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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
FRANCINETE FERNANDES DE SOUSA
A MULHER NEGRA MAPEADA: trajeto do imaginário
popular nos folhetos de cordel
Tese apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Letras, da Universidade
Federal da Paraíba, na área de concentração
Literatura e Cultura, como requisito para
obtenção do título de doutor em Letras.
Orientadora: Profª. Drª. Beliza Áurea de Arruda Mello
João Pessoa
2009
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1
FRANCINETE FERNANDES DE SOUSA
A MULHER NEGRA MAPEADA: trajeto do imaginário
popular nos folhetos de cordel
Tese apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Letras, da Universidade
Federal da Paraíba, na área de concentração
Literatura e Cultura, como requisito para
obtenção do título de doutor em Letras.
Aprovada em: 27 de março de 2009.
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2
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________
Profª. Dra. Beliza Áurea de Arruda Mello
(Orientadora)
__________________________________________
Profª. Dra.
Maria
Claurênia Abreu de Andrade
(Examinadora)
_________________________________________
Profª. Dra. Geralda Medeiros Nóbrega
(Examinadora)
__________________________________________
Profª. Dra. Liane Schneider.
(Examinadora)
__________________________________________
Prof. Dr. Valdeci Ferreira Chagas
(Examinador)
3
A meu pai, homem negro, pobre, que lutou pela vida
até o último momento e construiu, através do
exemplo, a minha carreira acadêmica e profissional.
Ele sempre me disse:
O
nde te disserem que o
chance, procure ali a tua chance.”
A Alberto Banal, filósofo brilhante, alma generosa,
profissional de sucesso que vem me possibilitando
uma leitura mais aprofundada do mundo.
À Joice Zadra Fernandes
Dedico
4
AGRADECIMENTOS ESPECIAIS
A Deus;
A Alberto Banal, pela leitura atenta do meu trabalho, fazendo duras críticas e
até reelaborando meu pensamento e meu texto; pela ajuda na elaboração das
tabelas e dos mapas, pelo paciente trabalho de fotografar cada página dos folhetos
que compuseram o corpus da pesquisa e pelo incentivo à disciplina e otimização do
meu tempo;
À professora orientadora Beliza Áurea de Arruda e Mello, pela generosidade
com que me acolheu como sua orientanda e pelo conhecimento, pela paixão e pela
clareza com que falou durante esses quatro anos sobre literatura popular; pela
leitura atenta de todo o material e as considerações sobre as contradições
existentes na tese;
Ao professor Andrea Ciacchi que leu os originais deste trabalho, fez críticas e
correções importantes, além de indicações bibliográficas preciosas;
Ao programa de Pós-graduação em Letras, principalmente à coordenadora,
Liane Schinader, que com sua objetividade me fez percorrer de forma adequada os
trâmites burocráticos para a conclusão do trabalho;
Ao meu amigo querido, Acácio Gouveia, que sempre acredita que eu irei
conseguir.
5
AGRADECIMENTOS
Aos funcionários das Instituições pesquisadas e aos poetas populares que me
concederam entrevistas e me ajudaram a construir o corpus da pesquisa;
Aos meus irmãos e amigos Fred e Fátima que ouviram, com generosidade,
falar sobre a pesquisa, como se isso fosse o que havia de mais importante no
mundo;
A João Irineu que não poupou esforços para me ajudar na revisão linguística;
À Suellen, pela adequação às normas da ABNT, e à professora Rejane, pela
revisão final do trabalho.
6
- Oxósse: okê,!okê! okê!
-Iansan: Epa Rei !
-Omulu: Atôtô!
Saravá!
7
RESUMO
Esta pesquisa propõe estudar a representação da mulher negra enquanto
personagem ficcional nos folhetos de cordel, procurando conjugar dois elementos: a
construção do imaginário e da memória sobre o universo dessa mulher, sob a ótica
do poeta popular; e a transposição dessas imagens para um conjunto de produções
literárias que circulam num universo onde a presença da oralidade é ou era
predominante. Para tanto, foi também necessário apreender qual a importância do
processo histórico regional na construção do imaginário dos poetas que assinam os
folhetos, pois eles constroem suas personagens negras e femininas com base em
estereótipos que são recorrentes na sociedade brasileira e parecem ser, no
Nordeste, bastante arraigados. A análise dessa produção foi assentada, também,
numa cartografia, com coordenadas cada vez mais verticalizadas, o que permitiu
localizar, no tempo e no espaço, as vozes autorais que têm por personagens ou
mesmo protagonistas, mulheres negras. Finalmente, foi proposta uma classificação
dos folhetos a partir de categorias analíticas peculiares ao corpus que, por sua vez,
é constituído por 36 folhetos, selecionados a partir de pesquisa bibliográfica que se
deu fundamentalmente na Biblioteca Átila Almeida (da Universidade Estadual da
Paraíba) onde foram compulsados mais de 8 mil folhetos.
Palavras-chave: Literatura de cordel. Mulher Negra. Preconceito.
8
ABSTRACT
This research intends to study the representation of the black woman as a character
in the Cordel literature, trying to combine two elements: the construction of the
imaginary and of the memory in the universe of this woman as a popular poet, and
the transposition of these images into a set of literary productions that circulate in a
world where the oral tradition is or was predominant. Therefore, it was necessary to
note the importance of the regional historical process in the creation of the world view
of the poets who wrote these sheets/brochures, as they base their black and
feminine characters on stereotypes that are recurrent in the Brazilian society and
seem to be deeply rooted in the north-eastern areas. The analysis of this literary
production was positioned on a map, on which specific coordinates allow us to locate
authors that have black women as their characters or main characters in time and in
space. Finally, a classification of the sheets/brochures is proposed based on specific
analytical categories. This, in its turn, contains 36 brochures, that were selected
following bibliographical research that was largely done in the Átila Library Almeida
(of the State University of the Paraíba) where about 8.000 sheets/brochures have
been studied.
Keywords: Cordel literature. Black woman. Preconception.
9
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 – Capas dos cordéis controversos..............................................
17
FIGURA 2 – Mapa de movência dos autores...............................................
55
FIGURA 3 – Capas de folhetos: feitiçaria 1...................................................
73
FIGURA 4 – Capas de folhetos: feitiçaria 2...................................................
74
FIGURA 5 – Capas de folhetos: feitiçaria 3...................................................
75
FIGURA 6 – Capas de folhetos: comportamento heróico 1...........................
88
FIGURA 7 – Capas de folhetos: comportamento heróico 2...........................
89
FIGURA 8 – Capas de folhetos: religião........................................................
98
FIGURA 9 – Capas de folhetos: corpo e deformidade corporal 1..................
105
FIGURA 10 – Capas de folhetos: corpo e deformidade corporal 2................
106
FIGURA 11 – Capas de folhetos: sexualidade 1............................................
119
FIGURA 12 – Capas de folhetos: sexualidade 2............................................
120
FIGURA 13 – Capa de cordel........................................................................
138
FIGURA 14 – Capa do cordel Gabriela..........................................................
145
FIGURA 15 – Capa do cordel Cinderela Mulata............................................
171
FIGURA 16 – Casas de alcouce....................................................................
173
FIGURA 17 – Capa do cordel da Escrava Anastácia.....................................
181
10
LISTA DE QUADROS E GRÁFICOS
QUADRO 1 – Cartografia dos poetas............................................................
52
QUADRO 2 – Cartografia dos autores...........................................................
58-67
QUADRO 3 – Temas dos folhetos com personagens femininas negras......
71-72
QUADRO 4 – Situação da mulher negra no Brasil........................................
148
GRÁFICO 1 – Linha do tempo.......................................................................
53
11
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO...............................................................................................
13
2 CONTEXTOS DA LITERATURA POPULAR EM VERSO NO BRASIL....... 21
2.1 Discussão teórico-metodológica.............................................................. 21
2.2 Vozes em cordel: territórios explorados, ilhas desconhecidas...................
34
3 POETAS E FOLHETOS: CONSTRUÇÃO DE UMA CARTOGRAFIA......... 44
3.1 Classificações dos folhetos.........................................................................
44
3.2 Cartografia dos poetas............................................................................... 52
3.2.1 Linha do tempo........................................................................................
53
3.2.2 Mapa da movência dos autores...............................................................
55
3.3 Cartografia dos autores com dados biográficos e geográficos...................
58
3.4 Cartografia dos temas dos folhetos com personagens femininas negras.. 71
3.4.1 Feitiçaria..................................................................................................
73
3.4.2 Comportamento heróico..........................................................................
88
3.4.3 Religião....................................................................................................
98
3.4.4 Corpo e deformidade corporal.................................................................
105
3.4.5 Sexualidade.............................................................................................
119
4 A SOCIEDADE BRASILEIRA E O IMAGINÁRIO ÉTNICORRACIAL A
PARTIR DO SÉCULO XIX............................................................................... 132
4.1 Breve resenha de estudos sobre relações raciais e racismo no Brasil..... 132
12
4.2 A posição da mulher negra no panorama do racismo “à brasileira”........... 138
5 O IMAGINÁRIO DA MULHER NEGRA NOS FOLHETOS DE CORDEL.... 159
5.1 Vozes e escrituras...................................................................................... 159
5.2 Sexualidade................................................................................................ 162
5.3 Entre sexualidade e Comportamento heróico: A prostituta e a Santa........ 167
5.4 Corpo e deformidade corporal.................................................................... 181
5.5 Religião....................................................................................................... 201
5.6 Feitiçaria..................................................................................................... 212
6 REFLEXÕES FINAIS.................................................................................... 232
REFERÊNCIAS................................................................................................
236
ANEXOS...........................................................................................................
249
13
1 INTRODUÇÃO
Esta pesquisa tem por objetivo a criação de cartografias que acompanhem e
mostrem os trajetos da mulher negra nos folhetos de cordel. Tais cartografias
compreendem: mapeamento e linha do tempo dos poetas populares que escreveram
sobre a mulher negra (1865 a 2009); mapeamento dos Estados onde os autores
atuam e/ou atuaram; perfil dos autores e folhetos escolhidos; mapeamento dos
temas e dos folhetos com personagens femininas negras.
O estudo tem também o objetivo de analisar o imaginário dos poetas
populares em relação às mulheres negras. Para isso, busca-se entender, através
desse mapeamento, a representação da mulher negra, enquanto personagem
ficcional nos folhetos de cordel.
Sabe-se que, na literatura de cordel há uma complexa elaboração cultural,
uma vez que esse gênero textual resulta de uma mistura peculiar entre o oral e o
escrito, sendo “cantada e/ou contada” por poetas populares, que possuem, por sua
vez, trajetórias de migrações diversas, que têm delineado e influenciado o seu
pensar e sua produção literária, e em cujos percursos e movências encontramos a
mulher negra como personagem protagonista, desde os cordéis tradicionais, como A
negra feiticeira, escrito em 1960, por Manoel D’ Almeida Filho, até O peido que a
negra deu, datado de 2002 e escrito e reeditado por José Costa Leite. Chamam a
atenção o porquê e as formas em que tais personagens aparecem nas narrativas.
Para esta pesquisa, foi constituído um corpus de 36 folhetos que tratam da
mulher negra, analisados na sua composição narrativa. Nesse sentido, o trabalho
procura conjugar dois elementos: a construção do imaginário concernente ao
universo da mulher negra, sob a ótica do poeta popular, e a constituição das
imagens femininas negras na cultura de predominância oral.
Esta pesquisa objetiva também, apreender a importância do processo
histórico regional na construção dessa imagem de mulher. Os poetas populares
constroem suas personagens femininas negras, com base em estereótipos
recorrentes na sociedade brasileira, de modo específico, bastante arraigados no
imaginário do Nordeste. Como o poeta coloca-se na posição de ser “a voz do povo”,
verifica-se nos folhetos de cordel uma dupla (re-)invenção: a do Nordeste, enquanto
14
espaço de saberes ligados ao pitoresco, muitas vezes miserável, mas também,
algumas vezes, idílico, com uma proposta de ingenuidade na paisagem sócio-
cultural; e a da mulher negra, enquanto caricatura do mal, da deformidade, da
exacerbação sexual, assentada na paisagem humana do Nordeste, como
personagem fadada à deformação, cujo sentido subjacente é a naturalização do
preconceito.
A tese está dividida em quatro partes. Na primeira, contempla-se os vários
contextos nos quais os folhetos de cordel têm sido incorporados pela cultura
brasileira, especificamente no âmbito acadêmico-universitário. Com isso, busca-se
refletir a riqueza dos discursos produzidos em torno dessa forma literária popular,
nos últimos cinqüenta anos mais ou menos, em que se assiste a uma multiplicação
de estudos acerca da literatura popular impressa em verso.
Assim, será mais fácil, de um lado, e mais oportuno, de outro, considerar os
aspectos “prévios” cuja resolução nos permitirá avançar com mais segurança rumo
aos objetivos principais desta pesquisa. É possível, ainda, assentar essa produção
literária no contexto mais amplo da produção cultural brasileira, pensando nela como
devedora, também, de estratificações sociais do país que se refletem, em parte, em
estratificações culturais. Além disso, discute-se sobre as tipologias desse material e
se esboça critérios de avaliação. Finalmente, tece-se algumas considerações sobre
um fenômeno que, hoje em dia, parece muito relevante: ao lado das “vozes mais
tradicionais” do cordel, têm surgido “novos poetas,” que entendem diferentemente o
seu papel, produzindo sentidos distintos da poética tradicional do cordel.
Na segunda parte, apresenta-se a peça fundamental para se aproximar ainda
mais dos objetivos propostos: uma série de cartografias, cada vez mais
verticalizadas, que permitem localizar, no tempo e no espaço, as vozes autorais que
se encontram nas capas dos folhetos, tendo como personagens protagonistas
mulheres negras.
A terceira parte configura-se quase como um “intervalo’. Em virtude da linha
temática do trabalho, não como escapar a uma discussão, ainda que breve e
forçosamente sintética, sobre os determinantes e os rumos do racismo brasileiro.
Tem-se como hipótese o fato de que esse racismo contém um conjunto de
elementos, que se encontram à disposição da sociedade brasileira, em suas várias
facetas, e que cada segmento dessa sociedade pode utilizar um ou outro aspecto,
15
dentro dos contextos das suas respectivas produções ideológicas, discursivas e
estéticas. A hipótese, é natural, confronta-se aqui com uma amostra significativa,
mas forçosamente limitada, da produção intelectual brasileira que se debruçou sobre
a temática das relações raciais.
A quarta e última parte trata do corpus da pesquisa delimitado para análise,
constituído por 36 folhetos, que serão abordados sob o ponto de vista da narrativa e
do imaginário, de forma que, esclarecidos esses aspectos, seja possível mostrar
uma cosmovisão suficientemente articulada do racismo que se enxerga nessa
produção literária.
A pesquisa bibliográfica dos folhetos de cordel foi realizada
fundamentalmente na Biblioteca Átila Almeida (localizada na e pertencente à
Universidade Estadual da Paraíba – UEPB, em Campina Grande), onde foram
pesquisados, de forma não analítica, mas focada na procura da personagem negra,
mais de 8.000 folhetos. A pesquisa foi também desenvolvida no Núcleo de
Pesquisa e Documentação da Cultura Popular - Nuppo/UFPB, no Programa de
Pesquisas em Literatura Popular - PPLP/UFPB, na Fundação Casa de José
Américo (em João Pessoa), na Fundação Joaquim Nabuco (em Recife) e no
Núcleo de Cultura Afro da Bahia, da Universidade Estadual da Bahia. Foram feitas
consultas, via internet, aos acervos da Biblioteca Nacional, da Associação
Brasileira de Cordel - ABL - da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP
e na Fundação Casa de Rui Barbosa (no Rio de Janeiro). Também visitaram-se as
feiras de Campina Grande e Caruaru, o Mercado Modelo (em Salvador) e feiras
temáticas em João Pessoa. Além disso, foi produzido um vídeo com o poeta popular
José Costa Leite, no dia 17 de fevereiro de 2008, na cidade de Condado - PE, com
duração de 2:30 (duas horas e trinta minutos). Tal instrumento metodológico visou
coletar dados extratextuais sobre a produção impressa dos cordéis do referido poeta
popular, estabelecendo-se um diálogo entre os folhetos e o imaginário do poeta
sobre as mulheres negras, na construção de sua narrativa oral, a qual se reflete na
produção de sua literatura de cordel.
O texto sobre a condição da mulher revela-se como um elemento importante
na reflexão de vários setores da sociedade, uma vez que foi tratado com
significativa ênfase, no mundo ocidental.
16
No entanto, alguns aspectos deixam entrever que a discussão ainda é
passível de reflexões. Por exemplo, sabe-se que a mulher é cantada pela cultura
popular de maneira enfática, mas seria relevante se perguntar sobre o imaginário do
poeta popular em relação a essa mulher.
Sobre a imagem do negro na literatura, Bernd (1988) o caracteriza como uma
personagem sempre ocultada, apagada nos romances brasileiros. Os postulados
teóricos discutidos pela referida autora se referem à produção da chamada categoria
“representação do negro na literatura”, que é o que interessa fundamentalmente à
presente pesquisa.
No âmbito da literatura de cordel, há uma ausência de estudos sobre a
representação da mulher negra, uma vez que os trabalhos com essa temática ainda
são tímidos. Embora seja um tema recorrente na cultura popular, especificamente
nos folhetos de cordel, não há quase nenhum registro sobre ele.
Para entender a personagem da mulher negra na literatura de cordel, é
preciso partir da concepção de misoginia cristã, pois tal mulher, segundo essa linha
de pensamento, é desprezível, mas, ao mesmo tempo, temida por suas
potencialidades perversas. Discutindo sobre as imagens femininas nos folhetos de
cordel, Rosires Carvalho (1997) mostra que a mulher, independentemente de sua
etnia ou condição social, é vista pelo poeta popular ora pelo arquétipo de Eva que
conota a sexualidade, a maldade, as suas artimanhas ora pelo arquétipo de Maria,
como santa, ou seja, aquela com aura de bondosa, fiel, bendita. Essa identificação,
no entanto, não é nova, uma vez que, tanto na literatura popular quanto na canônica,
a mulher é assim representada, muito freqüentemente (Cf. DUBY; PERROT, 1990).
Isto nos leva à afirmação de que se trata de um código inserido na cultura ocidental
de uma forma mais geral.
Carvalho (1997) avança na discussão ao afirmar que a construção das
xilogravuras que querem indicar o conteúdo do texto se processa de maneira quase
aleatória, e isso é verificado também em relação aos folhetos com a temática da
mulher negra.
17
Em entrevista realizada com o poeta popular e ilustrador José Costa Leite
1
(reproduzida no anexo), observa-se que ele sempre
justifica, ao ser questionado sobre o tratamento dado à
personagem negra, que não está falando em mulher negra
(numa ótica étnico-racial), nem está depreciando a imagem
desta mulher. Em resposta à observação de que o seu
folheto O peido que a negra deu (publicado com o
pseudônimo de H. Romeu) pode ser depreciativo ele
salienta, apontando para a gravura da capa: “é de mulher
branca, portanto estou falando de qualquer mulher”.
Em seguida, na tentativa de não se comprometer
ideologicamente com uma circunstância de preconceito,
indica a capa do folheto O peido que a nêga deu afirmando:
“eu falei nêga, não negra”. Todavia esquece, ou finge
esquecer, que o conteúdo é o mesmo e que o título do
outro folheto contém a palavra negra.
FIGURA 1 – Capas dos cordéis controversos
Fonte: Pesquisa de campo, 2008.
Nos rastros dos estudos sobre o as representações dos poetas populares
sobre as mulheres negras, encontra-se outro trabalho que não se refere à mulher
negra propriamente, mas explica, em grande parte, de maneira convincente, esse
mesmo discurso. Trata-se da tese de doutorado, intitulada Redemoinhos na
encruzilhada do imaginário ibero-paraibano: pactos da mulher com o diabo do
medieval aos folhetos de cordel, de Beliza de A. Mello (1999). A autora procura
1
Entrevista realizada por Francinete Fernandes de Sousa no dia 17 de fevereiro de 2008. A partir da entrevista
foi produzido um pequeno vídeo com a fala do poeta popular. Optou-se convenientemente não transcrever a
entrevista e sim disponibilizar o vídeo de 20 minutos, como anexo desta tese, vez que a voz do autor é
preservada na totalidade, bem como sua performance e imagem, possibilitando reconhecer de maneira
significativa a hipótese levantada na pesquisa.
18
evidenciar que os pactos se constituem como uma subversão dessa mulher aos
valores estabelecidos pela mesma sociedade.
Nos folhetos sobre as personagens negras, não se encontra esse pacto, ou
essa subversão feminina, porque a mulher-personagem nem é levada a sério nem
carrega uma identidade feminina. Ela configura-se mais como “uma coisa” ou objeto,
que representa e sintetiza um complexo de estereótipos e preconceitos.
Nessa perspectiva, tanto os homens quanto as mulheres têm uma idéia, um
imaginário convergente sobre o universo feminino, pois o homem que escreve o faz
alicerçado nas mais diversas vozes da sociedade (incluindo as das mulheres), e isso
leva à conformação de um imaginário coletivo (MELLO, 1999). Um dos esquemas de
raciocínio que a autora aponta para o processo de construção das personagens
femininas, entre elas, as negras, é o seguinte:
UNIVERSO FEMININO constituído de MULHERES que são
MULHERES RURAIS que são MULHERES POBRES
Os folhetos remetem, quase sempre, a uma personagem feminina de origem
rural, embora o enredo possa ser desenvolvido na área urbana. É apresentada,
portanto, a disposição dos elementos que vão configurar o universo de composição
do poeta quando está tratando dessa temática.
O poeta popular, nos recônditos de suas lembranças, reporta-se a mulheres
concretas, talvez as mulheres que fazem parte do universo de suas vivências. Ele
estaria seguindo modelos arquetípicos herdados do cristianismo e do judaísmo, em
que o universo feminino continuaria a estar ligado à terra, à casa, aos seus
pertences. Porém, essas mulheres passam a povoar o imaginário do poeta, a partir
da elaboração dessa sua realidade (MELLO, 1999).
Mesmo considerando a predominância das idéias do meio rural, não se pode
considerar esse fato de forma simples, pois o poeta popular é um homem que
transita no meio urbano e no rural. O importante, quando se trata de personagens
negras, é a constatação do risível, do grotesco e do baixo corporal (BAKHTIN,
1998), podendo tais situações caricaturais se constituírem em formas de
19
preconceito. E tudo leva a crer que isso seja mais substancial e efetivo no meio
rural.
Inserido em um universo letrado, o poeta aproxima-se do meio urbano,
reconhecendo que a mulher assume outros papéis sociais, além dos que ela
desempenhava tradicionalmente no meio rural. É possível perceber alguns matizes
relevantes quando se delineia o perfil desse poeta popular. Apesar de ter as suas
origens ligadas ao mundo rural, com uma cultura marcadamente oral, não se pode
negar a influência da cultura escrita em sua vida, de forma que a sua obra é
marcada por essa cultura. Assim, os recursos utilizados pelos autores de cordel
seguem uma lógica do escritor do cânone, que busca a comunicação entre os
elementos ficcionais e as estruturas convencionais.
É importante salientar, no entanto, que a escritura do poeta popular tradicional
está ancorada na oralidade, de modo que a escritura constitui o registro desse oral.
Isto, aliás, é brilhantemente discutido por vários autores, entre eles Paul Zumthor
(1993), Jerusa Pires Ferreira (1999), Idelette Muzart Fonseca dos Santos (1999).
Sendo assim, seria mais coerente afirmar que o poeta popular da tradição, está
ligado não exatamente à escrita formal, mas à escritura como arquivo da voz.
A maioria dos poetas populares que escreve sobre mulheres negras,
por exemplo, é de origem rural; percebe-se que eles absorvem a lógica do mercado
editorial alguns são até mesmo donos de editoras e se diferenciam apenas nas
temáticas abordadas, pois objetivam atingir, em grande parte, os freqüentadores de
feiras-livres, essencialmente do meio rural ou dele procedentes, através do jogo
entre ricos e pobres, entre campo e cidade, entre o discurso do dom para escritura e
o aprendizado escolar, entre o Nordeste e o Sudeste (ALMEIDA, 1978, p. 160).
Constata-se, assim, o caráter de construção de um texto mediado pelas condições
de produção de seus autores. Embora as narrativas de cordel, compostas por oito
páginas façam parte da tradição textual do romanceiro, tal recurso formal ajuda na
leitura daqueles que não estão familiarizados a densas e exaustivas obras escritas.
Dentre os textos orais, as narrativas de sete páginas, conforme indica Santos
(1999), são os textos de galopes.
Reconhece-se a vitalidade da literatura de cordel, numa movência da função
do poeta popular. Com a evolução das relações sociais, ele se mostra menos
vinculado à ideologia rural nordestina, mais aberto a receber as solicitações das
20
esferas hegemônicas da sociedade, estando, portanto, longe dos emaranhados
ideológicos de onde proveio e mais preparado para lidar com as regras do
capitalismo (CIACCHI, 1984).
Reconhece-se que os folhetos de cordel atingem um público urbano, não
sendo mais correto falar em folhetos apenas para a zona rural, pois, em toda boa
livraria da cidade, em bancas de revistas e até nas escolas, difundem-se as
técnicas, as formas e os conteúdos do cordel como um movimento de incentivo e de
preservação cultural. É curioso perceber que o cordel sai da feira livre e volta em um
movimento de desterritorialização e reterritorialização, graças às pesquisas dos
franceses, encabeçadas por Cantel, adentrando no mundo acadêmico. Assim,
estabelece-se outros vínculos com novos leitores, oscilando entre o mundo “cult” dos
olhares acadêmicos, e o mundo exótico dos turistas,da classe média e pelo seu
público tradicional, que não freqüenta shopping, livrarias, segundo observações da
estudiosa no assunto, professora Beliza Áurea de Arruda Mello.
No entanto, a literatura de cordel ainda resiste às inovações tecnológicas,
apesar de muitos de seus autores utilizarem como veículo de produção de seus
escritos as novas tecnologias de informação, como a internet, constituindo assim um
movimento paralelo às formas tradicionais de produção. Vários folhetos trazem
estampados os e-mails de seus autores e também são cunhados em impressoras
digitais que ficam em seus lugares de trabalho. Porém, é fato, ainda, que poetas
populares que viajam todas as semanas para as feiras-livres, com a finalidade de
vender seus trabalhos e falam desse público de transeuntes das feiras e arredores
como os seus grandes leitores. É o caso do poeta José Costa Leite, que viaja,
semanalmente, de sua cidade, Condado, em Pernambuco, para as feiras de
Itabaiana e Remigio, no interior da Paraíba, mostrando, assim, que a demanda
tradicional ainda persiste e se reproduz através do tempo (Anexo C).
21
2 CONTEXTOS DA LITERATURA POPULAR EM VERSO NO BRASIL
2.1 Discussão teórico-metodológica
No contexto geográfico e histórico do Nordeste brasileiro do fim do Século XIX
e começo do Século XX, a literatura de cordel desempenha um papel social e
cultural relevante para as camadas populares, cuja maioria não sabia ler nem
escrever. Não existia, nem podia existir, por falta de um grande número de leitores,
uma imprensa organizada e ampla, nem jornais que publicassem os assim
chamados “romances folhetins”, como acontecia, nessa mesma época, na Europa.
Havia sim, romances publicados em folhetins como A Moreninha, de Joaquim
Manoel de Macedo, e os romances de José de Alencar. Porém, essa produção não
alcançava o grande público interiorano. Esse vazio foi preenchido pelos poetas
populares em todas as suas expressões orais e, mais adiante, escritas.
É assim que, de um lado são muitos os poetas que vão reescrever via memória
em versos romances muito “populares” para a burguesia, com assuntos do
cotidiano popular que são, por exemplo, ligados à história da escravidão, como o A
Escrava Isaura, um clássico de Bernardo de Guimarães. De outro lado, estes poetas
retomam temas e personagens do imaginário medieval como os heróis da lenda de
Carlos Magno e seus pares, A Imperatriz Porcina, Os doze pares de França, O
pavão misterioso, Juvenal e o dragão, A donzela Teodora, A princesa Magalona, O
cachorro dos mortos etc. (cf. CASCUDO, 1979) e, ainda, as contextualizações e
identificações com os heróis populares. São exemplos disso as figuras de Lampião,
Antônio Silvino, Maria Bonita, Corisco e Dadá, Jesuíno Brilhante bem como símbolos
religiosos, a exemplo do padre Cícero e, recentemente, de Frei Damião.
Para tratar convenientemente do tema das culturas populares, cabe, aqui,
registrar o pensamento de Antônio Gramsci. No entanto, hoje, para construir um
arcabouço teórico metodológico de investigação científica faz-se necessário
reconhecer o contexto histórico vivido pelo autor, que está longe dos nossos dias e,
talvez, a sua teoria, na totalidade, não conta de explicar os fenômenos das
culturas populares na contemporaneidade. Porém, devem-se considerar a
perspicácia e a profundidade de suas análises, que o credenciam como um
22
significativo teórico da cultura do Século XX. Podem-se considerar as contribuições
gramscianas como atuais, uma vez que na contemporaneidade o capitalismo e suas
formas políticas de dominação subsistem; e essa foi a principal crítica que fez o
autor quando pensava a cultura e os intelectuais.
Gramsci concebe que, a fim de se pensar um novo tipo de cultura, que não
seja somente a que é produzida no contexto de um sistema estratificado, no topo do
qual estão os intelectuais dominantes, e para que ela possa coincidir com um
processo de difusão democrática, é necessário que também sejam consideradas as
práticas e as crenças das classes populares.
A cultura popular, como escreveu Gramsci (1974), é algo sério e que tem de
ser levado a sério, não só para compreender a totalidade sociocultural de uma
nação (no caso, a Itália), porém para que não só os elementos estéticos, mas
também todos os demais (os sociais, os políticos e os ideológicos) concorram para a
definição de um panorama intelectual menos acanhado.
A preocupação intelectual tem um papel central nesse processo, no
fortalecimento da aproximação com os “subalternos” e na construção de uma visão
unitária de mundo. A promoção da cultura das massas não é algo que ocorre
mecanicamente, mas de modo a unir concepções já estabelecidas às atuais.
Nessa perspectiva, uma nova visão de mundo se tornacultura de massa
quando se tornar uma espécie de fé, semelhante ao que acontece com aqueles que
se pautam nesta última. O projeto de Gramsci é, portanto, o de criação de uma
metodologia para elevar a cultura das classes subalternas em oposição à
elaboração da visão hegemônica (GRAMSCI, 1974).
Considerando a visão gramsciana, vê-se que tudo isso representa a função
do intelectual orgânico, que está em sintonia com as classes populares,
interpretando seus sentimentos, como também criando e ressignificando os
acontecimentos históricos e culturais. Tal fato, no âmbito da literatura popular,
mesmo que não tenha traços de hegemonia, reflete uma certa autonomia.
De acordo com a perspectiva do pensamento gramsciano, a literatura de
cordel pode ser compreendida como uma autêntica literatura popular, expressão do
sentimento do povo assim como ele é “moldado” em determinadas condições
23
históricas e sociais no nosso caso, as condições do Nordeste brasileiro na virada
entre os Séculos XIX e XX, e no decorrer das transformações ocorridas ao longo do
Século XX.
Em virtude de os conteúdos desse tipo de literatura serem ligados à vida
cotidiana, às experiências concretas, à visão do mundo popular e aos autores
(poetas, cantadores, repentistas), os quais assumem como verdadeiros “intelectuais
orgânicos”, no sentido de que eles desenvolvem um papel específico interno à
classe social a que pertencem, conseguindo assim, representar necessidades e
sentimento coletivos dela.
Dessa forma, os poetas populares realizam um papel contrário aos
intelectuais tradicionais, que geralmente são assimilados pelos grupos de poder,
transformando-se em portadores dos valores das classes dominantes, criando,
assim, o consenso num sistema de cultura hegemônica.
Se foi relativamente fácil enquadrar a literatura de cordel, na visão
gramsciana de literatura popular, ao contrário pareceria problemático usar para o
cordel a definição “literatura nacional”, pois na cultura popular nordestina o
existiria uma conjunção entre o conceito de povo e o conceito de nação.
Com efeito, o povo nordestino se sente – e está, de fato – muitas vezes, longe
da história oficial brasileira, que ainda é a história das elites agrárias e urbanas, dos
poderes, dos latifúndios. Menezes (1998) afirma que Sílvio Romero, na sua História
da Literatura Brasileira, publicada em 1888, chamava a atenção para o fato de que
na literatura do povo, os heróis ou fatos históricos são pouco narrados, ao contrário
de façanhas ligadas ao banditismo, aos cangaceiros etc.:
(...) Temos por assentado, pois, que nem as cenas do povoamento
primitivo do país nos séculos XVI e XVII, nem as façanhas dos
bandeirantes, nem as guerras dos holandeses e franceses, nem as
dos espanhóis no Sul, nem as lutas dos Mascates e Emboabas, nem
as cenas da mineração, nem mesmo a Independência, nem as
guerras da Cisplatina, do Prata e do Paraguai - determinaram a
produção de ciclos poéticos às nossas musas populares. (...) As
guerras dos Mascates, dos Emboabas, dos Palmares, nada
inspiraram que se tivesse conservado na tradição (ROMERO apud
MENEZES, 1998, p. 4).
24
Para Menezes (1998), um apagamento, uma indiferença no que se refere
a esses fatos, e isso acontece porque o povo não se viu representado pelas elites do
país; e os atos administrativos do período colonial não eram vistos com bons olhos
pelo restante da população, que preferia a indiferença e também a ironia, como se
percebe nas recriações dos reisados e nas danças de salão adaptadas dos grandes
palácios reais, todas trazendo as marcas da zombaria popular, como aliás também
assevera Bakhtin (1998) nos seus estudos sobre cultura popular. No entanto,
Menezes (1998) lembra que na poética popular, dos cordéis propriamente, ao longo
do tempo, passou-se a considerar a história e modernamente as biografias como as
de Getúlio Vargas e de JJK, que o exemplos desse fio de reconstrução histórica
do Brasil.
No cerne de todas as questões referentes à cultura popular, está a
problemática da conceituação dos termos “cultura” e “popular”. Convém enfatizar
que não é fácil conceituar o vocábulo cultura, uma vez que remete a vários
significados e aplicações, em contextos diferentes, pois seu emprego se modifica à
medida que são delimitadas as áreas de conhecimento.
No âmbito da antropologia, pode-se considerar cultura como o conjunto de
manifestações, crenças e práticas apreendidas pelo homem.(TURCHI, 2004)
Portanto, nada que possa ser confundido com sua natureza. Tomando-se como
exemplo a sociedade ocidental, verifica-se uma dicotomia entre a cultura de elite e
a cultura popular.
Arantes (1982) afirma que existe uma divisão bem nítida entre o fazer e o
saber, porquanto o primeiro se associa à aquisição de conhecimentos e de práticas
de vida, sendo concebido como de valor duvidoso e atribuído ao povo em geral. No
entanto, o saber considerado superior, ou seja, a erudição, associa-se à prestigiada
elaboração da cultura dos setores hegemônicos da sociedade, sendo tomada
apenas no singular: cultura.
Os aspectos ligados à renovação e à ressignificação da cultura pelos diversos
grupos humanos podem ser percebidos na perspectiva do homem inserido em
um sistema de símbolos compartilhados, interpretando diversamente a realidade e
conferindo sentido a ela. A antropologia, portanto, também mostra que a cultura está
ligada a uma rede de infinitas relações de interdependências que incluem
conhecimento, crenças, artes, morais, leis, mitos, costumes e outras aptidões e
hábitos adquiridos pelo homem, que é um ser eminentemente social, e cujas
25
manifestações estão conectadas às formas de organização de um povo, e as suas
tradições transmitidas através de gerações. Nesse sentido, as produções, enquanto
manifestações culturais, legitimam a existência de um povo, ou seja, conferem
coesão ao seu tecido social.
Uma visão mais contemporânea da cultura reconhece e considera o contato
com outras culturas. Entretanto, o olhar para a cultura do outro está quase sempre
carregado de preconceitos, porque uma tendência natural à rejeição ao diferente
e a seus valores e símbolos culturais, que, não raras vezes, são considerados como
inferiores. Esse olhar etnocêntrico é motivador de desrespeito, de prejuízos nas
relações entre culturas. No Brasil, por exemplo, como também em outros países, a
religiosidade de matriz africana (candomblé, umbanda e outras) é alvo da
intolerância, devido ao conjunto de crenças e de símbolos distintos da tradição
judaico-cristã.
Em relação à cultura negra, em geral, esse olhar para a alteridade é
constantemente aviltante, rebaixador e consiste em se considerar o outro como
alguém alheio a uma referência definida como correta, sendo portador de direitos e
dignidade. E a literatura popular brasileira traduz de maneira exemplar essa idéia de
aviltamento da alteridade.
Um clássico da literatura de cordel é o folheto, escrito na década de 60 por
Seny, intitulado Porque é que em 60 negro vai virar macaco. Tudo leva a crer que o
poeta popular transpôs em versos o que uma marchinha de carnaval proclamava
naquela época servindo de motor para uma perpetuação naturalizada do preconceito
em relação ao negro, posto que a música era e é considerada uma brincadeira sem
nenhuma intenção subliminar:
Dizem que em 60 negro vai virar macaco
ora vejam só que grande confusão
Se for verdade essa Operação Macaco
penca de banana vai custar um milhão
Quem mata um gato tem sete anos de azar
tem nego como o diabo fazendo tchuitchui
Se for verdade o que diz o profeta
O que seria de Pelé ou do Didi?
Nego é gente igual a gente
26
Muito preto existe pra ninguém botar defeito
Profeta toma jeito
cuidado com a negrada
Se ela te pega vai dizendo, olha a papada.
(LOPES; FERREIRA, 1959).
O cancioneiro popular está cheio de exemplos recorrentes pouco contestados
pelos ouvintes. Citem-se as marchinhas de carnaval que proclamam “O teu cabelo
não nega, mulata porque és mulata na cor... mas como a cor não pega, mulata,
mulata eu quero o teu amor.”; “Negra do cabelo duro, qual é o pente que te
penteia...” etc..
