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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
ADRIANA SALVITTI
Presenças de Freud na construção do pensamento de
Bion na década de 50
São Paulo
2009
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ADRIANA SALVITTI
Presenças de Freud na construção do pensamento de
Bion na década de 50
Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo para obtenção do
título de Doutora em Psicologia
Área de Concentração: Psicologia Experimental
Orientador: Prof. Dr. Luís Claudio M. Figueiredo
São Paulo
2009
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AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA
FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogação na publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Salvitti, Adriana.
Presenças de Freud na construção do pensamento de Bion na
década de 50 / Adriana Salvitti; orientador Luís Claudio Mendonça
Figueiredo. -- São Paulo, 2009.
184 p.
Tese (Doutorado – Programa de Pós-Graduação em Psicologia.
Área de Concentração: Psicologia Experimental) – Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo.
1. Psicanálise 2. Psicose 3. Pensamento 4. Bion, Wilfred
Ruprecht, 1897-1979 5. Freud, Sigmund, 1856-1939 I. Título.
RC504
FOLHA DE APROVAÇÃO
Adriana Salvitti
Presenças de Freud na construção do
pensamento de Bion na década de 50
Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo para obtenção do
título de Doutora em Psicologia.
Área de Concentração: Psicologia Experimental
Aprovada em: ___/___/_____
Banca Examinadora
Prof. Dr._______________________________________________________________
Instituição:___________________________________ Assinatura:_________________
Prof. Dr._______________________________________________________________
Instituição:___________________________________ Assinatura:_________________
Prof. Dr._______________________________________________________________
Instituição:___________________________________ Assinatura:_________________
Prof. Dr._______________________________________________________________
Instituição:___________________________________ Assinatura:_________________
Prof. Dr._______________________________________________________________
Instituição:___________________________________ Assinatura:_________________
Aos meus pais, Rosely e Reinaldo
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Luís Claudio Figueiredo, pela qualidade de sua leitura, sempre atenciosa, livre, e por
mostrar como criatividade e rigor podem andar juntos.
Ao Prof. Dr. Nelson Ernesto Coelho Junior, presente desde a minha iniciação científica de
maneira estimulante, e ao Prof. Dr. Tales Ab’Sáber, pela preciosa contribuição de ambos no
exame de qualificação.
Ao Paulino Tarraf – um norte – e à Fabiana Duarte Takiuti, pelo incentivo e alegria
compartilhada, no melhor sentido espinosano do termo. À Luciana Pires, pela proximidade e
cumplicidade; aos amigos que de alguma forma ajudaram-me a continuar apostando em meu
trabalho: Joana Tarraf, Marina Ribeiro, Gina Tamburrino, Uraci Simões Ramos. Agradeço
também à Marta Foster, pela vivacidade com que transmite a psicanálise, e pela hospitalidade e
confiança.
Aos amigos de Ribeirão Preto, pelo acolhimento e rica troca de ideias, em especial à Helena
Furtado pela força e generosidade.
À Isabel Botter e Camila Pavanelli, pelo prazer da interlocução e disposição de mergulharem
comigo no estudo de temas tão difíceis.
Ao José Antônio Ferreira, por me acompanhar no período inicial dessa jornada de maneira firme.
Ao Fernando, por me ensinar tanto. À minha avó, Marina Apparecida, pela paciência.
Aos funcionários da Biblioteca do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, pelo
cuidado com o acervo e atenção ao público.
Ao CNPq, pela bolsa concedida.
RESUMO
SALVITTI, Adriana. Presenças de Freud na construção do pensamento de Bion na década de 50.
2009, 184 f. Tese (Doutorado) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2009.
Imerso na tradição de pensamento de Melanie Klein, o psicanalista Wilfred Bion inicia a
construção de um pensamento clínico e teórico original sobre a psicose e sobre o funcionamento
mental primitivo na década de 1950, por meio de recorrentes menções à obra de Freud. Citações
e referências ao autor são feitas por Bion em diferentes textos com diferentes propósitos. Em
acréscimo, a tradição de pensamento de Freud está incorporada nas observações clínicas e nos
desenvolvimentos conceituais de Bion, de modo que pode ser reconhecida pelo leitor não apenas
por meio das remissões explícitas a Freud. Acompanhamos a construção do pensamento de Bion
nos anos 50, período que precede à formulação de sua Teoria do Pensar, apresentada nos anos 60,
e no momento em que ele estava em vias de realizar a sua “decolagem pessoal” na psicanálise,
conforme expressão de Bléandonu (1993). A partir desse acompanhamento, procuramos ressaltar
o que nomeamos de presenças de Freud, e trazer a um primeiro plano de análise os conceitos,
noções e ideias deste autor que estão entranhados em seus textos de maneira mais ou menos
evidente. Por meio de citações, mas também de alusões, ecos, remissões, associações e
aproximações a Freud, que estão apenas sugeridas ou que se dão de maneira silenciosa,
apresentamos o trabalho clínico e teórico de Bion, tendo em vista os seus objetivos, as
dificuldades que parece ter encontrado e a forma com que, na época, procurou enfrentá-las.
Também contextualizamos histórica e teoricamente as concepções dos autores em relação à
psicose e às origens do psiquismo de um modo mais sistemático. O estudo das ligações
intertextuais entre os autores evidencia a importância e os limites do pensamento de Freud para
Bion; mostra que este autor dialoga pontualmente com diferentes trabalhos de Freud e não com a
totalidade de suas concepções; indica que Bion está mais interessado em formular e em descrever
suas experiências clínicas do que em promover debates conceituais e terminológicos com a teoria
freudiana. Nesse sentido, Freud é uma fonte para o pensamento clínico, mais do que fonte para a
discussão conceitual.
Palavras-chave: psicanálise; psicose; pensamento; Bion, Wilfred Ruprecht, 1897-1979; Freud,
Sigmund, 1856-1939.
ABSTRACT
SALVITTI, Adriana. Freud’s presence in Bion’s thought constructs in the 1950s. 2009, 184 f.
Thesis (Doctoral) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
Immersed in the tradition of Melanie Klein’s thinking, the psychoanalyst Wilfred Bion started to
construct original theoretical and clinical thinking on psychosis and primitive mental functioning
in the 1950s, through recurrent mention of Freud’s works. Bion cited and made reference to
Freud in different texts with different purposes. Furthermore, the tradition of Freud’s thinking
was incorporated in Bion’s clinical observations and conceptual developments such that readers
can recognize this not just through the explicit references to Freud. In the present study, we
started by tracing the construction of Bion’s thinking in the 1950s. This period preceded the
formulation of his Theory of Thinking, which was presented in the 1960s, at a time when he on
the way to achieving his “personal liftoff” in psychoanalysis, in the words of Bléandonu (1993).
We sought to emphasize what we named Freud’s presence, and to bring to the analytical
foreground Freud’s concepts, notions and ideas that permeate Bion’s texts with varying degrees
of apparentness. Through not only citations but also allusions, echoes, remissions, associations
and approaches relating to Freud that are only suggested or that are made silently, we present
Bion’s theoretical and clinical work. We have borne in mind his aims, the difficulties that he
seems to have encountered and the ways in which, at that time, he sought to deal with them. We
have also put Freud’s and Bion’s concepts relating to psychosis and the origins of the psyche into
a more systematic theoretical and historical context. Studying the links between Freud’s and
Bion’s texts shows the importance and the limits of Freud’s thinking for Bion. It shows that Bion
had a point-by-point dialog with different works by Freud and not with the entirety of Freud’s
concepts. It indicates that Bion was more interested in formulating and describing his clinical
experiences than in promoting conceptual and terminological debates on Freud’s theory. In this
respect, Freud is a source for clinical thinking, rather than a source for conceptual discussion.
Key-words: psychoanalysis; psychosis; thought; Bion, Wilfred Ruprecht, 1897-1979; Freud,
Sigmund, 1856-1939.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO....................................................................................................................10
CAPÍTULO 1 – CONTEXTO HISTÓRICO E CONCEPÇÕES GERAIS DE FREUD E DE
BION SOBRE A PSICOSE
1.1 Um pouco de história...................................................................................................... 40
1.2 Teorias da psicose em Freud e seus limites e avanços em Bion.....................................45
1.3 Algumas implicações das concepções de Bion sobre a psicose para a teoria da técnica57
CAPÍTULO 2 – CONFLITO EDÍPICO E ANIQUILAMENTO DO EGO
2.1 O interesse pela linguagem e pelo pensamento verbal...................................................73
2.2 Realidade, ambiente, personalidade ...............................................................................76
2.3 A linguagem na esquizofrenia segundo Freud ...............................................................88
2.4 Ego, pele mental e castração...........................................................................................92
CAPÍTULO 3 – O GÊMEO IMAGINÁRIO E O ESTRANHO NO LIMIAR DA POSIÇÃO
DEPRESSIVA
3.1 Notas sobre a leitura e a interpretação dos textos em discussão .................................. 106
3.2 O estranho e o gêmeo: o duplo em Freud e Bion .........................................................112
3.3 Castração, cegueira, intolerância às emoções...............................................................122
3.4 Teste de realidade, função de julgamento e ganho de consciência ..............................129
3.4.1 Pensamento pré-verbal e alucinação .........................................................................137
CAPÍTULO 4 JUSTAPOSIÇÃO NEGATIVA DAS PERSONALIDADES PSICÓTICA
E NÃO-PSICÓTICA: UM ESTUDO CONCEITUAL E CLÍNICO
4.1 Apresentação ................................................................................................................146
4.2 Modificação de uma descrição de Freud e a operação da Verleugnung.......................148
4.3 Exemplo clínico de justaposição negativa entre psicose e neurose.............................. 159
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................171
REFERÊNCIAS .................................................................................................................175
10
INTRODUÇÃO
Ao longo da trajetória do pensamento de Wilfred Bion, começando com seus trabalhos
sobre grupos na década de 1940 até os seus últimos escritos publicados em 1979, podemos dizer
que Freud foi uma companhia constante. Embora este autor nem sempre esteja presente de
maneira explícita nos trabalhos de Bion, pensamos aqui na fala de André Green em homenagem
ao centenário de nascimento do autor em 1997, e nos significados da palavra inglesa debt,
utilizada por Green para se referir ao grande débito que tanto ele quanto Bion sentiam ter com
Freud: “Durante as minhas trocas orais ou escritas com Bion, ele nunca tentou ‘converter-me’ às
suas ideias ou às de Klein. Concordávamos que o nosso maior débito era com Freud” (GREEN,
1998, p. 649).
Se, por um lado, a tradução de debt por débito (como sugere Célia Fix Korbivcher na
tradução do texto de Green para o Livro Anual de Psicanálise, 2000) carrega o sentido de dívida
e de falta, por outro, a riqueza dos significados dessa palavra na tradução para o português remete
a várias dimensões possíveis para o sentimento dos autores em relação a Freud. Além de débito
ou dívida, a palavra debt significa ainda responsabilidade, obrigação, dever, compromisso e,
curiosamente, pecado.
1
Quanto a este último sentido e para além de sua conotação religiosa,
pensamos que palavras de peso como compromisso e responsabilidade, referidas a uma tradição
de pensamento e a um autor como Freud, também teriam ligação com um ato transgressor. Mas
até que ponto esses significados espelhariam a relação de Bion com o pensamento de Freud e nos
ajudariam a compreender a natureza do lugar e a importância deste autor em suas teorizações? Se
1
MICHAELIS: moderno dicionário inglês-português, português-inglês. São Paulo: Melhoramentos, 2000.
11
há um sentimento de débito, quais as contribuições de Freud? Se há falta, onde e como ela se
mostraria? Se há alguma transgressão, trata-se de romper normas? Trata-se de preservar um
sentido original?
Na literatura psicanalítica dedicada ao estudo da obra de Bion, não raro são feitas
menções à relação de seu pensamento com o de Freud, sendo frequente a busca e a formulação de
definições para essa relação. Termos tão diferentes, como influência, herança, superação, ruptura,
ampliação, convergência, são utilizados por vários autores ou mesmo por um só autor,
dependendo do tema em estudo e dos objetivos da leitura realizada. Entre as ideias, os sistemas
teóricos e as abordagens clínicas de Bion e de Freud estabelecem-se comparações, confrontações,
diferenciações, aproximações, equivalências.
Em meio a essas leituras, podemos destacar a de Gérard Bléandonu (1993) e o seu
comentário sobre a existência de uma “herança freudiana, bastante ampliada por Klein” no
pensamento de Bion, que lhe permitiu realizar a sua “decolagem pessoal” na psicanálise e
enquanto psicanalista (BLÉANDONU, p. 97). Lembramos também de Antônio Muniz de
Rezende (1993) e de sua ênfase na diferença do contexto histórico-cultural em que Bion e Freud
desenvolveram suas obras. Para o autor, o fato de ambos não serem contemporâneos já
determinaria uma distância considerável nas suas visões de mundo e, sob essa perspectiva,
Rezende é bastante incisivo: “[...] não sendo a filosofia de Freud a mesma de Bion, tampouco a
psicanálise deste último coincide com a do primeiro.” (p. 12).
Freud é herdeiro do Iluminismo e do Romantismo, embora a sua psicanálise seja
irredutível a essas correntes de pensamento (FIGUEIREDO, 2002, 2003a). Quanto a Bion, este
acompanhou de perto os avanços das ciências naturais e humanas no séc. XX como os da física,
da matemática, da biologia, da linguística. Em diferentes oportunidades, fez uso dessas e de
outras disciplinas em suas reflexões sobre a filosofia da ciência na psicanálise e sobre as teorias
12
do conhecimento, tendo sempre por base a sua experiência clínica e a especificidade da realidade
psíquica na produção de conhecimento científico. É também por meio dessas disciplinas que
Bion promove a discussão de temas provocativos que tocavam igualmente a Freud. Como não
aludir a frase presente no final do item VII de “O inconsciente” à, por exemplo, Aprendendo da
experiência de Bion, e vice-versa? Freud diz:
Quando pensamos de forma abstrata, há o perigo de negligenciarmos as relações
das palavras com as representações de coisa inconscientes, e deve-se confessar
que a expressão e o conteúdo de nosso filosofar começam, então, a adquirir uma
semelhança indesejável com o modo de trabalho mental dos esquizofrênicos.
(1915b, p. 204).
2
i
Bion mostra preocupação semelhante quando diz:
Admitimos que a limitação psicótica deva-se a uma doença: mas não a do
cientista. A investigação da suposição ilumina enfermidade, de um lado, e
método científico, de outro. Parece que nosso equipamento rudimentar para
“pensar” pensamentos é adequado quando os problemas estão associados com o
inanimado, mas não quando o objeto para a investigação é o fenômeno da vida
ela mesma. Confrontado com as complexidades da mente humana, o analista
deve ser cauteloso mesmo ao adotar um método científico que é reconhecido;
sua debilidade pode estar mais próxima da debilidade do pensamento psicótico
do que um exame superficial poderia admitir. (1962b, p. 14).
ii
Arnaldo Chuster (1999), ao considerar o espírito científico de Bion em comparação ao de
Melanie Klein, não hesita em aproximá-lo de Freud. Para Chuster, tanto o último quanto o
primeiro são pensadores da psicanálise; isto é, aquele que
ao ser lido não nos remete a algum dogma, não nos sugere uma verdade pronta,
mas de maneira crítica e refletida, permite que percebamos o que é o pensar, e
2
As citações de Freud e de Bion foram traduzidas por nós a partir do inglês. Os trechos originais de Bion e a versão
em inglês do texto de Freud feita por James Strachey encontram-se no final de cada capítulo como notas de fim,
indicadas nas citações por algarismos romanos em letra minúscula.
13
permite a descoberta de maneiras de pensar e criticar o pensamento. Crítica
provém do verbo grego Krinê, que antes de julgar significa separar-se do objeto,
diferenciar-se. Pensar é Krinô; e é isso que Bion realiza o tempo todo, matizando
sua obra com originalidade. Não há nenhum conceito em Bion que não tenha
sofrido esse processo. Essa perspectiva é que, mais uma vez, o distancia de
Melanie Klein conectando-o à tradição freudiana. (CHUSTER, 1999, p. 14).
Se para Chuster é possível conectar Bion à tradição freudiana, as diferenças entre os
autores voltam a se tornar marcantes quando a fonte de comparação é o modelo de mente e a
matriz clínica dos mesmos. Nesse ponto, o casal Joan e Neville Symington (1996) é bastante
radical ao enfatizar a contribuição de Bion em relação a Freud, propondo o abandono do último
em favor do primeiro.
Já Donald Meltzer (1998) no livro O desenvolvimento kleiniano III: o significado clínico
da obra de Bion chama a atenção para a confusão conceitual de algumas das principais ideias do
autor sobre a esquizofrenia, presentes em seus artigos escritos na década de 1950. Estando
apoiado nos sistemas conceituais de Freud e de Melanie Klein, Meltzer entende que estes
sistemas seriam como um continente demasiadamente pequeno para um conteúdo transbordante e
inovador de observações clínicas e descrições teóricas. Quanto à teoria de Freud, diz que faltava
muito da concretude e da personificação dos conteúdos da realidade psíquica trazidas à
psicanálise com o pensamento de Klein. Essa concretude e a personificação dos objetos internos
são intrínsecas à compreensão de Bion quanto ao comportamento das partes excindidas (split off)
da personalidade sobre os objetos e coisas do mundo, como a projeção das funções do ego –
funções, estas, circunscritas por Bion a partir de um dos textos de Freud mais citados em sua
obra: “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental” (1911b).
Quanto a nós, embora comparações sejam inevitáveis ao se estudar o pensamento de um
autor e a sua relação com o de outro, a intenção é diferente. Nosso propósito consiste em
considerarmos a presença de Freud em um determinado período da obra de Bion, em especial, os
14
anos de 1950 e os textos em que procura elucidar o funcionamento mental psicótico.
3
Para tanto,
pretendemos acompanhar uma parte de seu pensamento teórico e clínico daqueles anos, tendo em
vista os seus objetivos, as dificuldades que parece ter encontrado e a forma com que procurou
enfrentá-las.
Nesse período de sua obra, deparamo-nos com um Bion leal ao pensamento de Freud e de
Melanie Klein, como bem observou Meltzer (1998), e também com as tentativas de Bion
conceituar e transmitir, de um modo nem sempre bem sucedido, a complexidade dos fenômenos
observados no consultório. É neste sentido que Meltzer entende haver um conflito entre um Bion
“apóstolo” e um Bion “messias” na exposição de ideias. Por vezes, esse conflito resultaria na
expansão dos conceitos de seus mestres “[...] até um ponto de ruptura, com a consequente
confusão na exposição.” (Ibid., p. 38). Diz ainda ser “[...] digno de nota que todas as principais
publicações de Bion ocorreram após a morte de Melanie Klein em 1960.” (Ibid., p. 32).
Em 1962, Bion publica a sua Teoria do Pensar em dois trabalhos que, junto ao de grupos
(BION, 1961), são bastante mencionados embora não necessariamente lidos: “Uma teoria sobre o
pensar” (1962a) e Aprendendo da experiência (1962b). Esta Teoria não fará parte do tema de
nosso estudo, mas acreditamos que a compreensão da mesma pode ser facilitada e enriquecida
com o acompanhamento dos esforços de Bion nos anos 50 para criar, com seus pacientes, uma
linguagem e um espaço psíquico para experiências concretas, pouco ou nada simbolizadas, bem
como buscar maneiras de descrever os fenômenos clínicos relacionados à psicose, seja com o uso
de conceitos existentes, seja com a criação de novos termos.
Nossa menção ao tema do pensar e o interesse de tantos comentadores da obra de Bion
pelas suas inquietações na busca da conceituação de certos fenômenos justificam-se pelo fato
3
Na clínica de Bion estão reunidos sob a denominação de “psicótico” pacientes esquizofrênicos, borderline,
neuróticos graves. Sempre que fizer referências à psicose ou a um paciente psicótico, pretendo transmitir uma ideia
sobre um modo de ser e sobre um funcionamento psíquico, mais do que definir um diagnóstico estrutural específico.
15
dessa busca ter sido incorporada, pelo autor, nas suas discussões posteriores sobre o método
psicanalítico e na própria formulação da Teoria do Pensar. Essa busca seria parte do aparelho que
o analista deveria forjar na prática analítica para se aproximar da problemática colocada por
pacientes como aqueles descritos nos anos 50, e que apresentavam inibições no sonhar, no
fantasiar, no pensar e no falar. Comentadores da obra de Bion referente ao período dos anos 50,
como Meltzer, Bléandonu e, no Brasil, Chuster, Rezende e recentemente Ab’Sáber, são unânimes
ao afirmar, como Bion o faz, a importância e os limites do pensamento freudiano nessa
empreitada.
4
Mas antes de Bion reunir e apresentar as suas ideias na forma de uma Teoria, antes de
realizar a sua “decolagem pessoal” na psicanálise, como diz Bléandonu, interessam-nos os
momentos de encontro e desencontro com a teoria freudiana em seu trabalho clínico com a
psicose, interessam-nos os momentos em que Bion cita as ideias de Freud, os momentos em que
elas estão apenas sugeridas de maneira implícita e, também, os momentos em que Bion pretende
apresentar um ponto de vista próprio, marcar a singularidade de suas ideias, e a forma com que
isso foi realizado pelo autor.
Enquanto refletíamos sobre o nosso método de leitura, encontramos em Figueiredo (1999)
e a partir dele, na crítica literária de Hillis Miller (1995), uma discussão sobre a forma como a
intertextualidade pode ser abordada, seja entre textos de um mesmo autor ou entre autores
diferentes. Um trecho do trabalho de Miller “O crítico como hospedeiro” ilustra a maneira como
compreendemos isso que estamos chamando de presença de Freud em Bion e nos serve de
4
Em referência a um dos artigos teóricos de Freud mais citados por Bion na década de 1950, Tales Ab’Sáber diz: “O
trabalho de Freud de 1911 [Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental] daria a Bion elementos
importantes a respeito das funções mentais necessárias ao pensar, como ele próprio desejaria conceber nos anos que
viriam.” Mais adiante, continua: “No mesmo momento em que se desenvolvem os termos e os elementos da
dinâmica e das origens, tal qual apreendeu de Melanie Klein, com o trabalho de Freud Bion conquista um
instrumento para o movimento na direção de sua conceituação própria dos elementos e das funções necessárias para
se chegar a refletir sobre pensamentos [e sobre suas falhas].” (2005, p. 41). O movimento do pensamento de Bion em
direção à formalização de uma Teoria do Pensar pode ser acompanhado neste mesmo trabalho de Ab’Sáber.
16
modelo para a leitura que fazemos de seus artigos em relação ao pensamento de Freud. Em seu
trabalho, Miller reflete sobre a imagem combinada e alternada de parasita e de hospedeiro para
descrever a maneira como um texto ou partes de textos parecem habitar outros textos e com ele se
relacionar. Um texto e seu autor podem ganhar vida, ser alimentados pelo texto no qual estão
hospedados na forma de citações, menções, etc., assim como podem dar vida e alimentar esses
mesmos textos a ponto, inclusive, de se sobressaírem ao texto que os hospedou. No trecho do
trabalho mencionado por nós, Miller comenta sobre essa relação com base em um poema de
Shelley. Se substituirmos algumas de suas palavras por outras que nos convém entre colchetes,
teremos o seguinte sentido:
O poema [o texto de Bion] é habitado, como demonstram os críticos, por uma
longa cadeia de presenças parasíticas – ecos, alusões, hóspedes, fantasmas de
textos anteriores [Freud]. Estes estão presentes no domicílio do poema [do texto
de Bion] daquela curiosa maneira fantasmagórica afirmada, negada, sublimada,
distorcida, endireitada, travestida [...]. O texto anterior [Freud] é, ao mesmo
tempo, a base do novo [Bion] e algo que o novo poema [Bion] tem de aniquilar
pela própria incorporação, transformando-o numa insubstancialidade
fantasmagórica, de modo que o novo poema [Bion] possa realizar sua tarefa
possível-impossível de tornar-se a sua própria base. O novo poema necessita dos
textos antigos e ao mesmo tempo deve destruí-los. É parasítico em relação a
eles, alimentando-se sem a menor cerimônia da sua substância. (p. 19-20, grifo
nosso).
Nossa tarefa será identificar algumas das formas de presença de Freud e torná-las
explícitas de modo que possamos reconhecer conceitos, noções, ideias que estão incorporadas no
texto de Bion de maneira mais ou menos evidente, e mostrar como são usadas na construção de
seu pensamento. Os textos de Bion dos anos 50 são particularmente significativos, pois fazem
parte de um período em que Bion estava a caminho de ser identificado como um autor singular na
psicanálise, e ainda bastante comprometido com a abordagem kleiniana. Até ele ser considerado
um autor que pode ser colocado ao lado de Freud, de Melanie Klein, assim como de Winnicott ou
17
Lacan há um longo percurso, do qual pretendemos acompanhar apenas uma parte com base em
alguns de seus textos. No entanto, se em algum momento ele pode ser colocado ao lado de
autores que contribuíram para a sua individuação, esta nem sempre é nítida ou absoluta.
Em nosso trabalho não pensamos na existência de um Freud puro, que pode ser resgatado
de dentro da massa de fenômenos do consultório ou de reflexões conceituais, e que teria sido
distorcido pela abordagem de Melanie Klein. Também não se trata de um Freud kleiniano apenas.
Do mesmo modo, não pretendemos explicar um autor pelo outro. Nossa intenção é estudar e
discutir as aproximações conceituais que se dão de maneira explícita quando Bion cita Freud,
bem como evidenciar aproximações que estão apenas aludidas, sugeridas ou que se dão até
mesmo de maneira silenciosa. Para tanto, faz-se necessário contextualizar o pensamento dos
autores e, em todos os capítulos de nosso trabalho, apresentaremos suas teorias e conceitos de
maneira mais sistemática. Visto que uma parte da leitura proposta depende de nosso próprio
trabalho associativo e uma vez que as referências de Bion a Freud nem sempre são feitas de
maneira direta, não pretendemos esgotar as remissões passíveis de serem estabelecidas nos textos
estudados.
Na discussão sobre o contexto teórico e institucional psicanalítico no qual Bion começou
a desenvolver seu trabalho como analista e como autor, Meltzer (1998) faz uma menção sobre o
significado da morte de Melanie Klein para a produção teórica de Bion e ao controle que Klein
exercia sobre seu grupo – um dado que parece ser particularmente significativo em relação
àqueles que, como Bion, haviam sido seus pacientes. Além disso, segundo Meltzer, a formação
analítica podia acarretar um efeito intimidante para a liberdade de pensamento dos alunos, ao
menos temporariamente. Acredita que essas questões transparecem nos artigos de Bion dos anos
50 quando comparados à criatividade presente em seus textos posteriores e nos anteriores sobre
grupos.
18
Não sabemos até que ponto essa visão de Meltzer está marcada por algo de sua própria
experiência e o quanto essa visão é corroborada por seus pares; o fato é que Bléandonu (1993),
em seu livro sobre a vida e a obra de Bion, discorda indiretamente de Meltzer ao não considerar
os textos de Bion sobre a psicose como sendo menos criativos e parte de uma etapa preparatória a
desenvolvimentos teóricos que viriam a seguir. Sabemos que Bion fez uma releitura crítica desses
textos na introdução e no final de Second Thoughts (em português: Estudos psicanalíticos
revisados) – livro que, em 1967, reuniu a maioria de seus artigos publicados nos anos 50.
Contudo, entendemos que o objetivo de Bion era abordar suas discussões clínicas e teóricas
iniciais de outra perspectiva e discutir as mudanças ocorridas em seu pensamento sem
necessariamente considerá-las objeto de menor valor.
No entanto, com ou sem a existência das mais diversas formas de controle, sejam elas
diretas ou indiretas, Bion, assim como diversos psicanalistas da época, concentrava esforços em
uma frente de trabalho relativamente pouco investigada na psicanálise, onde tanto a ausência de
contato quanto a pressão emocional exercida pelos pacientes sobre o analista eram extremas. Na
Inglaterra, o tratamento estritamente psicanalítico da esquizofrenia, isto é, sem modificações
substanciais na técnica, era recente (Rosenfeld, 1947; Segal, 1950); a identificação projetiva
acabara de ser conceituada (Klein, 1946) e a contratransferência começava a ser legitimada como
uma importante ferramenta de trabalho do analista (Heimann, 1950).
Nessa época, Bion se torna Membro Efetivo (Full Member) da Sociedade Britânica de
Psicanálise com a publicação de seu primeiro artigo rigorosamente psicanalítico: “O gêmeo
imaginário” (1950). Este artigo é exclusivamente dedicado ao atendimento individual, no
consultório, e não ao trabalho com grupos que, até então, englobara as suas publicações.
Em 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial, Bion retomou sua formação no
Instituto de Psicanálise da Sociedade Britânica e, dessa data até 1953, fez sua análise didática
19
com Melanie Klein. Na época, esta Sociedade já estava marcada pelas divisões internas em
diferentes grupos de formação, resultante das Controvérsias entre Klein e Anna Freud ocorridas
nos anos 40. A briga por quem estaria mais de acordo com o pensamento freudiano parecia forçar
uma constante retomada das afirmações deste autor, assim como havia uma necessidade de
mostrar quais seriam as formas mais corretas de encaminhar a teoria de Freud diante dos novos
desenvolvimentos trazidos por Melanie Klein.
Grande parte das teorizações dessa autora colocava em xeque as afirmações sobre a
impossibilidade de se trabalhar com a psicose. De fato, a partir de suas contribuições ao trabalho
com crianças e das compreensões sobre as origens do psiquismo, com as fixações patológicas da
pulsão no que inicialmente nomeara de “posição paranoide”, o trabalho psicanalítico com
pacientes psicóticos ganhou em força e em amplitude. Ao contrário do que Freud acreditava,
Melanie Klein e seus colaboradores mostraram que um trabalho psicanalítico com esses pacientes
era possível, inclusive a partir do uso e da ampliação de formulações do próprio Freud.
Herbert Rosenfeld, um importante analista do grupo kleiniano, escreve artigos que são
primorosos em mostrar a validade da técnica psicanalítica, como o uso da interpretação
direcionada inclusive e especialmente à transferência negativa, e em mostrar o quanto algumas
ideias de Freud sobre as primeiras relações de objeto nas fases iniciais do desenvolvimento
psíquico poderiam contribuir para o tratamento desses pacientes. (ROSENFELD 1947, 1952,
1964). Embora as concepções freudianas sobre o narcisismo tanto na primeira quanto na segunda
tópica não sejam unívocas, ora designando uma fase objetal ora uma fase anobjetal do
desenvolvimento, Rosenfeld busca em Freud as afirmações que estariam de acordo com as suas
20
observações clínicas.
5
No artigo “Transference-Phenomena and Transference-Analysis in an
Acute Catatonic Schizophrenic Patient”, Rosenfeld afirma:
Ambos Freud (1911 e 1914) e Abraham (1908) deixaram bastante claro que, na
opinião dos mesmos, o esquizofrênico seria incapaz de formar uma
transferência devido a sua regressão ao nível auto-erótico do desenvolvimento.
[...] no nível infantil mais primitivo [on the earliest infantile level], nomeado
pelos autores de fase auto-erótica, ainda não havia consciência [awareness] de
um objeto. Mas há uma série de afirmações de Freud que parece contradizer o
conceito de que na fase auto-erótica não há relação de objeto, como em “O Ego
e o Id” (1923), onde diz: ‘no começo, na fase oral primitiva do indivíduo, o
investimento de objeto e a identificação são, sem dúvida, indistinguíveis’. A
partir desta opinião tardia, podemos concluir que ele reconheceu a existência de
investimento de objeto na infância mais primitiva. Porém, Freud jamais deu
indicação alguma de que mudara a sua opinião sobre a ausência de transferência
na esquizofrenia (talvez porque não teve uma experiência posterior com tais
pacientes). (1952, p. 104).
Nas origens do desenvolvimento psíquico, a ausência de consciência de um objeto que
estivesse separado do bebê era compreendida pelos analistas kleinianos como parte de
movimentos defensivos contrários à emergência de emoções associadas ao mesmo, como as
ansiedades de destruição, de separação (relacionadas inclusive ao nascimento), e ansiedades de
dependência e de castração, despertadas já no desmame. A noção de consciência (awareness) de
que Rosenfeld fala seria de um tipo bastante primitivo; provavelmente uma consciência
perceptiva estreitamente ligada ao ego corporal e a traços de memória de impressões não verbais
e de qualidades da série prazer-desprazer, consideradas pelos kleinianos como parte de uma vida
de fantasia já existente. Esses autores e inclusive Bion, ao menos nos anos 50, não fazem uma
discriminação mais cuidadosa entre a noção de consciência enquanto um ato perceptivo e a
consciência enquanto um processo que envolve a aquisição de significados os quais se pode ou
5
Para um maior esclarecimento das diferentes acepções do termo narcisismo em Freud, além do Vocabulário da
Psicanálise de Laplanche e Pontalis há o cuidadoso rastreamento feito por Willy Baranger (1994) em “O narcisismo
em Freud”. No Brasil foi publicado recentemente o livro Narcisismos de O. Miguelez (2007).
21
não tolerar. Por vezes, ela parece ser usada por Bion como sinônimo de percepção, por vezes está
associada à posição depressiva e às atividades de pensar, sonhar, fantasiar. Em certos trabalhos,
Bion usa a palavra consciousness como sinônimo de awareness; procura compreender os
processos envolvidos no ato de se trazer algo à consciência; faz breves menções à relação, não
necessariamente determinante, entre consciência e linguagem verbal; mas não está preocupado
em discutir as diferentes qualidades e empregos do termo, ao menos nesses anos.
6
O significado de consciência enquanto ato mental e enquanto sistema psíquico; a
diferença entre ter consciência e ser consciente de algo; a relação entre consciência e percepção; a
importância da apreensão de qualidades psíquicas para o desenvolvimento são temas que foram
discutidos por Freud ao longo de sua obra, principalmente do ponto de vista metapsicológico. O
assunto é certamente complexo e controverso, especialmente quando é preciso aproximar
consciência e processo de individuação, e sua relação com a linguagem e a cultura.
7
As lacunas e
limites do tema na obra de Freud contribuíram para que Bion postulasse, nos anos 60, o conceito
de função-alfa e procurasse uma maneira de discriminar a experiência que temos de dados
sensoriais e não sensoriais. Devido à complexidade do tema e ao fato de Bion ter se voltado mais
detidamente a essa discussão apenas nos anos 60, não aprofundaremos o assunto. As discussões
feitas pelo autor na década de 1950 estão na base dessas contribuições.
Em seus artigos dos anos 50, Bion mostra que a consciência estaria ligada a um
pensamento rudimentar formado pelas impressões sensíveis do objeto. Essas compreensões têm
apoio em diversos trabalhos de Freud que abordam a função da consciência e do pensamento,
como o capítulo VII de A interpretação dos sonhos (1900) e as sucessivas retomadas do tema
6
Provavelmente, a imprecisão de Bion quanto ao significado dos termos “consciência” e “percepção” contribuiu
para que o tradutor de Second Thoughts (1967/1993) usasse, em alguns trechos de Estudos Psicanalíticos Revisados
(1994b), as duas palavras indiscriminadamente.
7
No livro Freud e a consciência, Oswaldo França Neto faz um rastreamento do termo na obra de Freud e discute
suas implicações também de uma perspectiva filosófica.
22
feitas pelo autor em “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental” (1911b),
“O inconsciente” (1915b), “Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos” (1917) e em “O
Ego e o Id” (1923).
As conceituações de Freud sobre a expressão de ideias por meio da reunião de unidades
concretas de pensamento em imagens na forma de sonho e de alucinação não passaram
despercebidas a Bion e são mencionadas em seus textos. Essas formas expressivas são ampla e
inventivamente detalhadas nos artigos do autor, e é nítida a impossibilidade de identificá-las a
descrições teóricas conhecidas, como as de Freud. Bion abre o seu artigo “Sobre alucinação”
(1958) com a seguinte afirmação: “Falta às descrições de alucinações com as quais estou
familiarizado a precisão necessária para que forneçam material à interpretação psicanalítica.” (p.
65).
iii
Diz ainda que os termos cisão (splitting) e dissociação (dissociation), usados de maneira
indiferenciada por Freud (1893a e b), poderiam, segundo Bion, ser empregados para identificar
processos patológicos e normais, respectivamente.
Em um de seus artigos mais importantes da época, “Diferenciação entre a personalidade
psicótica e a personalidade não-psicótica” (1957a), Bion propõe uma maneira singular de
descrever a organização das impressões sensíveis do objeto em ideogramas (ideias expressas em
imagens) e em atividades ideomotoras (ideias expressas em gestos), que estariam na base de
desenvolvimento do pensamento verbal futuro. Os ideogramas e as atividades ideomotoras
observadas por Bion na análise de pacientes psicóticos seriam uma primeira tentativa dos
mesmos de conhecerem e de tomarem contato com sua vida mental. Veremos nos capítulos dois e
três algo sobre a importância que a consciência tem para esses pacientes e algo sobre os destinos
da mesma sob os princípios de prazer e de realidade.
Essas compreensões de Bion estão apoiadas na caracterização da vida mental primitiva
por Melanie Klein (1957), especialmente com o termo “memórias em sentimentos” (memories in
23
feelings), usado pela autora para se referir à qualidade das fantasias arcaicas. Segundo Cintra e
Figueiredo (2004), as “memórias em sentimentos” teriam um sentido mais exato, e certamente
mais amplo, ao serem nomeadas de “memórias em sensações”, uma vez que o termo sensação
permite a inclusão de impressões sensíveis e estados corporais que ainda não podem ser
discernidos como um sentimento e associados a um significado verbal. Porém, trata-se de uma
memória de base emocional, formada a partir de experiências com o objeto que ocorreram em um
período pré-verbal do desenvolvimento psíquico – daí o termo “experiência emocional”,
frequentemente utilizado na psicanálise de tradição inglesa.
8
Sobre essa memória, Cintra e
Figueiredo afirmam que
Também as imagens em seus estágios pré-verbais são elementos importantes na
composição das fantasias inconscientes. Estas, como nos lembra Julia Kristeva,
foram um tecido composto de heterogêneos – sensações, imagens, mecanismos,
pulsões, defesas, objetos etc. –, mas constituindo uma organização da
experiência que já comporta um sentido. [...] vale assinalar que Melanie Klein
pode ser considerada como uma das pioneiras na descoberta de que, durante uma
análise, são decisivas a emergência e a elaboração do mundo de sensações,
sentimentos e imagens da época pré-verbal, aspecto que tornou-se hoje objeto de
muitos estudos em que se acentua a importância das dimensões do
irrepresentável e do inominável no psiquismo. (p. 151, grifo dos autores).
Para os analistas kleinianos, o narcisismo não representa uma fase anobjetal do
desenvolvimento, como Freud sugeria ser o caso no narcisismo primário, e sim o que chamam de
organização narcísica ou estados narcísicos. Neste estado, a aparente inexistência de um objeto
externo, seja para teóricos como Freud e Abraham, seja do ponto de vista do bebê com seu
psiquismo em formação, decorreria de um estado de indiferenciação eu/outro e da ação de
defesas primitivas e anteriores à repressão, como as cisões, a identificação projetiva, a recusa e a
negação, direcionadas, inclusive, aos órgãos de percepção.
8
Uma discussão sobre o significado do termo “experiência emocional” na psicanálise de Bion pode ser encontrada
em Sandler, P.C. The Language of Bion, 2005.
24
O artigo de Freud “A negativa” (1925) é particularmente importante a esses analistas por
apresentar as maneiras mais primitivas de se incorporar e de se livrar de um objeto, de formar
juízos acerca da natureza real ou alucinada dos mesmos e por fazer corresponder essas maneiras à
ação das pulsões de vida e de morte. Principalmente a partir deste trabalho de Freud, Klein
aproximou pulsão de morte e sadismo oral ao processo de incorporação do objeto primário; o
narcisismo seria, assim, o investimento da libido não propriamente no ego (FREUD, 1914), mas
sobre um objeto interno idealizado, cuja função seria a proteção contra sentimentos como o ódio
e a inveja.
Grande parte do trabalho do grupo kleiniano foi demonstrar a dinâmica introjetiva e
projetiva das primeiras identificações, com a formação de um superego arcaico. Pretendiam
descrever a natureza incipiente do ego e de suas funções; mostrar os efeitos das ansiedades e da
desmesura das pulsões de vida e morte sobre o psiquismo; e estabelecer a forma com que o
trabalho analítico deveria ser realizado sob essas condições e estados de mente tão primordiais.
De posse dessas ideias, Bion mostrou que, na psicose, a cisão seria o instrumento da
megalomania e, também, do sadismo e da crueldade contra a consciência primitiva associada aos
processos primitivos de introjeção e projeção. A percepção de que esses processos proporcionam
o fundamento do pensamento verbal e o maior contato com a realidade levaria ao emprego da
cisão sobre as funções do ego descritas por Freud em “Formulações...” (1911b) e à identificação
projetiva de seus fragmentos. Uma contextualização histórica e teórica do pensamento de Bion e
de Freud sobre a psicose será feita por nós no primeiro capítulo, e será retomada nos demais
capítulos de diferentes perspectivas e de acordo com o tema em questão.
Assim como Rosenfeld, Bion é um dos analistas de sua época que se dedica a buscar, em
Freud, elementos que justifiquem e que auxiliem o trabalho clínico com a psicose; em especial,
com a esquizofrenia. No entanto, Bion vai além. Pretende contribuir com e modificar certas
25
conceituações de Freud a partir de suas observações clínicas; descreve de maneira original a
alucinação e a maneira de certos pacientes testarem a realidade; e nos faz supor que, além de
estabelecer aproximações com Freud, uma de suas intenções é singularizar o seu pensamento em
relação ao dele.
O mecanismo da cisão, ao qual Freud deu maior destaque apenas nos seus últimos
trabalhos (1940a e 1940b), teve amplo desenvolvimento na teoria kleiniana a partir das
investigações dos efeitos da pulsão de morte sobre o ego. A dificuldade dos pacientes psicóticos
de lidarem com a realidade interna ou externa indicava que a consciência, na medida em que
nascia, seria atacada, assim como seriam atacados os conteúdos dos pensamentos pré-verbais e os
seus elos de ligação. Aqui temos uma importante contribuição de Bion: a ligação entre as
impressões e os conteúdos ideativos descrita por Freud já em A interpretação dos sonhos (1900)
teria uma representação nas fantasias (MELTZER, 1998) e seria um dos alvos da cisão e dos
impulsos destrutivos.
Em “A linguagem e o esquizofrênico, Bion (1955) descreve a cisão como um método a
partir do qual a personalidade psicótica põe em prática a destruição, a crueldade e a
megalomania. É também contra a consciência da realidade interna e externa, em especial às
ansiedades de castração, que essa personalidade se volta e ataca as funções do ego. Neste mesmo
artigo, Bion ressalta as semelhanças observadas entre um de seus pacientes e os casos clínicos
apresentados por Freud no item VII de “O inconsciente” (1915b). A partir de seu referencial
clínico e teórico, mas também a partir de trabalhos de Freud mais tardios, como “O Ego e o Id”
(1923), propõe que a abordagem de Freud feita em 1915 sobre a expressão do conflito psíquico e
das ansiedades de castração na pele do paciente seria – nas palavras de Bion – “mais frutífera”
caso se considerasse que o paciente resolveria na “pele mental”, isto é, no ego, o conflito e o
26
complexo de castração por meio de um ataque ao mesmo. Essas questões serão trabalhadas no
capítulo dois.
A associação entre castração e dano aos órgãos dos sentidos também está presente no
artigo de Bion “O gêmeo imaginário” (1950), em que textos de Freud como “O estranho” (1919)
surgem como uma espécie de sombra de seu artigo. Embora Bion não faça uma referência
explícita a esse trabalho de Freud, as ideias contidas em “O estranho” certamente tiveram efeitos
sobre as suas considerações clínicas e teóricas. No capítulo três, mostraremos como o paciente de
Bion tenta restaurar seu ego e adquirir consciência da realidade psíquica a partir da interpretação
de Bion sobre a existência de um gêmeo imaginário na relação transferencial; ao fazê-lo,
procuraremos trazer para um primeiro plano as alusões, as referências implícitas e expressar
possíveis proximidades entre este e outros trabalhos de Freud presentes nas concepções de Bion.
Vê-se que o tema sobre a fragmentação e o reparo do ego é recorrente em todos os artigos
de Bion escritos nos anos 50. Ao longo de nosso estudo, discutiremos em maiores detalhes o uso
concreto do pensamento e da linguagem na psicose, as inibições radicais da vida de sonho e de
fantasia desses pacientes, bem como a forma como que, a partir de fragmentos do pensamento
pré-verbal, a cisão, a evacuação e a alucinação seriam, nas palavras de Bion, “empregadas a
serviço do anseio [do paciente] de ser curado” (1958, p. 68).
Outra referência importante de Bion nesse momento é o texto de Freud “Construções em
análise” (1937b) e a analogia estabelecida entre o arqueólogo, o analista e a reedição, na análise,
de uma catástrofe primitiva. Além de descrever essa catástrofe a partir do estado do ego na
posição esquizo-paranoide, Bion mostra as consequências dos ataques sobre o mesmo para o
andamento do processo analítico e para uma reconstrução que está sujeita a abalos intermináveis.
Se para Freud (1937b) o analista, diferentemente do arqueólogo, lida com um material que ainda
está vivo, para Bion (1959) aquilo que ainda está vivo na psicose é a própria catástrofe.
27
Bion retoma e cita diferentes trabalhos de Freud ao apresentar a sua visão do estado do
psiquismo, em geral, e do pensamento, em particular, na posição esquizo-paranoide. Nota que as
origens do pensamento verbal e as suas falhas deveriam ser compreendidas a partir da forma com
que se vive aquela posição, e não apenas a posição depressiva, como mostrara Melanie Klein e
colaboradores como Hanna Segal. Bion descreveu o emprego da identificação projetiva com
fragmentos do ego e com suas funções que foram atacadas em razão da existência de um
pensamento rudimentar, responsável pela consciência de conflitos psíquicos e,
consequentemente, responsável pela comunicação desse estado mental. Bion observou e
descreveu a maneira com que o paciente usa os fragmentos dessa catástrofe na restauração de seu
ego e forma com que, a partir da recuperação desses mesmos fragmentos, o paciente tentaria
pensar, sonhar e fantasiar a respeito de suas experiências emocionais.
