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Universidade do Estado do Rio Janeiro
Centro de Educação e Humanidades
Faculdade de Educação
Programa de Pós-graduação em Educação – Mestrado
À Luz das Lamparinas. As escolas noturnas para trabalhadores no
Município da Corte (1860-1889)
Ana Luiza Jesus da Costa
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Educação da Faculdade de Educação da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro como requisito parcial para
obtenção do título de mestre em educação
Orientador: Prof. Dr. José Gonçalves Gondra
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2007
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2
Foram parte da Banca
Prof. Dr. José Gonçalves Gondra
PROPED/UERJ – Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro
Profª. Drª Lia Faria
PROPED/UERJ – Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro
Profª. Drª. Maurilane de Souza Biccas
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado de São Paulo
Prof. Dr. Osmar Fávero
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense
Prof. Drª. Ana Maria Bandeira de Melo Magaldi
PROPED/UERJ – Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro
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3
Este trabalho é dedicado à minha mãe, Luzia Thereza Jesus da Costa,
por achar que devo dedicar à ela os frutos de tudo quanto empenho
meus mais sinceros esforços.
4
“Mas aprendi que se depende sempre de tanta,
muita, diferente gente”. (Gonzaguinha)
Durante os dois anos que envolveram a pesquisa e escrita deste trabalho, tive
contribuições muito importantes, não para sua viabilização mas para um aprendizado
pessoal que não cabe nas ginas da dissertação, e por tudo isso agradeço aos colegas do
Núcleo de Pesquisa e Ensino em História da Educação (NEPHE) da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. São eles Bia, Zélia, Inára, Dimas, Angélica, Aline, Daniel,
Gisele, Marina, Joli, Madison, Rose, Josele, Claudio, Kesley, Flávia, Jordania e os
professores Gondra, Alessandra e Irma. Com eles aprendi, nas tardes de quinta feira, que
a academia pode ser um espaço de trabalho sério sem por isso ser “carrancudo”. E como
extensão das reuniões de quinta feira, lembro que as “viajens” de volta à Niterói com a
professora Alessandra também foram momentos de agradáveis trocas de idéias e
aprendizado, principalmente sobre a historiografia do século XIX, da qual ela é grande
conhecedora.
Ao meu orientador, professor José Gonçalves Gondra, gostaria de agradecer
imensamente a oportunidade de integrar este espaço, tendo eu vindo de outra instituição,
sem nenhum vínculo anterior com o grupo. E também pelo encontro com dois elementos
fundamentais nessa dissertação: o primeiro, nada menos que o próprio tema das escolas
noturnas no império, o segundo, o pensamento de Michel Foucault, sobre o qual seu
profundo conhecimento nos entusiasma a espiar.
Agradeço ao CNPq, pela viabilização de deslocamentos, livros, congressos,
através do apoio financeiro sem o qual este trabalho teria se tornado bem mais difícil.
Gostaria de registrar, também, o agradecimento aos colegas da turma de 2005 do
mestrado do Proped, especialmente à Wanderléia, Andréia, Patrícia e Carla, pelas trocas
de idéias e pela companhia durante todo o primeiro ano do curso.
Lembro, ainda, dos professores e funcionários do Proped/UERJ, e dos
funcionários (efetivos e terceirizados) das instituições onde realizei a pesquisa: Biblioteca
Nacional, Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro e Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro.
Outras pessoas que bem antes destes dois anos faziam parte das influências e
suportes à minha caminhada profissional têm meu carinho e agradecimento especial.
5
Aos companheiros de militância, dos quais estive junto em algumas organizações,
como a Oficina de Ciências Sociais, a Resistência Popular e a União Popular Anarquista,
pois mesmo estando hoje, um pouco distanciada, continuam sendo marcas fortes em
minha formação teórica e humana.
Aos membros das turmas de alfabetização de adultos da O.C.S., que já nas
páginas da monografia de bacharelado ocuparam este mesmo espaço, e junto à eles aos
estudantes e professores do pré-vestibular comunitário do Comitê de Resistência Popular
de Niterói, com os quais me convenci da relevância da prática, mas também do estudo
sobre educação popular.
Aos amigos que encontrei este ano, e aos amigos de sempre: Denise, Aldamir e o
pequeno Arthur, Augusto e Carlinha, e todos os outros que peço perdão por não citar os
nomes.
Ao Carlos, por tornar mais alegres os últimos meses desse trabalho, quando me
fazia esquecer um pouquinho os livros, fichamentos e a tela do computador.
E por último, porém mais sentidos, os agradecimentos à minha família (Mamãe,
Lu, Junior, Ivy, Ciro, Tati e Jô) por serem aqueles que diante de tudo e todos que passam
por esta caminhada, estão e estarão sempre presentes, no mesmo lugar.
6
Que não haja, no futuro, nenhum estudante que não trabalhe e nenhum
trabalhador que não estude. (Fernando Cardenal, líder da Cruzada de
Alfabetização realizada na Nicarágua após a revolução sandinista).
7
Lista de Ilustrações
3- Foto da planta e desenho da fachada da Escola Industrial mantida pela
Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional ......................................................
121
4- Foto da fachada da escola de instrução primária para meninos e meninas da
freguesia de Santa Rita .........................................................................................
135
5- Quadro demonstrativo das escolas noturnas públicas no Município da Corte,
contendo nome dos professores, freguesias e frequências dos alunos .................
149
1- Quadro demonstrativo das subvenções em escolas da Corte entre os anos de
1870 e 1876 ..........................................................................................................
108
2- Foto do prédio da Sociedade Propagadora das Bellas Artes, promotora do
Lyceo de Artes e Ofícios, durante Exposição Nacional .......................................
115
8
Resumo
Com este trabalho pretendo analisar a experiência histórica das
escolas noturnas de instrução primária para trabalhadores no
Município da Corte entre os anos de 1860 a 1889. Tendo como
referências a historiografia recente sobre o século XIX, a
historiografia da educação sobre o mesmo período, teses de
Michel Foucault, e as concepções de educação popular
formuladas a partir dos movimentos sociais das décadas de 60 e
70, no Brasil, procurei olhar a história dessas escolas com a lente
de uma questão de nosso tempo: a precariedade das formas de
ensino voltadas para as classes populares que é possível
evidenciar durante as últimas décadas do século XIX. Concluí que
no momento de sua implantação a educação para jovens e adultos
trabalhadores foi estabelecida como dádiva, fruto da “boa
vontade” de elites dirigentes ou intelectuais, cujo sentido não foi,
afinal, resolver o problema da instrução do trabalhador, problema
este colocado pelas próprias elites, mas sim a instituição de uma
hierarquia dos saberes socialmente dominantes, logrando
delimitar a figura do chamado “analfabeto” como aquele que não
possuía tais saberes em seu vel mais básico. Para caracterização
das escolas noturnas, fiz uso de fontes documentais provenientes
de órgãos governamentais, de associações privadas voltadas para
este tipo de ação educativa e da imprensa. Estas foram obtidas nos
acervos da Biblioteca Nacional, do Arquivo Geral da Cidade do
Rio de Janeiro e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. A
partir desses documentos foi possível compor dois quadros: um
primeiro, contendo o embasamento político-ideológico dessas
escolas, o que chamei de projeto político-pedagógico elitista, e
outro demonstrativo das práticas efetivas do Estado e da iniciativa
particular, as quais acabaram muitas vezes por frustrar os termos
de seu projeto.
Escolas Noturnas; Educação Popular; Século XIX.
9
Abstract
The aim of this work was to analyze the historical
experience of
primary education night schools for
workers, in the court municipality, from 1860 to
1889. The analysis is based on the recent
historiography on the XIX century, the historiography
on education during the same period, theses put
forward by Michel Foucault and the ideas on popular
education formulated by the Brazilian social
movements during the decades of 1960 and
1970. I tried to look at the history of those schools
through the perspective of a contemporary question:
the precariousness of the education forms directed
towards the popular classes, already evident during
the last two decades of the XIX century. I
concluded that the implementation of educational
programs for young adults and adults has been
conceived as a gift, springing from the "good will"
of the economical, political and intellectual elites.
Its purpose was not solving the problem of
instructing the
working class (a problem posed by the elites
themselves), but, instead, to impose a hierarchy of
socially dominating knowledge. In this way it was
possible to define a so-called "illiterate" as an
individual that did not master even the most basic
levels of the socially dominant knowledge. To
characterize the night schools I used documental
sources from government agencies, from private
organizations interested in this kind of educational
policy, and from the press. Those sources have been
extracted from the
collections of Biblioteca Nacional (National
Library), Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro
(Rio de Janeiro Municipality General Archives), and
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(Brazilian Historical and Geographical Institute).
From these documents I have extracted two main
pictures: one showing the political-ideological basis
of such schools, that I called "elitist political-
pedagogical project", and another one that displays
the actual practices of the State and the private
sector, which often had outcomes that opposed their
own stated initial goals.
Night schools, Popular Education, XIX Century
10
Sumário
Lista de Ilustrações ........................................................................................
Resumo ...........................................................................................................
7
8
Abstract .......................................................................................................... 9
Introdução ......................................................................................................
11
1- Educação para as classes populares e seu lugar na historiografia da
educação
1.1- História e historiografia da educação de jovens e adultos ..............................
17
1.2- Educação de jovens e adultos e educação popular ..........................................
32
2- Os discursos acerca das escolas noturnas: constituição de seu projeto
político pedagógico elitista ............................................................................
45
3-
As escolas noturnas, seus atores e atuações: indícios das práticas............
96
3.1- A precedência da iniciativa particular .............................................................
101
3.2- Os beneméritos ................................................................................................
110
3.3- As instituições .................................................................................................
114
3.4- Regulação do Estado e cursos públicos ...........................................................
130
4- Considerações finais ........................................................................................
163
Bibliografia e fontes ......................................................................................
167
Anexos ............................................................................................................ 176
O estudo que agora apresento não me passava pela cabeça realizar. Explico.
Trata-se de um trabalho bem circunscrito, feito por alguém que, tendo uma formação
11
voltada para história política na época contemporânea, passou a tentar compreender a
história da educação no século XIX, pisando em terrenos que antes não havia pisado, ou
o fizera de forma incipiente, quais sejam, o da história da educação e da historiografia
sobre o oitocentos. No entanto procurei com passos um tanto inseguros, mas coerentes
com o propósito que guardo desde antes desse trabalho, enfrentar a questão da educação
popular. Nesse sentido, a sociedade brasileira de fins do século XIX e a história da
educação são cenário e aparato para a discussão da questão.
Outra marca de produção desse texto é a concepção de que as sociedades
humanas não permanecem estáticas em suas configurações ao decorrer do processo
histórico logo, as transformações fazem parte da nossa própria história. Mudar é possível.
A vida social como concebemos hoje em nosso país, continente, mundo ou local, pode
ser feita outra. Não cabe, aqui, travar um debate ou realizar especulações sobre os rumos
e meios das mudanças, mas apenas afirmar esta nossa capacidade ainda que, sob o risco
de parecer vaga. Entretanto, como baliza do que se encontra escrito nas páginas seguintes
está a concepção de que as mudanças necessárias nas atuais sociedades capitalistas
constituem-se em tarefa histórica das classes populares. É nesse sentido que me preocupo
em compreender a possível participação dos processos educacionais que envolvem esta
parcela da população nesse tipo de tarefa.
O final da década de cinquenta e a década de sessenta, no Brasil, foram tempos
frutíferos para a tarefa citada acima. Período de mobilização e politização social, ao
mesmo tempo viu surgir movimentos de educação popular que procuravam democratizar
a cultura, fazer a crítica ao modelo de escola vigente e se constituirem em ferramentas de
poder para as classes populares. Porém, como nos lembra Cunha em uma feliz associação
com a poesia de Chico Buarque, “eis que chega a roda viva e carrega a roseira pra lá”, o
golpe militar frustra o florescimento dessa nova cultura política entre as classes
populares. (CUNHA & GÓES, 1985). Nem tudo foi apagado e ainda vemos heranças
dessa época na área de educação, hoje. A título de exemplo, Paulo Freire ainda é uma das
maiores referências, principalmente em educação para setores marginalizados. Porém,
estas heranças pedagógicas democratizantes adquiridas historicamente pelas novas
gerações, criam muitas vezes uma falsa impressão de que a escola e a educação têm e
sempre tiveram uma função necessariamente transformadora e positiva.
12
Deparei-me dois anos atrás com as escolas noturnas de educação para o povo
no século XIX, experiência que desconhecia até então, e não me passava pela cabeça
estudá-la. Ao me aproximar desse objeto tive muita vontade de encontrar indícios que
mostrassem sua participação em algum movimento de contestação ou projeto de mudança
da sociedade vigente. A pesquisa, no entanto, mostrou um quadro bem diferente, onde
vemos desenhar-se desde cedo o caráter subalterno da educação destinada ao povo
trabalhador. Os mais preocupados, nesse momento, com a sua escolarização eram
exatamente o Estado e as elites econômicas e intelectuais, frente à necessidade de
controle social e da prevenção contra a “desordem” pelo medo de revoltas de escravos ou
homens livres pobres, pois exemplos não faltaram durante o século XIX, seja na Europa
ou na própria América. A título de ilustração, podemos lembrar que o ano em que é
assinada, no Brasil, a Lei do Ventre Livre, é também o ano em que o povo parisiense
toma o poder e estabelece a Comuna de Paris. Mas, outras preocupações como a
constituição de um trabalhador disciplinado para a dinâmica de um mercado de trabalho
assalariado a partir da crise do escravismo, a prórpia equiparação dos indicadores sociais
do Brasil frente às nações modernas, a formação de uma “clientela” de votantes a partir
do estabelecimento do censo literário também se constituíram em motivações para a
intervenção do Estado e dos “beneméritos”
1
na escolarização das classes populares.
A partir das contribuições do campo da história social e da nova história cultural
que ressaltam o papel ativo dos sujeitos na construção de suas experiências, não
simplesmente aceitando o que lhes é imposto, mas se apropriando e ressignificando a
ordem que provém das posições de “mais poder”, têm se desenvolvido pesquisas que
tomam como foco as ações destes sujeitos e coletividades antes desconsiderados nas
páginas da história política tradicional. É o caso daquelas que mostram os diferentes usos
dados aos saberes difundidos pela escola. Apesar de não ter tido a oportunidade de
localizar documentos que explicitassem essas apropriações, concordo com a tese da
potencialidade da instrução para os usos próprios das classes populares, entretanto
ressalto que a positividade de realizações como as escolas noturnas encontram-se
1
Termo que será tratado mais detidamente no segundo capítulo, era usado para referir-se aos promotores,
através da iniciativa particular, de escolas gratuitas para as classes populares, como: escolas noturnas, asilos
para meninos órfãos, escolas de ensino profissional.
13
principalmente nas subversões de seu projeto político pedagógico originalmente voltado
para o controle e formatação do trabalhador aos interesses das elites que as promoviam.
A pesquisa sobre as formas de efetivação de tal projeto mostram, porém, que
mesmo servindo aos objetivos do Estado e das elites, o projeto das escolas noturnas teve
uma implantação precária, o que nos leva a afirmação de que o maior sentido dessa
história é o de tornar visível os primeiros momentos em que se constitui o lugar social do
“analfabeto”. Do interior das classes populares, representadas nos discursos relativos à
escolarização, como naturalmente propensas à desordem, à vadiagem e ao cio,
poderiam, entretanto, sair homens moralizados e virtuosos, quando regenerados pela
instrução e pelo trabalho. Os “generosos” esforços dos “beneméritos” e do próprio Estado
“oportunizaria” a integração desta classe à ordem social. Os que não aproveitassem tal
“oportunidade” deveriam responder, então, pelas privações e repressões a que estariam
sujeitos, desde então cada vez mais racionalmente elaboradas. Esta reflexão geral foi
sendo traçada ao longo deste trabalho que esteve direcionado, principalmente, para a
caracterização da forma e funcionamento das escolas noturnas.
Cabe assinalar que este estudo pode observar a pouca exploração do tema da
educação popular no âmbito da educação para “jovens e adultos” trabalhadores no
interior da historiogafia da educação. Não consegui encontrar mais de três trabalhos
publicados que abordassem diretamente o objeto de pesquisa aqui recortado. Assim,
utilizei-me do estudo de Eliane Peres, sobre os cursos noturnos da Biblioteca Pública
Pelotense no final do século XIX; o artigo veiculado pela revista “Educação e Sociedade”
de Mauricéia Ananias, tratando dos cursos noturnos em Campinas, e o tópico sobre o
curso noturno da Sociedade Propagadora da Instrução às Classes Operárias da Lagôa na
dissertação de mestrado de Alessandra Frota Martinez.
Não apenas por escassez de publicações, mas principalmente por opção
metodológica, este trabalho buscou fundamentar-se em fontes primárias obtidas nos
acervos de instituições como o Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro, a Biblioteca
Nacional e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Entre tais fontes estão
documentos governamentais como os relatórios dos ministros do império, os ofícios
trocados entre professores, inspetores e delegados de instrução, regulamentos instituídos
pelos ministros do império e inspetores da instrução, mapas de turma de algumas escolas,
14
um livro de matrículas de uma das escolas da câmara municipal do qual analisei o
correspondente a seis anos seguidos de seu funcionamento, documentos produzidos por
associações beneficentes, além dos discursos que circulavam na imprensa especializada
ou não, notas manuscritas de alguns intelectuais como Taveres Bastos e Leôncio de
Carvalho, a publicação de uma das três conferências públicas da escola da Glória, etc.
Diante da configuração do material a pesquisa, procurando não tornar-me um “refém” do
mesmo encontro-me em grande medida por ele condicionada.
O tratamento a documentação permitiu-me organizar três capítulos. No primeiro
capítulo procurei realizar uma discussão conceitual acerca do tema proposto. O primeiro
momento avalia o lugar ocupado pelos estudos históricos nas pesquisas sobre educação
de “jovens e adultos” (EJA), e por outro lado, o lugar ocupado pela temática “educação
de jovens e adultos” nas pesquisas de história da educação. A constatação é de que, no
primeiro caso, a história não é tida como ferramenta privilegiada nos estudos sobre EJA,
enquanto no segundo caso, os estudos de história da educação não têm a EJA como um
objeto de pesquisa privilegiado. Num segundo momento, passo a questionar o próprio
conceito de EJA como representante exclusivo da modalidade educacional destinada aos
sujeitos excluídos das formas de escolarização em tempo regular, quando lembro o
debate pautado em termos políticos entre os conceitos de educação de adultos e educação
popular. Finalmente, reflito sobre as possibilidades de emprego dos conceitos de
educação popular e educação de jovens e adultos para a sociedade brasileira do final do
século XIX.
O segundo capítulo procura caracterizar o discurso que sustenta a implantação das
escolas noturnas, tanto as públicas como as promovidas pela iniciativa particular. Nesse
sentido me propus a captar certo projeto político pedagógico existente que orientaria tais
cursos, não como um material redigido ou formalizado, mas como um conjunto de
objetivos e princípios que se traduziam em práticas desenvolvidas em todos os cursos a
que tive acesso. Caracterizo tal projeto como elitista, buscando inserí-lo na ordem social
e na situação histórica vigentes, com o sentido geral de “invenção do analfabeto”.
Por fim, o terceiro capítulo propõe-se a analisar as práticas efetivas de instauração
e funcionamento das aulas noturnas, onde constatamos uma intrincada relação entre
iniciativa privada e ação do Estado. Ao mesmo tempo em que detectamos a precedência
15
desta primeira, observamos que articulação entre ambas, apesar de nem sempre
celebrarem acordos, mas em geral sua relação é de colaboração, marcada pelos incentivos
do Estado à “beneficência” que se traduziam em subsídios, disposição de prédios
públicos para funcionamento das aulas, até títulos por reconhecimento de serviços
prestados. A caracterização conta ainda com o levantamento sobre tais sujeitos
promotores da iniciativa particular os chamados “beneméritos”, e de algumas
instituições por eles criadas e mantidas, como o Lyceo de Artes e Officios, o Lyceo
Industrial, a escola da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, entre outras.
A abordagem da iniciativa particular é seguida pela análise da ação do estado
imperial sobre a questão das escolas noturnas. Esta é dividida em três pequenos períodos:
o que vai do “Regulamento de 1854” até às Instruções Provisórias” do inspetor José
Bento da Cunha Figueiredo. Outro que vai de 1872 ao “Decreto 7031 A de 1878”,
quando o ministro do império, Leôncio de Carvalho ordena a abertura de cursos noturnos
em todas as escolas de instrução primária para meninos do Município da Corte. Deste
momento em diante acompanhamos as idas e vindas de uma política assistemática,
aplicada em cursos de existência irregular, bem como irregular era a frequência de seus
alunos.
Encerrando o capítulo, procuro caracterizar, ainda que sumariamente, o perfil dos
alunos do curso noturno, tomando por base o livro de matrículas da escola de São
Sebastião mantida pela câmara municipal. Ao especular um pouco sobre a perspectiva
desses trabalhadores acerca das aulas a que frequentavam, trago uma experiência
educacional que apesar de afastada das escolas noturnas da Corte em tempo e espaço,
pode ser fonte de questionamentos frutíferos por se tratar de um projeto educacional feito
não “para” os trabalhadores como fora o caso da experiência aqui estudada, mas “pelos”
próprios trabalhadores para si.
Por fim, buscando a interlocução das escolas noturnas com a própria história da
educação destinada às classes populares temos procurado, por um lado, desmistificar a
idéia de que todas as iniciativas em escolarização do povo surgem, no Brasil, a partir das
décadas de 20 e 30, quando não, da década de 50 da República, com as campanhas
nacionais contra o analfabetismo. Por outro lado, este estudo, em alguma medida procura
denunciar a precariedade de grande parte das políticas educacionais destinadas às classes
16
subalternizadas da população, demonstrando que seus problemas ganham expressão no
interior, mas situam-se muito além das fronteiras da escola.
I- Educação para as Classes Populares e Seu Lugar na Historiografia da
Educação.
17
1.1- História e Historiografia da Educação para Jovens e Adultos das Classes
Populares.
A característica central do processo de construção deste trabalho, de onde foi
extraído a maior parte de seu conteúdo, bem como a parte que mais me agradou realizar,
foi a ação nos arquivos, na procura por indícios que dessem vida ao objeto proposto: as
escolas noturnas de ensino primário para trabalhadores na Corte imperial, entre 1860 e
1889. Teria sido uma escolinha surgida por acaso em algum momento? Não. De acordo
com relatórios ministeriais, referências na imprensa, registros de sociedades beneficentes,
ofícios trocados entre a inspetoria de instrução, os delegados de província e os
professores, abaixo-assinados
2
de moradores de diferentes freguesias, o aparecimento das
escolas noturnas se constitui em efeito de uma política educacional implementada tanto
pelo Estado como pela iniciativa privada, pela qual foram criadas dezenas dessas escolas
em todo o Império. Estas iniciativas poderiam ser consideradas como uma política
educacional voltada para jovens e adultos trabalhadores, educação para jovens e adultos,
EJA? Nste capítulo procuro explicitar a compreensão sobre alguns conceitos, o terreno
sobre o qual esse trabalho foi desenvolvido, e algumas ferramentas, para que as escolas
noturnas, ao sairem das prateleiras dos arquivos, não se percam em nosso tempo como
curiosidade exótica, mas que possam trazer uma contribuição para compreensão e
produção das políticas educacionais destinadas às classes populares de nosso próprio
tempo.
Hoje, o ensino para jovens e adultos que não obtiveram a instrução básica durante
o período de suas vidas socialmente considerado como o “normal” ou “regular” fica cada
vez mais a cargo da modalidade EJA
3
. Dessa forma, tomamos esta modalidade e as
2
Sobre esta modalidade de intervenção da população carioca nos assuntos relacionados à educação, que
iam desde a demanda por instalação de escolas até críticas aos procedimentos de alguns professores, ver:
GONDRA, José G. & LEMOS, Daniel C. A. A necessidade polimorfa da escola e o processo de fabricação
da ordem escolar. In: Revista Rio de Janeiro. Nº 13-14, maio-dezembro de 2004.
3
Na LDB/ 9.394 de 20 de dezembro de 1996, a educação de jovens e adultos é caracterizada como aquela
destinada aos que não tiveram acesso ou continuidade dos estudos no ensino fundamental e médio na idade
própria. Afirma, genericamente, que os sistemas de ensino devem assegurar gratuitamente a estes:
“oportunidades educacionais apropriadas”. Porém, não estabelece estritamente a cargo de quem ela deve
estar. no site do MEC (www.mec.gov.br. Acesso em 30 de janeiro de 2007), portal da Secretaria de
Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, encontramos mais especificados os sujeitos
promotores da EJA, embora ainda apareça como modalidade educacional muito fluida, de acordo com o
18
questões a ela vinculadas como referência em nossas problematizações. O primeiro passo
desse capítulo se constitui em uma revisão bibliográfica dos trabalhos produzidos sobre a
história da educação de jovens e adultos trabalhadores, no Brasil. Entretanto, a própria
escolha deste termo para designar o conjunto de práticas educacionais voltadas para a
população citada, tem ela mesma uma história, vinculada a embates teóricos e políticos.
Por que educação de jovens e adultos? os que têm, ou tinham em uma época não
muito distante, o costume de referir-se a esta como “educação popular”. Será que os dois
termos possuem o mesmo sentido, designam as mesmas coisas? Diante de tal debate, nos
preocupa, aqui, a história da constituição do próprio objeto de pesquisa, procurando ainda
pensar as possibilidades de uma educação para jovens e adultos trabalhadores no século
XIX, e o seu sentido naquele período.
Ao darmos início a qualquer produção acadêmica, precisamos ter a clareza de que
esta nunca é feita isoladamente, pois dialogamos com vários interlocutores e ainda há que
se considerar o nosso pertencimento social, político, institucional, profissional
4
. A
matéria de nossa dedicação foi, é e será apreciada por outros. Assim, para nos inserirmos
na própria história da constituição de nossos objetos, a fim de posicionarmo-nos mais
conscientemente e oferecer alguma contribuição, importa conhecer os passos por ela
dados. Com este intuito segue-se um balanço historiográfico da produção em história da
educação de jovens e adultos. Tal balanço acabou sendo ampliado para além da produção
acadêmica, encontrando-se com outras fontes dessa história. Foi possível reconhecer a
existência, atualmente, de basicamente três fontes de discursos sobre EJA: governamental
(principalmente o Ministério da Educação); movimentos sociais (geralmente realizações
em parceria com o governo, sendo espaço muito ocupado por ONG’s); e a academia.
Como expressões do discurso governamental, foram selecionados documentos do
Ministério da Educação: os dispositivos legais de âmbito federal que dão respaldo à
Educação de Jovens e Adultos
5
“Parecer 11/2000”, que faz referência às “Diretrizes
Curriculares Nacionais para Educação de Jovens e Adultos”, onde consta o tópico “Bases
site, “para oferta da educação de jovens e adultos, modalidade da educação básica, o MEC articula-se com
os estados, municípios e sociedade civil”.
4
CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: A escrita da história. Rio de Janeiro, Forense
universitária, 1982.
5
www.mec.gov.br
19
Legais: histórico” e os “Subsídios à elaboração de projetos e propostas curriculares para o
primeiro e segundo segmento do ensino Fundamental”, produzidos pelo MEC (Ministério
da Educação e Cultura). É comum encontrarmos movimentos sociais atuando, na maior
parte das vezes, em parceria com os governos, o que pode ser evidenciado por um dos
documentos aqui utilizados – a “Proposta Curricular para o primeiro Segmento do Ensino
Fundamental”, elaborado pela ONG “Ação Educativa” e adotado pelo MEC.
Da produção, acadêmica foi feito um levantamento de artigos de duas das
principais publicações do campo da história da educação, procurando perceber qual o
espaço ocupado pela temática “educação de jovens e adultos”. Também recorri ao
Estado da Arte das Pesquisas em Educação de Jovens e Adultos no Brasil: A produção
discente da pós-graduação em educação no período 1986/1998, trabalho coordenado por
Sérgio Haddad e produzido pela ONG “Ação Educativa”. Sobre estas três fontes cabe
lembrar que há, atualmente, dificuldade em delimitar um lugar específico dessa produção,
uma vez que se tornou muito comum a prática das parcerias estabelecidas entre
Governos, ONG’s e Universidades.
Os “breves históricos” contidos nos documentos governamentais, como o próprio
nome indica, são restritos, parciais, o que parece decorrer da não priorização da história
como ferramenta para construção do conhecimento no âmbito dos estudos sobre EJA,
pois é muito mais comum encontrarmos trabalhos que utilizam os instrumentais teóricos
da sociologia, antropologia, pedagogia, para discutir essa modalidade educacional.
Levanto a hipótese de que a escolha por preterir a como ferramenta teórica se deve ao
fato do tema ser apresentado sempre como um problema naturalizado em nosso próprio
tempo, sempre urgente, cobrando respostas e intervenções imediatas, imediatismo que
impede, muitas vezes, de serem pensadas políticas mais sólidas, de longo prazo para sua
resolução efetiva.
De acordo com o balanço da produção acadêmica em educação de jovens e
adultos, coordenado por Sérgio Haddad, no período entre 1986-1998, os campos de
referência teórica predominantes são os da Sociologia, Política, Filosofia e Educação,
sendo que uma quarta parte dos estudos foi desenvolvida no terreno teórico-prático da
Pedagogia (aí incluída a Didática) e da Psicologia da Educação. Este estudo conclui
também que “a produção acadêmica de corte filosófico ou epistemológico é muito
20
reduzida”, enquanto “prevalecem pesquisas de tipo qualitativo que recorrem à métodos
etnográficos”
6
. O trabalho citado abarcou, de forma sistemática, a pesquisa dos
programas de pós-graduação em educação, ainda que tenha “capturado incidentalmente”
outras, de programas afins (linguística, serviço social, sociologia...).
O autor esclarece que “apuraram-se mais de 1.300 títulos produzidos no período
de 1986 à 1998, e quase 33% dessa produção de conhecimento se expressa em artigos de
periódicos e números especiais de periódicos, enquanto teses e dissertações representam
aproximadamente 9,5% do total. A maior parte das teses pesquisadas: 79,4%, vêm de
instituições públicas. Os livros ou publicações seriadas publicadas no período,
representam apenas 7,93% da produção
7
. Entre as conclusões dessa pesquisa aparece o
dado mais significativo para nós, de que entre cento e sessenta e seis dissertações de
mestrado levantadas, apenas cinco tratavam do subtema “História da EJA”, e entre as
dezessete teses de doutorado, apenas uma tratava do subtema.
Além de olharmos o lugar ocupado pelo conhecimento histórico na esfera dos
estudos de EJA, o esforço pode ser desenvolvido no sentido contrário: o lugar da temática
“EJA” nos estudos realizados no âmbito da História da Educação. Encontramos aí, pouca
presença desse tema específico. Ou seja, a EJA não figura como objeto privilegiado nos
estudos históricos. Um balanço das publicações da revista da Sociedade Brasileira de
História da Educação, em seus nove números, contendo cada uma a média de cinco à seis
artigos mostrou um total de dois artigos voltados para temáticas relacionadas diretamente
à educação popular, sendo que, nenhum aborda especificamente a Educação de Jovens e
Adultos.
O número quatro da revista traz o dossiê “Negro e a Educação” que, em grande
parte, aborda a educação no período escravista. Vemos neste número o tratamento de
problemas ligados às classes populares sob viés teórico das questões étnico-raciais. Não
trata, porém, especificamente da instrução para jovens e adultos. Os dois artigos acima
referidos foram, ambos, publicados no número oito da revista, por Antonio Carlos
Correia e Vera Lúcia Gaspar da Silva, sob o título: “A lei da escola: sentidos da
6
HADDAD, Sérgio (coord.); SOUZA, Antonio Carlos de; PEREIRA DA SILVA, Marcos José; DI PIERO,
Maria Clara; MACHADO, Maria Margarida; NALLES, Miro; CUKIERKORN, Monica M. De O. Braga. O
Estado da Arte das Pesquisas em Educação de Jovens e Adultos no Brasil. A produção discente da pós-
graduação em educação no período 1986-1998. São Paulo, Ação Educativa, 2000. P. 11.
7
A pesquisa foi feita sobre seus resumos e palavras-chave.
21
construção da escolaridade popular através de textos legislativos em Portugal e Santa
Catarina Brasil (1880 1920). O segundo é o artigo: “Feios, sujos e malvados: os
aprendizes marinheiros no Paraná oitocentista” de Vera Regina Beltrão Marques e Silvia
Pandini.
Outro importante órgão de divulgação da pesquisa científica em educação, a
Revista Brasileira de Educação, produzida pela ANPED, conta, no conjunto de números
publicados, com cerca de vinte e nove artigos de alguma forma relacionados à história da
educação. Desse total, encontramos cinco artigos relacionados à história da educação
popular. No número dois, um artigo de Justino Pereira Magalhães intitulado “Linhas de
investigação em história da alfabetização em Portugal: um domínio do conhecimento em
renovação”. No número oito escrevem: Diana Gonçalves Vidal e Silvinia Gvirtz, o artigo
“O ensino da escrita e a conformação da modernidade escolar: Brasil e Argentina 1880-
1940”; e Andréa Daher, “Escrita e conversão: a gramática Tupi e os catecismos bilíngues
no Brasil do século XVI”. No número quatorze, todo dedicado às investigações
históricas, dois artigos ligados à temática da educação do povo: “O ensino industrial-
manufatureiro no Brasil” de Luiz Antonio Cunha, e “Escolarização de Jovens e Adultos”,
de Sérgio Haddad e Maria Clara Di Piero. Deste conjunto, apenas estes dois últimos
abordam diretamente a temática da educação destinada a jovens e adultos trabalhadores.
Foi possível perceber que na produção acadêmica em história da educação de
jovens e adultos perspectivas teóricas e metodológicas diferentes. Tomando como
referência os dois periódicos pesquisados, observamos que os textos publicados na
Revista Brasileira de Educação por Luiz Antonio Cunha, e por Sérgio Haddad & Maria
Clara Di Piero, possuem um caráter de síntese, trabalhando em um sentido diacrônico,
pensando seus objetos de estudo, no primeiro caso, o ensino profissional e, no segundo
caso, o ensino básico, no decorrer de longa temporalidade desde as respectivas
implantações até os dias de hoje. Haddad & Di Piero levam em consideração a
diversidade de práticas em educação de jovens e adultos, formais ou informais, voltadas
para obtenção de conhecimentos básicos, formação técnico-profissional, ou habilidades
socioculturais na delimitação da abrangência de seu trabalho. Em função dessa
diversidade, fazer tal história correria risco de fracasso, por isso os autores marcam como
foco do artigo a educação escolar de nível básico. Em relação à temporalidade uma
22
maior abrangência, percorrendo todos os períodos da História do Brasil, mas
concentrando-se na segunda metade do século XX.
A “rápida visão panorâmica” dos cinco séculos oferecida pelos autores é mais
rápida em relação à colônia e ao império, mesmo porque segundo eles foi somente ao
final da década de 1940 que a educação de adultos veio a se firmar como um problema de
política nacional” (HADDAD & DI PIERO, Maio-Agosto de 2000). A falta de pesquisas
monográficas sobre educação destinada a jovens e aultos anteriores à Era Vargas, leva-
nos muitas vezes a considerá-la, então, sob o aspecto da falta, buscando ver o que não foi
feito, e menos o que e como teria sido feito. De fato, o texto em questão possui um
caráter geral, de uma história da educação de jovens e adultos balisada pelos grandes
marcos da história política do Brasil orientando-se pelas ações oficiais ou de grande
representatividade nacional. Haddad e Di Piero preocupam-se em realizar o debate sobre
o sentido da educação de adultos na segunda metade do século XX, mostrando que seu
objetivo era a suplência. Outra preocupação central é a de relacionar a história contada
aos grandes desafios atuais da EJA em nível nacional. Nesse caso, o problema do
analfabetismo funcional emerge, talvez, como o mais grave.
A leitura desse texto também deve considerar o engajamento e militância dos
autores em relação à EJA. Cabe lembrar que eles fazem parte da ONG “Ação
Educativa”
8
, que disputa concepções de EJA no âmbito das políticas governamentais.
Nesse sentido, eles procuram trazer à vista cinco séculos de história para fundamentar
seus argumentos, e um destes argumentos chama atenção de quem volta os olhos à
educação dos jovens e adultos trabalhadores no século XIX. Trata-se de uma pesquisa
recente mostrando que:
...são necessários mais de quatro anos de escolarização bem
sucedida para que um cidadão adquira as habilidades e competências
cognitivas que caracterizam um sujeito plenamente alfabetizado diante
das exigências da sociedade contemporânea, o que coloca na categoria
de analfabetos funcionais aproximadamente a metade da população
jovem e adulta brasileira.
E conclui:
8
Em outro momento deste trabalho analisamos os Subsídios à elaboração de projetos e propostas
curriculares para o primeiro e segundo segmento do ensino Fundamental, presente no site do MEC. A
ONG Ação Educativa participou da formulação para as propostas dos subsídios ao primeiro segmento.
23
Cada vez torna-se mais claro que as necessidades básicas dessa
população podem ser satisfeitas por uma oferta permanente de
programas, que sendo mais ou menos escolarizados necessitam
institucionalidade e continuidade, superando o modelo dominante das
campanhas emergenciais e iniciativas de curto prazo que recorrem a
mão-de-obra voluntária e recursos humanos não especializados,
característico da maioria dos programas que marcam a história da
educação de jovens e adultos no Brasil. (HADDAD & DI PIERO,
Maio-Agosto de 2000).
Ao estudarmos a experiência das escolas noturnas de instrução primária para
trabalhadores na Corte imperial é possível observar traços da política aqui criticada.
Irregularidade, desenvolvimento a cargo de associações de caráter beneficente, a prática
de professores se oferecerem a ministrar aulas sem receber vencimentos, etc. Em resumo,
não foi necessário esperar até a década de 40 do século XX para ver a implantação de
uma educação específica para adultos. Tal preocupação continuou merecendo antigos
tratamentos, era preciso educar o povo, mas em seu devido lugar. Educação precária para
parcela subalternizada da população.
Outra modalidade destinada a jovens e adultos trabalhadores o ensino
profissional – é abordada por Cunha. Chama atenção, logo no início de seu texto, a crítica
realizada pelo autor à rarefação de estudos sobre o tema do ensino industrial
manufatureiro destinado à formação da força de trabalho diretamente ligado à produção.
Segundo ele: “Esse espaço vazio se explica, pelo menos em parte, pelo fato de que os
historiadores da educação brasileira se preocupam, principalmente com o ensino que é
destinado às elites políticas e ao trabalho intelectual, deixando o trabalho manual em
segundo plano atitude consistente, aliás, com sua própria formação” (CUNHA, Agosto
de 2000). No mesmo sentido, ao realizar o balanço bibliográfico
9
sobre educação
noturna, Eliane Peres, autora de um entre os três estudos específicos que pude encontrar
sobre escolas noturnas no século XIX, afirma que a abordagem de seu tema parte do
campo da educação popular e da educação de adultos, e não tanto da história da
educação.
9
A autora localiza os estudos de Vanilda Paiva que discute os cursos noturnos no âmbito da reforma
eleitoral proposta pelo estado imperial; de Ana Maria Freire, que associa essas experiências à transição do
escravismo para o capitalismo dependente; e de Celso Beisiegel, que os coloca como antecedentes de algo
que só viria a se efetivar sistematicamente a partir de 1930.
24
Cabe lembrar que a pesquisa histórica em educação sobre objetos mais pontuais
como o ensino secundário, o ensino normal, o ensino profissional, o ensino primário, a
cultura escolar etc. faz parte de uma tradição recente, que surge após a ruptura com
àquela dos compêndios portadores de todos os tópicos da história da educação universal
em limitado número de páginas, com prioridade para as idéias pedagógicas de cada
período. Segundo a tradição positivista que deu, por muito tempo, o tom dessa produção,
a base científica da prática pedagógica estava em ciências como a psicologia e a
sociologia. Dessa forma, estudos pedagógicos de objetos pontuais deveriam, de acordo
com o pragmatismo positivista, ser realizados por tais ciências. Por exemplo, no caso da
Educação de Jovens e Adultos, quem deveria ocupar-se de estudá-la em sua
especificidade seriam os sociólogos, pedagogos, psicólogos, mas dificilmente os
historiadores. Fazer história era então concebido como compilação de documentos
oficiais sobre os grandes feitos e grandes homens para uma narrativa que buscava a
cientificidade numa suposta imparcialiadade. Será em fins da década de 1980 que a
história da educação se debruçará de forma crítica sobre as fontes primárias, e procura
maior interlocução com a historiografia, principalmente aquela ligada à nova história
cultural, procurando:
Penetrar na caixa preta escolar, apanhando-lhe os dispositivos
de organização e o cotidiano de suas práticas; pôr em cena a perspectiva
dos agentes educacionais; incorporando categorias de análise como
gênero e recortar temas como profissão docente, formação de
professores, currículo e práticas de leitura e escrita delimitando
campos de estudo, são alguns dos novos interesses que vêm
reconfigurando a história da educação... (WARDE & CARVALHO,
semestre de 2000).
É este movimento que se apresenta nas páginas da “Revista Brasileira de História
da Educação”. Artigos como o de Adriana Silva sobre a escola de Pretextato dos Passos,
entre 1853 e 1873, escola para meninos negros e pardos. Ou ainda, o de Eliane Peres,
discutindo a trajetória, os problemas e caminhos de sua pesquisa de mestrado sobre os
cursos noturnos da Biblioteca Pública Pelotense em fins do século XIX e início do século
XX. Entretanto, não é totalmente improcedente a crítica de Cunha, que existem alguns
objetos menos privilegiados dentro do campo da história da educação sobre os quais se
25
faz necessário o aprofundamento das pesquisas, entre eles o que aqui enfocamos a
história da educação para jovens e adultos trabalhadores.
Podemos, hoje, observar que do reduzido desenvolvimento da pesquisa histórica
sobre os temas educação de jovens e adultos e educação popular, decorrem algumas
afirmações inconsistentes e a manutenção de certos “mitos fundadores”, que cumprindo
um papel político e social, sofrem, porém de falta de correspondência histórica. É o caso
da afirmação comumente feita, do surgimento da educação de adultos, no Brasil, a partir
da década de trinta, quando não da década de cinqüenta, com o aparecimento das
campanhas nacionais de erradicação do analfabetismo. O documento contendo a proposta
curricular para EJA, presente no site do Ministério da Educação, abre seu Breve Histórico
da Educação de Jovens e Adultos no Brasil com a seguinte frase: “A educação básica de
adultos começou a delimitar seu lugar na história da educação no Brasil a partir da
década de trinta, quando finalmente começou a se consolidar um sistema público de
educação elementar no país” (RIBEIRO et al., 1997, p. 19). Tal afirmação, ratifica uma
tradição de certo obscurantismo em relação aos esforços realizados, tanto no âmbito da
sociedade civil, quanto do próprio Estado, notadamente o Estado imperial a partir de
meados do século XIX, com a promoção de escolas noturnas para trabalhadores,
conferências populares e cursos de ensino profissional como os do Lyceo de Artes e
Officios. Não podemos falar em EJA como uma modalidade educacional plenamente
conceitualizada e institucionalizada no século XIX e no início do século XX, mas havia
ações educativas destinadas à adultos trabalhadores, caracterizadas por um tempo e
espaço específicos. Aqui se faz necessário enfatizar o termo trabalhadores, pois tais
tempos e espaços, qual seja, o período da noite, eram frequentados não por homens
adultos, mas também por meninos. Estes, por mais que regulamentos e inspetores de
instrução procurassem afastar, estavam ali presentes por terem de trabalhar durante o dia.
Os documentos do Ministério da Educação referentes à EJA aqui analisados,
apesar de não terem por objetivo uma produção historiográfica, veiculam uma história e
produzem uma memória sobre tal modalidade educacional. O Parecer 11/2000, onde
consta o tópico Bases Legais: histórico realiza uma história da EJA através da legislação,
enquanto os Subsídios à elaboração de projetos e propostas curriculares para o primeiro
segmento do ensino Fundamental produzidos pelo MEC contam essa história através das
26
práticas sociais e políticas. Tal distinção tem efeito, apenas compreensivo, que não é
possível pensar legislação sem praticantes, nem a vivência social sem a interferência de
diferentes teorias. É o próprio Parecer que afirma: “Toda legislação possui atrás de si
uma história do ponto de vista social. (...) As leis são, também, expressões dos conflitos
sociais”
10
.
No âmbito da legislação, o citado Parecer faz recuar sua história da EJA à
constituição imperial de 1824 que “reserva a todos os cidadãos a instrução primária
gratuita”. O relator do parecer aponta, porém, as contradições entre a lei máxima e a
realidade daquela sociedade onde a cidadania era restrita a livres e libertos.
Num país pouco povoado, agrícola, esparso e escravocrata, a
educação escolar não era prioridade nem objeto de uma expansão
sistemática. Se isto valia para a educação escolar das crianças, quanto
mais para adolescentes, jovens e adultos. A educação escolar era
apanágio de destinatários saídos das elites que poderiam ocupar funções
na burocracia imperial ou no exercício de funções ligadas à política e ao
trabalho intelecual
11
.
Demonstrando conhecimento sobre os fatos históricos educacionais do século
XIX o relator do “Parecer” estabelece, em seguida, um contraponto com a idéia de
política educacional voltada exclusivamente para as elites expressa acima ao citar o
decreto n° 7.247 de 19/4/1879 que reforma o ensino, apresentado pelo Ministro do
Império, Leôncio de Carvalho, pelo qual eram criados cursos para adultos analfabetos.
Entretanto é possível fazer recuar tal preocupação dos legisladores com tal matéria para
1854, quando o ministro do império, Luiz Pedreira do Couto Ferraz, institui o
regulamento 1331 A, reformando a instrução pública no qual figura, ainda que de forma
sumária, a proposta de aulas de instrução primária para adultos. Antes de 1879, houve
também, para o município da Corte, uma orientação organizada pelo inspetor geral de
instrução, José Bento da Cunha Figueiredo as Instruções provisórias sobre escolas
noturnas para adultos”, de 1872. E é o prório Leôncio de Carvalho que, em 6 de setembro
de 1878, lança o decreto 7031 A, estabelecendo cursos noturnos para trabalhadores nas
escolas primárias públicas, também na Corte.
10
www.mec.gov.br. Conselho Nacional de Educação/ Câmara de Educação Básica. Parecer CEB 11/2000:
Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação de Jovens e Adultos. Relator Conselheiro Carlos Roberto
Jamil Cury. P. 12.
11
www.mec.gov.br, Op. Cit. P.13.
27
Outra imprecisão encontrada no parecer do CNE (Conselho Nacional de
Educação), diz respeito ao caráter dos cursos noturnos promovidos por associações civis
por ele citados.
No início da República, seguindo uma tradição vinda do final do
Império, cursos noturnos de “instrução primáriaeram propostos por
associações civis que poderiam oferecê-los em estabelecimentos
públicos desde que pagassem as contas de gás. (Cf. Decreto 13 de
13.1.1890 do Ministério do Interior). Eram iniciativas autônomas de
grupos, clubes e associações que almejavam, de um lado, recrutar
futuros eleitores e de outro atender demandas específicas. A tradição de
movimentos sociais organizados, via associações sem fins lucrativos,
dava sinais de preenchimento de objetivos próprios e de alternativas
institucionais, dada a ausência sistemática dos poderes públicos neste
assunto
12
.
Diferente do que afirma o parágrafo citado, tais associações não eram totalmente
autônomas, bem como a ausência dos poderes públicos precisa ser relativizada, pois em
pesquisa sobre relatórios ministeriais, e em documentos produzidos pelas próprias
associações, foi possível notar uma colaboração entre Estado e associações através de
subsídios dados por aquele a estas. Outra forma do Estado fazer-se presente foi através de
regulamentos e fiscalização sobre esses cursos, como nos deixa entender as Instruções
organizadas pelo inspetor José Bento da Cunha Figueiredo.
Em relação ao período republicano, onde os relatores procuram se deter mais, e
oferecem maiores detalhes, serão apresentados como marcos fundamentais: a constituição
de 1934, que avançaria ao propor a gratuidade e obrigatoriedade do ensino primário
extensivas aos adultos; cita a importância do Manifesto dos Pioneiros da Educação, de
1932, para o desenvolvimento dessa concepção expressa na constituição. Entretanto, o
Plano Nacional de Educação que continha tais propostas não chegou a ser votado devido
ao golpe que instituiu o Estado Novo. Os marcos seguintes seriam as constituições de
1946, após o fim do Estado Novo, reconhecendo a educação como direito de todos; de
1961 determinando, para os maiores de 16 anos a possibilidade de obter “certificados de
conclusão do curso ginasial, mediante a prestação de exames de madureza, após estudos
realizados sem observância de regime escolar”
13
; e de 1967, que mantém a educação
12
www.mec.gov.br, Op. Cit. P.15.
13
www.mec.gov.br, Op. Cit. P.19.
28
como direito de todos (art.168) e, pela primeira vez, estende a obrigatoriedade da escola
até os quatorze anos. Este é também o momento de criação do MOBRAL como medida
de erradicação do analfabtismo.
Nas primeiras páginas deste texto procuramos explicitar um investimento ainda
restrito nas pesquisas em história da educação de jovens e adultos no Brasil. Mesmo
assim foi possível perceber, ao abordar as produções acadêmicas e os dois documentos do
MEC, que dentro desse universo diferentes formas de escrever história da educação.