Uma tendência dos estudos culturais modernos, no concernente à cultura
negra, numa atitude que visa reverter a negatividade de tais expressões, pretende
ver nas manifestações culturais que envolvem os negros e suas características,
aspectos de positividade. Tal pensamento tem sua razão de ser, uma vez que
quando se fala em “beleza negra” ou nos Braus da Bahia”, por exemplo, tem-se não
uma segregação, mas uma visibilidade daquele que durante muito tempo, foi
ocultado e, embora possa haver a assimilação dos concursos de beleza dos
modelos ocidentais brancos, no sentido de os Braus dos baianos estarem imitando o
movimento americano Brown”, pode-se verificar na iniciativa de tal movimento. Da
mesma forma, poder-se-ia pensar nas canções e nos folhetos. Porém, nem com
toda a boa vontade humana pode-se deixar de evidenciar que existem expressões e
traços caricaturais negativos recorrentes, que precisam de uma análise mais
apurada, visto que se estabelecem como categorias passíveis de estudos e de
investigações diversas.
Assim, considerando-se o exposto, cabe levantar os seguintes
questionamentos: Como conceber que a literatura de cordel, expressão da cultura
popular, possa, evidentemente, transformar-se em um veículo de representação do
preconceito etnicorracial? E como o poeta popular, enquanto ‘porta-voz’ da memória
popular, pode contar/cantar histórias tão carregadas de preconceitos? Algumas
hipóteses podem ser levantadas: os poetas fazem a leitura do real, através da
verossimelhança. Por essa razão, estão fora de qualquer patrulhamento ideológico,
27
não valendo então a categoria gramsciana de intelectual orgânico ou sartreana de
engagement.
Os poetas populares, como sujeitos históricos, são envolvidos pelo sistema e,
por trás de toda produção de arte, existe uma indústria cultural, que vai cooptar
esses artistas, para que produzam “uma mercadoria” rentável. Aliado a esse
processo, no caso específico da criação artísticas das imagens feminanas negras,
ocorre a chamada reprodução simbólica e de valores das elites (BOURDIEU, 2007).
Nessa direção, vê-se a dimensão empresarial da cultura popular se instalar,
de tal modo que suas produções são retiradas de seu contexto particular como
manifestações genuínas e apresentam-se como fragmentos de cultura, sendo
recriadas numa perspectiva das elites culturais, em vista da comercialização
(ARANTES, 1982). Nesse sentido, vale lembrar a entrevista com Costa Leite
(ANEXO B), na qual o poeta assegura: “a gente faz o que o povo gosta, o que
vende”. Em seu livro ABC da sacanagem, ele desenvolve versos singulares; e afirma
que faz isso porque vende. Em suas palavras, o poeta afirma: “se o povo quisesse
que eu cantasse em versos o rosário de nossa senhora eu fazia, mas não é o que
querem...”. Então, o uso valorativo da cultura faz com que se estabeleça, de um
lado, a cultura das elites e, do outro, a cultura de massa. Produz-se, desse modo,
uma cultura que necessita ser higienizada, uma vez que, com esse processo
dicotômico, ela começa a ficar empobrecida. Muitas vezes, a cultura popular é
exposta como coisa, isolada de seu contexto, por isso se apresenta como uma mera
folclorização.
No Brasil, a relação entre cultura popular e classes populares segue um curso
natural, posto que essa forma de cultura sempre foi estudada no país como uma
representação das classes populares. Na visão epistemológica de Alfredo Bosi
(2003), verificam-se hipóteses para a compreensão da cultura brasileira. A primeira
diz respeito ao processo de colonização, que se encontra em três planos: o da
conquista da terra e exploração da força de trabalho; o da memória dos
colonizadores e dos colonizados; e o dos projetos de uma identidade nacional.
Partindo de uma análise etimológica dos termos cultura, colônia, colonizar (verbo), o
autor vai descortinando o universo cultural brasileiro, mediante uma cida
abordagem da matéria em questão, apontando o reducionismo desse conceito que
28
perdura até hoje, sobrevivendo a críticas da sociologia weberiana, da psicanálise, do
culturalismo e de outras vertentes científicas (BOSI, 2003, p. 390).
Partindo do princípio de que a cultura é essencialmente simbólica e que o uso
das diversas linguagens culturais supõe a observância de um conjunto de regras,
apreende-se que elas são compostas de unidades sígnicas. O signo linguístico,
segundo a visão saussureana, é constituído de um conceito (significado) e de
imagem acústica (significante) e as linguagens naturais apresentam características
comuns entre si, representando coisas através da relação arbitrária entre significante
e significado, nutrindo a polissemia das múltiplas vozes e das possibilidades de
interpretação da linguagem natural. Veja-se como argumento desse pensamento, o
trecho a seguir:
se o caráter principal do acontecimento é poder situar-se com
precisão nas coordenadas do espaço e do tempo, o mesmo não se
com o processo ideológico. Este não surge de improviso ou por
acaso, de um dia para o outro. Sua matéria-prima são idéias
afetadas de valores, e idéias e valores se formam lentamente com
idas e vindas, no curso da história, na cabeça e no coração dos
homens. No entanto, como a ponta de um iceberg é claro indício da
existência de massas submersas cuja profundidade não se pode
calcular a olho nu, também certas situações, rigorosamente datadas,
ao se armarem, servem de pista ao leitor de ideologias para detectar
correntes que vêm de longe (BOSI, 2003, p. 222).
A linguagem dos folhetos de cordel, se percebida nos seus liames, é passível
de identificação através de categorias e o conhecimento categorizado garante de
forma classificatória a organização do objeto representado, além de manter a
proximidade entre o vocabulário utilizado para a representação e o universo do
conhecimento, expresso nos textos.
A poesia popular utiliza-se de uma linguagem inscrita na vida cotidiana da
sociedade em que transitam poetas e leitores/ouvintes, assimilando as mais
variadas formas de comunicação e de intercâmbio social. Assim, a posição estrutural
dos seus elementos, e a função ideológica que eles desempenham permitem, se
corretamente analisadas, uma compreensão mais totalizadora e completa da sua
rede de relações e de significados. Os aspectos linguísticos e narratológicos da
poesia também remetem a experiências estruturadas no jogo simbólico da cultura.
29
Esse sistema de relações, presente na cultura popular e passível de
observação, não é aparente e supõe um princípio epistemológico anterior o
princípio da sistematicidade do real. A relação sígnica de um folheto de cordel
pressupõe o aparecimento da relação entre todo um universo simbólico, pertencente
à linguagem popular, que se estabelece como condição da significação.
Bosi (2003) quando trata da sua segunda hipótese sobre cultura, demonstra
que nos três séculos de colonização portuguesa, a cultura popular brasileira, apesar
da condição de significação, caracterizou-se “por produzir-se e reproduzir-se abaixo
do limiar da escrita” (BOSI, 2003, p.390). O autor menciona o texto do cânone
literário, Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa, como sendo uma fusão da
linguagem letrada com a linguagem popular.
Seguindo o raciocínio de Bosi (2003), é importante pensar que os poetas
populares buscam realmente o motivo da narrativa na memória oral ao ouvir as
histórias transmitidas pela tradição, mas também nas narrativas escritas pelo
cânone. É notório que existem vários textos que constroem e veiculam imagens dos
negros na literatura canônica e quase toda essa produção é de teor negativo ou
depreciativo (FRANÇA, 1998). O conteúdo desses textos, tanto do ponto de vista
semântico quanto do narrativo, funciona como fonte para as ressignificações dos
poetas populares. Gregório de Matos foi um grande gracejador e escrevia versos
sobre a indolência dos negros e a exarcebação sexual das negras e das mulatas.
Embora tal atitude possa se configurar como uma estratégia para trazer à tona a
problemática do negro, em pleno Século XVII, o que por ora pode-se observar é que
seus versos sobre as mulheres negras e mulatas têm raízes simbólicas semelhantes
às dos poetas populares, conforme se observa nos trechos seguintes:
“Vossa luxúria indiscreta Romance para a mulata Annica
É tão pesada, e violenta, Depois de feito o conchavo,
que em dois putões se sustenta passei a noite com ela
Uma mulata, e uma preta...” eu deitado a uma sombra,
(MATOS apud FRANÇA, 1998, p. 20) Ela batendo na pedra.
Tanto deu, tanto bateu,
Co’ a barriga e co’ a as cadeiras
30
Que me deu a anca fendida
Mil tentações de fodê-la...
(MATOS apud FRANÇA, 1998, p. 22)
Uma noite de lua de Mel O Gênio das mulheres
Uma buceta raspada A morena magra e alta,
Para mim tem todo valor Sendo a mais pecaminosa
A foda tem mais sabor Essa do olhar zarolho
A gente dando uma mamada De uma belida no olho
No peito da camarada Jesus como é perigosa
Se ainda for durinho... (BARROS, 2002, p. )
(SEU MANÉ DO TALO DENTRO, 19--?, p. 4)
No que concerne ao enraizamento cultural, Bosi (2003) constrói o conceito da
cultura de fronteira, que nada mais é do que a ressignificação dos temas
tradicionais, para além dos limites geográficos e/ou temporais. Mesmo assim, esses
temas ressignificados deixam marcas de sua origem, por não constituírem
meramente uma cópia mas sim uma releitura de narrativas anteriores. Isso equivale
a um processo muito frequente na poética popular. Nesta pesquisa, foram
encontradas seis versões do romance de Bernardo Guimarães A Escrava Isaura,
escritas em épocas diferentes e por autores distintos. São elas: A Escrava Isaura, de
Batista (1930); Amor e Martírio de Uma Escrava, de Cabral (1977); O Terror da
Escravidão, de Silva (19--?); História da escrava Guiomar, de Athayde (1964); A
Escrava Isaura, de Silva (1981) e História Da Escrava Izaura, de Silvino Pereira da
Silva (19--?).
As narrações desses folhetos fazem percorrer informações ao longo do
tempo, que vão se perpetuando na cabeça das pessoas. Em entrevista realizada
2
com leitores assíduos dos folhetos sobre essas histórias, quando foram estimulados
a lembrar o enredo, eles afirmaram de modo recorrente: “era uma escrava, mas não
era negra”, “era linda e vivia sendo maltratada...”.
2
Entrevista informal realizada por Francinete F. de Sousa, no ano de 2005, na feira de Campina
Grande e na feira de Caruaru, com 13 leitores de folhetos cordel.
31
O fenômeno da disseminação de estereótipos culturais, em relação aos
folhetos de cordel que envolvem a mulher negra, consiste numa matéria carregada
de teor ideológico, pois como afirma Pecheux (2001), todos os discursos são
ideológicos e marcados pelas condições materiais de existência de quem os produz.
Essas vozes, repassadas como informação, nas feiras livres, intrigam pela
sua reatualização, ao mesmo tempo em que detêm elementos de conservadorismo.
Os elementos que denotam esse teor conservador vão desde as temáticas ligadas à
seca do nordeste, brigas familiares, contendas entre rivais, violência, carestia, até o
humor dos fatos cotidianos. E dentro desse humor conservador e revolucionário bem
ao gosto popular, encontram-se as narrativas sobre a mulher negra.
que se perceber como se estabelecem e se produzem especificamente
essas vozes, uma vez que um olhar superficial encontrará, subjacente a tais falas, a
instituição do preconceito. No entanto, pergunta-se se isso se configura enquanto
conteúdo das categorias estabelecidas por Bakhtin (1998) sobre o cômico na
literatura popular, em que está presente o elemento do riso zombeteiro e
“destronizador”.
Outra vertente sobre a qual convém voltar à reflexão são as categorias
estabelecidas por Durand (2002), em seu livro As Estruturas Antropológicas do
Imaginário. O referido autor concebe que a polarização das imagens em torno de
certos arquétipos ocorre devido a acontecimentos culturais: existe uma pressão das
ideologias de um instante da civilização, que ele chama de pressão pedagógica, a
qual gera a necessidade de se desenvolverem ações que fazem movimentar
algumas noções, e temas míticos que caracterizam uma época, sendo o contexto
sociológico um colaborador da "modelagem dos arquétipos em símbolos e constitui
a derivação pedagógica" (DURAND, 2002, p. 390). No entender do autor, "qualquer
cultura, com sua carga de arquétipos estéticos, religiosos e sociais, é um quadro no
qual a ação se vem verter" (DURAND, 2002, p 397). Essa ação pode ser apreendida
através dos mais diversos símbolos e passar a constituir “uma verdade”. Pode-se
afirmar que existem maneiras de expressão arquetipal. Durand (2002) esboça um
esquema em que os objetos simbólicos constituem tecidos a que várias dominantes
podem se ligar estreitamente. Seria o caso de se pensar na mulher negra, que não
só está representada como mulata sensual, pois, quando sua pele é mais escura e é
desprovida atributos considerados de beleza, pelo menos nos moldes
32
convencionais, é considerada como bruxa, má, suja, porca, feiticeira, incapaz,
improdutiva e também a mãe-preta, bondosa, rechonchuda e esperta no preparo de
deliciosos quitutes.
Durand (2002) evidencia a necessidade de se conhecer o percurso das
imagens elaboradas pelo homem. Para ele, tais imagens explicam os
comportamentos humanos. Desde o início de sua discussão, o autor deixa bem claro
que trabalhar com o imaginário não é o mesmo que trabalhar com a psicanálise ou a
sociologia.
Segundo ele, essas duas disciplinas esbarram nos limites de suas próprias
concepções, porquanto a psicanálise enfatiza demais e relaciona linearmente a
imagem a enigmas contidos no inconsciente, ao passo que a Sociologia procura
resolver seus problemas através de uma explicação baseada em um sistema de
elementos exteriores à consciência e exclusivos das pulsões. Nesse sentido, ele
assevera:
...poderíamos escrever que todas as motivações, tanto sociológicas
como psicanalíticas, propostas para fazer compreender as estruturas
ou a gênese do simbolismo, pecam muitas vezes por uma secreta
estreiteza metafísica: umas porque querem reduzir o processo
motivador a um sistema de elementos exteriores à consciência e
exclusivos das pulsões, ou, o que é pior, ao mecanismo redutor da
censura e ao seu produto - o recalcamento. O que quer dizer que
implicitamente se volta a um esquema explicativo e linear no qual se
descreve, se conta a epopéia dos indo-europeus ou as
metamorfoses da libido, voltando a cair nesse vício fundamental da
psicologia geral que denunciamos, que é acreditar que a explicação
inteiramente conta de um fenômeno que por natureza escapa às
normas da semiologia (DURAND, 2002, p.40)
De acordo com Durand (2002) o caminho ideal para se entender o simbolismo
do imaginário é o da antropologia, que é o conjunto das ciências que estudam o
homem (homo sapiens), sem se recorrer ao que ele chama de “psicologismo e
sociologismo”. Visando acabar com as querelas da disputa das duas disciplinas, ele
afirma que para entender os fenômenos humanos, devem-se estudá-los do ponto de
vista antropológico, no qual “nada do humano deve ser estranho”. Ele refere, ainda,
que, em vista de aproveitar o lado produtivo das duas disciplinas,
33
deve-se se colocar deliberadamente no que chamamos o trajeto
antropológico, ou seja, a incessante troca que existe ao nível do
imaginário entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as
intimações objetivas que emanam do meio cósmico e social
(DURAND, 2002, p. 41)
O aspecto ilusório do mundo, a estratégia de comunicar algo além da
percepção, o olhar desfocado, a desordem, o inadmissível nas referências às
personagens negras dos folhetos de cordel acabam por revelar as contradições
sociais que desfraldam o mundo de exclusão e fazem com que se percebam os
preconceitos. Nos folhetos que tratam do desejo, no masculino, sempre uma
marca de animalidade e trocas simbólicas do movimento do desejo erótico,
sinalizam para a bestialidade ao mesmo tempo em que se volta para a idéia de
maternidade no sentido de concepção e de maneira mais abrangente. Há, por
exemplo, uma estrofe do poeta popular José Costa Leite, que confirma essa idéia:
A buceta é uma gruta
de cabelos rodeada
Tem parte que é molhada
Tem parte que é enxuta
É o roçado da puta
Consolo do vagabundo
Fica bem perto do fundo
Sempre só vive fedendo
E para quem vem nascendo
É a porteira do mundo.
(LEITE, 19--?, p. 4)
Os substantivos gruta, fundo, mundo, noite remetem ao imaginário de que
fala Durand (2002). Mesmo que o poeta popular, ao elaborar seu pensamento, o
faça-o com a intenção de provocar o riso, a galhofa, vê-se delinear o poder do
feminino, pois a genitália da mulher é associada a elementos substanciais da
natureza. O verbo representado pelo gerúndio nascendo, o substantivo porteira
(idéia de abertura, de claridade) e o substantivo mundo também, devem ser
considerados nesse aspecto.
34
É importante assinalar os elementos do rural, revelados pelas palavras
roçado, porteira e gruta. O verso consolo de vagabundo indica a idéia de consolo
e de cuidado, dito pelo poeta de uma forma talvez pouco polida, mas que constitui
um indicativo da representação do sexo enquanto órgão sexual feminino para o
homem. O adjetivo vagabundo disfarça a dependência do homem em relação à
genitália feminina.
2.2 Vozes em Cordel: territórios explorados, ilhas desconhecidas
Os autores que se dedicam à tarefa de estudar a poética popular são muitos e
tal assunto interessa a estudiosos brasileiros e estrangeiros. Nesta pesquisa, não
cabe uma revisão completa de literatura − uma vez que não se daria conta de tantos
e bons estudos. No entanto, parece relevante dialogar com alguns pesquisadores
contemporâneos acerca da literatura de cordel, em vista de compreender como
funciona esse universo.
É, especificamente, essa modalidade que interessa no momento. Existe um
grande número de estudos, cuja preocupação encontra-se voltada para a
classificação das diferentes obras literárias. Isto se deve ao fato de que se torna
oportuno ver classificados os diversos tipos de fenômenos e manifestações artísticas
no âmbito da literatura.
Segundo Santos (1997) uma grande influência da cultura popular na
literatura canônica, e isso está expresso desde o mais elementar aproveitamento do
material folclórico como um fator de realce na observação direta, até a possibilidade
de uma estética que permita um contato e uma comunhão maior entre o público e o
escritor. A autora salienta que em grandes obras clássicas, começando pela
antiguidade clássica, como o teatro grego e as obras de Homero, passando por
Virgílio e Petrônio, até chegar em Gil Vicente, Cervantes e Mistral, veem-se
imbricados recursos da poética popular (SANTOS, 1997, p. 65).
O fato literário faz surgir uma expressão popular na literatura, concretizada
pela presença de romances ou de cantos tradicionais, citados numa obra letrada,
pelo papel poético e social assumido pelo cantador num romance, pelo
35
reconhecimento por parte de um poeta erudito de sua dívida para com o cantador
etc. (SANTOS, 1997, p. 17).
Pode-se, então, entender que a cultura popular, através de suas instituições
(a sica, a dança, a comida, a literatura oral e escrita etc.) constitui um conjunto
imaginário de símbolos e de representações
3
que servem para construir os sentidos
do que somos enquanto indivíduos e grupo.
Buscando discutir a matéria proposta, convém apresentar algumas
argumentações sugeridas por Santos (1999), quando discute as origens desse tipo
de literatura, as quais parecem ser consistentes:
No Brasil, a emergência da expressão popular de cultura, e em
particular na literatura, corresponde, na mesma época, à busca de
uma poesia nacional, de uma expressão autenticamente brasileira.
José de Alencar, entre os primeiros, procura na poesia oral a alma
ingênua de uma nação; sente-se com o direito de restaurar os textos
recolhidos, comparando sua ação à restauração de quadros antigos,
ou de integrá-los à sua obra citando algumas quadras populares (O
tronco dos Ipês, Til) (SANTOS, p.17).
A autora informa que Sílvio Romero tece algumas censuras a Jo de
Alencar, alegando que os textos da narrativa popular não têm nenhum valor estético,
razão pela qual não deveriam constar nos escritos de Alencar. Entretanto, ela
sinaliza que a emergência de uma expressão popular como fato literário está
marcada pela presença dessa expressão, através de romances e de cantos
populares, por autores do cânone. São grandes exemplos João Guimarães Rosa,
Mário de Andrade, Ariano Suassuna, entre outros tantos que bebem na fonte da
cultura popular para escrever verdadeiras obras-primas.
A ligação das narrativas populares com a tradição histórica da Ibéria vai trazer
uma série de características para esse modo de fazer artístico. O poeta popular (o
cantador) aparecerá como um visionário, que busca a autoridade de sua voz numa
3
Tomou-se esse conjunto de expressões dentro da lógica de Durand (In: TURCHI, 2003, p. 31) que
afirma: “[...] é através da cultura que o imaginário aparece plenamente - a gênese do símbolo está
nas construções imaginárias culturais desde a simples simbólica e mítica derivada, desde as
literaturas e as construções utópicas, até o engajamento no tecido da mudança social.”
36
memória coletiva que o povo o autoriza a proferir em seu favor. Santos (1999)
afirma, ainda, que:
O folheto e a cantoria são descobertos, no Brasil inteiro, não mais
como poesia espontânea, alma do povo ou tradição inesquecível,
mas como memória do povo: filtrada pela lembrança infantil, em
Menino de Engenho, ou exaltada “à dimensão do mito, em
Cangaceiros de José Lins do Rego, escolhida exemplarmente para
manifestar a dominação dos mestres intelectuais do Brasil” por
Graciliano Ramos em Viventes das Alagoas, ou ainda intimamente
integrada à representação da vida do povo da Bahia, em grande
parte da obra de Jorge Amado. (Santos, 1999, p.18)
Para este trabalho é importante descobrir as formas que indicam o que se
conta sobre a personagem negra; de quem é a voz dos folhetos; e, mais ainda, qual
a importância para a formação da idéia de negro, enquanto etnia, no país. Essas são
questões que, aos poucos, revelam-se tanto pela voz da personagem, quanto pela
do poeta popular.
Na cultura popular, os sistemas de classificação e de designação mudam
conforme os diferentes gêneros textuais, segundo que se considera isoladamente
cada um de seus elementos: cantoria, romance ou folheto. Os diferentes estudos
que procuram definir as “literaturas da voz” (ZUMTHOR, 1993) e propor modos de
classificação usam quatro vias distintas, a saber: o tema, a estrutura, o arquétipo e a
função. Cada uma dessas orientações pretende elaborar categorias viáveis e
objetivas, que se referem à totalidade das produções literárias de transmissões orais
e/ou de tradição popular (SANTOS, 1999).
A autora citada lembra também que Vladimir Propp apresenta seu trabalho
como “uma descrição dos contos segundo as suas partes constitutivas e das
relações dessas partes entre elas e com a totalidade” (PROPP, 1970, p. 28), o que
permite concluir que existe uma relação genealógica entre dois gêneros
semelhantes, concebendo a relação das diferentes versões de um conto ao modelo
estrutural de base, como uma relação das espécies ao gênero (PROPP, 1970, p.
35). Do outro lado, a passagem de uma concepção nominalista para uma concepção
realista dos gêneros folclóricos, assim como implica a análise morfológica, pede a
pergunta da universalidade das formas: as aplicações do método Propp a tradições
37
orais muito diversas como a literatura de cordel comprova isto. Mais adiante
veremos que Andrea Ciacchi (1984) utiliza alguns elementos do método proppiano
para afirmar que existe uma idéia recorrente sobre o personagem masculino negro
nos folhetos de cordel.
No texto A literatura de cordel no Nordeste do Brasil: da história escrita ao
relato oral, Julie Cavignac (2006) faz um itinerário significativo pelas manifestações
culturais do Nordeste do Brasil, sobretudo pela literatura do cordel. Ela faz um
percurso geográfico pelo interior do Nordeste, em busca de relatos orais que
precisem a concepção do cordel na região. Sua leitura, no entanto, não é
geográfica, mas antropológica e literária. Como quem conta um “causo”, Cavignac
reconstitui a história da literatura popular no Nordeste segindo as pistas dos seus
protagonistas e, como diria Ginzburg (1987), no livro Os queijos e os Vermes: “as
marcas são pistas”.
O trabalho de Cavignac (2006) é descritivo e pormenorizado e revela grande
respeito por aqueles que produzem a cultura local. Desde o prefácio, ela afirma que,
para homenagear os seus interlocutores, conservará o nome de todos os
entrevistados. Desse modo, ela descreve entrevistas com diversas pessoas, o que
possibilita chegar à conclusão de que a cultura popular está viva e não é apenas um
artefato para consumo de turistas. Uma problemática posta pela autora, que também
faz parte das inquietações da presente pesquisa, é: como explicar o gosto dos
habitantes do Nordeste por uma produção escrita, quando muitos o sabem ler
nem escrever?
A pergunta é de fato instigante e remete a inquietações outras, como a forma
com que se absorve essa informação, quais as suas ressignificações, a recepção de
tais informações recebidas pelos nordestinos, sobretudo pelos artistas populares.
Para a composição do seu trabalho, Cavignac (2006) traça algumas
hipóteses. A primeira delas é referente ao fato de se comparar a linguagem oral com
a escrita, uma vez que o material escrito nada mais é do que a “escritura da voz”, ou
seja, uma oralidade transformada em versos. O folheto seria a representação dos
traços simbólicos e culturais a partir da linguagem poética popular. O poeta popular
inspira-se na tradição, nas histórias e nos mitos tradicionais porque, para vender,
precisa agradar à clientela, que gosta de ouvir tais histórias. uma constante
38
atualização e personificação de seus personagens, na medida em que a paixão pelo
trabalho os deixa repletos de imaginação e de criatividade.
Entende-se que a autora antecipa a resposta para a hipótese da presente
pesquisa de que a informação repassada pelos poetas de cordel, por mais que
pareça renovada, é conservadora e carregada de estereótipos, vez que hoje eles
fazem uso de ciberespaço como todo escritor minimamente “conectado” e andam
em dia com toda crítica social, com o que é politicamente correto etc.. Como disse o
poeta José Costa Leite, na entrevista concedida no ano de 2005: “Eu não falo muito
sobre negro porque não vende, nós fazemos o que o povo gosta”.
4
Tal argumento é
corroborado pelo poeta de cordel paraibano Manuel Monteiro, que também afirmou
em entrevista no mesmo ano: “O folheto sobre negro vende pouco”.
5
Comparando folhetos informativos ou noticiosos das décadas de setenta e de
oitenta com folhetos contemporâneos, feitos por encomenda, a pedido ou
patrocinados por instituições públicas, ONGs, entre outros, verifica-se a mesma linha
de raciocínio que a função pedagógica do folheto, constatando-se o que Cavignac
(2006) chama de “volta ao tradicional”, ou seja, mesmo atualizando as histórias, o
poeta popular tende sempre a se conduzir pelo veio convencional; seja no âmbito
temático ou mesmo formal, a narrativa segue o seu curso como fora ensinado pelos
seus antecessores. A composição do poeta contemporâneo estabelece uma relação
quase imitativa dos folhetos tradicionais, não sendo capaz de romper com a
tradição.
Evidenciam-se os autores que escrevem ou escreveram a partir de uma
lógica do saber universitário e os autores que estão inseridos dentro do que se
chama de etapa do saber, que parecem não ter passado ou adquirido esse saber
escolástico. No entanto ambos recebem a influência do universo letrado. uma
influência nítida em cada voz do artista popular da cultura letrada e a informação é
repassada como se repassa em um universo letrado.
4
Entrevista realizada no mês de novembro de 2005 por Francinete Fernandes de Sousa com o poeta
José Costa Leite no Espaço Cultural Funesc em João Pessoa.
5
Entrevista realizada no mês de junho do ano de 2005 por Francinete Fernandes de Sousa com o
poeta Manoel Monteiro em Campina Grande.
39
O poeta elabora a sua poesia em qualquer época, sempre apelando para
enfatizar sua posição de intelectual, tanto nos folhetos tradicionais quanto nos
contemporâneos, valendo-se de suas leituras de textos clássicos ou mesmo
informando o seu currículo diferenciado nas capas dos folhetos.
Os folhetos com informações que tratam da temática do negro demonstram a
assimilação de todo o preconceito que advém da sociedade que o gera e que se
revela na sua escrita. A atualização desse tema, nos folhetos contemporâneos,
mesmo quando tenta ser um protesto ou crítica social, resvala no conservadorismo
ou numa atitude sobremaneira preconceituosa dos poetas ou, noutras palavras,
pouco “politicamente correta”, também se não pode-se negar a existência de uma
circularidade, ou seja, o poeta absorve os preconceitos da sociedade ao mesmo
tempo que, com sua poesia, ajuda a disseminá-los e confirmá-los.
Tendo em vista essas constatações, é relevante conhecer melhor esse
documento de informação popular, reconhecê-lo como tal, classificá-lo numa ordem
que faça sentido para este estudo e analisar a sua capacidade informacional no
momento atual.
Por meio das falas mencionadas dos poetas populares, percebe-se a perfeita
sintonia que eles têm com o mercado e com as demandas mercadológicas e, a partir
daí, concordando com Almeida (1999) identifica-se a ausência de:
1. Ingenuidade clássica propalada por alguns estudiosos a respeito dos
poetas populares, seu processo de criação literária, que é aceito pelo fato de serem
advindos do meio rural, o que os concederia a prerrogativa de serem ingênuos,
sinceros, quase pueris;
2. Noção de perspectivas mercadológicas, portanto, conexão com um
universo culto e letrado, negando um pouco a suas autobiografias, em que propalam
a ignorância e a ingenuidade por não estudarem o suficiente;
3. A perfeita sintonia com os conceitos e preconceitos da sociedade
urbana tida como “culta” e de certa forma deformada e deformadora.
Um estudo muito importante a se destacar, porque utiliza o recorte étnico e
analisa personagens narrativas é o feito por Ciacchi (1984), numa tese defendida na
Itália, intitulada O encontro do cordel com o negrão: funções narrativas de
personagens de cor na literatura de cordel brasileira. Para esse autor, na literatura
40
de cordel existem funções que se revelam contínuas e especificas, as quais o
vistas quando os autores utilizam personagens de cor. Para perceber estes
resultados, o autor busca as trinta e uma funções do linguísta soviético Vladimir
Propp, que foi um dos expoentes da narratologia.
O trabalho de Ciacchi (1984) foi baseado em 21 folhetos de cordel, nos quais
o protagonista é um negro. Ele descreve sinteticamente a trama dos cordéis,
confrontando vários esquemas funcionais, e estabelece as constantes funções dos
personagens entre as quais pode-se destacar a esfera de ação da personagem.
Para completar o quadro, o autor analisa alguns folhetos não narrativos como
pelejas e ABC’s, a fim de fazer um confronto entre os narrativos e os não-narrativos.
De início, Ciacchi define literatura de cordel como
[...] aquele conjunto de textos poéticos de autores geralmente
conhecidos, editados em livretos de pequenos tamanhos, gravados
em pequenas tipografias do Nordeste do Brasil, postos a venda
geralmente pelos mesmos autores em feiras livres, festas e romarias,
os mesmos são difundidos entre os extratos subalternos da
sociedade (CIACCHI, 1984, p.14).
Na literatura oral do Nordeste, existem dois tipos de poesia: um chamado de
obra feita, em que se utilizam os recursos da memória do poeta cantador, e outro
improvisado, os chamados repentes, que são proclamados sobre um fato do
momento ou sobre uma pessoa presente. Nos desafios ou pelejas entre cantadores
os dois tipos de recursos se alternam. Às vezes, os folhetos de pelejas são
decodificadores fiéis do mundo dessa poética de cantadores e assim percebe-se a
memória individual ligada à memória coletiva, confundindo os não especialistas que
apontam como plágio, quando esta movência de textos é própria das tradições das
poéticas da oralidade.
Quando a história contada tem uma origem européia, como o Ciclo de Carlos
Magno, o mito popular, o romanceiro ibérico, o feito histórico etc.
6
, ou tem um
antecedente do none brasileiro, como uma obra literária do romantismo ou a vida
6
É importante ressaltar que Carlos Magno está no romanceiro ibérico, mas sua origem está no ciclo Carolíngeo,
de tradição francesa.
41
de alguma personalidade - é muito fácil se encontrarem folhetos com o mesmo título,
mas com textos e autores diferentes.
A literatura de cordel mantém sua vitalidade em um processo de mutação da
figura do contador de histórias para o status de poeta popular. Geralmente o
contador está estritamente ligado ao meio rural e se configura, como dito
anteriormente, quase como um intelectual orgânico daquela sociedade. Com a sua
evolução, assume uma nova figura, a de poeta popular, menos vinculado à ideologia
rural nordestina e mais aberto para receber as solicitações das esferas hegemônicas
da sociedade.
Sendo assim, o autor de folhetos se sente mais autor e mais consciente do
seu papel de escritor. Outra característica diz respeito à permanência dos temas
tradicionais como, por exemplo, os milagres de Padre Cícero ou as façanhas de
Lampião, que convivem em harmonia com os novos temas que surgem, mostrando
uma sintonia dos autores com a atualidade. Os “clássicos” A chegada do homem à
lua, Os planos econômicos e os folhetos que falam dos novos comportamentos da
mulher e do homem na sociedade moderna são exemplos disso.
De forma geral, o texto de Ciacchi (1984) mostra que os folhetos que m
como protagonistas personagens negros são relativamente poucos. Com efeito, o
pesquisador encontrou apenas 21 folhetos referentes a personagens negros, em um
acervo de cerca de 2.000 folhetos disponíveis. Nesse sentido, em confronto com
assuntos relativos a cangaceiros, Padre Cícero e outros, a temática do negro parece
ser vista como se fosse quase irrelevante. Personagens como André Casca Dura ou
O negrão do Paraná são ainda muito vivas, mas têm pouca relevância no complexo
da produção dos folhetos. Na maioria dos folhetos examinados, o personagem negro
assume um papel de antagonista. Isso é uma constante (função proppiana). O
personagem negro é um personagem negativo, um anti-herói. Os textos não dizem o
contrário, ou melhor, no plano social e cultural do Nordeste, não há elementos
válidos para transferir esse papel do negro como antagonista do enredo.
As características funcionais são enfatizadas e, além delas, as características
negativas o apresentadas de forma significativa sob três planos: o físico, o
religioso e o moral. O aspecto físico do negro é sempre considerado repugnante. As
características somáticas da raça são sempre amplificadas e exageradas. Amiúde se
42
fala de verdadeiras deformidades. Sob o plano religioso, o negro, cuja religiosidade
é diferente da que se expressa na tradição católica, é representado como o anticristo
ou o diabo. Quanto à sexualidade, o negro tem apetites eróticos exagerados; não
tendo esposa, nem família, ele sempre deseja moças de etnia branca ou mulheres
de fazendeiros. A união homem negro / mulher branca é vista como abominável,
uma ameaça constante. Dentro da cultura burguesa, a personalidade do negro não
tem valor algum, porquanto ele é portador de todos os cios e de nenhuma virtude;
ele parece valente, mas, nas situações difíceis, torna-se vil.
Enfim, nas considerações do autor, o negro aparece como o antagonista total,
o mais alheio às regras sociais e culturais estabelecidas. Ele é sempre pior em
comparação com os outros malfeitores brancos.
A leitura do trabalho de Ciacchi (1984) possibilitou a compreensão de que a
precisão na abordagem metodológica é o único caminho para uma análise segura
do objeto de pesquisa. O autor consegue mostrar que a personagem negra é
ocultada, e isso é uma constante histórica na literatura brasileira. Além disso,
quando aparece na literatura, esse tipo de personagem vem carregado de um
estigma negativo, assemelhando-se à situação real dos negros e das negras do
Brasil.
Vejamos o que diz Bernd (2003) a esse respeito:
A construção da identidade é indissociável da narrativa e
consequentemente da literatura [...]. A literatura atua em
determinados momentos históricos no sentido da união da
comunidade em torno de seus mitos fundadores, de seu imaginário
ou de sua ideologia, tendendo a uma homogeneização discursiva, à
fabricação de uma palavra exclusiva, ou seja, aquela que pratica
uma ocultação sistemática do outro, ou uma representação inventada
do outro. No caso da Literatura Brasileira, este outro é o negro, cuja
representação é freqüentemente ocultada, ou o índio, cuja
representação é, via de regra, inventada. [...] Atualmente, é, sem
dúvida, o discurso literário o espaço privilegiado da restauração da
identidade, da reapropriação de territórios culturais perdidos (p.19-
50).
A afirmação de Zilá Bernd motiva para que se pense sobre a importância de
se desenvolverem estudos sobre esses tipos de personagens, vez que cabe ao
pesquisador de qualquer campo epistemológico explicar as lacunas dos diversos
43
fenômenos, quer se tratem de fenômenos sociais ou físicos. Ciacchi (Op. cit.)
consegue fazer isso de maneira muito bem esquemática. Todavia, o seu trabalho se
apresenta de uma maneira o formal que se percebe a necessidade de uma maior
contextualização, do ponto de vista da sociologia da literatura, bem como da crítica
literária sociologicamente orientada, conforme propõe Antônio Candido (2002):
Achar, pois, que basta aferir a obra com a realidade exterior para
entendê-la, é correr o risco de uma perigosa simplificação casual.
Mas se tomarmos cuidado de considerar os fatores sociais no seu
papel de formadores da estrutura, veremos que tanto eles quanto os
psíquicos são decisivos à análise literária e que pretender definir sem
uns e outros a integridade estética da obra é querer, como o
barão de Munchhausen conseguiu, arrancar-se de um atoleiro
puxando para cima os próprios cabelos (p.13).
Por outro lado, mediante seus resultados de pesquisa, esse autor convida os
que se interessam pela temática do negro para prosseguir com tais estudos. Esse é,
pois, um ponto de motivação para a elaboração desta pesquisa.
44
3 POETAS E FOLHETOS: CONSTRUÇÃO DE UMA CARTOGRAFIA
3.1 Classificações dos folhetos
Foram vários os estudiosos que propuseram classificações para os cordéis,
na tentativa de melhor identificá-los e subdividi-los, para fins de análise.
