.). O pensamento vivo de John Lennon. São Paulo:
Martin Claret, 1986.
CECARELLI, P. R. As bases mitológicas da normalidade. In: VII Encontro
Científico da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental,
Petrópolis, RJ, 04 a 07 set. 2003. Disponível em:
<http://www.ceccarelli.psc.br/artigos/portugues/html/bases%20mitol.htm>. Acesso
em: 3 mar. 2009.
CEDERJ. O princípio da complementaridade e o papel do observador na
mecânica quântica. Disponível em:
<http://www.fing.edu.uy/if/cursos/fismod/cederj/aula03.pdf>. Acesso em: 3 mar.
2009.
CEPA – Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada. Rodovias. São Paulo: Instituto de
Física da USP, 1999. Disponível em:
<http://www.cepa.if.usp.br/energia/energia1999/Grupo4A/rodovias.htm/>.
CHAUÍ, M. Convite à filosofia. 6. ed. São Paulo: Editora Ática, 1997.
CHECCHINATO, D. Prefácio. In: SAFOUAN, M. O inconsciente e seu escriba.
Tradução de Regina Steffen. Campinas: Papirus, 1987.
COSTA, J. F.; KATZ, C. Sem Mistério nem sacrifício. Folha de São Paulo, São
Paulo, 11 jul. 2004. Caderno Mais!
COSTA, A. M.; POLI, M. C. Alguns fundamentos da entrevista na pesquisa em
psicanálise. Pulsional Revista de Psicanálise, ano XIX, n. 188, 2006.
CHABOUDEZ, G. A Equação dos Sonhos. Rio de Janeiro: Companhia de Freud,
2000.
DAYAN, M. Sonho. In: Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de
Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.
DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
DOMHOFF, G. W. Refocusingthe neurocognitive approach to dreams: a critique of
the hobson versus solms debate. Dreaming, v. 15, n. 1, p. 3-2, 2005.
189
ECKSTEIN, R. Some thoughts concerning the clinical use of children’s dreams. In:
ALSTON, T. M.; CALOGERAS, R. C.; DESERNO, H. (Eds.). Dream reader:
psychoanalytic articles on dreams. Madison, Connecticut: International Universities
Press, 1994.
ELIA, L. Psicanálise: clínica e pesquisa. In: ALBERTI, S.; ELIA, L. (Orgs.). Clínica e
pesquisa em psicanálise. São Paulo: Rios Ambiciosos, 2000.
FEDIDA, P. Nome, figura e memória. Tradução de Martha Gambini e Claudia
Berliner. São Paulo: Escuta, 1992.
FRANÇA, C. P. Não foi nada disso o meu sonho! Psychê, São Paulo, v. 4, p. 39-52,
1999.
FRANCISCO, D. de. The child dream and the child transference. Journal of the
American Psychoanalytic Society, v. 34, n. 1, p. 93-121, 1986.
FREUD, S. (1932-1936). Novas conferências introdutórias sobre psicanálise.
Rio de Janeiro: Imago, 1996a. (Ed. stand. bras. das obras psicológicas completas de
S. Freud, v. XXIII).
______. (1900). A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996b. (Ed.
stand. bras. das obras psicológicas completas de S. Freud, v. IV).
______. (1923). Observações sobre a teoria e prática da interpretação dos
sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996c. (Ed. stand. bras. das obras psicológicas
completas de S. Freud, v. XIX).
______. (1916). Incertezas e Críticas. Rio de Janeiro: Imago, 1996d. (Ed. stand.
bras. das obras psicológicas completas de S. Freud, v. XV).
______. (1913). Totem e Tabu. Rio de Janeiro: Imago, 1996e. (Ed. stand. bras. das
obras psicológicas completas de S. Freud, v. XIII).
______. (1916-1917). Conferências introdutórias sobre psicanálise. Rio de
Janeiro: Imago, 1996f. (Ed. stand. bras. das obras psicológicas completas de S.
Freud, v. XV).
190
______. (1897). Carta 73. Rio de Janeiro: Imago, 1996g. (Ed. stand. bras. das obras
psicológicas completas de S. Freud, v. I).
______. (1909). Análise de uma fobia em um menino de cinco anos. Rio de
Janeiro: Imago, 1996h. (Ed. stand. bras. das obras psicológicas completas de S.
Freud, v. X).
______. (1918). História de uma neurose infantil. Rio de Janeiro: Imago, 1996i.
(Ed. stand. bras. das obras psicológicas completas de S. Freud, v. XVII).