A alucinação e o delírio relacionado aos órgãos sensoriais seriam um meio pelo qual os
órgãos não apenas eliminam estados desprazerosos pela excisão de funções do ego e de
sentimentos dolorosos pelo mecanismo da identificação projetiva, como seriam também um
modo pelo qual esses órgãos recebem de volta ou recuperam os fragmentos que foram ejetados.
A formação de ideogramas e a recuperação dos fragmentos expelidos seria uma tentativa, ainda
que rudimentar, de alcançar o que Bion chamou de “intuição terapêutica” (1958, p. 82). É
significativo o emprego da palavra intuição ao invés de consciência, pois nos dá uma ideia da
dificuldade de inscrever a metapsicologia desses processos psíquicos nas compreensões de Freud
que foram utilizadas pelo autor.
9
9
Concomitantemente à publicação dos artigos escritos no final dos anos 50, Bion procurava um modo de descrever
mais adequadamente essa dimensão pré-verbal do psiquismo com a noção freudiana de trabalho onírico, que
posteriormente foi batizada de função-alfa. Esse trabalho realizado nos bastidores de suas publicações deu origem ao
livro Aprendendo da experiência (1962b), e está hoje acessível aos leitores através da reunião de notas e textos no
livro Cogitações (1994a). Este foi originalmente publicado em 1992 por sua esposa, Francesca Bion, e reúne
anotações do autor que vão de 1958 até 1979, o ano de sua morte.
28
Os anos de 1950 também são, para Bion, anos de gestação de ideias. Fora a clínica, o
lugar em que muitas delas estão sendo esboçadas e preparadas tornou-se disponível aos leitores
com a publicação póstuma de textos reunidos sob o sugestivo título de Cogitações (1994a). Com
esses textos, temos acesso às principais elaborações teóricas que deram origem ao artigo “Uma
teoria sobre o pensar” (1962a) e ao livro Aprendendo da experiência (1962b). Entre esses dois
trabalhos e as publicações anteriores dos anos 50 há um salto de ideias que, não raro, dá ao leitor
a sensação de estar perdendo algo ou mesmo de estar diante de outro autor. Termos como
“função-alfa”, “senso comum” e o irônico “social-ismo” surgem sem maiores explicações,
supondo o prévio conhecimento do leitor.
Nos artigos re-editados em Second Thoughts, Bion parecia escrever diretamente para os
seus pares da Sociedade Britânica. A sua escrita é bastante condensada e comprime muitas ideias
em poucas frases. O único texto sobre psicose dessa época que soa menos hermético,
provavelmente porque visava um público maior e menos familiarizado com as ideias que
circulavam no meio kleiniano é “A linguagem e o esquizofrênico” (1955). Este artigo faz parte
do livro Novas tendências na psicanálise (Klein; Heimann; Money-Kyrle, 1955) e foi
generosamente ampliado de um trabalho anterior, intitulado “Notas à teoria da esquizofrenia”,
publicado em 1954 no International Journal of Psychoanalysis.
Bion é um autor que nem sempre oferece grandes explicações em seus textos, exigindo de
seu leitor uma bagagem teórica de conhecimentos bastante diversificada, bem como uma
familiaridade com um pensamento clínico que aproximaria seus escritos mais abstratos da prática
psicanalítica. Em parte, Cogitações torna acessível as suas especulações, dúvidas e a reflexão de
ideias que em certas publicações aparecem de forma mais condensada e hermética. Em
Cogitações também é possível acompanhar a criatividade presente, por exemplo, na proposição
de uma curiosa equação a partir da reunião de concepções de Freud e de Klein sobre o
29
narcisismo, resultando em uma formulação própria: “[...] o suposto narcisismo primário deve ser
reconhecido como secundário a um temor ao ‘social-ismo’” (BION, 2000, p. 43). O narcisismo
primário, com toda a onipotência da fantasia e do pensamento, seria posterior à impossibilidade
de submissão do indivíduo ao grupo e às limitações que decorreriam daí. A referência não é
exclusivamente ao objeto, como para Klein, nem somente à horda primitiva ou à civilização,
como para Freud. De qualquer modo, em uma afirmação tão simples quanto essa há toda uma
tomada de posição sobre os destinos da pulsão, sobre a relação entre os princípios de prazer e de
realidade, bem como uma possível crítica ao caráter coercitivo e traumático de um grupo, seja ele
qual for, sobre o indivíduo.
10
Junto às considerações sobre o estilo literário de Bion naqueles anos, pensamos que muito
do entrave para se acompanhar as formulações do autor está intimamente associado com a
relação entre essas formulações e a experiência clínica. Em uma carta de Winnicott (1990)
endereçada a Bion após a leitura que este fez do texto “Diferenciação entre a personalidade
psicótica e a personalidade não-psicótica” na Sociedade Britânica em 1955, o primeiro comenta,
de modo pesaroso, sobre a dificuldade da platéia em seguir a exposição das ideias desse último.
Entretanto, comenta sobre a impressão geral de que houve por parte de Bion uma verdadeira
tentativa de relatar os acontecimentos do caso clínico apresentado. Era nítido o seu esforço para
encontrar um modo de representar fenômenos psicóticos e um psiquismo primitivo, pré-verbal,
do ponto de vista da dinâmica psíquica e da teoria.
Já nos trabalhos escritos predominantemente na década de 60, Bion mergulha na
discussão sobre a epistemologia da psicanálise e a teoria do conhecimento do ponto de vista
10
Não caberá a nós discutirmos essas ideias e expor os significados da noção de grupo para Bion, mas seria
interessante um estudo que examinasse as relações entre essa noção e termos como “social-ismo” ao longo da obra
do autor. O desenvolvimento psíquico parece ganhar uma dimensão política – na melhor acepção grega do termo –
assim como há uma referência de Bion à tendência ao engessamento e à institucionalização do pensamento coletivo,
exemplificada na psicanálise pelo freud-ismo, klein-ismo e, posteriormente, até mesmo pelo bion-ismo.
30
psicológico. Em Aprendendo da experiência (1962b), Cogitações (1994a) e no livro Elementos
de psicanálise (1963), há discussões sobre a implicação dos fatores emocionais e das posições
esquizo-paranoide e depressiva na investigação e na observação clínica, e uma série de reflexões
e críticas de natureza epistemológica à teoria psicanalítica. Podemos entendê-las como uma
espécie de resposta ao risco de uma fusão inapropriada entre diferentes níveis de teorização
psicanalítica, como tomar o plano metapsicológico pelo plano observacional; podemos entendê-
las como uma resposta à falta de flexibilidade de certas teorias para a observação; bem como um
alerta aos riscos do que Figueiredo (2000) chamou de um excesso de implicação por parte do
psicanalista.
Colocar em discussão a relação entre a distância e a proximidade entre os planos da teoria
e da prática carrega uma dimensão ética, uma vez que auxilia o analista a não tomar teorias e
interpretações pela “coisa em si”, a manter o valor heurístico das mesmas e a condição de
abertura das elaborações feitas na análise para mais sentidos. Esse cuidado se mostra
particularmente importante diante de pacientes que fazem um uso maciço da identificação
projetiva, com efeitos reais e concretos sobre o estado de mente do analista. Pode-se
experimentar uma forte pressão para a manutenção do status quo ou para a perversão do vínculo
analítico; nestes casos, pretende-se impor a superioridade de uma determinada forma de pensar
em detrimento do método psicanalítico. Porém, esse cuidado que o analista deveria manter
também se mostrava importante dentro de uma tradição de pensamento em que a proximidade
entre teoria e observação poderia dar a impressão de que se teria acesso direto às fantasias
inconscientes.
11
Sobre o estilo de escrita de Melanie Klein, Cintra e Figueiredo (2004) comentam
11
Junto ao inegável valor da técnica kleiniana, compartilhamos a impressão de Julia Kristeva (2002) quando esta diz:
“Tem-se às vezes o sentimento de que, para Melanie Klein, o espaço psíquico que ela entretanto permitiu descobrir
em sua concretude torna-se paradoxalmente transparente, e que ele perde sua tridimensionalidade quando ela o
desarruma com interpretações intempestivas”. (p. 67).
31
que “[...] a dimensão fenomenológica e experiencial aparece sempre em evidência, mas mesclada
com a dimensão teórica, mais especulativa e mesmo metapsicológica, produzindo com frequência
uma teorização híbrida [...].” (p. 53).
Nos trabalhos de Bion, discussões de caráter epistemológico e ético podem ser
acompanhadas principalmente nos anos 60, dentro do que Bléandonu (1993) chamou de “período
epistemológico” do pensamento do autor.
12
Porém, elas também estão presentes em meio ao
interesse mais marcante de Bion nos anos 50 pela teorização do funcionamento mental primitivo.
Em “Diferenciação...” (1957a) e em um conhecido trecho de “Ataques à ligação” (1959),
Bion explicita a sua preocupação com a natureza da observação clínica, especialmente no
trabalho com a esquizofrenia. Sugere que certas descrições de Freud sobre a psicose deveriam ser
modificadas para que pudessem mostrar a natureza de um contato com a realidade que parecia
inexistir, afirmando que o afastamento do psicótico em relação à realidade seria uma ilusão. É
interessante notar que Bion não menciona os trabalhos de Freud “Esboço de psicanálise” (1940a)
e “A cisão do ego no processo de defesa” (1940b) que apresentam descrições que consideram a
existência desse contato e a presença de uma cisão no ego que o preserva. Reconhecemos a força
desses trabalhos de Freud no inventivo termo “justaposição negativa”, usado por Bion para
descrever a forma com que a psicose e a neurose estão presentes na personalidade. Essas questões
serão trabalhadas no capítulo quatro.
Em seu último artigo dos anos 50, “Ataques à ligação” (1959), Bion amadurecia ideias
recém apresentadas em “Diferenciação...” (1957a) sobre o interesse e o temor do paciente pelas
funções que promovem ligação intrapsíquica e interpsíquica com o objeto. Até então, Bion
12
No livro em que apresenta a vida e a obra de Bion, Bléandonu sugere uma separação das mesmas por “estações”,
identificando “[...] uma etapa consagrada à psicologia dos grupos, outra centrada na clínica da psicose, uma terceira
ávida de epistemologia e uma última mergulhada na arte da literatura.” (1993, p. 12). Há, ainda, outras propostas de
classificação do pensamento de Bion, realizadas com base em seu estilo (OGDEN, 2004), em sua ambição de
construir um sistema teórico para a psicanálise (GREEN, 1998), e em seus modelos epistemológicos e clínicos de
abordagem para a teoria e para a prática psicanalítica (REZENDE, 1993; FIGUEIREDO, 2006).
32
concentrara esforços em elucidar a natureza e as consequências de ataques direcionados a funções
do ego como a linguagem verbal, a atenção, a consciência, a memória, o pensamento, a
capacidade de julgar. Porém, nos trabalhos escritos no final dos anos 50, Bion passa a descrever o
interesse do paciente por funções que promovem ligação emocional com o objeto e pelo uso da
identificação projetiva como uma forma primitiva de comunicação com o mesmo. As descrições
teóricas existentes sobre a relação objetal não abordavam essa dimensão comunicativa e davam a
impressão ao observador de que o interesse do paciente direcionava-se apenas ao objeto em sua
concretude e em sua anatomia. Meltzer (1998) aponta que, segundo Bion, seria preciso
contemplar, também, características relacionadas ao interesse pela fisiologia e a psicologia do
objeto (o alimentar, o amar, odiar, envenenar), uma vez que a precariedade na relação objetal e o
empobrecimento emocional existente na psicose dariam a impressão de que elas não existiriam.
As constatações de Bion retomavam do ponto de vista do observador, ou melhor, do
objeto externo, algumas importantes afirmações de Melanie Klein. Em “Notas sobre alguns
mecanismos esquizoides” (1946), Klein diz: “É em fantasia que o bebê cinde o objeto e o self;
porém, o efeito dessa fantasia é bastante real, porque leva a sentimentos e a relações (e, mais
tarde, processos de pensamento) ficarem, de fato isolados uns dos outros.” (p. 25). A autora diz
ainda, que
A negação da realidade psíquica só se torna possível através de fortes
sentimentos de onipotência, uma característica essencial da mentalidade arcaica.
A negação onipotente da existência do objeto mau e da situação de dor é, para o
inconsciente, igual à aniquilação pelo impulso destrutivo. Entretanto, não são
apenas uma situação e um objeto que são negados e aniquilados – é uma relação
de objeto que sofre esse destino, e portanto uma parte do ego, da qual emanam
os sentimentos pelo objeto, é negada e aniquilada também. (Ibid., p. 26, grifo da
autora).
33
O efeito real das fantasias poderia dar margem a uma ilusão, caso o analista considerasse
a expressão concreta e inanimada do modo de pensar de certos pacientes, na clínica, combinadas
às descrições anatômicas do objeto parcial, na teoria, como a totalidade da relação com os objetos
internos ou externos. Para além da experiência relatada pelo esquizofrênico de agir como um
autômato e de sentir que não existe como um ser humano, aliada à teoria da pulsão de morte e de
seus efeitos devastadores sobre a integridade do psiquismo, seria vital ao analista considerar a
existência de uma relação transferencial intensa, embora tênue, e um real interesse do paciente
pelo efeito de suas projeções no objeto e pelas funções do mesmo.
Ao fazer essas considerações à abordagem dos fenômenos, Bion estabelece um debate
com os seus pares e discorda de autores que, como Freud, tomava o aparente distanciamento
afetivo de certos pacientes por uma fase do desenvolvimento psíquico no qual não haveria
interesse ou mesmo relação de objeto.
13
A natureza do contato com a realidade interna ou externa, o efeito desta sobre o
psiquismo, em especial sobre o estado do ego, e a natureza das primeiras identificações, eram
questões muito presentes entre os psicanalistas que trabalhavam com a psicose. Sabemos que
Freud discutiu essas questões no “caso Schreber” (1911a), em “Sobre o narcisismo: uma
introdução” (1914), em “O inconsciente” (1915b), e mais tarde em textos como “Neurose e
Psicose” (1924a), “A perda da realidade na neurose e na psicose” (1924b), “A negativa” (1925),
“Fetichismo” (1927) e, no final de sua obra, em “Esboço de psicanálise” (1940a) e “A cisão do
ego no processo de defesa” (1940b). Porém, entre os analistas kleinianos e a partir das
considerações de Melanie Klein sobre as relações iniciais de objeto e sobre a pulsão de morte,
13
Quanto à repercussão desses assinalamentos de Bion na psicanálise de tradição kleiniana, Rocha Barros e Rocha
Barros (1989) nos informam a partir dos estudos de Spillius sobre o desenvolvimento da teoria da técnica que, aos
poucos, houve uma mudança na linguagem utilizada na formulação das interpretações. Os analistas abandonam o uso
de termos que se referem “[...] a partes do corpo enquanto representativas de objetos parciais, e passam a descrever a
experiência emocional do paciente numa linguagem coloquial e adulta para se referir às funções parciais exercidas
por esses objetos”. (p. 34).
34
havia a necessidade de ampliar e até de modificar algumas das formulações de Freud em função
da experiência com certos pacientes e dos fenômenos observados.
De um ponto de vista kleiniano, os casos de psicose mostravam o impacto e a força sobre
a organização psíquica de emoções como o ódio e a inveja, e mostravam, também, o desamparo e
a precariedade desses pacientes no contato com a realidade. Determinar a natureza de funções
como a linguagem, as fantasias, o pensamento e os sonhos foi uma tarefa recorrente dos
psicanalistas que trabalhavam com esses casos. Assim como Rosenfeld e Hanna Segal, Bion
descreveu o estado dessas funções na psicose, e aprofundou a compreensão sobre as enormes
dificuldades desses pacientes em estabelecer uma relação simbólica com o mundo. A
precariedade no contato com a realidade levantava perguntas sobre as dinâmicas internas e
externas que fomentariam relações concretas ao invés de simbólicas; gerava questionamentos
sobre o que havia ocorrido com esses pacientes nos primórdios do desenvolvimento psíquico, e
questionamentos sobre o que impedia os estímulos e as emoções percebidas de ganharem
significado e serem discriminadas uma das outras.
Com base no conceito de identificação projetiva, podemos identificar nas descrições de
Bion as dinâmicas do mecanismo de denegação ou recusa (Verleugnung) nos ataques dirigidos a
objetos internos e externos, bem como nas expressões desses ataques nas percepções e nas
funções do ego. Mostrar que a precariedade dessas funções resultava da impossibilidade do
paciente de mantê-las preservadas e articuladas devido a um ataque direcionado à ligação
intrapsíquica e intersubjetiva era algo novo na teoria psicanalítica. Também era novo e
surpreendente mostrar que o grau de fragmentação das impressões dos sentidos poderia ser tão
eficaz a ponto das mesmas se tornarem invisíveis.
Essas ideias representam uma série de acréscimos à compreensão do conceito de Freud de
alucinação negativa, implícita em trabalhos como “Fetichismo” (1927). Mas é também a herança
35
freudiana à observação clínica que se faz presente em toda a sua potencialidade nessas
contribuições. Bion torna visível uma dinâmica psíquica que pode ser compreendida como a falta
de capacidade do paciente para tornar a realidade significativa. Essa falta de capacidade não
representava apenas a ausência de um atributo psíquico; ela se mostrava como a presença de uma
ação concreta voltada para a destruição de tudo o que viesse a proporcionar significado psíquico e
ganho de consciência.
Com o conceito de pulsão de morte, tal como compreendido por Klein, mas também com
a observação do “trabalho do negativo”, tal como nomeado por Green (1998) acerca do olhar de
Freud sobre ações como a recusa, a negação e a reação terapêutica negativa, Bion pretendia
descrever operações e fenômenos que, em certo sentido, pediam ampliações conceituais e até
modificações teóricas. Seria preciso considerar também a presença de fenômenos relacionados à
neurose na psicose a partir da presença de uma personalidade não-psicótica. Seu uso dos termos
personalidade psicótica e não-psicótica procurava abarcar modos de ser e de agir sobre a
realidade, direcionados tanto à satisfação de impulsos sob o princípio do prazer quanto de
comportamentos que levariam em conta o princípio de realidade.
Se em textos como “Neurose e psicose” (1924a) Freud nos diz que na esquizofrenia há
uma “perda de toda a participação no mundo externo” (p.151), Bion (1957a, 1962b) dizia ser
necessário conceber, desde as origens da formação psíquica, a coexistência do princípio de prazer
e de realidade, assim como a presença de uma personalidade não-psicótica obscurecida pelo
predomínio de uma personalidade psicótica. Embora sugira, nas suas palavras, uma modificação
nas formulações em que Freud (1911b) postula a sequência temporal do princípio de prazer ao de
realidade (cf. 1962b), Bion certamente está de acordo, ainda que não mencione, com um Freud
mais tardio de “Esboço de psicanálise” (1940a), que reconhece a presença simultânea de duas
tendências na psicose: uma que renega a realidade e outra que a considera. A reunião do conceito
36
de identificação projetiva às concepções de Freud (1940a e b) sobre a cisão do ego e a presença
de uma pessoa até certo ponto normal, capaz de observar o tumulto da doença mesmo nos casos
de alucinação aguda, torna ainda mais evidente a importância de o analista considerar que dirige
suas interpretações a uma pessoa sã, eventualmente reconhecer-se como o depositário da projeção
dessa porção sã do paciente e considerá-lo como alguém capaz de notar sua própria insanidade.
As modificações sugeridas por Bion procuravam dar conta dos efeitos reais da fantasia
onipotente, da capacidade de manipulação que o psicótico poderia exercer na realidade externa
tanto a favor da realização de suas fantasias como no sentido de buscar um lugar no ambiente
para abrigar a parte não-psicótica da personalidade, e transformar emoções arcaicas em
simbolismo e pensamento. No entanto, ao propor as tais modificações em certas descrições de
Freud sobre a psicose, Bion não faz referência a afirmações do autor que tratam da concomitância
entre a saúde e a doença; entre o normal e o patológico; entre a psicose e a neurose; entre o
reconhecimento da realidade e a perda do contato com a mesma. Fica-se com a impressão de que
Bion não leva em conta modificações feitas por aquele autor em relação às ideias que escolheu
utilizar. Ao mesmo tempo em que está às voltas com a descrição dos fenômenos clínicos e com
as tentativas de encontrar em Freud e com Freud formas de pensá-los tanto na teoria quanto na
prática, faz questão de marcar diferenças em relação ao pensamento desse autor, mas de um
modo que parece ser restrito a certas afirmações.
Assim, perguntamos: de que modo podemos compreender suas propostas de modificação
em relação a formulações de Freud, sabendo que Bion é um leitor da obra freudiana como um
todo e não apenas de partes dela? Vale dizer que muitas das ideias de Freud estiveram em
contínua elaboração; que sua obra é recheada de idas e vindas, bem como de conceitos que não
37
foram desenvolvidos ou retomados frente a novas concepções.
14
Isso já explica, em parte, as
tantas leituras antagônicas e as inúmeras interpretações feitas da obra deste autor dentro e fora da
psicanálise. Por este motivo, chama a nossa atenção o tratamento que Bion dá a certos conceitos
de Freud, parecendo usá-los como apoio para aquilo que necessitava expressar em um momento
específico, e silenciando sobre considerações do autor que tanto poderiam estar de acordo quanto
poderiam contradizer as suas próprias ideias. Nossa impressão é que Bion dialoga pontualmente
com diferentes Freuds, e não com a totalidade de suas formulações; isso ocorre em função de um
interesse que se volta muito mais para os fenômenos do consultório e para a tentativa de
organizar essas observações do que para a promoção de debates conceituais e terminológicos.
É especialmente nos artigos publicados na década de 50 que Bion se preocupa em apontar
que os trabalhos de Freud, tanto quanto os de Melanie Klein, foram determinantes para a
compreensão alcançada por ele no trabalho clínico com psicóticos.
Cita tanto Freud quanto Klein
para indicar os trabalhos que o ajudaram nas suas observações, para dizer que está de acordo com
eles e, também, para expor pontos de vista próprios. Porém, em algumas passagens isto é feito de
um modo que dá margem a certa confusão – ao menos no leitor que espera do texto uma
apresentação sistemática de suas ideias. Bion parece discordar quando está de acordo e, em
outros momentos, tanto uma concordância quanto uma discordância tendem a ficar obscurecidas.
Sem desconsiderarmos a importância política que as referências a Freud tinham em uma
Sociedade de Psicanálise marcada por divisões internas; sem desconsiderarmos as exigências
relativas à elaboração de trabalhos escritos para o ingresso enquanto membro nessa Sociedade,
isto é, a importância de relacionar aos cânones daquela Sociedade o trabalho clínico realizado,
14
O livro Freud: o movimento de um pensamento, de Luiz Roberto Monzani é uma importante referência para
aqueles que se interessam pela forma de desenvolvimento das ideias de Freud. O autor sugere que este pensamento é
de um tipo pendular e espiralado, em que há, simultaneamente, conservação e superação das ideias e uma incansável
redefinição de conceitos.
38
interessa-nos explorar a forma com que os trabalhos de Freud comparecem nos textos de Bion, a
forma com que são utilizados e as suas prováveis motivações clínicas.
Portanto, mais do que fazer um levantamento da diversidade das presenças de Freud com
o objetivo de classificar a relação entre os autores, veremos de que forma Freud ajuda Bion,
como este último se relaciona com a teoria do primeiro, qual a natureza das modificações
conceituais que Bion propõe, e até que ponto essas modificações não estariam de acordo com
outras concepções de Freud que nem sempre são explicitadas. Paralelamente, poderemos ter uma
ideia das afinidades e diferenças entre o pensamento dos autores, uma ideia da modificação de
conceitos e a proposição de outros no pensamento de Bion da época.
Se uma parte de nossa intenção é observar como um autor é levado a pensar e a se situar
em relação à sua própria prática a partir de autores que o precederam, a outra parte nos permite
compreender a importância do pensamento de Bion e a particularizar as suas contribuições em
relação às de Freud. Esta é uma forma de acompanharmos o processo de individuação de um
autor dentro da tradição psicanalítica e de adquirirmos subsídios para melhor compreender o que
Bléandonu (1993) chamou de uma decolagem pessoal em relação à herança freudiana. Para isso,
iremos nos aproximar de Bion no momento em que ele já está, digamos assim, com os motores
aquecidos na pista de decolagem, começando a levantar o seu vôo na psicanálise.
*****
Nessa tese, traduzimos as obras de Bion para o português a partir do original em inglês.
Quanto à obra de Freud, utilizamos a edição inglesa de James Strachey da Standard Edition of
The Complete Work of Sigmund Freud. Quando necessário, cotejamos com a Edição Standard
39
Brasileira publicada pela Imago sob a coordenação de Jayme Salomão, e também com as recentes
traduções do alemão para o português disponíveis até o momento (2008) pela Imago,
coordenadas por Luiz Alberto Hanns. Os trechos originais em inglês das citações de Bion e a
tradução de Strachey do texto de Freud foram transcritas no final de cada capítulo como notas de
fim, indicadas na citação por algarismos romanos.
Em nosso texto, privilegiaremos o emprego de termos já consagrados nas produções
psicanalíticas brasileiras e nas atuais traduções de Freud: faremos uso do termo investimento ou
carga de investimento ao invés de catexia; repressão, ao invés de recalque, a fim de mantermos a
equivalência com o termo em inglês repression, utilizado por Bion. Esse uso pode ser justificado
pelo próprio estilo de Freud ao escrever. Segundo a observação de Hanns (1996, p. 365),
Verdrängung (recalque) e Unterdrückung (repressão) são, por vezes, tratados como sinônimos.
Quanto ao termo instinct, traduzido por Strachey para o inglês a partir do alemão Trieb,
preferimos a palavra pulsão a fim de evitar associações excessivas com a biologia.
NOTAS DE FIM
i
When we think in abstractions there is a danger that we may neglect the relations of words to unconscious thing-
presentations, and it must be confessed that the expression and content of our philosophizing then begins to acquire
an unwelcome resemblance to the mode of operation of schizophrenics. (FREUD, 1915b/1958, p. 204).
ii
We assume that the psychotic limitation is due to an illness: but that of the scientist is not. Investigation of the
assumption illuminates disease on the one hand and scientific method on the other. It appears that our rudimentary
equipment for ‘thinking’ thoughts is adequate when the problems are associated with the inanimate, but not when the
object for investigation is the phenomenon of life itself. Confronted with the complexities of the human mind the
analyst must be circumspect in following even accepted scientific method; its weakness may be closer to the
weakness of psychotic thinking than superficial scrutiny would admit. (BION, 1962b/1989, p. 14).
iii
Descriptions of hallucinations with which I am acquainted lack the precision necessary to afford material for
psycho-analytical interpretation. (BION, 1958/1993, p. 65).
40
CAPÍTULO 1 – CONTEXTO HISTÓRICO E CONCEPÇÕES GERAIS DE FREUD E DE
BION SOBRE A PSICOSE
1.1 Um pouco de história
O período posterior à Segunda Guerra Mundial, principalmente a década de 1950, pode
ser considerada uma época áurea do tratamento da psicose na psicanálise, especialmente da
esquizofrenia. Um rápido exame dos artigos publicados no International Journal of
Psychoanalysis revela o crescente interesse de analistas dentro e fora da Inglaterra pelo
tratamento da psicose, e oferece uma amostra da quantidade de estudos que estavam sendo
desenvolvidos na psicanálise em favor desta prática. Apesar da incerteza quanto à solidez dos
resultados clínicos alcançados e quanto à eficácia das interpretações no sentido de uma mudança
psíquica duradoura, é evidente o entusiasmo desses analistas em elucidar aspectos como: a
estrutura egoica na esquizofrenia (Federn, Eissler); a natureza da transferência psicótica e dos
estados confusionais (Rosenfeld, Margareth Little); a forma como a depressão é vivida nesses
pacientes (Hanna Segal); os processos de simbolização (Winnicott, Hanna Segal, Bion); os
processos de pensamento e linguagem (Bion); o papel da alucinação (Katan, Bion); o papel do
ambiente no desenvolvimento emocional primitivo e a noção de falso self (Winnicott); assim
como a importância da personalidade não-psicótica no tratamento (Katan, Bion).
Discutia-se com frequência o emprego da técnica e as modificações necessárias na
mesma. Entre os analistas de orientação kleiniana, uma das preocupações era mostrar a validade
da técnica psicanalítica tal como vinha sendo utilizada desde Freud com a neurose, e mostrar que,
apesar das novidades teóricas relacionadas a esse tratamento e de algumas variações, eles
permaneciam fiéis à assim chamada técnica clássica.
41
Sobre o atendimento de pacientes psicóticos Bion (1954, 1955) afirma, talvez com certa
ironia, não se desviar conscientemente do procedimento usualmente empregado com neuróticos,
e ter que, em certos casos, contar com a sua contratransferência como a única evidência para a
formulação de interpretações.
1
As dificuldades na comunicação verbal entre paciente e analista
tornavam a contratransferência um recurso valioso no trabalho clínico, mas alvo de controvérsia
no campo da teoria da técnica. Melanie Klein temia a acusação de que os kleinianos baseavam
suas interpretações puramente na subjetividade do analista (ROCHA BARROS, E.L.; ROCHA
BARROS, E.M., 1989). Afinado com problemas de ordem epistemológica e ética, Bion antecipa
críticas ao seu trabalho clínico apresentado em “A linguagem e o esquizofrênico” (1955) e esboça
um início de discussão que será retomada ao longo de toda a sua obra:
Em sua maior parte, a discussão [sobre a Teoria da Esquizofrenia e as
dificuldades de comunicação] está centrada nos estágios rudimentares do que,
por falta de um termo melhor, chamei de pensamento verbal. Mas, antes desse
estágio ser alcançado na análise, muito trabalho tem que ser feito, e é no decurso
desse trabalho que faço interpretações que muitos analistas criticarão como
sendo exceções a um sólido procedimento analítico e, portanto, material de
escrutínio. (p. 223-224).
i
Mais adiante, continua:
A objeção de que eu projeto meus conflitos e fantasias no paciente não pode e
não deve ser facilmente rejeitada. A defesa deve se encontrar nos fatos duros da
situação analítica, a saber, que no presente estado do conhecimento psicanalítico
o analista não pode se fiar em um corpo de conhecimento bem autenticado. [...]
conforme a experiência se acumula, penso que há sinais que indicam ser
possível detectar e apresentar fatos que existem, mas que no presente escapam a
1
Pouco tempo depois Bion irá criticar a viabilidade do uso da contratransferência, uma vez que, por definição, trata-
se de uma reação inconsciente e, portanto, não disponível diretamente ao analista. Em Aprendendo da experiência,
afirma: “A teoria da contratransferência oferece uma explicação apenas parcialmente satisfatória, pois se ocupa das
manifestações como com sintoma dos motivos inconscientes do analista e, portanto, deixa sem explicação a
contribuição do paciente.” (BION 1962b/1989, p. 24). Parte de seu esforço será o de descrever essa contribuição,
bem como discriminar as funções da mente para pensar experiências em estado concreto, isto é pré ou não
simbólicas, de caráter sensorial.
42
acuidade clínica; eles se tornam observáveis, em segunda mão, por meio da
pressão que exercem a fim de produzir o que conheço como contratransferência.
(p. 224-225).
ii
A ideia sobre uma experiência que se acumula e só então se torna observável será
associada por Bion ao longo de toda a sua obra a Freud e à referência que este faz à técnica
empregada por Charcot. Em um texto escrito em homenagem ao seu mestre, Freud (1893b) diz:
“[Charcot] costumava olhar repetidamente as coisas que não compreendia a fim de aprofundar a
impressão delas dia a dia, até que subitamente uma compreensão das mesmas despertava nele.”
(p. 12).
iii
Uma vez que a análise de pacientes não-neuróticos passava a ser cada vez mais comum,
acarretando mudanças conceituais e práticas, discutia-se o significado de uma técnica clássica
(também conhecida por standard ou ortodoxa) em relação às novas exigências clínicas.
Perguntava-se até que ponto seria ou não preciso alterar os objetivos e as técnicas empregadas
com pacientes neuróticos.
2
É dentro desse contexto que, em diversos trabalhos de analistas
kleinianos, encontramos afirmações como a de Bion: “[...] não me afastei conscientemente do
procedimento psicanalítico usualmente empregado com neuróticos, cuidando sempre para tomar
ambos os aspectos positivos e negativos da transferência” (1955, p. 223). Para esses analistas a
transferência estava dada desde o início, isto é, não precisaria ser desenvolvida durante o
tratamento e se apresentava de modo igualmente tênue e tenaz. Consideravam, também, que o
ponto crucial do trabalho com a psicose estava na análise e na interpretação das defesas e da
transferência.
2
Não será nosso objetivo discutir o significado, o valor ou mesmo a falta de consenso quanto ao termo “técnica
clássica”; para nossos propósitos, basta dizer que ela se apoia na dependência do analista ao uso da comunicação
verbal por parte do paciente; na interpretação de um sentido inconsciente já existente e de fantasias inconscientes
recalcadas; na análise das resistências e na presença da transferência. Para um aprofundamento da discussão,
remetemos o leitor aos trabalhos de Rosenfeld (1958, 1969); Green (1975, 2008); Sandler e Dreher (1996); Chuster
(1998); Figueiredo (2000).
43
Em artigos como “Notas sobre a teoria da esquizofrenia” (1954) Bion coloca-se contrário
a um procedimento que asseguraria o paciente de suas qualidades, que gratificaria suas pulsões
autoeróticas ou evitaria a análise de suas tendências e ações destrutivas, tal como propunham os
analistas norteamericanos, como Waelder, Federn e Fromm-Reichmann em seus trabalhos
iniciais (ROSENFELD, 1969). Parece haver um diálogo indireto de Bion com esses analistas
quando ele enfatiza a importância de o paciente poder perceber a gravidade da sua própria
condição e explorar, com o analista, “[...] o que significa fazer trabalho analítico [...] quando
insano.” (1954, p. 34). Ainda que a continuidade do tratamento pudesse ser colocada em risco, o
analista deveria tolerar acusações e pressões vindas não só do paciente, mas também da família e
do médico – retomaremos essa ideia no item 1.2.
Bion estava ciente e interessado na manipulação que o psicótico poderia exercer na
realidade e nas pessoas ao seu redor através de um efetivo contato com a mesma. Favoreceria
desse modo a gratificação de suas pulsões e a preservação de sua onipotência narcísica pela
imposição da personalidade psicótica sobre a personalidade não-psicótica. Bion chama atenção
ao fato de que certas interpretações poderiam ser, na verdade, uma maneira do analista evitar
veicular elementos que impediriam a gratificação alucinatória do paciente. Paradoxalmente, o
contato do paciente com a realidade mostraria a ele próprio que, acatando as tais pressões, o
louco da vez seria o analista. Em Cogitações (1994a), Bion escreve:
Eu tentei chamar a atenção para o fato de que, mesmo quando havia uma
oportunidade para análise, ele [o paciente] poderia não usá-la. Ele se defende
tomando isto como uma acusação de que é culpado e, assim, nega a existência
de um objeto obstrutivo muito mau. O racional entra em ação, portanto, não
como produto de uma elucidação, mas como defesa contra a elucidação. Se eu
lhe digo que sua mãe é um objeto muito perigoso que nega comida a ele, então
eu estou fornecendo material para ele se defender da visão do senso comum, e
sou eu mesmo sentido como estando perturbado a um ponto que me torna
incapaz de enxergar a visão do senso comum. Existe algo curioso neste tipo de
44
defesa, que é análoga a uma interpretação na qual os elementos estão tão bem
ordenados, que o narcisismo do paciente é poupado. (p. 29).
iv
É interessante notar como as duas últimas frases tornam imprecisa a separação entre a
visão do paciente sobre o analista e aquilo que o analista efetivamente fala e pensa. Isto é, se o
analista está de fato “perturbado” ao oferecer esse tipo de interpretação ou se a sua perturbação
faz parte da má compreensão do paciente. As aspas na palavra perturbado significam que o
analista pode deixar de considerar o quanto a sua fala forneceria mais material para a manutenção
do sistema defensivo. É como aquela antiga propaganda do “Denorex”: parece uma análise, mas
não é. Isso seria notado pelo paciente através da parte de seu ego que considera o senso comum,
isto é, que mantém contato com a realidade.
3
Partindo de concepções metapsicológicas kleinianas sobre processos mentais que Freud
não pôde explorar mais detidamente, em especial, a cisão (split) do ego, Bion não deixa de estar
próximo da colocação do autor feita em “Análise terminável e interminável” (1937a) sobre a
busca que o paciente empreende na realidade por “[...] situações que possam servir como
substituto aproximado ao perigo original, de modo a poder justificar, em relação àquelas, a
manutenção de suas modalidades habituais de reação.” (FREUD, p. 238). Essa noção de
resistência ganha um significado peculiar quando é observada na psicose e é reunida às
afirmações de Freud (1924a, 1927, 1940a e b) sobre a divisão ou cisão do ego, e o surgimento de
duas atitudes psíquicas que coexistem de maneira independente: uma que reconhece e outra que
3
A teoria de Freud (1924a e b) sobre a perda de contato com a realidade seja na neurose ou na psicose é insuficiente
quando o mais importante parece ser a qualidade da relação com a mesma, e não o fato de haver ou não haver
contato. Não chegaremos a discutir o tema, mas vale dizer que as diferenças na natureza desse contato serão
apresentadas por Bion a partir de Aprendendo da experiência (1962b) quando ele pôde discriminar um contato que é
da ordem do sensorial ou do protomental, de outro que é mental; quando ele descreveu os diferentes estádios de
pensamento e mostrou que tanto o mais complexo quanto o mais rudimentar poderiam estar sob o jugo do princípio
do prazer ou de realidade. Sem essa discriminação é mais difícil a compreensão da diferença estabelecida por Bion
em 1957 entre a personalidade psicótica e não-psicótica quanto ao uso e ao contato com a realidade, especialmente
em pacientes graves, como o esquizofrênico.
45
se aparta da realidade. A fim de termos um melhor alcance do uso que Bion faz dessas ideias de
Freud e de suas próprias contribuições, retomaremos brevemente algumas das concepções de
Freud sobre a psicose.
1.2 Teorias da psicose em Freud e seus limites e avanços em Bion
Ao longo de sua obra, Freud não pôde se decidir sobre uma teoria específica para a
psicose diferenciada do modelo neurótico. Isso é o que nos diz Thomas Ogden (1980) em um
artigo sobre a natureza do conflito na esquizofrenia, afirmando que do posicionamento ambíguo
de Freud surgiu uma corrente de psicanalistas a favor de uma teoria única, e outra que considera a
especificidade da psicose em relação à neurose.
De acordo com Ogden, percebemos que na obra de Freud é possível discriminar três
teorias sobre a psicose: a primeira foi apresentada nas suas publicações iniciais (1894, 1896) e foi
conceituada da mesma forma que a neurose; isto é, tanto na histeria, na neurose obsessiva quanto
na paranoia, Freud identifica um conflito entre grupos de ideias e afetos, expresso pela diferença
de interesse entre as instâncias psíquicas e o conflito entre desejo e defesa. A diferença entre as
psicopatologias seria determinada pelo tipo de defesa empregada e o grau de intensidade com que
ideias e afetos são repudiados; mas em todas elas a origem dos sintomas estaria no retorno de
experiências sexuais infantis que foram reprimidas. A segunda teoria, diz Ogden, é a mais
fragmentária, abrange diferentes passagens da obra, e diz respeito às dúvidas de Freud sobre a
existência de uma diferença qualitativa, mais que quantitativa, da psicose em relação à neurose. A
terceira teoria abrange artigos escritos entre 1911 e 1924, e retém aspectos da primeira teoria bem
como aspectos que marcam a especificidade da psicose em relação à neurose.
46
Não será nosso propósito discutir cada uma dessas teorias, e sim apresentar um panorama
das principais concepções de Freud sobre a psicose principalmente a partir de 1911, tendo em
vista a articulação que podemos estabelecer com certas compreensões de Bion. É preciso dizer
que, em Freud, o termo psicose não representa uma entidade psicológica única, abrangendo
configurações psíquicas diferentes e nomes como paranoia, parafrenia ou esquizofrenia, e
amência. Apresentaremos a seguir as principais teses de Freud acerca da psicose ou dessas
psicoses sem a preocupação de discriminarmos os diferentes quadros entre si, mas levando em
conta essa diversidade.
4
Nota-se que, na psicose, a relação problemática entre ego e mundo externo é grave a
ponto de haver um retraimento, se não total, bastante significativo do interesse pelos objetos e
pelo mundo da vida. A ruptura ou a fenda resultante é o que, segundo Freud (1911a), vive o
presidente Schreber como uma catástrofe de fim do mundo ao cair doente. Mas a experiência da
megalomania, também presente na psicose, ajudaria a explicar o destino desse interesse que foi
liberado dos laços afetivos mantidos até então. O engrandecimento do eu, assim como a formação
delirante, resultaria dessa retirada do investimento libidinal do mundo externo e dos objetos
significativos em direção ao ego – fenômeno descrito por Freud como “narcisismo secundário
em “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914) e em “O Ego e o Id” (1923).
Frente a uma realidade que impõem limites e perdas, há a tentativa de substituí-la, assim
como a tentativa de manter a ligação com o mundo externo. A formação delirante seria capaz de
satisfazer as pressões do id e tentar recuperar, ao seu modo, a relação com o objeto perdido. Esse
tema foi discutido por Freud no “caso Schreber” da seguinte maneira: a catástrofe interna,
projetada externamente como fim do mundo, leva o paciente a uma tentativa de construção do
4
Uma discussão sobre o termo na psicanálise e na psiquiatria pode ser encontrado no Vocabulário da psicanálise de
Laplanche e Pontalis no verbete “psicose”.
47
mesmo. “[...] o paranoico o constrói novamente [...] de modo a que possa viver nele mais uma
vez. [...] A formação delirante, que consideramos ser o produto patológico é, na verdade, uma
tentativa de recuperação, um processo de reconstrução.” (1911a, p. 70-71).
v
Além do caso Schreber, Freud discutiu o tema sobre as rupturas na e as tentativas de
manter a relação entre ego e mundo em “O inconsciente” (1915b, cap. VII), no “Suplemento
metapsicológico à teoria dos sonhos” (1917) e em “Neurose e psicose” (1924a). Neste último,
afirma:
Com referência à gênese dos delírios, um grande número de análises nos ensinou
que o delírio se encontra aplicado como um remendo no lugar em que
originalmente uma fenda apareceu na relação do ego com o mundo externo. Se
essa precondição de um conflito com o mundo externo não nos é muito mais
observável do que agora, isso se deve ao fato de que, no quadro clínico da
psicose, as manifestações do processo patogênico são frequentemente recobertas
por manifestações de uma tentativa de cura ou uma reconstrução. (FREUD,
1924a, p. 151).
vi
O investimento libidinal, direcionado agora ao ego e a uma parte das representações de
objeto no psiquismo, seria uma tentativa de recuperar uma ligação que foi rompida. Também o
mecanismo da projeção, diz Freud, “[...] traz a libido de volta para as pessoas que ela havia
abandonado”, ainda que de forma invertida como ódio e perseguição. Neste mesmo texto, Freud
faz a afirmação que ficou famosa com o trabalho de Lacan: “[...] aquilo que foi abolido
internamente retorna desde fora.” (1911a, p. 71).
vii
Embora esta dinâmica psíquica não tenha sido
aprofundada em sua obra, Freud sugere que não se trata de um afastamento da realidade a partir
da repressão de impulsos, de desejos, daquilo que causa repulsa ou incômodo e, posteriormente,
do retorno do reprimido; trata-se sim de algo que foi abolido internamente e que se mantém
presente na forma de um perseguidor externo.
48
O delírio, a projeção, assim como a alucinação e a “linguagem de órgão” – descrita por
Freud em “O inconsciente” (1915b) e da qual voltaremos a falar no capítulo dois – seriam
diferentes expressões de uma mesma tentativa de cura. Daí o equívoco apontado por Freud em
“Neurose e Psicose” de observadores que tomam essas expressões como sinal de doença, e o
equívoco inverso de se ignorar que o conflito e a fenda, encobertos pela construção delirante,
continuam a existir. Voltaremos a discutir a relação entre delírio e cura no final deste capítulo por
meio da observação de Bion de que, para certos pacientes, em certa altura de suas análises, o
delírio estaria “a serviço da intuição terapêutica”. (1958, p. 82). No capítulo quatro, discutiremos
também a ideia de Bion sobre a cisão na personalidade entre uma parte psicótica e outra não-
psicótica e o fato de uma encobrir a presença da outra em uma “justaposição negativa”. Se a
personalidade psicótica obscurece a não-psicótica, cria-se a ilusão de haver um retraimento do
ego em relação à realidade. Para Bion (1957a), o contato com a realidade continua a existir na
psicose, assim como para Freud (1924a) continua a existir um conflito com o mundo externo
mesmo que encoberto pelas tentativas de reconstrução.
Em diferentes trabalhos, Freud exemplifica os processos psicológicos da psicose por meio
da psicopatologia da esquizofrenia e da amência. Este último termo provém da psiquiatria
clássica de Meynert e Kraeplin e designa um quadro mais ou menos intenso de confusão mental,
excitação psicomotora, alucinações e rebaixamento da consciência; isto é, diminuição do grau de
clareza mental, da atenção, dificuldade de concentração, lentidão na compreensão e que se
expressa desde a obnubilação até o coma. (DALGALARRONDO, 2000). Caminhando um passo
além da descrição psiquiátrica, Freud propõe a seguinte explicação no “Suplemento...” (1917):
A amência é a reação a uma perda que a realidade afirma, mas que o ego tem de
negar [verleugnet] por achá-la insuportável. Portanto, o ego rompe sua relação
com a realidade; retira a carga de investimento do sistema de percepções, Cs. —
49
ou então, talvez, retira um investimento, cuja natureza especial pode ser objeto
de indagação ulterior. Com esse afastamento para longe da realidade, o teste da
realidade [uma função do ego] é posto de lado, as fantasias de desejo
(irreprimidas, inteiramente conscientes) são capazes de exercer pressão
avançando para dentro do sistema, sendo por ali consideradas como uma
realidade melhor. [...] A amência apresenta o interessante espetáculo de um
rompimento entre o ego e um de seus órgãos [o aparelho perceptivo]. (p. 233,
grifo do autor).
viii
Na citação, a palavra negar (em inglês deny ou disavow e em alemão verleugnet) deriva
do termo de Freud Verleugnung (HANNS, 1996, p. 308), que representa um dos mecanismos de
defesa presentes na psicose, e na perversão com o fetichismo.
5
No quadro descrito, o ego nega a
realidade de modo a recusar aquilo que ela afirma; rompe a sua relação com a mesma, retirando o
investimento sobre o aparelho de percepção. No entanto, o afastamento da realidade nunca seria
completo mesmo operando no sistema perceptivo e na consciência (sistema Cs./Pcpt.). No final
de sua obra, ao retomar a discussão realizada em “Neurose e psicose” (1924a) sobre as
perturbações nas relações entre o ego e a realidade, e sobre a ausência de percepção ou a falta de
efeito das percepções do mundo externo na psicose, Freud faz a conhecida afirmação:
O problema das psicoses seria simples e claro se o afastamento [detachment] do
ego em relação à realidade pudesse ser levado a cabo completamente. Mas isso
parece só acontecer raramente ou, talvez, nunca. Mesmo num estado tão
afastado da realidade do mundo externo como o de confusão alucinatória
[amência], aprende-se com os pacientes, após seu restabelecimento, que, na
ocasião, em algum canto da mente (como dizem) havia uma pessoa normal
escondida, a qual, como um espectador desligado, assistia passar por ele o
tumulto da doença. (1940a, p. 201-202).
ix
5
Sobre o termo Verleugnung Hanns (1996) diz: “Trata-se de um tipo específico de ‘negação’ que se aproxima de
‘desmentir’ e ‘renegar’. [...] A palavra alemã verleugnen permanece ambígua entre a verdade e a mentira. [...] O
termo quase sempre se refere a uma tentativa de negar algo afirmando ou admitindo antes”. (p. 303). Na observação
de certos transtornos é interessante ter em mente a ambiguidade dos termos desmentir e renegar, a fim de manter a
proximidade com um estado psíquico onde as duas correntes mentais estão presentes, embora uma delas não seja
admitida. Esse tema será retomado no capítulo quatro.
50
Essa afirmação não era de fato inteiramente nova, uma vez que em “A perda da realidade
na neurose e na psicose” (1924b) Freud afirmara que a realidade seria perdida em parte, qual seja,
a parte que coloca restrições e impede a satisfação dos impulsos do id. No mesmo ano, em
“Neurose e psicose” (1924a), Freud aponta o caminho para o que será retomado nos artigos
“Fetichismo” (1927) e “A divisão do ego no processo de defesa” (1940b).
Seria desejável saber em que circunstâncias e por que meios o ego consegue
emergir de tais conflitos, que certamente estão sempre presentes, sem cair
doente. Este é um novo campo de pesquisa, onde sem dúvida os mais variados
fatores surgirão para exame. Dois deles, porém, podem ser salientados
prontamente. Em primeiro lugar, o desfecho de todas as situações desse tipo
dependerá, sem dúvida, de considerações econômicas — das magnitudes
relativas das tendências que estão lutando entre si. Em segundo lugar, será
possível ao ego evitar uma ruptura em qualquer direção deformando-se,
submetendo-se a violações em sua própria unidade e até mesmo, talvez,
efetuando uma clivagem ou divisão de si mesmo. (1924a, p. 152).
x
A saída encontrada pelo ego para o conflito entre o id e o mundo externo se dá, portanto,
através de uma divisão em sua unidade. Um de seus efeitos é a recusa ou a renegação
(Verleugnung) da realidade intolerável. Enquanto uma parte do ego leva em conta o desejo, a
outra reconhece aquilo que a realidade afirma e os limites à realização dos impulsos do id.
Também na psicose, assim como na perversão e nas neuroses graves, ambas as atitudes estariam
presentes, porém sem se influenciarem mutuamente. O processo de cisão manteria isolados os
conflitos psíquicos e as forças pulsionais de modo a impedir que o reconhecimento da realidade
desencadeasse uma mudança psíquica significativa. De uma perspectiva econômica, o problema
que se coloca para o ego não está na mudança em si, ainda que suas consequências sejam
intoleráveis, e sim na incapacidade de lidar com a magnitude do conflito (dada por fatores
constitucionais ou ambientais), com o aumento de tensão psíquica, e na incapacidade de tolerar
frustração sem precisar se deformar. Trata-se, portanto, de um ego rudimentar e frágil, que
51
suporta muito pouco os problemas que, inevitavelmente, são colocados a todo o momento por
exigências internas e externas. Encontra uma saída provocando uma divisão em sua unidade e,
até mesmo, criando uma realidade “melhorada” através do delírio. As aspas significam que a
criação se dá sob o princípio do prazer, o que não quer dizer existência de sentimentos
prazerosos. Neste caso, ser melhor não implica necessariamente ser bom ou agradável.
Apesar dessas importantes teorizações, Freud não pôde considerar o grau de devastação
que o rompimento com a realidade poderia acarretar às funções do ego na psicose. Também não
pôde rever esse processo à luz da teoria da pulsão de morte e da relação com o objeto externo, a
não ser através do masoquismo. As novas compreensões trazidas com essa teoria e a noção de
destruição, oposta à tendência de Eros de unir e ligar, não foram relacionadas à ideia da ruptura
operada entre o ego e o mundo externo. No entanto, suas contribuições abriram caminho para o
desenvolvimento do conceito de cisão na psicanálise kleiniana e à compreensão do modo como
se comporta a parte do ego que, nos pacientes psicóticos, mantém contato com a realidade.
A partir de sua clínica da psicose, Bion investigou a natureza e o comportamento das
partes resultantes da cisão na esquizofrenia, o conflito entre elas, e considerou a cisão não só em
termos do ego, mas de uma personalidade dividida ou mesmo múltipla, que age de acordo com
diferentes motivações e propósitos. Em Bion (1957a), o termo personalidade ganha uma
dimensão fenomenológica importante e praticamente o status de conceito com suas descrições
sobre a formação e sobre o caráter de uma personalidade psicótica e uma não-psicótica.
Mesmo na psicose o paciente poderia se relacionar com a realidade tanto no sentido de
viabilizar seu próprio tratamento como no sentido de manter seu sistema defensivo operante.
Quanto ao primeiro sentido, é ilustrativa a aproximação feita por Winnicott (1990) entre seus
conceitos de falso e de verdadeiro selfs das concepções de Bion sobre a personalidade psicótica e
não-psicótica (por vezes identificada como neurótica). Em uma carta endereçada a Bion após a
52
leitura que este fez à Sociedade Britânica de Psicanálise do artigo “Diferenciação entre a
personalidade psicótica e a personalidade não-psicótica” em 1955, Winnicott escreve:
[...] estou muito interessado no seu desenvolvimento do tema da parte neurótica
da personalidade, a qual, por assim dizer, põe em análise a parte psicótica, um
tema que interessa a alguns dos americanos e ao qual me refiro nos termos do
self falso ocultando o self verdadeiro e por fim permitindo que o self verdadeiro
surja para análise. (1990, p. 81).
Quanto ao sentido relacionado à manutenção do sistema defensivo, o conceito de
Verleugnung, a noção de um ego dividido, a constatação acerca de conteúdos psíquicos
incomunicáveis entre si e o conceito de pulsão de morte proporcionaram compreensões
importantes na psicanálise sobre as ações no mundo externo da parte do ego que, justamente por
ter contato com a realidade, encontra formas de manter – como diz Freud – suas “modalidades
habituais de reação”.
As compreensões de Bion sobre a ação das partes psicóticas e não-psicóticas da
personalidade mostram que o contato com a realidade, em transtornos como a esquizofrenia, nem
sempre está voltado para a promoção de modificações no mundo externo submetidas ao princípio
de realidade.
6
Em “Sobre Alucinação” (1958), Bion lista os componentes envolvidos na ação do
psicótico sobre a realidade e inclui “[...] a reação da sociedade, que é por si mesma complexa, à
manifestação externa [do paciente.] [Essa reação] é composta, entre outros elementos, de reações
psicóticas típicas de um conluio inconsciente que ocorre ao se receber identificações projetivas de
um de seus membros.” (p. 84-85).
xi
6
Nesse sentido, volto ao problema colocado na nota três. Segundo Bion (1957a), enquanto a parte psicótica da
personalidade aparentemente se afasta da realidade, a parte não-psicótica mantém esse contato e emprega
mecanismos diferentes da identificação projetiva, como a repressão. No entanto, como explicar o uso da realidade,
direcionado à pulverização da dor psíquica, que seria diferente da repressão e de processos defensivos menos
patológicos? Há certamente um contato com a realidade; mas temos que nos perguntar de que realidade se trata e que
tipo de contato é esse.
53
Em Cogitações (1994a), sob o curioso título de “Necessidade de verdade, e necessidade
de manter os desajustes em reajuste”
7
, Bion discute uma das consequências da incapacidade de
se tolerar frustração:
[...] o indivíduo que está voltado para a evasão da frustração deve recrutar a
ajuda de, ou de fato dar início a instituições sociais que o auxiliem na tarefa de
negar a realidade. [...] É óbvio que um psicótico usará a instituição do
casamento, a família e o estado diferentemente daquele que modifica a
frustração. O que não é suficientemente estimado é que esse uso é intencional
[...]. O analista que se esquece desse fato e imagina que pode recrutar a ajuda da
família para produzir as condições em que o tratamento seja possível, ignora a
crença do paciente de que ele [paciente] pode recrutar a ajuda da família e dos
seus outros grupos para produzir as condições nas quais a evasão da frustração
seja possível. (1994a, p. 100, grifo do autor).
xii
Em “Diferenciação...” (1957a), Bion cita textos de Freud como “A perda da realidade na
neurose e na psicose” (1924b) para mostrar que essa perda, na psicose, deve ser considerada uma
ilusão. Há uma parte da personalidade que não só mantém o contato, como usa o mesmo a favor
do delírio e da evasão de frustração, da mesma forma que outra parte, não-psicótica, usa a
realidade a favor da modificação de frustração.
Bion reúne as concepções de Freud sobre as ações dos dois princípios do funcionamento
mental ao processo de evasão e de modificação de uma frustração, e associa estas ideias ao que
Freud compreende como modificação e como fuga da realidade. Vale dizer que não encontramos
em Freud a ideia de evasão e de modificação de uma frustração de um modo tão claro quanto a
ideia de evasão e modificação da realidade. Bion considera que a mudança e a fuga seriam feitas
não apenas em relação à realidade, como também em relação à própria frustração.
7
Na tradução para o português de Cogitations feita por Ester e Paulo Sandler, os autores propõem o seguinte título:
“Necessidade de verdade e necessidade de reajustar constantemente os desajustes”, e acrescentam a seguinte nota
explicativa: “Título original: Truth – need for and need to keep maladjustment in repair”; o título refere-se a duas
necessidades opostas: a necessidade de verdade por parte da mentalidade científica e da personalidade não-psicótica,
e a necessidade do psicótico de ‘reajustar’ continuamente seus desajustes, para que estes desajustes ‘funcionem’.”
(2000, p. 111). Em nosso estudo, não discutiremos o significado para Bion da necessidade de verdade.
54
Segundo Luiz Hanns (1996), o sentido de modificação em Freud não se aplica ao estado
de frustração em si. A palavra frustração em alemão (Versagung) significa bloqueio e
impedimento na realização de um desejo, e não um sentimento (cf. HANNS, 1996, p. 252). É
possível tolerar mais ou menos os impedimentos que a realidade impõe ao curso do desejo e,
neste sentido, a tradução de Freud feita por Hanns leva mais em conta o sentido econômico e
dinâmico dado ao fenômeno. Há, portanto, uma maior ou menor tolerância ao bloqueio ou ao
impedimento existente e não ao sentimento que acompanha o fato.
Na tradução de “Neurose e psicose” feita por Strachey e usada por Bion (1957a), lemos:
“[...] o motivo dessa dissociação em relação ao mundo externo é uma séria frustração, pela
realidade, de um desejo – uma frustração que parece intolerável.” (1924a, p. 151).
xiii
Hanns
traduz o mesmo trecho da seguinte forma: “[...] a razão para a demolição do mundo externo são
os duros impedimentos que a realidade impõe à satisfação do desejo (Wunschversagung), pois o
psicótico sente tais impedimentos como intoleráveis.” (1924c, p. 97). Vemos que há diferenças
importantes nas traduções também no que diz respeito às ações do psicótico em relação ao mundo
externo. Enquanto Strachey entende haver uma dissociação do investimento pulsional em relação
ao mundo, Hanns fala em demolição do mundo.
O termo frustração (Versagung) traduzido por Strachey do alemão para o inglês como
frustration, remete a um estado emocional mais do que o sentido de privação dado por Hanns à
palavra. Em conformidade à leitura de Strachey, mas desenvolvendo suas próprias ideias acerca
da frustração, Bion a toma como dor psíquica: “[aprendemos desde cedo que] uma ideia
equivocada leva a uma ação equivocada, a qual leva à frustração e a outras formas de
sofrimento.” (1994a, p. 99).
xiv
Além da direção interpretativa que a tradução de Strachey coloca
para o texto de Freud, é preciso lembrar que a noção de fantasia inconsciente e a concepção de
objeto interno estão na base da análise feita por Bion. Quando este se refere à evasão ou à
55
modificação de uma frustração não se trata apenas de considerar a função de um mecanismo que
proporciona fuga ou mudança, mas trata-se principalmente de ações relacionadas a um objeto
interno, a uma entidade com vida própria, que faz bem ou mal, que é total ou parcial, que é
animada ou inanimada, que determina nossa visão de mundo e nosso estado emocional.
8
Freud, em “Análise terminável e interminável” (1937a), expôs todo o seu ceticismo em
relação ao sucesso de um tratamento devido à força com que as pulsões poderiam impor-se frente
a um ego que, nos primórdios do desenvolvimento, seria frágil e incapaz de dar conta das
mesmas, ao mesmo tempo em que tem de lidar com as exigências da realidade externa. De um
modo próprio e de acordo com suas observações clínicas, Bion parece acompanhar essas
considerações de Freud sobre o tratamento, assim como a ideia colocada por Freud na mesma
época em “Construções em análise” (1937b) de que na loucura há método. Na base das ações do
psicótico há a necessidade de satisfazer tanto o impulso ao prazer como o impulso de destruição;
acrescenta também a necessidade de satisfação de impulsos voltados para a preservação do objeto
e à manutenção da vida.
Essa luta entre os instintos de vida e morte indica a operação de todos os
mecanismos complexos que são demonstrados no curso de uma análise de um
paciente psicótico; contribui poderosamente também para a necessidade do
paciente de preservar a sua psicose como um complexo de métodos de evasão da
frustração, que, por sua vez, é sentido como um método pelo qual satisfaz seus
impulsos assassinos, e pelo qual ele também pode satisfazer a sua necessidade
de preservar seus objetos. (BION, 1994a, p. 100-101).
xv
Se Freud não pôde explorar o modo com que essa evasão é levada a cabo ou explorar suas
implicações na realidade, em A interpretação dos sonhos encontramos algumas descrições
8
Não nos cabe aprofundar as contribuições trazidas à psicanálise com a obra de Melanie Klein, sobre a qual se apoia
a noção de um mundo interno personificado em e povoado de objetos. A mudança dos modelos de mente que ocorre
inclusive na obra de Freud, estendendo-se aos seus sucessores, é um tema frequentemente abordado por Donald
Meltzer em seus trabalhos (cf., por exemplo, A apreensão do belo, capítulo dois e o livro O desenvolvimento
kleiniano I).
56
metapsicológicas que têm afinidade com os processos mentais que viabilizariam essa ação. Ao
comparar a atividade de sonhar e a psicose em relação a um desejo que procura realização, Freud
afirma:
Os impulsos de desejo inconscientes claramente tentam se tornar eficazes
também durante o dia, e o fato da transferência [de cargas de investimento entre
os sistemas], assim como as psicoses, mostram-nos que eles se empenham em
forçar caminho em direção à consciência por meio do sistema pré-consciente e
obter controle do poder de movimento. (1900, p. 567, grifo nosso).
xvi
Ampliações teóricas feitas por Meltzer (1992b) a partir da obra de Bion mostram como o
controle do paciente sobre a fala e a ação pode ocorrer de um modo bastante pernicioso; não se
trata apenas da descarga de impulsos via ação motora e verbal, mas do subjugo de cada uma das
funções do ego pelo sistema delirante e de ações condizentes com o mesmo.
Porém, é preciso notar que Bion também comenta sobre a necessidade de o paciente
preservar os objetos que lhe são significativos, sendo este um dos elementos que viabilizariam o
trabalho do analista. Outro elemento pode ser identificado na constatação de Freud feita em
“Esboço de psicanálise” (1940a), mas não empregado pelo autor na teoria da técnica da psicose, e
diz respeito à existência de uma pessoa normal que é capaz de reconhecer a insanidade – ideia,
esta, bastante cara a Bion.
Segundo Rosenfeld (1969), essa constatação foi adotada por Freud de seu colega Paul
Federn, que reconhecia a transferência nos pacientes psicóticos e para quem o tratamento também
seria possível porque uma parte do ego pode notar o estado anormal; porque há uma parte da
personalidade que reconhece a realidade (FEDERN, 1943). Seguindo por essa mesma trilha, Bion
cita no artigo “A linguagem e o esquizofrênico” (1955) o trabalho de Maurits Katan (1954) sobre
a importância da parte não-psicótica da personalidade na análise de pacientes esquizofrênicos. É
57
a ela que a interpretação se dirige; é com a parte relativamente sã do paciente que o analista se
comunica. Com a vantagem de ter o conceito de identificação projetiva à mão, Bion avança um
passo em relação a esses autores no tratamento da psicose ao mostrar que a ausência de partes do
ego ou da personalidade era aparente e encontrava-se na personalidade não-psicótica ou projetada
no analista. Bion não parece estar tão distante assim da noção de Freud (1911a) mencionada
acima acerca da projeção e do delírio como tentativas de se recuperar a relação com o objeto.
Dentro da temática sobre os usos da e contato com a realidade, também no sentido da
preservação do objeto (seja ele interno ou externo), há um ponto fundamental que será
desenvolvido por Bion no final dos anos 50, mais especificamente a partir do esclarecimento
sobre o aspecto comunicativo da identificação projetiva e, nos anos 60, com as noções de
continente e de contido. Em relação ao analista, palavras como tolerar e acatar pressões
emocionais do paciente e das pessoas à volta do mesmo no sentido da evasão da frustração,
usadas por nós no início desse capítulo, ganharão um sentido clínico tanto mais importante
quanto maior for o interesse de Bion em discutir a ação do paciente sobre a mente do analista e
em elucidar as funções da personalidade necessárias no trabalho com a psicose. O paciente
encontra não só maneiras de se livrar de conteúdos indesejáveis e de aspectos que devem ser
protegidos, como busca objetos nos quais depositar esses conteúdos e satisfazer impulsos
voltados tanto para a vida e para a construção, quanto para a morte e a destruição.
1.3 Algumas implicações das concepções de Bion sobre a psicose para a teoria da técnica
Nos artigos de Bion dos anos 50, o autor está interessado em chamar a atenção para os
efeitos da identificação projetiva sobre o psiquismo do paciente, reconhecê-los no analista, e
58
identificar a motivação e os objetivos do emprego de tal mecanismo. O estado de
enlouquecimento experimentado por certos pacientes, principalmente quando a posição
depressiva e o maior contato com a realidade se anunciam, significaria também a projeção de
partes sãs ou, como diz Bion (1956, 1957a), de uma personalidade não-psicótica que deveria ser
levada em consideração pelo analista. Considerar a sanidade do psicótico não significa o mesmo
que assegurá-lo, evitando a explicitação da gravidade de seu estado, e sim reconhecer que ela
existe para o paciente, ainda que de forma excindida, e reconhecer a si mesmo, analista, como o
depositário de tal projeção. Bion diz,
[...] o analista deve sempre insistir, pela forma como conduz o caso, que ele se
endereça a uma pessoa sã e está autorizado a esperar alguma recepção sã. [...]
pacientes usarão o mecanismo da identificação projetiva para se livrarem de sua
“sanidade”. Se, pela sua conduta, o analista parece ignorar essa possibilidade,
abre-se o caminho para uma regressão maciça [...]. (1955, p. 225).
xvii
Ainda que a referência de Bion ao papel do analista seja breve, não podemos deixar de
notar a sua importância. Nesta época, Winnicott (1992) já havia escrito uma série de trabalhos
sobre o papel do ambiente no desenvolvimento emocional primitivo, e sugeria que suas falhas
estariam na origem de transtornos psicopatológicos como a esquizofrenia. Apesar das diferenças
conceituais entre os autores, pensamos que a regressão de que Bion fala seria uma reação
patológica a uma falha ambiental, tal como postulado por Winnicott (1954). Este último
discriminou uma regressão à dependência que seria “benigna” e necessária, de uma regressão em
que não há esperança de retomada do desenvolvimento emocional em direção à posição
depressiva. Mais adiante, falaremos de esperança do ponto de vista do paciente e do próprio
analista que trata a psicose.
59
Quanto ao significado para Bion da falha do ambiente, o tema será abordado amplamente
pelo autor apenas nos anos 60 em seus trabalhos sobre a Teoria do Pensar.
9
Porém, emSobre
arrogância” (1957b), na discussão do caso clínico apresentado, Bion mostra o papel
desempenhado pelo objeto primordial em obstruir o interesse do paciente por sua vida psíquica.
A regressão do paciente na análise seria, nesses casos, um acting out inevitável e resultante do
próprio processo analítico, uma vez que este é um procedimento investigativo que se apoia na
curiosidade, contra a qual o paciente se volta.
Quanto à afirmação de Bion relativa à sanidade, reproduzida na citação acima, podemos
ouvir ecos da orientação dada por Freud em “Análise terminável e interminável” (1937a) sobre a
importância de o analista aliar-se ao ego normal do paciente, muito embora Freud não tenha
recuperado essa orientação no trabalho com os efeitos da cisão sobre o ego, e embora se trate, em
Bion, de um ego cujas porções mais ou menos sãs estão projetadas. A novidade de sua colocação
está em mostrar que a projeção direciona-se ao analista e o habita. O contato com o mundo
externo, que nesses pacientes parece inexistir, deve ser procurado no analista. Em artigos como
“Sobre arrogância” (1957b) Bion começará a mostrar mais diretamente o modo como o analista
pode lidar com essas projeções e com os efeitos sobre seu próprio estado emocional.
A natureza do funcionamento mental psicótico, do psiquismo originário e da comunicação
estabelecida com o analista enquanto objeto primordial é o mote dos artigos de Bion nesses anos.
Através da qualidade da comunicação verbal e não-verbal, feita pelo paciente via identificação
projetiva, Bion investiga o estado do ego e de suas funções em presença das pulsões de vida e
9
Vale dizer que em Aprendendo da experiência (1962b), encontramos um Bion mais amadurecido em relação às
suas compreensões sobre o funcionamento mental psicótico e às interpretações que, a partir delas, pôde oferecer. O
autor revela que essas interpretações não necessariamente ajudavam o paciente a superar suas dificuldades – o que
não significava falha das teorias existentes, falhas do analista em interpretar a destrutividade e a transferência
negativa, ou mesmo que a explicação estaria nas resistências ou no fator constitucional do paciente. Tudo isso era
pertinente, mas não ajudava o analista a compreender por que o paciente não podia fazer uso das interpretações, e
nem o paciente compreender a natureza de seu problema.
60
morte; discorre sobre a forma como esses pacientes lidam com a dor relacionada à tomada de
consciência da realidade, seja ela interna ou externa, com a presença dos processos secundários e
a conquista e o uso do pensamento verbal.
Ao longo dos artigos, o interesse de Bion vai progressivamente se intensificando no
sentido de abarcar processos psíquicos cada vez mais primitivos tanto na forma quanto no
tempo
10
. As investigações sobre as dificuldades no uso da linguagem e do pensamento verbal na
esquizofrenia levam-no não só a descrever o estado precário dos recursos do ego, como a mostrar
formas arcaicas de pensamento e de comunicação. O estabelecimento de relações entre as
impressões do objeto no inconsciente – processo descrito por Freud em trabalhos como
“Formulações...” (1911b) e “O Ego e o Id” (1923) – estaria, para Bion (1957a), na base da
formação do pensamento verbal. A ligação entre memórias olfativas, táteis e visuais do objeto
primordial formaria um núcleo de fantasia e de pensamento primitivo que já proporcionaria
algum grau de consciência (awareness) da realidade psíquica.
Minhas experiências me levaram a supor que um tipo de pensamento
relacionado ao que deveríamos chamar de ideograma e à visão, ao invés de às
palavras e à escuta, existe desde o começo. Esse pensamento depende de uma
capacidade para a introjeção e a projeção balanceada de objetos, e com tanto
mais razão, da consciência dos mesmos. (BION, 1957a, p. 49).
xviii
Enfatizamos a ideia de consciência como awareness, não apenas porque esta palavra é
frequentemente usada por Bion em relação ao conhecimento de processos psíquicos
inconscientes. Ainda que Bion também faça uso da palavra consciousness ao se referir ao
10
As palavras “primitivo” ou “arcaico” – geralmente empregadas nas traduções para o português a partir do inglês
early – remetem-se a uma noção temporal linear. Nessa época, Bion seguia a concepção kleiniana sobre o
desenvolvimento mental, ainda que o conceito de posição diferisse daquela sobre estágios de desenvolvimento
psicossexual. Nesse sentido, a posição esquizo-paranoide seria anterior à depressiva. Mais tarde, em Aprendendo da
experiência (1962b) e Elementos de psicanálise (1963), Bion considera que essas posições estariam em contínuo
interjogo; o interesse não é pelo que seria mais ou menos originário e sim pelos estados do pensamento.
61
pensamento pré-verbal e à consciência da realidade psíquica, a palavra pode erroneamente dar a
entender que estariam em operação processos mentais superiores. Uma passagem do texto de
Freud “Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos” (1917) parece ter afinidade com a
questão:
[...] o fato de uma coisa se tornar consciente ainda não coincide de todo com seu
pertencimento a um sistema, pois aprendemos que é possível estarmos cônscios
(aware) de imagens sensoriais mnêmicas às quais não podemos de forma
alguma admitir uma localização psíquica nos sistemas Cs. ou Pcpt. (p. 232).
xix
Para os kleinianos, esse awareness de que Freud fala existiria nas camadas mais arcaicas
da mente como uma fantasia inconsciente de objetos e de processos mentais. Segundo Bion
(1957a), a ligação dessas imagens sensoriais mnêmicas entre si formará o pensamento pré-verbal
e fará parte de uma tentativa inicial de contato com a realidade. Na psicose, a consciência ligada
ao pensamento pré-verbal, formado a partir de impressões sensíveis do objeto que compõem
essas fantasias, seria alvo de ataque e destruição. Os relatos de caso apresentados por Bion
revelam de maneira muito clara o quão radical poderia ser o impedimento do paciente na
investigação da realidade e na busca de uma solução mais realística para as suas questões. Os
pacientes sentiam que não tinham os meios e as condições mais básicas para tal, como
pensamentos, linguagem verbal, sonhos e fantasias; indicavam também que a conquista de tais
recursos era tão ou mais problemática quanto a sua ausência.
A partir de textos de Freud como “Formulações...”, Bion (1955, 1957a) relacionou o
desenvolvimento das funções do ego sob o princípio de realidade à posição depressiva e ao
pensamento verbal, e mostrou como na psicose esse desenvolvimento estaria prejudicado. As
dificuldades do psicótico com a linguagem indicariam a dificuldade de se tolerar a posição
62
depressiva, sentimentos de ambivalência e, consequentemente, a conscientização da perda, da
separação e destruição dos objetos amados.
Uma vez que o pensamento verbal depende da habilidade para integrar, não é
surpresa descobrir que a sua emergência está intimamente associada com a
posição depressiva, que é, tal como Klein indicou, uma fase ativa de síntese e de
integração. [...] O paciente sente que a associação entre posição depressiva e
pensamento verbal é de causa e efeito [...], e isso acrescenta mais uma às muitas
causas de seu ódio, já bastante em evidência, à análise, que é, afinal de contas,
um tratamento que emprega o pensamento verbal na solução de problemas
mentais. (BION, 1955, p. 228).
xx
As questões relacionadas à formação de símbolos e o desenvolvimento do ego na posição
depressiva foram temas bastante explorados por Klein e seus colaboradores, com destaque ao
trabalho de Hanna Segal (1957) e ao seu já consagrado conceito de equação simbólica. Este
conceito procurou dar conta de símbolos que não funcionariam como símbolos propriamente
ditos – característicos da posição depressiva, na qual a ausência do objeto perdido não é negada
ou aniquilada – e ajudaria a explicar a relação concreta do paciente com sua mente e com o
mundo. Bion acompanhou de perto esses desenvolvimentos conceituais e suas consequências
para a técnica, relacionando-os à formação de pensamentos já na posição esquizo-paranoide. É
nela que o pensamento pré-verbal, base para a futura capacidade de simbolização verbal começa
a ser estabelecido; é também este mesmo pensamento que, na psicose, é alvo de ataque e de
destruição quando a posição depressiva se anuncia. Retomando as ideias apresentadas em
trabalhos anteriores, em “Diferenciação...” Bion afirma:
Em meu artigo de 1953 [1954] disse que o pensamento verbal está vinculado à
consciência [awareness] da realidade psíquica; acredito que isso também seja
verdadeiro em relação ao pensamento pré-verbal primitivo. Em vista do que já
havia dito sobre o ataque do psicótico a todo o aparelho mental que leva à
consciência [consciousness] da realidade externa e interna, é esperado que o
emprego da identificação projetiva seja particularmente severo contra o
63
pensamento, de tipo qualquer, que estivesse voltado às relações entre as
impressões do objeto [...]. (1957a, p. 49-50).
xxi
Na esquizofrenia, a prevalência da pulsão de morte e da posição esquizo-paranoide sobre
a posição depressiva determinaria a cisão de palavras, do ego e de tudo aquilo que pudesse
proporcionar a ligação entre representações e afetos, e ganho de consciência. Além do
pensamento pré-verbal, há destruição da consciência, da personalidade e de todo o aparelho de
percepção descrito por Freud (1911b) com o surgimento do princípio de realidade. A tentativa de
reunir os fragmentos e, portanto, de pensar, é vivida por esses pacientes como uma operação
altamente perigosa e ameaçadora. Desse modo, não são apenas o pensamento, a linguagem
verbal, as fantasias ou os sonhos que estão em risco neste processo; é a própria capacidade de
pensar, fantasiar, sonhar. Isto é, de saída, estaria obstruída a capacidade de ligar impressões
sensíveis (táteis, olfativas ou visuais) e estados afetivos em uma totalidade significativa. Essas
teorizações ajudariam a explicar a impossibilidade de paciente e analista tomarem o material
analítico como objeto de pensamento e de interpretação. O artigo mais tardio “Ataques à ligação”
(1959) trata justamente dessa ação destrutiva sobre as ligações intrapsíquicas, mas tamm
intersubjetivas expressas através da comunicação pré-verbal que vinha sendo observada por Bion
em sua clínica da psicose.
Se artigos como “Ataques...” exploram as ruínas da atividade psíquica, discorrem sobre os
problemas ligados à relação primitiva de objeto, mapeiam a gênese dos transtornos do
pensamento e mostram a destruição do par criativo e fértil, o artigo “O gêmeo imaginário” de
1950, que abre o “período psicótico” – conforme o termo de Bléandonu – procura mostrar a
forma como a maior conscientização da realidade é alcançada. No artigo, o enfoque é dado aos
processos intrapsíquicos e será apenas no final dos anos 50 que Bion começará a reconhecer as
qualidades da mente do analista que contribuem para essa conscientização. Nessa época, nos
64
artigos “Diferenciação...” (1957a) e “Sobre alucinação” (1958), Bion também mostra de que
forma a personalidade psicótica procura restaurar o ego, trazer de volta os fragmentos que foram
projetados e lidar com a emergência das ansiedades edipianas. Em certo sentido, Bion parte do
entusiasmo da conquista para explorar quais seriam as bases da derrota, sempre indicando,
contudo, os processos envolvidos na construção e reconstrução dos alicerces da vida mental.
Mencionamos o termo construção não porque pretendemos discutir as diferenças técnicas
do trabalho com a neurose e a psicose, isto é, do trabalho com o reprimido e com o que foi
cindido e que está projetado. Também não pretendemos determinar se de fato é possível
reconstruir conteúdos inconscientes, nem discriminar se se trata de elementos que estão
inacessíveis à lembrança ou então de algo que está fadado a uma repetição compulsiva. Nossa
intenção é remeter o leitor ao texto de Freud de 1937 com base em uma breve referência de Bion
à comparação entre a psicanálise e a arqueologia. Ao discorrer sobre o estado mental de um de
seus pacientes, Bion diz:
[...] o espetáculo que se apresenta, tomando emprestada a analogia de Freud, é
similar ao encontrado pelo arqueólogo que descobre em seu campo de trabalho
evidências não tanto de uma civilização primitiva, mas de uma catástrofe
primitiva. Em termos analíticos, que haja esperança de que as investigações que
estão sendo feitas resultem na reconstrução do ego. (1957b, p.88, grifo nosso).
xxii
O estado do ego de certos pacientes seria comparável às ruínas de uma catástrofe há muito
ocorrida, e não a uma civilização que até certo ponto permaneceu intacta e é reencontrada
preservada pelo arqueólogo. Da mesma forma que no “caso Schreber” Freud (1911a) fala da
projeção de uma catástrofe interna, Bion chama a atenção para as características de uma mente
que está destruída; nos seus próprios termos, ao estado fragmentado de tudo aquilo que
promoveria conscientização da e contato com a realidade, principalmente a realidade da situação
65
edípica. Essas ideias estão apoiadas nas concepções de Melanie Klein sobre Schreber, discutidas
no apêndice de “Notas sobre alguns mecanismos esquizoides” (KLEIN, 1946).
A ideia de Melanie Klein é a de que a catástrofe não é resultado apenas do retraimento da
libido objetal, mas, concordando com Freud (1911a), de mudanças anormais no ego. Suas
investigações clínicas levaram-na a afirmar que essas mudanças anormais seriam fruto dos
impulsos de destruição voltados para o ego e fruto da fragmentação dos objetos internos. Bion
parte dessas concepções também com o objetivo de mostrar as consequências dos ataques para o
andamento do próprio processo de análise. O aniquilamento de funções como, a atenção, a
consciência, a capacidade de julgamento, de pensamento e de memória seria um processo vivo e
ativo na relação com o analista; ocorreria sobre a ligação emocional com este e tornaria inviável a
investigação analítica.
Durante a análise, diz Bion, “[...] o paciente está sofrendo as consequências de seus
ataques primitivos no estado de mente que forma a ligação entre o par criativo [...].” (BION,
1959, p. 101).
xxiii
Esse estado de mente é atualizado na transferência e impede a ligação (link),
como diz Freud (1937a), entre o papel do analista e o papel do paciente no processo de
construção em análise.
11
É contra a ligação fértil e procriadora que, segundo Bion, o ataque
também se direciona. Impede-se, assim, a emergência de ansiedades de castração e a experiência
de sentimentos como o amor, a inveja, a dependência, ansiedades de separação, bem como o
reconhecimento do impulso de destruição. No próximo capítulo, veremos em maiores detalhes
como este autor pensa o ego na psicose e os problemas na comunicação com o analista através da
11
Referimo-nos ao seguinte trecho do trabalho de Freud: “O analista não teve a experiência ou reprimiu nenhum
material em consideração; sua tarefa não pode a ser a de recordar nada. Qual é, então, sua tarefa? Sua tarefa é a de
completar o que foi esquecido a partir dos traços deixados para trás ou, mais corretamente, construí-lo. A ocasião e o
modo como transmite suas construções à pessoa que está sendo analisada, bem como as explicações com que as faz
acompanhar, constituem a ligação entre as duas partes do trabalho de análise, entre o seu próprio papel e o do
paciente.” (1937a, p. 258-259, grifos do autor).
66
linguagem verbal e através da intolerância do paciente a tudo aquilo que promove consciência da
vida mental.
Para terminar, parece que é à catástrofe descrita por Freud a partir de pacientes como
Schreber que Bion se reporta e oferece suas próprias contribuições – essa afinidade parece ser tão
evidente que Meltzer (1998, p. 43) estranha a falta de menção de Bion a este caso. A menção
pode não existir, mas o trabalho de Freud (1911a) certamente não deixa de estar presente em suas
reflexões, mesmo que apareça de maneira indireta através das ideias de Klein sobre o caso,
apresentadas em 1946, e também em um dos últimos trabalhos de Freud, “Construções em
análise” (1937b), citado por Bion em mais de um artigo. Em “Ataques à ligação” (1959), Bion
retoma a analogia entre a psicanálise e a arqueologia estabelecida por Freud neste mesmo
trabalho, e coloca o seu próprio modo de compreender os limites dessa analogia. Em
“Construções...”, lemos:
Seu trabalho de construção, ou, se se preferir, de reconstrução, assemelha-se
muito à escavação, feita por um arqueólogo, de alguma morada que foi destruída
e soterrada, ou de algum antigo edifício. Os dois processos são de fato idênticos,
exceto pelo fato de que o analista trabalha sob melhores condições e tem mais
material à sua disposição para ajudá-lo, já que aquilo com que está lidando não é
algo destruído, mas algo que ainda está vivo [...]. [...] assim como o arqueólogo
ergue as paredes do prédio a partir dos alicerces que permaneceram de pé,
determina o número e a posição das colunas pelas depressões no chão e
reconstrói as decorações e as pinturas murais a partir dos restos encontrados nos
escombros, assim também o analista procede quando extrai suas inferências a
partir dos fragmentos de memórias, das associações e do comportamento do
sujeito da análise. (1937b, p. 259).
xxiv
Vejamos a maneira de Bion pensar essa colocação:
O valor da analogia é reduzido, pois, na análise, nos defrontamos não tanto com
uma situação estática que permite um estudo confortável, mas com uma
catástrofe que permanece ao mesmo tempo ativamente viva e incapaz de
resolução à quietude. (1959, p. 101).
xxv
67
Assim como para Freud, Bion considera que a analogia entre arqueologia e psicanálise é
limitada pelo fato de o analista lidar com aquilo que está vivo. Porém, se para Freud os
fragmentos de memória, as associações e o comportamento do paciente seriam a matéria viva que
o analista teria à mão para fazer as construções, Bion entende que aquilo que está vivo é a própria
catástrofe. Para o autor, as evidências que o analista descobre são aquelas de uma catástrofe sobre
o ego, que, inclusive, impede o curso do processo de análise. Ou seja, se a análise é um processo
de investigação que depende de funções como a atenção, a memória, a consciência, a percepção,
e se esses recursos estão cindidos e aniquilados, é a própria investigação analítica que fica
inviabilizada. A esperança de que Bion fala em “Sobre arrogância” (1957b) é a de que a
realização dessas investigações resulte na reconstrução do ego e no interesse pela investigação de
si mesmo.
Se para Freud, no “caso Schreber”, a construção de um sistema delirante seria a tentativa
do paciente de retomar a relação entre o ego e a realidade a partir de uma catástrofe, para Bion, a
presença da catástrofe parece tornar incerta qualquer reconstrução. Porém, Bion também
considera que, em algumas situações, o delírio seria uma tentativa de promover o trabalho
analítico. No artigo “Sobre Alucinação” (1958), afirma:
Em seu artigo sobre Construções em análise (1937), Freud sugere que o delírio
seria ‘equivalente às construções que erguemos no curso de um tratamento
analítico – tentativas de explicação e cura. ... ’, embora aponte que, sob as
condições de uma psicose, elas estejam fadadas a serem ineficazes. Pareceu-me
que, durante esse período da análise, os delírios do paciente tinham esse aspecto,
e que alguns de seus delírios eram tentativas de empregar objetos bizarros a
serviço da intuição terapêutica.” (p. 81-82).
xxvi
68
Embora não especifique, a esperança a que Bion se refere no artigo de 1957b parece se
aplicar tanto ao paciente como ao analista. Em “O gêmeo Imaginário” (1950), Bion utilizou o
termo esperança (hope) ao narrar as mudanças psíquicas que ocorreram ao longo da análise de
seu paciente. No capítulo três, veremos que a esperança surgiu quando este paciente pôde
reconhecer os mecanismos que utilizava para se livrar da realidade, quando pôde testar a eficácia
dos mecanismos envolvidos no teste de realidade e, também, quando pôde reconhecer o uso da
cisão e da personificação como forma de comunicar o seu estado mental.
12
Consideramos que a noção de esperança tem menos a ver com uma emoção do que com
um estado psicológico complexo associado à posição depressiva, à confiança na permanência dos
objetos bons como tais, à capacidade de se investigar e testar a realidade com base no princípio
de realidade, ainda que de maneira incipiente.
13
Porém, as considerações mais tardias de Bion sobre os ataques às ligações intra e
interpsíquicas levantam a seguinte questão: uma catástrofe que está viva não tornaria ineficazes
as construções? Não estariam elas também em processo de destruição? A presença viva da
catástrofe inviabilizaria a progressão da análise no sentido do interesse, da investigação, da
curiosidade e do desejo do paciente de conhecer a si mesmo e a realidade enquanto tal. A
confiança de Freud de que o analista trabalharia em melhores condições que o arqueólogo,
mesmo lidando com fragmentos e objetos destruídos, parece dar lugar, em Bion, à esperança de
12
O tema da esperança associado à emergência da posição depressiva também foi discutido e aprofundado por
Melanie Klein alguns anos depois em “Inveja e gratidão” (1957), e nele podemos reconhecer a afinidade com as
concepções de Bion de 1950. “Quando o bebê alcança a posição depressiva e torna-se mais capaz de enfrentar a sua
realidade psíquica, sente também que a maldade do objeto é devida em grande parte à sua própria agressividade e à
projeção decorrente. Esse insight [...] dá origem a uma grande dor psíquica e culpa [...]. Entretanto o insight também
acarreta sensações de alívio e esperança [...]. Essa esperança baseia-se no crescente conhecimento inconsciente de
que o objeto, interno e externo, não é tão mau quanto parecia ser em seus aspectos excindidos.” (KLEIN, 1957, p.
228).
13
Figueiredo (2003b) discutiu o tema em “O paciente sem esperança e a recusa da utopia” a partir da clínica
borderline. Sua proposta de considerar a esperança como um princípio é de grande valia para a compreensão da
natureza dessa noção também no pensamento de Bion.
69
uma reconstrução provável e incerta, uma vez que, na psicose, nem mesmo o trabalho preliminar
de construção está garantido. Como diz Bion, a catástrofe está presente, ativa, e é incapaz de ser
resolvida no sentido da quietude entre o jogo de forças de Eros (união) e Tânatos (destruição).
O ataque às ligações e o impedimento na articulação do aparelho psíquico no sentido do
trabalho de elaboração significam que também o analista deve saber lidar com a presença viva de
ruínas que estão em constante estado de desmoronamento e de reconstrução. Como diz Bion, que
haja esperança de reconstrução a partir de uma destruição que é inevitável.
Nos próximos capítulos, à medida que prosseguirmos com nossa intenção de evidenciar
diferentes presenças de Freud nos textos de Bion, continuaremos também a apresentar e a discutir
as concepções dos autores sobre a psicose e sobre o psiquismo primitivo.
NOTAS DE FIM
i
For the most part the discussion centers on the rudimentary stages of what, for want of a better term, I have called
verbal thought. But, before that stage is reached in analysis, much work has to be done, and it is in the course of this
work that I make interpretations that most analysts will criticize as exceptions to sound analytic procedure, and
therefore matter for scrutiny. (BION, 1955, p. 223-224).
ii
The objection that I project my conflicts and phantasies on to the patient cannot and should not be easily dismissed.
The defence must lie in the hard facts of the analytic situation, namely that in the present state of psycho-analytic
knowledge the analyst cannot rely on a body of well-authenticated knowledge. […] I think there are signs that as
experience accumulates it may be possible to detect and present facts which exist, but at present elude clinical
acumen; they become observable, at second hand, through the pressure they exert to produce what I am aware of as
counter-transference. (BION, 1955, p. 224-225).
iii
He used to look again and again at the things he did not understand, to deepen his impression of them day by day,
till suddenly an understanding of them dawned on him. (FREUD, 1893/1962, p. 12).
iv
I attempted to draw attention to the fact that even while there was an opportunity for analysis, He could make no
use of it. He defends by taking this as an accusation in which he is to blame and thus denies the existence of a very
bad obstructive object. The rational comes in, therefore, not as the product of an elucidation, but as a defence against
the elucidation. If I put to him that his mother is a very dangerous object denying him food, then I am giving him
material to defend himself against the commonsense view, and am myself felt to be disturbed to an extent which
makes me unable to see the common-sense view. There is something curious about this kind of defence which is
70
analogous to an interpretation in which the elements are so ordered that the narcissism of the patient is spared.
(BION, 1994a, p. 29).
v
[…] the paranoic builds it again […] so that he can once more live in it. The delusional formation, which we take to
be the pathological product, is in reality an attempt at recovery, a process of reconstruction. (FREUD, 1911a/1958,
p. 70-71).
vi
In regard to the genesis of delusions, a fair number of analysis have taught us that the delusion is found applied like
a patch over the place where originally a rent had appeared in the ego’s relation to the external world. If this
precondition of a conflict with the external world is not much more noticeable to us tan it now is, that is because, in
the clinical picture of the psychosis, the manifestations of the pathogenic process are often overlaid by manifestations
of an attempt at a cure or a reconstruction. (FREUD, 1924a/1975, p. 151).
vii
[…] that what was abolished internally returns from without. (FREUD, 1911a/1958, p. 71).
viii
Amentia is the reaction to a loss which reality affirms, but which the ego has to deny, since it finds it
insupportable. Thereupon the ego breaks off its relation o reality; it withdraws the cathexis from the system of
perceptions, Cs. – or rather, perhaps, it withdraws a cathexis, the special nature of which may be the subject of
further enquiry. With this turning away from reality, reality-testing is got rid of, the (unrepressed, completely
conscious) wishful phantasies are able to press forward into the system, and they are there regarded as a better
reality. […] Amentia presents the interesting spectacle of a breach between the ego and one of its organs […].
(FREUD, 1917/1957, p. 233).
ix
The problem of psychoses would be simple and perspicuous if the ego’s detachment from reality could be carried
through completely. But that seems to happen only rarely or perhaps never. Even in a state so far removed from the
reality of the external world as one of hallucinatory confusion, one learn from patients after their recovery that at the
time in some corner of their mind (as they put it) there was a normal person hidden, who, like a detached spectator,
watched the hubbub of illness go past him. (FREUD, 1940a/1964, p. 201-202).
x
One would like to know in what circumstances and by what means the ego can succeed in emerging from such
conflicts, which are certainly always present, without falling ill. This is a new field of research, in which no doubt
the most varied factors will come up for examination. Two of them, however, can be stressed at once. In the first
place, the outcome of all such situations will undoubtedly depend on economic considerations – on the relative
magnitudes of the trends which are struggling with one another. In the second place, it will be possible for the ego to
avoid a rupture in any direction by deforming itself, by submitting to encroachments on its own unity and even
perhaps by effecting a cleavage or division of itself. (FREUD, 1924a/1975, p. 152).
xi
[…] in extreme cases, a reaction of society to the external manifestation, which is itself complex and compounded,
amongst other elements, of psychotic reactions typical of unconscious collusion in receiving the projective
identifications of one of its members. (BION, 1958/1993, p. 84-85).
xii
[...] the individual oriented to frustration evasion has to enlist the aid of, or actually initiate, social institutions to
help in the task of denial of reality. […] It is obvious that psychotic will use the institution of marriage, the family
and the state differently from the frustration-modifier. What is not sufficiently appreciated is that it is purposive. […]
The analyst who is oblivious of this fact and imagines that he can enlist the aid of the family to produce the
conditions in which treatment is possible, is ignoring the patient’s belief that he can enlist the aid of the family and
his other groups to produce the conditions in which evasion frustration is possible. (BION, 1994a, p. 100, grifo do
autor).
xiii
[...] the motive of this dissociation from the external world is some very serious frustration by reality of a wish – a
frustration which seems intolerable. (FREUD, 1924a/1975, p. 151).
xiv
[...] a mistaken idea leads to mistaken action, which leads to frustration and other forms of suffering. (BION,
1994a, p. 99).
71
xv
This struggle between life and death instincts informs the operation of all the complex mechanisms that are
demonstrated in the course of an analysis of a psychotic patient. It also contributes powerfully to the patient’s need to
preserve his psychosis as a complex of methods of frustration evasion, which in turn is felt to be a method by which
his murderous impulses are satisfied, and by which he can also satisfy his need to preserve his objects. (BION,
1994a, p. 100-101).
xvi
The unconscious wishful impulses clearly try to make themselves effective in daytime as well, and the fact of
transference, as well as the psychoses, show us that they endeavour to force their way by way of the preconscious
system into consciousness and to obtain control of the power of movement. (FREUD, 1900/1958, p. 567).
xvii
[...] the analyst should always insist, by the way in which he conducts the case, that he is addressing himself to a
sane person and is entitled to expect some sane reception. […] patients will use the mechanism of projective
identification to rid themselves of their “sanity”. If the analyst appears by his conduct to condone the feasibility of
this, the way is open to massive regression […]. (BION, 1955, p. 225).
xviii
My experiences have led me to suppose that some kind of thought, related to what we should call ideographs and
sight rather than to words and hearing, exists at the outset. This thought depends on a capacity for balanced
introjection and projection of objects and, a fortiori, on awareness of them. (BION, 1957a/1993, p. 49).
xix
[...] the fact of a thing’s becoming conscious still does not wholly coincides with its belonging to a system, for we
have learnt that it is possible to be aware of sensory mnemic images to which me cannot possibly allow a psychical
location in the system Cs. or Pcpt. (FREUD, 1917/1957, p. 232).
xx
Since verbal thought depends on the ability to integrate, it is not surprising to find that its emergence is intimately
associated with the depressive position which, as Melanie Klein has pointed out, is a phase of active synthesis and
integration. […] The patient feels that the association between the depressive position and verbal thought is one of
cause and effect […] and this adds one more to the many causes of his hatred, already well in evidence, of analysis,
which is after all a treatment which employs verbal thought in the solution of mental problems. (BION, 1955, p.228).
xxi
In my 1953 paper I said that verbal thought is bound up with awareness of psychic reality; this I also believe to be
true of the early pre-verbal thought of which I am now speaking. In view of what I have already said of the
psychotic’s attacks on all that mental apparatus that leads to consciousness of external and internal reality, it is to be
expected that the deployment of projective identification would be particularly severe against the thought, of
whatsoever kind, that turned to the relations between object-impressions […]. (BION, 1957a/1993, p. 49-50).
xxii
[...] the spectacle presented is one, to borrow Freud’s analogy, similar to that of the archeologist who discovers in
his field-work the evidences, not so much of a primitive civilization, as of a primitive catastrophe. In analytic terms
that hope must be that the investigations which are being carried out will issue in the reconstitution of the ego.
(BION, 1957b/1993, p. 88).
xxiii
[...] the patient is suffering the consequences of his early attacks on the state of mind that forms the link between
the creative pair […]. (BION, 1959/1993, p. 101).
xxiv
His work of construction, or, if it is preferred, of reconstruction, resembles to a great extent an archaeologist’s
excavation of some dwelling-place that has been destroyed and buried or of some ancient edifice. The two processes
are in fact identical, except that the analyst works under better conditions and has more material at his command to
assist him, since what he is dealing with is not something destroyed but something that is still alive. […] But just as
the archaeologist builds up the walls of the building from the foundations that have remained standing, determines
the number and position of the columns from depressions in the floor and reconstructs the mural decorations and
paintings from the remains found in the debris, so does the analyst proceed when he draws his inferences from the
fragments of memories, from the associations and from the behavior of the subject of the analysis. (FREUD,
1937b/1964, p. 259).
72
xxv
The value of the analogy is lessened because in the analysis we are confronted not so much with a static situation
that permits leisurely study, but with a catastrophe that remains at one and the same moment actively vital and yet
incapable of resolution into quiescence. (BION, 1959/1993, p. 101).
xxvi
In his paper on Constructions in Analysis (1937), Freud suggests that delusions may be the “equivalents of the
constructions which we build up in the course of an analytic treatment – attempts at explanation and cure. …”,
though he points out that under the conditions of a psychosis they are bound to be ineffectual. It appeared to me,
during this period of the analysis, that the patient’s delusions had this aspect, and that some o his delusions were
attempts at employing bizarre objects in the service of therapeutic intuition. (BION, 1958/1993, p. 81-82).
73
CAPÍTULO 2 – CONFLITO EDÍPICO E ANIQUILAMENTO DO EGO
2.1 O interesse pela linguagem e pelo pensamento verbal
Em 1955 é publicado o livro New directions in Psycho-analysis. Editado por Melanie
Klein, Paula Haimann e Roger Money-Kyrle, com a autoria de inúmeros colaboradores de Klein,
o livro foi destinado à divulgação de seu pensamento a partir do que os editores consideravam ser
os novos rumos ou as “novas tendências” – tradução de parte do título em português – na
psicanálise da época.
Sem entrarmos na discussão sobre o significado político e a força que um título como este
tinha ao marcar o posicionamento de Melanie Klein e de suas ideias em um período pós
Controvérsias, interessa-nos particularmente as “direções” ou os “rumos” que Bion dava a
algumas ideias de Freud neste momento.
No livro, Bion apresenta “A linguagem e o esquizofrênico” (1955), artigo bastante
importante para nós em virtude da clareza com que o autor expõe a sua visão da psicose em
relação às concepções de Freud, e pela extensão dada a ideias contidas em seu trabalho anterior
“Notas sobre a teoria da esquizofrenia” (1954). Ademais, reúne temas que ganharão maior
destaque em “Desenvolvimento do pensamento esquizofrênico” (1956) e em um dos principais
artigos daqueles anos, “Diferenciação entre a personalidade psicótica e a personalidade não-
psicótica” (1957a). Na introdução de “A linguagem...”, ao citar um trecho de “Formulações sobre
os dois princípios do funcionamento mental” de Freud (1911b), Bion faz ainda uma breve
colocação sobre os destinos da consciência na psicose em seu papel de compreensão das
74
impressões sensíveis, cujas influências ao desenvolvimento psíquico serão mais bem explorados
em trabalhos subsequentes.
Em “A linguagem e o esquizofrênico”, Bion faz um apanhado das teses de Freud sobre a
psicose nos trabalhos “Neurose e Psicose” (1924a) e “O inconsciente” (1915b), e sobre o
desenvolvimento psíquico quando da instituição do princípio de realidade (FREUD, 1911b). Sua
intenção é oferecer contribuições sobre o assunto, apoiado nas suas experiências clínicas.
Referindo-se à frase: “[...] as novas demandas [da realidade] tornaram necessário uma série de
adaptações no aparelho psíquico, das quais, devido ao nosso conhecimento ainda insuficiente ou
incerto, só podemos detalhar de modo superficial” (FREUD, 1911b, p. 219-220)
i
, Bion diz que as
suas experiências com pacientes psicóticos o tornaram capaz de fazer sugestões sobre essa série
de adaptações. O estudo da psicopatologia relacionada às fases mais iniciais do desenvolvimento
psíquico ajudaria a determinar a importância e a natureza de atividades que se tornam
significativas sob o princípio de realidade, como a atenção, a notação (uma parte da memória), a
capacidade de julgar imparcialmente, de pensar, adiar a satisfação de um desejo e de modificar a
realidade. Essas adaptações estariam associadas à posição depressiva e ao desenvolvimento do
pensamento verbal. Bion diz:
Devo considerar a sequência de adaptações no aparelho mental que se torna
necessária com as novas demandas da realidade, a qual, diz Freud, “em razão de
conhecimento insuficiente ou incerto só podemos detalhar de modo superficial”,
pois acredito que algumas experiências com as quais me deparei capacitam-me a
fazer algumas sugestões sobre elas. (1955, p. 221).
ii
Assim como Freud (1927) considera o fetichismo um tema favorável para se estudar a
cisão do ego, também a compreensão do funcionamento mental na psicose traria novas
contribuições ao tema da cisão, inclusive sobre a importância das funções do ego e a natureza das
75
dificuldades do paciente com as mesmas. Seguindo as colocações de Freud sobre a esquizofrenia
apresentadas em “O inconsciente” (1915b), especialmente as ideias relacionadas às ansiedades de
castração e a forma peculiar com que este conflito se expressa na fala do paciente, Bion concentra
o estudo dessas dificuldades no estado que o pensamento e a linguagem verbal assumem na
passagem da posição esquizo-paranoide à posição depressiva. Seu propósito é oferecer uma
compreensão mais detalhada dos destinos do ego e de suas funções no início da posição
depressiva sob o domínio da pulsão de morte. Nesta posição, questões relacionadas à situação
edípica se evidenciam e serão mais ou menos toleradas de acordo com a capacidade do ego de
lidar com o conflito desencadeado. É ao impulso de destruição direcionado ao ego e ao modo
com que ele é tornado efetivo que Bion chama a atenção neste texto, assim como ao tipo de
dificuldade que o paciente enfrenta ao tentar reconstruir ou construir sua vida mental.
Situando o foco de sua análise na dinâmica endopsíquica do conflito existente na psicose
entre “a personalidade e o ambiente” (BION, p. 220), descrito por Freud em “Neurose e Psicose”
(1924a) como uma perturbação entre o ego e o mundo externo, Bion diz: “[...] a fórmula de
Freud, ao indicar hostilidade do paciente psicótico à realidade e conflito com a mesma, de fato
nos ajuda a apreendermos um elemento que determina a natureza do conflito endopsíquico [...].”
(1955, p. 220-221).
iii
Para esse conflito contribuem as características do que Bion nomeia de
personalidade psicótica ou esquizofrênica. Nesta, predominam impulsos destrutivos sobre os
impulsos de amor, direcionados tanto à realidade quanto a tudo o que proporciona a sua
conscientização, isto é, às funções psíquicas que se desenvolvem sob o princípio de realidade.
Antes de examinarmos a natureza do conflito endopsíquico, suas expressões na linguagem e no
pensamento verbal, bem como as contribuições de Bion ao tema, cabem alguns comentários
acerca dos termos ambiente, mundo externo, realidade e personalidade, usados pelo autor.
76
2.2 Realidade, ambiente, personalidade
A palavra ambiente corresponde ao termo em inglês environment, presente no texto de
Freud “Formulações...” como sinônimo de mundo externo (outer world), conforme tradução de
James Strachey. De acordo com a última citação, vemos que Bion associa ambos ao termo
realidade. Essa equivalência é frequentemente encontrada nos textos de Freud quando o autor
procura marcar uma diferença ou uma oposição com a realidade psíquica, embora em sua obra
esta última também seja concebida como resultante de uma realidade material e histórica, ou
mesmo pré-histórica. Em determinados textos de Freud (1911b, 1924a e b), notamos que o
significado de realidade aproxima-se de tudo aquilo que impõe restrições, que provoca desprazer
e que faz exigências contrárias ao princípio de prazer. Tanto é que, ao se referir ao mundo de
fantasia criado pelo neurótico ou ao delírio do psicótico, Freud usa a expressão realidade
melhorada, isto é, que está de acordo com os impulsos do id. No entanto, é preciso dizer que a
noção de realidade na obra de Freud é múltipla e comporta diferentes acepções conforme os
objetivos e o contexto de suas análises (cf. COELHO JUNIOR, 1995).
Na obra de Melanie Klein, a noção de realidade psíquica é ampliada e muito com o
conceito de fantasia inconsciente. Sua ideia é a de que nossos estados mentais e a nossa visão de
mundo são constituídos a partir de um mundo interno que é concreto, regido por um sistema de
valores e de leis próprias, composto de objetos e partes de objetos que se combinam, amam-se,
devoram-se, aniquilam-se, e que, em seus aspectos mais primitivos, pouco ou nada se
assemelham aos objetos e eventos de uma realidade externa e material. O mundo de fantasias
inconscientes é gerador de significados e é, portanto, um modo de pensamento que cria realidade
e contribui com a visão que temos de nós mesmos (nosso senso de identidade) e do mundo ao
redor (entre ele, a vida em sociedade). Os conceitos de posição esquizo-paranoide e posição
77
depressiva expressam bem essa ideia de que recebemos e damos significado ao mundo a partir de
um modo de ser e de estar, sendo este relativo à condição dos nossos objetos internos e à
qualidade da relação entre os mesmos. Com o conceito de fantasia inconsciente, torna-se
problemática qualquer referência a uma realidade externa que existe de modo independente da
subjetividade, ainda que o mundo interno seja modificado e enriquecido também a partir do que é
oferecido de fora; isto é, do que não se pode criar por conta própria.
1
Nos artigos de Bion, as expressões hostilidade à ou ódio à realidade são usadas em
referência tanto à realidade externa quanto à interna. Ao enumerar as características da
personalidade que contribuem para o desenvolvimento da esquizofrenia, Bion salienta qual é a
sua concepção sobre o ódio à realidade em relação ao pensamento de Freud: “[...] há um ódio à
realidade que, tal como Freud mostrou, é estendido a todos os aspectos da psique que promovem
a sua consciência. Eu acrescento ódio à realidade interna e a tudo que promove consciência da
mesma.” (1956, p. 37).
iv
Entre as duas frases, entre o que Bion afirma sobre Freud e a afirmação
de Bion não parece haver uma diferença substancial e uma impressão de acréscimo, a não ser que
recordemos que Freud em textos como “Os instintos e suas vicissitudes” (1915a) refere-se ao
sentimento de ódio ao mundo externo. Então, para que a ideia de contribuição de Bion se
sustente, teríamos que pensar que a primeira referência à realidade diz respeito ao mundo
externo, sendo o ódio direcionado aos atributos que promovem a consciência do mesmo.
Consideramos que esse emprego dúbio do termo realidade por parte de Bion, ainda que
não pareça ser proposital, nos dá uma ideia sobre a área mental em questão. Há menos uma
preocupação do autor em discriminar uma realidade da outra do que discorrer sobre os efeitos
daquilo que existe de intolerável na desmesura das paixões, na experiência dos conflitos, nos
1
Um estudo recente sobre o significado da noção de realidade na obra de Klein e uma discussão sobre a relação entre
realidade e constituição subjetiva podem ser encontrados na tese de doutorado de Sigler (2008).
78
significados existentes, na dor e na ameaça que a realidade e/ou seus representantes internos
provocam ao tornarem excessivamente próximo do eu aquilo que é alheio, estranho, radicalmente
outro. Bion mostra os efeitos do que há de intolerável, dolorido e ameaçador nos limites e
restrições que a realidade impõe à onipotência, à onisciência e à unidade idealizada com o seio.
Ao mesmo tempo em que a realidade traz alívio justamente porque relativiza o poder e a
imposição dos impulsos, proporcionando um contato mais “realístico” com o mundo externo e
interno (isto é, apoiado na capacidade de se fazer julgamentos imparciais e menos dependentes na
moralidade implacável existente sob o princípio do prazer), a realidade também é intensamente
odiada.
Citando as visões de Freud e de Klein sobre o ódio à realidade, e deixando explícita a sua
própria compreensão sobre o fenômeno, Bion diz:
Simultaneamente ao ódio à realidade, assinalado por Freud, há as fantasias do
infante psicótico de ataques sádicos ao seio, descrito por Melanie Klein como
parte da fase esquizo-paranoide. Eu desejo enfatizar que nesta fase o psicótico
cinde seus objetos e, contemporaneamente, toda aquela parte de sua
personalidade, que o tornariam consciente da realidade que odeia, em
fragmentos minúsculos [...]. (1957a, p. 47).
v
O mapeamento dos conflitos iniciais e suas expressões na psicose, especialmente
relacionados ao modelo mãe-bebê, bem como a aproximação dos princípios de prazer e de
realidade às experiências vividas nas posições esquizo-paranoide e depressiva, mostram a
intenção de Bion de contribuir com o conhecimento sobre as origens dos transtornos mentais.
Na minha visão, aquilo que Freud descreve como o estabelecimento do princípio
de realidade é um evento que nunca pôde ser alcançado de modo satisfatório
pelo psicótico [...]. Se fosse permitido ao princípio de realidade operar, o infante
psicótico se tornaria consciente de seus relacionamentos com objetos totais e,
por meio disso, de sentimentos de culpa e depressão associados à posição
depressiva. (1955, p. 221).
vi
79
Antes de prosseguirmos, cabe uma digressão. A menção de Bion ao infante psicótico pode
levantar uma dúvida comum, dirigida principalmente à Melanie Klein (1932, 1946) ao discorrer
sobre as ansiedades típicas da psicose que surgem na primeira infância: trata-se de um bebê
psicótico, ou de mecanismos psicóticos operando na infância de alguém que, futuramente, poderá
vir a ser psicótico? Essa questão foi colocada pelo tradutor de Second Thoughts para o português
em uma nota de rodapé ao artigo “Diferenciação...” (1957c, p. 59), respondendo-a a favor da
segunda alternativa. Quanto a nós, preferimos dar outro caráter à mesma dúvida. Acreditamos
que ela dá margem a uma reflexão metodológica relacionada à natureza de certos fenômenos e à
gravidade de certas psicopatologias.
No trabalho com a psicose, uma vez que as interpretações podem ser ineficazes e não
estarem disponíveis à elaboração psíquica, o analista pode vir a se questionar se está diante de um
paciente que nunca pôde formular os problemas que uma interpretação tomaria como existentes,
ou se está diante de alguém que procura evitar esses problemas a todo custo. Trata-se de eventos
que um dia tiveram alguma organização psíquica e a perderam? Ou de eventos que nunca
chegaram a ter qualquer organização, até mesmo nas fantasias inconscientes? Trata-se da
impossibilidade radical de viver fantasias relacionadas ao Édipo, ou da ausência de ferramentas
que permitiriam a formação dessas fantasias e a formulação das questões edipianas? No começo
dos anos 60, quando Bion organizava o campo das perturbações mentais em torno de seu
interesse pelo trabalho onírico e pela função do sonhar, Winnicott, em consonância com o autor,
coloca essa questão a Bion da seguinte maneira:
Os psicóticos nos quais fundamenta suas ideias são pessoas que você julga que
tinham capacidade de sonhar e depois a perderam? Ou são pessoas que nunca
conquistaram esse espaço de ação entre o concreto e o abstrato, ou entre a
80
realidade psíquica e a realidade externa? [...] você nos convida a que nos
perguntemos se o estado de coisas que reconhecemos com bastante facilidade
possui alguma etiologia. (1990, p. 114).
Da perspectiva kleiniana, supunha-se que dificuldades extremas vividas com a experiência
da posição esquizo-paranoide e depressiva ao longo do desenvolvimento poderiam desencadear
uma psicose, e que uma psicose significava uma experiência malsucedida na vivência e na
passagem de uma posição à outra nos primórdios do desenvolvimento. Sob essa condição, a
identificação projetiva é empregada com maior frequência, a cisão torna-se patológica e acarreta
o que Bion (1956, 1957a) identifica como uma divergência crescente entre as partes cindidas da
personalidade já no início da vida. Ao estudar mais detidamente os processos patológicos da
posição esquizo-paranoide e a origem dos problemas de seus pacientes esquizofrênicos, Bion
afirma: “[...] todas as características da personalidade que um dia deveriam proporcionar a
fundação para a compreensão intuitiva de si mesmo e dos outros estão ameaçadas desde o início.”
(1957a, p. 47).
vii
Antes que questões relacionadas à situação edípica e a ansiedades de separação
possam ser concebidas pelo paciente e formuladas pelo analista é preciso que elas tenham alguma
organização psíquica e algum lugar nas fantasias. Na atualidade, analistas como Anne Alvarez
(1997) e o casal Botella (2002) procuram discutir as implicações técnicas dessa ausência de
compreensão intuitiva em pacientes autistas e borderline.
Retomando nossa questão inicial sobre o uso que Bion faz do termo realidade, devemos
nos lembrar da ideia de Melanie Klein de que, no psiquismo primitivo em formação, a necessária
cisão do objeto entre bom e mau corresponderia inevitavelmente a cisões do ego, e que, da
perspectiva da posição esquizo-paranoide ainda não haveria uma discriminação clara eu/outro,
81
sujeito/objeto, mundo interno/mundo externo.
2
É preciso lembrar, também, que as ideias de Klein
possuem uma correspondência bastante estreita com as concepções de Freud sobre o psiquismo
originário relativas ao surgimento das funções de julgamento. Em “A negativa” (1925), Freud
diz:
Exprimindo na linguagem mais antiga dos impulsos instintuais orais, o
julgamento é: “Gostaria de comer isto”, ou “gostaria de cuspir isto”, ou de forma
mais geral: “Gostaria de colocar isto para dentro de mim e manter aquilo fora”.
Ou seja: “Deve estar dentro de mim”, ou “deve estar fora de mim”. Conforme
mostrei em outro lugar, o ego-prazer original quer introjetar tudo que é bom e
ejetar de si tudo que é mau. Aquilo que é mau, aquilo que é alheio ao ego, e o
que é externo são, a princípio, idênticos. (p. 237).
viii
Pelo mecanismo da negação (Verneinung), aquilo que é experimentado como um
desprazer não é reconhecido como sendo interno ou próprio. Se a percepção da realidade traz
consigo um desprazer, ela deve ser ejetada; aquilo que é desagradável não só é “arremessado”
para fora, como é identificado a algo externo. Assim, nos primórdios da formação psíquica a
função de julgamento é baseada no fato de algo fazer bem ou mal e, consequentemente, estar
dentro ou fora, existir ou ser alheio ao eu. A partir do interjogo entre fora e dentro, o julgamento
se tornará imparcial e independente da vontade somente com a instituição do princípio de
realidade.
As tentativas incipientes de separação dentro/fora também se aplicam à discriminação
entre o que é imaginado ou relembrado por meio de representações do mundo externo e o que é
uma percepção real. Saber diferenciar a realidade interna da externa é particularmente importante
quando uma necessidade se impõe e se espera reviver uma experiência de satisfação. Se há
2
Cito a bela descrição de Julia Kristeva (2002) sobre a constituição do ego e do objeto na posição esquizo-paranóide:
“[...] esse quase-objeto que é o seio primário, existindo mesmo fora, onde o ego infantil o situa como exterioridade
desde o início da vida, não é menos uma construção interna, uma imagem interior, visto que é no ego frágil,
construindo/desconstruindo o limite entre dentro e fora, que esse quase-objeto (ou objeto em estado de constituição)
se forma.” (p. 78, grifo da autora).
82
predomínio do princípio de prazer e dos processos primários, imaginar equivale a alucinar;
quando predomina o princípio de realidade, imaginar uma experiência de satisfação equivale a
querer e a buscar algo que não se tem. Para tanto, será preciso contar com uma memória que não
se torna alucinada, tolerar o impedimento da satisfação imediata proporcionado pelo pensamento,
testar a realidade, fazer uso da função de atenção, de julgamento, e planejar uma ação que, ao
mesmo tempo, leve em conta os limites da realidade e a modifique em favor de uma satisfação
futura. (FREUD, 1911b). Essas conquistas ficam inibidas e são pouco toleráveis nos estados
mentais em que predominam o princípio de prazer e o imediatismo na satisfação de desejo,
inclusive de impulsos sádicos.
No fim do texto “A negativa” (1925), há outras afirmações que interessam
particularmente aos analistas kleinianos pela relação estabelecida entre psicose, pulsão de vida e
pulsão de morte, identificada no texto como pulsão de destruição:
A polaridade de julgamento [feita a partir do incluir e do expulsar] parece
corresponder à oposição dos dois grupos de instintos que supomos existir. A
afirmação – enquanto um substituto da unificação – pertence a Eros; a negativa
– a sucessora da expulsão – pertence ao instinto de destruição. O desejo geral de
negar, o negativismo que é apresentado por alguns psicóticos, deve
provavelmente ser considerado como sinal de uma defusão dos instintos, que
ocorreu através de uma retirada dos componentes libidinais. (p. 239).
ix
No capítulo quatro, veremos que os efeitos da “retirada dos componentes libidinais” são
entendidos por Bion menos da perspectiva de um retraimento da libido do que de um ataque à
unificação erótica entre pensamentos e entre dados da sensorialidade. O ataque é direcionado à
memória bem como à ligação entre os conteúdos psíquicos. Essa é uma maneira de alguns
pacientes não entenderem as interpretações ou de não lembrarem o que já fora trabalhado em
sessões anteriores.
83
No capítulo três, veremos que o paciente descrito por Bion em “O gêmeo imaginário”
(1950) recebia as interpretações com indiferença; estas tinham um valor duvidoso e eram sentidas
como queixas do analista. Já as associações do paciente tinham um efeito soporífico sobre o
analista, não continham valor informativo e eram usadas para mantê-lo ocupado de modo a não
incomodar o paciente. Em Cogitações (1994a), Bion dá uma ideia sobre o funcionamento mental
em questão:
O paciente que constantemente ‘não pode entender’ pode não estar
simplesmente resistindo, mas resistindo de um modo particular. De fato, parece
que aqui reside a diferença essencial entre a resistência como algo peculiar ao
neurótico e o relegar ao inconsciente, e a destruição psicótica dos meios para a
compreensão [...]. ‘Eu não entendo’ ou ‘não sei por quê’ ou ‘não sei como’, etc.
podem ser tomadas tanto como uma afirmação positiva de uma inabilidade para
sonhar, quanto como uma afirmação desafiadora de uma capacidade para não
sonhar. (p. 37, grifos do autor).
x
No artigo “A linguagem e o esquizofrênico” (1955), Bion está interessado na descrição –
do ponto de vista endopsíquico – das consequências da destrutividade da pulsão de morte sobre
as aquisições do psiquismo quando o princípio de realidade se estabelece. Sob este princípio
desenvolve-se o pensamento verbal e os órgãos dos sentidos ganham importância; novas
percepções tornam-se possíveis, inclusive da realidade interna através da consciência, e tanto os
órgãos de percepção quanto a realidade percebida são alvo de uma intolerância extrema. As
expressões dessa intolerância ocorrem na forma de aniquilamento e fragmentação das funções do
ego, da fala, do mundo de fantasias, do pensamento, e, consequentemente, da personalidade como
um todo. O resultado é um empobrecimento da existência e da possibilidade de se experimentar
quaisquer pensamentos ou emoções como algo próprio, seja o amor ou o ódio. O conflito entre
vida e morte na esquizofrenia é compreendido também por meio do temor que o esquizofrênico
tem do aniquilamento e da possibilidade de deixar de existir como uma personalidade.
84
Em Cogitações (1994a), Bion diz que “pessoas podem existir, mas não há personalidade
sem uma função de autoconsciência.” (p. 76-77).
xi
Ao falar do ponto de vista do analista que tem
contato com esses pacientes, sua impressão é a de estar diante de uma personalidade que foi
apressadamente improvisada. Na descrição dessa impressão, ouvimos ecos da experiência de
Schreber ao sentir-se morto ou vivendo entre homens que foram “apressadamente improvisados”
por um milagre após a catástrofe de fim do mundo (FREUD, 1911a, p. 68). (Mais que um delírio,
vale notar a acuidade na descrição de Schreber acerca de seu próprio estado, assim como a
identidade implícita que Bion parece estabelecer com a percepção de Schreber).
3
Segundo Bion,
“[...] o analista não encontra uma personalidade, mas a improvisação de uma personalidade
organizada de modo apressado [...]. É uma improvisação de fragmentos [...].” (1994a, p. 74).
xii
Sobre a experiência de Schreber, Freud diz:
Ele próprio era ‘o único homem real deixado vivo’ e as poucas formas humanas
que ainda via [...] explicava-as como sendo ‘objeto de milagre, homens
apressadamente improvisados.’ Ocasionalmente, a corrente inversa de
sentimento também se fazia aparente: foi colocado em suas mãos um jornal no
qual havia um comunicado de sua própria morte; ele próprio existia em uma
forma secundária, inferior, e nesta forma secundária, certo dia tranquilamente
faleceu. (p. 68)
.
xiii
Além de toda a fragmentação resultante do impulso de destruição, Bion também chama a
atenção para a onipotência do esquizofrênico que, fazendo uso desses fragmentos, pode se sentir
múltiplo e ignorar as barreiras impostas pelo tempo e pelo espaço. Há uma intenção do paciente
3
Recordo aqui um trecho do texto de Ab’Sáber (2005) sobre essa acuidade dos pacientes em relação ao seu estado
mental, onde o autor comenta a afirmação de um paciente de Bion que dizia não ter fantasias ou sonhos. “A
passagem nos faz lembrar do quanto os pacientes ‘sabem’ a respeito dos processos mentais que vivem, o quanto a
psicanálise deve a esse saber natural, esta possibilidade humana de comunicar o sofrimento.” (p. 51). Em nota de
rodapé a esta mesma afirmação, referindo-se a Laplanche e Pontalis no Vocabulário de Psicanálise e aos “Estudos
sobre a histeria” de Freud, Ab’Sáber continua: “Não apenas as formas da metapsicologia podem ser comunicadas
pelo paciente, mas aspectos centrais da forma de tratá-lo, da forma própria que a psicanálise deverá assumir no caso,
são comunicadas, aguardando a liberdade do analista em reconhecê-los.” (Idem, p. 51)
85
de usar a cisão como um método para tornar efetivo o sadismo, bem como satisfazer a sua
voracidade e a sua determinação de ser tantas pessoas e de estar em tantos lugares quanto quiser.
O pensamento e a linguagem verbal – mais conhecidos na psicanálise por sua associação com o
princípio de realidade – também são instrumentos dessa ação operada sob o princípio de prazer.
O estado do pensamento e da linguagem do paciente, bem como a forma com que são
empregados, são importantes indicadores para o analista do estado do ego e dos objetos internos
do paciente. É por este motivo que Bion dedica ao menos três artigos à discussão sobre o
emprego da linguagem verbal na psicose (BION, 1954, 1955, 1956). Além de ser uma forma de
pensamento e de comunicação, a linguagem também é uma forma de ação sobre a realidade,
direcionada à satisfação da onipotência e dos impulsos de destruição, uma vez que mesmo a
capacidade de suportar o adiamento da descarga motora seria alvo de ataque e sadismo.
4
Vemos que, para Bion, a cisão não é um mecanismo passivo ou uma reação “mecânica” e
defensiva a uma situação de tensão psíquica que independe de uma motivação. A cisão seria o
instrumento da destrutividade, da crueldade e da voracidade; ao comentar sobre as suas
características, diz: “Entre os métodos pelos quais os ataques sádicos são efetivados no
pensamento verbal é proeminente a cisão que Freud e outros tão frequentemente descreveram.”
(BION, 1955, p. 223). A referência de Bion à descrição de Freud sobre a cisão restringe-se no
texto a esta passagem e está claramente apoiada nas concepções kleinianas sobre a associação
entre sadismo e pulsão de morte, dirigidos ao aniquilamento do ego – o que torna essa menção ao
autor um tanto quanto inusitada em relação ao contexto teórico em questão. Quanto à
4
Segundo Bion, “A ‘castração’ do ego manifesta-se em ataques sádicos [...] na consciência [...], na atenção [...], no
sistema de notação [...], julgamento, [...] na capacidade para suportar a frustração da descarga motora [...].” (1955,
p. 223). O adiamento da descarga motora é proporcionado pelo pensamento, e o ataque ao mesmo significa, para
Bion, um ataque a essa capacidade do aparelho psíquico de suportar aumento de tensão.
86
compreensão de uma ação que não é impessoal a noção de personalidade e, mais
especificamente, de uma personalidade psicótica ou esquizofrênica é fundamental.
5
O termo personalidade é utilizado por Bion em diferentes trabalhos quando não está se
referindo especificamente a mecanismos ou a funções das instâncias psíquicas e, sim, a
características de um modo de ser ou de se relacionar apoiada por tais mecanismos. Mas tal como
ocorre nas diferentes teorias psicológicas e na confusa proximidade com as também imprecisas
noções de eu, self e identidade, o termo personalidade é empregado nos textos de Bion de um
modo que torna problemática a intenção de delimitar um significado unívoco.
Em “A linguagem e o esquizofrênico” o termo é usado como sinônimo de ego, enquanto
uma forma do autor mostrar as consequências do conflito com a realidade para as suas funções.
Bion diz: “[...] o paciente faz ataques destrutivos a todos os aspectos de sua personalidade, seu
ego, que se ocupam em estabelecer contato externo e contato interno.” (p. 221).
xiv
A referência ao
ego torna mais preciso o interesse pelo estado de seus componentes, descritos por Freud em
“Formulações...”.
Além de descrever os mecanismos psíquicos e discorrer sobre a metapsicologia do
funcionamento mental na psicose, Bion também pretende transmitir as ações do paciente
psicótico sobre a realidade através do uso que este faz da linguagem e do pensamento. É também
a algo da personalidade do esquizofrênico na clínica, naquilo que o termo tem de coloquial, que
Bion parece querer dar expressão. Reporta-se à relação do paciente ou de partes de sua
5
A noção de intencionalidade e de personificação das estruturas psíquicas que estão implícitas nessa compreensão
advém do modelo de mente desenvolvido por Melanie Klein (1929). Principalmente com a concepção de fantasia
inconsciente, Klein trouxe para a psicanálise a noção de vida mental como um mundo concreto e animado por
conteúdos em forma de personagens - os objetos internos, que podem ser parciais ou totais. Com os trabalhos de
Bion sobre a psicose esses conteúdos ganham contornos mais surrealistas e bizarros, uma vez que o autor descreve
combinações inusitadas entre partes animadas ou inanimadas dos objetos internos e externos (os assim chamados
“objetos bizarros”), e nota que a personalidade poderia ser fragmentada e expelida não só em partes, como em
pedaços minúsculos. Nesse sentido seria preciso conceber a existência de uma personalidade psicótica, também
chamada de esquizofrênica, que não só resulta dessa combinação bizarra, como contribui para a manutenção desse
estado.
87
personalidade com o analista e à conduta deste com aquele (ou aquelas), ainda que a ênfase esteja
na descrição da dinâmica dos processos de defesa direcionados à linguagem verbal e ao ego,
anteriores à repressão. É com base nessa intenção que Bion menciona um trabalho do psicanalista
Maurits Katan (1954) que aborda a importância de o analista dirigir-se à parte não-psicótica da
personalidade do esquizofrênico. Esta menção é um prelúdio ao artigo “Diferenciação entre a
personalidade psicótica e a personalidade não psicótica” (1957a), lido em 1955 na Sociedade
Britânica de Psicanálise e contemporâneo de “A linguagem e o esquizofrênico” (1955).
Em “Diferenciação...”, Bion descreve a existência em uma mesma pessoa de duas
personalidades divergentes que coexistem; refere-se ora a uma personalidade psicótica e outra
não-psicótica, ora a uma parte psicótica e outra não-psicótica da personalidade, e ainda à
personalidade psicótica e à personalidade neurótica. No capítulo quatro, veremos como a cisão
patológica operada na personalidade nas origens da formação psíquica gera o que ele nomeou de
uma “justaposição negativa” das personalidades, e veremos a importância de o analista notar essa
configuração.
O uso de diferentes termos relacionados à noção de personalidade, aliado a uma referência
indiscriminada a diferentes psicopatologias e à grande concisão de muitas passagens nos textos
de Bion gera, na melhor das hipóteses, certo atrapalhamento no leitor. Porém, uma parte de seu
interesse consiste em apresentar configurações comuns a diferentes psicopatologias, expor a
fenomenologia das posições esquizo-paranoide e depressiva e, principalmente, elucidar a
natureza das funções mentais que caracterizam essas personalidades diante do conflito psíquico.
Retomando o artigo “A linguagem...” e as referências de Bion ao trabalho de Freud “O
inconsciente” (1915b), perguntamos: qual sua abordagem em relação às ansiedades de castração e
ao conflito na psicose, descritos por Freud? Antes de prosseguirmos no trabalho de Bion e
considerarmos essa questão, vamos às concepções de Freud apresentadas em seu texto de 1915.
88
2.3 A linguagem na esquizofrenia segundo Freud
No item VII de “O inconsciente” (1915b), contando com o trabalho de seus colegas
Abraham, Tausk, Bleuler e Jung com as neuroses narcísicas e, em particular, com pacientes
esquizofrênicos, Freud propõe algumas teorizações sobre a metapsicologia do funcionamento
mental a partir da relação problemática entre o ego e a realidade externa. A ideia era a de que as
neuroses narcísicas ajudariam a tornar mais “tangível” o “enigmático Ics” (FREUD, 1915b, p.
196). O desinteresse e a falta de resposta desses pacientes à terapia faziam supor que o
investimento libidinal, retirado do mundo diante de algum impedimento no acesso ao e na posse
do objeto, seria direcionado ao ego e provocaria o restabelecimento de “uma condição de
narcisismo primitivo, sem objeto”. (Ibid., p. 197). Se na neurose de transferência o objeto
continua a ser investido internamente diante de um impedimento na realização do desejo, na
esquizofrenia este investimento estaria direcionado exclusivamente ao ego; o mundo externo é
rejeitado e há um rompimento com suas representações internas. Segundo Freud, estaria
inviabilizada a relação entre as representações de palavra (do pré-consciente) e as representações
de coisa (do inconsciente) que constituem o objeto no psiquismo. Essa dinâmica se expressa na
fala de certos pacientes através de alterações como, rebuscamentos, desorganizações na estrutura,
falta de sentido e, também, no que Freud nomeia de “linguagem dos órgãos”. Esta última
indicaria o investimento da pulsão sobre o corpo e seus órgãos e revelaria a relação problemática
entre as representações de coisa e de palavra. A linguagem de órgãos implica uma relação
peculiar entre as representações do sistema pré-consciente e inconsciente, que, por sua vez, pôde
se tornar mais clara na teoria com as ampliações feitas na psicologia do ego em “O Ego e o Id”
(1923).
89
Ainda que Freud em 1923 não tenha retomado a discussão feita em 1915 sobre a natureza
da fala na psicose, podemos pensar que a linguagem de órgãos tem como base um ego incipiente
que, em sua origem é um ego corporal cuja “superfície” é pressionada no sentido de lidar com os
estímulos externos e internos. Não desenvolveremos esse assunto do ponto de vista da teoria
freudiana, mas retomaremos o trabalho de Freud de 1923 mais adiante ao discutirmos a leitura
que Bion faz de ideias presentes no texto de 1915b.
Um dos exemplos clínicos citados por Freud em “O inconsciente”, e que será retomado
por Bion no artigo “A linguagem...” em função da semelhança com seu próprio paciente, ilustra a
teorização sobre as alterações da fala na esquizofrenia. Freud diz:
Um paciente, que no momento tenho sob observação, permitiu-se ficar afastado
de todos os interesses da vida em virtude do mau estado da pele de seu rosto. Ele
declara ter cravos e buracos profundos no rosto, que todo mundo nota. A análise
mostra que ele está representando [playing out] seu complexo de castração em
sua pele. De início, espremia esses cravos sem remorso e ficava muito satisfeito,
porque, como dizia, algo esguichava quando o fazia. Começou então a pensar
que surgia uma profunda cavidade cada vez que se livrava de um cravo, e se
censurava com a maior veemência por ter arruinado a pele para sempre ‘por não
saber deixar as mãos sossegadas’. Espremer o conteúdo dos cravos é claramente
para ele um substituto da masturbação. A cavidade que então surge por culpa sua
é o órgão genital feminino, isto é, a realização da ameaça de castração (ou a
fantasia que representa essa ameaça) provocada pela sua masturbação. (FREUD,
1915b, p. 199-200).
xv
Fica claro no exemplo que as palavras – bem como sua representação nos gestos – são
tomadas como se fossem as próprias coisas do sistema inconsciente, embora a relação entre a
palavra e a coisa que corresponde a ela de maneira direta esteja rompida. Isto é, não há relação
entre a palavra pele e este órgão do corpo. As palavras pele, buraco e esguicho seriam substitutos
simbólicos de fantasias masturbatórias inconscientes; como diz Freud, “O que dita a substituição
não é a semelhança entre as coisas denotadas [a cavidade na pele e a cavidade genital], mas a
equivalência das palavras usadas para expressá-las.” (1915b, p. 201). Do objeto que foi perdido
90
mantém-se a carga de investimento em sua representação de palavra presente no pré-consciente,
mas não em sua representação de coisa no sistema inconsciente. Segundo Freud, esta
peculiaridade, que se exprime na linguagem, seria uma tentativa do paciente de recuperar o
objeto; para tanto, o investimento pulsional do mesmo é mantido nas representações de palavras,
uma vez que a ligação com a representação de coisa estaria rompida. Ao invés do paciente aceitar
uma perda inevitável e fazer o trabalho necessário de luto, ele recria a presença do objeto ao seu
modo. No exemplo de Freud, a impressão que o paciente tem do estado de sua pele condensa a
um só tempo toda a complexidade do conflito psíquico: o temor e o desejo da castração; o temor
e o desejo da posse do objeto.
Este tema interessará particularmente a Bion no artigo “A linguagem...”, no qual o autor
faz uso da citação de Freud reproduzida acima com o propósito de indicar a sua própria análise
do tema. Antes de verificarmos como isso é feito, cabe um último comentário. A citação que
Bion faz do texto de Freud não corresponde à tradução feita por Strachey na Standard Edition
utilizada por nós. A referência bibliográfica de Freud usada por Bion neste artigo corresponde aos
Collected Papers, cuja tradução foi coordenada por Joan Riviere. Em ambas as traduções há o
emprego de duas expressões diferentes no mesmo trecho do texto, cujos significados nos colocam
uma questão importante quanto à interpretação dada ao funcionamento psíquico em questão.
Referindo-se a Freud, Bion afirma: “Ao discutir um dos casos que citei, ele [Freud] diz: ‘A
análise mostra que [o paciente] está solucionando [working out] seu complexo de castração em
sua própria pele.’” (1955, p. 222).
xvi
Em nossa tradução do texto de Strachey, Freud diz: “A
análise mostra que ele está representando [playing out] seu complexo de castração em sua pele”.
(1915b, p. 199).
Entre representar (play out) e solucionar (work out), há uma distinção importante no
posicionamento tomado em relação à ação do paciente. A diferença entre as expressões usadas
91
fica ainda mais clara na tradução das obras completas de Freud do inglês para o português,
coordenada por Jayme Salomão. Lá encontramos a seguinte frase: o paciente “faz da pele o palco
de seu complexo de castração” (1915c, p. 228). Também na tradução do texto de Freud do
alemão para o português, sob a coordenação de Luiz Hanns, lemos o seguinte: o paciente “situava
seu complexo de castração na pele” (1915d, p. 47).
Entre representar, situar e solucionar, a expressão usada por Bion carrega um sentido mais
ativo; isto é, a pele é o local onde o paciente não só apresenta um problema, mas tenta resolvê-lo.
Segundo as traduções de Strachey, Salomão e Hanns, a pele seria o local da expressão desse
problema. Essa compreensão remete à ideia de encenação histérica, onde o corpo é o palco do
sofrimento, muito embora Freud deixe claro em seu texto que o simbolismo na neurose é outro
que na psicose. Quanto à expressão empregada por Bion, somos remetidos à noção de intenção e,
novamente, a uma personalidade; no caso, a psicótica. A expressão “solucionar” ou “resolver”
indica a direção de seu argumento e a natureza da interpretação do texto de Freud:
Relacionando minhas experiências com a fórmula de Freud de que o conflito na
psicose se dá entre o ego e o ambiente, sugiro que esta visão de seu paciente
seria ainda mais frutífera se supuséssemos que as castrações do psicótico são
solucionadas [worked out] em sua pele mental – i.e. no ego; de maneira ainda
mais precisa, a castração do ego é idêntica aos ataques destrutivos (i) na
consciência ligada aos órgãos dos sentidos; (ii) na atenção [...]; (iii) no sistema
de notação [...]; (iv) no curso do julgamento [...]; e finalmente (v) no
pensamento [...]. (p. 222).
xvii
À ideia de uma castração que se opera na “pele mental”, podemos acrescentar a expressão
work out também como mais frutífera que a expressão play out, uma vez que é mais condizente
com as observações clínicas de Bion e transmite algo do método do paciente para lidar com o
sofrimento. O conceito de cisão ganha novos empregos na medida em que é pensado por Bion
como o instrumento de uma castração primitiva, feita no ego incipiente e em desenvolvimento,
92
com os mesmos requintes de sadismo e de crueldade que Klein descreve existir nos ataques
uretrais, orais e anais ao seio.
Bion lê o texto de Freud a partir de suas experiências clínicas e constata que as ideias do
autor poderiam render mais frutos se o conflito na psicose fosse considerado a partir de uma
castração no ego. Tomando emprestada sua metáfora agrícola, a ideia é que Bion aduba o solo
freudiano com sua clínica da psicose e com a teoria kleiniana – o que torna significativa do ponto
de vista institucional a ideia de frutificar, uma vez que seu texto está inserido em um livro
dedicado aos desdobramentos do pensamento de Melanie Klein na psicanálise. Mostraremos no
próximo item que Bion também faz render as ideias de Freud com os frutos gerados dentro do
próprio pensamento freudiano. A partir do relato de Bion de uma sessão com um esquizofrênico,
veremos um pouco mais sobre o que Bion considera ser frutífero para o texto de Freud e sua
forma de compreender a expressão, na linguagem e no pensamento, do conflito do paciente com a
realidade.
2.4 Ego, pele mental e castração
Em “A linguagem e o esquizofrênico” (1955), Bion escreve:
Paciente. Eu arranquei um pedacinho de pele do meu rosto e me sinto bastante
vazio.
Analista. O pedacinho de pele é o seu pênis que você puxou, e tudo o que você
tinha dentro veio junto.
P. Eu não entendo... pênis... apenas sílabas.
A. Você cindiu minha palavra “pênis” em sílabas e ela agora não tem
significado.
P. Eu não sei o que ela significa, mas eu quero dizer “se não posso soletrar, não
posso pensar”.
93
A. As sílabas foram agora cindidas em letras; você não pode soletrar – isto
significa que você não pode mais juntar as letras para formar palavras. Então
agora você não pode pensar.
O paciente iniciou a sessão do dia seguinte com associações desarticuladas e se
queixou de não poder pensar. Eu o lembrei da sessão que acabei de descrever, ao
que ele recuperou a correção da fala da seguinte maneira:
P. Não consigo encontrar nenhuma comida interessante.
A. Você sente que ela foi toda comida.
P. Eu não me sinto capaz de comprar roupas novas e minhas meias são um
amontoado de buracos.
A. Arrancando o pedacinho de pele ontem você se machucou tão feio que não
pode nem comprar roupas; você está vazio e não tem com o que comprá-las.
P. Apesar de estarem esburacadas elas apertam o meu pé.
A. Você não apenas arrancou o seu próprio pênis como o meu também. Então
hoje não há comida interessante, somente um buraco, uma meia. [...]. Essa
sessão e as subsequentes confirmaram que ele sentiu que comeu o seu pênis e
que, portanto, não havia sobrado comida interessante, apenas um buraco. Mas
esse buraco era agora tão persecutório que ele teve que cindi-lo. Como resultado
da cisão, o buraco se tornou um amontoado de buracos que se juntaram de um
modo persecutório para apertar seu pé. O hábito desse paciente de se cutucar foi
trabalhado por uns três anos. A princípio ele se ocupava apenas com cravos, e eu
devo citar a descrição de Freud de três casos, um observado por ele, um pelo Dr.
Tausk e um por R. Reitler, que têm uma semelhança com o meu paciente. (p. 28-
29).
xviii
Os casos que Bion faz menção foram descritos por Freud no item VII de “O inconsciente”
(1915b) e, com eles, Freud pretendia compreender melhor a relação metapsicológica entre os
sistemas psíquicos. Os problemas na ligação entre o ego e o objeto nas neuroses narcísicas, em
particular na esquizofrenia, possibilitaram-no discriminar a natureza de conteúdos conscientes e
inconscientes e determinar o que ocorre em termos tópicos, dinâmicos e econômicos quando, por
exemplo, uma ideia se torna consciente. Isto é, ela pertence a qual sistema? Recebe ou deixa de
receber qual carga de investimento? Afinal, Freud procurava mapear o aparelho psíquico e
estabelecer as diferenças na expressão sintomática entre as psicopatologias, mas não só. Pretendia
compreender a relação entre as instâncias psíquicas nos processos de investimento e de contra-
investimento da pulsão; saber como os processos internos se tornam conscientes, em especial, o
que está reprimido; pretendia indicar a origem e a natureza de uma ideia que surge na
consciência, e saber como se dá essa discriminação. Trata-se da lembrança de um fato? De
94
alucinação? De percepção externa? De criação fantasiosa? Parte dessa discussão foi retomada por
Freud em “O Ego e o Id” (1923), e o levou a postular a sua teoria estrutural.
Quanto a Bion, o interesse pelo trabalho de Freud de 1915b em conjunto às dificuldades
no tratamento de certos pacientes concentrava-se sobre a forma assumida pela linguagem verbal e
pelo pensamento através do que seria, para ele, a maneira de o paciente resolver o conflito
edípico e as ansiedades associadas à situação edípica. O caso relatado por Bion une as
concepções de Freud acerca da esquizofrenia e do funcionamento mental sob o princípio de
prazer e de realidade à perspectiva de Klein sobre a identificação projetiva (KLEIN, 1946) e
sobre as inibições intelectuais que poderiam decorrer do complexo de Édipo (KLEIN, 1928,
1930).
6
Bion indica que existe semelhança na expressão do problema entre os pacientes descritos
por ele e por Freud, mas certamente é outra a forma de entender a origem e os destinos da
problemática e, consequentemente, de interpretar. O curioso é que Bion escolhe dar ênfase à
semelhança, ainda que as diferenças sejam evidentes por si só em todo o seu texto, a começar
pela ideia de que a castração se expressa no estado das funções do ego a partir de ataques
operados pela pulsão de morte e o sadismo. Em conformidade com o pensamento kleiniano, a
correlação entre formação do ego, ódio à realidade e castração será considerada por Bion desde
os primórdios do desenvolvimento psíquico. Certamente é outra a maneira de compreender o
dano aos órgãos dos sentidos, à consciência e, consequentemente, à capacidade de manter um
contato com a realidade – situação, esta, ilustrada por Freud (1919) com o mito de Édipo no
6
A fim de tornar mais presente ao leitor a teoria de Klein sobre o Édipo precoce, bem como a presença dessa teoria
no caso narrado por Bion, cito um trecho do artigo “A importância da formação de símbolo no desenvolvimento do
ego” (1930). A partir da relação inicial da criança com o seio e do impulso para conhecer o que há em seu interior,
Klein diz: “A criança espera encontrar dentro da mãe (a) o pênis do pai, (b) excrementos, e (c) crianças, e equaciona
essas coisas com substâncias comestíveis. De acordo com as fantasias mais primitivas (ou ‘teorias sexuais’) da
criança sobre o coito parental, durante o ato o pênis do pai (ou todo o seu corpo) se incorpora na mãe. Desse modo,
os ataques sádicos da criança tem por objeto ambos a mãe e o pai que, em fantasia, são mordidos, dilacerados,
cortados ou esmagados em pedaços.” (p. 219).
95
episódio em que o rei de Tebas fura seus próprios olhos. No próximo capítulo, veremos como
esse episódio se faz presente na compreensão de Bion sobre o estado dos órgãos dos sentidos na
psicose e no processo de aquisição da consciência da realidade psíquica no início da posição
depressiva.
Embora existam diferenças na teoria de Bion e de Freud sobre a psicose, não é a elas que
Bion se dedica. Como vimos, sua intenção é tornar a abordagem de Freud mais frutífera. Mas
como isso é feito? Como Bion faz para que a visão de Freud sobre o seu paciente dê os frutos que
Bion espera colher? Qual a natureza da contribuição de Bion? Para respondermos essas questões,
teremos que nos reportar a um texto de Freud que está subentendido no uso do termo pele mental.
Em “O Ego e o Id” (1923), ao descrever a psicologia do ego em sua etiologia, Freud
afirma que este é, em parte, o resultado de uma diferenciação que ocorreu na superfície do id.
Esta parte sofreu a influência dos estímulos externos e internos, mediados pelo sistema
consciência/percepção (Cs/Pcpt) e, neste sentido, o ego é, em sua origem, um ego corporal. Além
de ser um “ente de superfície” (p. 26) e receber, pelos órgãos dos sentidos, estímulos
provenientes de fora e de dentro do organismo, como sentimentos e sensações físicas, o ego é, ele
mesmo, “a projeção de uma superfície.” (p. 26). Esta afirmação está a um pulo do termo de Bion
“pele mental”. Isto é, a projeção da superfície corporal é a própria pele mental. O termo seria,
assim, outra forma de se referir ao ego como a projeção de uma superfície, e, neste sentido, Bion
lê o texto de 1915 à luz do trabalho de 1923. Torna mais frutífero o emprego clínico das ideias de
Freud tanto a partir de um Freud mais tardio como a partir de um trabalho anterior de Freud
(1911b), que descreve as aquisições do aparelho mental sob o princípio de realidade.
A partir das ideias de Klein e da experiência clínica de Bion com a psicose, também
parece ser mais frutífero considerar que na pele mental há mais do que a representação de um
conflito; trata-se da tentativa de resolver o conflito entre o ego e o ambiente relacionado à
96
castração. Os órgãos dos sentidos que levariam o paciente a perceber o casal parental, a tomar
contato com as fantasias relacionadas à situação edípica, bem como a realizar o desejo edípico,
seriam alvo de ataques mutiladores.
A superfície mental que faz a mediação e o controle dos estímulos externos e internos é
também aquela que proporciona a consciência da realidade ligada a esses estímulos. A
consciência, descrita por Freud em A interpretação dos sonhos (1900) como o órgão de
percepção das qualidades psíquicas, seria um dos alvos privilegiados desse ataque. O processo de
aquisição de consciência da realidade seria motivado pela maior capacidade de síntese e de
integração psíquica – tema que foi desenvolvido por Melanie Klein e por seus colaboradores a
partir do estabelecimento da relação entre pensamento verbal e posição depressiva. Segundo
Bion, é também contra essa capacidade que se voltam os processos de defesa na psicose e que
tornam difícil ao esquizofrênico usar a linguagem como um modo de pensamento.
Na psicose, o ego, frágil e pouco capaz de enfrentar o conflito com a realidade, livra-se
das ansiedades de castração e procura solucioná-lo com o uso de mecanismos diferentes da
repressão. As forças eróticas, que promoveriam a união com o objeto, mas também entre
sentimentos, sensações, memórias e ideias, são sobrepujadas pela força de destruição. Há,
portanto, um impedimento radical na capacidade do paciente de se comunicar verbalmente
consigo mesmo e com seu analista – o que podemos perceber no estado da fala e do pensamento
do paciente de Bion descrito na citação acima.
Como vimos a partir de Freud e de Bion, o hábito do paciente de cutucar a pele expressa a
um só tempo a atividade masturbatória, a ansiedade de castração e, também, a forma do paciente
resolvê-la. O ato de cutucar e arrancar um pedaço da pele do rosto agrupa desejo edípico, perda
do objeto, processos de identificação, projeção, punição e defesa psicótica – qual seja: ataque à
linguagem e ao pensamento verbal, e emprego da identificação projetiva com as funções
97
mutiladas do ego. Como diz Bion, “[...] o pensamento verbal é, na minha visão, a característica
essencial de todas as cinco funções do ego e os ataques destrutivos no pensamento verbal ou em
seus rudimentos são, inevitavelmente, um ataque em todos eles.” (1955, p. 222).
xix
No caso descrito por Bion, a associação entre pele e pênis, e a falta de significado que a
palavra pênis adquire para o paciente remete-nos, de um lado, à ideia de Freud sobre o
investimento da representação de palavra como uma tentativa de cura (entendida como a forma
de recuperar a relação com o objeto) e, de outro, à compreensão de Bion sobre o ataque à
linguagem e ao pensamento verbal, que transforma a palavra em um amontoado de sílabas e de
letras que não se articulam de maneira significativa. A representação de palavra, hiperinvestida
em detrimento da representação de coisa, é totalmente cindida. A ligação que o analista faz para o
paciente entre pele e pênis deixa de ter significado; restam apenas letras esparsas que não geram
pensamento. Ao contrário da decomposição não-psicótica de palavras, destinada à criação de
novas combinações e a um exame das partes resultantes que não seja cruel ou sádico, temos o
processo de cisão ocorrendo na própria linguagem. A divisão das palavras em sílabas ou letras
sem significado é um modo de se aniquilar o pensamento. Com isso, impede-se a formação de
um sentido pertinente à realidade psíquica e a emergência da consciência que seria proporcionada
pelo desenvolvimento do pensamento verbal. A cisão, estendida a todo o ego, é vivida pelo
paciente como um estado de empobrecimento, o qual é comunicado de maneira bastante clara: ele
se sente vazio, não entende a interpretação, não pode pensar, não há imagem para a sua dor, não
há comida que o alimente, roupa que o vista e o proteja, apenas um buraco persecutório. Como
sugere Freud no “caso Schreber” (1911a) acerca da percepção interna que, ao invés de ser
suprimida pela repressão é mais adequadamente descrita como aquilo que retorna do exterior,
podemos pensar que a meia esburacada do paciente de Bion é o que retorna de modo persecutório
na forma de buracos reunidos para apertar seu pé.
98
Casos como este revelam uma problemática que, aos poucos, impôs-se definitivamente
nas teorizações de Bion, e diz respeito à emergência de questões envolvidas com a ausência de
pensamento, de emoções ou mesmo de qualquer figurabilidade mental, seja ela onírica ou
alucinatória. O termo “alucinação visual-invisível”, apresentado em “Ataques à ligação” (1959)
procurou dar conta da ausência de percepção de uma alucinação que é vivida com
persecutoriedade, mas da qual o paciente nada sabe ou pode dizer. O termo se remete ao conceito
de alucinação negativa de Freud (1917), mas difere do mesmo uma vez que há ausência de
percepção do que inicialmente fora uma alucinação positiva. Voltaremos brevemente ao conceito
de alucinação em Freud adiante.
Sobre a experiência do paciente descrito no artigo de 1959, Bion diz:
[o paciente] sentou-se e fitou atentamente o espaço. Disse-lhe que ele parecia
estar vendo algo. Ele respondeu que não podia ver o que havia visto. Eu fui
capaz de interpretar a partir de experiências prévias que ele sentiu que estava
“vendo” um objeto invisível, e experiência subsequente convenceu-me que [...] o
paciente tinha a experiência de ter alucinação visual-invisível. (1959, p.95-96).
xx
Essa experiência é relacionada à natureza do ataque ao ego e dos fragmentos resultantes.
A descrição de Bion é surpreendente: a cisão seria tão violenta e eficiente, que o ataque se daria
sobre a alucinação positiva e produziria fragmentos minúsculos a ponto de ficarem destituídos de
qualquer componente visual. O caso mostra a regressão do processo alucinatório da alucinação
positiva à negativa, bem como a destruição desse mesmo processo.
A “catástrofe de fim de mundo” e as “mudanças anormais no ego” descritas por Freud
(1911a) foram consideradas por Melanie Klein (1946) como expressões do predomínio dos
impulsos de destruição sobre a libido. As fantasias de destruição dos objetos internos e do ego
são projetadas no mundo e é dessa maneira que Klein compreende as ansiedades de perseguição
99
do paranoico. Aos olhos de Bion, a castração é vivida por seu paciente como um buraco maligno
que é uma fonte de perseguição e de ataque.
Em meio a essas concepções dos autores, há outra diferença fundamental entre a teoria de
Freud sobre a natureza da experiência que se dá a partir da perda do objeto, e as teorias de Klein e
de Bion sobre esta experiência na origem do psiquismo. Os comentadores que relacionam o
pensamento desses autores entre si concordam que se para Freud a saída encontrada diante de
uma realidade intolerável é alucinar uma experiência de satisfação, para Bion (1962b), a partir de
Klein, a ausência do objeto não é vivida num primeiro momento como a presença alucinada de
algo bom, e sim como a presença de um objeto mau. O sentimento de frustração pela falta do
objeto implica inicialmente a existência de um perseguidor e a ameaça de morte ou de
aniquilamento do ego.
No entanto, podemos entrever na descrição dessa experiência uma afinidade também
fundamental com a concepção de Freud sobre a alucinação negativa. No “Suplemento...” (1917),
Freud diz: “Acrescentaria como suplemento que qualquer tentativa de explicar a alucinação
deveria partir antes da alucinação negativa do que da positiva.” (1917, p. 232, grifo do autor).
xxi
Enquanto a alucinação positiva significa o acréscimo de percepção sobre a realidade, isto é, ver o
que não existe, a alucinação negativa diz respeito à ausência de percepção daquilo que se dá a
ver. Esse processo é associado ao mecanismo da Verleugnung, com o qual há a renegação de uma
realidade intolerável.
Vimos no primeiro capítulo que a Verleugnung, como todo processo defensivo, nunca
representa uma solução definitiva; a própria ambiguidade existente no termo renegar ou
desmentir, diferentemente das outras traduções possíveis para o termo, como negação, recusa,
rejeição, condiz com um aspecto da experiência em questão. Em “Fetichismo” (1927), a
Verleugnung é associada por Freud à presença de duas correntes mentais que coexistem lado a
100
lado sem se comunicarem, o que implica uma cisão do ego e uma configuração metapsicológica
considerada por Freud (1940a e b) como constitutiva do psiquismo e não exclusiva da perversão.
Hanns (1996), ao comentar sobre o significado do conceito, afirma:
A ‘negação’ empreendida pela Verleugnung é basicamente ligada à percepção de
uma presença, representada por uma Vorstellung [termo que significa tanto
representação quanto um pensar por imagens], cujo conteúdo é insuportável.
Entretanto, tratando-se de algo que é evidente e se impõe ao sujeito, esse
material permanece dialetizando com a tentativa do sujeito de não ‘vê-lo’. Não
se trata de uma negação que encontre resolução definitiva, pois o material
negado permanece presente, exigindo esforço para manter a negação. (p. 311).
Parece-nos que os autores que compreendem a experiência do objeto ausente como a
presença originária do objeto mau estariam se referindo ao que, na teoria de Freud, podemos
identificar ao aspecto rejeitado na operação da Verleugnung. A contribuição desses autores em
relação a Freud estaria em qualificar ou reconhecer esse aspecto como uma presença maligna.
Uma das experiências do paciente de Bion com a figura do gêmeo imaginário, descrita em seu
artigo de 1950, sugere a nós essa leitura das concepções de Freud. (No próximo capítulo,
apresentaremos outras alusões à Freud a partir da leitura desse artigo de Bion).
Com a sua teoria sobre o pensar apresentada nos anos 60, Bion contribuiu com as
concepções de Freud e de Klein sobre o psiquismo originário ao propor como se dá a passagem
da experiência da ausência do objeto, vivida como um objeto mau presente, para aquela em que
há desejo pelo objeto que está ausente.
7
A partir dessa teoria, Hanna Segal (1964) diz: “Se o bebê
puder tolerar a frustração e suas fantasias encontrarem uma realidade diferente de suas
7
Sobre este segundo momento, Meltzer (1992a) especifica qual a importância da teorização de Bion em relação às
de Freud e de Klein. “Ao ligar a dependência com a experiência do seio ausente como sendo o ‘primeiro
pensamento’, Bion sugeriu um significado novo e altamente adaptativo para o longo período de desamparo infantil,
implicando a necessidade de internalização da mãe como um objeto pensante e não meramente como um objeto
servidor [serving object]. Isso deu um novo significado à especulação de Freud sobre o narcisismo primário e uma
nova importância à datação de Melanie Klein sobre o início da posição depressiva.” (p. 43, grifos do autor). Nesse
sentido fica claro que, para Bion, o pensamento não é um substituto do desejo alucinatório enquanto busca
“sofisticada” por sua realização futura, tal como é para Freud (cf. 1911b).
101
expectativas, estabelece-se a diferenciação entre sua expectativa, que é o pensamento, e a
realidade da percepção.” (p. 73). Para o desenvolvimento psíquico é preciso que a experiência
com o objeto mau presente dê lugar à experiência de ausência enquanto ideia do objeto desejado.
No caso narrado em “A linguagem...” há uma correlação feita pelo paciente de Bion entre
comida, pensamento e verdade que, posteriormente será amplamente estudada pelo autor (BION,
1962b) com base nas seguintes questões: se pela ausência de alimento o paciente não pode
pensar, qual é então o alimento necessário para a sobrevivência e para o desenvolvimento da
mente? O que, na mente, equivale ao processamento do alimento? Qual a natureza, as
consequências e os destinos psíquicos de uma separação tão radical entre o que é material e a
vida emocional? Não chegaremos a discutir essas questões em nosso trabalho, mas podemos
observar as consequências dessa separação na descrição feita por Bion de seu paciente
apresentado no texto de 1955.
Analogamente a Édipo que, no mito fura seus olhos como uma forma de punição e,
simultaneamente, como uma forma de não ver a desgraça que se abateu sobre ele, o paciente de
Bion tenta resolver as ansiedades de castração emergentes aniquilando as funções do ego. Tanto
no exemplo emblemático de Édipo quanto no paciente descrito por Bion e nos pacientes de
Freud, há uma tentativa de resolução que é concreta, isto é, que não é narrada através da fala ou
de um sonho, mas de algo que efetivamente se faz na realidade, seja no corpo, na linguagem, na
forma de pensar, de (des)organizar as ideias, ou até mesmo em uma tentativa real de assassinato.
O paciente de Freud efetivamente se afasta das pessoas ao seu redor por conta da condição de sua
pele; isto é, segundo a abordagem de Bion, ele se afasta da realidade porque atacou as funções
que lhe permitem manter esse contato; ele de fato acredita que todos notam a cavidade em seu
rosto; em termos psicanalíticos, que todos notam a castração e a masturbação; que todos notam as
consequências de seu temor e de seu desejo.
102
Freud, em um de seus últimos trabalhos – “Esboço de psicanálise” – retomando a
associação entre “complexo de Édipo” e “complexo de castração” em uma nota de rodapé a essa
última expressão, diz: “A castração tamm tem lugar na lenda de Édipo, pois a cegueira com
que Édipo se pune após a descoberta de seu crime é, segundo a evidência dos sonhos, um
substituto simbólico da castração.” (1940a, p. 190).
xxii
Em 1919 no artigo “O estranho”, Freud ressalta a associação entre castração e olhos por
meio de um conto literário de Hoffmann sobre a temível figura do Homem da Areia,
representante do pai castrador. No conto, as crianças desobedientes seriam castigadas com a
perda da visão pelo Homem da Areia, o bicho papão de olhos, e esta seria uma ilustração da
aproximação feita por Freud entre sexualidade infantil, complexo de Édipo e castração.
Para Freud, a cegueira é um substituto da castração e os olhos são tanto um substituto do
pênis quanto são uma via de acesso à realidade insuportável do desejo e de suas consequências.
Para Bion, entre pênis e olhos não haveria uma substituição simbólica, e sim uma relação
concreta entre ambos, dada a partir do ego corporal, que, ao ser atacado em fantasia, inviabiliza
de fato a formação de pensamento, a linguagem e a própria atividade simbólica.
8
Bion discute o conflito edípico na psicose também em seu artigo “O gêmeo imaginário”
(1950) a partir da associação entre castração e um dos órgãos dos sentidos mais emblemáticos no
acesso à realidade, os olhos. Embora Bion não o cite, o artigo de Freud “O estranho” (1919),
entre outros, está presente no tema sobre o gêmeo enquanto duplo. No artigo, Bion mostra como
o paciente se torna mais capaz de tolerar a consciência da realidade interna e externa, passa a usar
seus órgãos dos sentidos para testar a realidade e promover o que autor chama de “intuição
terapêutica”. Esse será o assunto de nosso próximo capítulo.
8
A discussão sobre a concepção de símbolo para Bion e Freud não será feita nessa tese. Aos interessados, sugerimos
a leitura do trabalho de Hanna Segal (1957), onde há uma breve retomada do tema na psicanálise de tradição inglesa
e um emprego original do conceito de equação simbólica de Melanie Klein.
103
NOTAS DE FIM
i
[…] the new demands made a succession of adaptations necessary in the psychical apparatus, which, owing to our
insufficient or uncertain knowledge, we can only detail very cursorily. (FREUD, 1911b/1958, p. 219-220).
ii
I shall consider that succession of adaptations, which the new demands of the reality principle make necessary, in
the mental apparatus which, Freud says, “on the account of insufficient or uncertain
knowledge, we can only detail
very cursorily”, for I believe that certain experiences that have come my way enable me to make some suggestions
about them. (BION, 1955, p. 221).
iii
[...] Freud’s formula does, by pointing to the psychotic patient’s hostility to reality, and conflict with it, helps us to
grasp one element that determines the nature of the endo-psychic conflict […].(BION, 1955, p. 220-221).
iv
[…] is a hatred of reality which, as Freud pointed out, is extended to all aspects of the psyche that makes for
awareness of it. I add hatred of internal reality and all that makes for awareness of it. (BION, 1956/1993, p. 37).
v
One concomitant of the hatred of reality that Freud remarked is the psychotic infant’s phantasies of sadistic attacks
on the breast which Melanie Klein described as a part of the paranoid-schizoid phase. I whish to emphasize that in
this phase the psychotic splits his objects, and contemporaneously all that part of his personality, which would make
him aware of the reality he hates, into exceedingly minute fragments […]. (BION, 1957a/1993, p. 47).
vi
In my view, what Freud describes as the institution of the reality principle is an event that has never been
satisfactorily achieved by the psychotic […]. The reality principle, if it were allowed to operate, would make the
psychotic infant aware of his relationship with whole objects, and thereby of the feelings of depression and guilt
associated with the depressive position. (BION, 1955, p. 221).
vii
[…] all those features of the personality which should one day provide the foundation for intuitive understanding
of himself and others are jeopardized at the outset. (BION, 1957a/1993, p. 47).
viii
Expressed in the language of the oldest – the oral – instinctual impulses, the judgment is: ‘I should like to eat this’,
or ‘I should like to spit it out’; and, put more generally: ‘I should like to take this into myself and to keep that out’.
That is to say: ‘It shall be inside me’ or ‘it shall be outside me’. As I have shown elsewhere, the original pleasure-ego
wants to introject into itself everything that is good and to eject from itself everything that is bad. What is bad, what
is alien to the ego and what is external are, to begin with, identical. (FREUD, 1925/1975, p. 237).
ix
The polarity of judgement appears to correspond to the opposition of the two groups of instincts which we have
supposed to exist. Affirmation – as a substitute for uniting – belongs to Eros; negation – the successor to expulsion –
belongs to the instinct of destruction. The general wish to negate, the negativism which is displayed by some
psychotics, is probably to be regarded as a sign of a defusion of instincts that has taken place through a withdrawal of
the libidinal components. (FREUD, 1925/1975, p. 239).
x
The patient who consistently ‘cannot understand’ may not simply be resisting, but resisting in a particular way.
Indeed it may be that here lies the essential difference between the resistance as something peculiar to the neurotic
and relegation to the unconscious, and psychotic destruction of the means for understanding […]. ‘I do not
understand’, or ‘do not know why’, or ‘do not know how’, etc. may be taken either as a positive statement of
inability to dream, or a defiant assertion of a capacity for not dreaming. (BION, 1994a, p.37, grifos do autor).
xi
There may be persons, but not personality unless there is a function of self consciousness. (BION, 1994a, p.76-77).
xii
[…] the analyst does not meet a personality, but a hastily organized improvisation of a personality […] It is an
improvisation of fragments […]. (BION, 1994a, p. 74).
xiii
He himself was ‘the only real man left alive’, and the few human shapes that he still saw […] he explained as
being ‘miracled up, cursorily improvised men’. Occasionally the converse current of feelings also made itself
104
apparent: a newspaper was put into his hands in which there was a report of his own death; he himself existed in a
second, inferior shape, and in this second shape he one day quietly passed away. (FREUD, 1911a/1958, p. 68).
xiv
[…] the patient makes destructive attacks on all those aspects of his personality, his ego, that are concerned with
establishing external contact and internal contact. (BION, 1955, p. 221).
xv
A patient whom I have at present under observation has allowed himself to be withdrawn from all the interests of
life on account of a bad condition of the skin of his face. He declares that he has blackheads and deep holes in his
face which everyone notices. Analysis shows that he is playing out his castration complex upon his skin. At first he
worked at these blackheads remorselessly; and it gave him great satisfaction to squeeze them out, because, as he said,
something spurted out when he did so. Then he began to think that a deep cavity appeared whenever he had got rid of
a blackhead, and he reproached himself most vehemently with having ruined his skin for ever by ‘constantly fiddling
about with his hand’. Pressing out the content of the blackheads is clearly to him a substitute for masturbation.
(FREUD, 1915b/1958, p. 199-200).
xvi
In discussing one of the cases I quote, he says, ‘Analysis shows that he is working out his castration complex upon
his own skin’. (BION, 1955, p. 222).
xvii
I shall suggest, relating my experiences to Freud’s formula that in psychosis the conflict is between the ego and
the environment, that this view of his patient would be even more fruitful if we suppose that the psychotic’s
castration are worked out on his mental skin – i.e. on the ego; more precisely still, castration of the ego is identical
with destructive attacks on (i) the consciousness attached to the sense organs; (ii) attention […]; (iii) the system of
notation […]; (iv) the passing of judgment […]; (v) and finally thought […]. (BION, 1955, p. 222).
xviii
Patient. I picked a tiny piece of skin from my face and feel quite empty.
Analyst. The tiny piece of skin is your penis, which you have torn out, and all your insides have come with it.
P. I do not understand...penis...only syllables.
A. You have split my word ‘penis’ into syllables and it now has no meaning.
P. I don’t know what it means, but I want to say, ‘If I can’t spell I can’t think’.
A. The syllables have now been split into letters; you cannot spell – that is to say you cannot put the letters together
again to make words. So now you cannot think.
The patient started the next day’s session with disjointed associations and complained that he could not think. I
reminded him of the session I have just described, whereupon he resumed correct speech thus:
P. I cannot find any interesting food.
A. You feel it has all been eaten up.
P. I do not feel able to buy any new clothes and my socks are a mass of holes.
A. By picking out the tiny piece of skin yesterday you injured yourself so badly you cannot even buy clothes; you are
empty and have nothing to buy them with.
P. Although they are full of holes they constrict my foot.
A. Not only did you tear out your own penis but also mine. So to-day there is no interesting food – only a hole, a
sock. [...]
This and subsequent sessions confirmed that he felt he had eaten the penis and that therefore there was no interesting
food left, only a hole. But this hole was now so persecutory that he had to split it up. As a result of the splitting the
hole became a mass of holes which all came together in a persecutory way to constrict his foot. This patient’s picking
habits had been worked over for some three years. At first he had been occupied only with blackheads, and I shall
quote from Freud’s description of three cases, one observed by himself, one by Dr. Tausk and one by R. Reitler,
which have a resemblance to my patient. (BION, 1955, p. 229).
xix
[…] in my view verbal thought is the essential feature of all five functions of the ego and that the destructive
attacks on verbal thought or its rudiments is inevitably an attack on all. (BION, 1955, p. 222).
xx
He sat up and stared intently into space. I said that he seemed to be seeing something. He replied that he could not
see what he saw. I was able from previous experience to interpret that he felt he was “seeing” an invisible object and
subsequent experience convinced me that […] the patient experienced invisible-visual hallucinations. (BION,
1959/1993, p. 95-96).
105
xxi
I may add by way of supplement that any attempt to explain hallucination would have to start out from negative
rather than positive hallucination. (FREUD, 1917, p. 232).
xxii
Castration has a place too in the Oedipus legend, for the blinding with which Oedipus punishes himself after the
discovery of his crime is, by the evidence of dreams, a symbolic substitute for castration. (FREUD, 1940a/1964, p.
190).
106
CAPÍTULO 3 – O GÊMEO IMAGINÁRIO E O ESTRANHO NO LIMIAR DA
POSIÇÃO DEPRESSIVA
3.1 Notas sobre a leitura e a interpretação dos textos em discussão
O título “O gêmeo imaginário” dá nome ao trabalho apresentado por Bion em 1950 à
Sociedade Britânica de Psicanálise com vistas a se tornar Membro Efetivo. O título também
dá nome a uma personificação da realidade psíquica do paciente descrito no artigo, mas não
enquanto um objeto pertencente exclusivamente à sua vida de fantasia. Até então
desconhecida de ambos, essa personificação emergiu na transferência a partir da atenção de
Bion ao modo como o paciente sentia as interpretações, ao ritmo existente entre as
associações e as interpretações, e não somente ao conteúdo das mesmas. A figura de um
gêmeo imaginário, isto é, inexistente na história de vida do paciente, serviu a Bion como
objeto de interpretação enquanto um fato novo na análise e desencadeou mudanças
importantes no processo analítico.
1
Embora Bion não faça uma menção explícita, o artigo de Freud “O estranho” (1919)
está presente em diferentes passagens de seu texto quase como uma sombra ou como pano de
fundo de certas afirmações. Comumente se nota (cf. CHUSTER,1999) e de certo é curioso o
fato de Bion não fazer uma referência direta a este trabalho de Freud, ou mesmo a outros
trabalhos do autor que tematizam sobre a relação entre a acuidade dos órgãos dos sentidos e o
1
A existência do gêmeo como um objeto que emergiu da interação da dupla analista e paciente, e que foi criado
por Bion a partir da percepção da qualidade dessa interação, e não só da escuta dos conteúdos intrapsíquicos do
paciente, está no bojo das contribuições feitas na época em relação às concepções clássicas de Freud e Melanie
Klein sobre a transferência e a contratransferência. A atenção aos estados afetivos eliciados no analista e à
comunicação não verbal era uma temática polêmica e cada vez mais discutida entre os analistas. Porém, a ênfase
de Bion sobre a produção de sentido dada a partir da relação intersubjetiva, o interesse pelos fatores que o
fizeram chegar à ideia do gêmeo e as implicações dos mesmos para a teoria da técnica farão parte de suas
teorizações somente no final dos anos 50 com a constatação do caráter comunicativo da identificação projetiva e,
nos anos 60, com a noção de função-alfa (cf. BION, 1957b, 1959, 1962b).
107
desenrolar da situação edípica que, junto ao tema do duplo, compunham a problemática do
paciente de Bion. Chuster (1999) diz:
[...] o que chama a atenção é o fato de Bion não citar o trabalho de Freud que
tem tudo a ver com suas descrições da fantasia do gêmeo imaginário: “O
estranho” (1919), mais especificamente quando fala do ‘duplo’. O gêmeo
imaginário, onipotentemente controlado num ‘continente’, por representar a
projeção de aspectos maus e agressivos, tal como no Retrato de Dorian Grey
[...] é um duplo no pleno sentido freudiano: uma parte má ‘recalcada’ retorna
produzindo os sentimentos desagradáveis de estranheza, ameaça, ou terror.
(p. 55).
A existência de sintomas obsessivos no paciente de Bion, como o temor à
contaminação e a fantasia de infecção sifilítica dos olhos enquanto um substituto do pênis nos
faz pensar na semelhança de seu caso com o clássico de Freud (1909) “O homem dos ratos”.
Além de “O estranho” (1919), há ao menos esse outro trabalho de Freud que pode ser
reconhecido por nós e com o qual podemos estabelecer uma relação de semelhança, parecida
com aquela estabelecida por Bion com o caso descrito por Freud em “O inconsciente”
(1915b) no artigo seguinte ao do gêmeo, “Notas sobre a teoria da esquizofrenia” (1954) e em
sua versão expandida, “A linguagem e o esquizofrênico” (1955).
Para Chuster, a razão do silêncio de Bion em relação a “O estranho” (1919) e,
supomos, também em relação a “Notas sobre um caso de neurose obsessiva” (1909), estaria
no fato de a repressão não ser o mecanismo em jogo nos processos psíquicos de seu paciente.
Além disso, o artigo de Bion confirma e ilustra clinicamente as teorias de Melanie Klein sobre
a antecipação do complexo de Édipo aos primeiros meses de vida do bebê. Imerso na tradição
kleiniana, Bion se deparou com expressões do mecanismo da recusa, da cisão e da
identificação projetiva – o que revela diferenças profundas na concepção de transferência dos
autores e no tipo de psicopatologia em questão. Segundo Chuster, no caso narrado por Bion
não seria algo do reprimido que retorna e gera os sentimentos de estranheza, e sim algo mais
próximo do que Freud, em Além do princípio do prazer (1920), procurava conceituar na
108
mesma época em que escrevia “O estranho”, qual seja, a compulsão à repetição e sua relação
com a pulsão de morte. A tradição freudiana de pensamento pode ser reconhecida e se faz
presente no texto de Bion de maneira silenciosa também em relação ao artigo de 1920.
Se Chuster tem a sua atenção capturada para a falta de referência de Bion ao trabalho
de Freud de 1919 e se encontra uma justificativa teórica para tal é porque, de algum modo, ele
tem a expectativa de encontrar no texto a explicitação de possíveis afinidades. Dentro dessa
lógica, Chuster deixa sem explicação o silêncio de Bion em relação ao trabalho de 1920. Em
certo sentido, essa expectativa é estimulada por outros artigos de Bion da mesma época, em
que referências a Freud são feitas com diferentes objetivos: para ressaltar semelhanças entre
casos clínicos; indicar de onde retirou conceitos que sustentaram certas investigações clínicas
e teóricas; prestar tributo a ideias que contribuíram com o seu trabalho; mostrar diferenças na
forma de abordar conceitos e fenômenos clínicos. Tudo isso é o que se espera encontrar em
textos com uma proposta científica nos quais há a comprovação de teses, contraposições em
relação a concepções consagradas na área em questão, contribuições e confirmações de
teorias. Porém, notamos que Bion escreve voltado para a prática clínica e nem sempre há uma
preocupação em manter uma escrita sistemática. Grande parte de seu objetivo é descrever
fenômenos observados no consultório, organizá-los em torno de teorias consagradas ou de
ideias que precisariam ser ainda formuladas em conceitos.
Quanto à nossa leitura do artigo “O gêmeo imaginário”, embora notemos afinidades
entre Bion e Freud através da temática da compulsão a repetir, e apesar das diferenças
evidentes entre as abordagens conceituais dos autores (que passam pelas concepções
singulares de Melanie Klein sobre a pulsão de morte e sobre as defesas psicóticas
relacionadas à inibição intelectual e aos sintomas obsessivos), não será nosso objetivo
principal nos reportarmos a elas. Pretendemos explicitar as passagens de textos de Freud que
pareciam acompanhar a elaboração de seu artigo e, assim, trazer para um primeiro plano as
109
aproximações que se insinuam a nós. Estas aproximações não revelam necessariamente
igualdades e, certamente, estão acompanhadas por dessemelhanças nos pressupostos teóricos
e na técnica dos autores. Por extensão, poderemos ter uma ideia do posicionamento de Bion
em relação a certas concepções freudianas. Da mesma forma que fizemos nos capítulos
anteriores, referências à teoria de Melanie Klein serão evocadas no texto a fim de
contextualizar o pensamento de Bion. Antes, porém, um adendo.
Em 1967, com a republicação em Second Thoughts (1993) de seus artigos escritos nos
anos 50, Bion faz um comentário sobre “O gêmeo imaginário” que coloca o mesmo em
diálogo com ideias de Freud apresentadas em “Notas sobre um caso de neurose obsessiva”
(1909). Freud, na introdução de seu trabalho e antes de apresentar “O homem dos ratos” ao
leitor, menciona algumas dificuldades éticas relacionadas à publicação de um caso e à
comunicação do material clínico ao mesmo tempo em que se pretende preservar a identidade
do paciente. De um lado, as distorções necessárias ao sigilo poderiam ser inúteis; de outro,
poderiam ser tão grandes a ponto de prejudicarem a compreensão do material. Uma saída
encontrada por Freud é a divulgação dos segredos mais íntimos do paciente ao invés de fatos
de seu cotidiano. Essa alternativa não deixa de ser problemática, uma vez que as resistências
limitam o acesso à vida mental. No entanto, e independentemente desses fatores, Freud
admite haver uma grande dificuldade em compreender a linguagem da neurose obsessiva.
Finaliza suas considerações introdutórias com uma afirmação modesta porém otimista:
Nessas circunstâncias, não há alternativa senão relatar os fatos do modo
imperfeito e incompleto no qual são conhecidos e pelo qual é legítimo que se
os comunique. As migalhas de conhecimento oferecidas nestas páginas,
embora tenham sido recolhidas com suficiente laboriosidade, não podem, em
si, dar provas de serem muito satisfatórias; mas podem servir de ponto de
partida para o trabalho de outros investigadores, e um esforço comum poderá
trazer o êxito que talvez esteja além do alcance do esforço individual. (1909,
p. 157).
i
110
O êxito a que Freud se refere é sanar imperfeições e complementar um conhecimento
que, por hora, pôde ser apenas apresentado de modo incompleto. Quase que mimetizando a
ânsia de seu paciente por clareza e pela eliminação de dúvidas em relação ao significado de
palavras e comportamentos
2
, afirma:
Como sabemos, ideias obsessivas parecem não ter motivo ou significado,
assim como os sonhos. O primeiro problema é saber como dar a elas um
sentido e um status na vida mental do sujeito, de modo a torná-las
compreensíveis e, até mesmo, óbvias. O problema de traduzi-las pode
parecer insolúvel; mas nunca devemos nos deixar enganar por esta ilusão. As
ideias obsessivas mais selvagens e excêntricas podem ser esclarecidas caso
sejam investigadas profundamente o bastante. (1909, p. 186).
ii
Com uma preocupação epistemológica semelhante, mas com o objetivo de
problematizar a comunicação e a apreensão do conhecimento obtido na prática psicanalítica,
Bion comenta:
As distorções do passado do paciente feitas em “O gêmeo imaginário” foram
delineadas com o propósito de prevenir a ele ou a quem quer que o conheça
de pensar que se referem a ele. Tais objetivos subestimam o poder do rumor
e da suspeita. Se as distorções são julgadas como efetivas, a narrativa deve
ser considerada uma ficção. Se a narrativa fosse uma obra de arte, seria
razoável considerá-la como mais representativa da verdade que qualquer
transcrição literal; mas este psicanalista não é um artista. Expectativas de
que o registro representa o que realmente ocorreu devem ser descartadas
como vãs. (1967, p. 120).
iii
Em seus comentários sobre “O gêmeo imaginário”, Bion não faz menção alguma ao
trabalho de Freud de 1909, mas suas ideias nos remetem aos pressupostos epistemológicos
que embasam a introdução de “Notas sobre um caso de neurose obsessiva”, assim como
marcam uma diferença e uma crítica em relação aos mesmos. Questões relativas à natureza da
experiência psicanalítica, à verdade e à memória, com suas inevitáveis distorções, lapsos e a
impossibilidade de se garantir a sua autenticidade ao se fazer o relato de um caso estão em
2
Sobre seu paciente, Freud diz: “Ele se forçava a compreender o significado exato de toda sílaba que era a ele
endereçada, como se estivesse perdendo um tesouro inestimável.” (1909/1957, p. 190).
111
jogo nos pressupostos de Bion, da mesma forma que a autenticidade das lembranças que
emergem em uma análise está em jogo para Freud.
Diferentemente do Bion de “O gêmeo imaginário” e do Freud de “O homem dos
ratos”, nos comentários feitos em Second Thoughts nos deparamos com um Bion que traz
para um primeiro plano de análise discussões sobre a influência das vidas mentais do analista
e do paciente, e discussões sobre a natureza da realidade psíquica na produção e na
transmissão de conhecimento em psicanálise. Pré-concepções derivadas da experiência com
certo paciente determinam a qualidade do relato de um caso, tanto quanto o que há de
inapreensível, de oculto e de não familiar em uma experiência determinam a possibilidade de
que exista uma compreensão e uma apreensão plena e definitiva da experiência. Podemos ler
a citação de Bion reproduzida acima a partir da temática epistemológica sobre o
conhecimento psicanalítico, mas também a partir do conhecimento passível de ser obtido de
um paciente em análise. A frase de Bion “As distorções do passado do paciente feitas em ‘O
gêmeo imaginário’ foram delineadas com o propósito de prevenir a ele ou a quem quer que o
conheça de pensar que se referem a ele”, pode ser lida do ponto de vista do analista que
comunica um caso, assim como do ponto de vista do analista que escuta a narrativa de um
paciente durante a sessão. Em ambos é colocado em questão o estatuto da memória, assim
como do desejo e da compreensão na produção de conhecimento em psicanálise, seja dentro
ou fora da sala de análise.
Ao levantarmos esse assunto, nossa ideia não é discutir as visões de Freud e de Bion
sobre a crença de que os fatos de uma experiência podem ser reproduzidos sem distorções, tal
e qual ocorreram. O tema merece um trabalho à parte e ajudaria a situar certas ideias de Bion
em relação às diferentes concepções de Freud sobre o tema ao longo de sua obra. Fizemos
esse desvio para ilustrar como, em 1967, Bion parece falar a partir de Freud ao problematizar
pressupostos que podem ser encontrados em um trabalho como “Notas sobre um caso de
112
neurose obsessiva” (FREUD, 1909). A alusão ao mesmo está inserida na discussão sobre o
problema do conhecimento na psicanálise – uma questão que interessava aos dois autores.
Bion está certamente promovendo um diálogo intertextual com Freud; porém, isso é feito
através de insinuações não porque deseja manter as referências explícitas silenciadas e sim,
porque Bion escreve de dentro de uma tradição e, ao fazê-lo, leva e não leva em conta
abordagens daquele autor no estabelecimento das bases de seu próprio pensamento. Há
alusões a “Notas...” também no caso clínico discutido por Bion em 1950, feitas
predominantemente por via da tradição de pensamento kleiniana.
Com nossa leitura do artigo “O gêmeo imaginário” (1950) mostraremos a maneira
com que trabalhos como “Notas...” (1909), “O estranho” (1919) e outros textos de Freud se
fazem presentes tendo em vista as questões que interessavam a Bion naquele momento.
Primeiramente, retomaremos de modo breve o artigo de Freud de 1919 e, a partir de então,
discutiremos o artigo de Bion de 1950 levando em conta esse e outros trabalhos de Freud que
podem ser reconhecidos por nós e que compõem uma parcela da herança freudiana em seu
pensamento.
3.2 O estranho e o gêmeo: o duplo em Freud e Bion
No texto “O estranho” (1919), Freud discorre sobre a gênese psicológica do
sentimento de estranheza, daquilo que nos parece sinistro, inquietante e não familiar
(unheimlich), situando-o no retorno do reprimido à consciência e no ressurgimento de
processos psíquicos primitivos que estariam sobrepujados pelo princípio de realidade. Freud
diz: “O tema do estranho [...] está, sem dúvida, relacionado ao que é assustador – ao que
desperta temor e horror.” (p. 219).
iv
Ao procurar ser mais específico quanto a esse sentimento,
113
afirma: “[...] o estranho é aquela classe do assustador que remete ao que é conhecido, de
velho, e há muito familiar.” (p. 220).
v
A ambiguidade presente no significado em alemão dos termos heimlich (familiar,
conhecido) e unheimlich (estranho, sinistro) utilizados por Freud, expressa uma proximidade
inexistente na tradução dos mesmos para o português entre o que é familiar e o que é
estranho. Essa relação ambígua no alemão é compreendida por Freud em termos psicológicos
da seguinte maneira: aquilo que gera o sentimento peculiar de estranhamento é algo
conhecido, mas que está oculto e escondido.
O tema da repressão é mais uma vez evocado por Freud em sua obra através da
linguagem, da cultura (com o mito de Édipo) e das artes (com a literatura fantástica) a fim de
ilustrar suas ideias sobre os mecanismos envolvidos na produção da neurose. Freud faz uso de
um conto de E.T.A. Hoffmann sobre o “Homem da Areia”, a partir das considerações de outro
autor, Jentsch, que cita esse mesmo conto em seus estudos sobre o sentimento de estranheza.
Diferentemente de Jentsch, Freud pensa que
[...] o sentimento de algo estranho está diretamente atrelado à figura do
Homem da Areia, isto é, à ideia de se ter os olhos roubados, e que o ponto de
vista de Jentsch de uma incerteza intelectual não tem nada a ver com o efeito
[de estranhamento]. A incerteza quanto a um objeto ser vivo ou inanimado,
que se aplica à boneca Olympia, é irrelevante em relação a esse outro
exemplo mais espantoso de estranheza. (p. 230).
vi
Mais adiante em seu texto, Freud retoma o mito de Édipo e o complexo de castração
ao notar a conexão estabelecida por Hoffmann entre a curiosidade da personagem do conto, o
ato de espiar e o dano aos olhos. A fim de justificar a um possível leitor incrédulo a analogia
entre o conto e o mito, e a associação entre o Homem da Areia e o pai castrador, Freud
levanta as seguintes perguntas:
114
Por que, então, Hoffmann colocou em uma conexão tão íntima a ansiedade
em relação aos olhos e a morte do pai? E por que o Homem da Areia aparece
sempre como um perturbador do amor? Ele separa o desafortunado Nataniel
da sua noiva e do irmão dela, seu melhor amigo; ele destrói o segundo objeto
do seu amor, Olympia, a adorável boneca; e leva-o ao suicídio no momento
em que recuperou a sua Clara [...]. (p. 231).
vii
Em alusão à fantasia da cena primária, aos desejos edipianos e suas consequências,
Freud conclui:
O estudo dos sonhos, das fantasias e dos mitos ensinou-nos que a ansiedade
em relação aos próprios olhos, o medo de ficar cego, é frequentemente um
substituto do temor de ser castrado. O autocegamento do criminoso mítico,
Édipo, era simplesmente uma forma atenuada do castigo da castração — o
único castigo que era adequado a ele pela lex talionis. (p. 231).
viii
Há muito que esse tema vinha sendo discutido por Freud em seus trabalhos. A relação
entre o estranho, o mecanismo da repressão, a neurose obsessiva, bem como as inibições
relacionadas à sexualidade e as pulsões de olhar e de conhecer está presente na discussão de
um de seus principais casos clínicos: “O homem dos ratos”. Freud diz, “As histórias de
pacientes obsessivos invariavelmente revelam um desenvolvimento precoce e uma repressão
prematura do instinto sexual de olhar e conhecer (o instinto escopofílico e epistemofílico)
[...]” (1909, p. 245).
ix
Na neurose, o desejo de conhecer, de pesquisar, bem como a atividade
sexual genital sofre graves restrições e torna o relacionamento humano empobrecido. Esse
tema interessou particularmente a Melanie Klein; foi desenvolvido em seus artigos desde a
década de 1920 e foi desdobrado por vários de seus colaboradores, como Bion.
3
3
Enquanto que, para Freud, a capacidade intelectual é uma sublimação da libido e do desejo de conhecer,
podendo ser inibida pelas ansiedades de castração, para Klein, a pulsão epistemofílica deriva do sadismo arcaico
direcionado ao interior do corpo da mãe. Fantasias agressivas despertam ansiedades paranoides e depressivas
que, por sua vez, acarretam defesas causadoras de inibição intelectual. Em nota da comissão editorial inglesa à
publicação do artigo de Klein “Uma contribuição à teoria da inibição intelectual” (1931), lemos: “Ansiedades a
respeito da condição perigosa do corpo da mãe e, por extensão, da realidade externa, interferem na livre
exploração do mundo exterior, enquanto o medo de perigos no próprio self, principalmente a presença
ameaçadora do superego primitivo, impede a auto-exploração.” (In: Klein, 1996, p. 269). Segundo Klein, a
inibição ocorre pela defesa contra o sadismo e pela formação de um superego que põe em prática retaliações tão
ou mais cruéis e implacáveis quanto o impulso de agredir. A base do superego é composta de figuras
aterrorizantes e severas e nos perguntamos se, nesta chave de leitura, Bion considerava o aspecto maligno do
115
A emergência do sentimento de estranheza é associada por Freud à ansiedade de
castração e, ainda, ao fenômeno do duplo. Este é ilustrado por meio das seguintes situações:
telepatia; semelhança entre pessoas; identificação com outrem a ponto de haver confusão de
identidade; repetição de ações, de traços de caráter e de nomes entre as gerações de uma
família. O fenômeno do duplo foi discutido por seu colega Otto Rank e foi exemplificado
através da imagem da sombra, do reflexo no espelho e da crença em espíritos. Para Rank, a
existência do duplo promoveria “uma segurança contra a destruição do ego, uma ‘negação
enérgica do poder da morte’” (FREUD, 1919, p. 235).
x
Sob essa perspectiva, a ideia do duplo
nasceria “[...] do solo do amor-próprio ilimitado, do narcisismo primário que domina a mente
da criança e do homem primitivo.” No entanto, continua Freud, “[...] quando essa etapa é
superada, o ‘duplo’ inverte seu aspecto. De garantia de imortalidade, o duplo torna-se o
estranho anunciador da morte.” (Ibid., p. 235).
xi
A partir de agora, procuraremos tornar audível as ressonâncias dessas e de outras
concepções de Freud no artigo de Bion. Além do gêmeo e do duplo, vale adiantar que entre os
artigos dos autores podemos estabelecer os seguintes binômios: gêmeo e autômato (associado
no conto de Hoffmann à boneca Olympia, que revela ser o duplo inanimado de Nataniel);
gêmeo e Homem da Areia; oftalmologista e oculista; e ao binômio olho infeccionado,
contaminado ou afetado e olhos roubados ou arrancados.
Em “O gêmeo imaginário” (BION, 1950), as descrições do caso clínico indicam que
se tratava de um paciente com uma neurose obsessiva grave. O tema central da análise era a
contaminação: o paciente tinha a necessidade proteger a sua cabeça do travesseiro com as
mãos; estava impossibilitado de trocar um aperto de mão; tinha a sensação de contaminar e de
ser contaminado no banheiro e ao ter alguém sentado atrás de si e vice-versa; em fantasia,
gêmeo como parte desse superego arcaico. Somente em 1958 Klein mudará sua ideia sobre a formação do
superego, dizendo que as figuras mais severas ocupam uma região separada na mente.
116
infectava alguém com uma agulha que foi mal esterilizada; perguntava-se se seu pênis estava
ereto; sentia-se sujo por ter sensações sexuais em relação a seus alunos.
A qualidade do contato inicial com o paciente é descrita por Bion como superficial e
mecânica; a conversa foi estabelecida pelo paciente com uma indiferença monossilábica que
persistiu pelas sessões. Sua entonação era esvaziada de emoções; as associações pareciam
gastas; tinham um caráter lúgubre; transmitiam sensação de chateação e de depressão.
Vimos acima que, para Jentsch, a origem do sentimento de estranheza estaria na
dúvida se um objeto é animado ou inanimado, na perturbação de não se saber se está vivo ou
não. Algo do teor dessa dúvida, agora do ponto de vista da distinção entre o que é real e o que
é imaginário, parece ter ocorrido a Bion quando ele nota a forma como o paciente transmitia
algumas informações. Em certo momento, Bion se deu conta de que aquilo que entendera ser
uma afirmação do paciente sobre o que este pensava em fazer no futuro próximo era algo que
de fato ocorria, porém, apenas em pensamento. “Foi revelado então que muitas conversas
introduzidas pela frase ‘Estava pensando em falar com o Sr. X [...]’ eram conversas
imaginárias [...].” (BION, 1950, p. 6).
xii
Esse fenômeno certamente não é da ordem do
estranho, conforme a explicação de Freud, mas revela como o analista pode ser pego de
surpresa em relação a alguma crença que inadvertidamente fora levado a formar. Esse efeito
força o reposicionamento do analista em relação ao paciente, a interrogação acerca de seus
pressupostos e do que, até então, era dado como garantido e familiar.
Neste momento é o teste de realidade que entra em operação na escuta de Bion e
marca a distinção entre um pensamento que está apoiado em eventos do mundo externo e uma
atividade mental que o desconsidera. Daí a conclusão a que Bion chega – notem que em sua
fala ao paciente não há a especificação do sujeito da oração: “Mencionei então que soava
como se não estivesse sendo feita uma clara distinção entre o real e o imaginário.” (p. 6).
xiii
Se pensarmos que é o teste de realidade que está suspenso nesta situação, perguntamos: o que
117
contribuiu para que ele deixasse de operar? Bion não coloca essa questão em relação à sua
própria escuta, mas mostra em seu artigo como o paciente pôde, aos poucos, indagar-se acerca
da eficácia de seus órgãos dos sentidos e usá-los para entrar em contato com a realidade.
Voltaremos a isso no item 3.4.
Nas associações do paciente, Bion reconhecia a presença de material edípico, diz ele,
em um plano superficial, e declara que a interpretação do mesmo soava enfadonha, estúpida e
era recebida pelo paciente com indiferença. O analista parecia um pai reclamando a uma
criança teimosa e refratária. Contudo, Bion notou a existência de um ritmo entre as
associações e as interpretações que, somado ao conteúdo das mesmas, revelou-se uma
importante fonte de informação sobre a maneira como paciente conseguia tolerar a análise e o
analista. Fazendo uso de fragmentos de informações recolhidos das associações do paciente,
mas não apenas delas, Bion apresenta ao paciente a seguinte interpretação transferencial:
“[...] chamei sua atenção a peculiaridades em seu comportamento, notadamente o ritmo
‘associação-interpretação-associação’ que indicava que eu era um gêmeo seu que o apoiava
na fuga jocosa de minhas queixas e, desse modo, suavizava seu ressentimento.” (p. 7-8).
xiv
Ante a interpretação, o paciente se sente cansado e sujo. O termo em inglês usado por
Bion para descrever esse estado é unclean que, além de significar o que não está limpo ou a
falta de asseio, carrega o sentido de impureza no sentido moral. O paciente está sujo porque se
sente imoral, e isso tem uma repercussão importante do ponto de vista da relação entre
agressividade e culpa no conflito edípico. A suposição de que o paciente carregava consigo
uma família tóxica e venenosa podia ser agora reconhecida como parte de seu mundo interno:
Bion diz, “[...] era a primeira ocasião em que tive dele uma demonstração tão dramática do
ato de introjetar objetos.” (1950, p. 8).
xv
Outra resposta do paciente à interpretação foi sonhar. Em seu sonho, uma figura
terrível e ameaçadora impedia a possibilidade de o paciente sair do carro em que estava. As
118
sensações do paciente relacionadas à sujeira, o sonho, e a interpretação subsequente de Bion
revelam a outra face da figura do duplo. Descrita por Freud como garantia de imortalidade, de
amor narcísico ilimitado, de uma compreensão plena que está além das palavras (telepatia), o
duplo também é o arauto da morte. Num primeiro momento, o gêmeo era uma figura
idealizada positivamente; tinha a função de negar uma realidade diferente do esperado e fora
do controle onipotente do paciente. Num segundo momento, a interpretação de Bion sobre o
gêmeo transformou o analista naquele que, ao invés de ajudá-lo a reconhecer a realidade
psíquica em questão, fazia uso da interpretação para imobilizar o paciente, prendê-lo à análise
e lhe deixar sem vida. O analista, idealizado de maneira negativa, acusa e rivaliza com ele
como um pai em relação ao filho, mas não só. Esta configuração edipiana torna-se um tanto
quanto elaborada para caracterizar o aspecto pulsional, aterrorizante e demoníaco de um
gêmeo que, até então, inexistia enquanto um objeto personificado em fantasia. Para Bion, o
sonho mostrava que
[...] eu mesmo era a figura ameaçadora e também era o gêmeo imaginário
[...]. O gêmeo era imaginário porque meu paciente impediu seu nascimento –
de fato não havia gêmeo. Seu uso de um gêmeo como meio de aliviar
ansiedade era, portanto, ilegítimo e o gêmeo estava determinado a que o
paciente agora não nascesse, ou, em outras palavras, alcançasse liberdade ou
independência. [...] A análise era o carro do qual eu não tive permissão de
emergir como um ser real; o sonho mostrava seu medo de que na sessão
anterior eu me tornei vivo apenas para bloquear a sua fuga da análise [...].
(1950, p. 8-9).
xvi
O sonho, enquanto resposta à interpretação de Bion, revela a natureza da projeção com
a qual o analista era identificado; o paciente vivia com o analista a morte da relação analítica
pela transformação da interação da dupla em um encontro estéril. A queixa sintomática
aparecia na impossibilidade mesma de se investigar e de se conhecer a vida mental do
paciente com o risco de que algo terrível acontecesse, como a contaminação por uma doença
contagiosa. A emergência do duplo na forma de figura ameaçadora personificava a reedição
119
contínua, na análise e na vida do paciente, de um aniquilamento da existência e de qualquer
possibilidade de desejo que não o de morte. Aqui, há uma maior proximidade da noção do
duplo como representante da compulsão à repetição do que como retorno do reprimido.
Freud (1919), em alusão ao trabalho que estava por ser publicado em 1920, e à
imprecisão quanto à natureza do que se repete como estranho, diz:
O modo com que exatamente podemos atribuir à psicologia infantil o efeito
estranho de semelhantes recorrências é uma questão que posso tocar apenas
levemente nestas páginas; e devo referir o leitor a outro trabalho [Além do
Princípio do Prazer] [...]. Pois é possível reconhecer o predomínio, na mente
inconsciente, de uma ‘compulsão à repetição’, procedente dos impulsos
instintuais e, provavelmente, inerente na natureza mesma dos instintos —
uma compulsão poderosa o bastante para prevalecer sobre o princípio de
prazer, emprestando a certos aspectos da mente o seu caráter demoníaco [...]
Todas essas considerações preparam-nos para a descoberta de que o que quer
que nos lembre esta íntima ‘compulsão para repetir’ é percebido como
estranho. (p. 238).
xvii
O gêmeo, idealizado positivamente como um objeto mágico e investido
narcisicamente, revela sua face mortífera. Palavras como tédio, chateação (boredom), o estado
envelhecido e gasto das associações (stale associations), seu efeito soporífico (soporific
effect), a sensação de que o tratamento não levava a lugar algum (dead-end) – que também
podemos associar a uma expressão não usada por Bion, mas que significa beco sem saída
(stalemate) e serve muito bem à ideia de dead-end – todas elas descrevem a natureza da
interação analítica. Nesse sentido, Bion estaria próximo do conceito de Freud (1920) sobre a
pulsão de morte como tendência de retorno ao estado inorgânico e de redução das tensões.
Bion também menciona a aspiração do paciente de retorno ao útero e ao desejo de não ter
nascido. Aqui, somos surpreendidos por uma aproximação com o livro de Ferenczi, Thalassa.
Neste, há a proposição de uma pulsão de regressão materna que nos remete novamente a
120
Freud em Além do Princípio do Prazer por via da noção de busca de um estado de quietude e
de redução das tensões.
4
A associação entre morte, agressividade e destruição, característica do pensamento de
Melanie Klein, remete-nos ao conceito de ataque à ligação entre ideias, imagens, percepções,
apresentado por Bion no final dos anos 50, e nos reporta às imagens astronômicas usadas pelo
autor anos mais tarde para se referir alegoricamente à distância, à força e à
incomensurabilidade que uma projeção pode ter a ponto de ser necessário o desenvolvimento
de um instrumento altamente sofisticado para o reconhecimento de sua existência e
localização (cf. BION, 1967).
Em Aprendendo da experiência, Bion (1962b) utilizou a noção de ligação (link) para
se referir às emoções de amor, de ódio, e ao desejo de conhecimento, bem como aos seus
aspectos “negativos”, associados à arrogância, à onipotência e à violência das emoções.
Nesses casos, o amor é de cunho moralista, contrário à alegria e ao prazer, e está irmanado
com a indiferença; o ódio torna-se hipocrisia e desprezo pela verdade; e o conhecimento não é
mais que uma reificação de ideias. O conceito de narcisismo de morte, desenvolvido por
André Green (1988) a partir de sua clínica e a partir da retomada do tema sobre o narcisismo
na obra de Freud e em diferentes autores na psicanálise, parece estar em consonância com a
descrição de Bion dos efeitos da pulsão de morte sobre as ligações.
5
Também o conceito de Freud de repressão primária, a partir da qual as repressões
secundárias podem se fazer, ajuda-nos a pensar sobre a característica da análise do paciente de
4
Aproximações entre esses textos de Freud e Ferenczi podem ser acompanhadas em Figueiredo (1999).
5
Green (1988) chama a atenção ao fato de que “O homem dos ratos”, com sua onipotência de pensamento, é um
dos precursores do desenvolvimento do conceito de narcisismo em 1914. A proposta de Green de discriminar um
narcisismo de vida e outro de morte sugere a nós um sentido possível para a experiência do paciente de Bion
descrito em 1950. Sobre o narcisismo negativo, Green o define como o “duplo sombrio do Eros unitário do
narcisismo positivo”, e ainda “[...] o narcisismo negativo dirige-se à inexistência, à anestesia, ao vazio, ao
branco (do inglês blank, que se traduz pela categoria do neutro), quer este branco invista o afeto (a indiferença),
a representação (a alucinação negativa), ou o pensamento (psicose branca).” (1988, p. 41).
121
Bion antes e depois da interpretação sobre o gêmeo.
6
O efeito da interpretação foi permitir a
criação e o reconhecimento a posteriori por parte do paciente de um objeto que até então não
havia nascido psiquicamente. O que estava sendo atuado na relação transferencial passa a ser
reconhecido como um personagem que, em sonho, surge como uma característica de seus
objetos internos. No entanto, aquilo que Bion chama de interpretação tem mais o caráter de
ser uma construção, conforme sentido atribuído aos termos por Freud (1937b):
‘Interpretação’ aplica-se a algo que se faz a um elemento singular do
material, tal como uma associação ou um ato falho. Trata-se de uma
‘construção’, porém, quando é colocado perante o sujeito da análise um
pedaço de sua história arcaica que foi esquecida [...]. (p. 261).
xviii
No que diz respeito ao trabalho de Bion a noção de construção adquire um sentido
peculiar, uma vez que a imagem do gêmeo não corresponde a algo que foi esquecido. Não se
trata de uma memória que foi reprimida e que aparece distorcida nos sintomas, nos sonhos,
nos atos falhos. Bion primeiramente constrói para o paciente a imagem do gêmeo e somente
então ela pode ser sonhada. Ao comentar sobre este caso e fazendo uso do termo construção,
Tales Ab’Sáber (2005) nos dá uma ideia de sua pertinência no trabalho de Bion e nos ajuda a
compreender a importância que a menção ao gêmeo teve para a análise:
A construção analítica que Bion faz com seu paciente – a introdução do
“gêmeo imaginário” – a qual propõe uma imagem significante para
compreender o eixo simbólico que organizaria as cisões e projeções, é
6
Em Inibições, sintomas e ansiedades, Freud diz “[...] a maioria das repressões com as quais temos de lidar em
nosso trabalho terapêutico são casos de pressão posterior. Pressupõem a operação de repressões primitivas mais
antigas que exercem atração sobre a situação mais recente. Muito pouco se sabe até agora sobre os antecedentes
e as fases preliminares da repressão. Há o perigo de superestimar o papel desempenhado na repressão pelo
superego. Não podemos no momento dizer se seria o surgimento do superego que proporciona a linha de
demarcação entre a repressão primitiva e a pressão posterior. Seja como for, as irrupções de ansiedade mais
arcaicas [...] ocorrem antes de o superego tornar-se diferenciado.” (1926, p. 94). Sobre a natureza e o papel do
superego, Melanie Klein (1932) comenta: “Em seu livro Inhibitions, Symptoms and Anxiety, Freud declara que
‘as fobias mais arcaicas da primeira infância não foram até agora explicadas’ [...]. Na minha experiência, essas
fobias arcaicas contêm ansiedades que surgem nos estágios arcaicos da formação do superego. [...] Elas
consistem de medos de objetos violentos (isto é, devoradores, cortantes, castradores), tanto externos quanto
introjetados.” (p. 176). Algo dessas características passou a ser associado pelo paciente de Bion à figura do
gêmeo.
122
bastante radical: nada anteriormente à apresentação deste termo indicava, ao
longo do tratamento, a presença imaginária de um gêmeo. A noção proposta,
com suas ramificações, é uma criação muito livre do analista, construção
psicanalítica que faz surgir o sentido a partir de um certo caos simbólico em
que o analista se deixou mergulhar, de forma a encontrar, em conjunto com o
paciente, a senda tênue, mas possível, do sentido psíquico. (p. 45).
Os processos envolvidos na criação conjunta de uma realidade até então inexistente do
ponto de vista simbólico serão conceituados por Bion a partir dos anos 60; não caberá a nós
discuti-los em nosso trabalho. A seguir, apresentaremos alguns dos desdobramentos na vida
psíquica do paciente da conquista da simbolização e de uma capacidade para sonhar. Em
conjunto, será preciso discutir algo sobre as inibições no movimento investigativo colocado
em ação pelo dispositivo analítico, e mantido desativado pelo paciente.
3.3 Castração, cegueira, intolerância às emoções
Bion reconhecia, no paciente, a presença de ansiedades produzidas pelas
interpretações, conforme estas chamavam a atenção para os seus processos intrapsíquicos.
Uma saída encontrada pelo paciente ante as tentativas de torná-lo consciente de sua vida
mental foi transformar a fala do analista em algo que não levava a lugar algum, e o analista
em alguém impertinente, que não deveria existir como uma pessoa real e viva. A função do
gêmeo imaginário era negar a alteridade; sua existência remontava, segundo Bion, “[...] ao
relacionamento mais arcaico do paciente, sendo uma expressão de sua inabilidade de tolerar
um objeto que não estava inteiramente sob o seu controle”. (p. 19).
xix
Em artigos posteriores,
como “Sobre arrogância” (1957b) e “Ataques à ligação” (1959), Bion mostrará os
desdobramentos de seu interesse pelos processos psíquicos envolvidos com o andamento e
com o destino da análise em relação às pulsões de conhecimento e de morte.
123
Ainda em relação ao artigo de 1950, temos que a emergência do gêmeo e as
associações subsequentes do paciente recolocaram essa inibição no plano intrapsíquico. As
ansiedades em relação a promover uma investigação ou ter a posse de um conhecimento, do
qual o paciente seria incapaz de dar um destino que não a mera excisão, surgiram agora a
partir de uma grande abertura de sentido passível de ser compartilhado e da personificação,
em fantasia, de algumas duplas. De acordo com nossos propósitos, citaremos apenas duas
duplas, sendo que todas giram em torno de alguém capaz de dar conta de certas dificuldades,
que sabe como lidar com uma doença, e de alguém inexperiente, que estraga um acordo ou
que não vê saída para um problema. Vale notar que esses atributos não estão necessariamente
bem separados entre si. Aquele que sabe lidar com as dificuldades é também aquele que quer
se livrar de uma responsabilidade. Se num momento parece que o paciente faz um movimento
em direção à posição depressiva, em outro fica evidente o predomínio da posição esquizo-
paranoide. Podemos notar uma oscilação do paciente entre essas duas posições, cuja dinâmica
será representada por Bion em Elementos de psicanálise (1963) pelo símbolo EPD.
A primeira dupla é representada pelo próprio paciente e por um professor substituto
encarregado de seus alunos quando de sua ausência. O substituto, diz Bion, “[...] fez uma
bagunça e assustara um de seus pais [his parents].” (1950, p. 10).
xx
A imprecisão em relação
ao sujeito a que “seus pais” faz referência chama a atenção tanto para o modo como o
paciente emprega certos termos quanto para as fantasias subjacentes. Antes de discutirmos a
implicação dessas fantasias, podemos dizer que “pais” se refere aos pais do paciente e,
também, à mãe de um(a) aluno(a). A mãe ficara muito incomodada com a franqueza com que
o substituto lhe falara a respeito da doença de seu(a) filho(a), preferindo o paciente em
detrimento do substituto. Bion faz mais uma vez um uso proposital da imprecisão quanto ao
gênero de parent (que, em inglês, significa tanto pai quanto mãe) e diz: “[...] o emprego do
124
substituto não o aliviou da ansiedade ou da responsabilidade. [...] a mãe [the parent] lhe fez
várias exigências e deu a entender que se sentia sexualmente atraída por ele.” (Ibid., p. 10).
xxi
Podemos reconhecer nesse trecho o despertar de ansiedade em relação ao desejo de
conhecer, e sua relação à pulsão epistemofílica e à pulsão escópica. Mais adiante no artigo, o
leitor fica sabendo que uma aluna desenvolve uma infecção nos olhos, provavelmente
sifilítica ou resultante de uma diabete. A imprecisão quanto à causa da doença não é tão
importante quanto a emergência de uma problemática fálico-anal ou oral, que se alternava
conforme as ansiedades do paciente. Discutiremos isso quando apresentarmos a segunda
dupla, representada por dois médicos.
Por hora, vamos à interpretação de Bion. O analista era, para o paciente, o pai ou a
mãe que reclamava sobre, e agora há mais uma imprecisão em relação a outro termo, “ser
deixado encarregado [ou aos cuidados] do self inexperiente do paciente.”
xxii
A expressão em
inglês in charge of tem esses dois significados, e torna ambígua a posição em relação ao self
inexperiente: ou se cuida ou se é cuidado por ele. O paciente duvidava não só da eficácia do
tratamento, da intenção e da habilidade do analista quanto da possibilidade de cura.
A palavra charge, tomada isoladamente, significa custo ou encargo e nos remete ainda
a outro desdobramento da discussão, relativo ao temor do paciente quanto às exigências feitas
pelo trabalho de análise. O paciente sonha com um homem que deixa em suas mãos uma
conta alta a ser paga. Quanto às exigências do parent (seja a mãe ou o pai), Bion apresenta
outra faceta das ansiedades do paciente, agora da perspectiva da sexualidade genital: “Sua
ansiedade era de que se ele viesse a mim como um homem experiente, isto é, potente, eu faria
exigências, particularmente sexuais, as quais ele se sentia incapaz de atender”. (p. 10).
xxiii
Sendo experiente, o paciente teria que sustentar seu desejo pela mãe, rivalizar com o pai e,
assim, enfrentar a emergência de ansiedades características de um conflito edipiano genital.
No entanto, a característica aterrorizante do gêmeo e o temor persecutório do paciente nos dão
125
uma ideia da natureza arcaica de seu superego e da importância de o paciente manter-se
inexperiente. Uma breve digressão pela teoria kleiniana ajudará a contextualizar o sentido
dessa argumentação.
Segundo Melanie Klein (1932), no início do desenvolvimento psicossexual as
tendências edipianas e os sentimentos ambivalentes de amor e de ódio em relação ao pai e a
mãe enquanto objetos parciais, isto é, enquanto pênis e seio equacionados na forma de um
objeto combinado, surgem na passagem do sadismo oral para o sadismo anal. As ansiedades
despertadas pelo sadismo acarretam o medo de objetos devoradores, cortantes, castradores,
sendo que estas ansiedades não podem ser facilmente modificadas pelo ego primitivo e ainda
imaturo. Quanto mais perigoso o superego menos se pode rivalizar com ele e controlá-lo. Para
Melanie Klein, a neurose obsessiva surge como uma tentativa de aplacar o superego e é uma
das maneiras encontradas para “[...] curar as condições psicóticas das fases mais arcaicas [...]”
(1932, p. 182). Quanto às consequências para o desenvolvimento da sexualidade, Klein faz
uma afirmação que podemos ver confirmada no caso apresentado por Bion em relação à
citação sobre o paciente se apresentar como um homem experiente: “A luta que resultaria de
uma situação edipiana direta não poderia ser travada em fantasia contra um pai perigoso,
devorador, desse tipo e, assim, a posição heterossexual tinha que ser abandonada.” (Ibid., p.
180).
Assim que as ansiedades relacionadas ao conflito genital surgem, a tendência do
paciente é retomar uma atitude de apaziguamento e eliminação de rivalidade. Não entraremos
nos detalhes dessa ideia; nosso interesse é acompanhar o caminho que Bion percorre com o
paciente a partir desse ponto do artigo, cuja temática será retomada em seus artigos seguintes
com respeito ao estado do ego e de suas funções na psicose. Esse assunto ficará mais claro
com a apresentação da segunda dupla. O paciente diz:
126
[...] tenho uma aluna cujo olho vem se tornando afetado. Um oftalmologista
disse que pensava ser uma infecção. De qualquer modo nada poderia ser
feito a respeito, mas o pai dela queria uma segunda opinião. Tive então que
enviá-la a outro oftalmologista e agora acabei ficando com um monte de
trabalho que não quero fazer; ela é um estorvo. [...]. O segundo
oftalmologista pensa que não é clinicamente muito diferente do que disse o
primeiro, mas acha que vale a pena fazer algo. [...] Ela deve fazer um exame
de sangue para ver se tem sífilis. (1950 p. 12).
xxiv
Segundo Bion, a partir dessa associação foi possível dar início a uma investigação
sobre o material inconsciente em questão e sobre “[...] a maneira com que o paciente foi capaz
de trazer esse material para a consciência.” (Ibid., p. 12).
xxv
Os olhos seriam o instrumento de
investigação do paciente, mas ele temia pelo seu estado. Enquanto um substituto do pênis, os
olhos seriam usados em fantasia para penetrar o corpo da mãe, conhecê-la e, também, para
conhecer a si próprio. Mas entendia que sem a boa condição de sua visão não seria possível
acessar e resolver as questões despertadas por essas fantasias, levando-se em conta o mundo
externo e a instituição do princípio de realidade. O paciente reconhecia a importância de
alguém experiente, capaz de investigar a condição de seus órgãos dos sentidos e diagnosticar
seu problema; porém, temia pela gravidade do dano e pela possibilidade do médico
oftalmologista ser o pai castrador.
No trabalho de Freud “Notas...” (1909) é notória a equação feita pelo paciente entre
pênis, doenças contagiosas (como a sífilis), rato, fezes e dinheiro sob a dominância do
erotismo anal. Embora Freud não mencione a perda dos óculos do Homem dos ratos como
possuindo significado em si nas ansiedades de castração do paciente, a perda da visão
acompanha alterações no estado de seu ego. Em “A concepção psicanalítica da perturbação
psicogênica da visão”, publicado um ano depois, Freud (1910) afirma:
Se um órgão que serve a duas espécies de instintos aumenta seu papel
erógeno, é de se esperar, em geral, que tal não ocorra sem a excitabilidade e
a inervação do órgão, passivo das alterações que se manifestarão na forma de
perturbações de suas funções a serviço do ego. De fato, se descobrirmos que
um órgão que serve normalmente à finalidade da percepção sensorial
127
começa a se comportar como um genital quando se intensifica seu papel
erógeno, não nos parecerá improvável que nele também estejam ocorrendo
alterações tóxicas. (p. 217-218).
xxvi
Sabemos que Freud não retomou as ideias apresentadas em “A concepção...” com base
em sua segunda teoria das pulsões e que, na citação feita acima, o conflito psíquico se dá entre
as pulsões sexuais e as de autoconservação. No entanto, as ideias de Melanie Klein sobre a
pulsão de morte e sobre as ansiedades de castração no psiquismo primitivo nos permitem ler
esse trecho de Freud com base nas descrições de Bion sobre o estado do ego na psicose,
conforme mostrado no capítulo dois. Fantasias relacionadas a alterações tóxicas nos olhos do
paciente de Bion decorrem de ataques que mutilam seus órgãos dos sentidos em minúsculos
fragmentos. No final desse capítulo, veremos que esses fragmentos podem ser usados na
alucinação como um processo curativo e criativo, e, no capítulo quatro, veremos como eles
fazem parte da restauração do ego.
Quanto ao olho doente da aluna, a frase em inglês usada pelo paciente em referência à
instalação do problema oftalmológico é “I have a student whose eye has been becoming
affected”, traduzida por nós como “Tenho uma aluna cujo olho vem se tornando afetado.” Na
edição em português do artigo, publicada em Estudos psicanalíticos revisados, lemos: “Tenho
uma aluna que está com uma afecção no olho”. (BION, 1994b, p. 21). Esta frase não só não
transmite o senso de continuidade dado pelo paciente em relação a algo que vem se instalando
com o tempo, como torna menos viável os desdobramentos associativos possíveis de serem
estabelecidos com a palavra “afetado”. Numa rápida consulta ao dicionário
7
sobre a palavra
affected, encontramos os significados de afetado, exagerado, atacado, contaminado e
emocionado, todos eles pertinentes à descrição do caso.
A palavra affect utilizada pelo paciente nos dá a entender que era problemática a
sensação de ter seus olhos afetados, pois é o reconhecimento do contágio emocional com o
7
MICHAELIS: moderno dicionário inglês-português, português-inglês. São Paulo: Melhoramentos, 2000.
128
outro que tomava conta de seus sentidos. Sentia-se, assim, ligado afetivamente ao outro e
envolvido pela carga pulsional e por toda uma configuração associada ao Édipo que começava
a ser revista na análise. Se considerarmos o conflito pulsional tal como é pensado na
psicanálise de tradição kleiniana, temos que o dano aos olhos e, consequentemente ao ego,
representa uma forma de eliminar um grande espectro de emoções e ter os órgãos dos sentidos
contaminados pelo ódio. Mas a associação do paciente às interpretações também representou
a qualidade da investigação que estava em andamento e que se tornou possível por seu amor
de transferência ao analista, como na seguinte situação: “A menina ferida era algum objeto
recuperado do interior do paciente que deveria ser submetido ao escrutínio de ambos os olhos
e de um intelecto em desenvolvimento [...].” (BION, 1950, p. 14).
xxvii
Gradualmente, o paciente se tornou capaz de manter contato com a realidade e
expressar, por meio de associações e sonhos, suas ansiedades de castração. Foi possível a
Bion demonstrar ao paciente seus conflitos em relação às demandas impostas pela análise por
reconhecimento de seu estado emocional e responsabilização por seus sentimentos agressivos
e sexuais. Mas, o aspecto que foi particularmente ressaltado por Bion em seu texto refere-se à
relação entre a acuidade dos órgãos dos sentidos e a percepção de ansiedades edípicas. A
conquista de uma maior capacidade para explorar a realidade interna e externa foi associada
por este e por outros pacientes descritos no artigo ao estado de seus órgãos sensoriais,
especialmente da visão. O paciente foi capaz de expressar as suas ansiedades psicóticas e os
conflitos decorrentes através de sonhos, associações e fantasias, e mostrar preocupação com o
estado de seu ego e com sua capacidade para conhecer e lidar com a realidade. É o que iremos
discutir no próximo item.
129
3.4 Teste de realidade, função de julgamento e ganho de consciência
A associação do paciente acerca dos dois oftalmologistas foi, de acordo com Bion,
“[...] o ponto de partida de uma investigação que iluminou dois problemas: primeiro, o
material inconsciente expresso por ela e, segundo, a maneira com que o paciente foi capaz de
trazer esse material à consciência.” (1950, p. 12).
xxviii
Interessa-nos mostrar como Bion
compreende essa conscientização e expandir as alusões aos textos metapsicológicos de Freud,
como o capítulo VII de A interpretação dos sonhos (1900), “Formulações sobre os dois
princípios do funcionamento mental” (1911b) e “Suplemento metapsicológico à teoria dos
sonhos” (1917).
Vimos que a associação do paciente sobre a consulta ao oftalmologista indicou o
interesse pelo estado de sua visão, voltada também para o mundo interno através da
consciência e do insight. A consulta representa, ainda, uma investigação que em si mesma é
ocular e mostra a analogia estabelecida na psicanálise entre acuidade visual e interesse
intelectual. Bion diz: “O oftalmologista, especialmente o segundo, também representou um
reforço das armas de investigação por algo como o intelecto [...]”. (1950, p. 14).
xxix
A consulta ao segundo médico e o prognóstico favorável trouxe um aumento de
esperança, mas também novas obrigações e responsabilidades, entre elas, a exploração da
sexualidade genital, as quais o paciente temia não ter os meios e a capacidade para lidar. Bion
diz: “Não fiquei surpreso quando na sessão seguinte outro aluno teve que ser enviado a uma
consulta, desta vez a um cirurgião de ouvido, nariz e garganta [...]. Um refúgio aos níveis
auditivos, olfativos e orais tomou lugar.” (1950, p. 14).
xxx
O paciente oscila entre as fases pré-
genitais e genitais, retornando a problemas típicos da oralidade e de outros órgãos dos
sentidos. A interpretação de Bion enfoca justamente essa dificuldade:
130
Interpretei que seu avanço foi sentido como impossível de sustentar e que ele
se sentiu perseguido não só pelas razões já reveladas, mas, também, porque a
psicanálise, um método que envolvia o exame de problemas através de todos
os seus sentidos, incluindo a visão e o intelecto era [...] muito custosa [...];
ela envolvia (1) coordenação dolorosa, que ele não foi capaz de finalizar (2)
a aceitação de todas as cisões de sua personalidade que ele havia
personificado e externalizado (3) a imposição de responsabilidades que ele
não podia arcar e (4) a ameaça de punição com a castração [...]. (Ibid., p. 14-
15).
xxxi
A passagem número (1), que trata da “coordenação dolorosa”, pode soar vaga, caso
não tenhamos em mente a referência de Bion ao interesse do paciente pelo estado de seus
órgãos dos sentidos, à investigação realizada com os mesmos e, consequentemente, ao
investimento da sensorialidade pelas pulsões parciais. Acreditamos que a coordenação diga
respeito à reunião dos órgãos dos sentidos entre si a favor da investigação intelectual e à
integração da sexualidade pré-genital em torno da genitalidade. Temos, assim, a unificação
das pulsões sexuais parciais e o desenvolvimento do ego em direção ao reconhecimento dos
objetos do mundo externo enquanto tais. Como se pode notar, esse tema é bastante complexo
e requer de nossa parte o remetimento a textos de Freud como os “Três ensaios sobre a teoria
da sexualidade” (1905), “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914) e textos de Bion
(1962a, 1994a), nos quais há discussões dos termos “visão binocular” e “senso comum”
(commom sense) – cujo termo significa a combinação dos sentidos em torno de um
significado compartilhado socialmente –, para se referir a essas conquistas. O aprofundamento
nessas ideias renderia um trabalho à parte e preferimos deixar as referências em aberto.
No artigo de 1950, a visão binocular é tomada como a função que permite a
combinação das informações obtidas dos dois olhos, dos dois oftalmologistas e, basicamente,
de diferentes estados mentais, de modo a gerar significado e permitir o insight psicanalítico.
Isso seria tanto mais possível quanto menos a capacidade de fazer discriminações sobre a
origem e a natureza das impressões percebidas dependesse do princípio de prazer –
voltaremos a isso adiante.
131
Como consequência da instituição do princípio de realidade, temos que, para Freud,
“A crescente significância da realidade externa também aumentou a importância dos órgãos
dos sentidos que estão direcionados ao mundo externo, e da consciência a eles ligada.”
(1911b, p. 220, grifo do autor).
xxxii
A consciência e seus dados são alvo de ataque caso o
advento da posição depressiva, que se dá com o principio de realidade, não seja tolerada.
No artigo “A linguagem e o esquizofrênico” (1955), Bion apresenta esse mesmo
trecho do trabalho de Freud acrescido da frase que se segue a ele a fim de indicar a natureza
da dificuldade do psicótico com a realidade. Na continuidade do texto de Freud (1911b),
lemos: “A consciência agora aprendeu a compreender as qualidades sensórias em adição às
qualidades de prazer e desprazer que, até então, fora de seu único interesse.” (p. 220).
xxxiii
Essa frase será retomada e desenvolvida por Bion em Aprendendo da Experiência (1962b),
onde o autor procura discutir o significado dos termos “aprender” e “compreender” à luz de
sua Teoria do Pensar. Mas já no artigo de 1955, Bion delimita a questão quando comenta:
“Será um de meus argumentos que o conflito com a realidade, o qual Freud fala [...], leva o
psicótico a desenvolvimentos que torna duvidoso se ele alguma vez aprendeu a ‘compreender
as qualidades dos sentidos em adição às qualidades de prazer e ‘dor’.’” (1955, p. 221).
xxxiv
A
inabilidade para aprender é, inclusive, uma consequência da destruição da capacidade para a
curiosidade, o que pode tanto significar a sua inibição quanto uma curiosidade empregada a
serviço de tudo saber e tudo conhecer. Antes de voltarmos ao tema principal do item, vale a
pena uma breve digressão por essa problemática e uma retomada do artigo de Freud (1919)
“O estranho”.
Em “Sobre arrogância” (1957b), Bion faz uso do mito de Édipo a fim de relacionar a
problemática vivida pelo rei de Tebas não propriamente com a sexualidade, mas com a busca
pela verdade. Na medida em que a posição depressiva começa a se fazer presente e questões
relativas ao Édipo começam a ser formuladas pelo paciente, temos que a intolerância ao que é
132
revelado acarreta a destruição dos instrumentos usados para se postular e enxergar essas
mesmas questões. O ataque ao ego é estudado nesse artigo sobretudo em suas consequências
para o desenvolvimento do intelecto, direcionado ao conhecimento de uma verdade, mais do
que em suas consequências para o desenvolvimento da sexualidade genital. Quando a
personagem do conto de Hoffmann, Nataniel, usa um telescópio para espiar e apaixona-se
pelo que vê como sendo uma bela moça, Olympia, esta se revela um autômato. No artigo de
Freud (1919), Nataniel e Olympia estão identificados entre si por meio do dano aos olhos.
Nataniel teme ter os olhos arrancados e Olympia é uma boneca cujos olhos sem vida são os
olhos roubados de Nataniel. Podemos dizer que o próprio Nataniel transforma-se em um
autômato quando perde a capacidade de ver a realidade como tal, independentemente de suas
fantasias e desejos, e quando perde a capacidade de usar os atributos do ego para lidar com
essa realidade.
Estamos, assim, diante de uma catástrofe psicológica onde, segundo Bion (1957b), a
curiosidade dá lugar à estupidez, à onipotência e à arrogância. No entanto, mais que a perda
do ego, o que fica perdido nesse processo é a possibilidade de se estabelecer, com a vida, um
relacionamento humano. O enfoque de Bion em “Sobre arrogância” (1957b) é colocado sobre
as consequências, para o desenvolvimento psíquico, da inexistência de uma comunicação
emocional primitiva com o objeto primordial. Voltemos agora ao tema de nosso item, acerca
da forma com que a consciência pode ser alcançada.
No capítulo VII de A interpretação dos sonhos, a consciência foi definida por Freud
como um órgão sensorial para a percepção de qualidades psíquicas externas (advindas do
sistema perceptivo) e internas (ligadas ao prazer e desprazer). Com o tempo, foi necessário ao
psiquismo substituir o processo primário pelo secundário e tornar as ideias menos
dependentes das indicações de prazer e desprazer. Por intermédio do sistema pré-consciente e
dos traços de memória de palavras “[...] a consciência, que fora até então um órgão dos
133
sentidos apenas para as percepções, tornou-se também um órgão dos sentidos para parte de
nossos processos de pensamento. (FREUD 1900, p. 574).
xxxv
Bion não dá maiores detalhes no artigo de 1950 sobre a relação entre consciência e
pensamento. O tema sobre “a maneira com que o paciente foi capaz de trazer seu material à
consciência” continuará a ser discutido em “Diferenciação...” (1957a) e em “Sobre
alucinação” (1958) a partir do pensamento pré-verbal, expresso em imagens através de
ideogramas, e da alucinação ligada aos órgãos dos sentidos. Mostraremos algo sobre essa
forma de expressão no próximo item e no capítulo quatro. Ainda em “O gêmeo imaginário”,
acreditamos que Bion se refere também à importância da consciência como novo órgão dos
sentidos quando diz:
[...] tive a impressão de que o paciente sentiu que a visão produziu
problemas de domínio de um novo órgão dos sentidos. Isso tinha a sua
contrapartida no sentimento de que o desenvolvimento da psique, tal como o
desenvolvimento da capacidade visual, envolvera a emergência da situação
edípica. (1950, p. 21).
xxxvi
Com a oscilação do paciente entre a genitalidade e a pré-genitalidade e com o aumento
de importância dos órgãos dos sentidos direcionados ao mundo externo, Bion nota um
comportamento inusitado de seu paciente em relação ao teste de realidade. Considera que o
paciente pôde “testar seus métodos de testar a realidade” e “comparar seus achados nas fases
oral e ocular.” (1950, p. 15).
xxxvii
Com isso, foi possível a criação de uma “confiança seja na
realidade ou em seus meios para testá-la”. (Ibid., p. 17).
xxxviii
O conceito de teste de realidade
aparece mais algumas vezes no texto em torno desse mesmo significado. Se, para Freud
(1917), o teste é feito com dados da realidade externa em comparação a dados presentes
internamente na forma de imaginação, alucinação, pensamento, para Bion, esse teste se aplica
na medida em que seus mecanismos estão “saudáveis” e podem operar de modo a produzirem
dados confiáveis. Isso implica o teste dos mesmos e um aumento de confiança nos
134
mecanismos com que o teste de realidade é feito. Se tomarmos a noção de Freud, vemos que
Bion contribui com o significado do termo.
Em “Formulações...”, Freud (1911b) discute o emprego do teste de realidade em
conjunto às inovações e desenvolvimentos psíquicos proporcionados pela instituição do
princípio de realidade. Com o advento deste princípio, uma parte do psiquismo se manteve
isolada do mesmo e operando sob o princípio do prazer. O termo aparece pela primeira vez no
seguinte trecho: “Com a introdução do princípio de realidade um tipo de atividade de
pensamento foi excindida; ficou livre do teste de realidade e permaneceu subordinada
somente ao princípio de prazer. Esta atividade é o fantasiar [...].” (FREUD, 1911b, p. 222,
grifo do autor).
xxxix
O termo já vinha sendo discutido por Freud desde o “Projeto para uma
psicologia científica” (1895), ainda que não nomeado como tal. Interessava a Freud
compreender os processos envolvidos na discriminação entre dados que pertencem à realidade
externa e o que é sentido internamente como realidade – tema que perdurou como objeto de
estudo por toda a sua obra. Para a realização dessa discriminação seria preciso empregar as
adaptações feitas no aparelho a partir do princípio de realidade; entre elas, a substituição dos
processos primários pelos secundários, com a consequente inibição dos impulsos e formação
do pensar.
8
No “Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos” (1917), a referência ao teste de
realidade é retomada quando Freud se pergunta sobre os mecanismos psíquicos que devem
estar ausentes quando há uma realização alucinatória de desejo, seja nos sonhos ou na psicose.
Sendo um dos atributos do ego, mais especificamente do sistema Cs./Pcpt., o teste é um
dispositivo que, em conjunto a funções como o julgamento e a atenção, permite avaliar a
origem de um estímulo que chega à consciência caso ele persista ou desapareça, conforme
uma ação motora.
8
Uma discussão mais detalhada sobre o tema pode ser encontrada no livro “Freud e o teste de realidade”, de
Patrícia Porchat, 2005.
135
Na nota introdutória ao “Suplemento...”, Strachey assinala a subordinação do teste de
realidade à relação de gênese do ego com os instrumentos de percepção sensorial, tal como foi
mostrado por Freud em “A negativa” (1925). Como vimos no capítulo dois, Freud diz:
Exprimindo na linguagem mais antiga dos impulsos instintuais orais, o
julgamento é: “Gostaria de comer isto”, ou “gostaria de cuspir isto”. [...]. Ou
seja: “Deve estar dentro de mim”, ou “deve estar fora de mim”. [...]. Aquilo
que é mau, aquilo que é alheio ao ego, e o que é externo são, a princípio,
idênticos.” (1925, p. 237).
Embora Freud não discuta a questão, é interessante notar que essa forma primitiva de
julgamento, do qual também participa uma forma primitiva de teste, é feito com base no
princípio do prazer e não no princípio de realidade. Essa avaliação de juízo, diferente daquela
existente a partir dos processos secundários, supõe um teste parcial e independente das
adaptações psíquicas advindas com o princípio de realidade e com a substituição dos
processos primários pelos secundários.
9
No entanto, o teste de realidade propriamente dito
supõe a existência do princípio de realidade e a possibilidade de verificar se aquilo que é
interno ao ego pode ser reencontrado no mundo externo: “Não se trata mais de uma questão
de saber se aquilo que foi percebido (uma coisa) será ou não tomado para dentro do ego, mas
de saber se algo que está no ego como representação pode ser redescoberto também na
percepção (realidade).” (FREUD, 1925, p. 237).
xl
O paciente de Bion, antes de poder alcançar essa capacidade, compara as percepções
captadas com seus diferentes órgãos dos sentidos nas diferentes fases do desenvolvimento
psicossexual. De certa forma, Bion mostra como parece ocorrer a passagem entre as fases pré-
genitais e a organização das informações e das fantasias correspondentes, em direção à
9
Em A interpretação dos sonhos, Freud apresenta a seguinte definição: “O processo primário esforça-se por
promover uma descarga da excitação, de modo que, com a ajuda da quantidade de excitação assim acumulada,
possa estabelecer uma “identidade perceptiva” (com a vivência de satisfação). O processo secundário, contudo,
abandonou essa intenção e adotou outra em seu lugar — o estabelecimento de uma “identidade de pensamento
(com aquela vivência).” (1900, p. 602).
136
posição depressiva e a avaliações feitas de acordo com o princípio de realidade. Bion nota que
esse desenvolvimento acompanha o aumento de importância do órgão da visão e,
correspondentemente, a conscientização de conflitos edípicos.
Sobre a conquista de consciência associada a esses desenvolvimentos, Bion não
oferece mais informações. A questão sobre a forma com que o paciente pôde trazer seu
material à consciência está restrita a essas considerações metapsicológicas de Freud,
trabalhadas em Bion por meio do pensamento kleiniano. Retornará ao tema em seus artigos
posteriores com a descrição clínica do pensamento verbal e pré-verbal, sempre enfatizando os
processos intrapsíquicos. Em “O gêmeo...” há ainda uma distância considerável em relação a
conceitos desenvolvidos no final dos anos 50, como o de identificação projetiva comunicativa
e, no início dos anos 60, com a noção de reverie enquanto devaneio ensonhante e amoroso da
mãe que modifica, para o bebê, em matéria simbólica, as ansiedades que não podem ser
pensadas.
Nos comentários de Meltzer (1998) a “O gêmeo...”, há uma observação sobre as
contribuições posteriores de Bion que marcam uma diferença conceitual e metodológica
decisiva em relação a Freud:
[...] sua lealdade à posição de Freud acerca dos dois princípios de
funcionamento mental, e a interação entre os princípios de prazer e de
realidade, requer uma atitude em relação ao pensamento verbal na qual este
seja considerado o instrumento fundamental, o “aparelho para captar as
qualidades psíquicas que Freud descreveu como sendo colocado em
atividade pelas exigências do princípio de realidade” [...]. Dez anos mais
tarde, Bion proporá uma ferramenta mais adequada, o conceito de função-
alfa. (p. 38, grifo do autor).
O estudo da função do pensamento pré-verbal e da alucinação certamente contribuiu
com esses desenvolvimentos. A alucinação seria, em alguns casos e em alguns momentos da
análise, uma forma de o paciente obter a “ingestão de cura” (1958, p. 68). Veremos como isso
ocorre por meio de fantasias ligadas à reversibilidade dos órgãos dos sentidos, que tanto
137
servem de via para a expulsão quanto de meio através do qual o que foi expulso é trazido de
volta ao ego. Não vamos entrar no tema, mas certamente o artigo “Sobre alucinação” (1958)
pede a formulação do conceito de identificação projetiva como comunicação e o
desenvolvimento da noção de um objeto que é capaz de modificar, para o paciente, o que foi
dele ejetado como intolerável. O paciente descrito nesse artigo não só não tem essa concepção
como acredita que alucinar é a melhor forma de lidar com um objeto que é incapaz de
carregar as excisões do paciente. A ineficácia desse mecanismo e a ausência de um objeto
adequado às suas necessidades levam o paciente a sentir que não há saída ou solução possível.
Essa falta de esperança reflete-se na ausência de uma figura como a do gêmeo, enquanto
objeto idealizado positivamente e que pode reunir e carregar as partes cindidas e
incompreendidas do ego. No entanto, a alucinação também é considerada por Bion como uma
atividade criativa. Trabalharemos esse tema de um modo breve no subitem a seguir.
3.4.1 Pensamento pré-verbal e alucinação
Referindo-se a afirmações de Freud sobre a formação dos processos de pensamento
em trabalhos como “Formulações...” (1911b) e “O Ego e o Id” (1923), Bion (1957a) diz:
Graças às operações da parte não-psicótica da personalidade, o paciente está
ciente de que a introjeção leva à formação do pensamento inconsciente, o
qual Freud se refere como estando “voltado às relações entre impressões do
objeto”. Acredito que seja este pensamento inconsciente [...] o responsável
pela “consciência atrelada às” impressões sensíveis. Sinto-me fortalecido
nessa crença por sua afirmação feita doze anos mais tarde no artigo “O Ego e
o Id”. Neste ele diz “que a questão ‘Como uma coisa se torna consciente? ’
poderia ser colocada mais vantajosamente assim: ‘Como uma coisa se torna
pré-consciente?’ E a resposta seria: ‘Conectando-se às imagens verbais
correspondentes.’” Em meu artigo de 1953 [1954] disse que o pensamento
verbal está vinculado à consciência da realidade psíquica; acredito que isso
também seja verdadeiro em relação ao pensamento pré-verbal primitivo [...].
(p. 49).
xli
138
Bion nomeia de ideogramas e de atividades ideomotoras, respectivamente, as
impressões dos sentidos que estão associadas a alguma imagem, e certos comportamentos dos
pacientes durante as sessões. “Minhas experiências levaram-me a supor que algum tipo de
pensamento, relacionado ao que devemos chamar de ideogramas e à visão, e não às palavras e
à escuta, existem desde o início.” (1957a, p. 49).
xlii
Os ideogramas e as atividades
ideomotoras são uma forma primitiva de comunicação que se dá através de um conjunto de
ideias e de sinais que são transmitidos de maneira concreta.
Será por meio desse pensamento ideogramático, pré-verbal, que o paciente tentará
restaurar seu ego danificado pelos ataques sádicos e entrar em contato com a realidade. Bion
nota que isso é feito pela reversão do caminho usado na identificação projetiva para expelir os
fragmentos. Se a sua expulsão esteve relacionada ao erotismo anal, a tentativa de pensar sobre
as questões que emergem nessa organização do desenvolvimento psicossexual será feita pela
via do ânus e de uma reunião dos fragmentos no intestino, qual massa fecal. É interessante
notar como essas fantasias relacionadas à reversibilidade das zonas erógenas é descrita por
Freud brevemente e sem maiores detalhes em “O homem dos ratos” com relação às teorias
sexuais infantis sobre o nascimento. Em acréscimo, diz: “De acordo com as regras técnicas de
interpretação de sonhos, a noção de sair do reto pode ser representada pela noção oposta de
entrar aos poucos para dentro do reto (como na punição do rato), e vice-versa.” (1909, p.
220).
xliii
Em “Sobre alucinação” (1958), Bion descreve experiências nas quais seus pacientes
sentem que os órgãos dos sentidos tanto colocam para fora quanto para dentro; tanto expelem,
cospem como absorvem ou engolem, de acordo com a fantasia relacionada ao órgão em
questão. Um paciente descrito por Bion em “Diferenciação...” diz o seguinte: “Nada além de
coisas imundas e cheiros. Penso que perdi a minha visão.” (Nothing but filthy things and
smells. I think I’ve lost my sight.) (1957a, p. 53). Uma questão técnica para o analista é
139
discriminar se o paciente está rodeado apenas de objetos persecutórios e danificados, com os
quais sente que nada pode ser feito, se em fantasia removeu esses objetos de si ou do analista
como uma tentativa de ser curado, ou então se ele está começando a farejar a natureza dos
mesmos e tentando estabelecer alguma discriminação através de uma função rudimentar e
parcial de julgamento. Isso requer um uso da função de julgamento que esteja a serviço do
que Bion entende como “intuição terapêutica” – algo que só pode ocorrer pelo resgate da
capacidade de julgar que, junto a outras funções do ego, fora excindida.
A fantasia de que não só as zonas erógenas, mas os órgãos dos sentidos expelem ou
recebem forma o conteúdo das alucinações descritas por Bion em seu trabalho. No entanto, o
exemplo que Bion oferece é bastante diferente do que comumente poderíamos esperar do
relato de uma alucinação. Seu conteúdo não foi transmitido pelo paciente por meio da
narrativa de algum delírio; ela foi intuída por Bion a partir de certos comentários e
comportamentos de seu paciente, e foi construída em seu mecanismo da seguinte maneira: o
paciente, ao olhar o analista, suga dele uma parte má e a expele em um canto da sala de
análise. Em outro exemplo semelhante a esse, o paciente perde a visão e não pode mais ver o
que via – daí o termo alucinação visual-invisível, cunhado por Bion em “Ataques à ligação”
(1959). A atividade alucinatória é parte de um processo em que o paciente procura lidar com
partes hostis e perigosas de sua personalidade que estão identificadas ao analista e que são
sentidas como cheias de agressividade e sexualidade. Bion reconhece que certas formas de
alucinação podem ser empregadas da maneira como Freud (1911a, 1937b) concebeu o delírio.
Estando a serviço da intuição terapêutica, a alucinação aproxima-se da ideia de delírio como
tentativa de restituição e cura:
Alucinações e a fantasia dos sentidos de ejetar bem como de receber
apontam para a severidade da perturbação que o paciente está sofrendo, mas
eu devo indicar uma qualidade benigna nos sintomas [...]. A cisão, o uso
evacuatório dos sentidos e as alucinações estavam todos sendo empregados a
140
serviço de uma ambição do paciente de ser curado, e deve-se supor, assim,
que fossem atividades criativas. (BION, 1958, p. 68).
xliv
Na tentativa de distinguir esses processos de outros nos quais os mecanismos
psíquicos estão voltados para os impulsos de destruição, Bion menciona, de passagem, o uso
indiscriminado que Freud faz dos termos “dissociação” e “cisão” em seus primeiros trabalhos
sobre a histeria, e diz: “[...] parece-me que fenômenos que observei [...] são mais bem
descritos pelo termo ‘cisão’ tal como usado por Melanie Klein, deixando o termo
‘dissociação’ livre para ser empregado onde uma atividade mais benigna for discutida.”
(1958, p. 69).
xlv
Na dissociação estariam presentes pensamentos verbais elementares;
imaginamos se por “elementares” Bion estaria se referindo aos pensamentos pré-verbais. Em
“Ataques à ligação” (1959) a relação entre as impressões sensíveis e a consciência é feita pelo
que Bion nomeia de pensamento embrionário. Seja qual for o termo, Bion considera que o
pensamento elementar ou embrionário é a base para o estabelecimento da comunicação
consigo e com os outros e está na base de formação do que futuramente será um pensamento
mais sofisticado e abstrato.
As referências de Bion a Freud também são feitas quando pretende definir a natureza
de certas experiências alucinatórias na psicose: “Elas parecem se aproximar mais de perto ao
que Freud descreveu como alucinações histéricas [...]” (1958, p. 82).
xlvi
Vale dizer que a
alucinação histérica, tal como Bion a define, é um termo que se ajusta de maneira estranha ao
tipo de fenômeno descrito, ainda que ele se refira à presença de objetos totais. Já as
alucinações psicóticas são identificas como aquelas que estariam relacionadas a objetos
parciais. A passagem da última à primeira estaria relacionada à maior capacidade do paciente
psicótico de tolerar a posição depressiva.
A alucinação é costumeiramente tratada na psiquiatria e na psicanálise como um
fenômeno patológico. No entanto, e de acordo com Pereira (2006), a alucinação também é
141
descrita na obra de Freud como um processo constitutivo e estruturante do psiquismo, sendo
inclusive um evento comum, como quando sonhamos.
O mesmo ocorre com as descrições de Bion sobre os processos psíquicos na psicose:
nela estão presentes processos normais, isto é, constitutivos do psiquismo, e processos
patológicos. A alucinação também é reconhecida como uma atividade criativa – daí a
necessidade do analista de distinguir em sua prática clínica a natureza dos fenômenos
observados. A partir de Freud e de autores que estudaram o pensamento de Bion, como André
Green e o Casal Botella, Pereira (2006) procura mostrar em seu trabalho que as alucinações
positiva e negativa têm ambas um caráter estruturante e desestruturante do psiquismo.
Em “Sobre alucinação” (1958), Bion faz algumas breves considerações sobre os
sonhos na psicose e sobre a forma como o paciente o experimenta. Até poder ser relatado
como um sonho propriamente dito, ele é sentido e tratado como uma alucinação e como um
meio para a evacuação do que foi “tomado para dentro” (taken in) durante a vigília. A
atividade alucinatória evacuativa ou criativa, o falar por meio de imagens visuais e o sonho
enquanto tal são processos que exigiam discriminação entre si. A busca de Bion por
esclarecimento conceitual e prático desses processos encontra-se nos textos publicados
postumamente em Cogitações (2000) e preparam o terreno para a proposição de sua Teoria do
Pensar.
Essa discriminação é especialmente importante, uma vez que certos pacientes não
podiam distinguir eventos mentais de eventos da realidade material; não podiam falar sobre a
sua realidade emocional como algo distinto de um evento concreto. Isso significa que o
sonho, ao ser narrado, pode ser tratado como algo concreto e real, do mesmo modo que algo
que é parte do mundo externo e segue as leis naturais pode ser tratado como se fosse fantasia.
A questão para Bion será, então, relativa à maneira com que a qualidade desses estados
mentais pode ser discriminada; nesse sentido, fica claro que o problema não está relacionado a
142
uma distinção meramente conceitual. A postulação dos termos “elementos-beta” e
“elementos-alfa” (BION, 1962b) procurou dar conta dessa questão no sentido de qualificar,
respectivamente, eventos de ordem sensorial ou concretos e eventos não-sensoriais ou
mentais.
Neste capítulo e nos capítulos anteriores, mostramos como, na psicose, os elementos
que compõem o ego são atacados e ficam inibidos quando o princípio de realidade e a posição
depressiva começam a se fazer presentes. Também mostramos como esses mesmos
componentes são usados quando há uma tentativa de se estabelecer contato com a realidade.
No próximo capítulo, veremos como esses processos operam nas personalidades psicótica e
não psicótica e, por meio de um caso clínico, ilustraremos a forma como a relação de
coexistência existente entre elas é reconhecida por Bion. Também discutiremos um pouco
mais sobre o significado dos pensamentos pré-verbais, em especial, sobre o uso que um
paciente faz de certo ideograma para restaurar seu ego.
NOTAS DE FIM
i
In these circumstances there is no alternative but to report the facts in the imperfect and incomplete fashion in
which they are known and in which it is legitimate to communicate them. The crumbs of knowledge offered in
these pages, though they have been laboriously enough collected, may not in themselves prove very satisfying;
but they may serve as a starting-point for the work of others investigators and common endeavour may bring the
success which is perhaps beyond the reach of individual effort. (FREUD, 1909/1957, p. 157).
ii
Obsessional ideas, as is well known, have an appearance of being either without motive or without meaning,
just as dreams have. The first problem is how to give them a sense and a status in the subject’s mental life, so as
to make them comprehensible and even obvious. The problem of translating them may seem insoluble; but we
must never let ourselves be misled by that illusion. The wildest and most eccentric obsessional ideas can be
cleared up if they are investigated deeply enough. (FREUD, 1909/1957, p. 186).
iii
The distortions in “The Imaginary Twin” of the patient’s past are designed to prevent him or anyone who knew
him from thinking it referred to him. Such aims underestimate the power of rumor and suspicion. If the
distortions are judge effective, the narrative must be regarded as fiction. If the narrative were a work of art it
might be reasonable to regard it as more nearly representative of truth than any literal transcription; but this
psychoanalyst is not an artist. Expectations that the record represents what actually took place must be dismissed
as vain. (1967/1993, p. 120).
143
iv
The subject of the ‘uncanny’ [...] is undoubtedly related to what is frightening – to what arouses dread and
terror. (FREUD, 1919/1975, p. 219).
v
[...] the uncanny is that class of the frightening which leads back to what is known of old and long familiar.
(FREUD, 1919/1975, p. 220).
vi
[...] the feeling of something uncanny is directly attached to the figure of the Sand-Man, that is, to the Idea of
being robbed of one’s eyes, and that Jentsch’s point of an intellectual uncertainty has nothing to do with the
effect. Uncertainty whether an object is living or inanimate, which admittedly apply to the doll Olympia, is quite
irrelevant in connection with this other, more striking instance of uncanniness. (FREUD, 1919/1975, p. 230).
vii
For why does Hoffmann bring the anxiety about eyes into such intimate connection with the father’s death?
And why does the Sand-Man always appear as a disturber of love? He separates the unfortunate Nathaniel from
his betrothed and from her brother, his best friend; he destroys the second object of his love, Olympia, the lovely
doll; and he drives him into suicide at the moment when he has won back his Clara […]. (FREUD, 1919/1975, p.
231).
viii
A study of dreams, phantasies and myths has taught us that anxiety about one’s eyes, the fear of going blind,
is often enough a substitute for the dread of being castrated. The self-blinding of he mythical criminal, Oedipus,
was simply a mitigated form of the punishment of castration – the only punishment that was adequate for him by
the lex talionis. (FREUD, 1919/1975, p. 231).
ix
The histories of obsessional patients almost invariably reveal an early development and premature repression
of the sexual instinct of looking and knowing (the scopophilic and epistemophilic instinct). (FREUD, 1909/1957,
p. 245).
x
[...] the ‘double’ was originally an insurance against the destruction of the ego, an ‘energetic denial of the
power of death’ […]. (FREUD, 1919/1975, p. 235).
xi
[…] from the soil of unbounded self-love, from the primary narcissism which dominates the mind of the child
and of primitive man. But when this stage has been surmounted, the ‘double’ reverses its aspect. From having
been an assurance of immortality, it becomes the uncanny harbinger of death. (FREUD, 1919/1975, p. 235).
xii
It then turned out that many conversations introduced by the phrase “I was thinking of talking to Mr. X” […]
were imaginary conversations […]. (BION, 1950/1993, p. 6).
xiii
I had mention then that it sounded as if no clear distinction was being made between the real and the
imaginary. (BION, 1950/1993, p. 6).
xiv
[…] I drew his attention to peculiarities in his behavior, notably the rhythm of ‘association-interpretation-
association’ that indicated that I was a twin of himself who supported him in a jocular evasion of my complaints
and thus softened his resentment. (BION, 1950/1993, p. 7-8).
xv
[...] that was the first occasion on which I had had quite such a dramatic exhibition of himself in the act of
introjecting objects. (BION, 1950/1993, p. 8).
xvi
[...] the menacing figure was myself who was also the imaginary twin […]. The twin was imaginary because
my patient had prevented the birth of the twin – there was in fact no twin. His use of a twin as a means of
alleviating anxiety was therefore illegitimate and the twin was determined that he, the patient, should not now be
born, or to put it in other words, achieve freedom or independence. […] the analysis had been the car from which
I had not been allowed to emerge as a real being; the dream showed his fear that in the previous session I had
become alive only to block his escape from analysis […] (BION, 1950/1993, p. 8-9).
xvii
How exactly we can trace back to infantile psychology the uncanny effect of such similar recurrences is a
question i can only lightly touch on in these pages; and I must refer the reader instead to another work […]. For
it is possible to recognize the dominance in the unconscious mind of a ‘compulsion to repeat’ proceeding from
the instinctual impulses and probably inherent in the very nature of the instincts – a compulsion powerful enough
to overrule the pleasure principle, lending to certain aspects of the mind their daemonic character […]. All these
144
considerations prepare us for the discovery that whatever reminds us of this inner ‘compulsion to repeat’ is
perceived as uncanny. (FREUD, 1919/1975, p. 238).
xviii
‘Interpretation’ applies to something that one does to some single element of the material, such as an
association or a parapraxis. But it is a ‘construction’ when one lays before the subject of the analysis a piece of
his early history that he has forgotten […]. (FREUD, 1937/1963, p. 261).
xix
[…] the imaginary twin goes back to his very earliest relationship and is an expression of his inability to
tolerate an object that was not entirely under his control.” (BION, 1950/1993, p. 19).
xx
[…] made a mess of things and had frightened one of his parents. (BION, 1950/1993, p. 10).
xxi
[…] the employment of the locum had not relieved him of any anxiety or responsibility. […] the parent made
a lot of demands on him and half implied that she was sexually attracted to him. (BION, 1950/1993, p. 10).
xxii
[…] leaving me in charge of his inexperienced self […]. (BION, 1950/1993, p. 10).
xxiii
His anxiety was that if he came to me as an experienced man, that is to say potent, then I made demands on
him, particularly sexual demands, which he felt unable to meet. (BION, 1950/1993, p. 10).
xxiv
I have a student whose eye has been becoming affected. An eye man said he thought it was an infection.
Anyway nothing could be done about it, but her father said he wanted another opinion. So I had to send her to a
second eye man and now I have got landed with a whole lot of work I don’t want to do; she’s a nuisance. […].
The second eye man doesn’t think it’s much different clinically from what the first eye man says, but he think
it’s worth doing something. […]. She must get a blood test done to see if she has syphilis. (BION, 1950/1993, p.
12).
xxv
[...] the manner in which the patient was able to bring this material into consciousness. (BION, 1950/1993, p.
12).
xxvi
If an organ which serves the two sorts of instinct increases its erotogenic role, it is in general to be expected
that this will not occur without the excitability and innervation of the organ undergoing changes which will
manifest themselves as disturbances of its function in the service of the ego. Indeed, if we find that an organ
normally serving the purpose of sense-perception begins to behave like an actual genital when its erotogenic role
is increased, we shall not regard it as improbable that toxic changes are also occurring in it. (FREUD, 1910/1957,
p. 217-218).
xxvii
The injured girl was some object, recovered from his inside, which was to be subjected to the scrutiny of
both his eyes and a developing intellect, a scrutiny thus exercised on an externalized object. (BION, 1950/1993,
p. 14).
xxviii
This association may be considered as the starting point of an investigation which illuminated two problems:
first, the unconscious material that it expressed and, second, the manner in which the patient was able to bring
this material into consciousness. (BION, 1950/1993, p. 12).
xxix
The eye man, particularly the second, also represented the reinforcement of the investigating weapons by
something like intellect […]. (BION, 1950/1993, p. 14).
xxx
I was not surprised when at the next session another student had to be sent for a consultation, this time to an
ear, nose and throat surgeon […]. A retreat to auditory, olfactory and oral levels had taken place. (BION,
1950/1993, p. 14).
xxxi
I interpreted that his advance had been felt to be impossible to sustain and that he felt persecuted not only for
the reasons already educed but also because psycho-analysis, a method that involved examining his problems
with all his senses, including sight and intellect, was […] burdensome […]; it involved (1) painful co-ordination,
which he had not been able to accomplish (2) the acceptance by himself of all the splittings of his personality
which he had personified and externalized (3) the imposition of responsibilities which he could not shoulder and
(4) the threatened punishment of castration […]. (BION, 1950/1993, p. 14-15).
145
xxxii
The increased significance of external reality heightened the importance, too, of the sense-organs that are
directed towards that external world, and of the consciousness attached to them. (FREUD, 1911b/1958, p. 220,
grifo do autor).
xxxiii
Consciousness now learned to comprehend sensory qualities in addition to the qualities of pleasure and
unpleasure which hitherto had alone been of interest to it. (FREUD, 1911b/1958, p. 220, grifo do autor).
xxxiv
It will be one of my contentions that the conflict with reality, of which Freud speaks […] leads the psychotic
patient to developments which make it doubtful whether he has ever learned to “comprehend the qualities of
sense in addition to the qualities of pleasure and ‘pain’.” (BION, 1955, p. 221).
xxxv
[...]consciousness, which had hitherto been a sense organ for perceptions alone, also became a sense organ
for a portion of our thought-processes. (FREUD, 1900/1958, p. 574).
xxxvi
[...] I had the impression that the patient felt that sight produced problems of mastery of a new sense organ.
This had its counterpart in a feeling that the development of the psyche, like development of visual capacity,
involved the emergence of the oedipus situation. (BION, 1950/1993, p. 21)
xxxvii
The patient’s oscillations helped him to try out his methods of reality testing by enabling him to compare his
findings in oral and ocular phases. (BION, 1950/1993, p. 15).
xxxviii
[…] confidence either in reality or in his means for testing it. (BION, 1950/1993, p. 17).
xxxix
With the introduction of the reality principle one species of thought-activity was split off; it was kept free
from reality-testing and remained subordinated to the pleasure principle alone. This activity is phantasysing […].
(FREUD, 1911b/1958, p. 222, grifo do autor).
xl
It is no longer a question of whether what has been perceived (a thing) shall be taken into the ego or not, but of
whether something which is in the ego as a presentation can be rediscovered in perception (reality) as well.
(FREUD, 1925/1975, p. 237).
xli
Thanks to the operations of the non-psychotic part of the personality the patient is aware that introjections is
leading to the formation of the unconscious thought of which Freud speaks as “turned to te relations between
object-impressions”. I believe that it is this unconscious thought […] which is responsible for the “consciousness
attached to” the sense impressions. I am fortified in this belief by his statement twelve years later in the paper
“The Ego and the Id”. In this he says “that the question ‘How does a thing become conscious?’ could be put
more advantageously thus: ‘How does a thing become pre-conscious?’ And the answer would be: ‘By coming
into connection with the verbal images that correspond to it.’” In my 1953 paper I said that verbal thought is
bound up with awareness of psychic reality; this I also believe to be true of the early pre-verbal thought […].
(BION, 1957a/1993, p. 49).
xlii
My experiences have led me to suppose that some kind of thought, related to what we should call ideographs
and sight rather than to words and hearing, exists at the outset. (BION, 1957a/1993, p. 49).
xliii
According to the technical rules for interpreting dreams, the notion of coming out of the rectum can be
represented by the opposite notion of creeping into the rectum (as in the rat punishment), and vice versa.
(FREUD, 1909/1957, p. 220).
xliv
Hallucinations and the fantasy of the senses as ejecting as well as receiving, point to the severity of the
disorder from which the patient is suffering, but I must indicate a benign quality in the symptom […]. Splitting,
evacuatory use of the senses, and hallucinations were all being employed in the service of an ambition to be
cured, and may therefore be supposed to be creative activities. (BION, 1958/1993, p. 68).
xlv
[...] it seems to me that the phenomena which I have observed [...] are best described by the term “splitting” as
it is used by Melanie Klein, leaving the term “dissociation” free to be employed where a more benign activity is
being discussed.” (BION, 1958/1993, p. 69).
xlvi
They seem to approximate more closely to what Freud described as hysterical hallucinations […]. (BION,
1958/1993, p. 82).
146
CAPÍTULO 4 - JUSTAPOSIÇÃO NEGATIVA DAS PERSONALIDADES PSICÓTICA
E NÃO-PSICÓTICA: UM ESTUDO CONCEITUAL E CLÍNICO
4.1 Apresentação
Na abertura do artigo “Diferenciação entre a personalidade psicótica e a personalidade
não-psicótica” (1957a), Bion afirma que deve a certos trabalhos de Melanie Klein e de Freud
a “[...] clarificação da obscuridade que permeia a totalidade da análise de um psicótico” (p.
43).
i
Essa é uma afirmação bem diferente daquela que irá fazer nos anos 70, quando retoma a
ideia de Freud apresentada em uma carta a Lou Andreas-Salomé sobre a necessidade de o
analista, no trabalho clínico, cegar-se artificialmente ao examinar o que lhe parece obscuro
(BION, 1973-1974[1990], p. 20). Anos antes, em Aprendendo da experiência (1962b), a
intenção era tematizar acerca de uma função da personalidade voltada para a investigação,
para a sustentação psicoemocional e para a modificação, em pensamento simbólico, de
unidades concretas de pensamento e de ansiedades intoleráveis. Para tanto, seria preciso a
criação de um espaço psíquico ao que não podia ser reconhecido como uma experiência
pessoal. Discussões sobre a atitude mental do analista e a formulação do conceito de função-
alfa procuraram dar conta dessa condição.
1
Já nos artigos de Bion dos anos 50, com exceção de “Sobre arrogância” (1957b), em
que há descrições mais contundentes sobre as implicações do estado mental do analista
durante as sessões, as referências à teoria da técnica estão menos em evidência do que o
interesse mais marcante pela elucidação do funcionamento mental psicótico. Como vimos nos
1
A função-alfa, enquanto uma característica da personalidade, permitiu a Bion lidar com situações
desconhecidas “[...] sem ter que esperar pela descoberta dos fatos que faltavam e sem fazer afirmações que
poderiam sugerir que os fatos já eram conhecidos” (BION, 1962b, p. 19). Essa é uma condição para a
investigação da realidade que seus pacientes não podiam sustentar sem antes preencher qualquer lacuna de
sentido com um saber onipotente. Uma discussão sobre o tema e sobre a gênese do conceito pode ser encontrada
no artigo “Função-alfa e estilo de pensamento em Bion: uma aproximação por meio da experiência da
alteridade”. (SALVITTI, 2006).
147
capítulos anteriores, Bion contribuiu com a descrição clínica e teórica dos conceitos de cisão e
de identificação projetiva, ampliou o conhecimento sobre o emprego dos mesmos nas
perturbações mentais, bem como o conhecimento sobre a etiologia dessas perturbações. Outra
contribuição em relação aos efeitos da cisão na psicose encontra-se no artigo
“Diferenciação...”, no qual Bion emprega o termo “justaposição negativa” para ilustrar a
forma como fenômenos psicóticos e neuróticos estão dispostos na personalidade. Entre eles há
um tipo de coexistência na qual as partes não-psicóticas ficam obscurecidas pelas partes
psicóticas e vice-versa. Em termos teóricos, consideramos que essa justaposição em negativo
pode ser descrita pelo mecanismo da recusa (Verleugnung) – conceito também traduzido
como denegação ou desmentido. Em termos coloquiais, o verbo alemão verleugnen significa
o ato figurado de colocar algo em baixo dos panos, como quem esconde algo de si mesmo. A
imagem ilustra bem o dinamismo daquilo que Bion observa no consultório; no entanto, a
natureza e o destino dos fenômenos descritos não podem ser abarcados pela ideia de mentira e
de algo que é simplesmente mantido escondido.
Por meio de uma massa rica de exemplos clínicos, o objetivo de Bion é mostrar em
detalhes o que ocorre com as partes cindidas da personalidade e discutir as consequências ao
desenvolvimento psíquico. Para tanto, faz uso de trabalhos de Melanie Klein e de Freud, em
especial artigos metapsicológicos, entre outros. Se anteriormente o foco de Bion estava
voltado para a relação entre a linguagem verbal e a posição depressiva, agora ele se volta para
os fenômenos da posição esquizo-paranoide, para o pensamento pré-verbal e ao destino das
funções primordiais da personalidade que, um dia, “[...] proporcionariam o fundamento para a
compreensão intuitiva de si mesmo e dos outros [...]”. (BION, 1957a, p. 47).
ii
Quanto à citação em seu texto de algumas concepções metapsicológicas de Freud, a
intenção não é promover um debate aprofundado e amplo com a teoria do autor; cabe ao leitor
interessado em apreender a trama conceitual subjacente desdobrar as referências apresentadas
148
e recuperar passagens que não foram explicitadas. Parte de nossa tarefa será discutir algumas
referências teóricas do texto e mostrar a afinidade do termo “justaposição negativa” com as
ideias de Freud apresentadas em dois de seus últimos trabalhos: “Esboço de psicanálise
(1940a) e “A cisão do ego no processo de defesa” (1940b). Outra parte será dedicada à
discussão da importância desse termo para a prática clínica.
Se nos capítulos anteriores mostramos as inclinações da personalidade no sentido da
preservação da vida, de um lado, e da destruição e morte, de outro, neste capítulo tentaremos
ilustrar a forma como Bion observa essas tendências na coexistência de fenômenos psicóticos
e neuróticos em seus pacientes. Discutiremos a pertinência dessa coexistência também do
ponto de vista conceitual.
4.2 Modificação de uma descrição de Freud e a operação da Verleugnung
Entre os trabalhos de Freud citados em “Diferenciação...”, tal como na maior parte dos
artigos de Bion dos anos 50, destaca-se a descrição do aparelho psíquico e de seu
funcionamento sob o princípio de realidade (FREUD, 1911b). Com este trabalho de Freud,
Bion mostrou em detalhes a excisão das partes da personalidade que se ocupam da
consciência e da discriminação entre mundo externo e interno; descreveu os destinos dos
fragmentos resultantes; e propôs que a cisão, carregada de sadismo e de crueldade, acarreta a
diferenciação ente uma personalidade psicótica e outra não-psicótica na formação do
psiquismo. Na esquizofrenia, o resultado seria a criação de uma divergência crescente e de um
fosso intransponível entre elas.
Tendo em vista a importância da consciência que emerge com o pensamento pré-
verbal antes da posição depressiva, Bion fez uso das concepções de Melanie Klein sobre a
posição esquizo-paranoide e das teorias de Freud sobre a psicose em relação aos seus próprios
149
achados clínicos. Propôs duas modificações na descrição deste último autor para, como disse,
“colocá-las em uma relação mais próxima dos fatos.” (1957a, p. 46).
iii
Porém, não fica claro
em seu texto qual foi exatamente a descrição de Freud a que Bion se referiu. Antes de
discutirmos sua proposta de modificação, vale dizer que Bion menciona o texto de Freud
“Neurose e psicose” (1924a) com o objetivo de expor a diferença entre essas psicopatologias,
mas o faz a partir de uma citação de “A perda da realidade na neurose e na psicose”
(FREUD,1924b); isto é, Bion cita um trecho deste último texto como se pertencesse ao
primeiro.
Em “Neurose e psicose” (1924a), Freud procurou estabelecer a diferença de gênese
entre as duas formas de adoecimento à luz de sua teoria estrutural recém-apresentada. Em “A
perda da realidade...” (1924b), como o próprio título já diz, deu continuidade aos
desenvolvimentos do texto anterior, agora sob o viés da relação conflituosa do ego com a
realidade externa. Assim como na psicose, também na neurose haveria perda de contato com a
realidade, mas de um modo que lhe é próprio, qual seja, através da repressão (Verdrängung).
Na psicose, um dos mecanismos presentes seria a recusa (Verleugnung). Usando o termo split
no sentido genérico, Freud (1940a) considera que no psiquismo sempre há uma cisão do ego
em relação ao id.
O trecho de Freud citado por Bion e reproduzido por nós a seguir expõe a diferença
mais imediata e superficial entre neurose e psicose: na primeira, “o ego, em virtude de sua
submissão à realidade, suprime parte do id (a vida do instinto), ao passo que, na psicose, esse
mesmo ego, a serviço do id, retira-se de uma parte da realidade.” (FREUD, 1924b, apud
BION, 1957a, p. 45).
iv
Essas diferenças serão ponderadas por Freud ao longo do texto em
favor do estabelecimento de aproximações entre os mecanismos presentes no adoecimento
neurótico e psicótico. Tanto em um quanto em outro há uma tentativa de restabelecer a perda
pela criação de uma nova realidade que não coloca objeções aos impulsos do id. Enquanto na
150
neurose há a criação de um mundo de fantasia no qual os impulsos sexuais mantêm-se
afastados dos impedimentos existentes sob o princípio de realidade, na psicose há a
reconstrução de uma realidade idiossincrática por meio do delírio. Fazendo uso de mais uma
fórmula simples, Freud diz: “[...] a neurose não recusa a realidade, apenas a ignora; a psicose
renega e tenta substituí-la.” (1924b, p. 185).
v
Após citar o trecho de Freud transcrito acima sobre a relação do ego com a realidade
na neurose e na psicose, Bion faz uma menção ao artigo “Formulações sobre os dois
princípios do funcionamento mental” (1911b) e às consequências da aliança do ego com a
realidade para o desenvolvimento psíquico. Como seu foco de interesse são os fenômenos da
posição esquizo-paranoide relacionados especialmente ao pensamento pré-verbal e a maneira
como eles contribuem para o estabelecimento do contato com a vida mental, Bion acredita
expandir “a função e a importância do pensamento”, embora “aceite a classificação de função
do ego que Freud [1911] propôs como hipótese, por dar concretude a uma parte da
personalidade com a qual este artigo se ocupa.” (1957a, p. 46).
vi
A continuidade de seu
argumento não deixa dúvida quanto ao sentido principal de sua referência à colocação de
Freud sobre o ego: “Ajusta-se bem à experiência clínica e ilumina eventos que, sem ela,
seriam para mim infinitamente mais obscuros.” (Ibid., p. 46).
vii
Em seguida, propõe duas
modificações em relação a Freud para explicar a cisão da personalidade em duas partes
divergentes quando a aliança com a realidade não é bem tolerada. Em vista da complexidade
do argumento, citaremos um trecho longo:
Faria duas modificações na descrição de Freud para colocá-la em uma
relação mais próxima dos fatos. Não penso que o ego esteja inteiramente
afastado da realidade, ao menos no tocante àqueles pacientes que temos a
chance de encontrar na prática analítica. Diria que o contato do ego com a
realidade está mascarado pelo domínio, na mente e no comportamento do
paciente, de uma fantasia onipotente cuja intenção é destruir ou a realidade
ou sua consciência e, assim, alcançar um estado que não é de vida nem de
morte. Como o contato com a realidade nunca é inteiramente perdido, os
fenômenos que nos acostumamos a associar à neurose nunca estão ausentes
151
[...]. O fato de o ego manter contato com a realidade depende da existência
de uma personalidade não-psicótica, paralela com, mas obscurecida pela
personalidade psicótica. Minha segunda modificação é que o afastamento
em relação à realidade é uma ilusão, não um fato, e origina-se do emprego
da identificação projetiva contra o aparato mental arrolado por Freud. Tal é
o domínio dessa fantasia que é evidente que, para o paciente, não se trata de
uma fantasia, mas de um fato [...]. (1957a, p. 46).
viii
Essa é uma explanação bastante concisa e merece ser lida com cuidado.
Primeiramente, quando diz: “faria duas modificações na descrição de Freud para colocá-la
mais próxima aos fatos”, podemos nos perguntar a qual descrição Bion se refere, uma vez que
não diz de modo explícito. Seria uma referência ao texto “Formulações...”? Ao texto “A perda
da realidade...”? A “Neurose e psicose”, ou a algum outro trabalho?
Em segundo lugar, ao continuar com sua explanação, transmite ao leitor a impressão
de que a primeira modificação seria uma contraposição à ideia de afastamento do ego da
realidade – o que nos faz supor que esta seria uma afirmação de Freud. Diferentemente deste
autor, Bion não acreditaria que na psicose haveria um afastamento completo do mundo
externo. Contudo, se levarmos em conta a afirmação de Freud transcrita pelo próprio Bion,
não podemos dizer que é disso que se trata. Ambos reconhecem que, na psicose, o ego se
afastada de uma parte da realidade apenas. O argumento de Bion baseia-se justamente na
oposição à existência de um afastamento completo; isto é, como Freud, entende que, na
psicose, há contato com a realidade. Mas, então, como podemos compreender o início de seu
argumento e sua proposta de modificação? Estaria ele apoiado em Freud? De que forma?
Seria essa primeira afirmação apenas um ponto de partida para modificações que viriam a
seguir no texto?
Há uma forma de lermos esse início que torna a afirmação de Bion uma contraposição
a Freud; para tanto, temos de nos respaldar em “Neurose e psicose” – texto em que há
algumas afirmações contundentes sobre o retraimento do psicótico em relação ao mundo
externo. Freud diz:
152
Na amência de Meynert – uma confusão alucinatória aguda que talvez seja
a mais extrema e notável forma de psicose – ou o mundo externo não é
percebido de modo algum, ou a percepção do mesmo não tem efeito algum.
[...] Na amência, não só a aceitação de novas percepções é recusada
[verweigert], como também o mundo interno [...] perde a sua significância
(seu investimento). (FREUD, 1924a, p. 150-151, grifo nosso).
ix
Sabemos que outras formas de psicose, as esquizofrenias, estão inclinadas a
acabar em um torpor afetivo – isto é, em uma perda de toda a participação
no mundo externo. (Ibid., p. 151, grifo nosso).
x
Nesses trechos há uma variedade de ideias usadas por Freud para descrever o que se
passa com o ego e com o contato com a realidade nessas psicoses. Ao mesmo tempo em que
se refere à ausência de percepção, fala em uma percepção que não tem efeito, fala em recusa,
em torpor afetivo e em perda de participação no mundo. Quanto à palavra “recusada”,
traduzida por Strachey como refused a partir da palavra alemã verweigert, Luis Hanns nos
ensina, em sua tradução do mesmo texto de Freud (1924c, p. 96), que se trata de um termo
coloquial e diferente do conceito de recusa (Verleugnung) usada por Freud em outros textos.
Por exemplo, no “Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos” (1917), ao falar sobre o
processo de defesa na amência, a expressão utilizada refere-se à recusa, conforme o termo
Verleugnung: “A amência é a reação a uma perda que a realidade afirma, mas que o ego tem
de negar [verleugnet] por achá-la insuportável.” (p. 233).
xi
Como visto no primeiro capítulo,
trata-se de um tipo de negação cujo sentido se aproxima do sentido impreciso contido nas
palavras “renegar” ou “desmentir”. Estas palavras carregam uma ambiguidade que se
aproxima das descrições de Freud no texto “Fetichismo”, onde o mecanismo da Verleugnung
implica uma cisão e a presença simultânea de duas correntes mentais: uma que recusa e outra
que aceita a realidade.
Ainda em “Neurose e psicose” e em relação à observação que Freud faz de Meynert,
Strachey nos lembra que, no “Esboço de psicanálise” (1940a), Freud reviu suas considerações
sobre a amência quando disse que “mesmo num estado tão afastado da realidade do mundo
153
externo como o de confusão alucinatória, [...] em algum canto da mente [...] havia uma pessoa
normal escondida [...]”. (1940a, p. 201-202).
xii
Esta seria uma modificação de Freud também
em relação à sua afirmação feita em “Fetichismo” (1927) sobre a psicose, onde a corrente
mental que mantém o contato com a realidade estaria ausente.
Em “Fetichismo” (1927), Freud afirmou que uma percepção inaceitável sofre o
processo de recusa. Porém, se no fetichismo há uma formação de compromisso entre essas
diferentes correntes mentais, Freud considera neste artigo que, na psicose, a parte que se
ajusta à realidade estaria ausente. Sabemos por outros trabalhos de Freud, como “A perda da
realidade...” (1924b), “Esboço...” (1940a) e “A cisão do ego...” (1940b), que essa afirmação
não é definitiva. Nesse sentido, as afirmações de Bion sobre a presença da realidade na
psicose, embora cindida, negada e contida na personalidade não-psicótica, estariam de acordo
com essas outras constatações de Freud. O autor não faz nenhuma referência explícita a esses
trabalhos mesmo sugerindo modificar a descrição deste último. A seguir citaremos duas
afirmações de Freud que, apesar de extensas, ajudam a identificar sua pertinência no
pensamento de Bion e a mostrar o quanto estão entranhadas em seu modelo de observação da
coexistência entre neurose e psicose. Em 1940a, Freud diz:
Podemos provavelmente tomar como geralmente verdadeiro que o que
ocorre em todos esses casos é uma cisão psíquica. Duas atitudes psíquicas
foram formadas ao invés de uma só: uma delas, a normal, que leva em conta
a realidade, e outra que, sob a influência dos instintos, desliga o ego da
realidade. As duas coexistem lado a lado. O resultado depende da sua força
relativa. Se a segunda é ou se torna a mais forte, a pré-condição necessária
para uma psicose está presente. Se a relação é revertida, há então uma cura
aparente do distúrbio delirante. (1940a, p. 202, grifo do autor).
xiii
Ao comentar sobre a cisão no fetichismo, Freud continua:
Não se deve pensar que o fetichismo apresente um caso excepcional no que
diz respeito à cisão do ego; trata-se simplesmente de um tema
particularmente favorável para estudar a questão. Voltemos à nossa tese de
154
que o ego da criança, sob o domínio do mundo real, livra-se das demandas
instintivas indesejáveis pelo que é chamado de repressões. Suplementaremos
agora isto afirmando ainda que, durante o mesmo período da vida, o ego
frequentemente se encontra em posição de rechaçar alguma exigência do
mundo externo que acha aflitiva, e isto é feito por meio de uma negação
[disavowal] das percepções que trazem ao conhecimento essa exigência da
realidade. Negações desse tipo ocorrem com muita frequência e não apenas
com fetichistas; e sempre que estivermos em posição de estudá-las, revelam
ser meias-medidas, tentativas incompletas de desligamento da realidade. A
negação [disavowal] é sempre suplementada por um reconhecimento; duas
atitudes contrárias e independentes sempre surgem e resultam na situação de
haver uma cisão do ego. Mais uma vez, o resultado depende de qual das duas
pode apoderar-se da maior intensidade [de energia psíquica]. (Ibid., p. 203-
204, grifo do autor).
xiv
A noção de suplemento empregada por Freud, em contraste com a ideia de
complemento, significa que as duas atitudes não se completam a ponto de haver um
acabamento, um fechamento ou uma resolução frente à presença de dois contrários. O ato de
suplementar significa acrescentar sentido de modo a ampliar a compreensão do fenômeno em
questão, sem sugerir que uma atitude exija outra que a complete como se houvesse algum tipo
de lacuna que deve ser preenchida. A noção de “justaposição negativa” de Bion pressupõe
uma concepção de suplementariedade, assim como as ideias de coexistência e de alternância
entre diferentes atitudes mentais conforme a dominância de uma ou de outra.
Se considerarmos as afirmações de Freud sobre a psicose apresentadas em “Neurose e
psicose” e em “Fetichismo”, a primeira modificação de Bion estaria apoiada na ideia de não
haver um afastamento total do ego da realidade, ao menos, diz Bion, “no tocante àqueles
pacientes que temos a chance de encontrar na prática analítica” (1957a, p. 46). Seriam
pacientes como os de Bion que justificariam a ideia de Freud em “A perda da realidade na
neurose e na psicose”, sobre a existência do afastamento parcial do ego? Pois, se de um lado
Bion se opõe à descrição de “Neurose e psicose”, de outro ele estaria de acordo com a
descrição presente em textos como “A perda da realidade...” sobre um afastamento parcial.
Ainda que Freud tenha se referido à presença de um contato do ego com a realidade na
psicose, suas afirmações são de fato bastante contraditórias; há uma indefinição que
155
certamente contribuiu para a inexistência de um aprofundamento em sua obra sobre a natureza
desse contato, bem como da perda. Essa indefinição parece resultar de uma combinação
sempre instável entre a teoria que acompanha a observação de um fenômeno e o fenômeno tal
como é apreendido em diferentes momentos por um mesmo autor ou por autores diferentes.
Quando Freud se refere a uma ausência de percepção, à perda da realidade, à perda do
efeito da percepção e à perda de participação do doente no mundo, supõe a existência de
diferentes fenômenos e de diferentes mecanismos operando no sistema Cs./Pcpt. na psicose.
Quanto a Bion, a partir das contribuições kleinianas, ele descreve fantasias de destruição que
colocam em questão a existência do próprio aparelho psíquico. Para este autor, não se trata
propriamente de uma perda da realidade, mas de uma destruição em fantasia do aparelho
mental. Se no “Suplemento...” Freud afirma que “o ego rompe sua relação com a realidade;
retira a carga de investimento do sistema de percepções, Cs. [...] [e promove um] rompimento
[com] um de seus órgãos [o aparelho perceptivo]” (1917, p. 233)
xv
, para Bion há investimento
da pulsão de morte sobre esse aparelho e um método empregado para destruí-lo e eliminar os
fragmentos resultantes. A partir de sua clínica, acrescenta novas perspectivas à ideia de Freud
e entende que não é bem a realidade que é perdida, e sim aquilo que promove a sua
percepção, a sua consciência.
[...] o emprego da identificação projetiva seria particularmente severo contra
o pensamento [...] que estivesse voltado para as relações entre impressões de
objeto, pois, se essa ligação pudesse ser rompida ou, melhor ainda, nunca
forjada, então ao menos a consciência da realidade seria destruída ainda que
a realidade, ela mesma, não pudesse ser. (BION, 1957a, p. 50).
xvi
A partir de suas observações, Bion procura teorizar sobre o que ocorre com os
investimentos pulsionais na psicose, em especial com as impressões do objeto no sistema
inconsciente tal como estudadas por Freud em 1915b. Faz uso da expressão “impressão de
objeto” da mesma forma que Freud, mas não trabalha com a ideia de representação de palavra
156
e de coisa. “Impressão de objeto” está muito mais próxima da ideia de objeto na teoria de
Klein do que do conceito de representação na teoria de Freud. Mesmo a ideia de pensamento
não corresponde à forma como este é empregado na metapsicologia de Freud, por mais que
Bion utilize termos que se encontram na teoria do autor. A noção de rompimento é pensada
em relação à ligação entre os mais diversos conteúdos psíquicos entre si; no caso desse artigo,
aos elos que formam o pensamento primitivo e promovem a consciência da realidade. O tema
foi especialmente discutido no artigo “Ataques à ligação” (BION, 1959), onde o próprio elo
ou “aquilo-que-liga” é tratado como um objeto que tem representação na fantasia e é
identificado ao seio e ao pênis.
2
O ataque ao pensamento verbal, decorrente de uma conscientização da realidade
impossível de ser tolerada, seria mais efetivo se fosse dirigido aos seus primórdios de
formação, em especial, ao pensamento pré-verbal e à ligação entre seus elementos
constituintes, como os ideogramas. Sobre estes, falaremos no próximo item. A tentativa de
organizar um pensamento, mesmo que rudimentar, seria tão ameaçadora à personalidade
psicótica que nem certas alucinações nem o pensamento onírico ou as fantasias poderiam se
formar. Um dos pacientes de Bion afirma isso de maneira categórica: “Eu tenho um problema
que estou tentando resolver. Quando criança eu nunca tive fantasias. Eu sabia que elas não
eram fatos, então parei com elas. Hoje em dia eu não sonho”. (BION, 1954, p. 25).
xvii
A
interpretação subsequente de Bion é bastante clara quanto à dificuldade do paciente: “[...] sem
fantasias e sem sonhos você não tem como pensar seus problemas”. (Ibid., p. 25).
xviii
Note-se
que Bion aproxima a noção de pensamento das atividades de sonhar e fantasiar e, nesse
sentido, sua ideia está em consonância com a noção de Freud de pensamento inconsciente;
porém, está distante da noção de pensamento como uma atividade do processo secundário
que, na teoria de Freud (1911b), é aquele que procura dar conta de resolver problemas e
2
Uma análise crítica dessas concepções de Bion em relação ao pensamento de Freud pode ser encontrada em
Meltzer (1998).
157
questões do mundo interno e externo. Para Bion, a partir de Melanie Klein, os sonhos e as
fantasias estariam na base da resolução de problemas.
A noção de ataque ao pensamento verbal foi estendida por Bion à ligação interpsíquica
entre paciente e analista, estabelecida por meio da comunicação verbal, bem como pré e não
verbais dadas por meio da identificação projetiva. Nesse sentido, foi necessário discriminar
uma identificação projetiva excessiva, voltada para a expulsão dos fragmentos indesejáveis da
personalidade, de uma identificação projetiva realista. Esta última estaria voltada para a
comunicação de um estado mental insuportável a um determinado objeto que é capaz de
modificar esse estado e promover a restauração dos fragmentos. Embora essa forma de
empregar a identificação projetiva seja essencial para o desenvolvimento psíquico, ela é,
certamente, ameaçadora à personalidade psicótica. Isso parece embaralhar a concepção de que
na psicose, sob o princípio do prazer e sob o domínio dos processos primários, a intenção é
meramente evacuar um estímulo insuportável e impedir que este seja reconhecido como algo
próprio.
Quanto à fantasia de destruição descrita em “Diferenciação...”, Bion afirma que, em se
tratando de uma fantasia onipotente, o contato proporcionado pelo ego com o mundo externo
não pode inexistir ou estar inteiramente perdido. Ainda segundo Bion, este contato acarreta a
presença de fenômenos tipicamente neuróticos. Dessa primeira proposta de modificação
decorre a segunda: o afastamento da realidade na psicose é uma ilusão e não um fato.
Quanto a esta última afirmação, podemos nos perguntar a quem Bion se refere quando
fala da ilusão: àquele que faz uma observação equivocada ou parcial do paciente, ou ao
próprio paciente? Quem se ilude quanto ao afastamento? Bion? Freud? Qualquer observador
da psicose? Mesmo a frase “o afastamento em relação à realidade é uma ilusão” dá margem a
algumas imprecisões: Seria ilusório o afastamento? Ou seria a ilusão a forma como esse
158
afastamento é realizado? O primeiro sentido diz respeito a um tipo de engano; já o segundo
sugere que a ilusão é a ação mental do afastamento.
3
Bion não é claro a esse respeito. No entanto, podemos afirmar que o estado do ego na
psicose e a precariedade no relacionamento com a realidade interna ou externa dão a
impressão de não haver investimento pulsional libidinal ou atributos psíquicos relacionados
ao contato com o mundo externo. Notar mecanismos e conteúdos relacionados a uma
personalidade não-psicótica ou neurótica no paciente psicótico desfaz essa impressão e a torna
uma ilusão. Nesse sentido, a existência de uma personalidade psicótica e outra não-psicótica
supõe uma simultaneidade de correntes antagônicas, ainda que entre elas haja um fosso
intransponível ou uma “justaposição negativa”, isto é, se uma está em evidência a outra
permanece encoberta. Bion diz:
Como resultado dessas modificações, concluímos que pacientes doentes o
bastante para, digamos, serem atestados como psicóticos, contêm em sua
psique uma parte não-psicótica da personalidade, que é uma presa para os
vários mecanismos neuróticos com os quais a psicanálise nos familiarizou, e
uma parte psicótica da personalidade, tão mais dominante, que a parte não-
psicótica da personalidade, com a qual existe em justaposição negativa, fica
obscurecida. (1957d, p. 267-268).
4
xix
Ao descrever os mecanismos de ambas as personalidades, afirma:
Enquanto a parte não-psicótica da personalidade recorre à repressão como
um modo de eliminar da consciência e de outras formas de manifestação e
atividade certas tendências na mente, a parte psicótica da personalidade
tenta se livrar do aparato de que a psique depende para realizar as
repressões [...]. (1957a, p. 52).
xx
3
Paulo C. Sandler (2005, p. 596-599) faz uma leitura desse trecho do texto de Bion apoiada nessa segunda
alternativa. A ilusão seria a maneira encontrada pelo neurótico para se afastar das frustrações da realidade,
conforme descreve Freud em diferentes trabalhos. A fantasia, a imaginação, o devaneio, a criação artística e a
crença religiosa são saídas para se lidar com uma realidade desconhecida e intolerável, e se alcançar um prazer
substitutivo, afastado das proibições da cultura e dos limites no relacionamento com os outros. Ao considerar
que é uma ilusão o afastamento da realidade proporcionado por uma fantasia psicótica onipotente, Sandler supõe
a existência de um paradoxo na formulação de Bion e mostra como nela mesma estariam descritas as ações da
personalidade psicótica e não-psicótica.
4
Este trecho foi citado do International Journal of Psychoanalysis, pois na edição do artigo feita em Second
Thoughts (1993) e nos Estudos Psicanalíticos Revisados (1994b) há omissão de algumas palavras, tornando o
trecho incompreensível.
159
Essas ideias afirmam que a presença de uma não significa a ausência ou a inexistência
da outra. As observações clínicas da psicose mostraram a Bion que se poderia atribuir aos
pacientes características neuróticas que estariam encobertas pelo predomínio de uma
personalidade psicótica, bem como atributos neuróticos que poderiam obscurecer a parte
psicótica. Esse fato justifica o termo “justaposição negativa” e a presença de uma cisão entre
as mesmas. A prevalência de uma delas poderia dar ao observador a impressão de que a outra
não existiria. A existência concomitante das mesmas corresponde à impressão que Freud tem
desse fenômeno na psicose, ao menos em alguns textos.
4.3 Exemplo clínico de justaposição negativa entre psicose e neurose
Bion descreve as sessões analíticas em “Diferenciação...” da seguinte maneira: as
associações produzidas pelo paciente eram escassas; ele pouco acreditava que seu
comportamento na sala de análise ou que suas palavras tivessem qualquer significado
diferente daquele que fosse totalmente pontual e concreto; dizia não fazer ideia do sentido dos
sonhos raramente narrados; não acreditava nas interpretações e sentia que o analista usava a
sua mente sem o seu consentimento. (Sobre esta última passagem podemos pensar tanto em
um analista que é sentido como invasivo quanto em um analista que não está conformado a
algum tipo de controle do paciente. A ambiguidade da afirmação parece anunciar o tema em
questão. Se tomarmos como base a qualidade da relação do paciente com a realidade externa,
então a afirmação pode tanto expressar o desconhecimento do outro enquanto alguém
independente e que é temido por ser mais poderoso que o paciente quanto alguém que é
reconhecido como relativamente independente de seus desejos).
160
Em meio ao deserto de associações e símbolos, Bion pôde colher impressões e
fragmentos de sentido que pouco a pouco lhe renderam a condição de organizar o material em
uma narrativa e propor uma interpretação. Ainda que a personalidade psicótica sobressaísse,
foi possível reconhecer elementos que indicavam o funcionamento de fenômenos não-
psicóticos. Tentaremos mostrar como Bion descreve a coexistência dessas personalidades
através de um fragmento clínico.
Em certa altura da análise, após uma interpretação, o paciente sente sua cabeça
rachando, “provavelmente meus óculos escuros”, diz ele – óculos que Bion (e não o paciente)
havia usado meses antes. A relação de sentido entre os termos da frase não fica clara: “My
head is splitting; maybe my dark glasses” (1957a, p. 56). Ambos os termos, assim como as
ideias que estão contidas no ideograma “óculos escuros” – sobre o qual falaremos a seguir –
reúnem-se de um modo peculiar a certas fantasias e não de um modo gramatical; entre eles
não há necessariamente uma relação, por exemplo, de causa e consequência e sim de
aglomeração. Sobre a menção do paciente aos óculos, Bion diz:
Uns cinco meses antes eu usara óculos escuros; até onde posso dizer, o fato
não produzira reação algum até esse dia, mas isso se torna menos
surpreendente se considerarmos que eu, usando óculos escuros, fui sentido
pelo paciente como sendo um dos objetos que mencionei quando descrevi o
destino das partes expelidas do ego. (p. 56-57).
xxi
Quando o paciente se refere aos óculos escuros, ele usa essa imagem como meio
através do qual sente que pode trazer de volta partes suas que haviam sido expulsas e que
tinham uma existência fora de si. Entre elas estão fragmentos de funções do ego e emoções
como o ódio. O paciente tenta com isso pensar sobre as suas dificuldades e fazer algum
julgamento sobre o que é real e o que é imaginário.
Se a personalidade não-psicótica “faz a hora” usando dados da realidade e dos
atributos do ego para modificá-la, para transmitir e buscar o que deseja, a personalidade
161
psicótica “espera acontecer”. Segundo Bion, ela “[...] tem que esperar a ocorrência de um
evento oportuno, antes de sentir que tem a posse de um ideograma que serve para ser utilizado
na comunicação consigo ou com os outros.” (p. 57).
xxii
Pois bem, a figura de Bion com óculos
escuros e, posteriormente, a menção aos óculos ilustra essa característica e marca a
necessidade da personalidade psicótica de reparar o ego despedaçado a fim de lidar com as
exigências da realidade. É interessante notar que esse evento propício, no caso, o analista que
um dia aparece de óculos escuros, emerge na análise meses depois como uma imagem que
expressa um fato concreto e não como um sonho ou como uma lembrança que o paciente se
refere de maneira plenamente simbólica. Vale notar também que esse uso do ideograma é
associado por Bion ao que ele reconhece como um impulso para comunicar; isto é, para
realizar-se, esse impulso requer um ideograma. Nada mais é dito sobre este impulso, no
entanto, em Cogitações (1994a), Bion fará algumas afirmações sobre a natureza da pulsão,
tendo por base o artigo de Freud “Os instintos e suas vicissitudes” (1915a), suplementando as
ideias apresentadas em “Diferenciação...”.
Sugerindo mais uma vez uma abordagem que frutificaria certas concepções de Freud,
Bion (1994a) considera que toda a vida pulsional está compreendida em uma bipolaridade
entre narcisismo e o que ele chama de social-ismo. A divisão entre pulsões do ego e pulsões
sexuais renderia mais frutos caso fosse pensada em termos de uma divisão que se dá na
própria pulsão entre um polo social e outro narcísico.
5
As considerações de Bion sobre essa
ideia são breves e esparsas, mas nos faz pensar que o impulso para comunicar teria uma
dimensão que considera o social, conforme o paciente descrito em “Diferenciação...”, e outra
que o desconsidera. Sobre essa última dimensão, Bion afirma:
5
Luiz Carlos Junqueira Filho (2004), ao comentar sobre a abordagem de Bion à pulsão em relação a “Os
instintos e suas vicissitudes”, diz que “Uma leitura atenta do texto de Freud, no entanto, nos mostra que ele
[Freud] tinha plena noção da importância do espectro narcisismo social-ismo [...]” (p. 308). A complexidade
das formas de presença de Freud em Bion mostra-se novamente na ideia de que, ao frutificar as concepções do
primeiro, Bion está fazendo uso do legado de Freud também de modo silencioso e singular.
162
Sei que o ódio do paciente à realidade é fortemente colorido pelo sentimento
de que um senso de realidade leva à estimulação do aspecto socialmente
polarizado de seus impulsos emocionais, e que esta estimulação é sentida
como uma ameaça ao aspecto ego-cêntrico de seus impulsos emocionais, e,
portanto, ao seu narcisismo [...]. (1994a, p. 19).
xxiii
Uma das consequências do abrandamento dessa sensação de ameaça é descrita em
“Diferenciação...” no episódio em que a personalidade psicótica faz uso do ideograma para
restaurar seu ego. A fim de explicar este uso, Bion recorre às descrições de Freud sobre as
aquisições do aparelho psíquico sob o princípio de realidade. Sua afirmação é surpreendente
do ponto de vista da teoria freudiana, mas coerente com a explicação do fenômeno em
questão: “[...] o armazenamento de tal evento para uso como um ideograma se aproxima da
descrição de Freud de busca por dados, de modo que eles sejam familiares caso uma
necessidade urgente surja, como a função da atenção enquanto um dos aspectos do ego”.
(1957a, p. 62).
xxiv
Para Bion, a necessidade em questão parece ser a de restauração do ego.
Para Freud (1911b), a necessidade urgente significa um desejo que precisa se realizar de
maneira imediata (pela satisfação alucinatória) ou indireta (pela modificação da realidade). A
atenção, enquanto uma atividade da consciência, é constituída sob o princípio de realidade e
volta-se para o mundo em busca de dados, ao invés de esperar que eles surjam, a fim de torná-
los familiar. Nesse processo também é constituído um sistema de notação que armazena esses
dados na forma de memória. Para Bion, o psicótico espera pela ocorrência de um evento
oportuno, mas, ao armazenar os dados, tem a chance de recorrer a eles quando precisar
satisfazer as necessidades da personalidade psicótica. Esse uso estaria a serviço de processos
estruturantes do psiquismo e não a serviço da manutenção do sistema delirante, como vimos
no primeiro capítulo.
O ideograma é, então, uma forma de armazenar dados por meio de uma imagem que
expressa um conjunto de fantasias e um estado mental bastante primitivo. A partir do
surgimento do ideograma na sessão, Bion pôde reconstruir toda uma experiência do paciente
163
com o objeto primordial, através da recordação de associações do paciente e do recolhimento
de fragmentos de ideias ao longo da análise. Entre as experiências mencionadas por Bion
estão conflitos psicóticos, relacionados à destruição do aparelho psíquico, e neuróticos,
relacionados à percepção da situação edípica. Um mesmo ideograma serve, portanto, a ambas
as personalidades. O analista formula ao paciente a natureza de suas dificuldades e seus
problemas de acordo com aquela que está em evidência.
Quanto à personalidade não-psicótica, um evento como aquele em que o analista usa
óculos escuros está armazenado na forma de um ideograma, que serve à expressão de um
conflito entre emoções e ideias, e reúne um conjunto de fantasias e de experiências do
paciente relacionadas à cena primária. Esse conflito pode emergir na personalidade assim que
a restauração do ego é alcançada; no entanto, caso a realidade revelada seja intolerável, a
personalidade psicótica tentará resolver o conflito por meio de cisões subsequentes.
Os mecanismos psicóticos e neuróticos procuram lidar, respectivamente, com a
corrente mental que renega e com a que aceita a realidade. Parece-nos que aquilo que é
recusado pela personalidade psicótica é o que na personalidade não-psicótica leva ao
desenvolvimento de uma problemática neurótica. Nesta última há trabalho psíquico
proporcionado pela repressão de modo que questões relativas ao Édipo são formuladas, por
exemplo, em sonhos; nela é também possível a expressão da realidade psíquica por meio do
uso de símbolos verbais ao invés da evacuação sob o princípio do prazer. O trabalho de
reconstrução do ego de que se ocupa a personalidade psicótica presentifica a situação edípica
que foi rechaçada. Bion diz: “[...] o que existe na realidade que a torna tão odiosa para o
paciente [...] é a situação edípica sexualmente orientada [...].” (1957b, p. 88).
xxv
A ela
podemos incluir a percepção da diferença entre os sexos e de gerações, a passagem do tempo,
a impotência, a dependência e o desamparo diante da realidade.
164
Uma contribuição de Bion para o trabalho clínico do analista pode ser colocada da
seguinte forma: devemos fazer pelo paciente aquilo que o paciente não pode fazer por si, isto
é, reconhecer e sustentar a presença daquilo que foi expulso, que está cindido, mas que existe
em negativo, de modo obscurecido. Se há uma justaposição negativa das personalidades na
psicose, se há algum contato com a realidade, isso precisa ser levado em consideração. Não é
só a loucura que deve ser sustentada mentalmente pelo analista, mas também a sanidade, a
realidade odiada, a sexualidade, a posição depressiva.
Foi provavelmente com base nessas constatações que, em Aprendendo da experiência
(1962b), Bion propôs uma emended version – uma emenda ou correção – à teoria de Freud
sobre o princípio do prazer, preferindo considerar a sua coexistência ao princípio de realidade
já na formação do psiquismo:
O paciente, mesmo no início da vida, tem suficiente contato com a realidade
para ser capaz de agir de forma a produzir na mãe sentimentos que ele não
quer, ou quer que a mãe os tenha. Para fazer a teoria corresponder a esses
achados clínicos, sugeri uma versão emendada [emended version] da teoria
do princípio do prazer de Freud de modo que o princípio de realidade
devesse ser considerado a operar em coexistência ao princípio do prazer.
(1962b, p. 31).
xxvi
Nesse livro, Bion diz ainda ser necessário modificar a afirmação de Freud sobre o
surgimento subsequente de um princípio sobre o outro. (Cf. 1962b, p. 23). Porém, soa
estranho ele enfatizar essa afirmação de Freud em vez de se referir a outras passagens de seu
pensamento, como na nota de rodapé em “Formulações...” onde Freud sugere que a existência
exclusiva do princípio do prazer seria uma ficção. Em Cogitações, por exemplo, Bion
escreve: “[...] como Freud viu, o impulso ao prazer não está ausente sob o domínio do
princípio de realidade, nem o princípio de realidade está ausente sob a dominância do
princípio do prazer. (1994a, p. 99).
xxvii
Ora Bion se opõe a Freud ora Bion concorda.
Lembramos que, ao contrário da segunda afirmação, a primeira está contida em uma
165
publicação onde Bion procurava justificar uma teoria do pensar e da observação de
fenômenos que não tinham lugar psíquico, que estavam pulverizados em fragmentos
minúsculos e expulsos da personalidade. No entanto a própria palavra emend dá margem a
alguma imprecisão quanto à intenção de Bion – sua tradução pode significar tanto emendar e
acrescentar quanto algo mais radical como retificar, reparar ou corrigir.
Em diferentes momentos, de acordo com um objetivo específico, Bion faz uso de
partes de afirmações de Freud. Ele não parecia interessado em revisar toda a teoria freudiana
ao fazer uma determinada afirmação. Em “Diferenciação...”, ao sugerir suas modificações em
relação a Freud, refere-se a “Neurose e psicose”, mas não ao também citado “A perda da
realidade...” ou ao “Esboço...” – textos que certamente tornariam problemático o uso de uma
palavra como modificação. Porém, se essa palavra não estiver se referindo apenas à ideia de
perda, e sim, como parece ser o caso, a toda uma configuração mental descrita por Bion, onde
estão presentes noções como a de fantasia onipotente, de destruição do aparelho mental e
identificação projetiva de seus fragmentos, onde, inclusive, a ambiguidade do conceito de
recusa ganha um lugar ou uma configuração possível com o termo “justaposição negativa”,
então a proposta de modificação certamente se justifica.
Bion notou em seus pacientes operações defensivas surpreendentes, envolvidas com o
aniquilamento da própria personalidade. Neste sentido, foi preciso descrever uma ação que
não só eliminaria um conteúdo intolerável como levaria consigo a possibilidade de se existir
enquanto uma pessoa. O paciente de “Diferenciação...”, através de uma fantasia onipotente,
procura ativamente destruir todo o acesso à realidade “e, assim, alcançar um estado que não é
de vida nem de morte” (1957a, p.46). Enquanto a personalidade neurótica reconheceria uma
interpretação como matéria para a formação de sonhos, de associação livre, de
reconhecimento da realidade, a personalidade psicótica tomaria essa possibilidade de
reconhecimento como algo aterrorizante, destinado à eliminação imediata. Neste caso, a
166
personalidade psicótica encobriria a presença de percepções recolhidas e usadas pela
personalidade não-psicótica.
Ao observador, fica a impressão de haver perda de toda a participação no mundo,
como sustenta Freud em certos textos. A manutenção da cisão entre elas evitaria a provocação
daquilo que, em seus últimos trabalhos, Bion chamou de turbulência ou tempestade
emocional. Quer se trate de uma cisão entre duas personalidades na mesma pessoa ou de duas
pessoas diferentes, o encontro entre elas seria sempre perturbador. Em seu último artigo,
escrito em 1979, Bion diz: “Quando duas personalidades se encontram, cria-se uma
tempestade emocional. Se elas fazem contato suficiente para estar ciente uma da outra ou
mesmo suficiente para estar inconsciente uma da outra, um estado emocional é produzido
[...].” (p. 321).
xxviii
Uma das funções da cisão seria evitar a inundação de emoções e o contato
com o outro, com a alteridade.
Se uma das intenções de Bion é promover contribuições e modificações no corpo
teórico freudiano de modo que se “ajustem à experiência clínica” (p. 46), outra intenção,
menos evidente neste momento, sugere uma atenção à atitude mental do analista. A despeito
da diferença ou divergência que se estabelece entre as personalidades, a ideia de ilusão e o
termo “justaposição negativa” significam que a presença de duas ações, uma psicótica e outra
neurótica, devem ser consideradas ao mesmo tempo, ainda que uma esteja obscurecida pela
outra e ainda que o trabalho do analista com cada uma deva ocorrer quando uma delas se
impuser.
Em “Diferenciação...”, da mesma forma que em Aprendendo..., a intenção de
modificar a descrição de Freud parece ser de cunho observacional: ela está relacionada ao
modo com que certas teorias poderiam ser ajustadas para exprimir o dinamismo dos
fenômenos e a presença de tendências divergentes.
167
A emended version e a noção de justaposição negativa referem-se não só a
modificações na teoria, mas também a uma proposta de observação que chama a atenção para
a importância de se notar simultaneidades. No primeiro caso, entre o princípio de prazer e o
de realidade; no segundo, entre uma personalidade psicótica e uma não-psicótica. Em seus
trabalhos dos anos 60, nos quais Bion discute sobre o método em psicanálise, fica mais claro
que as modificações sugeridas direcionam-se menos à proposição de uma nova teoria e mais à
promoção de mudanças em certas teorizações para que estas ganhassem a flexibilidade
necessária para a observação e se tornassem, assim, mais próximas ao que, para ele, seriam os
fatos. Fica mais claro, também, que essas modificações não são uma garantia de que, na
prática, o psicanalista consiga observar a ação de tendências divergentes e dicotômicas
simultaneamente, principalmente quando há uma personalidade psicótica procurando impor-
se sobre a sua mente através da identificação projetiva excessiva e querendo provocar reações
condizentes à fantasia subjacente. A ilusão parece ser um risco difícil de ser evitado.
As modificações de Bion em relação a Freud, que por sua vez estiveram apoiadas nas
ampliações e modificações de Klein sobre a cisão e a recusa, não deixam de estar
acompanhadas de ideias e da tradição de pensamento do próprio Freud. Parece-nos que parte
da proposta de mudança de Bion se dá sobre a compreensão dos fenômenos e sobre a forma
de abordagem dos mesmos; ao mesmo tempo, ressalta uma forma de apreensão presente no
texto de Freud “Esboço...” (1940a) que não é citada. Podemos dizer, assim, que Bion ao
mesmo tempo modifica e preserva um olhar que também está em Freud sobre a dinâmica de
certos fenômenos, ampliando o seu uso clínico e a compreensão teórica dos mesmos.
168
NOTAS DE FIM
i
[...] my clarification of the obscurity that pervades the whole of a psychotic analysis […]. (BION, 1957a/1993,
p. 43).
ii
[…] provide the foundation for intuitive understanding of himself and others […]. (BION, 1957a/1993, p. 47).
iii
[...] to bring it into closer relation with the facts. (BION, 1957a/1993, p. 46).
iv
[...] the ego, in virtue of its allegiance to reality, suppresses a part of the id (the life of instinct), whereas in the
psychoses the same ego in the service of the id, withdraws itself from a part of reality. (FREUD, 1924b, apud
BION, 1957a/1993, p. 45).
v
[…] neurosis does not disavow the reality, it only ignores it; psychosis disavows it and tries to replace it.
(FREUD, 1924b, p. 185).
vi
[…] I very much extend the function and importance of thought, but otherwise accept the classification of ego
function, which Freud put forward as putative, as giving concreteness to a part of the personality with which this
paper is concerned. (BION, 1957a/1993, p. 46).
vii
It accords well with clinical experience and illuminates events which I should have found infinitely more
obscure without it. (BION, 1957a/1993, p. 46).
viii
I would make two modifications in Freud´s description to bring it into closer relation with the facts. I do not
think, at least as touches those patients likely to be met with in analytic practice, that the ego is ever wholly
withdrawn from reality. I would say that its contact with reality is masked by the dominance, in the patient’s
mind and behavior, of an omnipotent phantasy that is intended to destroy either reality or the awareness of it, and
thus to achieve a state that is neither life nor death. Since contact with reality is never entirely lost, the
phenomena which we are accustomed to associate with the neuroses are never absent [...]. On this fact, that the
ego retains contact with reality, depends the existence of a non-psychotic personality parallel with, but obscured
by, the psychotic personality. My second modification is that the withdrawal from reality is an illusion, not a
fact, and arises form the deployment of projective identification against the mental apparatus listed by Feud.
Such is the dominance of this phantasy that it is evident that it is no phantasy, but a fact [...]. BION, 1957a/1993,
p. 46).
ix
In Meynerts amentia – an acute hallucinatory confusion, which is perhaps the most extreme and striking form
of psychosis – either the external world is not perceived at all, or the perception of it has no effect whatever. [...]
In amentia, not only is the acceptance of new perceptions refused (verweigert), but the internal world, too, [...]
loses its significance (its cathexis). (FREUD, 1924a, p. 150-151).
x
We know that others forms of psychosis, the schizophrenias, are inclined to end in affective hebetude- that is,
in a loss of all participation in the external world. In regard to the genesis of delusion, a fair number of analysis
have taught us that the delusion is found applied like a patch over the place where originally a rent had appeared
in the ego’s relation to the external world. (FREUD, 1924a, p. 151).
xi
Amentia is the reaction to a loss which reality affirms, but which the ego has to deny, since it finds it
insupportable. (FREUD, 1917/1957, p. 233).
xii
Even in a state so far removed from the reality of the external world […] in some corner of their mind […]
there was a normal person hidden […]. (FREUD, 1940a, p. 201-202).
xiii
We may probably take in as being generally true that what occurs is all these cases is a psychical split. Two
psychical attitudes have been formed instead of a single one – one, the normal one, which takes account of
reality, and another which under the influence of the instincts detaches the ego from reality. The two exist
alongside of each other. The issue depends on their relative strength. If the second is or becomes the stronger, the
necessary precondition for a psychosis is present. If the relation is reversed, then there is an apparent cure of the
delusional disorder. (FREUD, 1940a, p. 202).
169
xiv
It must be thought that fetishism presents an exceptional case as regards a splitting of the ego; it is merely a
particularly favorable subject for studying the question. Let us return to our thesis that the childish ego, under the
domination of the real world, gets rid of undesirable instinctual demands by what are called repressions. We will
supplement this by further asserting that, during the same period of life, the ego often enough finds itself in the
position of fending off some demand from the external world which it feels distressing and that this is effected
by means of a disavowal of the perceptions which bring to knowledge this demand from reality. Disavowals of
this kind occur very often and not only with fetishists; and whenever we are in a position to study them they turn
out to be half-measures, incomplete attempts at detachment from reality. The disavowal is always supplemented
by an acknowledgment; two contrary and independent attitudes always arise and result in the situation of there
being a splitting of the ego. Once more the issue depends on which of the two can seize hold of the greater
intensity. (FREUD, 1940a, p. 203-204).
xv
[…] the ego breaks off its relation to reality; it withdraws the cathexis from the system of perceptions, Cs […].
[…] a breach between the ego and one of its organs […] (FREUD, 1917, p. 233).
xvi
[…] the deployment of projective identification would be particularly severe against the thought, of
whatsoever kind, that turned to the relations between object-impressions, for if this link could be severed, or
better still never forged, than at least consciousness of reality would be destroyed even though reality itself could
not be. (BION, 1957a/1993, p. 50).
xvii
I have a problem I am trying to work out. As a Child I never had phantasies. I knew they weren’t facts so I
stopped them. I don’t dream nowadays. (BION, 1954/1993, p. 25).
xviii
[...]Without phantasies and without dreams you have not the means with which to think out you problem.
(BION, 1954/1993, p.25).
xix
As a result of these modifications we reach the conclusion that patients ill enough, say, to be certified as
psychotic, contain in their psyche a non-psychotic part of the personality, a prey to the various neurotic
mechanisms with which psycho-analysis has made us familiar, and a psychotic part of the personality which is
so far dominant that the non-psychotic part of the personality, with which it exists in negative juxtaposition, is
obscured. (BION, 1957, p. 267-268).
xx
Where the non-psychotic part of the personality resorts to repression as a means of cutting off certain trends in
the mind both from consciousness and form other forms of manifestations and activity, the psychotic part of the
personality has attempted to rid itself of the apparatus on which the psyche depends to carry out the repressions
[...]. (BION, 1957a/1993, p. 52).
xxi
Now some Five months previously I had worn dark glasses; the fact had, as far as I could tell, produced no
reaction whatever from that day to this, but that becomes less surprising if we consider that I, wearing dark
glasses, was felt by him as one of the objects to which I referred when describing the fate of the expelled
particles of ego. (BION, 1957a/1993, p. 56-57).
xxii
[...] have to wait the occurrence of an apt event before it feels it is in possession of an ideograph suitable for
use in communication with itself or with others. (BION, 1957a/1993, p. 57).
xxiii
I know the patient’s hatred of reality is strongly coloured by the feeling that a sense of reality carries with it a
stimulation of the socially polarized aspect of his emotional drives, and that this stimulation is felt to menace the
ego-centric aspect of his emotional drives and therefore his narcissism […]. (BION, 1994a, p. 19).
xxiv
[…] the storage of such an event for use as an ideograph approximates to Freud’s description of a search for
data, so that they might be already familiar, if an urgent inner need should arise, as a function of attention as one
of the aspects of the ego. (BION, 1957a/1993, p. 62).
xxv
[…] what there is in reality that makes it so hateful to the patient […] it is the sexually orientated Oedipus
situation […]. (BION, 1957b/1993, p. 88).
xxvi
The patient, even at the outset of life, has contact with reality sufficient to enable him to act in a way that
engenders in the mother feelings that he does not want, or which he wants the mother to have. To make theory
correspond to these clinical findings I have suggested an emended version of Freud’s pleasure principle theory
170
so that the reality principle should be considered to operate co-existentially with the pleasure principle. (BION,
1962b/1989, p. 31).
xxvii
[...] as Freud saw, the impulse to pleasure is not absent under the domination of the reality principle, nor is
the reality principle absent under the dominance of the pleasure principle. (BION, 1994, p. 99).
xxviii
When two personalities meet, an emotional storm is created. If they make sufficient contact to be aware of
each other, or even sufficient to be unaware of each other, an emotional state is produced […]. (BION,
1979/1994, p. 321).
171
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para encerrar o trabalho, faremos uma breve retomada de nossa questão inicial à luz
do que foi discutido. Nosso propósito consistiu em acompanhar a construção do pensamento
clínico e teórico de Bion em seus textos da década de 1950 a partir do que nomeamos de
presenças de Freud. O objetivo não era apenas ler texto por texto, mas, sobretudo, notar
diferentes modalidades de presença a fim de mostrarmos as ligações entre os autores e,
também, a forma com que algo da herança de Freud pode ser reconhecida em Bion num
momento em que ele está predominantemente imerso na tradição kleiniana. Em acréscimo,
demos algumas indicações de como certas ideias e conceitos de Freud, seja por seus limites,
seja por sua relevância, balizaram o caminho de Bion em direção à formulação de sua Teoria
do Pensar nos anos 60.
Mais do que mapear as diferentes formas de presença de Freud nos textos de Bion,
nossa intenção foi acompanhar o pensamento clínico e teórico desenvolvido pelo autor na
década de 1950 a partir de remissões explícitas e implícitas ao pensamento de Freud, sem, no
entanto, pretender esgotá-las. Em certas passagens de nosso trabalho, exploramos mais
detidamente as ligações intertextuais entre os autores, aprofundamos a compreensão de suas
concepções, bem como acompanhamos as semelhanças e diferenças entre eles. Em outras
passagens, as ligações estão apenas indicadas e sugerem o desenvolvimento de novos estudos.
Se há uma dívida de Bion com o pensamento de Freud – conforme a afirmação de
Green (1998) –, existe um legado cuja evidência não se dá apenas com as citações ao autor.
Além dos conceitos e noções de Freud que foram empregados e discutidos de maneira
explícita em seus textos, entendemos que outras ideias, concepções e trabalhos dele estiveram
presentes de maneira menos evidente, mas igualmente passíveis de serem reconhecidas. Freud
172
mostrou-se incorporado em suas concepções teóricas e práticas de um modo silencioso e nem
sempre evidente. Essas diferentes presenças se tornaram apreensíveis mediante a escuta de
ecos, alusões, ressonâncias e lembranças que, assim como as referências explícitas, remetem o
leitor ao pensamento de Freud. Ao estudarmos o trabalho de Bion com a psicose, assim como
o seu interesse pela teorização do funcionamento mental primitivo e pela construção de um
pensamento voltado para a compreensão de fenômenos observados no consultório, notamos
que Freud foi certamente um interlocutor privilegiado.
Ao nos questionarmos sobre os modos com que esse autor se faz presente nos textos
de Bion, perguntamos também que tipo de leitor de Freud foi Bion e quais foram os destinos
de suas ideias em seus textos. Essa questão permitiu que formássemos uma noção do alcance
e dos limites de seus conceitos e que adquiríssemos uma noção da natureza do lugar ou dos
lugares de Freud em seu pensamento.
Enquanto Bion apresenta suas observações clínicas e concepções teóricas sobre a
psicose e, a partir delas, suas contribuições sobre os primórdios da formação do psiquismo,
recorrentemente remete-se a Freud e conta com as formulações deste autor para construir um
entendimento próprio acerca de certas problemáticas e fenômenos. Ao fazê-lo, notamos que
Bion não esteve necessariamente preocupado em reproduzir e preservar um sentido original;
além disso, conceitos de Bion foram desenvolvidos a partir de um contexto clínico e
estiveram voltados para a elucidação de fenômenos que são bastante diferentes daqueles
descritos por Freud. Vimos, também, que Bion não esteve comprometido com Freud de modo
a levar em conta o todo de sua obra e as modificações que, nela, diversos conceitos sofreram.
Algumas concepções de Freud foram empregadas por Bion de um modo pontual e de acordo
com a necessidade de formular conceitos, elucidar determinadas experiências e permitir que
certos fenômenos pudessem ser mais bem descritos. Para tanto, ora Bion se apoiou em Freud,
173
ora usou as suas concepções para se situar melhor em relação às suas próprias ideias, ora se
contrapôs a ele, ora usou Freud para dar legitimidade às suas formulações.
Nos artigos de Bion, as teorias de Freud são muito mais uma fonte para o pensamento
clínico do que fonte para a discussão conceitual. Se transpusermos ao campo da
intertextualidade o significado da palavra “fonte” e o associarmos à metáfora de Hillis Miller
(1995) sobre a relação intercambiante entre parasita e hospedeiro, podemos dizer que o texto
de Freud é uma fonte na qual Bion se alimentou e se abasteceu para enriquecer compreensões
e para iluminar eventos observados; também é fonte que fez render concepções e descrições
do próprio Freud. Como vimos no segundo capítulo, a ideia de que Bion frutificou a
abordagem clínica de Freud com o termo “pele mental” transmite algo da complexidade da
ligação entre os autores: Bion observou semelhanças entre o seu caso clínico e o de Freud e
usou conceitos deste autor para tornar mais frutífera a descrição clínica apresentada em “O
inconsciente” (1915b) a partir de concepções de Freud mais tardias, como aquelas
apresentadas em “O Ego e o Id” (1923). No entanto, isso foi feito por Bion à luz de sua
própria experiência clínica e à luz de concepções desenvolvidas dentro da tradição kleiniana.
Como bom parasita que é, Bion também recorreu a descrições de Freud para depois
descartá-las e, então, mostrar uma abordagem conceitual e prática mais adequada à sua clínica
e às suas observações. Como vimos no capítulo quatro, a abordagem de Bion sobre o conflito
na psicose entre o ego e o ambiente divergiu de algumas concepções de Freud, mas não de
outras. A coexistência na personalidade entre uma parte que ignora e outra que observa “o
tumulto da doença”, conforme expressão de Freud (1940a), está em consonância com a clínica
de Bion, mas não com afirmações de Freud feitas em artigos como “Neurose e psicose”
(1924a). A crença de que na esquizofrenia há perda de toda a participação no mundo externo
não faz jus ao uso que o psicótico faz da realidade tanto no sentido de fomentar sua doença
quanto no sentido de buscar a “ingestão de cura”, conforme expressão de Bion (1958). Este
174
autor entendeu que a função e a importância do pensamento deveriam ser expandidas, mas
considerou que as descrições de Freud sobre as funções e sobre os componentes do ego
ofereceram concretude e clareza a eventos que, sem elas, seriam certamente mais obscuros.
Esses e outros tantos exemplos que pudemos examinar ao longo de nosso trabalho fez
notar que a dívida de Bion com Freud e o compromisso com a tradição de pensamento do
autor não têm um caráter sistemático. Bion não se preocupa em ser coerente com o todo da
obra do autor e fala a partir de Freud sem necessariamente mencionar seus textos e seu nome.
Neste sentido, as citações e menções de Bion a Freud devem ser consideradas também em sua
dimensão menos evidente, passível de ser captada pelo leitor que não está atento somente ao
conteúdo manifesto do texto.
175
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