No livro de Diegues Junior (1973), intitulado Ciclos temáticos na literatura de
cordel, uma recapitulação de algumas das principais classificações da literatura
de cordel, entre as quais o autor cita a classificação estabelecida pelo teórico em
cultura popular Julio Carlo Baroja. Esse pesquisador classifica a literatura de cordel
espanhola, produzida, sobretudo, nos Séculos XVI e XVII, dividindo os textos em:
antigos, cavalheirescos, novelesco de encanto e de prodígios; novelesco de amores
e de aventuras; novelesco biográficos e de aventuras propicia; de cativos e
renegados; de mulheres valentes; de homens bravos e aventureiros; de
contrabandistas e guapos; de bandoleiros; históricos; religiosos: hagiográficos;
religiosos: castigos de Deus; religiosos: milagres e intervenções da virgem Maria;
religiosos: expositivos, didáticos; religiosos: ascéticos; casos raros e prodigiosos;
crimes; controvérsias; satíricos: sobre mulheres; satíricos: sobre pessoas de distinta
condição; narrações fantásticas; contos conhecidos no folclore europeu; contos
localizados; para representar diálogos e monólogos; desilusões.
Outro estudioso citado é o historiador francês Robert Mandrou, que analisa a
chamada littérature de colportage, uma literatura francesa dos séculos XVII e XVIII
classificando-a da seguinte forma: mitologia feérica, o maravilhoso pagão (contos de
fadas, grandes mitos, Pantagruel e Gargantua, Scaramouche etc.); conhecimentos
do mundo (calendários, ciências ocultas, feitiçarias etc.); fé e piedade (cânticos
espirituais, devoções, vida de santos); arte e sensibilidade populares;
representações da sociedade (ofícios, jogos, educação, o legendário histórico, a
sociedade nobiliária etc.).
No Brasil, Diegues Junior (1973) cita as tradicionais classificações feitas
desde 1921 por Leonardo Mota, a da equipe de pesquisadores da casa de Rui
Barbosa, a de Orígenes Lessa e a de Ariano Suassuna, sendo que esta última, no
45
seu entender, é a mais sintética, demarcando dois grandes grupos: os folhetos
tradicionais e os “de acontecido”.
O próprio Diegues Junior (1973) propõe essa classificação com o objetivo de
contribuir para o arquivo da cultura popular, especificamente para a literatura de
cordel. Para o autor, os folhetos devem ser assim distribuídos: temas tradicionais
(romances e novelas; contos maravilhosos; estórias de animais); anti-heróis:
peripécias e diabruras; tradição religiosa; fatos circunstanciais ou acontecidos: de
natureza física: enchentes, cheias, secas, terremotos etc.; cidade e vida urbana;
crítica e tira; elemento humano: figuras atuais ou atualizadas (Getúlio, ciclo do
fanatismo e misticismo, ciclo do cangaceirismo etc.); tipos étnicos regionais etc.;
cantorias e pelejas.
Ciacchi (1984) dedica várias páginas ao assunto da classificação dos temas.
Para o autor, tais classificações fazem emergir um quadro de grande vivacidade, no
entanto de escassa homogeneidade. Em sua pesquisa, ele mostra que a maioria
dos autores faz tripartições entre os ciclos temáticos, seguindo um critério
essencialmente conteudístico, que não leva em conta os aspectos formais e
estruturais dos folhetos. É o caso das classificações do espanhol Julio Carlos
Baroja e do francês Robert Mandrou, citados anteriormente. Outro exemplo de
classificação, citado por Ciacchi (1984), é o de Cavalcanti Proença, que elaborou a
classificação dos folhetos do arquivo Casa de Rui Barbosa.
Na verdade, o próprio Cavalcanti Proença (1982) declara que fez um
repertório prático e muito resumido, salientando que o seu estudo serve apenas de
indicativo para os colecionadores de cordel e pouco ajudará a especialistas e
estudiosos da cultura popular. Mesmo assim, Ciacchi (1984) considera que não se
pode deixar de ver que Cavalcanti Proença (1982) ignora todas as características
formais e estruturais, e isso não permite, por exemplo, que se faça a distinção entre
um folheto narrativo e um não narrativo. Uma proposta que pareceu significativa
para Ciacchi (1984) foi a de Orígenes Lessa, uma vez que esse escritor introduz, no
interior de um esquema temático, um elemento dinâmico: a atualidade e/ou não
atualidade temática, mesmo que seja problemático distinguir entre os temas
permanentes e os passageiros.
também a proposta de Liêdo Maranhão de Souza (1976), cuja
“classificação popular da literatura de cordel é o fruto de uma pesquisa de campo”,
46
feita sob a orientação de Ariano Suassuna. Os autores fazem questão de destacar a
pesquisa de campo, observando o itinerário geográfico que percorreram, com
viagens feitas do Maranhão à Bahia, por feiras e mercados das capitais e do interior,
em contato constante com poetas, agentes e folheteiros. Eles salientam as
descobertas feitas para os diversos títulos dados pelos poetas para uma história
contida no folheto, tendo também algumas denominações de uso comum entre os
próprios poetas e agentes de comércio dessa literatura. Em suma, no percurso feito
por Lessa fica denotada a riqueza de classificação e de peculiaridades que no seu
entender extrapola qualquer tentativa didática (CIACCHI, 1984, p.33).
Feitas essas considerações, o autor parte para a análise propriamente dita
dos folhetos e consegue com muita propriedade, apresentar o conjunto de
constantes, que subjazem ao material coletado. Enfim, sobre o processo de
classificação elaborada pelos diversos estudiosos da cultura popular, parece que a
sua tese é a de que nenhuma das classificações citadas permite que se estabeleça
a composição morfológica da literatura de cordel, porque não conseguem
reconhecer a dicotomia fundamental entre os folhetos narrativos e os não narrativos.
Para o autor, na verdade, as diferenças entre os dois tipos de folhetos são
relevantes sob vários pontos de vista. Por isso mesmo, ele propõe uma nova
classificação, que se estabeleceu como parte da metodologia de análise procedida
em sua tese, a saber:
I. Narrativos: 1. Romances: a) de amor, b) de luta (valentes), c) de
encantamento e magia, d) históricos (Carlo Magno); 2. Folhetos: a) históricos
(Getúlio, guerra), b) Crônicas e exemplos, c) ficção.
II. Não narrativos: 1. Pelejas; 2. Encontros (discussões); 3. ABC; 4. Didáticos;
5. Biográficos; 6. Vaquejadas.
Ciacchi, no entanto, não inclui na sua classificação o recorte étnico.
Considera-se importante pontuar esse aspecto, porque a temática é abordada por
ele em número significativo, razão por que é preciso que seja apresentado de forma
distinta, em um quadro classificatório, vez que o folheto é utilizado como arquivo
social e pode ser útil para apresentar a trajetória de fenômenos socioculturais.
O folheto é um texto literário que, por suas peculiaridades, é rico e digno de
apreciação por todas as camadas da sociedade. Por isso as argumentações em prol
47
de um purismo literário e de uma afirmação de obras do cânone como as de
verdadeiro valor não se sustentam mais.
Nesse sentido, promover uma reflexão sobre os folhetos e buscar, com
consistência, mostrar a trajetória dessa memória acumulada, dando-lhe um
tratamento adequado e enquadrando-a na perspectiva do arquivo literário, é uma
experiência necessária e significativa, vez que a literatura “popular” é popular,
justamente, porque é produzida para ser “consumidapelas camadas populares da
sociedade. Os estratos “superiores” e eruditos da população, as elites intelectuais
(etc.) não têm nenhuma obrigação de “gostar” de cordel, ou de vaquejadas, ou de
“toadas”, etc.., também, se nem sempre a linha de fronteira entre as várias camadas
é assim clara como poderia aparecer.
Convém, pois, enfatizar que o desenvolvimento de um projeto voltado para o
estudo de fontes da cultura popular, especificamente dos folhetos de cordel, para
recuperar as informações neles contidas, no sentido de compreendê-las, representa
a criação de um mapa cartográfico que fortaleça a conservação do patrimônio
cultural das comunidades das bordas sociais, como é o caso dos poetas populares.
Também significa trazer à tona a memória de feirantes, de homens e de mulheres
rurais ou de origem rural. Aliada a essa empreitada de organização e de
mapeamento, é instigante percorrer o universo conteudístico dos documentos-
folhetos e descobrir quais as vozes que ali estão presentes. O caso das mulheres
negras, de acordo com as cartografias elaboradas nesta pesquisa, é uma
possibilidade de descoberta relevante no campo dos estudos literários sobre essa
temática.
A documentação é o testemunho de uma vida e de um tempo que
problematizam questões de identidade cultural regional e nacional. Na trajetória
escolhida para a organização desta tese, verificou-se que, além de investigar o
imaginário dos poetas populares sobre as mulheres negras, foi preciso compilar uma
documentação exaustiva sobre os autores e as obras que abordam a temática e
proceder à análise dos textos e dos contextos de forma crítica.
Portanto, quando do esboço de um arquivo literário referente à temática da
mulher negra, foi possível perceber o texto literário de cordel como um conjunto
48
polissêmico de informações significantes e significáveis, passiveis de múltiplas
interpretações, bem como as revisões do conteúdo do produto literário.
Sob essa perspectiva, classificar, organizar e descrever um conjunto de
documentos de forma hierarquizada, mostrando as coincidências de datas, de
conteúdos e a contribuição das iconografias para a compreensão do “texto”, significa
atentar para princípios fundamentais, como autoria, gênero, suporte do documento e
proveniência.
Com base nesse inventário, pode-se integrar e determinar um acervo que
formará um todo coerente. O presente estudo tomou por base mais de 9.000 (nove
mil) folhetos, fazendo um recorte de gênero e étnicorracial, a fim de construir um
corpus formado por folhetos protagonizados por personagens femininas e negras,
que constituem o suporte para a discussão principal do trabalho.
A organização do arquivo é o pano de fundo, mas também se afigura como
uma mola-mestra para o estudo, pois, após as operações para a construção do
acervo, o pesquisador pode acessar, com precisão, a informação de que necessita
no contexto adequado. Sendo assim, os mapas, as linhas do tempo e as tabelas
com conteúdos sobre personagens femininas negras poderão disponibilizar para a
comunidade científica ferramentas de acesso ao seu objeto de estudo, quando ele
for o mesmo desta tese. Portanto, a base de dados desta pesquisa compreende
catálogos temáticos e inventários, os quais desempenham um papel significativo
como fonte de divulgação do acervo, que compreende a quase totalidade de
documentos sobre personagens femininas negras no cordel.
Dir-se-ia mesmo que esse é um trabalho interdisciplinar que envolve desde a
história, literatura, estudos sobre oralidade, poética popular, antropologia do
imaginário e a arquivística. Com o apoio desses campos do conhecimento, busca-se
um fio condutor, que facilite uma leitura orgânica dos textos. Para tanto, foram
divididas as tarefas em cinco etapas designadas: 1) criar e escrever, 2) colecionar e
organizar, 3) referenciar, 4) disponibilizar e 5) estudar criticamente o material.
Restaurar a memória histórica e cultural de uma comunidade é uma tarefa
relevante, um processo que dinamiza fronteiras de identidades culturais. Se, pelo
acesso aos arquivos literários considerar-se que tais trajetórias identitárias são
49
reapresentadas e discutidas em suas singularidades de modo heterogêneo, formar-
se-á um todo continuo pleno de sentido. Numa visão foucaultiana, perceber um
“certo modo de ser do discurso” indica, de outro modo, que esse não é um “discurso
cotidiano, indiferente, um discurso flutuante, passageiro, consumível”, trata-se, no
entanto, de um “discurso que deve ser recebido de certa maneira e que deve, numa
determinada cultura, receber um certo estatuto” (FOUCAULT, 2002, p.45).
A classificação, enquanto aspecto do processo arquivístico, interessa
diretamente a esta pesquisa. A famosa epígrafe do escritor argentino Jorge Luís
Borges, contida no livro As palavras e as coisas, de Michel Foucault, possibilita uma
breve consideração no que concerne ao processo de classificação de documentos.
Nele, Foucault cita “uma certa enciclopédia chinesa” onde está contida a seguinte
definição:
os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b)
embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos,
g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se
agitam como loucos, f) inumeráveis, k) desenhados com um pincel
muito fino de pelo de camelo, l) et coetera, m) que acabam de
quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas. (FOUCAULT,
2002, p.6).
Essa citação mostra a arbitrariedade e a fragilidade de certos conceitos
classificatórios. Ora, para um chinês, o que define e classifica um animal pode ser
totalmente diferente para um brasileiro. Portanto, não se pode classificar
tematicamente um determinado grupo de folhetos sem contemplar o aspecto étnico,
como aconteceu com o cordel.
Os processos de generalização (abstração), diferenciação e categorização
permitem o agrupamento de elementos, de certas semelhanças e diferenças,
estabelecendo, assim, estruturas de relacionamento
.
Diante do exposto, deve-se
entender a classificação como um modo de expressão da coordenação, em que
coexistem duas ordens de experiência: a ordem observacional e a ordem conceitual,
o que implica um conjunto que deve ser considerado relativo. Tal classificação
pressupõe vínculos e exige bases lógicas, linguísticas, terminológicas e
pragmáticas.
50
Em relação aos folhetos escolhidos quando se elegem as categorias
analíticas, reconhecem-se, por semelhança, vínculos estáveis, e se usam a
dedução e a generalização Os vários folhetos, em que se observam ocorrências
sobre exarcebação sexual da personagem feminina negra, são exemplos disso.
Logo, de forma geral, os poetas populares constroem uma imagem X sobre a mulher
negra. Assim, estabelecendo categorias e procedendo quanto ao reconhecimento de
vínculos associativos (contiguidade espaço-temporal) chegou-se a conclusões
parciais.
Para a construção desse raciocinio, parte-se do pressuposto de que em
primeiro lugar o que se chama de rede de relações não é exatamente casual, tudo é
fruto de uma seleção prévia. No caso específico deste trabalho os recortes são os
seguintes: mulher
mulher negra. Pressupondo o princípio epistemológico da
sistematicidade do real, como os termos não são independentes, o estudo das
relações permite reunir, ordenar, colocar em correspondência e estabelecer
coordenações, pois o termo, isolado, não comporta significação. Por exemplo, no
folheto A negra de um peito só, não se está tratando de qualquer negra. A
adjetivação de um peito remete a uma significação particular pejorativa; e é
necessário que se diga que essa idéia de mutilação está ligada ao imaginário do
homem sobre a mulher no geral, independendo da cor. Para que dois termos
(mulher e negra) possam ser instaurados como categorias de análise, é preciso
distingui-los, qualquer que seja a forma. Tem-se, então, o problema da diferença da
não-identidade, quando os poetas se referem à mulher.
/mulher/ - negramulata - morena
As cartografias incluem poetas e textos de cordel, com a temática da
personagem negra e apresentam tais atributos através de um levantamento de
obras, autores e datas de publicação, facilitando a análise. O quadro com os dados
biográficos dos poetas populares, alvo da pesquisa, também ajudou a construir a
idéia de territorialização e desterritorialização dos poetas e das narrativas populares.
indicativos de que as fontes de informação desses artistas se constituem, por
meio da oralidade, ouvindo-se histórias contadas pelo povo e transformando-as em
51
folhetos. Entretanto, um hábito modernamente adquirido por esses poetas consiste
na pesquisa bibliográfica, como se observa, por exemplo, em Costa Leite, que
demonstrou em entrevista concedida no mês de fevereiro de 2008, como está sendo
o seu processo de criação (ANEXO).
O fato de os poetas nascerem em um lugar e morarem definitivamente, ou por
um tempo, em outro estado, sobretudo em estados economicamente mais
desenvolvidos, como o eixo sudeste, confirma a idéia de movência da cultura e a
circularidade das vozes como via de mão dupla. Se isso aconteceu em alguns casos
significativos com os poetas de modo geral, não aconteceu com os autores que
escreveram folhetos sobre a mulher negra. Ver-se-á, através do mapa específico, a
seguir, que praticamente a totalidade permaneceu na área geográfica e cultural do
Nordeste.
A seguir na ordem, observam-se:
Cartografia e linha do tempo dos autores;
Mapa dos e Estados onde os autores atuam e/ou atuaram;
Perfil dos autores e folhetos escolhidos;
Cartografia dos temas e dos folhetos com personagens femininas
negras.
52
3.2 Cartografia dos poetas
Autor
Ano de
nascimento Lugar de nascimento UF
A
no da
morte Lugar da morte Estado
Estados onde
atuou
Leandro Gomes de Barros 1865 Pombal PB 1918 Recife PE PE
João Martins de Athayde 1880 Ingá PB 1959 Recife PE PE
Francisco das Chagas Batista 1882 Teixeira PB 1930 João Pessoa PB PB
José Pacheco 1890 Correntes AL 1954 Maceió AL AL
José Francisco Soares 1914 Alagoa Grande PB 1981 Timbaúba PE PE
Manoel d'Almeida Filho 1914 Alagoa Grande PB 1995 Aracaju AL SE
Rodolfo Coelho Cavalcante 1919 Rio Largo AL 1987 Salvador BA BA
Severino Borges Silva 1919 Aliança PE 1991 Timbaúba PE PE
José Pedro Pontual 1921 Carpina PE PE
João José da Silva 1922 Vitória de S. Antão PE 1997 Recife PE PE
Otacílio Batista 1923 Vila Umburanas PE 2003 João Pessoa PB PE
Antônio Patrício de Souza
(Toinho da Mulatinha) 1925 Esperança PB PB
João Amaro (Jotamaro) 1926 Fortaleza CE 1993 Fortaleza CE CE
Apolônio Alves dos Santos 1926 Serraria-Guarabira PB 1998 Campina Grande RJ - DF - PB
José Costa Leite
(H. Romeu – Seu Mané
do Talo
Dentro) 1927 Sapé PB PE
Severino Francisco Carlos 1929 Limoeiro PE PE
Enéias Tavares dos Santos 1931 Marechal Deodoro AL AL
João Firmino Cabral 1940 Itabaiana SE SE
Franklin Machado
(K. Gay Nawara) 1943 Feira de Santana BA BA
Beto Brito 1963 Santo Antônio de Lisboa
PI PB
Manoel Apolinário Pereira ? ? PE 1955 Juazeiro do Norte CE CE
Antônio Almeida Silva ? ? CE
Silvino Pereira da Silva ? ?
QUADRO 1 – Cartografia dos poetas
Fonte: Pesquisa de campo, 2008.
53
3.2.1 Linha do tempo
GRÁFICO 1 – Linha do tempo.
Fonte: Pesquisa de campo, 2008.
54
Considerando a linha do tempo dos autores, elaborada acima, partindo da
data do nascimento de Leandro Gomes de Barros – 1865 – verifica-se que o período
considerado é de quase de 150 anos, chegando a 2009. Mas, se for considerado o
período de produção, vê-se que o folheto mais antigo encontrado nesta pesquisa, a
respeito da mulher negra, é O gênio das mulheres de Leandro Gomes de Barros,
que é mais ou menos da primeira cada de 1900, e o mais recente, Loiras e
morenas – o xodó do Brasil, de Beto Brito, é de 2006. Então, o período vai se reduzir
para cerca de cem anos. Assim, é possível, dentro dessa cartografia elaborada,
considerar que a mulher negra recebeu a atenção dos autores em épocas e
períodos diversos. A existência de ciclos temáticos recorrentes sobre a personagem
negra será objeto de análise na secção sobre a cartografia dos temas.
55
3.2.2 Mapa da movência dos autores
FIGURA 2 – Mapa de movência dos autores
Fonte: Pesquisa de campo, 2008.
56
A análise desse mapa, que apresenta as trajetórias dos poetas populares
catalogados para esta pesquisa, propõe várias considerações.
Em primeiro lugar, percebe-se que a Paraíba é “a pátria”, o berço mais
fecundo de poetas, cantadores e repentistas populares. São 8 (oito) os nascidos
nesse estado - 36,6% (trinta e seis vírgula seis por cento) do total de 22 (vinte e
dois) poetas catalogados. Ao mesmo tempo, a Paraíba é o maior “exportador” para
outros estados: quatro, para Pernambuco, um, para o Rio de Janeiro e um, para
Sergipe. Isso significa que 75% (setenta e cinco por cento) dos poetas paraibanos
deixaram o seu lugar de origem e foram para outros lugares e, como mostram suas
biografias, partiram em busca de trabalho e de melhores oportunidades de vida.
Em segundo lugar, tem-se o estado de Pernambuco, com seis poetas, um
dos quais deixou o estado, transferindo-se para o Ceará. Dos três que nasceram em
Alagoas, um emigrou para a Bahia, e dois permaneceram em pátria. No Ceará,
nasceram dois poetas - um chegou de Pernambuco. Piauí, Sergipe e Bahia tiveram
um poeta cada.
Por último, é preciso lembrar que a estatística não se refere a todos os poetas
populares, mas só àqueles que escreveram folhetos sobre a mulher negra.
Analisando o mapa, pode-se afirmar que o contexto no qual os poetas
atuaram é homogêneo: é o contexto do Nordeste, com toda a sua história, cultura e
tradições. O único poeta emigrado em Rio de Janeiro escreveu sobre um tema
“clássico” como a “Escrava” (Santos, Apolônio Alves dos. História e martírios da
escrava Anastácia, 1985).
Tipicamente do contexto baiano são os folhetos que têm como temática a
macumba. A Bahia é um dos estados onde o sincretismo religioso é muito forte e
não é por acaso que os poetas que escreveram sobre o tema, foram o baiano
Franklin Machado e Rodolfo Coelho Cavalcante, baiano de adoção.
Sobre esse forte sincretismo pode-se tomar como exemplo a igreja de Nossa
Senhora do Rosário dos Pretos, onde os ritos católicos e os de umbanda e de
candomblé dividem espaço democraticamente nas missas de domingo. Todavia isso
acontece nos dias atuais, porque na época da escravidão as igrejas católicas eram
divididas para negros e brancos. Um bom exemplo disso foi a existência das
Irmandades Negras. Alves (2006), em pesquisa realizada sobre a atuação das
57
irmandades negras da Paraíba no século XIX, mostra que as irmandades são
instituições religiosas cujo funcionamento dependia de autorização judicial e da
igreja. Tais irmandades tinham como finalidade a divulgação e a promoção do culto
de um santo padroeiro. Para isso, realizava a sua festa por meio de procissões,
missas e homenagens com velas e toques dos sinos. Segundo a autora, no entanto
essas irmandades surgiram sob o signo da ambiguidade, uma vez que nasceram
para de certa forma, “domesticar” os negros segundo os preceitos do catolicismo.
Por outro lado, serviram também de espaços para os negros reconstruírem seus
laços sociais, assumindo outro papel social que não o de escravos.
Sobre essa desterritorialização e sua influência na composição narrativa dos
poetas, um folheto fora do contexto do Nordeste é O japonês que ficou roxo pela
mulata, de Machado (1976). Considera-se, nesse caso que a presença dos
japoneses é mais um fenômeno do Sudeste do Brasil do que do Nordeste. É
preciso, ainda, lembrar, que Machado passou um período no Rio de Janeiro e que o
folheto data de 1976, tempo em que as fronteiras culturais começavam a ser mais
abertas. Portanto, esse folheto apresenta a variante das relações interétnicas,
contando como uma mulata conseguiu enlouquecer um japonês através de seus
dotes sensuais, e mostrando a sua esperteza de mulher da cidade grande. Na
cartografia temática, apresentam-se alguns trechos que servem de exemplo.
Para se conhecer melhor a caminhada dos poetas e suas aventuras literárias,
é mister que se reconheça o seu perfil, exposto no quadro a seguir.
58
3.3 Cartografia dos autores com dados biográficos e geográficos
Poeta: Leandro Gomes de Barros
Local e ano de nascimento: Pombal -
PB, 1865.
Local e ano de falecimento: Recife -
PE, 1918
Produção literária: pioneiro na
publicação de folhetos rimados, é autor
de uma obra vasta, o que lhe confere o
título de poeta maior da literatura de
cordel, deixando um acervo de cerca de
mil folhetos escritos. Foi o maior editor
antes de João Martins de Athayde, que o
sucedeu. O vigoroso programa editorial
de Leandro levou a literatura de cordel
às mais distantes regiões, graças ao
bem sucedido projeto de redistribuição
por meio dos chamados agentes.
- Lampeão e a velha
feiticeira
- Descrição das
mulheres conforme
seus sinais
- O gênio das
Mulheres
Poeta: João Martins de Athayde
Local e ano de nascimento: Cachoeira
da Cebola, Ingá - PB, 1880
Local e ano de falecimento: Recife -
PE, 1959
Produção literária: Trabalhou como
mascate e atraído pela febre da
borracha, foi para o Amazonas onde
teve 25 filhos. Retornou ao Nordeste e
transferiu-se para Recife, onde fez curso
de enfermagem. Em 1921, comprou o
projeto editorial de Leandro Gomes de
Barros, tornando-se o maior editor de
literatura de cordel de todos os tempos.
Em 1950, vendeu os direitos da gráfica
para José Bernardo da Silva,
estabelecido com a tipografia São
Francisco em Juazeiro do Norte-CE, que
passou a editar toda a coleção
comprada.
- Historia da escrava
Guiomar
59
Poeta: Francisco das Chagas Batista
Local e ano de nascimento: Teixeira -
PB, 1882
Local e data de falecimento: João
Pessoa - PB, 1930
Produção literária: poeta popular,
escritor e editor conhecido por Chagas
Batista. Considera-se sua melhor obra o
folheto Antônio Silvino, vida, crimes e
julgamento. Em 1900, mudou-se para a
cidade de Campina Grande, onde
trabalhou carregando água e lenha e foi
operário da Estrada de Ferro de Alagoa
Grande. Começou a escrever suas
histórias rimadas em 1902. Morou em
Guarabira e depois na capital do estado
da Paraíba, onde se fixou,
estabelecendo-se com a Livraria Popular
Editora, na Rua Barão do Triunfo, que
sobreviveu até 1932.
- A escrava Isaura
Poeta: José Pacheco da Rocha
Local e ano de nascimento: Porto
Calvo/Correntes - AL, 1890
Local e data de falecimento: Maceió -
AL, 1954
Poeta popular bastante fecundo,
caracterizado pela jocosidade e pela
variedade de temas de suas
composições. Dedicou-se a várias
atividades paralelas: trabalhou em feiras,
ora vendendo folhetos, ora
comercializando gêneros alimentícios.
Segundo informações de sua filha,
chegou também a ser proprietário de um
circo.
- Lampeão e a velha
feiticeira
- Os Mamadores da
Negra dum Peito Só
60
Poeta: José Francisco Soares
Local e data de nascimento: Alagoa
Grande - PB, 1914
Local e data de falecimento: Timbaúba
- PE, 1981
Produção literária: poeta popular,
residia em Recife - PE. José Soares
imprime os próprios folhetos, quase
todos de época. Em razão dessa
característica, ele mesmo se intitula
poeta-repórter. Publicou seu primeiro
folheto em 1929 A descrição do Brasil
por Estados”, com 16 páginas
impresso em Itabaiana. publicou
cerca de 280 folhetos. Tinha uma
barraca para vender folhetos no Cais de
Santa Rita.
- A negra de um peito
Poeta: Manoel d'Almeida Filho
Local e data de nascimento: Alagoa
Grande - PB, 1914
Local e data de falecimento: Aracaju -
SE, 1995
Produção literária: Seu primeiro folheto
foi escrito em 1936: A Menina que
Nasceu Pintada com as Sobrancelhas
Raspadas. Era uma história de exemplo,
gênero com o qual não teria muita
afinidade, quando de sua maturidade
poética.
Por muitos anos, manteve uma banca
de folhetos em Aracaju, cidade em que
viveu a maior parte de sua vida,
exercendo salutar influência sobre um
grupo de poetas da região, lutando pela
atualização da literatura de cordel. Em
1955, ajudou Rodolfo Coelho Cavalcante
a organizar o primeiro Congresso de
Trovadores e Violeiros, realizado em
Salvador. Nessa ocasião, entrou em
contato com a Editora Prelúdio
(antecessora da Luzeiro) de São Paulo,
onde publicaria boa parte de sua obra.
- A vitória de Floriano
e a Negra Feiticeira
- Gabriela
61
Seus folhetos sobre o cangaço ocupam
lugar privilegiado na poesia popular,
destacando-se na sua extensa
bibliografia Os Cabras de Lampião.
Almeida era revisor e selecionador de
textos da Editora Luzeiro.
Poeta: Rodolfo
Coelho Cavalcante
Local e data de nascimento: Rio Largo
- AL, 1919
Local e data de falecimento: Salvador -
BA, 1987.
Produção literária: Aos 13 anos de
idade, deixou a casa paterna. Percorreu
todo o interior dos estados de Alagoas,
Sergipe, Ceará, Piauí e Maranhão, como
propagandista, palhaço de circo e
camelô, fixando-se em Salvador - BA,
desde 1945. Escreveu suas histórias em
versos e militou no jornalismo. Em 1955
promoveu em Salvador - BA o primeiro
Congresso Nacional de Trovadores e
Violeiros, do qual surgiu o Grêmio
Brasileiro de Trovadores, com sede em
Salvador. Rodolfo Coelho Cavalcante
fundou vários periódicos - A Voz do
trovador, O Trovador, Brasil - Poético - e
foi membro fundador da Associação
Baiana de Imprensa.
- A macumba da
Bahia
- A macumba da
negra saiu errada
- A Negra da trouxa
misteriosa procurando
tu
Poeta: Severino Borges da Silva
Local e data de nascimento: Aliança -
PE, 1919
Local e data de falecimento: Timbaúba
- PE, 1991.
Produção literária: Começou a
escrever em 1936 e a cantar em 1942.
Seu primeiro folheto foi publicado pela
tipografia de A Folha de Itabaiana”, na
Paraíba. Severino Borges era amigo de
Luiz Gomes Lumerque, poeta e
astrólogo de conhecimento vasto
falecido em 1959. Rastros dessa
influência são sensíveis em dois dos
- A escrava Isaura
62
cerca de 100 folhetos publicados após a
morte de Lumerque.
Acróstico: BORGES.
Poeta: José Pedro Pontual
Local e data de nascimento: Carpina -
PE, 1921.
Produção literária: Começou vendendo
folhetos, aos 14 anos. Depois, passou a
escrever e publicar suas histórias. Autor,
entre outros, dos folhetos A discussão
de um tolo e dois sabidos e Um
bandoleiro lutando em defesa do amor.
- O malandro e a
piniqueira no
chumbrêgo da orgia
Poeta:
João José
da Silva
Local e data de nascimento: Vitória de
Santo Antão - PE, 1922
Local e data de falecimento: Recife -
PE, 1997.
Produção literária: Aos dez anos de
idade improvisava versos para seus
amigos e conhecidos. Por falta de
recursos, conseguiu nessa época
fazer o curso primário, vindo a se
aperfeiçoar somente na meia idade,
como autodidata. Em 1947 tornou-se
profissional da poesia, escrevendo então
seu primeiro livro em versos. Viveu em
Recife - PE, onde estabeleceu a
Folhetaria Luzeiro do Norte, de sua
propriedade, que desde o início da
década de 50 imprime folhetos. Até 1964
mais ou menos, a Luzeiro do Norte
disputava com Manoel Camilo o
segundo lugar entre os melhores do
nordeste.
Acróstico: JOSILVA.
- O terror da
escravidão
- Peleja de Severino
Borges com a negra
Furacão
Poeta: Otací
lio Batista Guedes
Patriota
Local e data de nascimento: Vila
Umburanas - PE, 1923
Local e data de falecimento: João
- O peido que a nega
deu quase não passa
no cu
63
Pessoa - PB, 2003
Produção literária: Poeta e repentista,
o mais novo dos três famosos irmãos
Batista (além dele, Lourival e Dimas),
Otacílio participou pela primeira vez de
uma cantoria em 1940, durante uma
Festa de Reis em sua cidade natal.
Daquele dia em diante, nunca mais
abandonaria a vida de poeta popular.
Em mais de meio século de repentes,
participou de cantorias com
celebridades, como o cego Aderaldo e
outros. Conquistou vários festivais de
cantadores realizados nos estados de
Pernambuco, Ceará, Rio de Janeiro e
São Paulo.
Publicou, ainda, vários livros. Entre os
quais, destacam-se: Poemas que o povo
pede; Rir até cair de costas; Poema e
canções e Antologia Ilustrada dos
cantadores, este último, com F.
Linhares. Versos de Otacílio foram
musicados pelo compositor Zé Ramalho,
dando origem à canção “Mulher nova,
bonita e carinhosa”, gravada inicialmente
pela cantora Amelinha e, depois, por ele
mesmo.
Poeta: An
nio Patrício de Souza
Local e data de nascimento:
Esperança - PB, 1925
Produção literária: Cantador e poeta de
bancada é especialista em Coco de
embolada desde 1940. Em 1945
escreveu seu primeiro folheto. “Sou
velho na cantoria/ Nasci na antiguidade/
Deus sabe minha idade/ E minha
sabedoria”...
Pseudônimos: Toinho da Mulatinha
- Carregando quem
não presta / A negra
da trouxa grande
Poeta: João Amaro (Jotamaro)
Local e data de nascimento: Fortaleza
- CE, 1926
- A briga do trocador
com a Nêga do
Pirambu
64
Local e data de falecimento
: Fortaleza
- CE, 1993
Poeta:
Apolônio Alves dos Santos
Local e data de nascimento: Serraria,
município de Guarabira - PB, 1926.
Local e data de falecimento: Campina
Grande - PB, 1998.
Produção literária: Começou a
escrever folhetos aos vinte anos. Seu
primeiro romance foi Maria Cara de Pau
e o Príncipe Gregoriano, que, não
podendo publicar, vendeu a José Alves
Pontes, em Guarabira. A venda se
efetuou em 1948, mas o romance foi
impresso no ano seguinte.
Em 1950, tentando melhorar de vida, foi
para o Rio de Janeiro, onde trabalhou na
construção civil como pedreiro
ladrilheiro, e, em 1960, foi trabalhar na
construção de Brasília, mas sempre
escrevendo e vendendo seus folhetos. É
dessa época sua obra A construção de
Brasília e sua inauguração, que se
esgotou pouco tempo depois de
publicada. Em 1961, logo após a
inauguração de Brasília, voltou ao Rio
de Janeiro. Passou os últimos anos em
Guarabira, Paraíba, vindo a falecer em
Campina Grande. Escreveu cerca de
120 folhetos.
- História e martírios
da escrava Anastácia
Poeta: José Cost
a Leite
Local e data de nascimento: Sapé -
PB, 1927.
Produção literária: poeta popular,
xilógrafo e editor, reside em Condado -
PE. Sua folheteria e casa editora
chamam-se A voz nordestina. Além de
folhetos compostos, a maioria de oito
páginas, publica anualmente o
Calendário Brasileiro, um almanaque ou
folhinha de inverno, como os
consumidores batizaram esse gênero de
- A negra velha da
trouxa montada no
bode preto
- O peido que a nêga
deu
- A Luta de Antônio
Silvino com a Negra
Dum peito Só
- O encontro de
Lampião com a Negra
de um Peito Só
65
publicação. A produção de José Costa
Leite, em número de títulos, talvez seja a
maior de quantos poetas houve. Como
xilógrafo, seu nome foi incluído entre os
dozes melhores do Nordeste.
Acrósticos usados: JCOSTA,
JOSECLEITE, COSTALEITE.
Pseudônimos: H. Romeu, João
Parafuso, Seu Mané do talo dentro.
Severino Francisco Carlos
Local e data de nascimento: Limoeiro-
PE, 1929
Produção literária: Poeta popular, aos
16 anos, dedicou-se a cantar, compor
versos e vender folhetos de cordel. Entre
as inúmeras histórias que escreveu,
distinguem-se: O boiadeiro valente, Os
amores de Gercina, O vaqueiro vingador
e As bravuras de um vaqueiro na
Fazenda Verdejante.
- A negra do
penteado e a trouxa
misteriosa
Poeta: Enéias Tavares dos Santos
Local e data de nascimento: Marechal
Deodoro - AL, 1931.
Produção literária: Filho de
agricultores, teve instrução primária
incompleta e, já adulto, estudou música,
desenho e pintura. Não completou os
estudos por razões econômicas.
Aprendeu xilogravura sozinho, tendo
realizado, entre inúmeros outros
trabalhos, uma Viassacra para a Galeria
de Arte de Aracaju - SE. Na Bahia, em
1947, travou conhecimento com a
literatura de cordel, e, ao voltar para
Alagoas, tornou-se vendedor de
folhetos. Em 1953, escreveu seu
primeiro livro – O cavalo Ventania,
seguido depois de O cangaceiro Isaías
(seu maior sucesso), O pai traidor, A
carta de Satanás a Roberto Carlos e
muitos outros. Até 1973, foi servente do
Conservatório de Música de Sergipe e,
sucessivamente, funcionário do Museu
- O encontro de um
Feiticeiro com a
Negra de um peito só
66
Théo Brandão, em Maceió - AL.
Acrósticos: ENÉIAS, TAVARES,
FEITICEIRO.
João Firmino Cabral
Local e data de nascimento: Itabaiana -
SE, 1940.
Produção literária: Agricultor desde
menino começou na juventude a
demonstrar interesse pelas letras:
comprava então folhetos de literatura de
Cordel, que usava como cartilha, pois
com eles aprendeu a ler. Aos 17 anos
descobriu sua vocação poética e
escreveu uma Profecia do Padre Cícero.
Mora atualmente em Aracaju, vivendo
exclusivamente da venda de folhetos de
Literatura de Cordel.
No ano de 1976, ganhou o primeiro
prêmio do concurso de literatura de
cordel da Universidade Federal de
Pernambuco. Em 1978, recebeu prêmios
de literatura de cordel da Caixa
Econômica Federal, do SESC e SENAC.
Em 1982, ganhou a medalha de menção
honrosa da Universidade de Campina
Grande. Em 2001, foi condecorado pelo
prefeito de Aracaju com a medalha do
Mérito Cultural Inácio Barbosa.
Usa o acróstico FIRMINO
- Amor e Martírio de
uma Escrava
Poeta: Franklin de Cerqueira Machado
Local e data de nascimento: Feira de
Santana - BA, 1943.
Produção literária: Bacharel em direito,
optou por fazer exclusivamente literatura
de cordel, palestras sobre o tema e
xilogravuras. Escreveu, entre outros, A
volta do pavão misterioso. Morou,
durante alguns anos, no Rio de Janeiro.
Acróstico: Maxado
Pseudônimos: Maxado Nordestino, K.
Gay Nawara
- Vida e morte de
Helena do bode
- A cinderela Mulata
da cidade
Maravilhosa
- O Japonês que ficou
roxo pela mulata
67
Poeta: Manoel Apolinário Pereira
Local e data de nascimento:
Pernambuco - Data de nascimento
desconhecida.
Produção literária: Poeta popular
sobressaiu-se nos romances, embora
tenha se dedicado a outros gêneros.
Acróstico: MANOELAPOLINARI0
- História do Príncipe
Jaci e a Negra “Moura
Torta”
Poeta:
Beto Brito
Local e data de nascimento: Santo
Antônio de Lisboa - PI, 1963
Produção literária: Beto Brito mora em
João Pessoa, onde trabalhou no
comércio aabrir a própria loja, da qual
se desfez para investir em sua carreira
artística, no ano de 1995. Além de
cantor, é compositor e escritor de cordel;
lançou três CDs, o último, intitulado
Imbolê, traz uma mistura de repente,
peleja, coco, toré, baião, martelo, cordel,
rabeca e viola. O CD foi produzido por
Robertinho do Recife e tem a
participação especial de Zé Ramalho.
- Loiras e Morena O
xodó do Brasil
Antonio Almeida Silva
Local e data de nascimento:
provavelmente cearense
Produção literária: Poeta popular
contemporâneo.
- A embolada da
Negra Fulô
Silvino Pereira da Silva
Local e data de nascimento: dados
biograficos não encontrados
Produção literária: Poeta popular.
- A História da
Escrava Izaura
QUADRO 2 – Cartografia dos autores.
Fonte: Pesquisa de campo, 2008.
68
Uma pergunta pertinente e recorrente é como seria possível uma cartografia
de folhetos sobre a personagem negra.
Em 1928, Vladimir Propp, que pertenceu ao grupo dos formalistas russos,
realizou um estudo sobre a análise morfológica dos contos populares, em que
reconhece a necessidade de começar o trabalho analítico por meio de um
procedimento classificatório correto dos materiais coletados. Além disso, acrescenta
uma posição crítica das mais relevantes, pois, segundo seu entendimento, para ser
um arranjo ou classificação é preciso tomar como princípio a cientificidade, a
precisão classificatória trará uma coerência e precisão conceitual. Se assim não é
feita, baseia-se em intuição; e não existindo um corpus delimitado, postula-se um
grande problema a resolver.
Propp (1970) submete as diferentes propostas de classificação por temas ou
assuntos a uma crítica contundente, ficando ressaltado que as partes constitutivas
de uma história podem ser transpostas para outras histórias. Tal concepção constitui
o princípio da permutabilidade, que é uma das características das narrativas
populares. Sendo assim, fica evidente que nenhum princípio pode determinar a
escolha dos elementos dentro da narrativa, que possibilite a sua classificação num
ciclo temático.
Consubstancialmente ao que foi posto anteriormente, o assunto ou tema é
todo um complexo; havendo uma variabilidade e heterogeneidade, e sendo assim, a
tarefa de tomar recortes temáticos para os estudos classificatórios em narrativas de
folhetos de cordel parece ser remota e talvez resulte em uma atividade inútil. Assim -
como afirma Menezes (2007) - “levando em conta esses princípios básicos, força a
reconhecer que tais classificações, tão caras à nossa tradição letrada quando se
trata de aplicá-las às manifestações da cultura popular, alteram a natureza do
material estudado” (p. 84).
Menezes cita Zumthor (apud MENEZES, 2007), mostrando que esse autor
acredita ser possível reduzir todas as classificações a um esquema geral, que
comporta dois grandes conjuntos temáticos. As diversas classificações dessa
literatura, que têm sido propostas, distinguem nela essencialmente dois grupos de
textos: um, com dominante ética, cujas narrativas têm por finalidade declarada
expor graças e desgraças, méritos ou deméritos, desta ou daquela personagem
típica ou de uma categoria social, por vezes de uma região ou de certa cidade; o
69
outro, com dominante heróica, narra as aventuras de indivíduos históricos ou
legendários (do Presidente Kubitschek ao Boi Misterioso), com cujo destino o
conjunto dos leitores ou ouvintes é virtualmente convidado a identificar-se.
Para Menezes (2007) uma nítida simplificação porque nessa tentativa de
agrupamento deixam-se em segundo plano os múltiplos e significativos trajetos
percorridos pelo imaginário popular e de expressão simbólica. Sendo assim,
Zumthor não avança em nada, nesse estudo, sobre classificação de narrativas
populares.
Apesar de todas essas complicações e dificuldades, é importante utilizar
como parâmetro as categorias usadas por Suassuna (apud MENEZES, 2007). Ele
adota dois níveis ou gêneros de discurso, um erudito e outro popular, propondo
assim duas classificações bem diversas. A primeira delas enumera oito ciclos
temáticos: 1) Ciclo heróico, trágico e épico; 2) Ciclo do fantástico e do maravilhoso;
3) Ciclo religioso e de moralidades; 4) Ciclo cômico, satírico e picaresco; 5) Ciclo
histórico e circunstancial; 6) Ciclo de amor e de fidelidade; 7) Ciclo erótico e
obsceno; 8) Ciclo político e social; 9) Ciclo de pelejas e de desafios. (* Antologia,
tomo III, volume 2, de Literatura Popular em Verso, da Fundação Casa de Rui
Barbosa). Essa classificação tem a vantagem de sintetizar várias outras de uma
forma talvez mais refinada. Todavia, desde logo comete omissões e acrescenta o
equívoco de misturar numa mesma tipologia pelejas e romances, que são produções
de gêneros distintos.
Como foi referida e descrita anteriormente, a classificação de Ariano
Suassuna (apud MENEZES, 2007), revela-se a mais sintética e busca seu fio
condutor nas próprias histórias contadas por ele. Veja-se o caso do uso de um
estratagema que fala por intermédio de João Melchíades, padrinho da personagem
central de seu romance A Pedra do Reino.
Seguindo o rastro do esquema erudito de Ariano Suassuna (apud MENEZES,
2007), pode-se dizer que também nos folhetos sobre a mulher negra encontram-se
alguns ciclos temáticos semelhantes àqueles gerais, a saber: 1) Ciclo heróico,
trágico e épico: Escravas Anastácia, Isaura, Guiomar...; 2) Ciclo do fantástico e do
maravilhoso: O mito da Negra dum Peito Só...; 3) Ciclo religioso e de moralidades:
Macumba, folhetos contra a corrupção dos costumes...; 4) Ciclo cômico, satírico e
picaresco: O peido...; 5) Ciclo erótico e obsceno: Sexo, mulata...; 6) Ciclo de pelejas
70
e desafios: poucas, mas significativas, como a Peleja “teológica” de Severino Borges
com a negra Furacão, de Silva (19--?).
Encontram-se também as seguintes semelhanças com a classificação popular
de Suassuna: 1) romances de amor (em sentido lato os folhetos sobre as
Escravas...); 2) os de safadeza e putaria (sexo, peido...); 3) os de exemplo (cuidado
com a feitiçaria e o catimbó...); os de espertezas, estradeirices e quengadas (o mito
da Negra dum Peito Só...).
Eleger um poeta popular e situá-lo, segundo uma tipologia é difícil, pois na
verdade eles escreveram e escrevem sobre os mais vários temas. No entanto, se
uma classificação necessita ser estabelecida, é incontestável que o rei da “putaria”,
“da esperteza” e das “quengadas” é, com certeza, José Costa Leite.
Chegou, por fim, o momento de propor uma alternativa para esse tipo de
classificações. Embora conscientes das dificuldades dessa empreitada, é mais
adequado trabalhar com categorias e não com tipos classificatórios. Assim, com
base no corpus, e nas esferas em que a personagem feminina negra é inserida
pelos poetas, podem-se destacar cinco categorias:
1. Feitiçaria;
2. Comportamento heróico;
3. Religião;
4. Corpo e deformidade corporal
5. Sexualidade.
Segue, então, a relação dos trinta e seis folhetos selecionados para a análise,
agora distribuídos em função das categorias aqui construídas e que lhes nortearão a
leitura.
71
3.4 Cartografia dos temas dos folhetos com personagens femininas negras
CATEGORIA AUTOR TÍTULO
1
Feitiçaria Antônio Almeida Silva A Embolada da Nega Fu
2
Feitiçaria José Costa Leite A negra velha da trouxa montada no bode prêto
3
Feitiçaria José Pacheco Lampeão e a Velha Feiticeira
4
Feitiçaria Jotamaro (João Amaro) A briga do trocador com a Nêga do Pirambu
5
Feitiçaria Leandro Gomes de Barros Lampeão e a Velha Feiticeira
6
Feitiçaria Manoel Apolinário Pereira História do Príncipe Jaci e a Negra Moura Torta
7
Feitiçaria Manoel d'Almeida Filho A vitória de Floriano e a Negra Feiticeira
8
Feitiçaria Rodolfo C. Cavalcante A Negra da Trouxa Misteriosa Procurando Tu
9
Feitiçaria Severino Francisco Carlos A negra do Penteado e a Trouxa misteriosa
10
Feitiçaria
Toinho da Mulatinha
(Antônio Patrício de Souza)
Carregando quem não presta A negra da trouxa
grande
11
Comportamento
heróico Apolônio Alves dos Santos História e martírios da escrava Anastácia
12
Comportamento
heróico Chagas Batista A Escrava Isaura
13
Comportamento
heróico João Firmino Cabral Amor e Martírio de uma Escrava
14
Comportamento
heróico João José da Silva O terror da escravidão
15
Comportamento
heróico João Martins de Athayde História da escrava Guiomar
16
Comportamento
heróico Severino Borges Silva A escrava Isaura
17
Comportamento
heróico Silvino Pereira da Silva A História da Escrava Izaura
18
Religião Franklin Machado Vida e morte de Helena do bode
19
Religião João José da Silva
Peleja de Severino Borges com a Negra Furacão
20
Religião Rodolfo C. Cavalcante A macumba da Bahia
21
Religião Rodolfo C. Cavalcante A macumba da negra saíu errada
22
Corpo e deformidade
corporal Enéias Tavares dos Santos O encontro de um Feiticeiro com a Negra de um peito só
23
Corpo e deformidade
corporal
H. Romeo
(José Costa Leite) O peido que a Negra deu
24
Corpo e deformidade
corporal José Costa Leite A Luta de Antônio Silvino com a Negra Dum peito Só
25
Corpo e deformidade
corporal José Costa Leite O encontro de Lampião com a Negra de um Peito Só
26
Corpo e deformidade
corporal José Pacheco Os Mammadores da Negra dum Peito só
27
Corpo e deformidade
corporal José Soares A negra de um peito
28
Corpo e deformidade
corporal Otacilio Batista O peido que a nega deu quase não passa no cú
29
Sexualidade Beto Brito Loiras e Morenas – O xodó do Brasil
72
30
Sexualidade José Pedro Pontual O malandro e a piniqueira no chumbrêgo da orgia
31
Sexualidade
K. Gay Nawara
(Franklin Machado) A cinderela Mulata da cidade Maravilhosa
32
Sexualidade Leandro Gomes de Barros Descrição das mulheres conforme seus sinais
33
Sexualidade Leandro Gomes de Barros O Gênio das Mulheres
34
Sexualidade Manoel d'Almeida Filho Gabriela
35
Sexualidade
Maxado Nordestino
(Franklin Machado) O Japonês que ficou roxo pela mulata
36
Sexualidade
Seu Ma do Talo Dentro
(José Costa Leite) Uma noite de lua de mel
QUADRO 3 – Temas dos folhetos com personagens femininas negras.
Fonte: Pesquisa de campo, 2008.
Seguindo esse esquema de categorias analíticas, foram recortados os
principais fragmentos dos textos em que a mulher negra está representada.
Também as imagens das capas dos folhetos integrarão a análise.
73
3.4.1 Feitiçaria
FIGURA 3 – Capas de folhetos: feitiçaria 1
Fonte: Pesquisa de campo, 2008
74
FIGURA 4 – Capas de folhetos: feitiçaria 2
Fonte: Pesquisa de campo, 2008
75
FIGURA 5 – Capas de folhetos: feitiçaria 3
Fonte: Pesquisa de campo, 2008
76
77
78
79
80
81
82
83
84
85
86
87
88
3.4.2 Comportamento heróico
FIGURA 6 – Capas de folhetos: comportamento heróico 1
Fonte: Pesquisa de campo, 2008
89
FIGURA 7 – Capas de folhetos: comportamento heróico 2
Fonte: Pesquisa de campo, 2008
90
91
92
93
94
95
96
97
98
3.4.3. Religião
FIGURA 8 – Capas de folhetos: Religião
Fonte: Pesquisa de campo, 2008
99
100
101
102
103
104
105
3.4.4 Corpo e deformidade corporal
FIGURA 9 – Capas de folhetos: corpo e deformidade corporal 1
Fonte: Pesquisa de campo, 2008.
106
FIGURA 10 – Capas de folhetos: corpo e deformidade corporal 2
Fonte: Pesquisa de campo, 2008.
107
108
109
110
111
112
113
114
115
116
117
118
119
3.4.5 Sexualidade
FIGURA 11 – Capas de folhetos: sexualidade 1.
Fonte: Pesquisa de campo, 2008.
120
FIGURA 12 – Capas de folhetos: sexualidade 2.
Fonte: Pesquisa de campo, 2008.
121
122
123
124
125
126
127
128
129
130
131
132
4 A SOCIEDADE BRASILEIRA E O IMAGINÁRIO ÉTNICORRACIAL A PARTIR
DO SÉCULO XIX
4.1 Breve resenha de estudos sobre relações raciais e racismo no Brasil
A história da mulher negra esintimamente ligada à história da escravidão, a
respeito da qual é imperioso refletir, começando por conceituá-la. Neste sentido, o
vocábulo “escravidão” significa, portanto:
1. Condição de escravos, servidão, cativeiro, escravaria, escravatura;
2. Sistema socioeconômico baseado na escravização de pessoas;
escravismo;
3. Sujeição a uma autoridade déspota (HOLANDA, 2001, p.1210).
No Brasil, tratar de escravismo, escravatura, escravizado é pensar em prática
social em que um ser humano tem direitos de propriedade sobre outro designado
por escravo, ao qual é imposta tal condição por meio da força. Desde sua nese o
escravo é legalmente definido como uma mercadoria, ou seja é comprado, vendido,
dado ou trocado por uma dívida, sem que o escravo possa exercer qualquer direito e
objeção pessoal ou legal. A escravidão da era moderna está baseada num forte
preconceito racial, segundo o qual o grupo étnico que detém o poder econômico é
considerado superior. Moura (1983) situa, histórica e sociologicamente, a escravidão
moderna, definindo-a como um modelo que surgiu primeiramente com o
mercantilismo e se consolida com a expansão do capitalismo, estando a serviço da
acumulação do capital ( p. 15-16).
A escravidão, no entanto, foi um fenômeno constante em épocas remotas,
como na Mesopotâmia, no Egito, na Grécia e em Roma. Nessas sociedades antigas,
era normal que os prisioneiros de guerra se tornassem escravos do vencedor. O
direito romano tinha um regulamento também para a escravidão, e isso acontecia
em outras sociedades e culturas. Na África, por exemplo, a pratica da escravidão
existia muito tempo antes do tráfico moderno desenvolvido pelos europeus.
Mattoso (1982) afirma que:
133
O escravo já existe nas sociedades muito hierarquizadas, mas
somente é numeroso no Benin e nas regiões sudano-saelianas. Mas
o “cativo” integra-se na família e não pode ser vendido. É uma
escravidão quase patriarcal, que exclui o tráfico. No Daomé, os filhos
de escravos quase escravos nascem livres e fazem parte da família
do senhor. Influências estrangeiras e mercados exteriores
tardiamente generalizaram o cativeiro com o tráfico e a venda como
destinação mais ou menos imediata (p.15).
Um pouco diverso é o conceito de escravidão que, segundo a Bíblia, estava
ligado a dois eventos especiais: a falta de liberdade no Egito e o cativeiro da
Babilônia
7
. Em todos os casos, faltava ao povo sua liberdade. Nesse documento a
Bíblia considerado um dos mais antigos da humanidade, encontra-se a explicação
seguinte para a servidão humana:
... subiu ao trono do Egito um novo rei que não tinha conhecido
José”. Ele disse ao seu povo:“Vejam! O povo dos filhos de Israel está
se tornando mais poderoso do que nós. Vamos vencê-los com
astúcia, para impedir que eles se multipliquem; do contrário, em caso
de guerra, eles se aliarão com o inimigo, nos atacarão e depois
sairão do país (Êxodo, 1: 8-10)
8
.
A libertação do povo do Egito foi dirigida por um grande der, Moisés, que se
constituiu como o protótipo do Messias, ou seja, como precursor do futuro messias
de Israel, gerando no meio do povo hebreu a idéia de messianismo. O Cristianismo
reconheceu a igualdade entre as pessoas, entre o homem e Deus, embora a
escravidão tenha sido aceita e referendada na Idade Média, sendo absorvida pelas
igrejas coloniais americanas.
Segundo Coquery-Vidrovitch (2004), a escravidão dos negros foi justificada
pelos teólogos, em razão da maldição de Cam. Assim, evidencia-se outra história
mítica para a explicação da existência da raça negra e da escravidão. Para a autora,
a história é contada da seguinte forma:
7
A prisão na cidade de Babilônia, quando os Judeus foram deportados pelo rei da Babilônia, Nabucodonosor.
8
Como comentário, tem-se: “Com medo de que o povo explorado tome consciência da própria situação e se revolte, o poder
político lança mão de trabalhos forçados e de pressão psicológica; assim o povo não tem condições e meios de se organizar e
se libertar” (p.69).
134
O jovem Cam viu a nudez de seu pai adormecido, Noé, que se
embriagara com o suco fermentado da primeira vinha que plantara.
Cam chamou seus irmãos mais velhos, mas estes, à diferença dele,
correram a cobrir o pai, andando de costas para não olhar. Ao
despertar da embriaguez, Noé amaldiçoou o filho caçula por sua
insolência: “maldito seja Canaã (filho de Cam) que ele seja o último
dos escravos. (COQUERY-VIDROVITCH, 2004, p. 754).
A referida autora afirma que a Bíblia para nesse ponto da história, mas o
inusitado é ainda mais instigante. Segundo o texto, acrescentam-se ao escrito
sagrado vários contos, entre os quais, o de Cuch, outro filho de Cam “este teria
descendentes de ter relações sexuais na arca. Cam concebeu um filho durante o
dilúvio, desobedecendo novamente às ordens de Noé, que proibia seus: Cuch. Deus
o amaldiçoou e o fez nascer negro” (Coquery-Vidrovitch, 2004, p. 752).
Entre o texto bíblico oficial e os desdobramentos feitos, a partir de leituras
diversas, vemos que, em uma longa descrição, a Bíblia vai falar de um enviado de
Deus, que é Moisés, que terá como missão retirar aquele povo da escravidão,
atravessando o Egito numa longa saga, descrita com belos momentos de
literariedade épica. A história oficial, através dos documentos religiosos mostra como
nasce o povo negro e a abordagem é indicativa de que existe uma simbologia
negativa.
Segundo Moura (1988), entre os Séculos XIX e XX a condição do escravo
representava apenas uma rejeição por parte dos negros em aceitar os padrões do
senhor e não uma decorrência da sua situação de escravo, da sua posição de
homem desumanizado, transformado em simples coisa.
Os estudiosos desse período como, por exemplo, Rodrigues (1977),
transferiam os conflitos sociais como problemática da escravidão para o plano
cultural: a problemática se resumia a fatos ligados à acomodação, à adaptação, à
assimilação e a outros níveis de consciência do escravo negro e sua rebeldia. O
conflito social era substituído por choques culturais. Nos estudos sobre o tráfico
negreiro e sua importância numérica, a maior preocupação era a de se saber a
procedência regional desses escravos para se aferir o grau de relevância cultural na
sociedade brasileira.
A escravidão trouxe para o imaginário coletivo a romantização da Mãe Preta,
do pai João, da ama-de-leite, criando-se um mito no processo de estratificação na
135
época em que eles eram “privilegiados” em relação aos escravos do eito e dos
trabalhos exaustivos, na agroindústria dos engenhos do Nordeste, na mineração e
nas charqueadas do Sul, trazendo, dessa forma, para a “casa grande” a idéia da
harmonia.
A base científica, do Século XIX, selecionava critérios biológicos,
especialmente quando foi introduzido nas primeiras universidades brasileiras o
método histórico-cultural, que era considerado verdade incontesti. Os estudos que
predominavam nas universidades, tanto nas Faculdades de Medicina quanto nas de
Direito, deslocaram o foco de atenção para a direção dos estudos sobre a
escravidão negra no Brasil nessa perspectiva culturalista e, durante muito tempo,
quem não seguisse esse direcionamento se marginalizava academicamente
(SCHWARCZ, 2003).
Os estudos etnológicos do linguajar feitos por pesquisadores, o projeto
arquitetônico das casas, as memórias religiosas, as manifestações folclóricas eram o
foco das análises. Todavia, muitas vezes deixaram de estudar a estrutura concreta
dessas comunidades afro descendentes, o nível de vida da sua população, os
problemas da propriedade da terra, a expulsão das populações da causa da
penetração do capitalismo no campo, ignorando também a ação das forças sociais e
econômicas que determinavam a sua desagregação e posterior destruição ou
dissolução.
Quando, depois da abolição, o imigrante foi introduzido no sudeste e sul do
Brasil, essa explicação justificou por que o se aproveitava o negro como
trabalhador assalariado. Com isso, ele era concebido como um ser de pura
natureza, rítmico, dionisíaco, sexual em comunhão apenas com as forças
elementares do mundo, enquanto que o branco era o racionalismo, o progresso, a
civilização. Assim se explica a tendência cultural do negro para ser jogador de
futebol, sambista, malandro, e a mulata, especificamente, tornar-se o símbolo do
sexo extraconjugal (CARONE, 2003).
Os negros eram a natureza, o biológico, e as suas culturas refletiam e
projetavam essa tendência, enquanto o ocidental, o branco era a razão, o progresso,
a civilização; e a sua cultura apresentava, por conseguinte, essa vocação “natural”.
Assim, a grande maioria da intelectualidade brasileira investigava o comportamento
136
a partir de substratos imateriais, metafísicos que o faziam um ser diferente e não
buscava alicerces em categorias concretas, notadamente sociais (CARONE, 2003).
Para muitos cientistas sociais das décadas de 30 e 40, o negro brasileiro era
dionisíaco, por isso era extrovertido, e o seu comportamento era expansivo e, ao
mesmo tempo, passivo. O ethos brasileiro move-se, então, em dois eixos básicos: o
da racionalidade civilizatória, que é o da virtude, e o primitivismo da sua própria
cultura. Nesse sentido, destaca-se como constituição da formação do nosso povo: o
ludismo, o misticismo, a imprevidência, a falta de apego a terra e uma tendência à
afetação e ao deslumbramento. Acredita-se que tais características não são
negativas, mas, ao contrário, constituem a força do brasileiro para superar
obstáculos (CARONE, 2003).
No livro Genocídio do Negro Brasileiro, de Nascimento (1978), vê-se a
explicação apaixonada para o desmascaramento do racismo no Brasil. O autor
mostra, de forma lúcida, como isso aconteceu no país, apontando as suas causas e
consequências. Para ele, o embranquecimento que surge como uma das vertentes
do pensamento brasileiro, como alternativa para a limpeza da raça, constituiu-se
como uma espécie de genocídio do povo negro.
Esse embranquecimento, que estaria ligado à idéia de que o casamento entre
brancos e negros iria formando uma raça mais clara, foi seguido também do
embanquecimento da cultura que se tratava de se aceitarem, sem questionamentos
de todos os modos dos brancos, como forma de estabelecimento de uma unidade
nacional. Assim, a música e os esportes tinham suas regras de aceitação do negro e
de sua cultura. Também o vestir deveria seguir uma padronização; havia o que o
autor chama de estética da brancura.
O autor discute ainda sobre a imagem racial internacional. Para ele, foi
exportada para o mundo a idéia de que há no Brasil uma democracia racial, uma vez
que se convive de maneira harmônica e democrática com essa pluralidade étnica.
Ele refere também que grandes cientistas corroboram com tal concepção. Entre
eles, destaca-se Pierre Verger, que argumenta a esse favor, ao afirmar que a
construção de um bairro de classe alta Bahia, em que se utilizam os nomes de
orixás africanos é uma prova cabal da grande harmonia dos povos brasileiros e a
banalização do sagrado, em nome do que se chama falta de atitudes
preconceituosas dos brasileiros. Assim, o que parece um ato de grande paz o fato
137
de que a classe alta baiana branca e católica aceitar morar nos edifícios Oxalá,
Oxossi, etc., na verdade, consiste em uma ocultação do preconceito racial.
4.2 A posição da mulher negra no panorama do racismo “à brasileira”
A discussão sobre a mulher negra e o racismo é peculiar. Torna-se, então,
motivador pensar a partir desse quadro geral produzido pela historiografia do século
XIX, sobre tais mulheres que viveram há dois, três séculos atrás. Essas mulheres
traziam em si o estigma de ser mulher, numa sociedade marcadamente patriarcal, e
o de ser negra, pois isso demarcava seu lugar no mundo: ser escrava. Quais as
condições materiais de existência como escravas, forras, amas-de-leite, quituteiras,
escravas prostitutas ou escravas de ganho? Essa é uma pergunta para a qual ainda
faltam respostas. Foram três séculos de escravidão com uma herança social e
cultural que marcou tais mulheres e suas vozes existindo uma representação social
e simbólica, que interessa à história, à sociologia, à psicologia e até à literatura
(SCHUMAHER; BRAZIL, 2001)
O desejo de produção e acumulação de riquezas, por parte dos homens
brancos da classe proprietária, fez com que viessem para o Brasil negros de todas
as regiões do continente africano, na condição de escravos. No período colonial, as
mulheres e os homens negros desempenhavam todas as funções nos engenhos -
serviam de mão-de-obra para todo o trabalho ligado à agricultura, principalmente à
canavieira no Nordeste brasileiro, bem como a extração de ouro e nos serviços
domésticos dos senhores proprietários de terras.
Nessa época, a ideologia era a de que existia uma raça superior e uma
inferior, servindo de palco para a submissão de mulheres e de homens negros,
considerados sem nenhuma aptidão intelectual. Sendo assim, foram submetidos ao
trabalho duro e torturados quando não davam conta de suas obrigações, tornando-
se meros objetos do sistema escravista colonial.
Sobre a mulher negra recai uma dupla responsabilidade, pois, além de todo o
trabalho pesado, mesmo grávida, ela não era dispensada das tarefas árduas, o que
gerou, em muitos casos, abortos e mesmo infanticídios. Tal fato era visto como um
problema causado pela própria mulher que, não raras vezes, era considerada
desumana. Para os patrões o importante era o lucro imediato. Nesse sentido, a
138
geração de mais escravos acarretaria em custos, por isso não havia por que
incentivar a gravidez da mulher negra, vez que o importante era o negro - homem ou
mulher -, que servisse para a produção. As mulheres, ao se tornarem amas-de-leite,
perdiam toda a sua identidade como mãe, pois abandonavam seus filhos para cuidar
dos filhos dos brancos, como se isso fosse uma determinação vinda de Deus
(MATTOSO, 1982).
FIGURA 13 – Capa de cordel.
Fonte: Pesquisa de campo, 2008.
Hoje, embora haja o conhecimento sobre leis trabalhistas, sindicatos e
consciência negra, muitas empregadas domésticas negras parecem substituir as
amas-de-leite do passado, esmerando-se no cuidado da casa e dos filhos dos
brancos, usando as mesmas estratégias. Algumas usam um vocabulário bem ao
gosto do período colonial, como se observa em alguns exemplos da realidade:
quando chamadas pelos donos da casa em que trabalham, respondem: “Nhô!”. Em
uma situação recente, uma empregada doméstica, mulher negra de
aproximadamente quarenta anos, aparentemente consciente de seus direitos e
deveres, diz sobre uma criança branca estrangeira que tinha chegado para passar
alguns dias, na casa em que trabalhava: “Se vocês quiserem, eu posso cuidar dele,
139
posso ser “sua Bá”, acrescentando, diante da perplexidade de quem estava ouvindo:
“sua mãe preta”.
9
Percebe-se nitidamente que, apesar da tentativa de negar a subalternidade
da mulher negra em relação à branca, os exemplos aparecem como se quisessem
mostrar que as representações e os lugares sociais permanecem cristalizados.
No que se refere ao exercício da sexualidade, a mulher negra segue a mesma
lógica das amas e empregadas no seu ofício. A idéia da escrava forra, escrava da
casa que deita com o patrão, sem nenhuma censura e mesmo demonstrando um
apetite todo próprio, é vista, em muitas circunstâncias como sendo natural, até
porque cabe a ela, além do trabalho doméstico, a satisfação sexual do homem,
porquanto, no período colonial à mulher branca não cabia tal exercício. Tudo isso
era alimentado pela estrutura da época colonial, permanecendo no imaginário
coletivo esse arquétipo de mulher.
Em textos como os de Freyre (2004), justificam-se tais comportamentos,
inclusive a miscigenação, e se estabelecem relações de harmonia entre a casa
grande e a senzala. Fica, assim, destituído qualquer tipo de violência dessa relação,
visto que isso aparece nos textos do referido autor como um item de convivência
pacífica entre as raças que ajuda na construção do mito da democracia racial.
No sistema escravocrata existe uma acomodação dos papéis sociais
desempenhados pelo homem negro/branco e pela mulher negra/branca (BOSI,
2003). Todavia, a verdade total mostra que houve sublevações dos negros na
tentativa de preservação de seus bens culturais, seus costumes, suas tradições. A
formação dos quilombos reflete um caráter de resistência da cultura negra.
A idéia de que o brasileiro convive de forma harmoniosa com as diferentes
raças e culturas formadoras do nosso povo demonstra ainda que subliminarmente
que o preconceito existe, e que ele constitui uma formação discursiva que está na
ordem das vozes sociais tanto populares quanto social e culturalmente mais
elevadas. Por essa razão, faz-se necessário perceber que meio e raça foram
9
Tratou-se de uma observação informal, feita por Francinete Fernandes de Sousa, no ano de 2007, em visita a
uma casa de classe média, onde ouviu, atenta, o diálogo da empregada doméstica com os seus patrões.
Chamava a atenção o fato de a doméstica ser negra, ter linguajar apurado e formas de tratamento de qualquer
mulher de classe média branca bem informada.
140
categorias usadas para explicar fenômenos econômicos e políticos do país no
Século XIX e terminaram por adquirir um caráter determinista: “clima e raça
explicando a natureza indolente do brasileiro, as manifestações tíbias e inseguras da
elite intelectual, o lirismo quente dos poetas da terra, o nervosismo e a sexualidade
desenfreada do mulato” (ORTIZ, 1998, p.16).
Tomando Sílvio Romero como referência, figura ilustre no culo XIX, devido
ao desenvolvimento de idéias ligadas à literatura e à cultura, observa-se que ele
considera meio e raça como “base fundamental de toda a história, de toda a política,
de toda a estrutura social, de toda a vida estética e moral das nações” (apud ORTIZ,
1998, p. 18). Interessa fundamentalmente discutir, no século XIX, a problemática da
mestiçagem. Na literatura, algumas obras de José de Alencar e de Gonçalves Dias
falam do índio como símbolo nacional. Apesar de Castro Alves eleger o negro como
personagem de muitos dos seus poemas, denunciando as atrocidades nos navios
negreiros, ele não consegue ultrapassar o canto ufanista nem seria possível,
que o contexto da época o condicionava àquele tipo de veiculação de mensagens.
No século XIX, embora visto como cidadão de segunda categoria, “o negro
aparece [...] como fator dinâmico da vida social e econômica brasileira, o que faz
com que, ideologicamente, sua posição seja reavaliada pelos intelectuais e
produtores de cultura” (ORTIZ, p. 19).
No caso da literatura popular e dos folhetos com temática sobre a mulher
negra, tem-se um quadro para ser desvendado e as explicações se inter-relacionam:
com as da historiografia e da personagem de ficção.
As tensões dialéticas e a própria construção histórica das relações da mulher
nos espaços sociais estão circunscritas ao espaço doméstico. A mulher rural,
sobretudo a de classe popular, carrega em si uma herança de rezadeira, que cuida
do interior da casa; mas também de um espaço externo (os arredores, os terreiros),
onde ela planta e sempre uma erva para curar mau-olhado. Tais características
vão desembocar no perfil da feiticeira, naquela que faz o pacto com o diabo ou outra
entidade vista como maléfica ou desordeira, ou que está sempre à espera do
homem para satisfazer os seus desejos.
Essa formulação do imaginário popular sobre as mulheres está originalmente
marcada por arquétipos que nos remetem à mitologia e à história antiga delas. Na
141
antiguidade clássica, encontram-se inúmeros exemplos de representação da mulher,
que por vezes podem ser desconstruídos, sem constituir qualquer sistema
globalizante que anule a diversidade (PANTEL, 1990). Toda essa construção
simbólica permeia tanto o universo dos poetas populares quanto dos escritores do
cânone. No que se refere à mulher negra, o ingrediente maior está na sua
invisibilidade, enquanto protagonista real: ela protagoniza uma história, na qual o
que se fala sobre ela torna-se mais importante do que ela própria. O olhar excede o
que é olhado, que, por sua vez, submete-se às regras do olhar.
Existe um lugar para o masculino e o feminino na antiguidade clássica e
Platão, em alguns dos seus diálogos, notadamente na República, mostra a sua
perplexidade: Por que a seres tão “mal-educados” quanto às mulheres é confiada a
tarefa de educar os filhos? O filósofo afirma, ainda, que a mulher deveria ser
educada como um homem, porém reconhece que, mesmo fazendo o melhor, nunca
poderá fazê-lo bem de verdade. Aristóteles assevera que a inferioridade feminina é
sistemática, seja no plano físico (anatomia, fisiologia) seja em outros aspectos, como
no caso da ética, pois subsiste o que ele chama de passividade metafísica
(PANTEL, 1990, p.86).
Ao mesmo tempo em que a autora enfatiza que às mulheres dessa época são
impostos papéis bem marcados como o de mulher que está fatidicamente ligada ao
lar e pronta para a procriação de uma descendência legítima que no imaginário da
Grécia antiga as mulheres são as Mênades e as Vestais, virgens loucas e virgens
sensatas, ela enfatiza que, com o direito romano, a mulher passa a ter um sentido
dúbio em relação a sua existência e graças às leis estabelecidas não é mais alvo de
morte em rituais; senta-se com os sacerdotes. Contudo, isso ainda ocorre num jogo
ambíguo entre presença e ausência, nesta sociedade que, no fundo, é marcada pela
invisibilidade da mulher, enquanto cidadã cônscia de seus direitos e deveres.
A discussão sobre as temáticas que envolvem assuntos ligados a minorias,
como mulheres, negros, índios etc., está dentro do que se convencionou chamar
“estudos culturais”. Tais estudos, considerados em uma lógica que se costuma
reputar de pós-modernidade, foram formulados e desenvolvidos no diálogo entre
história, antropologia e sociologia, desde finais do Século XIX, na Inglaterra,
sobretudo com a obra de historiadores e sociólogos marxistas como Raymond
Williams, Eric Hobsbawm, Paul Thompson, E. P. Thompson, entre outros.
142
Convém evidenciar que o papel histórico da mulher negra na África e no
Brasil não corresponde à idéia que, muitas vezes, é veiculada pela cultura popular.
Sua história, vista pela historiografia, ainda que de maneira tímida e precária, é a de
uma mulher forte que, quase sempre, substitui o homem naquele que seria o seu
lugar: o espaço público. Vários autores, entre eles Verger (1986), vão mostrar a
contribuição das mulheres na religiosidade brasileira. A Mãe de santo, por exemplo,
exerce um papel muito importante tanto no espaço religioso quanto no espaço
social. Na África, essa mulher adquire importância na medida em que, no espaço da
feira livre, se torna uma vendedora de vários produtos, movimentando a economia
da região e, contrariando as expectativas, é maioria entre os comerciantes.
É particularmente instigante ver que essa mulher, resumida à sua “natureza”
maligna e diabolicamente sexual na sociedade ocidental, na África negra é
reconhecidamente uma pessoa com um lugar não de subserviência, mas, sobretudo,
um ser que produz e que é respeitada pela sociedade Percebe-se isto na
representação que assume nos ritos da religião africana. As mães-de-santo ocupam
um lugar de poder decisório sobre a vida das pessoas, ora dando conselhos, ora
fazendo suas previsões a respeito da vida daqueles que as procuram.
No livro de Teresinha Bernardo (2003), intitulado Negras, mulheres e mães,
tem-se um relato antropológico das mulheres negras, em que ela desenvolve um
estudo sobre as relações raciais no Brasil. A autora faz um trajeto pela história da
mulher, desde a África, para evidenciar a condição da mulher negra no Brasil. Essa
é, ainda, uma condição de marginalização. No entanto, o texto revela sua força e dá
pistas para entender como alguns mitos se cristalizam quando se propõe um estudo
a partir da religiosidade africana, buscando mostrar que existe uma relação forte
entre o feminino negro e a maternidade. Sabe-se que originalmente a idéia de
mulher está ligada à maternidade. Contudo, um aspecto fundamental que Bernardo
(2003) aponta, diz respeito ao fato de a luta e as estratégias de sobrevivência
estarem diretamente ligadas ao papel de mãe. Segundo a autora:
A mulher negra parece viver a matrifocalidade de forma diferente das
mulheres brancas. Em minhas pesquisas anteriores, assim como na
atual, pude verificar que, para essas mulheres, a matrifocalidade não
é encarada como sofrida, pesada; pelo contrário acentua a sua
autonomia, traz satisfação (BERNARDO, 2003, p. 44)
143
A maternidade e a matrifocalidade assumem significações diferentes. Na
maternidade, a mulher tem um poder dado pela natureza, pois é prerrogativa sua
gerar filhos. Organicamente, ela está preparada para isso, e essa disposição lhe
um poder dentro da família, demarcando espaços. No entanto, a situação de
provedor do homem é quem garante a supremacia dentro da sociedade patriarcal.
Na matrifocalidade, a mulher tem um poder que extrapola os limites do lar,
porquanto se movimenta com liberdade, responsabilidade e autoridade na condução
do seu núcleo social.
Através dessa matriz, a estudiosa mostra o caráter e a fortaleza dos traços da
mulher negra, mas, ao mesmo tempo, identifica que, em relação aos seus estudos, a
sociedade ocidental sobretudo o Brasil não as reconhece assim, uma vez que a
imagem dessa mulher ainda está pautada numa relação de busca de semelhança
com o feminino ocidental, cujos traços identitários são: a mulher com aspecto
angelical, traços brancos, delgados, dotada de religiosidade cristã etc.. Dessa forma,
a mulher negra e de religiosidade de matriz africana é identificada com o diabólico e
o mal. Essa identificação não seria um traço característico das mulheres negras,
visto que, desde a antiguidade, no imaginário social, a mulher faz alguns pactos com
o diabo e até se confunde com ele. Isso, muitas vezes, é utilizado por ela como
estratégia de sobrevivência e consiste numa segunda forma de veiculação de poder
que o feminino detém e que usa a seu favor (MELLO, 1999).
Um aspecto de bastante relevância, mencionado no livro de Bernardo (2003),
é a relação das mulheres negras com a oralidade. A autora mostra a estrita relação
da história dessas mulheres com a memória oral. Segundo ela, as mulheres que
participaram de sua pesquisa sempre buscam evocar suas memórias contando
histórias dos momentos decisivos de suas vidas. São memórias de lutas, de
resistências contadas como um conto dos mais belos. Isso remete ao lugar da
história africana que é o espaço privilegiado da oralidade, grande anunciadora dos
feitos dos líderes negros (homens e mulheres), posto que a história oficial escrita
ainda não deu conta de evidenciar as batalhas travadas pelos povos negros em
busca de sua liberdade. No Brasil, várias são as narrativas tradicionais que
constituem verdadeiros relatos orais da história das comunidades onde são
contadas. As histórias de origem africana povoam o imaginário popular e são
significativas nesse aspecto. Um bom exemplo de escritura dessas histórias que
144
encantam e faz emergirem as vozes arquetípicas sobre a mulher, encontra-se na
narrativa Bonsucesso dos Pretos (Ver anexo D). Trata-se de uma lenda popular que
reconta, utilizando elementos do universo mágico, a história da fundação do
quilombo maranhense. Quando se leem os folhetos de cordel ou se ouvem as
histórias orais. verifica-se o mesmo fio condutor.
Pode-se perceber que o negro, no Brasil, deu mais do que recebeu: deu
swing, ritmos, marcando uma performance tipicamente brasileira; deu sabores,
temperos exóticos, cheiros fortes marca de identidades nacional; deu exotismo às
cores - a estética.
Porém houve a necessidade de se "inventar" um negro como mercadoria
simbólica da produção cultural o que reforça a coisificação dessa etnia. Há um
desejo inconsciente no imaginário brasileiro em associar o negro pejorativamente às
nuances que desvalorizam a estética, em achar o feio, numa estética diferente,
como troca simbólica de um turismo ora exótico, ora sexual.
Os negros, no entanto, não aceitaram a escravidão passivamente. A
formação de quilombos é uma demonstração disso. No Brasil, por exemplo, um dos
mais importantes foi o Quilombo dos Palmares e uma das figuras mais significativas
foi Zumbi. A historiografia é econômica ao falar das mulheres dos quilombos, apesar
de haver algumas personagens o ilustres quanto os homens. Entretanto, quando
se fala em mulher negra, de uma maneira geral, uma das imagens criadas é esta:
mulher mulata, sensual, com características sexuais diferentes de qualquer outra e
que, com certeza, agradará ao homem branco, porque incondicionalmente está
pronta para o prazer. Essa mulher, assim descrita, foi vendida como a imagem de
um Brasil paradisíaco durante muito tempo. Uma propaganda plantada com tanto
“sucesso”, que os frutos são hoje colhidos de maneira magistral. E a cultura popular
repassa tal imagem. Veja-se a capa de cordel a seguir:
145
FIGURA 14 – Capa do cordel Gabriela
Fonte: Pesquisa de campo, 2008.
A xilogravura acima representa bem a imagem da mulher mulata no país. Ela
se confunde com a paisagem natural. Esta assimilação da cultura popular é
explicada pela história, como salienta Abdias Nascimento (1978), ao afirmar que
desde a colonização era lugar comum manter prostitutas negro-africanas como meio
de renda, isto era feito pelos escravocratas revelando a sua licenciosidade e
também habilidades como cafetões. Os resquícios da memória escravista, perdura
atualmente, vez que, a mulher negra, em virtude de suas condições materiais de
existência e de um enquadramento de status social sempre inferior, apesar dos
avanços alcançados, ainda se encontra vulnerável à exposição agressiva de
propaganda sexual, sendo isto posto de forma a perpetuar uma naturalização do
preconceito. Como revela o cordel acima, a imagem da mulher mulata faz parte da
paisagem e assim é comercializada. O folheto de Almeida Filho é da década de 70,
mas a imagem não mudou: em 2009 a vinheta do carnaval divulgada pela Rede
Globo de televisão é de uma mulata “naturalmente” nua, sambando e sugerindo um
símbolo de Brasil.
146
A coisificação da mulher negra e o uso como objeto comercial fazem parte de
uma herança colonial, ou seja, a motivação para a importação de escravos era a
exploração econômica com o objetivo do lucro. Os escravizados eram
estigmatizados como subumanos, o seu papel social era de mera força de trabalho.
Tal fato significava que os africanos escravizados o eram considerados como
seres que tivessem a capacidade de continuar a espécie, se reproduzindo e
constituindo uma família nuclear organizada. Para Nascimento (1978) as mulheres
negras brasileiras herdaram o que se constitui um estigma: ser objeto de prazer dos
colonizadores. “O fruto deste covarde cruzamento de sangue é o que agora é
aclamado e proclamado como o único produto nacional que merece ser exportado: a
mulata brasileira” (p. 61-62). Fica valendo, então, o dito que povoa o imaginário
popular e que é citado por H. Handelmann em 1931, no livro História do Brasil (apud
FREYRE, 2004, p. 72 e NASCIMENTO, 1978, p. 62) e que é mister neste trabalho
repetir :
Branca pra casar,
Negra p’ ra trabalhar,
Mulata p’ra fornicar...
(Domínio público)
A assimilação da poética popular, neste sentido, é clara. No folheto Gabriela,
uma quase repetição do enredo de Jorge Amado. Abdias Nascimento também
faz uma critica à obra deste autor, afirmando que, apesar de Jorge Amado ter sido
grande responsável pela divulgação da cultura brasileira internacionalmente,
observa-se que ele não consegue se distanciar dos estereótipos e apresentar um
quadro real do que seja o negro no Brasil, sua religiosidade e sua cultura. Sendo
assim:
Todo processo que caracteriza o tratamento dispensado pela
sociedade branca ao afrobrasileiro, iniciado nos primeiros tempos da
colonização, completa-se nesta etapa de sua comercialização....
“Venderam” o espírito africano na pia do batismo católico assim
como, através da indústria turística, comerciam o negro como
folclore, como ritmos, danças e canções. A honra da mulher africana
foi negociada na prostituição e no estupro (NASCIMENTO, 1978,
p.119).
147
Mesmo assim, concordamos com autores
como Sidney Chalhoub (1990),
Kátia Mattoso (2003) e Silvia H. Lara (1998), que o entendem que os escravos
foram apenas coisificados pela escravidão, mas foram capazes de construir uma
série de estratégias de reação a ela, através da negociação. A idéia de papel em
branco, ao gosto de um Rousseau, é, sem dúvida, enganosa. Ao mesmo tempo em
que não se pode pensar nessa mulher apenas como vitimizada por um sistema
injusto, não se pode colocá-la como a “sereia que canta e encanta”. Muitas vezes,
ela se nos afigura como produto de uma indústria da representação.
Nesse ponto, é necessário considerar, mais uma vez, a idéia de
representação que, nos limites deste trabalho, é apresentada como um conceito que
diz respeito à representação simbólica, uma interpretação da realidade, fazendo
parte da condição humana. O aspecto simbólico tenta compreender objetivamente o
mundo em volta e, com isso, estabelecer relações. Para Durand (1988, p. 77) "não
ruptura entre o racional e o imaginário, pois o racionalismo não passa de uma
estrutura, dentre muitas outras, polarizante, própria do campo das imagens”. O autor
concebe que a polarização das imagens em torno de certos arquétipos é devida a
acontecimentos culturais: existe uma pressão de situação das ideologias de um
instante da civilização, que ele chama de pressão pedagógica, que gera a
necessidade de ações, fazendo movimentar algumas noções. Esse é um tema
mítico, que caracteriza uma época, mas o contexto sociológico é que colabora com a
"modelagem dos arquétipos em símbolos e constitui a derivação pedagógica"
(DURAND, 1988, p. 390). Para ele, “qualquer cultura, com sua carga de arquétipos
estéticos, religiosos e sociais, é um quadro no qual a ação se vem verter" (DURAND,
1988, p 397). Essa ação pode ser apreendida através dos mais diversos símbolos e
passar a constituir “uma verdade”.
Pode-se afirmar que há maneiras de expressão arquetipal. Durand (2002)
esboça um esquema em que os objetos simbólicos constituem tecidos a que várias
dominantes podem se ligar estreitamente. Seria o caso de se pensar na mulher
negra, que não está representada somente como a mulata sensual. Quando possui
uma pele mais escura e é desprovida de atributos de beleza, pelo menos nos
moldes convencionais, é considerada como bruxa, má, suja, porca, feiticeira,
incapaz, improdutiva e também a mãe-preta, bondosa, rechonchuda e esperta na
criação de magníficos quitutes.
148
Convém perceber além do aspecto cultural e formação de arquétipos, o
processo de globalização econômica, política, cultural e ideológica, como homens e
mulheres estão inseridos nele e, ainda, reconhecer as diferenças contidas nesse
universo onde há uma heterogeneidade que avança a cada dia no espaço
econômico e que representa desenvolvimento, mas traz como consequência a
desigualdade. Isso não significa que, no mundo, não havia desigualdade antes que
existisse a globalização. No entanto, o foco de atenção concentra-se nessa época
da História, que retoma problemas deixados sem solução e agravados pelos
acontecimentos do mundo moderno. O grande problema de falta de oportunidades,
no Brasil, não atinge somente mulheres negras. As mulheres brancas e pobres são
igualmente atingidas. Todavia a situação da negra parece se agravar em função da
cor da pele.
A seguir, serão mostradas algumas estatísticas esclarecedoras da situação
real da mulher negra no Brasil. Porém, por se verificar que a mulher negra está
inserida numa estatística ainda maior, que é a do negro e do pobre, em geral, que
constituem mais de 40% da população, apresenta-se um quadro mais geral com os
dados seguintes:
Brasil de população branca 49ª posição entre os países do mundo
Brasil de população afro-descendente 108ª posição
Total de pobres no Brasil Brancos/as Negros/as
53 milhões 37% 63%
Total com renda abaixo de R$ 120,00
no Brasil
Brancos/as Negros/as
22 milhões 30% 70%
149
QUADRO 4 – Situação da mulher negra no Brasil
Fonte: AGENDE-Relatório Nacional Brasileiro à ONU relativo ao período de 1985 a 2001 e
SEPIR, 2002.
Analisando as estatísticas acima, verifica-se que a condição atual da mulher
aponta para um conjunto de particularidades. Em primeiro lugar, é necessário
lembrar que existe a mulher negra no sentido ideológico do termo, porque
usamos um referencial comparativo: a mulher branca (também ideologizada). Assim,
fica evidente que as diferenças das condições materiais da existência dessas duas
mulheres o substanciais, posto que a mulher negra foi reduzida à condição de
escrava. Serviu, durante a escravidão e durante o período colonial, como ferramenta
de trabalho forçado nas casas grandes, nas lavouras e até ao comércio praticado na
época.
Ao se estabelecer um comparativo da condição da mulher branca, na época
da escravidão, nota-se que a branca era conduzida pelos padrões morais rígidos,
que indicavam a submissão às atividades do lar e o irrestrito respeito às ordens do
marido, mas, de certa forma, havia uma aura de proteção e de códigos de respeito
para com ela. a mulher negra, além de braço forte no trabalho doméstico e
agrícola, era reservada para as práticas sexuais do homem branco, por quem,
muitas vezes, era possuída através do estupro, uma prática considerada normal,
como afirmação da condição de masculinidade do homem. Tomam-se amiúde, como
referencial teórico neste item, os livros Casa Grande & Senzala e Sobrados e
Mucambos por enfatizarem na sua força descritiva a nossa cultura e considerar, de
População economicamente ativa
MUHER NEGRA
18% da população
Violência sexual
Três vezes mais probabilidade com
mulheres negras
Expectativa de vida
40% das mulheres negras morrem antes
dos 50 anos
Taxa de alfabetização e escolaridade
Brancas (90% e 83%), Negras ( 78% e
83%)
Renda da mulher negra chefe de
família
60% têm renda inferior a um salário
mínimo
150
maneira muito significativa, o espaço público e o privado da época de colonização
brasileira. Torna-se relevante, também, a reflexão sobre o dito e o não dito no que
se refere à mulher negra.
Em seu livro, Casa Grande & Senzala, Freyre (2004) afirma que falar da
exacerbação sexual dos negros é uma falácia. Em suas palavras:
O negro no Brasil, nas suas relações com a cultura e com o tipo de
sociedade que aqui se vem desenvolvendo, deve ser considerado
principalmente sob o critério da história social e econômica. Da
antropologia cultural. Daí ser impossível - insistamos neste ponto -
separá-lo da condição degradante de escravos, dentro da qual
abafaram-se nele muitas das suas melhores tendências criadoras e
normais para acentuarem-se outras artificiais e até mórbidas.
Tornou-se, assim, o africano um decidido agente patogênico no seio
da sociedade brasileira. Por “inferioridade de raça”, gritam, então, os
sociólogos arianistas. Mas contra seus gritos se levantam evidências
históricas - as circunstâncias de cultura e principalmente econômicas
- dentro das quais se deu o contato do negro com o branco no Brasil.
O negro foi patogênico, mas a serviço do branco; como parte
irresponsável de um sistema articulado por outros. Nas condições
econômicas e sociais favoráveis ao masoquismo e ao sadismo,
criadas pela colonização portuguesa - colonização, a principio, de
homens quase sem mulher - e no sistema escravocrata de
organização agrária do Brasil; na divisão da sociedade em senhores
todos poderosos e em escravos passivos é que se devem procurar
as causas principais do abuso de negros por brancos, através de
formas sadistas de amor que tanto se acentuaram entre nós; e em
geral atribuídas à luxúria africana (FREYRE, 2004, p.229-230).
Freyre (2004) está longe de ter um pensamento revolucionário da situação do
negro no Brasil, mesmo considerando que seu livro se abateu como um verdadeiro
vendaval na ideologia oficial brasileira. Quando defende a “normalidade” da
sexualidade da negra, ele mostra que “pervertidas” eram as índias, que não podiam
sentir cheiro de europeu:
[...] diz-se geralmente que a negra corrompeu a vida sexual da
sociedade brasileira, iniciando precocemente no amor físico os filhos-
família. Mas essa corrupção não foi pela negra que se realizou, mas
pela escrava. Onde não se realizou através da africana, realizou-se
através da escrava índia (FREYRE, 2004, p. 398-399).
151
O autor também tenta provar sua argumentação em favor da sexualidade dos
negros, afirmando que seus órgãos sexuais não eram tão grandes assim. Citando
uma pesquisa da época, conduzida pelo antropólogo norte-americano Havelock
Ellis, Freyre comenta que o pesquisador “[...] coloca a negra entre as mulheres antes
frias do que fogosas: indiferentes ao refinamento do amor.” (FREYRE, 2004, p. 398).
Ainda segundo Freyre (2004):
O Brasil não se limitou a recolher da África a lama de gente preta que
fecundou os canaviais e os cafezais; que lhe amaciou a terra seca;
que lhe completou a riqueza das manchas de massapé. Vieram-lhe
da África “donas de casa” para seus colonos sem mulher branca. (p.
391).
É como se a escravidão não fosse uma imposição mas, sim, uma condição
intrínseca, embora forçada, que modela o caráter das pessoas. Dessa forma, o
negro se tornou um pervertido sexual, devido a sua condição. Porém não se pode
encontrar sustentação para essa tese, posto que o escravizado não tinha soberania
de seu próprio corpo e seria inadequado também relacionar perversão à escravidão,
pois seria como dizer que a pobreza é condição de excessos sexuais ou de outra
ordem. Isso é, no mínimo, simplificador.
Há, todavia, que se afirmar que Freyre (2004) tenta mostrar um Brasil a partir
da constituição das três raças, que legaram ao país inúmeras contribuições. É
através de seu pensamento que o negro tem alguma visibilidade positiva. Esse autor
é um crítico enfático no que se refere à superioridade de uma raça sobre a outra,
embora aceite que existam diferenças intelectuais entre brancos e não brancos,
homens e mulheres, como sugere neste excerto “não se negam diferenças mentais
entre brancos e negros. Mas até que ponto essas diferenças representam aptidões
inatas ou especializações devidas ao ambiente ou às circunstâncias econômicas de
cultura é que problema dificílimo de apurar [...]” (FREYRE, 2004, p. 380).
É necessário lembrar que por “diferenças mentais”, o sociólogo
pernambucano (que fora aluno de Franz Boas na Columbia University, oportunidade
em que pôde ser testemunha da virada “culturalista” e antirracial desse antropólogo
norte-americano, virada destinada a revolucionar o pensamento racial) quer dizer
152
“diferenças culturais”, ainda mais por sublinhar que elas podem ser “devidas ao
ambiente ou às circunstâncias econômicas de cultura”.
O autor critica também trabalhos como o do médico e pesquisador Nina
Rodrigues que, no seu entender, se equivoca ao tentar afirmar que existe uma
diferenciação explícita entre o homem branco e o negro; e que grande parte dos
problemas nacionais se devem à importação dessa “raça inferior”. Segundo Freyre
(2004
,
p. 335), Nina Rodrigues afirma, inclusive, que o Brasil ainda foi “salvo” (não
se tornou uma terra de negros e, portanto, degenerada) por receber falsos negros,
fato que não aconteceu nos Estados Unidos. Essa foi uma das causas dos seus
maiores problemas raciais:
Nina Rodrigues identificou entre os negros do Brasil que ele
conheceu ainda no tempo da escravidão os chamados pretos de raça
branca ou fula. Não os fula-fulos ou Fulas puros, mas mestiços
provenientes da Senegãmbia, Guiné Portuguesa e costas
adjacentes. Gente de cor cóbrea avermelhada e cabelos ondeados
quase lisos. Os negros desse estoque, considerados, por alguns,
superiores aos demais do ponto de vista antropológico, devido à
mistura de sangue hamítico e Árabe. Os sticos da superioridade
de raça talvez enxerguem no fato explicação das famílias mestiças
do Norte e de certas regiões de Minas e São Paulo virem
contribuindo para o progresso brasileiro... Fique bem claro, para
regalo dos arianistas, o fato de ter sido o Brasil menos atingido que
os EUA pelo suposto mal da “raça inferior” (FREYRE, 2004, p. 387 -
388).
Quando fala da mulher negra, Freyre (2004) se refere mais às amas-de-leite,
mucamas, que ajudaram a criar a maior parte dos brancos nascidos no Brasil, nos
primeiros séculos do período colonial, especialmente nas regiões canavieiras. A
condição dessas mulheres, como seres constituídos de identidade e independentes,
não faz parte das reflexões freyrianas. É relevante notar como a visibilidade da
mulher negra é quase nenhuma na obra do autor, embora ele fale de suas
contribuições essenciais para a formação do povo brasileiro: “A ama negra fez
muitas vezes com palavras o que fez com a comida: machucou-a, tirou-lhes as
espinhas, os ossos, as durezas, deixando para a boca do menino branco as
sílabas moles” (FREYRE, 2004, p. 414). Afirma ainda:
153
À figura boa da ama negra que, nos tempos patriarcais, criava o
menino lhe dando de mamar, que lhe embalava a rede ou o berço,
que lhe ensinava as primeiras palavras do português errado, o
primeiro “padre-nosso”, a primeira “ave-maria”, o primeiro “vote!” ou
“oxente”, que lhe dava na boca o primeiro pirão de carne e molho de
ferrugem, ela amolegando a comida - outros vultos de negros se
sucediam na vida do brasileiro de outrora. O vulto do moleque
companheiro de brinquedo. O do negro velho, contador de histórias.
O da mucama, da cozinheira (FREYRE, 2004, p. 419).
Na obra Sobrados e Mucambos, Freyre (2003) faz um percurso sobre o
espaço privado e o público como constituintes da nossa identidade. Existe um
“capítulo” intitulado A mulher e o homem, no qual ele mostra que não se pode falar
de uma mulher frágil, quando se pensa na mulher da época colonial. Mesmo
reconhecendo sua presença, Freyre (2003) afirma que ela se constituiu com uma
imagem construída de mulher, ideologizada, criada pelo homem da época,
escravocrata e patriarcalista, que necessitava desse conceito de mulher, para se
afirmar na sociedade da época. uma certa expectativa de que o autor vá, em
algum momento, descrever a situação das mulheres negras, as mulheres dos
mocambos, habitados pela maioria delas. No entanto, suas informações são
mínimas, levando a crer que a mulher negra existe a partir da mulher branca.
Sendo assim, sua invisibilidade é total, o que parece contraditório, pois afirma:
As tendências coletivistas, de raça e de sexo, teriam se reunido, por
outro lado, com mais força, na mulher mãe, amante, esposa ou ama.
Esta geralmente, negra mina e depois da mulher-mãe, o elemento
mais responsável, ao lado do padre, pelas nossas condições de
estabilidade social (FREYRE, 2003, p. 219).
A história das mulheres negras continua e soma-se à da mãe preta, da ama-
de-leite, mucama, uma nova responsabilidade imposta. Essas mulheres passam,
agora, a ser as mantenedoras de suas famílias, uma vez que seus homens, com a
abolição da escravatura, perderam seus trabalhos e se tornaram marginais. Elas,
que o tinham um mínimo de condição digna durante a vida, continuaram a
trabalhar na casa dos antigos senhores, com a incumbência de manter a sua família
negra.
154
No livro Escravos libertos nas Minas Gerais, Paiva (2000) traz um capítulo
elucidativo sobre a mulher negra na sociedade mineira, que parece poder ser
indicativo da situação dela no Brasil, nos Séculos XVIII e XIX, e serve de parâmetro
para entendermos a sua trajetória a os dias atuais. Elucidativo e pertinente
também para se entender a relação de poder na construção do imaginário dessa
mulher.
Através de uma vasta documentação sobre as alforrias conseguidas pelos
negros da época, Paiva (2000) acaba desmontando a idéia de mulher escrava
apenas vitimizada. Assim, adaptar-se ao sistema escravista colonial significou
transformá-lo e moldá-lo de acordo com as expectativas de escravos, libertos e
livres.
Ao mesmo tempo em que interessava ao grupo dominante uma forma
negociada para a situação que se impunha - a libertação dos escravos, porque era
menos custoso ter esses negros por perto do que contratar empregados livres ou
criar conflitos sociais mais sérios -, para os negros, também se forjou um panorama
em que a barganha era necessária. E como isso era feito? Os negros buscaram
minorar e superar as barreiras impostas pelo regime escravocrata através do
apadrinhamento, dos casamentos ilícitos com brancos que possuíam boa condição
financeira.
Muitos mulatos nasceram dessas relações; e os testamentos demonstram
que os supostos pais eram condescendentes e benevolentes para com a família
bastarda, alforriando a mãe e seus filhos, deixando-os muito bem de vida. Claro que
houve avanços e retrocessos nessa investida de ambos os lados. No entanto, fica
explicado o estabelecimento de uma relação complexa que desencadeia todo um
ambiente imaginário, do qual a cultura popular vai se apropriar.
Apresenta-se, em seguida, um exemplo muito ajustado para explicar a
situação dessa mulher que, em muitos casos, sabia como obter o melhor da relação
com o seu senhor.
Esse tipo de situação se repetia na sociedade mineira, fazendo com que se
tornasse um fato social:
155
Outras formas de recompensa, porém, eram buscadas pelas
escravas que geraram filhos bastardos de homens livres,
notadamente de seus senhores. A alforria, sem dúvida, era o alvo
mais cobiçado, embora não exclusivo. Bens materiais, também, eram
alvos almejados por essas mulheres, dada a necessidade de
condições de sobrevivência pré-cativeiro. Não foram raros os casos
bem sucedidos, como o de Antônia Xavier da Costa e o da escrava
Ignácia Mina. Esta última era mãe de Miguel mulato, Ana crioula e
Joana crioula e avó de Maria mulata, Zidoro mulato, e Paula mulata,
todos cativos (e descendentes?) de Antônio Ribeiro Vaz, português,
solteiro, morador em Sabará, cujo testamento foi escrito em 1760.
Dos 15 escravos que possuía, Antônio libertou esses sete e,
curiosamente, não estendeu o benefício a outros quatro filhos e um
neto de Ignácia, todos crioulos (talvez não descendessem do
testador). Em relação às alforrias, Antônio as justifica alegando bons
serviços prestados e em seguida declarava:
[...] deixo as casas em que vivo aos ditos libertos para nelas morar os
que quiserem e os que nelas não quiserem morar irão para onde
quiserem pelo que ordeno se não vendam [...] e os demais [bens
possuídos] ordeno fiquem para os mesmos libertos e deles se sirvam
[...] (PAIVA, 2000, p. 115-116).
Na época da escravidão, afirma ainda Paiva (2000), a problemática da
sexualidade estabeleceu um marco de complexidade nas relações dentro daquela
sociedade. Pequenos poderes, informais, até mesmo invisíveis, eram conquistados
por meio das redes de comunicação estabelecidas pelo viés sexual. Estabeleceram-
se ajuntamentos duradouros, formando uma prole composta por filhos ilegítimos de
homens com condições financeiras e sociais privilegiadas. Nesse sentido, o uso do
sexo tornou-se uma tática para a sobrevivência das mulheres negras, alargando os
seus horizontes, levando-as a terem poder no sentido de alforriar os seus filhos,
conduzi-los pela vida de forma mais digna e a alcançar até uma certa mobilidade
social.
Fizeram-se intensamente presentes no comércio local, exploraram os
segredos da cozinha e da sexualidade, transformaram-se em
solicitadíssimas parteiras, impuseram-se como guardiãs principais
das tradições culturais africanas e afro-brasileiras, estabeleceram, na
medida do possível, laços de amizade e de interesse com os mais
bem classificados na escala social setecentista (PAIVA, 2000, p.
131).
Tal fato não pode ser generalizado, ou seja, não podemos concluir que essa
foi a única forma de luta das mulheres. Paiva tece considerações com base em uma
156
série de 357 testamentos de homens e de mulheres, livres e libertos, moradores na
comarca do Rio das Velhas - capitania de Minas Gerais, registrados entre 1720 e
1785. O autor salienta que seu estudo está restrito àquela região, porém entende
que a sua amostra é bastante significativa e pode ser indicativa de que a situação se
repetiu em outras áreas do país. Ele apresenta o pensamento de Foucault,
evidenciando que:
A sexualidade constitui um ponto de transferência particularmente
denso, nas relações de poder. Pequenos poderes, informais, até
mesmo, invisíveis, eram conquistados por meio de intercursos
sexuais, de ligações duradouras e da geração de bastardos
descendentes de homens com boa posição social. A estratégia do
sexo propiciava ganhos materiais, ampliação do rol de amizades e de
conhecimentos, proteção e exercício de influências, aumentando-
lhes a capacidade de mobilização social (FOUCAULT apud PAIVA,
2000, p. 14).
Na atualidade, estatisticamente, não se percebe muito avanço no que
concerne à posição da mulher negra na sociedade, apesar de algumas mulheres
negras ocuparem postos de importância na vida cultural, sobretudo, no campo
político e econômico. No entanto, a grande maioria delas ainda trabalha como
empregadas domésticas, secretárias, atendentes, manicures, ajudantes de serviços
gerais, babás etc..
Convém notar como não uma desidentificação dessas mulheres com tais
atividades. A mulher branca conseguiu, apesar de todas as dificuldades, descolar-se
dessa imagem, mas a mulher negra ainda está presa a ela; e isso é exatamente o
que se busca investigar nesta pesquisa: Que mitos são esses? Que representação
tão forte é essa que consegue se cristalizar de forma tão sólida? E, mais
precisamente, como a cultura popular absorve esses mitos e os eleva ao status de
estigma a ponto de uma mulher negra, mesmo tendo um diploma universitário, por
exemplo, não conseguir ascender profissionalmente? Durand (2002) adverte a todo
momento sobre a existência, em determinada cultura, de vários mitos que se
superpõem: uns se exprimem à luz do dia e se alinham na lógica da causa-
consequência e da narração descritiva; outros permanecem obscuros, repletos de
possibilidades da falta de lógica desses mitos.
157
Em artigo bastante significativo, Ianni (2004) afirma que a temática racial, ou
étnica como querem os estudiosos atuais, não é apenas um desafio do presente;
trata-se de um fenômeno recorrente que muda suas configurações, mas permanece
o mesmo. Quando se reporta à temática feminina faz-se uma associação que
apresenta descrições de grande realismo como marcas, símbolos, enigmas e
estigmas, porque a mulher, e especificamente, a mulher negra, é fortemente
representada pela mídia televisiva com seus lugares demarcados para brancas e
negras. Por mais que se possa considerar uma mudança, pois aparecem
mulheres negras na mídia como protagonistas, tem-se ainda uma situação meio
caricatural.
Na cultura popular esses espaços ainda são bem demarcados. Conforme
veremos mais adiante, a mulher negra tem seu lugar cristalizado nos folhetos de
cordel. Através da análise dos folhetos escolhidos, pode-se fazer uma lista das
recorrências de aspectos característicos e, a partir do prisma da cultura popular,
pode-se notar como se comporta essa “empresa” social no sentido de identidade e
alteridade.
As tensões dialéticas, na cultura popular, são percebidas de forma clara;
polaridades como homem-mulher, negro-branco são colocadas de maneira menos
mascarada. A hierarquização, como informa Ianni (2004), é demarcadora de
classificações entre “positivo, negativo, neutro, indefinido, uns e outros”, e isso
parece ser absorvido pela cultura popular, sem o filtro e a elaboração, de que se
utilizam outras narrativas para escamotear situações que desencadeiam a
intolerância. Talvez seja uma idéia simplista pensar a literatura como representante
de verdades ou pretender que ela tenha de enveredar por um caminho da ética.
que se considerar que pretender que a literatura carregue a bandeira do
politicamente correto é no mínimo ingenuidade e pobreza intelectual. A arte é
mimese, é imitação da realidade, valendo pelo seu caráter de verossimilhança e não
de realidade. No entanto, quando as marcas o fortes, elas se tornam pistas e não
para denuncismos, mas para um estudo da Sociologia da literatura ou Crítica
Literária, por exemplo.
O Século XXI afigura-se com os conflitos raciais e hierárquicos de todo os
níveis homem/mulher, classe alta/classe baixa, oriente/ocidente como se
quisesse anunciar a morte de velhos paradigmas e o nascimento de novos, que
158
tudo isso está mediado pelos preconceitos, pelos conservadorismos e pelas
irracionalidades que necessitam ser combatidas ou debatidas. Ianni (2004) fala em
racialização do mundo, como um problema que o século XXI retoma de séculos
passados:[...] onde se desenvolveu operações de “limpeza étnica”, praticadas em
diferentes países e colônias, compreendendo inclusive países do “primeiro-mundo”;
uma prática “oficializada” pelo nazismo nos anos da Segunda Guerra Mundial (1939-
1945), atingindo judeus, ciganos, comunistas e outros; em nome da “civilização
ocidental”, colonizando, combatendo ou mutilando outras “civilizações”, outros povos
ou etnias (IANNI, 2004, p.16-17).
Os aspectos que ligam as matérias relacionadas ao preconceito, sejam de
gênero ou de etnia, são construções sociais e estão implicadas nas instâncias
culturais. Quando a literatura as reflete não é ela quem está na berlinda, mas a
trama das relações humanas que precisam ser divisadas e deslindadas para
compreensão dos modos de ver fragmentados e alienados.
A ideologia racial utiliza-se no Brasil, por exemplo, do aspecto fenotípico
como elemento delineador de explicações para hierarquias e classificações. O
estigma está na cor da pele e como ele é muito forte vai entrando no trançado social
e se desenvolve de maneira subjetiva. O estigma de ser mulher é marca que se
delineia psicossocialmente como fragilidade, submissão, subalternidade. Ser mulher
e negra tem uma composição explosiva, uma vez que a mente social é alimentada
por dois elementos de “preciosas negatividades”.
A disseminação da informação que veicula o preconceito atravessa gerações,
sendo difundida através dos meios de comunicação de massa. Assim, considera-se
difícil pensar que um país de conformação multirracial se constitua uma democracia
racial, porque, em pleno Século XXI, ainda se vive sob a égide de um regime
patrimonialista, desenhado no Século XIX, que reelabora e reifica os significados
simbólicos referentes à cor da pele, de modo que se desqualifica um ser humano
simplesmente em decorrência de sua pigmentação epitelial.
159
5 O IMAGINÁRIO DA MULHER NEGRA NOS FOLHETOS DE CORDEL
5.1 Vozes e escrituras
A maior parte dos estudiosos reconhece que não existe uma cultura popular,
mas culturas populares. Tais manifestações, marcadas pela diversidade, integram
elementos em seus vários aspectos, configurando as práticas orais como um espaço
de múltiplas narrativas. Nessa perspectiva, diversas vozes que constroem uma
representação sobre o feminino, que nem sempre condiz com a natureza feminina,
mas com uma imagem caricaturada da mulher, em virtude da predominância de uma
ideologia marcadamente masculina em tais vozes. No Brasil, em se tratando da luta
das mulheres negras, sabe-se que não é algo novo. Todavia, para que a sua voz
seja realmente ouvida, ainda se deverá percorrer um longo caminho.
Na história da sociedade brasileira, existiram grandes mulheres como, por
exemplo, tia Ana no interior do Ceará que, em 1835, foi líder de uma revolta de
escravos que causou a morte de vários feitores e donos de fazenda. Outros tantos
exemplos de norte a sul podem ser citados, como o caso de Mariana Crioula, que foi
executada por se negar a se entregar depois de uma rebelião coordenada por ela,
durante a qual um grande número de escravos conseguiu fugir. Essa mulher ficou
conhecida como a rainha dos escravos. Outro exemplo é o da Cipriana, aguerrida
lutadora, com grandes habilidades e estratégias de combate, que ajudou a luta dos
palmarinos, sendo, pois, reconhecida como a primeira mulher, no Brasil, a se bater
pela liberdade feminina. Fala-se que ela foi a primeira feminista brasileira.
No Nordeste, tem-se a luta e o reconhecimento de Luiza Mahin, que era uma
mulher culta e livre, e que fez de sua casa um quartel general das rebeliões negras,
na Bahia do culo XIX. Ela é a mãe do primeiro poeta abolicionista do Brasil: Luís
Gama. Tais mulheres, apesar de terem sido incontestavelmente capazes, corajosas
e atuantes, não fizeram parte da memória coletiva.
10
10
Informações retiradas do artigo do FÓRUM DE MULHERES NEGRAS DA UEPB. O pioneirismo, a graça e a raça
das mulheres negras. S/d.
160
As lembranças de mulheres negras nas culturas populares sempre seguem
modelos estereotipados, mesmo quando os poetas tentam seguir o politicamente
correto, como é o caso do folheto Os martírios da escrava Anastácia, Santos (1985)
que será analisado a seguir.
Nessa luta desigual para que a mulher negra se afirme positivamente, a
historiografia não aponta casos específicos, como os citados anteriormente, mas um
cotidiano feito por mulheres anônimas, que enveredaram por caminhos que se
constituíam e se constituem verdadeiras estratégias de sobrevivência. No livro
História das mulheres no Brasil, organizado por Del Priore (2004), encontram-se
passagens elucidativas da condição dessa mulher, sobretudo nos Séculos XVIII e
XIX. Elas ajudam a entender o conceito de mulher negra da contemporaneidade e
muito do imaginário da poética popular. Durand (2002) afirma que é através da
cultura que o imaginário aparece de maneira explícita e integral. Para ele, o princípio
do símbolo e da marca está nas construções do imaginário cultural.
Para entender a história das mulheres, é preciso entender a história da
família, do trabalho, da mídia, da literatura. Como assevera Maria Zaira Turchi
(2003), a literatura tem uma íntima relação com o mito, e o texto literário oral ou
escrito é portador de um enlace muito familiar com o simbólico. Concorda-se
plenamente com esse argumento, por isso, nesta pesquisa, procura-se voltar o olhar
atentamente para os folhetos que focalizam a mulher negra.
Conhecer as vozes da mulher negra e o imaginário sobre ela, construído ao
longo dos séculos, é andar junto com os poetas populares pelos estreitos das ruas,
dos sítios do sertão nordestino e dos litorais e das zonas urbanas.
Figueiredo (2000), no ensaio, “Mulheres nas Minas Gerais”, que faz parte do
livro, História das Mulheres, apresenta um vasto número de argumentações sobre a
vida da mulher mineira, incluindo e representando muito bem as que viveram nos
séculos XVIII e XIX (p.141). O mundo do trabalho feminino envolvia de quitandeiras
e perigosas vendeiras a o penoso caminho da prostituição. Em um de seus
documentos pesquisados, o autor narra:
Em meados de março de 1762 dava entrada na cadeia de Vila do
Príncipe uma negra escrava chamada Ana, presa por Capitães do
161
mato quando estava em uma lavra vendendo aguardente da terra
sem medidas aos negros [...] vendendo a dita cachaça por tijela de
estanho que se achou, uma destas com meio frasco de aguardente e
outro vazio e um pouco de fumo e o dito meirinho entregou grades a
dentro [...] (FIGUEIREDO, 2004, p.154).
Em outro documento, ele afirma:
porquanto queremos evitar os escandalosos inconvenientes e
ofensas que Deus e do bem público que resultam das pretas forras
ou cativas andarem pelas ruas desta cidade vendendo pão, leite,
doce, banana e outros gêneros comestíveis [...] (FIGUEIREDO,
2004, p.155).
No que concerne à prostituição, os excertos de comentários mostrados abaixo
indicam sobremaneira a idéia que vai se formar sobre a sexualidade e a
sensualidade das mulheres negras e mulatas do Brasil:
Entre as cidades com alguma fama de abrigar mais abertamente
prostitutas estava Barbacena, chegando o viajante Saint-Hilaire a
tratá-la como célebre entre os tropeiros, pela grande quantidade de
mulatas prostituídas que a habitavam, e entre cujas mãos estes
homens deixam o fruto do trabalho. Sem a menor cerimônia vêm
oferecer-se essas mulheres pelos albergues; muitas vezes os
viajantes as convidam para jantar e com elas dançam batuques,
essas danças lúbricas (FIGUEIREDO, 2004, p.157).
Pelas muitas e repetidas queixas que aos meus ouvidos têm
chegado, além da notória publicidade das desordens que atualmente
acontecem motivados da dança a que chamam batuque, que se não
pode exercitar sem o concurso de bebidas, e mulheres prostituídas,
de que resulta ciúmes, que causam aos seus amásios, que nenhuma
deixa de os ter, de que vêm resultar brigas, desordens, ferimentos e
ainda talvez mortes, procedimentos estes contrários à paz e sossego
dos povos (FIGUEIREDO, 2004, p.160).
Os textos referem-se especificamente a Minas Gerais. No entanto, a situação
de prostituição não era privilégio desse estado, pois em todo o país havia um
número grande de prostitutas, sendo formado principalmente por mulheres negras e
mulatas. Nascimento (1978), no livro Genocídio do negro brasileiro, denuncia esse
estado de coisas, afirmando que desde que foram trazidas da África, as mulheres
162
negras foram brutalmente exterminadas no que tinham de melhor: sua dignidade. O
autor afirma que a situação não muda com o passar dos tempos; talvez mude a
lógica, a forma de degradação, mas ainda são as mulheres negras as maiores
“servidoras” de sexo ao homem branco.
A prostituição, principalmente em Minas Gerais, foi levada pelo grande
contingente de homens que chegavam àquela região atraídos pelo dinheiro da
mineração e encontravam um panorama totalmente favorável: mulheres na mais
plena miséria, quase sempre, tendo de sustentar uma família inteira, inclusive o
marido. O casamento, para os negros e mulatos, se não impossível, era burocrático
demais. As exigências da igreja distanciavam do matrimônio as pessoas pobres -
tanto brancas quanto negras - e tudo isso contribuía para relações bem mais
abertas. Subjacente a esse fato, vem a exploração sexual sem limites. No item a
seguir, analisam-se as categorias analíticas pelo grau de coincidência existente
entre as 36 narrativas. A primeira delas é a sexualidade.
5.2 Sexualidade
Quando a poética popular, através dos folhetos de cordel, narra histórias
caricaturais sobre personagens femininas negras, demonstra-se que está
cristalizado no imaginário popular um estigma que vem sendo desenhado pela
violência histórica, que foi submetida à mulher negra. Vejam-se estas estrofes:
Tinha moça que gostava
De olhar pra meu cacete
Se parecia um “brinquete”
Quando ela se arretava
Aí quando empurrava
Chega via fumaçar
Sentia a negra peidar
E achando bom também
O gostoso vai e vem
Antes de me acabar
(SEU MANÉ DO TALO DENTRO, 19--?, p.3, grifo nosso)
163
Na introdução do trabalho, alertou-se para a capacidade do poeta Costa Leite,
no uso de argumentos para demonstrar a ingenuidade de seus poemas. Ele afirma
que “negro” não é cor, é sinônimo apenas de mulher fácil. No folheto, Uma noite de
lua de mel, realmente, na capa que ele aponta como a “prova” não uma mulher
negra. Ele fala de uma noite de lua de mel de um homem com sua esposa. No
entanto, o que revela, este homem, nas suas fantasias sexuais é, de certa forma,
pouco dizível para uma mulher tida como “normal”. Ele o faz, usando o adjetivo
“negra”, porque o termo evoca a luxúria e parece ser uma passagem do inconsciente
para a expressão de desejos pouco confessáveis normalmente:
Uma buceta raspada
Pra mim tem todo valor
A foda tem mais sabor
A gente dando uma mamada
No peito da camarada
Se ainda for durinho,
Meto a boca no biquinho
Ali começo a chupar
Que faço a negra gozar
E fico mexendo sozinho
(SEU MANÉ DO TALO DENTRO, 19--?, p. 4, grifo nosso)
Há, nesse trecho, signos linguísticos do imaginário popular, que representam
o desejo sexual, que não está direcionado a uma pessoa, cuja dignidade humana é
respeitada, mas a um objeto de prazer e de satisfação do enunciador. A voz do
poeta popular enuncia seu desejo pelos elementos do baixo corporal feminino, o que
coisifica a imagem da mulher como mero objeto de prazer sexual. Desse modo, os
sentidos do “eu” poético não focalizam o rosto feminino, por exemplo, mas as partes
genitais e erógenas, o que está representado nos signos “buceta raspada”, “uma
mamada”, “peito da camarada”, além da ação verbal, que é toda voltada para essa
significação erotizada (a gente dando uma mamada; Meto a boca no biquinho; Ali
começo a chupar / que faço a negra gozar / E fico mexendo sozinho”).
Ainda sobre a argumentação “estratégica”, do poeta, vê-se que ela é
extremamente frágil, visto que o substantivo negra / negro traz uma carga semântica
164
ligada ao lado negativo de tudo. Quando diz aquela “nêga ou negra”, quase sempre
a referência é ligada à negatividade, à luxúria, etc.. O uso de “negrinha ou
“neguinha” revela uma adjetivação afetiva, porém ligada à marcação da diferença.
Tal adjetivação é muito comum na Bahia.
Turchi (2003) afirma que, só há dois séculos atrás, foi que a linguagem mítica,
produtora de múltiplos sentidos, distante de linguagem referencial, vem ser notada
como “um tipo de construção que faz da insistência e da redundância sua
característica principal” (p.43).
O uso dos substantivos ou adjetivos “negra”, “mulata”, “escurinha”, “morena”
não é prerrogativa apenas do poeta Costa Leite; pelo contrário, a estratégia é usada
por vários outros. Vejam-se os exemplos abaixo (os grifos são nossos):
No Recife eu tenho visto
No Mercado São José
Tanta negra nojenta
Agarrada com o “Mané”
(PONTUAL, 19--?, p. 4, grifo nosso)
Esta estória que rimo
É dum japonês casquinha
O qual foi s’apaixonar
Por uma tal escurinha
Boazuda que só
Tal o corpinho que tinha
(MAXADO NORDESTINO, 1976, p. 1, grifo nosso)
Já o português do bar
Receitava diferente:
Procura uma crioula
Pois é de raça bem quente
Bole com todos os nervos
Enlouquecendo o vivente
(MAXADO NORDESTINO, 1976, p, grifo nosso)
165
Eu conheci uma delas
Louquinha por safadeza
É mais atirada, atrevida
Cheirosa por natureza
Viçosa e cheia de vida
Rainha em delicadeza
(BRITO, 2006, p. 13, grifo nosso)
Ela tem cor de veludo
Macia igual seda fina
É um colírio pra vista
Requebra feito menina
Na sedução é artista
Pro homem tudo ensina
(BRITO, 2006, p. 13, grifo nosso)
A cintura é modulada
Por um artesão divino
A barriga é perfumada
Seu olhar esmeraldino
Ama e sabe ser amada
Até ficar mofino
(BRITO, 2006, p. 14, grifo nosso)
Ainda por cima a danada
é carinhosa amiúde
mata um só de saudade
pra dar e vender tem saúde
na cama é pura maldade
eu só conheço virtude
(BRITO, 2006, p. 15, grifo nosso)
Pelinhos de quiuí
doce que nem manga-rosa
boca carnuda de jambo
fruta madura gostosa
eu cheiro, mordo e lambo
166
toda morena é fogosa
(BRITO, 2006, p. 15, grifo nosso)
As pernas d’uma morena
são projetos divinais
o rosto dela parece
as cacimbas naturais
de pintura num carece
já nasceram sensuais
(BRITO, 2006, p. 19, grifo nosso)
Quando o poeta popular aproxima os substantivos: negra, nêga, crioula,
mulata, escurinha e morena, dos adjetivos: nojenta, boazuda, quente, piniqueira,
louquinha por safadeza, artista na sedução, fogosa, sensuais, vê-se delineado o
imaginário social da mulher negra. Analisando todos os poemas da categoria
analítica Sexualidade (ver cartografia), pode-se pensar em uma macro estrutura
narratológica que envolve: personagem
tempo
espaço, além da retórica que
vai formar o arquétipo de mulher negra. Entenda-se aqui arquétipo como “a junção
entre o imaginário e os processos racionais” (TURCHI, 2003).
Do ponto de vista da ngua o que chama a atenção é a falta de palavras que
medeiem as narrativas dos poetas populares. Nesse sentido, se, de um lado, existe
a indignação de quem lê, ou mesmo, a gargalhada pelo que de humor existe nas
narrativas sobre mulheres negras, observa-se, nitidamente, aquilo que Roland
Barthes salienta em O grau zero da escritura (1971). Para ele, a língua é comparada
a uma natureza que passa inteiramente através da fala do escritor, independente de
sua vontade de lhe dar forma e nem sequer pensar em dar-lhe sentido. Seria algo
como “um círculo abstrato de verdades, fora do qual - e somente fora dele - começa
a depositar-se a densidade de um verbo solitário” (BARTHES, 1971, p.19).
O autor fala em certa ingenuidade do escritor em relação à língua e à
linguagem, como se as palavras dos poetas lhes escapassem e fossem realmente
ter sentido no conjunto do tecido social. Filosoficamente, esse pensamento está
ligado à idéia existencialista de que uma situação básica inerente a todo ser
humano, que consiste em se defrontar com a de um sentido preestabelecido para a
167
vida, devendo-se, portanto, lutar ferrenhamente para inventá-lo e estabelecê-lo no
mundo real.
5.3 Entre sexualidade e comportamento heróico: a prostituta e a santa
Dois folhetos de cordel do corpus desta pesquisa são particularmente dignos
de apreciação: a Cinderela mulata na cidade maravilhosa, de Franklin Maxado, e
História e martírios da escrava Anastácia, de Apolônio Alves dos Santos. Estão
presentes, nesses folhetos, duas das categorias delimitadas neste trabalho e que
acusam momentos notáveis daquilo que chamamos de preconceito. Uma está
selecionada no comportamento heróico (Escrava Anastácia) e a outra na categoria
sexualidade (A Cinderela mulata). Para iniciar a análise faz-se necessário definir a
palavra preconceito que, segundo o Dicionário de Relações étnicas e raciais, de
Cashmore (2000), é uma
palavra advinda do latim prae, antes e conceptu, conceito, esse
termo pode ser defenido como conjunto de crenças e valores
aprendidos, que levam um indivíduo ou grupo a nutrir opiniões a
favor ou contra os membros de determinados grupos, antes de uma
efetiva experiência com estes. Tecnicamente existe um preconceito
positivo e um negativo, embora nas relações raciais e étnicas o
termo costume se referir ao aspecto negativo de um grupo herdar ou
gerar visões hostis a respeito do outro, distinguível com base em
generalizações. Essas generalizações derivam invariavelmente da
informação incorreta ou incompleta a respeito do outro grupo
(CASHMORE, 2000, p.438).
A história da Cinderela mulata na cidade maravilhosa retorna ao arquétipo do
conto de fadas tradicional de Cinderela. Entre os poetas populares, essas
ressignificações das histórias tradicionais são muito comuns. No caso da versão
proposta por Franklin Machado, que usa o pseudônimo criativo de “K. Gay Nawara”,
vê-se que o autor escolhe cuidadosamente o cenário: o Rio de Janeiro, que traz
consigo uma carga simbólica peculiar. Sendo considerado o lugar de idealizações no
plano do prazer, quer seja social ou sexual, o Rio de Janeiro é vendido através da
168
propaganda turística, como sendo a “cidade maravilhosa”, cheia de belas praias, sol
o ano inteiro, gente cordata, sorridente e, é claro, belas mulatas
11
que, no texto de
Machado (1984), como quaisquer donzelas, merecem encontrar seu príncipe
encantado. O problema começa quando a mulata, descrita por ele, começa a se
interessar pelo príncipe. Nesse momento, as semelhanças com o conto tradicional
acabam, conforme se observa no trecho seguinte:
“O príncipe era alto, louro, nariz afilado.
Tinha os olhos bem azuis e era tão educado
que a mulata se deu ao tê-lo, apresentado... “
(NAWARA, 1984, p. 2, grifo nosso)
As características do príncipe são bem previsíveis (“alto, louro, nariz afilado”),
seguindo o modelo arquetípico do príncipe que sempre está presente tanto nos
contos de fadas tradicionais quanto em qualquer saga heróica do mundo ocidental.
No entanto, o meio termo para a atitude da mulata, ao estar com o príncipe no
primeiro instante (“a mulata se deu”). O verbo encontra-se no sentido de presentear,
conceder, permitir, ceder, entregar. Não consta que o príncipe lhe tivesse feito a
corte, e ela se interessado pela sua conversa, jeito ou gesto, etc.. Como ser
despessoalizado, ela concede seu corpo porque assim é e tem de ser entre uma
mulata e um homem europeu branco. A história continua e, aos poucos, percebe-se
que um real interesse do príncipe por essa moça. Ela, ao contrário, não sabendo
que ele é um príncipe, não está interessada em nada do que ele tem. Ela apenas
“fode” com ele porque gosta ou porque “ele é”. Ela se vai embora e a única pista é a
calcinha. Então, o príncipe mobiliza os seus empregados para procurar sua dona da
calcinha:
11 Importante voltar a atenção para
a etimologia do termo mulata, que vem de mula, significado de
animal de carga.
169
Ficou doente e sem graça,
Quase doido, sem fazer nada.
Era só distante,
sonhando como teria de volta
aquela dona que o deixava sem fuder...
(NAWARA, 1984, p. 3)
Ele parou a viagem.
De seu reino se esqueceu.
O seu mundo era agora
o encanto em que meteu:
os quadris duma mulata
que o trono prometeu...
(NAWARA, 1984, p. 3)
Convocou seus serviçais,
pagou investigadores.
Mandou agentes trazer moças,
que tinham tais cores,
para experimentá-las
na calcinha dos amores...
(NAWARA, 1984, p. 4)
Até ele, pessoalmente,
As boates percorria,
procurando a mulata
Que sem sono perseguia,
experimentando a calçola
Em mulher que aparecia...
(NAWARA, 1984, p. 5)
O que chama a atenção, nesse texto, é a forma natural como é vendida a
imagem da mulata, e por que não dizer, a recepção pelos leitores da imagem dessa
mulher. Abdias Nascimento (1978) fala do verdadeiro genocídio que ocorreu com as
mulheres negras, desde a época colonial. Separadas de seus filhos e de seus
maridos, elas foram trazidas para o país, passando a servir aos colonizadores.
170
Nesse contexto, não raras vezes, crianças foram geradas por meio de
estupros e da infidelidade de um homem branco, nos alpendres, nos matos, nos
quartos de cozinha, nascendo, a partir daí, a tão propalada mulata brasileira, um
produto que, até hoje, alguns portugueses dizem, com orgulho, que foi uma das
suas mais belas criações. O imaginário popular está recheado dessa idéia de
mulher morena, bonita e gostosa, que é venerada pelos estrangeiros e vendida
como produto de exportação. Dados reais demonstram que, no Brasil, a prostituição
de meninas se dá sobretudo entre mulatas e negras pobres.
Através dos folhetos de cordel, a cultura popular, a seu modo, contribui para a
cristalização dessa idéia. Dir-se-ia, ainda mais, que parece haver uma licença, não
poética, mas de voz, de canto tão natural da sexualidade negra, sem nenhuma
censura ou comedimento, confirmando o que se chama de naturalização do
preconceito. Quando se avalia a linha do tempo dos autores, percebe-se que essa
maneira de citar a mulher negra foi a regra na poética popular dos folhetos de
cordel. Corroborando com essa idéia, a certa altura da fala, na entrevista citada, o
poeta popular, Costa Leite afirma: “... entre a Xuxa e a Thais Araújo... bem... a
morena mais... mexe mais com o homem, mas eu preferia a Xuxa “pra casar”,
porque é muito feio um homem com uma mulher negra do lado...” (ANEXO E).
Na estrofe do poeta K. GAY NAWARA (Franklin Machado) vê-se o seguinte:
Mal não provou o tal príncipe.
A vida só tem calor
xodozando-se com quem ama.
A maior prova do amor deu
no caso deste rei
que perdeu seu valor.
(NAWARA, 1984, p 8, grifo nosso)
O rei tem seu objeto de desejo; no entanto, “perde seu valor”, deixa de ser rei
para viver “fodendoa vida inteira e colocando no mundo vários “mulatinhos”. Ora,
mesmo com uma mulher bonita e objeto de desejo de homens em geral, o príncipe
da narrativa a tem como algo que traz prejuízos, porque a sociedade não a aceita;
ela constitui uma vergonha. O amor com a mulata é amor de “pica”, como diz o
171
ditado, e encontra-se no cancioneiro popular “amor que fica é amor de pica”. um
trecho na narrativa da Cinderela Mulata onde o dito se repete:
Isso tudo foi verdade
não sei se pobre ou rica
e só vem a provar que
o amor que sempre fica
não é o do platonismo
é mesmo o gozo de pica...
(NAWARA, 1984, p 8, grifo nosso)
Também a análise que se refere à capa do folheto é exemplar. O que se vê?
Um príncipe depositando a sua coroa na grande casa do sexo, como mostra a
figura ao fundo: o Rio de janeiro. A primeira idéia é a de que, como expressa a
narrativa, o homem es experimentando a
calcinha na mulata para ver se é ela a sua
Cinderela. Mas, ao mesmo tempo, o gesto
sugere, também, o sexo oral, numa
naturalidade impressionante, pois o ato é
dividido com todos. Parece indicar que a
cidade maravilhosa é assim: sem pudor. O
sexo é feito em público, ainda mais em se
tratando de uma mulata. O sexo faz parte da
paisagem, como o bondinho e o Pão de
Açúcar, sendo o cartão-postal da cidade
maravilhosa. Pode-se, nesse sentido, fazer
uma pergunta: Afinal, o amor é da esfera
pública ou privada?
FIGURA 15 – Capa do cordel Cinderela Mulata
Fonte: Pesquisa de campo, 2008.
A expressão da mulher mostra a sua complacência e reforça a idéia de que
tudo, como diz o texto, é feito sem nenhuma intenção de conquista por dinheiro ou
172
qualquer outra, fazendo parte da natureza da negra e da mulata a entrega sexual
exacerbada à luxúria.
Del Priore (2005), em seu livro A história do amor no Brasil, mostra que, na
época da colonização, a vida rural da maior parte da população, as elites iletradas, a
falta de bibliotecas e de escolas, o escravismo, a formação de famílias mestiças e
portadoras de hábitos e de valores diversos e o hibridismo cultural darão uma
conotação específica às relações sociais e amorosas. A autora afirma ainda que,
enquanto na Europa havia um lugar para o privado, “nicho por excelência das
relações amorosas”, nas colônias essa privacidade era precária, pois o cotidiano,
com suas casas de taipa, cheias de frestas, outras repletas de agregados e de
escravos, se davam os amores como se observa representado na obra literária do
naturalismo brasileiro, O Cortiço.
Assim, os instintos sexuais incontrolados, fugindo às regras sociais do
sacramento, transformavam-se em luxúria, fornicação gratuita. A autora acrescenta
que a Igreja se apropriou da mentalidade patriarcal, presente no caráter colonial, e
explorou as relações de dominação entre os sexos. Havia, de certa forma, na época
colonial, uma escravidão para a mulher branca ela era escrava do marido e das
coisas do lar. Essa mulher faz todas as suas tarefas como obrigação, inclusive o
sexo.
O homem, então, estava livre para o “ilícito”, com as negras e mulatas.
Contudo, o lugar da mulher branca estava preservado: era “a rainha do lar”, embora.
toda sorte de traição com homens e mulheres era feita por “estas rainhas do lar”
pudessem fazer, como mostra a autora.
A ilustração abaixo constitui um adendo relevante para a compreensão do
quadro traçado do período colonial, no que se refere ao cotidiano da mulher negra.
173
FIGURA 16 - Casas de alcouce
Fonte: Del Priore, 2004, p. 179.
As mulheres negras eram tratadas de forma diferente das brancas. Aquelas
sempre coisificadas não podiam ter uma relação dentro de padrões considerados
normais, como o casamento, por exemplo. Del Priore (2006) mostra, através de
documentos, dois casos bem esclarecedores dessa situação:
ao ter conhecimento da desordem que pretendia cometer o irmão
cego de um capitão de Jacareí, São Paulo, casando com uma
mulata, o governador não mandou prender a noiva, como deu
ordem para a obrigarem assinar um termo de não casar com o dito
indivíduo e mesmo sair da capitania no prazo de dez dias. Quanto ao
noivo ser-lhe-ia ordenado que não casasse com essa nem com
qualquer outra que pessoa que desacreditasse seus parentes (DEL
PRIORE, 2006, p.26).
Um outro documento mostra que:
Em Sabará Minas Gerais, na mesma época quiseram tirar um irmão
da Irmandade do Carmo, a mais riçada cidade, por ser casado com
uma mestiça. O caso ficou conhecido por historiadores locais como
“A infâmia da Mulata”. O que leva a crer que a mulata carrega o
estigma que está na cor da pele e este povoa o imaginário dos
174
poetas populares, daí a narrativa que se está analisando (DEL
PRIORE, 2006, p.26).
É importante destacar que a idéia de que mulheres negras ou mulatas, no
Século XIX, não se casavam ou se juntavam com negros, é um equívoco. Há
estudos, como a tese de Solange Rocha (2007), por exemplo, que mostram entre os
negros a obediência a uma lógica dos casamentos e sacramentos católicos, como
qualquer outra família. Esse dado histórico se torna relevante, pois a narrativa do
poeta popular se refere à mulata como:
A mulher era amigada com perverso lusitano
que já tinha prometido matá-la se desse cano
lhe chifrasse ou abandonasse
ou causasse maior dano...
(NAWARA, 1984, p 3)
Isso era, ou ainda é algo possível de acontecer, mas a narrativa naturaliza o
preconceito, apontando para a idéia de que a mulata, só com um milagre, como o da
Cinderela Mulata, pode conseguir um bom destino e o consegue pela via da
erotização.
Ainda é Del Priore (2006) quem traz à tona uma verdade histórica
sobremaneira significativa para a presente pesquisa. Segundo a autora, o historiador
Herbert Gutman, demonstrou que homens negros escolhiam mulatas para casar; e
mulatos preferiam mulheres de origem não africana. Casar-se com uma mulher
mulata livre, ou com uma mestiça, melhorava a condição social dos filhos, como
atenuava o grau de pigmentação, sendo esse um dos fatores de sucesso na luta
pela ascensão social, fora das amarras da escravização (DEL PRIORE, 2006, p.62).
Hoje, ele já ostenta
a porção de mulatinhos
e,pela educação dada,
são todos uns fidalguinhos...
(NAWARA, 1984, p 7)
175
Esse discurso está ligado à idéia de branqueamento e de identidade nacional,
que esteve em voga no Século XIX e ainda perdura no imaginário popular. Havia
certo medo do crescente número de negros no país e, assim, a idéia de
branqueamento foi assumida pela área médica, pelas artes, pelos meios de
comunicação. Skidmore (1976), Schwarcz e Queiroz (1996) e Azevedo (1987)
destacam que o mito da democracia racial desmorona, a partir do momento em que
o embranquecimento passa a ser considerado vital para a sociedade brasileira, pois
se aponta que a miscigenação acabaria “limpando a raça”, e isso seria bom, vez que
o negro, como afirmava Nina Rodrigues, era uma raça inferior no aspecto intelectual.
A mistura, por conseguinte, iria por um fim a esse problema. Houve, durante várias
décadas, um projeto de incentivo à miscigenação.
Outra observação mostra a contundência do verso destacado acima, retirado
da narrativa de Machado (1984). Trata-se do que discorre Florestan Fernandes, em
seu livro, A integração do negro na sociedade de classes. Segundo ele, esse
mestiço, mulato claro, que tenta assumir uma identidade de branco, agindo como um
“super branco”, obedecendo às regras, veste-se como branco, obedece à lógica do
branco, constrói uma autoimagem, que vai se contrapor à imagem estereotipada do
negro e, talvez, com certo exagero nessa imitação do homem branco, ele apenas
“se torna o lacaio do branco” (FERNANDES, 1978, p. 454).
Na via oposta da Cinderela mulata, encontra-se o folheto História e martírios
da escrava Anastácia, de Apolônio Alves dos Santos. Ele conta a história de uma
escrava que vivia submetida às atrocidades de seu patrão, porque ele nutria por ela
uma paixão não correspondida. A trama narrativa é aquecida pelo fato de seu filho
também ter interesse pela moça, ao mesmo tempo em que ela cobiçava o capataz
da fazenda. A negra ainda tinha de enfrentar os ciúmes da patroa que se
incomodava com a sua beleza.
Anastácia teve que sofrer muito, por ser bela e sensual e por negar-se ao
amor de seus senhores. Por causa disso foi torturada até morrer, tornando-se,
assim, mártir e santa.
Convivem, nesse caso, dois limites discutidos na dissertação de Mestrado,
A mulher gravada, de Carvalho (1997), que mostra como a concepção popular
desenvolve estereótipos míticos sobre a mulher que, ora é concebida como Eva, a
pecadora, ora é concebida como Maria, a santa. No caso específico da mulher
176
negra, o corpo é a tônica da narrativa, porquanto é valorizado como elemento de
encanto e de sublimação, que só reforça estereótipos sobre a mulher negra.
No folheto de Apolônio Alves dos Santos, Anastácia interpreta os dois papéis
ligados ao uso do corpo: o de ser objeto de cobiça, devido à sua beleza e perfeição,
e o de se tornar mártir e santa, por causa do sofrimento e da morte violenta. Vejam-
se os versos que falam das qualidades físicas e morais de Anastácia, os quais
explicam claramente por que os homens ficavam enfeitiçados por ela:
Anastácia era uma escrava
Morena cor de canela
Inteligente e Cortez
Amável, risonha e bela
Que todo homem pasmava
Com a formosura dela (p. 2, grifo nosso)
O rapaz lhe disse: claro
Eu gostaria demais
Porque vivo cobiçando
Seus encantos sensuais
Porém isto tem que ser
Muito oculto de meus pais (p. 4, grifo nosso)
Pois o fazendeiro tinha
Nela um forte desejo
Mas sempre se disfarçava
E procurava um ensejo
Só afim de saciar
Seu instinto malfasejo (p. 10, grifo nosso)
Porque a escrava tinha
Um corpo muito perfeito
Os seios bem atrativos
O busto do mesmo jeito
Todo homem cobiçava
Aquele corpo bem feito (p. 10, grifo nosso)
177
Além disso era dotada
De habilidade e candura
Morena da cor de jambo
Ou uma ameixa madura
Da classe negra ela era
A deusa da formosura (p. 10, grifo nosso)
Disse ao patrão porque
Cobiçava muito ela
Mas ela não o queria
E ele com ódio dela
Tomado pela paixão
Fez uma trama daquela (p. 15, grifo nosso)
(SANTOS, 1985)
Mas, como já dito, a rejeição de Anastácia leva consequências muito graves
para ela, a começar pela vingança do capataz:
Colo ela não queria
Tê-lo como seu amante
O monstro arrojou-se tanto
Com seu instinto pedante
Que levantou a escrava
Uma calúnia infamante (p. 2).
(SANTOS, 1985)
Começam assim as numerosas desgraças da escrava que, depois de muitas
amarguras e torturas, vai morrer.
O fazendeiro lhe disse
Maldita escrava atrevida
Pelo teu atrevimento
Tu hoje aqui te liquida
Porque vou dar-te uma surra
Para deixar-te moída (p. 7)
178
Ali foi chicoteando
A pobre e infeliz
Que a ponta do chicote
Foi atingir seu nariz
Que ela ficou sangrando
Igualmente um chafariz (p. 7)
Ele sem se condoer
Da pobre desventurada
Chicoteava a escrava
Com uma ira danada
Que a coitada ficou
Toda curtada e rasgada (p. 7)
Naquela ocasião
O maldito capataz
Prendeu a pobre inocente
Com seu instinto voraz
Pra puder vingar-se dela
Com alma de satanás (p. 8)
Assim fez o capataz
Com essa pobre inocente
Amordaçou-a e levou-a
Presa por uma corrente
E amarrou-a num tronco
E surrou brutalmente (p. 9)
E também mandou botar
Apertando o seu pescoço
Um estrumento horroroso
De ferro afiado e grosso
O qual fez um ferimento
Profundo que deu no osso (p. 12)
A pobre escrava ficou
Neste horrível sofrimento
179
O dia todo e a noite
Naquele padecimento
Toda tomada de dores
Sem ter alívio um momento (p. 12)
Que tinha dado a grangrena
Logo o médico constatou
E disse não tem mais cura
Que a moléstia passou
Só resta esperar a morte
Que jeito mais eu não dou (p. 14)
(SANTOS, 1985)
Com a morte da escrava, todos os maus protagonistas se arrependem e
procuram mudar de vida, enquanto Anastácia é reconhecida como santa por ter
defendido a sua inocência:
Assim conclui a história
Da escrava torturada
A bela infantil Anastácia
Que morreu martirizada
Dizem que ela foi santa
E vai ser canonizada (p. 16)
Fostes tu escrava Santa
Vítima das grandes torturas
Mas agora estais velando
Pelas fiéis criaturas
Ouvindo nossos pedidos
Daquelas sumas alturas (p. 16)
A vida tem seu mistério
Alguém já não compreende
Lutando com a verdade
Vivente nenhum se rende
Eternamente triunfa
180
Sua inocência defende (p. 16)
(SANTOS, 1985)
Fazendo um levantamento terminológico do texto, pode-se descrever a
seguinte estrutura semântica e simbólica:
Imagem de pureza inteligente, cortês, formosura, apaixonada, encantos,
amável, risonha e bela, habilidade e candura, martirizada, santa, canonizada, vítima;
Imagem libidinosa
cobiçando, encanto sensual, forte desejo se
disfarçava, ensejo, saciar, instinto malfasejo, corpo muito perfeito, os seios bem
atrativos, busto, cobiçava ciúme, despeito matreiro, satisfizesse, despeitos,
cobiçava, queria, brutais, paixão, trama;
Imagem de servidão e castigo
maldita escrava, atrevida, atrevimento,
dar-te uma surra, amordaçar, levar presa por uma corrente, amarrar num tronco;
surrar brutalmente, cruel desespero; perseguisse, brutais; escrava torturada,
grandes torturas.
Cada um desses termos detém uma carga semântica e um vínculo estrito
com a imagem da negra. É importante ressaltar a dualidade da idéia de negra
projetada no folheto. Ela é, ao mesmo tempo, pura e libidinosa, servil e atrevida,
castigada e exaltada. que, dessa vez, constituindo-se como uma rara exceção,
tanto no âmbito literário quanto no imaginário público, a percepção da mulher negra
e escrava é deslocada numa esfera espiritual e sobrenatural de santidade, por ter
renunciado a fazer sexo constrangida. Isso parece sugerir que a mulher negra,
morena ou mulata não tem direito a uma vida sexual normal, e o seu papel é o de
ser instrumento do prazer do homem, sobretudo, o branco, tendo como única
alternativa a renúncia total, também a custo de sua vida.
A gravura que ilustra o folheto é também significativa. A imagem é a
reprodução de uma fotografia real, que mostra a armadura que prende a boca da
escrava. Esse é um dos castigos para que ela o se comunicasse. Desse modo,
revela-se outra imagem e outro preconceito do homem em relação à mulher, a sua
voz. É preciso fazê-la calar, para que ela não cause desastres no seu entorno. A sua
voz pode ser tão transgressora quanto seus peitos. Então, é preciso calá-la. Outra
leitura que se pode fazer com relação aos açoites e aos maus-tratos a que se refere
181
a narrativa é a de que, no inconsciente do
homem, sempre está presente o desejo sado-
masoquista e, especificamente, em relação à
mulher negra e mulata, isso se torna até um
pouco confessável, afinal, ela não existe como
ser totalmente humano, está mais qualificada
como objeto do que propriamente como uma
mulher.
FIGURA 17 – Capa do cordel da Escrava Anastácia
Fonte: Pesquisa de campo, 2008
5.4 Corpo e deformidade corporal
Quando se estuda o riso, na literatura, buscam-se as suas raízes em uma
história antiga. As suas manifestações na literatura, enquanto matéria temática,
sempre fizeram parte das obras artísticas tanto em modalidades populares, orais ou
escritas, quanto na literatura do cânone. Na Idade Média, um fenômeno relevante é
a presença e o significado do riso na cultura popular. O contexto dessa época era
propício para que artistas (não escritores, mas também pintores, atores e
músicos) desenvolvessem seu veio mico, uma vez que a sociedade era fechada,
havia uma severidade muito grande no que concerne aos costumes, visto que a
igreja católica ditava as normas do pensar e do agir. Criou-se, assim, uma referência
sobre o riso, nessa época digna de vários estudos importantes, como os de Mikhail
Bakhtin e Mions entre outros.
Em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, Bakhtin mostra a
existência, na Idade Média, de duas visões de mundo: uma dominada pela
182
severidade e pela seriedade e outra impregnada pela jocosidade, tratando-se, nesse
caso, da visão popular. Para o autor, o riso popular é um coletivo popular, é um dos
sinais da carnavalização do mundo. Uma explosão de alegria e de ironia sobre tudo
e sobre todos. Para o estudioso do cômico na idade média, esse riso tem suas
nuances que podem ir do jocoso à zombaria desmoralizante ou às referências
explícitas ao baixo corporal.
Autores como Gregório de Matos, na poesia brasileira do Século XVII,
parecem ter assimilado essas características do popular da idade média. Gregório é
um satirista impiedoso do seu tempo, galhofa de todos, sobretudo dos políticos e da
vida política.
No Brasil, a cultura popular também manifesta, de forma bastante original,
traços, elementos e práticas dessa visão cômica e parodística vinda da Idade Média,
inclusive nos folhetos de cordel. Assiste-se, assim, à consolidação de uma tradição
do cômico, com folhetos e mais folhetos que fazem o povo rir, produzindo um efeito
catártico através da carnavalização de si mesmo e da sociedade.
No levantamento feito sobre as mulheres negras nos folhetos de cordel,
encontram-se exemplos clássicos do riso e do baixo corporal. Casos significativos e
bem conhecidos são: o ciclo da Negra dum peito e os temas da deformidade e do
peido. Sobre a Negra dum peito só, encontram-se cinco versões de autores
diferentes. No entanto, três folhetos foram dedicados ao baixo corporal da mulher
negra (ver cartografia dos textos). Os diversos poetas narram a existência de uma
mulher negra que aparecia para a comunidade como um ser sobrenatural e tinha
apenas uma mama. Essa mulher deformada causava à população medo, espanto,
nojo, e somente alguns heróis ousavam desafiá-la ou, ao contrario, eram por ela
desafiados. Enfrentar A negra de um peito só” era, para muitos, a garantia de
heroísmo, uma vez que isso constituía a luta do bem contra o mal, embora, como é
da natureza do popular, esse bem fosse representado por figuras como Lampião ou
Antônio Silvino, personagens que, para a história oficial, não são exemplos de
bondade. Vale salientar, porém, que, sob o ponto de vista popular, o bem não tem
as características comportadas, tradicionalmente aceitas pela sociedade
hegemônica, ou, então, como diz a sabedoria popular, existem “males ainda maiores
do que o mal”.
183
O Lampião dos folhetos é um herói que luta e derrota A negra de um peito só,
mas o que importa é o combate. O significativo se afigura quando ele se depara com
essa ambivalência do popular que, ao mesmo tempo em que subverte a ordem
estabelecida, consegue deixar alguns personagens em lugares cristalizados
socialmente. A mulher negra é deformada, tem um peito só, é bruxa, maldosa,
extremamente sexualizada:
Era uma negra bem gorda
Um pé calado, outro não,
E que tinha um peito só,
No formato dum mamão
(SANTOS, 1977, p. 26).
Era uma negra feia
Banguela. Só tinha um dente
Do cabelo arrepiado
Parecia uma serpente
Imitava ao Capêta
Além de feia e cambeta
Tinha um peito somente.
(LEITE, 1974, p. 8)
Era um peito bem grande
Igual a um mamão caiana
Com 5 quilos ou mais
E Lampião não se engana...
(LEITE, 1974, p. 8)
Botou o peito pra fora
Que parecia uma jaca
Lampião se afastou
E pegou no cabo da faca...
(LEITE, 1974, p. 10)
A feiúra dessa negra
É uma cosa incomum
184
Num dia ela como um boi
No outro faz um jejum
Tem nove dedos numa mão
Mas na outra só tem um
(SOARES, 19--?, p. 2)
A Negra Dum Peito Só
Foi não foi ele se some
Anda com uma tinideira
Que parece um lubishomem
E além de ser macho e fêmea
É mais mulher do que homem
(SOARES, 19--?, p. 3)
Eu sei que a negra é
Braba que só um siri
Mais feia do que a morte
Não sei porque nunca a vi
E não quero conhecê-la
Nem quero que venha aqui
(SOARES, 19--?, p. 7)
Nega Fulô
tem um metro de canela
tem os beiços de gamela
a cabeça de cupim
a cara chata
tem a venta de chaprão
tem a boca de surrão
e o cabelo pixaim
(SILVA, Antonio Almeida da, 19--?, p. 6)
Tem um pé seco
E uma perna quebrada
Ela é apaixonada
Pelo sujo e desleixo
185
Negrona grossa
Preta, suja e fedorenta
Um beiço cobrindo a venta
E o outro cobrindo as queixa
(SILVA, Antonio Almeida da, 19--?, p. 6)
As expressões: “um metro de canela”, “beiços de canela”, “cara chata”, “venta
de chiprão”, “boca de surrão”, “pé seco,” “perna quebrada,” “beiço cobrindo a venta”,
“negona com mais de dois metros de altura, “cabelo pixaim,” “negrona grossa” entre
outras, acompanham e salientam a idéia de mutilação da mulher. O que deixa
entrever a idéia de incompletude que o poeta lhe atribui, como se ela fosse um ser
marcado pela falta de alguma coisa. Talvez falte a racionalidade atribuída ao homem
e há um excesso de sensibilidade que o amedronta.
Ao mesmo tempo em que a Negra dum peito é entregue à feitiçaria, ao
catimbó, em muitos casos, ela é simplesmente vista como a mão do diabo no
mundo, sob as mais variadas formas. Claro que as palavras feitiçaria e catimbó
estão aqui simbolizando o lado obscuro da religiosidade, o diabólico, mas em alguns
momentos a negra encarna mesmo a figura do diabo.
Vamos ouvir a história
Da velha Rita Gogó
Afamada e respeitada
Na arte do catimbó
(LEITE, 1974, p. 1)
A velha Rita Gogó
Residia no sertão
Era bamba no feitiço
E o povo da região
Sem ter compaixão nem
Mandava fazer catimbó
Para matar Lampião.
(LEITE, 1974, p. 4)
186
Dizendo: Eu vim vencê-lo
Por fôrça de catimbó
E fazer toda vingança
Da velha Rita Gogó
(LEITE, 1974, p. 12)
Ela começou a fumar
No cachimbo Sabe-Tudo...
Ali foi se ajoelhando
Na mesma hora chamando
O seu guia Zé Bochudo.
(LEITE, 1974, p.12)
Chegou o diabo Cambêta
E trouxe a negra Carijó
E o diabo Três Contigo
Irmão de Forrobodó
(LEITE, 1974, p. 13)
Deu-lhe um soco na cara
Dizendo: - Veja, menino
O meu nome é Socópode
Comigo você não pode
Hoje você fala fino
(LEITE, 19--?, p. 5)
A negra disse a Silvino:
- Minha brigada é cinzenta”
Silvino gritou pra ela:
- Vou vê se você me agüenta
(LEITE, 19--?, p.6)
Mas Silvino deu a negra
Outro pontapé na venta
E no lugar da pancada
Esquentou que só pimenta
187
Conhecendo do perigo
“A negra disse consigo:
- Assim nem a diabo agüenta”
(LEITE, 19--?, p. 7)
A Negra Dum Peito Só
É danada pra rogar praga”
Quando entra numa feira
Come que só uma draga
Agora tem uma coisa
Só faz comer não estraga
(Soares, 19--?, p. 5)
A figura da mulher negra serve também para representar o escatológico,
característica do baixo corporal: peidos, maus cheiros, sujeira, etc..
Me cheirando
Com a ventosa de chaprão
Não deixou mais eu de mão
Demore que vou contar”
(SILVA, Antonio, 19--?, p. 7)
A negona
Com dois metros de altura
Eu pegado na cintura
Receoso bom assim
Eu muito baixo
Mas a negra se agachava
Na minha venta passava
Uma catinga de soim”
(SILVA, Antonio, 19--?, p. 7)
Chifre queimado,
Avenca, folha de jambo,
Cabelo, cinza e mulambo
Veneno da boicininga
188
Um malificio
Um catimbó pra lascá-lo
E se chegar a pegá-lo
Mata só com a catinga
E se chegar a pegá-lo
Mata só com a catinga.
(SILVA, Antonio, 19--?, p. 8)
A negra caiu no forró
Com Zebedeu agarrada
E dentro da forrozada
Afrouxou do “feofó”
(LEITE, 2003, p.2)
Ela abriu do sobre-cú
Quando o vento foi saindo
A catinga foi se sentindo
Matando até urubu
Fedia mais que tembu
(LEITE, 2003, p.3)
A fogueira espalhou brasa
Quando o peido estrondou
Pois a fogueira arriou
E um pinto quebrou a asa
Até a dona da casa
Lá no quintal se escondeu
Um barrão velho morreu
Por causa da fedentina
Fedia mais que latrina
O Peido Que a Nega Deu.
(LEITE, 2003, p.3)
O galo de “Seu” Arlindo
Quando sentiu o mau cheiro
Saiu zonzo do poleiro
Fechando o bico e abrindo
189
A Lua vinha saindo
Numa nuvem se escondeu
E o Sol apareceu
No outro dia, azulado
Vinha todo sapecado
Do Peido Que a Nega Deu.
(LEITE, 2003, p.4)
Meia noite abriu do “rabo
Defecando o que comeu
Toda prega se rompeu
Na porteira do baú
Quase não passa no “cú
O “peido” que a “Nega” deu.
(BATISTA, 1930, p.2)
Cú” ceboso e vagabundo
O “Peido” tinha razão
Um fundo fazer questão
De um “peido” passar no fundo!
Mais veloz como um segundo
Esse “peido” endoideceu
Subiu e depois desceu
Fez finca pé no “suru”
O “peido” que a “nega” deu
Quase não passa no “cú”.
(BATISTA, 1930, p.7)
Fedendo a defunto nu
Não escapou urubu
Quem tinha vento perdeu
O “peido” que a “nega” de
Quase não passa no “cú”.
(BATISTA, 1930, p.11)
Vai logo de uma vez
Bicha feia e fedorenta
190
Se eu te pegar de jeito
Tu comigo se arrebenta
Nunca bati em mulher
Porém vejo que tu quer
Apanhar no pau-da-venta
(JOTAMARO, 1988, p.5)
Ao se notar, enfim, o fundo sexual depravado, onde o único e enorme peito da
negra é visto como objeto de desejo e, ao mesmo tempo, de ameaça e de castigo, é
difícil estabelecer o confim entre o jogo que provoca o riso, a provocação e a
“safadeza”. É certo, de toda forma, que o resultado almejado pelo poeta é alcançado
justamente pela somatória desses elementos: deformidade e feiúra inter-relacionam-
se com safadeza e malvadeza, numa perfeita inversão dos modelos “clássicos” de
beleza e de virtude. Está nessa inversão, como nos lembra Bakhtin (1988), o efeito
do riso popular, especialmente quando voltado para os “poderes” do baixo corporal.
Tome cuidado, sujeito
A você não me rendo
E é bom ficar sabendo
Que vai mamar no meu peito.
(LEITE, 19--?, p.5)
Ela Balançava o peito
Por lado de Lampião
Dizendo: Quer ou não quer?
Deixas de cavilação
Eu vim pra você mamar
Você deve aproveitar
Esta boa ocasião.
(LEITE, 1974, p.9)
Você tem nojo de mim
Mas o meu peito é cheiroso
Deixe de besticidade
Pode mamar a vontade
191
Meu leite é doce e gostoso.
(LEITE, 1974, p.11)
Dizendo: Eu vim vencê-lo
Por fôrça de catimbó
E fazer toda vingança
Da velha Rita Gogó
Hoje chegou sua hora
Você vai mamar agora
Na Negra dum Peito Só.
(LEITE, 1974, p.12)
Chegou o diabo Cambêta
E trouxe a negra Carijó
E o diabo Três Contigo
Irmão de Forrobodó
O negro gritou de lá
Lampião vai mamar
Na Negra dum Peito Só.
(LEITE, 1974, p.13)
A Negra dum Peito Só
Chegou como um furacão
Querendo botar o peito
Na boca de Lampião
Pra fazer ele mamar
Ele quis lhe segurar
Ela deu-lhe um empurrão.
(LEITE, 1974, p.15)
Neste meu folheto eu digo
Pois tenho raiva e persigo
O malandro e o coió,
Mesquinho, covarde e cotó,
Mas não posso me vingar
Vou botá-los pra mamar
Na negra dum peito só.
(PACHECO, 19--?, p.1)
192
Eu ajunto numa mó,
Levando de tronco a rama
Nesse dia tudo mama
Na negra dum peito só.
PACHECO, 19--?, p.1)
Quando desatar-se o nó
Quando ficares trivó,
Escorada na muleta
Tambem vaes fazer chupeta
Na negra dum peito só.
(PACHECO, 19--?, p.1)
Eu entro na sua aldeia,
Dou-lhe muito de cipó
Agarro pelo gogó
Dou-lhe quatro vai-e-vém
Obrigo a mamar também
Na negra dum peito só.
PACHECO, 19--?, p.2)
Tú pensas que o bosó
Virou a pedra roubando
E tu saísses mamando
Na negra dum peito só.
(PACHECO, 19--?, p.2)
Fica na tira e no pó
Sem comida e sem repouso
Chupando o leite amargoso
Na negra dum peito só.
(PACHECO, 19--?, p.3)
Vou mammar na minha avó
Faço tudo e não reclamo
Mas digo, provo e não mamo
193
Na negra dum peito só.
(PACHECO, 19--?, p.4)
Eu não mammarei por nada
Nem que me derem um presente
Dum relogio com corrente...
Não mamo por disaforo
Na negra dum peito só.
(PACHECO, 19--?, p.4)
Nem me dando uma buchada
Dum bode de Piancó
Queijo, doce e pão de ló
Pode me chegar de grupo
Que eu enjeito e não chupo
Na negra dum peito só.
(PACHECO, 19--?, p.4)
Esses trechos dos folhetos revelam como, em alguns momentos, a poética
popular pode ser ao mesmo tempo jocosa e cruel do ponto de vista da desfiguração
do personagem, tornando-o ridículo e aberrante. Nos textos sobre A negra de um
peito só, de Soares (19--?) e O peido que a negra deu, de Leite (2003) verifica-se a
mesma posição dos autores, ou seja, a ridicularização e a deformação da
personagem negra. Atingindo-lhe o corpo, também se atinge a sua esfera mental,
social e cultural, que fica rebaixada.
Tais considerações, no entanto, não autorizam que se tirem conclusões em
relação ao preconceito racial, uma vez que é inerente à cultura popular essa ironia,
esse escárnio de todos e de tudo. Mas, quando se pensa numa resposta social para
aquilo que os autores escrevem, tudo muda de figura. Segundo Minois (2003) “o riso
debochado, raivoso, com finalidade moralizante e conservadora, que zomba dos
vícios e das coisas novas é sucedido por um riso inquieto e perturbador, que
provoca mal-estar e vai muito além do riso burlesco” (p.94). Esse riso grotesco perde
sua naturalidade, tornando-se contrário à sua própria natureza.
O riso e o cômico são indispensáveis para o conhecimento do mundo e para a
apreensão completa da realidade. Ele leva ao nada e acesso a uma verdade
194
profunda, em oposição ao mundo racional e finito da ordem estabelecida. A
historiadora e antropóloga Alberti (1999), no seu livro O riso e o risível na história do
pensamento, ao examinar as teorias do riso desde a Antiguidade até os dias atuais,
chega à conclusão de que, no pensamento moderno, o riso leva à constatação de
uma espécie de leitmotiv presente em textos de proveniências e objetivos bastante
diversos e que podem ser assim resumidos: o riso partilha, com entidades como o
jogo, a arte, o inconsciente, etc., o espaço do indizível, do impensado, necessário
para que o pensamento sério se desprenda de seus limites. Em alguns casos, mais
do que partilhar desse espaço, o riso torna-se o motor de um movimento de revisão
do pensamento. Neste sentido, ele não seria algo banal, mas filosófico, que faz
pensar e refletir sobre o dito e o não dito.
Compreendendo que a concepção de riso é, sobremaneira, complexa, no
conjunto da análise do corpus deste trabalho, ter-se-á sempre o cuidado de fugir da
ingenuidade e da simplificação, no tocante à defesa da idéia de nítido e deliberado
preconceito por parte dos poetas que escrevem sobre as mulheres negras, a partir
do cômico e do risível. É preciso acompanhar detidamente todo o processo de
construção dos poemas, para se chegar a tais conclusões. E, nesse sentido, vale a
pena ler o seguinte trecho:
Só sei que a negra vivia
Andando fora de hora
Atrás de bicha e sapatão
Atrás gay e chifrudo
A negra pegava tudo dizendo:
-Vai ser agora
(LEITE, 19--?, p.2)
Pode-se pensar ser certo que a brincadeira com as minorias é jogo. Isso
porque, historicamente, o riso sempre esteve ligado ao que é diferente. No entanto,
pensando no espaço social que homossexuais, negros, portadores de necessidades
especiais etc. ocupam na sociedade, no mínimo, conclui-se que a voz dos poetas
populares reflete a voz da sociedade sobre esses sujeitos sociais. A desqualificação
da personagem é total na poesia analisado, porquanto a mulher negra não é,
195
exatamente, uma personagem, mas um conjunto de (pré-)conceitos que se veem
entoar nas sociedades, num somatório, quase naturalmente permitido, autorizado no
riso de todos. É fácil rir da “bicha”, do “sapatão”, da negra, do “corno”, do aleijado,
enfim de todos aqueles que simbolicamente seriam o outsider social. Depois de
analisar os sete poemas e não ver nenhuma compaixão com a personagem negra,
nenhuma fala de positividade em relação a essa personagem (ver mapa
cartográfico), infere-se que, se os poetas, em diversas épocas, reproduzem uma
história sem nenhuma preocupação com a compatibilidade com o real, estão não
apenas querendo manter o riso, mas cristalizar o que entendem como risível no
outro, naquele que “não sou eu” pelo menos em tese.
As relações de comunicação, como bem assinala Bourdieu (2007), detêm um
poder simbólico que faz “ignorar-reconhecer” aquilo que fica subtendido e mediado
pela linguagem, no caso específico desses folhetos, mediados pela linguagem do
riso. Para o autor, a reificação de uma idéia se pelo que ele chama de habitus e
para isso não é necessária a intencionalidade. A intenção no fazer ou dizer e, sim, a
própria atitude em dizer e repetir o que está estabelecido. Na fala do poeta Costa
Leite (ver entrevista), registra-se essa confirmação, pois ele afirma: a gente escreve
o que o povo quer ouvir, se eles quisessem que eu falasse sobre nossa senhora...
mas não querem; então, a gente só quer agradar para vender
12
.
Vê-se, então, nessa fala, um padrão discursivo e o instaurarar-se de uma
concepção, uma idéia sobre algo que socialmente parece significante do ponto de
vista do mico. Nesse sentido, os autores se apresentam como se fossem quase
compelidos por uma força maior a contar aquela história da tradição, coisa que os
tira da condição de agentes produtores de uma idéia preconceituosa ou incorreta.
Não se pode conceber ingenuamente que o poeta popular é um homem
condicionado a repetir histórias ou mesmo entender que o riso não parte de uma
racionalidade, sendo assim, pode-se entender que entre os poetas populares a
deliberada vontade de recontar, atualizar histórias que reifiquem a idéia de maldade
por parte de alguns, como se estivéssemos diante da mais pura verdade. Em
relação a esse aspecto, veja-se o trecho a seguir:
12
Entrevista concedida por Costa Leite em 7 de fevereiro de 2008, na cidade de Condado-PE.
196
Silvino nunca esqueceu
Daquela negra maldita
Que tinha somente um peito
E era muito esquesita
Quando uma negra ele via
No mesmo instante fazia
Uma prece a Santa Rita.
(LEITE, 19--?, p.8)
Essa autoridade do poeta popular, no seu dizer e contar histórias, pode ser
notada de maneira significativa no caso do mito da negra de um peito só, cuja
narrativa é repetida por diversos autores em épocas diferentes. Parece haver uma
determinação por parte dos poetas em escrever sobre esse assunto, pois como lhes
foi repassada a história, como ouviram dizer que existiu uma negra de um peito só,
torna-se “imperioso” que esses autores produzam e reproduzam tal narrativa,
potencializando, assim, os efeitos de sentido de tal história, tornando-a um
emblema, um mito, um sinal. (2007) afirma que:
o autor mesmo quando diz com autoridade aquilo que é, mesmo
quando se limita a enunciar o ser, produz uma mudança no ser: ao
dizer as coisas com autoridade, quer dizer, à vista de todos e em
nome de todos, publicamente e oficialmente, ele subtrai-as ao
arbitrário, sanciona-as, santifica-as, consagra-as, fazendo- as existir
como dignas de existir, como conformes à natureza das coisas,
‘naturais’. (BOURDIEU, 2007, p.114)
Ora, por mais que se considere o caráter mimético da literatura popular -
lembrando que suas narrativas o apenas imitação da realidade e não podem ser
julgadas nos ditames da realidade objetiva, embora se creia na licença poética e na
liberdade formal e conteudística do poeta em suas criações, sem, portanto, atribuir
juízos de certo e de errado - não se pode deixar de perceber o poder simbólico das
palavras como elementos que reificam e que cristalizam conceitos. Um desses
conceitos se refere à mulher negra que, no mínimo, é concebida, pelo poeta popular,
como mulher passando da categoria de coisa perversa e que precisa ser
extirpada, seja pelo homem poderoso (“Lampião”, “Antonio Silvino”), seja pelo divino
(“Santa Rita”, feitiçaria, macumba, catimbó). Pode-se inferir, de maneira objetiva,
197
que essa mulher, condenada pelo autor que se sente autorizado a falar desse ser,
afinal de contas, não se inclui na categoria de humano.
Os elementos sexuais dos contextos das estórias da negra de um peito
parecem significativos e dignos de nota. O conteúdo é explicitamente sexual, como
aparece claramente nos traços acima referidos. O conjunto das narrativas nos
remete para o universo permeado pelo apelo sexual, embora pareça que os autores
não tratem diretamente da questão do erotismo. O próprio título aponta para a
constituição de um apelo simbólico: a ligação mulher/sexo/erotismo. O peito da
negra, apesar de ser único, é enorme, aberrante, mal cheiroso e estranhamente
disponível.
Os autores mostram uma negra que se estabelece justamente por aquilo que
tem de “imundo”: o seu peito. Há, nesse contexto, uma proposta de leitura do mito
da grande mãe, podendo-se entrever, também, o mito daquela que se lança sempre
solícita para amamentar e tornar possível a vida - a ama-de-leite - e mulher negra.
Aquela que não amamentou os seus filhos, no tempo da escravidão, mas se
tornou a mãe de outrem.
Esse lado afetivo é tão latente quanto o apelo luxurioso que, na obra de Costa
Leite, sobretudo, pode-se verificar. A negra de um peito (19--?) é quem chama o
homem para o sexo, quem toma a iniciativa. Em algumas narrativas é tudo
subliminar, mas a violência, o lado feiticeiro da negra, parece evidenciar o desejo e o
estranhamento do narrador. Dentro do espaço fictício dos folhetos, vê-se constituir-
se a concepção do poeta a respeito do corpo feminino/negro, o qual obviamente
submetido à lógica que independe do espaço, concebido como absurdo, é, ao
mesmo tempo, sujo e cheio de sensualidade, capaz de causar “raiva” em Lampião,
em Antônio Silvino e, também, nos poetas populares. Talvez um furor que coincida
muito mais com o mito do desejo sexual que habita no imaginário popular sobre as
mulheres de cor.
No Brasil, a história do sexo é contada por Del Priore (2005), a partir da
Colônia. A autora fala do conservadorismo da sociedade em relação ao sexo,
quando beijar era um pecado grave e as relações sexuais não deveriam ser
praticadas porque “emburreciam”. Havia um receituário ditado pela igreja católica
para afastar a tentação do amor carnal. Para isso, prescreviam-se orações e
198
penitências, além de remédios de ervas, que massageavam os pênis e afastavam as
tentações carnais (DEL PRIORE, 2005, p. 26).
Assim, nas histórias da negra de um peito se encontra um mito em tramas
narrativas diferentes. O visual do peito, tanto na narrativa quanto na xilogravura,
focaliza o leitor para a contemplação, porquanto um apelo visual que envolve
mulher negra, mulata e sexo. Aspectos ligados à corporalidade e sexualidade estão
correlacionados à deformidade. A corporalidade, considerada um aspecto distintivo
da brasilidade, envolve diversos aspectos com o forte destaque para os estilos de
sexualidade, que envolvem disposição para o sexo e as práticas sexuais,
alcançando o estatuto de um saber alimentado por uma troca compartilhada de
conhecimentos.
No signo do olhar da negra, nas versões de José Soares (19--?), Enéas
Tavares dos Santos (1977) e de Costa Leite (1974), tem-se toda a semanticidade
das trevas. O elemento do olhar sempre presente nos versos. Na Bíblia, no
Evangelho de Mateus, o olho consiste numa metáfora de luz do corpo. Nesse
sentido, se o olho está nas trevas, todo o corpo também está. O poeta popular
fomenta no seu leitor, um olhar metaforizado, que faz pensar que, se de acordo com
o arquétipo bíblico do olhar, que diz: “A lâmpada do corpo é o olho. Portanto, se o
olho estiver o, todo o teu corpo ficará iluminado; mas se o teu olho estiver doente,
todo o teu corpo ficará escuro. Pois se a luz que em ti são trevas, quão grandes
serão as trevas”
(Mt. 6:22-23?).
Há, desse modo, a representação da cobiça, da luxúria e, na visão do poeta
popular, quem olha para a negra e para o seu peito é um pecador degenerado. No
trecho a seguir, a invocação que é um vocativo, seguido de uma exclamação
representa e reforça essa significação pecaminosa da negra. O vocativo é também
uma marca da oralidade que tende a representar os estereótipos:
Lampeão disse: Te dana!
Negra feia desgraçada
Não gosto de negra moça/
Quanto mais velha e pelada/
É bom que não te esqueça/
De ti só quero a cabeça
199
Pra eu fazer garrafada.
(LEITE, 1974, p.9)
Verifica-se, também, que os folhetos integrantes da categoria analítica “Corpo
e deformidade corporal”, estão em consonância com as observações históricas de
Bakhtin acerca da carnavalização, ou seja, do mundo virado às avessas pelo viés da
paródia.
uma relação da voz com o corpo. As marcações e os índices dos folhetos
levam o receptor a uma percepção da sensoriedade corporal. É forte o apelo
sinestésico, com sensações que, aludidas à imagem, levam a uma imanência nas
sensações. A categoria bakhtiniana do baixo corporal é reiterada, posto que
apresenta que o “que sai” das partes baixas do corpo traz o caos e a desordem:
Soltou um peido sem dó
Que o mundo escureceu
O chão da casa tremeu
O candeeiro apagou-se
(LEITE, 2003, p.2)
O Céu ficou cor de rosa
Quando sentiu- se o mau cheiro
O oceano ferveu
O mundo todo estrondou
Relampejou, trovejou
Com o Peido Que a Nega Deu
(LEITE, 2003, p.3)
A fogueira espalhou brasa
Quando o peido estrondou
Pois a fogueira arriou
E um pinto quebrou a asa
Até a dona da casa
Lá no quintal se escondeu
Um barrão velho morreu
200
Por causa da fedentina
Fedia mais que latrina
O Peido Que a Nega Deu.
(LEITE, 2003, p.3)
“Rimbombou como um trovão
Quando o “peido” fez carreira
Quase não passa no cú.”
(BATISTA, 1976, p.3)
Quase não pode passar
A dona do “cú” gemeu
O “peido” que a “nega” deu
Quase não passa no “cú”.
(BATISTA, 1976, p.5)
Assim, conclui-se com as versões do folheto O peido que a negra deu que
como afirmou Bakhtin (1998, p. 245):
O comer e o beber são uma das manifestações mais importantes da
vida do corpo grotesco. As características especiais desse corpo são
que ele é aberto, inacabado, em interação com o mundo. É no
‘comer’ que essas particularidades se manifestam da maneira mais
tangível e mais concreta: o corpo escapa às suas fronteiras, ele
engole, devora, despedaça o mundo, fá-lo entrar dentro de si,
enriquece-se e cresce às suas custas. O encontro do homem com o
mundo que se opera na grande boca aberta que mói, corta e mastiga
é um dos assuntos mais antigos e mais marcantes do pensamento
humano. O homem degusta o mundo, sente o gosto do mundo, o
introduz no seu corpo, faz dele uma parte de si.
De forma geral, a categoria “corpo e deformidade corporal” mostra através
dos folhetos um lugar demarcado para a mulher negra. Tal carnavalização da
mulher, se explicada pela ótica bakhtiniana, não vai indicar propriamente uma
desvalorização dela, porque “o rebaixamento é enfim o princípio artístico essencial
do realismo grotesco: todas as coisas sagradas e elevadas aí são reinterpretadas no
plano material e corporal” (MINOIS, 2003, p. 158).
Sendo assim, esteticamente, esse
201
rebaixamento para o corpo grotesco o conteria um fim degradante, e sim
renovador.
Bahktin (1998) refere-se à obra de Rabelais especificamente, mas constrói e
utiliza categorias universais, que podem ser aplicadas às analises, principalmente no
que se refere ao cômico popular, objeto de estudo desta pesquisa. Portanto, no
caso da mulher negra, não uma relação linear entre a degradação como um
recurso artístico para apresentar uma renovação, uma atitude de apenas de rebeldia
do poeta popular. Tudo leva a crer que a poética popular está, sim, vinculada a um
mundo de preconceitos que são estabelecidos socialmente.
5.5 Religião
A cultura popular brasileira é objeto de estudo, e vários pesquisadores, ao
longo dos tempos, vêm se comprometendo com pesquisas diversas. Câmara
Cascudo contribuiu significativamente para o entendimento da nossa cultura e do
nosso povo. As manifestações culturais que ele estudou apresentam um quadro
mais livre e simples do que é nossa cultura e, mesmo sem haver uma preocupação
com a crítica literária, tem-se um legado de fontes ricas para constantes estudos que
surgem, sobre cultura popular.
São relevantes as suas coletas no que tange à influência da cultura negra em
nosso trajeto cultural. No livro Superstição no Brasil (2002), o autor lista, no capítulo
terceiro “Religião de um povo” -, alguns aspectos fundamentais para a análise
sobre a relação entre religiosidade e mulher negra, tema recorrente nos folhetos de
cordel.
Falar em religiosidade brasileira é transitar pelos domínios do sincretismo.
Religião, bruxaria, feitiçaria, espiritismo, cultos afrobrasileiros são temas recorrentes
na cultura popular e especificamente na literatura de cordel. Em relação a esse
aspecto, a pergunta é: Qual a ligação entre essas categorias e a mulher negra,
assim como é apresentada nos folhetos que versam sobre ela? Em primeiro lugar,
seria significativo analisar se bruxaria, feitiçaria e cultos afrobrasileiros são
considerados totalmente antagônicos à religião católica (religião predominante no
Nordeste brasileiro, sobretudo à época do surgimento da literatura de cordel, na
202
segunda metade do Século XIX) ou podem ser considerados formas diferentes e
alternativas do contato com o divino.
A leitura e a análise dos textos do corpus desta pesquisa são, pelo menos,
problemáticas, uma vez que não existe uma linha clara e definida em nenhum dos
poetas populares, mas um conjunto de afirmações, muitas vezes, contraditórias,
que sempre refletem preconceitos, estereótipos e medos largamente difundidos
entre o povo. No entanto, o que se torna significativo é que tudo o que pertence à
bruxaria e à feitiçaria está sempre ligado à figura da mulher negra.
Veja-se, por exemplo, o que escreve Barros (1963) no folheto “Lampeão e a
velha feiticeira”, onde aparece muito clara a ligação negativa entre a feiticeira velha
e negra e as práticas da bruxaria:
- Se eu não tomar vingança
não sou mais catimboseira
rasgo os papéis de orações
toco fogo na carteira
(BARROS, 1963, p.10)
Rezou o credo ao contrário
avessou o cabeção
fez um cruzeiro na testa
e um sino Salomão
(BARROS, 1963, p.11)
... botou pra cozinhar
dente de quem já morreu
cuspiu e depois benzeu
porém com o calcanhar
(BARROS, 1963, p.11)
Quando a dita conheceu
seu trabalho sem efeito
203
invocou satanaz
pediu que lhe desse um jeito
satanaz muito orgulhoso
lhe disse: isso é custoso
mas conte tudo direito
(BARROS, 1963, p.13)
Os mesmos traços negativos encontram-se no folheto A negra velha da
trouxa montada no bode preto de Leite (1969):
Tôda negra da Bahia
Gosta muito do xangó
Ninguém não sabe se ela
Nasceu lá ou se criou
O mundo todo ela “vira”...
(LEITE, 1969, p.2)
Já outros dizem que é
o rapaz que virou bode
porem ninguém tem certeza
e com eles ninguém pode
são os anjos do maldito
a negra mesmo tem dito
que seu nome é Socópode
(LEITE, 1969, p.3)
Já disseram que a negra
talvez seja a Besta-Fera
que anda solta no mundo
e estamos no fim da era ...
(LEITE, 1969, p.3)
Na trouxa da negra tem
até pena de Socó
o feitiço que ela faz
não tem quem desate o nó
204
porque já esta provado
que a negra do penteado
é bamba no catimbó
(LEITE, 1969, p.6)
A primeira declaração é a de que todas as negras da Bahia gostam muito do
xangô, visto como algo pejorativo. A visão negativa é ainda mais clara quando a
negra feiticeira é representada simplesmente como encarnação do diabo. Enfim, a
maldade da protagonista é resumida no fato de que ela “é bamba no catimbó”.
No folheto, A vitória de Floriano e a Negra Feiticeira de d’Almeida Filho (1960)
nota-se de forma contundente que a protagonista, para obter a vitória contra os
adversários, tem de fazer uso de práticas mágicas:
Mas o rei tinha uma negra
Que era a mãe do feitiço
Se aparecia um rapaz
Para fazer o serviço
A negra se preparava
Para fazer o enguiço.
(D’ALMEIDA FILHO, 1960, p.6)
Assim que o rapaz saía
A negra entrava em ação
Chegava no pé do pau
Rezava uma oração
Depois cuspia no corte
E o pau ficava são.
(D’ALMEIDA FILHO, 1960, p.8)
A negra foi engulida
Levou carta a satanaz
Morreu por ser feiticeira
Enquanto que o rapaz
Insistiu com os amigos
Defendeu-se dos perigos
Assim é que homem faz.
(D’ALMEIDA FILHO, 1960, p.16)
205
No folheto A briga do Trocador com a Nêga do Pirambu de Jotamaro (1988)
aparece uma ligação entre bruxaria e macumba:
Nêga eu já te conheço
Sei que sempre foi vadia
Tu também é macumbeira
Só vive de bruxaria
(JOTAMARO, 1988, p.2)
É claro que a prática da macumba não é percebida como expressão de uma
religiosidade de matriz africana, mas, ao contrario, como uma prática negativa de
bruxaria e feitiçaria. Enfim, como é vista a prática da macumba nos folhetos?
Não se encontram muitos textos especificamente voltados para o assunto. Muito
mais fácil é ligar a figura da mulher negra com à prática da bruxaria, que, em relação
a uma religião “oficial”, é aceita pelo povo.
O primeiro texto de Cavalcante (1976), A macumba da Bahia, tenta resgatar a
dignidade dessa prática. Porém, assim, mais parece uma promoção do valor
folclórico e turístico, mais que um reconhecimento da macumba como verdadeira
religião.
Quem visita Salvador
E não conhece um “Terreiro”
Deixa de ver o Folclore
Do nordeste brasileiro,
Na beleza dos seus ritos
No encanto dos seus mitos
É um espetáculo altaneiro!
(CAVALCANTE, 1976, p.1)
O Candomblé da Bahia
Pelos seus grandes fulgores
É Tradição, é Cultura,
É Folclore multicores,
206
Foi ele bem retratado
Nos livros de Jorge Amado
E de muitos Escritores.
(CAVALCANTE, 1976, p.2)
Em outro verso, porém, encontra-se também o reconhecimento da macumba
como religião organizada e que tem suas origens antigas:
Hoje o Afro-Brasileiro
É uma Religião
E por isso tem seu Código
De verdadeira Instrução;
Hoje uma “Mãe de Santo”
Trabalha com seu “Encanto”
Na mais pura perfeição!
(CAVALCANTE, 1976, p. 3)
A Macumba da Bahia
É religião pesada...
Entretanto ela é Folclore
De Cultura adiantada;
Nele vê-se o ignoto
No seu passado remoto
De Doutrina Revelada!
(CAVALCANTE, 1976, p. 3)
Ao mesmo tempo, “in cauda venenum”, como diziam os romanos: a Macumba
é descrita como uma “seita”, com a qual é preciso ter muito cuidado. Apesar de tudo,
a visão do autor, embora ele tenha intenção de fazer um marketing positivo, não
consegue escapar do preconceito contra tais manifestações que estão
intrinsecamente ligadas ao povo negro e à mulher negra:
Não se precisa ir à África
Para a seita conhecer,
2
07
A nossa velha Bahia
Tem tudo para se ver,
Nos “Terreiros” registrados
Hoje são catalogados
Nas “Ligas” por um dever!
(CAVALCANTE, 1976, p. 5)
Ninguém profane os “Terreiros”
Para não se arrepender
Pois com farofa de azeite
Tudo pode acontecer...
Galinha preta ou anu,
Bode, Pombo e Caruru
É fácil de resolver!
(CAVALCANTE, 1976, p. 6)
Sendo assim, que se perguntar o porque da macumba ser confundida com
bruxaria e feitiçaria. A relação com a mulher negra aparece de forma muito clara em
outros dois folhetos,observe-se os títulos: A Macumba da negra saiu errada de
Cavalcante (1978) e Vida e morte de Helena do Bode (A gorda macumbeira Baiana)
de Maxado (1980).
No poema de Cavalcante (1978), a macumbeira parece simplesmente uma
feiticeira, que, para curar o filho doente do doutor Simão, usa todas as magias da
macumba, e ele tem que pagar muito caro por isso.
Interessante é o caso narrado por Maxado (1980), pois a protagonista do seu
folheto é uma famosa macumbeira que na sua vida usou todos os seus poderes
para ajudar aos outros, mas também para se vingar de seus amantes infiéis. A
macumbeira foi uma negra legítima da África, que teve muitos poderes, uma vida
incrível. Mas, no final, é difícil dizer que ela vai sair com uma imagem positiva: todos
os preconceitos e estereótipos sobre a mulher negra, nesse caso, uma mãe de
santo, estão presentes nesse folheto.
Quem em Feira de Santana
Na Rua Nova e Cruzeiro
No velho Barro vermelho
208
Não sabe de um terreiro
O de Helena do Bode
Famoso no mundo inteiro?
(MAXADO, 1980, p. 1)
Pois o seu pigi continua
Mas dona Helena morreu
Com quase 200 quilos
Aqui conto o caso seu
Como conversou com Exu
E como seu bode viveu.
(MAXADO, 1980, p. 1)
Pra se consultar com ela
Antes de morrer de enfarte
No seu candomblé Jexá
Vinha gente de toda parte
Era filha de Omulu
Mostrava toda sua arte
(MAXADO, 1980, p. 1)
Os olhos avermelhavam
Ficavam de sangue em posta
Metia medo em quem visse
A negra pura da Costa
Legítima filha nagô
Como aqui eu dou amostra
(MAXADO, 1980, p. 2)
Apesar da aparência
Helena era pessoa
De muito bom coração
Era caridosa e boa
Curou bastante doentes
Não deixava os seus à toa
(MAXADO, 1980, p. 3)
209
Quando era sua amiga
Era amiga pra valer
Mas se sestrasse, cuidado
Procurasse escafeder
Seu bozó era tiro certo
Tai Juju pra dizer
(MAXADO, 1980, p. 3)
Falam que foi o Capeta
Com ordem da macumbeira
E esta não confirmou
Porém sorria faceira
Como quisesse mostrar
Que ela não dá bobeira
(MAXADO, 1980, p. 4)
O povo então passou
Muito a lhe respeitar
Pois feitiço não é crime
Mesmo que possa matar
Sua casa se enchia
De gente para consultar
(MAXADO, 1980, p. 5)
E ela tanto fazia
Trabalhos e mais despachos
Para que moças e mulheres
Segurassem os seus machos
Como arranjava os seus
Porque não era patacho
(MAXADO, 1980, p. 5)
E ela se vestia toda
De anáguas e colares
Saia, rendas e torço
Despertando os olhares
Dançando com todo dengo
210
E puxando os cantares
(MAXADO, 1980, p. 9)
Pois dona Helena do Bode
Sabia que era folclórica
Ria até dos que diziam
Não ficava melancólica
Gostava das brincadeiras
E não ficava eufórica
(MAXADO, 1980, p. 10)
Um caso totalmente diferente é representado pela Peleja de Severino Borges
com a Negra Furacão de João José da Silva (19--?)
A peleja é significativa em função de muitos aspectos. A protagonista negativa
é a Negra Furacão, que, conforme os estereótipos mais difundidos, é uma figura
horrorosa e imunda. E isso não no nível físico, mas também no nível cultural e
social. Com efeito, a Negra Furacão, além de ousar desafiar o famoso cantor e
violeiro Severino Borges, mas, sem medo, também encara difíceis assuntos
religiosos ao mesmo tempo em que se declara “grã materialista”. Para todo mundo,
ela é a contrafigura do diabo e o seu lugar é o inferno. O fato de que uma
personagem tão negativa seja uma mulher negra é a prova da difusão de
estereótipos e preconceitos muito enraizados na cultura popular do Nordeste.
Não é esse o lugar mais apropriado para uma análise aprofundada dos
conteúdos “teológicos” da peleja, mas é interessante observar como o poeta prega
como ortodoxas algumas verdades que pouco ou nada pertencem à teologia
católica.
Assim, é que algumas afirmações ficariam melhor na boca de um maçon ou
de um “espiritualista”, como denuncia a mesma Furacão:
A Terra o Mar o Céu e a Pureza
O Sól a Lua o Ar a Chuva a Vento
A Arquitetura do grande Firmamento
E o Quadrante que compõe a Natureza
(SILVA, João José da, 19--?, p. 10)
211
Ainda mais alheia à doutrina católica é a crença na reencarnação que, na
idéia do poeta, é ao contrário um ponto muito importante:
Essa gente já fez coisas de mais
Quando viva na outra encarnação
Voltou para uma peregrinação
Pagando suas culpas neste mundo
Transformada num rebanho vagabundo
Pra limpar-se com a reencarnação...
Você não mas nós temos muitas vidas
Depende do que cada um cometer
Um homem pode morrer e nascer...
(SILVA, João José da, 19--?, p. 13)
Aparece clara, também, a distinção entre a em Deus e a confiança na
Igreja católica. O poeta põe na boca de Furacão a crítica à Igreja, mas, ao mesmo
tempo, não faz nada para defendê-la: “Eu não disse que meu Deus é a igreja”, ele
afirma depois do pesado ataque de Furacão:
Esse Deus é a igreja católica
O símbolo de toda idolatria
A matriz da grande carestia
Que dizem ser santa e apostólica
Mas eu sei muito que ela é simbólica
Do ouro, do poder e do egoísmo
(SILVA, João José da, 19--?, p. 14)
É pertinente perceber como o poeta, quando está em dificuldade, usa a arma
do ultraje, tipicamente usada contra a mulher negra: “Negra imunda isto é falta de
respeito”; “sua língua maldita há de cair”; “Eu estou seriamente aborrecido, de cantar
com um ente endiabrado”; “negra infame cruel e traidora maldita vil e sedutora”.
O último ataque é o mais forte porque afirma a convicção mais difundida e
radical: que o negro, independentemente do sexo, não é “gente”:
212
Que me importa que ela seja ou não seja
Cristã crente pagã ou egoísta
Você negra é que não é repentista
Não é gente não é bicho nem é nada
Você negra é que não é repentista,
Não é gente não é bicho nem é nada
É a mãe do Diabo retratada
(SILVA, João José da, 19--?, p. 15)
Para o poeta, quando a situação está ficando arriscada, chega a ajuda divina:
“Nessa hora retratada numa luz, a imagem de Cristo apareceu” e “a maldita negra
desapareceu”. Desse modo, Borges conseguiu vencer a peleja. No entanto:
...coitado ficou
taciturno e descontente
apesar de ter vencido
a negra mãe da serpente
não conformou-se
e voltou para sua casa doente
(SILVA, João José da, 19--?, p. 10)
Concluindo, pode-se afirmar que uma superficialidade e até
desconhecimentos dos autores que falam da religiosidade de matriz africana. Eles
confundem as várias expressões religiosas, até porque concebem que não é preciso
descrevê-las como são na realidade, porquanto seus preconceitos parecem indicar
que todas pertencem à categoria do satânico, do maligno.
5.6 Feitiçaria
Na categoria analítica “feitiçaria” foram encontrados 10 (dez) folhetos, que
podem ser divididos em duas narrativas predominantes: a velha feiticeira e a velha
da trouxa.
213
A protagonista, de qualquer forma, sempre uma negra, tem o traço da velhice
no sentido de que ser velha e negra significa trazer consigo as marcas de tudo o que
é pior, como se pode constatar neste sumário de adjetivações encontradas nas
narrativas: “negrona grossa”, “suja e fedorenta”, “negra feia”, “imunda e catingosa”,
“negra ruim”, “bicha feia e fedorenta”, “negra escrava”, “velha feia e engilhada”,
“negrona horrorosa”, “negra nojenta”.
Após a análise desses folhetos, verifica-se que se fez oportuna, para esta
discussão, a leitura do livro Memória e Sociedade- Lembranças de velhos, de Bosi
(1994). A autora afirma que a condição de velhice na sociedade ocidental é
considerada sinônimo de senilidade. Essa é uma visão tão preconceituosa e cheia
de estereótipos quanto à da mulher e do negro. Para a ela, numa concepção
existencialista, a velhice seria algo impossível de se viver:
Uma situação composta de aspectos percebidos pelo outro e, como
tal, reificados, que transcendem nossa consciência. Nunca poderei
assumir a velhice enquanto exterioridade, nunca poderei assumi-la
existencialmente, tal como ela é para o outro, fora de mim. É um
irrealizável como a negritude; como pode o negro realizar em sua
consciência o que os outros vêem nele? (BOSI, 1994, p.79).
Assim, ser negro e ser velho é um duplo enlace de preconceitos e
estereótipos que não escapa à visão do poeta popular. Nesse aspecto, é pertinente
salientar que as narrativas sobre a velha negra têm versões recorrentes ao longo
das décadas por diferentes poetas populares. Sobre essas narrativas dedicadas à
velha negra, o poeta José da Costa Leite na entrevista, já citada, salienta:
Olha, a história da negra feiticeira e da negra da trouxa é uma
história que de vez em quando os poetas recontam, eu nunca contei,
mas eu sei de tanto ouvir nas feiras desde criança, mas é uma
história assim... dizem que ela existiu... eles contam... eu nunca
contei... (ANEXO C)
Em determinado momento da entrevista, o poeta conta a história nos mínimos
detalhes, repetindo sempre que a ouviu de outrem. Ele não tem participação “no
causo”, mas deixa entrever uma satisfação com aquilo que conta, uma familiaridade
com os detalhes, sobretudo quando a negra é depreciada. Ele sorri longamente com
214
os léxicos “velha”, “negrona”, “bicha feia”. O riso de Costa Leite parece até um tanto
pueril, aquela lembrança do passado de quem ouviu essas e tantas histórias, e elas
estão guardadas em seu imaginário, assim como está nas lembranças de qualquer
criança a cantiga do “boi da cara preta”.
Faz parte do imaginário de todos e por isso parece ser autorizado dizê-la,
cantá-la e escrevê-la de forma que, como salienta Bosi (1994) “o passado possa
sobreviver na forma de imagens-lembranças” (p.53).
Além disso, a velha sintetiza tudo o que repugna: um perfeito retrato da
fealdade física e moral, o que ao mesmo tempo torna-se risível:
Nega Fulô
tem um metro de canela
tem os beiços de gamela
a cabeça de cupim
a cara chata
tem a venta de chaprão
tem a boca de surrão
e o cabelo pixaim
(SILVA, Antonio, 19--?, p. 6)
Olhos roídos
e o olhar de serpente
na boca só tem um dente
do tamanho dum alfinim
tem uma inhaca
de azeite de mamona
aconteceu que a negona
se apaixonou por mim
(SILVA, Antonio, 19--?, p. 6)
Tem um pé seco
e uma perna quebrada
ela é apaixonada
pelo sujo e desleixo
negrona grossa
preta, suja e fedorenta
215
um beiço cobrindo a venta
e o outro cobrindo o queixo
(SILVA, Antonio, 19--?, p. 6)
Enquanto feiticeira, a velha negra pratica e exerce todos os tipos de feitiçaria:
Nega Fulô
foi quem trouxe o catimbó
pra cidade do Codó
empestando o Maranhão
(SILVA, Antonio, 19--?, p. 5)
Tome cuidado
com a negra feiticeira
ela é esperta e corredeira
corre mil léguas por dia
vive correndo
seis mil léguas por semana
atrás de pegar o sacana
que falar de poesia
(SILVA, Antonio, 19--?, p. 8)
Apareceu uma negra
no Estado da Bahia
com uma trouxa medonha
cheia de patifaria
a negra em sua bagagem
conduz toda fuleragem
dela fazer bruxaria
(LEITE, 1969, p. 1)
- Se eu não tomar vingança
não sou mais catimbozeira
rasgo os papeis de orações
toco fogo na carteira
porque só serve a mandinga
que na ocasião vinga
216
a paixão da mandingueira
(PACHECO, 19--?, p.3)
Num dia se sexta-feira
usou de seu catimbó
pegou logo um gato preto
torceu-lhe o rabo e deu
coseu os olhos de um sapo
encruzou un sacatrapo
na boca de um caritó
(PACHECO, 19--?, p.3)
Nêga eu já te conheço
Sei que sempre foi vadia
Tu também é macumbeira
Só vive de bruxaria
Sua cara de Papa-Angu
(JOTAMARO, 1988, p.2)
Mas o rei tinha uma negra
Que era a mãe do feitiço
Se aparecia um rapaz
Para fazer o serviço
A negra se preparava
Para fazer o enguiço.
(D’ALMEIDA FILHO, 1960, p.6)
A negra foi engulida
Levou carta a satanaz
Morreu per ser feiticeira
Enquanto que o rapaz
Insistiu com os amigos
Defendeu-se dos perigos
Assim é que homem faz.
(D’ALMEIDA FILHO, 1960, p.16)
217
Disse que era uma trouxa
preta, feia e volumosa
cheia de feitiçaria
uso e moda escandalosa
tudo o que não presta tem
na Trouxa Misteriosa
(CARLOS, 19--?, p.3)
Na Trouxa da negra Tem
mistério e feitiçaria
e corre de noite e dia
pelo mundo sem parar
arranjando freguesia
(CARLOS, 19--?, p.7)
Há, também, na feiticeira velha negra uma estreita relação com as forças do
mal, sendo, na maioria das vezes, vista como uma direita emanação do diabo:
Nega Fulô
é uma negra praiana
filha da mocebriana
e do velho Siprião
é neta de Caim
e é bis-neta da cobréia
ela é irmã de Pompéia
mulher do mágico Simão
(SILVA, Antonio, 19--?, p. 5)
Já disseram que a negra
talvez seja a Besta-Fera
que anda solta no mundo
e estamos no fim da era
(LEITE, 1969, p.3)
218
Quando a dita conheceu
seu trabalho sem efeito
invocou satanas
pediu que lhe desse um jeito
satanas muito orgulhoso
lhe disse: isso é custoso
mas conte tudo direito
(PACHECO, 19--?, p.5)
Mas ela não aceitou,
Dizendo que só queria
Mostrar a mercadoria
Que Satanás mandou.
(CAVALCANTE, 1978, p.1)
Se ela vir em tua casa
mande a danada ir embora
e reze uma oração
da Virgem Nossa Senhora
a negra é a Besta-Fera
que anda de mundo a fora
(CARLOS, 19--?, p.8)
Assim, a velha negra feiticeira intervém na vida corriqueira, com todas as
suas artes mágicas em favor de malfeitores e de pessoas de má-fé. Porém, às
vezes, os resultados são inesperadamente desfavoráveis, porque, nem sempre, o
mal ganha. Na verdade, as narrativas dos poetas refletem o imaginário popular, que
sempre olhou com certa ironia e cumplicidade para essas figuras mágicas. A
tendência sempre foi a de dar um significado pedagógico: o de que, na luta entre o
mal e o bem, nem tudo é simples, nem tem um percurso linear.
As mesmas descrições dos rituais, das rmulas e das bênçãos ao contrário,
das rezas sacrílegas e dos componentes das misturas mágicas, parecem
reelaborações cômicas de antigas alquimias, feitas mais para provocar o riso do que
para criar uma atmosfera de medo diabólico:
219
pegou logo um gato preto
torceu-lhe o rabo e deu
coseu os olhos de um sapo
encruzou un sacatrapo
na boca de um caritó
(PACHECO, 19--?a, p.3)
Rezou o Credo ao contrário
avessou o cabeção
fez um cruzeiro na testa
e um sin-salomão
trouxe uma caranquejeira
amarrou numa ponteira
e pendurou no fogão
(PACHECO, 19--?a, p.3)
Pilou pimenta da costa
e ao depois foi buscar
casca de jurema preta
e botou pra cozinhar
dente de quem já morreu
cuspiu e depois benzeu
porém com o calcanhar
(BARROS, 1963, p.11)
Botou também uns cabelos
que tirou do corpo dela
um bocadinho de suvaco
outro tanto da titela
o resto foi dum lugar
que eu não posso explicar
o leitor pergunte a ela
(BARROS, 1963, p.11)
Minois (2003) fazendo uma leitura da obra bakhtiniana sobre o riso na Idade
Média e no Renascimento, lembra que esse riso era de deboche: ria-se, sobretudo,
220
daquilo que parecia sagrado. O riso teria, portanto, um valor de subversão social e,
na Idade Média, ele era tolerado pelas autoridades “como exutório, em
circunstâncias determinadas” (p.157). Serviria assim, para expressar a liberação, o
caráter dinâmico envolvendo a festa, a carnavalização, e isso obrigava à criação de
um novo vocabulário, “no qual pragas e grosserias desempenham papel essencial”
(MINOIS, 2003, p.157). Seria o que Bakhtin (1998) chamava de grotesco, isto é, a
percepção de todas as realidades. O bestiário medieval oscila entre o diabólico e o
angustiante.
Há, porém, algumas controvérsias na leitura feita por Bahktin (1998). Minois
(2003) afirma que autores como Gourevicth e Chistian Thompse criticam a visão de
Bakhtin sobre esse estudo do riso medieval, uma vez que para eles o medo está
presente nesse riso e revela a faceta do sobrenatural, do pessimismo diante da vida,
existindo, assim, uma evolução da carnavalização para uma crítica social permeada
por um grande pessimismo.
Segundo Gourevicth (apud Minois, 2003) Bakhtin faz na verdade uma leitura
da União Soviética dos anos Sessenta e a transpõe para a idade média, refletindo
sobre a distância entre as decisões políticas e a vida das pessoas no seu cotidiano.
Essas pessoas, que viviam reprimidas pelo sistema, faziam reelaborações do seu
cotidiano repressor com base em uma ótica carnavalesca. No entender do autor, na
Idade Média, o riso não se restringia a essa carnavalização. Assim, considerando
tais afirmações, nos folhetos sobre a mulher negra está contido não o riso pelo
riso, mas uma série de julgamentos do que o poeta percebe da sociedade e também
as suas angústias sociais e perspectivas ideológicas.
Então, se existe uma oposição concorrencial da Negra dum peito é, sem
sombra de dúvida, a figura da Negra da trouxa. Ninguém viu essa figura mítica e
misteriosa, mas ela aparece imprevisivelmente nos lugares mais inesperados,
semeando medo e desgraças. Na visão do poeta popular, a Negra da trouxa
desempenha a mesma tarefa do boi da cara preta para as crianças: uma ameaça
obscura e misteriosa para quem não se comporta bem. Ela é enviada na terra pelo
diabo, viaja, seja para onde for, colocando na sua trouxa imensa e misteriosa os
maldosos para entregá-los no inferno.
221
Apareceu uma negra
no Estado da Bahia
com uma trouxa medonha
cheia de patifaria
a negra em sua bagagem
conduz toda fuleragem
dela fazer bruxaria
(LEITE, 1969, p.1)
talvez seja a Besta-Fera
que anda solta no mundo
e estamos no fim da era
a total destruição
pra toda população
todo dia se espera
(LEITE, 1969, p.3)
Manoel Amaro disse:
que viu ela em João Pessoa
alizando o pixaim
lá na beira da lagoa
Cícero viu ela em Bayeux
Ela disse: Tá pra você
Sou cheirosa e muito bõa
(LEITE, 1969, p.5)
Finalmente em toda parte
a negra já tem passado
todo mundo já conhece
a negra do penteado
feia, imunda e catingosa...
(LEITE, 1969, p.6)
A negra diz ao povo:
- meu penteado é moderno
eu gosto dum arrasta-pé
222
até dia de inverno
sou enchuta e decidida
eu quero é gosar a vida
e tudo o mais vá pro inferno.
(LEITE, 1969, p.7)
... no Estado da Bahia
Uma negrona horrorosa
Agora está aparecendo
Para todo mundo vendo
Com a Trouxa misteriosa
(CAVALCANTE, 1978, p.1)
Na Trouxa da negra Tem
mistério e feitiçaria
porém ela se ajuda
e corre de noite e dia
pelo mundo sem parar
arranjando freguesia
(CARLOS, 19--?, p.7)
Ela anda pelo mundo
Atrás de ovelha perdida
Para colocar na trouxa
Deixar a mesma iludida...
(CARLOS, 19--?, p.8)
Antigamente era Amélia
com sua pesada mala
hoje mora no inferno
dona da Segunda sala
soltou a negra no mundo
a tal que o poeta fala
(TOINHO DA MULATINHA, 19--?, p.1)
223
Os filhos desobedientes
que não respeitam os pais
seja menino ou menina
seja moça ou rapaz
a negra leva na trouxa
só entrega a Satanás”
(TOINHO DA MULATINHA, 19--?, p.3)
O folhetista que gosta
de publicar coisa ruim
sobre morte e outras coisas
antes de chegar seu fim
a negra leva na trouxa
entrega ao cão Caim”
(TOINHO DA MULATINHA, 19--?, p.4)
Essa negra o nome dela
é Chica da pá virada
anda de trouxa nas costas
viaja muito apressada
(TOINHO DA MULATINHA, 19--?, p.7)
Eu ando solta no mundo
perseguindo gente ruim...
são todos de satanás
a volta dele é ruim
(TOINHO DA MULATINHA, 19--?, p.8)
A descrição do conteúdo da “trouxa misteriosa” ocupa muito espaço e oferece
ao poeta popular uma preciosa ocasião de externar os medos e as preocupações de
uma sociedade rural, ou recém-urbanizada. Ele não está integrado no novo contexto
em que está vivendo, ou melhor, sofre a ruptura de velhos equilíbrios, sem conseguir
aguentar a invasão de novos costumes que põem em crise os valores tradicionais.
224
A ruptura da ordem social é generalizada e não poupa nenhum âmbito. Igreja,
política, hierarquias: tudo está em discussão sem saber se e como se desenvolverá
uma nova sociedade, com novas regras e novos equilíbrios.
O povo vive marchando
no caminho da sedução
no lamaçal do pecado
no beco da corrupção
na avenida da miséria
no mundo da ilusão
(CARLOS, 19--?, p.1)
A evolução dos tempos e a ciência moderna
fez morrer a consciência
deixou a ganância externa
que obriga o povo fazer
grande ofensa a força eterna
(CARLOS, 19--?, p.2)
Assim, o poeta popular, com um tom de preocupação, quando não
apocalíptico, faz uma longa lista dos pecados privados e sociais, que parecem
ameaçar a ordem estabelecida. Desse modo, a descrição do conteúdo da trouxa,
além de ser o espelho fiel das preocupações do povo, parece a transcrição dos
livros de teologia moral, que, ao longo dos Séculos XVII e XVIII, inúmeros moralistas
encheram com minucioso pedantismo, sobretudo em se tratando de pecados
sexuais.
Tem mini-saia e bermudas
volta ao mudo e culote
mini calça e saia justa
cinta, tubinho e saiote
soutiem e monoquine
calça comprida e biquine
calça Karibé e shot
(LEITE, 1969, p.7)
225
Ainda tem moça quente
e viúva sacodida
homem casado encherido
que tem vida corrompida
sujeito que toca “fole”
xifrudo da “gaia” mole
e mulher prosituída.
(LEITE, 1969, p.7)
Na trouxa da negra tem
até baba de cachacheiro
xifre de bode sambudo
e truque de xangôzeiro
manha de mulher galheira
enrolada de piniqueira
e cuspe de maconheiro.
(LEITE, 1969, p.8)
Tem o rabo do jumento
e o dito da maré mansa
que o povo vive dizendo
e a mocidade avança
achando boa a piada
quem gosta de cachorrada
vendo a maré não descansa.
(LEITE, 1969, p.8)
Mini-Saia, Soutien,
Vestido curto, lascado,
Tamanho alto da moda,
Esmalte rôxo, encarnado...
Peruca loira e comprida
Elixir de Longa Vida
Para homem ja cansado...
(CAVALCANTE, 1978b, p.2)
226
Lapis para sobrancelha,
Maiô para se banhar,
baton de crem-de-nata
Para mulher se enfeitar;
Cachaça Cana-Caiana
Fabricada em Itabaiana
De ver a palha voar!...
(CAVALCANTE, 1978b, p.2)
Maconha, LSD,
Patuá de macumbeiro
Para mulher ganhar homem,
Rosário de feiticeiro...
Do inferno o panorama,
Retrato de “mulher-dama”
Que usa rapaz solteiro.
(CAVALCANTE, 1978b, p.2)
A negra tirou da trouxa
“O choro da Quebradeira”,
Olhos de mulher devassa,
Lábios de namoradeira,
Algemas de criminosos,
retratos de mentirosos,
Bagunça de fim de feira!...
(CAVALCANTE, 1978b, p.3)
A negra não satisfeita
Expôs o troço miúdo:
Calça curtinha de homem,
Óculo de moça, graúdo,
Pemba, Cruz foice e baralho,
Rosário, Figa, Chocalho,
Adornos de cabeludo!
(CAVALCANTE, 1978b, p.4)
227
Havia dentro da trouxa
Orgulho, ódio, ambição,
Falsidade, hipocrisia,
Homicídio, sedução,
Sequestros e utopias,
Calúnias e vilanias,
Luxo, prostituição!...
(CAVALCANTE, 1978b, p.4)
Mulher falsa ao seu marido,
Desreispeitos paternais,
Falta de decôro público,
Desobediência aos pais,
Custumes introvertidos,
Algemas para bandidos,
Tarados sexuais.
(CAVALCANTE, 1978b, p.4)
Bebedores de aguardente,
Que destruíram seus lares,
Homens que vivem do jogo
Nos ambientes vulgares,
Mãe cruel, vituperina,
Que o próprio filho assassina
Semelhantes aos chacais.
(CAVALCANTE, 1978b, p.4)
Disse que era uma trouxa
preta, feia e volumosa
cheia de feitiçaria,
uso e moda escandalosa
tudo o que não presta tem
na Trouxa Misteriosa
(CARLOS, 19--?, p.3)
Na Trouxa da negra Tem
228
mistério e feitiçaria
porém ela se ajuda
e corre de noite e dia
pelo mundo sem parar
arranjando freguesia
(CARLOS, 19--?, p.7)
Nesta minha trouxa tem
calça moda “caribê”
mini-saia e saia justa
saiote curto e godê
pra vestir os cabeludos
da turma do yê-yê-yê
(CARLOS, 19--?, p.4)
Tem retrato de mulher
sem vergonha e enxerida
e de moça escandalosa
que já foi prostituta
satanás já tomou nota
dos passos de sua vida
(CARLOS, 19--?, p.5)
Tem vestido uso tubinho
milonga e unhas pintadas
cabelos estuquiados
e sobrancelhas raspadas
nos livro das culpas estão
páginas fotografadas
(CARLOS, 19--?, p.5)
Mulher casada que tem
um outro amor escondido
a minha trouxa está cheia
de mulher falsa ao marido
quando chega no inferno
229
bebe chumbo derretido
(CARLOS, 19--?, p.5)
Homem casado que gosta
de andar fora de hora
atrás de um pé quebrado
com beliscada por fora
na Trouxa Misteriosa
soluça, lamenta e chora
(CARLOS, 19--?, p.5)
Os banditos, os criminosos
os desordeiros tarados
pagarão com suas vidas
todos crimes praticados
nas fornalhas infernais
brevemente são queimados
(CARLOS, 19--?, p.6)
Botei no fundo da trouxa
filho desobediente
retrato de maconheiro
vigarista inconsciente
conquistador mentiroso
e ladrão com cara de gente
(CARLOS, 19--?, p.6)
Ladrão que roba no peso
na trouxa tem de fileira
e malandreco que vive
azilado em gafieira
mulher imunda e nojenta
e mocinha bandoleira
(TOINHO DA MULATINHA, 19--?, p.6)
230
Os filhos desobedientes
que não respeitam os pais
seja menino ou menina
seja moça ou rapaz
a negra leva na trouxa
só entrega a Satanás
(TOINHO DA MULATINHA, 19--?, p.3)
O folhetista que gosta
de publicar coisa ruim
sobre morte e outras coisas
antes de chegar seu fim
a negra leva na trouxa
entrega ao cão Caim
(TOINHO DA MULATINHA, 19--?, p.4)
Eu ando solta no mundo
perseguindo gente ruim
mãe que chama nome a filho
da certinha para mim
filhos que zombam dos pais
são todos de satanás
a volta dele é ruim
(TOINHO DA MULATINHA, 19--?, p.8)
A Negra da Trouxa Misteriosa deve ter boas costas para carregar tudo que
não presta: os pecados de qualquer tipo, os pecadores, as mudanças sociais e
éticas, os medos, as preocupações de um mundo inseguro e de uma sociedade que
perdeu seu rumo e não sabe qual será o futuro. Ao mesmo tempo, ela vem
carregada de todas as responsabilidades, quase se tornando “bode expiatório”, que
vai levar os pecados do povo para permitir um novo tempo chegar, quando tudo
retomará a sua ordem. Sendo assim, todas as fraquezas e imperfeições vão
desaparecer, a começar pela velha negra, verdadeiro estereótipo de toda fealdade
física e moral.
231
Turchi (2003) afirma que “os arquétipos, ao se realizarem, ligam-se às
imagens diferenciadas pelas culturas, dando origem à manifestação dos símbolos
propriamente ditos que podem apresentar vários sentidos” (p.28). Nessa
perspectiva, observam-se nos versos acima, diferentes manifestações dos
arquétipos atraídos pela negra, sendo todos eles referentes a esquemas montados
segundo padrões de iniquidade (“filhos desobedientes”, “bandidos”, “criminosos”,
“ladrão”, malandreco”...), o que configura um reforço da caracterização depreciativa
da personagem negra das narrativas analisadas, cujos arquétipos constituídos vão
se transformar em um mito calcado em estruturas sociais e culturais.
232
6 REFLEXÕES FINAIS
Existe um ditado que afirma: “palavra dita e pancada dada nem Deus tira”. É
certo que o caminho da veracidade passa longe dessa afirmação. No entanto,
pensar a palavra na sua polifonia e polissemia faz perceber a força social do dizer.
Neste trabalho de pesquisa, o inventário que foi levantado da voz do poeta popular,
em relação à mulher negra, através das cartografias construídas, possibilitou seguir
um trajeto que atravessa décadas e que insiste na colocação da mulher negra como
objeto de preconceitos.
A problemática, envolvendo a construção de estereótipos e estigmas na
literatura, no tocante aos negros e negras, não é nova. Alguns trabalhos, como os de
Clóvis Moura, de 1976, intitulado O Preconceito de cor na literatura de cordel:
Tentativa de Análise Sociológica, e o de Teófilo de Queiróz Jr., de 1982, intitulado
Preconceito de cor e a Mulata na Literatura Brasileira, procuraram destacar tal
aspecto, apresentando o espaço social que modeliza a construção ficcional,
caracterizando o negro como elemento - coisa, mal, débil, incapaz etc. Todavia,
apesar destas discussões terem servido de baliza para estudos posteriores,
percebeu-se a sua limitação no campo do estudo literário, ou seja, uma
secundarização dos aspectos propriamente literários dessa produção cultural, visto
que os autores citados focalizam bem mais os aspectos sociológicos extratextuais.
Sabe-se que a mulher, seja branca, negra ou amarela, sempre foi alvo de
idéias, que a subjugam do ponto de vista intelectual e social. Todavia, no imaginário
popular, a mulher negra assume características que a tornam peculiar. Foram
elencados, neste trabalho, os aspectos de deformidade corporal, sexualidade,
comportamento heróico e baixo corporal, bem como outros tantos elementos que
demarcam características da voz dos poetas populares e, por conseguinte, seu
discurso sobre as mulheres negras.
Nesta pesquisa, conclui-se, ainda, que a mulher negra no Brasil é
ideologizada e segue o enganoso mito da democracia racial no país. Tal mito é
sustentado pelos discursos recorrentes de que muitos filhos de brancos foram
criados por negras que lhes ensinaram a falar, repassaram sua cultura. O mito
evidencia a tolerância e harmonia, desde a época da colonização, de cantos e
233
danças afro que é visto, também, como uma aceitação tranqüila do negro no país.
Um capítulo à parte pode ser destinado à sexualidade da negra. Percebe-se, nos
cordéis, a não-identidade, quando os poetas se referem à mulher negra, mulata e
morena.
Quando se aproximam os substantivos: negra, nêga, crioula, mulata,
escurinha, da adjetivação contida em quase todos os folhetos: nojenta, boazuda,
raça quente, malvada, suja, vê-se delineado o imaginário social da mulher negra.
Também recorrendo à categoria analítica “sexualidade”, tem-se uma estrutura
narratológica que envolve a personagem, o tempo, o espaço, além da retórica:
juntos delineam o arquétipo dessa mulher.
O levantamento terminológico de todos os folhetos permite apreender que
eles descrevem uma estrutura semântica e simbólica que se sustenta na
ambivalência do comportamento da negra: por um lado tem-se a imagem de pureza
nos adjetivos inteligente, cortês, formosura, apaixonada, encantos, amável, risonha
e bela, habilidade e candura, martirizada, santa, canonizada, escrava, santa, tima,
alturas, fieis criatura. Do outro, tem-se a Imagem libidinosa, através da
caracterização da mulher como sensual, apetitosa, instintiva, malfazeja, dona de
corpo muito perfeito. Por último, a imagem de servidão configurada maldita escrava;
atrevida; atrevimento; amordaçar; escrava torturada, grandes torturas. Cada termo,
assim, tem uma carga semântica e um vínculo estrito com a imagem da negra. É
importante ressaltar, também, a dualidade da idéia de negra projetada no cordel.
Contudo, a verdade em relação à mulher negra não se encontra nos versos
dos trinta e seis folhetos analisados. Isto tanto do ponto de vista da narração
poética, quanto do ponto de vista da idéia preconcebida e preconceituosa dos
poetas populares a respeito dessa mulher. Seria simplificador pensar a literatura
popular como apenas reprodutora de estereótipos étnicorraciais.
Torna-se fundamental, por conseguinte, perceber que a dinâmica da literatura
popular, como afirma Bakhtin, se dá em um universo sem regras. Não se ri ou se faz
graças somente de um outro mas, ao zombar de outrem, também se zomba de si
mesmo. A carnavalização da vida e do mundo veicula a autorização para se dizer o
que se quer, para parodiar o conjunto da sociedade e das suas relações. Afinal, o
carnaval é a caricatura da própria sociedade. Um intervalo de três dias, sobretudo no
Brasil, para que ele se desmonte e se desnude. Segundo Todorov (2002), “o texto
234
literário o entra em uma relação referencial com o mundo, como o que fazem
frequentemente as frases do nosso discurso cotidiano, o é ele representativo de
outra coisa senão de si mesmo” (p. 14).
Sendo assim, não se pode falar em culpa da poética popular ou mesmo do
poeta popular sobre o preconceito em relação às mulheres negras. O que se pode
afirmar é que um status social cristalizado sobre esta etnia, que está longe de
acabar. Nesta perspectiva, há um estigma fenotípico: olha-se para uma mulher
branca e não se discute (pode ser pobre, ser uma ladra, uma pervertida, uma
prostituta ou simplesmente uma mulher). Uma mulher oriental ou de origem oriental,
“amarela”, também carrega certo preconceito positivo, que os asiáticos são
frequentemente identificados como inteligentes e bondosos. Mas quando se trata de
mulheres negras a caracterização que a sociedade faz é quase sempre negativa,
assim como os próprios poetas populares: feias, fedorentas, gostosas,
exacerbadamente sexuais, entre outras adjetivações. Num segundo momento,
descobre-se que elas também são mães, professoras, inteligentes, competitivas,
más, honestas, desonestas, alegres, tristes, enfim são mulheres. Este seria o
tensionamento das relações sociais racializadas.
A problemática mais importante trazida pelo conjunto cartográfico sobre a
mulher negra é o engodo da democracia racial no Brasil, vindo à tona tanto nas
vozes do cotidiano quanto na literatura de cordel, a qual é uma expressão
representativa delas.
Entretanto, neste recorte dado, que é o conjunto de narrativas dos folhetos de
cordel, abre-se espaço para uma discussão que, na academia, parece incipiente: a
relação entre mulher negra e cordel. No percurso feito, encontram-se exemplos que
podem ser estudados do ponto de vista da antropologia do imaginário, como é o
caso da pornografia enquanto objeto de estudo, demonstrando-se, assim, a
efervescência da temática escolhida.
Sabe-se que o mundo mudou e avançou no que diz respeito ao tratamento de
matérias como identidade e alteridade. O exemplo da eleição presidencial de 2008
nos EUA é um indicativo de tal avanço. No entanto, é ingênuo pensar que a partir de
agora “negro virou gente”, até porque a verdade sobre a vitória do presidente Barack
Obama não foi a afirmação do negro na sociedade: talvez um passo, mas ele
235
escondeu o seu dizer, evitou falar sobre assuntos étnicoraciais, sendo eleito pelo
seu passado de sucesso.
O respeito ao negro, enquanto outro, está longe de ser alcançado, e a
investigação científica, por meio do viés da crítica literária deve se debruçar ainda
mais sobre as manifestações literárias, tanto populares, quanto canônicas, para
buscar explicações e razões para sua própria existência, enquanto ciência que
desvenda o humano e, assim, descobrir que talvez o “lugar” não exista.
Enfim, a contribuição desta tese está menos na sua discussão teórica acerca
da mulher negra nos folhetos de cordel, do que no mapeamento do imaginário sobre
esta mulher, constituindo um estudo de crítica e documentação literária, que
contribuirá para estudos posteriores, em diversos campos das ciências humanas.
Entretanto, este mapeamento permitiu dimensionar quais são os estilos de
pensamento e o imaginário social da poética popular, em determinados espaços e
momentos históricos.
Assim, portanto, através das categorias analíticas construídas na pesquisa,
percebe-se um conjunto de atribuições socioculturais negativas para a mulher negra,
se perpetuando ao longo dos séculos. E essas atribuições sociais m ressonância
nas representações coletivas sobre a negra, demarcando-lhe um lugar socialmente
inferior, o qual, conforme se demonstrou mediante o corpus desta tese, está
representado no imaginário dos poetas populares do Nordeste brasileiro.
236
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249
ANEXO A
Entrevista realizada no mês de junho de 2005 por Francinete Fernandes de
Sousa com o poeta Manoel Monteiro.
Francinete F. de Sousa - Sr. Manoel tenho poucas indagações. Inicialmente, eu
gostaria de saber que importância tem o Cordel na sua vida.
MANOEL MONTEIRO - É muito importante, é a minha vida. Acho difícil escrever,
mas tenho necessidade dizer as coisas, embora ache que tudo foi dito, procuro uma
maneira diferente de dizer as coisas. Este é o desafio do poeta.
Francinete F. de Sousa - Como o senhor escolhe as temáticas para fazer os
folhetos?
MANOEL MONTEIRO - Vem da minha vivência. O meu grande livro é a vida.
Escrevo sobre as minhas experiências de vida, faço também um pouco de pesquisa.
Quando eu vou escrever sobre um determinado assunto, às vezes temas
requisitados, eu procuro me inteirar o máximo possível sobre aquela matéria.
Quando me encomendam, eu não garanto nada.
Francinete F. de Sousa - E a temática da mulher...
MANOEL MONTEIRO - Tenho folhetos sobre a mulher, é interessante... escrevi
várias coisas. Agora, quem escreve tem que pensar bem no que vai registrar, tem
que analisar como vai ser seu pensamento, que é pra não falar besteiras, que assim
ficarão por muito tempo.O poeta é obrigado a fazer isto...
Francinete F. de Sousa - E sobre a mulher negra, o senhor conhece algum folheto,
já escreveu?
MANOEL MONTEIRO - o. Pelo menos que eu me lembre, é que a gente escreve
tanto, escrevo desde de 50. Essa temática não me lembro. Na verdade, o cordel
sobre negro vende pouco, o povo não compra, a gente vive do que vende, mas é
preciso ter cuidado com o que escrever porque temos uma responsabilidade com os
leitores do futuro.
250
Francinete F. de Sousa - Eu estou fazendo um estudo sobre o imaginário dos
poetas populares sobre a mulher negra, pois eu tenho visto que se fala bastante
sobre esta temática.
MANOEL MONTEIRO: É como eu tenho dito. A Universidade, as escolas têm dado
atenção ao cordel e muitos frutos nós temos. Eu particularmente, não sei bem falar
sobre este assunto, mas acho que deve dar uma boa monografia. Seu eu tivesse
folhetos sobre o assunto, mas não tenho...
ANEXO B - Entrevista realizada no mês de novembro de 2005 por Francinete
Fernandes de Sousa com o poeta José Costa Leite no Espaço Cultural Funesc
em João Pessoa.
Francinete F. de Sousa - Sr. José Costa Leite eu gostaria de saber que importância
tem o Cordel na sua vida.
Costa Leite- É tudo. Eu fiz um pouco de tudo na vida, mas o que enche meu
coração é o cordel. Hoje, eu vivo do cordel, mas assim, tenho uma ajuda, o cordel
mesmo trás mais reconhecimento do que dinheiro, a gente precisa viver. Antes o
cordel, não interessava muito, hoje eu to aqui ganhando prêmio. Só falta vender
mais (risos)!
Francinete F. de Sousa - Como o senhor escolhe as temáticas para fazer os
folhetos?
Costa Leite - De tudo que eu vivi, das pesquisas que eu faço, do que lembro e do
que o povo conta... Eu já tenho uma idade! (risos)
Francinete F. de Sousa - E sobre a mulher, o senhor escreveu, escreve...
251
Costa Leite - Há, mulher é bom de todo jeito. Sim tenho muito folheto sobre mulher,
acho que meus primeiros assuntos foram sobre mulher, todo mundo gosta de ouvir,
afinal nascemos de uma mulher, temos de homenageá-la.
Francinete F. de Sousa - E sobre a mulher negra, o senhor conhece algum folheto,
já escreveu? É seu o peido que a negra deu?
Costa Leite - Eita!, é mesmo! Eu escrevi em 19... e... depois lembro. Mas é assim,
a gente escreve o que o povo quer; se eles quisessem que a gente falasse de nossa
senhora a gente falava... mas eles gostam desses. Há! o primeiro não me lembro,
mas reescrevi em 2002 ( O autor se refere ao folheto “O peido que a negra deu”).
Francinete F. de Sousa - Seu José eu estou fazendo um estudo sobre o imaginário
dos poetas populares sobre a mulher negra, pois eu tenho visto que se fala bastante
sobre esta temática.
Costa Leite - Sei... Eu estive na França com a professora Idelette, foi bom, ela me
deu uma carona, conheci muita coisa, mas pagam pouco. Ela faz estudos de cordel.
O cordel sobre negro não vende, muito não. Agora a gente tanto fala de negro,
branco, amarelo, tudo igual, onde tem uma boa idéia a gente escreve...
Francinete F. de Sousa- Quer dizer, que é só brincadeira com as palavras...
Costa Leite - É isso, quem quiser leva a sério, mas a gente gosta de falar para o
povo, olhe vá a feira de Itabaiana Remígio, eu vou toda semana, ai, eu procuro
cordel deste que vc procura e continuamos a entrevista, tão me chamando...
O autor ainda fala um pouco sobre a homenagem que estão fazendo para ele e
depois se despede.
ANEXO C - Entrevista com José Costa Leite, em CD, acompanhando a tese.
252
ANEXO D
253
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