______. (1917). Um suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos. Rio de
Janeiro: Imago, 1996j. (Ed. stand. bras. das obras psicológicas completas de S.
Freud, v. XIV).
______. (1925). Um estudo autobiográfico. Rio de Janeiro: Imago, 1996k. (Ed.
stand. bras. das obras psicológicas completas de S. Freud, v. XX).
______. (1912). Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. Rio
de Janeiro: Imago, 1996l. (Ed. stand. bras. das obras psicológicas completas de S.
Freud, v. XII).
______. (1932). A Questão de uma Weltanschauung. Rio de Janeiro: Imago,
1996m. (Ed. stand. bras. das obras psicológicas completas de S. Freud, v. XXII).
______. (1914-1916). História do movimento psicanalítico. Rio de Janeiro: Imago,
1996n. (Ed. stand. bras. das obras psicológicas completas de S. Freud, v. XIV).
______. (1938-1940). Esboço de psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1996o. (Ed.
stand. bras. das obras psicológicas completas de S. Freud, v. XXIII).
______. (1939). Moisés e o monoteísmo. Rio de Janeiro: Imago, 1996p. (Ed. stand.
bras. das obras psicológicas completas de S. Freud, v. XXIII).
______. (1920). Am do princípio do prazer. Rio de Janeiro: Imago, 1996q. (Ed.
stand. bras. das obras psicológicas completas de S. Freud, v. XVIII).
______. (1914). Recordar, repetir, elaborar. Rio de Janeiro: Imago, 1996r. (Ed.
stand. bras. das obras psicológicas completas de S. Freud, v. XII).
191
______. (1912). A dinâmica da transferência. Rio de Janeiro: Imago, 1996s. (Ed.
stand. bras. das obras psicológicas completas de S. Freud, v. XII).
______. (1912). O manejo da interpretação dos sonhos na psicanálise. Rio de
Janeiro: Imago, 1996t. (Ed. stand. bras. das obras psicológicas completas de S.
Freud, v. XII).
______. (1896). Projeto para uma psicologia científica. Rio de Janeiro: Imago,
1996u. (Ed. stand. bras. das obras psicológicas completas de S. Freud, v. I).
______. (1925). Algumas notas adicionais sobre a interpretação de sonhos
como um todo. Rio de Janeiro: Imago, 1996v. (Ed. stand. bras. das obras
psicológicas completas de S. Freud, v. XIX).
______. (1937). Construções em análise. Rio de Janeiro: Imago, 1996w. (Ed.
stand. bras. das obras psicológicas completas de S. Freud, v. XXIII).
______. (1923). O ego e o id. Rio de Janeiro: Imago, 1996x. (Ed. stand. bras. das
obras psicológicas completas de S. Freud, v. XIX).
______. (1926). Inibições, sintomas e angústia. Rio de Janeiro: Imago, 1996y.
(Ed. stand. bras. das obras psicológicas completas de S. Freud, v. XX).
______. (1914). O Moisés de Michelangelo. Rio de Janeiro: Imago, 1996z. (Ed.
stand. bras. das obras psicológicas completas de S. Freud, v. XIII).
______. (1908). Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna. Rio de
Janeiro: Imago, 1996aa. (Ed. stand. bras. das obras psicológicas completas de S.
Freud, v. IX).
FROCHTENGARTEN, S. Introdução. In: PONTALIS, J.-B. Entre o sonho e a dor.
São Paulo: Idéias e Letras, 2005.
GARCIA, J. C. O analista no campo dos sonhos. Psychê. São Paulo, v. 4, p. 53-62,
1999.
GARCIA-ROZA, L. A. Introdução à metapsicologia freudiana. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1991. v. 2.
192
______. A Pesquisa do tipo teórico. Revista Psicanálise e Universidade, São
Paulo, n. 1, 1994.
GARMA, A. Tratado maior da psicanálise dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago,
1991.
GAY, P. Freud: uma vida para o nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras,
1989.
GURFINKEL, D. Sonho, sono e gesto: estudo das funções intermediárias no
processo onírico. 2004. 278 f. Tese (Doutorado) – Instituto de Psicologia,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004.
______. Sonhar, dormir e psicanalisar: viagens ao informe. São Paulo:
Escuta/FAPESP, 2008.
HANNS, L. A. Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro: Imago,
1996.
HESS, R. Do efeito Mühlmann ao princípio de falsificação: instituinte, instituído,
institucionalização. Mnemosine, v. 3, n. 2, p. 148-163, 2007. (Tradução de Paulo
Schneider. Departamento de Ciências da Educação, Universidade de Paris VIII).