Interessa, portanto, notar o tipo de memória construída por essas produções. No caso do
Parecer a ênfase recai sobre o papel da União; os marcos legais estabelecidos coincidem
com os momentos de maior centralização do governo federal o período do império, o
governo Vargas, e a ditadura militar. Fora do que é comum acontecer na maioria dos
“históricos da educação brasileira” como tentativas totalizantes, o presente documento
apresenta certa valorização à política educacional do estado imperial, e chega mesmo a
citar as associações civis voltadas para instrução do povo durante as últimas décadas do
século XIX. Impressiona, porém, o fato de não fazer referência aos movimentos de
Educação Popular das décadas de 1960 e 70, nem tampouco a teoria por eles
desenvolvida.
A forma de apresentação do “histórico da educação brasileira” no Parecer
explicita uma concepção fortemente institucional de uma modalidade educacional voltada
para as classes populares que, desde seu surgimento, convive com as tensões entre
formalidade e informalidade, reprodução e transformação. Concepção histórica que
privilegia uma evolução da ação governamental, que sem se deter em muitas
problematizações, acaba por valorizar o sentido que a EJA guarda, ainda hoje, o de
caráter supletivo muito mais do que de formação específica para um público com
demandas bem diferentes daquelas trabalhadas pelo ensino em séries regulares. Revela
ainda um lugar de produção onde a necessidade de uma normatização em nível nacional
de políticas para Educação de Jovens e Adultos faz com que, apesar de se afirmar a
pluralidade e a importância das “parcerias com a sociedade civil”, ainda prevaleça como
a “palavra finalaquela que vem do MEC um poder central que conta a sua história a
EJA pelas leis durante os principais períodos da vida do Estado brasileiro. Ao falarmos
sobre pluralidade e participação da sociedad civil não podemos deixar de citar,
29
atualmente, a atuação dos fóruns de educação de jovens e adultos, que reúnem diversos
agentes desta área (como movimentos sociais, programas universitários, representantes
de secretarias municipais e estaduais de educação, ou mesmo educadores
individualmente) para pensar políticas educacionais para EJA. Estes têm buscado
interlocução com os governos municipais, estaduais e, principalmente, o federal.
Poderíamos, entretanto, nos perguntar qual a capacidade efetiva de intervenção dos atuais
fóruns estaduais de EJA na política do MEC?
Integrado ao documento anteriormente discutido, como parte dos dipositivos
legais que dão respaldo à EJA, estão os subsídios à elaboração de projetos e propostas
curriculares. Apesar da integração, este segundo documento apresenta uma construção
historiográfica diferente do primeiro, o que parece decorrer da separação estabelecida
entre a história feita a partir de um corpo de leis, e a história feita a partir das práticas
sociais. Ao contrário do Parecer, ele não faz referência às iniciativas em educação de
adultos durante o Império, e mapeia o momento crucial de seu desenvolvimento em fins
da década de 1940.
Com o fim da ditadura de Vargas em 1945, o país vivia a efervescência
política da redemocratização. A Segunda Guerra Mundial recém
terminara e a ONU Organização das Nações Unidas alertava para
a urgência de integrar os povos visando a paz e a democracia. Tudo isso
contribuiu para que a educação dos adultos ganhasse destaque dentro da
preocupação geral com a educação elementar comum. Era urgente a
necessidade de aumentar as bases eleitorais para a sustentação do
governo central, integrar as massas populacionais de imigração recente
e também incrementar a produção. Nesse período, a educação de
adultos define sua identidade tomando a forma de uma campanha
nacional de massa, a Campanha de Educação de Adultos, lançada em
1947. (RIBEIRO et al., 1997, p. 19).
Este texto aponta a crítica e mudança de concepção da sociedade e dos
educadores em relação ao analfabeto, já em decorrência da Campanha de 1947. Ao
contrário da infantilização e incapacidade, passa-se a reconhecê-lo como adulto,
produtivo, capaz de raciocinar e resolver seus problemas. É a partir das críticas à
Campanha de Educação de Adultos, formuladas em fins de 1950, que surge como
referência o pensamento de Paulo Freire.
O pensamento pedagógico de Paulo Freire, assim como sua
proposta para a alfabetização de adultos, inspiraram os principais
30
programas de alfabetização e educação popular que se realizaram no
país no início dos anos 60. Esses programas foram empreendidos por
intelectuais, estudantes e católicos engajados numa ação política junto
aos grupos populares. Desenvolvendo e aplicando essas novas
diretrizes, atuaram os educadores do MEB Movimento de Educação
de Base, ligado à CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil,
dos CPCs Centros de Cultura Popular, organizados pela UNE
União Nacional dos Estudantes, dos Movimentos de Cultura Popular,
que reuniam artistas e intelectuais e tinham apoio de administrações
municipais. Esses diversos grupos de educadores foram se articulando e
passaram a pressionar o governo federal para que os apoiasse e
estabelecesse uma coordenação nacional das iniciativas. (RIBEIRO et
al., 1997, p. 22).
A interrupção desse movimento se com o golpe militar de 1964. Se no
Parecer, a experiência educacional da Pedagogia do Oprimido e demais formas de
Educação Popular não são citadas, nos Subsídios o “método” Paulo Freire é descrito com
detalhes, e ao citar a instauração do MOBRAL, observa que mesmo nesse contexto de
ditadura
Paralelamente, grupos dedicados à educação popular
continuaram a realizar experiências pequenas e isoladas de
alfabetização de adultos com propostas mais críticas, desenvolvendo os
postulados de Paulo Freire. Essas experiências eram vinculadas a
movimentos populares que se organizavam em oposição à ditadura,
comunidades religiosas de base, associações de moradores e oposições
sindicais. (RIBEIRO et al., 1997, p. 26 e 27).
Encontramo-nos, então, diante de uma outra memória da história da educação
brasileira, onde a sociedade civil é apresentada como ativa, onde há resistência à ditadura,
onde os que resistem têm rosto e nome. Cabe lembrar que os Subsídios são elaborados
em 1997, em conjunto com uma Organização Não Governamental – Ação Educativa da
qual fazem parte intelectuais ligados à universidade brasileira.
Não é nossa pretensão, porém, julgar a história, tampouco a memória verdadeira
ou falsa sobre a educação de jovens e adultos e a educação popular
14
, pois ambas apoiam-
se em fatos de alguma forma comprovados, e em todo caso, como afirma E. Carr
(CARR, 1978), nem todos os fatos sobre o passado são históricos, ou tratados como tal
pelo historiador. Existem critérios que distinguem os fatos da história de outros fatos do
14
Mais a frente serão oferecidos traços da discussão sobre a distinção entre esses dois termos, que são
profundas, e constituem um longo debate que não pretendemos, aqui, esgotar.
31
passado e essa seleção depende do historiador, bem como da “história do próprio
historiador”. Mesmo assim, continua sendo tarefa necessária procurar analisar as
produzidas, buscando compreender o tipo de intervenção que promovem junto às
questões do presente. Em resumo, a que se prestam as diferentes histórias da educação de
jovens e adultos, ou da educação popular? Nesse sentido, defendo aqui, também uma
forma de apropriação, na qual a EJA deve ser encarada como problema histórico,
estrutural e de resolução complexa, para o qual não são suficientes, medidas imediatas de
caráter compensatório. que se questionar que tipo de sociedade gerou e tem gerado o
analfabetismo, logo, a necessidade desta modalidade educacional, bem como o papel que
o analfabetismo cumpre em seu funcionamento, para que, mesmo frente a inúmeras e
antigas tentativas de extinguí-lo, continue existindo e mobilizando agentes educacionais.
A renovação por que passou, e vem passando o campo da história da educação
pode se constituir em estímulo para o trato dessas questões. Atualmente, a tendência
de uma preocupação maior com o trato crítico das fontes, bem como uma diversificação
destas. Por outro lado, procura-se tematizar, para além dos grandes feitos e grandes
personagens oficiais, as práticas sociais e seus agentes. Entretanto, ainda é preciso que a
renovação de problemas, fontes e abordagens tenha uma maior incidência sobre o objeto
aqui discutido. Se os trabalhos sobre educação de adultos precisam de maior recorrência
ao conhecimento historiográfico, também a historiografia precisa lançar seu olhar com
mais frequência sobre a educação de adultos, creio que assim a história pode contribuir
para que nossas ações incidam na raíz dos atuais problemas pelos quais passa a educação
para as classes populares.
1.2- Educação de Jovens e Adultos e Educação Popular.
Não podemos continuar falando de uma educação de adultos sem antes questionar
qual o sentido desse termo e o que ele representa histórica, política e teoricamente. Não
foi este o termo desde sempre usado para se referir ao provimento de ensino básico aos
homens e mulheres dele privados no tempo convencional. Como foi citado anteriormente,
era comum, entre as cadas de 1960 e 1980, no Brasil, o uso do termo “educação
popular”, indicando prioritariamente a educação para adultos no nível da alfabetização.
32
Da mesma forma que não é possível encontrarmos neutralidade na prática educativa,
também a prática da pesquisa científica está sempre orientada por uma visão de mundo,
um posicionamento político. Nesse sentido, não é possível confundir o que as escolas
noturnas de ensino primário para trabalhadores no século XIX foram, ou o que seu
momento histórico permitiu que fossem e, por outro lado, o que as convicções políticas
do pesquisador apontam como o que deveriam ter sido. Como forma de evitar
anacronismos e outros equívocos faz-se importante travar um debate sobre o conceito de
educação popular, não apenas no nível educacional, mas também no historiográfico, onde
seria possível confirmar a pertinência ou não de fazer dialogar as noções de educação
popular da segunda metade do XX, noções estas mais difundidas, com a realidade da
educação na segunda metade do XIX.
Antes de tudo, é necessário reconhecer que o uso do adjetivo “popular” associado
aos termos “educação” e “cultura” é, e foi em outros momentos, motivo de intenso
debate. Isso porque, como apontam os que o debatem, tal adjetivo carrega dois problemas
fundamentais: os riscos de imprecisão e de homogeneização em relação à realidades
complexas que busca expressar. Por que, então, associar ao termo educação, o adjetivo
“popular”? Em que esta caracterização favoreceria nossa compreensão dos fenômenos
educacionais? Como resumo dos extensos debates acadêmicos, não podemos ignorar a
tese de que qualquer educação está inserida como parte constitutiva de sua sociedade e
seu tempo, da mesma forma, não é possível ignorar que nossa sociedade e nosso tempo
estão divididos entre elites e classes populares. Mas a realidade não é simples assim. Por
isso o adjetivo popular pode favorecer nossa compreensão quando levamos em
consideração as experiências históricas concretas. Afinal, quem é o “popular”, como é
definido, por quem é definido em cada momento.
Em um artigo publicado na “Revista Brasileira de Educação”, Pierre Bourdieu faz
a crítica à imprecisão do termo popular, alegando que “na realidade polimorfa obtida (...)
cada um daqueles que se sente no direito ou no dever de falar do povo pode encontrar um
suporte objetivo para seus interesses e seus fantasmas” (BOURDIEU, jan /abr de 1996, p.
26). Aponta que não é feita a crítica necessária a esses usos, pelo receio de ser
considerado “politicamente incorreto”
15
, interessado em agredir a realidade designada. O
15
O autor não usa essa expressão.
33
que Bourdieu chama de “objetivações do popular” (linguagem popular, classes populares,
cultura popular, medicina popular) define-se relacionalmente pela idéia de excluído do
oficial, do legítimo, mas operam com exclusões e inclusões de sujeitos mais específicos.
Por exemplo, o termo “classes populares” pode não incluir os camponeses, enquanto
“arte popular os inclui”. Mas o autor não exclui a pertinência do uso das “noções
pertencentes à família do popular”.
Se a despeito de suas incoerências e incertezas e também graças
a elas, as noções pertencentes à família do ‘popular’ podem prestar
muitos serviços até no discurso erudito, é porque elas estão
profundamente encerradas na rede de representações que os sujeitos
sociais engendram para as necessidades do conhecimento corriqueiro
do mundo social. (BOURDIEU, jan /abr de 1996, p. 21).
Tomando o exemplo do uso das gírias, mostra como a generalidade do termo
discutido pode nublar nossa visão da complexidade. A gíria, muitas vezes vista como
linguagem popular por excelência é um modelo de certo grupo dentro do “popular”, por
exemplo, os “machões” que caracterizam a fala erudita como afeminada”. É uma busca
de transgressão. É uma busca de afirmação pela apropriação daquilo que os estigmatiza.
Como se falar sem os plurais se tornasse um símbolo de valentia.
Certamente, é com os homens, e entre eles os mais jovens e
menos integrados, atualmente e, sobretudo de forma potencial na ordem
econômica e social como os adolescentes oriundos de famílias
imigradas que se encontra a recusa mais marcante à submissão e à
docilidade implicadas na adoção das maneiras de falar legítimas.
(BOURDIEU, jan /abr de 1996, p. 21).
No extremo oposto desta classificação estariam as mulheres mais jovens e
escolarizadas, cujas “maneiras” as aproximariam da pequena burguesia. Quando, porém,
em contato com os detentores da fala legítima, os dominados tendem a correções de sua
fala ou ao silêncio, pois segundo Bourdieu, ninguém pode resistir completamente à lei
lingüística ou cultural. Apesar de ser fundamental a chamada de atenção que Bourdieu
faz em relação a caracterização de popular sempre pela falta o não oficial, a assimetria
de poderes entre o popular e o oficial que de fato existe para além dos discursos
construídos acerca do tema, não pode ser perdida de vista. Daí a importância de se
recorrer ao termo para designar, dentro da heterogeneidade, uma visão afirmativa da
construção de coletividade entre certos grupos, que têm suas especificidades, mas tem em
34
comum a necessidade da luta por acesso aos meios de poder decisório e à propriedade
dos meios de produção.
No âmbito do mesmo debate sobre as apropriações do termo “popular”, Chartier
(1995) caracteriza a grande tensão entre aqueles que vêem o “popular” como coerente e
autônomo, e os que o vêem como dependente e carente em relação aos grupos
dominantes. Diante desta tensão, o autor coloca uma terceira possibilidade: nas relações
entre classes populares e classes dominantes, nem tudo que é imposto, é necessariamente
aceito, resistências e apropriações. Porém, Chartier chama atenção para a necessidade
de não deixar o conceito de apropriação produzir uma nova ilusão – a da equivalência nas
formas de apropriação, uma vez que não se pode esquecer a diversidade das lutas sociais.
Sob a perspectiva de Chartier, Martha Abreu
16
realiza um pequeno histórico das
apropriações do “popular” no Brasil. Ela o faz em relação à cultura, o que podemos, de
certa forma, considerar extensivo a outras “objetivações do popular”. No século XIX o
termo “cultura popular” foi apropriado pelas elites na construção do projeto de Estado
nacional independente, contrário ao projeto do colonizador. Nas décadas de 1940 e 1950
teria sido apropriado pelos “políticos populistas” que jogavam com a dicotomia
desenvolvimento nacional versus dependência. Também as esquerdas da década de 1960
teriam se apropriado de modo diferente, utilizando a noção de popular como classe
subalterna. A autora aponta como representantes destas três formas de apropriação,
intelectuais como Silvio Romero, Gilberto Freyre e Florestan Fernandes,
respectivamente.
Após a realização desse hitstórico, ela aponta uma outra possibilidade de inserção
no debate, pela via da história social, vinculada ao pensamento de autores como Chartier,
Guinzburg, Thompson, entre outros. Estes enfatizam que não homogeneidade entre os
sujeitos ou classes de sujeitos denominados “populares”, embora haja aspectos
compartilhados. O fundamental seria sua contextualização histórica. Por isso Abreu
afirma que “popular não se conceitua, enfrenta-se
17
.
“Há, certamente, uma posição clara, teórica e política
nada ingênua, diga-se de passagem ao se defender
16
ABREU, Martha. Cultura popular, um conceito e várias histótrias. In: SOIHET, R. e ABREU, Martha.
(org). Ensino de História. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, FAPERJ, 2003.
17
ABREU, Martha. Op. Cit. P. 94-96.
35
a utilização da expressão cultura popular. O objetivo é
colocar no centro da investigação as pessoas de baixa
renda, geralmente identificadas e discriminadas
socialmente pela cor da pele, pelo local de moradia,
pelo modo de ser e se vestir e pela pretensa
criminalidade. No sentido político seriam os
desprovidos de poder. Se podem ser tratados
genericamente por populares (sem obrigação de
suprimirmos as possíveis grandes diferenças entre
eles, como as distinções de gênero, raça, idade, região
e religião) isto deve-se ao fato de compartilharem
certos aspectos, que devem ser demonstrados, tais
como as condições de vida, significados de festas e
danças, gostos, e de modo geral, assim serem
considerados por autoridades policiais, professores,
intelectuais e muitas vezes, eles próprios. Deve-se
considerar que muitos organizadores de festas,
membros de grupos folclóricos, músicos, artistas
plásticos e artesãos se auto denominam “populares”.
(...) Cultura popular não se conceitua, enfrenta-se. É
algo que precisa sempre ser contextualizado e
pensado a partir de alguma experiência social e
cultural, seja no passado ou no presente, na
documentação histórica ou na sala de aula. O conceito
emerge na busca da maneira como as pessoas
comuns, as camadas pobres ou populares (ou o que
pelo menos se considerou como tal) enfrentam (ou
enfrentaram) as novas modernidades (nem sempre tão
novas assim), da maneira como criam (ou recriam),
vivem (ou viveram) denominam, expressam,
conferem, significados à seus valores, suas festas,
religião e tradições, considerando sempre a relação
complexa, dinâmica, criativa, conflituosa e por isso
mesmo política mantida com diferentes segmentos da
sociedade”.
Tomando educação popular como uma das possíveis “objetivações do popular”,
podemos encontrar disputas pelo seu uso. As imprecisões do termo acabam fazendo-o
designar práticas muito diferentes e por vezes antagônicas. Se uma forma mais
abrangente de definir o termo é através da tensão entre educação elitista e educação
popular, cabe lembrar que não há uma maneira unívoca de considerar o que seja a
segunda. As principais disputas pelo termo e tentativas de definição se deram nas décadas
de 1970/80, quando, a academia buscava conhecer as experiências de educação não
36
formal desenvolvidas na América Latina, voltadas para as classes subalternizadas da
sociedade, cujos estudos localizam seu surgimento entre as cadas de 50 e 60 do século
XX. Dessa maneira foi criada uma memória sobre essa expressão que ficou associada às
iniciativas, em sua maioria desenvolvidas fora da rede oficial de ensino. Essa concepção
fundava-se na crítica à escola tal como funcionava: elemento de manutenção da
desigualdade social, apesar do discurso de direitos iguais no acesso à educação para
todos. Afirmavam seus críticos que os sujeitos ingressam na escola em condições
desiguais. Havia, porém, iniciativas no âmbito não formal, voltadas para as classes
populares que não faziam a crítica ao sistema educacional vigente. Tinham, por outro
lado, o objetivo de suprir suas faltas, realizar o que ela não realizara no tempo
convencional – integrar as classes populares aos padrões da civilização escolar. No
campo da teoria, essa tensão se expressa na disputa pela definição do termo “Educação
Popular”. Para Carlos Rodrigues Brandão, este termo estabelece três significados.
Enquanto democratização dentro do sistema escolar. Pode assumir o caráter de
extensão do ensino escolar a grupos populares e marginalizados. Na história do Brasil,
essa extensão foi restrita e insuficiente. No período colonial, a formação profissional era
feita de maneira prática, por associações, irmandades e confrarias. Segundo Brandão,
no fim do século XIX, o Estado imperial criará a primeira escola no Rio de Janeiro, e
apenas no século XX a luta de educadores, intelectuais, e grupos organizados do
operariado, vai forçar o estado a assumir a educação laica, blica e universal. Essa luta
tinha inspiração no ideário liberal francês e norte americano. Possuía dois princípios
básicos: da educação como direito do cidadão e meio de construção de uma sociedade
democrática; e como condição para melhorar os indicadores de nossa situação de atraso e
pobreza. É criado o mito da educação igual para todos, entretanto, “a educação entre
vidas diferentes, ajuda a traçar destinos desiguais” (BRANDÃO, 1984, p. 16 e 17). A
desigualdade contida na ordem da sociedade é reproduzida pela escola, dessa forma,
perpetua-se a divisão entre uma pequena fração de senhores do poder e/ou do capital,
uma faixa intermediária de trabalhadores e funcionários liberais a meio caminho entre o
puro poder e o puro trabalho, e a massa multiplicada de trabalhadores braçais.
Enquanto educação para libertação, dentro do movimento de cultura popular,
numa conjuntura de governos populistas, uma intelectualidade estudantil, universitária,
37
religiosa e partidariamente militante se associou às novas formas de organização das
classes populares, tendo na educação um instrumento de politização e conscientização
visando à transformação social.
Enquanto educação de adultos paralela ao sistema formal. Esta modalidade surge
patrocinada pela UNESCO, empenhada em solucionar os problemas do recém descoberto
terceiro mundo, através da ideologia do desenvolvimento. Seu objetivo era reintegrar os
marginalizados à vida social “digna e produtiva”. Essa tática se constitui mais em
controle que em desenvolvimento, uma vez que se faz desconhecendo, ou mesmo se
contrapondo aos movimentos locais, especialmente em áreas de tensão social. Essa
educação de adultos assume um caráter compensatório, colocando-se o em disputa,
mas à margem do sistema formal, e dessa forma está sempre defasada em relação a ele.
“Não nos iludamos, sua falta é sua suficiência” (BRANDÃO, 1984). Ao realizar a
incorporação de experiências educacionais autônomas, fragmentadas, dando-lhes outra
orientação política, as agências realizam o trânsito do movimento para a instituição.
Outro teórico, Carlos Alberto Torres (TORRES, 1992), utiliza os mesmos
pressupostos, partindo do termo “educação não formal”, a qual divide em educação
popular e educação de adultos. Segundo ele, a educação popular surgiu antes da educação
de adultos, como política educacional de alguns governos com objetivos de mudança
nacional e participação popular, por exemplo, o de Lázaro Cárdenas, no México, na
década de 1930. Foi promovida também por grupos revolucionários, como a educação
antioligárquica, na Bolívia, em 1952, e a educação liderada pelos anarco-sindicalistas nas
primeiras cadas do século XX, na Argentina. a Educação de Adultos teria surgido
após a Segunda Guerra Mundial, impulsionada pela vitória contra o fascismo, acirrando
as demandas por democratização nas sociedades ocidentais. Essa educação, entretanto,
não implicava um projeto radical de mudança no nível das relações de produção ou do
regime político em que esses projetos tomaram forma.
Outra autora que cria uma tipologia das formas de educação dirigidas às classes
populares é Vanilda Paiva (PAIVA, 1973). Apoiada em alguns conceitos desenvolvidos
por Jorge Nagle (NAGLE, 1976), ela caracteriza três estilos principais adotados pelos
movimentos educacionais. O “Entusiasmo pela Educação” diz respeito a movimentos
educacionais com perspectiva externa a esse campo. Caracteriza-se por preocupações
38
quantitativas, de como levar a instrução formal ao maior número de pessoas. Não se
preocupa com a qualidade do ensino, mas com os dados estatísticos. Um de seus
principais objetivos é a ampliação do número de votantes para legitimação do sistema
político vigente. Essa perspectiva baseava-se na crença de que a educação seria a
panacéia para os problemas da nação. O Relatório do Serviço de Educação de Adultos,
Rio de Janeiro, 1951, afirma: “O analfabetismo é o cancro que aniquila nosso organismo,
com suas múltiplas metástases, aqui ociosidade, ali o vício, além o crime. Exilado dentro
de si mesmo como em um mundo desabitado, quase repelido para fora da espécie por sua
inferioridade, o analfabeto é digno de pena, e nossa desídia, indigna de perdão enquanto
não lhe acudirmos com o remédio do ensino obrigatório” (PAIVA, 1973). Essa
perspectiva tinha como conseqüência a justificativa do sistema social, político e
econômico a partir do momento que atribui a “culpa” pelo analfabetismo, aos próprios
analfabetos. Não os reconhece como sujeitos portadores de conhecimentos acumulados,
valores próprios, e capazes de transformar suas próprias condições, afirmando a
necessidade de uma elite culta para civilizá-los e dirigí-los.
Outro estilo de movimento educacional, que tem como conseqüência a
conservação das estruturas sócio-político-econômicas através do sistema educacional, é o
que a autora caracteriza como “Otimismo Pedagógico”. Os profissionais ligados a ele
estariam preocupados com a qualidade do ensino, opondo-se a difusão quantitativa.
Prendeu-se, entretanto, a uma perspectiva interna da educação, enfatizando seu caráter
técnico em detrimento de suas implicações políticas.
Diferente dos dois anteriores, o “Realismo em Educação” reúne perspectivas
internas e externas da educação. O grupo que o adota é, entretanto, bastante heterogêneo.
A autora classifica dentro dessa heterogeneidade, quatro tendências. Uma primeira seria a
dos profissionais da educação, liberais, entre os quais, Anísio Teixeira é um dos
principais nomes. Este grupo estava atento aos problemas colocados pela tensa e difícil
relação educação e democracia. A segunda seria a esquerda marxista, que buscava na
atuação educativa, contribuições para a transformação da sociedade através da revolução
proletária e, lutavam também pelas melhores oportunidades de vida que a educação
poderia proporcionar às classes populares. A partir de 1950, surge a intervenção de
esquerdas não marxistas, uma terceira tendência derivada da associação entre cristãos e
39
marxistas. Estes pensavam a educação como forma de promoção do homem; como meio
de agir sobre os indivíduos, proporcionando a eles conscientização para que fosse
possível a transformação social. É desse grupo que surge o método de alfabetização de
jovens e adultos criado por Paulo Freire. Uma quarta surgiria na década de 60, com os
tecnocratas que trataram a educação como fator de crescimento econômico. Nesse
momento, eles buscaram equiparar a oferta de educação à demanda por mão-de-obra
qualificada. Para este grupo, a educação era um instrumento a serviço do fortalecimento
das estruturas sócio-econômicas vigentes, e dos grupos políticos dominantes. São
comumente identificados com os regimes militares da América Latina, entre os anos
1960 e 1980.
Como ponto comum entre estas teorias podemos observar o reconhecimento das
desigualdades sociais inscritas no sistema educacional formal. Algumas delas advogam a
necessidade e propõe alternativas de reformas no interior deste, outras procuram agir fora
dos limites convencionais da escola. Entre estas últimas, as alternativas no sistema não
formal, encontramos algumas que entendem a educação como instrumento de
transformação social, e trabalham neste sentido, outras têm procurado servir à
manutenção da ordem através da simples compensação das carências do sistema formal.
Diante de tais ambiguidades, torna-se necessário considerarmos a proposta política que
orienta a ação dos grupos que promovem as iniciativas educacionais voltadas para as
classes populares.
Particularmente, acredito que educação popular é aquela comprometida com a
emancipação das classes populares baseada na problematização do sistema social e
dentro dele o educacional e que esta se realiza plenamente em um contexto de
transformações também externas à escola: econômica, política, cultural. Ou seja, num
processo revolucionário (a exemplo da cruzada de alfabetização em Cuba, das iniciativas
na Nicarágua sandinista...). Entretanto, na produção de um conhecimento científico, é
necessário considerar as experiências educativas em suas especificidades, o mais próximo
possível do que elas significaram, e não de como nosso próprio ideal de educação popular
pode julgá-las.
Seria possível, então, falarmos em educação popular no século XIX? Sim, se
apreendermos seu significado histórico. Não apenas é possível, como também é
40
importante pensar essa possibilidade dentro da crítica a uma tradição de pensamento
educacional de apagar as iniciativas anteriores aos movimentos que representam. Como
não são muitos os trabalhos de história da educação que tratam da educação popular no
período imperial, é mantido certo consenso sobre seu aparecimento a partir de meados do
século XX. Mas é possível encontrar trabalhos que recuam à esse tempo percebendo
que nós, mulheres e homens do presente, não fomos os únicos a buscar respostas para
problemas que expressam uma certa continuidade.
O que seria educação popular na sociedade imperial brasileira? A educação
popular no período do Império se constitui em uma preocupação cujas medidas são
geradas a partir das elites. Após a emancipação política do Brasil houve um movimento
de transformações na sociedade pela via de reformas, mantendo o princípio da ordem. Ao
analisar a formação do Estado imperial, Ilmar Mattos destaca o papel da educação nesse
processo. Para Ilmar, a educação popular foi forjada no momento em que se forjava o
Estado imperial e uma determinada classe senhorial - os Saquaremas (nome atribuído aos
membros do partido conservador, em oposição aos liberais chamados de Luzias).
Essa educação foi uma conseqüência e uma necessidade constitutiva desse
movimento. O autor aponta tal necessidade no contexto de um projeto que visava unificar
de forma centralizadora a realidade de uma ex-colônia ordenada internamente pelos
governos particulares das “Casas”, cheia de heterogeneidades regionais, sociais e raciais.
Para os dirigentes Saquaremas (que dominavam a província fluminense e faziam dela o
laboratório de políticas a serem encaminhadas para o nível geral) a instrução seria meio
central de resolver tais problemas. Para tanto, ela não poderia ficar restrita às elites,
deveria ser para todos. A instrução para todos deveria cumprir o papel de difusora das
luzes, trabalhando pela unidade da nação como nação civilizada. “... Permitiam romper as
trevas que caracterizavam o passado colonial, a possibilidade de estabelecer o primado da
razão, superando a “barbárie dos sertões” e a “desordem da rua”, o meio de levar a efeito
o espírito de associação ultrapassando as tendências localistas representadas pela casa...”
(MATTOS, 1994, p. 245 e 246).
Ao tomarem a sociedade como um todo, os “Saquaremas” reconheciam como
classes: “os brancos ou a boa sociedade”; o “povo mais ou menos miúdo”; e os
“escravos”. A educação para todos, ontem como hoje, guardava limites. No caso em
41
questão, para todos, significava os cidadãos, distinguindo primordialmente livres “boa
sociedade” e “povo mais ou menos miúdo” - dos “escravos” e junto com eles os pretos
africanos livres ou libertos”, que eram impedidos de freqüentar as escolas públicas pelo
decreto de 21 de janeiro de 1837. Entretanto, mesmo entre os “cidadãos” a idéia de
“todos” continuava a conter limites. Alguns eram mais cidadãos que outros. Alguns eram
“cidadãos ativos”. A diferenciação de graus de ensino reservado aos membros da “boa
sociedade” e ao “povo mais ou menos miúdo” servia como forma de hierarquização para
além da escola. As escolas de instrução primária seriam divididas em instrução elementar
responsáveis pela difusão de “conhecimentos indispensáveis às classes inferiores”, e
escolas de segundo grau, difusoras de conhecimentos mais específicos. Em seguida
vinham as escolas secundárias, que tinha objetivo de preparar para o ensino superior. Os
conhecimentos úteis ao lado dos estudos literários tinham função de formar homens
ativos, isto é, a constituição dos futuros cidadãos ativos.
O grande objetivo desse Estado não era corresponder às necessidades de difusão
de saberes comuns à população. Seu grande objetivo era estabelecer a normatização de
um conjunto de saberes e de uma forma de acessá-los: saberes escolares através da
instituição escolar. Nas palavras de Ilmar Mattos: “Mas não se reivindicava para o
governo do Estado tanto um dever, e sim um monopólio de uma direção também neste
campo particular: ‘resta ainda tornar uniforme o sistema de ensino das atuais escolas e
dar-lhes a mais conveniente direção, estabelecendo meio de o fazer, e de fiscalizar se os
professores cumprem como devem seus deveres” (MATTOS, 1994, p. 252).
Ao discutir o conceito de educação popular, Rosa Fátima de Souza (SOUZA,
1998) trabalhando sobre a Primeira República aponta que esta pode ser entendida
associada à democracia, como extensão da educação igual para todos. Mas é mais
freqüentemente encontrada como instrução elementar primária estendida ao povo, parcela
desfavorecida da sociedade. Quando a educação passa funcionar como sinônimo de
escola, a educação popular ganha caráter de difusão do ensino elementar pela escola. O
mesmo sistema que cria a escola como promotora de hierarquias sociais, é o que vai
difundir o mito da escola como forma de equalização social. A normatização também cria
demandas às classes populares, e as demandas geram lutas e estratégias para seu
suprimento. Nesse sentido é que a autora, ao estudar as lutas populares por educação nas
42
primeiras décadas do século XX em Campinas, incluirá também o que chamou de vozes
dissonantes. Vozes que concebem e concebem outros objetivos à educação, diferentes das
elites. Refere-se notadamente às organizações do movimento operário que chegaram até
mesmo a fundar escolas próprias. No caso do Império torna-se mais complexo encontrar
organizações em confronto explícito com o projeto educacional das elites e do Estado.
vozes dissonantes, por certo, mas, até onde se tem conhecimento, essas são mais
individualizadas e mais difíceis de acessar através das fontes quase sempre oficiais.
Resta-nos buscar tais vozes através de um olhar atento aos indícios de sua presença nos
registros existentes.
Dois estudos mais ou menos recentes trabalham com sentidos mais amplos para
educação popular no século XIX que os de instauração e conservação das relações de
poder dominantes naquela sociedade. Eliane Peres, ao delimitar seu objeto de estudo os
cursos noturnos da Biblioteca Pública Pelotense, no período de 1875 a 1915 atribui a
ele três dimensões: de classe, de grupo étnico e de gênero. Encarando o “popular” como
sujeito ativo nas relações de poder dentro e fora da sala de aula, percebe as possibilidades
de outros usos para os saberes oficiais.
A questão era: como descobrir se esses alunos atuavam em
outros espaços da vida social pelotense? (...) Ocorreu-me a
possibilidade de cruzar os dados disponíveis dos alunos com os de
participantes em associações populares, especialmente as carnavalescas,
dramáticas, abolicionistas, e de classe. (...) Se a participação nas aulas
dos cursos noturnos teve influência ou não sobre as idéias e atividades
desses homens, é difícil afirmar, nem é esta minha pretensão com este
estudo. Mas é certo que o domínio do código escrito foi condição básica
para atuação, o engajamento e a luta de alguns alunos em entidades e
movimentos populares (PERES, 2002, P. 28).
A leitura da obra de Peres deixa ver que uma das principais razões para o
investimento em educação popular era por si uma expressão das lutas sociais a
questão da abolição. “O decreto mais importante da criação dos cursos noturnos data de
1878, portanto sete anos depois da lei do ventre livre e dez anos antes da abolição da
escravidão. Equivale a dizer que tais cursos foram criados e se expandiram no auge da
discussão abolicionista”. Se considerarmos a perspectiva de intelectuais da época, trazida
por Luciano Mendes Faria Filho (FARIA FILHO, 2003), de que a liberdade sem
educação era perigosa, podemos pensar na consideração das elites sobre os negros
43
(escravos, livres ou libertos) e os brancos pobres e trabalhadores enquanto classes
perigosas, como prova de que estes segmentos não se mantiveram dóceis às diretrizes do
governo. São uma ameaça porque, portadores de interesses e necessidades que, com
frequência, iam de encontro às condições e à ordem promovidas pelas elites, agem de
diferentes maneiras, dentro ou fora desta ordem, a fim de satisfazer tais interesses.
Contrariando as expectativas de abordagens que restringem as lutas das classes
populares por educação aos anos mais recentes da República, o estudo de Adriana Maria
Paulo da Silva traz à luz a experiência da escola de Pretextato dos Passos e Silva. O caso
de um professor que pede permissão para funcionamento de sua escola primária onde
eram atendidos meninos pretos e pardos, num momento em que a reforma Couto Ferraz
18
determina a necessidade de permissão oficial para funcionamento de escolas particulares.
A partir dessa experiência a autora se questiona: “Quantos meninos passaram por
Pretextato? Quantos outros Pretextatos atuavam na Corte na década de 1950, ou antes?
Quem poderia pagá-lo se é que ele cobrava por seu magistério? Como funcionaria aquela
escola e outras daquele tipo?” (SILVA, 2002). E ainda, estaria Pretextato lutando contra o
racismo? A autora questiona ainda sua própria questão estaria, talvez, Pretextato,
usando os estereótipos para conseguir sua escola? Seus interesses seriam mais os de
assegurar sua posição de professor do que de um militante da causa antiescravista?
Questões inexploradas pela ausência de fontes, mas que delineiam um arco de problemas
a serem enfrentados para aprofundar a compreensão da iniciativa examinada.
Por certo temos, no âmbito das pesquisas atuais, maiores condições de acessarmos
as representações de elites intelectuais ou políticas sobre a educação do povo. As
questões que começam a surgir quando o pesquisador procura, em suas fontes, as
representações de educação popular, no período imperial, feitas pelas próprias classes
populares vão requerer ainda uma maior dedicação do campo da história da educação. Tal
esforço é, entretanto, fundamental para que possamos compreender mais a própria
18
A reforma instituída em 17 de fevereiro de 1854, através do “Regulamento da instrução primária e
secundária do Município da Corte” tinha como objetivo modernizar as maneiras de educar, tendo como
protagonista a escola que ajuda a definir e consolidar. Para tanto criará a Inspetoria Geral da Instrução
Primária e Secundária da Corte (IGIPSC), buscará promover a profissionalização da instrução, definir as
regras para o ingresso de professores e alunos, os saberes a serem ministrados pela escola, e estabelecer
uma rede de vigilância sobre a organização escolar e seus sujeitos. Para uma análise da reforma Couto
Ferraz, ver o texto “A emergência da escola”. (GONDRA, mimeo).
44
formação da sociedade brasileira, processo em que a escolarização formal ou as
iniciativas exteriores ao sistema oficial cumprem papel de grande relevância.
II- Os Discursos Acerca das Escolas Noturnas: constituição do projeto
político pedagógico elitista.
Ó menina vai ver nesse almanaque /Como é que isso
tudo começou /Diz quem é que marcava o tic-tac /que a
ampulheta do tempo disparou /Se mamava de sabe que a
teta/ O primeiro bezerro que berrou me diz, me diz /Me
responde, por favor, /Prá onde vai o meu amor /Quando o
amor acaba /Quem penava no sol a vida inteira /Como é que
a moleira não rachou me diz, me diz /Quem tapava esse sol
com a peneira /E foi que a peneira esfuracou /Me diz, me
diz, me diz por favor /Quem pintou a bandeira brasileira
Que tinha tanto lápis de cor me diz, me diz /Me responde
por favor /Prá onde vai o meu amor /Quando o amor acaba
/Diz quem foi que fez o primeiro teto /Que o projeto não
desmoronou /Quem foi esse pedreiro esse arquiteto /E o
valente primeiro morador, me diz, me diz /Me diz um
morador /Diz quem foi que inventou o analfabeto /E
ensinou o alfabeto ao professor me diz, me diz /Me
45
responde por favor /P onde vai o meu amor
Quando o amor acaba /Quem é que sabe o signo do capeta
/E o ascendente de Deus Nosso Senhor /Quem não fez a
patente da espoleta /Explodir na gaveta do inventor me diz,
me diz /Me diz por favor /Quem tava no volante do planeta
/Que o meu continente capotou /Me responde por favor /Prá
onde vai o meu amor /Quando o amor acaba
se no almanaque, essa menina /Como é que termina
um grande amor /Me diz, me diz /Se adianta tomar uma
aspirina /Ou se bate na quina aquela dor /Me diz, me diz
/Me diz daquela dor / Se é chover o ano inteiro chuva fina
/Ou se é como cair do elevador /Me responde por favor /Prá
que que tudo começou /Quando tudo acaba.
19
Talvez não haja almanaque que solucione nossa sempre presente intriga acerca do
nosso passado e futuro. Um passado que, na música escolhida para a abertura deste
capítulo, representa a origem das coisas: dos inventos, das condições, dos sentimentos; e
um futuro que é o fim da linha, ponto de chegada. Essa concepção de futuro dificilmente
encontraria espaço entre as correntes historiográficas atuais, a despeito de afirmações
sobre o “fim da história”
20
. A história é vivida, a cada dia, de forma inédita a partir de
heranças recebidas.
a concepção de história como busca da origem ainda orienta alguns
historiadores que buscam nela as causas primeiras das mazelas de seus objetos de estudo.
Adotando rumo diferente procurarei me aproximar de uma outra forma de relação com o
passado onde não há uma origem das coisas que já as definiria por princípio e essência. A
história se faz por acontecimentos inter-relacionados, em determinado tempo, espaço e
condições sociais. Haveria pertencimentos, proveniências e pontos de surgimento, mas
não uma identidade homogeneizadora. De modo equivalente, nessa perspectiva, o
presente não seria o ponto de total completude daquilo que começara a se desenvolver
por um caminho determinado desde sua origem. A história é, então, feita na dinâmica das
lutas cujas batalhas deixam brechas para o acaso (FOUCAULT, 2003) de onde brotam
resistências, subverções do projeto original, reviravoltas, transformações.
19
BUARQUE DE HOLANDA, Francisco. Almanaque. In: Albúm Almanaque, Polygram, 1981. Grifos
meus.
20
Como a que foi propalada pelo filósofo norte americano, “pós-moderno”, Francis Fukuiama, referindo-se
à vitória do capitalismo sobre o socialismo real após a queda da URSS, e o fim da luta de classes.
46
Creio, entretanto, que Chico Buarque talvez não estivesse preocupado com “teoria
da história” quando fez sua música, mas depois de feita, é certo que fica sujeita a
diferentes apropriações, inclusive pelas discussões sobre “teoria da história”. Até porque,
a poesia possui a característica de nos envolver e, talvez, com maior facilidade que as
teorias científicas, nos “ajudar a olhar”
21
o mundo à nossa volta. As perguntas do poeta –
uma pergunta em especial em que pese parecer ingênua no interior de um trabalho
acadêmico, servirá como meu ponto de partida: “Diz quem foi que inventou o analfabeto
e ensinou o alfabeto ao professor”. E, como costuma acontecer com perguntas que
parecem óbvias, encontramos várias dificuldades ao tentarmos repondê-la.
Para os menos atentos ou para aqueles que tendem a simplesmente naturalizar os
fenômenos sociais, a resposta é fácil. Quem não aprendeu a ler e a escrever teria
permanecido analfabeto, logo ninguém os teria inventado, eles mesmos teriam se feito
assim. Para os mais críticos, o analfabeto teria sido criado por sistemas sociais injustos,
que não provêem a instrução necessária à todos. Nesse sentido, não teria sido,
exatamente, inventado, mas teria surgido em decorrência de um desvio no
desenvolvimento de certo modelo de sociedade, timas do fracasso escolar e
incompetência das elites dirigentes.
A pesquisa que procurei desenvolver adota um outro ponto de vista que me parece
se aproximar mais do sentido literal da palavra usada pelo poeta: o analfabeto é uma
invenção. Para tentar fundamentar tal hipótese, vamos ao século XIX, mais
especificamente à sua segunda metade, quando o Estado imperial e a sociedade da Corte
voltam suas preocupações e ações para “libertar os deserdados da sorte das trevas da
ignorância”
22
. Em determinado momento, as primeiras letras tornam-se o importantes
no cotidiano da sociedade que “cidadãos beneméritos” e o “Estado responsável”
21
Há um texto de Eduardo Galeano, no “Livro dos Abraços”, que expressa isso com precisão:
A função da arte/1
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o
Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar
estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo
de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
- Me ajuda a olhar!
22
Estes são termos adotados à época.
47
acenderão lamparinas nas escolas, durante a noite, para instruir o homem adulto
“analfabeto”.
Nesse momento, retomamos a questão central que orienta o trabalho aqui
desenvolvido: se a “luta contra o analfabetismoexiste no Brasil desde o culo XIX,
porque este ainda é um problema entre nós? Por que a modalidade educacional que mais
atua sobre ele, atendendo a jovens e adultos iletrados ou com pouco domínio dos
conhecimentos escolares básicos, continua sendo, depois de tanto tempo, periférica e
desenvolvida prioritariamente no âmbito da caridade? Pistas para pensarmos esta questão
podem ser encontradas na discussão feita por Michel Foucault, sobre o surgimento da
“sociedade disciplinar” e a implantação do projeto da modernidade capitalista do qual o
modelo de escola que temos é uma peça chave.
No século XIX os homens, e me refiro aos sujeitos do sexo masculino, que se
investiam do direito e dever de representar os interesses públicos como interesses da
nação, afirmavam a necessidade de transformações para a sociedade brasileira. Isso
significava, naquele momento, para as autoridades e para o senso comum, atingir certos
parâmetros de modernização e moralização que equiparasse o Brasil às sociedades
civilizadas da Europa ocidental e aos Estados Unidos. Palavra “mágica” da época,
civilizar era dar formas precisas a um sistema econômico nacional, visceralmente
vinculado ao sistema internacional, através do desenvolvimento, principalmente da
lavoura, e também da indústria. Era organizar um sistema político que promovesse
estabilidade, incorporando as forças sociais que despontavam muitas vezes divergentes.
Era criar um conjunto de instituições que permitissem organizar e gerir, sob o projeto
central de uma classe, a diversidade de sujeitos e grupos sociais englobados pelas
fronteiras históricas do Estado.
Entre estas instituições encontramos a escola. Ao contrário do que a historiografia
mais tradicional costuma afirmar, é um engano pensar que a escola surge como privilégio
exclusivo de classes abastadas e médias. Existem indícios de projetos e práticas
educacionais especificamente voltadas para jovens e adultos trabalhadores desde, pelo
menos, a segunda metade do século XIX, como os cursos primários noturnos, as escolas
dominicais, as conferências populares e os cursos de ensino profissional. Começava a ser
inventado o “analfabeto”, a institucionalização de uma figura “a quem falta”. Uma
48
criança em idade escolar que não sabia ler e escrever não era nada além de uma criança
em sua “condição natural” a quem esses conhecimentos deveriam ser ministrados. Um
jovem ou adulto que não detinha os saberes elementares era considerado um “desviante”,
uma “degenerescência” por mais comum que fosse a condição de iletramento à época. A
esses sujeitos associavam-se pechas que iam desde incapacidade, ignorância,
inconsciência em todos os níveis de sua existência, até a imoralidade, vadiagem, pobreza,
doença... Não raro era responsabilizado, ainda que na posição de vítima, por atrapalhar os
rumos do progresso da nação.
Nesse sentido, é muito comum encontrarmos, no Brasil deste período, discursos
de exaltação à missão civilizadora da instrução e da escola. É o caso da Revista
Comemorativa da Inauguração do Lyceo Artístico Industrial, publicada em 1882, no Rio
de Janeiro, Município da Corte. O Lyceo era uma instituição de caráter privado que
funcionava, entretanto, em prédios das escolas públicas da freguesia de Santa Rita. O
editor da revista afirma que o objetivo da instituição era “desenvolver a inteligência
popular na esfera da arte e da indústria” e, de fato, seu programa de estudos ia da
instrução primária a matérias específicas como desenho de figura, construção de
máquinas ou construção naval, passando por direito mercantil e cursos de idiomas
estrangeiros. Qual o siginificado do ensino de física e química aplicada; escrituração
mercantil; alemão; etc. para trabalhadores de um dos bairros mais pobres da cidade?
Provavelmente foi bem utilizado por comerciantes locais e artesãos, para quem os
conhecimentos ali oferecidos seriam significativos. Entretanto, para o autor da revista o
significado era muito maior.
A magnitude dos seus intuitos, a grandeza dos seus fins
altamente democráticos em um país como o nosso, que pode
conquistar o posto que lhe assinalou o destino pelo desenvolvimento
das artes e da indústria, impõe o dever de todo cidadão de o apoiar (ao
Lyceo) na crise atual, e quando seu desaparecimento determinaria
privar do pão espiritual quatrocentos e tantos alunos ou mais e do bairro
mais pobre de nossa capital
23
Possibilidade de transformação da vida do trabalhador, sim, porém o objetivo
seria levar “o país ao posto que lhe assinalou o destino”. Em outras palavras, o Lyceo
23
SENNA, Ernesto. Revista Comemorativa da Inauguração do Lyceo Artístico Industrial. Rio de Janeiro,
Typ. Cosmopolita, 1882.
49
seria um espaço de formação de mão-de-obra para indústria nascente e para os demais
setores da vida urbana, mas não simplesmente pelo inculcamento de saberes técnicos. É o
que vemos nos Regulamentos e Regimentos
24
de um outro Lyceo da época, de caráter
semelhante, e que teve maior vulto e durabilidade – O Imperial Lyceo de Artes e
Officios, da Sociedade Propagadora das Bellas Artes do Rio de Janeiro, outra instituição
de caráter privado que também contava com subsídios do Estado.
O ensino no Lyceo de Artes e Officios era gratuito aos sócios e seus filhos e para
todos que não tivessem contra si nenhum inconveniente. O programa parecia bastante
qualificado; as aulas do Lyceo eram noturnas, “ou em dias desocupados, ou em horas que
não são comumente dedicadas ao trabalho dos artistas”; os professores lecionavam
gratuitamente. Há, nos Regimentos, prescrições para punição dos alunos indisciplinados,
a vigilância era rigorosa como é possível constatar pela grande preocupação com os
ajuntamentos e permanência em frente à porta dos edifícios escolares e por prescrições
voltadas para assegurar o bom comportamento e “manutenção da urbanidade”. A julgar
pelas prevenções do regimento, muitos alunos não haviam interiorizado, ainda, a
disciplina da instituição, pois elas prescrevem penas para os que rasgavam quadros,
quebravam móveis e e arrancavam folhas de livros da biblioteca. Era esse tipo de
“barbárie” que dava o sentido às benéficas instituições. Nas palavras de um intelectual da
época que apresenta sua contribuição à “Revista Comemorativa do Lyceo Industrial”,
tratava-se de fazer tal como, ou melhor que os jesuítas. “O trabalho dos Anchietas, é hoje
completado pelo dos educadores. O selvagem das selvas brasílicas recebia menos luz dos
antigos missionários que os selvagens da ignorância recebem de instituições como essas.
Sejam bem vindos os Lyceos que anulam as trevas do obscurantismo (J. Serra)”
25
.
Como o documento relativo ao Lyceo Industrial nos deixa perceber, existia no
período em questão, e vem até os dias atuais, o discurso sobre o poder da educação como
elemento de transformação social. Importa questionarmos, na análise dos processos
educacionais, que sentido vem sendo dado a tal termo. Transformação não se refere
exclusivamente à promoção da sociedade igualitária, livre, de bem estar comum, mas
24
Regulamento e Regimento do Lyceo de Artes e Officios da Sociedade Propagadora das Bellas Artes do
Rio de Janeiro. Documento produzido em 1861 e encadernado em 1893.
25
SENNA, Ernesto. Op. Cit. p. 7.
50
pode ser entendida, também, como transformação de vidas individuais por mecanismos
de ascensão social. Em Vigiar e Punir, Michel Foucault apresenta um outro sentido de
transformação, as reformas: mudanças nas formas de governo das populações, o
surgimento de um conjunto de técnicas e instituições que transformam as relações de
poder na sociedade francesa, não em proveito da sociedade como um todo, mas sim da
burguesia.
A revolução francesa teria derrubado o absolutismo monárquico, mas mantido o
poder centralizado, passando-o às mãos da burguesia, visão esta coerente à tese cara à
Foucault o Estado, como outros mecanismos de poder possui um funcionamento cuja
lógica interna faz com que independa daquele que o opera, mantendo os mesmos efeitos.
Entretanto, seria simplismo dizer que nada mudara após a revolução - reformas são ainda
um tipo de transformação. Em Vigiar e Punir Foucault procura demonstrar como, através
delas, houve um profundo refinamento das formas de controle e manutenção das relações
de poder vigentes. É a antiga “receita” do “reformar para preservar”. Elas consistiram, no
que diz respeito à justiça, mas também à medicina, à educação, aos processos de
produção, num ocultamento da violência como princípio de governo e manutenção da
ordem social. No caso da justiça, esta não mais assume, publicamente, a violência. Ela
prescreve a pena, entre as penas já cientificamente codificadas e anuncia que seu objetivo
é corrigir, reeducar, e não punir. Isso significou, na prática, o fim das cerimônias de
suplício, e em pouco tempo, a principal pena passou a ser o encarceramento. Ao longo do
sécuo XVIII as agitações contra as penas teriam se tornando mais frequentes,
principalmente quando se tratava de maior severidade contra os crimes dos pobres. Essa
conjuntura trouxera o perigo de se ver reforçada a solidariedade de certa camada da
população contra a ordem, o que poderia provocar uma reversão da violência. Sobre essa
preocupação, e não num propalado “espírito humanitário” fundar-se- a ação dos
reformadores (FOUCAULT, 2004, P.52 e 53).
O que se vê é um movimento de racionalização da vida social do qual a escola faz
parte. Se antes as contradições eram resolvidas apelando-se a um poder absoluto, já se faz
necessário o estabelecimento de certos limites, certos consensos, já se considera a reação
da população, e o uso espetacular da violência é desencorajado, preferindo-se outras
formas de manutenção da ordem, para que violência maior não se revertesse contra seus
51
titulares. É irresistível, aqui, um paralelo com a teoria da “violência simbólica” em Pierre
Bourdieu e Jean Claude Passeron (BOURDIEU & PASSERON, 1982). Os poderes
disciplinares de Foucault seriam aqueles que acrescentam sua força simbólica à força
violenta ao lhe atribuirem legitimidade, enquanto eles mesmos surgem de uma relação de
força que os instaura. Se “a cerimônia do suplício coloca em plena luz a relação de força
que poder à lei” (FOUCAULT, 2004, p. 43), é entre as paredes do tribunal, os muros
da prisão, mas também entre as quatro paredes das salas de aula, que essas relações de
força serão ocultadas. Foucault afirma não haver oposição entre poder e saber. Ao
contrário, uma complementariedade, toda relação de poder funda e é fundada sobre
relações de saber, todo poder tem uma teoria. No mesmo sentido as oposições razão
versus força, ou ideologia versus violência também são criações do período das luzes.
Ora, para as classes populares, principalmente para os adultos trabalhadores, tanto escola
como prisão são lugares tanto de violência quanto de ideologia. entre ambas estreito
paralelo. Ambas se imbuem da missão de educar, regenerar, transformar... Há
aprendizado na cadeia e punição na escola. Ambas as instituições deveriam atuar,
claro que em circunstâncias diversas, a primeira “curativa” e a segunda “preventiva”,
sobre o mesmo público: a “plebe sediciosa”.
Remetendo-nos novamente aos documentos relativos à instrução das classes
populares na Corte imperial, no século XIX, é possível encontrarmos outro aspecto
repetido em muitos discursos de autoridades ligadas ao tema da correlação entre escola e
prisão. É o que vemos nos cálculos do inglês Macaulay, referência para Leôncio de
Carvalho, ministro liberal que ocupava a pasta dos Negócios do Império, responsável
entre outros assuntos, pela instrução pública, na formulação de sua reforma da instrução
que cria, no ano de 1878, escolas noturnas na Corte e em toda Província do Rio de
Janeiro. Para ele, cada libra não investida em educação corresponderia a cinco libras
gastas com processos e prisões.
A despeza com a instrução pública é indispensável. Certamente,
senhor, ninguém que admite que é nosso dever instruir os espíritos da
geração que desponta pode achar 100.000 libras soma elevada para
semelhante proveito. Se olharmos a matéria de seu ponto de vista mais
básico, se considerarmos os seres humanos simplesmente como
produtores de riqueza a diferença entre uma nação inteligente e uma
nação estúpida avaliada em libras, shillings e pences, excede o centúplo
52
da despeza proposta. Nem isso é tudo. Para cada libra que economisas
em educação, gastareis cinco com processos, com prisões, com
estabelecimentos penais. Não posso acreditar que a (?) nunca tendo
recusado coisa alguma que se pedisse para manter a ordem e proteger
a propriedade pelos meios da pena e do temor, comece a ser mesquinha
quando se lhe propõe realizar o mesmo fim tornando o povo mais
esclarecido e melhor. (Macaulay, Speeches, 1847. Neste dicurso
Macaulay sustentava a subvenção de 100.000 libras pedidas pelo
governo à câmara dos comuns para educação pública)
26
.
Em Foucault encontramos a possibilidade de desnaturalizar tais discursos que são
adotados no Brasil, mas que também circulavam na Europa oitocentista. A própria “plebe
sediciosa” é uma criação aí circunscrita. Este é o momento em que se cristaliza a
oposição operário versus delinquente, sendo a plebe o conjunto de onde poderiam derivar
ambos os tipos. Justifica-se, com essas representações, a necessidade do disciplinamento.
O poder disciplinar, impulsionador da civilização moderna e do sistema capitalista
representaria a possibilidade de ordenação das multiplicidades humanas em processos
econômicos, jurídico-políticos e científicos. Seu principal objetivo seria reduzir os custos
econômicos e políticos do exercício do poder e intensificar seus efeitos para fazer crescer
a docilidade e utilidade dos corpos. Esse tipo de poder toma lugar numa conjuntura
histórica de explosão demográfica, crescimento do aparelho de produção e ampliação dos
grupos que importava controlar. Assim, há aumento da escolarização e internação, formas
de anular as resistências: agitações, revoltas, organizações espontâneas, conluios e tudo
que pudesse se originar das conjunções horizontais.
Desconsiderando essa desnaturalização promovida pelo autor, qual seja a criação
da idéia de “plebe sediciosa” como forma de controle social e aceitando as promessas das
modernas instituições que regem até hoje nossa vida social, cairíamos em desilusão com
tais promessas não cumpridas sistema prisional que não regenera, escolas que não
educam, enquanto a realidade é de reincidência de crimes e manutenção de índices de
analfabetismo, isto sem falar na precariedade da escola oferecida à população pobre. Este
é o quadro diante do qual as nossas sociedades civis pedem e nossas sociedades políticas
prometem transformações. Entretanto, parece cada vez mais difícil efetivá-las. Na última
26
Instrução pública: notas e extratos. Março de 1879. Sob a Guarda do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (IHGB). Grifos meus.
53
parte de Vigiar e Punir Foucault faz uma crítica aguçada, por dentro da lógica própria das
instituições disciplinares. Sua crítica concentra-se na prisão, mas não é difícil, porém,
estendê-la à outras instituições como a escola. Nesta parte, procura demonstrar como é o
próprio sistema penitenciário que cria o delinquente. O delinquente é algo que está além
do sujeito que cometeu uma infração, que será considerado não por seu ato, mas por
sua história de vida. Como meio para estabelecer o devido tratamento ao caso que a ela
chega, a instituição buscará na história e na constituição do indivíduo feito “caso” aquilo
que o teria levado a cometer a infração – a origem de seu ato.
De forma semelhante, o sistema educacional participa da construção do
analfabeto. A figura do analfabeto representa mais do que simplesmente um sujeito
desprovido das técnicas da leitura e escrita. Nos primeiros momentos de generalização da
escola, e até mesmo hoje, ainda que atualmente pesem todos os avanços em relação a
uma outra compreensão sociológica e pedagógica do analfabetismo, que encara o
analfabeto como sujeito portador de saberes e experiências acumuladas, ele ainda é, com
frequência, tido como incapaz, inferior, infantil, marginal. Continua sendo motivo de
piadas e constrangendo-se com sua própria condição. Basta lembrarmos que o voto do
analfabeto, no Brasil, é um fato recente, da constituição de 1988. A escola, ao incorporar
o sujeito iletrado, em geral proveniente das classes populares, acaba por torná-lo
socialmente “mais ignorante”, pois estabelece como saber válido aquele que não é o dele,
do qual, ao final, só terá acesso a uma pequena parte, embora o discurso seja o da função
democratizadora do conhecimento por ela exercida.
Foucault afirma literalmente que a prisão não diminui a criminalidade, e que o
sistema produz a reincidência, e que não haveria mudanças essenciais no sistema penal.
Palavra por palavra, de um século a outro, as mesmas
proposições fundamentais se repetem. E são dadas a cada vez como a
formulação enfim obtida, enfim aceita de uma reforma até então
fracassada. (FOUCAULT, 2004, p. 225 e 226).
Lança então a pergunta herética para os que crêem na reabilitação promovida
pelas instituições: o fracasso do sistema penal não faria parte do próprio funcionamento
da prisão? E responde: “... temos que admitir que 150 anos a proclamação do fracasso
da prisão se acompanha sempre de sua manutenção”.
54
Segundo esse mesmo raciocínio seria lícito afirmar que o sistema educacional não
elimina o analfabetismo e, ano a ano, produz o “fracasso escolar”. Se mais de 150
anos já temos escolas voltadas para o trabalhador, notadamente ao adulto analfabeto, cabe
pensar por que ainda hoje temos um percentual relativamente alto de analfabetismo, e um
percentual absolutamente alto de analfabetismo funcional.
Os questionamentos até então apresentados levam Foucault a uma última e
decisiva pergunta:
... Para que serve o fracasso da prisão? (...) Deveríamos
supor que a prisão e de maneira geral, sem dúvida, os castigos,
visam não a suprimir infrações, mas antes a distinguí-las,
distribuí-las, utilizá-las, que visam não tornar ceis os que estão
prontos para transgredir as leis, mas que tendem a organizar as
transgressões das leis numa tática geral das sujeições. A
penalidade seria uma maneira de gerir as ilegalidades, de riscar
limites de tolerância, de fazer pressões sobre outros, de excluir
uma parte, de tornar útil outra, de neutralizar estes, de tirar
proveito daqueles. (FOUCAULT, 2004, p. 227).
Por analogia, caberia indagar: e o “fracasso da escola”? A que serviria? Aquele
que pensamos ser o mau funcionamento da escola é o funcionamento adequado à ordem
vigente. A escola funciona como um mecanismo que hierarquiza os saberes socialmente
valorizados através de um sistema de seriação, usado para hierarquizar postos no
mercado de trabalho e em outras esferas da vida pública. Numa sociedade como a
brasileira, o que seria feito se, em dado momento, toda a população atingisse o nível
superior de instrução? Como justificar as diferenças de funções, de remunerações, de
poder político, etc.?
As escolas noturnas para trabalhadores implantadas no Município da Corte a
partir, mais ou menos de 1858, cumprirão papel de destaque neste movimento de
“invenção do analfabeto” e de institucionalização de uma ação educativa voltada para
jovens e adultos iletrados. Estranho pensamento invertido, quando a função dessas
escolas era exatamente ensinar a leitura, escrita e matemática básica. Já foi afirmado aqui
que a técnica não é um elemento neutro, logo pretendo demonstrar neste capítulo a
contradição presente no fato da prioridade de tais escolas não consistir apenas em ensinar
os aspectos técnicos da escrita e demais saberes primários, mas ensiná-los para usos
55
determinados. Como bem social que circulava, principalmente nos espaços urbanos, o
seu controle seria importante para os sujeitos que dominavam a cena blica. Isto porque
ensinar a escrever possui uma dimensão política: “el problema de permitir-reprimir el
qué, cómo, cúando y donde se ecribe...” (COLLOTA, 2002, pp 253 – 274).
Já é bem conhecida e comprovada a afirmação de que nada do que a escola ensina
pode ser encarado como verdades únicas e que o aprendizado da leitura e da escrita
através dela não é algo que tem se acrescentado, mas sim se sobreposto aos aprendizados
e conhecimentos a ela exteriores acumulados pelos educandos. A escola, no Brasil, desde
sua institucionalização como peça chave dos sistemas educacionais, têm funcionado
como instrumento do projeto civilizatório baseado em preceitos que circulavam na
Europa e Estados Unidos. “Ordem e progresso”, por exemplo, eram ideais acalentados
mesmo antes da proclamação da República. E, no horizonte do progresso só havia
maravilhas: uma existência guiada não pela força e sim pela razão e um mundo em que a
prosperidade do homem não teria limites uma vez desenvolvidos os meios tecnológicos.
Jean Hérbrad (HÉBRARD, 2001, pp. 115 141), referindo-se à França entre os
séculos XVI e XIX afirma que as necessidades básicas da vida urbana foram usadas pela
Igreja católica para levar o povo à escola onde encontrariam a satisafação destas
necessidades e onde seriam catequisados. Depois, agências liberais e filantrópicas vão
utilizar a mesma via para difundir o catecismo da ordem contra as revoltas e revoluções,
visando a paz social, característica da modernidade. No mesmo sentido, Viñao Frago
(FRAGO, 1999, pp. 319-351) aponta as pressões em favor da escolarização e
alfabetização da classe trabalhadora como fruto de motivações ideológicas conservadoras
frente às idéias socialistas e uma cultura operária em germen e das necessidades de uma
mão de obra com certa qualificação elementar.
Nesta linha de raciocínio as escolas noturnas serviram como instrumento de
implantação e conservação da ordem capitalista e estatal que se difundia pelo “mundo
ocidental”, sob a lógica peculiar desta civilização. Sua existência concorria para
implantação e preservação da citada ordem de duas formas: via produção de consenso, e
via justificação da violência. Por um lado, submete os sujeitos por ela atendidos à
disciplinas e saberes necessários à formação do mercado de trabalho capitalista
(assalariado) e à ordem urbana e estatal. Por outro lado, contribui para criação de um
56
modelo de cidadão educado, modelo este que não deveria ser atingido por todos, mas
lograria estabelecer o parâmetro de quem estaria ou não dentro da ordem e quem deveria
ser perseguido e reprimido. A partir do momento que alguns saberes são instituídos como
necessários ao convívio em uma sociedade que se modernizava e urbanizava: a leitura e
a escrita, as quatro operações matemáticas, o sistema métrico decimal e o sistema de
pesos e medidas, além de uma rie de normas de condutas higiênicas e morais uma
certa “urbanidade” passam a ser requisitados, de fato, pela população da Corte. Neste
ambiente convivia a busca por escolarização por parte de alguns indivíduos e a rejeição
da escola por outros. Muito foi discutido sobre o tema da obrigatoriedade escolar;
pontuamos aqui que o fato de sua instituição e difusão serem arbitrárias não faz desses
saberes menos necessários aos homens e mulheres daquele tempo.
A escola, definida como meio de propagá-los, torna-se então essencial, porém é
precária. As altas taxas de analfabetismo permaneceram durante toda a história da
educação no Império, invadindo o período republicano, com marcas visíveis até hoje,
especialmente nas zonas mais pobres da cidade e do campo. Quase todos os relatórios dos
ministros dos negócios do Império tinham como abertura a frase “a instrução pública está
muito longe das nossas aspirações”.
Nesse contexto, a existência de uma experiência voltada especificamente para
trabalhadores, membros das classes subalternizadas da sociedade, pode ser vista como
um “álibi” de padrões e metas estabelecidos para não serem cumpridos. Exatamente
porque quem define a escola como regra, e as regras da escola, é quem a nega a
determinadas parcelas da sociedade, no caso desse estudo, a parcela da qual provêm a
clientela dos cursos noturnos. Se o infeliz trabalhador não podia, durante o século XIX, e
continua a não poder em pleno século XXI, frequentar a escola “tal como deve ser”, à luz
do dia, havia “espíritos elevados”, “amigos da humanidade”, para possibilitar que durante
a noite, à luz das lamparinas, esses infelizes, “desafortunados da sorte”, pudessem receber
a instrução necessária, mesmo que a custa de suas poucas horas de descanso, para “se
libertarem das trevas da ignorância”
27
. Instrução necessária que terminava no nível
27
As expressões acima usadas entre aspas, podendo parecer ironias, são exatamente os termos adotados na
época. A forma mais comum, encontrada nos documentos, de se referir aos promotores dos cursos noturnos
era a palavra “benemérito”.
57
primário ou, no máximo, em um curso para aprendizado de ofício. Um estudo pouco que
“não muda gente em doutor” (BRANDÃO, 1980).
Para avançarmos na compreensão do que possibilitou a emergência dessa
experiência particular, precisamos nos remeter ao momento histórico de seu surgimento.
Por outro lado, é necessário voltar-nos para aspectos internos dessa experiência como
forma de acessar os seus significados e efeitos por ela produzidos. Nesse sentido,
proponho a análise do projeto político pedagógico orientador das políticas de escolas
noturnas. O termo “projeto político pedagógico” tem “estado na moda”. Não há,
praticamente, instituição ou programa de ensino que o possua uma brochura contendo
o seu projeto, mesmo que as palavras ali escritas sejam registros de esquecimentos não
incorporados às vivências, presentes apenas pelo fato de ser “politicamente correto” ou
legalmente obrigatório possuí-los. Entretanto, este termo designa um conjunto de
preceitos, orientações, objetivos que podem estar ou não formulados, sistematizados e
redigidos. Mesmo a dispensa de um projeto político pedagógico significa, ainda, uma
adoção a do projeto dominante. Utilizarei, aqui, o termo no sentido de visão de mundo
e projeto de sociedade adotados por determinados sujeitos, geralmente correlato à seus
pertencimentos de classe e posições nas lutas sociais.
Segundo Todorov (1999), o surgimento da América como é hoje derivou da
conquista, enquanto por outro lado, a conquista revolucionou a história da humanidade. A
conquista da América funda nossa identidade presente e marca o início da era moderna.
Assim, nosso surgimento enquanto civilização foi marcado pelo maior genocídio da
história da humanidade. Foi preciso, então, aprender a ser como os europeus, num
processo de esquecer de si, processo de aculturação, não por mera transposição e
substituição de culturas, mas por sérios conflitos, dos quais não se pode negar a vitória
européia e cristã. Essa história possui herdeiros. Temos nas classes pobres, marcadas,
ainda, por determinadas características físicas, determinados espaços habitados,
determinados traços culturais, os descendentes dos derrotados na conquista.
Estabelecendo outro ponto no tempo: o final do século XIX, no Município do Rio de
Janeiro, lemos, ainda, projetos inspirados nos mais avançados estudos e métodos
educacionais franceses, prussianos, norte-americanos que buscam civilizar estes
incorrigíveis descendentes dos povos indígenas, africanos, e também brancos pobres
58
degenerados pelo encontro. O processo da conquista parece não ter fim. Atualiza-se por
outros meios.
No Brasil, a segunda metade do século XIX foi um período de reformas em vários
âmbitos da vida social levadas a cabo por um Estado imperial orientado pela lógica da
centralização do poder. Dessa forma desenvolvem-se as instituições a ele ligadas, entre
elas as educacionais. Eram reformas reclamadas por um contexto internacional de
modernização caracterizado pelo desenvolvimento urbano, a difusão da ideologia liberal
e democrática, e os ideais de progresso, e reclamadas também pela crise do escravismo ao
qual se associavam fugas e revoltas de escravos, além do movimento abolicionista e dos
movimentos cotidianos de resistência das populações negras e pardas escravas, livres ou
libertas, e pelas ameças de tendências revolucionárias que vinham se desenvolvendo na
Europa, como os socialismos comunistas e anarquistas. Trata-se de um Estado que
reforma, se moderniza, procurando preservar as relações de poder em que está fundado
desde os tempos da conquista.
Estabelecendo-me no espaço-tempo citado, procurei partir do contato com a
documentação do século XIX referente a mais uma forma de correção destes
incorrigíveis: as escolas noturnas. Visitei também alguma documentação que fazia apenas
rápida menção, e também aquela que “rondava a periferia do tema”, materiais sobre
outras formas de educação para o povo como escolas dominicais, conferências populares,
ensino profissional, situação do ensino primário, assuntos relacionados ao cotidiano do
trabalhador, da escravidão, dos homens pretos e pardos, livres e libertos..., procurei um
ordenamento dos discursos contidos em três séries: os circulantes na imprensa, os
provenientes das esferas governamentais, e os produzidos no âmbito de associações de
caráter privado vinculadas de alguma forma à educação para o povo. A proliferação da
fala proveniente das elites da sociedade imperial tem a ver com a própria vinculação entre
saber e poder. As elites dominantes, ao deter o poder da palavra, usam-no como forma de
reprodução de sua condição cio-política, entretanto, mesmo sem acesso à sua própria
palavra, são as manifestações das classes populares que pretendo observar. Tal
observação é possível quando se parte da concepção de que de um mesmo conjunto de
fontes pode derivar uma história das elites ou das classes populares. Escrevendo sobre
cultura, cotidiano, tradição e resistência das classes populares no Brasil do XIX, baseado
59
nos relatos dos viajantes europeus, Julio Barreiro afirma a inconsistência do argumento
da impossibilidade de se fazer história das classes subalternas sob o pretexto de
inexistência de registros legados por esses segmentos. A estratégia do autor para
conhecer o cotidiano e práticas populares foi a decodificação da visão dos viajantes, cujo
olhar estava condicionado por dada concepção de propriedade e trabalho, que se
chocavam com a realidade por eles observada.
Da análise dessas séries discursivas foi possível fazer surgir pontos que
caracterizam o projeto político pedagógico das aulas noturnas que, em termos gerais, se
direciona à formação e desenvolvimento de duas entidades básicas da modernidade
capitalista: o mercado e o Estado nacional. Nesse sentido, encaro como pontos
constitutivos deste projeto: a missão civilizatória e a construção do estado imperial; a
formação para o mercado de trabalho; a formação para uma cidadania restringida e o
controle social. Mas estes pontos refletem apenas o que o projeto pretendeu ser, e não o
que efetivamente se tornou a partir de suas apropriações pelos diferentes sujeitos sociais e
dos resultados produzidos. Destas (es), algumas (ns) deram-se a ver como: a interposição
de interesses privados, tanto dos “beneméritos”, por status, reconhecimento social e
espaço de intervenção na vida pública, como dos próprios estudantes, por ascensão
social; a desvalorização da cultura popular; a divisão da sociedade entre povo ignorante e
elites arrazoadas; a hierarquização derivada da separação entre trabalho manual e
trabalho intelectual.
A instrução primária é, com efeito, o primeiro passo sem o qual,
não pode o homem melhorar nem progredir. o há civilização sem
sucessivas conquistas da inteligência; esta, só com a cultura se
desenvolve, essa cultura é a instrução de que a primária é o
fundamento. Princípios, costumes, deveres, direitos, sua extensão e seus
limites, adiantamento na ordem moral, social e política, todo andamento
da sociedade, em suma assenta no ensino elementar...
28
Um dos ramos mais difíceis da administração, entretanto a instrução
pública forma o povo
29
.
Primeira condição de todo progresso material e moral, a instrução
constitui o elemento vital das sociedades modernas, porque é a sua luz
28
Relatório do Ministro dos Negócios do Império, João Alfredo Corrêa de Oliveira, 1871. Disponíveis em
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/hartness/minopen.html
29
Paulino Soares de Souza, citado por MATTOS, 1994, p. 243.
60
como a liberdade é o seu ar. Dela dependem, para o jogo regular do seu
mecanismo todas as instituições a que está ligada imediata e
essencialmente a vida política e social das nações, que a medida que
aumentam seu cabedal científico descortinam sucessivamente novos
horizontes e caminhar mais seguras em busca de seu ideal de
perfectibilidade, reformando o presente, preparando o futuro e
melhorando de dia em dia suas condições de existência
30
.
Poderíamos acumular páginas de citações sobre os ideias de civilização e o papel
do Estado em sua realização, já que este é o aspecto mais presente nos discursos relativos
à instrução no período aqui estudado. Momento de “luzes e esclarecimento” que a
civilização ocidental acreditava irradiarem dos centros para a periferia do mundo. Um
dos grandes filósofos da modernidade, Emmanuel Kant, definiu-a em um artigo para uma
revista alemã. Para ele o esclarecimento teria sido a “saída da minoridade”. Ele defendia
a necessidade de cada homem pensar por si mesmo, enquanto o “estado de minoridade”
existiria quando estes dependessem de tutores. Tal estado tendia, porém a ser superado ao
longo da “marcha da humanidade” no caminho do aperfeiçoamento. Para Kant, o
pensamento era fundamento da vida humana, o que fica claro por sua afirmação de que,
mesmo mediante a uma revolução, a vida não seria alterada se assim não fossem as
instâncias do pensamento.
Ao olharmos para a realidade brasileira, onde os próprios “tutores” se atribuem o
papel de promover o esclarecimento, podemos pensar termos encontrado contradição
com a teoria de Kant. Entretanto, ele mesmo concebia a possibilidade de um governo
esclarecido auxiliar o processo do esclarecimento. E nossos tutores, acima citados,
também procuraram engajar as terras americanas na “marcha da humanidade”. Nossos
vizinhos ricos do norte, bem mais adiantados, também entraram na marcha. Nos Estados
Unidos, uma das principais fontes de inspiração para o projeto das nossas escolas
noturnas, a preocupação era “civilizar” os estrangeiros, que constituíam,
“coincidentemente” a classe daqueles que tinham de trabalhar durante todo o dia. No
Brasil, homens livres, pobres, escravos e libertos eram “os estrangeiros”, mesmo que
tivessem nascido aqui, pois sobre eles se lançaria em expansão o “império da boa
sociedade” (MATTOS, 2003).
30
Relatório do Ministro dos Negócios do Império, Leôncio de Carvalho, 1878. Disponíveis em
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/hartness/minopen.html
61
Sobre essas inserções na modernidade encontramos em Michel Foucault uma boa
definição ao entender a mesma modernidade não como uma época, mas como uma
atitude. Esta seria uma atitude de não aceitação de si mesmo, a tomada de si mesmo como
“objeto de uma elaboração complexa e dura” (FOULCAULT, 1984), seria uma
heroificação do presente e ruptura constante com a tradição. A partir dessa concepção,
entendemos a proliferação da “ideologia” da reforma, tão presente nos assuntos
educacionais do Brasil de fins do oitocentos. Também de acordo com esta lógica, a
educação para adultos, especialmente o ensino noturno figurava na grande maioria das
posições reformistas. A partir dessas reformas lograríamos a transformação do atraso e
obscurantismo em civilização e progresso. Interessante notar que até hoje perseguimos
objetivos muito semelhantes em termo de políticas estatais e das crenças por elas
difundidas, ainda que os nomes tenham mudado, não pretendemos mais civilizar e sim
desenvolver, construir a cidadania através de uma gama de reformas educacionais,
políticas, legislativas, trabalhistas, sindicais, etc. De Paulino Soares de Souza
31
, um dos
membros da trindade saquarema, a Leôncio de Carvalho, um liberal, considerado por
seus pares da câmara dos deputados como radical, passando por João Alfredo Corrêa
32
,
um conservador com ares reformistas, o conjunto de citações selecionadas ilustra o
quanto o discurso civilizatório estava presente entre os mais diversos matizes ideológicos
da cena política do Brasil imperial. Entretanto, não podemos simplesmente igualar tais
posições apenas sob esta prerrogativa. A historiografia brasileira encerra um debate em
relação à política do período imperial no qual divergem opiniões sobre as diferenças e
semelhança entre liberais e conservadores. Alguns assumem a conhecida frase da época
31
Paulino José Soares de Souza, o Visconde do Uruguai, nasceu em Paris, no ano de 1807, filho de mãe
francesa e do médico José Antonio Soares de Souza, chegou ao Brasil em 1814. Formou-se em direito em
São Paulo em 1831. Paulino iniciou cedo sua carreira política, passando por todas as esferas do poder
imperial, tanto provinciais quanto centrais: Assembléia Geral, Ministério, Senado, Conselho de Estado, etc.
Ideológo do partido conservador, foi um dos responsáveis pela promoção da centralização política e
administrativa do Segundo Reinado. A partir de 1843, assumiu com Rodrigues Torres e Euzébio de
Queiróz, a direção do partido conservador, ficando esta conhecida como “Tríade Saquarema” (VAINFAS,
2002).
32
Líder do partido conservador nas duas últimas décadas do Império ficou conhecido por dirigir o gabinete
de 13 de maio que referendou a abolição da escravidão. Nasceu em 1835, em Goiânia, Pernambuco,
formou-se em direito pela Faculdade do Recife em 1858. Exerceu cargos como delegado de polícia, juiz
municipal, promotor público, passou por quatro legislaturas, por presidências de províncias e pelo
ministério do império. Sua gestão como ministro foi caracterizada pela disposição às reformas, tendo se
envolvido desde à modernização da cidade do Rio de Janeiro, passando pela reforma eleitoral, até a adesão
às negociações políticas pela progressiva extinsão da escravidão (VAINFAS, 2002).
62
que diz não haver nada mais parecido com um Saquarema que um Luzia no poder, outros
fazem a crítica desta visão, apontando que os Luzias estariam mais voltados à autonomia
do mundo da casa, enquanto os Saquaremas estariam mais voltados à centralização do
mundo do governo. Em tal debate Martinez marca uma posição que pretendo aqui adotar,
ao afirmar serem liberais e conservadores “simultaneamente semelhantes, diferentes e
hierarquizados”. Mas sua conclusão fundamental seria a fato de ambos filiarem-se ao
pensamento liberal “o(s) liberalismo(s) fundamentavam suas posições intelectuais e
ideológicas” (MARTINEZ, 1997, p. 24).
Neste trabalho, apesar de tender a ressaltar as semelhanças dos posicionamentos
políticos em relação à educação para o povo
33
, o que me permitiria delimitar certa
unidade de um projeto político pedagógico para aulas noturnas, é possível ressaltar uma
diferença visível na condução desta questão por liberais e conservadores. No período de
permanência destes últimos a frente do Ministério do Império, entre 1868 e 1878,
constatamos que a existência prática das escolas noturnas foi promovida pela iniciativa
particular, o que não quer dizer a ausência do Estado, mas sua ação indireta, através de
regulação e subvenção. É a partir de 1878, por iniciativa de Leôncio de Carvalho
34
,
primeiro como inspetor de instrução e, em seguida, em 1879, como ministro do Império,
que o Estado passa a estabelecer, por conta própria, cursos noturnos nas escolas de
meninos do município da Corte.
No que diz respeito às escolas noturnas, projeto com aura de unânimidade, não
tive acesso a registro em que seus benefícios fossem contestados. As disputas realizavam-
se em torno da definição daquele que possuiria melhores condições para implantá-las.
Esta perspectiva do predomíno das preocupações administrativas sobre as político-
ideológicas entre os homens de Estado no império foi analisada por Ilmar Mattos em sua
obra clássica, “O Tempo Saquarema”. Tais disputas situavam-se no âmbito do que os
quadros liberais e conservadores afirmavam ser a luta na defesa dos interesses gerais,
entretanto, para Mattos, estes não eram mais que interesses particulares, melhor
organizados e expansionistas.
33
Adoto este posicionamento direcionada pelos discursos da época que pude ter acesso nas fontes
pesquisadas, ainda que pese o limite inscrito pela impossibilidade de observação da totalidade do material
sobre o tema, e da necessidade de estabelecer um ponto de encerramento sempre mais ou menos arbitrário
para a pesquisa.
34
Este será acusado de “liberalismo extremo” na câmara dos deputados.
63
Em editorial do jornal Ecco do Sul, folha diária do Rio Grande do Sul, publicada
no ano de 1879, as propostas de reformas do ministro do Império naquele ano são
tomadas de forma sarcástica pelo redator como a aplicação de uma idéia que teria sido
implementada na “situação conservadora” pelo seu “distinto e ilustrado correligionário o
Sr. Dr. Cunha Leitão”. Segundo o editorial, o Sr. Conselheiro Leôncio de Carvalho
deveria ser louvado por “seguir as idéias e planos de seu talentoso adversário ...
mostrando-se superior às paixões partidárias”. Mas, apesar de considerar tais paixões
perniciosas, não deixa de cobrar os créditos de seu correligionário enumerando todos os
seus feitos, como podemos perceber no trecho que segue.
O ensino obrigatório que o Sr. Cunha Leitão tornou lei na
província do Rio de Janeiro e que foi o primeiro a propor na Câmara
dos Deputados as escolas noturnas, a liberdade de ensino superior e
especialmente as faculdades livres. (...)
Relativamente ao decreto que criou as escolas noturnas na
capital do Império foi mais sensível e louvável a imitação que não
escapou mesmo à imprensa da Corte. O “Jornal da Tarde” órgão do
partido conservador num bem lançado editorial aplaudiu o Sr. Ministro
do Império por ter se aproveitado da idéia de seu adversário. As
primeiras escolas noturnas públicas inauguradas no Império, foram
devidas a iniciativa do Sr. Cunha Leitão que, em 1871, sendo presidente
da província de Sergipe, criou por ato seu, escolas noturnas na capital e
em todas as cidades da província. Foram estas as primeiras do império.
Em 1872 o nosso correligionário faz também criar escolas
públicas noturnas em todas as cidades e vilas da província do Rio de
Janeiro, iniciando na respectiva assembléia legislativa um projeto que
pelos seus esforços tornou-se lei dessa província
35
.
Dentro da mesma unanimidade em relação aos benefícios da escola noturna, o
Inspetor Geral da Instrução da província de Pernambuco, João Barbalho Uchôa
Cavalcanti, em relatório de viagem apresentado ao presidente da província, também
reivindica o pioneirismo na implantação de tais instituições. Ele não se insere na
disputa defendendo posição entre liberais e conservadores, mas sim representando uma
administração local. Dessa forma, Uchôa Cavalcanti fornece indícios das tensões entre os
modelos de instrução centrais e aqueles regionais, colocando em cheque a visão de
transplante dos modelos da Corte e de províncias “mais adiantadas” para o restante do
35
Fragmento retirado das “Notas para o parecer da Comissão de Instrução Pública”. Decreto 7.347 de
19/04/1879, reformando o ensino primário e secundário no Município da Corte e o superior em todo
Império. IHGB, Lata 307, Pasta 10.
64
Império. Ele informa que “escolas desta natureza funcionam nesta província
[Pernambuco] desde 1866”. Em nota esclarece: menciono esta data porque ultimamente
tenho lido e vai correndo sem contestação que as primeiras escolas noturnas foram
criadas em 1868 no Maranhão, depois em Sergipe e na Corte. Já as tínhamos aqui antes”.
Se o pioneirismo de tais iniciativas é controverso, ao tomarmos o projeto político
tanto de escolas noturnas quanto de escolas dominicais, ambas destinadas a ocupar o
“tempo ocioso” do trabalhador, vemos concordâncias. Da Corte a Pernambuco, ou de
Pernambuco à Corte, o que se pretende é moralização, progresso, civilização, inculcação
do amor ao trabalho, conscientização dos direitos e deveres...
Instituição indispensável em um sistema regular de ensino
público, acessório imprescindível do grande mecanismo da instrução
popular, alavanca poderosa do melhoramento das classes inferiores,
foco de luz aceso em benefício do povo deserdado de instrução pela
necessidade do serviço diurno – a escola noturna é uma instituição
eminentemente liberal e civilizadora. (...)
É um poderoso motor da moralização das classes operárias, e ao
passo que derrama na população idéias sãs, noções úteis, desenvolve o
gosto pela instrução e faz concorrência muito salutar e para estimar-se,
à frequência dos cafés, ao jogo e à dissipação.
O ensino dos adultos, disse-o uma autoridade, faz-lhes melhor
compreender seus direitos e deveres: principalmente os deveres, pois o
fruto mais salutar que podem tirar do estudo será melhor apreciar o que
é a família, quais são as obrigações do filho, do esposo e do pai, e que
as lhe incumbe para com a pátria, no caráter de cidadão. A instrução
lhes inspirará o repeito à lei, o amor à justiça e o horror a tudo que pode
fazer cair o direito sob a violência da força
36
.
Podemos compreender o projeto político do ensino de adultos pelo que defende e
exalta, mas também pelas exclusões que opera. Em seu discurso Uchôa Cavalcanti nos
leva a perceber que o ensino noturno e dominical excluía o lazer do seu “público alvo”
os trabalhadores, como a frequência dos cafés, o jogo, e o que chama de “dissipação”,
práticas consideradas imorais. Exclui ainda modelos de família que não fossem o nuclear,
formado por pais e filhos, o que talvez não fosse o mais efetivamente comum entre as
classes populares. Ao citar a figura do pai e do filho, ambos no masculino, exclui por
36
Instrução Pública. Estudo sobre o systema de ensino primario e organização pedagógica das escolas da
Côrte, Rio de Janeiro, São Paulo e Pernambuco. Relatório apresentado ao Presidente de Pernambuco.
Autor: João Barbalho Uchôa Cavalcanti, Inspetor Geral de Instrução Pública da Província do Recife. Typ.
de Manoel Figueiros de Faria e Filhos, 1879.
65
certo as mulheres, e vale observar que estas estiveram excluídas não em Pernambuco,
como em todas as experiências de escolas primárias noturnas no império que pude
acessar
37
. Por fim, exclui a possibilidade de qualquer forma de ação política e social que
não se fundamentasse na legislação vigente, “o direito” definido na esfera do Estado,
tanto mais se esta envolvesse o uso da força, como é prerrogativa das ações
revolucionárias.
Mesmo entre os quadros republicanos, os quais se arrogavam posições mais
radicais, ao defenderem as “revoluções pacíficas” atribuiam ao ensino um mesmo sentido
que o dos partidários da monarquia. Novamente a disputa se localiza na definição de
quem são os verdadeiros defensores da educação do povo, vista de forma naturalizada
como ação positiva das “luzes da razão”, uma única razão, contra as “trevas da
ignorância”. Tal disputa pode ser observada nas cartas do conselheiro JoFeliciano de
Castilho Barreto e Noronha ao Sr. Dr. Cunha Leitão, ex-presidente das províncias do Rio
de Janeiro e Sergipe. A carta faz referência ao modelo político norte-americano,
exaltando a civilização material, o liberalismo e progressismo daquela nação. Tais
valores não dependeriam, para o autor, um defensor da monarquia, da forma republicana.
Ao contrário, no Brasil, monarquistas como Cunha Leitão estariam mais próximos dos
referidos valores que os republicanos.
Enquanto falsos apóstolos levantam tribunas donde deixam cair
envenenadas teorias de republicanismo e democracia, enquanto se
armam até os dentes para derrubar a monarquia e o altar, a constituição
e os bons costumes, sumariando o inventário da dinastia, vós [Cunha
Leitão] pregais a instrução, a necessidade do ensino, o direito que o
povo tem de saber ler e escrever e o dever que tem o Estado de
disseminar nas cidades, nos municípios, nas vilas, nos povoados,
escolas e mais escolas, escolas e muitas escolas. Que paralelo entre eles
e vós? Eles que falam na liberdade dos Estados Unidos, e vós que,
modesto, sem ruído, sem aparato, transformais sombras em luz,
desertos em cidades!
37
Fora do âmbito da instrução primária e em caráter de excessão, houve um curso noturno secundário para
mulheres que funcionava no Colégio Pedro II. Sobre ele consegui localizar seu estatuto. No âmbito da
educação profissionalizante, houve as aulas femininas do Lyceo de Artes e Officios. Sobre esse tema ver o
trabalho de SOUZA, Flávia Barreto de & PINHO, Pollyana. “Formal-as na sciencia da direcção do lar”:
análise de uma proposta de ensino secundário para o sexo feminino no século XIX. In: Anais do Congresso
da Sociedade Brasileira de História da Educação, Goiânia, 2006.
66
Esta mesma carta aponta, entretanto, um inimigo muito mais perigoso que os
próprios republicanos, ao qual é necessário combater mais ferozmente que nas contendas
parlamentares. É contra este que a própria educação do povo, “poderoso instrumento” se
volta o eles os “problemas do socialismo” e as “sombrias teorias do comunismo”. É
em função desse combate que o autor exalta o feito de Cunha Leitão em Aracajú.
Cabe-me, porém, fazer um reparo: de todas as instituições úteis
e humanitárias que o vosso gênio fez surgir à luz, a que mais me encheu
de entusiasmo foi a criação de uma aula para os presos da penitenciária
do Aracajú. A isto chamo eu, guerra aos problemas do socialismo,
morte às sombrias teorias do comunismo
38
, caridade evangélica santa
que só os peitos cristãos sabem sentir!
39
Procurarei afirmar aqui que em meio às diversas tensões no interior da sociedade
política imperial, a maior tensão existente era encontrada entre Estado e sociedade, a qual
o primeiro buscava ordenar, disciplinar, governar, de acordo com o projeto de poder da
elite política assentada em sua direção. Tal projeto fundava-se na manutenção do
escravismo e da grande propriedade, logo das hierarquias sociais de cor e classe que, na
caracterização de Mattos, organizavam-se em brancos proprietários; povo mais ou menos
miúdo composto por pretos e pardos, livres e libertos, brancos pobres e escravos. Sobre
esta classificação, Adriana Paulo da Silva (SILVA, 2000, p. 44) ressalta o privilégio dos
atributos de propriedade e liberdade.
Quanto à liberdade era-se livre ou não e disso sabemos. Entretanto a
condição para se adquirir a propriedade era ser livre. Nem todo homem
livre era proprietário. Dentre os proprietários havia uma hierarquia
quanto ao acúmulo de propriedade e dentre elas a mais valorizada era a
combinação da propriedade de escravos com a propriedade de terras.
Contudo, mais valorizada ainda ficava essa combinação se fosse
efetivada na região de agricultura escravista (cujos eixos eram Recife-
Olinda e Salvador-Rio de Janeiro, no litoral, portanto) e dentro dessa
região, se tal produção fosse usada para o mercado externo (portanto
superior a produtos que visavam o mercado interno).
Para usar, ainda, a tese de Ilmar, a tensão fundamental estaria entre a associação
dos mundos da casa e do governo a chamada “boa sociedade”, e os mundos do trabalho
38
As palavras socialismo e comunismo foram grifadas pelo próprio autor.
39
A presente citação e a anterior foram extraídas do documento “Instrução Popular. Cartas ao Sr. Dr.
Cunha Leitão. Extraídas das Questões do dia. Sr. Conselheiro José Feliciano de Castilho Barreto e
Noronha”, 1872. Sob a guarda da Biblioteca Nacional.
67
e da desordem, entre os quais se acreditava haver tênue fronteira, e sob os quais poderiam
incidir mais facilmente idéias contrárias à propriedade privada e à tirania dos governos.
Dissertando sobre o sentido do furto nas relações entre classes populares e elites
dominantes no século XIX, Julio Barreiro utliza-se do discurso de um arcebispo baiano
para mostrar o temor destas elites em relação às práticas populares e às idéias
revolucionárias.
Em 1860, a manifestação preocupada do clero nordestino contra os que
incitavam a pilhagem e a guerra aos ricos e à ociosidade fazia crer que
o furto transcendia o caráter de manifestação casual e isolada, atingindo
dimensões generalizantes que chegavam a atemorizar fazendeiros e a
própria igreja, com a perspectiva de uma revolução próxima. O
arcebispo da Bahia interrogava, então, irado: ‘E por ventura, não temos
visto reproduzido nessa época de civilização e de luzes este antigo erro,
não de hereges que dormiam, mas de pretendidos filósofos acordados
que debaixo de diversas formas e teorias mil vezes mais funestas
descobriam o segredo de isentar os povos da obrigação do trabalho,
proclamando como um direito social, a espoliação, a pilhagem e a
guerra aos ricos, e a todos que possuem, e conseguintemente à família e
à propriedade, que na frase de um de seus chefes não é senão o furto?
(BARREIRO, 2002)
Havia intelectuais e dirigentes governamentais que, ao contrário do bispo baiano,
preferiam apagar tais tensões através de um discurso voltado para pretensos interesses
comuns de progresso da nação. Para Paulino de Souza, o progresso nacional seria a soma
das atividades e aptidões dos indivíduos, deste modo, a instrução ao fazer progredir os
indivíduos, faria progredir a nação.
É com verdadeira satisfação que se nota o empenho dos
governos de nossa época em difundir as luzes por todas as camadas da
população, preparando-a para melhores destinos pelo grande meio do
adiantamento individual. Esta tendência que em alguns países têm feito
também convergir para o ensino, nobres e aturados esforços das classes
mais elevadas da sociedade honra o século em que vivemos, e tem
dado os mais lisongeiros resultados
40
.
Esta concepção de uma instrução neutra, estendida a toda população em graus
variados, e que parte das classes mais elevadas para as subalternizadas, em prol do
engrandecimento de uma entidade abstrata denominada nação, tem por resultado o
40
Trecho do relatório do ministro Paulino de Souza, do ano de 1869, retirado do documento Instrução
Pública. Notas de Tavares Bastos, Vol. 3. Sob guarda da Biblioteca Nacional.
68
apagamento da perspectiva dos conflitos sociais, ao conceber a sociedade como um
conglomerado de indivíduos, e não constituída por relações entre classes e grupos
diferentes. Assim, a instrução era tomada como um esforço unívoco, onde se
harmonizariam as classes – as mais elevadas educando e as outras sendo educadas.
No mesmo sentido temos o testemunho de Carlos Arthur Busch Varella, em uma
das conferências populares ocorrida em 17 de maio de 1874, de uma série de três
conferências sobre instrução proferidas no prédio da escola pública da Glória. Tal
conferência marca a difusão pela sociedade de seu projeto político pedagógico,
contribuindo para que uma determinada forma de ver a educação do povo se tornasse um
senso comum. Por extensão, contribui para tornar dominantes certas representações dos
sujeitos envolvidos nesse processo, divididos entre elites intelectualizadas e classes
populares ignorantes. No entanto é interessante notar o reconhecimento de uma
estratificação no âmbito das classes populares. De acordo com a análise do conferencista,
no momento em que advoga servirem as escolas centrais da Corte, como é exemplo o
palácio que serve à escola da Glória
41
, apenas às “crianças que pertencem a certa camada
do povo, que não é de todo balda de recursos, que pode dispensar os seus pequenos
serviços, enroupear modestamente os alunos e acudir Deus sabe com que sacrifícios, às
suas mais urgentes necessidades”
42
.
41
A freguesia da Glória era uma das freguesias urbanas, ou também chamadas “de dentro”. Segundo censo
do distrito federal de dezembro de 1890, utilizado por Noronha Santos em sua história das freguesias do
Rio antigo (SANTOS, 1965), a Glória possuia 46.000 habitantes, comércio e próspera indústria (duas de
cerveja e duas de tecido). Esta freguesia englobava os bairros do Catete, Laranjeiras, Santa Teresa, a praia
do Flamengo. Na introdução dessa história, Paulo Berger esclarece que “em seus primórdios, a cidade do
Rio de Janeiro era dividida sob um aspecto eclesiástico em diversas freguesias ou paróquias, as quais
limitavam o território de jurisdição religiosa, em princípio. Depois, essas mesmas freguesias passaram a
abranger os territórios de jurisdição administrativa. (...) A divisão territorial do então Município Neutro,
nos tempos da Monarquia, compreendia um aspecto municipal, policial e religioso que se entrosavam e se
confundiam (...). A primeira freguesia criada foi a de São Sebastião, pela Provisão de 20 de fevereiro de
1569. Pelo aumento da população e pela expansão territorial da cidade houve necessidade da criação de
novas freguesias, que se verificou por desdobramentos sucessivos, bem como por anexação de antigas
freguesias da então Província do Estado do Rio, de modo que ao findar a Monarquia elas eram em mero
de 21 freguesias. Cronologicamente essas 21 freguesias foram criadas em: Candelária (1634), Irajá (1644),
Jacarepaguá (1661), Campo Grande (1673), Ilha do Governador (1710), Inhaúma (1749), São José (1751),
Santa Rita (1751), Guaratiba (1755), Engenho Veho (1762), Ilha de Paquetá (1769), Lagôa (1809) Santana
(1814), Sacramento (1826, em substituição a de São Sebastião), Santa Cruz (1833), Glória (1834), Santo
Antônio (1854), São Cristóvão (1856), Espírito Santo (1865), Engenho Novo (1873), Gávea (1873)”.
42
Da instrução ao vagabundo, ao injeitado, ao filho do proletário, ao jovem delinqüente: meios de fazê-la
efetiva. Discurso proferido na escola pública da Glória, pelo Dr. Carlos Arthur Busch Varella, no dia 17 de
maio de 1874. 3ª Conferência. Rio de Janeiro, Typ. de Hypollito José Pinto.
69
O discurso de Varella inicia com a justificativa sobre a relevância do tema, digno
das maiores atenções e estudos dos “eminentes ilustrados da corte”. Questão de interesse
público porque diretamente relacionada ao “pauperismo e mendicância, cancros da
prosperidade dos povos”. Ao associar deficiência de recursos materias na qual viviam as
classes populares com a falta do ensino considerado por ele em duas dimensões: a
educação “para o coração” e a instrução “para a inteligência” – realiza duas anulações: da
responsabilidade própria à organização social baseada no latifúndio e no escravismo, e da
existência das classes populares como sujeitos produtores de cultura. Nesse contexto, a
educação do povo se apresentaria, como único meio de evitar os males sociais, exemplo
que se reconhecia em alguns países europeus. “Assumindo proporções assustadoras na
Inglaterra, compreendeu aquele adiantado país que o único meio de cortar os progressos
espantosos dessa lepra social era emancipar a sua população da crassa ignorância em que
jazia imersa e a mercê de todos os vícios a que os maus instintos e a ociosidade a
arrastavam. Cuidou-se, então, de abrir escolas por toda parte e de fundar a instrução para
o trabalho”
43
.
Como não se basta abrir escolas para frequência “universal” dever atribuído aos
estados a instrução precisava ir “a cata daqueles que não podiam vir-lhe ao encontro”,
as parcelas mais pobres da população que por falta de recursos ou ignorância, “não
podiam vir-lhes ao encontro”. Entram em cena, então os “corações generosos,
inteligentes, e sinceros patriotas”, que compreendem em meio à barbárie, uma
possibilidade de regeneração, e acreditam na perfectibilidade, conceito caro às ideologias
civilizatórias oitocentistas. Para tanto, a intervenção na vida desses sujeitos deveria ser
total – sob sua forma de habitar, de trabalhar, de pensar, de se divertir...
Sem teto e sem pão, os míseros insones dormem nesses recessos
imundos que a nossa cidade chamam-se Arco do Telles, e outros, ou ao
relento nos adros das igrejas, nos recantos escuros dos edifícios, ou se
empilham nesses redutos asquerosos que por abundam com nome de
“cortiços” perigosos centros de miséria e degeneração moral. Por
ventura não tem eles direito à proteção pública, ao cultivo de sua
inteligência? Não em cada um desses pequenos vagabundos uma
alma? Não lhes pulsa no peito um coração que pode ser sacrário de
43
Da instrução ao vagabundo, ao injeitado, ao filho do proletário, ao jovem delinqüente: meios de fazê-la
efetiva. Discurso proferido na escola pública da Glória, pelo Dr. Carlos Arthur Busch Varella, no dia 17 de
maio de 1874. 3ª Conferência. Rio de Janeiro, Typ. de Hypollito José Pinto.
70
virtudes? Na inteligância bruta de cada um desses tenros beduínos não
o germem que pode fecundar e desenvolver-se? Não tendes visto da
taverna e da oficina surgirem gigantes da inteligência e da indústria que
têm assombrado o mundo?
44
Em meio às peculiaridades dos discursos até aqui expostos revela-se uma
convergência importante, nenhum deles lega às classes populares papel ativo no processo
de instrução, uma vez que elas não são vistas como sujeitos capazes de intervenção
própria. Este e outros traços do projeto político pedagógico que tenho procurado, até
aqui, delinear através dos discursos governamentais, da intelectualidade e da filantropia, é
corroborado pelas publicações que circulavam na imprensa da corte na segunda metade
do século XIX sobre o tema. A imprensa, que neste momento florescia, com uma gama
variada de periódicos de grande e pequeno porte, alguns muito fugazes que não passavam
dos primeiros números, legava à temática da instrução um espaço significativo
45
. Suas
páginas veiculavam opiniões diversificadas sobre a educação do povo, em que pese a
dominância do projeto elitista que procurava se constituir em lugar comum.
Nesse sentido, a Gazeta da Instrução Pública realiza em seu editorial críticas à
situação geral da instrução no Império: poucos recursos, baixa qualificação dos
professores e curto tempo de instrução básica para os alunos: “os meninos e moços
depois de receberem os livros que gratuitamente lhes são fornecidos, não adquirem mais
instrução e entram no serviço do campo ou nas indústrias de seus municípios”. Atenta a
esta falta, a “Gazetateria surgido visando fornecer subsídios para continuidade desta
44
Idem.
45
A Gazeta do Rio de Janeiro foi o primeiro jornal da América portuguesa, e se manteve até 1822. Ela
cumpria papel de folha oficial, transcrevendo atos do governo. No início da década de 1820, com o clima
de agitação política e os “arrobos de liberdade de imprensa” houve a “explosão” do número de periódicos
que chegou a mais ou menos vinte, na Corte. “Apareciam sob a forma de opúsculos ou folhetos de curta
duração e limitada circulação (...) outros tinham caráter de semanários e conforme seu êxito convertiam-se
em diários de maior influência”. Eles tiveram, durante esse período, grande influência nos debates sobre a
independência, mas após a dissolução da assembléia constituinte e a perseguição à oposição liberal, houve
uma drástica redução do número de periódicos na Corte. Em fins da década de 20, tomam novo impulso,
quando surge um dos jornais mais antigos em circulação no país o Jornal do Commercio, que buscou
evitar disputas partidárias. Nas décadas seguintes surgem outros tipos de periódicos como revistas, e passa
a ser comum a atuação de literatos em diversos jornais através da publicaçao dos folhetins. Com os avanços
técnicos, introduz-se a gravura, e com ela, a arte das caricaturas, “forma de análise da política e sociedade”.
nas últimas décadas do século XIX, a propaganda abolicionaista e republicana multiplicou o número de
periódicos. (VAINFAS, 2002) Já, pelo menos, a partir da década de cinqüenta do século XIX, começam a
surgir periódicos voltados para interesses particulares da instrução.
71
formação, tanto de professores, como dos meninos. Nas páginas seguintes, encontramos a
publicação de um texto extraído das “Práticas de Aldêa, do muito conhecido Sr. De
Cormenin”, onde é dado a ver o sentido da formação que a Gazeta pretende cumprir. O
artigo chama-se “O mestre-escola”, e pretende afirmar tal ofício como o mais apreciado
entre todos na terra. O texto compõe-se pela sutileza das idéias liberais, que assumindo
aparência progressista, fazem-se conservadoras ante a classe trabalhadora, usando a
educação como propagadora de uma moral docilizante e controladora, procurando apagar
a luta de classes através da pregação idealista de uma igualdade inexistente diante da
“pátria”. Vale a pena transcrever parte desse discurso tão representativo, quanto mais
quando faz parte de um periódico destinado à formação de professores que teve,
inclusive, assinaturas compradas pelo vereador João Pereira Darrigue, para distribuição à
professores, conselhos municipais e inspetoria de escolas.
...Daria quotidianamente graças a Deus por me permitir formar
corações e inteligências. Havia de inspirar-me do amor de meus
deveres, e me esforçaria, sobretudo para levantar os humildes, suster os
fracos, doutrinar os ignorantes e moralizar os vícios. (...) Não é tudo
saber ler, escrever e rabiscar na pedra alguns números e algumas
figuras. Tendes um Deus ao qual deveis adorar. (...) Sereis um dia
soldados para defender a pátria, lembrai-vos que para ser bom soldado e
necessário ter robustez e, por conseguinte viver com temperança e
sobriedade, ser disciplinado e, por conseguinte obediente. (...) Em
vossos magistrados enxergai vossos superiores, lembrai-vos que a
obediência à lei é o dever de cada um de nós, porque a lei é a vontade
de todos.
Algum de vós, talvez que venha a ter amo ou patrão, esse deve saber
que um criado ou caixeiro vigilante, pontual, trabalhador, paciente e
regrado vale mais que amo ou patrão impertinente, perdido e colérico.
(...) Tendes pais. Deveis suportar o peso de seus trabalhos. Tendes
vizinhos. Não andeis a gatunar em seus patios e jardins. (...) Se alguma
disputa por um muro, poço, arbusto, ou pastagem, levou vossos pais a
ficarem mal com seus vizinhos, tomai-lhes das mãos em um aperto de
conciliação, e sede os intermediários da boa harmonia.
Tendes camaradas. Prometei uns aos outros que vos havei de ajudar
mutuamente quando fordes homens. Amai-vos! A união é a única força
dos pequenos e dos fracos. Os ricos podem viver no isolamento, seu
dinheiro lhes dá socorros, braços, amigos, mas os pobres precisam
associar-se para que com mais facilidade suportem suas misérias.
(...) A natureza vos fez iguais e a lei do vosso país vos fez livres. De
vossos casebres saírão grandes magistrados, dignatários da igreja,
72
sábios ilustres, hábeis ministros, engenhosos fabricantes. Hoje em dia
não há mais classe alta e classe baixa. indivíduos desiguais e
diferentes pela idade, fortuna, virtudes e talentos. Levanta pois a
cabeça com serenidade, sem orgulho, mas sem timidez porque todos
vós são admissíveis aos empregos, todos igualmente preciosos a pátria.
Amai a pátria extremosamente.
(...) Não andeis em desconfiança dos vossos superiores, porque o
são, quando vos regem com firmeza, sabedoria e justiça, nem dos ricos,
só porque o são, quando vos amam, vos consolam e vos socorrem. (...)
Não vos desleixeis do asseio de vossas mãos, vestuário e calçado. Na
decência do corpo espelha-se a decência da alma. (...) Não acrediteis em
almas de outro mundo, porque os mortos não voltam cá, nos feiticeiros
e adivinhos, porque não passam de velhacos, nos curandeiros porque
são charlatães, tudo isso são quimeras que vos perturbarão o espírito e
que são indignas de um homem que tem sua razão clara.
Em suma meus caros filhos, não digais, comparando-vos com os ricos,
que a providência vos fez nascer em uma condição dura e miserável,
que seu destino é digno de inveja, e que o vosso é lastimoso. Não é
tanto assim como acreditais, meus filhos. A natureza não lhes deu duas
bocas, nem dois estômagos, nem dez sentidos em vez de cinco. Eles
sofrem sustos, desprazeres, vigílias, cansaço, remorso que nunca
sofrereis. São mais grosseiros os vossos alimentos? O apetite os
temperará. É curto o vosso sono? Mas é profundo. Se vossos trabalhos
são mais pesados, tendes um repouso mais doce, e braços mais
robustos. Se vossos prazeres são menos vivos, a sociedade não vos
enfara. Os ouros, os palácios, as criadagens, as traquitanas, os vinhos
delicados não fazem com que o rico seja mais feliz que o pobre (...)
lembrai-vos filhos meus, que a verdadeira felicidade depende
unicamente do trabalho, da ciência e da virtude.
46
Significativamente, o mesmo periódico publica, alguns números depois, uma nota
intitulada “Os crimes e a qualidade dos criminosos em França”, onde afirma que os
“delitos políticos” foram responsáveis pelo julgamento de 1.137 pessoas entre 1836 e
1848. Destas, 225 foram indiciadas em 1848, e 78 entre 1836 e 1847. O autor da nota
quer chamar atenção para os prejuízos trazidos pelas revoluções, uma vez que 1848 foi
ano marcado por ondas revolucionárias protagonizadas pelo movimento operário
europeu, a chamada “primavera dos povos”. O autor conclui com a frase: “Por aqui se
o mal que produz o fermento das revoluções”.
46
Gazeta da Instrução Pública. Sábado, 1º de novembro de 1851, ano 1, nº 1. Redator: F. Otaviano
d’Almeida Roza. Niterói, na Typografia de Amaral e Irmão, e na Corte, Livraria de Mongie. Sob a guarda
da Biblioteca Nacional. Grifos meus.
73
Esta posição é compartilhada por um outro periódico, “A Gazeta Acadêmica”
47
,
de 1876, cujo editorial exalta as maravilhas do progresso e a instrução associada ao
trabalho como meio de atingí-lo. O jornal opõe, ainda, razão e violência, e diz que o sabre
do combate, nos tempos modernos deve ser a “pena incansável”. A luta das idéias deveria
apagar a luta dos indivíduos e das classes num mundo em que já não se governaria mais
com a força dos músculos, mas da tribuna e do jornal, ou seja, da palavra. Ao final de
todo seu discurso profundamente ideológico, afirma que “não militará sobre a bandeira
de nenhum partido, o seu partido será simplesmente o partido de seu país”. Este jornal
representa uma posição profundamente elitista, destacada do tom reformista dominante à
época. Entre as diversas publicações consultadas, foi o único posicionamento contrário
que pude encontrar em relação às escolas noturnas, que afirma não trazer vantagem à
mocidade. Ao mesmo tempo critica como investimentos inúteis as conferências populares
e os prédios-palácios escolares, enquanto a faculdade de medicina ficaria entregue às
moscas. Como se pode perceber apresenta a formação médica como prioridade a ser
observada em relação à instrução popular. Aí, talvez, resida um outro polo de resistência
no que se refere ao papel / função do Estado.
Em outro momento, procurando captar a percepção das classes populares sobre a
educação recorri a jornais voltados para trabalhadores, ou assim declarados, que
abordassem o tema. Do universo pesquisado, não foi possível perceber rupturas em
relação às concepções de educação para o povo presentes no projeto político pedagógico
das aulas noturnas que busco aqui delimitar, o qual tenho chamado elitista. Foram
47
Gazeta Acadêmica: periódico dedicado às ciências, artes e letras, da qual encontramos o ano um,
arquivado na Biblioteca Nacional. Exaltando a “ilustração” e a imprensa como meios civilizatórios, esse
jornal tem a seguinte epígrafe: “Do consórcio das doutrinas úteis e da imprensa livre, nasce a prosperidade
dos povos”. Tem sua publicação quinzenal, e em suas páginas encontramos artigos, literatura, poemas e
charadas. Já a Revista do Ensino é uma publicação mensal, da qual também encontramos o ano um,
voltada, principalmente, para professores e demais agentes ligados à instrução. Apresenta textos corridos,
sem imagens, mas com algumas tabelas, e na última página, anúncios de livrarias. Transcrevo alguns dos
títulos dos artigos: O ensino primário e o aprendizado nos ofícios; Quadro da organização completa do
ensino nacional; Instrução primária na Inglaterra; Aritmética: meio de aprender a contar com segurança
e facilidade [dividido em lições];Transcrição do regulamento da instrução primária e secundária da Corte
segundo o decreto de 1853; Bibliotecas escolares; Instrução pública.
74
analisados seis periódicos, entre os quais alguns afirmam estar voltados para a classe
trabalhadora, e outros voltados para a população negra e parda escrava, liberta ou livre
48
.
O periódico O trabalho: folha consagrada aos interesses da indústria e das artes
intitula-se como “folha para o povo”, na qual os operários escrevem para “seus irmãos”,
mas em suas páginas defende o direito de propriedade e prega uma comunhão de classes.
Fala da necessidade de resgatar ao trabalho os que estão na “vadiagem” e realiza a
comum identificação entre o não trabalho e a criminalidade. O jornal reivindica
entretanto, uma legislação social que assegure garantias para o trabalhador. “O trabalho é
para todo cidadão um dever e um direito. Como dever precisa de vigilância, como direito
precisa de garantias”, indicando esta fórmula como capaz de atrair ao trabalho, os “braços
desocupados”.
O trabalho, sobretudo, expressa uma posição “iluminista” de seus redatores em
relação às classes populares, vistas por eles de forma pejorativa, como aquelas a quem
deveriam educar, guiar, levar a salvação... Nesse sentido, o por demais representativas
as “palavras eloquentes de um poeta” ali publicadas, que estabelecem uma metáfora
muito interessante relacionando sociedade e escola:
Sacrifica à populaça, oh poeta! Sacrifica à desventurada, à
deserdada, à vencida, à vagabunda, à faminta, à repudiada, à
desesperada, a essa pés descalços, sacrifica-lhe se for preciso e quando
for, teu repouso, tua fortuna, teus júbilos, tua pátria, tua liberdade, tua
vida. A populaça é o gênero humano na miséria. A populaça é o
começo doloroso do povo, a populaça é a grande tima das trevas.
Sacrifica-lhe! Deixa-te repelir, deixa-te exilar como Voltaie em Ferney,
como Aubigné em Gênova, como Dante em Verona (...) Sacrifica-lhe
teu ouro e teu sangue que é mais que teu ouro, e teu pensamento, que é
mais que teu sangue, sacrifica-lhe tudo, menos a justiça. Acolhe a sua
queixa ou vê-a sobre as suas e sobre as faltas alheias. Ouve-a sobre o
que te confessa e o que te denuncia. Estende-lhe o ouvido, a mão, o
braço, o coração. Faz por ela tudo, a excessão do mal. Ai! Ela sofre
tanto e nada sabe! Corrige-a e adverte-a, instrue-a, guie-a, eduque-a.
Dá-lhe frequência na escola da honestidade. Fa-la soletrar a verdade,
48
Na composição geral da pequisa utilizei periódicos de diferentes caráteres segundo seus objetivos, quais
sejam: os que tinham por prioridade noticiar fatos gerais; os veículos de propaganda de associações
relacionadas à instrução; os que se dedicavam especialmente à cultura e instrução; os ideológicos voltados
para grupos sociais específicos. Escolhi alguns deles, entre o penúltimo e último grupos citados, para
esboçar sua caracterização como veículo de informação, fornecendo dados mais detalhados sobre a
publicação que serão citados em algumas notas de rodapé.
75
mostra-lhe o alfabeto da razão, ensina-lhe a ler a virtude, a probidade, a
generosidade, a clemência. Abre-lhe de par em par o grande livro.
Ilumina os cérebros, inflama as almas, desvanece os egoísmos, o
exemplo. Os pobres são a privação, sê tu a abnegação. Ensina-lhe!
Irradia! Precisam de ti, tu és a sede que os devora. Saber é o primeiro
passo. Viver é o segundo...
49
O jornal segue divulgando com entusiasmo os resultados das escolas noturnas
para adultos na França, onde entre 1867 e 1868, abriram-se em 26.193 Comunas, 27.902
escolas de adultos para homens e, em 4.084 Comunas, 4.429 escolas de adultos para
mulheres, e o número de discípulos chegou a 684.092 homens e 95.281 mulheres. Em
artigo seguinte informa que no Brasil também existem tais escolas noturnas, e cede
espaço à matéria da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional divulgando as aulas por
ela promovidas. Tais aulas foram criadas como requisito para o desenvolvimento
industrial de que o país carece – “O ensino industrial é, pois uma necessidade geralmente
sentida em nosso país; mas um grande obstáculo se oferece ao seu desenvolvimento, e
vem a ser a falta de instrução elementar na maior parte dos nossos operários para
poderem frequentar a escola industrial”. Buscando a causa dessa falta de instrução
elementar aponta as dificuldades para o operário alcançar os meios de subsistência, tendo
que utilizar o trabalho dos filhos em prejuízo de sua instrução, “visto que as horas de
trabalho coincidem com as de instrução”. O discurso que caracteriza o operário como
49
O Trabalho: folha consagrada aos interesses da indústria e das artes. 11 de outubro de 1868. Redator:
Alexandre A. R. Sattamini, Rio de Janeiro, Typ. e Lyth. Do Bataclan.
Entre os periódicos de caráter ideológico está O Trabalho: folha consagrada aos interesses da indústria e
da arte. Este se declara como jornal voltado para os trabalhadores, mas é de fato um órgão da Sociedade
Reunião dos Expositores da Indústria Nacional, que procurava desenvolver a indústria moderna no âmbito
da técnica e também da formação de mão-de-obra, e nesse sentido sua obra faz lembrar a Sociedade
Auxiliadora da Indústria Nacional. O jornal citado teve um duração de, no mínimo, 6 anos, os quais,
atualmente, fazem parte do acervo da Biblioteca Nacional, e ao que parece, tinha periodicidade quinzenal.
Em suas páginas encontramos textos informativos e educativos relacionados aos interesses do
desenvolvimento industrial, alguns assinados pelos próprios editores ou colaboradores, e outros traduzidos
de periódicos, enciclopédias e outras publicações estrangeiras, em sua maioria, nas línguas francesa e
inglesa. Encontramos ainda, divulgação de eventos como a Exposição Nacional, breves noticiários,
anúncios de casas comerciais ou de serviços como da “Tinturaria do Comércio: Roupas a Prova de Chuva”.
Os textos são corridos, sem subdivisões em seções, e sem ilustrações. A seguir transcrevo alguns artigos
presentes em suas páginas. Ciência e indústria: a imprensa útil; Instrução pública. França. Por Faustus;
Trigo; Efeitos psicológicos das bebidas espirituosas. Por Dr. B. Lunel; Ciência e indústria: terapêutica
brasileira. Por Dr. Corrêa de Azevedo; Apontamentos sobre a sucupira branca [árvore]. Por Dr. Vieira de
Mattos; Águas de Esgoto. Retirado de Science pour tous; Occulo sob-marino. Retirado de Journal of the
telegraph; Influência das florestas nos climas. Retirado de Annales forestieres; Lista e modo de emprego
de medicamentos e instrumentos de urgência.
76
vítima não contesta a sociedade de classes, pelo contrário, a crítica é feita aos seus
“prazeres desregrados e à ociosidade” que deveriam ser substituídos pelo cultivo do
espírito e fortalecimento moral, “seguros penhores da ordem social”.
Para cobrir a lacuna deste tipo de instrução para as classes laboriosas, não aos
sujeitos adultos, mas também à criança trabalhadora, a Sociedade Auxiliadora da
Insdústria Nacional funda sua escola noturna, e apela aos proprietários e diretores dos
grandes estabelecimentos e oficinas, e aos mestres de obras, que dirijam seu pessoal à
matrícular-se lá. Aconselha que se estabeleça uma política de benefícios para os que se
matricularem a qual, mais tarde, seria revertida em consideração e gratidão pública e,
principalmente, consideração e gratidão desses operários.
Além da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional havia outras
organizações que procuravam preencher a mesma lacuna em relação às aulas noturnas.
Ao se julgar lesada na disputa para decidir quem era “a mais benemérita” das sociedades,
a “Reunião dos Expositores da Indústria Brasileira” contesta o pioneirismo atribuido a si
pela Auxiliadora da Indústria Nacional informando que também possuía um curso que
funcionava desde a mesma época, e lembrando ainda a existência dos cursos do Lyceo de
Artes e Officios e da Sociedade Propagadora das Bellas Artes. Colocando, porém, as
disputas à parte, o jornal da “Reunião dos Expositores”, reclama que em todas as aulas
noturnas frequência de poucos alunos, enquanto poucos o os operários e aprendizes
que sabem ler. Atribui à escravidão esse desdém pelos assuntos relacionados ao trabalho
livre e apela a uma colaboração entre as associações envolvidas com esse tipo de ação
educacional, os patrões e operários, para conseguir aumentar a frequência das aulas
noturnas.
Mas o que podemos fazer com uns 20 alunos nas classes
noturnas da Reunião dos Expositores, uns 30 no do Lyceo e Bellas
Artes, e uns 40 nas da Sociedade Auxiliadora, para extirpar o flagelo da
ignorância que corrói a classe operária no Brasil, classe tão desdenhada
ainda nos nossos dias, e que não se levantará se não muito tempo depois
da abolição da escravidão. (...)
Mas não devemos desanimar, é preciso que a Sociedade
Auxiliadora da Indústria, hoje florescente, ajude a reunião dos
expositores a alcançar este fim. É preciso que as aulas noturnas sejam
frequentadas por grande número de pessoas em grandes salões cedidos
pelo Estado, e para sacudir o torpor da classe operária, é preciso animar
77
não somente os alunos, mas também os patrões a enviarem às diferentes
classes o maior número de aprendizes e operários
50
.
A Gazeta Operária, outro periódico analisado, apresenta em relação a O
Trabalho, uma visão mais crítica de sociedade. Em sua perspectiva existe luta de classes:
“O operário do Brasil, como de qualquer outro país representa o núcleo de inferior
posição, é certo, o proletarismo o considera como seu representante, os governos assim o
julgam, e as classes mais avantajadas chegam a desprezá-lo. Entretanto, é bom convir: o
operário é o povo, ele presta desde o suor até o sangue em favor de seus desprezadores,
mas se por ventura a paciência se esgota, então vem o período da reação, e a
consequência é sempre fatal”. A Gazeta fala em socialismo, do qual a história da
humanidade deve ser a bíblia; faz críticas ao governo pelo mau gasto do dinheiro público
com “os casacas”; faz denúncia da repressão policial contra os trabalhadores que teria, à
época, matado um vendedor de jornais, e correlaciona a consciência do trabalhador e a
instrução, dando como exemplo o fato de que para este melhor compreender as relações
entre tempo de trabalho despendido pelo operário e o lucro dos patrões é necessário que
receba instrução e, para tanto, cita a importância dos cursos noturnos: “A fundação de
cursos noturnos, a escola, propriamente dita, onde depois dos afazeres, possa o artista
encontrar o pão do espírito que alargue a esfera circunscrita de suas idéias, deve ser o
primeiro passo no caminho a encetar”. Esta exaltação dos cursos noturnos é feita na
esteira da constatação da ignorância da classe pobre, analfabeta em sua quase totalidade.
[Como a classe pobre cria seus filhos?] Entendem não instruí-
los e entregam-nos a si mesmos, isto é, deixam-nos vagar diariamente
nas ruas e não obrigam-nos a frequentar as escolas, nem aplicar-se a
qualquer (?) enquanto eles não têm idade suficiente para o trabalho
manual. O que acontece: o rapaz vai crescendo analfabeto, sem gosto,
sem idéias, sem propensão para coisa alguma, perdido em fim. Então os
pais metem-no na primeira oficina ou qualquer profissão sem consultar
a capacidade física ou intelectual deste futuro cidadão, nem suas
aptidões. Resulta disso que se ele é de boa índole, conserva-se e trata
de aplicar-se (?). Se não, (?) na vagabundagem, destroça e nunca atinge
50
O Trabalho: folha consagrada aos interesses da indústria e das artes. 25 de outubro de 1868. Redator:
Alexandre A. R. Sattamini, Rio de Janeiro, Typ. e Lyth. Do Bataclan.
78
posição, tornando-se um homem inútil e perigoso, mau chefe de
família, se a construir, como foram seus pais.
51
A Gazeta indica outro tipo de apropriação dos ensinamentos das aulas noturnas,
diferentes dos que estão previstos no projeto político pedagógico dominante dessa
modalidade educacional. Em vez de sua utilização para formação de trabalhadores dóceis
e úteis às elites, seria ferramenta para melhor apreensão de teorias potencialmente
“subversivas”, como a da “mais-valia” esboçada pelo redator. Porém este não rompe com
o projeto dominante no que se refere a representação das classes populares. Assumindo o
lugar de liderança intelectualizada desses “operários ignorantes”, o jornal os encara como
objetos e não como sujeitos. Reproduz preconceitos como o da associação entre o não
trabalho formal, chamado pejorativamente de “vagabundagem” e o perigo da
criminalidade. Atribui aos pais pobres a responsabilidade por seus filhos não
frequentarem escolas, como se fosse uma questão exclusivamente de escolha destes,
desconsiderando fatores como falta de recursos para dispensar o trabalho desses meninos,
falta de recursos para as despesas com os estudos, e a própria dificuldade de obter
instrução gratuita – fatores apontados até mesmo pelo jornal da associação patronal
anteriormente analisado.
Em periódicos voltados para a questão mais específica do trabalhador negro e
pardo, seja ele livre, escravo ou liberto, as representações sobre a educação para o povo
não se alteram. Podemos encontrar no Boletim do Club dos Libertos Contra a Escravidão
a referência à vitória das aulas noturnas que “(fora da política) têm conseguido arredar da
vadiagem, e talvez da prática da criminalidade grande número de homens e crianças”
52
.
Ou seja, a constante relação entre escola, trabalho e moralidade, versus ignorância,
51
Gazeta Operária. Órgão proletário do Rio de Janeiro. 9 de dezembro de 1884, ano 1, nº 2. Propriedade de
J. F. Veiga e C. Typ. da Rua do Hospício.
A Gazeta operária: órgão proletário do Rio de Janeiro aparece como jornal de crítica política mais
explícita. No acervo das obras raras da Biblioteca Nacional, encontramos números referentes ao primeiro
ano de publicação. A Gazeta era publicada às quartas e sábados. Em suas páginas encontramos artigos de
análise da situação social e política, notícias comentadas, matérias a pedidos, versos, anúncios de casas
comerciais e serviços
como “Grande Armazém de Secos e Molhados” ou, Limpeza e conserto de
relógios”. O jornal traz, ainda, na parte de baixo da folha, um romance de folhetim A prima Maria, por
Ernest Daudet. Os textos são corridos, sem subdivisões em seções e sem ilustrações. A seguir, alguns
títulos de matérias da Gazeta. Ensaio sobre a organização do trabalho; O artigo 8 da reforma eleitoral;
Pacto Social; Reclamação [Sobre o horário de entrada nas repartições públicas]; O Município;
Estabelecimento de uma indústria.
52
Club dos Libertos contra a escravidão. Estabelecido em São Domingos de Niterói, Rua do Guarani, II.
Boletim nº 2. Balancete de 1º de maio a 30 de setembro de 1882. Sob guarda da Biblioteca Nacional.
79
ociosidade e cios/crimes, tipo de correlação que generaliza determinados
comportamentos a todo um conjunto de sujeitos, homens, mulheres, adultos e crianças,
habitantes de uma cidade em que mais da metade da população era analfabeta. Estes
todos não são percebidos como portadores de uma cultura diferente da veiculada pela
escola, nem executores de trabalhos muitas vezes independentes do modelo do
trabalhador assalariado disciplinado e regido pela necessidade imposta de altos níveis de
produtividade. Tais sujeitos encontram-se descritos pela negação e pelas ausências: de
cultura, de aptidão para o trabalho, de moral etc.
Em outra publicação do Club dos Libertos
53
talvez se encontre uma chave para
compreensão da visão considerada aqui ambígua sobre os objetivos da instrução para as
classes populares, no entender de algumas instituições que buscavam representar essas
classes. Em seção de homenagem à José do Patrocínio, a maioria dos discursos, inclusive
os que retratavam a história do homenageado, ressaltavam as estratégias de resistência e
superação da escravidão como estratégias de lutas individuais em busca do sucesso
pessoal, em que a instrução cumpriria papel de relevo. Além de Patrocínio, é
homenageado um outro lente da Escola Politécnica, Dr. José Agostinho dos Reis que,
como ele, antes fora escravo e aproveitara a instrução como meio de ascenção social
54
.
Em O Progresso: orgam dos homens de cor, essa concepção também é veiculada.
O artigo de 1899 entitulado: “Eduquemo-nos”
55
mostra enfaticamente que não se pode
53
Homenagem a Jodo Patrocínio: redator chefe e proprietário da “Gazeta da Tarde. Em 8 de outubro de
1883. Rio de Janeiro, Typ. Central de Evaristo Rodrigues da Costa.
54
Segue-se um trecho da narração da cerimônia: “O delírio e o entusiasmo tinham chegado ao apogeu
quando assomou à tribuna o ilustrado lente da Escola Politécnica, Dr. Ennes de Souza, que pronunciou um
notável discurso, encarando a questão da abolição pelo lado científico e provando que ela se podia fazer
imediatamente sem que a nossa sociedade sofresse abalo pela passagem do trabalho escravo para o trabalho
livre. Ao deixar a tribuna o orador foi frenética e entusiasticamente saudado. Uma voz fez-se ouvir de um
dos camarotes. Todas as atenções viraram-se para o lado de onde ela partia. Era um simpático Dr. José
Agostinho dos Reis, também lente catedrático da mesma escola que, mais uma vez ia emprestar seu talento.
O orador participou declarando que foi escravo e sua presença devia ser justamente onde se celebravam a
festa dos libertos. Ali estava. (Bravos) (...) Depois disso, ocupou a atenção do auditório, José do Patrocínio,
que fez uma comparação que foi imensamente aplaudida. Um homem, disse o orador, nascido escravo,
transformou-se em senador, e depois, esqueceu o passado, fez-se cruel inimigo de sua raça; um outro, vindo
do norte como o primeiro, como o primeiro escravo, conquistou uma carta de doutor, fez-se por esforço
próprio, lente de uma academia, e este país que quase deixou que aquela cabeça fosse destinada a carregar
um cesto de café, não se lembrava que mais tarde seria ela coroada de louros, e que aquele que queria para
lacaio, se transformaria em educador de seus filhos. (Ardentes aplausos)”.
55
O progresso. Órgão dos homens de cor. São Paulo, 24 de agosto de 1889, ano 1, 1. Sob guarda da
Biblioteca Nacional.
80
esperar manifestações da inteligência erudita da população negra que acabara de largar a
enxada, sem antes educá-la, pois aqueles negros que estudam, prosperam. Se o jornal
desmonta a tese da incapacidade natural em função da raça, também deixa de valorizar a
cultura do ex-escravo, e recai sobre a tese ingênua de que o que falta às classes pobres
para que melhorem sua condição é a instrução, apesar de compreender que todas as
marcas da civilização foram criadas pelo braço escravo sem se lhes ter permitido acesso
aos benefícios dessa civilização. Afirma que nas cidades a sorte era um pouco diferente,
pois os libertos mandavam os filhos à escola, e estes se mostravam inteligentes. Mas
mesmo reconhecidamente valorosos, os pretos continuavam sendo discriminados. Mesmo
com a mudança do sistema político derivada da proclamação da República, a igualdade
social não teria sido alcançada. Diante da história de cativeiro e das permanências da
condição subalterna após a abolição, o autor parece encontrar a necessidade de afirmar o
negro como: “ordeiro, amante da família, laborioso, etc.”, que a imagem construída
sobre ele era a da classe perigosa. Clama, por fim para que se eduquem os negros para o
bem do Brasil e poderíamos completar afirmando que este era considerado o caminho
para o bem de si mesmos, sendo a instrução um importante meio de integração à uma
ordem que, ao menos os editores de O Progresso, intentavam pertencer e não perturbar.
Esta concepção de integração à ordem que em 1899, internalizada por parte dos
próprios potenciais “sujeitos da desordem”, não teria surgido de uma hora para outra, mas
fora resultado de um longo processo de formação do cidadão, do trabalhador brasileiro e
do controle de suas existências do qual ressaltaremos as últimas cadas do século XIX.
Em seu livro sobre a formação da classe trabalhadora brasileira entre o período da
Primeira República e, principalmente, do estado varguista, Ângela de Castro Gomes
aponta a necessidade da criação de um modelo de trabalhador livre para o
desenvolvimento de um mercado de trabalho livre,
Desde fins do século XIX, mesmo antes da abolição da
escravatura, o tema do trabalho e dos trabalhadores livres e educados no
‘culto ao trabalho’ se impôs ao país. Entendia-se claramente que era
Outro jornal de caráter ideológico era O progresso: órgão da Liga dos Homens de Cor. Deste também
encontramos um número na Biblioteca Nacional. Sua primeira página traz uma homenagem ao jornalista
abolicionista negro, Luiz Gama, com a figura de seu rosto no centro da página. Este número é composto
por artigos sobre questões sociais, noticiário e nota de falecimento. Os títulos dos artigos são os que se
seguem. Eduquemo-nos; A superioridade da raça; A crise da lavoura; Poema para Luiz Gama.
81
preciso criar valores e medidas que obrigassem os indivíduos a
trabalhar. (...) A preocupação com o ócio e a desordem era muito
grande e educar um indivíduo era principalmente criar nele o hábito do
trabalho. Ou seja, era obrigá-lo ao trabalho via repressão e também via
valorização do próprio trabalho como atividade moralizadora e
saneadora socialmente. O pobre ocioso era indubitavelmente um perigo
a ordem política e social. (GOMES, 1988, p. 25).
Com o acirramento das pressões inglesas e o fim do tráfico negreiro
intercontinental, os dias da escravidão estavam contados. As primeiras medidas adotadas
como solução para a demanda crescente por escravos na lavoura cafeeira foram de
estímulos ao tráfico interprovincial, trazendo os negros das províncias do Nordeste, cuja
economia apresentava um declínio em relação ao Sudeste. Em seguida, a ação dos
dirigentes políticos, pressionados pelos plantadores escravistas, se deu no sentido de adiar
ao máximo possível o fim da escravidão, inclusive através da legislação que a abolia
gradualmente, dentro da ordem, preservando os capitais dos proprietários. Segundo Maria
Emília Prado, tal adiamento fez-se o mais possível até que se criaram novas bases sócio-
econômicas para manutenção do Estado – uma elite que prescindia da escravidão.
É ainda a mesma autora que, citando Nabuco de Araújo, afirma ser difícil a
garantia da ordem pública contra a massa de dois milhões de indivíduos cujo primeiro
impulso seria o abandono do lugar onde suportaram a escravidão. Nesse sentido, para
uma parte dos parlamentares, não seria possível contar com o trabalho do negro após a
abolição. É esse o momento que se desenvolve também a construção da justificativa para
a repressão dos negros e a adoção de outra mão-de-obra o problema não seria o trauma
do cativeiro, mas a inaptidão para o trabalho. Esta construção encontrou apoio no
discurso científico racista do século XIX que serviu ao imperialismo na construção da
idéia de inimigos externos de quem as nações civilizadas deveriam ao mesmo tempo se
proteger e regenerar. Nas palavras de Prado, “por aqui, tratava-se de construir um inimigo
interno: os negros”. (PRADO, 2005, p. 73).
Entretanto não havia consenso entre as defesas da possibilidade ou não da
utilização do liberto e do trabalhador nacional. Diferente dos que advogavam a
necessidade do investimento do Estado em trazer braços imigrantes pela impossibilidade
do uso do trabalhador nacional, alguns fazendeiros presentes no congresso agrícola de
1878 contavam com a possibilidade de educar os nacionais” para o trato da lavoura.
82
Neste congresso, os fazendeiros reclamavam da falta de braços e capitais, carência
agravada pela falta de tratamento ao chamado problema da vadiagem, que além de o
reprimida seria estimulada por “pessoas de posição” em troca de favores políticos.
[Falta] correção e polícia que moralise e sujeite ao trabalho a
classe jornaleira atendo o abominável costume em que desde longa data
estão postos, de passarem o tempo na ociosidade, e uma grande parte
deles há que andam de casa em casa passando uma vida tão
simplesmente estéril (...) perpetrando atentados de diversos modos e
interrompendo a ordem pública. Desgraçadamente uma avultada parte
destes miseráveis encontra patronato entre muitas pessoas de posição
que os apoiam para adquirirem popularidade e disporem de votação nas
freguesias, fomentando o vício, auxiliando a imoralidade, e aniquilando
o socorro do braço livre.
56
Como possíveis soluções para esses problemas, propõe instrução profissional, não
com vistas de “formar sábios”, mas sim “homens práticos”. Propõe ainda leis que
disciplinem os libertos, engajando-os nas lavouras e instituições como fazendas modelo
para onde fossem enviados os órfãos e ingênuos
57
. Segundo os lavradores de Baependy
seria necessária “uma lida educação moral, religiosa, cívica, intelectual e profissional,
por meio da qual não a lavoura conseguirá a vantagem de aumentar melhorando seus
produtos, como ainda adquirirá milhões de operários ociosos no país, uns os camponeses,
em quase barbárie, outros os índios, em completa barbárie que neste triste estado pouco
ou nada trabalham porque imersos na ignorância não consideram o trabalho sob seu
verdadeiro aspecto – como uma lei da natureza humana e uma necessidade social”
58
.
Em relação aos demais níveis da instrução, este mesmo grupo faz a crítica à
formação bacharelesca, reivindicando a ampliação da instrução primária e secundária
voltada para formação de fazendeiros e seus filhos, uma vez que a atual formação serviria
mais para o aumento do número de funcionários público que acabavam sendo sustentados
pelos impostos cobrados da lavoura. Em relação ao ensino primário como exemplos a
serem implantados são citados: as conferências populares, escolas dominicais e
professores ambulantes. Não esquece, ainda, a educação de adultos que considera medida
56
Congresso Agrícola do Rio de Janeiro, 1878. Coleção de Documentos, RJ, Typ. Nacional, 1878, 262 pp.
Sob guarda da Biblioteca Nacional.
57
Forma de se referir aos filhos das escravas nascidos após a Lei do Ventre Livre.
58
Congresso Agrícola do Rio de Janeiro, 1878. Coleção de Documentos, RJ, Typ. Nacional, 1878, 262 pp.
Sob guarda da Biblioteca Nacional.
83
para o melhoramento do presente enquanto a instrução das crianças seria uma preparação
do futuro. A educação de adultos representaria “na ordem moral o que a locomotiva
representa na ordem material”. Dessa forma, o trabalhador nacional poderia, por motivo
de vantagens econômicas, ser utilizado depois de qualificado em instituições como
escolas agrícolas e mobilizado pela repressão à “vadiagem”. Tal repressão e o forte
discurso de valorização do trabalho eram mais necessários a medida que faltava, segundo
o deputado Rodrigues Peixoto, citado por Maria Emília Prado, “estímulo para o trabalho,
porque entre s não tem aplicação a lei de Darwin, o strugle of life, graças a facilidade
de subsistência, origem de nosso atraso e miséria”. (PRADO, 2005, p. 89).
Além da formação para a integração ao mundo do trabalho havia a necessidade do
estabelecimento dos limites necessários à integração ao mundo da política em uma
sociedade que crescia e se complexificava. Também a instrução esteve diretamente
implicada. A cidadania no Império estava organizada como a própria sociedade,
hierarquicamente. A distinção básica dava-se entre os cidadãos e não cidadãos que, em
linhas gerais, correspondia à distinção entre livres e escravos. Entre os cidadãos havia,
ainda, a distinção entre os ativos e os passivos o que se dava por critérios de renda e
propriedade. Segundo Adriana Paulo da Silva, os cidadãos passivos não se candidatavam
nem votavam, mas podiam fazer barulho e amedrontavam a boa sociedade (SILVA,
2000, p.46). O critério da renda, na década de setenta, estava em debate entre os
parlamentares brasileiros, uma vez que a renda estabelecida pela Constituição de 1824 se
encontrava defasada e muitos representantes do “povo mais ou menos miúdo” passaram a
atingí-la. Desse modo tornava-se necessário pensar medidas para restringir ainda mais o
acesso ao pleito. Este foi o sentido assumido pela reforma eleitoral de 1881 que
estabeleceu o censo literário, ou seja, a alfabetização como critério para o voto, excluindo
assim a maior parte das classes populares constituídas por sujeitos iletrados. Dessa forma,
o Estado centralizador se protegia do poder político local garantido por clientelas e, ao
mesmo tempo, agia em favor do problema da falta de braços para a lavoura num
momento de crise de mão-de-obra, pois possibilitava a expulsão de moradores e
agregados antes integrados à sociedade como clientes políticos dos fazendeiros,
potencializando sua integração através do trabalho na fazenda.
84
Entretanto, o discurso adotado para justificar a reforma não poderia ser o da
restrição do acesso ao mundo da política, mas pelo contrário, pela possibilidade que se
abria de participação, não qualquer participação, e sim uma participação qualificada,
esclarecida, que seria possibilitada pelo acesso da população à instrução que o governo se
propunha a prover. Fora dessa condição o esclarecimento político vinculado à
escolazição do indivíduo dentro de uma concepção preconceituosa e errônea da
incapacidade de decisão política daqueles sujeitos destituídos de instrução não poderia
haver verdadeira democracia, nem liberdade. Políticos e intelectuais do período se
ocuparam de desenvoler essa vinculação entre capacidade política e instrução. Em notas
para o parecer do senado sobre o projeto de reforma da instrução de Leôncio de Carvalho
encontramos referenciais estrangeiros sobre a relação entre direito ao voto e
alfabetização. O texto de F. Baudry, “Questions Scolaires” prescreve que se faça os
analfabetos servirem (as forças armadas) por mais tempo, bem como a privação do direito
de voto. “Os partidos políticos teriam assim um interesse sério na instrução dos seus
aderentes, e, aliás, penalidade a parte, há uma porção de boas razões para afastar do
escrutínio os eleitores iletrados”
59
.
Apesar de discursos como este, segundo a autora Maria Emilia Prado, a maioria
dos países ocidentais o utilizaram o critério de alfabetização como requisito para o
exercício do direito de voto, mas a educação elementar era geralmente considerada além
de direito do cidadão, um seu dever para com o Estado que, por intermédio da
escolarização transmitiria e legitimaria suas normas. Entretanto, visando assegurar a
liberdade, o discurso liberal a restringia quando vedava ao cidadão a possibilidade de
optar ou não por se escolarizar. Nas Notas encontramos esta posição fundamentada em
recortes de pensamentos de “liberais históricos” como Tocqueville: “Esclarecei os
homens a todo custo, porque vejo aproximar o tempo em que a liberdade, a paz pública e
a ordem social mesma não poderão dispensar luz”. Ou como Stuart Mill: “A ignorância
da leitura, da escrita, e das noções elementares de aritmética é uma incapacidade radical,
bem que transitória. A liberdade do voto é a primeira de todas as condições da validade
moral e legal do voto. Ora, existe essa liberdade quando o eleitor é obrigado mandar
59
Documentos relativos a reforma do ensino: notas a lápis sobre obrigatoriedade escolar e direito de voto,
mapas estatísticos e parecer do senado (1879-1883). Coleção Baronesa do Loreto. Sob a guarda do IHGB.
85
escrever sua lista por outrem, sem consciência de que a lista contém a (?) de sua vontade
e sem possibilidade de verificar se ele for enganado?”. Citam ainda a constituição do
Missouri que declara que todo indivíduo que não souber ler, a partir de 1876, seria
privado do direito de voto. Esta concepção liberal encara o direito de voto como
expressão suprema da liberdade política e democracia por se basear em um sistema
parlamentar, onde a política é feita por escolhidos, vedando ao povo formas diretas de
expressar sua vontade.
Na dissertação sobre a instrução pública, em relatório do ano de 1878, o ministro
liberal, Leôncio de Carvalho estabelece o nexo entre formação do cidadão, manutenção
do Estado e necessidade da instrução. Inicia afirmando o consenso em relação às
vantagens da difusão do ensino, “questão vencida em todas as consciências”. Da
instrução dependeria, por um lado, o funcionamento da vida social e política organizada
através das instituições nacionais. Por outro lado, a liberdade do povo dependeria da
consciência de seus direitos e deveres que, quando incutida nos homens, “fornece-lhes a
enérgica vitalidade de que necessita para emancipar-se da tutela governativa, assumir a
responsabilidade do seu destino e realizar o princípio do self-government”. O autor segue
fazendo a defesa da liberdade de ensino e o elogio aos exemplos da União dos Estados
Americanos que adota tal princípio. Entretanto, estabelece os limites dessa “liberdade” no
que diz respeito à obrigatoriedade da instrução. Referindo-se novamente aos Estados
Unidos, agora por intermédio de Hippeau, mostra que lá, “os pais podem escolher para
seus filhos entre a educação dada em casa e a que lhe oferece as escolas particulares ou
públicas, mas não tem o direito de escolher entre educação e ignorância”. Tais limites
estabeleciam-se não a favor do “self-government”, mas da segurança e da economia para
o Estado.
Com efeito, não basta promulgar leis coibindo o vício e o crime,
cumpre prevenir o mal na sua raiz, destruindo-a. A educação não é
um direito de toda criança, que à sociedade incumbe resguardar contra a
indiferença ou negligência de seus protetores naturais; não é uma
questão de humanidade; em presença de grande número de meninos
abandonados à ignorância, criados em contato com todos os vícios e
expostos à influência dos mais perniciosos exemplos, quando não
desperte interesse, diz um dos relatores da comissão escolar do
Connecticut, esta pergunta: o que faremos deles? Com certeza excitará
algum esta outra: o que eles farão de nós? A educação é, pois, ainda
86
para o Estado, na frase do mesmo escritor, uma questão de defesa
pessoal.(...)
...Toda despeza feita com a instrução do povo importa na
realidade uma economia, porque está provado por escrupulosos
trabalhos estatísticos que, a educação diminuindo consideravelmente o
número dos indigentes, dos enfermos e dos criminosos, aquilo que o
Estado despende com escolas poupa em maior escala com asilos,
hospitais, e cadeias. Por outro lado a instrução, moralizando o povo,
inspirando-lhe o bito e o amor do trabalho, que é tanto mais fecundo
quanto mais inteligente e instruído é aquele que o executa, desenvolve
todos os ramos da indústria, aumenta a produção e com esta a riqueza
pública e as rendas do Estado
60
.
Também para o conservador Paulino Soares era necessário aculturar o povo na
cultura política representativa.
É fora de dúvida que na instrução pública tem a política máximo
interesse, mormente nos países constitucionais. Sem o aperfeiçoamento
da instrução popular, sem o progresso intelectual da nação, mantém-se
a forma, mas é muito duvidoso haver o governo livre.Ao alargamento
da compreensão pública, bem como as condições morais do povo,
prende-se a grande e importantíssima questão da educação política. Não
é somente a idéia humanitária que coloca a frente do ensino público em
Inglaterra homens da posição social de Lord Derby, J. Russel,
Broughan, Montagn e outros vultos dos mais salientes do Reino Unido.
Estou convencido de que entra muito em seu ânimo o intuito de
prepará-las e dispô-las para se poderem interessar pelas cousas públicas
e habilitá-las a intervirem diretamente ou por meio da representação nos
negócios de sua localidade e de todo o país
61
.
A cidadania facultada ao “povo mais ou menos miúdo” era restrita, dentro dos
estreitos limites de uma ordem de desigualdades múltiplas, explorações e privações.
Entretanto, como mostra Keila Grimberg, mesmo por esta cidadania no império houve
luta. Em seu livro sobre Antonio Pereira Rebouças, a autora mostra como este e outros
sujeitos estiveram presentes nas lutas pela definição de quem era ou não cidadão. A luta
por direitos que Rebouças se ligava era uma luta dentro do parlamento por uma maior
participação dos “excluídos”, como libertos e mulatos na ordem estabelecida. Ele não
estava interessado em transformações e sim na defesa dos direitos individuais e de
cidadania. Rebouças era um liberal que levava este liberalismo ao da letra, porém a
60
Relatório do Ministro dos Negócios do Império, Leôncio de Carvalho, 1878. Disponível em
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/hartness/minopen.html
61
Trecho do relatório do ministro Paulino de Souza, do ano de 1869, retirado do documento “Instrução
Pública. Notas de Tavares Bastos, Vol. 3. Sob guarda da Biblioteca Nacional.
87
principal característica do liberalismo é exatamente a de tornar tudo possível na idéia, se
apropriando mesmo das posições mais progressistas, mas não efetivá-las na prática,
perpetuando assim as condições históricas estabelecidas.
Keila Grimberg aponta, porém, o progressismo deste liberalismo em um Brasil
escravista, onde eram negados os direitos a africanos e seus descendentes. Assim, mesmo
sem a perspectiva de transformação daquela sociedade, esta luta sob a bandeira liberal já
atemorizava as autoridades que viam a possibilidade de negros e mulatos se revoltarem,
uma vez que eram conhecidos os exemplos da revolução escrava no Haiti e da própria
Revolução Francesa. Esta luta era facilitada nas grandes cidades onde havia mais chances
de reversão de condições socias, seja para escravos conseguirem a liberdade, seja para
mulatos e libertos em busca de ascenção. Ainda que houvesse muitas resistências a esta
mobilidade social, havia sujeitos dispostos a alargar as margens de manobra. Dentro
destas estratégias a educação passava a ser um poderoso instrumento. A autora lembra
que a trajetória dos irmãos Rebouças, que alcançaram sucesso em termos de ascenção
social, passou pela matrícula na escola primária, pelo segmento da formação profissional
e o ingresso no mercado de trabalho como assistentes de escreventes. “É possível que
naquele momento, a instrução fosse um capital tão valioso quanto o berço, que o
Estado que então se formava carecia, fundamentalmente, de pessoal” (GRIMBERG,
2002, p. 71).
Rebouças acreditava, então, na busca de soluções individuais através do mérito
para os problemas enfrentados por ele e por outros sujeitos em condição semelhante.
Negava-se a “politizar a cor”; mesmo assim era comum atribuirem-lhe uma
periculosidade que ele mesmo desmentia ao se colocar como “fiador dos brasileiros”, um
mulato que na posição de advogado e homem de influência procurava o compromisso
com o regime vigente. Não que não fizesse suas críticas, mas estas não implicavam em
rupturas, mas em reformas pontuais, sendo ele, inclusive, partidário da escravidão com a
possibilidade de compra da liberdade pelo escravo. Após comprada a liberdade seriam
inaceitáveis quaisquer distinções entre o liberto e qualquer cidadão. “Ao cidadão não
deveria importar a cor”. O problema é que a cor importava e era politizada na prática.
Ao negar isto, Rebouças negava a realidade caindo nas contradições próprias ao
idealismo liberal. Levando o liberalismo “ao da letra” ele acabou por se isolar, tanto
88
entre seus pares no interior do parlamento que não abriam mão das hierarquias de cor,
como daqueles que lutavam contra as desigualdades raciais através do movimento social.
Em relação a estes, Keila Grimberg adota uma interpretação da qual devo discordar:
A vitória conservadora consolidada nos anos de 1850,
significaria a derrota não apenas de projetos liberais de cunho locais,
mas também da concepção liberal da superação da sociedade escravista
representada pelo discurso de Rebouças que, ainda que lentamente,
pensava poder livrar-se da pecha da escravidão com a extinsão do
tráfico, a auto-compra do escravo e a igualdade dos direitos civis de
cidadão de todas as cores. No fundo, o fracasso dos movimentos sociais
como a balaiada e a sabinada, ocorridos na década de 1830, tanto
serviram para fortalecer o projeto de centralização política encabeçada
pela direção saquarema como ajudaram a desmantelar uma liderança
liberal da qual participavam muitos descendentes de africanos que
reivindicavam a igualdade de direitos para os cidadãos de todas as
cores. Antonio Pereira Rebouças ia até mais longe que os seus pares:
pera ele, cidadão não tinha cor (GRIMBERG, 2002, p. 187).
A crítica da autora ao efeito de regresso dos movimentos sociais de caráter
popular que não apelavam para ação parlamentar pode ser contestada a medida que
reconheçamos a luta social em termos de embate direto como impulsionadora de qualquer
posição reformista dentro do parlamento. Talvez sem esta prática, sem as ameaças de
revoltas e as próprias revoltas de escravos e revoltas sociais em geral, tão bem lembradas
pela autora em relação ao medo da elite branca do exemplo haitiano, as posições de
Rebouças não tivessem, desde o início, nenhum eco no parlamento. Por outro lado,
podemos afirmar que lideranças parlamentares reformistas que costumam se aproximar
dos interesses de classes populares, estas sim imprimem lentidão às lutas sociais por
servirem de amortecimento nas relações entre os interesses do povo e os das elites. Este
foi, sobretudo, o uso dado à instrução primária, que sob um aspecto progressista, serviu
ao controle da população atendida. Está a principal distinção entre a educação do povo
no século XIX e a educação popular nas décadas de 60 e 70 do século XX. Em que pese
as diferentes apropriações possíveis de uma e de outra, suas ações estão direcionadas por
diferentes projetos políticos o primeiro de cunho reformista procura ocultar
contradições, como também Rebouças procurava apagar a cor, o segundo de caráter
transformador das condições sociais, procura explicitá-las no sentido de fornecer às
classes populares instrumentos para um confronto.
89
Mesmo com a disposição de formar para integrar as massas ao mercado de
trabalho e à cidadania, a maior parte da população não estava integrada. Para usar o
termo de Ilmar Mattos, o “mundo da desordem” andava muito habitado, sem falar da
linha tênue que liga os trabalhadores e cidadãos de segunda classe em geral a este
“perigoso mundo”. Para garantir a reprodução das relações entre os mundos (da casa, do
governo, do trabalho e da desordem) diferentes medidas de controle social foram
tomadas, e entre elas estava a educação do povo, inclusive a educação de jovens e adultos
por meio, principalmente, das escolas noturnas. Estas medidas tinham por base a
construção de uma imagem positiva do trabalho que apagasse seu caráter de desonra
predominante na sociedade escravista. Para tanto foram usadas associações entre ócio,
pobreza e doença, e por outro lado, entre trabalho, progresso, sucesso individual e saúde.
Podemos acrescentar a essas associações a oposição entre analfabetismo correlato à
ignorância e instrução correlata à sabedoria em todas as esferas da atividade humana,
inclusive e principalmente no que refere às decisões políticas. Porém, não é a qualquer
forma de trabalho e de instrução que tais medidas de controle se remetem. Ao analisar a
visão dos viajantes estrangeiros que visitaram o Brasil no século XIX, Julio Barreiro
capta a concepção deles do emprego do tempo de trabalho pelas classes populares. Este
seria assistemático, porque não empregado no trabalho constante, regular e initerrupto.
Fazendo coro com os viajantes, durante o congresso agrícola de 1878, os fazendeiros
reclamavam que os arredores dos engenhos andavam sempre abarrotados de vadios e
viciosos que não se dispunham ao trabalho de roçar, plantar limpar e colher, não se
prestando o homem livre ao serviço continuado e aturado.
As representações dos viajantes sobre as classes populares têm por efeito
acobertar os reais motivos da pobreza: o monopólio do latifúndio e dos meios de
produção em geral. Júlio Barreiro procura mostrar em seu texto o processo de
expropriação que acompanhou a implantação da “modernidade capitalista no Brasil”
iniciada no século XIX. Ao tomar como exemplo o processo de urbanização do Recife
aponta:
As terras próximas à cidade subiram de preço por conta da
construção das estradas em direção ao subúrbio. O processo de
especulação fundiária desencadeou um progressivo desmatamento
envolvendo grandes extensões de terra das imediações do Recife. Os
90
homens situados nos arredores da cidade foram sendo expropriados e
muitos tiveram de submeter-se ao trabalho da construção civil e das
demais atividades ligadas a esse surto de progresso. (...) São atingidos
principalmente os pequenos proprietários que comerciam o excedente
de produção, legumes e frutas nos centros urbanos (Saint-Hilaire)
(BARREIRO, 2002, p. 122).
Além do processo de expropriação, o autor aponta as formas de exploração do
trabalho citando o exemplo da Corte, onde imigrantes, negros e mulatos na condição de
aprendizes e também escravos compartilhavam uma realidade de más condições de
trabalho e baixos salários. Além disso, havia outras tensões como, por exemplo, a
existência de cadeia como parte das instalações do local de trabalho. O caráter coercitivo
da fábrica, por vezes se estendia aos habitantes de suas imediações.
Spix e Martius revelam esse aspecto dominador e impositivo da
fábrica de Ipanema, mostrando que sua administração ‘ordenou que
todo morador dessa região deve fornecer à fábrica uma quantidade de
carvão correspondente ao tamanho do terreno por ele ocupado’
(BARREIRO, 2002, p. 150).
O mesmo caráter coercitivo do trabalho era usado nos empreendimentos do
estado. Assim era na construção de obras públicas, como é o caso narrado da instalação
de via férrea no Nordeste.
A truculência do governador Luiz do Rego Barreto, em inícios
do século XIX, obrigando homens livres, negros forros e escravos a
trabalharem sem remuneração, abrindo caminhos e construindo pontes,
desalojando habitantes das periferias das cidades, cortando
indiscriminadamente terrenos, cercas e muros (...) numa tirania que
envolveu a expansão dos núcleos urbanos no Brasil desde esse período.
Tais características de tirania ganharam dimensões de tragédia,
sobretudo na construção de estradas de ferro no fim do século XIX.
Nessa mesma época, quando os fazendeiros do Nordeste reunidos no
congresso em 1878, reivindicaram a expansão das vias ferroviárias para
as ‘zonas de ócio’, distantes da costa marítima, iniciava-se a construção
em pleno sertão cearense das estradas de ferro Baturité e Sobral. Os
trabalhadores da construção dessas estradas de ferro tiveram que
submeter-se à epidemia de varíola, a miséria das frentes de trabalho e a
passagem desoladora e arruinada promovida pela grande seca do
período (BARREIRO, 2002, p.210).
Outra forma de expropriação mais sutil também foi levada a cabo no momento
aqui estudado: a expropriação da cultura e da memória das classes populares. Nas
91
conclusões de seu trabalho, Barreiro afirma a eficácia da intervenção dos viajantes pelo
esvaziamento da nossa memória social, uma vez que veremos persistir em muitos
aspectos até os dias de hoje a subordinação de nossa autoimagem às definições
construídas por estrangerios sobre o Brasil. Através da mesma forma de ação a
intervenção no cotidiano das classes populares podemos afirmar que o projeto político
pedagógico da escola primária, especialmente aquele voltado para educação de jovens e
adultos trabalhadores, como é o exemplo das escolas noturnas, contribuiu com esse
processo de expropriação desde o momento que importa seus padrões educativos dos
centros da modernidade da época impondo-os aos sujeitos por ela atendidos. Trabalhando
sobre os cursos noturnos da Biblioteca Pública Pelotense, a tese central de Eliane Peres
também passa pela consideração destes como forma de controle social associadas a outras
estratégias. Para ela, foram três as formas acionadas para controlar e disciplinar a classe
trabalhadora: a repressão policial, a segregação e confinamento em asilos e hospitais e a
educação para o trabalho.
Da mesma forma que a ação no campo das idéias e valores cercava de sutilizas o
processo de expropriação da cultura, também torna sutil as políticas de controle. Em
folheto de publicação de uma seção de homenagem a Eugênio de Almeida, sócio falecido
da Sociedade Propagadora da Instrução aos Operários da Lagôa é possível perceber
quanto estratégias de controle social são apresentadas como dádivas de membros
“beneméritos” das elites aos “que não lograram os bafejos da sorte”. O sócio
homenageado havia sido um comerciante, tesoureiro do London & Brasilian Bank e
diretor do Banco de São Paulo e do Rio de Janeiro, patriota e abolicionista “nos tempos
omniosos da escravidão entre nós”. Tais seções de homenagem eram ocasiões propícias
para se afirmar as representações destes sujeitos sobre seu lugar na sociedade, que
pretendiam amplo, ao que se justificam todas as homenagens expressas nas palavras:
operário do bem, altruísta, grandeza moral etc. Ao mesmo tempo em que representavam a
si mesmos, representavam também as classes populares, destinatárias de seus esforços. É
interessante notar no discurso que se segue que não há muito de altruísta procurar instalar
escolas noturnas próximas de fábricas em um bairro rico no qual supõe-se, não dever
existir desordem provocada por operários embriagando-se nas tavernas após o
expediente.
92
Na verdade ela revela de modo irrefragável a oportunidade da
ação de esforços combinados e o critério adotado em prol da causa
periclitante da instrução do operariado num bairro rico, onde, contudo,
se acumulavam fábricas e oficinas de trabalho que precisavam ter na
visinhança inúmeras escolas que lutassem vantajosamente contra a
atração da taverna e o flagelo da embriaguez. Que instalassem no
espírito de seus alunos as noções exatas dos seus deveres sociais e
individuais para que eles pudessem ter a intuição verdadeira do grande
lema: liberdade, igualdade e fraternidade. (...) Instruir o povo é, não
ignorais, reduzir o número de desclassificados, é fazer gravitar os
benefícios harmônicos da caridade privada em torno de indivíduos
votados aos latibulos do vício e da penúria; é, finalmente confundir nas
mesmas atividades filantrópicas os esforços enérgicos daqueles que se
empenham pelo aumento material e intelectual da humanidade.
62
A existência de um projeto não determina a realidade, construída sempre de forma
complexa, nas relações entre o projetado e o praticado, levadas a cabo por sujeitos
diferentes, com interesses e perspectivas próprias. Nesse sentido, podemos imaginar
diferentes formas de apropriação deste que, até agora, temos caracterizado como um
projeto político pedagógico que, apesar de modernizador é conservador, pois participa do
processo de modernização capitalista, concorrendo para a manutenção das relações de
poder entre elites e classes populares. Ressaltar as possibilidades de apropriações não
por aqueles que promovem as aulas noturnas, mas também pelos que são por ela
atendidos é tão mais importante quando é comum às falas relacionadas à educação do
povo no século XIX, e em parte, ainda hoje, a concepção deste mesmo povo como objeto
a ser moldado pelos conhecimentos definidos por elites intelectuais esclarecidas.
Na contramão dessa coisificação das classes populares, a renovação da
historiografia nas últimas duas décadas produziu trabalhos sobre o próprio século XIX
onde elas tendem a ser vistas como sujeitos ativos. Podemos citar os trabalhos de história
social da escravidão que marcam estratégias cotidianas de conquista da liberdade para
além das sublevações e fugas para os quilombos, como ações judiciais de liberdade,
compra de alforrias etc. ainda trabalhos como a citada tese de Keila Grimberg,
abordando as estratégias de ascensão social da população parda. No âmbito da história da
educação, uma evidência dessa nova preocupação consta na dissertação de Adriana Paulo
62
Sociedade Propagadora da Instrução aos Operários da Freguesia da Lagôa. Seção de homenagem a
Eugênio de Almeida. 12 de agosto de 1917, Rio de Janeiro, Typ. do Jornal do Commercio. Sob guarda da
Biblioteca Nacional.
93
da Silva sobre Pretextato dos Passos, um professor que ensinava à meninos negros e
pardos na Corte. Ao longo do texto, a autora procura demonstrar ainda, outros exemplos
dos usos da instrução por indivíduos das classes populares em seu próprio favor como foi
o caso da parda que requer ao poder judiciário a instrução para seus filhos, para que estes
não viessem a ser feitores ou trabalhadores de enxada. Seu pedido é negado pela
consideração do juiz de que pardos devem mesmo trabalhar naqueles ofícios. Mesmo
mediante as interdições, ler e escrever era uma marca de diferenciação para entrada no
mundo dos livres, já que em geral, os escravos eram analfabetos. Ler e escrever pode,
então, ser compreendido como uma estratégia para escravos que tentavam abrir caminhos
de liberdade em meio à escravidão, e para libertos que precisavam afastar-se do mundo
dos escravos para manterem sua liberdade, sempre precária. “Nesse sentido, os pais dos
meninos pretos de Pretextato não queriam torná-los iguais aos brancos algo que eles
mesmos reconheceram ser impossível ao irem procurar ajuda de alguém que lhes parecia
ser um igual, mas sim diferentes dos outros meninos e futuros homens escravos
(SILVA, 2000, p. 141).
Nas fontes pesquisadas para esta dissertação, não foi possível encontrar
documentos que trouxessem explicitamente ações de resitência das classes populares em
relação às propostas de escolarização. Entretanto, pude perceber indícios de críticas
sociais aos valores orientadores do projeto político pedagógico elitista. Além de alguns
jornais dedicados aos interesses de trabalhadores comentados neste capítulo, e que,
diga-se de passagem, não realizavam críticas profundas, pude encontrar outras
manifestações como um único número de um jornal satírico denominado O Vagabundo,
no qual seu redator realizava uma interessante relativização do conceito de
“vagabundagem”, afirmando não ser ela prerrogativa dos pobres, mas principalmente a
nobreza era a mais vagabunda! “E quem o é vagabundo na vida? Tanta gente boa, de
pança para o ar em um belo palacete em Petrópolis, não conta as tábuas do teto,
modorrando sem que fazer?”. O editorial deixa perceber que tal jornal não era bem
aceito, o que teria desencadeado censura sobre ele. “Compreenda-se, não aparecemos
94
hoje, houve um parênteses em nossa vida, muito desagradável: empastelamento,
complicações, o diabo...”
63
.
Um outro jornal, O trovador traz também uma crítica em forma de sica no
lundu O progresso. A música fala das contradições trazidas pela modernidade,
principalmente aquelas entre ricos e pobres. O que os discursos governamentais e da
maior parte de intelectuais, filantropos e da imprensa procuravam ocultar, é ressaltado
pelo poeta: “A justiça não se faz ao rico ou ao barão. Só p’ra o pobre a justiça, para o rico
a posição”. Ou ainda “Só tem emprego os afilhados, os protegidos dos magistrados”. E
demonstrando clara percepção dos fatos políticos que nos remetem até os dias de hoje
vemos os versos: “Eis o que é patriotismo neste Rio de Janeiro. Mas quando chega a
eleição, p’ro pobre correm primeiro. Vão às carreiras aos tais bichinhos, c’o nome
impresso num cartãozinho. Na porta batem. Quem está ahi? Um seu criado, Sôr Moricy.
Pergunta o pobre, o que deseja? Responde o cujo que um voto almeja. Depois de finda
essa eleição, o que prometem, eles não dão”
64
.
Outro indício de contradição do projeto elitista encontramos nos próprios
Regimentos Internos das aulas noturnas do Lyceo de Artes e Officios, que mantinham
preocupações com a civilidade, boa conduta, urbanidade através de prescrições como
punições aos que arrancasse mapas das paredes ou rasgassem folhas dos livros da
biblioteca, o que revela no mínimo uma não adaptação dos frequentadores ao espaço
frequentado. Uma prescrição constante e que me chamou bastante atenção nos mesmos
regulamentos foi a proibição dos ajuntamentos à porta do edifício e nas proximidades do
Lyceo, o que me levou a pensar que tais escolas, em vez de conter distúrbios poderiam
acabar tornando-se fonte de distúrbios, “ajuntando” sujeitos como adultos trabalhadores
pobres, gente com experiências comuns, problemas comuns... O que justifica rigorosos
instrumentos disciplinares facultados à ação pedagógica: nos “templos da civilidade”,
63
O Vagabundo. Órgão da Liga dos Homens Sem Trabalho. Redatores: Eu, Tu e Elle. Rio de Janeiro,
Corcovado, abril de 1895, nº 69.
O Vagabundo: órgão da liga dos homens sem trabalho, é um jornal de crítica satírica. No acervo da
Biblioteca Nacional foi possível encontrar um numero. De acordo com o próprio jornal, sua
periodicidade era completamente irregular. Possui o formato de uma revista com um pouco mais de um
palmo, também se organiza por textos corridos, sem delimitação de seções, e sem ilustrações. Em suas
páginas encontramos piadas, versos, efemérides satíricas. Suas matérias são assinadas pelos próprios
editores que utilizam pseudônimos como “Elle”, “Tu Xifres” e “Eu”.
64
Lundu “O Progresso”.
95
contrários ao uso da força e adeptos das formas racionais de condução da vida, a força
policial poderia ser utilizada para conter distúrbios dentro das aulas. É o que facultava o
Regimento dos cursos noturnos da Corte, presente nos Relatórios dos Ministros do
Império. Todas essas medidas de controle da qual a escola era parte e que tinham parte
dentro das escolas para o povo, eram necessárias em função de precedentes de ações
autônomas de sujeitos contra a ordem estabelecida.
III: As Escolas Noturnas, seus atores e atuações: indícios das práticas.
É tentador transpormos nossa visão da experiência das escolas noturnas do século
XIX, para a atualidade da Educação de Jovens e Adultos. Certamente vários pontos
em comum: o público atendido, alguns objetivos de seus promotores, a precariedade na
sua execução como política, mas diferenças importantes. Além da extensão da rede de
atendimento, da atenção ao caráter singular dessa modalidade de ensino, destacamos,
principalmente a perspectiva da continuidade dos estudos para o aluno de EJA, o que não
fazia parte da proposta das escolas noturnas para trabalhadores no XIX. Ainda que
96
precisemos de “muitas aspas” ao adjetivarmos como democrática a sociedade brasileira,
tal perspectiva de continuidade na EJA é característica de avanço na democratização do
ensino a partir do momento que rompe, ao menos, com o discurso de que ao povo caberia
apenas a instrução primária. Assim, embora tenha havido experiências educacionais
voltadas para as classes populares, nesse momento, é importante fazer o uso de cada
termo ambientado em sua época.
No início da década de 1960, os movimentos de Educação Popular como o
Movimento de Educação de Base (MEB), Movimento de Cultura Popular (MCP), De
no chão, Centros Populares de Cultura (CPC’s)... encaravam a alfabetização como o
início de amplo desenvolvimento da cultura popular, que iria ao encontro da instauração
de um poder popular. O golpe militar de 1964 abateu com repressão esses movimentos,
mas mesmo na década de 1970, durante a ditadura, buscou-se observar a educação para
aqueles que não a receberam na fase da vida convencionada como própria. O governo
cria, então, o ensino supletivo no interior da legislação e do sistema educacional.
Movimento prioritariamente de certificação; através do supletivo o aluno podia exceder,
entretanto, o grau primário de instrução.
Em palestra apresentada na Faculdade de Educação da Universidade Federal
Fluminense em setembro de 2006, sobre Educação Popular, Supletivo e Educação de
Jovens e Adultos Trabalhadores, Osmar Fávero apresentou alguns resultados da pesquisa
Juventude, escolarização e poder local, realizada por sua equipe junto à projetos de
prefeituras e ONG’s. A pesquisa aponta rupturas e avanços da EJA em relação ao ensino
supletivo. Os pontos de ruptura e avanço seriam: a afirmação do direito à educação no
mínimo no nível de segundo grau, ainda que mais forte no vel do discurso; o
aproveitamento das experiências dos alunos; a duração não fixa nem reduzida, ainda que
esse ponto seja restringido pela necessidade da certificação; a tendência à superação das
grades disciplinares (currículo estabelecido) partindo das experiências de vida, ainda que
a certificação ainda esteja baseada nas disciplinas tradicionais; a valorização de outros
espaços educativos além da escola (tendência); as novas formas de avaliação (processual,
grupo, auto-avaliação); o cuidado com a formação de educadores; a implantação
progressiva dessas inovações nas redes, não como sistema paralelo, mas como diretriz; a
referência quase obrigatória da pedagogia de Paulo Freire, em seu diálogo palavras e
97
situações geradoras, esta, porém, mais como discurso que como prática. Apesar de alguns
avanços, ainda muitas interdições em sociedades onde a educação é uma das poucas
formas de ascenção social. No Brasil, ano de 2006, cerca de 92% da população não atinge
o grau superior de instrução
65
, mesmo que este represente cada vez menos “segurança”
profissional, quando vemos avolumarem-se as exigências do mercado e a procura dos
profissionais pelas pós-graduações, o novo “funil” a ser ultrapassado em busca de
condições de trabalho e vida mais dignos.
É interessante notar que o problema da hieraquização dos saberes não ocorre
apenas em países capitalistas periféricos e de pequena tradição democrática. Para o
contexto britânico, E. P. Thmpson aponta que
A aprovação social do sucesso educacional é assinalada de uma
centena de modos: o sucesso traz recompensas financeiras, um estilo de
vida profissional, prestígio social. Ela se apóia numa apologia completa
da modernização, necessidade tecnológica, igualdade de oportunidades.
Não é preciso trabalhar muito tempo dentro de uma Universidade para
se descobrir que até mesmo os membros mais humanos do corpo
docente e discente acham difícil não equiparar o progresso educacional
a uma avaliação de mérito humano. E muitos dos que estão fora da
Universidade (...) têm gravada sobre si mesmos, de maneiras opostas,
uma sensação não de diferença, mas de fracasso humano
(THOMPSON, 2002).
Refletindo sobre a definição social dos méritos e dos sujeitos meritórios, o autor
cita uma conferência apresentada em Oxford, em 1907, por J. M. Mactavish,
representante dos trabalhadores de indústria naval:
Exijo para minha classe tudo de melhor que Oxford tem para
dar. Exijo isso como direito erradamente negado errado não apenas
para nós, mas para Oxford. (...) Os trabalhadores não apenas são
usurpados do direito de acesso ao que não pertence a nenhuma classe
ou casta, mas a raça perde o serviço de seus melhores homens. Enfatizo
esse ponto porque desejo que seja lembrado que os trabalhadores
poderiam fazer mais por Oxford do que Oxford pelos trabalhadores.
(THOMPSON, 2002)
65
Pesquisa realizada pelo IBGE por amostragem de domicílios em 2005 revela uma taxa de analfabetismo
de pouco mais de 11,5% entre os homens e pouco mais de 11% entre as mulheres. Revela ainda que por
anos de estudo a população brasileira divide-se em: 10% de 0 a 1 ano de estudo; 15% de 1 a 3 anos; em
média, 30% de 4 a 7 anos; 15% de 8 a 10 anos; entre 25 e 30 % mais de 11 anos. Logo, 55% da população
possui o ensino fundamental incompleto; 15 % completam o ensino fundamental; e entre os 25 a 30% estão
os que cursam o ensino médio e podem ingressar no ensino superior.
98
O capítulo anterior procurou caracterizar um possível projeto político pedagógico
orientador das escolas noturnas. Este projeto, longe de incorporar reivindicações como a
da liderança sindical sobre Oxford, e preterindo o caráter “democratizador” ou, para usar
termo mais adequado às espectativas da época, o caráter “regenerador” ao seu caráter de
controle social e manutenção da ordem, estabelece, ainda assim, metas cujas práticas
efetivas não apresentam grande correspondência ao menos até onde apontam os indícios
aqui investigados. A grandiosidade do discurso pelo qual a vida social, a sobrevivência
das instituições, a liberdade dos povos, a grandeza da nação, dependiam da difusão da
instrução pelo “povo ignorante” caíram no vazio no que diz respeito ao trabalhador
jovem, adulto, ou mesmo as crianças impedidas de frequentar as escolas regulares por sua
rotina de trabalho.
É por meio da observação desses indícios que procurarei responder à principal
pergunta colocada por esse trabalho: por que a educação para jovens e adultos
trabalhadores, apesar de secular, continua a ser periférica? Caráter periférico que se
observa nas experiências de ontem e hoje, por exemplo, no fato da maior parte das ações
educativas nessa modalidade serem realizadas pela filantropia, a respeito do século XIX e
ONG’s, movimentos sociais e outras organizações da sociedade civil na atualidade, logo
pela falta de uma responsabilização direta do Estado. Sobre a citada precariedade somos
informados por Ciço:
“Educação... quando o senhor chega e diz “educação”, vem do
seu mundo, o mesmo, um outro. (...) Um estudo que nasce e que vai
muito longe dum saberzinho de alfabeto, uma conta aqui e outra ali.
Do seu mundo vem um estudo que muda gente em doutor. É fato?
Penso que é, mas eu penso de longe, porque nunca vi isso por aqui.
(...)
Mão que foi feita para o cabo da enxada acha caneta muito
pesada e quem não teve prazo de um estudozinho regular quando era
menino, de velho é que não aprende mais, aprende? Pra quê? Porque eu
vou dizer uma coisa pro senhor: pra quem é como esse povo de roça o
estudo de escola é de pouca valia, porque o estudo é pouco e não serve
pra fazer da gente um melhor. Serve só pra gente seguir sendo como era
com um pouquinho de leitura” (BEZERRA & BRANDÃO, 1987).
Essa fala pertence a um lavrador do Sul de Minas Gerais, e foi registrada pelo
antropólogo Carlos Rodrigues Brandão, na cada de 1980. A entrevista feita com o
lavrador Ciço tornou-se prefácio do livro “A Questão Política da Educação Popular”,
99
organizado pelo mesmo Carlos Rodrigues Brandão. Livro este, parte de uma bibliografia
relativamente extensa que procurava compreender as questões relativas à educação do
povo, entendido como parcela da sociedade possuidora de poucos recursos econômicos e
políticos, marcada pela necessidade incondicional do trabalho em suas modalidades mais
pesadas e mal remuneradas.
Qual não é a surpresa do leigo que passa a se debruçar sobre a história da
educação no século XIX: estão lá, quase um século antes de Ciço, Brandão e Freire, os
projetos de educação para este mesmo povo, em que pese as peculiaridades históricas.
Debate antigo, antigas respostas. Foi o que encontramos na busca da materialidade e
sentido da experiência educacional das escolas noturnas de instrução primária para
adultos existentes no Município da Corte, no Brasil, entre 1860 e 1889. Este capítulo
participa dessa busca, através da investigação sobre a ação do Estado promotor por
excelência das políticas educacionais nas sociedades ocidentais modernas e suas relações
com a iniciativa particular.
Eis que neste momento encontramos o mesmo problema levantado por Ciço. Uma
política educacional destinada ao trabalhador livre pobre e seus filhos (já que
oficialmente os escravos estavam excluídos da educação escolar desde o regulamento de
1854 instituído pelo ministro Luiz Pedreira do Couto Ferraz, até pelo menos a reforma
decretada por Leôncio de Carvalho, em 1879) de caráter assistemático, em que pese a
existência de legislação relativa à educação de adultos.
Foi possível observar através do levantamento dos cursos noturnos estabelecidos,
suas datas de fundação, registro de frequência de estudantes e considerações sobre estes
estabelecimentos contidas em relatórios oficiais e na imprensa, que o Estado age aí,
respondendo uma demanda desencadeada por outros atores sociais. Afirmativa esta que
se baseia na presença marcante de organizações da sociedade civil, em geral, associações
de caráter beneficente e filantrópico, algumas das representantes da tão exaltada
“iniciativa individual”.
Tal precedência das associações em relação ao Estado não diria respeito à
idealização em si das aulas noturnas, mas à efetivação do projeto de forma a torná-las
uma prática mais ou menos estabelecida. Esta afirmação conta com o fato de que a
existência de tais cursos pode ser observada desde fins da década de 1850, promovidos
100
num primeiro momento pelo Lyceo de Artes e Officios, promovido por uma associação
privada, a Sociedade Propagadora das Bellas Artes, em seguida pelo curso da Sociedade
Auxiliadora da Indústria Nacional, e outros.
Assim, a ação dos “beneméritos”, dirigentes das associações filantrópicas, era
mais evidente que a ação estatal, pelo menos até o decreto número 7.031, de 6 de
setembro de 1878, de Leôncio de Carvalho, Ministro dos Negócios do Império, que em
seu artigo primeiro estabelecia “em cada uma das escolas públicas de instrução primária
do primeiro grau do município da corte, para o sexo masculino, é criado um curso
noturno de ensino elementar para adultos, compreendendo as mesmas matérias que são
lecionadas naquelas escolas”
66
.
Por que o Estado não tomava para si a responsabilidade pela educação de adultos
nas escolas noturnas, tal como se fazia com a escola diurna para meninos e meninas? Se é
fato o que temos observado durante a pesquisa, de que os cursos noturnos das associações
particulares tiveram maior vulto que aqueles promovidos pelo ministério do Império, não
é possível ver entre estes dois agentes uma concorrência. Ao contrário, o Estado
procurava incentivar a iniciativa particular e, na maioria das vezes lhes prestava
subsídios. Foram subsidiados pelo governo imperial, importantes cursos “privados” como
o da Associação Propagadora da Instrução às Classes Operárias da Lagoa
67
, os do Lycêo
de Artes e Officios e da Associação Auxiliadora da Indústria Nacional, que funcionava
no prédio da Inspetoria Geral da Instrução.
Teria o Estado recursos para subvencionar a iniciativa particular, porém não para
estabelecer, de forma sistemática, escolas públicas para adultos. Diante de tal postura
política arriscamos levantar a hipótese de que a escola noturna não era o lugar de um
direito dos trabalhadores pobres e analfabetos, mas o lugar de uma dádiva que deveria ser
apreciada e devidamente retribuida por estes. Um tipo de caridade conveniente e rentável,
como não deixa de ser comum nos atos de caridade. Ao discutir o curso noturno da
Sociedade Propagadora da Instrução às Classes Operárias da Lagôa, Martinez
66
Anexo ao Relatório do ano de 1877 apresentado pelo ministro e secretário dos negócios do Império, Dr.
Carlos Leôncio de Carvalho, à Assembléia Legislativa em dezembro de 1878. Disponível em
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/hatness/imperio.html.
67
A freguesia da Lagoa estava circundada pela Glória, Engenho Velho e Gávea. Possuía, segundo o censo
de 1890, do Distrito Federal, citado por Noronha Santos, 30.000 habitantes e sua principal atividade era o
comércio.
101
(MARTINEZ, 1997) afirma estarem as ações beneficentes também interessadas em
ganhos particulares como a contrapartida em títulos de nobreza e distinções.
As aulas notunas, como a educação voltada para os trabalhadores, principalmente
os considerados adultos, continuavam carentes no que concerne às medidas necessárias
para sua formalização. Essa afirmação fica mais clara ao lembrarmos que a
obrigatoriedade do ensino, medida que de fato comprometia o Estado com o
fornecimento desse serviço, incidia apenas sobre crianças de sete a quatorze anos de
idade. Por outro lado, a política de recrutamento dos homens livres pobres da Corte para
a guarda nacional e para o exército, sem a possibilidade de isenção, como a que era dada
aos jovens que se preparavam para o ensino superior, dificultava ainda mais o acesso
desses homens às escolas noturnas e à escolaridade em geral.
3.1 A precedência da inciativa privada
Um dos principais viéses de abordagem da educação na história do Brasil do
segundo reinado é a que o toma como parte do processo de construção do estado imperial
levado a frente pelos intelectuais e políticos “saquaremas”, representantes da elite
cafeeira fluminense (MATTOS, 1994). Aderimos aqui à essa forma de interpretação,
colocando entretanto a questão de que entre os interesses imediatos das elites
representadas pelo Estado imperial haveria outras necessidades anteriores à instrução,
principalmente à instrução popular. Foi no limite entre o que era idealizado e o que era
possível ao Estado, em seus diálogos e negociações com outros agentes sociais que se
situou a política de educação para trabalhadores, e no caso dessa pesquisa, as escolas
noturnas na corte.
A legislação imperial no Regulamento de 1854, em seu artigo 71 previa:
Quando uma escola do segundo grau tiver dois professores,
serão estes obrigados alternadamente por mês ou por ano, a ensinar
matérias de instrução primária duas vezes por semana, nas horas que
lhes ficarem livres, ainda que sejam em domingos e dias santos, aos
adultos que para esse fim se lhes apresentarem. O governo poderá
incumbir esta tarefa mediante uma gratificação que será marcada por
cada discípulo...
68
.
68
Trecho do Regulamento transcrito e anexado ao texto A Emergência da Escola (GONDRA, mimeo).
102
Apesar de ser fruto de preocupação governamental desde o início da década de cinqüenta,
a educação de adultos só se estabelecerá com os cursos das associações privadas, em
meados da década de sessenta. Seus instituidores, em geral, membros de elites
econômicas e intelectuais com aspirações a postos de poder e prestígio na vida política da
Corte, atuavam, assim, num espaço deixado pelo Estado
69
.
Ilmar R. Mattos, ao apontar a importância da política de instrução pública como
instrumento de constituição da classe senhorial, de modo a levar a cabo sua expansão
necessária, tal como ilustram as frases de Paulino José de Souza por ele citadas
70
, não
deixa, por outro lado, de mostrar que apesar dos esforços saquaremas na “construção de
uma escola governamental, os resultados nem sempre eram animadores”. Se a difusão da
instrução continuava precária entre aqueles classificados por Mattos como “povo mais ou
menos miúdo”, a política oficial para esta parcela da população continuava a ser a
repressão e o recrutamento para a tropa. Portadora de outra perspectiva, imbuída dos
novos ideais difundidos pelas revoluções atlânticas, bem como das idéias de progresso
das nações e perfectiblidade dos povos, a opinião pública que se desenvolvia na Corte
pedia uma renovação no tratamento das “questões sociais”. Vale lembrar que se trata aqui
de um período movimentado por intensas discussões sobre o abolicionismo. Crescia,
assim, a tendência à defesa do ensino da boa conduta, da boa moral, para formação de
cidadãos ordeiros e trabalhadores num contexto de progressiva degradação da instituição
escravista como alternativa pura e simples repressão.
Nesse sentido os esforços pela instrução foram realizados com a participação da
“sociedade civil”, muito exaltada pelo próprio poder público, como podemos ver no
relatório do Ministro dos Negócios do Império, João Alfredo Corrêa de Oliveira, em
1871:
E não posso deixar de notar com o maior prazer que esta é a
tendência do espírito público entre nós. A iniciativa individual desperta
69
Esta interpretação pode ser encontrada também no trabalho de Mauricéia Ananias, sobre as aulas
noturnas da Sociedade Propagadora da Instrução de Campinas. ANANIAS, Mauricéia. Propostas de
educação popular em Campinas. “As aulas noturnas”. In: Educação, Sociedade e Cultura no Século XIX:
Discursos e Sociabilidades. Cadernos CEDES, nº 51, UNICAMP, Campinas, 2000.
70
Enquanto certas idéias não penetram na massa da população, enquanto não se tornam populares, muito
difícil é que se estabeleçam e adquiram o desenvolvimento de que são suscetíveis. Quando elas se
identificam, porém, com o modo geral de sentir as coisas com facilidade se conseguem e caminham quase
por si mesmas (MATTOS, 1994, p.238).
103
pelo concurso de donativos valiosos; a caridade associada promove,
protege, dirige a educação dos pobres; cidadãos beneméritos criaram e
mantém na Corte, em Pernambuco, na Bahia, no Maranhão e em outras
províncias, escolas e estabelecimentos de ensino profissional,
multiplicam-se associações de artistas com intuito de beneficência,
entre os quais figura a instrução e as assembléias legislativas
provinciais, justiça lhes seja feita, com louvável solicitude, vem
aumentando todos os anos as despezas que lhes compete decretar.
Em tais condições, aos altos Poderes do Estado incumbe
aproveitar e auxiliar tão generoso movimento, dar impulso e direção a
tão úteis e nobres esforços, e satisfazer as aspirações e exigências da
opinião pública
71
.
Junto à formação do Estado Imperial vemos a constituição do citado “espírito
público” que move “cidadão beneméritos” nos atos de caridade
72
individual ou associada.
É em tais mãos que o Estado imperial colocará a instrução para o “povo mais ou menos
miúdo”. Aos pobres a instrução não é direito, mas dádiva, devida à caridade.
Participando do debate sobre a filantropia havia os que criticavam o espaço
tomado por esta, propondo maior vigilância do estado sobre as instituições de educação
popular. É o caso da Gazeta da Instrução que expressava esta preocupação
correlacionando-a com seu posicionamento sobre a liberdade de ensino questão
candente da época.
Hoje, que a tendência niveladora tem se manifestado nos
escritos de alguns pseudo-filantropos, hoje que na tela da dúvida
foram postos todos os principios, todas as instituições tutelares que
regeram a sociedade pelo decurso de tantos séculos, cumpre que os
governos, dando impulso ao progresso moderado, mas conservando
com todo afinco tais instituições promovam a instrução popular, porém
exercendo sobre ela o seu direito supremo de vigilância. (...)
Para mim, a liberdade de ensino cifra-se nisso: quem é hábil e
honesto pode ensinar. Mas o Estado tem direito de apreciar esta
habilidade para evitar a especulação e a má ciência
73
.
71
Relatório do Ministro dos Negócios do Império, João Alfredo Corrêa de Oliveira, 1871. Disponível em
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/hatness/imperio.html. Grifos meus.
72
Para uma discussão sobre a instrução como prática da caridade na esfera da educação militar ver o
trabalho de COSTA E CUNHA, 2006.
73
Gazeta da Instrução Pública. 29 de novembro de 1851, ano 1, 5. Redator: F. Otaviano d’Almeida
Roza. Niterói, na Typografia de Amaral e Irmão, e na Corte, Livraria de Mongie. Sob a guarda da
Biblioteca Nacional.
Um dos jornais mais antigos entre aqueles voltados para instrução e cultura que pude pesquisar foi a Gazeta
da instrução blica, datada de 1851. Encontramos na Biblioteca Nacional números esparços de dois anos
deste jornal. Em princípio publicada todos os sábados, no fim do primeiro ano, passa a ser quinzenal. Todos
os números possuem uma parte oficial onde se publica o “expediente da secretaria de governo”. Publica
104
O debate sobre a liberdade de ensino estava intimamente relacionado à discussão
sobre as relações entre o Estado e a iniciativa particular que, segundo o discurso de seus
defensores, colaborariam para expansão da malha escolar. Entre os defensores estavam
intelectuais como Tavares Bastos que, fortemente inspirado no modelo norte americano,
defende ações como as prescritas em um regulamento (não especificado em suas notas)
da instrução primária do Maranhão, do presidente Lafayette que cobrava de proprietários
rurais a abertua de escolas de primeiras letras para seus filhos, familiares, e filhos de seus
escravos. Fica claro, entretanto que, para Tavares Bastos, não poderiam ser simplesmente
transferidos os encargos à iniciativa particular, ao contrário, o Estado deveria prestar-lhe
recomendações e auxílios. Citando Jules Simon, aquele intelectual afirma em suas notas
que “O Estado é chamado a fazer aquilo que a liberdade (os particulares) não pode
efetuar”. Esta citação foi motivada pela sua proposta de formação de bibliotecas
populares que no Brasil não poderiam contar, como na França, na Inglaterra, ou na
Alemanha com associações, escritores e livreiros, pois aqui não haveria nem o escritor,
nem o livreiro, nem o capital preciso. Sugere então que o governo consulte os extensos
catálogos dos Estados Unidos, da Inglaterra e da França, escolha alguns exemplares e
traduza para o português, mandando tirar milhares de cópias para criar em cada cidade do
Império bibliotecas populares com esses livros.
O conjunto de anotações e materiais acima referido compilados por Tavares
Bastos oferecem informações sobre diversas matérias relacionadas aos princiapis debates
que envolviam a instrução, mas traz algumas dificuldades de compreensão por tratar-se
de um discurso fragmentário onde se intercalam posições suas com citações de outros
autores ou recortes de artigos extraídos de jornais e etc. Sabemos que tal intelectual é um
defensor do ensino livre, o que se expressa no destaque dado a um impresso intitulado
“São Paulo declara ensino livre”, onde lemos:
Na seção do ano passado reconhecido que não é possível por ora ao
poder público desempenhar a promessa da constituição em relação à
artigos sob perspectiva política, e artigos técnicos relacionados a diferentes saberes curriculares. Seguem
alguns exemplos de títulos. O mestre escola; Metrologia; Da instrução pública no império do Brasil;
Arquivo da legislação; A renda e a despeza das escolas no Rio de Janeiro; Inspeção das escolas; O
professorado; Geografia.
105
instrução primária confeccionaste uma lei para libertar o ensino
particular das diversas as legais que vedavam o seu desenvolvimento.
Os resultados vantajosos dessa medida começaram desde logo a
manifestar-se. Aulas particulares de ensino primário instalaram-se, e
entre elas não posso deixar de indicar essas escolas noturnas que tem
por fim ministrar a instrução às classes laboriosas que dedicadas ao
trabalho já na idade em que outras, privilegiadas da fortuna empregam-
se exclusivamente na cultura da inteligência, não tem a folga precisa,
durante o dia para procurar o primeiro alimento do espírito
74
.
Apesar desta defesa da ação particular suprindo a incapacidade do poder público,
vemos em outra nota um posicionamento oposto, onde afirma ser a instrução um serviço
que o Estado pode prestar convenientemente, e a prova estaria no fato de que nos
próprios Estados Unidos da América, onde a iniciativa particular é extremamente
desenvolvida, a “Public Schools Society” de Nova York que havia fundado várias
escolas, não pode se sustentar, tendo estas passado para as mãos do governo.
E para corroborar a tese do emaranhamento entre o público e privado
continuamos tratando a ambiguidade de concepções dos homens públicos do Império
sobre tal questão. Vemos, ainda nas notas de Tavares Bastos, um relatório do ministro
saquarema, Paulino Soares de Souza, adepto das medidas centralizadoras e de um Estado
forte, fazendo a cobrança por uma maior ação da iniciativa particular em auxílio ao poder
público num país que o teria por hábito as associações para fins de utilidade blica.
Como contraste e exemplo a ser seguido, Paulino cita o caso de países como Inglaterra e
Estados Unidos:
Aos esforços individuais e coletivos de seus homens eminentes,
que dedicam a tão importante trabalho o tempo que lhes deixa o peso do
governo e aos das inúmeras sociedades propagadoras da instrução, deve
aquela grande nação [Inglaterra] quanto tem alcançado a bem da
educação popular. E talvez a eficácia dos meios empregados, que o
governo não precisa tomar iniciativa nessa matéria. Os cofres do Estado
vêm apenas em seu auxílio, com quantias que ficam muito aquem das
que despendem os particulares. Entre esse sistema que tem parelha
no que adotaram, não menos vantajosamente os Estados Unidos e o da
ação inteiramente oficial e centralizada do governo na França, está o
que vigora hoje na Prússia seguido em grande parte da Alemanha, onde
74
Instrução Pública. Manuscritos e Impressos. Volume II. Notas de Tavares Bastos, 1868. Sob a guarda da
Biblioteca Nacional.
106
a direção da administração encontra no concurso da sociedade
poderosos elementos
75
.
Mesmo considerando subdesenvolvida a iniciativa particular no Brasil, o ministro
cita pelo menos dois exemplos de associações dedicadas à promoção da instrução para o
povo: A Sociedade Amante da Instrução e o Lyceo de Artes e Officios da Socidade
Propagadora das Bellas Artes, para o qual chega a pedir maior atenção e subsídios do
Estado. Mais uma vez vemos a confusão entre quem deve auxiliar e quem ser auxiliado
no momento em que Paulino pede que os cofres públicos abram-se para iniciativa
privada, quando antes havia pedido auxílio desta para redução das despesas públicas.
Duas instituições particulares por ele lembradas desfrutam de profunda vinculação com o
Império; entretanto, na mesma época, apenas o município neutro contava com outras
associações como a Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, a Reunião dos
Expositores da Indústria Brasileira, um Lyceo Litterario Portuguez, um Instituto
Comercial do Rio de Janeiro, além de associações de socorro mútuo, sociedades
abolicionistas, irmandades, sociedades carnavalescas etc. O parecer as desconsidera:
Não temos o hábito das associações, não existe no país a
iniciativa individual para fins de utilidade pública, o tempo pode
desenvolvê-la: não nos discuidemos, porém, de promovê-la pelos meios
convenientes. Os exemplos da Sociedade Amante da Instrução, do
Lyceo de Artes e outros, acharão imitadores quando homens bem
intencionados se forem (?) de que seus esforços não são perdidos, e
virem que, a par da consideração pública, atraem a atenção do
governo
76
.
Dois anos após este parecer negativo do ministério do império sobre a ação das
associações privadas, João Alfredo Corrêa expede circular pelo mesmo ministério
exortando a participação da iniciativa particular e também dos governos municipais e
provinciais na promoção da instrução para o povo através de subscrições para fundação
de escolas primárias. Seguindo o caminho contrário ao de Paulino Soares, prefere
enaltecer os feitos da inicitiva particular de então, marcando exemplos que não poderiam
deixar de ser seguidos:
75
Trecho do relatório do ministro Paulino de Souza, do ano de 1869, retirado do documento “Instrução
Pública. Notas de Tavares Bastos, Vol. 3. Sob guarda da Biblioteca Nacional.
76
Idem.
107
Os vastos e belos edifícios que se estão levantando nessa Corte
para escolas a expensas de algumas corporações e com auxílio de
donativos individuais; o procedimento benemérito de alguns
professores distintos, admitindo gratuitamente adultos em suas escolas,
são fatos que provam exuberantemente quanto o espírito público se vai
compenetrando no nosso país, da alta importância da vulgarização e
aperfeiçoamento da instrução do povo e do valor da iniciativa particular
para dar-lhe o impulso de que carece
77
.
Ao citar os problemas da escola no Brasil, em relatórios oficiais ou em artigos na
imprensa, tanto legisladores como intelectuais se repetem: sistema deficiente, escassa
contribuição, formação e remuneração dos mestres, poucas escolas, pouca
fiscalização. Neste rol incluiu-se com frequência, a crítica ao pouco auxílio da iniciativa
particular que, nos países tomados como modelos, prestaria muito mais ajuda ao governo.
Segundo João Alfredo Corrêa de Oliveira, comparando-nos com países mais avançados
constata-se que neles é maior a presença de homens ricos que fazem donativos à escolas e
à igrejas. Mesmo diante desse pouco desenvolvimento, foi à seu cargo que esteve
prioritariamente, pelo menos até 1878, as escolas noturnas na Corte. O Estado imperial
toma para si, não tanto a promoção, mas a direção da instrução que deveria ser dada,
através da ação normatizadora e fiscalizadora das instituições de ensino (MATTOS,
1994). Por outro lado, é possível perceber uma preocupação maior com direcionamento e
controle mais rígido na formação dos quadros dirigentes através do ensino superior, nível
do qual o Estado não abriu mão de promover diretamente (NAGLE, 1976).
O incentivo à iniciativa particular notadamente através das subvenções
governamentais dava-se principalmente em relação às escolas para adultos e às escolas
das freguesias suburbanas, quais sejam: Inhaúma, Irajá, Jacarepaguá, Campo Grande,
Santa Cruz, Guaratiba, Ilha do Governador e Paquetá
78
.
77
Circular expedida pelo Ministro do Império, João Alfredo Corrêa de Oliveira, em 25 de novembro de
1871. Consta entre documentação compilada em: Instrução Pública. Notas de Tavares Bastos, volume III.
Sob guarda da Biblioteca Nacional.
78
As citadas freguesias constam na caracterização do Rio antigo feita por Noronha Santos. Segundo ele,
Inhaúma possuia, no ano de 1900, 18.000 habitantes, sendo a mais importante freguesia rural, com
comércio regular, e animada indústria de artefatos de barro. Das freguesias rurais, era a que ficava mais
próxima da cidade. Irajá possuía, no mesmo período, 14.400 habitantes, e era a principal área de lavoura do
Distrito Federal, principal celeiro de mercadorias da cidade (frutas, batatas, hortaliças...). Santa Cruz
estava, em 1890, entre as mais pobres freguesias, com 11.000 habitantes e insignificantes lavoura e
comércio. Outra freguesia que antes fora próspera, mas naquele momento estavam decadentes era
Guaratiba, com 12.700 habitantes, pequena lavoura e pequena produção de madeira. A Ilha do Governador
108
Quadro demonstrativo das subvenções em escolas da Corte entre os anos de
1870 e 1876
79
.
Ano Freguesia Escolas Masculinas Escolas Femininas
Campinho/ Irajá
4 (31 alunos) 0 1870
Lagôa
1 (20alunos) 2 (32 alunas)
Irajá + Lagôa
4 + 2 (73 alunos) 0 1871
Inhaúma + Lagôa
1 + 2 (98 alunas)
1872
?
4 3
Lagôa
2 1 1873
80
Irajá
1 1
Lagôa + Irajá +
Guaratiba
3 + 1 +2 (314
alunos)
0 1874
?
0 2 (93 alunas)
1875
?
? ?
1877
?
7 (255 alunos) 9 (586 alunas)
1879
81
?
? ?
1881
Lagôa, Glória, Irajá,
Inhaúma, Campo
Grande, Guartiba, São
Cristóvão e Ilha do
Governador
9 7 + 3 mistas
1882
?
7 11
1883
?
15 7
1885
?
7 17 mistas
1886
?
7 14 mistas
Observamos a lógica estabelecida pelo ministério do Império de criar escolas
públicas nos locais mais centrais e populosos da corte sob a alegação de se ter maior
população escolar. Entretanto, sabemos que a chamada “população escolar” era uma
criação daquele próprio tempo em que se faziam necessárias medidas como a
obrigatoriedade escolar para tornar a escola parte da cultura dos cidadãos em geral.
Segundo o relatório do ministro João Alfredo Corrêa
possuía 4.200 habitantes, pouco comércio, mas regular indústria (tijolo, cal, madeiras). A pesca constituía
para grande parte da população pobre, o principal recurso de sobreviência. Como a Ilha do Governador, a
Ilha de Paquetá também não possuía grande população, contando 2.800 habitantes. Tinha comércio regular
e exportava cal, lenha, coco, hortaliças e, principalmente, peixe. Ai também a pesca era o principal recurso
de uma população majoritariamente constituída por pobres lavradores e embarcadiços (SANTOS, 1965).
79
Informações retiradas dos relatórios dos ministros do império entre os anos de 1870 e 1889.
80
Em 1875 havia 11 escolas subvencionadas, 9 pelo ministério do império e 2 pela câmara municipal. Não
houve especificações de localidade, sexo e número de alunos.
81
Em 1879 foram subvencionadas 16 escolas com 594 alunos. Em 1884 houve 27 escolas subvencionadas
pelo ministério do império e 12 subvencionadas pela câmara municipal. No ano de 1887 foram ao todo 20
escolas subvencionadas. No ano de 1888 repetem-se os dados do ano anterior.
109
Ainda necessidade de algumas escolas públicas para as
paróquias urbanas em que é mais crescida a população escolar. Nas
paróquias suburbanas em que a população se acha dividida em diversos
núcleos, separados uns dos outros por largas distâncias, e em que,
portanto cada escola aproveita o povoado em que é situada,
considero preferível o sistema de subvencionar escolas particulares, nos
termos do artigo 57 do regulamento de 7 de fevereiro de 1854
82
.
É possível encontrar pedidos enviados ao ministério do Império nos quais
habitantes de freguesias do interior solicitam abertura de cursos noturnos por haverem ali
cidadãos interessados em aprender as primeiras letras. Diante dessas considerações
podemos encarar a política de subvenções como uma forma de encaminhar o atendimento
de setores não prioritários para o Estado: pobres, trabalhadores e suburbanos, para os
quais pesavam mais as restrições de investimentos na criação da alternativa pública. Para
estes setores bastaria uma educação provisória, ou improvisada, como demonstra o
documento proveniente de seção da câmara dos deputados, de 30 de julho de 1874,
presidida por João Alfredo Correa, da qual fizeram parte Paulino de Souza e Cunha
Leitão, na qualse aprovou uma autorização para que o governo realizasse uma
reorganização do ensino primário e secundário do município da corte e promovesse e
auxiliasse o desenvolvimento da instrução pública nas províncias. Este documento
estabelece a possibilidade de exercício do ensino particular sem necessidade de título de
capacidade profissional, cobrando-se apenas o certificado de moralidade. Em seguida
estabelece que, para os lugares distantes das escolas públicas, ou seja, do centro da
cidade, o governo deve oferecer uma gratificação razoável” à professores particulares
para o ensino de meninos pobres da vizinhança. Incentivando ainda mais a informalidade
e assistematicidade com relação à instrução de tais “meninos pobres” estabelece:
Quando em lugares semelhantes houver meninos que
frequentem a escola e tenham o preciso adiantamento, podem esses
ser autorisados pelo professor respectivo para ensinar os vizinhos,
sendo para tal fim dispensados da frequência duas ou três vezes por
semana, neste caso trarão de três em três meses à presença do professor
para examiná-los os que com eles aprendem, ou se for mais conveniente
o professoor irá examiná-los fora da escola, e os alunos desta que
82
Relatório do Ministro dos Negócios do Império, João Alfredo Corrêa de Oliveira, 1871. Disponível em
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/hatness/imperio.html.
110
receberam tal encargo, se bem o desempenharem receberão prêmios em
livro ou em dinheiro
83
.
Quando pensamos sobre as subvenções do Estado a particulares, movimento que
não nos é estranho nos dias atuais, surgem algumas questões como: qual a forma de
acesso à vaga paga pelo Estado? Qual a porcentagem dos alunos das escolas particulares
era ocupada pelos pobres subsidiados? Talvez escolas que não tivessem condições de
funcionar cobrando pelo serviço, ou seja, através da lei da oferta e procura, encontrassem
no Estado um mantenedor. A verba para as subvenções deveria ser estabelecida dentro do
orçamento governamental: “bem explicita e ostensivamente essa aplicação na competente
verba da instrução primária. Eu estabeleceria demais o direito de preferência para essas
subvenções às escolas de adultos, a fim de as tornar mais numerosas
84
. Esta mesma
verba deixava de ser empregada em projetos de expanção da malha pública, atendendo
pontualmente à demanda do chamado setoro prioritário (pobres, trabalhadores, e
suburbanos), e transferindo renda para os particulares.
3.2 Os beneméritos
De quem partia tais iniciativas particulares? Era comum às sociedades fazerem
seções de homenagens à seus sócios “beneméritos”. Através dos dados referentes à essas
seções podemos perceber o perfil dos sujeitos que realizavam a instrução filantrópica
naquele momento. No jornal da Sociedade Amante da Instrução foi publicado em agosto
de 1839 uma matéria sobre a homenagem feita ao sócio General Manoel Joaquim Pereira,
com a participação dos meninos e meninas das aulas da Sociedade. São publicados ainda
os dados biográficos do falecido, nascido em Portugal, que fez carreira militar no Brasil e
foi nomeado governador da província do Ceará e comandante superior da guarda
nacional do Município da Corte. Mesmo titular de tantos cargos e proeminência, é
representado como um “homem simples” e de “espírito elevado” como na passagem que
se segue: “Elevado ao mais alto posto de sua classe, coberto de insignias e de honras, ele
tinha em pouco esse prestígio: favorecido da fortuna, pouco apego lhe dava: o pobre, o
rico, o grande e o pequeno, à todos afagava com a gentileza própria de sua alma”.
83
Anais da Câmara dos Deputados, 1874, volume 3. Seção de 30/07. Sob guarda do IHGB.
84
Relatório do Ministro dos Negócios do Império, João Alfredo Corrêa de Oliveira, 1874. Disponível em
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/hatness/imperio.html.
111
Esta mesma sociedade tinha como seu “augusto protetor” o próprio imperador. Na
assembléia de inauguração do retrato do imperador foram feitos discursos, e um dos
componentes da cerimônia era os exames públicos de alunos e alunas como se aqueles
meninos e meninas fossem uma demonstração do produto gerado pela Sociedade.
Segundo o jornal, aquela associação “quando estende a mão beneficente, leva em vista
instruir e proteger a mocidade desvalida. Os alunos dirigidos por seu diretor, vêm
publicamente à face de seus protetores dar provas de seu adiantamento: é a única
recompensa que eles podem dar, é a recompensa única que deles se exige”. Ou seja, em
contrapartida à “dádiva” da instrução tais seres “mais elevados” exigiam dos
“deserdados da sorte a docilidade e obediência a seus valores. A instrução era menos
reconhecida como direito que como dádiva, ao mesmo tempo em que o pobre era
eufemisticamente reconhecido como deserdado, e não como expropriado, numa
naturalização dos fatos e condições sociais.
Outros exemplos de filantropos podem ser aqui citados, como é o caso de Eugênio
de Almeida, um dos sócios eminentes da Sociedade Propagadora da Instrução aos
Operários da Freguesia da Lagôa, ao qual também se prestou homenagens póstumas,
através das quais pude saber que este era comerciante, corretor na praça do comércio e
teria ocupado cargos de tesoureiro no London & Brasilian Bank, e de diretor dos Bancos
de São Paulo e do Rio de Janeiro. Inácio Álvares Pinto de Almeida, um dos fundadores
da Sociedade Auxiliadora da Insdústria Nacional, nascido na Bahia, foi do conselho do
imperador, Guarda Roupa da Casa Imperial, negociante da Praça do Rio de Janeiro,
deputado do tribunal do comércio, secretário da Junta da Indústria Nacional e do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. E ainda, como outro grande exemplo, a figura do
benemérito Francisco José Bethencourt da Silva, fundador da Sociedade Propagadora de
Bellas Artes e do Lyceo de Artes e Officios, arquiteto da Casa Imperial, foi ele o
responsável pelo projeto do prédio sede da Associação Comercial, mais tarde do Banco
do Brasil, e hoje Centro Cultural Banco do Brasil, na Rua Primeiro de Março, número 66.
Um caso representativo de como as ações reconhecidas como beneficentes,
altruístas, prerrogativas de espíritos elevados e idealistas, em geral não existiam fora de
interesses particulares desses sujeitos, é o caso do Sr. José Miguel Lizaur, descrito por
um estrangeiro, José Van Halle. A fábrica de charutos do Sr. Lizaur mostra bem como a
112
ação filantrópica podia ser um grande negócio: aprendizagem de ofício para meninos
pobres, a instrução fornecida por ele tinha como objetivo a formar a mão-de-obra
adequada ao trabalho na fábrica. Outros casos em que se lucrava com a caridade eram em
ganhos de subsídios do Estado e ainda os ganhos políticos como presença na cena
pública, títulos de nobreza, e a constituição de uma “clientela”, importante
principalmente após a reforma eleitoral. Vale lembrar que o próprio Estado em sua
política “assistencial” de instrução a meninos pobres não age pensando “no bem dos
meninos” quando entendemos “o bem como ascenção à postos mais altos da
sociedade, como melhorias substânciais nas condições de vida etc. mas sim de seus
interesses, uma vez que tal instrução era limitada por lei, e o resultado esperado seria a
obtenção de mão-de-obra mais ou menos qualificada ao menor custo possível. Segundo
Martinez (MARTINEZ, 1997), pelo regulamento de 1854 pretendia-se colocar nas
escolas os meninos pobres. “Aos meninos pobres o governo fornecerá vestuário e
material escolar, obrigando os pais a garantirem instrução elementar a seus filhos. Depois
de frequentar as aulas primárias, os meninos seriam enviados aos arsenais da marinha de
guerra, ou às oficinas particulares mediante contrato com Estado para aprendizagem de
ofício que lhes garantisse o sustento e o trabalho. Pelo regulamento de 1854, os meninos
pobres poderiam dar continuidade aos estudos no caso de demonstrarem acentuada
distinção e “capacidade” para tal”.
Em suas Viagens no Brasil, Van Halle visita a Imperial Fábrica de Cigarros e
Charutos da Rua d’Ajuda, fundada pelo Sr. José Miguel Lizaur. Em relação ao Sr. Lizaur,
afirma: amigo da humanidade, corajoso e honesto industrial maçon que em sua fábrica de
charutos ensinava a noite, mais de 100 jovens de 8 a 16 anos a ler, escrever, e um ofício.
Os jovens faziam, inclusive, as refeições na fábrica. Já sobre suas visitas a escolas
regulares da Corte, e da observação do cotidiano, o viajante afirma que, ao contrário dos
jovens da fábrica do Sr. Lizaur, os que frequentavam os colégios da capital, eram mal
educados (mimados, indisciplinados), motivo pelo qual concluia que o professor, no
Brasil, sofria com a educação dos jovens, dada em casa pelos pais, e assim, era tido
como a última das profissões. Contrastando com aqueles que tinham “condições” de
agirem como rebeldes, refere-se aos jovens da fábrica do Sr. Lizaur como “meus
carneiros”, e de fato, era esta a postura ideal esperada dos pobres e trabalhadores pelos
113
setores médios e altos da sociedade. O mínimo que poderiam fazer estes marcados pela
sua condição de nascença, desde então “deserdados da sorte”, seria obedecerem tal ideal
em agradecimento ao Sr. Lizaur por ensinar-lhes um bom ofício e assim preservá-los da
mendicidade e da vagabundagem”. Ao passo que exalta o Sr. Lizaur, Van Halle critica
pais, tutores e mesmo o clero por não se importarem em dar moral a essas crianças que se
iniciam cedo nos vícios, propiciados pelo clima tropical que induziria a vida de boemia
e vadiagem”. E, ao passo que exalta a iniciativa individual, exorta o governo a seguir o
exemplo do Sr. Lizaur, criando oficinas de trabalho para prevenir a desgraça da
desordem, exortação que traz no bojo a crítica ao uso da política para fins pessoais em
vez do cuidado com a mocidade abandonada (cita, aparentemente, caso de desvio de
verba por um ministro). As aulas na fábrica do Sr. Lizaur iam de 19:30 às 21:00, regidas
pelo prof. Antonio José da Silva Pinto Junior. Visitando a escola de S. José, na mesma
rua d’Ajuda, o contrário da fábrica de charutos. Segundo ele, haveria três professores
que ensinam ao mesmo tempo, dois sentados conversando assuntos particulares, enquanto
os alunos estariam também em desordem. Nessa ocasião, cobra ao diretor geral das
escolas que passara a Ministro do Império, que fosse mais rigoroso com as escolas
públicas. Em páginas e mais páginas de relato o viajante não trata do aspecto da
exploração do trabalho infantil que aquele estabelecimento representava, uma vez que ao
que parece, o tempo e espaço das crianças era totalmente circunscrito à fábrica, não
havendo liberdade.
3.3 As instituições
Não foi insignificante o número de estabelecimentos de ensino abertos por estes
beneméritos. Trataremos aqui de alguns dos mais citados na imprensa e documentos
governamentais. Temos algumas informações sobre o Lyceo Artístico Industrial através
de uma revista comemorativa de sua inauguração realizada em 1881. Esta instituição
funcionava em prédios das escolas públicas da freguesia de Santa Rita concedidos pelo
governo imperial ao seu iniciador, professor Antônio José Marques. Seu programa de
estudos era dividido entre “matérias preparatórias” e além destas, em mais três cursos
diferentes: o artístico, o comercial e o industrial. É possível observar o destaque dado à
114
matéria de desenho, conhecimento reivindicado como requisito de nível primário por
muitos dos que defendiam uma formação básica, identificada com educação popular, de
caráter mais técnico e favorável ao desenvolvimento dos ofícios.
Entre as matérias preparatórias estavam a instrução primária e o curso de desenho
linear. No curso artístico se ensinava música, desenho de figura, caligrafia e desenho de
paisagem. O curso comercial durava dois anos e o industrial durava três anos. No
primeiro ano do comercial ensinava-se português, geografia, francês, caligrafia e história
do comércio. No segundo ano: inglês, cartografia do Brasil, alemão, estatística,
aritmética, escrituração mercantil, álgebra e direito mercantil. No curso industrial
ensinava-se no primeiro ano: português, geometria, aritimética, desenho geométrico. No
segundo ano: francês, construção de máquinas ou construção naval, inglês, desenho de
máquinas, de construção naval ou de arquitetura, álgebra, geometria no espaço e
trigonometria retilínea e geometria descritiva. No terceiro ano: física e química aplicada,
mecânica aplicada, tecnologia industrial, desenho de máquinas, de construção naval ou de
arquitetura, aula prática de modeladores.
Diante deste extenso programa, como também era o programa do Lyceo de Artes
e Officios, várias interrogações nos surgem. A primeira diz respeito ao tipo de
trabalhador que estas instituições pretendiam formar. Ao adquirir os conhecimentos
propostos, estar-se-ia formando um trabalhador com uma qualificação bem acima da
média. Passamos a nos questionar, então, sobre o perfil do estudante destes Liceus: será
que estavam entre as classes mais pobres daquela sociedade, e novamente, ocorre
observar a diferenciação apontada por Busch Varella em relação às crianças
frequentadoras das escolas diurnas, especialmente os palacetes como a escola da Glória:
havia gradações entre os que chamamos genericamente de trabalhadores. Outra questão
que se apresenta é sobre a relação entre os dois níveis de ensino do Lyceo, será que um
estudante que passasse pelo curso preparatório de instrução primária oferecido pela
instituição estaria pronto para frequentar os cursos artístico, industrial e comercial, ou não
havia intenção de continuidade entre eles? Ou será que este curso preparatório primário
115
era uma complementação para aqueles que tivessem alguma bagagem escolar,
funcionando, como era termo da época, como “curso de repetição”?
85
Foto do prédio da Sociedade Propagadora das Bellas Artes, promotora do Lyceo de Artes e
Officios, durante Exposição Nacional. 1890, retirada do acervo de Fotografias Avulsas, do Arquivo
Nacional
86
.
É importante apontar que era comum, na época aqui estudada, a afirmação da
necessidade do ensino primário para adultos como pré-requisito para o aprendizado de
ofícios. Diante desses dados e das diferenças notadas entre os cursos dos Liceus e as
escolas noturnas exclusivas para instrução primária, pode-se supor que o público destas
instituições era diferenciado, e a realidade dos frequentadores dos Liceus não era a da
maior parte dos trabalhadores da Corte, composta por escravos, moradores das freguesias
do interior, ou mesmo trabalhadores que não conseguiriam levar adiante seus cursos por
85
Estas aulas de repetição serviam de espaço para aperfeiçoamento do conhecimento das primeiras letras
para aqueles que já as possuiam. Num contexto em que não havia perspectiva de progressão da
escolaridade para as classes populares, às quais estava reservado apenas o ensino primário, esta era uma das
poucas possibilidade de alguma forma de continuidade dos estudos.
86
O letreiro diz “Comemorar as épocas gloriosas e despertar a vontade dos grandes empreendimentos”.
116
falta de recursos materiais. A julgar pelo número de inscritos, tanto no Lyceo Artistico
mais de quatrocentos, como no Lyceo de Artes e Officios mil duzentos e trinta e três
alunos em 1870, havia uma grande demanda, o que nos induz a outra pergunta: quais
seriam os critérios de seleção/exclusão dessa instituições? Quem teria acesso a elas?
O Lyceo de Artes e Officios era uma instituição mantida pela Sociedade
Propagadora das Bellas Artes do Rio de Janeiro. De acordo com seu estatuto, esta
sociedade foi instituída na capital em 23 de novembro de 1856 e inaugurada em 20 de
janeiro de 1857. Seus fins eram declarados como propagar, desenvolver e aperfeiçoar as
artes em todo o Brasil, o que seria alcançado “despertando o gosto pelas bellas artes” em
“todas as classes do povo”. Ao usar a expressão “todas as classes do povo” o estatuto
deixa perceber a complexidade daquela formação social em que havia categorias
diferenciadas, suponho, pelo menos, por nível de renda e escolaridade, no interior da
coletividade denominada “povo”, da qual suponho ainda, a ela não pertenciam bacharéis,
doutores e demais integrantes da elite política, econômica e intelectual. Ao mesmo
tempo, a associação não restringe o público que deveria ter acesso às suas aulas e demais
atividades. Estas atividades, das quais, com excessão das aulas do Lyceo, não foi possível
confirmar a existência prática, eram compostas por um Lyceo de Artes e Officios “em
que se proporcione a todos os indivíduos nacionais ou estrangeiros, o estudo das bellas-
artes, não como especialidade, mas também como aplicação necessária aos ofícios
industriais, explicando-se os princípios científicos em que elas se baseiam; a publicação
regular de uma revista artística; a criação de uma biblioteca especificamente artística;
sessões públicas em que se leiam os escritos sobre as artes industriais e que se exponham
os trabalhos dos alunos do Lyceo e outros artefatos artísticos e industriais; exposições
públicas com a concessão de prêmios às melhores obras; concursos públicos em que se
confiram prêmios aos melhores trabalhos; viagem dos mais distintos alunos do Lyceo à
Europa a fim de se aperfeiçoarem; correspondência com todas as sociedades nacionais e
estrangeiras de mesmo fim etc. Vemos pelas atividades a que se propunha que as
ambições da Sociedade eram grandiosas, buscando, talvez, constituir-se como um centro
de excelência neste tipo de formação técnica extremamente restrita no momento em que
foi criada. De fato, a julgar pelo que relatam os ministros do Império, esta era uma
instituição meritória, “que tanto há feito pela instrução popular”, ela tinha atingido seus
117
objetivos. Entretanto, apesar de todo reconhecimento e incentivo, o Lyceo também sofreu
com a falta, durante muito tempo, de um prédio próprio, e a falta das oficinas para
realização das aulas práticas. O debate que se coloca aqui é o mesmo que se colocava a
respeito do Lyceo Artístico Industrial, instituição de não tão grandes ambições, recursos e
presença pública, mas com fins muito próximos qual a parcela de “todas as classes do
povo” teria acesso, por exemplo, às “viagens de aperfeiçoamento” para a Europa? Seria
tudo uma questão de mérito os mais distintos alunos? Sabemos, entretanto, ao menos
até onde nos informam os estatutos da Sociedade, regimento e regulamento do Lyceo que
não se tratava do trabalhador iletrado, como era o caso da maior parte desta classe, já que,
o fato de ser noturno não implicava que o Lyceo estivesse voltado necessariamente para a
instrução primária.
Se não temos muitos elementos sobre os critérios de seleção dos alunos, sabemos
que para ser sócio, não havia restrições além da exigência de moralidade comum às
instituições da época, mas um tanto vaga... prezar as letras, ciências e belas artes. Mas
não se era simplesmente “sócio” da Propagadora das Bellas-Artes. Havia diferentes tipos
de sócios, muito provavelmente determinados por suas doações aos cofres da sociedade e
por sua posição social. Assim havia os membros efetivos, correspondentes, bem-feitores,
grandes bem-feitores, beneméritos, grandes beneméritos e titulares. Notemos que o
estatuto estva assinado por ninguém menos que Euzébio de Queiróz Coutinho Mattoso
87
(presidente), Francisco Joaquim Bethencourt da Silva (primeiro secretário), Luiz Paulo
dos Santos Macedo Ayque (segundo secretário) e Júlio Roberto Dunlop (thesoureiro).
Diante desta constelação”, e dos requisitos em doações, mensalidades, e outros, é pouco
provável que um cidadão comum se aventurasse em pertencer a tal sociedade. Toda esta
estrutura se sustentaria, segundo o estatuto, de seus rendimentos e aplicações quais sejam
87
Euzébio de Queiróz Coutinho Mattoso, político conservador. Nascido em 1812 em São Paulo de Luanda,
em Angola, veio para o Brasil com quatro anos de idade. Formado em direito pela Faculdade de Olinda em
1832, rapidamente passou a exercer importantes cargos na administração imperial, como o de chefe de
polícia da Corte, durante 11 anos. Foi também desembargador do Tribunal da Relação do Rio de Janeiro,
deputado provincial e geral por esta mesma província, além de inspetor geral de instrução do Município da
Corte. Sua figura ficou marcada pela lei de extinsão do tráfico atlântico de escravos para o Brasil, movido,
entre outras razões, pela “ameaça” que enchergava na numerosa população africana para o país. Nesse
sentido, enquanto chefe de polícia, tomou medidas repressivas notáveis em relação à essa população, como
a reconstrução do pelourinho. Euzébio teria sido, segundo Sérgio Buarque de Holanda, o “papa” da
“Trindade Saquarema”, junto com Paulino José Soares de Souza e Rodrigues Torres (VAINFAS, 2002).
118
das quantias que os cios ofertavam no ato de sua admissão; das mensalidades de todos
os sócios efetivos e suas remissões; de doações feitas por cios ou outras pessoas; dos
lucros produzidos pelo emprego de capitais em um banco ou caixa econômica. Composta,
assim, por recursos próprios, a receita da sociedade não contava, por estatuto, com o
apoio do Estado imperial que foi, entretanto, frequente para o Lyceo de Artes e Officios.
Outras fontes de informações importantes sobre o Lyceo de Artes e Officios são
seus Regulamento e Regimento, publicados junto ao estatuto da Sociedade Propagadora
das Bellas Artes em 1861. Nesses documentos, já podemos encontrar um pouco mais
definido o seu público. Sua “missão” seria “além de disseminar pelo povo, como
educação, o conhecimento do belo, propagar e desenvolver pelas classes operárias, a
instrução indispensável ao exercício racional da parte artística e técnica das artes e
ofícios”. Para o “povo”, entidade abstrata, o conhecimento do belo. Para as classes
operárias, sujeitos específicos, instrução para exercício de ofícios, possibilitando que
estas cumprissem sua missão: “o trabalho manual” mais ou menos qualificado. No caso
dos “beneméritos” instituidores do Lyceo, temos uma missão intelectual auto-atribuída de
instruir. No entanto a missão que compete às classes operárias, longe de ser auto-
instituída, é atribuída por estes mesmos beneméritos – executar.
O ensino era gratuito para os sócios, seus filhos e para todos os que “não tivessem
contra si alguma circunstância que torne inconveniente sua admissão, ou o constitua
impossível ao estabelecimento”. Lamentavelmente, não consegui ter acesso às
especificações do que era entendido como “inconveniente à admissão” ou “impossível ao
estabelecimento”, mas é possível que a condição de liberdade ou escravidão, ou ainda o
pertencimento social, localidade habitacional, ou o próprio grau de escolaridade letrado
ou iletrado, funcionassem como critérios impeditivos. Sabemos que, no que diz respeito
ao programa, a presença no Lyceo ficava aparentemente vedada aos iletrados. Vejamos o
programa. Havia nele a divisão de dois grupos de matérias: seção de ciências aplicadas e
seção de artes, distribuídas em 23 cadeiras. Do curso de ciências aplicadas constavam:
aritmética; álgebra até equações do segundo grau; geometria e estereometria;
estereotomia e perspectiva; trigonometria; física e topografia; química; mineralogia e
geologia; mecânica prática; metalurgia; botânica e materiais lenhosos. Do curso de artes
constavam desenho elementar; desenho de figura (corpo humano); desenho geométrico,
119
inclusive as três ordens clássicas; desenho topográfico; desenho de ornatos, de flores, de
animais e composição; desenho de máquinas; desenho de arquitetura civil e regras de
construção; escultura de ornatos e arte cerâmica; gravura à talho doce, água forte,
xilografia, litografia, etc.; pintura sob diversas técnicas; música. Além das matérias
principais, havia aulas chamadas suplementares, complementares e extranumerárias.
Estas compreendiam respectivamente o ensino de língua portuguesa e estrangeira, de
humanidades como história, legislação, filosofia e, por último, ensino comercial.
Os professores lecionavam gratuitamente. Em anexo ao relatório do ministro do
Império de 1872, encontramos descrito, junto à listagem dos cursos noturnos existentes
na Corte, o corpo docente do Lyceo de Artes e Officios composto pelo próprio
Bethencourt da Silva e ainda rios bacharéis. Além do corpo docente, o Lyceo contava
com uma equipe mais ou menos grande, desde o diretor à inspetores e porteiros, o que
indica a existência de constante fiscalização dos trabalhos e condutas dos alunos,
professores e funcionários. Eram remetidos, ainda, sob responsabilidade da diretoria,
constantes relatórios relativos ao funcionamento do Lyceo à Inspetoria de Instrução do
Ministério do Império. A disciplina era rígida, havendo penas de admoestações,
suspenções e expulsões. Aos professores cabia “repreender os alunos que não
cumprissem com seus deveres, ou mal se houvessem com seus colegas, podendo fazê-los
sair de sala, ou suspendê-los de um a três dias do exercício das aulas se não atenderem
suas advertências e admoestações”.
É interessante notar que os professores também eram fiscalizados, como podemos
concluir do quarto parágrafo dos “deveres dos professores”, onde se indica “observar os
programas do sistema e marcha do ensino que se houver adotado, não os alterando nunca
sem ter previamente apresentado à seção as suas modificações para serem aprovadas em
congregação”. Ainda em termos do disciplinamento dos habitantes daquele espaço, cabia
ao porteiro “não permitir ajuntamentos no vestíbulo nem conversações de empregados ou
alunos à porta do edifício. Dessa maneira os próprios agentes de controle eram alvos do
disciplinamento. Nos deveres do inspetor consta “tudo fiscalizar”, sem poderem se
afastar de seus postos sem comunicação prévia à diretoria sendo “absolutamente vedado
conversar com quem quer que seja, salvo falar a respeito do serviço”. Com intuito, ao que
parece, de limitar a prática de castigos físicos, criticada, mas ainda comum nos
120
estabelecimentos de ensino da época, o Regimento determina que os inspetores não
deveriam “maltratar com palavras ou modos grosseiros os alunos, os quais quando
incorrerem em faltas, poderão ser admoestados com urbanidade, dando-lhes assim,
exemplo indispensável à disciplina”. Aos alunos era “expressamente proibido
conservarem-se na porta do edifício ou em suas imediações logo que o estabelecimento
tenha aberto suas portas”. Deveriam “guardar tanto nas aulas quanto em qualquer lugar
do estabelecimento, a decência, a quietação, e a urbanidade que são próprias das pessoas
educadas”. E aos que “fizerem ou promoverem assuadas à porta do edifício do Lyceo, ou
nas suas imediações, os que provocarem desordens nas ruas com os seus companheiros
ou com os transeuntes os que andarem em correria pelas ruas tanto na saída como na
entrada do Lyceo”, haveria advertimentos e punições. Todo esse conjunto de normas e
agentes encarregados por seu cumprimento denota que a formação pretendida pela
instituição não era apenas uma questão de dimensão técnica, mas também de condutas e
valores próprios a um trabalhador mais obediente, mais produtivo, pronto a atender as
exigências de um mercado de trabalho nos moldes capitalistas.
Outra instituição ocupada diretamente com tal qualificação do trabalho era
Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional. As informações sobre sua escola noturna
foram obtidas através de uma exposição à seção do conselho administrativo daquela
sociedade por Joaquim Antonio Azevedo
88
. Trata-se de um relatório que faz o balanço da
sua gestão para mudança de diretoria e, como tal, ressalta suas realizações, entre elas,
todo o planejamento e tentativa de implantação da escola noturna. Na ânsia de valorizar
tais feitos, Azevedo reivindica para si o pioneirismo na criação desse tipo de escola,
postura que gerará polêmicas, pois havia outras instituições que também disputavam esse
espaço. O próprio Lyceo de Artes e Officios possuia, segundo relatórios dos ministros
do Império, cursos noturnos há mais tempo.
O relatório demonstra que o projeto de Azevedo tinha como objetivo maior
implementar a escola noturna como preparatória dos operários para o ingresso nos cursos
industriais. O projeto de Azevedo foi apresentado em 1 de março de 1867, aprovado em
15 de abril do mesmo ano, e o regulamento aprovado em assembléia geral de 18 de
88
Exposição sobre a escola noturna gratuita de instrução primária para adultos apresentada a Sociedade
Auxiliadora da Indústria Nacional, em seção do conselho administrativo de de fevereiro de 1870, por
Joaquim Antonio Azevedo. Sob a guarda do IHGB.
121
março de 1868. A aula funcionou na escola pública de instrução primária de meninos da
freguesia do Sacramento, sob regência do prof. João Rodrigues da Fonseca Jordão
(professor da escola de meninas da mesma freguesia
89
). Segundo o ex-diretor, o local das
aulas seria propício devido sua centralidade no espaço urbano, ao fato da escola ser
espaçosa, arejada, e de arcar apenas a sociedade com a despeza do gás para as
lamparinas. O professor ganhava onorário de 600$000 anuais, e residia na mesma casa
em que funcionava a escola.
Foto da planta e desenho da fachada da escola indutrial mantida pela Sociedade Auxiliadora da
Indústria Nacional. 1891, retirada do acervo de Fotografias Avulsas do Arquivo Nacional.
A representação de tais vantagens reforça a afirmativa de que havia significativo
apoio do Estado à determinadas instituições privadas. O Estado incentivava a iniciativa
privada procurando, dessa forma, promover a “imprescindível tarefa para a segurança da
ordem” de instruir jovens e adultos pobres e trabalhadores mediante o mínimo de gastos
possível. As associações de caráter privado que marchavam nos rumos da beneficência,
também procuravam o mínimo de gastos possível com a “nobre açãode levar a “luz da
instrução” àqueles “deserdados da sorte”. Neste sentido, solicitam o apoio do Estado, não
em palavras de incentivo, ainda que prezem os título e honrarias imperiais como
89
Aqui tivemos dúvidas sobre o fato de um sujeito do sexo masculino lecionar em escola de meninas. O
documento que afirma ser o professor da aula noturna o mesmo da escola de meninas, parece apresentar ai
um erro de impressão, pois mais adiante afirma que o professor morava no mesmo prédio da escola, que era
de meninos, logo, é provável que fosse professor desses mesmos meninos.
122
reconhecimento, mas principalmente ações de incentivo material, como liberação de
espaço em prédios públicos e o próprio fornecimento de subsídios. Trata-se então, de
recolocar a questão: quem estaria, então, disposto a gastar “quanto fosse necessário” com
a “tão relevante” instrução primária de jovens e adultos trabalhadores?
O próprio Joaquim Azevedo aponta os motivos das dificuldades com que ele
mesmo se depara desde a divulgação da escola para aqueles sujeitos. O anúncio do curso,
publicado em jornais da Corte, foi dirigido aos mestres e diretores de oficinas. Aberta a
matrícula em de agosto de 1868, como ninguém aparecia para se matricular, os
diretores foram recrutar os alunos em seus locais de trabalho. Mesmo assim, diz que nada
puderam obter porque “os homens tinham vergonha de ir a escola aprender o que não
sabiam”... Na ocasião, a escola não funcionou por falta de alunos. Como causas da falta
de alunos aponta a inexistência de incentivo e proteção aos operários adultos que
quisessem estudar e a falta de condições materiais, ou seja, a pobreza que tira à criança a
possibilidade de se instruir. Azevedo também faz crítica social à desvalorização do
operário e à exploração do trabalho infantil, detectando a indiferença com a instrução
tanto da parte dos particulares como da parte do governo. Dado o quadro que tece, coloca
para si a missão de intervir, porém precisa do auxílio do poder público e para isso
estava disposto a romper a “repugnância de recorrer ao Estado”. Procurando justificar o
fato do curso não ter funcionado na sua gestão, atribui ao fato destas escolas serem uma
inovação à qual o povo ainda não havia se habituado.
Como estratégia de ampliação da frequência, propôs que o Estado a liberasse do
recrutamento da Guarda Nacional e do Exército os operários matriculados na escola. Para
isso, evoca uma legislação que libera professores, estudantes matriculados nos cursos
jurídicos, escolas de medicina, seminários episcopais e outras academias, ou escolas
públicas. Afirma, inclusive, que o Instituto Comercial recorrera a esta lei (nº 602 de 19
de setembro de 1850. Art. 14 § 3º)
90
. A liberação do recrutamento pelo exército é
concedida, porém, não a da Guarda Nacional. A Sociedade Auxiliadora da Indústria
Nacional retruca, mostrando que o favor concedido é nulo, pois o público que a sociedade
90
O documento consultado transcreve o artigo da lei: “Serão dispensados de todo serviço da Guarda
Nacional, não obstante achar-se alistados, os professores e estudantes matriculados nos cursos jurídicos,
escola de medicina, seminários episcopais, e outras academias ou escolas públicas, contanto que
efetivamente as frequentem. A mesma isenção poderá o governo conceder a bem dos colégios ou escolas
particulares que lhe pareçam dignos dela”.
123
visa alcançar é majoritariamente “alvo” da Guarda Nacional, e ao retrucar evoca a
necessidade de proteção à classe operária: “Assim, o único favor que pode e deve ser
feito à classe operária, tão digna de alguma proteção é a isenção de todo o serviço da
Guarda Nacional que é o inimigo do operário nacional”. Em que pesem as críticas e
atritos com o governo, a Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional estava entre
aquelas prestigiadas pelo Império, como podemos perceber pela participação do próprio
imperador e do conde D’eu na inauguração da sua escola noturna.
A escola projetada não saía do papel mais ou menos dois anos, aque André
Rebouças, engenheiro (presidente da seção de máquinas e aparelhos) que havia assumido
a direção geral das obras hidráulicas e interna da alfândega da Corte, começou a admitir
nas obras (públicas) quem quisesse aprender a profissão. Foi esse o público que compôs
a aula noturna da Sociedade com 53 alunos, que afirma ter sido a primeira escola de
instrução primária para operários do país. Cabe observar que a Sociedade Auxiliadora da
Indústria Nacional, como as outras instituições aqui citadas, não promovem uma escola
qualquer para o pobre trabalhador, e sim a aula noturna, que não atrapalhava a verdadeira
missão dos trabalhadores na sociedade o trabalho braçal. Se, como cita o relatório,
havia liberação do governo do serviço à Guarda Nacional e ao Exército para sujeitos de
alto status social, esta primeira não era concedida a operários, extrato onde recrutava os
braços que necessitava. A insatisfação da Sociedade Auxiliadora com a negação da
dispensa parece configurar uma disputa por mão-de-obra entre a indústria nascente e a
Guarda Nacional, o objetivo da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, parece ser,
no fim das contas, dispor de trabalhadores baratos com uma formação conveniente.
Durante a pesquisa, também foi possível localizar informações a respeito de uma
escola noturna da Reunião dos Expositores da Indústria Brasileira por meio de seu
periódico de divulgação, O trabalho. A fundação dessa associação teria se dado em
janeiro de 1867, pelo conde de La Hure. A abertura do curso realizou-se um ano mais
tarde, em 10 de março de 1868, à Rua da Quitanda, número 11. A Reunião dos
Expositores se representa em seu próprio jornal como fraca e pequena, possuidora de
parcos recursos, mas de grande boa vontade em incentivar a instrução nacional e o
desenvolvimento da indústria. Sua motivação era a necessidade de “encontrar operários
inteligentes e esclarecidos, de formar bons aprendizes e, sobretudo de regular as relações
124
existentes entre aprendizes, operários, e os patrões, a fim de conceder à todos, suficiente
garantia e proteção, de modo a poderem contar uns com os outros, como acontece na
Europa”. As preocupações relacionadas ao desenvolvimento do movimento operário e
ideologias revolucionárias, levara, na Europa, ao surgimento de certo “patronato
esclarecido”, e de tendências reformistas como o “socialismo utópico” de Owen e
Fourrier, assim denominado por Marx e Engels por considerarem o socialismo
inalcansável através da colaboração de classes contida nas idéias dos utópicos. Estas
idéias tiveram eco no Brasil, como podemos ver a busca de uma aproximação e
colaboração entre patrões e empregados a fim da obtenção de “garantias” e “proteção”
presente no trecho citado. Onde se “a todos”, leia-se “a propriedade privada”. Nesse
sentido a Reunião dos Expositores faz a cobrança aos próprios patrões para que enviem o
maior número de aprendizes e operários a essas escolas.
Nas matérias de O Trabalho podemos perceber, como nos documentos relativos
aos cursos noturnos primários da maior parte das outras associações, o caráter
preparatório dessas aulas básicas para que o operário pudesse, em seguida, cursar o
ensino industrial ou comercial. Nas próprias palavras da associação
A abertura de uma escola de instrução primária e secundária que
a Sociedade Reunião dos Expositores da Insdústria Brasileira vai, em
breve, oferecer aos operários e aprendizes, tem também por fim
prepará-los para mais tarde receberem o ensino em grau mais
aperfeiçoado, econômico e industrial que lhes dê a conhecer os direitos
que os cidadãos de um país livre têm de exercer e dos deveres que o
país lhe impõe
91
.
Constituída sob “nobres finalidades” por homens de “espírito elevado”, a Reunião
dos Expositores ressalta a todo o momento que abre a aula noturna, gota d’água, no
oceano de analfabetismo, mesmo contando com parcos recursos. Porém, ao final, faz o
formal agradecimento à Sua Majestade o Imperador e ao “ilustrado governo imperial” por
facultarem o recinto de algumas salas da escola central para funcionar o curso. Ao passo
que agradece a estes, critica de forma geral os legisladores que, tendo condições, não
promovem formas de redução do analfabetismo, como por exemplo, através da
obrigatoriedade do conhecimento da leitura e escrita estendida à jovens e adultos. Do
91
O trabalho. Periódico da Sociedade Reunião dos Expositores da Indústria Brasileira. Diretor e redator,
Alexandre A. R. Sattamini, Rio de Janeiro, 1º de setembro de 1870, ano 1, nº 2.
125
mesmo modo, responsabiliza o vício dos progenitores e o egoísmo das classes mais altas,
pela existência de “tantos entes ignorantes da cartilha”. Estas críticas que julgo
importante transcrever começa pela demonstração de certa banalização do discurso sobre
os benefícios da difusão da instrução entre todas as classes de cidadãos, de fato, repetitivo
à época, e não muito menos hoje em dia.
Sem instrução, o homem na sociedade e as nações na terra viveriam em
miserável barbárie. Muito se tem falado e escrito sobre a imperiosa
conveniência de instruir todas as classes e prestar especial animação
àquelas menos favorecidas. Inúmeros escritores encheram grossos
volumes, jornais e outras publicações com argumentos eloquentes,
patenteando as vantagens incalculáveis da educação literária dos povos.
É uma verdade tão repetida que vai se tornando fastidiosa, na época
que atravessamos, semelhante tese é axioma contestado apenas por
néscios e pelos espíritos de má fé. Aceitamos a evidência e vamos tratar
de assunto correlativo.
Sabe-se que as bonitas promessas de querer generalizar a instrução têm
sido e são exercidas pela tibieza e inércia da multidão que poderia
efetuar esse benefício. Quem fizer a estatística dos analfabetos da terra
ficará pasmo no cômputo final. Entretanto, cruel verdade, os
analfabetos de todos os países que se dizem cultos são vítimas inocentes
do desleixo e abandono daqueles que se julgam os civilizadores do
gênero humano. Os legisladores sempre tiveram recursos e requintada
sutileza para impor a execução de leis, fundamentadas ou não, justas ou
caprichosas, que lhes pareceram necessárias e urgentes para o bem
público à sombra do qual têm falado e falam os governos sob todas as
formas em todos os países. Por que os legisladores que devem ser
sábios e justos, não recorrem à leis gerais que atendam a magna
utilidade social de obrigar a todo cidadão a saber ler e escrever?
Há, felizmente, nações que para vergonha de outras, demonstram os
meios de espalhar a instrução primária em grande escala. Merecem
homenagem a Prússia e os Estados Unidos. O certo é que os analfabetos
formam a maior confraria desse mundo. A incúria e vício dos
progenitores, a indiferença dos governo e o egoísmo das classes altas
são as causas principais da existência de tantos entes ignorantes da
cartilha.
Tocamos nestas questões de ABC para chegarmos nas ponderações
seguintes: nas maiores transformações sociais, os menores esforços têm
significação valiosa. Prescinda-se do átomo na matéria e o universo não
existe. Imitem todas as sociedades que possuem recursos o
procedimento que acaba de ter a Reunião dos Expositores, quase balda
de meios e sustentando-se dificilmente em uma opulenta e rica cidade
industrial pelos sacrifícios e vontade de um pequeno grupo de cidadãos
de todas as classes e nações reunidos pelo pensamento de animar a
126
indústria e ver-se-há erguerem-se dúzias de aulas para o ensino
primário profissional.
A Reunião dos Expositores da Indústria Brasileira, cumprindo os
parágrafos 1º e 2º do artigo 3º de seus estatutos, acaba de abrir um curso
noturno de primeiras letras para obreiros que o quizerem frequentar.
Nos domingos haverá outro. São apenas preliminares de novas aulas
que sucessivamente se estabelecerão para desenvolver o ensino
industrial. Esperamos que o amor e dever dos pais, o interesse dos
chefes de oficinas e a verdade que devemos ao próximo não tornarão
estéreis os sacrifícios e louváveis intentos da Reunião dos
Expositores
92
.
Existiram outras aulas noturnas promovidas por particulares ao longo destas
quatro últimas décadas do século XIX, de vulto menor que as das associações mais
estabelecidas como o Lyceo de Artes e Officios e da Sociedade Auxiliadora da Indústria
Nacional. Contudo, se considerarmos a matéria de O Trabalho, enaltecendo a iniciativa
da Reunião dos Expositores, “prescinda o átomo da matéria e o universo não existe”...
teremos a dimensão da importância das experiências pontuais. notícias de mais
algumas aulas além dessas, sendo provável que outras tenham existido sem deixar
registro
93
, o importante é apreendermos o movimento histórico constituído por tais
92
O trabalho. Periódico da Sociedade Reunião dos Expositores da Indústria Brasileira. Diretor e redator,
Alexandre A. R. Sattamini,io de Janeiro, 1º de setembro de 1870, ano 1, nº 2.
93
Segundo Antonio Almeida de Oliveira, em sua obra “O Ensino Público”, de 1873, havia no Brasil 136
escolas noturnas, sendo 83 públicas e 53 particulares, umas e outras para o sexo masculino. As suas
matrículas eram de 5.720, sendo 2,113 nas públicas e 3.607 nas particulares. Foi possível obter algumas
informações mais ou menos detalhadas sobre o caso de algumas das primeiras escolas noturnas para adultos
em o Paulo estabelecidas pela loja maçônica “América”, na capital. Estas informações provêm de artigo
do “Correio Nacional” de novembro de 1869, compilado entre as notas de Tavares Bastos, em manuscritos
da Biblioteca Nacional, intitulados “Instrução Pública”. O artigo informa que:
“A Loja Maçônica América, na capital da província, teve a bela idéia e vencendo preconceitos levou-a a
efeito. A sua escola, hoje, é frequentada por cento e tantos dicípulos. Fica-se admirado de ver ali o
adiantamento rápido de homens que entram em uma noite perfeitos analfabetos e retiram-se em noite
seguinte conhecendo o abc.
Vitoriosa o loja maçônica “América”, muitas outras das mais ricas cidadesseguem o exemplo do que ela tão
ousadamente deu atirando para longe os temores do ridículo que assaltam os espíritos fracos que não
podem tentar nada novo. A Luiz Gama deve a província de São Paulo a realização de tão fecunda idéia.
Agora a Gazeta de Campinas noticia a criação de uma escola desse gênero na cidade”.
em outro artigo, do “Correio Paulistano”, de 1870, detalha o funcionamento dessas aulas a partir de
informações extraídas de seus livros de matrículas. Segundo eles havia matriculados na aula noturna, 252
alunos, 217 livres e 35 escravos (os escravos podiam frequentar se apresentassem autorização de seus
senhores). 36 destes tinham de 5 a 10 anos; 132 deles, de 10 a 20; 55 alunos tinham de 20 a 30 anos; 16
tinham de 30 a 40 e 13 tinham de 40 a 70 anos. Por nacionalidade 222 brasileiros, 18 portugueses, 5
africanos, 3 alemães, 1 suíço, 1 espanhol, 1 italiano. As profissões eram as mais variadas: militares,
alfaiates, cozinheiros, carroceiros, lavradores, sem ofício, etc. O tempo de duração das aulas era de 18 às 20
horas e, além do ensino gratuito, os alunos também recebiam o material de ensino.
127
ações
94
, qual seja, o da difusão do parâmetro da cultura letrada por toda a sociedade
vinculada a tentativa de assimilação do chamado povo mais ou menos miúdo livres
pobres e libertos, sem excluir a possibilidade de iniciativas educadoras, até mesmo de
escravos, num momento em que a perspectiva era a de abolição próxima da escravidão,
arduamente adiada pela direção saquarema. Assimilação em posição subalterna, dentro de
uma ordem hierárquica de cidadania restringida, congregada à expropriação da cultura
própria desses segmentos de sua forma de relacionamento com o tempo, com o
trabalho, com a linguagem etc. Era comum haver dentro do raciocínio dos que defendiam
94
Nesse sentido
o
s relatórios de presidentes de províncias, e falas de senadores e deputados nas
assembléias provinciais oferecem informações sobre a situação das escolas noturnas de instrução primária
para trabalhadores em todo o Império. Utilizei alguns desses dados para compor um quadro sumário sobre
tais escolas nas províncias. O caráter restrito desta caracterização, centrada apenas nos aspectos
quantitativos do número de escolas, alunos e frequência, se deve ao fato de ser o Município da Corte o
recorte espacial da presente pesquisa. Entretanto estas fontes nos permitem perceber a disseminação
“nacional” desta política de instrução, adotada de norte a sul. Também ressaltam algumas características
comuns como a rarefação destas escolas, quando comparadas ao mero de escolas diurnas, a inexistência,
na maioria das províncias, bem como na Corte, de escolas primárias noturnas para o sexo feminino. Em
relação à elas, surge uma surpresa ao observarmos mais de 2 cursos noturnos para mulheres na província de
Pernambuco. Semelhante a situação da Corte, encontramos a iniciativa particular atuando na abertura
dessas escolas também nas províncias. Como ponto de disjunção entre o município neutro e as outras
localidades do Império, temos que até onde foi possível observar dentro do levanamento sumário, a
existência dessas escolas inicia no primeiro com maior antecedência.
Na província de Alagoas, entre os anos de 1870 e 1872 houve em média: 9 escolas noturnas, 30 matrículas
e 21 frequentadores.
Na província do Amazonas, durante o ano de 1872 houve 2 escolas, mantidas pela mara Municipal de
Manaus com 72 matrículas e 44 frequentadores. E por iniciativa particular, houve 1 escola criada por
militares para “praças de guarnição e paisanos operários”.
Na província da Bahia, no ano de 1871, houve 11 escolas com 547 matriculados. No ano de 1872, foram 26
escolas e 689 matrículas. Em 1873, 7 escolas e 648 matrículas. De 1874 a 1880, não foram encontrados
dados para numero de escolas e a matrícula foi de 343, 275, 267, 372, 420 e 308 alunos respectivamente.
Em 1881 e 1882 houve 5 escolas com respectivamente 263 e 311 alunos matriculados.
Na província de Pernambuco não foram encontrados dados para número de escolas na maioria dos anos.
Em 1870 havia 4 escolas e 198 alunos matriculados. Em 1872 eram 290 alunos em escolas públicas e 48
em particulares. Em 1874 eram 367 em escolas públicas e 199 em particulares. Em 1875 eram 343 em
escolas públicas e 258 em particulares. Em 1876 eram 392 em escolas públicas e 206 em particulares. Em
1877 eram 499 alunos do sexo masculino e 15 alunas do sexo feminino, não havendo dados para o tipo de
escola (pública ou particular). Em 1878 eram 28 escolas masculinas com 259 matrículas e 1 escola
feminina, sem dados de matrícula. Em 1880, 22 escolas masculinas com 345 matriculados. Em 1883, eram
41 escolas masculinas, com 720 matriculados, e 2 escolas femininas sem dados de frequência.
Na província do Rio Grande do Norte foi criado um curso especial noturno, com o currículo mais extenso
que de uma escola primária tradicional, mas contendo os saberes do vel primário. Esse curso foi
frequentado por 41 alunos. Em 1886, registra-se 565 matriculados em escolas noturnas, sem dados do
número de escolas, e em 1889, registra-se 341 matrículas.
Na província do Rio Grande do Sul registra-se 1 escola noturna com 78 alunos matriculados, no ano de
1873. Já no ano de 1874, eram 3 escolas com 104 alunos matriculados.
Na província do Rio de Janeiro, de acordo com os dados observados, houve no ano de 1875, 200 alunos
matriculados. Entre os anos de 1876 e 77, a matrícula foi de 180alunos, por fim, no ano de 1885, tem-se um
toral de 221 matrículas. (http://brazil.crl.edu/)
128
a abolição uma correlação de idéias entre liberdade e instrução reconhecendo esta como
instrumento de integração à sociedade. Temos o exemplo de mais um curso noturno de
iniciativa privada promovido pelo Club dos Libertos Contra a Escravidão, cujo boletim
publicado em setembro de 1882, nos informa que ali se oferecia instrução primária
gratuitamente à libertos, escravos e livres, e, na mesma época, este curso contava com
114 alunos. Este clube é citado pelo ministro Rodolpho Epephanio de Souza Dantas em
seu relatório do ano de 1881, em que afirma ter doado à escola, “tão útil instituição”,
diversos objetos retirados das escolas públicas, mais alguns móveis, e 200 compêndios
apropriados para o ensino daquela escola. Não consta recusa pelo clube, nestes
documentos, do oferecimento do ministro. Aqui vemos, novamente, um caso de
colaboração, entre governo e particulares, dessa vez, uma instituição abolicionista.
Chama atenção esta relação com um Estado que apesar da disposição em abolir
gradualmente a escravidão, continuava sendo escravista. Se pensarmos que a
aprendizagem de primeiras letras é um ato simplesmente técnico, não veremos polêmica
no tipo de relação estabelecida entre o governo e o clube, ao desconsiderarmos o fato que
os tais compêndios oferecidos, provavelmente veiculavam valores condizentes com uma
sociedade escravista e racista. Resta também a hipótese de pertencer o clube à vertente de
“abolicionismo ordeiro”, que pretendia difundir os valores de manutenção da ordem,
valores tão arraigados que mesmo em um clube de libertos contra a escravidão, dirigido
por um republicano, João Clapp, procura honrar-se de estar, “arredando da vadiagem, e
talvez da prática do crime homens e crianças que frequentam a sua escola”
95
. Assim a
preocupação é fazer ler e escrever, e não tanto o que ler e o que escrever
96
, pois isto
estava pré-estabelecido pelos compêndios gentilmente enviados pelo governo.
95
O trabalho. Periódico da Sociedade Reunião dos Expositores da Indústria Brasileira. Diretor e redator,
Alexandre A. R. Sattamini, Rio de Janeiro, 1º de setembro de 1870, ano 1, nº 2.
96
Quanto a questão do conteúdo do ensino de primeiras letras difundido na corte naquele momento, é
possível termos um pequeno exemplo de um entre os diversos métodos que se adotavam. Trata-se do
método denominado “Escola Brasileira. Método de leitura para ensino de meninos e adultos”, organizado
por Francisco Alves da Silva Castilho, professor público de primeiras letras da freguesia do Campo Grande,
em 1863. O método alega adotar um caminho “do simples ao complexo”, das letras às palavras, às frases.
Transcrevo aqui algumas frases que demonstram um ensino muito parecido com as antigas cartilhas por nós
conhecidas, que descolam a palavra e a frase de um sentido textual global. No caso de seu uso para adultos,
percebemos a tendência à infantilização. “A ave vazou o ovo”; “Rosa achou a chave”; “João viu sua avó”;
“A uva roxa enche o vazo”. Ao lado disso, o método inclui algumas fábulas de caráter extremamente
moralista, e conformista.
Os Membros e o Corpo
129
Outras experiências não relatadas aqui podem ser observadas nos relatórios de
ministros do Império, como a do Lyceo Literário Portuguez, iniciada em maio de 1868,
que nas segundas, terças, quartas quintas e sábados, das 19 às 21 horas, oferecia instrução
primária, aulas de gramática portuguesa, caligrafia artimética, geometria linear, desenho
linear, escrituração mercantil, inglês e francês a 285 alunos matriculados. Existiam cursos
noturnos que ministravam conhecimentos mais específicos e não instrução primária,
como era o caso da escola do Instituto Comercial do Rio de Janeiro e da Academia
Imperial de Belas Artes. Oferecendo exclusivamente a instrução primária houve dois
cursos de presença importante no município, tanto pela frequência como pela
durabilidade, ambos iniciados no ano de 1872 são os da Sociedade Propagadora da
Instrução às Classes Operárias da Lagôa, estudado por Martinez em sua dissertação de
mestrado, e a escola noturna para adultos de São Sebastião, mantida pela Câmara
Municipal. Em 1874 foi criada uma associação denominada Promotoras da Instrução que
abriu dois cursos noturnos, um na freguesia da Glória em prédio de escola pública, com
202 alunos matriculados, e outro em casa alugada no Alto do Pedregulho, com 20 alunos
matriculados e, mais tarde, abriu outro na Lagôa. Em 1874, também foram criados cursos
noturnos na primeira escola de meninos de São Cristóvão e na escola de meninos de
Paquetá. Estes cursos tiveram autorização do ministério do império, e é este quem arca
com as gratificações dos professores, que são os mesmos das escolas de meninos.
3.4 Regulação do Estado e cursos públicos
A afirmação da precedência da “sociedade civil” nas ações de instrução para os
pobres não excluía, porém, a existência de regulação do Estado nesse campo. A principal
As mãos e os pés se queixavam dos outros membros dizendo que eles, toda sua vida
trabalhavam e traziam o corpo às costas, e tudo redundava em proveito ao estômago,
que comia sem trabalho, portanto que se determinasse a buscar sua vida, que eles não
haviam de dar-lhe de comer. Por muito que o estômago lhes rogou, não quiseram
tomar outra determinaçãoe assim começaram a negar-lhe comida, e ele enfraqueceu.
Mas como juntamente enfraquecem os pés e as mãos tornaram depressa a querer
alimentá-lo porém, sendo, já tarde, nada lhes valeu e morrerão todos.
Moralidade: As nações são corpos políticos cuja cabeça é o governo, todos os
cidadãos são membros desse corpo e todos m obrigação de trabalhar para o
sustentarem. Mas quando o povo se nega ao tributo que a lei impõe, quando os
cidadãos se não prestam ao serviço da nação, ou quando têm loucura de se rebelerem
contra os reis e contra o governo, ai da nação, ai dos cidadãos!
Para maiores informações sobre as leituras escolares e livros didáticos do período, ver TEIXEIRA, 2005.
130
alegação sobre a razão desta conduta mais fiscalizadora que promotora da instrução
costuma ser a carência de recursos do poder público. É possível observar que a maioria
das críticas e proposições contidas nos relatórios dos ministros convergem para a
solicitação do aumento de verbas para a instrução primária. Ao que parece o eloquente
discurso sobre a necessidade e grande valor da instrução para o Estado e a nação não
encontrava correspondência na política orçamentária do governo imperial, permitindo-
nos pensar que a fala de ministros e demais figuras públicas envolvidas com a política
educacional fosse exacerbada tanto mais quanto menor fosse o espaço ocupado por esta
pasta entre os demais ministérios. Se somarmos à esta hipótese a observação do uso
retórico de tais palavras como forma de valorização da pasta pela qual é responsável,
buscando valorizar sua própria contribuição, podemos compreender melhor toda ênfase
dada pelos ministros dos negócios do Império para a instrução. Em seu relatório
apresentado à assembléia legislativa em 1871, João Alfredo Corrêa considera que, diante
de tantas carências vividas pela instrução primária seria necessário dobrar ou triplicar o
orçamento para este grau de ensino, caso contrário os projetos destinados à melhorá-lo
permaneceriam como letra morta. Entre as necessidades da intrução que reclamavam
aumento das verbas estavam a
de aumentar o número das escolas, pois as nossas são menos da
quarta parte das que existem nos países cultos menos favorecidos;
de ampliar muito o número de professores e remunerá-los melhor
para viverem decentemente com os seus vencimentos, e bem
assim, de elevar o número e vencimentos dos adjuntos e dos
empregados da inspeção geral. Precisamos, finalmente, criar
escolas primárias de segundo grau, escolas noturnas, escolas
normais e bibliotecas.
Se quisermos acudir já a todas essas necessidades teríamos
de despender alguns milhares de contos, principalmente nos
primeiros anos; mas sendo isso por agora impossível, fique ao
menos bem claro que pouco se poderá fazer com a quantia
atualmente orçada...
Partindo para a análise desta atuação estatal encontramos três momentos-chave
em relação aos cursos noturnos. Um primeiro momento, inaugural, não se referia
diretamente aos cursos noturnos, mas dizia respeito à instrução primária para adultos em
horas livres, no citado artigo 71 do Regulamento de 1854. Note-se, porém, que as
131
“horas livres” não eram necessariamente dos alunos que se apresentassem, mas do
professor.
Nesse regulamento, apesar de haver indicação à necessidade da instrução de
adultos, não indicação dos meios para promovê-la, adequados à clientela, à população
que realmente dela necessitava: homens pobres ocupados em trabalhar para seu sustento
durante o dia. E a realidade da população pobre e trabalhadora não se fazia de adultos
que buscavam seu sustento durante o dia, mas também de crianças trabalhadoras que
complementavam a renda da família. Crianças estas que passaram a frequentar, ao lado
dos adultos, as cadeiras das aulas noturnas das associações existentes.
Quanto a isso, o Inspetor Geral da Instrução, José Bento da Cunha Figueiredo, e o
Ministro do Império, João Alfredo Corrêa de Oliveira, opuseram restrições no Ato aqui
considerado, um segundo momento chave de deliberação do Estado Imperial sobre os
cursos noturnos As Instruções Provisórias Sobre as Escolas Noturnas. Como
justificativa para a formulação das Instruções Provisórias, José Bento da Cunha
Figueredo alega o fato dos cursos noturnos, até aquele momento, serem fundados e
exercidos arbitrariamente, isentos das disposições do Regulamento de 17 de fevereiro de
1854. Nesse sentido o inspetor tece as seguintes considerações, bastante representativas
sobre a configuração destas aulas, e também das relações entre a iniciativa particular e o
Estado permeadas por alguns conflitos, mas principalmente por colaboração e certa
permissividade por parte do Estado:
que o fim especial de tais instituições era prover
expressamente a necessidade do ensino à respeito das pessoas adultas,
que não podem frequentar as escolas públicas ou particulares.
que não me pareceia conveniente a convivência escolar entre
menores de 15 anos e adultos de 20 e mais anos, sendo, aliás, de
condições mui diversas.
que as horas das lições não deveriam ser indiferentes, aos
meninos e aos seus pais, e que a admissão daqueles nas escolas
noturnas contribuia para serem despovoadas as escolas públicas.
que as leis em vigor não permitem abrir escola ou
estabelecimento de instrução primária e secundária sem preceder a
certas formalidades, e provas de habilitação que afiancem a moralidade
e regime escolar, condições que sendo comuns aos estabelecimentos
públicos e particulares, não tinham sido atendidas na criação de ditas
escolas quando me parecia inquesionável que elas devem reclamar
direção mais firme e inteligente.
132
Mas como estava convencido da grande vantagem dos cursos
noturnos de adultos, porque fariam aproveitar utilmente muitas horas
que seriam perdidas ou empregadas em distrações nocivas, e por outro
lado lembrava que eram eles custeados pela filantropia dos particulares
com professores gratuitos, que não queriam sujeitar-se a todo rigor dos
regulamentos, entendi e propus que alguma isenção e franquezas
fossem provisoriamente concedidas a taes escolas, não sendo, em todo
caso dispensadas de apresentar à inspetoria geral o plano do ensino e
provas (ao menos sumárias) de moralidade e aptidão dos lecionistas,
assim como de receberem a visita oficial e darem conta periódica do
número e progresso dos respectivos alunos
97
.
Destas considerações resultam os avisos ministeriais dados por João Alfredo
Corrêa em seu relatório sobre o ano de 1872. João Alfredo elogia as “escolas de adultos
que por iniciativa particular se estabeleceram”, elogia seus instiruidores, mas aponta
que não devem ser admitidos nessas escolas meninos
menores de 15 anos, para os quais estão abertas as escolas públicas;
que, à vista da natureza e origem de tais escolas, as disposições dos
Regulamentos gerais, relativas à inspeção e fiscalização das
autoridades, devem ser exercidas nelas de modo que não resultem daí
embaraços ao desenvolvimento do precioso elemento da iniciativa
particular.
Havia discordâncias estruturais em relação à própria concepção do que deveria ser
o curso noturno. Para a inspetoria de instrução tratava-se de atender adultos, maiores de
15 anos que não possuíssem os conhecimentos básicos, tendo, ainda, por fim subjacente
“aproveitar as horas perdidas em distrações nocivas”. Como nocivos eram os lazeres das
classes populares, e as “horas de reflexão” desses sujeitos. Para as associações o fim
subjacente era o mesmo. Entretanto, o público a ser atendido não seria dado pela fase da
vida estabelecida como adulta a partir dos 15 anos de idade, mas sim pela marca sócio-
econômica do trabalho, sendo que no período aqui estudado, os sujeitos pertencentes às
classes populares deparavam-se muito cedo com a necessidade do trabalho, realidade que
se manteve, guardadas as devidas proporções, até os dias de hoje. Dessa forma, atendia-
se nos cursos noturnos particulares e mesmo na escola noturna da Câmara Municipal,
“crianças” de 10 anos de idade. Por que deveriam ser diferentes as horas de estudos de
97
Anexo ao relatório do ministro dos Negócios do Império, João Alfredo Corrêa de Oliveira, 1872.
Disponível em http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/hartness/minopen.html
133
pais e filhos, se não eram diferentes as suas horas de trabalho? A proposição da Inspetoria
era afirmadora de uma dupla segregação para a criança trabalhadora: as escolas de
meninos estavam fechadas àqueles que não podiam se “dar ao luxo” de substituir o
trabalho pelo estudo, sendo triste lembrar que durante muito tempo, se não até hoje, o
garoto pobre continua não sendo um “menino”, mas sim um “menor”. Por outro lado, a
escola noturna também não os poderia aceitar, pois de acordo com a formalidade que
desconsiderava a realidade, estas seriam reservadas para adultos. Entretanto, as tão
prezadas formalidades poderiam ser “relaxadas” quando se tratava da regulação das ações
das elites. O que tais avisos deixam transparecer é uma disposição do Estado em regular a
ação da iniciativa particular, porém dentro de limites daquilo que pudesse ser conflitante,
ou uma indisposição para o conflito. Ou seja, a Inspetoria de Instrução interviria até o
ponto em que pudesse provocar “embarassos” para os institudores, mas bem sabemos que
regula sem “criar embaraços” aquele que sempre aprova. Em anexo a este mesmo
relatório estão as Instruções Provisórias Sobre as Escolas Noturnas de Adultos
organizadas pelo inspetor geral de instrução primária e secundária do Município da
Corte, José Bento da Cunha Figueiredo, e aprovadas entre os “Atos do Governo Imperial
sobre a Instrução Pública”.
Nas Instruções era requisitado de “qualquer instituidor singular ou coletivo, de
escolas ou colégios de adultos, com ou sem subvenção do governo”, uma exposição sobre
qual o local das aulas, o programa de ensino a ser seguido, o horário, o regime
disciplinar, nome dos professores, estatutos em se tratando das associações, habilitação
moral e profissional dos professores. Solicita ainda que os instituidores tivessem um livro
de matrículas onde constasse dia de entrada e saída de cada aluno e seu aproveitamento.
Deste livro deveriam ser extraídos mapas semestrais a serem remetidos ao delegado de
instrução do distrito em que se situava a escola, além de relatório anual sobre os
progressos dos cursos. Os estabelecimentos estariam, ainda, sujeitos à visitas dos
delegados de distrito.
Nos dois últimos artigos encontram-se as principais intervenções do Estado em
relação aos cursos noturnos, que até aquela altura funcionavam quase que unicamente sob
direção particular. O artigo quinto proíbe de serem admitidos nas escolas noturnas os
menores de quinze anos ou os que estivessem ou devessem estar nas escolas públicas
134
primárias. O artigo sexto exigia que os instituidores cobrassem dos alunos a devida
vacinação ou mesmo revacinação.
No momento em que foram estabelecidas as Instruções, havia na cidade do Rio de
Janeiro, cerca de onze cursos noturnos, embora nem todos fossem de instrução primária.
Dessa modalidade, que aqui nos interessa mais de perto, havia o curso do Lycêo Literario
Portuguez, desde 1868; da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, desde 1870; da
Reunião dos Expositores da Indústria Nacional da Sociedade, desde 1870 e da Sociedade
Propagadora da Instrução às Classes Operárias da Lagoa, desde 1871.
Ministrados por iniciativa individual de professores públicos havia na freguesia de
Paquetá, um curso estabelecido pelo professor Januário dos Santos Sabino; na freguesia
de São José
98
, ministrado pelo professor Antonio Cândido Rodrigues Carneiro, e em
Guaratiba, pelo professor Joaquim Antonio da Silva Bastos. Havia ainda dois cursos
públicos: o da Câmara Municipal, em São Sebastião, fundado em setembro de 1872, e em
São Cristóvão
99
, no edifício da escola pública daquela freguesia, fundado por iniciativa
do Ministério do Império, em janeiro de 1872.
Até o terceiro momento aqui considerado como momento chave de deliberação do
Estado Imperial sobre os cursos noturnos, qual seja, o decreto número 7031 A de 6 de
setembro de 1878, mantiveram-se os cursos citados, com o acréscimo de três outros
fundados pela Sociedade Promotora da Instrução, na Glória, Engenho Novo e Lagoa.
Logo após o decreto, cresceu substancialmente o número de cursos noturnos públicos,
chegando a oito: um na freguesia do Sacramento, um na de São José, dois na de Santa
Rita, um na de Nossa Senhora da Glória, dois na do Divino Espírito Santo
100
e um na de
Nossa Senhora da Conceição do Engenho Novo.
98
A freguesia de São José, localizada em área central, possuía 41.000 habitantes, casas comérciais e
fábricas, e prédios que ainda hoje existem, como o do Museu Histórico Nacional e da Santa Casa de
Misericórdia (SANTOS, 1965).
99
Próxima a São José estava a freguesia de São Cristóvão bem como Candelária, Santa Rita, Sacramento,
Santana, Santo Antônio, Glória e Espírito Santo. São Cristóvão possuía, de acordo com o já citado censo de
1890, 23.000 habitantes, comércio regular, e bem desenvolvida indústria com fábrica de vidros, artefatos de
barro e tecidos (SANTOS, 1965).
100
A freguesia de Santa Rita possuía 44.000 habitantes, importantes casas comerciais de café. Lá estavam
situados os morros da Conceição e do Mosteiro de São Bento. A freguesia do Espírito Santo possuía 31.500
habitantes, comércio e indústria (SANTOS, 1965).
135
Fachada da escola pública primária de Santa Rita, onde foi instituído curso noturno após o decreto
7031 A. 1871, fotografias avulsas, acervo do Arquivo Nacional.
Se o artigo 71 do Regulamento de 1854 era incipiente para a adoção de uma
política sistemática de instrução para trabalhadores, e se as Instruções de 1872 tinham
caráter apenas de controle da iniciativa particular que se propagava estabelecendo cursos
noturnos, o decreto 7031 A de 6 de setembro de 1878 chamará para o Estado Imperial a
responsabilidade por organizar efetivamente essa modalidade de instrução.
Na distribuição do ensino, fôra injusto o Estado, se, atendendo
exclusivamente às gerações que despontam, deixasse no olvido aquela
que ocupa um lugar na cena política do país e que conta em seu seio
uma numerosa classe completamente deserdada do benefício da
instrução. Faz-se mister, portanto, ao lado das escolas destinadas a
infância, promover a criação de cursos para o ensino primário dos
adultos analfabetos, e esta necessidade assume uma importância
particular quando trata-se da realização de uma reforma como a do
sistema eleitoral, para cujo êxito poderosamente contribuirá o
desenvolvimento da instrução popular. Os mencionados cursos nas
províncias poderão ser instituídos com pequeno acréscimo de despeza,
136
funcionando, como os ultimamente criados no Município da Corte, nos
edifícios escolares existentes.
Neste município o Decreto 7031 A de 6 de setembro último,
criando cursos noturnos para adultos nas escolas públicas de instrução
primária do grau do sexo masculino veio preencher uma lacuna a
muito sentida na organização do ensino elementar. Creio que não
duas opiniões sobre a utilidade e importância de semelhante instituição.
No seio dos povos livres nada tão digno de compaixão como
o adulto analfabeto, isto é, o homem que, adiantado na vida física, mas
alheio às evoluções da vida moral, está separado da comunhão social
pelo negro abismo da ignorância. Sabemos todos que a magna aspiração
das sociedades modernas consiste principalmente em alargar, quanto
possível, o círculo dos seus associados, pela igualdade no exercício dos
direitos e no cumprimento dos deveres. Como, porém, realizar tão
nobre aspiração, sem que a noção desses direitos e deveres haja
penetrado mais ou menos profundamente a consciência e a razão de
todos?
Como garantir um direito a quem não o sabe exercer e impor
uma obrigação a quem não pode cumprir? Foi atendendo a essas
considerações que empreendi e levei a efeito a criação dos mencionados
cursos. A medida foi realizada com a máxima economia para os cofres
públicos, visto que os cursos, como fiz ver, funcionam nas casas
ocupadas pelas escolas públicas, e o ensino é ministrado pelos
professores das mesmas escolas, mediante razoável gratificação pelo
excesso de trabalho
101
.
A justificativa de Leôncio de Carvalho, bem ao gosto dos discursos liberais,
concentra-se na demonstração da função formativa do cidadão” pelos cursos frente a
reforma eleitoral. Esta reforma pretendia adotar a alfabetização como censo, visando
restringir o acesso ao pleito a uma minoria privilegiada, num contexto em que grassava o
analfabetismo, principalmente entre as classes populares. Ela viria corrigir o fato da renda
fixada pela constituição para determinação dos votantes estar defasada. Segundo João
Alfredo, em relatório de 1871,
a quantia que ela estabeleceu não tendo hoje o mesmo
significado real, não pode conservar-se como condição permanente e
única da capacidade eleitoral, sem que daí resulte alargar-se
demasiadamente esta capacidade, abrangendo-se nela a quase totalidade
da população, e convertendo-se em última análise o direito eleitoral em
sufrágio quase universal.
101
Relatório do Ministro dos Negócios do Império, Leôncio de Carvalho, 1878. Disponível em
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/hartness/minopen.html
137
Leôncio de Carvalho, como é comum aos que adotam o pensamento liberal, faz
uma medida de controle de conflitos e manutenção do poder instituído parecer um ato
progressista e humanitário. Ao lutar pela liberdade dos povos assinalava que o exercício
da liberdade não poderia se efetivar em uma “sociedade ignorante”. Confundia-se, assim,
desde muito cedo em nossa cultura, instrução e capacidade intelectual. Opunha-se o saber
oficial à suposta falta de saber popular, que também implicava em incapacidade de
discernimento político, enquanto ratificava o lugar da “escola governamental” como
única fonte de saber válido. Deste modo, quem não passasse por ela não saberia exercer
seus direitos, logo não seria digno deles.
É, porém, em sua ressalva final que o discurso insinua toda sua contradição
interna. Uma medida tão utilitária, humanitária, e crucial para a vida política da nação
apresentava como princípio a máxima economia para os cofres públicos. No tempo e no
espaço e com os recursos que sobrassem, o Estado poderia exercer toda sua compaixão
ao adulto analfabeto. Este, por sua vez, deveria ser grato e não reclamar caso não
estivesse habilitado para exercer seus direitos o voto pois lhe fôra dada a
oportunidade. estavam cursos noturnos de instrução primária para adultos. Os que
permanecessem analfabetos, o seria por vontade própria, afinal eram livres até para optar
entre a “luz da razão” e as “trevas da ignorância”.
O fato era que, pela primeira vez instituía-se um decreto específico voltado para a
organização de tais cursos na Corte e, logo após esse ato, foram inaugurados mais oito
cursos noturnos em escolas públicas: 1 na freguesia do Sacramento, 1 na de São José, 2
na de Santa Rita, 1 na Glória, 2 na freguesia do Espírito Santo e 1 na do Engenho Novo.
Anterior à medida de Leôncio de Carvalho que institui cursos noturnos públicos nas
mesmas escolas blicas diurnas em 1878, houve a criação de um curso noturno público
no ano de 1872 por ordens do ministro João Alfredo que, tendo recebido um prédio em
São Cristóvão, doado pelo Corpo do Comércio, ordenou que no mesmo edifício se
fundasse um curso noturno para adultos, sendo encarregado de dirigí-lo o professor da
escola de meninos com a gratificação de 50$000 mensais e mais 1$000 por aluno que
excedesse o número de 30. No entanto a soma das gratificações não podiam exceder
100$000. Esta medida pode parecer antecipar o aqui chamado terceiro momento de
138
atuação do Estado imperial, que considera como marco o decreto de 1878, mas estou
trabalhando com a idéia de que a abertura de um curso público se constitui em uma
medida pontual, não caracterizando uma política sistemática de intervenção direta do
Estado no estabelecimento das escolas noturnas.
O texto do decreto contém quarenta e oito artigos com prescrições detalhadas
sobre o funcionamento dos cursos noturnos, elegendo para isso alguns temas centrais,
alvos de maiores preocupações. Estes vão desde a sua implantação, a delimitação do
público, os horários, calendário, regime de trabalho e remuneração dos professores,
sanções disciplinares, exames e certificados, inspeção, até as despesas do Estado. Cada
escola pública do Município da Corte para o sexo masculino abrigaria um curso noturno
de ensino elementar para adultos compreendendo as mesmas matérias das escolas
diurnas. Estes cursos seriam regidos pelos mesmos professores públicos das respectivas
escolas, no mesmo período letivo, diariamente, das 17 às 19 horas de outubro à março e
das 18 às 21 horas de abril à setembro, incluindo-se os sábados, quando haveria aulas de
repetição das matérias lecionadas durante a semana. Estavam abertos para todas as
pessoas do sexo masculino, livres ou libertos, maiores de 14 anos, vacinados e saudáveis.
Excluídas da possibilidade da “formação para cidadania”, estavam as mulheres
trabalhadoras e os escravos. Excluídos estavam da obtenção do “pão espiritual”, as
crianças trabalhadoras que, por sua condição, não podiam frequentar as escolas públicas
diurnas. Para os moradores das freguesias suburbanas havia barreiras adicionais.
Enquanto as aulas das escolas urbanas deveriam começar a funcionar imediatamente após
o aviso, os das escolas suburbanas deveriam aguardar determinação do ministério do
Império que examinaria as “condições locais”. Entretanto, como medida de cunho liberal,
consta a não obrigatoriedade de instrução religiosa para os alunos acatólicos e isenção
dos exames destas matérias.
Se a moral religiosa reduzia sua dominância, ainda havia moral, agora
meritocrática, dentro de um sistema de “sabatinas” em que os alunos que se saíssem bem
recebiam um “atestado de progresso” e “notas de merecimento” que lhes possibilitava
ocupar lugares em “bancos” e “quadros” de honra. Este era o sistema de avaliação
cotidiano, complementado por exames finais, quando o professor convocava o delegado
de instrução para, junto com ele e outro nome proposto pela Inspetoria de Instrução,
139
julgar os alunos que estivessem habilitados para o exame. Outra forte preocupação era
quanto ao número de faltas, que ao chegar a 40, impossibilitava o aluno de prestar
exames. Os que fossem assíduos e bem sucedidos na prestação de exames eram, por outro
lado, premiados. Não obtive informações sobre o sistema de avaliação utilizado nas aulas
da iniciativa privada, mas é difícil imaginar que se prestassem a esse rigor. Rigor que se
repetia em relação aos professores quando negligencissem suas funções e ordenações da
inspetoria de instrução. Nesses casos poderiam ser punidos de acordo com as disposições
do decreto nº 1331 A de 17 de fevereiro de 1854. Caberia ao delegado de instrução visitar
os cursos para verificar o cumprimento destas disposições, e verificar, sobretudo a
frequência, uma vez que as próprias gratificações dos professores dependiam dela, ou
seja, a gratificação era computada sobre o número de alunos que frequentassem
efetivamente o curso. Cabe lembrar que a correlação entre matrículas e frequência era um
problema enfrentado tanto pelas escolas públicas quanto pelas da iniciativa particular
como é possível perceber na relato sobre a situação da Sociedade Auxiliadora da
Indústria Nacional: “No decurso do ano de 1874 matricularam-se 240 alunos, sendo 150
brasileiros e 81 estrangeiros, consta porém que a frequência foi muito resumida, e
portanto, pouco foi o resultado colhido”.
Chama atenção no decreto, as medidas disciplinares e de manutenção da ordem,
preocupação central, que lidava-se ali com uma população tida como “desordeira”. Os
meios disciplinares seriam: primeiro, repreensão em particular; segundo, repreensão em
aula; terceiro, eliminação da matrícula e despedida. Havia grande preocupação em
prevenir perturbações nas imediações dos edifícios escolares. Em casos extremos o
professor poderia contar com o apoio, nas repreensões mesmo dentro de sala de aula, da
autoridade policial, afinal, tratava-se de “classes perigosas”. Vale citar aqui os artigos
referentes à disciplina
Art. 13. No recinto e nas proximidades da escola os alunos
guardarão o maior socego, respeitando uns aos outros, os funcionários
da escola e as pessoas que visitarem o edifício, morarem ou passarem
perto dele.
Art. 14. O aluno que sair do recinto da escola sem permissão do
professor será pela primeira vez repreendido e nas reincidências se lhe
marcará falta.
140
Art. 15. Os alunos, que dentro da escola perturbarem por
qualquer modo os trabalhos, serão pela primeira vez repreendidos e nas
reincidências punidos com a nota de mal comportamnento.
Art. 16. Os alunos que cometerem graves ofensas à moral e
disciplina dentro da escola, fizerem assuadas à porta do
estabelecimento, promoverem desordens na rua com seus
condiscípulos, ou com os transeuntes ficarão sujeitos à pena de
expulsão temporária ou perpétua, imposta pelo professor com recurso
para o inspetor geral da instrução.
Art. 17. O aluno que desobedecer ao professor será mandado
retirar da sala, e se não quizer sair, o professor suspenderá a aula,
representando ao delegado para que reclame a intervenção da
autoridade policial.
Mas não de repreensão viveram os cursos noturnos do ministério do Império.
Aos bons alunos, que soubessem civilizar seus costumes, aceitando “a luzali oferecida,
haveria recompensas. Os aprovados recebiam título impresso com especificação da nota e
assinado por todos os membros da comissão julgadora. Com isso, teriam o direito de
preferência aos lugares de serventes, guardas, contínuos, correios, ajudantes de porteiro,
porteiros das repartições e estabelecimentos públicos e outros empregos de igual
categoria. Esta medida pode ser considerada como atrativo, pois indicava a possibilidade
de ascensão social oferecida pela escola num momento em que seu principal problema,
maior do que o número reduzido de matrículas era a frequência extremamente reduzida.
O problema da frequência é um dos mais ressaltados por Ruy Barbosa em seu
Parecer, no qual realiza um estudo e uma crítica monumental à educação no Império. Em
sua “Estatística e situação do ensino popular” aponta os deficits nas relações crescimento
das escolas versus crescimento da população, desfavorável para o crescimento das
escolas, com o agravante do aumento, nas últimas décadas do XIX, da população livre
pela ação de leis como o “Ventre Livre”, conquistas de alforrias e a tendência cada vez
mais forte de abolição.
Fixando em 1.500.000 a cifra da população escrava, que deveria
ser mais alta, próxima como estava, ainda, a época em que estancaram
as odiosas fontes do tráfico africano; isto é, observando sempre o
mesmo sistema de avultar a cifra da população livre, e enfraquecer,
portanto, relativamente a da matrícula escolar, facilitando assim aos
otimistas as condições mais cômodas para uma demosntração vitoriosa
contra nós contaríamos em 1857 uma população livre de 7.000.000.
Sendo, então, de 70.224 alunos a matrícula seria 1,04% da população
141
livre a inscrição nas escolas de primeiras letras, e elevando-se a soma
geral destas a 3.305, haveria uma escola para 2.118 habitantes. (...) A
frequência que em 1857 cifrava-se em 1,04% da população, 21 anos
depois tinha subido apenas 0,57%, ou termo médio, 0,027%
anulamente. (...)
Mui intencionalmente evitamos, até aqui, uma expressão técnica
nesses assuntos referindo-nos sempre à matrícula ou à inscrição escolar,
e abstendo-nos de falar de frequência, confundindo vocábulos
distanciados por significações absolutamente distintas, abuso
indisculpável e da mais séria gravidade, cujo resultado é trazer enleado
o público num engano acerca de noções fundamentais. Todas as
estatísticas brasileiras organizadas oficialmente o que de consignam, é o
número de alunos alistados na escola, e não os dos que efetivamente a
povoam. (...) Do total dos meninos que se supunha terem frequentado a
escola em 1866, isto é, 1.384.906, cerca de 30% só tinham cursado um
a seis meses; 300.741 meninos, não mais de três, 208.242, apenas dois,
142.480, unicamente um mês.
102
Realidade de difícil apreensão tanto para o poder central à época, como para o
estudo da história da educação no XIX, informações sobre frequência e demais detalhes
do cotidiano escolar dependiam de relatórios dos professores que nem sempre a
descreviam literalmente, num tempo em que as distâncias eram maiores do que hoje, e
que não havia profissionalização, nem mesmo remuneração, dos agentes locais de
fiscalização. Diferente do caráter de universalidade da fala oficial de Ruy Barbosa, são
estas falas pontuais de professores e moradores das freguesias cariocas as que nos
deparamos no Códice do Ensino Noturno, parte do acervo do Arquivo Geral da Cidade
do Rio de Janeiro (AGCRJ). O códice é uma das princiapis fontes de informação sobre a
prática efetiva das aulas noturnas, objeto de análise do presente capítulo. Trata-se de uma
compilação de documentos relativos ao funcionamento burocrático dos cursos noturnos.
Estes documentos, entretanto, não descrevem o cotidiano das aulas, e pouco deixam ver
as características dos alunos, suas relações com os professores etc. São ofícios trocados
entre professores, delegados de instrução das freguesias e a Inspetoria de Instrução
Primária. Contém ainda, dois relatórios: um de um professor sobre suas aulas e outro da
Inspetoria de Instrução Pública endereçado ao ministro dos negócios do Império tecendo
102
Câmara dos Deputados. Seção de 12 de detembro de 1882. Reforma do Ensino Primário e Várias
Instituições Complementares da Instrução Pública. Parecer e Projeto da Comissão de Instrução Pública.
Composta dos Deputados Ruy Barbosa, Thomaz do Bonfim Espinola e Ulysses Machado Pereira Vianna.
Relator Ruy Barbosa. Rio de Janeiro, Typ. Nacional, 1883. P. 3
142
comentários sobre a política dos cursos em geral. Contém mapas de turma que relatam
nome, idade, nacionalidade, endereço e profissão dos estudantes, e contém balanços de
frequência de alunos. Os primeiros documentos do códice datam de 1877, e os últimos
são relativos ao período republicano chegando a 1909. Nesses, percebemos a
permanência das linhas gerais da política de cursos noturnos, com algumas proposições
de reformas pontuais visando seu aperfeiçoamento.
Os temas mais recorrentes destes ofícios diziam respeito ao oferecimento de
professores para lecionarem e o pedido de licença para abertura de cursos noturnos,
mesmo que a princípio sem remuneração e arcando com despezas, exceto a da iluminação
que, em geral, era paga pela Inspetoria de Instrução. Entretando observa-se que após o
decreto governamental que estabelece os cursos nas escolas públicas, uma série de
ofícios encaminhados por professores à inspetoria, solicitando subvenções para seu
trabalho, o que nos leva a pensar numa possível estratégia de obtenção de vagas no
magistério, ou forma de assegurar certas vantagens pela atuação na educação de adultos.
Tal demanda variável, ora de professores, ora dos próprios moradores de determinadas
freguesias através de abaixos-assinados por abertura de aulas, ou mesmo o fechamento
destas aulas em outras freguesias por falta de alunos, pode ser acompanhada neste códice,
ajudando-nos a comprovar a tese de que a política governamental para as escolas
noturnas procura regulamentar e ampliar um esforço que já estava presente entre a
sociedade civil, como acontecia em relação à freguesia de São José, que em 1877,
promove abaixo assinado com 56 assinaturas direcionado à Câmara Municipal,
solicitando a abertura de um curso noturno. Em parecer do inspetor das escolas
municipais sobre o pedido, percebemos a tendência à priorização das áreas centrais, mais
populosas, de maior visibilidade e mais próximas dos padrões de modernidade que a
instrução pretendia aperfeiçoar, em detrimento das áreas suburbanas e rurais. Os próprios
moradores apostam no fato da viabilidade de seu pedido pela possibilidade de frequência
à mesma aula pelos trabalhadores de São José e Sant’Anna, motivação confirmada pelo
inspetor ao considerar:
Parece-me atendível o que requerem os suplicantes,
principalmente porque achando-se a Escola Municipal São José situada
em um centro comercial muito aproveitará com as escolas para adultos
essa parte da população.
143
A despesa que a Ilmª Câmara deverá fazer com mais essa escola
será insignificante, se for igual a da escola municipal de São Sebastião,
isto é, oitocentos mil réis anuais para dois professores, e o necessário
consumo de gás, acrescendo a retribuição que deve ser dada a um bedel
e ao servente por esse serviço (?)
103
.
O pedido dos moradores é rejeitado por falta de verbas, mas é encampado pelos
professores Luiz Antonio Vieira de Barros e Augusto Siqueira Amazonas que se
oferecem para lecionar gratuitamente “embora não possa, atualmente, a Ilmª Câmara,
remunear seus serviços”. Nessas circunstâncias, a câmara aceita a abertura do curso com
os serviços voluntários sublinhando, em sua resposta, a idéia de que aquela situação
permaneceria até que a Câmara possa remunerar seus serviços
104
. A julgar pela
proliferação das ofertas voluntárias de abertura de cursos noturnos vemos que não eram
excessivos os gastos com tais aulas uma vez que houvesse prédio disponível para tanto.
Percebemos porém, que este ato de voluntarismo contava com um prazo, o prazo do
curso se estabelecer e se fazer necessário para os que nele fossem atendidos,
caracterizando assim, uma demanda a ser dirigda ao governo. Passado este prazo, dentro
das circunstâncias favoráveis, poderiam os voluntários solicitar as devidas recompensas e
remunerações. Nesse sentido, cabe questionar a possibilidade da demanda por cursos
noturnos ter partido de diferentes pontos. comentamos o quanto ela partiu das próprias
elites intelectuais, políticas e econômicas por um meio de participar, exibir-se e intervir
em esfera pública como é o caso das principais “sociedades” e de seus “beneméritos”.
Percebemos agora a demanda a partir dos moradores de algumas freguesias, mas
principalmente dos “professores voluntários” ou ao menos, por meio deles escutada.
Algumas solicitações de professores trazem as justificativas da beneficência e da nobreza
da causa da educação popular que tanto recheiam o projeto político pedagógico discutido
no capítulo anterior deste trabalho. No entanto é bem provável que a demanda desses
sujeitos se sustentasse na busca de uma perspectiva de ampliação das suas vantagens
profissionais (por reconhecimento de serviços prestados) e ampliação de fontes de renda,
o que não faz menor sua participação na difusão dessa modalidade de ensino.
103
Códice 11-4-10. Ensino Noturno. Sob guarda do AGCRJ.
104
O grifo desta citação e da imediatamente anterior foram feitos por mim.
144
Observemos o discurso do professor da primeira escola pública de meninos da
freguesia da Glória.
Convencido de que um dos assuntos que mais prendem a
esclarecida atenção do governo imperial é a instrução popular, e
desejando contribuir de minha parte em favor de tão grandiosa idéia
peço a V. S. se digne a solicitar do mesmo governo a permissão para
abrir-se na escola a meu cargo, um curso noturno. (...) Oferecendo-me
para dirigí-lo e lecionar as respectivas matrículas gratuitamente. (...)
Para evitar a que poderia fazer o mesmo Estado com o
expediente e livros para esse curso, se as suas circunstâncias o
permitissem, tenho a idéia de por todos os meios a meu alcance,
solicitar os (?) filantropicos dos livreiros e mercadores de papel a fim
de obter deles o necessário para esta obra de misericórdia e neste
empenho serei de certo eficazmente auxiliado pelo benemérito cidadão
Octaviano Udson que para isso já me ofereceu
105
.
Observemos, em seguida, o discurso da Sociedade Propagadora da Instrução às
Classes Operárias da Lagôa por intermédio do delegado do distrito, José Theodoro da
Silva Azambuja, dirigido ao senador do Império e inspetor geral da instrução, José Bento
da Cunha Figueiredo:
Conta esta associação 7 anos de existência. Convertida em
realidade a idéia de sua fundação pelos Ilms Joaquim Soares da Costa
Guimarães, Dr. José Leite Mendes de Almeida, Dr. Manoel Antonio de
Magalhães Calvet e Francisco de Siqueira Dias, em fins do ano de 1871
e concedida pelo aviso do Ministério do Império de 13 de dezembro do
mesmo ano a subvenção de (?) a Sociedade Propagadora da Instrução
iniciou seus trabalhos em janeiro de 1872 estabelecendo e abrindo
desde logo a aula noturna de instrução primária para as classes
operárias. A pronta concorrência de alunos e as provas de
aproveitamento por eles (?) no exame anual de 1873 em presença de V
Exª animando-me o aumento da subvenção foi esta elevada a 150(?)
pelo aviso de 16 de janeiro de 1874. (...)
Em 1875, concebendo a diretoria o pensamento de edificarem
um prédio destinado não as suas aulas como as das escolas públicas
fez a aquisição de terreno para esse fim suficiente, na Rua Bambina,
construiu os alicerces e paredes até certa altura e atualmente desenvolve
os maiores esforços para aquisição de meios que habilitem a conclusão
da obra. Durante todo esse período a aula noturna de primeiras letras
tem funcionado com louvável regularidade e não consta que fazem
dívidas sobre o cofre da sociedade.
Vê, pois V. Exª que a iniciativa particular tem produzido
algumas coisas na freguesia da Lagôa. Não em relação às
105
Códice 11-4-10. Ensino Noturno. Sob guarda do AGCRJ.
145
contribuições que têm concorrido para formar a receita da sociedade,
mais ainda em relação a dedicação e interesse com que em geral tem se
votado ao bom desempenho de sua missão as diretorias que a têm
administrado. Entretanto, apesar da subvenção de 150(?) mensais com
que concorre o governo Imperial, ainda não pode a Sociedade ampliar o
seu plano e atingir os fins a que se propôs nos artigos e do seu
estatuto. (...)
Se V. Exª entende que a Sociedade merecido da gratidão
pública e que tem correspondido a confiança e a proteção do governo
imperial, se V. Exª também entender que convém melhorar-lhe a
subvenção para que ela possa ampliar o seu plano, parece-me ser a
atualidade a ocasião oportuna.
No pessoal da atual diretoria do qual sobressai o presidente duas
vezes reeleito e 3 vezes o tesoureiro ... V. Exª encontrará cidadãos que
têm prestado serviços muito importantes à instrução popular e com
sabeja capacidade para levar muito alto a força impulsiva da iniciativa
particular
106
.
O que podemos concluir destes discursos e de outros correlatos é a própria
estratégia similar adotada por indivíduos (professores) e associações beneficentes, de
tornarem-se agentes reconhecidos publicamente e tornarem necessários seus serviços,
criando determinada demanda para, em seguida, dialogar com o governo em patamar de
maior legitimidade social e política, o que nos leva a afirmar que as iniciativas em
educação de jovens e adultos trabalhadores conferem poder à seus promotores.
Como exemplo das vantagens profissionais referidas, podemos pensar na
descrição de Uchôa Cavalcanti sobre a província de Pernambuco, no tópico em que expõe
os procedimentos do governo em relação aos cursos noturnos. O princípio norteador
desse procedimento era a liberdade de ensino pelo qual foram mantidas as aulas
existentes, facilitada a criação de novas e foi facultado aos professores públicos
lecionarem em cursos noturnos na casa e com a mobília das escolas diurnas. Aos que
prestassem esse serviço, o tempo desse ensino seria computado até dois terços na
jubilação. Outro intelectual, Antonio de Almeida Oliveira, ao tratar das escolas noturnas
para adultos, defende também a liberdade de ensino como forma de ampliá-las e reduzir
os gastos do Estado, ainda que afirme que nenhuma despesa com instrução poderia ser
tida como excessiva. Ainda assim, calcula que as despesas seriam pequenas pois
106
Idem.
146
As aulas dos soldados funcionaram nos quartéis, as dos presos
nas cadeias e as outras nas mesmas casas das escolas diurnas. Assim
todas as despesas se reduzirão ao pagamento dos professores e à
compra do material preciso para o ensino.
Demais, prometendo-se aos professores das aulas diurnas uma
razoável gratificação pela abertura delas à noite, gastar-se-á muito
menos com eles que com mestres especiais. E havendo liberdade de
ensino, em muitos municípios não será preciso que o Estado tenha
escolas noturnas (OLIVEIRA, 2003).
A liberdade de ensino não correspondia, porém, na visão de Almeida de Oliveira,
à liberdade de aprendizagem, uma vez que ele acreditava que a obrigatoriedade escolar
também deveria ser estendida aos adultos. Dessa forma, o autor, um republicano, se
posiciona contra o discurso corrente de que a obrigatoriedade da instrução tem que ser só
para os meninos. “Para mim semelhante dito é próprio de bárbaros. Ele importa este
contra-senso a sociedade pode punir até com a morte o ignorante que se torna culpado,
mas não pode ministrar-lhe a instrução que há de afastá-lo do crime!” (OLIVEIRA,
2003). Mas apesar dos longos discursos destes e outros intelectuais, e de diversos
projetos, continuávamos a ser, como afirma Ruy Barbosa em seu Parecer, “um país de
analfabetos”. Muitos destes projetos nunca chegaram a ser avaliados, como informam as
notas de Leôncio de Carvalho para a reforma de 1879, em balanço sobre as propostas de
reforma dos anos de 1831, 32, 37, 38, 39, 46, 47, 50, 57, 68, 70, 73, 74. “Mas coisa
notável, nenhum desses projetos nunca chegou a ser constituído em lei e até raros
tiveram a honra de uma longa discussão”. O próprio projeto de 1874 antecipava
proposições da reforma de Leôncio de Carvalho, que também não chegou a ser
implementada. Em relação à escolarização de trabalhadores em 1874 fora estabelecido
que os donos, diretores ou gerentes das fábricas e oficinas existentes e que se fundassem,
forneceriam o ensino primário elementar a seus operários menores de 18 anos sob pena
de multa. Nas oficinas do Estado teriam preferência os indivíduos com instrução
primária. Ao mesmo tempo, nenhum indivíduo poderia ser dispensado da escola com
menos de 14 anos sem saber ler, escrever e realizar as quatro operações aritméticas e sem
os princípios de moral. Caso até os 14 anos não estivesse habilitado, passaria as escolas
de adultos, sendo obrigado a permanecer até se habilitar ou até completar os 18 anos. No
147
artigo da obrigatoriedade do ensino até os 18 anos abre-se um parágrafo para
regulamentação das escolas de adultos:
§ : Fundar-se-hão no município da corte, escolas para adultos
nas quais serão admitidos indivíduos de mais de treze anos,
contratando-se para o ensino professores particulares idôneos ou
concedendo-se uma gratificação aos professores públicos que se
propuzerem a este serviço e o governo julgar no caso de bem o
desempenharem. Estas escolas serão diurnas e noturnas e as horas das
respectivas lições determinadas de modo que se atendam as condições
de trabalho dos indivíduos que a frequentarem
107
.
Pelo movimento de ofícios trocados entre professores, delegados e inspetoria de
instrução
108
, é possível entrevermos um pouco as “idas e vindas” dos cursos noturnos
públicos, e perceber como esta foi uma política o instável quanto a frequência de seus
alunos. A partir do ano de 1878 o inspetor geral de instrução passa a orientar os
delegados de distrito para que se desse abertura de cursos noturnos assim que se
atingissem 12 alunos. Os delegados teriam, então, que empregar “esforços e boa vontade”
para aumentar o número de frequentadores dos cursos, seria necessário sair a convidar os
analfabetos a desfrutar do “benefício liberalizado pelo governo imperial”. Porém, ao
mesmo tempo foram requeridas subvenções para cursos que já aconteciam antes do
decreto devido à iniciativa particular de professores. Houve concessões, mas também
recusas, sendo o motivo principal a baixa frequência de alunos, como é o caso do entrave
posto pelo Barão de São Félix, inspetor de instrução, à abertura de curso pelo professor
Augusto Cândido Xavier Cony. O inspetor informa que desaconselha a autorização do
professor Augusto Cândido Xavier Cony, de abertura de curso noturno na escola de seu
magistério, na freguesia do Sacramento, alegamdo que já havia próximo um curso
noturno que não tinha frequência desejada.
Havia, ainda, outros motivos de recusa, como observamos no ofício do mesmo
inspetor ao ministro do Império desaconselhando a autorização para abertura de curso
pelo professor Antonio José Marques na freguesia da Lagôa.
Não autorisei a abertura oficial do dito curso, que o professor
apenas falou-me em começar como ensaio por admitir a noite alguns
alunos sem por isso receber retribuição alguma dos cofres públicos, que
107
Anais da Câmara dos Deputados, 1874, volume 3, seção de 30/07. Sob guarda do IHGB.
108
Códice 11-4-10. Ensino Noturno. Sob guarda do AGCRJ.
148
para abertura de todos os cursos noturnos depois do Decreto nº 7031 A
de 6 de setembro de 1878 tem procedido autorização (...) que está o
curso noturno de quem se trata, próximo ao subvencionado estabelecido
na Rua de São Clemente. Que tanto neste como naquele são admitidos
alunos de menor idade que deveriam frequentar as escolas públicas
diurnas, que no do professor Antonio José Marques, a frequência é
quase toda de estrangeiros, contando-se apenas quatro brasileiros, e
destes somente um adulto, os outros menores nas condições acima
indicadas
109
.
Os ofícios favoráveis aos pedidos acima referidos tornaram-se mais frequentes
que as recusas entre os ofícios consultados para os fins do ano de 1878 e para o ano de
1879, quando ocorre, também, maior fiscalização desses cursos por parte da inspetoria o
que podemos perceber nos envios dos quadros de frequência dos alunos pelos professores
de diversas freguesias. Esses quadros informam que a frequência média por aula,
considerando dez cursos, no período entre agosto e outubro de 1879 foi de 18 alunos.
Entretanto, esta frequência não estava distribuida regularmente por todas as freguesias,
sendo as maiores médias correspondentes aos cursos da Glória, 35,75 alunos por aula e
do Engenho Velho, 21,75 alunos por aula. E as menores relativas a Campo Grande, 9,6
alunos por aula, e Engenho Novo, 14,25 alunos por aula, mostrando que a frequência nas
freguesias urbanas era maior que nas suburbanas.
Tabela de frequência dos cursos noturno públicos de instrução primária da corte em
1879
110
.
Professor Freguesia Frequência Média
Augusto José Ribeiro Barra de Guaratiba 17 alunos
Gustavo José Alberto ? 15 alunos
Augusto Candido Xavier
Cony
Santo Amaro 18,2 alunos
Januário dos Santos Sabino Santa Rita 14,75 alunos
Felipe de Barros Engenho Novo 14,25 alunos
109
Códice 11-4-10. Ensino Noturno. Sob guarda do AGCRJ.
110
Retirada de ofícios enviados por professores à inspetoria de instrução.
149
José Carlos D’Alambary
Luz
Paquetá 17,4 alunos
? Glória 35,75 alunos
José João de Póvoas
Pinheiro
Engenho Velho 21,75 alunos
José da Silva Santos Campo Grande 9,6 alunos
Adolfo Pereira dos Santos Jacarepaguá 15,4 alunos
Até maio de 1879, segundo estatísticas do ministério do Império, funcionavam na
Corte 10 cursos noturnos para adultos, sendo a frequência de 8 deles totalizada em 212
alunos. Porém, em ofício de 10 de novembro de 1879 o governo imperial declara que por
falta de verbas deveriam ser fechados os cursos noturnos em funcionamento nas escolas
públicas. Vários professores de tais cursos enviam ofícios à inspetoria geral de instrução
propondo-se a continuidade das aulas por conta própria. Em meados de 1881, estes
professores que se dispuseram a trabalhar sem receber as devidas gratificações, voltam a
solicitar subvenções. Este fato foi relatado pelo inspetor da instrução, Barão Homem de
Mello em maio de 1880 contando o fechamento de 16 cursos que funcionavam em
escolas públicas cuja frequência era de 300 alunos.
Nesse momento, o governo passa a pedir mais informações sobre os cursos antes
de conceder as subvenções, ressentindo-se de possíveis fraudes. As subvenções voltam a
ser concedidas por aviso do ministério do Império, de 4 de outubro de 1881, com a
ressalva de não se deixar livre ao arbítrio dos professores a abertura dos cursos.
Em 1882, observa-se um novo movimento de expansão dos cursos públicos. Em 4
de março deste ano, o inspetor geral de instrução envia ofícios para várias freguesias
consultando se seria possível abrir cursos noturnos além dos que existiam. O relatório
da inspetoria geral, de maio de 1882, é pessimista em relação aos cursos noturnos.
Afirma não ser nova a idéia de tais cursos, que já existiam muito antes do decreto nº 7031
A de 6 de setembro de 1878. Diz que os cursos só têm sucesso em áreas urbanas, e os que
prosperaram foram os de associações e sociedades: Imperial Lycêo de Artes e Officios,
Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, Lyceo Literário Portuguez, Sociedade
Propagadora da Instrução às Classes Operárias da Lagoa e Associação Promotora da
150
Instrução. Em 1883, segundo relatórios ministeriais, computavam-se 9 cursos noturnos,
sendo 3 em escolas públicas, 2 promovidos pela Câmara Municipal e 4 promovidos por
associações. Em 1886 este número cai para 6, entre eles 4 cursos público e 2 particulares
subsidiados. As respostas a tal relatório remetida por delegados de instrução das
freguesias à inspetoria revelam que os cursos tinham proveito e faziam falta para as áreas
suburbanas e também nas áreas urbanas onde foram extintos. Esse é o conteúdo de ofício
remetido pelo delegado da freguesia do Espírito Santo, Joel Alves Pereira, à inspetoria de
instrução em 10 de junho de 1882. Ele alega que:
Não existe atualmente nesta freguesia do Divino Espírito Santo,
nenhum curso noturno para adultos, mas pelo que observei, quando
funcionaram dois sustentados pelo governo, é de esperar que seja de
muita vantagem a sua nova criação. Porquanto vi aproveitando da
instrução dada desta sorte muitas pessoas que continuariam em plena
ignorância, vi o pequeno negociante, o quitandeiro,o artista, o caixeiro
aproveitarem-se da noite para receberem instrução, e se não é possível
afirmar de um modo definitivo a utilidade de semelhantes escolas
porque aqui funcionaram por pouco tempo, não posso deixar de julgar
que é muito necessário um nova criação, ao menos como ensaio
111
.
Nos últimos anos do Império, em relatório referente ao ano de 1887, constava a
existência de 6 cursos noturnos, cuja frequência média foi de 155 alunos. Tendo o
relatório sido apresentado no ano de 1887, informa que de tais cursos continuava, em
1888, somente o da Sociedade Propagadora da Instrução às Classes Operárias da Lagoa.
Conforme o ministro:
Os outros que se achavam estabelecidos nas paróquias do
Sacramento, Engenho Novo, Campo Grande e Jacarepaguá
112
, deixaram
111
Códice 11-4-10. Ensino Noturno. Sob guarda do AGCRJ.
112
As freguesias de Campo Grande e Jacarepaguá faziam parte das suburbanas. Segundo Noronha Santos, a
população de Campo Grande era de 16.900 habitantes, dados do censo do distrito federal terminado em
dezembro de 1890. A maior parte dos habitantes era constituída por pobres lavradores e pequenos
comerciantes. Campo Grande possuía comércio e algumas lavouras, pequenas plantações de cana-de-açúcar
em sítios e duas fábricas, uma de cerâmica e uma de tecidos no povoado de Bangú, habitado pelos
operários. “Outrora existiam na freguesia importantes fazendas de gado. Hoje, seus campos estão desertos
por falta de braços para o trabalho” (SANTOS, 1965). Segundo o mesmo censo, Jacarepaguá possuia em
média, 17.000 habitantes, com uma produção de aguardente, lenha, carvão, milho, ervas e frutas.
Sacramento e Engenho Novo estavam mais próximas da área central, possuindo maior população e mais
infraestrutura. Engenho Novo é caracterizada por Santos como “vasta e populosa freguesia”, onde havia
casas de comércio, e ao contrário da lavoura, que era insignificande, a indústria era boa, com bem montadas
oficinas de chapéus, águas gasosas, fósforos, gelo e manteiga. Possuía iluminação pública, água encanada e
esgoto. Porém, o autor chama atenção de que até 40 anos atrás, ou seja, na década de 1860, este era um
povoado sem importância, retalhado por fazendas e sítios de austeros senhores de escravos. A freguesia do
Sacramento possuía 33.000 habitantes, animado comércio e prédios públicos. É interessante notar que o
151
de funcionar no corrente ano letivo, conforme resolveu meu antecessor
a vista da informação da inspetoria geral de instrução pública no sentido
de não terem os mesmos cursos apresentado resultados satisfatórios
113
.
E assim, sem mais explicações são suprimidos. Enquanto nós, que procuramos tal
história, ficamos sem saber o que significaria ser ou não um curso noturno de instrução
primária para adultos satisfatório? Satisfatório para quem? Mas não com o que se
surpreender, em se tratando de uma dádiva, como próprio do que é dado, pode ser tirado
a qualquer momento. Qual terá sido a reação dos trabalhadores estudantes dos cursos
suprimidos? Também os considerariam insatisfatórios? Seu juízo não consta nos ofícios
arquivados. Mesmo frente à essa escassez de fontes sobre a interferência dos estudantes
na história das escolas noturnas de instrção primária da corte, procurei formas, ainda que
precárias de caracterizá-los. Comecemos com a pista dada pelo relatório de viagem do
inspetor da instrução da província de Pernambuco. Segundo Uchôa Cavalcanti, o público
das escolas noturnas era constituído não por adultos, mas também pelos filhos dos
artistas e aprendizes. Diferente dos legisladores do império como José Bento da Cunha
Figueiredo, João Alfredo Corrêa ou o próprio Leôncio de Carvalho, o pernambucano não
colocava objeções à frequência de meninos. O objetivo dessas aulas era “facilitar o
ensino aos que não podem frequentar as classes diárias e diurnas”. Como existissem os
impedidos de usufruir mesmo das aulas noturnas, a província de Pernambuco instituíra as
escolas dominicais, para os empregados em “serviços industriais e artísticos que
excedessem as horas do dia”. Nessas instituições priorizava-se a instrução primária, mas
era comum que fossem usadas como aulas de “reforço”, onde aqueles que, em algum
momento, tiveram mantido contato com a leitura e escrita, poderiam relembrar e
aperfeiçoar seus conhecimentos.
As escolas noturnas e dominicais podem ministrar o ensino dos
três graus e acharão sempre discípulos entre os adultos e meninos que
de dia tem ocupação e ofícios, isto é, podem, e devem servir aos
analfabetos, e ao mesmo tempo prestar grande utilidade como cursos de
repetição para que os que apesar de haverem frequentado escola, pouco
hajam aproveitado, ou, distraídos pelos trabalhos manuais, tenham
autor apresenta, em sua descrição, o número de escolas de cada freguesia, atribuindo importância ao ítem
instrução como fator de desenvolvimento urbano.
113
Relatório do Ministro dos Negócios do Império, José Fernandes da Costa Pereira Junior, 1888.
Disponível em http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/hartness/minopen.html.
152
perdido o que chegaram, a saber, e sintam a necessidade de
reaprender
114
.
O caráter de aula de repetição foi um dos dados significativos que pude extrair do
livro de matrículas da escola noturna de o Sebastião, promovido pela Câmara
Municipal. A análise deste livro foi adotada como forma de me aproximar do perfil dos
trabalhadores estudantes. Não informações detalhadas de seu cotidiano, tampouco
estas são uma auto-imagem, ao contrário, são dados pessoais para fins burocráticos
registrados pelo professor da escola. Dos documentos pesquisados foi onde mais esta
população deu-se a ver. Além do livro de matrículas de São Sebastião, foram encontrados
alguns outros mapas de turma das escolas do ministério do Império, dispersos entre
ofícios do códice do ensino noturno.
O livro contém matrículas dos anos de 1884 a 1893, em 140 ginas numeradas.
Destas 140 indicadas na abertura do livro, foram conservadas 92, rubricadas pelo inspetor
das escolas municipais, enquanto o primeiro professor a preencher é Gregório de Oliveira
Pacheco que, a julgar pelas mudanças na caligrafia, será mais tarde substituído. As
suscintas informações sobre os alunos podem nos revelar um pouco de sua condição
social, ainda um pouco da dinâmica do curso e os progressos feitos pelos estudantes em
seu aprendizado que se dava pelas seguintes matérias
115
: na segunda feira, caligrafia,
leitura e ditado; na terça feira, caligrafia e aritimética; na quarta feira, caligrafia, leitura e
gramática (de cor) e ditado; na quinta feira, caligrafia e aritimética e na sexta feira,
caligrafia, leitura, gramática (análise). Tal currículo permite pensar que a preocupação do
curso era maior em relação aos aspectos formais da “alfabetização”, o que fica
configurado no maior tempo dispensado à caligrafia, para boa formação de “escreventes”,
em detrimento do tempo dispensado à leitura e aritmética, logo um menor investimento
em análise e raciocínio lógico.
Os dados que compõe o livro são: o nome, idade, grau de instrução, profissão,
residência, época de matrícula. Procurei destacar entre eles, o número de inscrições
114
Instrução Pública. Estudo sobre o systema de ensino primario e organização pedagógica das escolas da
Côrte, Rio de Janeiro, São Paulo e Pernambuco. Relatório apresentado ao Presidente de Pernambuco.
Autor: João Barbalho Uchôa Cavalcanti, Inspetor Geral de Instrução Pública da Província do Recife. Typ.
de Manoel Figueiros de Faria e Filhos, 1879.
115
A lista de disciplinas foi encontrada anotada na contracapa do livro de matrículas, esquematicamente
distribuídas entre os dias da semana.
153
anuais e os meses em que ocorrem; o levantamento da faixa etária dos alunos,
classificada entre os intervalos de 10 a 15 anos, 16 a 25 anos e maiores de 26 anos. A
idade foi relacionada com a escolaridade Também destaquei as escolaridades seguindo a
classificação dos próprios professores em analfabetos, os que sabem silabar e os que
sabem ler. Foi avaliada a modificação do grau de escolaridade para os mesmos alunos na
decorrência da frequência ao curso, para tanto foi preciso conferir os nomes que se
repetiam entre um ano e outro procurando perceber o índice de continuidade dos alunos
no curso. Foram observadas também a naturalidade dos alunos, quais as mais frequentes
e qual sua relação com os graus de escolaridade. Da mesma forma, as profissões foram
listadas e correlacionadas com a escolaridade, ao mesmo tempo em que foram marcados
os nomes sem sobrenome, notando a presença de 5 prováveis matrículas de escravos.
A escola de São Sebastião possui, para o intervalo abarcado pelo documento, um
elevado número de matriculados quando comparamos a alguns cursos noturnos do
ministério do Império, em período próximo. No ano de 1885, temos em São Sebastião,
152 matrículas, em 1887, 204 inscritos e em 1889, 177. Entre os anos de 1881 e 1882 as
escolas públicas da freguesia da Glória, Guaratiba e Jacarepaguá, tinham uma média de
23 alunos. Consta nos relatórios ministeriais que os cursos das associações beneficentes
como da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional e a Associação Promotora da
Instrução na própria freguesia da Glória, também possuiam um número maior de
inscrições, 240 na primeira e 186 na segunda. Não pude obter comprovações dos motivos
para tal diferença, mas suponho que seja motivada pelo fato dos cursos das associações e
da câmara municipal terem um maior tempo de existência, sendo portanto mais
consolidados e de maior credibilidade, fator importante para a tênue permanência de
estudantes adolescentes e adultos trabalhadores em uma escola após um dia inteiro de
trabalho.
Em São Sebastião as matrículas eram aceitas durante o ano inteiro, exceto o mês
de dezembro, sendo o maior afluxo de alunos no início e meio do ano, o que denota um
esforço para trazer estes homens às aulas, num contexto onde a escola ainda não está
profundamente enraizada como parte dos hábitos da população, e pelo contrário, faz-se
necessário instituir sua obrigatoriedade para ser amplamente frequentada. Cabe lembrar
que ao alto número de matrículas não correspondia necessariamente a frequência dos
154
matriculados, sendo possível a existência de rotatividade entre os participantes. Em
avaliação otimista da conjuntura educacional do ano de 1877, o inspetor de instrução
primária e secundária do município da Corte, José Bento da Cunha Figueiredo, afirma
que o quadro da baixa frequência às escolas tendia se reverter.
O desejo de aprender vai se desenvolvendo consideravelmente em
todas as clases da sociedade, e o pejo de não saber ler nem escrever
alcança mesmo a gente defavorecida da fortuna e chego a persuadir-me
que, sem ser, talvez, necessário empregar os meios diretos de coerção,
que até hoje não tem sido possível por em prática, bastará usar dos
indiretos, tais como, auxiliar os alunos indigentes para que possam
frequentar as aulas, privar do gozo de certos direitos sociais os que não
souberem ler nem escrever, porque dar o direito de sufrágio a um povo
ignorante e analfabeto é o mesmo que levá-lo hoje a anarquia e amanhã
ao despotismo, invocar a solicitude dos párocos para que oportuna e
importunamente procurem convencer os seus fregueses de quanto são
criminosos os pais que descuram a educação de seus filhos
116
.
Apesar do otimismo, não são descartados meios de coerção e imposição da
obrigatoriedade escolar, ainda que não fossem “coerções diretas”. Se a escola era um
espaço distante para as crianças, que desde sua implantação foi o público para qual ela se
voltou prioritariamente, podemos supor que para os adultos havia entraves muito maiores
ao ingresso e os dados do livro comprovam que a faixa etária de menor presença nas
aulas noturnas era a de maiores de 26 anos. Mesmo assim, a permanência dos estudantes
da escola municipal entre um ano e outro não foi insignificante. Entre o ano de 1885 e
1886 permaneceram na escola 32 alunos, ou seja, aproximadamente 21% da turma do ano
de 1885. Entre o ano de 1887 e 1888, permaneceram 40 alunos, o que representa 20% da
turma de 1887, enquanto em 1889 permaneceram 31 alunos ou 24% dos alunos de 1888.
Qualitativamente observa-se que esta continuidade é bem maior entre os alunos que
sabem ler, o que corrobora a hipótese do uso deste curso mais como repetição que como
alfabetização propriamente. Entretanto, é possível observar elevação do grau de instrução
para os iletrados ou semi-letrados que permanecem de um ano a outro. Não é possível
julgar, com os dados disponíveis, a eficácia das estratégias de alfabetização deste curso,
porém podemos ver repetido aqui o problema comum da expulsão dos inadaptados à
escola. Os alunos que conhecem a linguagem da escola, a linguagem letrada, ambientam-
116
Relatório do Ministro dos Negócios do Império, Leôncio de Carvalho, 1877. Disponível em
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/hartness/minopen.html
155
se ali e permanecem, buscando ascenderem, mas os que não aprendem, e sentem-se
intimidados por um ambiente onde têm seu saber diminuído e seus movimentos
cerceados. Em pleno final do século XX
117
, quando já temos a escola consolidada como
necessidade da vida social, tendo sido bandeira de luta e reivindicação de vários setores
por democratização dos benefícios sociais, ainda vemos a desistência dos estudos como o
ato mais comum entre adultos iletrados, podemos supor que num momento em que a
escola é um espaço estranho, com um discurso iluminista de regeneração da ignorância
popular, onde estas classes populares eram vistas de forma totalmente pejorativa, como já
foi observado no capítulo anterior, é de se esperar não haja um afluxo muito grande deste
público.
No sentido de que são os mais ambientados à escola que a ela se dirigem, temos
os seguintes números: a média de alunos analfabetos do curso aqui analisado é de 40,4, o
de semi letrados é de 20,6, e a média dos que já sabiam ler quando matriculados é de
93,2. Em relação à suas idades, fica provado que a maior parte dos frequentadores é de
jovens e não propriamente de adultos. A faixa etária mais presente nas matrículas é a que
vai de 16 a 25 anos, seguida de perto pela que vai dos 10 aos 15 anos. Foi constatado
número relevante de meninos de 10, 11, e 12 anos, e o número de indivíduos acima dos
117
O livro “A vida na escola e a escola da vida” realiza, em 1987, uma análise bastante crítica do problema
do “fracasso escolar”, mostrando como a chamada “evasão” é, na verdade, uma “expulsão” das “classes
populares” do interior de uma escola que não foi feita para elas. Transcrevo um trecho que trata exatamente
desta questão:
“O número de alunos que vão sendo reprovados e expulsos da escola ao lonngo dos anos é assustador. No
entanto essas reprovações não atingem da mesma maneira crianças de diferentes meios sócio-culturais. De
fato, são, sobretudo as crianças provenientes das camadas populares e do meio rural que fracassam na
escola e são forçadas a interromper seus estudos. Evidentemente essas crianças constituem a grande
maioria da população de nosso país e são elas justamente que mais precisam da escola para poder melhorar
de vida. São os pais das crianças que fracassam os que mais fizeram sacrifícios para que seus filhos
pudessem estudar. Foram eles que lutaram e, por vezes esperaram anos ate conseguir vaga para matricular
seus filhos. Foram eles que passaram dificuldade para comprar cadernos e uniforme. Foam eles que
sofreram ao ver seus filhos serem reprovados e obrigados a repetir o ano. (...)
As crianças saem da escola, mas levam consigo a marca e a humilhação do fracasso: saem convencidas de
que fracassaram porque são menos bem dotadas, menos inteligentes e capazes que os outros. (...)
Na verdade, muitos dos problemas apontados acima poderiam ser resolvidos se a escola tivesse uma outra
atitude em face da pobreza. Até hoje a escola tratou a pobreza como se ela fosse culpa dos pobres, um
defeito de nascença que vem atrapalhar o trabalho na escola. E, de fato, atrapalha, porque a escola não
foi pensada para os pobres. A escola foi pensada para uma criança ideal, uma criança que não trabalha, uma
criança que fala bonito, uma criança que pode estudar em casa com calma, etc. Em suma, a escola não foi
pensada para maioria, mas sim para os filhos de uma elite que por definição são muito poucos. Quando os
pobres, as crianças da periferia e das zonas rurais entram para a escola, eles ficam deslocados, não
conseguem aprender e passam a constituir um problema. Então, a solução mais fácil é acusar a pobreza
pelo fracasso dos pobres. “Não aprendem porque estão com fome, não aprendem porque têm problemas em
casa, não aprendem porque ‘falam errado’, etc., etc. e etc.”.
156
26 anos é significativamente menor, sendo a idade mais avançada encontrada, a de 51
anos. Este perfil é confirmado pelos mapas de turma das aulas da Sociedade Auxiliadora
da Indústria Nacional, das escolas públicas da Glória, Jacarepaguá e Guaratiba, onde
estava matriculado um menino de apenas 9 anos.
A heterogeneidade da turma que se revelava pelas variadas idades dos alunos,
também tocava as profissões ali existentes. Num período em que as indústrias
mecanizadas ainda estão longe de constituírem a principal fonte de trabalho, criando uma
classe operária alienada dos meios de produção e dos conhecimentos necessários a ela,
vemos no Brasil um conjunto de trabalhadores da manufatura, com formações
profissionais, ou funções sociais bem específicas. Já podemos encontrar o uso dos termos
operário em comum com o termo jornaleiro, e ainda artistas e artífices, estes designando
um trabalhador especializado em seu ofício artesanal.
Entre as diversas ocupações dos alunos dos cursos noturnos na escola de São
Sebastião, encontramos mais frequentemente, os carpinteiros, caldeireiros, cozinheiros,
empregados públicos, encadernadores, ferreiros, empregados em comércio, marceneiros,
pedreiros, servidores domésticos, tipógrafos, torneiros, além dos simplesmente
designados como operários, que inclusive foram os mais presentes entre as matrículas.
Encontramos ainda os apenas “estudantes”. Na relação ocupação e escolaridade
encontramos um maior grau de letramento entre os artistas (ao contrário dos operários),
compositores, empregados na estrada de ferro, empregados públicos, encadernadores,
estampadores, impressores, sacristãos, e tipógrafos, além dos próprios estudantes”. O
menor grau de letramento estava entre os cocheiros, copeiros, funileiros, trabalhadores da
lavoura, mascates e servidores domésticos.
Este mesmo cálculo foi feito em relação à naturalidade dos alunos, revelando-se
mais frequentes os vindos da própria Corte, da província do Rio de Janeiro, de Portugal,
da Bahia, da província de São Paulo, de Minas Gerais, Maranhão e Ceará. Mas
encontramos algumas presenças inusitadas, como 3 africanos, norte americano, um belga,
um paraguaio e espanhóis e italianos em maior número. Entre os seis estados mais
presentes, o grau de letramento decrescia na seguinte ordem: o Rio de Janeiro era a
província de maior número de letrados, em segundo vinha a Corte, a Bahia, Portugal, São
Paulo, empatados Ceará e Maranhão, e por último, Minas Gerais. Entre estrangeiros, os
157
africanos, o belga, dois italianos, um norte americano e um paraguaio eram iletrados,
enquanto os demais sabiam ler.
Sem poder comparar as informações obtidas no livro de matrículas da escola de
São Sebastião com as equivalentes de outros cursos é preciso ter cuidado ao tecer
generalizações, por isso este caso é tomado aqui como realidade pontual sem deixar
porém, de lançar algumas luzes sobre as escolas noturnas existentes, pelo menos nas
freguesias urbanas do Município Neutro. Mas mesmo um documento “sobre os alunos”
ainda não é um documento “dos alunos”, e continuamos sem ter acesso à sua versão da
história das aulas noturnas. Pudemos saber que nelas conviviam crianças, jovens e
adultos, estrangeiros, homens nascidos na localidade, e os vindos de outras províncias,
executores dos mais diversos trabalhos. Um curso onde havia empregados blicos que
sabiam ler e caixeiros analfabetos, meninos de 12 anos com instrução mais elevada que
senhores de 51 anos, todos ligados por um impedimento o trabalho manual, distanciado
dos saberes da escola e reconhecido como seu verdadeiro papel na sociedade. A escola
noturna constituia-se como espaço dos que não tinham: os que não tinham tempo pela
manhã, os que não tinham mais idade para frequentar as escolas públicas de meninos, e
quem sabe, por aqueles não ambientados às escolas diurnas de meninos, entre sujeitos de
condições sociais mais elevadas, o que poderia explicar a existência de estudantes”
designados entre as ocupações no livro de matrículas.
Mesmo não tendo as atribuições mencionadas características de uma
escolarização convencional, os alunos dos cursos noturnos podem ser destacados da
condição da maior parte dos sujeitos das classes populares. Cabe lembrar que frente a
baixíssima taxa de alfabetização da época, a instrução possuía um significado que não
possui mais hoje, de possibilitar alguns benefícios sócio-econômicos, além da “inclusão
política”, após a reforma eleitoral que excluiria o analfabeto do direito do voto.
118
Nesse
sentido, é possível que estes homens se dispusessem a entrar em uma sala de aula, após
um dia inteiro de trabalho, permanecerem sentados durante duas horas, realizando
exercícios de ditado e caligrafia, sob a luz fraca da lamparina, entre as idas e vindas de
um professor que se desdobrava para atender sujeitos de graus de conhecimento distintos
sobre a matéria ensinada, tudo isso por que? É possível que alguns sofressem certa
118
Ressalto que se trata de uma inclusão no critério do direito ao voto, e não no poder decisório efetivo.
158
pressão de patrões, como podemos inferir dos discursos da Sociedade Auxiliadora da
Indústria Nacional, exortando os donos de fábricas e mestres de oficinas a mandarem
seus empregados às aulas noturnas da Sociedade. Mas é possível que estes homens
buscassem ali uma possibilidade de ascensão social, ainda que restrita, através do próprio
trabalho, uma vez que estes cursos eram vistos, pragmaticamente, como forma de obter
conhecimentos elementares requisitados ao ingresso em algumas poucas escolas
técnicas” existentes na Corte, como o Lyceo de Artes e Officios, onde poderiam se
aperfeiçoar e se tornarem mais aptos à inclusão no mercado de trabalho assalariado em
formação, em uma cidade que crescia e se modernizava, deixando cada vez menos espaço
para os pequenos ofícios de conserto de panelas, pregar botões em roupas, ou ir de porta
em porta vendendo suas “utilidades”, e também para os que veriam sua terra expropriada
pela urbe em expansão, todos em busca das instáveis condições de subsistência.
Vida instável de homens pobres, como instável era a sua escola, fruto de
“dádiva”, instrumento de controle e formatação das classes populares, as aulas noturnas
chamadas de “liberais” eram um “presente dos benfeitores”, ou uma “missão dos
intelectuais iluministas”, por vezes uma necessidade de complementação dos baixos
ordenados de professores, mas não uma conquista das classes populares. Fossem elas
ressignificadas por sujeitos destas classes, fossem elas apropriadas por trabalhadores
iletrados ou semi- letrados, não era esse seu projeto político-pedagógico. A almejada
inclusão liberal que constava em tal projeto era sob uma forma subalterna, na qual o
trabalhador adquiria sua cidadania bem situada em “seu lugar” de homem que não pensa,
e só executa, de homem que não tem desejos, mas obrigações. Obrigação de servir
durante o dia, gerando o lucro de seus patrões, por vezes eles mesmos beneméritos
apoiadores de escolas para pobres, obrigação de se instruírem nas primeiras letras e na
“boa moral” durante a noite, pagando com suas horas de descanso o aperfeiçoamento e
aumento da utilidade de seus corpos para o trabalho. Infelizmente não foi possível, no
espaço dessa pesquisa, depara-me com qualquer indício de um projeto político
pedagógico que rivalizasse com este, e parece distante o momento em que “educação
popular” ganharia o sentido não de conformação, mas de contestação da ordem social e
instrumento de sua transformação. Não foram aqui estudadas, nem tampouco encontradas
referências para o período, de escolas do movimento operário, cuja corrente principal no
159
Brasil o anarcosindicalismo
119
, no momento imediatamente posterior ao que trata este
trabalho, tinha forte atuação educacional.
Termino, entretanto, este texto, citando uma experiência distante em tempo e
espaço do seu objeto, mas que pode nos ajudar a refletir sobre o caráter progressista ou
conservador da política de escolas noturnas para trabalhadores. Refiro-me a uma
experiência vivida por sindicatos italianos no início da cada de setenta do século XX.
Este foi um projeto que contou com a participação do IDAC
120
(Instituto de Ação
Cultural), e foi relatado no livro “Vivendo e aprendendo: experiências do IDAC em
educação popular”. Sob o título “Conhecer para transformar: os operários italianos
compõe uma sonata para os patrões”, Miguel Darcy de Oliveira descreve o projeto das
“150 horas”. Ele começa por esclarecer que este não era realizado no âmbito escolar, mas
contestava a própria escola e ao mesmo tempo reivindicava o direito ao estudo e acesso à
cultura. Outra característica fundamental era de ser proposto e movido pelos próprios
sindicatos, e não pensado de fora “para eles”. Tal experiência foi possível em um
contexto de lutas mais amplas que as geralmente empreendidas apenas por questões
salariais e de defesa de postos de trabalho. O movimento operário encontrava-se, então,
numa situação em que os salários industriais, mal ou bem, estavam acima da linha de
sobrevivência. “Os operários foram se dando conta de que seu interesse profundo não se
esgotava em ganhar mais, mas incluia uma série de outros aspectos ligados à melhoria
das condições de trabalho, à preservação de sua saúde, à conquista de um maior poder de
decisão e de liberdade, que se traduziam em viver melhor”
121
. Assim empreendem a luta
contra sua coisificação, não por inclusão na ordem capitalista e na sociedade de consumo,
mas pela modificação desta. Com tais objetivos as 150 horas constituíam-se em uma
cláusula no contrato nacional de trabalho assinado pelos metalúrgicos italianos em 1973,
que os dava direito à utilização de até 150 horas, num prazo de três anos, deduzidas do
tempo de trabalho e pagas pelo patrão para sua formação.
119
Sobre o anarcosindicalismo no Brasil ver, A invenção do trabalhismo, de Ângela de Castro Gomes, um
livro clássico sobre a formação da classe operária brasileira. Ver também a dissertação de mestrado de
Carlos Augusto Addor, Rio de Janeiro, 1918: A Insurreição Anarquista. UFF, 1985.
120
O IDAC era um centro de pesquisas e intervenção pedagógica criado na década de 1960, em Genebra,
por um grupo de brasileiros exilados, que tinham como referência a “Pedagogia do Oprimido”. Entre eles
estava Paulo Freire, Rosiska Darcy de Oliveira, Miguel Darcy de Oliveira e Claudius Ceccon.
121
CECCON, Claudius; OLIVEIRA, Miguel Darcy; OLIVEIRA, Rosiska Darcy. Vivendo e Aprendendo.
Experiências do idac em educação popular. 8ª ed. São Paulo, Brasiliense, 1985. P. 19
160
“Os patrões mostraram-se receptivos à proposta, desde
que a formação seja entendida como simples requalificação
profissional e desde que os “cursos” sejam administrados por
organismos oficiais. O sindicato por sua vez considera ambos os
pontos inegociáveis. (...)
[Para o sindicato] elas não se confundem, de maneira
nenhuma, com os cursos tradicionais de formação técnica e
profissional, ministrados pelas próprias empresas ou por
organismos oficiais, que visam a fornecer a cada operário
determinadas qualificações que lhe permitem uma ascensão social
individual. Por outro lado, o movimento operário reivindica
também para si a gestão desta conquista coletiva. Serão os
próprios trabalhadores a decidir soberanamente o que querem
estudar.
‘Então vocês querem que nós paguemos os operários para
que eles aprendam a tocar violino?’, perguntaram ironicamente os
patrões. ‘Exatamente’, é a resposta dos sindicatos, ‘para que
possamos compor uma sonata para os senhores’”.
Não pretendo, aqui, desonsiderar indevidamente a separação espaço temporal que
faz surgir uma experiência com esta, fruto da politização e da construção histórica do
movimento operário, que do momento de seu surgimento até aproximadamente meados
do século XX, esteve marcado por certo pragmatismo econômico “trade-unionista”, em
que pese a existência de tendências revolucionárias atuantes em seu interior, e as
diferenças de configuração deste movimento de país a país. Busco apenas um termo de
comparação em projetos de educação envolvendo trabalhadores, e as “150 horas” têm a
capacidade de nos fazer perceber que a escolarização compensatória” para os
“deserdados da sorte” não muda tal sorte, ao contrário, exaure estes trabalhadores, pois as
horas que lhes faltam ao estudo, e são para tal retiradas de seu descanso, são as que
constituem, de acordo com uma teoria também oitocentista, a “mais valia” extraída por
seus patrões, o que não os faz “deserdados da sorte”, mas sim expropriados de seu
trabalho. Fazendo os patrões pagarem por suas horas de estudo, os italianos teriam
mostrado que o trabalhador não necessita de uma educação qualquer, mas de uma
realizada sob seu próprio projeto político pedagógico.
Na sociedade brasileira e fins do século XIX, em que se dava o progressiva
abolição do escravismo e formação de um mercado de trabalho capitalista, carregando,
ainda, os ranços das relações escravistas, fundada na concentração da propriedade,
161
principalmente a fundiária, e em uma série de hierarquias e preconceitos, marcadamente
os de cor da pele e origem social, era propalado nas seções da câmara e do senado, bem
como nas páginas da imprensa, a necessidade da instrução redentora, quando as teorias de
intelectuais europeus e brasileiros atestavam sua capacidade promotora do progresso,
porém quando a prática cotidiana não poderia esconder o fato de que a instrução e a
educação, entendidas sobretudo como sinônimos de escola, não transformam a vida de
uma sociedade, ainda que em alguns casos transforme a vida de certos indivíduos.
Mantendo em seu interior as condições e valores de sua formação social, a escola
moderna premia alguns poucos e pune outros muitos. Ela constituiu-se desde sua
implantação num dos parâmetros de hierarquia mais naturalizados, quanto mais
“objetiva”, “democrática” e “includente pretendia ser, contribuindo para justificar
desigualdades que provém de seu exterior, e reforçá-las, criando uma “camada
amortecedora” dos conflitos, composta pelos indivíduos que sonham por seu próprio
mérito elevarem-se acima de suas próprias condições sociais.
162
Considerações Finais
Procurei neste trabalho disponibilizar informações que contribuíssem para a
caracterização da experiência histórica das escolas noturnas de instrução primária da
Corte no período de fins de 1860 a 1889, como modalidade de educação para o povo.
Ordenei tais informações de acordo com a tese central de que tais escolas davam
existência a um rojeto político-pedagógico que chamei de elitista, enumerando seus
principais objetivos. E cheguei à conclusão, subsidiária da tese de Michel Foucault em
Vigiar e Punir, que tal projeto é contradito pela prática das escolas, e seus objetivos não
correspondem à seus resultados, à medida que tais escolas não logram difundir a
instrução entre as classes populares, mas sim criar novos critérios de segregação política,
econômica e social ditados pelo grau de escolarização; nesse sentido, a escola é uma das
principais tributárias da invenção do analfabeto.
Esta contribuição é, sem dúvida uma pequena parte das possibilidades de
exploração da história da educação para jovens e adultos trabalhadores, e mesmo da
própria experiência das escolas noturnas que ultrapassa mesmo o recorte temporal aqui
adotado. Porém entre os maiores limites deste trabalho detecto a falta muito sentida de
uma maior aproximação com os alunos dos cursos noturnos. Eliane Perez, em seu
trabalho sobre os cursos noturnos da Biblioteca Pública Pelotense, detectou a mesma falta
e tentou solucioná-la de algum modo cruzando dados destes alunos com os de
participantes de associações populares. Entre as possibilidades de expansão desse limite
163
em pesquisas futuras está a busca desses sujeitos em outros espaços sociais a que
pertençam, buscar um conjunto maior de documentos, visitando outros arquivos ou
parcela maior dos visitados, um espectro maior dos inúmeros jornais editados nas
últimas décadas do século XIX, ou mesmo fontes alternativas como a literatura, os relatos
de viajantes, gravuras da época etc. Poderiam, ainda ser realizados maiores investimentos
sobre a trajetória de alguns dos “beneméritos”, ou sobre algumas das associações
beneficentes e suas instituições, pelos quais viesse a ser discutido mais detidamente o
sentido dessa filantropia na educação.
Diante do difícil momento de dar uma conclusão ao trabalho, difícil por achar que
se deixa para trás muitas lacunas, e ao mesmo tempo por achar que tudo que poderia ser
falado já o foi ao longo do texto, gostaria de ressaltar a importância do lançamento de um
olhar da história da educação sobre a temática da educação popular. Tema ainda pouco
visitado por este campo, é um sério problema para a sociedade brasileira. Meninos,
meninas, adolescentes e adultos têm passado, em média, quatro horas de seus dias no
interior de escolas onde aprendem que não são capazes de alcançar os saberes ali
oferecidos, ou que estes saberes tampouco farão diferença em suas vidas. Sendo assim,
passam a esperar, arrastados pelo mecanismo das normas escolares, um papel que
certifique a conclusão do ensino fundamental ou médio para em seguida lançarem-se (os
que ainda não estão) à disputa por precárias vagas no mercado de trabalho. Serão
empacotadores, caixas de supermecado, atendente de telemarketing, auxiliar de serviços
gerais, empregados domésticos, seguranças de firmas particulares etc. Funções onde terão
muitas horas de trabalho e pouca remuneração, sobrando-lhes pouca ou nenhuma
condição e perspectiva de continuar os estudos, ou de simplesmente procurar
compreender o mundo à volta, desfrutar dos bens produzidos pela natureza, pela arte e
pela ciência, numa existência de trabalho e consumo quase que compulsórios. Esta pode
parecer uma frase banal por já ter sido por algumas vezes repetidas com um certo tom de
alarmismo, mas seu significado para vida social é, de fato, estarrecedor. Muitos desses
meninos, meninas, adolescentes e adultos, após passarem parte significativa de seus dias
no interior da escola, recebem seus diplomas sendo analfabetos funcionais, conseguindo
com muita dificuldade interpretar um texto simples, ou expressar por escrito um
raciocínio próprio que coordene mais de uma frase.
164
Sem querer fazer um discurso facilmente identificado no interior da academia
como panfletário, gostaria de expor o problema que todos conhecem porque quando
um historiador reverte suas preocupações para determinado objeto, confere a ele uma
visibilidade e um status mais elevado, tanto maior quanto maior for o prestígio do
historiador e da instituição a qual está filiado. Além de promover o debate sobre o
problema, o conhecimento histórico tem outras contribuições importantes a dar ao campo
de saberes sobre educação popular, especialmente a educação de jovens e adultos, muito
comumente encarado sob perpectiva do pragmatismo e das resoluções imediatas. Uma
delas é a desnaturalização dos nossos próprios modelos educacionais, mostrando que
foram criados em dado momento, passaram por alterações e conservações ao longo do
tempo. Perspectiva esta que problematizaria a o recorrente idéia presente não no
pensamento educacional, como difundida socialmente, de que atraves de reformas,
quando bem dirigidas e administradas, o nosso sistema educacional será corrigido em
suas falhas, quando o estudo da história de tais reformas e do próprio surgimento deste
sistema nos mostra que estas falhas foram implantadas junto com ele, e fazem parte de
seu funcionamento.
Termino com as palavras de Josep Fontana sobre o compromisso do historiador
para com a sociedade que vive fora das classes universitárias
“Uma sociedade que tem problemas reais não de construção do
discurso e que podemos ajudar ensinando-a a entender criticamente o
marco das relações sociais em que vive e a livrar-se de picos e de
preconceitos.
(...) Que ninguém me diga que tudo isso deve ser analisado como
discurso e que a realidade que por trás dela é inapreensível, porque
aquilo de que se trata é que há, segundo as últimas cifras publicadas
pelo Banco Mundial, que são as correspondentes a 1995, países em que
homens e mulheres têm uma esperança de vida de somente 38 anos,
como na GuiBissau (enquanto em outros têm 80), que há países com
taxas de analfabetismo dos adultos de 86%, como a Nigéria, e países
como Zâmbia, onde mais de 80% está abaixo do limite da pobreza (o
quer dizer que ganha menos de um dólar por dia em termos de
equivalência aquisitiva). Mas a questão que mais nos importa como
historiadores, não é que ainda haja desigualdade, mas que esta continue
aumentando. (...)
Um dos grandes desafios que temos como historiadores é o de voltar a
metermo-nos nos problemas de nosso tempo como fizeram no passado
àqueles nossos antecessores que ajudaram a melhorar as coisas com seu
165
trabalho. Se os historiadores franceses do primeiro terço do século XX
estudaram a revolução de 1789 era porque queriam contribuir para fixar
os fundamentos das liberdades democráticas contra as forças que as
ameaçavam e não foi por acaso que, em 1940, os que defendiam uma
interpretação progressista da revolução aderiram a Resistência, e os que
a combatiam no terreno da história se aliaram aos alemães. (...)
Mas nem o método nem a história são o objetivo final do nosso
trabalho, são apenas ferramentas para tratar de entender o mundo em
que vivemos e ajudar os outros a entendê-lo, a fim de contribuir para
melhorá-lo, o que faz falta “
122
.
Os problemas de homens e mulheres concretos existiram no passado e continuam
existindo hoje, independentes de nossas análises ou teorias. São problemas muitos deles
tratados, talvez, desde o surgimento das ciências sociais, mas que continuam atuais na
vida social de nosso tempo. Tendo, como disse Fontana, a teoria como uma ferramenta, a
escolha em que empregá-la, e em certa medida, de como empregá-la é do próprio
cientista, ainda que este não se encontre livre de constrangimentos.
122
FONTANA, Josep. História Depois do Fim da História. São Paulo, EDUSC, 1998 p. 36-38.
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