HOBSON, J. A. 13 Dreams Freud never had. New York: Pi Press, 2005.
JAPIASSU, H. Psicanálise: ciência ou contraciência? Rio de Janeiro: Imago, 1998.
JONES, E. (1970). A vida e a obra de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
1989.
KAUFMANN, P. Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e
Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.
KEHL. M. R. Imagem da violência e violência das imagens. Artigos e Ensaios,
2004. Disponível em: <http://www.mariaritakehl.psc.br/PDF/imagensdaviolencia.pdf>.
KOLTAI, K. Política e psicanálise: o estrangeiro. São Paulo: Escuta, 2000.
193
KUPERMANN, D. Transferências cruzadas: uma história da psicanálise e suas
instituições. Rio de Janeiro: Revan, 1996.
LACAN, J. (1955). O seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica
psicanalítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
______. (1957). O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1998.
______. (1964). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J.-B. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins
Fontes, 1986.
LODEN, S. The fate of dream in contemporary psychoanalysis. Journal of the
American Psychoanalytic Society, v. 5, n. 1, p. 43-70, 2003.
MANONNI, M. A teoria como ficção. Rio de Janeiro: Campus, 1982.
McDOUGALL, J. Sobre o sono e o sonho: um ensaio psicanalítico. Psychê, São
Paulo, v. 4, p. 145-172, 1999.
MEZAN, R. Pesquisa teórica em psicanálise. Revista Psicanálise e Universidade,
São Paulo, n. 2, 1994.
______. Psicanálise e Pós-Graduação: notas exemplos, reflexões. São Paulo:
Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-SP, 1999.
(mimeografado).
______. Sonhos induzidos: a eficácia psíquica da publicidade. In: HISGAIL, F. (Org.).
A Ciência dos Sonhos: um século de interpretação freudiana. São Paulo: Unimarco
Editora, 2000. p. 91-120.
______. A vingança da esfinge: ensaios de psicanálise. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 2002a.
194
______. A Interpretação dos sonhos: origem e contexto. In: ______. Interfaces da
Psicanálise. São Paulo, Companhia das letras, 2002b. p. 17-32.
MILLER, J. Percurso de Lacan: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
1987.
NOGUEIRA, L. C. A pesquisa em psicanálise. Psicol. USP, São Paulo, v. 15, n. 1-2,
p. 83-106, 2004.
PACHECO FILHO, R. A. A evolução da teoria freudiana sobre os sonhos: um
exemplo clínico. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 97-113, 2002.
PLATÃO. A República. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Editora Martin
Claret, 2007.
PONTALIS, J.-B. A força de atração. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1991.
______. Entre o sonho e a dor. São Paulo: Idéias e Letras, 2005.
POULICHET, S. Le. O tempo na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
1996.
QUINET, A. O. A descoberta do inconsciente: do desejo ao sintoma. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
ROAZEN, P. Como Freud trabalhava: relatos inéditos de pacientes. São Paulo:
Companhia da Letras, 1999.
ROSA, M. D. A pesquisa psicanalítica dos fenômenos sociais e políticos:
metodologia e fundamentação. Revista Mal-Estar e Subjetividade Fortaleza, v. 4,
n. 2, p. 329-348, 2004.
ROUDINESCO, E. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed.,
1998.
RUDGE, A. M. O trabalho do sonho. In: PACHECO FILHO et al. (Orgs.). Novas
contribuições metapsicológicas à clínica psicanalítica. Taubaté: Cabral Editora
Universitária, 2003.
195
SAFRA. G. O sonho e a estética do self. Psychê, ano 3, v. 4, p. 3-84, 1999.
______. Investigação em psicanálise na universidade. Psicol. USP, São Paulo, v.
12, n. 2, p. 171-175, 2001.
SANDLER, P. Transcendências e imanências em psicanálise: o trabalho com
sonhos, cem anos depois. Psychê, ano IX, n. 16, 2002.
STRACHEY, J. (Ed.). (1918). Ed. Stand. Bras. das obras completas de Freud. Rio
de Janeiro. Imago, 1996.
TOMAZELLA, L. S. Um levantamento de características do conteúdo de sonhos
em crianças de seis anos de idade. 1984. Dissertação (Mestrado) – Instituto de
Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1984.
UCHITEL, M. Em busca de uma clínica para o trauma. In: FUKS, L. B.; FERRAZ, F.
C. (Orgs.). A clínica conta histórias. São Paulo: Escuta, 2000.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo